UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL O Reencantamento do Mundo Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu José Maurício Paiva Andion Arruti Rio de Janeiro 1996 1 José Maurício Paiva Andion Arruti O Reeencantamento do Mundo Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu Dissertação apresentada ao PPGAS do Museu Nacional, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social, realizada sob a orientação do Prof. Dr. João Pacheco de oliveira Filho e submetida à banca composta pelos Prof. Dr. Mariza Peirano e Otávio Velho. Rio de Janeiro fevereiro de 1996 Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 2 À Ana, Luciana e Jorcyra. Três mulheres que me inventaram. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 3 Resumo Este trabalho tem por objeto as condições sociais e simbólicas da “invenção cultural” e da “manipulação da identidade” entre grupos indígenas do Nordeste brasileiro, concentrando-se sobre uma dessas situações: o etnônimo Pankararu, localizado no sertão pernambucano do São Francisco, próximo à UHE de Itaparica. A análise desenvolve-se em dois planos, cada um deles correspondendo a dois capítulos. Propomos uma interprestação histórica sobre as emergências étnicas do Nordeste a partir das mudanças ideológicas e contextuais que levaram o órgão indigenista oficial a atuar na região e o novo padrão de indianidade gerado a partir daí, assim como das redes de contatos rituais e, depois, de mediadores políticos e religiosos que permitiram a deflagração das emergências (Cap.1). Apresentamos uma análise da emergência Pankarau e da construção de seu território a partir da série de intervenções e ressignificações entre burocracia e política nativa, que desembocam num “campo político autônomo” (Cap.2). Num segundo plano, propomos um modelo descritivo capaz de sintetizar, sem reduzir, o processo de construção e mutação territorial daqueles campo autônomo de novas relações sociais (Cap.3). Para em seguida investirmos sobre as dinâmicas de desterritorializações e reterritorializações que fogem ao recorte geométrico do território, descrevendo como uma topológica a constante produção da etnicidade (Cap.4). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 4 Agradecimentos O Macaco da Tinta Este animal existe em abundância nas regiões do Norte e tem quatro ou cinco polegadas de comprimento; os olhos são como cornalinas e o pêlo é negro azeviche, sedoso e flexível, macio como uma almofada. possui um instinto curioso: é grande apreciador da tinta nanquim, e quando as pessoas escrevem, senta-se com as mãos uma sobre a outra e as pernas cruzadas, esperando que tenham terminado, e bebe o que sobra da tinta. Depois volta a sentar-se de cócoras e fica tranqüilo. (J. L. Borges sobre Wang Ta-Hai, 1791) O pequeno animal que me acompanha e se alimenta de tudo que deixo de escrever, de tudo o que em meu discurso é lacunar, é falta, é incompletude, está sobre a mesa à minha frente. Ele me olha mais excitado que o de costume, sabe que nestas páginas se alimentará em fartura. Como cumprir aqui a tarefa do contra-dom? As dívidas nunca são saldadas. Muitos sentimentos opostos combinam-se em mim neste momento em que escrevo as últimas páginas deste trabalho. Dois deles são francos lugares comuns aos quais não consigo resistir. Talvez confirmando a força dos lugares comuns; com certeza revelando a razão já perdida das palavras rituais. A solidão do esforço de redação de um trabalho dessas dimensões (não físicas ou teóricas, mas existenciais), é algo que se sente a todo instante, a cada parágrafo, a cada dia, a cada fita transcrita, a cada queixa anotada nas margens do caderno-de-campo, a cada maço de fotos constantemente repassado, na busca de reminiscências e sensações que escaparam à toda caligrafia. Ao mesmo tempo, nascendo de dentro desta solidão, a certeza de que não seria possível manter-se são se, espreitando-nos, não existisse este círculo amoroso e amigável; rostos que nos acenam de longe e prometem a recompensa do estar-ao-lado, depois que voltarmos à superfície. Muitos rostos me trouxeram à superfície e as listas são sempre infiéis. Fico, por isso, com a menor delas. Emerson e Fabíola, por tudo de descoberta conjunta e recíproca; Aline, Edu e Priscila, grandes empréstimos que aos poucos foram transformando-se em conquistas; Nora e Jaime pela constante provocação e apoio (incluíndo o apoio definitivo de suas casas nos momentos finais de redação); e como não?, minha família, José, Jorcyira, Izabella, Alessandra e Lola (minha segunda mãe). Ao meu orientador, o professor João Pacheco de Oliveira Filho, agradeço a total liberdade e confiança em meu trabalho. Alguns mostraram extrema generosidade na leitura Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 5 de trechos desta dissertação, como os professores Moacir Palmeira e Márcio Goldman (à época ainda mais professor que amigo) e os amigos Omar e, novamente, Emerson. O trabalho de campo, por sua vez, multiplica as dívidas e os afetos. Muitas pessoas mostraram-me que é possível ainda uma enorme dose de solidariedade com desconhecidos. Ivson, Sílvia, José Filho e, principalmente, Vânia, foram fundamentais em Recife. Guga (da ANAÍ-BA), recebeu-me com simpatia e despreendimento em Salvador. Em Petrolândia (PE), Tacaratu (PE) e Paulo Afonso (BA), travei conhecimento e criei grande admiração pelo trabalho de uma equipe pastoral, donde acredito ter retirado amigos e gostaria de homenagear através do nome de Padre Adriano, sertanejo firme, que o acaso fez nascer na Itália. Em termos bastante concretos, esta dissertação não seria possível sem a bolsa fornecida pelo CNPq e a dotação (tipo-B) do Concurso Fundação Ford/ANPOCS, completadas durante o primeiro semestre de 1995 pela bolsa de assistente de pesquisa no PPGAS do Museu Nacional, oferecida por meu orientador. Nem sem o apoio da grande eficiência das funcionárias da secretaria e da biblioteca do PPGAS. Os colegas e professores deste programa também mereceriam um agradecimento especial pelo ambiente intelectual extremamente estimulante que me proporcionaram. Um momento absolutamente mágico se produziu nos meses finais desta dissertação. Minha filha Ana, nasceu em dezembro de 1995, quando tentava escrever as últimas páginas que você tem nas mãos. O caos e a felicidade que a sua chegada instauraram na minha vida são responsáveis por tudo de criativo que pode haver nessas páginas. A ela e sua mãe, Luciana, eu agredeço isto, o inominável, o imensurável, o tão simples sentimento de ser feliz. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 6 Conteúdo Resumo ............................................................................................................................................................. 4 Agradecimentos ............................................................................................................................................... 5 Conteúdo .......................................................................................................................................................... 7 Apresentação .................................................................................................................................................... 8 Notas sobre o percurso do autor ao texto. ................................................................................................... 10 Notas sobre o nome e a pessoa .................................................................................................................... 13 Capítulo 1 – Da visibilidade .......................................................................................................................... 14 PARTE 1: OS DESAPARECIMENTOS .................................................................................................... 14 A produção da invisibilidade ................................................................................................................... 14 Estratégias da conquista........................................................................................................................... 17 A mecânica do fim ................................................................................................................................... 25 Memória da violência .............................................................................................................................. 32 PARTE 2: AS EMERGÊNCIAS ................................................................................................................. 41 A produção da visibilidade ...................................................................................................................... 41 A produção das emergências ................................................................................................................... 46 A instituição das viagens ......................................................................................................................... 53 Levantar aldeia ........................................................................................................................................ 59 Capítulo 2 – Do governo ............................................................................................................................... 67 PARTE 1: DOMÍNIO TUTELAR .............................................................................................................. 67 Atos de fundação ..................................................................................................................................... 67 O governo das coisas ............................................................................................................................... 79 PARTE 2: RESSIGNIFICAÇÕES .............................................................................................................. 92 Arranjos anteriores .................................................................................................................................. 92 Burocracia e magia .................................................................................................................................. 98 A representação indígena....................................................................................................................... 102 Estado-pai-patrão ................................................................................................................................... 105 Capítulo 3 - Etnogeografia ............................................................................................................................ 113 Um território Semântico ........................................................................................................................ 113 Geografia Jurídica. ................................................................................................................................ 117 Geografia Ecológica. ............................................................................................................................. 121 Geografia Mítica. ................................................................................................................................... 126 Geografia dos homens ........................................................................................................................... 130 Geografia dos recursos. ......................................................................................................................... 138 Geografia ritual ...................................................................................................................................... 144 Capítulo 4 - Uma aldeia aberta .................................................................................................................. 158 Topologia .............................................................................................................................................. 158 Desterritorializações e reterritorializações ............................................................................................ 159 Antropologia das políticas de identidade ............................................................................................... 169 Ser e não ser .......................................................................................................................................... 179 A construção do contraste...................................................................................................................... 186 Uma escrava e dois senhores ................................................................................................................. 196 Anexos: ......................................................................................................................................................... 201 A1 - A morte e a morte de Cavalcante ....................................................................................................... 201 Por Ulisses Lins de Albuquerque: ......................................................................................................... 201 Por João Binga: ..................................................................................................................................... 202 A2 - A categoria de "Remanescentes Indígenas" ....................................................................................... 203 A3 - Lista das entrevistas gravadas ............................................................................................................ 204 Bibliografia .................................................................................................................................................. 206 Documentos Citados .................................................................................................................................... 211 Outros documentos consultados ................................................................................................................. 214 Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 7 Apresentação “Brejo dos Padres” é o nome de um pequeno vale de terras úmidas e muito férteis, localizado em pleno sertão pernambucano. Seu formato alongado, semelhante a um anfiteatro voltado para as margens do São Francisco, deve-se ao espraiamento de uma das últimas ramificações do maciço da Borborema que penetra o estado de Pernambuco, onde onde, ao alcançar as margens daquele rio, ganha o nome de Serra de Tacaratu. Em fins do século XVIII foram reunidos ali, por obra de padres de uma missão da ordem de São Felipe Néry, um grupo de índios provenientes de diferentes tribos: ou transferidos de aldeamentos recém-extintos, ou fugidos da perseguição bandeirante, ou simplesmente recolhidos de sua perambulação vagabunda. Mesmo antes, segundo o que diz a parca mas orgulhosa história oficial do município de Tacaratu, quando a missão instalou-se no local, já existia alí uma maloca indígena denominada Cana Brava, formada pela reunião de índios Pancarus, Umaus Vouvês e Geritacós, presumivelmente do grupo lingüistico Kariri. Em 1878, um ato imperial extinguiu esse aldeamento, ocupado então por pouco mais de 350 índios. Ao extingui-lo, o governo imperial contou com a ajuda de alguns importantes membros das localidades vizinhas, Tacaratú e Jatobá, para organizar a redistribuição das terras daquele brejo entre os caboclos que permaneciam ali. Foram distribuídos, então, pouco menos de 100 lotes familiares suficientes para os caboclos do Brejo produzirem para suas famílias, crescerem e se misturarem definitiva e livremente à população local, prosperando em seu próprio interesse e de sua Comarca. Passados pouco mais de 60 anos, o Serviço de Proteção ao Índio funda no mesmo vale, denominado ainda Brejo dos Padres, o posto indígena Pankararu, reconhecendo na população local, de cerca de 1100 habitantes, legítimos remanescentes daqueles antigos habitantes do aldeamento extinto. Hoje, 55 anos depois, os Pankararu, que as estimativas oficiais dizem ultrapassar os 5000, não só cresceram e se multiplicaram como tornaram-se cada vez mais visíveis, no município, no estado e no país, saindo freqüentemente de seu torrão para apresentam o Toré nas capitais, como forma de reclamarem providências contra a invasão de suas terras. Não só não foram extintos como também se expandiram, dando origem a novos grupos, ou ajudando que outros emergissem e retomassem suas tradições. A primeira parte desta dissertação, além de começar a colocar aspas e itálicos nas expressões até agora utilizadas, se dedicará a explorar os movimentos que permitiram essas sucessivas passagens dos Pankararu de um estado ao outro. Nesta primeira parte, nosso interesse repousa na duração, isto é, nas seqüências de ações e seus desdobramentos no tempo, em que as relações e deslocamentos sociais, ainda que substantivamente espaciais, ganham sentido ao se sucederem e nessa sucessão mudarem de natureza, oscilando entre o invisível e o visível. Nada mais distante, portanto, do conselho de Fustel de Coulange que recomendava aos interessados em ressuscitar uma época, que esquecessem tudo que sabiam de fases posteriores da história. Ao contrário, como propõe W. Benjamin, o nosso procedimento é o da empatia. Interessa aqui voltar à experiência de uma população que viveu o continuum da Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 8 história como sucessivos sobressaltados e silenciosos "estados de exceção" e que hoje, não menos sobressaltados, mas muito menos silenciosos, contorcem a flecha do progresso que para seus historiadores e antropólogos ausentes, corria livre num tempo vazio e homogêneo. Em outras palavras, essa primeira parte pretende apenas o que Christofer Hill reconheceu ser a necessidade das gerações que se sucedem: formular novas perguntas ao passado, encontrar novas áreas de simpatia na medida em que revivem distintos aspectos das experiências de suas predecessoras. Porque se o passado não muda, a história, ao contrário, é feita sempre no presente e para o presente. No primeiro capítulo, nossa argumentação se faz em torno dos processos de invisibilização e visibilização dos objetos e dos sujeitos sociais: aí descrevemos tanto a tecitura de uma larga rede de relações de alcance regional, capaz de manter e reativar circuitos rituais e criar uma reciprocidade política, quanto a produção de novas formas narrativas capazes de fazer com que certos aspectos da realidade, primeiro, deixem de ser e depois, voltem a ser enunciáveis. A partir daí foi possível construir uma relativa simetria entre alguns processos que caminharam em sentidos contrários e que podem ser expressos pela idéia de “conquista” (TODOROV,1993), num sentido que, no entanto, ultrapassa e subverte sua apreensão enquanto modalidade de guerra: a conquista da memória, a conquista da visibilidade, a conquista da simbolização identitária definem a relação entre os Pankararu - assim como muitos outros grupos indígenas - e o órgão indigenista oficial, onde cabe aos primeiros a iniciativa dos avanços e da "atração" para, de certa forma, colocar nos termos de um paradoxo a relação entre ideário e ação tutelar. Para desenvolver esta idéia, a segunda parte deste capítulo reconstituímos parcialmente os circuitos das emergências étnicas do Nordeste ao longo das décadas de 1930 e 1940, incluindo aí o trabalho de produção dos fatos etnográficos e a reapropriação política e simbólica de circuitos rituais, num movimento de revelação, descoberta e busca dos “direitos” e das identidades. No segundo capítulo nos debruçamos sobre a documentação produzida pelo órgão tutelar, principalmente ao nível do posto indígena Pankararu, na busca de um melhor entendimento sobre como operou o domínio tutelar no seu cotidiano e na especificidade de um trabalho onde as diretrizes indigenistas tinham todo o tempo que deparar-se com o que lhes pareciam inadequações: do ambiente, das verbas, da mobilidade da população e, enfim, dos próprios índios. Neste capítulo trabalhamos com algumas narrativas sobre o que poderíamos chamar (recorrendo ao estilo cortaziano dos manuais) maneiras de produzir índios e aldeias. Para isso recorremos freqüentemente ao movimento de ida e volta entre documento, bibliografia e memória, não apenas como recurso para cobrir lacunas, mas para revelar o tanto de conflito que existe entre esses dois registros, o oral e o escrito, em seus permanentes processos de mitificação. Esse material abre-se também para as questões relativas ao processo de autonomização de um campo político, numa tentativa de voltar aos problemas propostos por uma primeira antropologia política, visitando também o que parece ser um fértil campo de investigação sobre exercício do clientelismo em contexto étnico. Na segunda metade deste trabalho, voltamos nosso interesse para a extensão. Nela nos dedicamos não às sucessões, mas às sobreposições, abandonando o triângulo “tempo/história/memória”, para investigarmos o “espaço/território/posições”. Deslocamos nossos esforços na construção de uma interpretação histórica sobre um processo regional, para a construção de um modelo descritivo capaz de trabalhar intensivamente com a noção de território. O Território indígena é um símbolo forte, capaz de catalisar grupos, lutas, inovações jurídicas, pressões de diferentes naturezas e escalas. Mas é forte, sobretudo, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 9 porque se afirma sobre uma idéia aparentemente muito simples, que está presente na maioria dos discursos sobre o tema e que, como qualquer outro símbolo, retira sua força da capacidade de condensar experiências, noções, crenças e aspirações, que são tão mais intensificadas e plurivocais quanto mais o símbolo for capaz de reduzi-las a uma fórmula elementar. Trata-se da expressão que, ao longo das lutas pela demarcação das terras indígenas no Brasil, tornou-se uma espécie de dazibao impresso em postais, adesivos e publicações simpatizantes ou militantes da causa indígena: "índio é terra". Na busca de uma resposta, o território deixa de ser puro suporte, transformando-se em ponto de convergência de processos naturais e sociais que em lugar de se polarizarem, se compõem como um dos híbridos de que fala Latour (1994), através da convergência de discursos, fatos e poderes que não podem ser reduzidos uns aos outros, mas percebidos como constituindo uma rede. No terceiro capítulo essa proposta ganha realidade através de uma descrição do que concebemos como as várias geografias constituintes do território Pankararu, avançando sobre temas abertos nos capítulos anteriores, como a autonomização do campo político e o seu reverso, a sua magicização e ritualização. Neste ponto é possível jogar luz sobre algo apenas esboçado no capítulo sobre as emergências: as formas culturais de lidar com a territorialização. Revisitando problemáticas fundadoras, apontamos para a versão Pankararu dos “valores místicos” e sua relação com a constituição de uma forma, ou ética ou política. No quarto e último capítulo proponho-me pensar os “limites do grupo” Pankararu, trocando para isso o espaço geométrico pelo espaço relacional. Estabelecemos um panorama da dispersão e da mobilidade Pankararu para pensar a identidade étnica como um jogo de distâncias e aproximações. Exploramos, então, o que de contextual existe nas identidades sociais, assim como no próprio trabalho etnográfico, deslocando um pouco a insistência dos nossos olhares sobre o puramente contrastivo, para viabilizar uma reflexão sobre o que seriam as condições sociais da “manipulação de identidade”. Para isso tivemos que nos ocupar também do que vem a ser o “não-índio”. Já que as formas não são vazias, o contraste e o contexto que explicam a possibilidade ou não de ser índio devem fazer referência ao que existe do outro lado do portal. Notas sobre o percurso do autor ao texto. Esta dissertação tem seu ponto de partida marcado por um trabalho coletivo, desenvolvido no âmbito do Projeto Estudos sobre Terras Indígenas (PETI) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, ao qual estou ligado de diferentes maneiras desde 1990, ano em que encerrava minha formação em história e, através deste projeto, dava início aos meus primeiros contatos com a temática indígena e com a bibliografia antropológica. Nesse projeto pude participar de discussões baseadas em farto arquivo documental e da troca de experiências de campo entre os pesquisadores com trabalhos em andamento, que tinham como foco a questão da territorialização das sociedades indígenas e sua relação com o poder tutelar. Tais discussões se empenhavam na criação de uma perspectiva sociológica que abandonasse um tipo de produção sobre a questão da terra indígena freqüentemente presa à prática da denúncia, para construir um olhar mais sistemático e não menos político sobre as questões que envolvem a sua definição, organizando para isso um quadro de referências tanto sobre os processos legais que levam até ela, quanto sobre as situações concretas a que as populações étnicas (DESPRES,1975) estão submetidas no território nacional brasileiro. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 10 No momento de minha entrada no projeto, essas discussões se encaminhavam no sentido da formulação de um tipo de acompanhamento dessas situações segundo o modelo "atlas". Meu trabalho convergiu então para a leitura e discussão sobre questões aparentemente técnicas, relacionadas com a definição das formas e problemas na representação gráfica das áreas indígenas, com a natureza dos recortes regionais que permitissem uma leitura comum de conjuntos de situações territoriais comparáveis e com a seleção, organização e compatibilização de uma grande massa de material histórico que deveria ser trabalhado em equipe. Além disso, em função do recorte regional do Atlas, me envolvi com as questões mais diretamente relacionadas com a temática indígena no Nordeste. Neste período compartilhei dos trabalhos de muitos companheiros, que foram em grande medida absorvidos como parte de minha própria perspectiva e, por isso, difíceis de serem discriminados. Além da orientação mais geral fornecida por João Pacheco de Oliveira Filho, que veio a ser meu orientador nesta dissertação, sou tributário também do trabalho de Antonio Carlos de S. Lima, a quem devo as primeiras bolsas de pesquisa nesta temática. Ao iniciar uma reflexão mais sistemática sobre o material recolhido para o conjunto das áreas indígenas abarcadas pelo recorte que definimos então como Nordeste, passava a fazer parte de um grupo anterior de mestrandos do PPGAS-MN que haviam iniciado, muitas vezes do ponto zero, as reflexões sobre essas situações étnicas tão especiais. Os trabalhos de Mércia Batista (1992) e Hênio Barreto Fo. (1992), Sidney Peres (1992), Carlos G. Valle (1993) e Rodrigo Grunewald (1993) e os vários técnicos e metodológicos de Jurandir Leite, foram por isso da maior importância para a constituição desta dissertação, tanto na perspectiva analítica que abriram, quanto no mateial bruto que trabalharam, permitindo algumas reanálises. Tais observações sobre o trajeto do autor até o texto, por elementares que sejam, ganham importância ao explicitarem quais as fontes e a inspiração dos movimentos analíticos que se seguem e que, na dinâmica da escrita, eventualmente ficaram à sombra de um narrador aparentemente absoluto e que não resistiu a pretensão à originalidade. Expor os limites do trabalho, neste sentido, não significa demorar-me na enumeração de tudo que poderia ter sido e não foi, ou do que ficou de fora e que poderia estar dentro, mas justamente na explicitação d'o que foi feito e do como foi feito. Depois de ter lidado com material de origem administrativa e historiográfica sobre os Pankararu para a formulação das fichas do Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, em 1993 realizaria meu primeiro período de "campo", graças ao convite para um trabalho de assessoria ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), integrado no projeto mais amplo, coordenado por Aurélio Vianna, de Avaliação e Planejamento das Atividades do Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco, que agrega um total de dez Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR). Esse projeto respondia a necessidades explicitadas pela própria direção do Pólo, a sugestões feitas por Alfredo Wagner B. de Almeida numa avaliação preliminar e a questionamentos de agências financiadoras da entidade. Segundo essas demandas, seria importante que a avaliação das atividades do Pólo levasse em conta não apenas o seu foco privilegiado de ação na época, isto é, a população camponesa reassentada nas agrovilas em função da construção das UHE's, mas também toda a diversidade de categorias de trabalhadores rurais e povos indígenas existentes em sua área de abrangência, restituindo-lhe com isso, uma atuação de caráter mais amplo. Neste quadro, os povos indígenas ocupavam um lugar especialmente problemático, tendo sido eleitos por pelo menos dois desses STR's, os de Glória (BA) e Petrolândia (PE), como seus maiores problemas, ao lado das invasões ilegais das áreas de sequeiro das agrovilas e dos problemas de negociação com a CHESF. Meu trabalho deveria centrar sua análise Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 11 sobre a relação entre grupos indígenas e sindicalismo rural, na busca de uma resposta para aqueles confrontos. Nessa primeira viagem visitei as áreas dos Tuxá e dos Kantaruré, ambas no município de Glória (BA) e a área indígena Pankararu (PE), a qual dediquei a maior parte do tempo, por tratar-se da situação mais conflitiva. O interesse do projeto de avaliação do Pólo também convergia para essa situação, já que boa parte das lideranças do STR local e da direção do próprio Pólo estão diretamente envolvidos no conflito, com graves custos políticos para aquelas organizações. Isso imprimiu sobre meus primeiros contatos diretos com a área indígena e com o conflito fundiário "a marca da encomenda", como já assinalou criticamente Sigaud, com relação aos trabalhos de "avaliação de impactos sociais". Na prática, isso estabeleceu como horizonte desejável para o trabalho o atendimento de uma demanda, a proposição de um receituário de medidas minimizadoras do conflito e gerou uma tensão, desde sua origem, entre minha avaliação sobre a natureza e relevância das questões a serem postas e as questões que me eram impostas, marcadas por claras dicotomias, como índios/posseiros, positivo/negativo, legítimo/ilegítimo. Como será detalhado no capítulo 3, a entrada em campo foi marcada pela tentativa de manter-me longe das posições mais fortes sobre o conflito, evitando qualquer contato direto, ao menos num primeiro momento, com as lideranças sindicais e com as lideranças indígenas mais engajadas numa oposição direta aos posseiros. Tive então que evitar o que seria uma entrada tradicional, através do posto indígena e do seu chefe, o que só seria realizado numa segunda viagem. Isso fez com que antes da entrada propriamente dita na área indígena, eu percorresse várias "entradas" em campo, cada vez que tinha que negociar uma nova mediação. Nessa périplo me defrontei com agentes engajados em uma parte ou em outra do conflito de diferentes maneiras e, em cada uma dessas vezes, era obrigado a posicionar-me politicamente, definir "o lado" de que estava, ou, quando o interlocutor já fazia uma idéia da minha posição, tinha que enfrentar a arguição sobre posições e valores éticos. Descobri com algum custo que em "campo" não há lugar "fora" ou "acima", não há espaço para o puro observador, da mesma forma que não há o puro informante (FAVRETSAADA,1977). Em pouco tempo todas as precauções para tornar-me o observador mais discreto não impediram que fosse largamente conhecido e diretamente associado ao tema do conflito, ao qual meus interlocutores condicionavam virtualmente qualquer conversa, qualquer recolha de dados. Senti-me confusamente engajado, na busca de uma posição de equilíbrio alcançada, não com a conciliação de perspectivas, mas apenas com uma ruptura total. Depois de ter produzido o segundo relatório, em que tratava da questão do conflito, voltei à área para entregar uma cópia aos dirigentes sindicais e outra às lideranças indígenas. No caso dos primeiros fui submetido a uma sabatinada organizada no Pólo, com a presença de dirigentes e assessores, que resultou numa discussão acalorada e num profundo desagrado com o resultado final. No caso dos segundos, o texto e minha tentativa de expô-lo foram recebidos como algo exótico e que os desapontava ao perceberem que o resultado daquelas conversas era algo tão inócuo. A dissertação começou a ganhar forma a partir desta inadequação. Durante a segunda viagem (1994), para aliviar a minha imagem da carga associada ao conflito, usei o recurso de introduzir as conversas a partir de um pequeno questionário sobre o percurso de vida do informante. Esse, que inicialmente era apenas um subterfúgio, acabou por transformar-se no ponto central do trabalho etnográfico e na fonte mais rica de novas problemáticas, abrindo-me perspectivas que, provavelmente, eu não conheceria de outra forma. Assim, a dissertação ganhava forma a partir da frustração da "encomenda" e da criação de recursos próprios à dinâmica daquele trabalho de campo. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 12 Notas sobre o nome e a pessoa Ao longo desta dissertação tornou-se evidente a dificuldade de optar por uma forma única e padronizada de situar o autor. Muitas vezes situamo-nos na primeira pessoa do plural, não por encarnarmos o "olhar de águia" ou a "nobreza" própria da objetividade científica, mas por assumirmos nosso ponto de vista como uma postura política ou analítica partilhada com outros autores ou, por buscarmos o ponto de vista do leitor, na tentativa de construir uma narrativa em perspectiva e uma argumentação que pudesse ser compartilhada por todos estes que estão "de fora" do campo. Em outras passagens a própria dissertação assume o papel de protagonista, e o autor desaparece sob a terceira pessoa como forma de reproduzir a sensação muito real de que, em vários momentos do trabalho de pesquisa e de redação, o texto tinha um destino próprio que impulsionava-o mais do que era dirigido por ele. Finalmente, em outros momentos menos numeroros, a primeira pessoa do singular domina, fazendo ver que a construção dos argumentos, dos encadeamentos entre esferas e escalas e a conexão entre personagens eram produtos, em primeiro lugar, da minha ação, da minha posição e do meu trânsito entre textos e contextos, produtos de uma experiência pontual e pessoal muito concreta. Essas flutuações da pessoa verbal respondem, então, à necessidade de construção de um texto etnográfico menos objetivista, mas também aos inconvenientes disto resultar numa solução única. O incômodo que tais flutuações possam provocar no leitor deve ser visto menos como uma desconsideração deste problema, do que como sua explicitação. Outra opção por vezes incômoda também deve ser esclarecida. Depois de testar algumas soluções possíveis e de discutir esse aspecto com meu orientador, resolvemos manter os nomes reais das pessoas que estão no centro das nossas argumentações. Essa opção, até se demonstre o contrário, era a mais coerente com a perspectiva mais ampla adotada por este traalho: tomar tais personagens e situações como efetivamente históricas. Este trabalho tem a intenção de ajudar a entender não só certas questões antropológicas e sociológicas desterritorializadas e - até certa medida - atemporais, mas também parte importante da história indígena, do indigenismo e do Nordeste e, por isso, os dados brutos trazidos pelas reconstituições realizadas aqui são, provavelmente, tão ou mais duradouros e relevantes do que os modelos que propus para lhes dar forma e inteligibilidade. Adotada esta perspectiva principalmente para a primeira parte desta dissertação (capítulos 1 e 2), tornou-se excessivamente artificial e confuso e inútil voltar ao uso das iniciais ou dos pseudônimos na segunda parte, quando, de fato, teria sido possível assumir a forma mais convencional - mais abstrata e generalizante - da análise antropológica. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 13 Capítulo 1 – Da visibilidade PARTE 1: OS DESAPARECIMENTOS É útil começar explorando a pergunta sobre o que tornou possível que uma população se tornasse invisível, ou melhor, já que a cegueira está nos olhos e não no mundo, o que fez com que gerações de homens de ciência e homens de estado pudessem desconhecer ou não reconhecer, sistematicamente, algumas faixas de realidade, para logo em seguida reconhecerem-na, por vezes com o alarde das surpreendentes descobertas. Essa pergunta não desconhece o perigo de se afirmar a existência de continuidades que atravessam os tempos, sempre prontas a serem simplesmente observadas, sem incidir em naturalizações grosseiras. Mas reconhecido não existir esse corte radical entre o olho e o mundo, entre sujeito e objeto, nossa pergunta é sobre como se constrói ou se impede uma relação entre eles, sobre como o (re) conhecimento é ou deixa de ser possível, sobre a emergência dos objetos que, nesse ato mesmo de emergir, se tornam sujeitos. A produção da invisibilidade 1 Um dos epítetos atribuídos a Rondon, patrono (quase padroeiro) do indigenismo oficial brasileiro, “o civilizador da última fronteira” (COUTINHO, 1975), condensa muitos dos significados atribuídos à ação do SPI. Quando surgiu, em 1910, sua intervenção privilegiou Santa Catarina, Oeste paulista, Mato Grosso e, a seguir, Amazônia. Seus objetivos: nacionalização do interior, localização (no sentido de fixação) da mão-de-obra, abertura de terras e diminuição dos custos da “fronteira”. Seu léxico: grupos isolados, atração, pacificação, fases de aculturação, assimilação-não-traumática. Criado como SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais - era vinculado ao Ministério da Agricultura Indústria e Comércio e tinha como atribuições a proteção aos indígenas e a fixação de mão-de-obra não-estrangeira no campo, assumindo o perfil de uma agência de colonização. Tanto a proteção quanto a fixação seriam operadas por meio de um controle do acesso à propriedade e treinamento técnico da força de trabalho, num caso em postos indígenas e, em outro, em centros agrícolas, o que lhe dava uma dimensão claramente geopolítica. O contexto institucional do surgimento deste órgão, assim como as relações que isso mantém com nossa problemática serão explorados mais adiante, bastando aqui uma rápida caracterização de suas bases ideológicas e de como elas sustentam o que estamos chamando da “invisibilidade” dos grupos indígenas do Nordeste. Em 1918, o SPI perderia sua parte “LTN”, mas manteria a intenção programática de transformar o índio em pequeno produtor rural capaz de se auto-sustentar e se integrar ao mercado nacional de mão-de-obra. Essa transformação era pensada em termos de fases que levavam do estado fetichista dos primitivos ao estado de civilização do proletário rural. Nesse sentido, a estratégia e a ação do órgão estão marcadas por uma visão do índio Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 14 baseada na idéia de “transitoriedade” (LEITE e LIMA,1986), segundo a qual o “índio” é um estado que precisa ser superado, mas de uma forma controlada pelo Estado, sem a qual essa transição leva infalivelmente à degeneração. Esse controle será produzido através da figura jurídica da “tutela”, que é introduzida no código civil em 1918 e estabelece para o índio uma capacidade civil relativa, condicionada pelos seus progressivos “graus de civilização”. A finalidade da tutela é transformar, através da orientação e da autoridade, as condutas desviantes de indivíduos ou grupos com relação a um código dominante, partilhado e conhecido pelos membros de uma determinada sociedade (OLIVEIRA o F ,1988). Tal aparato jurídico e administrativo era justificado pelos objetivos de atrair e pacificar os grupos indígenas que ainda resistiam ao avanço da fronteira agrícola, em pleno século XX. Era preciso atrair e pacificar e não exterminar aquelas populações, obtendo-se dessa forma a mão-de-obra necessária e já “aclimatada” para os ideais de desbravamento e preparação das terras ainda não colonizadas. Nesse quadro não existia lugar para a atuação do órgão indigenista no Nordeste, região de colonização das mais antigas e já totalmente integrada. Durante a década de 1930 essa distância entre a região Nordeste e as estratégias do órgão parece se acentuar, já que em 1934, depois de ter passado pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (1930-1934), ele é absorvido pelo Ministério da Guerra como parte da Inspetoria Especial de Fronteiras e, em 1936 é aprovado o seu regulamento, no qual se enfatiza a “nacionalização dos silvícolas” e a sua incorporação como “guarda de fronteiras”. 2 Como já foi apontado, o olhar “científico” dirigido sobre os índios do Nordeste, até as primeiras décadas do séc. XX, acompanhava o diagnóstico da extinção desses grupos, naturalizando uma realidade produzida por decisões estatais, de fundo jurídico, como veremos mais adiante. E os primeiros acadêmicos ou curiosos que começam a descobrir nos “remanescentes” daqueles grupos indígenas “extintos” algum interesse acadêmico, o fazem orientados por uma visão etapista e evolutiva, muito semelhante à descrita acima, que operava como base ideológica do SPI. Assim, ao final da década de 30 e durante a década de 40, os homens de ciência que começam a se interessar em produzir descrições a partir da observação local e direta sobre aqueles “remanescentes”, e não mais apenas a partir de documentação histórica, procuram neles principalmente curiosidades folclóricas em rápido desaparecimento, que poderiam ajudar a entender a composição mais ampla do folclore nordestino e conseqüentemente, parte da cultura nacional. É sob essa inspiração, além das preocupações de mapeamento lingüístico, que Carlos Estevão de Oliveira, Max Boudin e Mário Melo visitam e escrevem na década de 1930, pequenos textos sobre os Pankararu, os Fulni-ô e os Xucurú, publicando artigos circunstanciais com mitos, cantigas, elementos de parentesco e considerações sobre seu artesanato e algumas festas. Nestes casos sempre se fez presente a preocupação em distinguir, em meio aos hábitos já miscigenados aos dos regionais, o que aqueles remanescentes mantinham da cultura tradicional. Apesar da década de 1940 já ter assistido ao primeiro surto de emergências étnicas, de que falaremos mais adiante, ao longo da década de 50 a situação não muda muito. Continuam surgindo textos principalmente sobre língua e vocabulário, e compilações de dados dos sécs. XVI e XVII. As descrições de Curt Nimuendajú sobre os Timbira de 1929 são reaproveitadas várias vezes em reanálises e surge o nome de Estevão Pinto que, junto a outros temas do folclore regional, debruça-se sobre o material histórico, escreve pequenos trabalhos sobre os Fulni-ô, os Tupiniquim e os Pankararu, e os reúne em dois volumes Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 15 dedicados aos “Índios do Nordeste”, sob uma preocupação sempre culturalista. Mais adiante, nas décadas de 60 e 70, para além das tradicionais compilações de documentos e vocabulários, a perspectiva arqueológica tem um forte incremento através da criação do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, coordenado pelo Museu Paraense Emílio Goelde, fonte da grande maioria dos trabalhos sobre o tema indígena dirigido à região nestas décadas. Reforçava-se o olhar fragmentário e passadista sobre a face indígena da região. (BALDUS, 1968 e 1984). Exceção a esta perspectiva é o importante trabalho de Hohental (1960) que produz um levantamento de fontes históricas sobre os aldeamentos do Vale do São Francisco e o completa com viagens aos postos indígenas que já haviam sido criados pelo SPI na região, recolhendo informações que complementassem os dados documentais e objetos artesanais, numa combinação entre perspectivas histórica e sociológica que resultou num catálogo de denominações e localidades largamente usado ainda hoje. A perspectiva da perda e da extinção no entanto mantém um longo fôlego, vindo a informar ainda trabalhos da década de 1970 que, em outros pontos metodológicos e teóricos, rompiam com aqueles primeiros. Os trabalhos de Amorim (1970), Silva (s/d), Soares (1977), Bandeira (1972) e Carvalho (1977) caminham numa direção sociologizante (com maior ou menor sofisticação), em lugar dos tradicionais recortes culturalistas ou filológicos, abordando os grupos em pauta (Kariri, Pankararé, Pankararu e Potiguara) como realidades contemporâneas. Classificam-nos, entretanto, como “subsegmentos rurais” e, mantendo o diagnóstico dos trabalhos anteriores, tomam sempre o ponto de vista do seu acelerado e irreversível processo de descaracterização étnica, pelas vias da “proletarização”, “integração” ou “aculturação”. Enquanto os autores anteriores, informados por uma preocupação mais folclórica, interessavam-se em registrar o que ainda existia de tradição, apoiados numa metodologia fundada no recolhimento de “traços culturais”, destacados do contexto em que eram produzidos e postos em circulação, esses últimos autores voltam seus esforços principalmente para a preocupação em descrever e avaliar o grau, o ritmo e as formas do processo de descaracterização dos grupos indígenas, dos quais seria possível reconhecer apenas uma “última dimensão indígena” (SILVA,s/d). O trabalho de Amorim se destaca entre os citados acima por sua preocupação em articular um quadro teórico explicativo da situação indígena do Nordeste, adequando uma proposta interpretativa geral da antropologia brasileira daquele momento sobre o processo de assimilação, para uma situação regional. Para o que nos interessa apontar aqui, ele traz a versão mais sofisticada de um esquema de análise partilhado por todos os outros, podendo-se talvez incluir aí as próprias formulações mais genéricas do indigenismo oficial. Seu texto parte da teoria da “fricção interétnica” elaborada por Roberto Cardoso de Oliveira, da qual retira a noção de “potencial de integração”, combinando-a com a noção de part-society. Sob esse ponto de vista, o Nordeste brasileiro é escolhido por representar um “caso limite no processo de integração, um dos extremos do contínuo que tem como pólo oposto as populações tribais recém contactadas pelas frentes pioneiras”(AMORIM,1970:11). Seu estudo leva à conclusão de que a condição de partsociety assumida pelo indígena nordestino “reflete um estágio no longo processo de integração à sociedade nacional, que no curso de uma situação permanente de fricção interétnica assume ao longo da História formas e aspectos diversos.”(idem:91). E ainda, “não é difícil a afirmação de que, a persistir o processo [econômico de integração ao mercado] pescadores e agricultores Potiguara, aqueles mais rapidamente que estes, caminham no sentido de se reunirem a tantos outros indígenas brasileiros que hoje formam o último extrato da grande reserva de mão de obra nacional.”(idem:94). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 16 Essas eram as bases que sustentaram por tanto tempo a invisibilidade dos grupos indígenas do Nordeste. O esforço de análise e clarificação da realidade, forjado dentro da academia, produziu sua cegueira com relação a uma realidade emergente. O esforço de planejamento da ação estatal foi a fonte da incapacidade do Estado em prever as reviravoltas que suas próprias teorias e estratégias de intervenção provocariam sobre as populações tuteladas. A seguir propomos uma interpretação do processo que levou aqueles grupos ao estado de invisibilidade e depois, que os fez (ou, pelo qual se fizeram) visíveis novamente. Estratégias da conquista 1 O avanço da colonização pelo território nunca se deu na forma de uma fronteira, ao menos como normalmente ela é imaginada - arco que avança de forma progressiva e definitiva sobre espaços abertos. Pelo contrário, aproximando-se da descrição de Morse (apud:VELHO,1979) sobre o avanço bandeirante, a conquista do Nordeste também se caracterizou como um movimento irregular, conjunto sucessivo e desigual de experiências e negociações reversíveis de uma frente de expansão que nunca foi única, mas sim múltipla e complexa. Não é possível falar da colonização como de um fio de civilização que se estende sobre o espaço selvagem. Não é possível traçar sobre o mapa as diferentes linhas de separação no tempo, entre branco e índio, civilização e primitivismo, áreas ocupadas e não ocupadas, comunidades integradas e autônomas. O que chamamos de fronteira, dando-lhe um sentido abstrato e teórico, normalmente produzido a partir do Estado (e aqueles que limitam seu trabalho à análise das suas ideologias e práticas também se fazem prisioneiros da sua perspectiva), na verdade tomou a forma de um arquipélago, criado por diferentes formas de territorialização: o esforço e a violência dos empreendimentos estatais e particulares, em suas incursões sertão adentro, conseguiam plantar manchas de civilização, ilhas pastoris, comerciais ou de subsistência, que existiam por meses, anos, para depois submergirem no nada ou na selvageria dos tapuia ou dos quilombolas. O desenho da distribuição dos aldeamentos indígenas no século XIX e no séc. XX (eles não necessariamente coincidem, como veremos) é, em grande medida, fruto desse movimento irregular que se desenvolveu sobretudo ao longo do São Francisco e dos seus principais afluentes, como o Panema, o Moxotó e o Pajeú. Foi através do São Francisco que o movimento colonial, inicialmente esparramado pela zona da mata, se afunilou no agreste e penetrou fundo pelo sertão, sendo útil, portanto, uma rápida revisão das rotas que abriram o interior nordestino até o século XIX, para então nos determos um pouco mais demoradamente num último momento daqueles aldeamentos indígenas. 2 O São Francisco começa a ser “subido” depois de vencida a primeira resistência indígena na sua embocadura, em 1572. Neste período as expedições partiam principalmente de Pernambuco (década de setenta), Sergipe (década de noventa) e Bahia (ao longo de todo esse período). Ensaios de penetração que em 1630 foram interrompidos pela presença holandesa em todo o lado esquerdo do São Francisco, da sua foz até Paulo Afonso. É só com a restauração pernambucana em 1654 que o avanço colonial português pelo sertão é encarado de uma forma progressivamente sistemática. Um passo fundamental Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 17 para isso foi o apelo da administração portuguesa, em 1667, para que os bandeirantes, paulistas e baianos, iniciassem a busca de ouro e pedras preciosas São Francisco acima, o que resultou no afluxo de um grande número de bandeiras1. Tem início, então, o avanço da colonização do sertão interior nordestino, realizado através de três estratégias distintas e sucessivas, ainda que por um largo período simultâneas. À estratégia da guerra justa vieram se sobrepor sucessivamente, a estratégia da conversão e da mistura, cada uma delas se opondo à anterior, ao mesmo tempo que revelando-se fruto dela. A “guerra justa” tem lugar com as primeiras investidas bandeirantes pelo sertão interior, e baseia-se no mesmo conceito jurídico-teológico medieval criado no contexto da Guerra Santa contra os infiéis mouros, agora transplantado para a relação com os infiéis do novo mundo2. Ainda que houvesse controvérsia sobre os requisitos necessários ao reconhecimento de determinada ação militar como guerra justa, toda ação chamada “defensiva” justificava o título. Nesse caso, defensivas eram consideradas também as ações de represália e prevenção de ataques de nações indígenas hostis, levando à larga utilização deste argumento pelas tropas bandeirantes e de moradores do sertão do São Francisco. É sobretudo devido a ela que os documentos de época registram tantos “ataques” indígenas. Essas guerras se estendem por todo o séc. XVII e XVIII, em muitos casos, encontrando forte resistência indígena. A mais prolongada de todas e que mobilizou o maior número de indígenas - cerca de dez mil, segundo cálculo de cronistas antigos - e tropas de moradores e bandeirantes ficou conhecida por Guerra dos Bárbaros ou Confederação dos Cariris e durou mais de 10 anos, tendo início no Rio Grande do Norte, em 1664 e estendendo-se pela Paraíba, Ceará e Pernambuco (ALMEIDA,1977). Em Pernambuco esse estado de conflito se estenderia por nova série de enfrentamentos entre os anos de 1694 e 1702, mobilizando novamente as tropas que já haviam operado na Guerra dos Bárbaros (BARBALHO,1988:vol.6)3. As guerras, ameaças e capturas são registradas em documentos esparsos por toda a primeira metade do XVIII, sob a sombra de novas e eminentes guerras bárbaras. Assim, em 1700 por exemplo, com a justificativa de se defenderem de novas investidas indígenas, os colonos das terras pernambucanas organizavam trincheiras nos campos do Açú, para “futuras operações destinadas a, de vez, arrasar os Jandiús”, principal grupo bárbaro do sertão naquele momento (BARBALHO,1988:vol.6). Treze anos depois, sob o argumento de uma nova confederação reunindo os Xucurú, Patió, Xocó, Guegues, Umans, Caratéus e Pepans, organizavam-se novos ataques preventivos e, em 1715, o vice-rei autorizava “toda a guerra ofensiva que puder, cativando a todos que nela aprisionar, os quais serão rematados em praça pública para se tirarem os quintos de El-Rei... e o que restar das ditas presas se 1 Entre as quais, aquelas que viriam dar origem à mais poderosa empresa colonial do sertão do São Francisco, a Casa da Torre. Numa das investidas da Casa da Torre durante as últimas décadas do séc. XVII, na busca de salitre, pelo interior dos sertões de Rodelas, Paraiba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piaui e até mesmo do Maranhão, um dos seus mestres auxiliares comandava um exército de 900 homens brancos, 200 índios mansos, 100 mamelucos, 150 escravos e alguns missionários (HOORNAERT,1992). 2 Na verdade, a análise da legislação colonial reconhece a captura de escravos indígenas através de duas formas, a “guerra justa” e o “resgate”, enquanto a história social acrescenta a elas a forma dos “apresamentos clandestinos” (FARAGE,1991). No Nordeste os resgates existiram principalmente na fase litorânea, servindo à interação entre colonos e grupos Tupi, enquanto os apresamentos clandestinos foram tão generalizados que tornaram-se virtualmente incomensuráveis para nós hoje. De qualquer modo, o formato de “guerra justa” assume aqui um significado mais genérico que o expresso na legislação colonial, ao o concebermos mais como “estratégia” que como figura jurídica. 3 Nelson Barbalho publicou entre 1982 e 1988 uma coletânea de 16 volumes, com documentos produzidos entre 1600 e 1828, intitulada Cronologia Pernambucana: subsídios para a história do Agreste e do Sertão, que será largamente utilizada daqui em diante. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 18 repartirá igualmente pelas pessoas que forem à dita guerra...” (BARBALHO,1988:vol.7). Como resultado, continuavam sendo comercializados escravos Tapuias capturados em guerras justas4. Impedimento real ou puro pretexto, a resistência indígena mobilizava ações enfáticas por parte do governo imperial que, em 1700, mandava fazer ... guerra geral a todos os índios de corso, entrando-se por todas as partes assim pelos sertões desta capitania da Bahia como pela de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, para [...] fazer mais formidável o nosso poder, e mais seguro o estrago dos contrários, e me constar que de presente têm os ditos bárbaros destruído muitas povoações e fazendas de gados com a morte das pessoas que nelas assistiam, por cuja causa se despovoarão precisamente todas as mais que os bárbaros ainda não tem chegado, o que será a ruina total do Brasil... (BARBALHO,1988:vol.6) Por força da guerra, iam sendo estabelecidos povoados pelo interior das extensas sesmarias, ou mais além, que serviam como cabeças de ponte para a requisição de novas. A maioria desses povoados eram constituídos pelas próprias populações apresadas ou “amansadas”, por homens livres pobres e até mesmo por mocambos, que então ocupavam e defendiam aquelas terras e suas fazendas contra o avanço de bandos indígenas “selvagens”. A estratégia da guerra era assim complementada com a instalação dessas povoações de índios mansos - aos quais se podia confiar o gado - ou com a permissão para a instalação de pequenos rendeiros e agregados, que serviam como verdadeiras praças fortes, garantindo a ocupação das grandes sesmarias ou até mesmo as ampliando, sem que para isso os sesmeiros necessitassem da mobilização de qualquer cabedal. 3 Parcialmente sobreposta no tempo a esta primeira estratégia, tem lugar a estratégia de conquista de homens e terras pela conversão. Neste caso, o gentio era encarado como mão-de-obra livre e administrado por missionários, reunidos em territórios exclusivos (normalmente uma “légua em quadro”). Eram recorrentes os enfrentamentos entre fazendeiros e missionários, onde o poder de mobilização de mão-de-obra e terras pelos religiosos era questionada militar e legalmente. Os jesuítas foram provavelmente os primeiros a estabelecer aldeamentos no rio São Francisco, na década de 1650, tentando realizar aí o que já haviam começado a experimentar no Amazonas, nos rios maranhenses e nos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, isto é, uma experiência de aldeamentos afastados dos centros coloniais, na tentativa de evitar o fracasso da experiência litorânea. No São Francisco no entanto isso se mostrou praticamente impossível5, já que o rio era justamente o eixo da colonização sertaneja (HOORNAERT,1992). Depois deles vieram os capuchinhos, oratorianos e franciscanos. A empresa missionária dos capuchinhos organizava-se de forma semelhante a dos jesuítas. Ambos trabalhavam com uma estrutura 6 Em 1710 chegavam à praça do Recife, 15 deles “pertencentes ao quinto de sua majestade” (BARBALHO,1988:vol.7). Nas décadas seguintes, mesmo depois da escravidão indígena ter sido formalmente proibida, continuam os registros de guerras contra levantes de aldeias, muitas vezes em aliança com negros fugidos (BARBALHO,1988:vol.8). 5 No fim do século XVII, quando os jesuitas iniciam a instalação, no sertão de Rodelas, das missões de Sorobabé, Curumambá e Acará, a Casa da Torre ordena ao seu sargento-mor e ao capitão da aldeia da Vargem que expúlsem de lá os jesuitas, o que acontece no mesmo ano da fundação dos aldeamentos (BARBALHO,1988:vol. 5). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 19 de apoio localizada nas cidades do litoral, no caso jesuíta os “colégios” e no caso dos capuchinhos os “hospícios” e, a partir dessa estrutura permanente, de onde também retiravam o principal de suas rendas, estendiam sua ação pelo sertão instalando aldeias. Assim, os capuchinhos franceses, que já haviam se instalado em Olinda (1649) e Recife (1656)6, em 1760 alcançavam um total de dez aldeias sustentadas pelo “hospício” da Bahia e sete pelo de Pernambuco. O rompimento de relações diplomáticas entre Portugal e França em 1698, no entanto, encerrou esse trabalho que é assumido anos depois pelos capuchinhos italianos (HOORNAERT,1992). Os oratorianos fundam cinco aldeias em Pernambuco e no Ceará, também na metade do XVII, mas passam, poucos anos depois, a restringir sua ação aos trabalhos “deambulatórios”, transferindo alguns de seus aldeamentos para os franciscanos. Junto com essas aldeias os franciscanos assumem também, no final do séc. XVII, as missões abandonadas pelos jesuítas depois de sua expulsão por Pombal (idem). Assim, simultaneamente à última autorização oficial para que se fizessem guerras contra os bárbaros em Pernambuco, tem lugar a primeira iniciativa imperial de incentivo aos aldeamentos. Em 1700, o rei escreve ao governador daquele estado exigindo a implantação de novas missões religiosas que acelerassem o povoamento dos sertões e recomendando que os padres destinados às missões fossem acompanhados por tropas para evitar a “insolência dos bárbaros” e as investidas de latifundiários, em especial as da Casa da Torre, que tanto vinham obstruindo o trabalho missionário no sertão pernambucano. Como forma de viabilizar tais missões, neste mesmo ano, surge o alvará régio que ordenava que “a cada missão ou aldeiamento se desse uma légua de terra em quadro para o sustento dos índios e missionários, e que cada aldeia se compusesse pelo menos de cem casais” sendo que tais aldeias “fossem situadas à vontade dos índios e não ao arbítrio dos sesmeiros ou donatários” (BARBALHO,1988:vol. 6). Tais aldeamentos deveriam cobrir a função de “fazer face às constantes invasões de Acaroazes e Mocoazes sobre os estabelecimentos pecuários e granjarias da população civilizada” (idem) com alguma vantagem sobre as tropas bandeirantes e as guerras justas, que dispunham nas mãos de particulares um poder cada vez mais desconfortável para o Estado. Esse é um momento decisivo na ocupação do sertão, quando é possível acompanhar o esforço imperial de ampliar sua rede de ação pelo interior, em substituição à livre ação dos proprietários privados. Tal avanço passava a depender de um duplo esforço, o de dominar índios e fazendeiros ferozes, cada um tentando estabelecer territórios próprios, indiferentes aos objetivos estatais e civilizadores. Além do incentivo à criação de missões, o governo imperial em 1700, alarmado com os “arbítrios da Casa da Torre”, manda que sejam criados juízes ordinários de cinco em cinco léguas pelo sertão de Rodelas, para dar o necessário apoio àquela iniciativa. Mais tarde, no entanto, comunicado das ameaças que esses começavam a receber, passou a enviar também àquelas localidades “ministros do Rei” acompanhados de soldados para que ficassem “entendendo seus habitantes régulos que eram vassalos de S. Mj. e que não era poderosa a distância a fazer que não resplandeça neles a sua suma justiça...” e para evitar que tais ousadias provocassem uma desordem tal que se passasse a ter “...nesse caso 6 A atuação dos capuchinhos, como a dos jesuitas, era relativamente independente dos métodos e dos objetivos estritamente coloniais, por razão de sua vinculação não ao padroado local, mas à Propaganda Fide, criada para se contrapor às estreitas relações entre ação religiosa e objetivos estatais na América, Ásia e África (HOORNAERT,1992). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 20 por muito maiores inimigos os nossos portugueses que os próprios índios...”7 (BARBALHO,1988:vol.6). Nesse quadro a Igreja e suas missões surgiam como um recurso mais adequado e cada vez mais necessário, como sugere a lei também outorgada nesses primeiros anos do século XVIII, que proibia a implantação de fazendas de gado a menos de 10 léguas da costa brasileira, por exigência dos senhores de engenho. É desta época que temos as primeiras notícias da região sertaneja que nos interessa particularmente, conhecida então como distrito da cachoeira de Paulo Afonso, quando é implantada aí a primeira fazenda de gado, acompanhada de sítios de cultura, casas de agregado, currais etc. Acompanhando esse grande incremento do avanço sobre o sertão, os capuchinhos são reintroduzidos no trabalho missionário, mas agora através de um grupo italiano que, chegado em 1705, herda os “hospícios” e aldeias de seus antecessores e criam duas prefeituras apostólicas, uma na Bahia (1712) e outra, por desmembramento dessa primeira, em Pernambuco (1723). Como resultado, em 1745, podem ser contadas 12 missões nas ilhas e às margens do São Francisco. Quadro 1 Relação dos aldeamentos de Missões religiosas de Pernambuco em 1745 Aldeia/missão N. S. de Belém Ilha Acará Beato Serafim da Várzea S. Félix dos Cavalos S. Antonio Irapuâ N. S. da Piedade Inhamum N. S.dos remédios Pontal S. Maria S. Maria N. S. do Pilar Caripós N. S. do Ó Sorobabé N. S. da Assunção Conceição Pambu N. S da Aricobé Conceição (Fonte: BARBALHO,1988:vol.7) ou Missionários capuchinhos italianos capuchinhos italianos capuchinhos italianos capuchinhos italianos franciscanos ? ? ? ? ? Grupos reunidos Poru e Brancararu ? Caboclos da língua geral Poru e Brancararu Cariri Cariri Cariri Tamaqueu ? Caripó Poru e Brancararu Cariris É preciso fazer referência às dificuldades que essas missões encontravam em imobilizar tais populações em territórios por eles administrados, o que provoca inúmeras queixas de administradores com relação às “fugas” de índios das suas respectivas missões. É comum que tais fugas sejam imediatamente ligadas a uma irredutível resistência indígena à dominação, entretanto, como foi apontado para outro contexto (MONTEIRO,1994), elas apresentavam uma grande ambiguidade, que pode não encaixar7 Acompanhavam ainda outras reformas administrativas no sentido de estreitar o controle administrativo sobre aquelas terras, como a criação dos “juízes de fora”, ouvidores de comarcas e a subdivisão da Província de Pernambuco em duas comarcas, uma de mesmo nome e outra denominada Alagoas (idem). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 21 se exatamente neste modelo de resistência que normalmente lhe é imputado. John Monteiro chamou a atenção para o fato de tais fugas muitas vezes servirem como mecanismo e trunfo de negociação entre índios e administradores, já que através delas os índios podiam se engajar em outros aldeamentos cuja administração se mostrasse mais branda ou “legítima”, segundo um padrão estabelecido na própria relação entre dominador e dominado. Através de alguns depoimentos documentados em inventários ou processos judiciais, Monteiro identifica como algumas das motivações destas fugas a recusa em servir aos herdeiros do antigo senhor, a busca de parceiras para casamentos em outras aldeias, a recusa em aceitar um novo dono imposto por venda, o tratamento mais brando de um senhor com relação ao outro, numa relação de casos em que o fugido, em lugar de sair definitivamente dos aldeamentos, procurava paradeiro em outros. Dessas observações Monteiro destaca como tais fugas serviram para reduzir as tensões inerentes à relação senhor/escravo e para realizar uma redistribuição de mão-de-obra, já que elas acabaram sendo capitalizadas por alguns senhores mais fortes, que conseguiram reverter em seu benefício uma forma potencial de resistência ao sistemas de trabalho forçado, recusandose, inclusive através da força, a restituir os “fugidos” aos seus antigos donos. No caso dos aldeamentos das margens do São Francisco, a ambigüidade das fugas nos interessa no que ela revela, não do sistema de aldeamentos e de sua possível crise, mas de um determinado padrão de mobilidade daquelas populações étnicas que, se também pode ser buscado em formas culturais anteriores aos aldeamentos, certamente encontram razão num dos efeitos específicos da dinâmica de territorialização dos próprios aldeamentos, quando estes, a fim de maximizar sua administração, juntavam e repartiam grupos de diferentes origens, criando com isso laços sociais e políticos entre aquilo que os missionários e outros administradores concebiam como unidades administrativas estanques. Assim, sem negar uma dimensão de resistência a estas translações, elas muitas vezes não levavam às matas, mas a outros aldeamentos. Em 1698 por exemplo, dava-se notícia de fugas de índios “sem razão alguma aparente para fazê-lo”, das missões da diocese de Olinda (que alcançava todo o sertão pernambucano do São Francisco) para as missões da Bahia, acarretando, segundo o Bispo de Olinda, “quebra de produtividade, desordens nos trabalhos religiosos etc.” (BARBALHO,1988:vol. 6). Reclamações do mesmo tipo perduraram ao longo da documentação até as primeiras décadas do século XVIII, levando a sérias desavenças entre os administradores provinciais desses estados que, depois de terem disputado as posses de diversas missões das ilhas do São Francisco, em 1728 e 1773 (BARBALHO,1988:vol.8), viam nessas fugas uma perda substancial de mão-de-obra e riqueza (LIMA SOBRINHO,1929). As razões que não eram aparentes aos missionários e administradores parecem estar na composição étnica desses aldeamentos, que reuniam uma grande variedade de grupos e que, em muitos casos, os separavam de suas metades, alocadas em outros aldeamentos, junto a outros grupos. Isso é reforçado pela observação de que, ao contrário dos casos relatados por Monteiro para São Paulo, nos aldeamentos do São Francisco tais fugas não eram individuais, nem se constituíndo como fugas em massa. Sua escala parece ter sido familiar. Aproveitando-se dessa grande mobilidade indígena, em 1884 a junta governativa de Pernambuco ordenava ao diretor do aldeamento de Cimbres o empréstimo de dois casais de “índios inteligentes” e de boa conduta para a nova missão de Jacaré, no alto sertão, “a fim de ensinar aos desta missão a cultura das terras e mais serviços em que se deviam empregar para a sua subsistência”. O aldeamento de Jacaré localizava-se na Serra Negra, sendo ocupado por cerca de 200 habitantes oriundos das tribos Pipipões, Omaris, Chocós e Caracús, anteriormente fugidos de missões da beira do São Francisco. Assim, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 22 existe um aspecto de grande relevância nessas “fugas” que está no que elas revelam, já a partir de um período tão recuado, de uma dinâmica que nos será fundamental para a construção do próximo capítulo. A ambigüidade das fugas neste contexto está no fato delas traçarem um trajeto que não parte em linha reta dos aldeamentos para o espaço selvagem, mas que desenha um ou vários circuitos de troca de homens e informação (fatual e cultural) entre os aldeamentos. 4 No último quartel do séc. XVIII a política e a administração estatais passam por transformações relacionadas ao projeto iluminista imposto por Pombal que produzem eco na política de conquista colonial. Em função das disputas entre jesuítas e fazendeiros de um lado (principalmente no Maranhão e Grão Pará), e das tentativas de reordenar as formas econômicas na colônia de outro, é extinta a escravidão indígena e, em 1775 é retirado o poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos. Complementando essas medidas e dando sentido a elas, em 1758 ordena-se a transformação dos aldeamentos em vilas e dos missionários em párocos e, em 1775, passa-se a incentivar os casamentos mistos, entre portugueses e índios (FARAGE, 1988, CUNHA,1992 e HOORNAERT, 1992). Tais emancipações administrativas preparavam a terceira estratégia de conquista, marcada pela intenção explícita de romper com o isolamento relativo em que os aldeamentos encerravam os indígenas. Numa tendência oposta, a administração pombalina passa a incentivar e orientar a ocupação não indígena dos aldeamentos, na tentativa de assimilar física e culturalmente os índios, criando uma população mais homogênea. Se a estratégia da guerra concentrava energias em abrir terras e criar mão-de-obra compulsória, na forma do escravo indígena, com altos custos militares e uma grande dispersão da população que conseguia resistir, a estratégia da conversão também vinha liberar terras, mas através da reunião da população indígena fragmentada pelas investidas militares, colocando-a fora do alcance imediato dos proprietários de terras e do governo. A estratégia da mistura surge nesse contexto como um avanço e uma economia, através do apaziguamento de interesses conflitantes dentro de um múltiplo processo de colonização. Transformar em “nacionais” as populações indígenas significava finalmente acabar com todas as figuras de reserva, seja de terra ou de mão-de-obra, que então passam a estar livres para sua mercantilização. Assim, no lugar das várias aldeias situadas nas ilhas do São Francisco, é criada, em 1761, uma única vila, a de N. S. de Assunção. O mesmo acontece com a missão de Santa Maria e com as de Cimbres e de Monte Alegre em 1762, e com a de Palmeira dos Índios e outras, localizadas na Paraíba, no ano de 1763 (BARBALHO,1988:vol.8). Uma estratégia que mais tarde seria formalizada como proposta de governo para a província de Pernambuco, como veremos a seguir, e que durante a república continuaria sendo reeditada, mas então sob uma tradução cientificista e humanitarista, na forma da doutrina indigenista de transformação daquelas populações em trabalhadores nacionais. Mesmo em 1808, quando se volta atrás em alguns avanços do diretório pombalino e se re-instituem as guerras justas com o direito à escravização indígena, o ideário estatal já está tão comprometido com esta nova perspectiva que essa segunda escravidão é apresentada como temporária e revestida de uma justificativa pedagógica que presta contas ao ideário de mutação daquelas populações: aqueles que ficassem responsáveis pelos indígenas apresados deveriam ministrar-lhes o ensino agrícola, ofícios mecânicos e ensino religioso. Ganhava a forma de lei uma mudança de perspectiva fundamental: o índio não era mais pura alteridade que tem a qualidade da autonomia mas que por isso deve ser objeto de destruição, ele agora é parte da população de súditos que forma o todo orgânico Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 23 que dá conteúdo à idéia de civilização e por isso não é mais objeto de destruição, mas também não é mais autônomo e sim massa moldável, objeto de intervenção transformadora. Intensifica-se e explicita-se com isso, principalmente no Nordeste, a política de reunião de diferentes grupos indígenas nos mesmos aldeamentos como forma de homogenizá-los racial e socialmente, reduzindo o número de aldeamentos e tornando-os mais densamente povoados, acelerando também a liberação de novas terras (RIBEIRO,1970). Com a lei de terras de 1850, inaugura-se uma política fundiária ainda mais agressiva através de uma decisão agregada àquela lei, que mandava incorporar aos “próprios nacionais” as terras das aldeias de índios que “vivem dispersos e confundidos na mesma população civilizada” (apud CUNHA,1992). Assim, depois de quebrada sua resistência militar e introduzidos na lógica colonial pelas missões, essa nova orientação leva-os à mestiçagem, estratégia agora mais eficaz de encaminhá-los ao desaparecimento. Por isso, nesse último momento, os argumentos para a definição de uma política dirigida a esses grupos já não eram apenas de caráter fundiário ou quantitativo, em que se acusava a necessidade de novas terras ou a presença de poucos índios para a redução ou agrupamento de aldeias, mas qualitativo, de caráter comportamental, onde se pretendia avaliar se aquelas populações continuavam aparentando ou não serem indígenas, depois de toda uma longa política de conversão e mistura; se elas continuavam ou não realizando suas tradições, depois de serem tantas vezes reprimidas pelos poderes locais. Em Pernambuco, a própria comissão criada para percorrer o estado, discriminando quais seriam as terras públicas, é incumbida também de contar e medir as terras dos aldeamentos indígenas, preparando-os para o ato de extinção. 5 É numa situação que revela a passagem as estratégias de conversão e de mistura, que os primeiros registros do etnônimo Pankararu foram localizados, num levantamento realizado por Hohental (1960). Num relatório do ano de 1702, referente à aldeia de N. S. do Ó, organizada por missionários jesuítas na Ilha de Sorobabé, rio São Francisco, este pesquisador encontra a primeira referência ao etnônimo: os “Pancararus” são citados junto a outros três grupos, os Kararúzes (ou Cararús), os Tacaruba e os Porús. O aldeamento é bem anterior a esta data e Hohental permite sugerir que os Pancararú e os Porú teriam se agregado a ele entre 1696 (ano de um outro relatório em que não são citados) e 1702. Mais tarde, os Pancararú e os Porú, que aparecem novamente associados, são localizados em outros dois aldeamentos: no do Beato Serafim, em 1846, e no de N. S. de Belém, em 1845, organizados por capuchinhos italianos nas ilhas da Vargem e do Acará, também no São Francisco. Já a localização dos atuais Pankararu, num dos contrafortes da Serra Grande ou Serra da Borborema, próxima às margens do São Francisco, entre os municípios de Tacaratu e Petrolândia, está associada ao registro de um quarto aldeamento, designado por “Brejo dos Padres”, cuja origem e administração não é plenamente esclarecida pela documentação e do qual sabe-se apenas que deve ter sido criado no início do século XIX por oratorianos ou capuchinhos, possivelmente em 1802 (HOHENTAL,1960), a partir do ajuntamento dos Pancararú e Porú com outros grupos identificados como Uman, Vouve e Jeritacó (BARBALHO,1988:vol.8). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 24 Para que ganhe sua real dimensão de território de reunião, de mistura étnica, onde são reunidos os mais diferentes grupos a fim de tornar mais fácil a produção do “caboclo”, seria necessário acrescentar que a esta multiplicidade de denominações pode ainda ter se somado, em função das reiteradas tentativas estatais e missionárias, grupos “brabios” da Serra Negra, e a essas denominações tenham vindo se somar famílias de grupos hoje conhecidos por Kambiwá e Kapinawá e de outros que já não é possível recuperar (DOC.:1) 8. Além disso, segundo sua tradição oral, os Pankararu seriam “parentes” dos Pankararé, hoje localizados no Raso da Catarina, estado da Bahia, dos quais teriam se separado por fissão de um grupo anterior, a partir do desmembramento de um primeiro aldeamento localizado no então designado Curral dos Bois (BA) (HOHENTAL,1960). O aldeamento do Brejo dos Padres constituiu-se, assim, como fruto da estratégia de desterritorialização e reterritorialização que levou ora à repartição, ora à concentração de diferentes grupos étnicos num mesmo espaço restrito. Estes estavam geralmente bastante próximos a uma promissora povoação, no caso Tacaratu, à qual poderia servir como reserva de mão-de-obra. Assim, o aldeamento do Brejo dos Padres poderia ser progressivamente “misturado”, para transformar-se, num futuro próximo, ele também, numa próspera povoação, como qualquer outra. A mecânica do fim 1 A lei de terras de 1850 dá início a uma série de alterações na organização do campo em Pernambuco. Os trabalhos de discriminação das terras públicas são acompanhados das políticas simultâneas de libertação dos escravos através do fundo de emancipação do 8 Para maior comodidade do leitor, limpeza do texto e facilidade de consúlta, optamos em numerar sequencialmente os documentos que utilizamos ao longo do texto e relacioná-los numa única lista de documentos citados ao final do trabalho. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 25 Império, da tentativa de implantação da imigração norte-americana e das remodelações de um determinado padrão de controle da mão-de-obra rural pobre, realizado na forma de diferentes tipos de “colônias” que então são criadas, extintas, transformadas, agrupadas, numa intensa busca da medida exata entre a tutela daquela população, que a ordem demandava, e a liberação de homens e terras, que o progresso pedia. Por isso, a extinção dos aldeamentos indígenas no Nordeste, e especificamente em Pernambuco, não pode ser pensada apenas como desenvolvimento de uma série de ações que poderíamos ordenar cronologicamente, sob a idéia de uma política indigenista com lógica própria, mas antes, ela deve ser compreendida dentro deste quadro de alterações que compõem a reordenação dos padrões de intervenção e controle sobre a população rural pobre nordestina num momento de transição das relações de trabalho para o capitalismo Foi no bojo desse processo e no contexto de ação da Comissão de Demarcação das Terras Públicas da Capitania de Pernambuco, em 1857, que se realizou o único levantamento sistemático sobre a situação das aldeias indígenas existentes no Pernambuco do século XIX, ao qual temos acesso através de um relatório da Diretoria de Índios de Lages (DOC.:1). Apesar do seu caráter extremamente sucinto, esse levantamento nos dá uma espécie de instantâneo insuspeito dos últimos momentos de existência daqueles oito aldeamentos. Suas informações substantivas podem ser resumidas no quadro da próxima página. Com exceção do aldeamento de Assunção, o relatório cita atos de expropriação territorial em todos os outros, realizados por meios mais diretos e violentos ou através de mecanismos legalmente regulamentados. A descrição fornecida pode ser reordenada de forma a nos ajudar numa aproximação dos mecanismos acionados. No caso do Aldeamento de Escada, por exemplo, existiam três tipos de ocupações legais, conflitantes com a posse indígena. A primeira era urbana: no centro da aldeia estava localizada a Vila de Escada, com 238 casas, em sua maioria de não índios, pagando um real de foro por palmo ocupado. O segundo tipo correspondia a dois grandes arrendamentos de mil braças em quadro cada. Nenhum dos dois arrendatários no entanto pagava o foro devido à Diretoria Geral de Índios e, num dos casos, nem o limite das mil braças era respeitado, tendo seu arrendatário avançado sobre novas terras para a instalação de engenhos de açúcar. O terceiro tipo de destinação era a dos pequenos arrendamentos, renováveis trianualmente, cuja quantidade não é mencionada. Como a documentação deixa perceber, a situação de arrendamento permite ao arrendatário ultrapassar progressivamente os limites de seus lotes e avançar sobre o restante das terras, geralmente através da derrubada das matas que demarcam os limites entre suas áreas e a dos aldeados. No caso de Barreiros a “Aldêia foi situada sem medição” no centro das terras concedidas (não fica claro se antes ou depois) a João Paes Velho, que então a faz remover para outro lugar e com sua extensão reduzida a apenas uma “légua em quadro”, em lugar das quatro a que teria direito. Além disso, as bordas do aldeamento passam a ser arrendadas para a edificação de engenhos de cana de açúcar, sendo que apenas parte desses arrendatários pagavam os foros devidos. Com a tentativa da Diretoria corrigir a situação, os rendeiros inadimplentes, revoltados com as cobranças, passaram a arrancar os marcos dos limites e a invadir o restante das terras do aldeamento, reduzindo drasticamente aquela última légua em quadra que restara à população aldeada. Outro exemplo da prática de arrendamentos das terras do aldeamento para a edificação de engenhos, mas num momento ainda não conflitivo, pode ser encontrado no aldeamento do Brejo dos Padres, que assistia ao surgimento de diversas plantações de cana e à construção de várias moendas, parte pertencente aos índios e parte pertencente “a divêrsas pessoas do povo que não tem pago foro a esta Aldêia” (idem). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 26 Quadro 2 Aldeamentos de Pernambuco em 1857 Nome Comarca Localização Distância de Recife 10 léguas População indígena Dimensões 1 - Aldeia da Escada Vitória margem oriental do Ipojuca 212 em 68 famílias margem sul do rio Uma 23 léguas 460 em 191 famílias Brejo da Madre de Deus Garanhuns Serra do Orubá, até as margens do Ipojuca margem norte do rio Panema 64 léguas 789 em 238 famílias 90 léguas 382 em 96 famílias 5 - Aldeia da Baixa Verde 6 - Aldeia do Brejo dos Padres 7 - Aldeia da Assunção Flores ? 110 léguas foram 4 “léguas em quadro”, invadidas em 2 léguas 4 “léguas em quadro”, quase totalmente invadida sem medição oficial, com cerca de 3 x 2 léguas os marcos foram arrancados por proprietários vizinhos dispersados por fazendeiros vizinhos 2 - Aldeia de Barreiros Rio Formoso 3 - Aldeia de Cimbres Tacartu ? 120 léguas 290 em 98 famílias 2 “léguas em quadro” Boa Vista Ilha do rio São Francisco 128 léguas 177 em 64 famílias 8 - Aldeia de Santa Maria Boa Vista 3 ilhas contíguas do rio São Francisco 132 léguas 124 em 29 famílias, reagrupadas depois de dispersadas por fazendeiros vizinhos 5 léguas na maior largura da ilha, alem de outras ilhas para plantações - 4 - Aldeia de Águas Bellas (Fonte: DOC.:1) Nos casos dos aldeamentos de Címbres e de Assunção, as suas terras estavam sendo “esbulhadas” pelas Câmaras Municipais, sendo que o esbulho do aldeamento de Assunção teria se completado pela ação de um juiz que, “a pretexto de pertencer o terreno da Aldêia ao Patrimônio da Matriz, fez por em praça e foi arrematada a Ilha ... a hum cunhado deste, e igualmente foi arrematado tudo o que pertencia a Aldêia por insignificante preço” (idem). O mesmo mecanismo é usado também em Águas Belas com resultados diferentes, já que depois da destruição dos marcos fronteiriços os próprios índios passam a pagar foros ao pároco local, sob a alegação de que eles teriam doado as terras a Nossa Senhora e, assim sendo, elas teriam passado a ser da Igreja e estar sob a administração do seu representante, o pároco. Na Baixa Verde e em Santa Maria a expropriação se realiza por puro ato de violência. No primeiro caso, foram assassinados o Diretor de Índios e 60 aldeados, o restante do aldeamento foi dispersado e “livres pessoas do povo”, “Próprios Nacionais”, passaram a ocupar as suas terras. Já no segundo, a tomada das ilhas pelos fazendeiros foi acompanhada da perseguição à sua população que então “se tem incorporado as ordas selvagens que habitão a Serra Negra” (idem). São assim mecanismos de expropriação: A) as terras arrendadas no interior dos aldeamentos cujos foros deixam de ser pagos ao mesmo tempo em que suas extensões se expandem; B) a reivindicação, por párocos, das terras doadas à Santa como pertencentes à Igreja e por isso devendo estar sob sua administração; C) as transferências para outros locais com suas áreas reduzidas; ou simplesmente D) o massacre e a expulsão. Este é o Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 27 leque das ações do progressivo desaparecimento físico dos aldeamentos que momentos antes serviam para reunir grupos dispersos. Como resposta, restavam a esses grupos poucas opções: ou o acordo com relação ao pagamento pelas terras que usavam, ou a fuga para os agrupamentos de índios que ainda, em fins do séc. XIX e em pleno Nordeste, mantinham-se arredios, refugiando-se neste último símbolo de resistência, a Serra Negra. De outro lado, esse relatório deixa entrever que o tipo de atuação concreta restava à Diretoria de Índios: A) um precário serviço de “aviventamento” dos marcos das aldeias, tornando apenas mais visível o que era na verdade uma fronteira bastante frágil, B) a reivindicação na justiça dos terrenos subtraídos ilegalmente, caso em que “...para reivindicar o terreno [era] precizo autorização para a despeza que deve fazer-se em diversos pleitos”, autorizações essas que, como diz o autor, dificilmente eram atendidas; e C) uma tênue tentativa de mediação legal dos interesses conflitantes, para a qual faltava em muitos casos interesse, em outros autonomia: “... e não está a Diretoria Geral autorizada para receber esses foros do acordo para demarcar o terreno por que nenhumas ordens do Governo tem recebido a tal respeito” (idem). Sua atuação limitava-se ao exercício de uma autoridade muito frágil que só obtinha sucesso quando era possível reproduzir entre a Diretoria e os invasores ou arrendatários inadimplentes a mesma relação de poder da qual se pretendia proteger os aldeamentos indígenas. No caso de Águas Belas por exemplo, depois de informar que quase todos os marcos já haviam sido destruídos pelos proprietários vizinhos, o autor do relatório diz que o “Diretor Actual” pretendia remediar o problema investindo sobre aqueles “usurpadores mais recentes”, pela razão destes não serem “potentados”, ainda que alguns já tivessem se adiantado em oferecer o pagamento de rendas à aldeia. Ao final da sumária descrição, o autor faz sugestões de intervenção que, acreditava, poderiam solucionar tanto as queixas dos fazendeiros que tinham seu gado furtado por “selvagens”, quanto as queixas dos índios “esbulhados”, com as quais “a Diretoria Geral é efetivamente atormentada”. O primeiro passo seria retomar as terras usurpadas e aviventar todos os marcos dos aldeamentos, porque isto feito os índios teriam condições de produzir o suficiente para suprir não só as suas próprias necessidades, como para cobrir as despesas mais urgentes das outras aldeias. Como prova de sua viabilidade o autor cita os aldeamentos de Escada e de Águas Belas, que têm “...conseguido fazer alguns arrendamentos que já chegam para socorrer os índios enfermos, órfãos e velhos decrépitos” e ainda alcançar um saldo que era administrado pela “Diretoria”. Conseguidas as terras usurpadas, o segundo passo seria distribuir as ferramentas necessárias à lavoura e reorganizar os aldeamentos segundo um regulamento semelhante ao das Colônias Militares, acompanhado da construção de uma Casa de Correção em cada comarca “... onde fossem penitenciados os proletários que se recusam a trabalhar”, assim como aqueles que fugiam das aldeias. Ao se tornarem produtivas, acrescenta o autor, as aldeias estariam também fornecendo à agricultura mais “dois mil colonos aclimatados e robustos”, num momento em que justamente se reclama da “falta de braços”. Se aquela imensa massa de proletários que vagava ociosa por todo o interior da província impunemente, diz o relatório, fosse reunida em aldeamentos/colônias militares, ela daria mais impulso à lavoura que aqueles colonos europeus, trazidos ao país ao custo de vultosos recursos e que sofriam de todos os problemas de adaptação ao clima. Temos aqui reunidos então, os principais elementos que constituirão, décadas depois, durante o regime republicano, as propostas de militares positivistas e das elites agrárias que vieram a se alocar no Ministério da Agricultura Indústria e Comércio. Não são as mesmas propostas porque as idéias não percorrem o tempo descarnadas e, a cada momento, é necessário situar a produção dos quadros de referência e do jogo de relações Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 28 políticas que lhes dão um sentido preciso, como veremos a seguir. Mas, se concordamos em descartar o fantasma das continuidades históricas e a busca das origens, em oposição a eles não podemos criar o fantasma da descontinuidade e da originalidade, que nos leva a desconhecer que os aparelhos estatais e os momentos históricos muitas vezes recriam o mesmo e que, se o seu quadro ideológico dá uma coerência às suas propostas, elas na verdade podem estar “requentando” práticas e discursos muito anteriores, gerados em contextos ideológicos mais ou menos distintos. 2 Assim, as soluções propostas pelo relatório de 1878 têm o seu próprio contexto, o quadro mais amplo de idéias que estavam em pleno debate, no Pernambuco do final do séc. XIX, mas que seriam aplicadas apenas parcialmente, com base nos instrumentos legais gerados pela lei de terras de 1850. Nesta década surge a “Sociedade Auxiliadora da Agricultura”, que reunirá, com maior ou menor sucesso ao longo do tempo, proprietários e comerciantes pernambucanos em morosas disputas intra-classe dominante no sentido de uma modernização do campo. Nessas discussões surgia como fator de ameaça, mas que podia ser convertido em fonte de recursos, a abolição da escravatura: o temor de ver seus escravos libertos numa desordem que em seu imaginário sempre remetia ao Haití, era contrabalançada pela proposta de mobilizarem-se por uma abolição “lenta e gradual”, através de indenizações com o dinheiro público que, argumentavam, seria convertido na modernização dos engenhos e na imigração estrangeira (a americana), fundamentais para sanar a reclamada “falta de braços” e modernizar o campo (BOMPASTOR, 1988) Na verdade, como nos lembra Bompastor, a abundância de mão-de-obra no campo tornava os proprietários indiferentes à imigração, que rapidamente fracassou, mas a retórica da “falta de braços”, converteu-se na conquista das indenizações e na criação de expedientes que respondiam às “constantes reclamações [...] por leis que reprimam a vadiagem e instituam o trabalho compulsório e a residência fixa para a população pobre livre, principalmente depois das grandes secas da década de 70 que deslocaram para a zona da mata grande contingente de população do agreste e sertão, contribuindo na ameaça à ordem e às propriedades dos 'homens de bem'. “ (Memorial de Joaquim A. dos Santos Souza, apresentado ao Congresso Agrícola de Pernambuco. apud BOMPASTOR, 1988) Expedientes que visavam à repressão da “vagabundagem” e da “ociosidade” através de um “regime policial severo, a que deverão estar sujeitos todos os indivíduos sem arte e sem ofício” (idem). Assim, respeitando essas orientações, a década de 18709 assiste a um rápido desaparecimento dos aldeamentos, sob a alegação padronizada de que “os poucos índios que ali habitam, acham-se já confundidos na massa geral da população”, como foi alegado ainda em 1869. Segundo o Barão de Buíque, Diretor Geral dos Índios em 1872, os aldeamentos que ainda existiam na província “conviria reduzir a um ou dois” 'já que “em geral não vão bem nos aldeamentos, e dão-se continuamente conflitos, por causas das terras” (DOC.:2). 9 As informações que se seguem foram extraidas da leitura de relatórios dos presidentes de província de Pernambuco, microfilmados na Biblioteca Nacional (código PR-SPR 115. Rolos de 1 a 7, correspondente ao período de 1838 a 1889). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 29 De fato, nessa década os aldeamentos são extintos sumariamente, guardando o tempo apenas necessário para a medição das suas terras e sua repartição em lotes. Em 1869 eram registrados ainda oito aldeamentos em Pernambuco, sendo já iniciado o processo de extinção de alguns deles: Brejo dos Padres, comarca de Tacaratu, Urubá, município de Cimbres; Santa Maria da Boa Vista, município de Boa Vista; Assunção, na ilha da Assunção, comarca de Cabrobó, Barreiros, município de Barreiros, Panema, da fregusia de Águas Belas, município de Buíque; Baixa Verde, município de Flores; Escada, município de Santo Antão (DOC.:3). Seis anos depois, o governo provincial já teria reduzido esse número para quatro (DOC.:4). 3 A concentração desses desaparecimentos num estrito período de tempo pode ser explicada com o recurso a três alterações de contexto: o impacto da lei de terras de 1850, a aproximação da abolição e a conseqüente reorganização do controle sobre a população pobre rural, como já foi visto. Mas também deve-se ao avanço efetivo de uma malha de estradas de ferro e carroçáveis que alcançou tardiamente, em meados do século XIX, o sertão interior, criando novos núcleos economicamente ativos e valorizando as suas terras. Assim, se em 1802 era criada “a primeira estrada tronco-central de Pernambuco” cobrindo um total de 59 localidades e alcançando os sertões do Panema e do Moxotó, num formato semelhante ao da atual BR 232 (BARBALHO,1988:vol.12), em 1872, haviam se acrescentado a ela quatro estradas de rodagem, sendo apenas 2 centrais, a de Santo Antão e a de Limoeiro, que avançavam pouco mais de 50 km pelo interior da província (DOC.:2). Um outro roteiro foi estabelecido pela Estrada de Ferro São Francisco, que também passou a servir como meio de progressivo incremento das localidades interioranas. Mas, a estrada que seria responsável pelo impacto mais direto sobre a região onde se localiza o aldeamento de nosso interesse seria finalizada em 1882: a Estrada de Ferro Paulo Afonso, cuja estação final era a localidade de Jatobá, à beira do São Francisco (DOC.:5). Entre essa localidade e a vila de Tacaratu, no alto da serra, estava o aldeamento de Brejo dos Padres. O impacto de uma estrada de ferro não era desconhecido pelos proprietários e poderes locais e pode-se ter uma idéia da valorização das terras da região através das transformações que lhe sucederam: dois anos depois da sua inauguração, era iniciada a construção da primeira igreja da localidade, antes servida apenas pela de Tacaratu, por iniciativa de um frei capuchinho e do engenheiro chefe da ferrovia e, apenas cinco anos depois, em 1887, aquela minúscula localidade já tinha crescido o suficiente para ser elevada à vila e tomar para si o papel de sede do governo, antes localizada em Tacaratu. A esta altura já tinham sido realizadas as recomendações do engenheiro José Luiz da Silva, da Comissão de Demarcação de Terras Públicas, segundo as quais não era necessário que restasse nem mesmo um aldeamento em Pernambuco, sendo suficiente a demarcação de lotes familiares de 22500 braças quadradas, com a venda em hasta pública das terras restantes. De fato, em 1878 já teriam sido todos extintos (DOC.:6). No discurso oficial, a solução para os conflitos em que os aldeamentos estavam envolvidos era fazer com que os próprios aldeamentos deixassem de existir. E, recomendava ainda, “não deve perder de vista a precaução de ser privada ao índio contemplado na partilha dos terrenos a faculdade do alienar os que lhe couberem porque só assim conseguir-se-há prende-los ao solo e evitar que, abusando de sua bôa fé o defraudem por negociações lesivas os especuladores” (DOC.:7). Uma recomendação que, já vimos, obedecia à orientação mais geral de imobilização da população rural pobre como forma de solucionar a tão reclamada “falta de braços”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 30 Sobrepondo-se a esta solução surgiriam outras, como a criação de vários tipos de colônias, que iam das simplesmente agrícolas até as de militares, de indigentes e de órfãos. Essa ligação entre política mais ampla de controle da população pobre rural e aquela dirigida especialmente aos aldeados, algumas vezes, mostrava-se direta e imediata, como em 1878, quando é anunciada a extinção do aldeamento do Riacho do Matto e a fundação em seu lugar da Colônia Agrícola Socorro, que serviria para abrigar o grande número de retirantes que estavam afluindo ao local, em decorrência da grave seca daqueles anos. Se atentarmos para a possibilidade da população, que passou a ocupar a colônia, ser composta também pela mesma população que já ocupava o aldeamento, então temos aqui um exemplo de como atos administrativos não só criam novas categorias de população, novos recortes classificatórios, como também criam ou fazem desaparecer objetos históricos. Em outros casos, a relação entre essas duas políticas é igualmente direta mas menos visível, só podendo ser recuperada se recorremos a outros tipos de fontes, menos comprometidas com a razão de Estado e com os interesses de uma sociedade letrada, como a história oral dos grupos locais subordinados. Segundo relatos fornecidos pelos Pankararu, no momento da extinção de seu aldeamento, suas terras foram repartidas em lotes distribuídos não só entre os índios, mas também entre “jagunços” - clientela política dos fazendeiros locais - e, o mais importante, entre os ex-escravos que estavam sendo libertados durante aqueles mesmos anos e ameaçavam se dispersar pelo território nacional. Essas informações são confirmadas pelas listas de emancipações financiadas pelo governo imperial: no ano de 1876 eram apresentadas as primeiras listas das Juntas Classificatórias, responsáveis por indicar o número de escravos que seriam emancipados nos anos seguintes, com dinheiro público, em cada município. Para Pernambuco o fundo de emancipação destinou a quantia de 226.659$055, sobre o cálculo de 2$441 por escravo a ser libertado, o que resultava na libertação de 92.855 pessoas, distribuídas por 26 municípios, tendo cabido a Tacaratu onde se localizava o aldeamento de Brejo dos Padres - 1.406 emancipações(DOC.:6). Segundo a memória Pankararu, parte desses ex-escravos teriam sido fixados em lotes familiares, nas terras do seu aldeamento, extinto no ano de 1877. Segundo a Comissão de Demarcação dos aldeamentos, no momento de sua extinção, o aldeamento de Brejo dos Padres teria tido sua área de 27.878.400 m2,(ou 5760.000,00 braças quadradas) dividida em 114 lotes, que variariam entre 302.500 m2 e 151.230 m2, distribuídos entre índios e não-índios (DOC.:8). Noventa e seis deveriam ser ocupados então por famílias indígenas que somavam uma população de 363 indivíduos. Deste terreno total o autor do relatório diz que apenas uma légua quadrada estava absolutamente livre de usurpadores, o restante sendo ocupado por índios e “particulares” que não lhes pagavam qualquer espécie de renda. Mas, acrescenta, “por exepção à regra geral, neste aldeamento nunca se derão essas eternas questões entre aldeados, intruzos e exploradores de terrenos, por esse feliz estado de coisas muito concorrerão os directores parciaes distinguindo-se entre elles, o último sr. Manoel Botelho, que no exercício de suas funções jamais prejudicou aos índios” (DOC.:7), repetindo as observações já feitas no relatório anterior, de 1857. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 31 Memória da violência 1 O impacto local da extinção oficial do aldeamento do Brejo dos Padres e do seu desmembramento em diversos lotes só pode ser alcançado pelo recurso à memória da população que o habitava. Nela, a extinção da categoria legal “aldeamento” não faz qualquer sentido e o que marca aquele período de final de século de uma forma mais ou menos homogênea, alcançando ainda as primeiras décadas deste, numa quase completa indistinção cronológica, é o que os Pankararu chamam de “as linhas”, em referência à demarcação física (esta sim, bem concreta) dos lotes que cruzaram toda a extensão do “Brejo”. Podemos dizer mesmo que é esse registro memorialístico, fonte de diferentes narrativas de domínio comum, o primeiro elemento produtor de uma “identidade coletiva”. São as histórias das “linhas”, das expulsões das terras pelo apossamento direto ou pelo progressivo avanço do gado, das invasões da aldeia pelos “membros” de Tacaratu que constituem a matéria prima do que Halbwachs (1990) chamou de “comunidade afetiva”. Parte do sentimento de pertencer a uma comunidade que hoje é identificada como Pankararu está no partilhamento da memória desses eventos. Não se trata de um conjunto de histórias ilustrativas de situações e sentimentos passados, mas de narrativas que ainda hoje encontram eco nas experiências presentes e que, de alguma forma, têm a capacidade de explicar posições políticas, estigmas, rancores, motivando a própria ação social. Não são enfim, propriamente história, mas memória, porque viva e por isso aglutinadora, identificadora de uma população sob outros aspectos muito heterogênea. Da mesma forma, a memória é o primeiro laço entre esta população - feita comunidade pelo recurso a uma memória compartilhada - e o espaço ocupado, transformado assim, pelo apego, em território. A repetição e atualização das narrativas da expropriação são elas mesmas a maior expressão de sua ligação àquele território, ao contrário do que a recorrente fórmula discursiva da “imemorialidade”, usada na justificação de direitos indígenas sobre porções do território hoje nacional, insiste em afirmar nos roteiros canonizados dos “laudos antropológicos”. No caso Pankararu, assim como na maioria dos casos conhecidos no Nordeste, os laços territoriais são fundamentalmente laços memoriais. Entre eles, a memória não pode ser um elemento neutralizado frente a outros de maior peso funcional, como o nicho ecológico ou a organização cosmológica, mas ao contrário, é ela que emerge em detrimento de outros tipos de argumentação. Ela revela a natureza histórica dessas populações e, através de sua natureza não-sancionada e marginal, revela principalmente a natureza conflitiva da própria definição dessa história. No entanto, o preço da desconstrução de narrativas históricas dominantes não pode ser a reificação de uma forma de fazer história que, ao pretender dar lugar à “memória dos vencidos”, procede segundo o mesmo realismo, apenas com os sinais invertidos. Algumas das reflexões de Detienne (1980) sobre a análise do mito são extremamente úteis na crítica ao trabalho com a memória, distinta em sua natureza, e não apenas em seu método ou em suas fontes, da história tradicional. Como no caso do mito, à memória, ou à memória sobre determinado período ou personagem, não se deve atribuir o caráter de relato único, apreensível como uma totalidade da qual pode-se recuperar o objeto, dando-lhe uma forma escrita a partir da constituição de um córpus de enunciados, desta forma domesticados, que poderíamos então dissecar na busca de uma versão exata. A memória, no plano em que ela nos interessa aqui, de repertório de narrativas de uma comunidade afetiva, não está ligada à lembrança, que pode ser medida ou verificada pelo recurso à régua da vida individual. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 32 Ela é antes definida por um trabalho coletivo que se move num permanente jogo entre a transmissão oral dos relatos e a sua permanente modificação. Ela está em permanente relação com o oral, apresentando-se sempre como versão aberta, permanentemente reconstruída pelas trocas sociais e constantemente reestabelecida pela repetição e pela negociação de versões: são as “histórias que não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos” (DETIENNE,1980). Se, para definir o mito, Detienne identifica como central o trabalho da memória, em sua relação com a tradição, falar de memória é também falar, em alguma medida, de mitificação. 2 Em primeiro lugar, a construção da memória Pankararu tem o efeito mesmo de desfazer a confortável unidade representada pelo seu próprio etnônimo, tornado designação oficial pelo órgão indigenista. Se na recriação da aldeia, a designação adotada oficialmente foi Pancarú (depois Pankararu), todos os mais velhos sabem que seu verdadeiro nome é “Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de Fulô”, onde cada um desses “sobrenomes” corresponde a uma das outras principais etnias que compuseram historicamente o grupo. A composição desses sobrenomes varia um pouco de depoimento para depoimento, mas o que importa reter é o próprio efeito e significado da existência dessa forma de compor, sob uma mesma unidade, a memória da diversidade. Guardar esses sobrenomes significou poder constituir uma unidade política e social sem precisar apagar os germes da diferença, guardar a memória do quanto são outros, de modo a que fosse possível conceber novas dispersões, como veremos na segunda parte deste capítulo. O etnônimo e o grupo social e territorialmente identificado como Pankararu (é a construção de sua própria memória que nos revela) são uma dentre outras possíveis cristalizações identitárias (MARCUS,1991) produzidas ao longo do processo de transfigurações pelo qual os índios do Nordeste têm passado. A unidade “Pankararu” não é nem o ponto de partida de transformações, sob as quais se possa recuperar formas ancestrais puras e autênticas, nem simplesmente o ponto de chegada, produto final e fechado de um processo único de construção social e invenção cultural. Na verdade, uma cristalização étnica de transformações históricas, ponto de convergência e de dispersão de outras construções sociais e invenções culturais. Estas dispersões, que produzirão em momentos seguintes novas cristalizações, estão intimamente associadas à memória da violência: ao contrário do que afirma a documentação disponível, segundo a qual teriam sido estabelecidas 96 famílias indígenas nos lotes demarcados com o fim do aldeamento, contemplando todas que ali existiam, a memória Pankararu fala de uma pequena minoria de famílias que teria ficado nas “linhas”, e de uma grande maioria “corrida” para as serras que envolvem o Brejo ou ainda para mais longe, “bolando no mundo”. É na expulsão dessas famílias que uma outra comunidade Pankararu tem origem. Parte daqueles que foram “bolando no mundo” acabaram por encontrar assento numa localidade que passaram a designar por Ouricuri, localizada no município de Pariconha (AL) e que cerca de 100 anos depois seria identificada segundo um dos sobrenomes Pankararu: os Geripancó. As famílias que saíram de Pankararu, para vir pra cá, foi numa revolta que houve, um Cavalcanti invadiu Pankararu e amarravam os índios nas árvores e batiam para eles correrem. E os índios que não agüentavam muito cacete correram cedo. Os índios corriam com medo... [...]... Desses aqui mesmo, quando chegou Cavalcanti lá em Pankararu, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 33 bateu neles e tomou tudo que eles tinham. Então, o Zé Carapina saiu desgostoso, bolando pelo mundo, chegava num pé de pau ficava. Quando chegaram aqui era tudo mata. (Maria do Carmo Santos, Geripancó. Transcrito em BRITO,1993) Depois que o Zé Carapina já estava aqui, ainda na época da revolta de Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no Ouricurí e o Zé Carapina deu apoio a eles. Vieram primeiro Manuel Carapina, primo do meu avô. Chefe de família, trazia até filho. Depois chegou João Porsenha de Palmeira dos Índios e a esposa dele era de Pankararu, era da família Jacinto... (Genésio Miranda da Silva, Geripancó. Idem) Teria se constituído então um outro núcleo Pankararu, separado do Brejo por alguns quilômetros e uma linha divisória estadual, mas mantendo com ele estreitas relações, inclusive através de trocas matrimoniais. Com o tempo, a essa população passaram a se somar outros pankararus que fugiam não mais da violência, mas das secas ou da simples escassez de terras e, pelo que parece, até o momento em que, na segunda metade deste século, como veremos adiante, esse grupo foi reconhecido pelo órgão indigenista oficial como um grupo distinto, com direito a uma área indígena e um posto indígena próprios, sob a designação Geripancó. Essas duas populações não se pensavam como etnias distintas, nem se atribuíam designações diferenciadas, distinguindo-se apenas pelo acréscimo do topônimo Ouricuri à designação Pankararu. 3 O sistema de metáforas que descreve essas concentrações, dispersões e cristalizações étnicas organiza-se segundo o par de categorias de parentesco Troncos Velhos/Pontas de Rama que traduz para esses grupos a distância entre eles e seus antepassados, “índios puros”, ou entre grupos mais antigos e mais novos, tanto no que diz respeito à sua aparência física quanto às suas “tradições”, significando a solução classificatória para os fenômenos de natureza identitária da “mistura”. Nesse caso, podem ser considerados parentes os grupos política e territorialmente distintos, através de ancestrais comuns (reais ou imaginários) ou, de forma muito mais ampla, simplesmente todos os “índios”, por oposição a todos os “civilizados”, “brancos” ou “brasileiros”. A oposição, continuidade e complementaridade entre “troncos” e “pontas”, que marca tanto a relação entre famílias dentro da aldeia Pankararu, quanto entre os Pankararu e outros grupos, serve como uma forma de pensar o tempo e seus efeitos, não apenas segundo uma genealógica, mas sobretudo segundo um jogo entre a imagem de laços naturais e experiências eminentemente históricas. Trata-se do recurso a uma metáfora própria da tradição judaico-cristã, que já foi observada entre outros grupos camponeses brasileiros (WOORTMAN, 1994), mas que diferencia-se no seu uso, entre outros motivos, por não implicar num sistema fixo de relações hierárquicas, mas antes numa forma de expressar relações entre pares. Assim, na situação do Brejo dos Padres, os grupos que vieram a se combinar no composto hoje designado como Pankararu seriam troncos velhos com relação a este último, considerado como ponta de rama daqueles. Mas quando o contexto envolve os Geripancó, por exemplo, os Pankararu passam a ser pensados como troncos velhos, já que os Geripancó se constituíram como um “enxame” deste primeiro grupo, sendo sua designação, ela mesma, retirada do seu acervo de “sobrenomes”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 34 Temos então introduzida a outra metáfora: o “enxame”, que dá mobilidade ao par de metáforas de parentesco tronco/pontas. A noção de enxame está carregada de uma idéia de movimento, expansão e fracionamento para a constituição de novas unidades e por isso traduz mais adequadamente o aspecto territorial do fenômeno das emergências. Segundo os Pankararu, cada um dos seus sobrenomes permite que do grupo se solte um “enxame”, para constituir um novo grupo, uma nova ponta de rama. Se no passado, diferentes grupos puderam ser reunidos num mesmo território como estratégia de sobrevivência, porque não pensar que hoje, também como estratégia de sobrevivência, um grupo possa dar origem a outros, multiplicando os territórios indígenas? 4 Se a diversidade é tornada memória através das metáforas do parentesco, a carga narrativa dessa memória acaba por concentrar-se num único e indistinto, ainda que bastante largo, período de violências, que se seguiu à implantação das “linhas”. As histórias que não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos, são fundamentalmente as histórias de violência e de alienação, da terra e da “pureza”. E, da mesma forma que este período acabou por concentrar o repertório memorialístico do grupo, dentro deste período uma personagem assumiu por sua vez o lugar de símbolo do arbítrio dos poderes locais: Francisco Antônio Cavalcante, chefe local do partido conservador que, na década de 1870, dominava politicamente toda a região (ALBUQUERQUE,1976), mais conhecido pelos Pankararu como Cavalcante, administrador direto e, aparentemente extra-oficial, da instalação das “linhas”. A época do Cavalcante, ele chegou aí que ele veio habituado com o pessoal..., dos membros de Tacaratu. O Manoel Toscano, Zé Maria, Mestre Abílio, naquela época prefeito era dotô, aí ele veio desse conhecimento prá cá, e tinha o Antônio José também. Eles montaram engenho aqui e foi naquela época que eles começaram a expulsá... [...]... Ele encarrerava o pessoal do Ouricurí. Quer dizer que ele vinha informado com o pessoal de Tacaratu, e vinham pra encarrerá os índios. Esse Antônio José Fez engenho aqui e junto com o Cavalcante eles lotearam essas terras, fizeram sessenta e doi lotes, que o pessoal chamava 'os linheiros'. Então esse Cavalcante chegou aqui se engraçando das índias, batendo nos índios, e o pessoal correram pro Ouricuri. O pessoal mais velho foi embora e adepois os filhos foram voltando, uns voltaram e outros ficaram lá, aquele pessoal mais velho que ficaram envergonhado de tê apanhado..., porque você nolugar da sua convivência e o sujeito chegá e batê..., aí eles se desterraram e ficaram pra lá. Aí eles ficaram dominando, pegavam os índios e baixavam a peia que era pra eles gritá: “Arco de reis! Arco de reis!” e a peia comendo. E aí foi o tempo que veio o SPI e acabô todo o impasse. aí foram vê que índio tinha dono, porque antes a polícia entrava aqui, batia em índio, como o Cavalvcante que fazia descarrerá os índios pra ser dono das índias... Aí foram fazendo isso e ficô os índios tudo amedrontado. O meu pai falava..., tinham medo aqui também do BemQuerê, do Caxeado, que era aquele... [tenta lembrar por alguns segundos] o Zé Maria ou Zé Barro, que também era de Tacaratu e judiava dos índios. (Antônio Moreno) Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 35 Ao Cavalcante e seus jagunços é atribuída a maioria dos eventos de violência direta que teriam sido impingidos à população por parte dos “membros” de Tacaratu. Violências que foram marcadas por invasões constantes, pela proibição e repressão dos rituais, pelo rapto ou defloramento de mulheres e meninas, pelo espancamento dos homens, como puro exercício de poder ou como castigo e prevenção. Os linheiros, quando chegou aqui o Cavalcante, começou de cima, dalí daqueles ponto, e do Brejo aqui ele tomô tudo e quando acabô cortou por linha. Tinha a linha dos Pereira, tinha a linha dos Barbosa, tinha a linha dos Serafim, tinha a linha dos Binga, tinha a linha de Santo Antônio, que é essa aqui, que passa por cima da igreja, daquele cajueiro pro lado do cemitério. Ele é dono desse terreno, só não tá se lucrando, mas ele é dono. Aqui do Barbosa, alí é a linha de Bela de Chico Grande, alí é de Antônio Valéria. Tem deles que é da aldeia e tem deles que vem já de outros canto, de fora, porque aqui , é como diz a história, hoje misturô a nossa aldeia, nossa área, já foi no tempo desses cangaceiro. Chegava, pegava uma bichinha dessa nova e “Vem cá!”, não queria sabê nem quem era nem quem não era. Tem deles aqui que é arranjado assim. (Mané Bizoro) As “linhas” ou o “tempo de Cavalcante” formam o marco fundamental da constituição de uma comunidade afetiva fundada na memória, servindo também como momento de definição daqueles que são identificados como os maiores dilemas do grupo hoje. São as “linhas” que separam um passado feito de índios de “tronco velho”, isto é, puros e autênticos, de um presente feito de gente “braiada”, de “caboclos misturados”. São elas também que separam um tempo de unidade da aldeia e o tempo atual de fragmentação política e religiosa, que explode as lealdades por diferentes grupos (de que trataremos no segundo segmento dessa dissertação), como conseqüência do impacto da expulsão de grande número de famílias do Brejo e da mistura dos que ficaram. A história do Cavalcante foi essa. Ele chegou aqui foi primeiro que o Catarina. Chegou primeiro em Tacaratu e se deu a conhecê dos home de lá e foi chegando, foi chegando e chegou aqui no Brejo e estudou o que podia fazê. E foi, começou lá da Fonte Grande e, bom, de lá pra cá saiu mediu doze braçadas (a braça é dez palmo e meio) e quando dava dez braçada ele parava: “Aqui, um índio aqui.” e botava um índio na cabeceira pra ser dono disso aqui, aí: “Mede mais outra légua...”, aí media outra légua: “Aqui, fulano de tal.”, aí botava na frente desse caboclo velho, “Vamos botá mais!”, e ia até o final, bem empareado e quando chegaram aqui... aliás, ele chegou da Fonte Grande até o Bem Querer, deu pra localizar vinte e cinco famílias, dez braças pra cada uma. Ele ia botando um índio e depois do índio um negro, que era pra eles fazer uma revolta, os índios corrê e os negro fazê que ia brigá, que era pra ficar aquela terra ali pra o Pedro Catarina, pra o Cavalcante... [...]... O velho Serafim foi meu avô. Ele foi dos que correu e fez uma moradinha na serra. O filho dele, o pajé que morreu ano passado, morava bem alí, essa roça alí era dele. Mas os negros que ficaram não Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 36 correram não. Os caboclos corriam e eles tomavam. Só ficaram dois caboclos, o Leonardo e o outro, não sei como era o nome dele. O Leonardo ficou lá na cabeceira, que casou até com a Aninha Bomba. O cumpadre Zé Bomba que o sr. viu aqui, pois bem, aquele era neto da Aninha Bomba. (João Binga) Esse marco oblitera qualquer referência memorial anterior e em sua capacidade de condensação acaba por estender-se abarcando personagens bem mais recentes, como o Pedro Catarina, já em pleno século XX. Aqui era coberto de gente pra iludi os índio, tanto pra caí no cangaço, tanto... Era o Mané Vito, era o Pedro Catarina... O Mané Vito era um cabra que ajuntô gente por aqui. Era marinheiro e ajuntô esses grupos de gente pra andá no cangaço. Se quizesse ir, era na hora. Sofreram aqui diversos. O Tenente Apitati, era polícia de Tacaratu, entrou aqui e lutou com muitos índio aqui. Foi quem mais derrotô com nós. E hoje nós hoje, graças a Deus, tamo liberto. (Mané Bizoro) Um relato que Carlos Estevão de Oliveira faz de uma história que também me foi relatada algumas vezes, mas sem as referências cronológicas, dá uma idéia de até onde vão no tempo os fatos relatados como parte de um mesmo “tempo das linhas”. Há uns doze anos passados o Inspetor do Quarteirão “Folha Branca”, do município de “Tacaratu”, de nome Pedro Catarina, a pretexto de prender um “caboclo”, invadiu, uma noite, a aldeia, e, indo até um “terreiro”onde os “Praiás” estavam dançando, estabeleceu um conflito. Por essa ocasião os “cabras”que o acompanhavam dispararam as armas contra os caboclos, dando isso em resultado sairem gravemente feridos a mulher Maria da Conceição e seu filho Manuel, que na época tinha uns 11 anos de idade. Por uma grande ventura os feridos não morreram. E, certamente por tratar-se de ferimentos em “caboclos”, não houve necessidade de processo. (OLIVEIRA,1943 [1937]). Na memória daquela população, uma fase de violência constante marca um período único e compacto que vai pelo menos da década de 70 do século passado à de 20 deste século. Antes ou depois destes cinqüenta anos é difícil recuperar qualquer relato que possa ser atado a referências históricas. Cinqüenta anos que concentram as histórias que não cessam de repetir e que só são rompidos com a chegada do órgão indigenista na década de 1930. O advento do indigenismo oficial representa a ruptura com um determinado domínio memorialístico e a instauração de um novo, marcado por novos dilemas, novos enfrentantes, novas armas. 5 Aqui cabe um esclarecimento sobre a atuação de Cavalcante no momento da instalação das linhas que revela mais pontos de contradição entre a história escrita e os relatos memorialísticos Pankararu. A documentação oficial que foi possível recuperar fala do loteamento das terras dos antigos aldeamentos sendo realizado por um engenheiro contratado pelo governo especialmente para isso, cabendo a ele todas as decisões, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 37 decorrentes de sua avaliação técnica. No entanto, a memória Pankararu é totalmente indiferente à existência deste funcionário e insiste em que as decisões sobre os locais dos lotes e a escolha dos seus ocupantes teriam sido tomadas por aquele chefe político local, revelando uma das formas pelas quais decisões de âmbito não só estadual como nacional podem ser reapropriadas no seu ponto final, no momento de sua efetiva realização, dandolhe um novo sentido. Este confronto entre memória e registro histórico encontra mais pontos de interesse quando os relatos tratam da morte de Cavalcante. Neste caso, a memória indígena conta que na época do início das “linhas”, um grupo de índios, acossados pela alienação de suas terras - que a certa altura não lhes permitia nem mesmo recolher os frutos de suas colheitas - e por não terem clareza do que significavam “as linhas”, resolvem tomar uma atitude contra a expropriação. Para isso reúnem-se na mata e, com o auxílio de sua “ciência”, isto é, da garapa, do fumo e da jurema, consultam os Encantados sobre o que estava acontecendo, o que estava por acontecer e o que deveriam fazer. Quando a “juremada” e o fumo fizeram efeito, durante o longo período de ascetismo na mata, os Encantados lhes avisaram dos planos dos “home” e da falsidade dos motivos que alegavam para a delimitação das “linhas” no Brejo. “Era o fim”, pensaram. E como suas mortes fossem inevitáveis, a única solução era tentar a morte do Cavalcante, visto como o principal responsável pelas “linhas”. Aqueles mesmos índios vão então até a casa de Cavalcante em Petrolândia, onde o próprio Cavalcante, de forma arrogante, lhes confirma as informações dos Encantados, revelando suas intenções. Imediatamente um dos índios da comitiva saca uma faca e lhe mata, ali mesmo na varanda de sua casa. A surpresa com o fato permitiu que os índios conseguissem fugir, dirigindo-se para a cachoeira de Itaparica, onde mais tarde foram encontrados pela polícia de Petrolândia e trucidados. O papel marginal da memória Pankararu fica evidente ao recuperarmos o relato que faz Ulisses Lins de Albuquerque, importante político pernambucano, que ao reunir suas memórias coletou também histórias e curiosidades dos sertões que visitou e onde mantém vastas relações de parentesco (Cf. Anexo1: A morte e a morte de Cavalcante). Nele encontram-se muitos dos elementos do relato Pankararu, como o fato do assassinato ter sido realizado por um grupo de “caboclos”, a presença de augúrios de fonte religiosa, o assassinato ter se dado na frente da casa da vítima, a fuga em direção à cachoeira de Itaparica e a conclusão com o massacre do grupo. No entanto, essa segunda versão diverge da primeira no que é fundamental para a constituição da memória Pankararu: o motivo da morte teria sido mais uma das disputas tradicionais entre políticos locais relacionado a um conflito eleitoral e nela, a participação de alguns “caboclos”, cuja identidade é inteiramente irrelevante, teria sido de simples executores, aliciados por uma das partes em disputa, alienados da ação efetiva, coadjuvantes e não protagonistas da história. Não há referências às “linhas”, não há referência nem mesmo à existência de uma aldeia da qual teriam saído aqueles “caboclos”. À nossa análise o que interessa não é, obviamente, verificar a veracidade dos relatos, mas destacar a partir deles as possibilidades simbólicas de um mesmo evento histórico. Na morte de Cavalcante o que é fundamental num enunciado pode ser integralmente desconsiderado em outro e isso não nos remete apenas a uma diferença de perspectivas que possam ser compatibilizadas. O fato joga-nos antes no campo de disputas aberto pela memória, evidenciando uma alienação de outra natureza a que aquela população é submetida , além do tipo de resposta que está a seu alcance. É neste ponto que a memória encontra-se com o trabalho de mitificação, já que encontram-se naqueles relatos vestígios de um diálogo com o repertório mítico Pankararu: é na cachoeira de Itaparica, a mesma em que o grupo de assassinos de Cavalcante foi trucidado, que tem Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 38 origem os Encantados do panteão Pankararu. O trecho do relato de Ulisses Lins que fala da fuga de um dos índios através da cachoeira, onde teria se jogado e de onde teria, surpreedentemente, saído vivo, nos remete à forma pela qual são produzidos os Encantados: depois de descobrirem o segredo do encantamento, um grupo de índios antigos dirige-se à cachoeira e se joga nela, sobrevivendo na forma de Encantados. Aqui parece que a versão regional deixa-se contaminar, através do gosto da “fábula”, pela mitologia subordinada. 6 Um segundo aspecto que torna importante o relato Pankararu da morte de Cavalcante é o de compor um duplo ao mito de Tarraxá, que narra justamente a relação daquela população com seus dominadores. Ao combinarem-se numa mesma imagem, os relatos sobre Tarraxá e sobre Cavalcante nos fornecem a narrativa aberta, ambígua e, poderíamos arriscar, dialética, do drama social vivido por aquela população. Para que ele fique evidente é preciso transcrever na íntegra o mito conforme ele nos foi contado. Pelo o que eu ouvi dizê... Tá gravando?... Um tempo meu pai falava que ele era um home que usava umas roupa de..., num tinha uma mescla grossa que antigamente os cangaceiros usava? Bom, que nem a roupa de caqui, mais grossa né, chamava mescla azul. Quando passava, de noite, na boca da noite, ninguém passava alí, entre esses dois serrotes, o Serrote das Moça alí e o Serrote do Tarraxá aqui. Aí..., tá certo aí? [referindo-se ao gravador]..., passava esse home, como quem era um cangacero. E disso surgia que ele reinava com os índios. Não era um homem bom não, um Encanto bom não... Ele judiava dos índios, até que um dia se juntô os folguedo, os Praiá né, e foi o índio Tito na frente..., o Tito é o Cinta Vermelha, é um que trabalha na festa. Foram lá prendê ele, porque ele pegou um home... Um índio plantou uma roça de abóbora, tinha muita abóbora bonita e quando ele foi pegá uma abóbora, ele disse: “Essa aí não.”. Ele escutou uma voz: “Essa não.”. O cabra pensô “mas..., fui eu que plantei...” e ele repetiu as três vez “Essa não”. E ele pegou. Quando chegou em casa, adoeceu, adoeceu, pegou febre, morre não morre. Aí, os índios foram - tem os índio pra adivinhá né, o feiticeiro, o pagé...: “Vamo lá pegá ele que ele tá morrendo...” E o home morreu quando chegaram lá. [depois disso...] Os índio vai com as flexas..., aí tocou a flexa na pedra e a porta se abriu, e tinha um palácio grande né, - bem, assim me diziam, eu tô contando que nem me contaram - aí [...] prenderam ele [o Tarraxá]. Foram com as flexas, botaram as flexas aqui, que nem general, e prenderam o home. Aí ele dixe: “Olha, eu tô preso mas eu vou fazê um acordo com vocês. De hoje em diante, eu fico com esse - ele já tinha levado muitos né - mas eu garanto a vocês..., vamos fazê um tratado, que eu não vou mexê com mais nenhum. Ele foi pegá as abóbora aqui perto de meu palácio, não obedeceu...”... Mas você vê, o home planta e não tem direito né. E a minha roça é bem pertinho, eu planto mandioca... [P: O sr. nunca viu não?]... Não. Ele prometeu, se ele prometeu é que ele não vem mais. Prometeu de nunca mais agravá os índios e de fazê mais Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 39 nada. Aí pronto, os índios se vieram embora, dançaram muito. Por causa de uma abóbora... A História do Tarraxá é essa. Diz que ele agora é bom, que acompanha os resadores, mas home..., eu não confio não. (João de Páscoa) Ao contrário da solução dada a Cavalcante, a que é dada a Tarraxá, em lugar do conflito direto, leva à negociação. Em lugar da separação e da exclusão, a composição, a absorção, a convivência, o acordo, sempre e profundamente, no entanto, marcados pela tensão e pela desconfiança que caracterizam laços simultaneamente de conflito e dependência: “mas home..., eu não confio não”. Se nos apropriamos desses relatos como narrativas no sentido dado a elas por Turner (1992), isto é, como fontes morais para o desempenho dos atores, repertórios de seqüências, soluções, conceitos e papéis, formulados a partir de um tipo de conhecimento que emerge da experiência dos dramas sociais, ou melhor, de uma determinada forma de organizar a experiência vivida, então percebemos que Tarraxá e Cavalcante formam o duplo que está na base do drama social Pankararu. A importância central dos dramas sociais na dinâmica dos grupos e sociedades passa, como apontou o autor, pela capacidade dessas sociedades transformarem seus dramas experenciados em parâmetros de comportamentos sociais futuros, rearticulando valores e objetivos numa estrutura significativa capaz de servir como fonte de conhecimento para a representação de novos dramas. Com o duplo Tarraxá-Cavalcante podemos nos apropriar das ambigüidades da relação entre índios e brancos no Brejo dos Padres, dando a ela uma narrativa que deriva da experiência e orienta as ações. Como veremos a seguir, Tarraxá e Cavalcante convivem nas fronteiras Pankararu. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 40 PARTE 2: AS EMERGÊNCIAS A produção da visibilidade ...il n'y a pas d'autre moyen de s'approprier complètement sa propre pensée du monde social que de reconstituer la genèse sociale des concepts, produits historiques des luttes historiques que l'amnésie da la genèse éternise et réifie. (BOURDIEU,1992) 1 No que delimitamos como o contexto de invisibilidade, os grupos, bandos, nações, populações ou povos indígenas do Nordeste surgem na literatura acadêmica apenas quando da reunião e comentário de textos e gravuras de antigos missionários e viajantes (normalmente dos sécs. XVI ao XVIII) na busca de elementos que permitissem reconstituir antigas repartições geográficas, famílias linguísticas, fragmentos de vocabulários ou ainda avaliar sua "contribuição" para o avanço colonial (Cf. BALDUS, 1954). É nesse contexto que o antropólogo Carlos Estevão de Oliveira realiza uma palestra, em julho de 1937, no Instituto Histórico e Geográfico Pernambucano e comunica, como quem narra uma história de aventuras e descobertas, sua última visita etnológica ao sertão nordestino (OLIVEIRA,1943). Ele inicia comentando seu projeto de uma etnologia brasileira e de como, dentro deste projeto, deparou-se com o problema da raridade de pesquisas sobre a antropologia indígena do Nordeste , motivo pelo qual teria tomado a iniciativa de realizar algumas viagens ao sertão (ver também OLIVEIRA,1931), das quais nesta palestra narra a primeira (não fazendo referência à data). Conta que, levado um dia a visitar a cachoeira de Itaparica e as obras da Cia Industrial e Agrícola do Baixo São Francisco, ao final da tarde, teria se encantado com o efeito do pôr-de-sol sobre as águas do São Francisco e, na "procura de uma elevação que me proporcionasse a possibilidade de transportar para o 'film' de minha 'Roleflexe' uma imagem do lindo ocaso que se descortinava diante dos meus olhos", teria feito uma descoberta "toda filha do acaso": guiado por um caboclo do local, descobriu numa pequena gruta um "ossuário indígena de real valor científico". Assim, sob um clima poético e de descobertas, Carlos Estevão conduz seus incrédulos ouvintes através de evidências - e não é gratuito que a primeira seja arqueológica - de uma ancestral presença indígena na região, para em seguida levá-los ao encontro do grupo propriamente dito, de "remanescentes indígenas" Pankararu da aldeia "Brejo do Padres". Numa segunda parte da palestra, descreve rapidamente as festas e mitos deste grupo de "remanescentes", os nomes tradicionais de seus utensílios, sua economia e o secular processo de espoliação a que vinham sendo submetidos, para finalmente dar algumas notícias também dos "remanescentes indígenas" que ainda se encontravam em "Colégio", "Águas Belas" e "Palmeira dos Índios". Ao encerrar a palestra, dirige um dramático apelo ao seu douto público. Depois de sentir pulsar junto ao seu coração, hora por hora, há quase 30 anos, o coração dessa gente Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 41 que tanto tem sofrido "pelo estranho crime de terem sido dôna deste pais", diz que, nos últimos dois anos havia começado a sentir de perto o sofrimento dos seus "descendentes" em Pernambuco e Alagoas. Por isso apelava a todos que lhe ouviam, para que tomassem "sob seu valioso amparo e proteção, não só os caboclos do 'Brejo dos Padres', como, também, os demais remanescentes indígenas que ainda vivem em terras nordestinas". Apelava para que o Instituto Histórico e Geográfico Pernambucano tornasse extensivo o seu apelo aos institutos de Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, para que esses também amparassem e protegessem os "remanescentes indígenas que, por ventura, existam naqueles estados". No mesmo ano, em outubro, Carlos Estevão apresentaria uma versão reduzida desta palestra no Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde o apelo, em função das relações que esta instituição mantinha com Cândido Rondon, dirigia-se não mais ao instituto de pesquisa, mas ao próprio órgão indigenista oficial. Até o ano dessas palestras, existia no Nordeste10 apenas um posto do Serviço de Proteção ao Índio, atuando junto aos Fulni-ô de Águas Belas desde 1928, mas Carlos Estevão relata a existência de pelo menos mais três grupos e sugere que poderiam existir outros. De fato, até que a próxima década se encerrasse, surgiriam além dos quatro já citados, outros oito grupos mobilizados pelo reconhecimento de sua identidade indígena, aos quais viriam se somar ainda outros, surgidos nas décadas de 1970, 80 e 90. O momento da palestra de Carlos Estevão é pois, um momento de inflexão na história indígena no Nordeste, dando início a um rápido e tumultuado processo de revitalização de tradições e invenção cultural que faz do Nordeste hoje, não só uma importante região em se tratando da presença indígena, como paradoxalmente, de uma importância crescente. Num trabalho de 1993, foram registrados 27 grupos indígenas oficialmente reconhecidos no Nordeste, cuja população vai de 30 a 4.750 pessoas, num total geral de 31.600, distribuídas em 46 áreas indígenas, entre adquiridas, identificadas, delimitadas ou homologadas (PETI,1993). As demandas, no entanto, ainda não foram esgotadas e os números continuam em expansão. Por surpreendente e mesmo incompreensível que seja à primeira vista, o fato é que estamos assistindo a uma performática negação das expectativas que viciaram nosso olhar a perceber os grupos indígenas caminhando sempre sobre a linha reta que leva da fase áurea, anterior ao contato, para a de decadência, durante o contato e, finalmente, para o indefectível desfecho que é a extinção. Durante o período de gestão do SPI, que no Nordeste vai de 1924 até 1967, são 12 os grupos que se iniciam nas primeiras movimentações pela conquista do estatuto legal de índio e pela conseqüente demarcação de terras reservadas, quase todas em locais de antigos aldeamentos, a maioria alcançando o reconhecimento oficial e os primeiros atos demarcatórios ainda ao longo das décadas de 1930 e 40. Interessa-nos daqui em diante mapear os caminhos que esses grupos percorreram no sentido contrário ao que tinham sido levados no final do século XIX. 2 Antes de mais nada, para tornar-se visível, foi preciso tornar-se simultaneamente nomeável, isto é, parte do trabalho que permitiu conceber a existência de grupos indígenas no Nordeste teve que ser investido sobre a própria forma de nomeá-los. A pergunta que 10 A região Nordeste conforme a utilizamos aqui, segue o recorte proposto por PETI (1993): do norte da Bahia ao Piauí. O sul da Bahia, Espírito Santo e norte de Minas Gerais fazem parte, segundo esta divisão, de um outro recorte da ação indigenista e da concentração de áreas indígenas que é distinguido como região Leste. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 42 parece ter se imposto àqueles que vieram a realizar a mediação entre aquelas populações e o órgão indigenista, sua tutela e seus direitos, parece ter sido a de como, afinal, designar grupos de caboclos que se supõe ter ancestrais indígenas aldeados, sem incorrer na imprecisão dificilmente aceita, à primeira vista, de simplesmente designá-los por índios, já que não possuíam mais quase nenhum dos "sinais externos" reconhecidos pela "ciência etnológica". Nos documentos iniciais internos ao órgão indigenista, ou nos textos dos primeiros folcloristas ou etnólogos sobre os grupos do Nordeste, fica clara uma indecisão no uso de categorias, levando à alternância e combinação dos usos principalmente de "caboclo", "descendentes indígenas", "remanescentes indígenas" e variantes, onde o "indígena" podia ser substituído por designações étnicas ou toponímicas. Essa indecisão, com o tempo, cedeu lugar a um franco predomínio do termo "remanescentes", categoria que se mantém presente ainda hoje nos textos e discursos de autores e personagens que, através dela, acabam por criar uma categoria especial de índios e, como veremos, um padrão particular de “indianidade”11 (Cf. "Anexo 2: A categoria de Remnescentes indígenas - amostragem aleatória"). Parece ter existido a necessidade de adequação de vocabulário que permitisse a imediata inclusão daquelas populações no novo código de direitos instituído através do status de índios (criado pelo decreto no 5.484/1928), mas sem ofender as evidências que informavam o contrário. Referir-se a eles como descendentes indígenas parece não ter se adequado perfeitamente aos objetivos da mediação, já que em seu uso comum12, a "descendência" pode estar referida a um lugar de origem (região ou nação), a uma raça, religião ou etnia, sem que isso implique que o sujeito desta descendência seja efetivamente membro da categoria, grupo, lugar ou religião a que a descendência faz referência. Além disso, a descendência genérica a antepassados indígenas fez parte do imaginário romântico brasileiro, da mesma forma que faz parte do mito das três raças, fundador da nacionalidade, tornando-se inadequado para distinguir um tipo específico de população que pretende o direito à tutela. Por outro lado, na sua aplicação mais particularmente antropológica, a "descendência" deposita força na posição do ancestral, mais que na do que dele descende, não estando implícita aí qualquer transmissão imediata de direitos. Ao se estabelecerem, no código civil e no decreto de 1928, os direitos indígenas não ligaram-se à herança, mas ao estado atual de ser silvícula. Ser descendente portanto não bastava. A fórmula "remanescentes" parece ideal por apontar mais claramente para a presencialidade do estado de índio, sem deixar de reconhecer uma "queda" com relação ao modelo original: os remanescentes são uma espécie de índios caídos do nosso céu de mitos nacionais e acadêmicos. Em termos legais, no entanto, o fato de serem "sobras", "restos", "sobejos" (MIRADOR,1980), onde se reconhecem profundas e talvez irremediáveis perdas 11 “Indianidade” aqui designa uma determinada forma de ser e de conceber-se “índio”, no sentido genérico do termo, construída na interação com o órgão tutelar. Associado a uma determinada imagem do que deve vir a ser “índio”, a “indianidade” é criada basicamente na instituição de aparelhos burocráticos de origem estatal que criam procedimentos estandartizados para lidar com a diversidade e que acabam por impor a ela o modelo, tornando-a sob certos aspectos homogênea. É claro que esse movimento entre homogeneidade e heterogeneidade não é linear e mesmo no interior da padronização existe o movimento no sentido da diferenciação, de que falaremos ainda neste capítulo. No entanto o conceito de indianidade é de importância central à análise da relação entre grupos indígenas e aparelho indigenista por dar a reconhecer uma forma específica e de valor generalizante para essa interação (Cf. OLIVEIRA Fº,1988). 12 Neste caso o vocabulário sociológico e antropológico também aproxima-se do uso vulgar da categoria (FREEDMAN,1986) Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 43 culturais, não negaria aos remanescentes indígenas seu direito ao status de índios. Assim, remanescente tornou-se uma categoria fundamental na viabilização de um discurso sobre os grupos e dos próprios grupos indígenas do Nordeste, fugindo à discussão sobre o ser ou não ser através de um acordo tácito entre ser e não parecer: presta obediência ao índio etnológico, pede passagem para o índio histórico e adentra o índio jurídico. A qualidade de histórico é, assim, uma característica importante do uso da categoria, que remete sempre ao par memória-direitos, em alternativa e, por vezes, oposição ao par cultura-proteção. Em se tratando de remanescentes, o que está em jogo é a manutenção de um teritório como reconhecimento do processo histórico de expoliação, como já fizemos referência. Deles, em termos culturais, pode-se querer apenas alcançar sua "última dimensão indígena" (SILVA,s/d), como fragmentos de vocabulário, ritos sincréticos, vestígios de organizações sociais duais... Por outro lado, são riquíssimos com relação à memória, compensando em relatos e documentação cartorial as "lacunas" que deixam aos pesquisadores em termos de "traços" etnologicamente interessantes. 3 Se a construção da categoria de “remanescentes” constitui um contexto semântico favorável à enunciação da existência daqueles grupos, é preciso apontar agora para o contexto político que favoreceu a sua visibilização. Como temos tentado apontar, o indigenismo oficial faz parte de um quadro mais amplo de estratégias de gestão territorial e controle de população. Ainda que seja uma forma de intervenção dirigida sobre um tipo específico de população, tal intervenção acompanha as alterações de percurso dos objetivos estatais, mais ou menos externos a ela. Tais mudanças de contexto interferem diretamente sobre a atuação do órgão e podem ser seguidas através das sucessivas mudanças de posição na burocracia estatal. O SPI já havia ocupado lugar nos quadros do Ministério da Agricultura, desde sua fundação em 1910 até 1930, mas nesse ano seria transferido para o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio -MTIC. Essa transferência seria acompanhada de uma drástica redução do investimento material no órgão indigenista, levando a que o número de unidades de ação junto aos povos indígenas sofresse uma brusca queda: de 67 em 1930 para 15 ou 19 em 1933 (LIMA,1992: quadro no 8). O órgão permaneceria neste ministério por quatro anos, ao longo dos quais a sua diretoria insistiria na inadequação deste vínculo administrativo, pleiteando não a volta ao MAIC, mas a subordinação ao Ministério da Guerra, onde poderia exercer plenamente a função de intervenção sobre o espaço, privilegiada naquele momento, na qual o controle das populações era visto mais como um meio que como um fim. A relativa recuperação de prestígio, com a mudança para o Ministério de Guerra em 1934, quando os militares eram projetados no centro do poder decisório, significava também a maior ênfase na concepção do índio como "guarda de fronteira", já que o primeiro momento dessa transferência significou a alocação do órgão na então Inspetoria de Fronteiras. Neste momento, o controle e nacionalização das populações indígenas significavam sobretudo o controle e a nacionalização das fronteiras através do plano de colonização militar da região fronteiriça. (idem). No entanto, trata-se ainda de um período de escassez de recursos, que parece funcionar principalmente como um período preparatório para a grande expansão do seu espaço de atuação que ocorreria na década de 1940, "momento chave" na delimitação de um perfíl ideológico e operacional para o órgão, com a sedimentação de normas, métodos, objetivos. A volta ao MAIC, em 1939, representou então a conversão de ênfase da atuação do órgão sobre o problema fundiário em geral, não restringindo-se apenas à preocupação com as fronteiras. A nacionalização agora não concebia as populações indígenas como guardas de fronteiras, mas Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 44 principalmente como produtores, trabalhadores nacionais, conferindo um maior destaque ao desenvolvimento do patrimônio indígena e à emancipação econômica das tribos (idem). Se as palestras de Carlos Estevão não fazem qualquer menção a alterações no contexto político na tentativa de resguardar seu caráter científico, o fato de serem realizadas em 1937, nas dependências de uma instituição subordinada ao MAIC, dá a elas um caráter bastante claro. O golpe de 1937 daria início a uma série de reformas administrativas consolidadas até 1941, trazendo as condições de possibilidade de ação mais enfática na direção da “integração nacional”. Ainda ecoava o perigo comunista que havia circulado por todo o sertão interior, até a Bahia e Pernambuco, com a Coluna Prestes. Os estados sofreriam intervenções e teriam início realizações econômicas de grande escala e com caráter de intervenção territorial, que, no Nordeste, se traduziriam na construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e na drenagem do São Francisco. O Estado passaria a intervir no sentido de estimular a diversificação agrícola com a criação de autarquias especiais e finalmente, a política oficial de colonização é regulamentada, dispondo sobre a criação de "colônias agrícolas nacionais" e "núcleos coloniais agro-industriais", a cargo do MAIC. Tornar o índio, em lugar de "guarda", "agricultor", significava torná-lo semanticamente mais adequado ao contexto retórico da "marcha para o oeste". Nesse período, a ação protecionista ganha grande relevo na imprensa, sobretudo a partir de 1943, com a organização da Expedição Roncador-Xingu, sendo no mesmo ano criada a Fundação Brasil Central, que atuaria junto ao órgão indigenista em várias situações realizando a colonização de vastas porções do interior centro-oeste do país (MT, GO, PA, MA e parte de MG), o que restituía ao SPI sua parte "LTN". Surge, então, um novo padrão de ação do órgão em que a idéia de reserva é pela primeira vez posta em prática com a criação do Parque indígena do Xingu. Tudo isso, no entanto, não se opõe à idéia de transformação do índio em agricultor, mas é a sua contrapartida lógica. Se no Parque do Xingu entram em cena novas diretrizes, propostas pelo recém criado Conselho Nacional Indigenista, que agrega antropólogos e defende o direito à manutenção das diferenças culturais, nas regiões em que o "processo de assimilação" já havia sido iniciado, onde a primitividade já havia sido maculada, tornava-se necessário não o isolamento, mas a aceleração do processo de integração, dirigido primordialmente para as regiões de colonização mais antiga, onde a fronteira agrícola já estava se fechando. Surge um novo interesse sobre regiões em que a ação do Serviço fosse autosustentável, além de poder servir como fonte de renda para a manutenção dos que não tivessem sua própria produção. No caso dos postos indígenas do Nordeste essa estratégia fundiária sofreu uma adaptação, já que em lugar de primeiro demarcar as terras para depois introduzir nelas colonos não-indígenas, o SPI encontra a maioria das terras a serem demarcadas já ocupadas por posseiros, por projetos econômicos do próprio Estado ou por cidades inteiras. A intervenção do Serviço nestes casos passa a assumir um caráter de mediação dos conflitos provocados por essas sobreposições. Neste sentido, reforça-se a estratégia de manter ou trazer para dentro das áreas indígenas colonos nacionais como forma de acelerar pedagogicamente o processo, ao mesmo tempo em que tais áreas eram vistas como podendo fornecer as rendas de que o Serviço necessitava e não dispunha. O SPI passa a atuar na tentativa de transformar as posses não-indígenas em arrendamentos, ou em tomar para si a intermediação dos arrendamentos que por ventura já existissem nas terras dos antigos aldeamentos, de forma que, no momento mesmo da instalação dos postos indígenas, eles já se constituíssem fontes de recursos. Esse padrão de ação se reflete nos boletins do SPI a partir de 1940, quando a valorização da idéia de "gestão do patrimônio indígena" e "emancipação dos postos indígenas" permitiria que o SPI restringisse seus gastos e pudesse movimentar a renda Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 45 produzida entre os próprios postos indígenas, cobrindo as lacunas de uns com os excedentes de outros. Os postos assumem um perfil bastante próximo ao dos citados núcleos agrícolas ou agro-industriais que começavam a ser implantados pelo MAIC, a que o SPI estava subordinado. Semelhanças de objetivos e métodos tão claras que, em alguns casos, gerava duplicidades e concorrência entre eles, como é revelado numa carta de janeiro de 1949. O encarregado do posto indígena Pankararu dirige-se ao chefe da sua Inspetoria Regional, reclamando maiores incentivos para a produção de seu posto, tanto para evitar a continuidade das críticas ao Serviço, quanto para melhorar sua performance com relação a outras duas "repartições federais...de grande projeção - o Posto de Icó e o Núcleo Colonial Agro-industrial do São Francisco” (DOC.:9). Tal incentivo à produção do seu posto faria justiça ao caráter ordeiro dos seus índios e contribuiria “para que, assim, o SPI nesta região não continue em plano muito inferior às citadas repartições, evitando-se deste modo também, que as autoridades que as visitam e a este Posto, lancem ao nosso Serviço, o seu ódio e sua crítica nada lisongeira..." (idem). Investir na atuação junto a grupos mais próximos ao extremo final da linha que os leva de selvagens a trabalhadores nacionais, passa a ter uma motivação um pouco mais que humanitária e protecionista. A produção das emergências 1 O primeiro processo de reconhecimento de um grupo indígena no Nordeste é parcialmente descrito num texto de 1931, de autoria do "capelão militar das tropas revolucionárias do Norte", pe.. Alfredo Pinto Dâmaso. Neste texto, o autor faz uma defesa do SPI contra as duras críticas feitas pelo jornal A Noite, do Rio, que o acusava de ser um serviço de catequese leiga que punha Comte no lugar de Cristo, que desperdiçava grande quantidade de dinheiro público inutilmente e que só fazia explorar os silvícolas. No artigo, pe.. Dâmaso dá um depoimento pessoal sobre a utilidade, lisura e humanitarismo do SPI. Conta que no ano de 1921 ele partiu da cidade de Águas Belas, no sertão pernambucano, em direção à capital Federal para procurar auxílio junto ao SPI, como "porta-vóz das queixas e dos gemidos de 500 infelizes patrícios - Os índios Carijós - victimas indefesas de todas as vilanias da prepotência sertaneja..." (DÂMASO,1931)13. Chegando ao Rio de Janeiro, procurou imediatamente o escritório do SPI e lá foi recebido pela diretoria e pelos funcionários "como velho amigo, ou antes como um irmão entre irmãos, separados muito embora, pela diversidade de credos, mas vinculados pelo mesmo pensamento, pelo mesmo ideal - A salvação do índio" (idem). Como resultado desse contato e como prova da falsidade da oposição entre "catequese religiosa" e "catequese militar", teria sido fundado em 192414, sobre as terras do extinto aldeamento do Ipanema, o Posto Indígena Dantas Barreto que, "Hoje em dia,... vae sendo um verdadeiro patronato agrícola, dentro de seus minguados recursos" (idem. Grifos meus.). 13 Os Carijó de que fala o autor são hoje conhecidos como Fulni-ô, grupo de 2.790 pessoas que ocupa uma área de aproximadamente 11.500 ha, incluindo a cidade de Águas Belas. Em documentos mais antigos o grupo dessa região, da Serra do Comunati, próxima ao rio Panema (depois Ipanema), é designado como Carnijó e aparece ocupando o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em 1705, extinto legalmente em 1861 e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI,1993). 14 Aqui existe uma discordância entre as datas apresentadas pela documentação do SPI, utilizada no Atlas das Terras Indígenas do Nordeste (PETI,1993) e as informações do texto do Pe. Alfredo Dâmaso. No Atlas informa-se que o primeiro contato com o SPI teria sido feito em 1925 e o posto indígena instalado em 1928. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 46 Em consequência da intervenção do SPI é desencadeada uma disputa judicial entre o MAIC (representado pelo inspetor do SPI, Antônio Estigarriba) e o estado de Pernambuco, na qual o governador pernambucano se apresenta como "árbitro". Nessa disputa é reconhecido o direito indígena sobre aquelas terras e a cidade passa a pagar arrendamento ao tutor dos "descendentes de Carnijós", o SPI, até que eles se emancipassem (PETI,1993). Junto à sumária descrição de como teria sido instalado o primeiro posto indígena no Nordeste, pe. Dâmaso insiste na importância do Serviço e de sua atuação na região com uma argumentação que oscila entre o humanitarismo e o pragmatismo político e econômico. Em resposta à acusação de que com o órgão o país teria gasto 50 mil contos de réis nos últimos 21 anos inutilmente, ele faz as contas e chega à conclusão de que aquele orçamento representava apenas 132 réis de diária para cada índio assistido pelo órgão, enquanto na cadeia de Campos Sales, ele compara, cada preso recebia 1$000 réis. E, para finalmente encaminhar o leitor na direção de seu raciocínio, ele pergunta: "Quantas centenas de milhar de contos teria gasto o governo para dar caça, inutilmente, aos heróicos e invencidos legionários de Luiz Carlos Prestes?... E com a imigração estrangeira?" (DÂMASO,1931). A proteção do indígena nordestino, além de ser um ato humanitário, de prestação de contas pela violência colonial, também respeitaria a uma racionalidade política, ao tutelar uma população rural pobre assediada pela ebolição política da época e a uma racionalidade econômica que, diferente da que guiava a elite cafeeira, percebia nesta população marginalizada, os "braços" de que tanto se sentia falta15. Citando o discurso de um deputado estadual de 1915, Pe. Dâmaso lembra que apenas no período entre 1910 e 1914 teriam sido gastos 30.354 contos com o serviço de imigração estrangeira, sem que se tivesse a certeza que o imigrante europeu se adaptaria e se fixaria ao solo nacional, já que muitos realizavam uma segunda migração para países vizinhos. Por outro lado, poderia-se gastar infinitamente menos com o "silvícola que do país não sae, que não emigra e que é perfeitamente utilizável como elemento de trabalho e de riqueza econômica..." (apud idem). O que não aparece no relato do pe. Dâmaso, mas será igualmente importante para entendermos a lógica de entrada do SPI no Nordeste, é o fato de, neste primeiro momento, os Fulni-ô estarem concorrendo com os Potiguara de Baia da Traição (PB) pelo privilégio de ter a proteção direta do órgão indigenista. Em 1922 o SPI enviaria um "ajudante adido" àquelas duas comunidades a fim de "verificar a situação dos índios" e escolher o local mais adequado para a instalação do seu primeiro posto indígena acima do sul da Bahia (PERES,1992). Nos dois lugares, o representante do SPI foi extremamente bem recebido, em Águas Belas (PE) pelo pe. Alfredo Dâmaso, que se apresentava então como "porta voz dos Carnijós"; em João Pessoa (PB) pelo superintendente da Fábrica de Tecidos Rio Tinto, instalada desde o início do século dentro dos limites do extinto aldeamento de Monte-Mor, em que tinham sido aldeados os Potiguara e cujas terras, de onde a fábrica de tecidos retirava madeira, eles reivindicavam (idem), isto é, pelos porta-vozes dos interesses contrários `a reterritorialização potiguara. O resutado dessas mediações tão discrepantes foi um relatório (1922) em que, ao contrário dos Fulni-ô, os Potiguara eram apresentados como "indolentes", estando as benfeitorias construídas em suas terras em estado decadente, as terras subaproveitadas e os seus milhares de coqueiros sendo progressivamente vendidos para particulares, cujo espírito empreendedor lhes servia de contraste. Tais "pretensos índios", na verdade não apresentariam "nenhum traço de identidade" com os antigos Potiguara de que pretendiam 15 , Repetindo em 1931 o diagnóstico do autor do relatório sobre os aldeamentos de 1878. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 47 ser "descendentes" e, não encontrando neles qualquer "dos sinais externos geralmente admitidos pela ciência etnográfica", quer fossem os traços fisionômicos, "a índole", os costumes ou o "idioma", o autor do relatório declara-os "mestiços" (em "promiscuidade com os civilizados"), que mereceriam por parte do Estado não a proteção "que deve amparar o autoctone legítimo ou seus descendentes diretos", mas a assistência dispensada aos "trabalhadores nacionais" (apud PERES,1992). No outro extremo do relatório, dos Fulni-ô era destacado que, "apesar de alguma miscigenação racial", tais índios "conservavam a língua e os costumes de seus antepassados", assim como sua "coesão social", apesar de despossuídos de suas antigas terras "por políticos locais". Além disso, apesar das duas áreas apresentarem posseiros sobre as terras reivindicadas, no caso dos Potiguara, as indenizações teriam que ser muito altas, enquanto no caso dos Fulni-ô os ocupantes já haviam manisfestado a disposição de "pagar foros a um recebedor legal e idôneo" (idem). Temos portanto reunidos, através dos argumentos do pe. Dâmaso em favor da proteção dos remanescentes de Pernambuco, e através desse breve relato sobre os elementos que estavam em jogo no momento de definição sobre o local mais apropriado para a instalação de um posto indígena, alguns dos elementos básicos e mais fundamentais que caracterizaram a atuação do órgão na região: a esfera de alcance de certos mediadores, a viabilidade econômica do empreendimento e a presença de determinados traços e evidências de uma remanescência e não apenas de uma descendência indígena que, como veremos, corresponderam a um repertório mais preciso e objetivo que a vaga referência à "ciência etongráfica". Da mesma forma, o fato do grupo escolhido ter sido o Fulni-ô e não os Potiguara, nesse primeiro momento, será fundamental na orientação das ações posteriores do órgão e no circuito que ele percorrerá. 2 Os Fulni-ô até hoje são considerados os que guardam os sinais diacríticos mais evidentes com relação aos regionais. Como relacionava Max Boudin em 1949, as diferenças que separavam os Fulni-ô dos sertanejos locais, com quem partilhavam a maior parte das características culturais e econômicas, eram: A) falarem sempre, salvo raras exceções, o ia-tê nas suas relações privadas; B) partilharem de características antropofísicas como o cabelo grosso, preto e liso, parca pilosidade corporal, olhos oblíquos, maçãs bastante acentuadas, estatura pequena, "cútis bronzeada ou côr grão de trigo" e C) praticarem uma religião secreta, "diferença que acusa a singularidade da tribo, como pertencendo a um mundo cultural completamente estranho ao nosso" (BOUDIN,1949). Tudo isso permitiu que o SPI na década de 1920 os reconhecesse como último grupo a resistir ao assédio civilizatório na região, o que chama a atenção de etnólogos contemporâneos como Carlos Estevão de Oliveira, à época, diretor do Museu Goeldi. Em 1931 ele já publicava um artigo sobre o grupo, centrando sua atenção nas suas possíveis afiliações lingüísticas, mas também fazendo referência ao patrimônio que lhes restou na forma de uma organização social orientada por crenças religiosas: Filhos do sol e da lua, os Fulini-ô são divididos em duas bandas exogâmicas, estas abrangendo cinco clãs totêmicos. Que eu saiba, de todos os povos indígenas do Brasil, estudados conscienciosamente, não existe um, talvez, no qual o totemismo seja melhor caracterizado. As crenças dos Fulni-ô pertencem ao mesmo círculo que as das populações de Brejo dos Padres, de Palmeiro, e muito provavelmente tembém de Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 48 Palmeira dos Índios. Isto, de tôda evidência, não significa que todas sejam inteirmamente idênticas. (OLIVEIRA,1931. Grifos meus) Assim, além de apresentarem requisitos básicos para o reconhecimento de sua identidade indígena pelo SPI, os Fulni-ô, através do texto de Carlos Estevão, ganham status de raridade etnológica, através da investigação de um profissional de prestígio acadêmico. Ao mesmo tempo, como num jogo de espelhos, através dos Fulni-ô, grupo já legitimado por uma agência de estado especializada, esse antropólogo pode lançar as bases que mais tarde, por um largo mimetismo, darão legitimidade ao surgimento de novos grupos, que, apesar de não partilharem mais daqueles "traços de identidade", daqueles "sinais externos", ganharam um mesmo círculo legitimador. Por isso é interessante a omissão em seus textos sobre as datas precisas das visitas a cada uma dessas comunidades. Nesse texto de 1931 diz que, apesar de sempre ter tido interesse no grupo, só naqueles últimos anos os teria visitado, em companhia do Deputado Mário Mello e do inspetor do SPI, Antônio Estigarriba, em consequência do reconhecimento oficial, mas não cita quando teriam ocorrido as visitas ao Brejo dos Padres e às outras duas localidades. Da mesma forma, na palestra de 1937 (OLIVEIRA,1943), deixa sugerido que já teria visitado o Brejo anteriormente, mas mantém o silêncio para não desfazer justamente o efeito de descoberta com o qual o seu texto contava. O que é importante retermos, por enquanto, é o fato da experiência Fulni-ô não ter chamado a atenção apenas de um restrito círculo de acadêmicos, mas também e fundamentalmente, de uma série de comunidades que mantinham com esta laços rituais. A experiência Fulni-ô realiza uma possibilidade até então desconhecida por outras comunidades do Nordeste, servindo como ponto inicial a partir do qual se estendem os fios com os quais será tecida a rede das emergências. Assim, a partir da mediação direta dos Fulni-ô e do pe.. Dâmaso, num primeiro momento são reconhecidos outros quatro grupos: os Pankararu, os Xukurú-Kariri, os Kambiwá e os Kariri-Xocó. Os Pankararu, desde o início da década de 30, haviam estabelecido contatos frequentes com o pe. Dâmaso, que inicialmente os havia recomendado a autoridades locais16 e, mais tarde, passaria a apoiá-los em reivindicações fundiárias. Depois de tomarem conhecimento, no entanto, da existência de um serviço do Estado que oferecia proteção aos "remanescentes indígenas" e que estava entrando em conflito com proprietários e autoridades locais em função da demarcação de terras indígenas, suas lideranças intensificam as viagens para Águas Belas, dando-lhe um caráter reivindicatório. Através da mediação do pe. Dâmaso, Carlos Estevão faz suas primeiras viagens ao Brejo dos Padres em 1935 e 1937, enquanto inicia contatos diretos com o SPI e difunde no meio acadêmico a aceitação da existência de "remanescentes indígenas" em diversos estados do Nordeste que mereceriam atenção. Já no ano de 1937, o Ministério da Guerra, a que o SPI estava subordinado, por força das injunções de Carlos Estevão, envia ao local, para uma primeira avaliação, o funcionário Cildo Meirelles, mas confirmando a desimportância da região no quadro programático do órgão naquele momento e na sua própria definição de índio, arquivam-se os trabalhos deste funcionário que serão retomados apenas três anos mais tarde, quando o 16 "Locais" aqui não deve se prender à moldura político administrativa. Nessas primeiras décadas a principal cidade das redondezas, onde os pankararu frequentavam a feira semanal, ficava não só em outro município como em outro estado: era Paulo Afonso, na Bahia, que lhes servia como referência econômica e política. Isso é comum por muitas regiões do sertão, mas o que existia de particular nessa relação era a presença de um destacamento militar reginal nessa cidade, que representando a autoridade federal na área, frequentemente intervinha em questões mais gravas relacionadas aos Pankararu. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 49 órgão já teria sido transferido para o MAIC (DOC.:10). Assim, apenas em 1940 Carlos Estevão poderia voltar à aldeia com a notícia da decisão do SPI de demarcar suas terras e estabelecer ali um posto indígena17. Através da mesma mediação e à mesma época, Carlos Estevão entra em contato com os Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios (AL) e, junto ao deputado Medeiros Neto, dá início ao seu processo de reconhecimento pelo SPI. O grupo no entanto, teria que esperar até o ano de 1952 para que o Serviço adquirisse uma fazenda, instalasse um posto indígena e depois passasse a reunir e a receber ali famílias indígenas oriundas de diferentes localidades próximas. Constituídos como unidade territorial e sujeito político no final da década de 1970, os Xukuru-Kariri intensificam sua mobilização e conseguem ampliar suas terras (PETI,1993). Os Kambiwá, localizados na Serra Negra (PE), local de refúgio de um grande número de grupos fugidos das "guerras justas" e dos aldeamentos, também iniciam seu processo de reconhecimento oficial ao final da década de 1930. Provavelmente por intermédio dos Pankararu, com quem mantinham contatos regulares, os Kambiwá conseguem auxílio do pe.. Dâmaso (que neste momento mantinha correspondência regular com Getúlio Vargas) e sua autorização para voltarem a ocupar a Serra Negra (BARBOSA,1993). Efetivamente, diversas famílias descendentes de antigos moradores da serra se organizam para voltar a ocupá-la mas o seu principal líder é capturado, torturado e morto por fazendeiros locais. As famílias reunidas deslocam-se para uma região próxima, onde permanecem até 1954, quando conseguem estabelecer novos contatos com o ministro da Agricultura, que finalmente demarca suas terras. Um pouco depois desses primeiros contatos, em 1944, mas também por intermédio do pe. Alfredo Dâmaso, o SPI estabelece um posto indígena em Porto Real do Colégio (Al). O grupo de remanescentes Cariris reivindicava as terras de um aldeamento jesuítico do séc. XVIII, extinto em 1759. Segundo a memória tribal, o imperador, numa viagem à Cachoeira de Paulo Afonso, teria visitado a cidade de Porto Real de Colégio e lá, ao tomar conhecimento das queixas dos caboclos, teria autorizado a concessão de novas terras para o grupo (PETI,1993). Nesse momento, os Xocó, com quem mantinham relações e que passavam por um período de violenta expropriação numa região mais acima do São Francisco, intensificam sua migração para junto dos antigos Cariri, dando origem a uma etnia que, em 1944, quando o SPI estabelece um posto indígena a 300 metros da sede da prefeitura municipal de Porto Real de Colégio, se auto-denominaria Kariri-Xocó. A demarcação das terras do grupo, no entanto, só viria a ocorrer em 1949. 3 Assim, a ação indigenista aplicada a uma situação a princípio excepcional, como a dos Fulni-ô, dá partida a uma série de reivindicações de comunidades descendentes de antigos aldeamentos indígenas, entre os anos de 1935 e 1944. A princípio os Fulni-ô e seu "porta-voz", pe. Dâmaso, auxiliados por Carlos Estevão, servem de mediadores entre os grupos emergentes e o SPI, mas a seguir, os próprios grupos recém reconhecidos passam a atuar como mediadores entre o órgão e os futuros grupos, em novas emergências. É isso que acontece no caso dos Xocó. Mesmo depois de terem migrado em grande parte para as aldeias dos Kariri no final do séc. XIX, eles mantiveram relações com o pequeno grupo que permaneceu no local e nunca deixaram de apoiá-los nas reivindicações 17 A memória do grupo tem registrado com clareza essa visita, quando, segundo contam, "o prof. Carlos" teria chegado fazendo festa e abraçando a todos em grande alegria, comunicando que seus problemas estavam resolvidos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 50 que fazia às autoridades pela retomada das antigas terras do grupo, às margens do São Francisco, no atual município de Porto da Folha (SE). Tais reivindicações, feitas desde o final do século junto às autoridades locais, às autoridades da capital do estado e até mesmo através de viagens ao Rio de Janeiro, depois do reconhecimento dos Kariri-Xocó e da instalação de um posto do SPI entre eles, passam a ser dirigidas ao próprio órgão indigenista. Ampliando essa rede de mediações, existem indícios de que os Pankararu foram os mediadores na emergência Tuxá, segundo o que se lê numa carta do funcionário do SPI, chefe do Posto Indígena (PI) Pankararu, datada de 1942 e endereçada ao cap. João Gomes Apaco, líder indígena dos "índios rodelas" através dos pankararu. O grupo teria entregue àquele funcionário um abaixo-assinado pedindo sua intermediação para que o SPI interviesse na luta que há anos vinham travando pela restituição de suas terras. Na resposta, o chefe de posto comunica que Rondon já havia sido informado de sua situação e, em função disso, teria entrado em contato pessoal com o interventor Agamenon Magalhães no sentido de pedir a liberação das ilhas do São Francisco, conseguindo uma resposta positiva (DOC.:11). Como resultado dessas mediações, que podemos começar a identificar como verticais (rodelas/lideranças > Pankararu/chefe de posto > SPI/Rondon > interventor/estado), e das subsequentes viagens deflagradas por elas, os "rodelas" obtiveram o seu reconhecimento como indígenas - sob o etnônimo de Tuxá - a criação de um PI e a reconquista de uma de suas antigas ilhas no São Francisco. Mais tarde os próprios Tuxá seriam a ponte entre outros grupos e o órgão indigenista, como no caso dos Trucá, localizados na Ilha da Assunção, município de Pesqueira (BA), 60 km acima dos Tuxá na margem oposta do São Francisco. As terras do antigo aldeamento da Ilha de Assunção, reivindicadas pelo grupo, teriam sido expropriadas ao longo do séc. XIX, até o aldeamento ser dado como extinto na década de 1870, apesar do grupo continuar ocupando parte das terras da ilha. Na década de 1920, no entanto, o bispo de Pesqueira toma posse do que restava dessas terras sob a alegação de que elas teriam sido doadas pelo próprio grupo para Nossa Senhora, devendo por isso estar sob sua administração, como representante da Igreja, reeditando uma das mecânicas da expropriação que encontramos descrita no relatório da Diretoria de Índios de 1857. Na década de 1940 essa comunidade é alertada pelos Tuxá da possibilidade de, sendo reconhecidos como indígenas, terem de volta as terras do antigo aldeamento. Tem início aí então um processo de retomada das terras do aldeamento pelos então auto-denominados Trucá, que se arrasta até os anos de 1990 (BATISTA,1992). A emergência Atikum, grupo étnico que hoje conta com cerca de 3600 pessoas, localizado na Serra do Umã, município de Floresta (PE) em terras cuja extensão ultrapassa os 15000ha, tem lugar também na década de 1940 em consequência de seu contato com os Tuxá. Segundo relatos do grupo (GRUNEWALD,1993), foi numa das feiras da antiga Rodelas (hoje inundada pela barragem de Itaparica) que um morador da Serra do Umã, reclamando dos problemas da sua região, aliás comuns a muitas daquelas localidades, como a invasão de roças pelo gado de fazendeiros vizinhos e a cobrança de “altos impostos” pela prefeitura, ficou sabendo através de um tuxá que, como "remanescentes de índios" poderiam alcançar o apoio do SPI e a demarcação de uma reserva, como os próprios Tuxá já reivindicavam. O movimento no entanto parece ser deflagrado quando, segundo depoimento transcrito, "... um caboclo da Serra Negra [...] disse: "Primo, aqui não é conhecido que é índio? Então procure os direitos que o governo tá dando..." (apud GRUNEWALD,1993). Depois disso foi formado um pequeno grupo que se dirigiu ao Brejo dos Padres, para se informarem junto aos Pankararu, com os quais também mantinham laços rituais ( o significado da expressão ficará mais claro a seguir), da forma Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 51 de entrar em contato com o SPI para irem "em busca dos direitos que foi dado" (idem). Esta situação de emergência deixa entrever a malha que começa a se estender entre os grupos já identificados e aqueles que estão por emergir, desenhando uma série de relações agora num sentido horizontal: Rodelas (Tuxá) - Serra do Umã (Atikum) - Serra Negra (Kambiwá) - Brejo dos Padres (Pankararu), que finalmente dá acesso à rede vertical: chefe de posto (Brejo dos Padres) > chefe de inspetoria (Recife) > diretoria (Rio de Janeiro). A última situação a que podemos ligar diretamente essa trama inicial das emergências é a dos Pankararé, localizados no Brejo do Burgo, que fica no Raso da Catarina, município de Glória (BA), com uma população hoje em torno de 800 pessoas. Os Pankararé estariam ligados aos Pankararu por laços de parentesco que remetem ao desmembramento de um mesmo grupo anterior num passado imemorial e foi através deles que na década de sessenta retomariam suas tradições religiosas em plena mobilização pelo reconhecimento de sua remanescência indígena. A memória da comunidade registra atos de expropriação das suas terras desde o início do século, intensificados na década de 1920 com a forte presença do cangaço e das volantes e depois, entre as décadas de 1930 e 1950, quando a comunidade passou a ter suas terras invadidas sistematicamente por uma família de proprietários que então ocupavam o governo municipal. Suas festividades passam então a ser reprimidas e suas roças invadidas, não mais apenas pelo gado dos fazendeiros, mas por pistoleiros, que as destruíam como forma de intimidação. O impacto da construção da UHE de Paulo Afonso, em fins da década de 1950, gerando grande afluxo de pessoas e a dinamização econômica da região e consequente valorização das terras, marca o período de enfrentamento mais sistemático e dirigido especificamente às suas posses, inclusive com o assédio das autoridades locais nas figuras do prefeito e do delegado, grandes proprietários. Na década de 1960, depois de tomarem conhecimento da expulsão de várias famílias de posseiros da terras dos Pankararu, os Pankararé vão até eles em busca de apoio. Através dessa mediação, eles entram finalmente em contato com a FUNAI e iniciam um trabalho de retomada de "antigas práticas rituais, ao mesmo tempo que se esboça uma nova organização política" (MAIA,1994). Só depois desses contatos o conflito local parece assumir contornos mais claramente étnicos e as reivindicações do grupo passam de demandas imadiatas pelas posses invadidas a demandas pelo seu reconhecimento como indígenas. Em resposta, os fazendeiros locais aumentam a pressão sobre suas terras e com jagunços e com a própria força policial local passam a reprimir mais sistematicamente a realização do Toré. Essa disputa se cristaliza num enfrentamento pontual, entre um posseiro da comunidade e o prefeito de Glória, no qual a FUNAI intervém favoravelmente à comunidade. Depois disso, parte da comunidade18 decide avançar definitivamnte no processo de emergência e buscam o apoio dos Pankararu. 18 Essa descrição esquemática não permite fazer referência à complexidade dessa mobilização, que produziu um fortíssimo faccionalismo interno, onde parte da comunidade aceita o novo formato político e outra parte não, optando pela via da mobilização sindical. Esse faccionalismo é forte o bastante para separar famílias, onde irmãos, pais e filhos, optam por identidades distintas. Como veremos no segundo seguimento desta dissertação, índio e trabalhador rural podem não ser identidades compatíveis, simplesmente sobrepostas ou complementares. Elas implicam em opções identitárias de grande investimento pessoal e coletivo. O texto de Maia (1993) faz longa referência a este conflito, mas não o percebe exatamente desta forma, remetendo-o à uma diferença entre ênfases dicursivas classista ou étnica. Nesta interpretação cabe aos sindicalistas o demérito de não compreenderem a importância do discurso étnico. No caso de Soares , essa incompreensão é tamanha que merece ser citada: "Alguns índios negam a sua identidade étnica verdadeira, apesar de serem apontados por outros como pertencentes ao grupo Pankararé e seus parentes. Chegam a negar que alguém seja índio no local e a dizer que 'isto é uma invenção'. " (SOARES,1977. Grifos nossos). Como veremos (Cap.4), “índio” e “trabalhador rural” são, nesses casos, invenções contrastivas. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 52 Temos portanto um primeiro desenho da rede de relações que, do ponto de vista dos grupos envolvidos, possibilitou sua passagem do estado genérico e pejorativo de caboclos, para o estado também genérico mas juridicamente diferenciado de índios, na luta pela reconquista da terra de morada e de trabalho. Um elemento fundamental desse quadro, no entanto, ainda deve ser devidamente explorado:o trânsito de indivíduos e informações entre as comunidades citadas, a partir do qual monta-se a rede de emergências, tem raízes e repercussões que vão muito além de um ato técnico de transmissão de uma mensagem, eles desenham um "fato social" fundamental na vida desses grupos e na sua organização política, o fato das viagens. A instituição das viagens 1 A trama dessas emergências sugere, e os depoimentos confirmam, que parte do percurso seguido pelo órgão indigenista no seu reconhecimento de grupos indígenas pelo Nordeste respeitou caminhos pré-definidos por fluxos tradicionais. [P: Na época do seu avô já viajavam de uma tribo pra outra?] Já. Ajudando um ao outro. Pegavam aqueles barco, tinham aqueles brancos que tinham os barcos e tinham vezes que tinham contato com aqueles índios e eles vinham pra essa Petrolândia velha. Atravessavam pra Rodelas, pros Tuxá e iam fazê aquelas festas. Quando não, pegavam o barco aqui em Petrolândia e subiam e levavam pra fazê aquelas festas. Aí foi quando o negócio da CHESF acabou... (Antônio Moreno)19 Existia um circuito de trocas rituais entre comunidades hoje reconhecidas como indígenas que poderíamos descrever segundo dois modelos, que algumas vezes parecem ter sido desdobramentos um do outro: são aquelas que temos chamado viagens rituais, isto é, o trânsito temporário de pessoas e famílias entre as comunidades, marcado por eventos religiosos, que podem corresponder ou não a um calendário anual, e as viagens de fuga, verdadeiras transferências demográficas, mas muitas vezes reversíveis, através das quais grupos de famílias transferiam seu local de morada por tempo indeterminado, como recurso à perseguição, ao faccionalismo, às secas ou à escassez de terras de trabalho. Para os Pankararu, a cidade de Rodelas, e "os rodelas", atuais Tuxá, eram uma referência permanente de suas viagens, antes da construção das usinas hidroelétricas que bloquearam o canal desse fluxo de pessoas. Mantinham contatos também com outros grupos, de outros pontos do São Francisco, como os Fulni-ô e os Geripancó, citados sobre convites recíprocos para a realização de Toré, além dos Kambiwá, menos frequentemente. Como fizemos referência, tanto pankararus quanto pankararés concordam perfeitamente com a história que conta terem os dois grupos, num tempo imemorial, se originado de um grupo anterior, que em sucessivos deslocamentos, teria se fragmentado quando da passagem pela localidade de Brejo do Burgo. Em histórias cuja referência é o tempo de vida, outros laços ainda são revelados. 19 Ao final, em anexo, apresentamos uma lista das entrevistas gravadas, com informações básicas sobre os entrevistados. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 53 [...]Meu pai e minha mãe sairam daqui fugindo da seca e da revolta..., sei lá não tinha o que comerem... Mas é a mesma coisa, corre pra cima...Eu nasci no Pariconha, entre o Pariconha e o Brejo dos Padres, quer dizer, eu sou mais pernambucano que alagoano. Foi aí perto de Moxotó que eles atravessaram, depois de oito dias fomos pra lá, chegando lá fui batizado, e já tinha lá índio daqui. Que os índios ia trabalhá e ficava por ali, constituia família, é dessa família Cangula, do João Tomás, tinha muitos deles lá. É onde deu origem à tribo dos Geripancó, que todos aqules índios foi pra lá. A Funai comprou mais terra e nós descemos de Palmeira a baixo e fomos ajudá a erguer a aldeia dos Xucurus, isso foi na época de 1932 pra 33. Aí eu fiquei lá menino, a minha meninice quase toda foi lá. Nós voltamos pra cá ná época do Dr Carlos. Viemos só passear. Nós acompanhamos a demarcação de lá. (João de Páscoa) Num tempo mais largo que o das histórias de vida, a própria fundação do grupo Geripancó está ligada a estas viagens de fuga, encontrando-se com a história Pankararu justamente no momento maior da expropriação das terras do antigo aldeamento. Isso aconteceu durante uma revolta muito violenta, que ocoreu em Pankararu na época de um Cavalcanti. Os índios corriam à procura de um lugar onde pudessem viver mais tranquilos. O índio José Carapina, que veio de Pankararu, ao chegar no lugar, onde é hoje a aldeia Geripancó, pediu o apoio a um proprietário...[...]... Depois que o Zé Carapina já estava aqui, ainda na época da revolta em Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no Ouricuri, e Zé Carapina deu apoio pra eles. Vieram primeiro o Manuel Carapina, primo do meu avô, chefe de família, trazia até filho. Depois chegou João Porsena, de Palmeira dos Índios e a esposa dele era de Pankararu, era da família Jacinto... (Genésio Miranda da Silva, cacique Geripancó, depoimento transcrito em BRITO,1993) Assim, numa determinada dimensão, essas viagens ligam grupos, de origens diferentes ou não, por laços de afinidade e parentesco que motivam e resultam delas, na produção de uma comunidade ritual mais abrangente e em expansão, levando à constituição de circuitos abertos de trocas, de homens, informação e cultura. Esses circuitos desempenham o mesmo papel que Anderson (1989) atribuiu às peregrinações, que estão na base das antigas "comunidades religiosas imaginadas", sob a experiência das quais "emerge uma consciência de conexão" (ANDERSON,1989). Tais circuitos entre os índios do Nordeste formaram uma comunidade ritual e de problemas comuns (o gado sobre as roças surge em todos os relatos e a expropriação das terras de antigos aldeamentos em quase todos) Se essa comunidade ritual assumia um caráter étnico, com certeza a afirmação de uma remanescência indígena não era um valor associativo necessário à sua articulação e funcionamento. 2 Independente das viagens de trocas rituais, existem notícias de viagens de representantes dessas comunidades às capitais do estado e até mesmo ao Rio de Janeiro, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 54 em busca de apoio contra os sistemáticos atos de violência e expropriação territorial que sofriam. O século XIX parece assistir à passagem dos pedidos de missionários em favor dos índios, para pedidos dos índios em seu próprio nome, através de petições ao Imperador ou de viagens que realizavam a fim de vê-lo pessoalmente para pedir-lhe sua "paternal proteção". Dantas et alii (1992) sugerem que a viagem do Imperador à região em meados do século teria produzido o efeito de dar realidade a uma figura um tanto mítica que lhes era apresentada como um grande pai, ou mesmo como um padroeiro. Como lembra Revel (1989), a itinerância do rei não é novidade, fazendo parte, desde a Alta Idade Média, do repertório de recursos que o soberano tem para conhecer o reino e se fazer conhecido por ele, reafirmar seus domínios periodicamente, através do consumo no local dos seus produtos e rendimentos e da reafirmação de seus direitos. No caso de PedroII, depois da recente Lei de Terras, tornava-se importante sua presença por toda parte, arbitrando conflitos, regularizando situações de fato, pacificando o espaço nacional e se fazendo necessário aos seus súditos: "Quando se desloca, o rei delimita o seu território. Faz o seu reino existir e toma posse dele" (REVEL,1989). A novidade no entanto foi que, ao se fazer presente, o poder soberano mostrou-se acessível, abrindo a possibilidade de ser também buscado. Com o mesmo objetivo de tomar posse de seus territórios, índios passam a empreender viagens ao Rio de Janeiro, numa frequência grande o bastante para fazer necessário ao governo central enviar circulares às províncias determinando que fossem proibidas tais viagens (DANTAS et alii,1992). Apesar desta tentativa, parecia ter sido instaurado um padrão, ou mesmo poderíamos dizer uma "tradição", na qual as comunidades indígenas passam a ver o único recurso para a conquista ou garantia de seus domínios territoriais: as viagens aos centros de autoridade, que as conectava com poderes extra-locais. O recurso não era o Estado, nem os poderes públicos, mas o centro, o alto, e quanto mais próximo dele fosse possível chegar, mais esperançosa a viagem. Mas só excepcionalmente essas viagens ganhavam algum tipo de registro documental, como as dos Xucuru-Kariri no início do século XIX, dos Xocó e Xucurú nas últimas décadas desse mesmo século, e as novas viagens conjuntas de Xocó e Kariri-Xocó entre as décadas de 1910 e 1920 (PETI,1993 e SOUZA,1992). Não é no vazio, portanto, que surgem, desde o início do século, as viagens de representantes da comunidade de Brejo dos Padres às cidades vizinhas, na busca de proteção contra o gado dos fazendeiros que invadiam suas roças. A década de 1930, aparentemente sob o impacto dos programas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), amplia a presença de poderes extra-locais na região, produzindo novos centros de autoridade. Mas é na cidade de Bom Conselho que, apesar de não apresentar qualquer papel regional destacado, a presença do pe. Alfredo Dâmaso e o seu apoio às demandas de grupos de remanescentes criaram um centro de autoridade que passa a substituir outros possíveis centros, até então ineficientes. Meu pai viajava pro Rio de Janeiro pra resolvê esses problemas e nunca resolveu, tinha partes que andava até de pé, pra parte de Minas. De Governador quase a Três Rios andava de pé, pegava carona num canto e ni outro... Mas nós não, porque graças a Deus agora a coisa melhorou mais, porque o governo sempre dá uma passagem, uma coisa e outra... [Viajavam com ele:] o Bernadino Pereira, o Mariano Tiú, Lino Barros, que tinha o apelido de Lino Cabeludo [risos], o José de Barros que morava lá dentro do posto, cinco, seis pessoas. Depois viajaram pra... A primeira comarca pra que eles viajaram foi pra Flores, a primeira Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 55 cidade de Pernambuco é Flores, começaram pra lá, pra falar com o Interventor, um doutor que eles chamavam na época Interventor (Antônio Moreno) Nesse circuito, a importância que passa a ter a cidade de Bom Conselho deriva do seu papel de ponto de convergência de dois circuitos rituais. O efeito de nodosidade (RAFFESTIN,1993) assumido por aquela cidade é criado pelo fato do seu pároco, o "pe. Alfredo", ter no seu roteiro de serviços espirituais a cidade vizinha de Águas Belas, onde localizam-se os Fulni-ô, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu, Xukuru, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kambiwá e outros. A circulação e a comunicação intimamente associados em contextos de pouca especialização das redes de comunicação (idem)- encontravam naquele ponto geográfico um eixo, um nó, para a articulação do circuito dos possíveis centros de autoridade (como já tinham sido tentadas as cidades de Flores e Floresta) e de trocas rituais. Não se tratava de um lugar privilegiado a priori, mas que foi construído como lugar de reunião, de nodosidade em grande medida contingente, onde era possível pôr em contato e por isso dar uma dimensão de experiência às narrativas particulares, da mesma forma que trocar informações sobre mediadores. É através desse nó que as informações e homens migram de um circuito para o outro, e é a partir dele que aquele circuito de trocas rituias tornar-se-á o circuito das emergências. As demandas dos caboclos do Brejo dirigidas ao pe. Dâmaso inicialmente não falavam na criação de qualquer área de exclusividade que distinguisse entre aqueles que eram ou não eram índios. A memória de uma ancestralidade indígena servia como fiadora dos direitos que sabiam ter sobre as terras, mas não implicava desde o início na pretensão de uma delimitação formal, subordinada a uma unidade identitária e política. Suas necessidades passavam pela construção de "um travessãozinho pequeno" que cobriria a extensão de aproximadamente vinte "tarefas" à volta do Brejo e, apesar de se considerarem participando da mesma comunidade, as famílias que ocupavam as serras não encararam esta como uma atividade que também lhes interessasse. O fato de partilharem de uma mesma identidade, de laços de parentesco e dos mesmos cultos não produzia a imaginação de um grupo fechado de interesses e obediência comuns. Esse primeiro foi só aqui dentro do Saco do Brejo mesmo, só, nem lá no pé da serra era ainda cercado, era só aqui no meio mesmo, dessas casas pra cá nesses pézinho de serra aqui. E nessas roças todas aqui sobre um valado... Cavavam e quando não plantavam aquele pinhão, usavam [...] essa imburana..., eu sempre conservei, o senhor arrepare que minha roça é toda cercada de cera viva, porque na época dos meus antepassados, dos meus avós e bisavós era tudo cercado de cerca viva, e eu conservei. E eles fizeram o cercado de mancambira, que é que nem aqules pezinhos de abacaxí, só que uma fruta amarelinha, esse travessão aqui era arrodiado com mancambira. (Antônio Moreno) A referência não era um território, mas posses de uso familiar. Não existia um perímetro circundando um território abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os marcos do antigo aldeamento), mas a terra sobre a qual se investia um trabalho social, de base familiar e sobre a qual havia um domínio não legal, mas hereditário. Era desse domínio que sabiam estar sendo expropriados. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 56 ... e aquilo alí, pra sobrevivê uma família de 10 filhos alí com aquele pé de abóbora... Aí o meu pai foi vendo que aquilo não dava certo e foi pedindo de um lado e outro, pro governo, uns achava que era certo, correto aquilo, outros que não era, e foram até que deram o apoio de confiança quando cercaram. Os índios já não podiam fazer nada mais, vigiando o bicho à noite, quem plantava um pé de abóbora, outro de macaxeira, aquilo alí era numa correria danada... Aí ele foi, falou com o pe.. Alfredo e "fale com o interventor", que era o governo lá de Recife, e ele foi embora lá pra Recife de pé, porque naquele tempo não tinha carro... (Antônio Moreno). Depois da entrada do SPI em Águas Belas e do reconhecimento dos Fulni-ô como remanescentes indígenas com direitos a um território é que essa visão do domínio da terra mudará de natureza, potencializando a memória de uma posse coletiva ancestral. Aqueles que viajavam em busca de apoio passam então a viajar em busca dos direitos a que teriam como "remanescentes". Isso repercute sobre todos os aspectos da vida da comunidade, desde sua relação com a memória, até o seu arranjo interno de autoridades, onde passam a ocupar um lugar diferencial justamente aqueles que eram responsáveis pela busca dos direitos. João Moreno foi a personagem que mais se destacou nas viagens aos centros de autoridade em busca de ajuda, encabeçando um grupo de outros cinco ou seis companheiros que podiam variar um pouco de viagem para viagem. Esse grupo de pessoas não tinha qualquer papel de autoridade previamente estabelecida na organização política do Brejo, destacando-se exclusivamente pelo exercício das viagens e por sua especialização nelas, ao passarem a conhecer e se fazerem conhecer por autoridades extra-locais na sua busca de apoio. Desenha-se dessa forma um tipo de autoridade local que retira seu status da capacidade de acessar os centros de autoridade, e que passa a exercer um papel de representação que será fundamental para produzir não só a imagem do grupo mas o próprio grupo, enquanto conjunto de pessoas cujos interesses têm nessas pessoas um porta-voz (BOURDIEU,1989). Forja-se assim, o que daqui em diante chamaremos de lideranças peregrinas, sob cujo exercício de representação os grupos começam a ganhar forma. Algumas características no entanto condicionam a assunção desse papel. João Moreno, por exemplo, era um homem com experiência de outras viagens, empreendidas para trabalhar em outros estados. Sabia rudimentos do vocabulário "da língua" e tinha "cara de índio mesmo". Essas características não serão necessariamente repetidas a cada nova liderança peregrina que emerge, mas dão uma medida do tanto de teatral que a representação política indígena (como qualquer outra) tem que respeitar. 3 A referência de Carlos Estevão ao Brejo dos Padres, no texto de 1931, antes portanto de sua primeira visita à esta comunidade e à de Palmeira dos Índios, deve ser creditada à existência daquele circuito de trocas que o antropólogo provavelmente viu em funcionamento durante sua visita à Águas Belas. O "círculo" mítico-religioso que ele supôs existir e ao qual remete àquelas comunidades é já o anúncio, no seu pronunciamento sobre o caso Fulni-ô, das suas futuras descobertas de outros grupos indígenas, transmitindo-se por essa conexão, legitimidade etnológica a outros grupos emergentes. No entanto, como veremos, a transmissão de legitimidade não se realiza apenas pelo reconhecimento de semelhanças, mas também pela produção delas. O circuito de trocas que ligava uma série de comunidades "remanescentes" e que Carlos Estevão de Oliveira declara supor ser um Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 57 "círculo" cultural, será o caminho percorrido pela padronização ritual futura das comunidades segundo a semelhança imputada anteriormente. Como vimos, o quadro ideológico e estratégico do SPI foi formulado com vistas a sua atuação junto a grupos indígenas ainda não integrados, muitas vezes arredios, beligerantes, que era preciso buscar, seduzir através de tradutores e de presentes, em operações "heróicas" representadas pela máxima formulada por Rondon: "morrer se preciso for, matar nunca. Esses não eram procedimentos que se adequassem ao contato com índios do Nordeste. O SPI antes de procurar estava sendo procurado, antes de convencer, tinha que ser convencido, antes de utilizar mediadores era alcançados por eles, que serviam de "porta-vozes" dos "remanescentes". No Nordeste, os “especialistas da significação” (TODOROV, 1993) que trabalhavam na “conquista”, eram os próprios “remanescentes”. Vejamos. Diante desta inversão de expectativas e procedimentos e na falta dos sinais diacríticos mais evidentes, a solução do órgão para o tratamento com as demandas que lhe alcançavam repetiu a sua natureza burocrática, estabelecendo um critério fixo, de observação direta, imediata e de fácil apreensão. O inspetor regional do SPI, Raimundo Dantas Carneiro, assediado por novos "remanescentes", institui como critério básico do reconhecimento da remanescência indígena (acompanhando a sugestão presente nos textos de Carlos Estevão de Oliveira) o Toré, tornado então, expressão obrigatória da indianidade no Nordeste. O Toré era encarado por Raimundo Dantas Carneiro como uma espécie de rito sumário na legitimação da presença do SPI, incorporando-o ao rito mais largo que vem marcar a criação de espaços tutelares que abria a atuação do órgão: dançar o Toré, hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Para aquele inspetor, o Toré era "...a conscientização de que eles eram índios [...], eles tinham que saber aqueles passos da dança do índio", tomando para isso, como parâmetro de avaliação das performances, o Toré dos Fulni-ô, considerado "o primitivo [...], o verdadeiro Toré" (depoimento de R. D. Carneiro, transcrito em GRUNEWALD,1993). Se a existência dos grupos e de uma antiga tradição comum a todos, na forma do Toré, é pensada como realidade indiscutida, por outro lado Raimundo Dantas Carneiro tem muita clareza do fato de estar instituindo uma espécie de rito de passagem, que nada tem a ver com a verificação da legitimidade dos grupos emergentes, já que reconhecia-os como "remanescentes" e não como os próprios "primitivos". Para aquele inspetor e, consequentemente, para o órgão indigenista, o Toré passa a funcionar não como expressão autêntica, mas como expressão obrigatória, que se investe de um caráter educativo, instituindo ele mesmo uma autenticidade, em homologia às práticas políticas que pretenderiam, através de um processo de conscientização, transformar a "classe em si", numa "classe para si". R. D. Carneiro encara o Toré em sua força performática: ao mesmo tempo que era uma declaração de querer ser, era o ato de se fazer índio, através do qual eram absorvidos pela categoria jurídica sobre a qual o SPI estendia seu manto tutelar. Mais tarde essa forma de encarar o Toré se perderia pelos corredores do órgão, cujos funcionários, sem se darem conta da invenção de que são herdeiros, sob a amnésia da gênese dos conceitos, eternizam e reificam o Toré como prova substantiva da veracidade étnica20. 20 Em um relatório de 1989, para usarmos um exemplo suficientemente próximo, uma funcionária da FUNAI se dispõe a ir até um grupo emergente para comprovar sua autenticidade atravavés de uma verificação sobre a existência ou não de artezanato e a qualidade do desempenho do Toré, como se estivesse verificando a existência de furos nas meias: "...No momento que foram interrogados sobre a dança do toré, se havia dentro do grupo, alguma forma especial no momento da dança, surgiu um pouco de dúvida e o cacique acaba dizendo que homens e mulhertes dançam juntos. Quando o grupo de doze pessoas foi dançar o Toré, percebí Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 58 É a instituição do Toré como expressão obrigatória da indianidade que cria um nexo de outra natureza entre os dois circuitos de viagens de que já tratamos. De agora em diante um circuito levará ao outro, não eventual ou acidentalmente, mas necessariamente, já que a troca ritual é transformada em pressuposto da conquista de direitos. Levantar aldeia 1 É a conexão entre esses circuitos que permitirá às lideranças peregrinas assumirem um papel político ainda mais largo do que aquele que já desempenhavam como representante de sua comunidade. Além de realizarem o trânsito de informações sobre os direitos entre os centros de autoridade e seu grupo, passam a atuar como os agentes que disseminarão as regras da expressão obrigatória da indianidade. Agregam à comunidade ritual prévia, uma comunidade de direitos, ou melhor, de busca dos direitos, que estará ligada à construcão do privilégio de um dos seus rituais sobre os outros possíveis. É novamente João Moreno que depois do reconhecimento dos Pankararu e com toda a legitimidade que isso lhe dava, passa a desempenhar também esse papel para os grupos mais diretamente ligados pelos circuitos rituais ao Pankararu. Porque o senhor sabe, essas festas daqui, a maior parte veio de Pankararé, do Brejo do Burgo. Meu pai é que foi lá fazê como o antropólogo, prá levá algum conhecimento pra eles. Os Tuxá... [P: Mas, peraí. Como foi isso? O seu pai foi até lá pra ensinar?] Pra ensinar sobre o ritual das festas, sobre as festas deles, que eles tão mudando como assim,... como uma muda, cantavam num outro ritmo, tinha outro som, parecido, mas já é outro som, aí dentro daquelas mudanças, a pessoa vai cantando aquele toante e no suspendê daquele toante, a pessoa vai suspendê diferente, não suspende como esse daqui, pra ter modificação. [P: Quer dizer que os Pankararé não sabiam fazer isso?] Não sabiam, foi na época que eu era moleque, tinha uns sete pra oito anos [19471948], e que fui eu mais meu pai [...] meu irmão. Mas ele já tinha ido mais vezes lá. Foi lá pra representá de como era pra fazer as festas, pros toantes serem diferentes. [...] Lá tem parente dagente também, porque a família da minha mãe tem família lá também. [P: A família da sua mãe veio de lá ou foi pra lá?] Foi pra lá. A família dos Antônio Vieira tem lá também. [...] Os Tuxá, a dança deles é quase igual a dos Kambiwá, porque faz assim que nem que vai um desfile, um do lado do outro. [P: E aqui não teve nenhuma relação com os Tuxá?] Teve também, mas como convite, porque as festas deles eles já faziam. Faziam convite pros daqui mandá uma parte de epresentação pra lá e de lá praqui. [...], nessa época eu não era nascido ainda não. Eles já tinham aqueles contatos. (Antônio Moreno) que não havia harmonia no som, nem no rítmo da dança e que todas as vestimentas estavão novas." (SANTANA,1989) Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 59 Cada novo ponto nessa rede de emergências podia acionar outras linhas do circuito de trocas rituais, transformando-o em caminhos da busca de direitos para outras comunidades. As lideranças que iam buscar direitos num primeiro momento, logo depois podiam estar transmitindo-os. Assim, por exemplo, depois de reconhecidos como "remanescentes", os Tuxá, que como os Pankararu tinham originalmente o seu próprio Toré, são procurados da comunidade da Serra do Umã que, como empecílio no seu reconhecimento como Atikum, se diziam "fracos no toré". Um grupo de tuxás viaja então para a Serra do Umã entre 1943 e 1945, para passarem seis meses, ao longo dos quais reforçaram, ou ensinaram o segredo do Toré aos Atikum. Por sua vez, depois de devidamente reconhecidos, os próprios Atikum estavam prontos para emprestar sua legitimidade aos Truká, que os procuram para aprender o Toré depois de ficarem sabendo dos direitos através dos Tuxá. (GRUNEWALD,1993). 2 O Toré, no entanto, apesar de necessário não é suficiente para o reconhecimento de uma comunidasde como grupo indígena, que pode continuar sendo obstruído por interesses locais ou do próprio órgão indigenista oficial, de acordo com a flutuação das verbas ou dos cálculos de ganho político, sempre contextuais. O apoio de um grupo na emergência de outro não se restringe por isso à transmissão do segredo do Toré, podendo levar a ações mais claramente políticas, usando para isso as prerrogativas instituídas pelo estatuto jurídico diferenciado de tutelados do Governo Federal. A relação entre Pankararu e Pankararé pode novamente servir de ilustração para isso. Depois de terem ensinado o Toré, através do João Moreno, os Pankararu, décadas depois, voltam a auxiliar a emergência Pankararé através da atuação de uma segunda geração de lideranças peregrinas, agora representada pelo João Tomás. Como foi dito, o acirramento do conflito entre os Pankararé e autoridades locais na década de 1960 fez com que, depois de ficarem sabendo da expúlsão de um grande número de famílias de posseiros da área Pankararu, eles procurassem ajuda daquele grupo novamente, agora não mais para aprenderem o Toré, mas para conseguirem realiza-lo. A intensificação do conflito foi acompanhada de uma intensificação do investimento sobre a possibilidade de terem o reconhecimento como remanescentes indígenas. No processo de reorganização daquela população, segundo os moldes da indianidade, emerge um novo grupo de lideranças que intensifica o intercâmbio com os Pankararu, como forma de "fortalecer o ritual" do Toré, assim como para "levantar" novos terreiros, em função do que o Toré passou a ser realizado mais frequentemente; os Praiá foram retomados, foram feitos novos toantes e foi edificado um poró. O termo usado, desde então, para se referirem ao que estava acontecendo era o de "levantar aldeia" (SOARES,1977) numa dupla referência ao que concebiam como uma revivecência religiosa e como uma emergência política, mas ainda além, numa associação mais profunda com a lógica de funcionamento de seu sistema ritual, como veremos nos capítulos seguintes. Isso canalizou a repressão local também sobre os signos de indianidade estabelecidos pelo órgão na região, isto é, a realização do Toré, levando a que, os Pankararé, numa situação de especial violência, viajassem em busca de apoio mais efetivo no posto indígena Pankararu. Depois de ouvi-los, o encarregado daquele posto chamou o então pajé do grupo, João Tomás, sugerindo que ele resolvesse o caso. Depois de um rápido impasse em que o pajé queria que o chefe do Posto lhe desse uma autorização por escrito para ir até a Bahia, que foi recusada pelo encarregado, ele acabou se decidindo ir por conta própria, para o que reuniu então 15 jovens Pankararu e foi em direção à cidade de Glória, onde procurou o delegado. Apresentando-se como pajé dos Pankararu, pediu Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 60 autorização para visitar os parentes Pankararé no Brejo do Burgo. É ele que nos narra essa situação de enfrentamento, reproduzindo com detalhes, suas próprias falas: "Eu quero falar com o sr. porque como agente passa muito tempo sem ver os parentes, quando agente chega tem que usar qualquer uma alegria, uma brincadeira pra gente brincar e tal. É a presença que agente tem que fazer quando encontra um parente com o outro. Tem que ter uma diversão igualmente como vocês branco." (João Tomás) O delegado não mostrou maior interesse pelo caso e consentiu que seguissem viagem. No entanto, isso parecia pouco e João Tomás insistiu: "Não, mas peraí, eu tô indo mas eu vou querer autorização do sr. Porque eu vou a fim de brincar e não sei se é uma noite, se é duas ou se é 15 dias. Eu preciso de sua autorização escrita." (idem) Novamente o delegado não fez qualquer resistência e escreveu a autorização que João Tomás a colocou no bolso partindo em seguida para o Brejo do Burgo. Chegando lá perto das 15:00, chamou a comunidade para "brincar": "tava todo mundo muito tempo sem dançá, aí eles tacaram o pé no Toré". Quando foi perto das 23:00, um rapaz chega assustado e diz ao João Tomás que o delegado e o prefeito estavam chegando, com cinco soldados para acabar com a brincadeira. João Tomás pediu então que parassem o Toré e os colocou em formação, lado a lado, enquanto ele mesmo foi para a entrada do terreiro esperar a chegada das autoridades e dos soldados. Ao chegarem, o prefeito perguntou quem era o João Tomás e quem tinha autorizado a realização do Toré. João Tomás se apresentou, comprimentou-o e respondeu que a autorização não era de ninguém, ele é que havia autorizado e que podia autorizar porque ele era índio, estava no meio dos índios e "os índios quando se encontram uns com os outros têm que dançar o Toré, porque não tem outra diversão, porque não são brancos, não são civilizados, e a sua dança era aquela mesmo". O prefeito pensou um pouco e pediu para que o João Tomás suspendesse o Toré até que ele se entendesse com o delegado regional do órgão indigenista, em Recife. O Toré estava sendo realizado no terreiro levantado em frente à casa de uma das lideranças que emergiram com o acirramento dos conflitos no final da década de 1960 e, de madrugada, as roças próximas ao terreiro, que estavam sendo disputadas com este índio pelo irmão do prefeito, amanhecem destruídas. Ao amanhecer e tomar conhecimento da destruição, João Tomás se dirige à Paulo Afonso para pedir ajuda do Major Reni21, que junto à FUNAI, consegue responsabilizar a família do prefeito pela destruição das roças, fazendo-os pagar os prejuízos causados. Dias depois, alguns Pankararé procurarão novamente João Tomás, agora para avisá-lo das ameaças do prefeito e do delegado diretamente à sua pessoa e para aconselha-lo a não mais voltar ao Raso da Catarina, porque aquelas autoridades haviam fincado um mourão no meio da comunidade do Brejo do Burgo anunciando que ele serviria para acorrentar o João Tomás, se ele aparecesse novamente. No 21 Para este final de década acumúlam-se referências sobre a atuação de um delegado, ou militar do exército situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemático aos Pankararu. A grafia de seu nome no entanto, variou bastante de acordo com os informantes, sendo mesmo difícil avaliar se todos os relatos diziam sobre o mesmo personagem. Assim, talvez este Major do exército, Reni, seja o mesmo delegado de polícia de Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. Não foi possível, infelizmente, apurar a identidade e filiação institucional precisa desta (s) personagem (ns). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 61 dia seguinte, ele volta a procurar o Major Reni em Paulo Afonso, pedindo que lhe fornecesse acompanhamento para que pudesse voltar ao Brejo do Burgo. O Major destaca dois soldados e um sargento, que vai armado também de máquina fotográfica para registrar o Toré. Ao chegarem na comunidade, bem cedo, eles arrancam o mourão e passam a organizar o Toré, que dura todo o dia. À noite, depois de já terem se retirado, o prefeito chega com a polícia e leva preso o dono do terreiro onde havia se realizado o Toré. Quando estavam chegando de volta à Paulo Afonso ficam sabendo de prisão e João Tomás pede novamente autorização ao Major Reni para que ele fosse soltar o rapaz. Ele volta então acompanhado de um cabo e um sargento e consegue interceptar o jeep do prefeito, com o delegado, soldados e o preso ainda na estrada. Tomam-lhes o preso e exigem que o prefeito e o delegado os acompanhem até o quartel do exército em Paulo Afonso. Lá o Major Reni lhes passa uma descompustura, lhes chama de “cachorros”, lhes ameaça fisicamente e os expulsa do quartel na presença do João Tomás. Em resposta, o delegado e o prefeito abrem processo contra o Mj. Reni na secretaria de polícia de Salvador que foi rapidamente arquivado, mas, no plano local, o incidente resultou na visibilização do grupo Pankararé, instituindo a sua identidade de índios para a população local e para o próprio órgão indigenista, que mais tarde viria dar início ao processo de reconhecimento do grupo. João Tomás, como pajé pankararu, mas principalmente como liderança peregrina imbuída da missão não só da busca de direitos, mas também do seu anúncio e da sua transmissão, legitimado por uma ordem de excessão, para a qual a tutela abria então, assume para um outro grupo emergente o papel para os Pankararé, ele mesmo, o papel de disseminador do campo de ação indigenista. 3 Além do ensino do Toré e da intervenção direta sobre conflitos locais, existe ainda uma terceira forma desses grupos e de alguns de seus personagens mais destacados intervirem diretamente na emergência de grupos vizinhos ou aparentados, preenchendo com o código da indianidade os circuitos de trocas tradicionais: o empréstimo de legitimidade, ou, segundo o vocabulário de Bourdieu, a transferência de capital simbólico acumulado, através da simples mediação entre os grupos emergentes e as autoridades locais ou indigenistas. João Tomás, depois de ter alcançado certa notoriedade entre outros grupos indígenas e seus mediadores ou opositores diretos com o conflito junto aos Pankararé, continuou atuando como disseminador do campo de ação indigenista entre os Kambiwá e os Kapinawá, onde foi necessário apenas apresentar-se às autoridades locais respaldando a pretensão daqueles grupos ao reconhecimento como "remanescentes". No primeiro caso, em que já existia uma história de auxílios desde a época do Pe. Alfredo Dâmaso, a ajuda agora, na década de 1970, não se dava pela apresentação a um mediador que viria a fazer a relação entre o grupo e o órgão indigenista, mas pela interferência direta do próprio João Tomás, transformado em mediador, que apresenta-se ao delegado local, que na época reprimia o Toré Kambiwá, e o faz compreender a possibilidade de repetir o desempenho obtido junto ao delegado de Glória. No segundo caso, essa posição de autoridade na representação dos "direitos" indígenas fica mais evidente. Desta vez é o João Tomás que se vê procurado por mediadores, um grupo de freiras que atuava junto aos Kambiwá, para ir emprestar legitimidade ao grupo num comício que seria realizado em praça pública, no município de Buíque. Em meio aos pronunciamentos de autoridades locais, João Tomás é chamado a subir ao palanque e se pronunciar sobre a questão da possível demarcação de uma área indígena no município. Vendo-se numa situação extremamente delicada e que ele mesmo avaliava como perigosa, assume um tom apaziguador e defende o diálogo entre fazendeiros Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 62 e índios, que levasse a um acordo amigável sobre os limites da provável área indígena, ganhando a simpatia do prefeito local, ao mesmo tempo que confirmando a existência dos direitos do grupo. Poucos anos depois, a FUNAI começaria a intervir timidamente sobre o conflito através de ingerências junto à prefeitura local e, em 1980, enviaria uma antropóloga ao local para a "detecção da identidade étnica" do grupo (SAMPAIO,1993). Nos dois casos sua atuação permitiu transferir legitimidade do Tronco Velho Pankararu para as Pontas de Rama indígena, além de incrementar seu próprio capital simbólico de "levantador de aldeia" na visibilização de grupos ainda não re-conhecidos. Um outro caso recente envolvendo os Pankararu é o dos Kantaruré, localizados na base da Serra da Batida, município de Glória (BA), que a partir de 1985 passaram a reivindicar o seu reconhecimento como indigenas. Neste caso, trata-se de um grupo que afirma uma ligação direta com os pankararú, através de uma ancestral que teria se deslocado do Brejo dos Padres, em período não identificado, acompanhando a peregrinação da imagem de Nossa Senhora da Saúde de Tacaratu pelos municípios das margens do São Francisco, num período de grande seca e numerosas doenças. Todo o grupo seria descendente direto desta mesma ancestral que então veio a se estabelecer no pé da Serra da Batida, quando não existia ainda nenhum outro agrupamento humano pelas redondezas. 1 - Fulni-ô 2 - Pankararu 3 - Xukuru-Kariri 4 - Kambiwá 5 - Kariri-Xocó 6 - Xocó 7 - Tuxá (antiga aldeia , 8 - Truká 9 - Atikum 10 - Pankararé 11 -Kapinawá 12 - Geripancó 13 - Kantaruré 14 - Tuxá (nova aldeia) 15 - Tuxá (área de plantio) 16 - Tuxá de IInajá. 17 – Kaimbé 18 – Kiriri 19 - Tingui Botó 20 – Karapotó 21 – Xukuru Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 63 hoje submersa, pela UHE) Essa história de fundação começou a ser recuperada em meados da década de 1980, quando uma outra história de fundação tem lugar: Uma das mulheres da comunidade voltava da feira de Glória, num dos tradicionais caminhões abertos onde viajam pessoas, animais e mercadorias, quando, depois de seu lenço de cabeça ter se soltado, um índio Tuxá, admirado com os seus cabelos, lhe pergunta se ela era "cabocla". Ela responde que era "cabocla da Batida" e confirma a suspeita de ter ancestrais indígenas. O Tuxá então a convence de procurar seus "direitos" na FUNAI. Chegando lá, no entanto, ela é informada de que o órgão não realizava reconhecimentos individuais, sendo necessário que toda a sua comunidade fosse "reconhecida". O assunto cai no esquecimento até que anos depois, às vésperas das eleições municipais uma candidata a vereadora Pankararé os procura oferecendo ajuda. Ela, em toca de seus votos, poderia apresenta-los aos "funcionários certos" dentro da FUNAI e conseguir reforço com agencias indigenistas nãogovernamentais, como o Conselho Indigenista Missionário -CIMI- e a Associação Nacional de Apoio ao Índio, com escritório na Bahia -ANAÍ/BA. A partir de então, a comunidade da "Batida", recém-batizada Kantaruré, passa a fazer visitas regulares aos Pankararu, é introduzida no circuito de reuniões com lideranças indígenas do Nordeste-Leste e nos encontros com autoridades em Brasília, até que em 1989 a FUNAI de Recife envia uma antropóloga para fazer o reconhecimento do grupo. Em 1995 os Kantaruré estavam na lista de identificações da FUNAI, esperando apenas a liberação de verbas. 4 Se até aqui a ênfase recaiu na transmissão dos padrões, na atuação dos mediadores e na comunicação dos “direitos”, cabe-nos agora tentar jogar luz sobre as diferentes formas de apropriação daquilo que, a princípio, se mostra como canal de homogeneização. Nosso objetivo será explicitar os vínculos entre algumas das noções apresentadas ao longo deste capítulo e que são fundamentais para dar inteligibilidade às emergências, retirando-as progressivamente da mecânica em que nossa descrição as teve que encerrar e abrindo para o que poderiamos chamar de uma poética, isto é, para sua realidade de produção simbólica. A proposta de Geertz de pensar a política como produção simbólica a partir da análise do Bali clássico, parece um boa sugestão também no caso das emergências do grupos indígenas do Nordeste: compreender as emergências significa também localizar e analizar as emoções e projetos, nas suas formas de memórias e desejos por "direitos", que animam os atos que nós normalmente chamamos de políticos, "elaborar uma poética do poder e não uma mecânica" (GEERTZ,1991). Mas também, num outro sentido, agora metodológico, buscar as categorias que permitam compreender simultaneamente a unidade e a variedade das diferentes emergências, tomando como objeto não o conjunto de todas as emergências catalogáveis, mas o discurso que as viabiliza, poderíamos dizer, o discurso da etnicidade, enquanto princípio de engendramento dos significados, empréstimos, mediações e parentescos reais ou fictícios, que erguem o sistema de significados depositados nas metáforas da emergência (DUCROT e TODOROV,1974) e que nos abrem para os possíveis da invenção cultural (TODOROV,1970). O par de noções Tronco Velho / Pontas de Rama descreve mais que uma relação de parentesco entre grupos indígenas, ele organiza um universo de relações fundamentalmente marcadas pela idéia de "mistura" onde corre um fluxo diferencial de força religiosa e legitimidade. Troncos velhos não são apenas os grupos que conseguiram manter um nexo permanente com a terra e com a tradição, são também, coincidentemente ou não com este Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 64 primeiro recorte, aqueles que primeiro emergiram para os "direitos". Assim, as pontas de rama podem ser estes mesmos grupos, quando comparados com os seus ancestrais, ou os grupos de formação ou de emergência mais recente, quando comparadas com aqueles. Por outro lado, a relação entre as pontes de rama e os troncos velhos podem ser de duas naturezas. Elas podem ser de origem, quando se reconhece que uma ponta de rama surgiu por "enxamamento" de um grupo anterior, ou por "levantamento de aldeia", quando a relação não é de visibilidade, isto é, quando a relação da ponta de rama com o tronco velho se produziu pela mediação que o tronco velho forneceu entre ela e os direitos através do ensino do Toré ou do empréstimo de legitimidade frente às autoridades locais ou indigenistas. A transmissão do Toré não implica no simples ensino de uma coreografia, nem se trata do "resgate" de uma tradição, por motivos de preservação cultural, mas fundamentalmente na transmissão de uma força de natureza mágica. "Ensinar Toré", implica na transmissão da "semente", "ensinar o caminho até os Encantados", que o grupo emergente, do seu lugar de ponta de rama, perdeu ao longo das sucessivas misturas a que foi submetido. Depois de recebida a semente, de transmito o Toré e os toantes, cabe ao grupo emergente descobrir o segredo de sua relação com os Encantados, segredo que ao final passa a ser o fulcro da identidade do grupo. Os segredos de um grupo são os seus caminhos particulares, próprios, originais de "levantar os Praiá". É com o desenvolvimento de sua religiosidade, através do Toré e do contato com os "Encantados" que o grupo vai abandonando o terreno do caboclo e ultrapassando o do índio indistinto (de natureza jurídica) para ganhar particularidade e se fazer Aticum, Massacará, Xucurú etc. Ensinar o Toré e levantar uma aldeia são assim, simultaneamente, atos políticos, coletivos, de invenção cultural e projeção do futuro, tanto quanto atos místicos, particularizantes, de retomada de uma força mágica que lhes chega pelos troncos velhos. ... O ritual daqui, ele não pode ser igual aos dos Fulni-ô, aonde pode ser igual é com Geripancó, o Ouricurí, porque os índios de lá são daqui, é toda família daqui. Agora, os Pankararé, os Tuxás, os Atikum, na serra do Umã, os Kambiwá, Trucá, ilha da Assunção, nessas as festas tem que ser diferentes. Tá certo, tem pessoas de Kambiwá que mora aqui na aldeia, casado lá mesmo e mora aqui. Um primo meu, o pais dele era tuxá e a mãe dele era irmã do meu pai. Mas ele como neto da parte de lá, ele não pode usar a festa de lá aqui. Temos que acompanhar o nosso ritual daqui. E já andou um antropólogo fazendo esse apanhado das festas, em 83, 84. Sobre a parte das festas pra vê se eram todas iguais, porque não pode ser tudo igual, tem que ter uma diferença. Sobre a analogia entre levantar aldeia e levantar Praiá, por enquanto basta acrescentar que, sendo conhecido entre os Pankararu como "brincadeira de índio", o Toré pode ser realizado, a princípio, em muitas e distintas situações e lugares, com diferentes objetivos: festas religiosas ou profanas, dentro da aldeia ou em cidades, em locais reservados, como os terreiros, ou em locais públicos, como o saguão do palácio do governo em Recife. Seu valor, para os Pankararu, está tanto em sua natureza pública quanto em sua natureza religiosa, ainda que ela não se explicite sempre. Como Mauss apontou com relação à prece, o Toré não é uma unidade indivisível, distinta dos fatos que o manifestam, é apenas o sistema deles. Ponto de convergência de inúmeros fenômenos religiosos e políticos, o Toré assume a forma de rito - como atitude tomada e ato realizado diante de Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 65 coisas sagradas - de credo - como expressão de idéias e sentimentos religiosos - e, acrescentemos, de performance - como ato político que simultaneamente representa e realiza o grupo enquanto objeto de "direitos". Como a prece, o Toré se dirige à divindade e pretende influenciá-la, consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados, sempre, no fundo, um instrumento de ação (MAUSS,1979). O Toré também "age exprimindo idéias, sentimentos que as palavras [ou em nosso caso, as performances] traduzem para o exterior e substantificam" (idem). A associação entre o Toré e a prece é mais que fortuita e não diz apenas da sua realização em situações estritamente religiosas, reservadas ao próprio grupo. Essa associação vale também, com a mesma força para o seu desempenho público, já que nestes casos normalmente o Toré tem a intenção de sensibilizar as "autoridades", o "governo", que na retórica pankararú estão fortemente associados a concepções ético-religiosas. Instância distante, incorpórea, que se manifesta através de enviados, eterna protetora, a quem se dirigem todos os pedidos e única fonte alternativa de poder capaz de se opor à expropriação e à violência locais, o "governo" assume um aspecto de sagrado que é traduzido na seguinte frase, inúmeras vezes repetida: "abaixo de Deus o governo". A mensagem política dos "direitos" encontra lugar em meio à mensagem religiosa da redenção das injustiças, da desproteção etc22. Ensinar o caminho para os Encantados é, ao mesmo tempo, ensinar o caminho até os "direitos": a mensagem é transmitida ao grupo emergente, ao mesmo tempo que ao órgão indigenista, ela dá acesso ao sobrenatural ao mesmo tempo que ao "governo". No mesmo jogo de duplos, nesse momento está sendo transmitida uma mensagem cujo beneficiário é o grupo que aprende tanto quanto o grupo que ensina, já que com isso ele tem fortalecida sua posição e autoridade frente aos grupos emergentes e ao órgão indigenista, o seu lugar de Tronco Velho23. Ao mesmo tempo, o Toré, que é encarado pelos próprios indígenas, a partir de seu aprendizado recíproco com a burocracia indigenista, como a melhor forma de se levantar uma aldeia, tendo portanto um uso pragmático, é também mais que isto, consistindo num ato de comunicação complexo, onde entram em interação simultaneamente vários remetentes, vários destinatários e várias mensagens, cuja apreensão depende dos diferentes contextos (dos atos de enunciação, mas também da análise) a que a leitura dessas situações podem estar referidas. Mais ainda, nessas situações é o próprio código da comunicação que está em jogo, já que são os procedimentos de comunicação e uma determinada linguagem, mais que mensagens referenciais, que estão sendo tematizadas e apreendidas24. Como resultado da relação de comunicação em que um grupo ensina o Toré para o outro, temos a ampliação e o fortalecimento do código dessa comunicação, condensando nele tanto as mecânicas quanto as poéticas da emergência, o reencantamento do mundo. 22 Esse ponto, no que ele tem de repercussões para a relação cotidiana entre população indígena e órgão indigenista será mais explorado no capítulo seguinte. Aqui caberia apenas apontar para a importância desta associação, já que o mesmo tipo de conexão entre "governo" e poder divino pôde ser descrito para um contexto radicalmente diferente por João pacheco de Oliveira (1988). Esse autor nos fornece um depoimento Ticuna que poderia, sem qualquer dificuldade, ser posto na boca de um pankararu: "Naquele tempo eu não tinha conhecimento porque naquele tempo mesmo não tinha FUNAI (...) De repente a notícia dela estava lá, do governo que briga por nós, o governo dos índios mesmo. O governo dos índios existia! (...) Todos os capitães antigos, de primeiro, nunca procuraram elas, aquelas palavras todas, a palavra do governo ou a palavra de Deus. (...) Quando essa palavra do governo da terra nós não obedecemos, então também não existe a crença no nosso pai do céu, porque é a mesma coisa" (idem). 23 Essa multiplicidade pode ainda ser estendida por outros planos e contextos, como o do pajé frente ao quadro político interno à aldeia ou do tronco Pankararu frente a outros troncos. 24 Nesse caso podemos falar numa função meta-ritual, ou meta-religiosa, em homologia à função metalinguistica definida por Jakobson (s/d), quando fala da mensagem que visa esclarecer os meios de transmitir a mensagem, isto é, o código. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 66 Capítulo 2 – Do governo PARTE 1: DOMÍNIO TUTELAR O que permitiu que nossa narrativa se fizesse relativamente confortável até o momento, isto é, o efeito realista da soma de evidências históricas e memoriais que, apesar de tudo, ainda poderiam ser vistas compondo uma linha de continuidade entre os Pankararu de hoje e uma, ou várias sociedades ancestrais, não deve esconder o fato fundamental. Independente do que aquela população fosse ou da forma pela qual se concebesse até fins da década de 1930, a partir dos primeiros contatos com o “campo de ação indigenista” (OLIVEIRA Fº,1988), acadêmico e estatal, ela seria produzida como indígena, através da sua adequação a um determinado padrão de comportamento e de relações tão novo e bem aceito quanto foi a radical alteração do seu lugar nos quadros de poder local e regional decorrente desta adequação. Atos de fundação Possible, pero no interessante [...]. Usted replicará que la realidad no tiene la menor obligación de ser interessante. Yo le replicaré que la realidad puede prescindir de esa obligación, pero no las hipótesis. (J.L. Borges) 1 Ao narrar a sua chegada ao Brejo dos Padres, como vimos, Carlos Estevão se esforça por produzir em seu público o clima e a expectativa de uma descoberta. No entanto, para alcançar esse efeito, ele tem que inverter, quase ponto a ponto, a ordem dos acontecimentos, conforme conseguimos recuperá-los através de depoimentos dos Pankararu. Ele sabe que parte importante do que tinha a dizer só seria ouvido, ou só teria o impacto que ele desejava, se fosse ordenado de uma forma determinada, que respondia às expectativas do seu público. Sabe, enfim, que deve fazer o seu tanto de ficção para ser etnologicamente interessante. O que eu posso explicá é que depois de dois dias eu soube que tinha esse velhinho aí, dando conselho e corrigindo as aldeias, dizendo de algum passado... Aí também ganhava as serras, precurando, precurando..., osso de gente, essas coisas assim. Ele trabalhou muito só de andá. Ele foi na dita cachoeira que nós falemos, lá no serrote do Padre, lá ele descobriu que tinha umas caveira enterrada... (João Binga). O “acaso” de que sua descoberta foi fruto, não foi o da descoberta do ossuário da Gruta do Padre, mas o seu encontro com outras comunidades de “remanescentes indígenas”, quando fazia uma das visitas guiadas aos Fulni-ô promovidas pelo pe. Alfredo Dâmaso. Essa impressão é reforçada quando somos informados pelos Pankararu que este Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 67 padre já “dava apoio aos índios” do Brejo dos Padres nesta época e que eles o procuravam em sua paróquia com regularidade, fazendo pedidos de auxílio contra os fazendeiros que soltavam o gado sobre suas roças. A descoberta mostra-se, assim, como mais um momento teatralizado do processo de visibilização daqueles grupos. Mas não era apenas a descrição dos fatos que passava por uma adequação narrativa. Os próprios fatos deveriam ser adequados à decrição. Ao descrever os rituais dos remanescentes Pankararu, Carlos Estevão tem a possibilidade de confirmar suas considerações do texto de 1931 num movimento inverso, agora citando os Fulni-ô a partir do Brejo, como forma de emprestar aos Pankararu legitimidade etnológica, através de uma argumentação circular: Estou muito propenso a acreditar que a orientação a que obedece a estrada onde se realiza aquela festa, tem por base uma organização sociológica de duas bandas exogâmicas, formadas pelos “filhos do Sol” e da “Lua”, à semelhançado que acontece com os “Fulni-ôs” e diversas tribus do grupo Gê. (OLIVEIRA,1943) Se não há como negar que a vontade de ver produz a visão e que muitas vezes aceita-se que as boas razões justifiquem pequenas adequações descritivas, a “magia do etnógrafo” (OWUSO,1978) neste caso foi um pouco mais longe e, em lugar de adequar apenas o olho ao modelo, pretendeu também moldar o mundo segundo seus olhos. Em 1935, quando chegou o dr. Carlos Estevão, ele chegou aqui nesse terreiro... e procurou onde é que dançavam, e uma velhinha que chamava Maria Calú falou: “dançavam aqui!”. Aí procurou pra ver se tinha um cavador, mandou deitá com a enxada assim e disse que era alí que dançavam mesmo, porque tava duro... Aí então reuniu o sarapó, o meu pai, aqueles outros do conselho, o Mariano, Lindo Gomes, que eram as pessoas mais velhas, o Bernaldino Pereira, Conceição... aí reuniram eles para definir aquele assunto e acharam que era alí, aí disseram “vamos fazer...tem que ter dois terreiros aqui, esse daqui é o terreiro do poente e vamos...” e aí foi o... foi vê lá e localizou lá o outro... Localizou o lugar do posto e disse que alí dava um lugar muito bom pro posto... (Antônio Moreno) Na falta da pura e simples evidência de se estar de frente a um grupo indígena, era preciso buscar a legitimidade para a atuação tutelar nas fontes narrativas da etnologia que, além de acervo descritivo, passa a funcionar como fonte de remodelação da realidade, caminho que leva a uma ordem anterior provável, molde através do qual é possível corrigir os desvios provocados pelos acidentes históricos sobre a forma imutável da cultura. O que que ele organizô foi que a nossa classe fazia umas corrida naquela estrada que desce em frente da igreja e ele achou que não tava certo, ele disse que era pra fezê uma reserva mais suficiente, que fosse num terreiro dagente, que fizesse largo, ou caçasse um lugarzinho no pé da serra, num lugar lá separado da estrada, que passa gente toda hora. Então que isso agente seguiu, mas na união ninguém seguiu, foi pocos que seguiram. Então que era pra..., por exemplo, eu boto eles [os Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 68 “Praiás”] pra brincá hoje, amanhã o sr. bota alí, depois botam pro lado de lá. “Aqui tá merecendo eles criarem um limite..., a regra era ser um terreiro só, mas como eu alcancei aqui tudo com muitos anos, vocês façam um terreiro no nascente e um no poente e outro aqui pro sul e outro pro leste. Então se o povo não quizé se uni, fica só os dois, nascente e poente, e se pegar e aborrecê, fica só um.”. Se nós tivesse escutado, nós tava aqui..., mas tem uns vinte. (João Binga) Os terreiros de Toré, como os encontrou o “dr. Carlos” estavam espalhados por quase todo o arredor do Brejo, subindo as serras, acompanhando o movimento de fuga das famílias expulsas pelas linhas. Apenas entre os principais existiam quatro terreiros e é interessante que o terreiro posteriormente conhecido como “do nascente”, após a sugestão do “dr. Carlos”, se localize encostado à nascente de água do pé da serra, conhecida como Fonte Grande, responsável pela água que irriga todo o Brejo, através do pequeno córrego que lhe corta ao meio, cuja direção é desenhada pelos contrafortes da Serra Grande e paralelo ao qual corre a estrada que leva do Brejo à atual Itaparica (à época, levava à antiga Petrolândia, hoje submersa). Não existindo evidências mais fortes para afirmar a existência das bandas opostas e simétricas, justificadoras da suposição sobre um substrato mítico comum aos já reconhecidos Fulni-ô, seria possível talvez criá-las, com pequenos acertos, aparentemente, sem maiores consequências sobre a vida da comunidade. Estabelecido o código de correspondência entre fatos e a descrição etnológica interessante dos fatos, era preciso ainda, para o exercício da tutela, estabelecer a correspondência a outro código, agora de origem estatal, mas igualmente adaptador da realidade a um modelo prévio. Tudo indica, como veremos nos capítulos seguintes, que ao chegar ao Brejo dos Padres, Carlos Estevão encontrou um tipo de distribuição de autoridades que respeitava um único corte, de natureza mais evidentemente religiosa e moral que propriamente de domínio ou exercício de poder. Esse corte dava lugar a uma única autoridade, o “sarapó”, responsável pela guarda dos segredos da aldeia, conhecedor profundo das tradições e dono do Terreiro do Índio Xupunhum25, hoje conhecido também por Mestre Guia, o Encantado maior da aldeia, chefe de todos os outros Encantados, único a ter uma festa anual, associada à festa do Umbu, conhecida como a maior festa da aldeia (Cf descrição em OLIVEIRA,1943). Não exatamente abaixo, mas ao lado dele, vinham os outros “pais de Praiá”, normalmente homens mais idosos, chefes de famílias extensas, cuja autoridade moral estava ligada ao fato de possuírem um número variável de Praiás e, eventualmente, concentrarem as lealdades de outros, com origem em outras famílias e terreiros no seu próprio terreiro. Para a criação de uma interface para a comunicação com o órgão indigenista no entanto, se fazia necessária a imposição de uma moldura política às relações de autoridade vigentes, discretas, informais e não hierárquicas. 25 Os elementos constituintes do sistema ritual Pankararu serão objeto de análise nos capítulos seguintes, bastando por hora deixar claro apenas que nele existe um corpo de entidades sobrenaturais denominadas Encantados, que se manifestam ou através dos seus “zeladores” em situações de culto doméstico, ou através dos Praiás, nas situações de exercício do Toré. Os Praiá se constituem de dançadores vestidos de saia e máscara de fibras de croá, encimadas por um disco de tecido e penas localizados na parte posterior da máscara. Os terreiros são os locais onde se realiza o Toré e que em muitos casos associa-se ao pátio externo de um agrupamento residencial que tende a coinciodir com o círculo de casas de uma família extensa e agregados. O Índio Xupunhum ou Índio Mestre Guia é o Encantado mais importante da aldeia, manifestandose apenas uma vez por ano e num ritual onde se destacam várias diferenças com relação aos outros Torés e outros Encantados. Um rápido apanhado de informações sobre esses personagens rituais (em especial as que não exploradas neste trabalho) estão disponíveis no “Anexo 3: Notas sobre o sistema ritual Pankararu”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 69 Em 1935 veio o dr. Carlos Estevão para saber das origens daqui e as pessoas não souberam bem explicar e foram atrás do pajé que naquela época não era pajé, era sarapó...[Ele e “o outro”] só representavam quando vinha assim, um representante, que chamavam eles, eles vinha com arco e fazia a representação deles [...] Tinha assim... aquela pessoa, mas não representava tanto assim, como tem hoje o cacique, tinha aquelas pessoas representantes, mas que não faziam tanta coisa como tão fazendo hoje [...]. Era por família, assim: morria o capitão, fica com o filho, aí vai passando de filho pra neto, pra bisneto, vai dependendo também do trabalho da pessoa, se a pessoa trabalhá importante e todo mundo gosta... aquele será tirado só quando falecê. Mas se ele não conseguir trabalá dioreito, então ele troca... (Antônio Moreno) Para a sua transformação em índios foram criadas então, três figuras de poder que corresponderiam a uma suposta repartição da vida tribal, mas na verdade refletiam apenas uma repartição de poder com base no modelo estatal: o cacique (pensado como autoridade política), o pagé (como autoridade religiosa), o capitão (como autoridade policial) e o encarregado, conhecido como “chefe de posto”, ou simplesmente “chefe”, responsável pelo poder tutelar e pela administração da área indígena e sua evolução econômica, e à qual as outras três autoridades nativas deveriam prestar contas. A escolha do pagé encontrou uma aparente tradução imediata na figura do “sarapó”, e sua escolha foi mais ou menos evidente para Carlos Estevão. A escolha da segunda autoridade no entanto, por não encontrar nenhuma correspondência com o sistema de distribuição de autoridades vigente, foi atribuída ao próprio “sarapó”: Carlos Estevão pediu que ele escolhesse um homem de confiança seu para o lugar de cacique. As primeiras adaptações, portanto, no sentido da construção de uma indianidade, na situação Pankararu, se antecipariam à chegada do próprio SPI, por ingerências do “dr. Carlos”, em suas primeiras visitas, de 1935 e 1937. Com a chegada efetiva do SPI, mas ainda sob a orientação de Carlos Estevão, foi realizada a primeira sucessão daquelas duas autoridades, já muito idosas, e uma “tradição” de vida curta começava então a ser implantada: no lugar do velho pagé assumiu o seu filho, ganhando o cargo um caráter hereditário, enquanto para o lugar de cacique, era repetido o procedimento anterior, em que Carlos Estevão novamente pedia ao novo pagé que escolhesse um homem de sua confiança. O terceiro cargo “nativo” só seria estabelecido mais tarde, por ação direta do órgão indigenista: o lugar de capitão era assumido por João Moreno. ... e aí meu pai ficou como capitão. Qualquer coisa que acontecia aqui na aldeia, não é que nem hoje, que a coisa tá mais..., que o pessoal evoluiram muito e a coisa tá mais evoluída.... Assim, quando tinha uma teima, meu pai ia, apasiguava logo e o branco não sabia. Hoje tá diferente porque qualquer teiminha que tem, se o chefe não resolve tem que levar logo pro branco... (Antônio Moreno) Com isso eram introduzidos os novos elementos que viriam assumir uma importância fundamental no arranjo de autoridades Pankararu. O atributo que até então teria dado um vago prestígio àqueles que na comunidade eram responsáveis pelas viagens em busca dos direitos, isto é, as lideranças peregrinas, ganhava então um novo estatuto, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 70 formal e com atributos até então desconhecidos. Além disso, como ficará mais claro na segunda parte deste capítulo, as duas adequações ao modelo da indianidade (a etnológica e a estatal), apesar de pensadas em separado, estavam intimamente ligadas, já que o sistema de distribuição de terreiros estava associado ao sistema de distribuição de autoridade e a eleição de uma nova figura de autoridade dava lugar a um critério novo e externo ao sistema dos terreiros. 2 É pouco depois da fundação do “Posto Indígena Pancararu” que se definirá para a população local, remanescente e não-remanescente, o significado da transformação dos caboclos do Brejo em índios Pankararu. Imediatamente após a fundação, entre 1940 e 1941, existiram (pelo que se pode recuperar pela quase nula documentação do período) dois encarregados, Décio Dantas e Vicente Ferreira Viana, sendo que o primeiro parece ter origem numa importante família de políticos de Tacaratu, a família Dantas. Sobre eles não há qualquer registro na memória do grupo, permitindo supor que nem mesmo tenham ocupado o posto indígena. Mas aproximadamente entre 1941 e 1942, vem ocupar o cargo Orinculo Castelo Branco Bandeiras, mais conhecido pelo grupo como Castelo Branco, aparentemente um sargento do exército reformado, que também não deixou quase nenhum registro administrativo de sua passagem pelo posto, não permitindo por isso, um trabalho de reconstituição das suas iniciativas protecionistas em termos de história administrativa, sejam elas educacionais ou produtivas. O lugar que ele ocupa na memória do grupo, no entanto, revela que com ele se define o significado (ou ao menos o primeiro significado) atribuído à tutela e à noção de proteção. Sua passagem produz grande impacto sobre o grupo e, ainda hoje, é lembrado como o melhor chefe de posto, o menos ambíguo, o mais “perigoso” para os posseiros e mais positivo com relação aos direitos indígenas sobre a terra. Em meio à massa de mais de vinte e cinco encarregados que passaram pelo PI Pankararu ao longo de cinquenta e cinco anos, ele é sem dúvida, o único sobre o qual é possível recuperar na memória da comunidade, ou dos posseiros, relatos expressivos, concentrando em si a imagem do período inaugural da atuação do órgão, que explica em grande medida a força de adesão que o SPI alcança entre os Pankararu, ao mesmo tempo que dá uma medida aproximada do impacto local representado pela mudança de estatuto legal dos caboclos do Brejo. Sua atuação representou a abrupta inversão de sinais nas relações entre índios e particulares e deu à idéia de proteção o sentido de guerra aberta, que respeitava uma lógica mais militar que administrativa. Durante sua administração a aldeia deveria estar permanentemente preparada para reuniões imediatas, de caráter tático, tendo criado a tradição (que ainda hoje tenta-se fazer valer sem sucesso por parte de algumas lideranças) de reunir os índios no posto indígena através do toante de um grande búzio, que ele soprava para convocar reuniões gerais. É dessa época que vem a nostalgia de uma permanente mobilização da aldeia proporcionada pelo posto indígena, de um estado de alerta e excitação que, pela primeira vez, explicitava o confronto entre índios e não-índios. Pra mim todos foram bons, mas primeiramente, Castelo Branco. [...] Castelo Branco vinha montadinho numa besta, rodava por aqui. Um dia eu tava na Tapera, ele passou e dixe “Ei, vá dizê aos índios que eu tô circulado de posseiros aqui e é pra vim pra nós enfrentá”. Nesse tempo no posto tinha um búzio e ele pegava naquilo e tocava “Buuuu-úuuuu...” e quando tocava aquele búzio, era novidade. Os cabras chegava Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 71 e “O que é ?”. “Castelo mandô dizê que é pra reuni lá no Brejo, e que qué muito homem, pra tirá ele do círculo que os posseiro tem feito”. E reunia aquele mundo de gente, um de foice, outro de facão... e quando chegou, ele levantou-se, me abraçou e disse “Há..., agora eu sei que os índio tão comigo...”. Tava só testando: “bom, agora nós vamo brincá.”. Naquela época eram poucos por aqui, mas todos que tinha foram. Aí quando chegou lá ele mandou..., uns cantava Toré, outros dançava Toré, outros tocava violão..., eu sei que foi uma farra até doze horas da noite. Eu sei que nesse tempo era uma animação danada. Depois chegô, parece que o sr Agenor Guedes, depois o Santanna... 26 (Honório da Carrapateira) Até então, as relações entre índios e não índios, mesmo em se tratando das lideranças que se mobilizaram pelo reconhecimento indígena e buscavam ajuda contra a invasão das roças pelo gado, passavam por uma relação de vizinhança, bastante mediatizada por relações de afinidade, trocas matrimoniais, laços de compadrio, de emprego e de clientela. O discurso das lideranças dos posseiros, desde as mais velhas (ativas durante as décadas de 1940 e 60) até as atuais (sindicalizadas) passa justamente pela negação da existência do conflito, enumerando para isso os laços sociais e afetivos, as histórias de namoros, casamentos, mais recentemente o hábito dos jogos de futebol (onde índios e não-índios não jogam necessariamente em lados opostos), as viagens para a feira nos mesmos “carros de aluguel” de Tacaratu, os filhos que estudam na mesma escola etc. Porque nunca houve. Nunca houve conflito. Os conflitos eram o seguinte... Nunca houve conflito porque sempre houve grande amizade entre nós. Meu pai trabalhava como posseiro..., justamente os nossos trabalhadores eram os índios, os próprios índios. No dia que meu pai queria um batalhão, chegava então um compadre daquele -porque calculadamente, uns 8 afilhados pai tem dentro daquela tribo (entre pai e mãe)- então quando meu pai precisava de 20 homens pra trabalhar, chamava um compadre daquele: “compadre, tal dia quero 20 homens”. Isso era no sábado, quando ele vinha da feira de Itacaratu. Quando era na segunda feira, seis horas da manhã, a casa estava completa. Ali ele trabalhava. Se fosse possível, determinava para o segundo dia outro tanto de trabalhadores e, com aquilo ali -não se tinha aparelho agrícolaera tudo assim: se trabalhava era com aquele pessoal, tudo amigado, tudo como irmão. O que eles precisavam do meu pai... ele antecipava dinheiro pra eles, fazia o adiantamento daquilo ali, tudo legalmente. Isso ocorreu até o tempo que foi criada aquela tribo, até 1940. (Odilon Gomes Maurício) No depoimento deste que foi responsável pelas ações contra o SPI na década de 1950 e a mais importante liderança entre os posseiros naquele primeiro momento, são 26 Pelo que é possível recuperar através da documentação referente ao Posto Indígena Pankararu nos arquivos do Museu do Índio, Agenor Guedes foi o encarregado seguinte à Castelo Branco e o Santana foi um dos últimos a ocuparem o cargo, em fins da década de 80, e que realizou a demarcação de 1984. A lacuna de memória entre esses dois encarregados nesse depoimento é representativa de vários outros depoimentos e dá uma medida do grande vazio que marcou a presença e atuação normalmente burocratizada dos “chefes de posto”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 72 enumerados os nomes dos índios que não só trabalharam ou agenciaram trabalhadores para o seu pai, mas também dos que eram seus afilhados e dos que vieram a casar com parentes seus. eu não quero maltratar, porque ali tem rapazes de bem, como o [...] casado com sobrinha minha, que mora justamente lá dentro [...] o Neco Barros. A mulher dele é filha de um primo legítimo meu, a Maria. Tem uma que morreu, outra sobrinha minha, que era casada com Valdevino, que é o pai daquele índio por nome... [Rosalvo?] Não, Rosalvo Julião é filho de dona Menina. Aquilo ali é um amigão da gente. Ele comenta: “rapaz, isso me dói”. Certas coisas..., que ele não compartilha dessas coisas. O finado Antonio Pereira se aproximava de meu pai e dizia: “Compadre, a coisa que mais eu sinto é ver o sofrimento de vocês e não poder dar uma palavra. Porque vocês sofrem injustamente, vocês não merecem isso. [Quem é esse senhor?] O Chico Pereira, justamente aquele que meu pai era padrinho de 2 filhos dele: de Antonio e de Zé Pereira. E Zé Pereira é casado com uma menina que é filha de uma prima legítima minha. [...] Eu tenho uma neta casada com um índio que é neto de Chico Pereira. O nome dele é José... José ... Tem o apelido: José Ronaldo Pereira. Se acha em Recife, é um grande profissional no movimento de solda. [...] Ele tem horror, tem as melhor propriedade dentro do Brejo, entregou pra mãe e o irmão e diz que tem até nojo de ver a safadeza que ocorre ali dentro do Brejo... (idem) Os posseiros com os quais os Pankararu tinham problemas relativos à invasão do gado sobre suas roças eram também aqueles que mantinham relações mais constantes, de parentesco e/ou de patronagem. Era comum que esses pequenos proprietários também utilizassem os serviços ou mesmo os pequenos engenhos de índios para a manufatura de melado e rapadura. No entanto, quando foram definidos os limites legais da área indígena, todos aqueles que não foram incluídos no estatuto de índios passaram ao estatuto de posseiros, independentemente do tempo que ocupavam a área ou da documentação que tivessem dela, passando a ser obrigados a pagarem foro pela terra que usavam ao SPI. A princípio essa situação, para os posseiros absurda, foi condensada na imagem inaugural de Castelo Branco, acontecendo com a sua imagem algo semelhante ao que já foi descrito sobre a posição de Cavalcante na memória Pankararu, levando ao mesmo tipo de confusões cronológicas, inclusive no domínio da escrita, quando o advogado dos posseiros enviou uma petição ao SPI reclamando da série de arbitrariedades praticadas por Castelo Branco, onde se incluia também a própria demarcação da área indígena (DOC.:13) No depoimento de Odilon Gomes Maurício, fica claro o contraste entre as imagens de paz e de guerra, antes e depois da chegada daquele encarregado. E por aí existia essa amizade, sem nenhum conflito. Depois de 1940, com todas as atrapalhadas, como se fez, que veio [...] Eurico Castelo Bandeira, foi quando justamente ele obrigou de fazer coação a população pagarem renda dentro do prazo determinado. Dentro de 48 horas, quem não se assujeitasse a pagar o arrendamento seria expulso e seus bens ou retirado dentro de 24 hora, senão seu gado seria ferrado com o ferro do próprio posto, o SPI [...]. A essa altura, como eu já tinha dito que, com meu pai, que não sujeitariamos, e outro representante, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 73 Severo Gomes Maurício, que era adjunto de promotor naquela época, um homem justamente muito credenciado, então que não sujeitaria pagar, tendo que juntar o gado no campo até horas da noite, pra no dia seguinte, dentro do prazo de 48 horas retirarmos, como retiramos, para Barba do Casado, onde hoje ali ao lado tá a grande empresa, a Barragem do Xingó. [...] [Castelo Branco] Invadiu as nossas propriedades, eu perdi oito tarefas de mandioca, de ano e dois anos, em ordem de farinha, como eu não quis sujeitar-me a pagar o arrendamento ele expulsou-me e eu perdi tudo. [...] Severo Gomes Maurício, que era meu tio, esse perdeu a propriedade dele. Não foi por completo, porque depois, quando chegou um chefe por nome de Vicente Ferreira, muito cidadão, muito bem conceituado, contemplou as desordem praticada por Eurico Castelo Branco Bandeira, e foi o autor que mandou chamar-me (nessa época eu morava no município de Delmiro), que viesse fazer um acerto com ele e voltasse para a minha casa. (Odilon Gomes Maurício) Além do pagamento das terras usadas diretamente, Castelo Branco restringe o acesso aos outros recursos disponíveis e antes usados livremente. As capinas são então vedadas ao gado dos não-índios, as fruteiras e coqueiros passam a ter seus frutos colhidos por ordem do encarregado para serem distribuídos entre a população ou vendidos pelos próprios índios (e não como parte da renda do posto indígena) na feira de Tacaratu. Era um cenário de abundância e soberania para a população indígena e de barbárie para as autoridades locais. Era um bárbaro! Que quando foi levada a ação pelo Dr. José Ferreira Lima, advogado, escrevia: “o elemento com nome de Castelo Branco Bandeira, não se escreve o nome dele com letra maiúscula, só escrevo com letra minúscula porque aquilo foi um bandido que tinha aqui dentro do município de Petrolândia... (idem) O padrão dominante nas relações locais entre índios e não-índios era então invertido, e os Pankararu reviviam a história da morte de Cavalcante. Como resposta, os posseiros passam a recorrer às autoridades de Tacaratu, como o promotor, o prefeito e o delegado, que eram em muitos casos seus próprios parentes. O território indígena no entanto, como domínio da União, estava fora da sua esfera de ação e Castelo Branco fazia valer suas prerrogativas de interventor sobre um território especial. O último acontecimento que envolve a figura de Castelo Branco demonstra até onde esta prerrogativa podia ser usada. Esse caso é relatado com minúcias por quase todos os homens mais idosos da área indígena ou dos posseiros, mesmo que eles não tenham presenciado o acontecimento, encontrando variações mínimas entre os diferentes narradores. Essa estabilidade do relato é importante como índice não de uma veracidade, que seria assegurada pelas diferentes fontes, mas da forma como o relato foi fixado através das inumeráveis vezes em que já foi repetido, carregado que está do valor de um evento paradigmático das potencialidades de um conflito eternizado e permanentemente sublimado por variados laços de dependência. Entre os Pankararu, muitas vezes o relato ganha um aspecto humorístico, que tira sua graça da inversão das hierarquias vigentes, da Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 74 excepcionalidade da realização de um desejo e dos seus detalhes grotescos , numa espécie de “carnavalização” (no sentido dado ao termo por Baktin) da história de Cavalcante. O contexto do evento é a busca, por parte dos posseiros, de providências contra o que consideravam as arbitrariedades de Castelo Branco, junto ao presidente da república, Getúlio Vargas, depois de terem reconhecido a nulidade da ação das autoridades locais. Em resposta, a presidência da república simplesmente faz comunicar ao SPI a queixa, que então a transmite ao Castelo Branco. Nesse ambiente de exasperação, um dos posseiros da área que havia subescrito a queixa, casado com uma “menina do Brejo”, morador em Tacaratu e policial destacado no batalhão da localidade de Quixaba, vizinha ao Brejo, envolve-se numa desavença com um índio e, com a autoridade de policial, confisca e quebra a faca que o índio portava. O índio faz queixa à Castelo Branco, experimentando um tipo de recurso que até então não tinha existido. É nesse ponto então que começa mais uma das histórias que não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos: O soldado tomou a faca de um caboclo. Eles acharam ruim, falaram para o Castelo Branco, que mandou dizer ao soldado que não era pra atravessar mais a área indígena. O soldado destacava na Quixaba e quando ia pra Tacaratu tinha que atravessar o Brejo. O soldado por sua vez também era um pau duro, dixe: “passo hoje”. E às cinco e pouco foi de Tacaratu. Quando chegou na Folha Brnca, disseram a ele: “home, não passe lá não”, “vou, passo nesse instante lá”. Aí foi e quando chegou em certa altura, tinha uma turma de caboclo e disseram de novo: “não vai lá não” e ele: “vou”. E passou lá onde Castelo Branco estava. Quando chegou arriou o rifle em Castelo, “páaa...”. Castelo Branco pulou, que era prático que era danado..., pulou dez metros de altura e a bala passou. Quando ele desceu ele tornou, “páaa...”. Castelo já pulou mais pra perto dele e quando no terceiro tiro, o Castelo já tava pegado nele assim, segurou o rifle e ele detonou no chão, cascou a boca do rifle que ficou que nem uma flô... Aí a caboclada “roouum”, aí bateram, “pou, pou, pou, pou, pou, pou... Pou, pou, pou, pou, pou, pou.”. No meio um caboclinho deste tamaninho assim que tinha, arrancou de um punhal bem assim e mandou no peito do soldado. Quando ele madou, o Castelo Branco pegou. E dixe: “olhe, não mate, não faça isso não porque você faz só desgraça, dele, sua e a minha” Aí marraram o soldado e levaram para o posto. Ele apitou no búzio e não ficou um caboclo na aldeia pra não chegá no posto. Ele dixe: “Aqui nós vai matá um porco e assá ele aí, no meio do tempo”. Assá não, tucá aquele toco assim no espeto e mostrá o fogo e comia aquilo, correndo um sangue danado. “Caboclo e chefe come assim. E quem não for caboclo diga, mas quem for come assim, correndo sangue”. Depois dixe: “Agora, vá um piquete pra Igreja lá embaixo, armado”. O que fosse que tivesse de arma na aldeia ia. Quem não tivesse espingarda ia com a enxada, quem não tivesse enxada ia com picareta, quem não tivesse picareta ia com machado, mas todo mundo armado de cacete: “E quando o carro da polícia chegá, os caboclo vem na frente, caminhando bem devagarinho e o carro é pra vim atrás deles, assim ó: vruum, vruum, vruum... [o sr. Marcelino ri enquanto conta] ... e quando chegá na igreja é pra ter otra patrulha de caboclo pra arrudiarem o carro. E, olhe, sorte da polícia toda, com sargento e tudo, se uma bala de catinga...” (O sr. sabe o que é uma bala de catingueira..., que estrala quando tá seca: “trá!” e avoa fora os passarinho em Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 75 bando...) Pois bem, ele dixe: “sorte deles de uma bala de catingueira não estralá, porque se estralá uma bala de catingueira nós vamo pensá que é um tiro e é pra deixá tudo em pó, caminhão com polícia e tudo”... [rindo bastante] Mas não houve, nem uma espoleta não estralô. Aí eles chegaram no posto, Castelo Branco entrou com o sargento, dixe: “Olha o seu cachorro. Vamo conversá” e trancou-se por dentro com o sargento. Ficaram conversando e sairam e dixe: “Mande desamarrá seu cachorro e carrege”. E o soldado, machucado de pau, roncando no chão seu Zé Maurício, como um porco. Como um porco, seu Zé Maurício... (Marcelino Viana) A história havia chegado ao conhecimento do juiz de direito de Petrolândia, Antonio Correia de Araújo, que então mobilizou a polícia do município para resgatar o policial preso no posto e trazer junto com ele o encarregado do posto indígena. Apesar da polícia não ter conseguido retirar Castelo Branco da área indígena, mais tarde ele seria processado e transferido27. Segundo lembram os Pankararu, foi o “dr. Carlos” que lhe foi buscar para leva-lo à capital onde seria defendido do processo por um advogado da União. Nos relatórios do SPI, esta história também aparece como exemplar, na demonstração dos problemas que o órgão enfrentava na defesa da posse indígena da terra: quando não eram os obstáculos impostos pelos governos estaduais na doação das terras necessárias ao órgão, como nos casos do Amazonas e Pará, eram os antagonismo dos senhores de terra, auxiliados pelos políticos locais. O relatório de 1942 da diretoria do SPI ao MAIC assim se queixava do caso na sua introdução: ... sendo o juiz de direito da Comarca de Itaparica [...] um dos ocupantes da terra dos Pancararús, tornou-se o chefe da oposição ao SPI e arranjou meios de processar os seus serventuários pelo crime de se defenderem e os índios, de atentados contra êles cometidos à luz do dia e à vista de todos. (DOC.:14) 3 A atuação de Castelo branco no sentido de liberar uma violência até então sublimada resultaria, no entanto, numa ambiguidade fundamental, onde a oposição declarada entre índios e posseiros não conseguiria se sobrepor e apagar os laços e alianças pessoais e familiares que cruzavam a fronteira entre as duas categorias. Por um lado, o exercício do novo poder e a realidade de um território de exceção produziram imediata adesão por parte de uma população até então subordinada, tendo sido em parte absorvidos no seu próprio arranjo interno de autoridades; por outro, essa nova ordem teria que ser permanentemente negada nas relações face-a-face, como forma de preservar alianças e relações de trabalho e afeição, que muitas vezes implicavam num papel de honra. João Moreno, voltando a um personagem fundamental neste primeiro período, constitui uma situação individual que revela essa ambigüidade. Ao assumir o cargo de 27 Odilon Gomes Maurício complementa a narrativa do ponto de vista da cidade explicando que enquando o delegado foi até a área buscar o soldado e Castelo Branco, o juiz de Petrolândia ficou esperando sua chegada andando de um lado para o outro da rua "que nem lançadeira" e que, sob a decepção de não vê-lo trazido, resolve castigar o próprio delegado: "... ele levantou a mão assim no queixo dele, balançou pra lá e pra cá e disse: 'Eu deveria arrancar-te a farda no meio da rua, mas em todo caso eu vou te dar um jeito'. E mandou ele pra Santa Maria da Boa Vista, que naquela época a maleita matava até os paus, quanto mais cristão que chegava assim."(Odilon Gomes Maurício) Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 76 “capitão”, imbuído e sustentado pela legitimidade conquistada em seu desempenho de liderança peregrina, responsável pela própria presença do órgão, passava a gerir os assuntos internos com ações repressivas, no lugar da prática de convencimento e aconselhamento, características das antigas autoridades. Por outro lado, ele era um dos que estavam mais fortemente enredados em relações de aliança com aqueles que agora representavam o inimigo permanente. [...] João Moreno casou-se com uma prima minha. Ele viuvou e casou-se com uma moça aí do Bem-querer, prima minha, parente da gente. [...] A gente onde encontrava dialogava. [...] que era muito amigo da gente. A gente viajava junto pra Tacaratu, chegava ali no Brejo, ia subindo e ele alcançava a gente: “Ah, vamo batendo papo”, até chegar dentro de Tacaratu. Nas demarcações, em cima das demarcações dos limites com Tacaratu tinha um caboclo por nome Antonio Curinga, caboclo velho, justamente Zé Coringa, irmão dele era compadre de pai. Pai era padrinho de João Coringa. (Odilon Gomes Maurício) Essa situação das alianças que demarcava, em lugar de uma linha de distinção, uma larga faixa de “mistura”, produz a ambigüidade do engajamento Pankararu no modelo de relacionamento conflitivo proposto pelo tipo de atuação tutelar de Castelo Branco. No lugar da franca oposição que supostamente existia entre índios e não-índios, surgem muitas situações onde a oposição é negada, ou cuja responsabilidade é transferida para um lugar de autoridade fora do alcance das decisões indígenas. Como já foi apontado no capítulo anterior, a entrada do órgão, representado como “governo dos índios”, tem uma leitura por parte dos Pankararu que aproxima-o de uma certa lógica ou ética religiosa, na qual assume o lugar de “pai”, que restitui os “direitos” aos seus protegidos, devendo também isentar-lhes do conflito direto. A “luta”, ao contrário do que ocorre com o vocabulário da militância camponesa (CAMEFORD,1995), não surge como um valor no vocabulário Pankararu. A entrada deste terceiro elemento, o poder tutelar, naquela precária e desfavorável situação de equilíbrio anterior entre índios e nãoíndios, tem dois efeitos aparentemente contraditórios. Primeiro, altera o estado do jogo de forças, expondo uma tensão até então encoberta por laços de dependência desiguais, viabilizando enfim o conflito propriamente dito. De outro lado, por operar como uma instância externa e superior, com a qual os índios mantém uma relação de dependência e obediência, ele também serve para encobrir o conflito, agora no entanto sem anulá-lo. Ao assumirem a postura pública de obediência e impotência frente a uma instância superior que toma para si o objetivo de retomada territorial, os índios garantem, ou pretendem garantir, o espaço privado das “lealdades primordiais”, dos “fluxos de troca” e das relações de “favor / ajuda” que produziam “adesões” (PALMEIRA,1989) por cima ou por fora dos recortes categoriais. Podem então, manter antigos laços, mas impondo-lhes um novo sentido que não é mais o de manter um equilíbrio de relações de dependência desiguais. Esse efeito marca o discurso e a postura não só dos Pankararu, mas também dos posseiros, que desde então evitam tratar do conflito como se estivesse no plano do arbítrio indígena. Os seus “direitos” à terra são direitos que lhe foram atribuídos pelo “governo” e os atos de destruição dos símbolos deste território federal, como os marcos da demarcação, as cercas que cobrem o perímetro da área, ou as placas que anunciam a área de propriedade da União, são pensados como insultos, não aos índios ou à soberania territorial indígena, mas como desrespeitos ao “governo”, já que a terra a “ele” pertence. Em geral, os Pankararu se representam e são representados pelos posseiros, no domínio público, mais Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 77 como objeto e pretexto da ação estatal, que para os posseiros estão relacionados a interesses políticos difusos, do que como protagonistas das conquistas fundiárias. Os meus primeiros encontros com as lideranças do grupo, em 1993, foram marcados justamente pela forte impressão causada por um discurso que assumia antes de tudo o lugar do tutelado. Na verdade, esse discurso não é homogêneo, sofrendo alterações provocadas pela mudança dos contextos de enunciação, dependendo do tipo de experiência e engajamento que determinada liderança guarda com relação ao conflito. Mas podemos tomá-lo como um discurso hegemônico ou, ao menos, como o sub-texto que informa as variações. Nesse discurso “o governo” aparece como pai displicente, que deve proteger seu filho, mas que tem lhe faltado nas horas mais importantes. Uma das imagens que foram usadas é a da briga de dois irmãos por uma espiga de milho, onde o pai dá razão a ambos, em lugar de decidir pelo direito de um deles. Em uma reunião realizada no posto indígena, onde tive a oportunidade de apresentar os objetivos de minha pesquisa a cerca de quinze lideranças, que incluíam o pagé e o cacique, pude ter uma idéia do alcance deste discurso básico e relativamente padronizado. O cacique abriu a reunião dizendo que a questão não era deles, dos índios, mas “dos home”, isto é, “o governo”, que demarcou as terras, pôs cercas e é constantemente desrespeitado pelos posseiros: “...é uma vergonha pro governo”, “... eu me queixo só do governo”, porque ele tem poder, tem “exercício”, tem “leitura” e “se não usa é porque não quer”. Segundo o cacique, os Pankararu não podem fazer nada porque eles não são donos, o dono é “o governo”. Nas palavras de outra liderança, a imagem do governo-pai ganhava uma variante: não existiria apenas um pai para dois filhos, mas dois pais que não deveriam permitir que seus filhos brigassem. Os diferentes governos dos índios e dos posseiros, como pais preocupados, deveriam se entender, para que seus filhos não tivessem que “se acabar”: “... o governo demarcou as reservas pros índios não ficarem soltos pelo mundo. Por isso nós estamos em casa aguardando ele, até ele percebê que os índios estão precisando de ajuda. E só ele pode fazer porque a terra é dele”. Nestes depoimentos, a relação tutelar vem garantir direitos, assistência e proteção, mas sob o preço de não destituí-los do lugar do oprimido que, afinal, é o que justifica a própria relação tutelar. A manutenção deste lugar deve garantir o precário equilíbrio entre o exercício dos novos direitos territoriais, marcados por um ideário de distinção e exclusão, e as relações de afinidade, clientela e parentesco, que negam a tão clara distinção. ... naquela época a gente não entendia das coisa, quando nós dizia nós quer então nós caçava força e ia, e todos acompanhava. Mas agora eu já tô diferente: na hora que nós embalança, temo que jogar a União de frente, porque eles tão ganhando pra isso. Nós não vamos deixar um chefe de posto assentado e enfrentar uma questão. Nós não vamos deixar um delegado assentado na cadeira, e nós morrer aqui, que se nós morrer aqui aquela questão nossa não vai servir, que nós morremo. Então o que nós temos que fazer é ele procurar um meio pra nossa defesa. Eu acho que os índio tão certo, eles não tão errado não. O problema nosso é querer. E eles tem que dar. Então, eles não ganha nas costas da gente? Então eles tem que pagar nós também, porque se não fosse nós eles não ganhava a imensidade... Porque o empregado da FUNAI ganha bem, os mais fraco a gente sabe. E os mais forte? Então eles tem que fazer o que nós quer. Esse daí [referindo-se ao atual chefe de posto, um índio Pankararu], se disser “vamo lá no caldeirão brigar” ele se afasta. E ele têm razão, porque se ele brigar ele morre novo e não consegue o que ele Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 78 quer. E ele dizendo eu quero... Nós tem que fazer o meio da imprensa, fazer a nossa vontade, e ficar livre, que nós fazendo isso nós peguemo o que nós queremo (Zé de Bernarda). O governo das coisas 1 Os encarregados que sucederam Castelo Branco alterariam definição do papel do encarregado de posto, fazendo da tutela rotina administrativa e estabelecendo um novo padrão de relacionamento entre índios e não-índios. O primeiro, logo após o conflito, reverteria inclusive os atos de expulsão de posseiros operados por Castelo Branco, restituindo suas posses e restaurando parcialmente a ordem vigente. Se a ênfase de Castelo Branco recaía sobre o território e sobre os problemas relativos à manutenção de suas fronteiras, dando à administração da área indígena e à tutela um sentido aproximado ao do exercício do poder soberano -isto é, a produção e controle dos mecanismos de exclusividade de um espaço e dos bens com origem neste espaço, por uma determinada população, através de arranjos táticos e diplomáticos, na extensão dos quais poderia suceder a guerra- a dos encarregados seguintes recaía sobre a produtividade. Os Boletins Internos do SPI dão pistas sobre a natureza dessa diferença de atuação. Para os encarregados que lhe sucederam, a ênfase passou a estar na produção de bens e na autosustentação da -como então era encarada- empresa tutelar (Cf. Cap.1/2). Fundamental de agora em diante passava a ser o governo das coisas (FOUCAULT,1979), no qual suas iniciativas e resultados passam a ser expressos em termos numéricos. O território é completamente abstraído e a própria população é encarada como mais um dos itens do patrimônio indígena, ao surgir como índice contábil: número de homens, de mulheres, de crianças, nascimentos e mortes. O afastamento do conflito fica evidenciado pela forma periférica e distanciada como ele aparece na documentação daí por diante. Assim, em 1945, num relatório de viagem de Túbal Fialho Vianna, inspetor do SPI enviado à área para inspecionar a passagem do cargo de encarregado de Agenor da Silva Guedes para Sebastião Francisco da Silva, registrava-se que os rendeiros já não pagavam seus foros ao posto desde 1942, recusando-se a responder os chamados do encarregado. Na ocasião, o inspetor procurou apoio da polícia de Tacaratu sem sucesso, conseguindo mais tarde um destacamento de Petrolândia para conseguir a presença dos posseiros no posto e a quitação dos atrasos (DOC.:15). O andamento das ações dos posseiros na justiça faria com que esse tipo de ação fosse interrompida estabelecendo-se uma trégua em que os encarregados passam a ser responsáveis pela vigilância sobre os índios para que eles não invadam as áreas consideradas de litígio. Tendo chegado ao meu conhecimento que índiod desse posto em atitude hostil vg estão cercando trechos propriedades Caldeirão vg Bemquerer vg Brejino vg justamente na área litigiosa vg determino tomeis providências sentido sustar quaisquer atos vg não consentindo de maneira alguma a continuação de trabalhos de cerca pt Convém lembrar aos caboclos que a ação encontra-se mãos justiça única autoridade que decidirá causa pt Aguardo resposta (Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro para Coriolando Mendonça em 1953. DOC.:16) Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 79 Nos avisos mensais, esse distanciamento vai ficando claro pela sobreposição de umas poucas observações pontuais sobre o conflito, entremeadas por informações sitemáticas sobre a produção do posto. Assim, em 1954, a sumária informação de que “alguns índios, chefiados pelo descendente de índios Cícero José Barros voltaram a trabalhar na área em litígio” (grifos meus), recusando-se em obedecer às ordens do posto, não tem qualquer continuidade nos “Avisos” anteriores e posteriores, onde abundam notificações sobre a produção e comercialização agropecuária: “fizemos plantio de coqueiros,..., plantamos 56 mudas de bananeiras, capinamos todos os campos de fruticultura...” (Grifos meus. DOC.:17). No início da década de 1940 estava em plena vigência o modelo de ação indigenista que optava pelo arrendamento das terras, como forma de incrementar o patrimônio indígena (PERES,1992). Segundo este modelo, “a criação das terras indígenas era orientada a englobar a maior faixa de terra possível, a fim de que o poder tutelar fosse exercido sobre um campo social mais abrangente” (idem), isto é, a maior faixa de terra ocupada, como forma de criar um “mercado fundiário tutelado”. Sob esta perspectiva, demarcar uma terra com posseiros significa a possibilidade de tutelar uma parte de população e terras produtivas maior que aquela à qual a sua ação estaria legitimada a princípio. Isso fazia dos arrendamentos não só uma prática recorrente, mas uma política explícita, dentro de uma estratégia que se queria empresarial. Por isso, as atuações dos encarregados que sucederam a Castelo Branco e que foram vistas, por parte dos Pankararu, como uma degeneração da sua ação fundadora e exemplar, da perspectiva do órgão indigenista, parece ter significado apenas uma correção de rumos, substituindo uma performance discrepante e talvez anacrônica ou fora de contexto. Daí em diante, a produção documental ganha volume, mas sempre sob um caráter contábil. As poucas cartas enviadas pelos primeiros encarregados vão sendo substituídas por formulários padronizados, onde vamos vendo não só a voz indígena, mas a do encarregado também, sumirem sob a massa de dados numéricos que lhes é solicitada. Em lugar de relatórios eventuais e subjetivos, onde os encarregados tinham espaço de se apresentarem, narrarem as dificuldades por que passavam e construírem uma imagem mais concreta da situação indígena, surgem os “avisos” mensais, onde lhes é exigida a contabilidade dos nascimentos, óbitos, população, produção agrícola, pecuária, benfeitorias e acontecimentos excepcionais, tudo de preferência sob uma forma contábil e “organizados segundo a feição que ora foi imprimida ao Boletim Interno, para que à proporção que novos detalhes venham sendo fornecidos à S.O.A., seja ampliado e melhorado até que se consiga dar-lhe a forma estatística que tem ela em vista.” (DOC.:18). Tais estatísticas tinham por fim avaliar o avanço dos postos na direção daquilo que passou a ser um objetivo do órgão indigenista: a emancipação econômica (é bom frisar) dos postos indígenas. Ainda que não pudessem por lei, como estabelecimentos de assistência e educação, desempenhar papel de fonte de rendas, os boletins passam a apelar frequentmente para que as inspetorias promovessem a emancipação de seus postos, como forma de viabilizar a transferência de parte das verbas disponíveis para a ampliação do seu mercado de tutelados, que em breve, esperavam, estariam produzindo suas próprias rendas. No Boletim Interno de janeiro de 1943, a Diretoria definia para seus inspetores e encarregados aquilo que o órgão estava concebendo como emancipação. Suas despesas correntes eram, então, repartidas em dois tipos: A) pessoal administrativo, trabalhos de orientação, ensino, tratamento e assistência, além de trabalhos manuais e B) ferramentas, medicamentos, roupas, alimentos, aquisição de veículos, animais de criação e trabalho, construção de cercas, estradas etc. O primeiro tipo de despesas fazia parte do orçamento específico da República, mas para o segundo, o órgão dependia de planos quinqüenais, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 80 onde sua cota era cada dia mais escassa (DOC.:19). A emancipação consistia exatamente no fim dos gastos do segundo tipo, já que a emancipação definitiva só seria possível “quando serventuários indígenas aos poucos ingressados nos empregos e administração dos postos” bastassem a todos os cuidados e funções, sendo também as rendas suficientes para este fim (idem). Com esse novo modelo de relação e de trabalho dos encarregados surge uma massa documental volumosa, em larga medida, redundante e progressivamente impessoal, onde o caráter empresarial da tutela vai se tornando mais evidente, quase restringindo-se a dar notícia sobre as benfeitorias, plantações, colheitas, gado e comercialização do próprio posto. O ano de 1943 marca para a área indígena Pankararu o início do empreendimento tutelar, sob a gestão de Agenor da Silva Guedes, sob esse formato patrão-empresário. Foram iniciadas então as construções dos prédios que viriam compor o “grupo do posto”, servindo ainda hoje como núcleo da presença do órgão indigenista na área. São eles a sede do posto indígena, a escola primária, a farmácia, um galpão, que posteriormente abrigaria a casa de farinha, uma oficina de ferreiro e de carpintaria e um aviário. Dava-se início também ao plantio de alguns trechos de terras do Brejo, chamados de “talões”, e à aquisição de animais de trabalho e de criação em benefício das rendas do posto, tudo com as verbas destinadas às benfeitorias, que vinham com seu emprego pré-determinado, sugerindo iniciativas que deveriam ser padronizadas. Quanto às verbas de “auxílio aos índios”, que deveriam ser progressivamente substituídas por rendas do próprio posto dentro do programa de emancipação, o encarregado empregava na compra de material didático, concerto de cercados, roçagem das picadas que marcam o perímetro da aldeia, pagamento das dívidas contraídas pelo encarregado anterior e das contas do médico de Tacaratu, que auxiliava a população indígena nos momentos de surto do tracoma, mal constante ao longo dos anos. A meta definida num plano de trabalho para o ano de 1945, pelo encarregado Agenor da Silva Guedes, era inicialmente incrementar o cultivo das culturas tradicionais (milho e feijão), tanto quanto possível através do emprego de máquinas, “visando , dest'arte, a educação agrícola dos índios, baseada nos moldes racionais, a-fim-de crear nêles uma consciência agrícola, tanto quanto possível liberta da rotina” (DOC.:20). Além da mecanização, sua atuação visava “desenvolver a policultura”, incentivando também a mandioca e a palma, retomando a cana de açucar, o arroz, a banana e fazendo alguns experimentos com o abacaxí, completamente fracassados. O plantio das palmas, que era comum junto aos posseiros, deveria ser introduzido na economia indígena junto com o gado, que era incentivado pela Inspetoria, como prática a ser adotada em todo o país, conforme já aparecia no relatório do órgão para o ano de 1942. A criação de bovinnos e correlativamente a de equinos, que o SPI está fazendo, se destinam a construir a base da instalação econômica das tribus. Isso porém está sendo feito com extremo cuidado, pois os índios não se encontram ainda em condições de geri-la com o necessário critério e economia. [...] É indispensável ministrar a todos os índios a esse respeito uma educação especial e que predominem estímulos a abastança e se criem hábitos de posse e instituições do valor real do gado no comércio local e da importância da criação na vida futura da tribu. (DOC.:14) Apesar dos esforços dos encarregados no entanto, a criação do gado na área indígena Pankararu encontraria como obstáculos a geografia do local, recortada por serras, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 81 e as constantes secas. Seu rebanho não ultrapassaria as 40 cabeças, muitas vezes vendidas em urgência e por baixo preço nos perídos de seca. As dificuldades com as criações refletem-se também no grande número de “termos de morte de gado”, através dos quais os encarregados comunicavam o progressivo esvaziamento dos rebanhos. Além disso, o sucesso desse trabalho de emancipação esbarraria no problema dos arrendamentos que deixavam de ser pagos e tinham grande importância no total da renda indígena num primeiro momento. Em 1943, por exemplo, os arrendamentos representavam o dobro do que era alcançado com a produção agrícola e quase a metade do que era dedicado ao fundo perdido dos “auxílios ao índio”: Quadro 4 - Movimento orçamentário do PI Pankararu de 1943 Rubricas Valores sobras de 1942 4.961,20 auxílio aos índios 12.000,00 verba para benfeitorias 14.500,00 produção agrícola cana 1.800,00 banana 70,00 arroz 70,00 côco 40,00 milho 30,00 arrendamentos 5.394,00 Total 38.765,20 (DOC.: 20) 2 Quanto à atuação policial dos encarregados, os que sucederam Castelo Branco também representam uma ruptura com sua forma de atuar. O poder coercitivo da tutela passa a ser exercido mais sobre a própria população do que no sentido de liberação do território indígena. A preocupação com a produção era acompanhada da preocupação com a disciplinarização dos hábitos, das festas e do sexo. É possível perceber o tipo de controle que os encarregados tentarão manter sobre a comunidade através de alguns eventos excepcionais que, por colocarem sua autoridade em jogo, serão comunicados à inspetoria, na busca de conselhos ou de auxílio, mas através dos quais também temos notícia de sua recorrência. Esses eventos estarão sempre relacionados ao trinômio, brigas, sexo e cachaça, que podem surgir associados ou não. Alguns desses eventos envolvem “defloramentos” de “virgens” por outros índios da própria aldeia, que gerando conflitos e ameaças familiares ou não, levam à intervenção do encarregado que então usa da própria autoridade para a punição dos culpados, ou submete o caso às autoridades policiais do município, trazendo de volta para dentro da aldeia um tipo de intervenção que Castelo Branco teria interditado em nome da soberania tutelar ou da autonomia da área indígena com relação às autoridades locais. Em abril de 1949, por exemplo, o encarregado do posto relatava ao inspetor o “rapto” de uma índia por seu cunhado, a fuga de ambos para São Paulo e a posterior volta dos dois para a aldeia, fato que o encarregado considerava uma ameaça frontal a sua autoridade, pretendendo levá-lo às autoridades judiciais do município. Mas como acreditava que essas providências não teriam qualquer consequência, já que a “virgem” era maior de idade, pedia autorização à Inspetoria para emancipar aqueles dois indivíduos, banindo-os das terras do patrimônio indígena, “providência que servirá, além do mais, de exemplo para os demais tutelados deste posto indígena” (DOC.:21). Outro relato significativo desta atuação data de abril de 1967, quando outro encarregado solicitava ajuda Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 82 contra o “grande disrespeito proveniente da caxaça” e reclamava da falta de funcionários para controlar a população. Neste relato, o encarregado revelava que, em sua ação de controle moral, contava com o auxílio apenas dos pajé e do cacique, que no entanto eventualmente ausentavam-se para o trabalho na roça em “épocas de inverno”. Contava ainda que estava perdendo a autoridade (ao encontrar um grupo de onze índios bêbados, lhes ordenou que comparecessem no PI e nenhum deles apareceu) e pedia autorização então para enviar os eventuais índios bêbados ao delegado do município, além do destacamento de um policial permanente no posto indígena (DOC.:22). Essa perspectiva do controle policial permanente e, preferencialmente, assumido como auto-regulação pelos próprios indígenas, seria institucionalizada em 1969, já na gestão da FUNAI, com a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN). Em outubro deste ano, o presidente do órgão percorreria as comunidades indígenas da 3a. DR para expor às autoridades policiais locais “o plano de Recrutamento Indígena da FUNAI na região” e aliciava nas aldeias, os “elementos suficientemente aculturados para aprender exercício da tarefa policial”. Tratava-se de uma iniciativa “valiosa no seu processo de aculturação, além de preencher um claro, no que tange ao exercício do poder de polícia no território indígena” (DOC.:23). Na sua visita à área indígena Pankararu, depois de relatar um quadro caótico, onde cerca de 3000 remanescentes “bastante aculturados” estariam numa situação “marcada por séria indisciplina” (índios portando armas, bêbados, assassinatos etc), por invasões de posseiros em mais da metade da área e pela presença de vendedores de cachaça nas suas bordas, o presidente da FUNAI toma algumas providências para reestabelecer a ordem no posto indígena, pedindo a captura pela polícia de Petrolândia de alguns infratores fugidos que seriam enviados para o Centro de Recuperação e Treinamento do Krenak (MG) e selecionando doze rapazes índios que seriam embarcados para Belo Horizonte onde seriam treinados, durante quatro meses, pela PM, além de providenciar o destacamento de dois soldados de Petrolândia para o posto indígena até a volta dos rapazes da GRIN. O particularmente interessante é que, além de estabelecer novas formas de controle e de regulação de conflitos cada vez mais burocratizadas, criava-se com isso, mais uma fonte de autoridade que viria compôr o cada vez mais complexo arranjo de autoridades no interior da área indígena. Os jovens da GRIN viriam se combinar e competir com as autoridades estatutárias -cacique, pajé e capitão- com as autoridades de mediação lideranças peregrinas-0 e com a própria autoridade tutelar -encarregado do posto indígena. É justamente dos quadros da GRIN que sairá pelo menos uma das lideranças de destaque (inclusive econômica) hoje entre os Pankararu. 3 O controle sobre a população encontrava um ponto de convergência com a regulação contábil através da produção de censos sobre os “assistidos do posto indígena”. Ainda que, ou justamente porque a população é um elemento, em maior ou menor medida, volátil na constituição do poder, os aparelhos estatais preocupam-se com sua contabilidade permanente, dando-lhe com isso, uma representação através da qual podem medir sua extensão como recurso e como custo, ou em outros termos, podem avaliar permanentemente o estoque de energia que deve ser integrado às suas estratégias (RAFESTIN,1993). Essa contabilidade permanente permite ter um controle mais ou menos seguro sobre os fluxos desta população e, através deste controle, criar mecanismos de regulação desses fluxos. A criação de uma área indígena, com fronteiras bem delimitadas, deveria coincidir com um determinado recorte populacional também fixo ou constante, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 83 através do qual fosse possível prever um determinado desempenho simbólico e econômico para o órgão. Seu efeito primeiro era o de territorializar uma população dando-lhe uma moldura jurídica e contábil. Os mecanismos acionados neste controle variaram no tempo e na extensão, mas um ofício do encarregado do posto indígena Pankararu de 1965 dá notícia de um deles. Nele o encarregado perguntava se A) o decreto 5.484 de 02/06/28 que permitia aos índios e seus descendentes venderem seus produtos agrícolas nos mercados isentos de impostos ainda era válido; B) se o referido decreto amparava também as mercadorias produzidas em propriedades fora da área indígena e C) se o posto indígena tinha novamente o poder de conceder permissão por escrito aos índios, ou seus descendentes, para que eles viajassem para outros estados, ou se ainda valia a proibição dessas permissões sob a pena dos encarregados arcarem pessoalmente com as despesas que aqueles índios em trânsito provocassem às suas Inspetorias (DOC.:24). Além do controle que ela permite exercer, ou ao menos planejar exercer, a representação sobre a população é fundamental também nas argumentações por pedidos de mais verbas, primeiro entre os postos e a inspetoria, depois entre as inspetorias e a diretoria e, finalmente, entre o SPI e o ministério a que estava subordinado. Contabilizar tutelados representava uma forma de ampliar patrimônio, no sentido de um acúmulo de importância frente aos objetivos mais gerais de controle e adestramento da população pobre rural. Lançando mão destes dados, produzimos um levantamento a partir de períodos mais largos e nos deparamos com uma curva de crescimento populacional que apresentava uma desproporcional depressão entre as décadas de 1950 e 1960. Quadro 5 Variação da população Pankararu total. Dados oficiais. 4000 3000 2000 1000 0 1857 1878 1944 1950 1955 1960 1964 1972 1975 1978 1983 População 1986 (DOCs.: 1; 6; 25; 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34). Como lembra Rafestin (1993), o momento do recenseamento é justamente um dos momentos da relação entre o aparelho estatal e a população a ele submetida, que deixa transparecer as estratégias e conflitos que são indicações úteis sobre a coerência e integração, de um lado entre o aparelho e a população e de outro, entre os diferentes níveis internos ao aparelho: “A energia dispensada pode, portanto, fornecer uma boa informação, uma informação medíocre, uma informação imaginária ou nenhuma informação” (idem). A informação fornecida pela depressão no gráfico acima deveria, assim, ser avaliada, impondo à pesquisa o tema da oscilação populacional. Por ser uma informação que se degrada, ela precisa ser reposta constantemente, o órgão indigenista gerou uma rotina de contabilização através de um formulário padrão (os “Avisos de posto”) que começou a ser aplicado em 1949 e no qual os encarregados deveriam registrar o movimento mensal do patrimônio indígena, incluíndo aí a produção Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 84 agrícola e sua comercialização, a compra, venda, nascimento e morte de animais e o movimento populacional, discriminando entre nascimentos e mortes de homens, mulheres e crianças e os números totais resultantes. Foi a partir desses “avisos” que passamos a buscar uma explicação para aquela depressão, antecedida e sucedida de períodos de grande constância. Neste olhar mais pontual sobre as contagens populacionais, a variação dos números mostrou-se ainda mais brusca e aparentemente incongruente (Cf. Qruadro 6). Durante esse período de grande variação numérica, as notícias agregadas enfatizavam o impacto dos problemas da seca sobre as condições de vida locais e o consequente êxodo de indígenas da área, decorrente das secas que caracterizam a década de 50 como um período especialmente miserável. No ano de 1950, o encarregado comunicava à inspetoria a necessidade de recursos urgentes para deter o surto de tracoma que atingia toda a população Pankararu, chegando a admitir que em todas as famílias existiria ao menos uma pessoa com a doença, na maioria das vezes crianças (DOC.:35). No ano seguinte, o encarregado referia-se ao mês de fevereiro como o ápice da maior estiagem da região nos últimos 19 anos, quando a completa ausência de chuvas atingiu a marca dos quatro meses, fazendo com que os índios abandonassem o aldeamento à “procura de subsistência noutras regiões”, sendo que naqueles dois primeiros meses do ano “afastaramse do posto 153 selvicolas, deixando suas famílias em lamentável estado de penúria [...] Além do mais, o enorme surto de gripe campeia toda zona, já tendo atingido índios. O tracoma por sua vez continua proliferando no aldeamento” (DOC.:36). Quadro 6 Curvas mensais da "população assistida" pelo posto indígena Pankararu entre os anos de 1949 e 1964 4000 3500 3000 2500 2000 1500 1000 500 0 49 50 51 52 53 54 57 58 59 60 4000 3500 3000 2500 2000 1500 1000 500 0 55 56 Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 85 4000 3500 3000 2500 2000 1500 1000 500 0 61 62 63 64 A fuga de homens em busca de trabalho em outros locais continua sendo comunicada nos anos seguintes até que, em agosto de 1955, é novamente contabilizada: o encarregado aponta a saída de 100 índios, “... muitos deles são casados e deixam as suas famílias sem o menor recurso, as quais diariamente apelam para o PI em que nada quasi lhes pode atender..” (DOC.:27). Depois destes avisos, as queixas sobre a falta de chuvas e de recursos passam a se intercalar com notícias de pequenas chuvas que trazem esperanças temporárias de novos invernos. Mas em janeiro de 1956, novamente num tom desesperado, o encarregado dizia que o posto indígena passava pela “fase mais negra de sua existência”, levando à fuga da aldeia e ao aumento da mortalidade infantil que, num período de quinze dias do mês de março, teria levado à morte de nove crianças com menos de um ano. Além disso, a febre aftosa assolava o gado, e uma gripe de grandes proporções atingia a região contagiando vários índios da aldeia. Em outubro deste mesmo ano, o encarregado se lamentava do posto estar “ficando quase completamente despovoado pela saída freqüente de seus habitantes” (DOC.:37). Mas, apesar de sua gravidade, os relatos não explicam inteiramente a brutalidade das variações na contagem dos censos populacionais, fato reforçado pela observação de que, em 1950, já era anunciada a saída de um grande número de índios; essa alteração numérica aparece na contabilização dos avisos. Somos levados então à questão da qualidade dos dados disponíveis ao etnógrafo. Questão que não deve ser vista apenas como um problema de diplomática, ao qual fosse suficiente apenas aplicar uma crítica interna da documentação. Neste caso, estamos diante de dois problemas relativos às fontes documentais, eles mesmos informações etnográficas relevantes. Como é possível imaginar, a contagem mensal de uma população de tão grandes dimensões e distribuída numa área relativamente grande e bastante acidentada impõe à eficácia dessa contabilização uma série de obstáculos que são de grande relevância para o entendimento da relação tutelar. O rigor e a fidelidade dos dados apresentados dependiam não só da importância dispensada e do acesso que esses encarregados conseguiam ter às diferentes localidades da área indígena (Cf. Cap.3), mas também do método de levantamento censitário empregado pelo encarregado e da definição mais cotidiana de “índio” e de “Pankararu”, que delimitavam o universo de “assistidos”. É bastante provável que, visando uma simplificação do trabalho de recenseamento, de outra forma trabalhoso e, aparentemente inútil, o método aplicado, tenha consistido na maior parte das vezes, na simples soma e subtração de nascimentos e óbitos que lhes iam sendo comunicados pela população, sobre um total já contabilizado uma única vez no início da sua gestão, ou mesmo herdado da contabilidade do encarregado anterior. A aparente simplicidade do método, no entanto, escondia uma característica fundamental da Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 86 população Pankararu e de sua relação com a área indígena: a sua mobilidade. Uma visão mais detalhada e menos confiante do registro burocrático e documental que se nos aapresentam como a realidade mesma, indica a grande variação que podem alcançar as saídas temporárias da área indígena. A constância da relação entre as curvas de natalidade e óbitos confirma a impressão de que a linearidade inicial das contagens deve-se ao método de soma e subtração de nascimentos e óbitos. Quadro 6 Quadro comparativo das taxas de natalidade e mortalidade Pankararú (1949-1964) mortalidade infantil (até 5 anos) mortalidade total 45 40 natalidade 35 30 25 20 15 10 5 0 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 anos A questão de método liga-se, assim, a uma questão conceitual: afinal, quem são os “índios assistidos”? Essa questão desdobra-se em: quem é índio, quem é Pankararu e quem é da área indígena Pankararu. Não se trata de um problema trivial e o silêncio sobre a questão na maior parte do tempo coberto pela documentação não deve permitir a naturalização do recorte suposto. Essas questões surgiram com a própria tentativa de aplicar sobre a população étnica do Brejo dos Padres o princípio administrativo que supunha a perfeita identidade entre população e território, pensado como trecho contínuo de terra, delimitado por uma linha de fronteira. Desde o primeiro momento, a situação Pankararu impunha a esta lógica de ação o problema de lidar com uma população indígena externa à área indígena, cuja relação com o seu território não podia ser traduzida em termos análogos ao da relação entre nação e Estado-nação. Por mais que a administração indigenista se esforçasse por regular o fluxo de pessoas através de suas fronteiras, este fluxo se mostrava na prática incontrolável. Em 1950, o encarregado Coriolando Mendonça consultava a sua Inspetoria sobre a possibilidade de aceitar o retorno para a área indígena de “índios que daqui se ausentaram há mais de dez anos” (DOC.:38), antes, portanto, da demarcação da área. A consulta vinha acompanhada de uma rápida explicação sobre o contexto desses pedidos. Dizia que “ultimamente, no entanto, têm procurado retornar ao aldeamento dezenas de pessoas que daqui se ausentaram muito antes de ser criado o posto indígena e que, convidadas pelo primeiro encarregado, quando da época de sua criação, para retornarem às suas antigas residências, não aceitaram o convite” (idem). Sua própria opinião sobre os procedimentos a serem tomados vinham logo a seguir: “Julgo que tais pessoas já se encontram emancipadas da tutela indígena, não só por esse motivo [morarem fora da área], mas principalmente pelo crescido número de anos em que se encontravam fora de sua tribo, em franca promiscuidade com civilizados, em cujo meio constituíram família” (idem). Na década seguinte, este dilema seria encarado de outra forma. Num dos últimos relatórios do SPI, de 1966, o encarregado Cícero Cavalcante de Albuquerque traduz em termos numéricos essa inadequação entre diferentes concepções de território, utilizando para isso a categoria chave da mestiçagem, de grande importância para os próprios Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 87 Pankararu. Ao referir-se à população sob a administração do posto indígena, não como índios nem como remanescentes, mas como “mestiços ou caboclos”, agregava numa mesma categoria mais ampla, os “assistidos”, também os “particulares”, casados com os mestiços. A este levantamento, o encarregado agregava uma tabela com o volume das posses de tais mestiços, na forma de animais, lavoura cultivada, árvores frutíferas, casas e cereais comercializados, reforçando a idéia de contagem de homens como a contabilização de patrimônio de diferentes maneiras. O seu recenseamento resulta na seguinte tabela: Quadro 7 "Recenceamento [...] dos mestiços de índios pancarús com a raça branca e também com negros..." Discriminação por Mestiços de índios Particulares casados com ditos idades pancaraús mestiços com brancos e negros homens mulheres totais homens mulheres totais menores de 6 286 315 601 de 7 a 12 242 185 427 3 3 6 de 15 a 20 231 257 488 de 21 a 40 245 322 567 20 21 41 de 41 a 60 149 163 312 19 20 39 de 61 a 80 42 42 84 4 1 5 de 81 a 90 1 6 7 1 2 3 de 91 a 100 1 1 2 TOTAIS 1.197 1.291 48 2.488 47 95 (Fonte: DOC.:39) A observação desta tabela é interessante por sugerir a repartição de diferentes períodos de relacionamento entre índios e não índios que estaria relacionada à instalação do posto indígena e à delimitação de uma fronteira admistrativa, separando o dentro e o fora. Notemos que, entre a população acima dos 60 anos, registram-se alguns poucos casamentos mistos, que se intensificarão muito entre a população de 21 a 60 anos, que pode estar relacionada à mudança de prestígio da população no quadro regional, para ser interrompida logo depois e retomada entre a população de 7 a 12 anos. Naquela primeira metade da década de 1960, ao vazio de casamentos da população entre 15 e 20 anos, parece estar relacionado um período intensificado do conflito entre índios e posseiros, quando os militares sediados em Paulo Afonso passam a prestar sistemático apoio aos Pankararu e expulsam grande número de famílias de posseiros de dentro da área, independentemente de trâmites legais. Num outro sentido, o relatório apontava para classificações internas àqueles “assistidos”, dos quais 619 alfabetizados e 225 portadores de eleitor. E a informação mais relevante: o relatório dava os números dos “mestiços pancararús que estão com residências fora das terras deste Posto Indígena, vivendo uns em municípios adjacentes e outros, em outros estados” (grifos meus), contabilizando 633 pessoas (359 homens e 274 mulheres. DOC.:39), cerca de um quarto da população total da área. A importância numérica daqueles que estão com residência fora é, enorme, mas o relatório lhes faz apenas uma rápida menção, identificando, como locais de suas residências, não somente os municípios próximos, mas também os estados de Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. É importante, no entanto, fazer referência mais precisa a esta categoria de “assistidos”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 88 A população designada como de “municípios adjacentes” concentrava-se quase toda na cidade de Petrolândia, localizada à beira do São Francisco, antes da inundação do lago da UHE de Itaparica. Em decorrência dos projetos de irrigação do DNOCS das década de 1930 e 1940, houve grande afluxo de índios para o trabalho nas novas frentes que se abriam em Petrolândia e na sua vizinha, Barreiros. Na primeira, trabalhavam “de meia” na época das chuvas e em olarias, na época das secas; enquanto na segunda, as atividades se concentravam nas “granjas”, na colheita de fruteiras e na “cata da algaroba”, muito utilizada como ração para o gado. Em Petrolândia, nessa época, parte dos índios saídos da área concentravam-se numa pequena vila com pouco mais de vinte casas muito pobres. Fora daí, espalhavam-se por pequenos ranchos temporários dispersos, ou nas propriedades locais, como agregados. O fato de estarem fora não significava que tivessem cortado seus laços com o território. Estes mantidos através do exercício de sua vida ritual, não eram reproduzidos fora da área, ao menos enquanto o Brejo dos Padres fosse suficientemente próximo, numa manutenção de sua relação com a área indígena que permitia continuarem listados no posto como “assistidos”. Depois da construção da UHE Itaparica e da retirada da população da beira do lago, essas famílias foram espalhadas pelas agrovilas e, em parte, na nova cidade de Petrolândia, cerca de 15 km abaixo, nas margens do São Francisco. Recentemente, a essas famílias vêm se acrescentando outras, que passam a utilizar de forma irregular, segundo os planos da CHESF, os lotes fornecidos, acrescentando às casas construídas pela empresa, outras destinadas aos filhos recentemente casados ou a parentes próximos28, que encontram aí uma nova fonte de recursos fundiários, já escassos dentro da área indígena. Na maior parte, se não na totalidade dos casos, as famílias que ocupam lotes nas agrovilas mantém roça, casa ou laços de trabalho eventual com as terras mais extensas da família na área indígena, permanecendo assim vinculadas ao posto indígena. O segundo núcleo externo de assistidos pelo posto indígena Pankararu é formado pela comunidade da localidade de Ouricuri, no município de Água Branca (atualmente Pariconha- AL) que aparece neste relatório, vagamente, como estando com residência em Alagoas. Várias famílias com origem no Brejo dos Padres ocupam a região de Água Branca desde o final do século passado, quando das expulsões decorrentes das linhas. Formado este núcleo, no entanto, a população continuaria mantendo contatos regulares com o Brejo dos Padres, através de relações religiosas e de parentesco, até que, depois de 1940, também passaria a receber assistência regular do posto indígena. As duas comunidades sempre mantiveram estreitas relações, inclusive através de trocas matrimoniais e pelo que parece, até o momento de reconhecimento como área indígena Geripancó em 1992, não se pensavam como etnias distintas, não se atribuiam designações diferenciadas, distinguindose apenas pelo acréscimo de topônimo Ouricuri à designação Pankararu. Assim, em 1983, essa comunidade do Ouricuri seria visitada pela equipe de dentistas da FUNAI a pedidos dos Pankararu, durante uma missão que inicialmente visava apenas os Pankararu e Pankararé. No relatório desta equipe, a “aldeia do Ouricuri” era identificada como “grupo isolado Pankararu”, de 80 famílias distribuídas em 50 casas, somando uma população aproximada de 500 pessoas, distantes do posto indígena 48km, em estrada de terra, o que representava uma viagem de 1h 40min, de carro. (DOC.:40). Só em meados da década de 1980, essa situação seria alterada, em decorrência da iniciativa do então chefe de posto Pankararu, conforme o que me foi relatado por índios pankararu e geripancó. Segundo os relatos, a comunidade do Ouricuri teria iniciado o seu processo de 28 Esse é um problema generalizado por todas as agrovilas que, com a demora na implantação do plano original da CHESF, criam novas soluções para dar conta da criação de novas famílias com o casamento dos filhos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 89 emergência como área indígena distinta, em decorrência de sugestão do encarregado, que na época avaliou que aquela população já teria crescido numericamente o bastante para ter direito a um posto indígena próprio. Depois de um acerto sobre as denominações possíveis, optou-se por adotar um dos sobrenomes Pankararu, passando a designar-se Geripancó. Por último, a outra grande concentração de pankararus fora da aldeia localiza-se na cidade de São Paulo, para onde desde a década de 1940, mas principalmente a partir de 60, muitos pankararus passaram a viajar regularmente como “paus de arara”, com destino a turmas de trabalho da companhia de luz do estado. Mais tarde, com o crescimento deste afluxo e o estabelecimento de algumas famílias de forma permanente na cidade, as viagens foram facilitadas e se tornaram quase obrigatórias na vida de um jovem pankararu das décadas de 70 e 80. Viajavam por um mês, seis meses, até dois anos, depois voltavam e passavam dois meses, ou, em época de inverno bom, todo um ano, para aproveitar as oportunidades de plantio. Essa oscilação muitas vezes levou a que alguns índios fizessem até quinze viagens ao longo de toda a juventude, voltando a se estabelecer permanentemente na aldeia depois dos 40 ou 50 anos de idade, quando as viagens começavam a ficar mais espaçadas, até se encerrarem ou permanecerem na forma de simples visitas aos parentes ou filhos que começavam o mesmo processo ou que resolviam se estabelecer permanentemente em São Paulo. Como se pode ter uma idéia, a flutuação da “população assistida” dependia de fatores que estavam muitos distantes do que poderia sugerir a simples soma e subtração dos nascimentos e mortes sobre uma massa numérica constante. Respondia a uma variação de método do recenceamento, mas também a uma questão de definição sobre os limites dessas população, provocados por sua enorme mobilidade e por um tipo de relação com o teritório que o toma como referência identitária, ponto que concentra celebrações rituais e para onde convergem as demandas assistenciais. Como já havia sido sugerido por Oliveira (1960), a importância dos postos indígenas e de um teritório demarcado para o processo identitário está no laço criado pelo estabelecimento de determinados direitos, representados, entre outras coisas, pela assitência que, paradoxalmente aos objetivos assimilacionistas, reforça a adesão a uma identidade indígena. O território, então, está numa relação com a etnicidade que não passa exatamente, ou exclusivamente, pela manutenção de uma integridade identitária ou de um contínuum cultural, que pudéssemos tomar como expressão de uma unidade, de uma comunidade, mas como local de referência na produção das identidades. Frente aos novos locais para onde os sujeitos ou os pequenos grupos se deslocam, em migração ou diáspora, esses sujeitos e grupos encontram novos contextos identitários, que lhes impõem a produção de novas e diferentes identidades, sempre relacionais, levando ao que Marcus (1991) chamou de uma “dispersão da identidade”. O território indígena surge, nesse contexto de dispersão identitária, como local de referência para onde pode-se sempre retornar como forma de reproduzir constantemente a identidade indígena. Mas, justamente por isso, na situação Pankararu, ao contrário do que foi apontado para os casos Tikuna e Terena por Cardoso de Oliveira (1960), a distinção entre índios assistidos (que estão na área indígena) e os não-assistidos (que estão fora da área indígena) não corresponde necessariamente à distinção entre aqueles que passam a valorizar e aqueles que passam a desvalorizar a identidade indígena. O território ou, na perspectiva de Cardoso de Oliveira, a “área de influência do Posto Indígena”, funcionaria como um espaço de atração da identidade indígena, levando a tutela ao seguinte paradoxo: seus próprios instrumentos de integração passam a ter por efeito impulsos “contra-assimilacionistas” que favorecem a manutenção de um nível mínimo de diferenciação. Teríamos, assim, o triângulo que atravessa toda a nossa argumentação, território/direitos/identidade, guardando, no entanto, uma importante Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 90 diferença em relação às conclusões de Cardoso de Oliveira. A categoria de assistidos, com a plasticidade que assume na situação Pankararu, permite que a tutela continue alcançando aqueles que estão fora da área indígena, mas ligados a ela das mais variadas formas, através de relações rituais, de parentesco ou de investimento produtivo. Assim, o governo tutelar agrega às relações rituais e de afinidade ou parentesco uma relação com o território, que passa pelo estabelecimento de uma referência de “direitos”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 91 PARTE 2: RESSIGNIFICAÇÕES Os Pankararu de hoje são fruto do arbitrário poder tutelar que, através de sucessivas adequações, ou atos de fundação e rotinização, transformou-os em índios, requisito prévio de seu exercício. O modelo da indianidade, no entanto, se é útil para delimitar o tipo de relação em que os grupos indígenas são introduzidos através da tutela, não resolve o problema das diferenças entre as soluções particulares. Estas, adaptando o modelo a populações específicas, gera formas originais de arranjos de poder. No coração da homogeneização emerge novamente a diferença: qual a forma Pankararu da indianidade? Ou melhor, voltando ao início da formulação, qual o efeito particular que aquelas sucessivas atualizações, com base em um único modelo, assumiram na situação Pankararu? Mas ao tentar responder a esta pergunta, impõe-se uma logicamente anterior: quais foram as formas prévias que lhes serviram como objeto de adaptações? Arranjos anteriores 1 Uma forma possível de começar essa descrição seria respeitar o roteiro proposto por aquele que é o texto canônico da antropologia política, a “Introdução” ao volume sobre os Sistemas Políticos Africanos (EVANS-PRITCHARD & M FORTES,1981). Nele, os autores, apesar de trabalharem basicamente com a dualidade do com e sem Estado, falam na verdade de três modelos possíveis: o das sociedades estatais, onde as relações políticas seriam reguladas por uma organização administrativa; um primeiro tipo de sociedades não estatais, onde as relações políticas seriam reguladas pelo sistema de linhagens e um terceiro, onde as relações politicas acompanhariam as relações de parentesco. Neste caso, os autores diferenciam o “sistema de parentesco” do “sistema de linhagem” por identificarem no primeiro “a série de relações ligando o indivíduo a outras pessoas e a unidades sociais particulares através da família bilateral”, característica de sociedades muito pequenas, nenhuma das quais discutida no livro. A dificuldade de se identificar uma estrutura mais definida e generalizável, abstraída de seus “conteúdos culturais” parece ser a maior razão para o desinteresse daquele grupo de antropólogos por sociedades deste tipo. Se estivessemos trabalhando com tipologias, poderíamos encaixar os Pankararu, entre os quais não existe um sitema de linhagem ou clânico, neste terceiro tipo, ainda que eles não respeitem nem mesmo os critérios básicos definidos pelos autores para descrever o tipo: entre os Pankararu “as relações políticas” não “são confinantes com as relações de parentesco” nem “a estrutura política e a organização de parentesco se encontram completamente fundidas” (idem). Na situação Pankararu, para definir a ordem política anterior ao estabelecimento do domínio tutelar seria preciso fazer referência justamente aos outros dois pontos que EvansPritchard e M. Fortes reconhecem, dos quais intuem a importâcia, mas deixam por desenvolver: a associação entre "função política" e “valores místicos”, onde percebem os rituais dando sentido para a vida pública e, por isso, fazendo-a funcionar; e o problema dos limites do grupo político, onde tematizam um certo desacordo entre relações sociais e laços Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 92 políticos, o que lhes coloca o problema (que afinal pode pôr em cheque toda a série de textos que compõem o volume que apresentam) de não poderem tomar os “grupos” analisados como unidades isoladas, ou mesmo, poderíamos avançar ainda sobre a questão, como “grupos”. Insistindo ainda neste mesmo texto, mais pelo que sugere do que pelo que estabelece, é importante avançar sobre uma área evitada porque considerada do interesse apenas da administração colonial e não do antropólogo: a substituição da ordem tradicional não estatal pela implantação de poderes que lhe eram estranhos e que, supõem, não podem aproveitar as estruturas de poder nativo para o seu exercício. Neste caso, o governo colonial recrutaria indivíduos como agentes administrativos, assimilando-os à noção estereotipada de chefe africano, fazendo com que aqueles indivíduos tivessem, pela primeira, vez o apoio da força à sua autoridade. Isso levaria ao colapso da forma anterior que seria completamente substituída por um sistema burocrático de modelo europeu. Independentemente das revisões atuais dos estudos destes primeiros antropólogos que podem contrariar estas afirmações, a situação dos Pankararu diverge num ponto fundamental que sustenta esta argumentação. Ao contrário das sociedades africanas que foram submetidas às normas dos governos coloniais, o ajustamento dos Pankararu às normas do governo tutelar não se deu sob a ameaça do uso da força, nem como a ocupação de uma nação ou povo estrangeiro, mas, pelo contrário, foi recebido como restauração de “direitos”, entre os quais, o do exercício de sua vida ritual. Isso dispôs um tipo de interação entre a ordem tradicional e o modelo imposto como norma, em termos muito diferentes que poderia ser possível supor nos casos africanos. Tentaremos então recuperar aquela que era a organização política Pankararu anterior ao SPI, sem no entanto pretender a descrição de um suposto “ponto zero” sobre o qual a ação colonial ou tutelar teria vindo agir, introduzindo a dinâmica histórica numa suposta estática das formas culturais. As considerações sobre as desterritorializações e reterritorializações, fusões e dispersões dos grupos ancestrais aos grupos observados hoje, feitas no capítulo anterior, são suficentes na demonstração da inviabilidade de um trabalho histórico nesses termos. Ao contrário, procuraremos descrever o que concebemos como um dos momentos de “equilíbrio” (GLUCKMAN, 1987) pelo qual teria passado aquela ordem de relações políticas então vigente no Brejo dos Padres (e seu desdobramento pelas serras ao redor). As nossas questões devem responder as questões relativas aos efeitos da situação histórica específica (OLIVEIRA,1988) em que se chocaram duas concepções de autoridade e a partir da qual os agentes definiram uma nova ordem social e política, instrumentalizando os novos recursos segundo seus próprios interesses, mas também segundo o que Sahlins chamou de “mal entendidos” (SAHLINS,1990). O caminho encontrado para isso foi o da análise do funcionamento do sistema ritual contemporâneo, onde julgamos encontrar não apenas semelhanças com aquele que procuramos reconstituir, “iluminando assim, o mais remoto com a luz do que o é menos” (GEERTZ,1991), mas também aquele que seria o modelo ideal de um determinado arranjo das formas de autoridade. Através das queixas dos Pankararu sobre as transformações e distorções encontradas no funcionamento do atual sistema ritual, é possível descrever, assim como por negativo, o que seria a forma ancestral desse mesmo sistema, segundo os Pankararu. Se é duvidoso que o ideal possa servir como referência do histórico, com certeza ele nos serve de índice sobre o que subexiste como modelo de ação: desrespeitado por sua própria realização no mundo, mas reconhecido e valorizado pelos atores na composição de um paradigma político. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 93 2 Como dissemos, a organização social Pankararu não se faz através da repartição de linhagens, quando muito, aproximando-se do sentido mais frouxo a que pode fazer referência o formato clânico (MIDDLETON,1986), sem que possamos afirmar a presença de uma descendência unilateral ou de um ancestral comum identificável. Na verdade, são passíveis de identificação direta, através da nomeação particularizada, apenas algumas famílias que alcançaram certa importância política ou religiosa, deixando um grande número de unidades familiares sem qualquer outra referência mais geral que a aldeia a que pertencem. Existem apenas duas categorias mais amplas, em que todas as famílias Pankararu encontram um lugar: a aldeia e o tronco. As aldeias são definidas de forma variável; fora as mais antigas e inclusivas, não é sempre óbvia para qualquer pankararu, podendo ter seus limites mais ou menos estendidos segundo o maior ou menor detalhamento da descrição. A identificação da família extensa na base da organização das aldeias não nos leva a dar excessiva importância à busca de regras de parentesco associadas às regras de residência, como será justificado no próximo capítulo. Aqui também, a constituição e continuidade de um grupo vicinal “num certo sentido correspondem a criações intencionais de alguns indivíduos que, por capacidades reconhecidas, conseguem polarizar arredor de si os seus parentes mais próximos, para isso manipulando com as regras de residência e incentivando certas escolhas matrimoniais” (OLIVEIRA,1988). Os troncos são formas de classificar famílias que se aproximam apenas vagamente da forma de descendência clânica. Os laços de descendência que um “tronco” indica, não são fixos, ainda que exista a forte tendência para a descendência agnática, como de resto é comum entre a população regional não-indígena. Mesmo assim, existem muitos casos em que a referência ancestral é uma mãe em lugar de um pai. Além disso, os troncos não fazem necessariamente referência a um único ancestral comum, nem assumem forma totêmica, já que o culto a um Encantado não delimita o universo de indívíduos com origem num mesmo tronco, nem os indivíduos de um mesmo tronco se restringem ao culto dos mesmos Encantados. Os troncos estão assim, no plano mais geral a que a noção de descendência pode fazer referência, não indicando regras de filiação direta, mas a participação num grupo amplo, marcado por uma origem que remete não a um personagem específico, um ancestral fundador, mas a um outro grupo situado num momento historicamente determinado: a situação de violência, desagregação e mistura provocada pela implantação das “linhas” (Cf. capítulo 1). A distinção entre troncos não está referida a regras estruturais de um sistema de parentesco, mas à classificação de famílias segundo um status definido pelo grau de pureza e mistura, ou, para usarmos uma fórmula local, pela antiguidade indígena do tronco. O tronco serve então como solução classificatória para a transmissão de um status diferenciado, mas sem que isso implique em regras especiais definidoras de casamentos preferenciais ou grupos de obediência, ação, direitos ou exercício ritual diferenciado. Se a forma aldeia relaciona-se à organização local das famílias e dos laços de lealdade, os troncos as separam segundo linhas verticais de pureza e impureza, que as tornam mais ou menos indígenas. Essa classificação, no entanto, depende sempre de uma memória do fato colonial e de uma interpretação sobre seus efeitos e sobre o intenso trânsito de indivíduos entre as rede de parentesco que cruzam e unem as diferentes famílias das diferentes aldeias (a tão conhecida fórmula “aqui é tudo parente”). Não se trata de um quadro classificatório claro, mas de um móvel das disputas por recursos e pela definição de direitos políticos. Apesar disso, a distinção entre troncos velhos e novos não cria grupos corporados de ação, nem um universo bem definido e interrelacionado de pessoas com Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 94 direitos e obrigações específicas, nem muito menos serve para a eleição de personagens com poderes de chefia. Funciona antes como um classificador de uma imprecisão tácita, que permite trocas de acusação, podendo ou não produzir limites rígidos, de acordo com a evolução e continuidade dos faccionalismos. 3 Quanto às figuras de autoridade, só há registro de uma designação especial que indicaria o desempenho de um papel de autoridade destacado dos demais. Como já mencionamos, o “sarapó” representava a autoridade moral de base religiosa e não parece ter exercido outros poderes que os de influência moral e religiosa interna à comunidade. Sua função precípua era a de zelar pelo principal Encantado da aldeia, o Índio Xupunhum, ou, como também é conhecido, o Índio Mestre Guia. Este é o único Encantado a ter uma festa especial em sua homenagem, realizada em sequência à festa do umbú29, que marca o início do calendário agrícola. Acompanhando esta função de destaque, o “sarapó” concentrava também a guarda do maior “batalhão de Praiás” da aldeia, concentrando com isso, na sua casa e no seu terreiro, o principal da vida ritual local. Mas mesmo o “sarapó”, que parece fornecer um lugar estruturalmente diferenciado nesse arranjo de autoridades Pankararu, não parece ter exercido qualquer papel de poder repressivo, de decisão ou governativo sobre o conjunto das outras autoridades estrururalmente indiferenciadas. A primeira novidade neste arranjo, de que temos notícia, foi o surgimento dos mediadores entre a comunidade e as autoridades extra-locais que temos chamado de lideranças peregrinas. A montagem local do campo de ação indigenista nem mesmo esses personagens parecem ter exercido qualquer poder repressivo ou governativo, tendo sido introduzidos no quadro de autoridades de fonte moral, diferenciando-se apenas na fonte desta autoridade moral, que no caso derivava da sua especialização no que dizia respeito ao tratamento das questões que envolvessem agentes externos à comunidade. Grosso modo, parece ser esse o quadro político encontrado pelo SPI e, antes dele, pelo “dr. Carlos”. Desse ponto de vista, então, é possível ter uma idéia aproximada do impacto que alcançou a sobreposição a este arranjo de uma moldura burocrática que a princípio parecia apenas prestar contas puramente formais à interface estatal. É necessário, portanto, fazer uma rápida descrição da lógica de organização dos “terreiros”, para que possamos nos aproximar do que pode ter sido o arranjo de autoridades Pankararu anterior à ordem tutelar. Os elementos constituintes do sistema ritual do Toré Pankararu estão divididos entre A) personagens: os Encantados, os Praiá, os pais de Praiá e os dançadores; B) situações rituais: o particular e o Toré público, que podem assumir o caráter de simples demonstrações teatrais, como expressão folclórica, ou serem dedicados ao culto dos Encantados, ligadas ou não ao pagamento de promessas; e C) locais: as cachoeiras, serrotes, casas e terreiros. Os locais serão trabalhados mais detidamente no próximo capítulo, sendo suficiente por enquanto uma rápida exposição sobre a organização dos personagens e das situações rituais ligadas ao seu universo religioso, onde identificamos as fontes dos laços de autoridade. Os Encantados não são deuses nem espíritos de ancestrais mortos, são índios que descobriram o segredo de se encantar e que, assim, alcançaram a imortalidade. Não constituem, por isso, um universo finito de entidades, mas uma comunidade que pode ser ampliada no tempo com o acréscimo de mais índios que venham a se encantar. Os mais antigos desses Encantados, que são também os mais poderosos, têm seus nomes, sua história de origem ou suas características associadas à geografia local através dos serrotes, 29 Para uma descrição desta festa ver OLIVEIRA,1943. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 95 das fontes d'água e das cachoeiras. Depois de encantados, esses índios se manifestam a determinados indivíduos escolhidos para serem seus zeladores. O anúncio desta escolha se dá através do envio de uma semente, da qual tais zeladores passam a cuidar, guardando-a dentro de um pote de barro, num local secreto dentro de sua própria casa. A escolha de um índivíduo por um Encantado lhe confere propriedades mágicas, como o poder de adivinhação, de enfeitiçamento e de cura. Recebida a semente, o escolhido tem que levantar do Praiá, num período de tempo indeterminado, mas não muito longo, sob pena de sofrer represálias, ou transferir essa responsabilidade para um zelador já respeitado, ao terreiro do qual passa a dever lealdade. “Levantá é tecê”. Isto é, para levantar um Praiá, o zelador do encantado, que passará a ser também um “pai de Praiá”, deve confeccionar ou contratar a confecção, por um dos poucos artesãos especializados na aldeia, da roupa e da máscara de palha de ouricuri que servem para encobrir a personalidade do dançador e que é, quando vestida sob determinadas prescrições, a materialização do próprio Encantado. O Praiá é a conjunção em ato, do Encantado, do dançador e da roupa e máscara de ouricuri devidamente consagrada pelo zelador. Os zeladores não são as mesmas pessoas que ocupam o lugar de dançadores. Aos primeiros cabe um papel mais religioso, de orientação e guarda da tradição, através do cuidado com as sementes que lhes foram transmitidas, com as roupas dos Praiás e com o contato permanente com os Encantados, funções que normalmente se associam às qualidades de rezador e pai de família. Os segundos são normalmente homens jovens, casados ou não, capazes de “segurar a brincadeira” do Toré, já que ela geralmente implica em muitas horas seguidas de dança dentro de pesadas roupas de palha de ouricuri, ou fibras de croá, e nos rituais do Menino do Rancho e da festa do Umbú, em disputas corporais que exigem grande vitalidade física. Esses dançadores são escolhidos pelo zelador dentro de seu círculo familiar ou de afinidade, que coincidem com um determinado recorte espacial, onde se incluem grupos de residência que poderíamos pensar em termos de grupos vicinais. Essa escolha se dá segundo determinadas qualidades morais que, apesar de não explicitadas e nem sempre respeitadas, associam-se, por um lado, à exclusão da cachaça e da promiscuidade e, por outro, a valores como o trabalho e a lealdade à situação tribal, incluindo aí a constância da sua presença na vida ritual da aldeia. Esses dançadores não constituem um grupo fixo de pessoas e uma mesma “tropa de Praiás” pode ter o seu corpo de dançadores variando de Toré para Toré, ainda que dentro de um universo finito, definido pelos critérios já apontados. Ainda que seja comum a população local conhecer e reconhecer, através de suas características corporais ou de suas performances, a identidade dos dançadores, esta não pode ser revelada, fazendo parte sempre respeitada dos segredos que compõem o ritual, sob o risco, para aquele que a pronuncia, de sanções que podem levar da doença à morte. A escolha e o chamado dos dançadores pelo zelador para a realização de um Toré, envolve uma antecedência que pode ir de quinze até dois ou três dias, dependendo do rigor do zelador, da importância da situação ou mesmo da freqüência com que o Toré é realizado. Essa antecedência está relacionada às prescrições de purificação física e espiritual que o ritual envolve, tanto para os dançadores quanto para os zeladores: durante aqueles dias lhes é proibido qualquer contato sexual, qualquer bebida e qualquer “sentimento ruim no coração”. A escolha dos zeladores portanto, está estreitamente relacionada ao prestígio moral de certos indivíduos dentro da comunidade, em função do qual tornam-se capacitados a acumular Praiás em sua casa, por anunciação dos Encantados ou por transmissão da obrigação por outros anunciados, que não querem ou não podem assumir as responsabilidades de zeladores. A este acúmulo de Praiás numa única casa denomina-se Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 96 “batalhão de Praiás”. Sua importância religiosa, acompanhada de poderes mágicos, se materializa na constituição de um terreiro, que é o lugar apropriado para a realização do Toré. No modelo ideal do sistema do Toré Pankararu, toda vida ritual se concentra num único ou num pequeno número de terreiros mais importantes que servem também à dança dos Praiás dos zeladores menores. Da mesma forma, não se aceita facilmente que dois Torés se realizem simultaneamente em dois lugares diferentes, ou que os Praiás mais próximos, ou dos terreiros mais importantes, não sejam chamados para cada Toré realizado. Assim, quanto menor o número de terreiros, melhor, porque a concentração ritual realiza no plano simbólico a união social e política do grupo. Fica claro então o outro aspecto de importância fundamental para nossa análise que envolve o sistema do Toré: ao papel de pai de Praiá agrega-se o de dono de terreiro, que é o lugar de convergência da vida ritual Pankararu. A autoridade moral e religiosa, portanto, está intimamente relacionada à capacidade de criar lealdades, não só através da criação de um grande batalhão de Praiás, mas também pela capacidade de agregar, ao redor de um mesmo terreiro, grande número de dançadores e de outros “pais de Praiá”. Em todos esses casos nunca é explicitada a precedência de um pai de Praiá sobre outro, funcionando em termos gerais o ideário da congregação horizontalizada de Praiás num mesmo terreiro para a realização de rituais comuns. 4 Assim, não há vestígios de que a organização social e política dos Pankararu apresentasse, no momento em que se dá o contato com o SPI, uma chefia centralizada que englobasse seus diferentes núcleos familiares. As unidades familiares, que tenderam a constituir grupos de residência, ou grupos vicinais, parecem ter tendido a respeitar um tipo de autoridade que emergia da figura de patriarcas dotados de qualidades especiais, geralmente associadas a uma combinação variável de poder mágico, valor moral e outras variáveis como a capacidade de criação de lealdades rituais, da agregação do maior número de pessoas através de laços familiares e, ou, de trabalho e de crédito, tão importantes nos períodos de seca. Essas autoridades, no entanto, não exerciam poder governativo ou repressivo e, como dissemos, não representavam, com exceção do “sarapó”, uma especialização suficiente ao ponto de ganhar designação especial, exercendo sobretudo o papel de mediadoras de conflitos entre os próprios pankararu. Nesta organização política sem cargos de poder específicos ou qualquer hierarquia mais estruturada que a discreta distribuição de prestígio religioso e o corte básico entre o “sarapó” e os outros “pais de Praiá”, as disputas eram resolvidas individualmente ou através de acertos entre as famílias dos envolvidos, com o recurso à violência física, ou àquelas autoridades morais, que agiam como conselheiros, sem poderes de resolução de conflitos ou punição dos faltosos, sustentadas apenas no poder de influência sobre as opiniões. As histórias de caráter acentuadamente míticos de que já lançamos mão confirmam essa ausência de uma hierarquia de poderes, ou de uma especialização de competências. Tanto no primeiro mito do Tarraxá, quanto na história da morte de Cavalcante, as decisões são tomadas em conjunto, por um grupo de homens ou Encantados que resolvem coletivamente o que fazer. No caso da primeira narrativa, os Encantados entram em negociações diretas com o Tarraxá e decidem pelo acordo; na segunda narrativa, um grupo de homens se isola da comunidade, durante dias em que respeitam as prescrições de purificação corporal e espiritual, para entrarem em contato com os Encantados e serem por eles aconselhados como agir. Em nenhuma dessas histórias um personegem especial ganha destaque e nem mesmo seus nomes são discriminados. Existe uma homologia entre o plano de organização de poderes encantados e terrenos, onde, no primeiro, existe apenas um Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 97 maior entre os iguais, que no entanto não exerce papel ativo nas histórias narradas. Ao contrário das figuras de chefia, que exercem poder de mando, o seu lugar parece ser o do centro imóvel, onde o destaque se dá justamente por seu distanciamento, seu isolamento, mas sem ferir o princípio de horizontalidade, o que é reforçado pelo fato deste Encantado principal ser cego (ele usa sua máscara de fibras de ouricuri de trás para frente e em lugar de dançar, é guiado pela mão, por um auxiliar) e por sua festa, ao contrário de todas as outras, não implicar nem em dança, sendo embalada por toantes baixos e calmos. No plano terreno, também encontramos um maior, dentre outros iguais, que também parece retirar sua autoridade do lugar de imobilidade que ocupa frente à discreta disputa por prestígio ritual existente entre os outros “pais de Praiá”. Neste caso, também a política se realiza por meios rituais, na disputa por homens (GEERTZ,1991). Mas como já havíamos feito referência, mesmo para este momento imediatamente anterior à chegada do governo tutelar, é possível identificar a existência de uma figura que foge ao modelo, retirando seu prestígio, não do exercício ritual dos terreiros ou da mediação com os Encantados, mas da capacidade de mediação com outro plano igualmente distante e incorpóreo de poder. São as lideranças peregrinas, que passaram a realizar, na década anterior à chegada do SPI e continuam realizando depois dele ter se estabelecido, viagens para os lugares de poder, em busca dos direitos. Elas se transformarão em referências políticas para a população Pankararu e serão também a via de entrada e de controle das novas formas de autoridade estatutárias, moldadas segundo a repartição de poderes estatal. Burocracia e magia Com a sua (auto)identificação como remanescentes, os Pankararu ganham também uma forte consciência da falta, da queda com relação a uma suposta ordem anterior, marcada pela idéia de índios puros. Em função disto, as recomendações do “dr. Carlos” e as mudanças impostas pelo órgão indigenista assumem uma legitimidade própria da relação de poder estabelecida através das relações de saber: elas têm origem na palavra de autoridade de quem sabe melhor o que é ser índio. Esse efeito de verdade dos discursos científico e burocrático não pode ser desconsiderado na análise da situação de mudanças profundas pelas quais passou a população Pankararu. É preciso, portanto, partir em primeiro lugar da consideração sobre a capacidade de persuasão e sedução deste saber, que teria o poder de orientá-los na direção de uma originalidade perdida e, em segudo lugar, do reconhecimento de que tais mudanças traduziam também expectativas bem mais realistas, de sujeitos envolvidos nas disputas de prestígio e autoridade, ao mesmo tempo que traduziam em termos culturais, isto é, em termos apreensíveis pela ética que orientava o equilíbrio dinâmico da política local. A montagem do novo quadro sobre o qual passaria a funcionar a organização política indígena, de natureza burocrática e estatutária não veio substituir o arranjo de autoridades nativo, como algo completamente estranho e externo, mas combinar-se a ela, através de sucessivas e recíprocas reinterpretações. Ainda que seja mais um capítulo fundamental da história de descontinuidades daquela população, essa descontinuidade não pode ser expressa nos termos da dicotomia tradicional/moderno. Para que seja possível apreendermos a forma pela qual se deu essa passagem e suas ressignificações, descreveremos a seqüência de situações que marcam o estabelecimento de um novo padrão de autoridade e um novo tipo de equilíbrio. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 98 1 Depois de ter criado a figura do pajé, preenchida pelo antigo sarapó, e ter supervisionado a passagem, dois anos depois, desse cargo e do cacique para seus sucessores de uma forma que pretendia tornar “tradicional”, o “dr. Carlos” não assistiu à segunda sucessão daqueles cargos, realizada pelos próprios pankararu. É João Binga, hoje cacique Pankararu, o principal narrador da história dessa sucessão, na qual ocupou papel de protagonista, ao longo da década de 1960. “Merece ter um pajé, um cacique e um capitão”, teria dito o “pessoal do governo”, segundo o João Binga. Em função disso, passaram a ocupar esses lugares, sucessivamente, o Joaquim Serafim, o Narcíso e o João Moreno, componentes do grupo que realizou as primeiras viagens em busca dos “direitos” e aos quais o João Binga, ainda muito jovem, começou a acompanhar: “Tudo ia certo e eu viajavam sempre com eles de um lado pro outro sem ser nada”. Acompanhava-os na expectativa de vir a constituir-se ele mesmo numa autoridade, inevitavelmente de novo tipo, onde as viagens serviam como momento de formação necessário, que agora vinha complementar os outros requisitos por ele já preenchidos, como sobrinho do pajé e neto do antigo “sarapó”, a quem auxiliava no zelo do “terreiro da nascente” e cujo zelo provalmente herdaria. A relação entre esses personagens era a seguinte: Joaquim Serafim, falecido em 1994 com 107 anos, na época pajé, morava na aldeia “Serrinha”, localizada fora do Brejo dos Padres, em que se reuniam parte das famílias que tiveram que fugir para os contrafortes da Serra Grande no momento das linhas, assim como seus descendentes. O seu pai, o antigo “sarapó”, teria sido um dos “corridos” pelos linheiros, mas no início do século voltou para o Brejo, construindo aí um novo terreiro, que ficou conhecido como “Da nascente” e deixando o terreiro do Encantado Xupunhum, o principal Encantado da aldeia, sob o zelo do seu filho, que continuaria agregando seu próprio círculo de lealdades. Um dos homens ligados a este terreiro era o também jovem João Tomás, morador da aldeia vizinha “Macaco”. “E se agradou dele”, diz João Binga, referindo-se à relação preferencial que começou a se estabelecer entre o pajé Joaquim Serafim e João Tomás. Efetivamente, em pouco tempo, Joaquim Serafim faria João Tomás seu sucessor, através da criação do cargo de “sub-pajé”. Este e o cargo de “sub-cacique” estavam sendo criados, naquele momento, como forma de transferir para pessoas mais jovens e mais disponíveis para viagens parte das atribuições dos cargos, ainda que mantendo a hierarquia com os seus titulares. Sentindo-se frustrado nas suas expectativas de tornar-se ele mesmo pajé, João Binga intercede junto às autoridades tribais contra João Tomás, falando-lhes de suas desconfianças em relação ao caráter do concorrente. Apesar disso, João Tomás é empossado no cargo de sub-pajé e procura João Binga para anunciar pessoalmente o fato. O encontro transforma-se num confronto pessoal e o João Binga acusa-o de “vigarista”. Depois de tomar conhecimento do confronto, Joaquim Serafim procura João Binga durante a feira de domingo, realizada em frente ao posto indígena que reunia toda a população pankararu, para chamar-lhe a atenção e exigir dele, daquele dia em diante, respeito ao João Tomás como sub-pajé. Embaraçado com a situação pública, João Binga tenta transformar tudo num mal-entendido, mas imediatamente João Tomás surge e os ânimos alteram-se novamente. Ofendido, João Binga faz um aviso a Joaquim Serafim: se ele "tem o poder” e faz com ele o que quizer, mesmo assim, não é possível ir contra a natureza. Diz que sabia que aquilo não daria certo e, quando isso acontecesse, colocaria a todos “lá embaixo”. Mais tarde, numa de suas viagens às FUNAI's de Recife e Brasília, João Tomás adquire com o órgão um “documento” que o nomeava pajé, “uma carteirinha com retrato, plastificado, carimbo..., e com aquilo se engrandeceu” (João Binga). De posse do “documento” ele passou a se considerar e efetivamente a ser considerado, não só pelo Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 99 órgão indigenista, mas também entre os Pankararu, como o pajé titular, ameaçando frontalmente a autoridade do Joaquim Serafim. O cacique deposto procura então João Binga, arrependido da escolha e buscando algum tipo de apoio. Depois de saborear ainda por algum tempo o gosto da profecia realizada e de se fazer indiferente, João Binga resolve agir, mas para isso primeiro vai “pedir ao homem”: recolhe-se ao terreiro pelo qual zelava, o do “capitão da nascença” e lá passa alguns dias fumando, bebendo garapa, “fala em outra língua” e finalmente consegue do Encantado um sinal. O Encantado mostra-lhe um par de coqueiros no alto de um monte perto da “nascença” e pede para que ele os observe: entre eles, uma carreira de formigas descia de um coqueiro e subia no outro. Seu “defensor” explica a imagem: um dos coqueiros o representava e o outro, a João Tomás. O conjunto significava que os dois poderiam trabalhar juntos porque ambos tinham poderes para isso (“a classe nossa tá na mão de vocês dois”), mas como em lugar disso, eles disputavam um mesmo lugar, “nada ia pra frente”. Depois, finalmente, o Encantado dá a receita a seu protegido e zelador: ele deveria pegar homem seu de total confiança e o mandar até Recife, antes que o João Tomás chegasse lá, para o encontro com o diretor do SPI. Esse homem de confiança deveria conversar com o superintendente de Recife para explicar-lhe a situação e pedir-lhe que retirasse das mãos do João Tomás o “documento” que lhe dava poderes de pajé, antes que ele conseguisse encontrar-se com o diretor da FUNAI. Esse homem de confiança era o professor da escola do posto indígena, amigo do superintendente. De fato, o superintendente retirou o “documento” do João Tomás, pouco antes da entrevista e, sem ele, João Tomás não teve coragem de apresentar-se ao diretor do órgão. Pouco tempo depois, como represália, o João Tomás tentou interditar o terreiro do Joaquim Serafim, que novamente recorreu ao João Binga. Enfraquecido pela retirada do “documento” e com sua popularidade em baixa, em decorrência da sua atuação excessivamente repressiva, João Tomás viu-se desautorizado na interdição do terreiro, que continuaria funcionando e abandonou o cargo. 2 Mais tarde, ao final da década de 1960, seria o próprio João Binga que alcançaria o cargo, não mais de pajé, mas de cacique, através de uma situação de viagem, em conseqüência de um desentendimento entre o encarregado de posto e as autoridades tribais. O desentendimento decorria da repartição da produção agrícola do posto, onde o encarregado se recusava a entregar uma parte dos produtos para a população, para convertê-la em renda do posto indígena, em especial a produção de garapa e rapadura. Parte das lideranças tribais dirigem-se então até a “superintendência” para pedir a substituição do encarregado. Como de costume, o João Binga encontrava-se entre eles. No escritório da superintendência, foram feitas as reclamações, mas, como o João Binga mantinha-se calado, o superintendente perguntou-lhe se aquilo tudo era verdade. “Só a metade”, respondeu. Para “fazê justiça reta” e não para defender o encarregado, ele explica que, se alguns não bebiam a garapa do posto sempre ou não a levavam para os filhos, era porque o produto não era suficiente e não por recusa do “chefe”. Satisfeito com sua posição, o superintendente encerra a reunião e o chama para conversar. Diz que, com aquela declaração, tanto o encarregado quanto ele tinham “ganho pontos”. João Binga aproveita, queixa-se do problema das terras em disputa com os posseiros, que recentemente tinham queimado o travessão que protegia suas roças do gado e consegue do superintendente uma ordem por escrito dirigida ao encarregado, exigindo que requisitasse às polícias de Tacaratu e Petrolândia proteção aos índios, enquanto eles refizessem o travessão. Caso o encarregado não cumprisse a determinação dentro de seis dias, como supôs João Binga, ele mesmo deveria mandá-lo para o Rio de Janeiro e estava Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 100 autorizado a ir com aquele “documento” até os delegados de Petrolândia e Tacaratu para fazer a requisição. Voltando à área, João Binga apresentou o documento ao encarregado, mas não entregou-o (como ele mesmo frisa na narrativa) e o encarregado se viu obrigado a cumprir as ordens dadas. Parece ter sido justamente a repercussão deste fato que deflagrou sua ascensão ao cargo de cacique, em substituição ao antigo, já muito idoso, que veio a falecer pouco tempo depois. 3 O rápido resumo dessas situações de disputa pelos cargos de poder de natureza estatutária, instituídos pelo órgão indigenista, revela o lugar de destaque de algumas relações e mecanismos, que ajudam a compreender a relação de ressignificações, mais que de simples substituição do antigo pelo moderno ou do tradicional pelo burocrático. Desde a primeira situação de disputa entre João Binga e João Tomás, o “documento”, esse elemento novo, fruto direto da presença de uma ordem letrada de base burocrática, assume um papel de destaque nas disputas de poder, tão mais significativo pelo fato da totalidade dos personagens citados nos relatos acima não serem alfabetizados30. A entrada deste novo elemento na dinâmica de disputas pelos lugares de poder, a princípio, revela a substituição ou subordinação das regras anteriores, que passavam basicamente pelas disputas de lealdades através do exercício ritual, colocando em seu lugar uma titulação abstrata, que retira o seu poder do fato de ter origem na estrutura estatal, independente de qualquer consentimento da população a que faz referência. Por outro lado, esse poder atribuído ao “documento” tem uma forte semelhança com outros tipos de objetos mágicos, que retiram sua força da performatividade de que são capazes, ou do fato de carregarem em si, na forma de uma espécie de mana, o poder daqueles que lhe produziram. A autoridade daquele que possuía o documento, como fica claro no caso do João Tomás, sustentava-se na crença do poder do documento, antes de qualquer valor legal com repercussões concretas, que isso pudesse implicar. Não existe nenhuma legislação ou determinação interna do órgão, que regule a distribuição de documentos, instituindo pessoas em cargos políticos tribais e, mesmo que ela exisisse, o fato de não estar de posse do “documento”, no momento da entrevista com o diretor do SPI, não deveria produzir o efeito de quebra de poder que isso teve sobre ele31. A própria resposta encontrada pelo João Binga, para a situação imposta por essse novo elemento, o documento, reforça sua plena absorção no sistema mágico: ele recorre aos Encantados e são os Encantados que lhe dão a chave de quebra de poder do documento, reconhecendo sua importância, antes de desconhecê-la, mas também assimilando-a ao seu próprio código, como qualquer outro elemento mágico que poderíamos remeter a uma ordem tradicional. 30 É digno de nota como alguns desses personagens, notadamente João Tomás e Quitéria ( que como veremos n capítulo seguinte, encabeçam as facções da área à época de nossas visitas, em 1993 e 94) possuem grossas pastas com uma série de documentos de origens variadas, relativos a diferentes assuntos, que eles conhecem de memória, algumas vezes até mesmo sendo capazes de descrever pormenorizadamente os seus conteúdos. 31 Igualmente interessante é ver os funcionários do órgão participando plenamente desta magicização do documento. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 101 A representação indígena 1 Já no ano de 1980, a pretexto de resolver o problema das terras em litígio com os posseiros, ou como ele dizia na época, “conseguir a escritura da Carta Régia”, João Binga e Manuel Oliveira, casado com a irmã do primeiro, faziam muitas viagens às FUNAI's de Recife e Brasília. Antes de uma delas no entanto, João Binga percorreu a maior parte das famílias do “Brejo”, recolhendo assinaturas num “documento” cujo conteúdo era absolutamente desconhecido por aqueles que o assinavam (na sua totalidade nãoalfabetizados), mas que dizia referir-se ao pedido da “Carta Régia”. Desconfiadas com aquelas sucessivas viagens e com o “documento”, Quitéria e Maria Berta, outras duas lideranças, que eventualmente participavam das viagens, resolvem verificar a veracidade das histórias contadas pelo cacique e, acompanhadas de Antônio Moreno, filho do já falecido João Moreno, vão à Recife, poucas horas depois do cacique e do seu companheiro partirem para Brasília. Lá, descobrem que as assinaturas recolhidas na verdade legitimavam um documento de transferência das terras da horta do posto indígena para o nome do cacique. As terras, transformadas em horta pelo posto na década de 1940, correspondiam às terras antes dedicadas à Santo Antônio, padroeiro da área indígena, “dono” da igreja do Brejo e ocupavam uma das faixas de terra delimitada pelas “linhas”. Antes do SPI apossarse dessas terras, eram de usofruto dos zeladores da igreja, que se sucediam hereditariamente e se faziam responsáveis pela organização das festas religiosas, compra de panos para o altar, pintura da fachada etc. No momento em que a FUNAI preparava-se para devolver essas terras para a comunidade, João Binga criava um artifício para apossarse individualmente delas, através da criação de um “documento”. Ao descobrirem o artifício, o grupo em viagem para Recife dirige-se para Brasília e lá interrompe a transação. Em decorrência, Antônio Moreno é erguido ao cargo de Capitão, desativado após a morte de seu pai e as terras do posto divididas entre os seus dezesseis antigos zeladores e João Binga é destituído do cargo de cacique. É necessário observar que as viagens das lideranças aos escritórios da FUNAI reúnem um número variável delas, alternando de forma mais ou menos regular, segundo as oportunidades. Em alguns momentos, um certo número delas pode intensificar seu trânsito e monopolizar as mediações e o acesso às informações, como aconteceu no relato acima com o João Binga e seu cunhado, mas, por princípio, o recurso às viagens está sempre aberto a quem se disponha e tenha legitimidade local, isto é, tenha prestígio junto à população de sua seção ou aldeia, para se engajar nelas. O grupo de lideranças empenhado nas viagens, muitas vezes, é composto de autoridades concorrentes entre si. Assim, se a participação nas viagens precisa ser legitimada por uma determinada carga de prestígio (note-se: prestígio e não “representatividade”, como a define a ciência política), ou por uma relação de confiança bastante estreita com uma liderança já plenamente legitimada, ela é também, em si, uma fonte de prestígio de grande importância. Além do valor puramente emblemático da participação nas viagens, através delas, aquelas lideranças se fazem reconhecer como “representantes” da coletividade para as autoridades externas (inicialmente apenas o SPI, depois a FUNAI, e mais tarde um amplo campo de agências de investimento social e de mediação desses investimentos, como veremos no capítulo seguinte) e, através desta representatividade, tornam-se capazes de alcançar benefícios que podem ser canalizados com relativa precisão para sua aldeia ou seção. A construção da “representatividade”, neste caso, envolve mais teatralidade do que normalmente já compõe Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 102 a representação política de natureza parlamentar, por exemplo. Representar, como esta noção surge nos discursos, não se relaciona com portar-a-voz, mas portar-a-imagem, performatizar o grupo, que afinal não é constituído pela opinião, mas por uma “indianidade”, que se constitui, de um lado, pela realização do Toré e, de outro, pelo desempenho do papel de oprimido. Voltemos à análise da situação criada com a deposição do cacique para que essas reflexões ganhem sentido. Com ela, as lideranças responsáveis pela anulação do “documento” sobre a roça, ganham larga notoriedade: Maria Berta, concorrente da Quitéria, deixaria a área Pankararu e iria juntar-se à parte de sua família nos Geripancó, tornando-se lá uma grande liderança. Quitéria, por outro lado, intensificaria sua participação nas viagens e, em pouco tempo, tornar-se-ia a mais assídua e conhecida das lideranças Pankararu, centrando sua atuação no tema da retomada das terras ocupadas pelos posseiros. Ela, João Tomás, João Binga, Hilda e Antônio Moreno seriam as lideranças mais destacadas neste sentido: muitas vezes, todos viajariam juntos apesar das graves diferenças entre eles. A permanência de João Binga no grupo não se deu sem resistências, mas acabou por ser contornada pela relação de parentesco com Quitéria. Numa das suas viagens a Brasília, os funcionários do órgão insitiram na necessidade de apresentação de uma pessoa que ocupasse oficialmente o cargo de cacique que se encontrava vago, como João Binga lhe era o mais próximo, Quitéria, “representando” o grupo, lhe restitui o cargo. Esta volta estaria tão comprometida numa relação de dívida com Quitéria, que sua atuação seria definitivamente alterada por sua subordinação a ela. Mais tarde, um outro parente seu assumiria o cargo de pajé, intensificando a centralidade de Quitéia como autoridade de mediação. 2 O fato de exercer forte influência sobre as duas principais lideranças estatutárias do grupo e de não exercer nenhum cargo formal, somar-se-iam a uma capacidade de “representação”, que a tornariam cada vez mais visível. Quitéria explora ao máximo, em seu discurso, o lugar de mulher e de subordinada, estabelecendo um discurso em grande medida padronizado, mas de grande força dramática. É interessante que, em nossas conversas, ela tenha citado quase exclusivamente nome de mulheres, ao falar dos responsáveis pelas fontes de recursos que ela tem conseguido mobilizar ao longo dos últimos anos, tanto na LBA e na EMATER local, quanto junto ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, ou junto à Secretaria de Cultura do estado de Pernambuco etc. Pude assistir também um pouco dessa retórica nos encontros realizados entre as lideranças e as juíza e promotora de Tacaratu, em situações de negociação sobre o conflito com posseiros. Em seus discursos para os jornais e nas rádios, Quitéria relaciona os atentados que teriam sido cometidos pelos posseiros contra sua pessoa, fala do filho que perdeu com o susto provocado por um deles e maximiza assim, ao narrar no presente, fatos muitas vezes ocorridos, mas há mais de 10 ou 20 anos, um conflito cuja violência cotidiana é muito atenuada e que não provocou, ao menos diretamente até agora, nenhuma morte. Esses atentados algumas vezes são “descobertos” através de boatos que permitem evitá-los e, assim, eternizar a suspeita. Durante minha estadia em área pude assistir à descoberta de um desses atentados que mais tarde seria citado numa rádio local durante uma entrevista sobre o conflito com os posseiros. Enquanto eu estava no posto indígena Quitéria chegou bastante e sinceramente assustada dizendo estar transferindo a família de sua casa naquelas próximas noites para a casa de parentes, por ter ficado sabendo que os posseiros iriam tentar matá-la: uma menina que é criada por ela e que ajuda a cuidar dos seus filhos, naquele dia pela manhã, teria levantado cedo e ido embora para junto da mãe, sem dar Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 103 maiores explicações, apesar das insistências. Como sua mãe trabalha de doméstica na casa de posseiros em Itaparica, a associação entre uma coisa e outra bastou para que se caracterizasse a ameaça e para que Quitéria corresse para o posto indígena, exigindo que o “chefe”, seu sobrinho, comunicasse o fato à Polícia Federal, como realmente o fez. É de se notar que seus parentes próximos, apesar de não contradizê-la, não se mobilizaram com a suspeita, nem mesmo o “chefe”, apesar de a ter comunicado imediatamente à FUNAI. Além disso, Quitéria muitas vezes mobilizaria em suas viagens à Recife um grupo relativamente extenso de parentes na realização de Torés, como forma de “representar” a aldeia para as autoridades. Posteriormente, essa forma de “representação”, quando as disputas por lealdades se transformariam em faccionalismo cismático, se generalizaria e, através dela, outros grupos buscariam alcançar o seu tanto de “representatividade” e de recursos externos. O resultado de todo esse investimento, na construção de uma imagem, levaria à constituição da Imagem da Quitéria, como literalmente a imagem do grupo para muitas das agências de mediação e de apoio, que assistiram ao grupo desde inícios da década de 1980. Isso pode ser ilustrado com o fato do volume produzido pela CONDEPE (Companhia de Desenvolvimento de Pernambuco), sobre as comunidades indígenas do estado, ter como capa uma foto de rosto dela. Quitéria mistura todas essas representações à de um vigor quase inesgotável, que lhe permite estar em vários lugares ao mesmo tempo, como representante do povo Pankararu, como representante das mulheres indígenas, como representante dos índios do Nordeste. Seu discurso não deixa nenhum desses elementos passarem despercebidos ao observador, explicitando constantemente não só as características enumeradas, mas igualmente o fato do sofrimento redobrado que isto lhe impõe, como a mais “visível”, a mais mobilizada das lideranças e, sempre, a mais “visada” por seus inimigos, os posseiros. Nos documentos produzidos pelo sindicato ou em depoimentos pessoais de posseiros a que pude ter acesso, esse papel de ícone Pankararu assumido por Quitéria torna-se evidente. A queixa de seus inimigos contra ela muitas vezes é a calúnia: por denunciar emboscadas que não existiram, tentativas de arrombamento de sua casa que nunca aconteceram, mas que compõem a teatralização do subordinado. 3 O outro elemento de grande importância, que essas situações nos apresentam, é o lugar ocupado pelas viagens nessa nova ordem. Elas estão na própria origem do órgão indigenista na área, como vimos no capítulo anterior, associado à convergência de um circuito de viagens de trocas rituais e um circuito de viagens de busca dos direitos, já tradicionais, não fazendo parte, portanto, de um novo estado das coisas em oposição a um estado anterior; mas, depois de estabelecida a relação tutelar, elas foram bastante alteradas, tanto em seus circuitos quanto no papel que passaram a desempenhar nos arranjos de poder tribais. Em primeiro lugar, as viagens abandonam os circuitos frouxos e relativamente aleatórios percorridos, em decorrência do surgimento de personagens capazes de garantir a mediação entre os grupos e autoridades que lhes acessariam “direitos”. Em lugar desses circuitos variáveis, estabelece-se um desenho fixo, no qual as “centralidades” (RAFESTIN,1993) são os entrepostos do órgão indigenista, mediador privilegiado e, até um determinado momento, exclusivo do fluxo dos “direitos”. Agora, os centros de poder para onde se dirigem as lideranças peregrinas são os escritórios das Inspetorias (mais tarde, das DR's e, hoje, das ADR's), da própria diretoria do órgão, no Rio de Janeiro e depois em Brasília, ou no Museu do Índio (RJ), onde foram depositados os “documentos” de legitimação e registro das posses indígenas. Em segundo lugar, as viagens, que antes Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 104 apresentavam-se como uma fonte alternativa de prestígio, compondo mais uma das variáveis que se agregavam à lógica dos terreiros, tornam-se, com a criação dos cargos de poder estatutários, uma via de acesso direto àqueles cargos, por meio do contato com o poder tutelar, assumindo o lugar de um verdadeiro pai ou da posse dos “documentos”, objetos de conteúdo obscuro emanados d'Ele e que se faziam assim, imantados por sua autoridade. Com o estabelecimento do governo tutelar, as viagens não são mais uma fonte de prestígio alternativa, mas requisito indispensável para qualquer indivíduo que venha ocupar um lugar de poder. De outro lado, as viagens passam a funcionar, igualmente, como fonte do equilíbrio de forças do arranjo político, ao servir como recurso contra os possíveis abusos das autoridades instituídas. Além disso, com as mudanças mais recentes de contexto, em que as alterações econômicas e territoriais ligadas às UHE's provocam a entrada no cenário regional de um grande número de agências de intervenção e assistência, as viagens dão acesso a outros entrepostos de direitos, alternativos ao órgão indigenista, dando também um sentido mais amplo e permanente à idéia da busca de direitos. Os “direitos” agora não se restringem apenas aos recursos fundiários, mas a todo tipo de recursos possíveis de alcançar através da mediação com agências externas: indigenistas ou não, oficiais ou não. A transformação das viagens na forma mais importante de visibilização do grupo indígena junto às autoridades faz com que elas passem, de certa forma, a orientar as prioridades do próprio órgão ao constrangê-lo frente à imprensa, através de denúncias ou através das ocupações das sedes, onde os grupos de lideranças peregrinas acampam por determinados períodos, como forma de “sensibilizar as autoridades”. Análago às primeiras lideranças peregrinas, nesse caso também passa a existir uma especialização, onde alguns deles acabam por produzir sua própria imagem como símbolo étnico, sendo reconhecidos pelas autoridades e fazendo com que o grupo saiba deste reconhecimento, retirando daí seu capital político. Estado-pai-patrão 1 A rotinização da tutela teve por efeito também o de agregar à noção de tutor e empresário à de patrão, justificando a utilização da mão-de-obra indígena com argumentos administrativo-educacionais emancipatórios. O plano de emancipação dos postos indígenas incluía o emprego de serventuários indígenas que, aos poucos, assumiriam a administração dos postos, até o dia em que a área pudesse ser absorvida pela administração municipal como mais uma de suas unidades administrativas. Essa possibilidade abre passagem para o surgimento de novos personagens que povoarão o cenário da relação tutelar e passarão a ocupar um lugar permanente e de crescente importância no contexto Pankararu. Até onde foi possível verificar através dos registros das folhas de pagamento trimestrais depositadas no setor de microfilmes do Museu do Índio, tal emprego parece ter sido constante desde os primeiros momentos de atuação do órgão, ainda que sempre mesclado com a presença de outros funcionários não-indígenas, que deveriam lhes servir como exemplo. As funções desempenhadas no posto indígena eram as seguintes: encarregado, auxiliar, auxiliar de ensino, auxiliar de ensino agrícola, aprendiz, trabalhador, aprendiz índio e servente, sendo que a participação dos índios concentrava-se nas três últimas funções (Quadro 8). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 105 Quadro 8 Índios assalariados pelo Posto Indígena Pankararu (dados com lacunas para 19401949) m./a Trabalhadores aprendiz índio servente . 12/4 José Mariano 0 João Moreno José Angelo Pedro Bernardo Manoel Serafim 12/4 Joaquim Vermelho Cícero Gomes Pedro Martins da Silva 2 Augusto Grande Saturnino Pereira 12/4 Joaquim Vermelho Cícero Gomes 3 Augusto Grande Saturnino Pereira 03/4 Joaquim Vermelho Manoel Angelo 7 Francisco Alves da Silva Cícero Barros 06/4 Joaquim Vermelho Manoel Angelo 7 Cícero Barros João Antônio dos Santos Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 09/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 7 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 04/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 8 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 06/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 8 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 12/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 8 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 04/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 9 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 06/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 9 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva Manoel Vicente Pereira 09/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 9 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva 12/4 Joaquim Vermelho João Antônio dos Santos 9 Manoel Angelo Francisco Alves da Silva (Fonte: DOC.:41) Os Pankararu assalariados pelo posto indígena, durante os nove anos a que as folhas de pagamento depositadas nos arquivos do Museu do Índio dão acesso, faziam parte, na quase totalidade, daquela lista de lideranças peregrinas que os relatos apontam como responsáveis pelas buscas dos “direitos”. Por outro lado, alguns dos funcionários nãoindígenas citados, seriam absorvidos pelo grupo, através de casamentos, ou, como no caso especial de uma professora tornada moradora na área e expulsa como posseira no início da década de 1990. Com isso, o SPI criava um espaço de relações sociais e patronais alternativo ao anteriormente representado pelos posseiros, além de engajar aquelas figuras Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 106 de destaque na mobilização pelos direitos numa relação assimétrica, comprometendo-os frente à população com a própria imagem do órgão. Desde então, a relação entre órgão tutor e tutelados passa a assumir um caráter ambíguo, no qual o argumento da emancipação gera formas de controle e aliciamento, levando, não ao progressivo desaparecimento da relação tutelar, mas à sua perpetuação. Tal emprego de indígenas vai se acentuar ao longo dos anos até surgir como uma forma eficaz, por um lado, de controle das críticas e pressões indígenas (como pude presenciar, ser funcionário implica para alguns, na impossibilidade de formular críticas diretas ao órgão ou aos seus responsáveis); por outro, de instrumento de barganha com as lideranças indígenas, onde os empregos entram no rol dos recursos com os quais a FUNAI daria acesso. A contrapartida disso é que o emprego surge como moeda para as relações de autoridade internas à aldeia, de que passam a dispor as lideranças de maior trânsito pelo órgão. A seguir, organizamos alguns dados que dão uma dimensão da importância desempenhada pelo funcionalismo indígena atualmente32. Quadro 9 Admissão de funcionários indígenas pela ADR 3 (1971-1987) 4 Pankararú 3 outros 2 1 0 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 À época em que esses dados foram recolhidos (outubro de 1994), do número total de funcionários, pouco menos de um quarto eram indígenas. Ainda que a concentração de admissões observadas para o período 1986-1987 coincida com um período excepcional em termos de admissões em geral (Cf. Quadro 10). Esses dados apontam para uma política de gestão das relações entre o órgão e a política local, que combina práticas clientelistas e um tipo de público muito particular, os grupos indígenas, sobre o qual operam complexos processos identitários, que ultrapassam os limites da prática clientelística mais comum. As implicações da convergência destas duas práticas e discursos, o étnico e o clientelístico, ainda está por ser devidamente avaliado. Aqui temos condições apenas de chamar a atenção para a importância da questão, fornecendo alguns dados preliminares. Dentre os funcionários de origem indígena admitidos pela ADR3, a grande maioria era Pankararu (19 contra 3 Fulni-ô, 2 Tuxá, 2 Xukuru-Kariri e 1 Potiguara), mas isso não significa que esse grupo tenha a maioria real das admissões. Isso demonstra apenas uma preferência por parte dos Pankararu por permanecer em sua própria área indígena ao exercerem seus cargos. Segundo o que é corrente, os maiores clientes da FUNAI em termos de empregos são, em primeiro lugar, os Fulni-ô, em segundo, os Tuxá e, apenas em terceiro lugar, os Pankararu. A importância deste tipo de recurso para os grupos indígenas nordestinos e o correspondente engajamento das suas lideranças na sua busca leva ao cacique Kiriri empenhar-se em reunir o apoio de outras lideranças da região numa reivindicação coletiva para que a mudança nos critérios de admissão de funcionários, da 32 Os quadros que se seguem foram montados a partir da consulta direta aos arquivos do Departamento Pessoal da FUNAI de Recife. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 107 simples indicação para o concurso, não seja aplicável aos candidatos indígenas ou, se o for, que os concursos se restrinjam aos indígenas. Quadro 10 Admissão de funcionários pela ADR 3 (1970 - 1990). 70 65 60 55 50 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 Percebe-se assim que o argumento inicial empregado pelo SPI para justificar essa prática é desmentido pelo uso de tais empregos, mais como recursos ampliadores da mobilidade indígena, que como uma suposta capacitação para a autonomização da administração das áreas, visando sua futura emancipação. Pela falta do número total de funcionários pankararu fora da 3a DR não é possível avaliar o quanto o caso Pankararu é especial, mas é possível traçar o perfil dos seus funcionários em área: a grande maioria deles (17 dos 19) é composto de mulheres e, entre elas, a maioria, de professoras de primeiro grau, ocupando grande parte das vagas das escolas dentro da área indígena. Quadro 11 Escolas e Professoras da aldeia Pankarau (1994) Localização da Subordin No(subord.) das escola ação profas 1 “Grupo” do posto FUNAI 5 (FUNAI) indígena 2 “Grupo” do posto Município 5 (Município) indígena 3 Serrinha FUNAI 2 (FUNAI), 2 (Município) 4 Espinheiro FUNAI 2 (FUNAI), 2 (Município) 5 Espinheiro Município ? 6 Agreste Convênio 1 (Município) 7 Saco dos Barros FUNAI 1 (FUNAI), 3 (Município) 8 Tapera Município 2 (município) 9 Carrapateira Município 2 (município) OBS: Prédio da FUNAI Prédio construído pelo Lions Club O que é interessante de observar nessa situação, independentemente do que a sua concentração funcional possa implicar, é o próprio mecanismo de alcance desses empregos e o efeito que têm sobre o arranjo de autoridades internas. Eles nos apontam para uma outra Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 108 forma de conquistar lealdades, na disputa pela conquista de homens (e mulheres), enfatizada pelo fato desses funcionários permanecerem na DR e, principalmente, na sua própria área. 2 Durante muito tempo, a entrada de um funcionário indígena dependeu apenas de uma indicação e, assim, era possível que um funcionário mais antigo ou, mais frequentemente, uma liderança de contato com o órgão, com boa entrada nos seus escritórios, os solicitasse. Um largo encadeamento de relações de clientela era então acionado de forma que o preenchimento de um único cargo podia estar alimentando as relações da liderança dentro da área com as suas lealdades, as relações do chefe de posto com as lideranças, de funcionários dos escritórios de Recife e Brasília com esses chefes e, por fim, do órgão com os grupos como um todo. No caso dos Pankararu, segundo relatos dos próprios funcionários indígenas, a mediadora mais importante na conquista de empregos, desde que se generalizaram na década de 1980, foi Quitéria. Assim, por exemplo, o atual chefe de posto dos Kiriri, seu sobrinho, depois de ter viajado ainda criança com a família para São Paulo, onde permaneceu até 1986, e de onde vinha visitar a AI anualmente, às vezes passando o período de colheita para auxiliar a família, foi trazido de volta por uma oferta de emprego de enfermeiro no posto indígena. No caso de outro sobrinho, hoje chefe de posto na própria AI Pankararu, que Quitéria também trouxe de São Paulo (neste caso, a sua oscilação entre a AI e São Paulo ocorria em períodos mais curtos, de cerca de seis meses), o emprego foi conseguido através de uma busca direta em Brasília, para onde foram juntos atrás de uma vaga em alguma Universidade ou de um emprego, o que surgisse primeiro. Saiu de lá com o segundo, transformando-se em motorista do posto indígena. Em primeiro lugar, é interessante destacar como a generalização do recurso do emprego na FUNAI tornou-os, até determinado momento, uma fase na “carreira” (no sentido dado ao termo por GOFFMAN,1980) de um jovem indígena bem sucedido, assemelhando-se às antigas viagens na busca de direitos, mas que agora assumem uma dimensão individual, biográfica e não comunitária. Entretanto, caso tais jovens quisessem sair da AI, existia um outro circuito a ser percorrido, que passa por uma peregrinação pelas salas da FUNAI de Brasília, na “busca de uma portaria”. O relato de uma jovem sobrinha da Quitéria, irmã de um dos chefes citados acima, em visita à casa dos pais depois de cerca de sete anos morando no Mato Grosso, e orgulhosa de sua própria história de ascensão funcional, permite reunir numa mesma situação individual, vários dos elementos até então dispersos. Cerca de 30 anos, essa moça foi da terceira turma a se formar como professora entre os Pankararu e, nessa época, as jovens saídas da escola e selecionadas podiam optar entre assumir o emprego de professora primária pela prefeitura ou pela FUNAI. Como sua aspiração era, em suas palavras, trabalhar numa “aldeia de verdade”, onde vivessem “índios de verdade”, ela optou em buscar o emprego na FUNAI. Conseguido o emprego, a transferência para uma “aldeia de verdade” dependia de uma “portaria de transferência”, que só poderia ser conseguida em Brasília, para onde viajou e, como era comum à época, passou a ocupar um pequeno hotel de cidade satélite, custeada pelo próprio órgão. Como ela mesmo explica, hoje isso já não acontece mais porque a FUNAI construiu uma “Casa do Índio”, que permanece constantemente lotada de “índios em trânsito”, na sua maioria do Nordeste, muitos buscando “portarias” que lhes permitam trabalhar em outras aldeias. Depois de instalada, saía diariamente do hotel num ônibus da FUNAI, que percorria as cidades recolhendo seus funcionários para o trabalho nos escritórios centrais. Nesses Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 109 escritórios, então, passava os dias tentando estabelecer contatos com funcionários através dos quais fosse possível conseguir uma “portaria” que lhe levasse ao emprego desejado. Assim, conheceu o homem que veio a ser seu marido, funcionário da FUNAI, trabalhando como professor em sua própria aldeia, Bacairí, com um irmão empregado como auxiliar de um dos escritórios da FUNAI de Brasília, a quem visitava. Estabelecida esta relação, ela conseguiu a oferta de emprego como professora entre os Bacairí, onde depois de alguns meses, começou a namorar e casou com o mediador de sua entrada na área “de verdade”. Depois de 1988, no entanto, esse roteiro mudaria. A partir daquele ano, a FUNAI pararia de contratar novos funcionários e as relações de emprego passariam a ocorrer basicamente através da prestação de serviço, desde então muito utilizada para a contratação dos chefes de posto indígena. Se, por um lado, a não-estabilidade implica num instrumento mais eficaz de controle da própria FUNAI sobre seus funcionários, por outro lado, explica uma aparente ampliação das opções dos grupos com relação à escolha de seus próprios chefes de posto, não ficando presos somente ao universo de funcionários do órgão, podendo convidar, se seu poder de barganha for suficiente, qualquer outra pessoa para o cargo, normalmente um indígena, da mesma forma que exonerá-lo a qualquer momento. Esse é o caso do irmão da última informante citada, convidado pelos Xucuru para ser seu chefe de posto. Da mesma forma, algumas vezes através das relações de parentesco, os Pankararu foram buscar em outras aldeias os seus chefes de posto, que, durante a década de 1980, chegou a contar com um Fulni-ô, um Tuxá e um Xukuru-Kariri, quando, finalmente em abril de 1992, eles inauguraram uma nova fase nesse relacionamento, conseguindo contratar para o cargo de “chefe” um “filho da aldeia”. Apartir daí a relação entre funcionalismo indígena e política tribal fica mais explícita. Ainda que isso não venha ocupar uma discussão mais detalhada, seria necessário chamar a atenção para o paradoxo identitário desses jovens chefes. Se, a princípio, esses chefes filhos da aldeia poderiam significar um ganho político dos grupos indígenas na conquista da plena gestão de seus próprios negócios, o que se observa é o discurso e a prática desses jovens, presos às dualidades, por um lado, da relação tutelar e, por outro, do faccionalismo interno. Um chefe de posto indígena é, em parte, tutor e em parte tutelado, sem que uma dessas posições elimine a outra, como poderia sugerir o significado mais elementar do termo. No seu discurso, o “índio” aparece alternadamente na terceira e na primeira pessoa e a sua relação com o cargo é tanto de poder, quando exerce sobre a população uma autoridade e um governo cuja origem está fora dela, quanto de dependência, já que se vê obrigado por essa posição a maximizar as ações do órgão em favor do grupo, sem que isso esteja, na maioria das vezes, ao seu alcance. Frente às autoridades, ele é mediador e interessado: frente ao órgão, ele é seu representante e, ao mesmo tempo, “relativamente incapaz”. Por outro lado, se é a figura capacitada a fornecer a maior representatividade ao grupo, está definitivamente preso às relações de autoridade familiares, a que deve obediência, sendo antes de tudo e, em parte, à sua revelia, instrumento da luta faccional. 3 A liderança peregrina que vimos emergir algumas páginas atrás retira sua força da capacidade de gerar recursos, na forma de projetos de desenvolvimento, de apoios financeiros, de doação de gêneros, de serviços públicos antes inexistentes, mas principalmente de empregos dentro do próprio órgão indigenista oficial; novos recursos canalizados para circuitos tão tradicionais quanto o grupo de parentela. Desta forma, os signos étnicos são apropriados por determinadas lideranças possuidoras do acesso Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 110 privilegiado a determinados centros ou agências de recursos que têm seu apoio ao “grupo” transformado em capital faccional, estejam conscientes disso ou não. O que é especialmente interessante é que tais recursos não criam simplesmente uma clientela vinculada a uma figura central, no modelo da patronagem. Quando Quitéria investe seu prestígio dentro do órgão e frente ao público indigenista mais largo no alcance de cargos funcionais ou de possibilidades de qualificação de jovens através da formação técnica ou universitária, ela tem aparelhado uma rede familiar bastante larga, que potencializam laços que poderiam simplesmente se fragmentar com a ramificação das trocas rituais e matrimoniais. Não só mantém os laços como os restitui quando traz de volta, para a área indígena, jovens que tinham ido buscar oportunidades em São Paulo. Em alguns casos, Quitéria explicitamente tem o projeto de fazer de jovens parentes, futuras lideranças, dando-lhes uma formação política, desde a mais tenra idade, quando os carregava em suas viagens à Brasília. Um tipo de formação, portanto, que desloca a ênfase da preparação ritual para o conhecimento dos circuitos das viagens, para o domínio da lógica da mediação. Quadro 12 Política e parentesco 1 - Velho Serafim ( ): antigo “sarapó” (Brejo). 2 - Joaquim Serafim ( ): primeiro pajé da AI (Serrinha). 3 - João Moreno ( ): primeiro capitão da AI (Brejo). 4 - Antônio Moreno: atual capitão da AI, afastado da política (Brejo). 5 - Dedé: liderança sindical histórica (agrovila). 6 - Conrado: importante referência na manutenção dos contatos dos índios das agrovilas com a AI (agrovila). 7 - João de Páscoa: sub-pajé da AI entre 1981 e 1982 (Serrinha). 8 - Renato: atual pajé da aldeia dissidente do “EntreSerras” (Serrinha). 9 - João Binga: atual cacique oficial da AI (Brejo). 10 - Antônio : considerado cacique da população Pankararu da favela de São Paulo. 11 - Antônio Binga ( ): referência religiosa da família Binga (Brejo). 12 - Miguel Binga: atual pajé oficial da AI (Brejo). 13 - Quitéria: liderança de maior destaque externo (Brejo). 14 - José Julião: importante autoridade de base econômica (Tapera). 15 - Agenor Julião: importante autoridade de base econômica (Brejo). 16 - João: chefe do posto indígena (Brejo). 17 - Paulo: liderança em formação, por iniciativa direta de Quitéria (estudando fora). 18 - Ronaldo: chefe do posto indígena Kiriri. 19 - Valmir: chefe do posto indígena Pancaru. 20 - Cosme: liderança em formação, convidado pelos Xucurú para chefe de posto (estudando fora). 21 - Malaquias ( ): linheiro. 22 -Zé da Viúva: liderança entre os posseiros. O efeito deste investimento, no entanto, é a construção de um tronco familiar, com uma consistência que nenhum outro pode alcançar através dos recursos de domínio Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 111 comum, como os terreiros, aproximando-o muito da forma de uma linhagem. Uma família que se constrói tão por completo vai buscar seu ancestral mítico na mesma geração das lideranças atuais. Através destes laços de clientela, essa liderança peregrina, ponto chave das mediações, se faz uma família extensa e de grande poder de gravidade, que possibilitará reverter recursos materiais em recursos rituais, plenamente calcados no paradigma político do grupo. Se, ao final deste capítulo, fizemos aparentemente o caminho de volta de Geertz à Foster, foi para completar o quadro múltiplo que compõe, hoje, as fontes de autoridade e as formas de arregimentação de lealdades Pankararu. A plena inteligibilidade desses laços continua dependendo da capacidade dos grupos familiares e rituais de expressarem o modelo de desempenho dos terreiros, como será demonstrado no capítulo a seguir. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 112 Capítulo 3 - Etnogeografia Esse capítulo pretende realizar uma reflexão sobre processo ou sobre o complexo de elementos e relações que constituem um território étnico, nas suas múltiplas, transversas e conflitantes conjugações dos aspectos jurídicos, ambientais, políticos, míticos, rituais, históricos etc. Podemos tomar como ponto de partida para isso, como provocação e como exercício, a frase que ao longo das lutas pela demarcação das terras indígenas tornou-se uma espécie de emblema, um dazibao impresso em postais, adesivos e publicações militantes ou simpatizantes da causa indígena: “índio é terra”. Esse dazibao, que penetrou nosso senso comum e passou a informar nossas análises, não pelo trabalho de observação e crítica, mas pelas frestas das vontades e pela prática da denúncia, sempre as mais bem intencionadas, teve o efeito porém de naturalizar, em termos de necessidade, preservação e equilíbrio, uma relação extremamente complexa. Partiremos portanto, da pergunta: afinal, o que se diz e o que se faz quando se afirma que índio é terra? Um território Semântico É justamente na associação entre corpo e terra, isto é, nas metáforas que buscam compreender o espaço através de sua associação ao "corpo da terra" e que, através de analogias bio-médicas, suprem a necessidade de uma aparência científica, que Rafestin (1986) encontra as bases representacionais de uma antropologia do espaço, assim como também as razões de seus limites. A grande barreira para seu real avanço estaria, segundo ele, na insistência por parte dos geógrafos em ignorar a necessidade epistemológica de criar distinções mais rigorosas entre as noções de espaço, território e territorialidade. Ignorância esta que se sustentaria na crença de que o mundo se ordena segundo um arranjo de objetos independentes do espírito ou, como diria Latour (1994), na lei constitucional da modernidade que separa em pólos opostos e absolutamente distintos, sujeito e objeto. Para reconciliar tais pólos, mais que para superar tal oposição, Rafestin recicla a metáfora do corpo como forma de estabelecer uma relação entre espaço e território que pode ser pensada como homóloga àquela que existe, no corpo humano, entre órgãos endossomáticos e exossomáticos, isto é, entre os instrumentos naturais ao homem e aquela longa série de instrumentos que foram sendo produzidos pelo próprio homem e que aos poucos vão se agregando aos seus instrumentos naturais, assim como modificando-os. Rafestin concebe então o território como produto de uma, como ele chama, ecogênese, um processo no qual natureza e cultura se fundem para a criação de uma dimensão nova, em que o espaço é ordenado segundo os sistemas informacionais disponíveis ao homem. O território estaria, assim, no campo da produção de significados e instrumentos culturais, mais que no campo dos objetos naturais. Concebido como produto de uma ecogênese, sua análise deve levar em conta as disposições e arranjos não aleatórios de objetos e homens sobre uma determinada superfície, que exprimem conhecimentos e práticas de apropriação desta superfície e que traduzem o espaço em formas culturais. Esse debate com o fisicalismo é, aliás, uma constante entre geógrafos e cientistas sociais que se dedicam à temática territorial, num permanente exorcismo da evidência do espaço e da naturalidade da natureza. A maior atenção sobre este problema e o relativo Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 113 sucesso em sua superação marcariam aqueles trabalhos mais recentes que Soja (1993) identifica como geografias pós-modernas. Neles a abordagem seria marcada pela tentativa de eliminar todo resquício dualista através da superação da dicotomia fundadora que Lefebvre propôs entre natureza - onde o espaço é tomado como contexto, continente ou substrato material previamente dado - e segunda natureza - onde ele aparece numa relação dialética com a produção social, emergindo da aplicação do trabalho humano deliberado33. Segundo Rafestin, se de um lado é preciso expulsar o fisicalismo, de outro seria preciso impedir a sua substituição por um outro reducionismo sedutor, o do mentalismo. Na mesma linha, Soja propõe aos geógrafos que finalmente substitua-se tais dualismos físico-mentais pelo suis-generis do "socialmente produzido e reproduzido", onde nem mesmo a natureza, normalmente pensada como sinônimo do previamente dado, foge à lógica da produção humana. O território passa a ser concebido ao mesmo tempo como ambiente e como produto das práticas sociais, nas mais diferentes escalas de relações de poder, do qual elas passariam a estar no centro da definição, conforme as propostas de Foucault (1979). Assim, motivado pela busca de seu próprio caminho na desconstrução do espaço, cada autor constrói novas distinções conceituais. Para Lefebvre, entre natureza e segunda natureza. Para Soja entre espaço físico, mental e social (síntese dos anteriores); entre espaço per-se, contextual e socialmente produzido etc. Para Rafestin entre espaço, território e territorialidade; nós, redes e tessituras; nodosidade, centralidade e marginalidade etc. Todos se colocando como desafio (que Soja identifica como um dos mais impressionantes da teoria social contemporânea) a definição das interrelações existentes entre os mundos natural, mental e social. Minha intenção não é, no entanto, avançar pelo interior dessas discussões conceituais, nem optar por um ou outro plano de descontrução, nem, muito menos, acrescentar a estes, outros conceitos que, na verdade, poderiam continuar se multiplicando segundo a criatividade ou os interesses específicos de cada autor ou de cada texto A utilidade dessas discussões está, primeiro, em operar o necessário deslocamento da noção de território com relação, de um lado, à noção de espaço e, de outro, à noção de Estado, rompendo com as abordagens dos objetos e escalas antes privilegiados pelos naturalistas ou pelos fundadores da geografia política (e também da antropologia política), cujas análises supõem uma autonomia entre as diferentes geografias, política, econômica, ecológica, humana etc., e reificam os limites político-administrativos sustentados no modelo do Estado-nação. Em segundo lugar, sua utilidade está no fato de demonstrar que tais distinções conceituais variam, sem perder sua validade, segundo interesses específicos, referidos a contextos ou conjunto de contextos de pesquisa e que, por mais que pretendam uma validade universalizante, na forma de conceitos, só assumem significado quando ajudam a revelar a raridade das situações históricas ou etnográficas. No nosso caso, ao ajudar-nos a revelar o sentido preciso que a expressão "índio é terra" assume frente à situação Pankararu. É a partir desta perspectiva da raridade - que encontra forte homologia com o que, no plano da historiografia VEYNE (1995) define como "nominalismo" - que Barel (1986) 33 A versão marxista deste debate, da qual Soja oferece um largo panorama, substantivamente não tem lugar aqui, mas os termos em que ela de desenvolve guardam algum interesse. Não devemos nos enganar com a aparência bizantina que podem assumir as discussões acerca da localização do espaço na base ou na superestrutura social, de sua caracterização como determinação, substrato ou reflexo das relações sociais de produção. A cada disciplina, seu próprio fetichismo. De alguma forma, essa busca de uma última instância pode estar presente também nas mais elaboradas construções etnográficas, ainda que nestes casos a última instância não seria econômica, como no marxismo, mas de parentesco ou cosmológica, de maneira que, pensada em sua suposta imutabilidade, confude-se com a própria definição ontológica do grupo em questão. Teremos um exemplo adiante. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 114 afirma a polissemia do termo território e o obstáculo que ela representa à tentativa de tomá-lo como conceito. Este autor propõe fazer dele uma imagem maleável, um bricolage, em que as questões que lhe estão relacionadas, a cada vez que são postas e respondidas, recriam novamente a idéia do que ele próprio vem a ser. Neste sentido é que Barel concebe o território como um especificador, que impõe às práticas sociais e à sua análise a concretude de: A) um constrangimento técnico (condicionantes de um espaço ecológico determinado), B) uma qualificação categórica (os índios do Brejo dos Padres e não os índios em geral) e C) uma fronteira (os limites dentro dos quais tais práticas podem ser consideradas legítimas). Tomá-lo como um especificador, no entanto, não significa uma volta à posição realista e empirista, já que quando nos referimos a um território através de uma nomeação simples, como "o território Pankararu", isso não corresponde à afirmação de uma unidade ou concretude que permitiria abordá-lo como objeto dado e isolado entre outros objetos, mas à idéia de que sua complexidade encontra um deterninado arranjo (que Barel prefere chamar de sistema), ele sim nomeável. Este arranjo, na sua natureza de fato social, faz do território um fenômeno imaterial e simbólico, ainda que tramado sobre um suporte e sob constrangimentos materiais, uma relação entre agentes, agências, expectativas, memória e natureza. Todo elemento, físico ou histórico, que entra na sua composição passa pelo crivo de um processo de simbolização que os desmaterializa, ao mesmo tempo que, por outro lado, a entrada de novos elementos provoca rearranjos no conjunto. Nem fato imposto, nem criação aleatória, o território é uma recriação do real, uma reapropriação do espaço de acordo com obstáculos e mananciais que não são mais apenas montanhas, rios, nichos ecológicos, mas também cercas, fronteiras, relações de afinidade e parentesco, domínios sagrados, áreas de atrito, regiões consagradas a trocas e festividades e aqueles próprios rios, nichos e montanhas nomeados e, por isso, sobrecarregados de sentido. Enfim, o particularmente importante nessas considerações sobre uma nova abordagem do território é que, por tomá-lo como jogo de representações, que informam e são informadas por práticas sociais e relações de poder, isso implica, primeiro, que recortar territórios significa classificar sujeitos, identidades e, segundo, que a relação entre grupos, homens e seus territórios não é unívoca. Na verdade, "nada interdita aos atores sociais que eles habitem mais de um território" (BAREL,1986), e o múltiplo pertencimento territorial, possível e provável em situações em que os atores tem ampliadas as possibilidades de mobilidade, gera fenômenos de sobreposição de pertencimentos, identidades e interesses. Assim, é por dar consequência a esta perspectiva da raridade, que toma o território como “especificador”, segundo a proposta de Barel, que se torna necessário recusar a noção de sistema: deve-se agregar a preocupação com a disposição dos objetos no espaço, à preocupação com sua disposição no tempo. Se a noção de sistema é sedutora por sugerir uma série de relações recíprocas, ela parece também vir sempre acompanhada de uma idéia de circularidade, de unidade e de um número pré-definido de variáveis que contribuem para um mesmo fim, repondo ao final de uma série de operações, por vezes conflitivas, a integridade da unidade inicial. Por isso optamos pela utilização da noção de arranjos territoriais, que remete à imagem de uma determinada disposição temporária dos objetos e das relações no espaço34. Mas a opção pelo uso da noção de “arranjos territoriais” não é explicada apenas por este diálogo com os geógrafos. É necessário explicitar a convergência de perspectivas antropológicas que lhe serviu de base: as análises em termos de organização, no que elas 34 A fora certas discordâncias, a noção de “arranjo territorial” pode ser vista como uma tentativa de gerar a contrapartida espacial para o que João Pacheco de Oliveira (1988) definiu como “situações históricas”, num avanço sobre a categoria de “situação social” de Gluckman (1987). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 115 se opõem às análises em termos de estrutura (no sentido britânico) e de função. Segundo R. Firth (1974), a relação entre estes três tipos de análise se define por uma espécie de divisão do trabalho analítico, onde caberia à organizacional a descrição da dinâmica social enquanto à análise estrutural interessariam as formas e princípios e à funcional, as finalidades. A primeira viria completar e dar mobilidade às outras ao focalizar as próprias atividades sociais, em sua relação com as formas e finalidades. Ao passar as atividades para um primeiro plano, o antropólogo tem condições de focar a capacidade criativa dos sujeitos e dos grupos sociais frente a situações funcional ou estruturalmente “amorfas”, como as de mudança social. Através da análise das formas de ordenação sistemática das relações sociais, materializadas nos atos de escolha e de decisão, chegaríamos à dinâmica e ao processo, ao que poderíamos chamar de “território vivido”. Nosso ponto de partida está no reconhecimento da arbitrariedade das fronteiras dos grupos sociais, cujos sujeitos estão permanentemente superando as barreiras impostas ao seu intercâmbio social, mesmo que tenham sido criadas por eles mesmos (FIRTH,1974). Muitos antropólogos, que em alguns casos podem divergir bastante sob outros aspectos, se utilizaram da perspectiva organizacional. Seriam exemplos bastante diferentes da aplicação de uma abordagem em termos de organização, para citarmos apenas os mais presentes neste trabalho: a noção de situação social, onde a investigação das relações é realizada a partir da comparação e análise detalhada de situações específicas ou do encadeamento de momentos históricos que revelam formas de converter em ação prática certos elementos do sistema de relações subjacentes e que desenham não uma estrutura mas situações de equilíbrio (GLUCKMAN,1987); a análise de grupos étnicos não como grupos formalmente estruturados ou constituídos de conteúdos culturais, mas como formas de organizar socialmente a cultura (BARTH,1976); e a análise das variações sobre modelos ideais de comportamento político, onde em lugar de serem observados apenas os aspectos estruturais definidores de unidades políticas, são formas de organização das lealdades que se sobrepõem a estes aspectos(GEERTZ,1991). Na análise deste último autor, a política passa a se constituir de dois aspectos, complementares mas também contraditórios: a cultura e o poder. É o jogo entre eles que fornece as possibilidades diferenciadas de pertencimentos sociais, alternativos ou opostos, onde se vão recortando os círculos de adesão entre os quais os indivíduos encontram margens mais ou menos largas para a negociação de suas lealdades A diferença da proposta dos arranjos está na sua ênfase sobre os quadros de referência espaciais, por meio dos quais materializa o que a princípio é pensado como série de relações soltas num espaço vazio. Estamos na busca das formas de territorialização das diferentes possibilidades de organização, reintroduzindo na análise a materialidade das relações simbólicas, sem que essa materialidade sirva apenas como pano de fundo mais ou menos difuso, ou como moldura espacial das análises sociais. Este tipo de leitura do território possibilita pensar como os deslocamentos entre esferas da organização operam, os paradoxos que sua inscrição no espaço podem encerrar, seus efeitos sobre práticas e identidades e, no seu caminho de volta, os efeitos dessas práticas e identidades, na permanente moldagem dos territórios. Os fenômenos de supressão e emergência de identidades e de invenção cultural podem ser lidos, portanto (sem prejuízo de outras perspectivas), como movimentos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. A exclusividade de certos pertencimentos pode levar à contradição entre territórios e a negociação entre identidades pode estar relacionada à sobreposição destes. O trabalho de construção de uma identidade étnica pode corresponder à pretensão a um território total que “congele” os rearranjos ou lhe imponha regras, na tentativa de eliminar o paradoxo dos múltiplos pertencimentos excludentes. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 116 Uma das implicações das críticas às abordagens espaciais poderia ser definida então, como a busca dos princípios ordenadores dessa relação entre identidades e espaços sociais, suas chaves de tradutibilidade ou, de outra forma, a delimitação do arranjo territorial particular a cada sociedade ou a cada "situação histórica" desta sociedade. Por isso, uma abordagem territorial da situação Pankararu deve implicar a observação dos diferentes planos de práticas, representações e pertencimentos espaciais que se sobrepõem, se combinam e interferem uns nos outros por meio de sucessivos deslizamentos, que vão caracterizando diferentes arranjos territoriais. Não se trata da simples multiplicação de pontos de vista sobre a realidade, como poderíamos pensar em analogia com as diferentes leituras possíveis de um texto. Aqui a multiplicidade não é uma qualidade do observador, mas da própria realidade, que cabe ao obsevador guardar. Geografia Jurídica. 1 Do ponto de vista jurídico, a geografia Pankararu, em primeiro lugar, um arranjo geométrico feito sobre um espaço vazio, baseado legislação imperial instituída pela mediação da Igreja, na sua forma missionária. Nesse arranjo, o espaço é tomado como um plano em branco, onde é pontuado um centro, escolhido de forma mais ou menos aleatória, tomando como referência o sistema de hierarquia dos lugares estabelecido pela ordem missionária, o cemitério ciado pela Missão, mais do que qualquer sistema de lugares nativo, ao qual aliás, não se faz referência. Desse centro são estendidas quatro linhas imaginárias em direção aos pontos cardeais. Ao completarem uma légua cada, essas linhas são cortadas perpendicularmente por outras quatro linhas que formam então um quadrado perfeito e que dão forma à terra indígena Pankararú, segundo a memória que estes mantêm da doação imperial de uma sesmaria à missão religiosa que aldeou seus antepassados durante os séculos XVIII e XIX. A única notícia ofial da presença de um aldeamento religioso no local, do qual não há o registro de fundação, diz respeito a sua extinção, em 1878. A demarcação teve como suposto a doação imperial de terras ao extinto aldeamento do Brejo dos Padres, como foi comum ter ocorrido por toda a região. Na falta de uma documentação histórica concreta, utilizou-se os parâmetros estabelecido por este padrão de doação imperial: "Hei por bem, e mando que a cada uma Missão se dê uma légua de terra em quadra para a sustentação dos Índios e Missionários..." (citado em DANTAS e DALARI,1980), sendo que a légua era a utilizada pela medição das sesmarias, com 6.600 metros. O quadrado perfeito da terra Pankararu (como os outros quadrados ou hexágonos indígenas, em especial pelo Nordeste) torna caricato (ainda que nem para todos evidente) o artificialismo das fronteiras administrativas que pretendem dar forma geográfica aos grupos indígenas, não permitindo imaginar ali qualquer processo naturalizável de adequação da organização social, acomodação histórica ou adaptação ambiental. A definição de uma área indígena é antes, a delimitação dos limites de um território estatal de tipo particular, cujo suposto fundamental é o de servir como referência à aplicação do artifício jurídico da tutela, que dá ao órgão indigenista poder de polícia e de gerente empresarial. A delimitação dos limites de validade da tutela permite criar distinções categóricas num universo de população antes indistinta aos olhos oficiais e até mesmo regionais, da mesma forma que décadas antes aquelas distinções haviam sido apagadas pelo ato de extinção dos aldeamentos. Mas também permite criar uma população, produtiva, eleitoral, que passa a Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 117 contar em censos oficiais, que é submetida a diferentes tipos de melhoramentos e uniformizações. Intervenções que moldam hábitos, criam arranjos espaciais e novas hierarquias de lugares e ainda regulam mercados de trocas políticas e econômicas. A área indígena não é um elemento natural do grupo indígena, mas uma "função" da tutela -no sentido que Alliès (1980) lhe atribui para definir a relação entre Estado e território nacional-, isto é, meio de sua ação e não apenas limite de sua competência. 2 Quando da primeira intervenção local do órgão indigenista, em 1940, no entanto, os limites da terra reivindicada não foram respeitados. No trabalho de demarcação, em que a atuação indígena, como de regra (PERES,1992), restringiu-se a termos puramente técnicos, servindo mais como redutora de custos que como participação efetiva no processo, o funcionário responsável reduziu aquele quadrado em meia légua nos seus eixos leste e norte, o que transformou os mais de 14.000 ha iniciais nos 8.100ha oficialmente reconhecidos. José Binga, Bernardo Tiú, Mariano Tiú, Dino Tiú, Argentino Serafim, João Moreno e Anjo Bomba eram as lideranças que cuidavam de tudo na aldeia, faziam as viagens pra Bom Conselho..., e o João Moreno tinha direito até de prender, como realmente prendia os índios na cadeia do posto indígena. Mas foram eles também, segundo João Binga, que puseram tudo a perder, já que eram eles que, na primeira demarcação, administraram o serviço enquanto outros iam abrindo as picadas. Abriram o sul, o Oeste, mas quando chegou no Leste, o Cildo Meireles só levou a picada até meia légua. Eles então reclamaram e o Cildo Meireles organizou uma reunião com eles em Tacaratu, onde lhes disse que o resto que não seria demarcado eles não perderiam, porque ficaria como reserva deles, reserva de madeira e mel. Anjo Bomba no primeiro momento negou, ameaçou de telefonar para o Padre Alfredo Dâmaso, mas o Cildo disse que não era necessário e que ele daria como recompensa a eles, lideranças, 30 mil réis para cada um e mais uma roupa de mescla da boa para cada um. As lideranças aceitaram. (João Binga) Quando o Dr Carlos chegou ele falou "eu vou escolher dois índios pra ser liderança", e o homem tá demarcando as terras, o agrimesor, junto com os índios. E o finado Antônio Barbosa fazendo os marcos. Ele arrodiou tudo e até aí tudo bem, porque era um légua ao sul, uma légua ao norte, uma légua ao leste, ao oeste.[...] Mas quando esse Cildo Meirelles chegou aqui no Barrocão, numa fonte que chama Ambú, falou: "pára!". Deixa que ele já tinha feito um trato com os Nunes, de Tacaratu, que era a família mais conhecida aqui em riqueza, aí ele foi e os índios ficaram aqui esperando, os bestas, os idiotas... [...]... Quando ele voltou, ele disse: "Essa área, nós não vamos pra lá não, nós vamos virá aqui ó...". "Mas e essa outra doutor?". "Não, esa vocês não perdem, essa área fica pra vocês caçá e pra vocês tirá madeira pra vocês fazê suas casas. Isso é uma reserva pra vocês". "Mas assim do lado de fora?". "Fica assim pra conhecê que é um reserva, mas ninguém entra, é suas, quando quizé pode vim aí.". Deixa que por baixo do pano ele deu Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 118 três mil réis dos nove contos que tinha recebido dos Nunes, três mil réis pra o João Moreno, três para o Anjo Bomba, três para o João Binga Velho e acho que ele ainda deu pra outro. Eu sei que tudo isso não chegou a dar 12 mil réis e ele ficou com o resto do dinheiro. E ficou lá aberto, os homens vieram, cercaram e que índio que entrá lá hoje pra tirá mais um pau? Foi subornado ou não foi? [...]... E depois todo mundo ficou sabendo que eles se venderam por três mil réis. (João de Páscoa). Essa opção do funcionário do órgão, de estender os limites da área numa direção e reduzí-los na outra, não aparece justificada em nenhuma parte da documentação consultada. Seu efeito, no entanto, foi muito claro e alcançou grande duração: criou os limites da área e, simultaneamente, conferiu um novo status legal não só à população que era objeto da relação tutelar, como àquela que lhe avizinhava e que, muitas vezes não se distinguia dela com clareza. A evidência da picada de terra e do travessão de arame que se interpôs a elas não separava apenas suas terras, mas as dispunha em status sociais e jurídicos diferenciados. Criava não só uma área de domínio da União mas também categorias sociais: índios e não-índios, índios e posseiros. Um grande número de pequenos camponeses e criadores não-indígenas que exerciam suas posses - sem registro legal - sobre aquelas terras por gerações, em lugar de serem retirados, são absorvidos e transformados em arrendatários das terras em que já cultivavam, de acordo com os princípios estabelecidos pelo órgão para a valorização do patrimônio indígena (Cf. capítulo 2/1). Em 1954, porém, depois de várias situações em que se recusavam a pagar os “foros”, aqueles camponeses, "pequenos proprietários" ou "condôminos", como aparecem auto-referidos na documentação de época, transformados em "arrendatários", negaram-se definitivamente a continuar pagando a renda sobre as terras nas quais trabalhavam e iniciaram sucessivas tentativas de reversão de seu novo estatuto jurídico e da realidade Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 119 instituída no local pelo SPI. Primeiro através do pedido de anulação da ação demarcatória daquele órgão, que tramitou durante mais de dez anos e foi perdido em 1965. Depois, em 1966, através do pedido de reconhecimento do seu direito ao "uso capião", em que perderam novamente. Esta última ação, no entanto, ao mesmo tempo em que deu ganho ao grupo indígena, recusou-se a concssão de "restituição de posse" das terras dos "arrendatários", requerida pelo órgão indigenista (agora já sob a sigla FUNAI) e que implicaria na expulsão definitiva dos posseiros do local. Dessa forma, a ambiguidade entre direito e domínio é mantida, já que ao dar ganho de causa à FUNAI, reconhece o direito indígena à terra, mas ao negar a "restituição de posse", também reconhece a legitimidade da situação dos posseiros. Ambos passam a reivindicar a decisão da justiça no reconhecimento de seus direitos e a situação permanece nessa dualidade, pontuada por conflitos, até 1984, quando é organizado um Grupo de Trabalho da FUNAI para realizar uma revisão da área Pankararu. O relatório resultante do GT de 1984 propõe ao órgão corrigir a diminuição realizada na área pretendida em 1940, abarcando todo o quadrado maior, com exceção de um pequeno trecho na sua face leste, na qual foi feito um corte para deixar de fora a cidade de Tacaratu, elevando os 8.100ha para 14.294ha. Com relação à área em litígio no vértice sudoeste, o GT realiza o levantamento fundiário das posses, com fim à desapropriação dos "invasores", como aparecem classificados genericamente num documento da FUNAI sobre o acompanhamento das terras indígenas de todo o Nordeste (DOC.:43). Essa proposta no entanto é recusada no Ministério da Agricultura e, num acordo com as lideranças indígenas (cacique, pajé, presidente da associação comunitária), essas trocam o acréscimo da área ao norte e ao leste pela promessa de imediato "desintrusamento" do antigo trecho em litígio. Em 1987, a mesma área demarcada pelo SPI é então homologada, agora pela FUNAI, sem que a promessa de "desintrusamento" fosse cumprida. Apenas em 1993, por força de uma ação civil pública movida pela Procuradoria da República contra a União, FUNAI e INCRA, a Justiça decide-se pela retirada de doze famílias de posseiros, identificados como suas principais lideranças, na tentativa de viabilizar as demais retiradas. Esses posseiros, no entanto, recorrem e ganham a suspensão da decisão, voltando a situação à mesma indefinição anterior. 3 Essa rápida descrição da situação jurídica da terra Pankararu parece suficiente para demonstrar a necessidade de uma distinção operacional entre terra e área (LEITE,1993) que nos permita continuar pensando a geografia jurídica sem confundir o domínio indígena com sua realidade estritamente legal. Algumas vezes o acompanhamento da situação de uma terra indígena através da massa documental, ao mesmo tempo redundante e lacunar produzida pela FUNAI, esbarra na dificuldade de distingüir as múltiplas dimensões do território indígena. A distinção analítica entre área e terra permite discriminar o conjunto de atos administrativos do órgão indigenista, operadores da definição e da gestão de um determinado recorte administrativo sobre o espaço, do conjunto de eventos que se operam naquele recorte espacial ou que tem impacto físico sobre ele, incluíndo a arena de conflitos políticos pela re-definição de seus limites e dos limites daqueles atos administrativos. Assim, no caso Pankararu, como em muitos outros35, existem diferentes propostas de limites, difrentes situações no processo administrativo que desenham áreas distintas do 35 Conferir, por exemplo, o resumo em forma de listagem apresentado no ATLAS DAS TERRAS INDÍGENAS DO NORDESTE, onde é possível perceber a existência de três áreas correspondentes a uma mesma terra Geripancó, duas para a terra Tuxá, três para a terra Potiguara, duas para a terra Tapeba, três para a terra Tingui-Botó e cinco para a terra Xukuru-Kariri. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 120 ponto de vista jurídico e que podem mesmo ser fisicamente descontínuas, sobrepostas ou paralelas quanto ao seu encaminhamento. O que lhes dá unidade, entretanto é o fato de estarem referidas a uma mesma realidade sociológica, a terra indígena36. Na situação Pankararu, uma única terra é dividida em duas áreas, que têm existência em diferentes propostas legais e que, como veremos a seguir, acabam ganhando uma realidade política inesperada, mas sem compor em nenhum momento com os interesses dos citados posseiros. É justamente no seu ponto de sobreposição que se localiza a área crítica do conflito fundiário local. A situação complica um pouco mais quando a indefinição jurídica emerge da terra e atinge os corpos, como é caso de um dos principais argumentos das lideranças do grupo de posseiros-ex-arrendatários-invasores da área indígena. Argumentam existirem famílias descendentes de seus ancestrais casadas dentro da aldeia e hoje consideradas indígenas, da mesma forma que existiriam muitas famílias de posseiros descendentes de índios, mais frequentemente de índias, casadas com não-índios e transferidas para fora do que hoje são os limites da área indígena: ex-índios-posseiros-exarrendatários-invasores (!). De fato, esta não é uma situação particular da área Pankararu mas, como foi demonstrado por Peres (1992), desde a década de 1920 o SPI via o recurso ao arrendamento de terras indígenas como uma forma de estender sua malha tutelar à população sertaneja, cumprindo, sob a forma de um novo padrão de mediação de conflitos, parte dos objetivos retirados do órgão com a sua passagem de Serviço de Proteção aos Índios e Locazização de Trabalhadores Nacionais - SPILTN, para apenas SPI. Geografia Ecológica. 1 A repartição ecológica da região sertaneja onde se localiza a área indígena Pankararu não é imediatamente classificável segundo as diferentes tipologias de regiões naturais. Como chamaram a atenção Andrade e Madureira (1981), as regiões internas ao estado de Pernambuco precisam ser compreendidas com relação ao processo histórico de penetração econômica a que já fizemos referência. Num primeiro momento, que chega até meados do Império, o estado de Pernambuco era repartido em apenas duas regiões bem definidas, a de mata, dedicada à produção de açúcar e a de sertão, dedicada à pecuária, ainda que desde sempre fosse possível identificar pequenas "ilhas" de utilização diversificada do solo. Essa repartição dual orientou também os traços gerais da distribuição da mão-de-obra, na primeira concentrando-se o uso de escravos negros e na segunda, a exploração da mão-de-obra juridicamente livre, com grande presença indígena. Tardiamente, no entanto, com a intensificação da exploração agrícola da Serra da Borborema e com o avanço dos meios de comunicação durante o século XIX, foram favorecidos os cultivo de mandioca, algodão, cereais e, mais tarde, de cana de açúcar, café e fruteiras, em detrimento do espaço antes totalmente dedicado ao gado. É nesse processo de transformação de parte do perfil da região sertaneja que surge a região hoje conhecida por agreste, criada através do próprio 36 Muitas vezes os processos jurídicos dos quais as áreas dependem se desenrolam em ritmos alternados, sendo influenciados pelo andamento uns dos outros, assim como pelas pressões do grupo por esse ou aquele direito ainda não reconhecido. Dessa forma, os conflitos reais orientam os processos legais que, por sua vez, informam as pretensões dos grupos e assim a delimitação da terra e a definição do arranjo territorial propriamente dito. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 121 avanço colonizador e ainda em expansão37. Por isso, muitos dos viajantes que achamos na busca de fontes descritivas da região estudada quando se referiam ao sertão ou ao alto sertão na maior parte das vezes não alcançavam grandes distâncias do litoral, se tomarmos os referenciais de hoje, ficando Tacaratu e arredores totalmente intocados por esse tipo de literatura. Assim, a antiga região sertaneja é hoje denominada caatinga e subdividida entre agreste e sertão, cujos limites são desenhados pelo maciço da Borborema, que divide o estado de Pernambuco duas vezes, através de duas cadeias de montanhas quase paralelas que cortam-no obliquamente no sentido Nordeste-sudoeste. O primeiro e mais fundamental desses cortes é o que separa as duas grandes regiões da zonas da mata e da caatinga, o segundo é o que divide a caatinga em sertão e agreste. Ao sul do estado essas duas linhas de serras atingem a sua maior penetração, levando a zona da mata e o agreste pelo interior do estado. As serras que separam mata e caatinga alcançam entre 500 e 700 metros, dividindo brutalmente a paisagem e sucessivos terrenos em brejos úmidos e chapadas desprotegidas que formam pequenos desertos e minúsculos oásis. As serras que dividem agreste de sertão podem alcançar até 800 metros de altitude, funcionando como importantes divisoras de águas que separam as bacias do atlântico e do São Francisco (Vasconcelos Sobrinho,1949). Elevação que tem origem nas formações primárias dos Cariris ao norte, essa segunda linha de serras espalha-se em diferentes direções ao sul, formando, numa dessas derivações, a Serra de Tacaratu, que penetra estreita e solitária o sertão até encontrar-se com o leito do São Francisco, na região do Moxotó, num ponto distante cerca de 300 km, em linha reta, do litoral pernambucano. Essa posição que ocupa no contexto da Borborema pemite que a Serra de Tacaratu carregue consigo umidade, na forma de precipitações que alimentam pequenos brejos no interior de seus contrafortes em pleno sertão, configurando, por sua vez, uma sub-região específica da região sertaneja do Moxotó. Rica em argila, esta sub-região tornou-se ao longo da dácada de 1940 a maior produtora de feijão de Pernambuco, com safras de mais de 50 mil sacas, além da produção comercial mais modesta de algodão, e da cana-de-açúcar para consumo local (Vasconcelos Sobrinho,1949) manufaturado em pequenos engenhos de rapadura, açucar mascavo e cachaça, numa diversificação que a tornava muito distinta do litoral, principalmente no que concerne à mão-de-obra (figura 4). 37 "À proporção que se torna mais povoada e que a área agrícola ou de pecuária semi-intensiva se expande para o oeste, o agreste cresce em detrimento do sertão. A microrregião de Arco Verde por exemplo, que em 1968, ao ser estabelecida, era considerada sertaneja, a partir de 1978, ao serem criadas as mesorregiões, foi considerada de agreste. Dentro de alguns anos certamente, a microrregião do Alto Pajeú também será transferida para o agreste, isto porque as regiòes não são naturais, mas o resultado da ação da sociedade e do seu processo de evolução" (ANDRADE & MADUREIRA,1981). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 122 Depois de 1985, o município de Petrolândia passou a fazer parte , segundo a regionalização do IBGE realizada naquele ano, da microregião do Sertão do São Francisco, composta também pelos municíoios de Afrânio, Belém do São Francisco, Cabrobó, Floresta, Orocó, Petrolina e S. Maria da Boa Visa. Contudo, a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaparica alterou essa classificação e a partir do censo de 1990 o município de Petrolândia passa a fazer parte de uma nova microregião, que leva o nome da Barragem. Essa região constitui um dos pontos mais secos do Nordeste, onde as chuvas, concentradas entre novembro e maio, oscilam em anos "sem seca", por volta de 400mm (IBGE apud DOC.:44) 2 Um desses pequenos brejos, formado pela vaga aberta em meio aos últimos contrafortes da Serra de Tacaratu (mais conhecida pela população local como Serra Grande), ganha a forma de um anfiteatro, com sua cabeceira à leste abrindo-se no sentido oeste em direção às margens do São Francisco. Este pequeno "oásis verdejante", que seviu para a localização do aldeamento de Brejo dos Padres, é um ponto avançado do agreste em plena área sertaneja, contrastante com a paisagem em torno, marcada por uma pecuária ultra-extensiva e articulada, até meados deste século, a uma agricultura de subsistência em geral pouco expressiva. No centro deste anfiteatro, os missionários criaram o "cemitério Pankararu" a partir do qual, como vimos, estende-se o grande quadrado da área indígena. As mudanças de infra-estrutura decorrentes da instalação das UHE de Paulo Afonso e Itaparica e mesmo antes, quando das frustradas tentativas de irrigação das margens do São Francisco pelo DNOCS na década de 1930, atenuam, aos olhos do viajante de hoje, o contraste entre o Brejo e seus arredores, onde se sucedem cidades e áreas de irrigação. Mas o relato de um observador de 1878 pode dar uma idéia mais precisa deste contraste em períodos anteriores. Os terrenos deste aldeamento são fertilizados por diversos riachos sendo o mais importante o denominado - Brejo dos Padres - Os planaltos se conservão sempre verdejantes, a Serra de Tacaratu que se estende por 36 kilometros, tendo a orla sedimentaria e a parte central mais elevada, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 123 de granito rica de pheldspato e mica ferruginosa. Donde resulta a uberdade do solo deste aldeamento, podendo ser cultivados todos os produtos da zona inter-tropical - No aldeamento, e , em muitos lugares proximos se encontram salitre (nitrato de potassa) e nas aguas que vertem das camadas sedimentárias, vem devolvido o sal gema formando grandes incrustrações. Limpidas fontes de puras e cristalinas aguas aqui se encontrão; benéfico refrigério para aquelles que viajão por este inhospito sertão, principalmente em epochas como a que infeliz e atualmente se atravessa, na qual o horrivel flagelo da secca, devasta esta província e mais quatro de suas ermans do norte!! Achei como mais acima disse, os terrenos da aldeia bem cultivados pelos índios, elles como os mais habitantes da região de Tacaratu, desconhecião os males que affligem o sertão desta província durante as seccas, viram-se em pouco tempo, nas mesmas tristes circunstâncias de numerosos retirantes que invadindo os terrenos, na sua passagem pela aldeia, em uma noite tudo destruirão, obrigando por este modo aos índios, implorarem socorros à comissão, que na Villa de Tacaratu, os distribuia por ordem do Governo Imperial. Aboletados na aldeia, na villa, nos seus subúrbios e pela estrada que segue para Pyranhas, a margem do Rio de S. Francisco, encontrei para mais de oito mil desses infelizes famintos, maltrapilhos e muitos em tal estado que mal podião promover o passo. Triste e repugnante espetáculo. (DOC.:6) 3 Apeasar da designação "Brejo dos Padres" referir-se históricamente a toda a área do aldeamento, o brejo é um recorte ecológico retangular no interior daquele quadrado jurídico. Ao ultrapassar os contrafortes da serra que dão forma ao anfiteatro "verdejante", o quadrado da área de 14290 ha inclui também outras duas regiões ecologicamente distintas, uma ao sul e outra ao norte do Brejo. Para distinguí-las entre si nos referiremos a elas daqui por diante como as seções norte, centro (o Brejo) e sul (figura 5). Ainda que esta não seja uma categoria nativa, nem administrativa, a diferenciação entre essas três seções (o termo foi escolhido por falta de outro melhor) é muito nítida para os Pankararu e para o órgão indigenista, como ficará claro ao longo dessas geografias. Por enquanto destacaremos apenas suas configurações ecológicas diferenciadas. Na seção central, que compõe o retângulo irregular mais profundo do anfiteatro, encontramos a paisagem que o relato acima descreve: uma terra bastante úmida e escura, alimentada por quatro fontes d'água que nascem na cabeceira dos contrafortes e que , antes das obras de canalização realizadas ao longo da última década, formavam um pequeno rio que escorria até a estreita saída desse anfiteatro, procurando desembocar, quando a seca permitia, no São Francisco. Uma região rica em fruteiras, em especial as mangueiras, goiabeiras e pinhas, que podem complementar a renda familiar de seus moradores em épocas menos secas. Como a qualidade do solo permite plantar de tudo, desde o milho e os diferentes tipos de feijão até a cana, introduzida ali em inícios do século passado e que por muito tempo alimentou pequenos engenhos de índios, não-índios (Cf. Capítulo 1/1) e do SPI (Cf. Capítulo 2/1) na fabricação de "mel", garapa e rapadura. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 124 Ultrapassando esses contrafortes, do lado de fora do anfiteatro, a paisagem muda bastante. Não existe mais a proteção natural que permite a concentração e precipitação das poucas nuvens que chegam do litoral e a secura quase permanente torna a terra branca, arenosa, quando não dura e pedregosa. Na seção sul, a encosta da serra desce de uma única vez, em curvas de nível largas que formam pastos naturais. Duas fontes d'água hidratam um estreito trecho dessa seção, umidecendo a pequena depressão que depois volta a elevarse seguindo três ou quatro quilômetros secos até as bordas da área. Nesta parte regada, cerca de um terço de toda a seção, planta-se feijão e milho, ficando os dois terços de encostas restantes dedicados à mandioca. Sua importância para os Pankararu está no papel que essa região desempenha, pois além de reserva de madeira, é também onde floresce o umbú, fruta natural da região, quase um símbolo étnico, central na mitologia de suas festas. Do lado externo à área homologada, ao norte dos contrafortes, a serra não desce de uma única vez, mas desenha degraus e muitas valas que chegando ao seu ponto mais baixo voltam a subir, formando uma espécie de estreita "barriga" antes de dar continuidade ao contraforte. A forma acidentada dessa seção dificulta muito a agricultura, tornando-a plenamente utilizável apenas para a mandioca, ainda que seus moradores nunca percam a oportunidade de plantar os tradicionais feijão e milho. Por outro lado, torna-a rica em estreitas e altas formações rochosas, às vezes de aspecto imponente, conhecidas como "serrotes". Nesta seção não há nenhuma fonte d'água natural, o que faz com que seus Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 125 moradores dependam quase exclusivamente das chuvas, que são complementadas, com dificuldade, por caminhões-pipa que eles mesmos pagam ou que, próximo às eleições, são fornecidos pelo poder público. Na ausência desses dois recursos, o cotidiano é feito das "carradas" de potes d'água entre a serra e o Brejo, no lombo do jegue ou na cabeça de mulheres e crianças, que assim começam os seus serviços matinais às 4:00 e os terminam às 7:00, depois de duas viagens. Tendo em conta o desenho jurídico, essa seção da terra Pankararu fica em grande parte fora da área homologada em 1987 e dentro da identificada em 1984. Geografia Mítica. 1 Os limites da área indígena Pankararu são normalmente designados pelos próprios índios como "trilho", "trilha", "linha", ou "círculo". Segundo uma perspectiva tradicional e corrente, o desenho da área é um grande círculo que tem por centro o cemitério do Brejo dos Padres, de onde parte uma linha de uma légua em raio. Esta forma de designar a área se mantém, ainda que progressivamente venha se popularizando o conhecimento dos documentos oficiais que demarcam a área como um quadrado. Essa distorção da percepção espacial foi explorada num trabalho recente (Ribeiro, 1992) como expressão direta de um aspecto da cosmologia Pankararu, expressão de suas estruturas de pensamento. O referido trabalho descreve a narrativa de uma índia que explica a área a partir de sua repartição em três círculos concêntricos, onde o menor corresponderia ao mesmo tempo ao centro geográfico da área e ao conjunto de moradores mais puramente índios, o círculo intermediário corresponderia aos moradores "misturados" e descendentes da mistura com não-índios e o círculo maior corresponderia às franjas geográficas da área, tomadas na sua maior parte pelos posseiros. Um diagrama que explora a idéia de um grupo compacto que vai progressivamente sendo assediado pelo avanço civilizatório, que lhe toma as terras e a própria etnicidade. Um movimento de fora para dentro onde a resistência ao assédio localiza-se num centro territorial intacto política e etnicamente. Dessa descrição a autora parte para suas análises sobre a forma circular e sua repartição em metades que sustentariam uma abordagem estruturalista dos "mitos" que recolheu em sua estadia em área. Sua análise toma tanto o mito narrado quanto a cultura Pankararu e sua organização espacial como textos, que se somam num único texto, prontos a serem lidos, repartidos e recombinados, segundo regras internas de oposições duais. Não me ocuparei aqui de uma leitura destas análises estruturais, mas da discussão com os seus pontos de partida teórico e factual: com sua opção em trabalhar os mitos, a organização espacial e a "cultura Pankararu" como texto, expulsando daí todo traço de dinamismo, além de sua base empírica. Tais elementos , recolhidos sem o devido posicionamento das “vozes” acarreta uma tomada de posição, consciente ou inconsciente, na disputa política nativa, ao consagrar como étnicos símbolos na verdade faccionais. 2 Neste caso, a opção em tomar a cultura como texto significou trabalhá-la como artefato, congelando as narrativas para apreende-las apenas a partir de uma análise sintática de seus componentes, desconhecendo sua qualidade pragmática, fundamental para suas transformações semânticas, que são, então, desconsideradas. Mas não se trata de um debate entre posições simplesmente alternativas, opções teóricas inocentes, já que as Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 126 considerações que a autora tece podem ser contraditas se considerarmos tais narrativas não como textos, mas como enunciados ou discursos, estes sim, indissociáveis dos sujeitos de enunciação e de seus jogos de posição. Como acontece no caso de Ribeiro, a opção pela metáfora do texto pode levar ao apagamento do lugar dos sujeitos produtores e ao hipertrofiamento do sujeito leitor, que então domina aquele universo de significados como um exegeta domina um único texto. Ao contrário dos exegetas, no entanto, o etnógrafo antes de decifrar, repartir em pares de oposição e hierarquizar o "texto" cultural, é obrigado a investir no trabalho prévio e fundamental de "estabelecer o texto", a partir da reunião de enunciados dispersos numa forma organicamente coerente, linear, continuista e limpa de todas as vozes marginais, de todas as rasuras e anotações laterais, que reintroduziriam os sujeitos produtores. Só assim o texto cultural pode ser apresentado como produto de uma cultura, descontextualizada, a-temporal, unitária, objetivada. Romper com essa unidade significa correr o risco de abdicar da elegância do discurso científico que disserta sobre o outro com pleno domínio de sua ontologia, significa sobretudo abdicar da confortável inocência que vê o trabalho etnográfico como a pura "busca de informações". Num texto sobre feitiçaria entre camponeses franceses contemporâneos, Favret-Saada (1977) deixa claro como essa busca deve levar em conta que os "informantes" estão inseridos em relações sociais e em jogos de posição, status e poder que encontram nos seus enunciados tanto a manifestação de um estado deste jogo, quanto mais um dos seus lances. Nesses casos, para apreender o sentido do que é dito, o etnógrafo deve compreender que ele também, no momento em que entra nesse espaço social, passa a ocupar um lugar nos jogos de posição e que o que lhe é dito responde a uma avaliação de quem fala sobre a posição que ele suposta ou realmente ocupa. Com isso, as questões que Favret-Saada se coloca procuram menos o deciframento ou exegese dos textos nativos, do que a compreensão dos efeitos sociais de tais enunciados e a "descrição do sistema de lugares" (idem) em que estão inseridos, restituindo aos textos nativos sua realidade de discurso. A referência que já fizemos (Cf. Capítulo1/1) à abordagem do mito por Detienne (1980) ajuda-nos aqui também a compreender a necessidade de relativizar relatos de memória mitificantes e de nos afastastarmos das concepções do mito impressas desde o século XIX, em que ele surgia como uma totalidade cujo objeto era um relato de origem, passível de ser imobilizado em forma escrita, estabelecido num córpus de enunciados domesticados, que poderíamos, então, dissecar na busca ou de oposições binárias estruturantes ou de vestígios de um pensamento histórico contorcido e frustrado. Ao contrário, o mito, na sua necessária relação com o oral e na sua natureza de memória aberta, está permanentemente sendo reconstruído pelas trocas sociais. Abandonamos então o plano da estrutura, do Mito, para ingressar no fluxo, no que foi chamado mythisme. No nosso caso, no entanto, trata-se de analisar a memória através da observação das sucessivas metamorfoses das palavras e recitações, não sob diferentes gerações, como sugere Detienne aos antropólogos, mas sob diferentes espaços sociais. Trata-se de abri-lo às possibilidades da polifonia, tanto como problema quanto como representação, conforme as propostas dialógicas que pretendem revelar o que, do empreendimento etnográfico, foi obscurecido pelos complexos processos da escrita (MARCUS,1991). Para isso é preciso em primeiro lugar situar a "voz" que nos faz o relato mítico, isto é, contextualizar e definr os fluxos de associações que operam no discurso. 3 Pois bem, para a entrada de um antropólogo numa área indígena no Brasil é necessária uma autorização da FUNAI que, após fazer uma consulta ao CNPq e aprovar a Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 127 entrada do antropólogo (processo que dura de quatro a seis meses), comunica imediatamento a visita ao respectivo posto indígena, orientando seu encarregado na recepção e acompanhamento do pesquisador. No caso Pankararu isso significa que o antropólogo é introduzido na área através da aldeia central do Brejo dos Padres, onde localizam-se o PI e as lideranças de maior destaque hoje. Ainda que o relato de Ribeiro não faça qualquer referência a isso, esse foi necessariamente o seu itinerário de "entrada em campo". Na minha primeira visita, no entanto, depois de uma avaliação feita com base nas escassas informações que possuía acerca do conflito fundiário que iria encontrar e das posições que os agentes do órgão indigenista vinham tomando nele, optei por evitar o itinerário oficial. Em lugar de entrar em campo através do seu núcleo políticoadministrativo, cheguei a ele por suas bordas, entrando em contato primeiro com as aldeias mais afastadas do centro, para progressivamente alcançar suas lideranças mais centrais, conseguindo finalmente, através delas, autorização para permanência no Brejo. Sofria também, apesar de todos os “sinais de alerta epistemológicos”, da expectativa de guardarme num lugar “fora” do jogo faccional, pelo recurso de tentar entrar na “área” da forma mais independente possível das mediações já estabelecidas. A ilusão do meio termo era possível porque estava trabalhando inicialmente com uma imagem de faccionalismo definido em termos bem nítidos, onde grupos de interesses aproximam-se de grupos corporados. Na situação Pankararu, no entanto, o dilema faccional operava por mecanismos mais discretos. Mesmo assim a estratégia adotada teve sua validade ao permitir-me uma maior clareza e controle sobre os compromissos em que ia me enredando. O seu maior efeito prático foi o de me fazer disponível num mercado de alianças, onde as diferentes posições internas à aldeia, ou externas a ela,entre os posseiros e “posseiros potenciais”, puderam testar o meu valor de uso. Com isso tive acesso a uma grande variedade narrativas, ora alternativas, ora opostas àquelas que estavam disponíveis na posição oficial do Brejo dos Padres, com as quais também tive contato. Dentre essas narrrativas surgiu uma que se opunha simetricamente àquela apresentada por Ribeiro como a narrativa fundamental da "cosmologia Pankararu" e que permitia não exatamente uma “reanálise etnográfica”, mas um novo ponto de partida etnográfico: um outro mito colonial, inteiro, articulado, expressivo, que inverte a lógica do anterior e surge como mais um duplo narrativo, como no caso Tarraxá-Cavalcante (Cf. Capítulo1/1). Nesta segunda narrativa da alienação colonial o avanço sobre suas terras não teria se dado de forma progressiva e de fora para dentro, mas de forma abrupta pela tomada do próprio núcleo territorial. Se por toda a terra pankararu a história das "linhas" é conhecida e recontada, ligados que estão, como numa "comunidade afetiva", por uma mesma memória da violência, no "Brejo" as narrativas falam do apossamento e da mistura como um erro cuja causa foi a ingenuidade de seus antepassados, que deixaram que os posseiros fossem chegando aos poucos, tomando emprestado um pasto, um bebedouro, usando uma fonte d'água, até que os índios se vissem forçados a sair das suas terras, expulsos pelo gado e pelas "linhas", que de certa forma já seriam resultado desse processo. Daí a relação entre centro e bordas apontada no texto de Ribeiro. Ao contrário destas, as narrativas encontradas entre a população das serras na seção norte, descrevem esse mesmo momento como uma intervenção dada num só golpe pelos poderes locais, que teriam repartido as melhores terras, isto é, as terras do "Brejo", em linhas de lotes e as distribuído entre não-índios que por isso passaram a ser conhecido como "linheiros". Parte dos índios teria fugido imediatamente para outros locais e parte teria se refugiado nas serras. Deste segundo grupo, uma parcela teria começado a descer das serras e retomar as terras expropriadas através de alianças com o invasor, na forma de casamentos, relações de trabalho ou da pura submissão, enquanto uma segunda metade, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 128 irredutível, trocava as facilidades ecológicas do Brejo por uma irredutibilidade étnica e moral. Por isso, as famílias expulsas do centro seriam as mais puras e as do Brejo, as mais misturadas. Os índios do "Brejo" de hoje seriam, assim, descendentes daqueles que teriam cedido às exigências e à mistura com os "linheiros", que teriam feito concessões aos "membros" de Tacaratu, assim traindo "a nação", "braiando"-se com o seu dominador. Mistura que teria deixado rastros nos corpos, marcas corporais e religiosas de uma determinada versão da história e de uma determinada repartição do espaço social. Temos então dois mitos de colonização opostos. Um descreve a etnicidade protegida pela existência de um centro territorial resguardado do avanço colonial, esboçando uma história controlada e progressiva desse avanço. Outro descreve essa história como um assalto violento que implode o centro territorial como referência da etnicidade, empurrando-a para as franjas, expondo-a à fragmentação e minando-a através daqueles que optaram por abdicar da etnicidade em nome dos recursos escassos, obtidos a partir daí, através da "mistura" (figura 6). Tais narrativas não são apenas expressão de concepções abstratas sobre o universo, atualização de estruturas mentais ou versões pretensamente objetivas de um fato passado, mas são, sobretudo, discursos sobre o território e a etnicidade. Desencontros entre diferentes concepções do ser Pankararu, que definem papéis nas lutas por classificações, lutas por se fazer ver e fazer crer, por dar a conhecer e se fazer reconhecer, por impor a definição legítima das divisões do mundo social e com isso fazer e desfazer grupos (BOURDIEU,1989). Organizam o espaço e estabelecem projetos, já que um território é criado também graças a um fenômeno de transação entre o passado e o devir (BAREL,1986), entre o sofrido e o desejado. A memória, aqui também em pleno trabalho de mitificação, reapropria-se dos fatos do passado, que por sua vez são inscritos e reinscritos no espaço vivido. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 129 Geografia dos homens 1 Como já fizemos referência, os pankararu se distribuem basicamente segundo duas classificações, os troncos e as aldeias, ambas relacionadas à organização das famílias, histórica no caso da primeira e espacial no caso da segunda. A classificação dos grupos de famílias em status diferentes através da sua ligação a "troncos" familiares que se dividem entre os "antigos" e os "recentes", não corresponde a qualquer produção de segmentações, classes ou linhagens, já que ela opera uma dicotomia básica entre aqueles que descendem de índios "puros" e aqueles que descendem de índios "misturados" ou "braiados", em referência a uma forma de organização que é mais histórica que estrutural. Por isso, essa distinção não chega nem a pôr em risco a identidade indígena dessas famílias de troncos mais novos, já que participam plenamente da repartição da terra, dos rituais e da organização política, nem a criar uma forma de organização da sociedade que tenha repercussão sobre as relações cotidianas ou de parentesco, ficando seu uso relacionado à (des)classificação de alguém ou de algum grupo familiar em ocasiões de oposição especialmente acirrada. A própria distinção entre as famílias de cada tronco não é muito clara e surge como mais um objeto de disputas: ao perguntarmos sobre as famílias que seriam de tronco velho, quase sempre recebe-se respostas imediatas, que relacionam vagamente duas ou três bem conhecidas, mas ao perguntarmos sobre as famílias que seriam mais novas o assunto torna-se delicado, podendo algumas vezes implicar num interdito (ao menos para um observador externo), por estar quase sempre associado ao lugar dos "negros" (Cf. cap.4). 2 Abaixo dos "troncos" está a família, que é a classificação social que funciona cotidianamente, definindo aqueles a quem se pede ajuda, a quem se acompanha nas definições políticas, com quem se planta, perto de quem se mora, e com quem se compartilha a comida e o trabalho da "farinhada". Sua organização está diretamente ligada à disposição espacial das casas, que distribuem-se segundo dois tipos de disposição: ou agrupadas lado a lado, em linha reta ao longo das principais vias de acesso internas à área, ou em grupos de casas de uma mesma família, cuja disposição tende à forma circular, com o foco gravitacional na casa do patriarca. Os agrupamentos do primeiro tipo estão bem delimitados geograficamente: localizam-se ao longo da estrada que vai da entrada da área indígena até o sopé da serra, onde dividem-se indo por um lado para o posto indígena e por outro para o "terreiro do nascente", passando por todo o conjunto de prédios públicos do Brejo, como o "centro de produção artesanal", a igreja e o cemitério, a casa de farinha coletiva, o clube, as pequenas "biroscas", as duas escolas, a farmácia, a merendeira e as caixas d'água (figura 7). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 130 Os agrupamentos do segundo tipo distribuem-se por toda a área indígena, inclusive pelos terrenos que se seguem imediatamente a essas primeiras fileiras de casas em forma de arruamentos, subindo todo o sopé da serra, ocupando-a e se estendendo até os limites da área e mesmo depois, principalmente no sentido norte, onde se confundem com os agrupamentos de não-índios. Tal organização das residências reune famílias extensas ligadas por laços de descendência e voltadas para um espaço comum, capitaneado por uma casa principal. Essa casa, de um patriarca ou de uma matriarca, a princípio, está na origem do agrupamento, tendo-se seguido a ela as casas dos filhos, netos e mesmo de irmãos e sobrinhos. Ao formarem uma unidade mais ou menos definida, tais agrupamentos desenham círculos onde o espaço interno, para onde normalmente estão voltadas, pode assumir o lugar de convergência das atividades de lazer e ritual daquele agrupamento familiar (figura 8). Como algumas vezes esses patriarcas são também "pais de Praiá", esses espaços internos servem como terreiros onde se realizam os Torés. Neste caso, então, ultrapassam as funções de lazer familiares, tornando-se referência religiosa para um cículo de vizinhos de extensão variável. Como já havíamos mencionado (Capítulo2/2), são para esses Terreiros que podem convergir as lealdades mais próximas, dependendo da capacidade do patriarca principal de conseguir manter ao redor daquele núcleo o maior número de "pais de Praiá", ou mesmo de concentrar no seu próprio terreiro um grande número de Praiás, que comporiam um mesmo "batalhão", tão mais factível quanto maior o número de parentes que permanecem ligados ao núcleo original. Além disso, tais famílias, ao manterem laços mais extensos e constantes sob a influência de uma casa principal, mantêm também uma interação cotidiana mais intensa, com a possibilidade de compartilhar da distribuição de gêneros e insumos Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 131 agrícolas, da disciplina dos jovens e das crianças etc., passando a servir como referência para a administração do posto indígena onde o "pai" da casa principal serve de interlocutor privilegiado. Esse modelo de distribuição espacial das famílias em núcleos residenciais não difere muito daquele que é corrente entre a população regional, mas ao ser aplicado ao contexto Pankararu, produz efeitos particulares em termos de organização política e ritual que estão na origem do formato aldeia: unidades político-administrativas de uso mais comum tanto pela população quanto pelo posto indígena, sendo também a base de referência dos censos feitos na área, além de ser, teoricamente, a unidade básica de onde saem as "lideranças". Sobre as aldeias é necessário fazer referência à dificuldade em se estabelecer com precisão um mapa com seus limites, localizações e denominações. De fato, uma mesma pessoa pode, em momentos diferentes ou segundo uma maior ou menor insistência do pesquisador, identificar num mesmo trecho da área um número diferente de aldeias. Em primeiro lugar elas não apresentam limites precisos; em segundo, o termo aldeia é também aplicado pelos Pankararu na designação de realidades de diferentes escalas, valendo para toda área indígena, para os seus maiores recortes internos, de base ecológica (os recortes aos quais nos referimos como “seções”) e para recortes menores de base residencial e familiar. Assim, a dificuldade em distingüir e mapear as aldeias é saber quando um seguimento interno ao que incialmente foi apontado como uma única aldeia pode também ser considerado como tal. Não se trata de uma repartição por segmentação, onde uma designação maior conteria designações menores, progressivamente concêntricas. Também não existem outras categorias para a identificação dos recortes e pertencimentos espaciais além das aldeias, nem uma hierarquia dos recortes. As unidades que hoje são designadas como aldeias não se distinguem tanto em função de fronteiras territoriais quanto a partir de uma série de laços de respeito e lealdades, a princípio bastante discretos, que as aproximam mais da imagem de áreas de gravidade de núcleos relativamente móveis. Como os laços de aliança, respeito, lealdade e frequência ritual variam no tempo ou segundo as avaliações feitas pelos informantes, a distinção entre as aldeias, quando procuramos um desenho mais detalhado depende, numa boa dose, do atual estado das relações. Assim, ainda que remetam a recortes espaciais, tendo por isso certa inelasticidade, essas áreas de gravidade podem ser mais ou menos extensas, podem ser subdivididas em unidades menores ou reagrupadas ao longo do tempo, dependendo dos arranjos de autoridade a que já fizemos referência (Capítulo 1/2). A dificuldade classificatória surge apenas quando se pretende dar uma Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 132 função administrativa a essas áreas de gravidade, denominando-as de aldeias, conforme o vocabulário tutelar. Quadro 12 Incidência das designações de aldeias e suas variações de população segundo quatro censos. POPULAÇÃO ALDEIAS Brejo dos Padres Olaria Saco dos Barros Bem-querer Caldeirão Caxeado Saco do Romão Serrinha Macaco Espinheiro Barrocão Logradouro Cardoso Tapera Carrapateira Agreste total Déc. de 1950 (DOC.:45)) 1236 1974 (DOC.:46) 1245 1975 (DOC.:31) 1244 1984 (DOC.:42) 1329 - 116 158 116 158 522 - 100 21 21 68 100 21 68 175 16 26 - 316 260 1812 220 120 141 81 40 93 40 44 2508 220 120 141 81 17 23 93 40 44 2486 271 362 95 175 173 237 128 3509 Num registro realizado provavelmente por um encarregado de posto na década de 1950, por exemplo, a área indígena era repartida em apenas três aldeias (DOC.:45). Outros dois registros censitários, de 1974 e 1975 (DOC.:46 e DOC.:31), chegaram aos mesmos números para as seções norte e sul, com uma pequena diferença para a seção centro, mas também com discordâncias quanto aos nomes das aldeias. Da mesma forma, o último censo por aldeia de que dispomos (DOC.:42) não coincide com o nosso próprio levantamento, apontando para um número e para nomes de aldeia diferentes (esses diferentes recortes registrados pelo órgão oficial podem ser comparados no quadro 12). No processo de coleta de informações para a montagem do mapa de aldeias (figura 9) ficou claro que a posição ocupada pelos informantes orientava diretamente a sua percepção dessas repartições e que, apesar disso, efetivamente no Brejo ocorre um fenômeno de multiplicação das lideranças. Finalmente, que tais recortes podem fazer referência a um nível de agrupamentos maiores, pela prestação de lealdades. Este último ponto ficou especialmente claro quando a informação foi prestada por uma “informante” tão comprometida quanto Quitéria. Ao ser perguntada apenas sobre o nome das lideranças e a aldeia de origem, ela forneceu um quadro que claramente superestima a representação Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 133 da seção central e a sua unidade em torno de duas lealdades, elas mesmas ligadas entre si. Abaixo apresentamos a lista na ordem em que ela nos foi recitada, com o acréscimo apenas da seção a que cada uma das localidades citadas corresponde (quadro 13). Essas observações nos levam a dois processos contraditórios. A princípio é possível afirmar que os recortes e designações de aldeias mais detalhados se referem a conjuntos ampliados de residências agregadas que vão tomando importância numérica, espacial e ritual a ponto de merecerem, com o tempo, uma designação particular. Assim, as unidades político-administrativas mais claramente seriam fruto de uma progressiva autonomização de núcleos de sociabilidade bastante aproximados às famílias extensas e associados aos grupos de Toré. Mas, num sentido contrário a este, existe uma outra forma de criar recortes em termos de aldeias está associada ao surgimento de um novo tipo de autoridade estatutária, por incentivo do órgão indigensita, em meados da década de 1980, designadas genericamente como “lideranças”. Com isso, de forma aproximada ao que aconteceu com a fundação dos primeiros cargos estatutários de cacique, pajé e capitão, atribui-se um título e um lugar burocrático ao que antes era um tipo de autoridade informal e discreta. Por outro lado, abre-se um espaço puramente formal para a aquisição de status político, que passa ter um valor em si e não mais referenciado às funções próprias das autoridades de fundo moral e ritual. No caso das “lideranças”, esse efeito é ampliado pela relativa desimportância burocrática do título e pelo númeo virtualmente ilimitado de lideranças que podem existir numa mesma área indígena. A chave da contradição entre estas duas formas de se recortar aldeias pode, no entanto, ser parcialmente encontrada na diferença entre os dois tipos de agrupamentos a que fizemos referência inicialmente. As famílias e grupos de residência reunidos nos arruamentos ao longo da estrada que leva à igreja do Brejo e dela ao Posto Indígena e à “fonte da nascente” tendem à (ou manifestam a) fragmentação de uma urbanização seminal e à individualização das famílias nucleares, voltadas mais para um espaço público que para um espaço familial e ritual. Nesses casos, há uma divisão socio-espacial das atividades, onde a morada, a roça e o círculo ritual não mais se sobrepõem no espaço. É nesta região que se encontram os “índios sem terras” que trabalham nas terras de outros índios, de posseiros ou fora da área, como rendeiros, “meeiros” ou diaristas. É aí que estão concentrados também aqueles que largaram ou complementam o trabalho na roça com trabalhos nas cidades próximas. De outro lado, o formato do arruamento não facilita que um núcleo familiar se desenvolva como núcleo residencial e é comum que os filhos dessas famílias se desloquem com relação à casa dos pais, avançando junto com o avanço das ruas, sendo absorvidos em núcleos residenciais fora do Brejo por meio do casamento ou ainda saindo da área indígena, em suas buscas de emprego nas cidades próximas, em São Paulo ou em outras áreas indígenas, às quais têm acesso via parentesco ou via empregos na FUNAI. Quadro 13 Lista de lideranças Pankararu a partir do Brejo em agosto de 1993 Nome Abílio Barros Aldeia Pebão Fernando Miguel dos Santos José Monteiro dos Santos Ciriaco Ciriaco lealdade “acompanha o pajé” “acompanha o pajé” “acompanha o pajé” Seção Centro Centro Centro Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 134 Marcelino Izidoro da Silva Júlio Izidoro da Silva Saco dos Barros Olaria Miguel Monteiro dos Santos Denésio Antônio dos Santos José João dos Santos Ospresios Mariano Antônio de Souza João Monteiro da Luz David Monteiro Neto José Manoel Oliveira José João dos Santos João Gomes da Silva Antônio do Nascimento Abílio Pedro dos Santos Herculano Pedro dos Santos José Torres da Cruz Honório Avelino dos Santos Germano Agenor Gomes Julião Antônio Moreno da Silva Hilda Bezerra Barros João Tomás Quitéria “acompanha o pajé” “acompanha o pajé” (o próprio pajé) Centro Centro Centro “cidade livre” “acompanha o pajé” Petrolândia “acompanha o pajé” Ospresios “acompanha o pajé” Riacho (o próprio Fundo cacique) Riacho “ac ompanha o Fundo cacique” Riacho “ac ompanha o Fundo cacique” Gitó “ac ompanha o cacique” Gitó “ac ompanha o cacique” Gitó “ac ompanha o cacique” Saco do Toco ? fora da área indígena fora da área indígena Centro Saco do Toco ? Centro Tapera Tapera ? ? Sul Sul Agreste Fontinha Fontinha ? ? ? Sul Centro Centro Tamarino Serrinha Brejo dos Padres ? ? ? Norte Norte Centro Centro Centro Centro Centro Centro Centro Centro Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 135 1 - Piancó 2 - Salão 3 - Lagoinha 4 - Mundo Novo 5 - Juazeiro 6 - Pedra de Amolar 7 - Pau Ferro 8 - Pau Branco 9 - Mata Burro 10 - Barriguda 11 - Umbuzeiro dos Bois 12 - Logradouro 13 - Serrinha 14 - Roça de Cima 15 - Barrocão 16 - Espinheiro 17 - Pedra Miúda 18 - Baixa do Lero 19 - Porteirão 20 - Folha Branca 21 - Pau d'arco 22 - Saco do Romão 23 - Brejo 24 - Saco dos Barros 25 - Bem-querer de cima 26 - Bem-querer de baixo 27 - Caxeado 28 - Caldeirão 29 - Formosa 30 - Marreca 31 - Tapera 32 - Brejinho dos Correias 33 - Carrapateira 34 - Olho d'água do Julião 35 - Salgadinho 36 - Gameleira 37 - Baubá A primeira e mais evidente consequência desta mudança na organização espacial das residências e na sua concentração no Brejo é a mudança que traz com relação aos arranjos de autoridade anteriores. Deixa de existir o tipo de autoridade que atua sobre uma família extensa reunida no mesmo núcleo residencial, ou sobre um círculo mais ou menos largo de respeito ligado ao exercício do Toré e a autoridade do chefe de posto emerge como centralizadora da regulação moral. Isso cria forte dependência com relação à intervenção direta do chefe de posto na resolução de conflitos entre vizinhos, na mediação com agentes externos ou na distribuição de gêneros. A proximidade, mas também essa diferença de organização social faz com que a maior parte do tempo de serviço do chefe de posto seja dedicada à tentativa de resolução destes pequenos conflitos gerados dentro do próprio Brejo, envolvendo disputas de quintal, bebida, ofensas etc., ao contrário do que ocorre com as outras seções, onde disputas menores são mediadas pelas autoridades formais ou informais de base familiar ou ritual. Isso ficou especialmente claro nas últimas visitas da administração regional da FUNAI à área indígena, que presenciei, motivadas pelos conflitos fundiários com posseiros das seções norte e centro, que foram tratadas em reuniões em separado. O constrangimento e certa irritação dos funcionários no caso da reunião realizada no Brejo veio justamente do fato de um grande número de “lideranças” usarem a reunião para tentar resolver questões internas e fazer queixas sobre o chefe de posto por ele não as conseguir resolver, passando para um segundo plano a questão do conflito com posseiros propriamente dita. 3 Voltando à repartição mais simplificada das aldeias que conseguimos montar com o auxílio de índios de diferentes localizações, observamos que, se destacarmos os desenhos Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 136 das três seções, conseguimos um efeito que podemos considerar como da projeção da experiência histórica sobre a organização espacial. A) Na seção central o desenho das aldeias aproxima-se bastante de um simetrismo que passou quase intocado ao longo dos últimos cem anos: linhas paralelas se cruzando em ângulos quase retos formam subdiviões mais densamente povoadas que as que podemos observar nas outras seções. Suas bordas coincidem com o desenho da linha de divisão de águas dos contrafortes da Serra Grande. Cortando essas aldeias e ligando todas entre si, desce o pequeno riacho que nasce na cabeceira do Brejo e o percorre até a cidade de Itaparica, enquanto paralelo a ele sobe a estrada que vem de Itaparica, “cidade livre” e Petrolândia e que termina no centro quase exato da área indígena. Por ser cortada pela maior e mais movimentada via de acesso à área, é nessa seção que se concentram as residências em forma de arruamento, com pouco espaço para plantio constante e apenas o suficiente para pequenas hortas e para as antigas áreas de pomar, onde floresce grande número de fruteiras que no verão complementam a renda das famílias. Associado a essa falta de terrenos de plantio, é nessa seção que mora a grande maioria dos índios que trabalham nas cidades próximas ou como "meeiros", diaristas ou rendeiros de outros índios, dos posseiros, ou de proprietários vizinhos à área. B) Na seção sul o desenho das linhas é mais simplificado, recortando unidades bem mais largas, mas também com os menores números absolutos de homens por aldeia. Suas terras são usadas na maior parte para pasto, mas existem trechos, em especial os que ficam próximos à concentração das fontes nascentes (e que no mapa surgem os mais repartidos e povoados: Tapera, Brejinho dos Correias e Carrapateira) que têm se mostrado bons para o plantio, atraindo índios das outras seções. Essa região fica fora das disputas relativas à mitologia das “linhas”, tendo uma ocupação recente, que remete no máximo à decada de 1940, servindo hoje como área de expansão. C) Ao contrário das outras duas, o desenho da seção norte é desordenado, formado por linhas divergentes que se cruzam em diferentes direções. Um desenho que adequa-se ao caótico roteiro das curvas de nível de um trecho encravado num estreito vale, mas também e Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 137 principalmente, um desenho que confirma a imagem memorialística da fuga das "linhas".Ainda que com uma área equivalente às outras duas, possui quase o dobro de repartições, mas uma densidade menor que a seção central. É aí que as unidades residenciais do primeiro tipo parecem ter maior força de organização sobre o espaço. No quadro abaixo é possível ter uma idéia do crescimento populacional diferenciado dessas seções, cabendo entre os anos 1940 e 1980, um crescimento de 15% para a seção centro, esgotada pelo aumento da densidade de moradias; um crescimento de 30% para a seção norte e, ainda que isso signifique pouco em números absolutos, um crescimento de 200% para a seção sul, que depois de 1984 foi ainda mais acentuado, com a retirada das últimas famílias de posseiros da região do Brejinho dos Correias. Quadro 14 Comparação do crescimento populacional das tês seções da áre indígena Pankararu. 2500 2000 1500 1000 500 0 déc. de 40 1975 1984 Seção Sul Seção Norte Seção Centro Geografia dos recursos. 1 A duplicidade da versão do mito colonial não responde apenas a discordâncias entre registros de memória, mas é resultado de uma determinada correlação de forças no presente e de um determinado projeto para o futuro, que procura justificação no passado. Para que essa transação entre passado, interesses presentes e devir fique mais clara, é necessário combinar as diferentes geografias vistas até agora com uma quinta geografia, marcada pela disputa na definição espacial dos recursos sociais e materiais disponíveis em área, representados pela ação do órgão indigenista oficial, mas também pela atuação direta ou indireta de outras agências governamentais e não-governamentais. A instalação do posto indígena em 1940 deu-se na seção central e ecologicamente privilegiada, o Brejo, acrescentando aos seus atributos ecológicos o de sede do órgão Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 138 tutelar e, progressivamente, o de sede política, até então inexistente. Isso, por sua vez, tornou-a a seção privilegiada na ordem de surgimento e concentração dos prédios públicos, basicamente escolas e farmácias, assim como da assistência mais próxima e constante da ação tutelar. As outras seções também vieram a ser atendidas com prédios públicos e serviço de assistência, mas ficaram sempre em segundo plano na ordem das implantações e no número de estabelecimentos e de funcionários. Assim, apenas no final da década de 1950 seria construído um prédio na Serrinha para dar lugar a uma casa de farinha “com dependências para a instalação de uma escola, sub-posto, e farmácia, para atendimento dos descendentes alí residentes, cujo número é superior a 300 e fica afastado da sede do PI aproximadamente 3 km.”, enquanto no Brejo eram construídas “casas indígenas, internato hospitalar de índios”, era feita a manutenção das máquinas da oficina de costura e eram adquiridas ferramentas para serem distribuídas aos índios (DOC.:47). A localização do posto determinava também a localização das cerimônias cívicas eventualmente acompanhadas de potatchs governamentais que contrastavam com a rotina de secas e falta de recursos do posto: “Foi comemorado solenemente neste PI a semana do índio [...] tendo sido distribuído entre os índios presentes, gêneros alimentícios, carne etc. como parte das comemorações. Foi iniciada a distribuição de enxadas e sementes de cereais aos índios para cultivo de suas terras, reina contentamento entre nossos tutelados pelas providências tomadas...” (MI:filme173,fotg.2035) Essa desigualdade de recursos nas diferentes seções, até mesmo em função da diferença de concentração populacional, durante muito tempo não ofendeu a paridade relativa entre as aldeias distribuídas por todo o "círculo". No entanto, na década de 1980, uma série de mudanças regionais afetaram esse equilíbrio local, acentuando as diferenças. 2 Até esta década a principal estrada próxima à área indígena era a que levava da antiga Petrolândia até Tacaratu e que cruzava quase toda a seção norte no sentido lesteoeste. Isso não só facilitava deslocamentos como fazia dessa seção uma porta de entrada privilegiada para a área, já que essa estrada funcionava como um corredor de mercadorias e pessoas de importância muito maior que a estrada que ainda hoje liga Petrolândia apenas ao Brejo e que cruza toda a seção centro. No entanto, a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaparica resultou em mudanças que alteraram o arranjo entre cidades até então existente. O alagamento da antiga Petrolândia e a construção da Petrolândia nova, 45 km abaixo nas margens do São Francisco, possibilitou a criação de um novo pólo regional para onde convergiram novos investimentos, um fluxo de pessoas redobrado e um setor de serviços de importância muito maior do que o disponível em Tacaratu. Essa alteração levou, por sua vez, à construção de uma nova estrada ligando as duas cidades que, porém, não corta a área indígena da mesma forma: em lugar de cruzar toda a seção sul, a nova estrada a corta em diagonal (sentido sudeste-noroeste) num trecho novo e bem mais reduzido. Além disso, o fluxo entre essas duas cidades tornou-se bastante desigual, deslocando a importância da feira semanal de Tacaratu para a feira diária de Nova Petrolândia. Um relatório de 1985 (DOC.:48) relatava a conseqüência imediata da construção dessa estrada: o aumento da pressão sobre as terras indígenas que passariam a ser beneficiadas com a sua proximidade. Neste relatório o funcionário da FUNAI Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 139 identificava a construção de cercas na aldeia do Espinheiro por famílias da vila de Barreiras e da Baixa do Mulungu, localidades por onde passaria a nova estrada, e por um funcionário da construtora que realizava as obras no local. Os terrenos, comprados ou apossados, começavam na estrada e se estendiam pelo interior da área indígena identificada em 1984, indo encostar nos limites da área homologada em 1987. Encostado à fronteira oeste da área indígena, na altura da saída do Brejo, foi construído o bairro-acampamento da CHESF, destinado aos funcionários da empresa durante os anos de construção da UHE. Esse bairro planejado, hoje chamado cidade de Itaparica, foi construído sobre terra bastante fértil e úmida, favorecida com a passagem dos pequenos riachos com origem no Brejo dos Padres, antes ocupada por pomares e granjas. O novo bairro foi aparelhado com uma grande escola de primeiro e segundo graus, posto telefônico, uma igreja, jardins decorativos irrigados diariamente, um clube com sede, salões e quadras de esporte, um hospital, bares, uma pequena estação rodoviária e casas que diferiam em modelo e tamanho segundo a posição hierárquica dos funcionários. Ainda mais a oeste, do outro lado da estrada estadual e na margem do rio, em terras desfavoráveis, surgiu um grande bairro popular para os trabalhadores braçais da barragem, a ““cidade livre””. Apenas com o recorte das ruas planejado, uma igreja no centro e um desenho que sugeria espaço para um plano de expansão, inicialmente esse bairro surgiu como uma monumental e instantânea favela de papelão, madeira, plástico e zinco, sem qualquer tipo de serviço público ou tratamento de água ou esgoto. A planificação aparente em seu desenho não correspondeu a uma igual ação planificada do poder público, mas rapidamente a “cidade livre” ganhou a sua própria feira, comércio e um afluxo de pessoas que não estavam diretamente ligadas ao trabalho nas barragem, boa parte delas removida com as desapropriações. Hoje conhecida como Jatobá, a antiga “cidade livre” move campanha pela emancipação. Articulando essas novas unidades surge um sistema de transporte precário, feito de uma única linha de ônibus que liga diariamente Nova Petrolândia, Jatobá e Itaparica com intervalos de 90 a 120 minutos e que vai até o Brejo dos Padres duas vezes durante o dia, uma às 6:00 e outra às 14:00. Ainda que insuficiente, esse serviço é mais eficiente que o transporte nos “carros de aluguel” (caminhonetes abertas adaptadas com estreitos bancos de madeira para transporte de gente e mercadoria), sempre imprevisíveis. Além disso, a construção do acampamento da CHESF viabilizou a extensão do terminal da rede elétrica, que lhe servia, até o "Brejo", cortando toda a seção central. Nesse caso, tanto a extensão da rede quanto o fornecimento da eletricidade foram e são gratuitos, por se tratar de uma linha exclusivamente dirigida à área indígena. Ao contrário, a rede que mais tarde passou a alimentar a seção norte da área não contou com as mesmas vantagens. Como as aldeias dessa seção tiveram que aproveitar uma extensão da rede que se dirige à cidade de Tacaratu, e que por isso tem caráter comercial, tanto a sua instalação quanto o consumo foram e continuam sendo pagos pelos próprios índios. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 140 A todas essas alterações somou-se a série de recursos e financiamentos especiais que passaram a afluir à região pela iniciativa governamental, interessada em minimizar a oposição sindical à construção da barragem, em especial através da atuação da EMATER. Foram realizados relatórios de avaliação do impacto social das barragens que deram maior visibilidade aos Pankararu e a outros grupos indígenas próximos, em especial os Tuxá, Além disso, a imprensa regional dirigia a atenção para o local, marcado pelas paralizações nas obras da barragem realizadas pelos sindicatos. Tudo isso fez com que a região ganhasse interesse também para a ação de órgãos assistencialistas, como a LBA e diferentes tipos de agências não-governamentais, que iam do Lions Club ao CIMI - Conselho Indigenista Missionário. Essa mudança de conjuntura possibilitou à FUNAI propor uma série de projetos econômicos e culturais que então eram canalizados para os postos indígenas da região e que tinham na origem de seus recursos programas governamentais mais amplos, como o Programa de Integração Nacional (PIN), o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor (PAPP), o Polonoroeste etc38. Somam-se a essas ainda as mudanças que atingiram 38 A criação desses projetos, suas argumentações, planos de aplicação, áreas priorisadas e sua aplicaçaõ real são matéria ainda de reflexão. Pelo que se pode perceber através do caso Pankararu, esses planos podem: A) se transformar em simples distribuição de gêneros e ferramentas (segundo critérios que, como veremos, vão alimentar faccionalismos internos); B) não chegar ao conhecimento das autoridades indígenas, que afirmam ter uma idéia muito vaga de sua existência e aplicação; C) chegar ao conhecimento das autoridades Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 141 o campo indigenista no Brasil nesta última década e conferiramà região Nordeste uma nova visibilidade, atestada pela atenção das antigas agências ou pela criação de novas, na própria região. Em todos esses casos, no entanto, e é isso que nos importa aqui, o ponto de referência para a atuação dentro da área indígena Pankararu é sempre o Brejo dos Padres, local de maior concentração populacional e onde encontra-se localizado o posto indígena. Transporte fácil, água encanada e distribuída por caixas d'água públicas, luz gratuita e recursos sociais variados como creche, casa de farinha coletiva, centro de produção artesanal, clube e um pequeno caminhão, todos surgidos ao longo da década de 1980, marcam hoje uma diferença grande entre o "Brejo" e as outras duas seções, em especial no que diz respeito à seção norte, onde a falta desses recursos se soma às desvantagens de suas geografias jurídica e ecológica (figura 10). 3 Boa parte desses recursos surgidos na última década não têm origem nem são mediados pela FUNAI, mas são alcançados diretamente pelas lideranças indígenas em mais uma das variações do que chamamos de “busca dos direitos”. Com a ampliação do número de agências governamentais e não governamentais na região foi possível ampliar ainda mais a noção de “direitos” e o campo de atuação das “lideranças peregrinas”. As viagens que passam a ser feitas, então, apesar de estarem sempre vinculadas ao conflito fundiário, não buscam mais exclusivamente soluções fundiárias, nem apenas os empregos na FUNAI, mas também o apoio de outras agências na forma de projetos de desenvolvimento comunitário, ou de auxílio a "pequenos produtores"39. Um número relativamente grande de lideranças passa a participar das viagens em busca dos novos “direitos” e, como vimos, o fato de serem concorrentes era um dos motivos de participarem juntos das mesmas viagens, como forma de ter um controle mais estreito do que os concorrentes alcançavam. Algumas mudanças se impuseram com o trânsito entre essas novas agências de assistência. Uma delas, e talvez uma das mais importantes, foi o surgimento das “associações comunitárias”40 que passaram a ser a interface legal nas transações de transferência de verbas e de realização de convênios entre agências de apoio e grupos indígenas. No caso dos Pankararu, a primeira associação foi criada por Quitéria, a mais visível das lideranças peregrinas, que vimos emergir no capítulo anterior. Além de formar lideranças através da “busca” de empregos (e vagas em cursos superiores e de especialização) para sua jovem parentela na FUNAI, como presidente por tempo indeterminado desta associação, essa liderança se habilita formalmente a falar pela “comunidade Pankararu”, agregando mais um título àqueles das autoridades estatutárias indígenas, que nesse caso se queixam dos chefes indígenas por usarem as verbas para outros fins e, finalmente, D) combinar todas as alternativas acima. 39 As novas formas de organização política dos grupos indígenas, que se sobrepõem imperfeitamente e alteraram as relações políticas fundadas na etnia e no cacicado, constituem um campo de investigação de grande importância, ainda que quase completamente inexplorado. No caso do Nordeste em particular, parece existir uma grande comunicação entre essas novas formas de organização e a experiência de mobilização política do campesinato, transformada nos últimos anos com a intervenção estatal através do Projeto Nordeste, na forma do PAPP, o que acaba nos remetendo para outro universo bibliográfico: Novaes (1994), Machado (1987) e Chalout (1986). 40 Estas não significam, porém, grande autonomia com relação à FUNAI, ao menos até o momento, já que foi o próprio escritório do órgão de Recife que designou um funcionário especialmente para orientar os grupos na montagem das referidas associações. Como resultado está havendo uma multiplicação dessas associações não só entre as áreas indígenas, mas também dentro de cada uma delas, o que no caso Pankararu, como veremos, tem servido como novo repertório faccional. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 142 criadas pela intervenção do órgão indigenista. Essa precedência está à concentração de recursos no Brejo dos Padres, tornando mais tensa a relação entre autoridades internas, em especial aquelas da seção norte, a principal das quais é ainda João Tomás, ex-pajé, concorrente do atual cacique (Capítulo 2/2) e reconhecido “levantador de aldeia” (Capítulo1/2). Depois da volta do cacique ao cargo por intermédio da presidente da associação, é ela que passa a ser a principal autoridade global da área indígena. Quando em 1987 a FUNAI vai rever as dimensões da área, com base nos trabalhos de identificação realizados em 1984, é com esse grupo de lideranças do Brejo que são realizadas as negociações. O trabalho do Grupo Interministerial de 1984 (DOC.:42) tinha evidenciado o erro de Cildo Meirelles na demarcação de 1940 e propunha a correção da área para os 14290 ha reivindicados historicamente pelo grupo, mas ao negociar uma solução para a rápida homologação da área, que estava sendo exigida pelo BID, o órgão propõe, numa reunião em que se encontravam apenas as lideranças do Brejo, manter a área original em troca da promessa de acelerar a retirada dos posseiros da fronteira oeste da seção central. Foi o fechamento deste acordo, que as lideranças da seção norte só ficaram sabendo mais tarde, através de uma notícia de jornal onde aparecia a foto das lideranças ao lado dos funcionários da FUNAI, que deu uma natureza sísmica ao faccionalismo ritual e mítico. Depois disso as lideranças das seções norte e sul deixaram de viajar juntas, João Tomás passou a organizar suas próprias viagens para a capital, seus contatos com outras organizações indígenas e com o CIMI, criou uma nova associação comunitária indígena Pankararu, com sede na sua casa, na aldeia do Espinheiro, e se fez reconhecer, através de um abaixo-assinado de várias lideranças da seção norte, cacique de uma nova “aldeia”, criada a partir de um dos sobrenomes Pankararu: Entre-Serras-Pankararu-Cana-Brava. A oposição entre mitos coloniais deixava de expressar apenas uma vaga disputa por legitimidade para demarcar um faccionalismo visível. As queixas sobre o tratamento desigual quando da distribuição de gêneros, sementes e ferramentas passa a alimentar a expectativa de ter o seu próprio posto indígena. João Tomás, em 1989, toma a iniciativa, portanto, de “levantar” sua própria aldeia, exigindo para isso da FUNAI o reconhecimento oficial do abaixo-assinado e a instalação de um posto indígena na Serrinha41. As lutas com relação à identidade passam pela definição de propriedades, estigmas e emblemas ligados à origem através do lugar de origem e dos sinais físicos, rituais e genealógicos que lhe são correlatos, e que no caso Pankararu se traduzem na luta pela definição de fronteiras étnica e de legitimidade: uma primeira separando aqueles que são daqueles que não são índios, outra separando aqueles mais e menos legitimamente índios, mais ou menos "misturados". Entre ser e não ser, ser puro ou impuro, "a fronteira, esse produto de um ato jurídico e de delimitação [que] produz a diferença cultural do mesmo modo que é produto dela" (BOURDIEU,1989) e deve também estar fundamentada na objetividade do grupo a que ela se dirige. Como diria Durkheim, uma ilusão bem fundamentada na realidade. Com a possibilidade de uma mediação independente, as acusações mútuas de menor legitimidade étnica, na disputa pela distribuição e alocação de recursos escassos, desenham uma repartição geopolítica que tem a pretensão de se tornar definitiva. As lutas simbólicas pela imposição de uma divisão legítima da área procuram se 41 Nada disso foi conseguido ainda e o administrador regional da FUNAI vem tentando, através de sucessivas conversas, convencer João Tomás e as outras lideranças que o acompanham de que este projeto é inviável. Sem ter a dimensão exata de todos os elementos implicados nesta ruptura, o administrador tem argumentado que se os recursos da FUNAI são poucos para um posto, a situação ficaria pior com dois. Até a minha última visita à área ele ainda não tinha conseguido demover as lideranças do Entre-Serras de seus objetivos e continuava adiando qualquer tipo de procedimento. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 143 realizar socialmente, criando grupos e repartindo de fato o território indígena. A geografia simbólica, tão imbricada com as geografias jurídica e ecológica, torna-se geo-política. Geografia ritual Em todas essas descrições, contudo, passou desapercebido um aspecto fundamental do drama étnico Pankararu: o desencantamento. Fazemos referência a ele na última das geografias porque está associado à economia do espaço que nos foi a mais difícil de perceber, porque a menos pública, porque ligada muito indiretamente às motivações iniciais de nossas viagens a campo e porque não nos foi formulada explicitamente em nenhum momento. Sua expressividade é, digamos, doméstica, contraponto das expressões obrigatórias da indianidade, não remetendo a representações de si para o outro, mas à tradução dos diferentes embates que temos tentado mapear, dando-lhes uma resposta satisfatória nos termos de seu próprio conjunto ritual e cosmológico. 1 O desencantamento está relacionado a dois problemas de descontinuidade dos signos étnicos aparentemente estanques, mas que revelam sua relação no desenho desta última geografia, definida pelos recentes rearranajos de um espaço mágico. Ambos emergem do contexto de mudanças regionais a que fizemos referência nas páginas anteriores, ligados às recentes conquistas materiais e intelectuais do grupo, que o tornaram progressivamente mais visível. O primeiro destes problemas surge com a construção da UHE de Itaparica e com a transformação da sua cachoeira numa grande barragem, que domesticou suas águas e a desencantou. O segundo refere-se a um dos efeitos do faccionalismo que descrevemos na geografia anterior: a disposição dos lugares religiosos. A cahoeira era um lugar sagrado onde nós ouvia gritos de índio, cantoria de índio, berros, gritos. O encanto acabô porque o governo qué assim né... Eu acho que se o governo quisesse acabá com os índios dentro de 24 horas ele acabava. Ele não acaba por causa dos direitos humano, por causa do direito mundial do índio e do ser Humano, porque senão já tinha acabado. Olha, essa cachoeira, quando ela zuava, tava perto dela chovê ou de um índio viajá. E a cachoeira não zuou mais, chove quando qué, sem tá... Acabou-se o encanto dela. Então esse era todo o lugar sagrado que agente pediu pra preservá, mas... É a força maior combatendo a menor... Era uma grande cachoeira, de um grande rio, que agente ouvia os cantos, das tribos indígena, vários cantos de tribos indígenas cantando junto que nem numa festa. Mas hoje em dia não se vê mais nada... Aquele encanto acabô. (João de Páscoa). A duplicidade do uso da palavra “encanto”, referindo-se a personagens religiosos (os Encantados) e a um determinado estado de seres ou espaços geográficos (a cachoeira de Itaparica que pode ser encantada e desencantada) não é acidental, mas de ordem genética. Como já assinalamos anteriormente, o Toré, tornado expressão obrigatória da indianidade dos índios do Nordeste, está fundado num tipo de conhecimento e de produção mística que também remete ao sue pólo oposto, o da diferenciação. Ao se ensinar o Toré, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 144 os toantes são “levantados” sempre de forma diferente, a dança é sempre particularizada e o contato com os Encantados tem sempre que se dar de uma forma original, para a qual não existe ensino possível. Ao ensinar o Toré transmite-se apenas a “semente” e a forma de entrar em contato, mas o caminho para “levantar os Praiá” e antes, para produzir seus próprios Encantados, deve ser descoberto sozinho pelo grupo, através da tradicional combinação entre garapa, fumo, jurema e reclusão na mata. Assim, “levantar aldeia” implica descobrir o segredo, diferente dos outros segredos de outras aldeias, nos quais está em jogo uma forma particular de produzir seus próprios Encantados. Os Encantados nascem, portanto, simultaneamente à aldeia, um produz o outro por meio de um mesmo ato mágico que se faz segredo. Não são heróis fundadores, são heróis diferenciadores, cujo segredo é o núcleo da identidade indígena. Produção da aldeia e encantamento estão indissoluvelmente ligados. No caso Pankararu o segredo da aldeia estava na sua relação com a cachoeira de Itaparica. Era da cachoeira que vinham os sinais de morte e vida: nos sons de sua correnteza era possível divisar os gritos e cantos de outras tribos passadas, através de seus estrondos eram anunciados ou a morte de um índio de grande valor moral ou a chegada das chuvas42. Segundo a "ciência" da aldeia, um índio que tinha anunciada sua morte (natural ou não) podia decidir fugir dela através do encantamento, se fosse “importante” o bastante para merecer essa distinção, isto é, se tivesse valores morais e espirituais, normalmente associados ao papel de “pai de Praiá”, plenamente reconhecidos. Para isso reunia seus próximos e era preparado por eles, mediante sucessivas sessões de fumo e cantos, para a sua “viagem”. Depois de preparado, dirigia-se sozinho à cachoeira e se jogava nela, voltando mais tarde na forma de Encantado. O processo se completava depois de sua primeira visita à aldeia, que ocorria dentro de uma ou duas semanas, durante as quais aqueles que o prepararam permaneciam em recolhimento, fumando, cantando e bebendo garapa. ... aí nós preparava ele e ia pra nossa cachoeira, [...] O sr viajava hoje e quando era amanhã, que passava oito dia, nós tinha que acendê o fogo num reservado e esperá a sua chegada. Quando tava com oito dia, quinze dia que o sr não chegava naquele ponto, nós tinha que esperá naquele ponto, acendê o cachimbo... [...] E quando ele chegava (...nós não estamo brincando com espírito morto como os outros alí, nós tamos trabalhando com os Índio), quando é com oito dia, agente esperava aquele camaradinha que se encantô, que é vivo, é vivo graças a Deus. [...] Quando era com oito dia ele trazia a vida dele numa semente e nós tamos nessa ilusão. A semente que é pra nós ficá adorando. Nós adora a semente mais ou menos como adora um santo, ou mais do que isso. [...] Todo Encantado dessa aldeia aqui foi-se jogado da cachoeira. (Mané Bizoro) Assim, o desaparecimento da cachoeira significa o fim do segredo Pankararu e, portanto, o esgotamento de sua capacidade de diferenciação, o fim da produção de novos Encantados e seu progressivo afastamento da aldeia que então vai, ela também, se desencantando. Isso significa a perda da “força”, da capacidade de consulta aos augúrios, 42 Antes do segredo da aldeia estar depositado na cachoeira de Itaparica, os seus Encantados tinham morada nas cachoeiras de Paulo Afonso, de onde já teriam se tranferido quando elas foram totalmente esgotadas em seu potencial mágico com as sucessivas barragens. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 145 fundamentais nas histórias da morte de Cavalcante, da sucessão do pajé e na defesa dos índios, como na história de Tarraxá. É o fim das “sementes” e de alguma forma, o agravamento dos efeitos da “mistura” no tempo, isto é, a progressiva perda do contato com as fontes de diferenciação étnica. Porque ele graças a Deus ensina a nós: "Olhe, vai chegá um fulano assim, assim, por essa forma assim..." e portanto nós tem aquele mistério. Depois que eles quebraram nosso encanto nós nunca mais tivemos democracia de conhecê..., se conhece, ainda tem muitos caboclo aqui que ainda conhece, mas já é meio difícil. Não era que nem era nesse tempo que era popular (Mané Bizoro) Mas, se a cachoeira de Itaparica desapareceu deixando todo o grupo sem uma referência mágica fundamental, o faccionalismo que divide as seções centro e norte separa também o Brejo de importantes símbolos religiosos. Esses locais são as serras ou serrotes, como chamam os trechos que se destacam das serras como pontas protuberantes, formadas por pedras inteiriças, assumindo formas estreitas e relativamente isoladas de sua massa mais compacta. Dentro desses serrotes encontram-se ricos castelos em que os Encantados moram e que alguns índios têm o dom de visitar em sonhos. Os serrotes e as serras, assim como a principal fonte d’água da aldeia, a "nascente", são por isso fonte de toda a força da aldeia, suas reservas de encanto e os marcos de uma identidade que se expressa na paisagem. O Brejo dos Padres fica, assim, quase perfeitamente rodeado de pontos que concentram referências mágicas, mas a maioria deles se encontra fora do próprio Brejo, na seção norte. Além das serras e serrotes existe aquele que ainda hoje é considerado o Terreiro do principal Encantado do grupo, o Terreiro do Xupunhum ou Índio Mestre Guia, que fica na Serrinha, localizado no agrupamento residencial capitaneado pela casa do velho pajé. Como já fizemos referência (Capítulo 2/1), no momento de instalação das “linhas”, o antigo “sarapó” da aldeia teria sido um dos expulsos do Brejo, transferindo-se para o alto das serras e lá refazendo o terreiro do seu “principal”. Mais tarde, quando já muito velho, volta para o Brejo e deixa em seu lugar, cuidando do seu Terreiro, seu filho, que viria a lhe suceder como pajé. Quando este novo pajé sente-se velho demais para acompanhar as viagens das lideranças e cobrir toda a área indígena, passa a eleger auxiliares que ganham o título de “sub-pajé”, dando origem às disputas por sua sucessão, que num primeiro momento tiveram como personagens os atuais caciques do Brejo e do Entre-Serras (Capítulo 2/2). Depois dessas disputas, porém, sucederam-se alguns sub-pajés, escolhidos preferencialmente dentro do seu próprio agrupamento de lealdades, mas que por vezes ocuparam esse cargo por muito pouco tempo. O último desses sub-pajés foi Miguel Binga, filho de uma irmã do Joaquim Serafim casada com Antônio Binga, irmão do atual cacique. Seu lugar genealógico, somado a certas habilidades mágicas e à herança deixada por seu pai colocavam-no numa situação privilegiada para o cargo de pajé. A herança consistia em um importante Terreiro que congregava um número alto de Praiás e de lealdades. É interessante notar que todas as outras tentativas de Joaquim Serafim constituir um sucessor passavam pela escolhe de alguém do seu círculo ritual, mas sem qualquer importância estrutural aparente, como João Tomás, João de Páscoa e por último, depois de Miguel Binga, o Renato, os dois últimos seus genros Cf. quadro 11). As razões desse tipo de opção por pessoas sem qualquer importância de em círculos de parentesco, aliança ou descendência, seriam justificadas mais tarde, com os fatos decorrentes da escolha de Miguel Binga para o cargo de sub-pagé. Envolvido numa estreita Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 146 rede de lealdades, ligado a interesses bem marcados pelo pertencimento a uma família que se auto-constituiu como grupo, dono do seu próprio Terreiro de prestígio, Miguel Binga teria mantido a relação hierárquica com o pajé titular por pouco tempo, depois do que deixou de frequentar com a mesma assiduidade a Serrinha, realizando seus próprios Torés, algumas vezes sem chamar os Praiás do “velho Serafim”. Sua visibilidade prévia como filho de um importante “pai de Praiá” somada ao cargo estatutário e à íntima participação no círculo de afinidades do cacique e da presidente da associação comunitária, a Quitéria, deram a Miguel Binga uma visibilidade e naturalidade no cargo que em pouco tempo lhe autorizariam a desconhecer a titularidade do velho Serafim. Inicialmente isso não implicou em qualquer repartição formal entre os grupos de famílias ligadas aos terreiros. Mesmo tendo assumido o cargo de pajé de toda a área indígena, Miguel Binga continuava realizando a festa tradicional do Umbu, ligada ao terreiro do Xupunhum, do qual o velho pajé continuava sendo o zelador. A evolução da disputa faccional em rompimento geopolítico, no entanto, reinvestiria de um novo sentido também essa disputa pela autoridade religiosa. Já não era possível insistir na idéia de substituição de Miguel Binga do lugar de pajé e a evolução da disputa acabaria sendo canalizada no sentido proposto por João Tomás, de um rompimento frontal com o núcleo tão homogêneo de autoridades do Brejo, instituindo um novo pajé, próprio da seção norte e legítimo herdeiro do “velho Serafim”, assim como do seu Terreiro, trunfo na simbolização étnica. Por essa via as lideranças plenamento engajadas no faccionalismo ganham expressão ritual e viabilizam, enfim, uma unidade em termos rituais, fundamental para qualquer discussão sobre rompimento definitivo das duas áreas. Caberia fazer uma ressalva antes de continuarmos. Esse faccionalismo e seus efeitos de exclusão são particularmente evidentes entre as lideranças faccionais em luta justamente, como diz Bourdieu (1989), pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, portanto, pelo poder de fazer ou desfazer grupos. Isso significa que tais fronteiras entre seções e entre terreiros e rituais não têm a mesma realidade para esses personagens protagonistas do faccionalismo e para a população mais ampla, que todo o tempo joga com as possibilidades abertas por ele. Nessas disputas os oponentes não criam fronteiras no interior da população, mas, para voltar a uma imagem usada antes, criam núcleos de legitimidade e de concentração de lealdades que irão exercer maior ou menor poder de atração sobre os homens. A repartição territorial só será realidade e só será justificada se, na dinâmica da disputa, os oponentes conseguirem criar uma repartição entre os homens, e não o contrário. Desenha-se assim, portanto, o que percebemos como o atual drama étnico Pankararu: por um lado, expropriados da fonte de seu encantamento, e de seu segredo de produzirem novos Encantados que revitalizem a aldeia; por outro, repartidos ao meio nos seus rituais mais centrais, cabendo à facção menos favorecida em termos jurídicos, ecológicos e de mediação com os novos recursos, isto é, expropriada em termos de recursos, o Encantado Guia da aldeia (figura 11) e parte importante da geografia encantada, cuja posse, por sua vez, expropria a facção oposta dos símbolos étnicos comuns a ambas. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 147 2 Mas novamente devemos recusar a oposição tradicional/moderno. A descrição que apresentamos do desencantamento encaixa-se perfeitamente numa determinada narrativa Pankararu da “queda”. Ao se conceberem como remanescentes, os Pankararu formularam algumas imagens que explicam a sua impureza, mas que também servem como nexo entre os índios de hoje e os de antes. A principal destas imagens está relacionada à multiplicação dos terreiros de Toré: um passado de unidade, onde todo o grupo “brincava” o Toré num único Terreiro se opõe ao movimento histórico de multiplicação de terreiros, que leva a um crescente “individualismo”, assim como o puro se opõe ao misturado, o tronco velho se opõe à ponta de rama e, poderíamos acrescentar, a cultura se opõe à história, a ordem natural ao arbítrio humano. Se a cachoeira de Itaparica, fonte de encantamento da aldeia, e os serrotes e nascentes, locais de moradia dos Encantados, até a construção de Itaparica estavam no plano da ordem natural, os terreiros, lugares de exercício ritual, ao contrário, são pensados como locais por excelência da construção humana, lugares criados pelas mãos e pés do homem e por isso passíveis de mudanças mas também de regulação. A ordem dos terreiros é variável, móvel, tanto para o bem quanto para o mal, já que se a multiplicação dos Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 148 terreiros divide as lealdades, por outro lado, "quanto mais o índio brinca, mais ele cresce". Nesta leitura, o desaparecimento da cachoeira de Itaparica teria tido um efeito de desencantamento justamente por ter significado a intromissão da ordem das mudanças no plano do que era pensado como imutável. Mas, sem nos adiantarmos muito na argumentação, caberia chamar a atenção para que aqui também é preciso guardar alguma distância com relação às dicotomias. A possibilidade de regulação da vida ritual justifica a organização dos terreiros sugerida por Carlos Estevão aos Pankararu (Capítulo 2/1) tenha sido tão bem recebida pelo grupo. Ela traduzia, ou talvez, produzia ( ao menos no plano discursivo), a uma imagem ideal de sua sociedade, que passou a estar associada a um passado perdido. O princípio organizador proposto, onde a reunião dos Torés num único Terreiro substituiria a sua já avançada fragmentação, era perfeitamente adequado à sua lógica ritual, enquanto organizadora das disputas por lealdades: quanto menos terreiros, maior a concentração de lealdades, maior integridade identitária. Essas recomendações são frequentemente citadas para explicar o faccionalismo e a fraqueza do grupo na disputa fundiária com os posseiros. Mas o que eu tô lhe dizendo é que o que tá acontecendo hoje só tá acontecendo porque nós não seguimos o que o padre..., o que o Carlos Estevão falou. Porque até os próprio povo de fora acha que nós é desunido. O sr. veja, o moço aqui de casa é virado pro nascente, mas tem vez que fazem festa lá e ele não vai. Não pode ser. Mas não é porque ele não queira, é porque quando eles vem avisá, tá fora da hora, não pode. Porque nesse ponto eu cuido dele, que não será todo mundo que pode pegá nele pra saí. Tem aquela pessoa competente que na hora eu vou chamá. Porque se eu pegá uma pessoa qualqué pra esse fim, não tá certo. Aí é onde eu quero chegá, que eu tô descobrindo o segredo da aldeia..., mas não existe possibilidade de eu ser castigado porque eu não tô mentindo. Tô falando verdade. (João Binga, ) Mas isso aqui antes era uma coisa bem pacífica, porque era bem resolvido na hora. Assim, reunia todos, trazia aquelas famílias que brigô... E qualquer melhoramento também reunia tudo, contava aquela história, porque tomava a palavra um por um e um por todos, e resolvia sem tumulto nenhum. Hoje tá um negócio que..., como..., negócio que vem dentro quase que nem uma política...[...] Hoje tamos com aquela parte..., o pessoal não tem mais aquele..., aquela parte de tá fazendo as festas todos juntos, porque cada quem tem um terreiro, mas o meu pai não queria isso, queria todo mundo reunido, porque quando fosse pra chamar uma pessoa que fosse pra uma viagem ou que fosse pra chamar uma atenção sobre a parte do mal que ele tá fazendo, tava todo mundo junto, cada quem defendendo o seu trabalho. (Antônio Moreno) A tensão desenhada entre a valorização do paradigma político da unidade e o exercício ritual que leva à multiplicidade dos Terreiros seria compatibilizada a princípio ou teoricamente, de acordo com o sistema ritual idealizado pelos Pankararu, segundo o qual ocupariam espaços sociais distintos: os espaços privados seriam dedicados ao exercício dos “Particulares”, estes sim, tão numerosos quanto o número de famílias ou “zeladores” de Encantados, e cujo exercício poderia se dar simultaneamente em vários lugares por grupos diferentes. No espaço público estaria o Toré, destinado à comunhão do grupo como um todo através da reunião dos “pais de Praiá” e rituais coletivos que mobilizariam todo o Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 149 “batalhão” de Encantados da aldeia e que, por isso, não poderia ser realizado em mais de um lugar simultaneamente. Nos "Particulares" o ritual é de escala familiar, realizado dentro de casa, reunindo apenas os parentes mais próximos para fumar e beber garapa, situação em que recebem energia dos Encantados e reforçam a união da família. No Particular seriam realizadas consultas aos Encantados sobre a situação de parentes distantes, sobre acontecimentos futuros, seriam feitas consultas sobre o melhor procedimento em situações de conflito. Além disso, seriam realizadas curas, diretamente pelos Encantados, na forma dos Praiá, se eles já tivessem sido “levantados” ou através dos seus “zeladores”, se eles ainda não tivessem saído das suas “sementes”. Com relação às curas, o Particular pode variar bastante, na sua forma e potência, mas um critério básico distingue as suas formas de pagamento, revelando a oposição entre o caráter privado do Particular e o caráter público do Toré. Se o objeto da cura for uma mulher, o pagamento aos Encantados será sempre através de um novo Particular, mas se o objetivo tiver sido um homem, de qualquer idade, então o Encantado poderá escolher se pedirá um novo Particular ou um Toré. Tal Particular se faz através da oferta de comida, garapa e fumo para os Praiás e convidados, sempre em pequeno número, próximo ao círculo doméstico da pessoa curada, dentro de casa e de forma mais cerimoniosa. Mas no caso do pagamento com o Toré, a família deve realizar uma festa pública, com gastos relativamente altos, para a qual toda a aldeia imediatamente passa a estar convidada e para a qual serão chamados, na sua forma ideal, todos os Praiás da aldeia. Dependendo da expectativa do Encantado que receberá o pagamento e da disponibilidade material da família devedora, a demora na realização dessa festa pode se arrastar por meses ou anos, até que se tenha conseguido reunir recursos suficientes para a sua realização. Nos casos em que o Toré não ocorre como pagamento de promessa, não sendo por isso de responsabilidade exclusiva de um único núcleo familiar, os gastos são cotizados informalmente entre os participantes e, em lugar de realizar-se num único dia, pode durar até uma semana ou pouco mais, dependendo do êxito do ritual. Este deveria ser o sistema relativamente estável dos Pankararu, no qual as necessidades domésticas de cultos aos antepassados, de consultas oraculares e de curas seriam cobertas pelos Particulares, sem que isso ofendesse a unidade da aldeia. Por isso, nas narrativas sobre o faccionalismo, as lideranças do Brejo vêm a multiplicação dos Terreiros como uma indevida ruptura com as lealdades anteriores, por meio do qual os moradores das outras duas seções estariam subvertendo o princípio de unidade, enquanto na versão das lideranças da seção norte, acompanhando a oposição dos seus mitos coloniais, essa multiplicação teria tido origem na própria ruptura territorial das famílias com um espaço comum na época das “linhas”. A sua expulsão e dispersão teria levado a que houvesse uma correlata dispersão ritual, sendo que nessa dispersão o próprio Toré começaria a se misturar com outros tipos de cultos, como o dos ex-escravos, introduzidos na aldeia (Capítulo1/1). Fecha-se então o círculo que liga exercício ritual à mitologia da “queda”. 3 Recentemente a repartição em três seções ganhou realidade no plano ritual. O surgimento de um novo terreiro na Tapera, poucos anos depois da separação do EntreSerras, em 1992, veio complicar e sedimentar o quadro faccional. Depois de um conflito no interior daquele que era o único Terreiro da seção sul, parte das suas famílias parou de frequentá-lo. Nesta mesma época estava morando temporariamente na área a filha de uma das lideranças locais, que havia se mudado para Palmeira dos Índios e lá se casado com um Xukuru-Kariri. A combinação entre a ruptura do Terreiro e a presença daquele casal que, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 150 aparentemente, possuia habilidades rituais especiais, resultou na criação um novo Terreiro, que passou a ser frequentado por metade das famílias da seção sul que possuem Praiás, rompidas com o primeiro terreiro, num total de 30 famílias e 14 Praiás. A atividade ritual deste terreiro passou a ser tão intensa e bem sucedida que em pouco tempo, além daquelas 30 famílias e de um grande número dos que só iam para “brincar”, passou também a frenquentá-lo um número expressivo de índios do Brejo. de significar mais uma indesejável fragmentação do exercício ritual e das lealdades, acrescentava-se à situação um problema ainda mais grave: parte dos Praiá levantados especialmente para esse Terreiro, o foram com “instrução” dos Xukuru-Kariri, incluindo por isso nos seus Torés vários toantes de Palmeira dos Índios. O núcleo de autoridades da aldeia, que coincide perfeitamente com o núcleo ritual do Brejo, imediatamente tentou impedir a continuidade daquele Terreiro, buscando apoio para isso junto às famílias do antigo Terreiro e em especial junto a mais destacada liderança da seção, o Zé de Bernarda, que não é nem pai nem zelador de Praiá. Inicialmente Zé de Bernarda tentou um acordo de convivência pacífica, mas o cacique e o pajé se mostravam irredutíveis, chegando a sugerir apoio policial caso ele concordasse em usar sua autoridade para desmantelar o novo Terreiro. Zé da Bernarda não é “pai de Praiá”, não é zelador nem tem marcas de valor mágico, não ocupa nenhum cargo estatutário nem se constituiu como uma liderança de mediação, especializada em um ou outro dos circuitos percorridos pelas lideranças peregrinas. Toda sua autoridade ele retira da sua capacidade de mediação e no seu discurso enfatiza antes de tudo as relações de lealdade, de convencimento, num tipo de intervenção que nunca ou raramente passa pela tomada de decisões, muito menos repressivas. Assim, declara absoluta lealdade ao cacique e ao pajé, mas deixa claro que é contra qualquer intervenção. A fonte de sua autoridade está na sua capacidade de alcançar consenso, de produzir acordos, de ser aceito, mais do que impor qualquer tipo de ordem. ... Eu tava no meio e não ia querer proteger nem uma parte e nem outra porque eu ia desgostar no outro terreiro de cá da Serra mais da metade do povo daqui. Então que eu como um líder que eles queria, eu não trabalhava dessa forma desgostando o povo. Trabalhava com que com o tempo eles se juntasse. Que se juntasse eu tava no meio... Aí eu não tinha saída pra canto nenhum. (Zé de Bernarda) Por outro lado, a criação daquele Terreiro tinha o efeito de uma revigoração da vida ritual da sua seção e como sua autoridade não dependia exatamente destes rearranjos entre Terreiros, era simpático às mudanças. Eu, na época que começou, eu me achava sozinho e não me achava com coragem [de tentar interromper o novo terreiro], mas hoje é ainda pior, que eu tenho dois filhos casados e quando eu penso que eles tão drumindo em casa, eles tão lá. Aí ficou mais pior pra eu, porque se eu não podia fazê nada, agora ficou mais pior. Eu fui falá com eles, [dizer que] o cacique e o pajé não era de boa vontade, mas eles disseram "Mas, pai, lá agente não podemos dexá, porque lá agente dança, agente se deita e drome e ninguém pisa no pescoço, ninguém faz nada, então é lá o lugar que eu vou". E só deles me falá eu reparei, que os homens de idade Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 151 que tem lá é poucos. São os jovem assim, da idade deles, as esposas e fazendo dentro dum respeito desses, eu não posso fazê nada. Eu posso ajudá pra vê se eles segura ao menos uns quatro anos assim. Porque uma brincadeira dessa, sem cana, sem nada, só eles só, fumando o cacimbo, botando pra Eles e dançando e brincando... Eles tira oito dia, oito dia! E você não vê uma palavra, um home chegá e dizê que fulano disse que o outro era feio. Oito dia com oito noite e na outra já tiraram seis porque pros outros dois já não tavam aguentando. Aí então que eu achei que não posso fazê nada com um povo desse, porque se eu for fazê, vou aborrecê uma parte do Brejo (que vem muita gente) e daqui... Eu achei bonito foi no dia do domingo rapaz, no dia que começa a festa. Quando foi o dia de domingo, encostou um carro aí da feira da “cidade livre”, desceu um morro de muié e home, pegaram o carro, foram à “cidade livre”, quando voltaram, subiram alí, cada um com um saco, menino, na cabeça pra comê lá. Eu achei bonito o magote de gente... (Zé de Bernarda) A freqüência dos Torés nesse novo Terreiro cresceu tanto que praticamente inviabilizou a realização de outros Torés no terreiro concorrente. Um acordo entre eles, no entanto, firmou que nos casos em que fosse para o pagamento de promessas o novo Terreiro teria que interromper suas “brincadeiras” para a realização do Toré no antigo. Mas essa sobreposição de um Terreiro ao outro significava também, e era aí que as lideranças do Brejo sustentavam a oposição ao seu surgimento, a precedência de um Toré com “instruções” de outra aldeia dentro da área indígena Pankararu. Em função disso as lideranças do Brejo tentaram obrigar a expulsão do casal vindo de fora. Não conseguiriam, mas no ano seguinte o casal por conta própria voltaria a estabelecer residência em Palmeira dos Índios, mantendo no entanto estreitas relações com o Terreiro e trazendo junto com eles outros Xukuru-kariri, em números progressivamente ampliados. Por isso, as lideranças do Brejo passaram a insistir para que as lideranças daquela seção não aceitassem mais essas visitas, esbarrando num princípio fundamental que regia as relações entre aquelas e outras aldeias do baixo e médio São Francisco: a valorização do circuito de trocas rituais (Capítulo1/1), que nas palavras do Zé de Bernarda aparece quase como um panindianismo. Aí eles responderam que tirasse essas 2 pessoas. Que eu tirasse essas 2 pessoas junto com Honório, que tava resolvido o causo, que eles era de fora. Mas mesmo assim eu respondi, porque eles era de fora mas tinha Lídio que era primo dela. E o outro era índio e ninguém podia jogar os pés no próprio índio, que o índio, que ele more em São Paulo, que ele more no Amazonas, que ele more no Fulni-ô, que ele more no Xucuru, que ele more em Pesqueira, que ele more no Pankararé, se ele chegou aqui ele é índio, ele é irmão da gente, tem que receber. Mas eles não se conformava com a minha palavra, então que eu botei um ziper na boca. Só disse a eles que eles fizessem o que eles quisesse, agora eu, ficava no meio. Nem defendia o lado de baixo nem o lado de cima. Inté que eles acha que eu não tenho essa alta razão, mas eu não desgosto eles. [...] Entonce, que eles acha que é uma coisa que não é certo, mas mesmo assim as 2 pessoa que eles não gostava já foram embora. Tão vindo aqui sempre só pra vim... Se vem, como teve aqui agora uma festa de 8 dias, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 152 eles vieram assistir, junto com os índio de Palmeira dos Índio, que eles também reclamaram mas eu disse que... [Veio muita gente de lá?] Veio umas 10 pessoas. Eu digo: mesmo assim é índio, e eles receberam a visita. Não é nada de desacerto, eles não são branco... [...] Se, peraí, um índio daqui chegando em Palmeira, ele não acharia muito bom que eles desse o apoio a ele, abrace, brinque e dance com eles? Igualmente chegando de Palmeira, chegando de Funiô, chegando de Pankararé, chegando dos Kiriri de... chegando de Águas Bela, chegando de Rodela (como já tem vindo aqui), nós vamo espantar ele? Não, recebemo com o maior prazer que temo a visita de um irmão de fora. Agora, o branco não. O branco nós não queremo aqui... (Zé de Bernarda) Apesar do cacique e pajé manterem posição contrária à continuidade do Terreiro, a saída daquele casal amenizou o confronto e as lideranças das duas seções puderam chegar a uma posição menos tensa e a um acordo temporário: os responsáveis pelo novo Tereiro passariam a ter a obrigação de avisar com antecedência sobre a realização de suas festas e o problema da identidade dos Praiá de outra “instrução” ficaria em suspenso, para ser discutido. 4 Todo Encantado dessa aldeia aqui foi se jogado da cachoeira. A CHESF é uma grande empresa, mas foi feito foi assim. [E depois que a cachoeira acabou?] Não faz mais, agora só tem os que tinham. Quando ia um índio se acabá ela estrondava lá: "Báaaauuu...", chega estrondava. Aí nós ficava: "Ai meu Deus quem é?", era aquele. Agora não zoa mais, quebrou a nossa força, nosso prestígio. Agora não encanta mais. Encanta assim, quando um índio agora se acaba, nós já tem nossa fé que enterra ele naquele ponto, como já temos alí o sr Miguel Monteiro, o pajé. Nós tem uma grande festinha deles, alí tão pra vê se nós descobre outro segredo (Mané Bizoro). Se a cachoeira de Itaparica desapareceu, carregando a fonte de novos Encantados, se ocorre a multiplicação de Terreiros importantes, ameaçando não só as lealdades estabelecidas mas também uma identidade ritual Pankararu e se o principal Terreiro da aldeia, conhecido como símbolo étnico, lhes foi expropriado pela facção oposta, as lideranças do Brejo iniciaram a busca de um novo segredo, para resolver simultaneamente aqueles que identificamos como os dois núcleos do atual dilema identitário Pankararu. A criação de um novo segredo através do trabalho coletivo de um núcleo familiar e ritual é simultaneamente o trabalho de reencantamento. Encontrar um novo segredo é criar uma nova identidade, ao mesmo tempo que descobrir uma nova forma de encantamento. Hoje existe por parte das lideranças do Brejo o movimento na direção de uma restituição da unidade perdida que é também um reinvestimento mágico do mundo. Vejamos. Antônio Binga, pai do atual pajé, era sobrinho do último sarapó da aldeia, que foi também o primeiro pajé (Cf. Quadro 11). Conhecido e respeitado por seu poder de cura, predição e magia, ele era ”pai” de um grande batalhão de Paiás que agregava à volta do seu terreiro uma família numerosa e uma série de lealdades construidas por meio do exercício Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 153 do Toré. Era marcado também por alguns signos de distinção aos quais são atribuídos caráter mágico: nasceu em 20 de outubro e nesta mesma data foi batizado, foi levado “ao rancho”, casou-se e morreu. Depois de sua morte, seu filho, Miguel Binga, herdou os trabalhos no zêlo do seu batalhão de 12 Praiás, excepcionalmente grande para a média, e do seu terreiro, um dos poucos que possuem um Poró, vindo daí toda a autoridade que possui para ocupar o cargo de pajé. A morte de Antônio Binga, no entanto, não significou o seu desaparecimento. Todo dia 20 de outubro sua numerosa e bem situada família promove um grande Toré na casa em que ele morou e que ainda é mantida no mesmo estado em que ele a deixou. Reunem-se no dia 19 para um culto familiar, os mais velhos sentam-se à volta de seu leito e, depois de beberem garapa e fumarem, conseguem conversar com ele e com sua esposa, também já morta. No dia em que ocorre a festa propriamente dita, o dia 20, sua família arruma a casa e em especial o seu quarto, preparam sua cama e esticam sobre ela suas roupas: calça, chapéu, chinelos e maracá. Desde muito cedo grande parte da aldeia aflui ao seu terreiro e lá basicamente três grupos religiosos aparecem representados: os “penitentes”, os dançadores de São Gonçalo, que vem de uma cidade próxima na qual os Binga possuem parentes e que é muito conhecida em toda a região por suas festas de São Gonçalo e, finalmente, os Praiá, os do seu terreiro e muitos outros convidados. Caberia um rápido esclarecimento sobre esses três grupos e sua participação na festa do Antônio Binga. Os Praiá dançam o Toré em roda realizando evoluções em oito, sem qualquer liderança visívele entre eles. Marcando o seu ritmo, cada um deles balança um maracá (pequena cabaça redonda à qual se acrescenta um punho de madeira e grãos, para que tenha o efeito de um chocalho) enquanto a música, chamada toante, é cantada por “cantador” ou “cantadeira” que permanece a maior parte do tempo sentado na “cabeceira” da roda. Os toantes são músicas em que muitas vezes o lugar da letra é ocupado pela conjunção de sons encadeados que lembram aos Pankararu uma suposta língua dos antepassados. Cada Praiá tem três toantes que são criados, ou “levantados”, junto com o próprio Praiá e durante um Toré cada um desses toantes é cantado três vezes para cada uma dos Praiá presentes. Cada três ciclos completos do mesmo toante representa um rodada, depois da qual os Praiá interrompem rapidamente a dança para convergirem em direção à cabeceira da roda, onde envolvem o cantador e marcam o intervalo com um grito uníssono. Depois disso seguem-se outros toantes, três para cada Praiá, depois do que tudo volta a ser repetido. Nos intervalos maiores entre essas rodas os Praiá param para descançar num lugar reservado que chamam Poró, interditado a mulheres, crianças e estrangeiros. Existe portanto um grande número de toantes levantados e a habilidade que distingue um bom cantador e que se supõe ser um “dom” está justamente em guardar e distinguir as mínimas variações entre os toantes que corespondem aos diferentes Praiá. São poucos os que sabem distinguí-los apenas ouvindo-os, raríssimos os que sabem entoá-los, a todos, corretamente. Como a própria forma de designar a roda de Toré - por “brincadeira” - indica, este é um ritual religioso do qual não se exclui uma forte carga de divertimento profano. Mas no caso do Toré do dia 20 de outubro, dedicado a Antônio Binga, existe um investimento específico de distanciamento desses aspectos lúdicos e profanos, de forma a torná-lo o mais cerimonioso possível, o mais imóvel, padronizado, na busca de uma espécie de canonização das sequências que o compõem. A sua família introduziu algumas alterações significativas no funcionamento do seu terreiro. Agora só pessoas escolhidas dentro da família podem dançar com seus Praiá, e as prescrições ficaram mais rigorosas, exigindo-se 15 dias de purificação em lugar dos dois ou três dias mais comuns. Ao Poró foi acrescentado um cruzeiro dos Penitentes, apesar dele nunca ter feito parte deste grupo. O parâmetro para esta construção parece estar na imobilidade do Toré do Índio Xupunhum, o Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 154 que revela a direção tomada no sentido de substituir uma figura imóvel por outra. Esse aspecto é reforçado pelas características das performances dos outros dois grupos rituais. Os penitentes43 formam irmandades bastante numerosas e generalizadas nas diferentes comunidades rurais e semi-urbanas da região. Existe uma irmandade entre os posseiros do Bem-querer, Caxeado e Calderão, da mesma forma que existe outra nas agrovilas e no Brejo dos Padres, onde participam índios de todas as seções, ganhando grande importância moral e política. Participar destas irmandades indica a permanente manutenção de predicados morais e religiosos e a sua “saída”, inicialmente restrita aos homens nas sextas-feiras de quaresma, encontra-se generalizada, havendo lugar também para um grupo de “beatas” que promovem ladainhas e novenas ao longo de todo o ano. A procissão dos penitentes, no entanto, continua restrita aos homens. Partem do adro da Igreja perto da meia-noite e percorrem todos os “cruzeiros” (pequenas cruzes de madeira localizadas pelas estradas e caminhos que marcam o local de morte de familiares) dentro de um determinado raio que pode extender-se bastante, o que leva a procissão a prolongar-se pela madrugada. Ela é composta por dois grupos, um compacto, que sai na frente carregando uma grande cruz forrada de azul, cantando “benditos” e elevando “credos” e outro disperso, que segue o primeiro a uma certa distância, os homens com as cabeças cobertas e os dorsos nús, lanhando-se com longas “disciplinas” que se aplicam na cadência das orações. A participação na irmandade dos Penitentes em nada exclui a participação nos Toré, podendo reforçar a posição moral de certos indivíduos. O terceiro grupo, dos dançadores de São Gonçalo, é descrito por Pereira de Queiroz (1973) justamente a partir de uma correspondência que encontra com as irmandades de Penitentes, relacionada à idéia de ritos funerários e de purgação dos pecados, seja dos vivos, que participam das danças e das procissões, seja dos mortos, que não puderam pagar suas promessas e deixam esta tarefas aos seus parentes. Neste último caso, a dança de São Gonçalo aproxima-se do papel desempenhado pelo Toré no pagamento de promessas e de curas alcançadas; rituais coletivos, muitas vezes patrocinado com recursos da família extensa, onde se prevê grandes gastos com a consumação ritual. No que diz respeito a sua performance também existem aproximações formais com o Toré, sendo a dança de São Gonçalo realizada em rodas que evoluem de forma semelhante, regida por um(a) cantador (deira), mas que se combina a procissão em que também se porta uma cruz de madeira forrada de tecido colorido, acompanhada de “salve-rainhas”, “padre-nossos” e “avemarias”, aproximando-se neste caso dos Penitentes. Esse três grupos rituais, sob a cerimônia patrocinada pela família Binga, mesclam seus elementos semelhantes e alternam suas seqüências particulares, num ciclo que iniciase às 6:00 e se encerra depois das 18:00 do dia 20 de outubro. Às 6:00 os três grupos e um grande número de pankararus saem de sua casa em direção à igreja, onde cada um dos grupos presta sua homenagem. É comum que em meio à dança de São Gonçalo, ao Toré e às orações dos Penitentes muitas pessoas que não estão diretamente ligadas a estes grupos recebam seus “guias”, inclusive as “zeladoras” de Praiá, que então realizam curas no local. Perto do meio-dia, a multidão reunida parte da igreja em direção ao cemitério, onde faz um círculo à volta da cova de Antônio Binga, cantam, rezam e dançam e, “os que estão mais preparados”, dizem o ver. Saindo do cemitério todos dirigem-se novamente para o terreiro 43 O fato de não ter sido possível dedicar espaço a este grupo ritual, ao longo deste trabalho não faz justiça à importância que assume em termos de regulação moral e de criação de novas linhas de afiliação e lealdades que vem se combinar com as desenhadas pelo Toré. Isso só reforça a interpretação em termos de arranjo, já que levar em conta esse agrupamento ritual, que não é excludente com relação a outros, poderia significar o desenho talvez de uma nova geografia ritual, abrindo nossa observação para outras formas e relações de territorialização Pankararu. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 155 de sua casa e sua família reúne-se mais uma vez ao redor do seu leito para novas orações, entrando novamente em contato com ele. Depois da sessão familiar uma pessoa da família fica à porta da casa organizando a entrada de parte do público, que então faz fila para visitar seu quarto. Neste momento os que lhe eram mais próximos, que passaram os dias anteriores em preparação para tal, o vêm e falam com ele. Depois disso volta-se a dançar o Toré e a consumir a grande fartura de carne, garapa e fumo que é distribuida, até o fim da festa, perto do início da noite. Com relação à carne, é sempre morto um boi inteiro, complementado com outros animais menores, sempre machos. Fica claro o investimento familiar na criação de um ritual de tão grandes proporções que seja capaz de, ao mesmo tempo, criar um contraponto à festa do Índio Mestre Guia do terreiro da Serrinha e servir de caminho para a descoberta de outro segredo de encantamento. Antônio Binga tem sido feito então o novo Encantado ao qual se tenta dar um peso mais familiar, ainda que através dele também construa-se a precedência de um determinado grupo familiar sobre os outras da aldeia. Esse trabalho inclui também o agregamento de elementos que não faziam parte da prática ritual de Antônio Binga, mas que agora se fazem necessários como forma de ampliar os vínculos com os diferentes grupos religiosos da área. A família Binga que é, ela mesma em grande parte, construída por esta tecitura de relações privilegiadas, ganhando uma unidade e consistência que não são encontradas em outras famílias, encontra por esse caminho a resolução simultânea dos dois dilemas da “queda”: a perda do segredo de encantar e a perda da unidade ritual. Um processo de construção, enfim, de uma família, de uma aldeia, de um novo segredo de encantamento, e de um núcleo de legitimidade étnica e de atração de lealdades. 5 Um elemento básico ao qual é necessário voltar para que fique clara a sua importância está relacionado ao que foi apresentado, por esta razão, como uma primeira geografia. Na base das questões abordadas ao longo de toda esta dissertação, mas mais intensamente neste capítulo, está a noção de territorialização, entendida em referência ao processo de atribuição de uma base teritorial fixa a uma determinada sociedade e à transformação, com isso, do que era apenas mais um dos diferentes princípios organizadores da sociedade, embutido ou mesclado a outros, num princípio hegemônico (OLIVEIRA Fo.,1993). É esse processo de enquadramento numa moldura territorial, criada de forma arbitrária com relação à sociedade sobre a qual é aplicada, que constitui um ponto chave para a apreensão do sentido das mudanças por que passam os Pankararu. O território se impõe àquela sociedade como elemento fixo sobre o qual é preciso investir grande carga de “invenção cultural” para restituir-lhe significado cultural, através da composição de invenções simultâneas: o novo segredo de encantamento, com a criação do Encantado Antônio Binga; o clã Binga, em plena construção de seu próprio ancestral; um novo símbolo étnico, que é constituído a partir de um símbolo faccional; uma nova unidade ritual, que é também a constituição das possibilidades de recuperação da unidade política segundo um sistema ideal. Esse sistema realiza um modelo Pankararu de equilíbrio e unidade anterior à violência colonial, marcada pelas linhas ou pela progressiva mistura. Na atual busca deste modelo podem ser vistos os diferentes efeitos de territorialização sendo recombinados num arranjo particular que pretende restituir a coerência às suas sobreposições contraditórias. A tensão entre o modelo da unidade, associada ao espaço público e à representação do étnico, e o exercício ritual na sua prática no mundo, que leva à constituição de lealdades associadas a círculos familiares auto-constituidos de forma ritual, parece ser a pista mais Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 156 forte sobre o princípio ordenador da relação entre identidades e espaços sociais e sua possibilidade de tradução num arranjo territorial próprio aos Pankararu, demarcado pela situação histórica definida a partir da década de 1980. A dinâmica entre autoridades rituais, políticas e familiares e sua permanente busca de compatibilização com a composição heterogênea do território encontra o seu mito de origem na violência colonial, cujos deslocamentos teriam retirado nossa imagem dos Pankararu da imobilidade do modelo, para o equilíbrio do arranjo. As mudanças introduzidas progressivamente pelos “direitos” e pelos novos “recursos”, principalmente a partir da década de 1980, introduziriam novos elementos no arranjo e alterariam o equilíbrio. A solução dada pelo Pankararu é o recurso mais uma vez ao modelo na tentativa de resconstituí-lo através de rearranjos que permitam sobrepor menos inexatamente suas diferentes geografias. A busca da reconstituição de uma unidade étnica passa pela pretensão a um território total, congelado sob um determinado rearranjo, impondo-lhe regras, ou um centro imóvel, na tentativa de eliminar o paradoxo dos múltiplos pertencimentos excludentes. Isso não significa voltar à concepção do território como elemento explicativo da política e da identidade (este ponto exploraremos no capítulo seguinte), em termos de conquista, de necessidade, de manutenção etc. O teritório deve ser explicado como um “quase-objeto” (LATOUR,1994) onde intercedem formas materiais e processos de desmaterialização. No jogo entre materialização e desmaterialização encontramos o espaço de exercício da política, através do que descrevemos como o exercício ritual. Através dele é possível estender os fios que ligam os processos de construção étnica. Contra o monopólio dos recursos, existe a arma da expropriação dos signos étnicos: o domínio dos cargos de governação, não impede que a principal forma de criação e manutenção das lealdades, o sistema ritual, se fragmente dando origem a novos círculos de adesão que precisam ser energicamente combatidos ou contrapostos, com a criação de um ritual tão monumental que os deixe na sombra. Para isso, são acionadas as relações de parentesco que, no entanto, precisam ser constantemente produzidas, tanto no exercício ritual quanto na distribuição de recursos. Da mesma forma, seria errôneo pensar a questão da História para os Pankararu em termos de imposição de mudanças que teriam levado à destruição e reconstituição de uma determinada forma cultural, já que nela a criação, na sua forma de descoberta de segredo tem um lugar central, dando permanente dinâmica, e portanto historicidade, à sua cosmologia e formas rituais. As sementes de novos Encantados, o levantar o Praiá, a descoberta do segredo e a multiplicação dos Terreiros formam um sistema de metáforas criativas, abertas, cuja maior característica é a de permitir aos Pankararu reinvestirem permanentemente o mundo de um caráter mágico, onde o cultural não se opõe ao histórico, o mítico não se opõe ao ritual, a ordem natural não exclui a criação humana e onde o humano é a base do sobre-humano. Aqui, o reencantamento não é uma retomada, uma restauração, uma revivescência, é o próprio modus operandi. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 157 Capítulo 4 - Uma aldeia aberta O exterior e o interior formam uma dialética da dissecação, e a geometria evidente dessa dialética nos cega desde o momento em que a fizemos aparecer nos domínios metafóricos. Ela tem a nitidez decisiva do sim e do não , que tudo decide. Fazemos de tal dialética, sem tomar maiores cuidados, uma base para as imagens que comandam todos os pensamentos do positivo e do negativo. Os lógicos traçam círculos que se produzem ou se excluem e logo todas as suas regras ficam claras. O filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A metafísica mais profunda enraiza-se numa geometria implícita, numa geometria que -queiramos ou não- espacializa o pensamento; se o metafísico não desenhasse será que ele pensaria? [...] Tornar concreto o interior e vasto o exterior, são, parece, as tarefas iniciais, os primeiros problemas de uma antropologia da imaginação. (BACHELARD,1984) Topologia Se o segundo capítulo buscou responder questões relativas à implantação do governo tutelar de formato estatal ("colonial") sobre uma população indígena organizada em moldes não-administrativos ("sem Estado") e o terceiro capítulo desenvolveu a análise do arranjo territorial Pankararu de uma forma que veio a destacar uma geografia de natureza ritual (“valores místicos”), este capítulo se dedicará à descrição do que, nas formulações de uma antropologia política inaugural, foi apontado como o problema dos “limites do grupo”. Mas, como aqui parecem mais críticos os limites da antropologia política, sou levado a reformular o problema em termos de identidade: quais os limites da identidade Pankararu? Nos deparamos então, novamente, com o dazibao “índio é terra”, agora sob um outro ângulo, para recomeçar nosso jogo de perguntas e respostas: se índio é terra, quem está fora da terra já não é índio e quem está dentro... é sempre índio, ou expropriador das terras e do índio? O território é o limite? Ou é possível fugir desta dicotomia ontológica entre o ser o do não-ser, que lhe é emprestada? De fato, não é novidade que muitas vezes identidade e terra indígena podem simplesmente não ser coincidentes, nem estarem ligadas por relações de dependência, causa ou efeito. Entre os Pankararu, o uso da idéia de “mistura”, ainda que denote intercurso sexual entre índios e não-índios e os frutos desse intercurso, pode também, por extensão, conotar o desrespeito à uma espécie de ordem natural de disposição das pessoas, em que os que são índios deveriam estar dentro, assim como os que não são, deveriam estar fora, da área indígena. Assim, as situações de índios fora e de pessoas consideradas não indígenas dentro da área, seja morando, trabalhando ou participando das festas, também são pensadas como situações de mistura, que podem sugerir a nostalgia de um insulamento que nunca existiu: Aqui tá uma aldeia aberta, entra quem quer que seja. Aqui não tem mais um decô [decoro] que nem os Fulni-ô. Nos Fulni-ô, chegô lá na cancela: Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 158 "Que é que vocês qué?" Aí você volta. Entra se dissé o que vai vê, o que vai buscá. Mas aqui?! Aberto pro lado do Bem-Querê, aberto pro lado de Petrolândia, aberto pra tudo, entra quem qué. [P: O sr. acha que cercá a área toda podia ser uma solução?] Podia, porque tinha respeito. E morá porteiro em cada porteira: "Que que você qué fazê lá dentro?". Mas tem uma estrada de Petrolândia pra Tacaratu, aí fica sem jeito também né. Podia tê uma área separada... Mas não tem solução mais não. Aqui só quando..., sei lá, só quando Deus mandá mesmo, ou então emancipá esse povo e a polícia tomá conta... (João de Páscoa) Na “aldeia aberta” Pankararu o que normalmente é pensado como o de fora da categoria índio é tão importante na constituição dos seus mitos de colonização, na instituição de sua organização política e na criação de mediadores, que alteram essa organização e sua relação com o poder tutelar, que a própria repartição entre os de fora e os de dentro fica comprometida. A mistura nos impõe a necessidade de descrever o território também como um espaço de trocas e negociações identitárias que não é demarcado através de fronteiras cujos marcos que possam ser recitados com precisão, mas estabelecido através de um jogo entre distâncias permanentemente repostas, mesuradas, reavaliadas, entre pessoas e relações, que servem ora para desfazer a idéia de unidade Pankararu, criando repartições internas ou atenuando dicotomias, ora reestabelecendo essa unidade, ao aproximar o que está distante. Essas distâncias definem um território relacional e não geométrico, que pode se estender ou se contrair de acordo com os contextos, excluindo ou incluindo indivíduos ou agrupamentos inteiros, de acordo com o estado de um jogo de posições que possui grande número de variáveis. A mistura funciona como força de atração e repulsão que estabelece as distancias definidoras de um território que não pode ser objeto de uma grafia, por complexa que ela seja, mas de uma logia, onde os topos podem ser grupos ou indivíduos, organizados segundo significados que variam no tempo e no espaço e não exatamente segundo sistemas ou estruturas. A intenção deste capítulo é reunir uma série de situações empíricas que possam nos ajudar na discussão sobre a natureza da relação entre território e identidade. Ao contrário, ou numa necessária contrapartida do que fiz no capítulo anterior, onde tentei dar o máximo de concretude a um território que podia quase sempre ser grafado, aqui estaremos de frente com o que esse território tem de relacional e portanto impossível de ser representado graficamente. A realidade da mediação entre território e identidade realizada pela abstração dos “direitos” nos dá acesso a um território imaterial. Aqui o território aparecerá fundamentalmente como referência, fundamental, mas não como moldura, abrindo-se para o "vasto exterior" da identidade Pankararu, onde a dicotomia do ser / não ser tem um caráter mais pendular que geométrico. Desterritorializações e reterritorializações O primeiro tema da "aldeia aberta" está na mobilidade Pankararu e na expansão dos fronteiras identitárias que compõem o território topológico, na multiplicação dos espaços de validade e transformação da identidade indígena. Para isso identifiquei três territórios avançados da mistura que hoje caracterizam circuitos regulares da saída dos Pankararu, não estando mais portanto, apenas no plano das viagens temporárias e/ou eventuais dos circuitos rituais, das "buscas de direitos" e das "busca de portarias", nem das já plenamente firmadas como um território outro, como no caso das áreas Geripancó e Kantaruré. São Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 159 elas, a situação das agrovilas criadas na beira do lago de Itaparica depois da construção da UHE, a situação dos jovens indígenas que vão buscar sua escolarização fora da área e, finalmente, a situação dos Pankararu de São Paulo, onde estima-se existirem 1500 índios ocupando uma única favela no bairro do Morumbi. Essa situações vem se combinar de formas diferentes com o tema das viagens, presente ao longo de toda esta dissertação: viagens de trocas rituais, de fuga das secas, de busca de direitos, de “enxamamento”, de busca de emprego, de levantar aldeia, de busca de recursos. 1 A construção da UHE de Itaparica inundou uma área de 834 km2, atingindo direta ou indiretamente 40.000 pessoas ao fazer desaparecer as cidades de Petrolândia, Itacuruba (PE), Rodelas, povoado de Barra do Tarraxil em Chorocó, Glória (BA) e outros 23 núcleos rurais, áreas agriculturáveis e ilhas (Pólo Sindical/CEDI - Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional, 1993). Com relação ao Município de Petrolândia a área inundada foi de 14.310 ha (8,9% do município) e a população atingida foi de 6.400 pessoas (46% da população rural e 27% da população total do município), das quais 1.342 famílias foram reassentadas entre a cidade de Nova Petrolândia (226) e as 16 agrovilas (1.116) de um projeto de irrigação que ainda espera conclusão. O projeto das agrovilas abrange uma área de 5.712ha, divididos em 1723 lotes que variam de 1,5 a 6 ha e divide-se em dois subprojetos: Barreiras, com 2.682 ha dividos em 809 lotes, distribuídos por 10 agrovilas e Icó Mandantes, com área de 3.030 ha dividida em 914 lotes, distribuídos em 16 agrovilas (idem). Esta nova realidade tem se mostrado um dos maiores desafios do sindicalismo local, que concentra aí grande parte de seu esforço de articulação, na criação do seu próprio pessoal técnico especializado, na negociação de prazos para o cronograma de implantação dos projetos etc. Assim, além de significar a reterritorialização de populações camponesas e ribeirinhas, onde estas tiveram suas unidades de exercício ritual, dominação social e organização política fragmentadas, as agrovilas representam também uma transformação nas técnicas agrícolas, na estratégia sindical e na relação dos próprios trabalhadores rurais com o sindicato, a cada dia com maiores responsabilidades pela administração dos projetos. Nas agrovilas foram assentados aqueles que possuíam propriedades ou que simplesmente trabalhavam em terras atingidas pelo lago, seja como diaristas, meeiros, rendeiros etc. Isso fez com que muitos dos Pankararu que trabalhavam na beira do rio durante os períodos em que a área indígena mais sofria com a seca (Cf. a discussão sobre a categoria de "assistidos" do Capítulo 2/1), recebessem também seus lotes nas agrovilas. O mais comum é que essas famílias tenham origem na seção norte, onde as condições de plantio se desagregam com mais facilidade e mais rapidamente, levando-as a assumirem, como meeiros ou rendeiros, lotes "de beira", de 1 a 3 tarefas de diferentes proprietários, principalmente nas épocas de seca, sem no entanto abandonar as terras da família dentro da área indígena44. Para além das alterações que isso traz com relação ao contexto político local, onde as antigas formas de subordinação e alianças são bruscamente substituídas por outras ainda em plena estruturação, existe a produção de uma série de novas relações de autoridade internas às próprias agrovilas, às quais os Pankararu aí instalados também passam a estar 44 O desenvolvimento da agricultura irrigada levou à formação de aglomerados de trabalhadores temporários em certos trechos irrigados, formando verdadeiros "bairros rurais", como na periferia de Barreiros, onde em 1985 foram cadastradas pela CHESF para o plano de desocupação, 288 famílias (PANDOLF,1986). Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 160 subordinados. As agrovilas organizam-se em pequenos arruados, onde as casas se distribuem em duas fileiras de frente uma para outra e cujas terras de fundos são dedicadas à agricultura, estando ainda sendo instalados os sistemas de irrigação por aspersão cuja tubulação passa sob a terra, poucos centímetros abaixo da superfície arável. Apesar de generalizado pela maior parte das agrovilas, o atraso na instalação desse sistema é bastante desigual. Naquelas em que o sistema já começou a funcionar, como é o caso das agrovilas 1 e 2, já se desenha um novo arranjo entre funções técnicas e de representação, que tem dado origem a pelo menos, pelo que pude observar diretamente, cinco novos lugares de autoridade: A) o responsável pela operação das bombas d´água, localizadas na beira do lago, que alimentam todo o sistema de aspersão da agrovila; B) o fiscal de roças, que percorre os lotes familiares verificando o funcionamento do sistema, orientando os agricultores em suas dúvidas e fiscalizando o cumprimento de determinadas obrigações; C) o representante da agrovila junto ao sindicato; D) o presidente da Associação Comunitária, que tende a ser cada vez mais comum nas agrovilas, como forma de viabilizar um planejamento da produção e de sua comercialização e, E) o representante da agrovila na "pastoral renovada", função menos técnica e oficial, mas não menos freqüente e política, que tem criado diversas lideranças comunitárias nas agrovilas para discutir no âmbito das atividades paroquiais questões que vão desde os problemas de convivência, até os de comercialização, de relação com a CHESF etc., criando uma sobreposição que leva a uma certa disputa por competência com a atuação sindical. Essas funções não são necessariamente remuneradas nos casos "C" e "D" e nunca no caso "E", cabendo-lhes também, dependendo de características pessoais, funções lúdicas. Nas agrovilas que visitei foi possível identificar índios exercendo alguns desses cargos. Apesar de não ter produzido um levantamento sistemático da distribuição dos Pankararu pelas agrovilas, foi possível identificar uma concentração diferencial nas agrovilas 1 e 2, onde se distribuem cerca de dez famílias plenamente reconhecidas como indígenas, contra as agrovilas 4, 7, 8 e 11, onde se distribuem outras dez. Esses no entanto são os números de posses legais de índios. Deve-se levar em conta também que um número crescente de outros núcleos familiares vem se agregando a estes, ao longo de um período de tempo longo demais para respeitar as regras impostas pela CHESF, que pretendem regular o crescimento das agrovilas a partir de um plano a expansão. Esses novos núcleos tem origem no casamento dos filho, ou entre os Pankararu, pela absorção de parentes com origem na área indígena, que usam os lotes dos parentes já instalados nas agrovilas como forma de expansão ou reposição do patrimônio familiar ou das terras em condições de plantio durante os períodos de seca, já esgotados dentro da área indígena. Um levantamento sistemático dessas famílias teria que lidar também com a questão da definição de índio dentro das agrovilas, em geral referida a dois usos: um mais largo e generalizado, identifica como índios todos aqueles que tem parentesco dentro da área; o outro, bem mais restrito, divide essa categoria entre aqueles quem só tem parentesco e aqueles que, além do parentesco, mantém uma relação periódica com a área indígena, trabalhando nas terras da sua família (ou nas suas próprias terras), ou participando dos chamados que lhe são eventualmente feitos para as festas ou para trabalhos coletivos. Os números apresentados acima correspondem a esta definição mais estreita, usada por aqueles mais engajados na política Pankararu. Mas, mesmo a participação nestas festas e trabalhos da área indígena podem não se dar de forma direta. É comum que mulheres de dentro da aldeia percorram as agrovilas convidando para “brincadeiras” de Toré ou para “festas de menino do rancho” e recolhendo donativos para a sua organização. Nos casos de trabalhos coletivos, quando se sentem impossibilitados de participar diretamente, os índios da agrovila pagam dias de trabalhos Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 161 para seus parentes, para que estes dobrarem o tempo dedicado aos trabalhos. Nessa dinâmica, foi criada uma liderança de ligação entre a área e as agrovilas, que tornou-se responsável pelos chamados da aldeia aos seus filhos do lado de fora. Essa liderança encontra-se diretamente relacionada por parentesco ao João Tomás e ao Antônio Moreno, numa ponte com as lideranças tanto da seção norte quanto de seção centro. Por seu intermédio os índios das agrovilas participaram, por exemplo, das duas grandes picadas coletivas feitas sobre terrenos de posseiros que estavam sendo realizadas durante minhas viagens à campo, uma independente da outra, nas fronteiras norte e leste. Como a maioria dos assentados nessas agrovilas, esse senhor nunca trabalhou fora da região, tendo substituído a alternativa de viagem para São Paulo, pela de trabalho na antiga beira de rio. Mas, como forma de destacar alguns dos outros elementos que o aproximam do perfil de uma liderança indígena, diz: A) ter viajado para Brasília já uma vez, para cuidar das questões referentes à homologação da área de 8100ha e de ter sido chamado outras vezes; B) ter a “semente” de um “mestre” que ainda não “levantou” e que ainda pretende levantar; C) ter construído uma capela dedicada à São Pedro na sua agrovila, onde realiza as festas do dia do Santo Padroeiro da aldeia e, D) sempre registrar todos os seus documentos no posto indígena, assim como sempre recorrer a ele quando precisa de ajuda legal. Essa liderança não exerce nenhum daqueles cargos que descrevi acima, mas cabe a ele o intercâmbio entre as diferentes famílias indígenas espalhadas pelas agrovilas, mantendo entre si e entre elas e a área um vínculo permanente e que lhes permitem se pensar com alguma unidade. Se mesmo algumas das famílias indígenas que moram nas agrovilas e mantém um contato mais efetivo com a aldeia parecem manter uma relação muito indireta com a vida tribal, utilizando parte dos salários da CHESF como recurso para a manutenção de um laço aparentemente formal e, sob certo aspecto, folclórico, com as atividades para as quais são chamadas, esses laços, por tênues que sejam, servem por sua vez, para que elas preservem algum vínculo com familiares e com a "tradição. É preciso reconhecer neste "folclórico" um caráter de distanciamento quase sempre reversível, a manutenção de um canal aberto ao retorno, através de laços políticos ou mágicos. 3 A segunda situação de saída dos Pankararu da área indígena se dá através do processo de escolarização dos seus jovens. Depois de completarem a primeira fase do primeiro grau nas escolas existentes dentro da área indígena, os jovens Pankararu têm que sair para completar os estudos nas cidades próximas. Levando em conta apenas os números referentes às escolas da FUNAI (quatro das nove existentes na área indígena. Cf. Quadro 11), para as quais obtive informações no posto indígena, uma média anual de 40 alunos completam a quarta série do primeiro grau, dos quais três quintos tem origem nas escolas do Brejo e os outros dois quintos nas escolas da Serrinha e do Espinheiro. Esses alunos dirigem-se então, principalmente, para as duas escolas de Tacaratu e para uma escola de Itaparica, restando ainda um número muito reduzido que se dirige para Paulo Afonso, quando possuem parentes na cidade. Aquelas que freqüentam as escolas de Tacaratu não dispõem de transporte e são obrigadas a subir à pé a serra, percorrendo trilhas muito íngremes da encosta numa caminhada de cerca de hora e meia. Já as que estudam em Itaparica têm por transporte um caminhão de carga aberto, posto a disposição pela prefeitura. Nele alguns poucos tem por assento estreitas tábuas de madeira dispostas ao comprido em ambos os lados da carroceria, enquanto a grande maioria viaja de pé, aglomerando-se sem qualquer outro apoio além dos seus próprios colegas de viagem. A viagem dura em média 40 minutos e o caminhão sai do Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 162 Brejo com os jovens indígenas atravessa toda a região de litígio, onde serve de transporte também aos filhos dos posseiros que estudam na mesma escola de Itaparica. Existe uma discreta tendência de separação entre índios e posseiros em bancos de lados opostos da carroceria, mas ela não resiste às condições da viagem, que torna qualquer tentativa de distinção precária. Nada disso, no entanto, faz que a viagem pareça especialmente desagradável ou tensa para aqueles jovens. Pelo contrário, a situação serve como momento de grande divertimento para a maioria deles e para um certo investimento erótico, favorecido pela grande quantidade de meninos e meninas em permanente e jocoso contato físico, que o balanço do caminhão sobre a estrada de areia vem intensificar. Esta situação da viagem e o fato de partilharem das mesmas classes na escola favorece a indistinção entre índios e filhos de posseiros, permitindo também que, fora dali, venham participar das mesmas festas e surjam namoros. Depois de completado o segundo grau há um grande afunilamento no número de jovens que seguem os estudos. Todo ano a FUNAI distribui um número restrito de fichas de inscrição para o vestibular que ela subvencionará. Cerca de 15 fichas que são distribuídas segundo critérios muito pouco claros e normalmente apontados como mais uma das formas de favorecimento das relações de parentesco e aliança do chefe de posto (Cf. Quadro 12). Uma faculdade que recebe com certa regularidade esses jovens é a de Arco Verde, onde no ano de 1994 existiam quatro índias cursando o magistério. Como trata-se de uma cidade próxima e de um curso bastante flexível, essas jovens passam apenas dois ou três dias da semana por lá, em dormitórios pagos, para o que não recebem ajuda da FUNAI. Até pouco tempo, no entanto, foi bastante comum que os jovens se dirigissem para as escolas agrícolas federais de São Cristóvão (SE) e Belo Jardim (PE), para onde a FUNAI concede bolsas de estudo. Mas, mais recentemente o curso tem se mostrado inútil na busca de emprego e o auxílio da FUNAI, que se compromete em fornecer material escolar, roupa de cama, colchão, alimentação etc., tem se mostrado bastante irregular, levando a uma diminuição do número de alunos interessados. No ano de 1994 estavam matriculados nessas escolas apenas quatro alunos. Em alguns poucos casos, esses jovens conseguem ainda, através de mediações próprias, junto à FUNAI bolsas e custeamento de cursos de maior status, em especial os de direito. Mas esses casos são raros e parecem ter dependido de uma conjuntura especialmente favorável. Fora casos especiais, como o dos jovens da família Binga (novamente cf. Quadro 12), em que a entrada nesses cursos está marcada por um determinado projeto de formação de novas lideranças com diferentes capacitações (mas, em certa medida, mesmo nesses casos) o movimento de saída da aldeia para a escolarização, desde o segundo grau nas cidades próximas, é percebido como um momento de distanciamento com relação à vida tribal, quando se tem acesso a um tipo de conhecimento que, quando não é hostil às tradições, coloca sérios problemas para as suas formas de transmissão e para o lugar que as lideranças antigas lhe atribuem na vida política da comunidade. De fato, é aí que se abrem as perspectivas de trabalho fora da lavoura e de relações mais estreitas com não-indíos, que podem levar a casamentos, intensificando a “mistura”. Trata-se de um paradoxo vivido pelas famílias, que percebem essa saída, por um lado, como um das formas de reproduzir ou retardar a fragmentação dos seus recursos fundiários, ou mesmo de amplia-los, mas, por outro, a reconhecem como uma virtual perda da participação desses filhos na vida da aldeia, que pode levar ao resultado inverso do esperado. Existe, no entanto, uma certa imagem do seu próprio ciclo de vida que serve como uma promessa de solução para este paradoxo, segundo a qual a este distanciamento seguiria-se o casamento com outros jovens da própria área indígena, a conseqüente volta ao trabalho na roça (mesmo que intercalado com o trabalho fora) acompanhada de um novo Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 163 interesse por parte daqueles jovens, agora pais de família, pelos assuntos da aldeia, definidos em dois pontos básicos: os rituais e o conflito fundiário. A recente retomada dos trabalhos de pastoral pelas dioceses locais agrega a esse jogo de distâncias relacionado ao universo juvenil, a recente participação em "grupos jovens", que já tem sua versão dentro da aldeia. Neste caso a contradição fica por conta da ambigüidade que este trabalho de pastoral encontra quando confrontado com a questão da religiosidade indígena. Apesar da Igreja nunca ter tido uma atuação regular dentro da área indígena, os Pankararu estão plenamente inseridos no universo religioso cristão através da participação em grande número de festas e rituais do catolicismo popular, como as festas de Padre Cícero e do Bom Jesus da Lapa, para onde viajam em turmas, ou em outras mais próximas nas quais assumem o papel de atores principais, como no culto dos Penitentes, nas festas de São Gonçalo e na festa de Nossa Senhora da Saúde, padroeira de Tacaratu, onde aos Pankararu cabe um dia especial, que abre a própria festa. Assim, a entrada mais sistemática da igreja na aldeia recentemente não encontra a princípio nenhum tipo de obstáculo por parte das famílias, mas como este trabalho, que os diocesanos denominam de “pastoral renovada”, tem por objeto privilegiado a criação de pequenas lideranças jovens, há uma antecipação na forma dos jovens virem a se interessar pelos assuntos da política tribal, com relação ao ciclo já esperado, descrito acima. O surgimento de um novo discurso político, que se antecipa à inserção do jovem como pai de família plenamente inserido no universo dos homens adultos, provoca um deslocamento com relação à orientação pelo grupo familiar mais amplo, o que é agravado pelo íntimo contato que nesta fase escolar os jovens Pankararu mantém com os outros “grupos jovens” de que fazem parte os filhos dos posseiros. Essas mudanças até o momento não despertaram mais que pequenos incômodos pontuais, encobertas que estão pelas funções lúdicas a que a atuação desses grupos tem servido, mas a disposição de parte dessas jovens lideranças em constituírem uma associação comunitária independente como forma de encaminhar suas próprias reivindicações à FUNAI ou às prefeituras locais, como forma de suprir necessidades desconsideradas pelas lideranças mais velhas, aponta para uma alteração nesta relação entre os dois universos etários. 4 Finalmente chegamos à terceira situação de desterritorialização. Em vinte e seis de julho de 1994, o jornal Notícias Populares de São Paulo abria a primeira página do seu caderno "Plantão NP" com a seguinte manchete, em grande destaque: ÍNDIO ELIMINADO NA FAVELA, e, em corpo menor, FUGIU DA TRIBO PARA MORRER EM SÃO PAULO. Ao lado da manchete, era estampada a foto do corpo de Jair Selestino (sic) de Barros, 20 anos, estendido numa calçada, sem camisa, sobre uma poça de sangue. Em segundo plano, distinguiam-se na escuridão duas viaturas da polícia local. A matéria que acompanhava a manchete e a foto, dava continuidade à linguagem lacônica e dramatizante informando: ... Jair estava chegando em sua casa, na favela Real Parque (zona sul), às 8h da noite de ontem, quando foi trucidado. / Segundo Fernando Monteiro do Santos, 25, primo de Jair, ele iria começar a trabalhar ontem como ajudante de pedreiro. / Fernando explicou que os grandes fazendeiros estão invadindo as terras dos Pankararu. "Ficamos sem terra pra plantar e caçar", contou Fernando. / Aqui, cerca de 1500 pankararus, segundo Fernando, se concentram nas favelas Real Parque e Paraisópolis. "Ficamos próximos para poder ajudar um ao outro". / Apesar de estarem na cidade grande, eles realizam reuniões onde Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 164 celebram seus rituais e conversam em sua língua nativa, o Iatê. / O assassinato de Jair abalou os índios. "Não estamos tendo sossego em lugar nenhum de uma terra que era nossa muito antes dos portugueses chegarem", disse o índio Geraldo Francelino dos Santos. (PER45.:1994/07/26) Logo a seguir a reportagem apresenta as declarações de um funcionário da FUNAI que, inquirido sobre o assunto, deu ao caso o tratamento de um caso de polícia e de fatalidade moralizante, ao afirmar que, provavelmente, o índio assassinado teria sido expulso da aldeia, baseado numa suposta tradição do grupo de "mandar embora quem apronta confusão na tribo". Cerca de duas semanas depois, o Jornal Folha de São Paulo dedicava uma página inteira do seu caderno "Cotidiano" para comentar a inusitada existência de uma tribo indígena residindo em pleno bairro do Morumbi. A manchete consistia da seguinte frase entre aspas, "No mato a gente tem mais liberdade" e, em letras menores, a sub-manchete: Indígenas dizem que gostariam de voltar para sua terra, mas que ficam na cidade devido às chances de trabalho. Dividida em três blocos, a matéria contava como os Pankararu tinham criado uma "rede de solidariedade" nas favelas de São Paulo, inclusive com a formalização de uma entidade, a SOS ÍNDIO FAVELADO, que serviria para dar ajuda àqueles que chegam de sua área indígena procurando trabalho e lugar para ficar em São Paulo. Além de informar que o pajé da favela, o já citado Fernando Monteiro dos Santos, reunia seus parentes para rituais todas as semanas, a matéria se apressava em fazer algumas comparações, como entre as crenças dos Pankararu e o candomblé, acrescentando Quando procuram emprego, os pancararus não contam que são indígenas para evitar discriminação. E a identidade cultural passa desapercebida. Os pancararus que vivem em São Paulo são mestiços com peles branca ou preta. (PER.:1994/08/07) Nos blocos seguintes a reportagem traz como exemplos, alguns depoimentos de indígenas sobre as razões de terem ido para São Paulo e suas expectativas futuras, para concluir que todos prefeririam estar em sua a área indígena natal, não fosse o desemprego e a falta de terras. Em seguida, é feito um rápido resumo da situação que os teria retirado da sua área, localizada entre os municípios de Tacaratu e Petrolândia, sertão de Pernambuco: Os pancararus são, oficialmente, donos de uma reserva em Pernambuco com 8100ha. Mas cerca de dois terços de suas terras estão ocupadas por 400 famílias de trabalhadores rurais. / Os invasores da terra têm apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT-PE). / "Há mais de 200 anos as famílias moram lá", diz Januário Moreira da Silva Neto, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Petrolândia, filiado à CUT. / ... A violência das favelas paulistas já matou mais pancararus do que o conflito de terra. Cinco já morreram na cidade, segundo Fernando Monteiro dos Santos... (idem) Mais adiante, 45 As citações retiradas de matérias de jornais aparecerão sucedidas do código "PER:" seguido da data de publicação. Sua referência completa pode ser recuperada ao final desta dissertação, na lista das Notícias de Periódicos consultadas. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 165 cerca de 1500 pancararus moram na cidade. Em 90, diz Santos, eram cerca de 150. / A FUNAI (...) considera esses números exagerados, mas reconhece que uma comunidade de pancararus se instalou em São Paulo. / Segundo a FUNAI, os pancararus são os primeiros indígenas a migrarem em massa para São Paulo. (idem) Uma semana depois, o assunto também ocuparia uma página inteira do jornal Diário de Pernambuco, sob o título Índios voltam à tribo com medo de morrer e, em letras menores, Pankararus que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência urbana. A matéria falava das dificuldades da área indígena envolvida no conflito, mas insistia em que os Pankararus estariam voltando em levas e acrescentava ... O trucidamento do índio Jair Celestino de Barros, 20 anos, no último dia 25 de julho, saiu no "Aqui Agora" do SBT e apavarou os 5800 indígenas que vivem da cultura de subsistência, em terras de conflitos com posseiros, margeando a barragem de Itaparica. / Segundo levantamento feito pela Associação Indígena do Índio Pankararu, mais de 10 índios já morreram nos últimos 40 dias na capital paulista. (PER.:1994/08/15) A intensificação do fluxo de deslocamentos de trabalhadores do campo, em especial do Nordeste, para as grande cidades do Sudeste a partir da década de 1940, atingiu também os Pankararu. A maioria dos homens entre 50 e 70 anos, mas também muitas mulheres, tiveram experiência de trabalhado em São Paulo. Esse trabalho se deu na maioria dos casos para os homens, nas equipes de desmatamento da Cia de Luz do Estado. Alguns "gatos”, como são chamados os agenciadores de mão-de-obra, iam buscá-los na própria aldeia, para entregá-los em lotes diretamente ao “empreiteiros” de obras civis e outras, criando um fluxo constante de Pankararus nas décadas de 1950 e 1960 para aquela cidade. Em pouco tempo São Paulo tornaria-se uma referência para todo o grupo, que tem lá filhos e irmãos. As conclusões da análise de Garcia Jr. (1989) sobre os deslocamentos de nordestinos para o "Sul" e sobre o papel que desempenham não no abandono das suas formas de organização social anteriores, mas na sua manutenção, são muito esclarecedoras da relação especial que se estabeleceu entre o território Pankararu de Pernambuco e a cidade de São Paulo, em especial, a favela Real Parque, no bairro do Morumbi, onde se desenha uma espécie de reterritorialização Pankararu. A partir da década de 1940 foi estabelecido um fluxo de homens que saíam da área indígena temporariamente, para trabalhar curtos períodos, sem se integrarem permanentemente à cidade, como forma de reequilibrarem o orçamento doméstico em ano de seca ou em situações emergências, voltando sempre que as necessidades imediatas já tivessem sido cobertas, ou quando se anunciasse um bom inverno. Com o tempo essa tornou-se uma saída também para as famílias numerosas com dificuldade de repartir suas terras entre os herdeiros, levando a que essas viagens se tornassem quase uma fase no ciclo de vida dos jovens indígenas que lá iam buscar recursos para casar, para comprar novos pedaços de posse dentro da área indígena ou recursos para instituírem negócio dentro ou fora da área. É possível que um homem engajado nessas viagens, aos 50 anos, quando já começa a abandona-las, tenha repartido sua juventude entre São Paulo e a área indígena, passando um total de até 15 anos fora, distribuídos em períodos de estadia que vão de seis meses a dois anos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 166 Em alguns casos mesmo é possível que os depoimentos invertam o sentido do movimento e o que passa a figurar como "viagem" é a volta para a aldeia durante os invernos, em anos intercalados para plantar com a família. Isso é possível porque na maioria dos casos os empregos que arranjam em São Paulo são temporários, como peões da construção civil, ou como artesãos autônomos em oficinas mecânicas e de carpintaria, ou mesmo em empregos instáveis como os de empregadas domésticas, serventes etc. Mas a partir da segunda geração de Pankararus trabalhadores em São Paulo, que coincidiu aproximadamente com a idade adulta das primeiras gerações de crianças alfabetizadas pelo posto indígena, as mulheres intensificam sua viagens e aparentemente passaram a servir de base para permanências mais estáveis. A cada núcleo familiar instalado lá, tornava-se mais fácil e provável que novos jovens percorressem o mesmo caminho, fazendo com que essas viagens assumiram um caráter sistemático e familiar. O fato de construírem uma base espacial relativamente homogênea, logrando reproduzir uma organização política que reproduz nos seus traços mais gerais aquela da aldeia e assumindo um caráter de grupo formalizado que não é mais um simples agregado de famílias desterritorializadas, diminui os custos materiais e afetivos da transferência, de que nos fala Garcia Jr (1989), num efetivo processo de reterritorialização. Depois das notícias sobre o assassinato do jovem Pankararu, a comunidade localizada na favela ganha grande visibilidade, emancipando-se do discurso das lideranças do Brejo, onde sempre apareciam como mais um dos argumentos justificadores da necessidade de mais terras. Destaca-se então um personagem que apresenta o primeiro pedido de providências com sugestões concretas à FUNAI, sobre a situação do grupo do Morumbi: Frederico M. B., Pankararu de meia idade, residente em São Paulo, pedreiro de profissão e dono de uma micro-empresa de reparos e pinturas, dirige-se à FUNAI e, se dizendo que sensibilizado pelas péssimas condições em que vivem os índios na favela e tentando corrigir uma situação pela qual também já sofreu, denuncia a situação de calamidade, de preconceito e violência em que seus parentes vivem e exige que o órgão providencie "carteirinhas de índio", para que eles possam provar sua identidade e, com isso, terem acesso aos seus "direitos". Além disso, Frederico declarava estar doando 24 alqueires (aproximadamente 58ha ou 580 mil m2) de um terreno de sua propriedade na favela, para que o grupo pudesse fundar ali sua própria aldeia indígena. Como iniciativas independentes de qualquer providência da FUNAI, Frederico também comunicava que o grupo estava formando a associação SOS Comunidade Pankararu de São Paulo, para tentar conseguir, junto à empresas, doações em animais para criação e máquinas de costura. A idéia não foi bem recebida nem pelas lideranças do grupo em Pernambuco, nem pela FUNAI que, depois de uma reunião conjunta nos primeiros dias de 1995, decidiram não aceitar a proposta de uma nova área e restringir o reconhecimento apenas à declaração oficial de que, quando fosse o caso, determinados indivíduos estariam “registrados no posto indígena” da área de origem. Além disso, ficou acertado que um funcionário do órgão e uma liderança da aldeia iriam até Brasília para confirmar quem é e quem não é índio. Só então, seriam providenciados os registros de nascimentos. O conflito que emerge entre as posições das lideranças de São Paulo e as de Pernambuco parece passar pela definição do estatuto das viagens que levaram aquela população até lá: a sua compatibilidade e mesmo funcionalidade para a posição das lideranças do Brejo, engajadas na busca de recursos fundiários e de projetos de desenvolvimento, está em caracterizar aquela saída de pankararus como uma diáspora, onde, em termos ideais, todos estariam dispostos a voltar, justificando, assim, as demandas por recursos. No entanto, a nova posição dos Pankararu de São Paulo, ou de parte deles, vem no sentido de transformar seu deslocamento em mais um enxame, dando continuidade Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 167 ao movimento de fragmentação e expansão da identidade Pankararu, através de mais uma reterritorialização que se quer definitiva. Na abordagem da imprensa a identidade indígena aparece ameaçada de diluição entre outras identidades alternativas e concorrentes, como a de nordestino e de negro. Ligado a isso, existe uma rede de agentes e agências de mediação que já se deixam perceber em disputa pelo lugar de representantes, de porta-vozes legítimos, desse grupo indígena particular, rede que aliás distingue-se da que opera através das lideranças tradicionais da aldeia em Pernambuco. De outro lado, há a discussão sobre o que é ser índio e quais os requisitos necessários para ser reconhecido como tal. Existe também a questão da territorialização das identidades e sua tendência à definir fronteiras precisas, num território jurídico-administrativo. Uma situação que constitui uma espécie de "exagero sociológico" em estado natural dos elementos que estão no centro deste trabalho, mas que aqui só é possível apontar em seus traços mais gerais. 5 Trabalhar com a heterogeneidade das relações sociais não é, assim, uma questão descritiva, uma mania de antropólogo com o rigor do empírico, mas a condição de possibilidade de constituir um campo de questões a serem examinadas, uma problemática. (GARCIA JR,1989) Esses discursos e situações que vêm sendo descritos, tomados isolada e superficialmente, podem apenas servir de exemplos do que indistinta e genericamente tem sido chamado de "manipulação da identidade". Minha intenção no entanto, não é estampar sobre elas um rótulo que resolve apenas um problema de classificação desses sujeitos e dessas situações, encontrando um lugar para aqueles que não estão, ou que estão em muitos lugares simultaneamente. Afirmar a "manipulação da identidade", se não temos como ponto de partida uma posição substantivista, é uma simples tautologia que deixa a descoberto, porém, questões fundamentais do ponto de vista antropológico: quais, afinal, as condições sociais de possibilidade dessa "manipulação"? Quem são esses sujeitos de difícil classificação? Como e quando o seu hibridismo identitário se manifesta? Em que momento ele tem que se resolver, por que meios, através de que critérios? Como ele é representado pelo sujeito e pela comunidade?... Enfim, a afirmação sobre a pragmaticidade de certas situações individuais e de grupo, algumas vezes feita como veredicto e explicação sobre a natureza dos processos identitários, na verdade é apenas o ponto de partida para a investigação de situações concretas, onde seja possível revelar o funcionamento desse senso prático que orienta os jogos de identidade. Nos dedicamos agora ao detalhamento de três situações particulares de mistura onde estão em jogo certos usos da identidade indígena, para tentarmos através delas, alguma forma de inteligibilidade sobre a manipulação que ultrapasse a crença em sujeitos racionais em pleno exercício do seu cálculo estratégico. Trata-se, portanto, de um investimento sobre o que poderíamos conceber como análises de situações individuais ou situações identitárias, isto é, a combinação de duas perspectivas um tanto distantes que esperamos poder reconciliar: a aplicação da perspectiva de "situações sociais" de Gluckman sobre narrativas de percursos individuais46, com ênfase sobre a experiência e significação social. 46 Neste caso nos inspiramos em perspecitivas denominadas como "micro-história" e histórias de vida, ainda que também adequando suas pretensões e pressupostos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 168 Antropologia das políticas de identidade 1 Num texto de 1984, Maria R. de Carvalho se propunha “apreender a identidade dos povos indígenas do Nordeste fundamentalmente da perspectiva do território, fator considerado indispensável à sua integridade física e socio-cultural”. Apesar de não partilharmos dos seus pressupostos, segundo os quais o território é um meio da integridade sócio-cultural47, neste texto há ao menos uma sugestão de análise que consideramos extremamente feliz quando aplicada à situação Pankararu: um dos caminhos que levam do território à identidade passa pelos “direitos”, pensados como inerentes à situação de índios. Isso nos levaria à uma dicotomia feita não em termos propriamente étnicos, mas de indianidade. O corte não está entre Pankararu e brasileiro, negro, Xucuru ou outros rótulos que podem ser normalmente tomados como étnicos, mas no corte entre índios e não-índios, que é um corte fundamentalmente jurídico. A referência ao território é a referência a um determinado espaço donde emana legitimidade. Pertencer ao território indígena significa partilhar dos diretos que fazem referência a ele. Não se trata portanto, da mesma referência que os Matupit de Epstein ou os Nuer de Evans-Pritchard fazem às suas aldeias ou terras, porque no caso dos Pankararu, essa relação está mediada e irremediavelmente alterada pela existência dos “direitos” criados com o advento do indigenismo. Assim também, quando um Pankararu, como o Pataxó usado no exemplo da autora, dá a dimensão do seu conhecimento do território citando detalhadamente seus limites em termos de pontos, retas, léguas ao sul, ao norte, leste e oeste a partir da porta da igreja etc., o que está sendo caracterizado não é apenas ou principalmente o seu “domínio do lugar” em referência ao “mundo dos antigos”, mas também e fundamentalmente, o conhecimento de limites legaisadministrativos estabelecidos pelos “direitos”, desconhecidos do “mundo dos antigos”. É preciso, portanto, buscar uma nova leitura da relação entre identidade e território que não se prenda à naturalização dessas categorias, mas justamente invista sobre o que tenho chamado de jogos de distâncias desses sujeitos com relação a elas. Bourdieu (1989) aponta para uma forma de responder nossas perguntas sobre a natureza desses jogos de distância ao afirmar que as classes sociais são criadas pela adesão a uma forma de classificação lógica, ligadas a uma visão de mundo que conectam os indivíduos a grupos na medida em que aqueles podem descobrir propriedades comuns, para além da diversidade de situações particulares que os isolam e dividem. Uma identidade social seria, assim, construída sobre traços ou experiências comuns que depois de parecerem apenas comparáveis durante muito tempo, descobrem um princípio de pertinência próprio a lhes servir de vínculo real. A ênfase neste caso recai, portanto, na 47 Segundo a autora, uma das condições do território indígena exercer suas funções de meio da integridade socio-cultural é a sua natureza jurídica de propriedade estatal sob a posse de “povos que o partilham comunalmente”. Isso tornaria a propriedade privada objetivamente inviável e assim seria assegurada a inalienabilidade dos territórios e o respeito às culturas das comunidades indígenas. Segundo este raciocínio, a função fundamental do território indígena passa pelo impedimento que ele representaria ao processo de transformação da terra indígena em mercadoria. Esse não será um ponto abordado nesta dissertação, mas a situação Pankararu coloca um problema básico para essa série de encadeamentos lógicos. Nela o impedimento da propriedade privada não é impedimento para a fragmentação das posses nem para a transformação da terra em mercadoria, já que se não há propriedade privada, há um intenso mercado de posses entre os indígenas, assegurado, legitimado e regulado pelo posto indígena, que representa o próprio Estado e que não só reconhece as transações como as documenta. Como qualquer outro mercado, este também produz desníveis sociais e econômicos, acúmulos nas mãos de alguns e um número crescente de “índios sem terra” dentro da área indígena. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 169 capacidade dos sujeitos políticos estabelecerem correspondências adequadas entre discursos e princípios de classificação, entre as posições dos agentes no espaço social e a estrutura deste mesmo espaço, por um lado a forma das distribuições e por outro a natureza das divisões segundo as quais se organizam realmente. Desse ponto de vista, as classes sociais e a luta de classes, por exemplo, estariam longe de serem puro reflexo de uma realidade objetiva, realização "necessária", "determinada" por um recorte em "última instância", mas pelo contrário, seriam o produto de uma disputa entre formas possíveis de classificar o mundo social. Um produto simbólico, ainda que sustentado em recortes objetivos. A relação entre identidade indígena e território encontra forte correspondência com esta relação descrita por Bourdieu. Mas, para avançar nesta analogia, é necessário recuperar o uso feito por Goffman (1980) da noção de "categoria". Para ele, uma categoria é qualquer termo que impute identidade a um “agregado” ou “conjunto de membros” que podem ser agrupados por designações como "nós", "a gente", "da parte de" "companheiros" ou outras, de uma forma que os que estão fora possam reconhecer os que estão dentro da categoria como um mesmo grupo, ainda que o conjunto total desses indivíduos não constitua um único grupo em sentido estrito. Posseiros e índios, ao menos nesses casos enquadrados como de mistura pelos Pankararu, devem ser vistos como termos designativos de identidades categóricas, não como realidade ontológicas. Isso significa, no mínimo, duas coisas. Primeiro, os membros de uma categoria, ainda que, através do pertencimento a ela, tenham acusado características comuns, não possuem necessariamente "capacidade para a ação coletiva , nem um padrão estável e totalizador de interação mútua" (GOFFMAN, 1980). Os membros de uma categoria podem reunir-se ou não em um ou mais grupos sociais que os englobem ou os representem em maior medida, mas o que de fato seu uso evidencia é uma forma de classificar que serve para identificar os indivíduos dentro de um todo social. Ainda que essa classificação não seja capaz de gerar uma ação coletiva, pode orientar as relações que seus membros estabelecem com o resto da sociedade, por permitir reconhecer no outro um membro de sua categoria ou de uma categoria diferente ou oposta. Segundo, o fato de pertencer a uma categoria não implicar necessariamente a constituição de um grupo, significa que os indivíduos podem não dar a esse pertencimento o estatuto de identidade, no seu sentido político e por isso mais excludente. Estabelecidas estas distinções, é possível construir o vocabulário básico do território topológico, sem a reificação de classificações abstratas. Para os Pankararu, a mistura é justamente a faixa de possibilidades abertas entre a pertinência à uma “categoria” e a efetiva constituição de um “grupo”, ou simplificando, entre o pertencimento e a identidade, através do que normalmente é concebido como manipulação. O jogo entre mistura e partição é, portanto, um jogo classificatório ao mesmo tempo que político, já que é na capacidade de fazer com que a sua categoria apareça como um grupo que, como afirma Bourdieu (1989), está o maior capital político do representante, do porta voz, do mediador etc. É a aparente existência do grupo como tal que legitima o papel de líder ou porta-voz. Ao mesmo tempo, é o desempenho desse papel que dá existência ao grupo, da mesma forma que é do desmonte desta conexão entre pertencimento e identidade que saem os ganhos de seus adversários. Em lugar de uma antropologia política impõe-se, portanto, uma antropologia das políticas de identidade. 2 Vejamos o segundo tema da "aldeia aberta", revelado pelas distinções categóricas que impõem fronteiras identitárias dentro do próprio território político-administrativo indígena. A primeira destas distinções emerge com a reelaboração da experiência histórica Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 170 da mistura com os "negros"48 ex-escravos, que foram implantados no antigo aldeamento do Brejo dos Padres (Capítulo 1/1), junto com as “linhas” e que deixaram marcas físicas, distinções sociais e religiosas não muito claras ao visitante, mas que servem de elemento importante nas disputas faccionais. Esse foi um assunto particularmente difícil de abordar em detalhe junto a qualquer dos informantes com os quais realizei entrevistas, sendo-me vedado, portanto, enquanto tema na construção de genealogias. Mas, como veremos, não é no plano a que pode dar conta a reconstrução objetiva dos laços de descendência que a distinção entre índios e negros ganha expressividade. Essa distinção, na maioria das vezes surge como acusação em momentos críticos de desafio político ou em disputas por recursos e é praticamente apenas como vocabulário faccional que seu emprego ganha sentido, mas sempre um sentido genérico e, portanto, maleável. As acusações reciprocas de “negro” não se prestam a uma resolução objetiva, que pudesse solucionar definitivamente a disputa, já que nenhuma das partes está segura de sua “pureza”. Nem é possível aos Pankararu desenhar um limite claro no interior do seu sistema ritual, entre heranças diferenciadas. Exceções a isso talvez sejam duas localidades onde o senso comum não explicitado reconhece uma franca concentração de famílias com traços físicos e desempenho religioso mais claramente classificáveis como "negros". Uma na seção norte e outra na seção centro. São elas, o Barrocão, na margem norte da área indígena, encostado ao "trilho", e a "rua dos pretos", dentro do próprio Brejo dos Padres. É no Barrocão que se situa o terreiro do Josias, uma referência religiosa local, celibatário, cerca de 60 anos, filho de pai índio e mãe branca. Josias concentra em sua casa um grande número de referências religiosas de diferentes origens, ganhando com esta capacidade de compatibilizar festas e rituais grande notoriedade na sua seção. Na sala de sua casa existe um grande altar de cimento, com um nicho para a imagem de Santo Antônio, padroeiro da aldeia, e a sua volta se dispõem alternadamente, imagens de outros santos e de familiares seus já mortos, acompanhados de algumas referências aos Encantados e ao Toré, como o maracá e o círculo de penas usado na mascará dos Praiá. Ao lado da casa foi construída uma capela em devoção a São José, onde é guardada a Cruz dos Penitentes, usada nas noites de vigília da “tropa de penitentes” local: uma cruz de madeira com cerca de metro e meio forrada de tecido azul, de onde pendem presas numerosas fitas coloridas deixadas por devotos. Seu terreiro é uma importante referência para a realização de Torés, por “brincadeira” todos os sábados à noite, quando se realiza em primeiro lugar a resa do “terço”, ou eventualmente e durante o dia, quando por “promessa”, como na “festa do menino do rancho”. Essas cerimônias e rituais realizados no Terreiro do Josias apresentam diferenças significativas com relação aos outros terreiros visitados. Sem alongar a descrição, seria suficiente apontar as seguintes particularidades. A) Nele é possível ver Praiás infantis, coisa inconcebível segundo a "tradição" declarada por aqueles que são considerados autoridades religiosas de toda a aldeia (não só o cacique e o pajé), já que o trato com os Encantados é "fino", implica em prescrições e envolve "segredos", que estariam fora do alcance de uma criança; B) A regularidade dos Torés todos os sábado se e a sua combinação com a realização do “terço” também não encontra correspondência em qualquer outro; C) Entre os Praiá a que seu terreiro dá acesso encontram-se também figuras típicas do panteão da umbanda brasileira. Essas particularidades não impedem que esse terreiro seja muito freqüentado. Pelo contrário, ele reúne um grande número de pessoas, incluindo algumas bastante respeitadas. 48 Talvez não seja supérfluo lembrar que, ao contrário do contexto urbano, em muitas situações rurais, entre elas a que serve de contexto aos Pankararu, o peso pejorativo no uso da distinção de cor ou raça recai sobre “negro” em lugar de “preto”. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 171 Mas a maior parte de seu público é de jovens, que freqüentam a "brincadeira" como ponto de encontros, atraindo por isso também, alguns vendedores de balas e biscoitos, que armam seu negócio sobre pequenos caixotes improvisados. No entanto, mesmo no caso do terreiro do Josias, onde a mistura torna-se evidente e pontuada geograficamente, não é a isso que o termo “negro” tem por objeto. Se aplicado a situações como estas, ele não assume o caráter acusatório que lhe é fundamental e que o torna politicamente relevante. A acusação de negro não tem por objetivo constatar ou reafirmar algo dado, em maior ou menor medida, à vista de todos, mas justamente revelar o que a princípio estaria sendo dissimulado. Seu objetivo é o de questionar a legitimidade de um indivíduo ou agregado que reivindica direitos ou representatividade. Nesse sentido negro surge como categoria política na mesma medida em que a categoria índio o é. Ela fala não, ou não principalmente, sobre cultura, mas sobre “direitos”, pertencimentos e identidades. Desde o meu primeiro encontro com João Tomás esse caráter acusatório ficou muito claro. Foi na primeira entrevista em que se falou explicitamente do faccionalismo e em que ouvi pela primeira vez a segunda versão do mito colonial, que se fez presente também a distinção entre índios e negros, como num único pacote da semântica faccional. Ao chegar na casa do João Tomás pela primeira vez sabia apenas se tratar de uma liderança importante, mas não tinha idéia do peso dessa importância, nem da relação que mantinha com as outras lideranças, muito menos ainda tinha-me dado conta plenamente da repartição da área em seções politicamente diferenciadas. Apresentei-me então, como de costume, repetindo mais uma vez um texto monótono sobre quem eu era e quais os meus interesses de pesquisa, onde dava ênfase ao conflito entre índio e posseiros. João Tomás ouviu-me e, ao contrário do comportamento que estava acostumando-me a enfrentar, em que o interlocutor tinha que ser quase literalmente capturado ao longo de um diálogo monossilábico, ele imediatamente perguntou-me o que eu achava da situação. A inversão de papéis me deixou desconcertado e temi os riscos de começar um contato importante enunciando a opinião "errada". Tentei desvencilhar-me dizendo que era uma situação "complicada", mas ele insistiu, pedindo que eu explicasse quem eu achava que "complicava" a situação, ou "os posseiros" ou "nós índios". O pronome inclusivo era a pista que ele me dava sobre a resposta esperada, e eu a segui. No entanto, seu passo seguinte foi justamente desfazer a inclusividade do "nós" passando a acusar os "índios do Brejo" de não serem índios legítimos, mas "misturados", "negros", que teriam expúlso os índios legítimos para cima das serras, onde hoje as comunidades da Serrinha, Espinheiro, Logradouro e Barriguda estariam estabelecidas. Ao contrário do que seria justo, dizia ele, são os negros que recebem os recursos da FUNAI, são suas terras que estão sendo privilegiadas, em detrimento das em que os índios moram, ainda não homologadas. Mas, em sua natureza de vocabulário faccional, esta versão da repartição entre negros e índios encontrava reciprocidade. Na semana seguinte, numa segunda visita ao João Tomás, enquanto conversávamos, chegou um rapaz que vinha percorrendo as casas com um recado das lideranças do Brejo dos Padres, onde estava sendo convocada uma reunião urgente de toda a aldeia, aparentemente relacionada com o conflito com posseiros da seção central. O rapaz dizia ainda que, segundo a mensagem, o João Tomás deveria se encarregar de avisar da reunião por todo o Espinheiro, enquanto ele seguiria em frente, passando por outras aldeias. A resposta do João Tomás foi irônica e arrogante, dizendo que lá não existiam índios, apenas negros e brancos, que não tinham nada a ver com problemas de índios. Depois do momento de exasperação provocado pelo diálogo com o mensageiro, João Tomás e sua esposa explicaram-me que dias antes as lideranças do Brejo teriam se recusado a enviar para a Serrinha e Espinheiro os mantimentos fornecidos pela FUNAI. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 172 Na semana anterior, como depois fui informado, João Tomás havia encontrado na feira de Petrolândia o "delegado da FUNAI" conversando com lideranças do Brejo dos Padres. Aproximou-se do grupo mas, percebendo que tinham interrompido a conversa com sua aproximação, recuou para retirar-se quando o "delegado" chamou-o para explicar a situação: os que estavam ali acusavam-no de distribuir a parte de sua seção numa doação de grãos da FUNAI a negros e brancos da região. João confirmou ironicamente que, se ele estava dando mantimento a negros, todos eles eram negros “assinados no posto indígena”. Além disto, como ele não sabia nem ler, nem escrever, nem tinha as carteirinhas e o carimbo da FUNAI (fazendo alusão à proximidade daquelas lideranças ao chefe de posto), não tinha responsabilidade nisto. Fora de situações como essas o uso do termo "negro" é parcimonioso, por que não convém tocar num assunto sempre constrangedor. A acusação permanece sempre na sua forma incompleta, incapaz de tornar-se prova, porque não foi feita para isso. O limite entre índios e negros não é mensurável, não é passível de ser desenhado sobre a terra, na forma de uma fronteira, ele está irremediavelmente perdido e só pode ser recriado enquanto distância que separa, ou deveria separar, os que tem dos que não tem direitos. 4 Mas se o corte índio/negro assume o papel básico de vocabulário faccional, existe outro, que fala mais diretamente da etnicidade, que é o corte entre índios e posseiros. Nesse caso, a mistura cria um terceiro lugar, o vértice que dá forma e dinâmica à relação entre as estas duas categorias básicas, de domínio comum e manipuladas de forma absolutamente realista pela imprensa, por toda a documentação disponível (independente de sua origem) e, o que é mais importante, pelos diferentes mediadores acionados pelos conflitos, estejam eles de um lado, de outro, ou sob o dilema de não poderem acomoda-se confortavelmente em nenhum dos dois. A mistura é o terceiro lado, que traz ao palco o que é impossível de ser domesticado pelo vocabulário oficial, seja ele posseiro ou indígena. Na verdade, a dicotomia entre índios e posseiros, por ser usada em todas as instâncias e de forma tão repetida, transforma o papel social dessas noções. Elas deixam de ser instrumentos de descrição da realidade, para tornarem-se criadoras de realidade, além de serem, em si mesmas, realidades a serem descritas. Ao falarmos do conflito nos termos dessa oposição, aos poucos deixamos de nos referir a uma realidade concreta para trabalharmos com uma abstração, ao mesmo tempo que, por um "efeito de teoria" (BOURDIEU,1989), a sua reificação tende a torna-la real, enquanto quadro de referências necessário para os agentes em interação, passando a organizar a própria realidade em lugar de apenas descreve-la. Para nos libertarmos deste efeito das disputas, devemos começar por perceber que na sua existência cotidiana mais vulgar, essas categorias podem ser substituídas por outras, intercambiáveis, mas não exatamente correspondentes. Existe um leque relativamente largo de rótulos que podem ser atribuídos aos sujeitos em interação e que substituem de um lado o "posseiro" e de outro o "índio", de uma forma não gratuita. Essas designações não variam segundo indivíduos, mas segundo as posições relativas a que esses indivíduos ocupam nos diferentes momentos de enunciação. A dicotomia índios/posseiros é submetida, pelos próprios atores dos conflitos, à variações que tem como resultado a flexibilização necessária ao seu uso cotidiano, em que estão em jogo as relações mais diretas, de afinidade e parentesco. Cria-se com isso um campo semântico mais complexo, em que, em lugar de termos apenas uma oposição direta e perfeitamente refletida, descobrimos uma grade de categorias que servem para ressignificar a pura oposição. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 173 Assim, no interior desse campo semântico, se um não-índio aparece no discurso de um índio no papel de marido , bom vizinho ou enfim, em situações sem maior turbulência, que não implicam em competição por recursos materiais ou simbólicos, ele pode ser designado como "brasileiro", "branco", "particular" ou simplesmente não ganhar qualquer designação especial, figurando apenas através de um simples "ele não é índio". Nesse último caso, o mais atenuado de todos, opta-se por uma forma de designar que indica a exclusão do nós, sem que ela implique numa oposição ao nós. Por outro lado, sempre que a situação implicava em conflito ou tensão, foi possível observar que, invariavelmente, passava-se a designa-lo, dependendo do nível de tensão investido na situação de enunciação, por formas que variavam entre o "civilizado" e o "posseiro". Nesse último caso, quando a categoria não era imposta desde o início pelo próprio encaminhamento do diálogo com o entrevistador, ela era usada justamente quando se pretendia dar ênfase ao caráter conflitivo da relação entre aquele que falava e aquele que era objeto da fala. Da mesma forma, a auto-desinação ou a designação de outro como índio, como Pankararu ou como caboclo, respondia a uma gradação semelhante, sempre como forma de (re)situar a força e o significado que se deveria atribuir àquilo que inicialmente se apresentava como uma cristalina dicotomia. Nesse casos, a categoria de caboclo é a mais rica e ambígua. Ela pode ser usada por índios e não-índios para se referirem a índios e não índios, mas como sempre, de acordo com a situação de enunciação. É difícil imaginar que qualquer pessoa se refira a um índio e a um não-indio durante uma mesma seqüência de enunciados discurso igualmente como caboclos, ainda que isso fosse possível se eles fossem referidos em momentos diferentes. Por exemplo, um vizinho (índio ou não) pode referir-se ou não a um índio como caboclo, mas na boca de um posseiro (isto é, de um indivíduo que se posiciona numa situação de enunciação conflitiva), quase sempre a noção escolhida será essa e seu sentido deverá revelar uma desclassificação, ou melhor, uma reclassificação com relação à categoria índio, onde intervém a idéia de mistura e portanto de impureza, deslegitimidade com relação aos direitos, quase sempre territoriais, que lhe são atribuídos. A relevância sociológica desta distinção de usos está no fato delas operarem como uma espécie de shifter49, indicativo dos lugares ocupados pelos referentes, de sua relação com aquele que enuncia, assim como das diferentes situações em que ambos estão inseridos, que podem variar do amistoso ao conflituoso. Tais designações portanto, não nomeiam pessoas tomadas isoladamente, mas as introduzem num sistema de relações, apontando imediatamente para as posições que o sujeito e o referente ocupam nesse sistema, quando colocados em relação. Elas servem para continuamente estabelecer a fronteira entre o que é e o que não é Pankararu. Em outras palavras, elas denotam a distância a que o referente se situa com relação aos limites do pertencimento Pankararu. Expressões cujo objeto só pode ser determinado em relação aos interlocutores, servindo para situar quem fala e de quem se fala, expressões que nos remetem não a um texto, mas a um situação de discurso, ao contexto da enunciação. Isso explica em boa medida o que parecia ser uma contradição nos depoimentos de representantes sindicais sobre o conflito, quando insistem em citar a participação comum 49 Poderíamos pensar essas categorias como índices, no sentido semiológico proposto por Pierce (1972), em que um índice é um signo que se encontra ele próprio em contiguidade com o objeto denotado (por oposição ao símbolo que refere-se a alguma coisa por força de uma regra e ao ícone, que relaciona-se com seu objeto por partilhar com ele uma mesma qualidade ou uma mesma configuração), mas o fato das designações com que trabalhamos serem índices não só do lugar ocupado pelo referente, mas também daquele que enuncia, assim como da situação em que ambos estão colocados, acaba por aproxima-los da figura lingüística do shifter descrito por Jakobson (s/d), ou até mesmo por ultrapassá-la na quantidade de informações agregadas. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 174 de índios e posseiros em atividades de lazer, como exemplo que provaria não existir um conflito, mas antes uma "situação artificial" criada pela FUNAI. Trata-se de uma afirmação que, apesar de ser parte da estratégia discursiva sindical deste conflito, acaba por reconhecer a forma múltipla de relacionamento entre as partes. Para que fique mais claro: existe uma diferença entre posseiros e representantes de posseiros, assim como existe uma diferença entre índios e lideranças indígenas, mas as lideranças indígenas, por terem que representar a mais alta legitimidade étnica, têm que evitar ao máximo a "mistura", evitando também os espaços de franca mediação e nesse sentido dificilmente um não-índio dentro da área será apenas branco ou brasileiro para elas. Da mesma forma, mas num sentido contrário, os representantes dos posseiros tem que minimizar ao máximo sua imagem de invasores ao mesmo tempo que esvaziar a legitimidade daqueles que se dizem índios, muitas vezes dirigindo-se a eles como "caboclos" e insistindo nos exemplos que evidenciam a "mistura" social. A participação comum nos jogos de futebol por exemplo (exemplo, aliás, exaustivamente utilizado por estes últimos), é antes um tempo e um espaço de mediação das tensões que gradua e relativiza o conflito do que uma prova de que esse conflito não existe. Mais um espaço entre outros que impedem a transformação do conflito em violência aberta, mas que não negam a competição e a consciência da repartição entre aqueles que são e que não são, entre os que tem direitos e os que pretendem ter. O conflito, por se dar entre categorias que não são impermeáveis uma à outra, não se confunde com uma oposição homogênea: ela é uma oposição negociada mas nunca esquecida. O que a princípio poderia ser visto apenas como a proliferação de nomes para designar um mesmo objeto, com o tempo foi revelando-se uma forma relacional de classificação das pessoas, ainda que essas diferentes formas de classificação não sejam formalizadas por aqueles que as enunciam, servindo, nas falas cotidianas, como um elemento de retórica quase naturalizada. Observa-las, no entanto, nos serve para percebermos a mutabilidade e construtividade das relações e dos limites entre categorias que estão sempre se adequando às situações de tensão em que são empregadas, assim como para alterar o que, a princípio, definimos como o universo espacial de análise, os limites do território Pankararu. 5 Existem também os posseiros potenciais, isto é, sujeitos ou famílias que estão na parte da área que não foi homologada, mas que ainda é pretendida pelo grupo, podendo por isso serem alcançados pela fronteira dicotomizadora. Dentre eles existem os de inserção categórica duvidosa, cuja "indianidade" ainda tem que ser negociada (trabalharei com essas duas situações mais a frente) e os que são "registrados no posto", isto é, que alcançaram o estatuto jurídico de índios, com os direitos a que ele dá acesso, por vias que não passam necessariamente por uma negociação relativa ao pertencimento ou à identidade, mas pela troca de interesses diretamente com o responsável no momento pelo "registro" e cuja legitimidade está permanentemente em questão. A entrevista com José João do Nascimento, um dos posseiros expúlsos em 1992 do Brejinho dos Correias, seção sul, é rica em exemplos nesse sentido, ele mesmo considerando-se lesado por seu pai não ter “assinado sua família” como indígena quando isso foi possível. No seu relato fica claro como toda a categoria pode ser reduzida ao seu aspecto jurídico. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 175 Você sabe que alí não tem índio legítimo, a maioria ali é tudo assinado. Eu mesmo conheço um rapaz branco dos olhos azuis, do Bem Querer e assinado por índio. (José João do Nascimento) Como prova disso passa a enumerar aquelas famílias que hoje só são indígenas porque seus pais "se assinaram" como índios poucas décadas atrás, independente de qualquer relação de parentesco com a aldeia, em contraste com sua família, que de ambos os lados tem relações de parentesco com os índios, mas ficou de fora. De um lado, Tereza, irmã de sua mãe, nascida no Bem-Quer, era casada com Laurentino Barros, "índio do Brejo", e por isso, todos os seus filhos (portanto, “primo-irmãos” do João) são "assinados como índios". Seu pai também, mesmo sendo natural de Alagoas, se considerava e era considerado "parente" do atual vice-chefe de posto, através de um parente comum da aldeia de Geripancó. O próprio João José, por sua vez, tem um filho índio, com uma das meninas que namorou no Brejo dos Padres e que hoje é casada com um índio amigo seu, com quem "trocava dias" de trabalho. Hoje seu amigo e sua ex-namorada moram no próprio Brejinho dos Correias, numa das áreas retiradas dos posseiros. Acrescenta ainda que, além das terras de que foi retirado no Brejinho do Correias, ele tem um terreno no Olho D'água do Julião, na seção norte, dentro da área não homologada, na qual cria cinco ou seis cabeças de gado, e das quais quem cuida é um outro rapaz "assinado como índio", parente de criação dele (o avô do rapaz foi criado por sua família), morador do Bem-Querer, onde toda a sua parentela é de posseiros. Esse no entanto, não é um discurso exclusivamente comprometido com a posição de um excluído da área. Os mesmos elementos são encontrados também numa parte dos depoimentos indígenas, ainda que com os sinais invertidos. Neles, tais casos surgem como demonstração da conversão de valores operada nas relações entre índios e brancos em função da emergência dos direitos indígenas, enfatizando, assim, a distância e não apagando-a. A maioria desses posseiros aí, como aquele primeiro causo que eu tava lhe contando, de apanhá lagarta entre outubro e novembro, alí tem posseiro que é filho de índio, eles é que não querem se representá. Na época eles achavam que índio era bicho e hoje eles tem vontade de ser índio e não pode mais. Já é tarde. Mas que tem famílias deles..., que se for pra fazer exame, as famílias deles tudo tem sangue de caboclo, porque tanto cabocla cruzava com branco lá, quanto branca cruzava com índio aqui... (Antônio Moreno da Silva) Mas o registro no posto tem também um outro papel, aparentemente contrário a este, servindo não para não índios entrarem na área, mas para índios saírem. Existe uma série de situações em que a saída da área surge como movimento compulsório ou como única alternativa de reprodução social, decorrentes da escassez de terras e das dificuldades com as secas50, das situações de conflito aberto51, além é claro, dos casamentos, oportunidades de emprego etc. Mas, na maioria desses casos, ao se afastarem do território, 50 Que obrigam a muitos pais de família irem buscar parte de sua renda familiar em trabalhos temporários ou permanentes nas cidades próximas, enquanto suas esposas e filhos cuidam da roça e da criação, que dessa forma passa a representar a complementação e não mais o principal da renda familiar. 51 Em que o enfrentamento com posseiros ou com outros indígenas impuseram o deslocamento de famílias para fora da área, como foi o caso do conflito de 1982, em que seis famílias indígenas foram expulsas da "Marreca", depois de terem tentado ocupar terrenos dos quais outros posseiros já haviam sido expulsos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 176 que além de objeto é também referência dos seus direitos, esses índios buscam carregar consigo a prova de pertencimento à ele. Chegamos ao ponto então em que o território se faz mais imaterial. Como já tentei deixar claro, quando os Pankararu falam em seus direitos, eles não se referem apenas ao acesso à terra, mas a todo acervo de recursos simbólicos, materiais, incluindo aí o fato de estarem fora da competência legal, policial e tributária dos poderes locais. Uma frase ouvida algumas vezes em referência à segurança que sentiam por estar recebendo apoio da Polícia Federal contra os posseiros da fronteira sudoeste era "..nós somos federal". No caso do afastamento de sua base territorial, a mistura ganha o significado da ameaça de indistinção com relação à população não-indígena e impõe a criação de instrumentos simbólico aos quais se possa recorrer em momentos em que a distinção se faça necessária. É, o sr. sabe..., porque se eu chegá num lugar... Porque nossa classe, de índio..., a nossa classe é baixa. Porque o índio [fala pausadamente] é aquele que tem a qualidade e o cabelo. Nós tudo somos igual aos posseiros. Aí, quer dizê, nossa prova é aquele documento que quando: "Vocês d'a'onde?" e nós: "Nós somo de Pankararu". Mas se nós não apresentá o documento, nós num parece sê índio. Pode sê, mas num parece. Agora, terá outras coisas pra gente dá as prova, porque o índio, ele tem que sabê alguma coisa, tem que cantá o Toré, tem que dançá, tem que fazê qualquer uma forma daquela parte, né. Aí o camarada, não fazendo parte nenhuma nem tendo o documento, não é índio, é mesmo um particular. Agora, nossa classe aqui, o sr. olha alí pro Brejo, nós tudo somo índio mistiço. É dificil o sr. encontrá uma pessoa que tenha uma classe..., porque índio tem cabelo e tem qualidade, mas nós somo tudo assim, misturado. Quer dizer que nosso conhecimento de índio é o documento do posto. (Honório Avelino) O "documento" a que o sr. Avelino faz referência são as carteiras de identificação fornecidas pela FUNAI e distribuídas pelo Posto Indígena em 1986 (Cf. a coincidência de datas com o Quadro 10) conhecidas por "carteirinhas da FUNAI" ou "carteirinhas de índio". Essas carteirinhas isentam qualquer índio das tachas de comercialização nas feiras locais ou da fiscalização nas estradas, põem, ao menos teoricamente, seus portadores fora do alcance das polícias militar e civil, dá acesso à estadia nas "Casas do Índio" que existem nas capitais em que a FUNAI possui representação e, fundamentalmente, dá o sentimento, ao seu portador, da manutenção do laço com seu território de origem, que o distingue efetiva ou imaginariamente da massa anônima das capitais pelas quais perambula em busca de emprego. Nesses casos, a carteirinha surge como objeto carregado de um poder especial, capaz de manter um vínculo entre o indivíduo e algo de intermediário entre o nome próprio, cujo valor é territorializado e o anonimato em que penetra nesses momentos de desterritorialização. Por outro lado, muitas das histórias que ouvi e que procuravam justificar a necessidade das "carteirinhas" faziam referência à garantias mínimas contra os arbítrios de autoridades de toda natureza, quando estavam fora da área indígena. Direitos que normalmente nós associaríamos aos de cidadania e que os Pankararu sabem possuir não como cidadãos plenos, mas como tutelados. Algumas dessas histórias diziam da sua proteção contra, por exemplo, as exigências de subornos de policiais rodoviários que ao Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 177 encontrarem irregularidades nos carros em que a população se desloca para as feiras, podiam apreender até mesmo toda a carga transportada. Mas além desses direitos existem outros, onde a distinção propiciada pelas "carteirinhas de índio" com relação a população local passa do plano, digamos, das garantias civis, para o de um clientelismo que vai do ingênuo ao corruptor. Nos dias de festa no clube de Tacaratu, um clube aliás folcloricamente chamado de "Clube do Índio", os organizadores dão direito a que entrem, gratuitamente, no máximo quatro jovens que apresentem a "carteirinha". Para um exemplo menos inocente sobre as virtualidades da "carteirinha", seria suficiente fazer referencia a um encontro que tive na prefeitura de Tacaratu, quando procurava, inutilmente, alguma documentação sobre a relação entre poderes públicos municipais e grupo indígena. Nessa oportunidade, a funcionária que foi designada para me orientar era uma "cabocla Pankararu", como a me revelar depois, por insistências jocosas das outras funcionárias, mas apressou-se em explicar que ela na verdade apenas "possuía" uma "carteirinha" e não era exatamente uma índia. Cerca de 25 anos, filha de pai Pankararu e mãe "brasileira", ela é "prima-irmã" do então vice-chefe do posto indígena, tendo nascido na aldeia mas crescido na cidade de Tacaratu. Ao me interessar por sua história, declarou não conhecer nada dos problemas ou tradições da aldeia (o que é pouco provável, ao menos no sentido absoluto em que manifestou sua ignorância) dizendo que no máximo poderia informar-me das "vantagens" de se possuir uma "carteirinha de índio", que então passou a enumerar: ter escola básica, material didático gratuito, bolsa de estudos da FUNAI caso pretenda estudar em escolas particulares ou cursos de formação em Arco Verde, Delmiro Goulveia e até em Recife e, finalmente, ter prioridade na disputa de empregos públicos. Explica que tirou a sua "carteirinha" justamente para apresentar-se no concurso público do magistério estadual, mas como a pediu muito tarde, a carteirinha só saiu depois do fim do prazo de matrícula e ela não passou na prova. Para confirmar a tese de que a "carteirinha" lhe daria a garantia imaginada, citou o caso de uma amiga que a apresentou a tempo e passou. Perguntei se a sua amiga não teria passado por ter estudado o bastante, ao que ela fez uns trejeitos cômicos e respondeu com ironia se eu acreditava que no Brasil existiam concursos públicos52. Chegamos portanto ao ponto paradoxal em que “os direitos” que estabelecem o vínculo entre identidade e território, podem ganhar autonomia, se desterritorializar e romper com qualquer vínculo identitário ou qualquer demanda territorial. Caricatura do índio jurídico, abstrato, que não é sujeito de cultura, nem de laços comunitários e territoriais, nem mesmo da indianidade, mas apenas da tutela, que neste último caso aparece mais uma vez superdimencionada por aqueles que lhe são objeto. Uma tutela também que tem muito pouco a ver com qualquer modelo de guerra, muito menos a de conquista (LIMA,1992). Por outro lado, a etnografia deve ser cautelosa com os enunciados. Nem mesmo a completa desterritorialização, aparente no último testemunho, pode ser levada excessivamente à sério, já que é preciso estarmos atentos sobretudo ao tipo de representação que os sujeito procuram projetar ao falarem de sua inserção em determinadas categorias. Representações que respondem a uma casuística que pode-se fazer muito variável, segundo a complexidade de cenários a que um mesmo sujeito está referido. 52 Além dessas vantagens, declaradas por aqueles que eram beneficiários dos "direitos", conheci também os argumentos daqueles que se consideram vítimas desse "direitos". Entre os posseiros é corrente a interpretação, de que a distribuição de "carteirinhas" para pessoas de fora da aldeia serviria como estratégia de aumento do número de "índios assistidos" pelo posto indígena, que retiraria disso maior peso político. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 178 Afirmar tão enfaticamente a exclusiva pragmaticidade de sua inserção numa determinada categoria parece justificar um pertencimento ao qual o ambiente é relativamente hostil. Estamos no campo do que Goffman chamou de “política de identidade”, no qual o pertencimento a um grupo mais amplo, garantia da identidade de "ser humano normal", tem que ser constantemente confrontado com o fato de que se é diferente e que seria absurdo negar essa diferença. Em especial quando essa diferença começa a ser progressivamente visibilizada e popularizada, alterando sua situação anterior , em que tais diferenças podiam passar mais ou menos desapercebidas. Assim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser humano como outro qualquer, diz-se a ele que não seria sensato tentar encobrir-se ou abandonar “seu” grupo. Em resumo, diz-se-lhe que ele é igual a qualquer outra pessoa e que ele não o é - embora os porta-vozes concordem pouco entre si em relação a até que ponto ele deveria pretender ser um outro. Essa contradição e essa pilhéria constituem a sua sorte e seu destino. Elas desafiam constantemente aqueles que representam o estigmatizado, obrigando esses profissionais a apresentar uma política coerente de identidade, permitindo-lhes que percebam logo os aspectos "inautênticos” de outros programas recomendados, mas, ao mesmo tempo com muita lentidão, que não pode haver nenhuma solução “autêntica”. (GOFFMAN,1980) Aqui reintroduso o tema da relação entre a assunção de rótulos sociais e o papel daqueles que se fazem seus porta-vozes, mas ao qual devo acrescentar o problema da natureza coletiva desses rótulos. A relação entre rótulos e um conjunto de direitos que não são individuais, cuja administração não deve ser apenas coletiva, mas comunal, abre no caso Pankararu um campo de disputas que atinge diretamente a atuação das lideranças indígenas e sindicais e a própria definição do que vem a ser índio, ou mais especificamente, do que faz de alguém um Pankararu. As partes seguintes encerram este trabalho com a análise de duas situações etnográficas em que se manifesta a dupla face deste tema, no qual estão em jogo justamente os limites extremos da identidade. Ser e não ser 1 O encaminhamento jurídico do conflito entre "grupo Pankararu" e "posseiros" do Caldeirão e Bem Querer, resultou na ordem de retirada de 12 famílias de posseiros da área em litígio. Justamente as famílias mais combativas, entre elas a do ex-presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Petrolândia que era também representante local da CUT-Rural e candidato a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Imediatamente o sindicato de trabalhadores rurais de Petrolândia, ao qual a quase totalidade dos posseiros é filiada, entre outros entraves à execução dessa decisão judicial, pediu um laudo antropológico sobre a identidade étnica de Nivaldo, um dos doze da lista, filho de índia Pankararu e neto de uma antiga liderança indígena, que trabalhou muitos anos no PIN Pankararu e cuja família é considerada um dos "troncos velhos" da aldeia. Nivaldo nasceu no Brejo dos Padres e saiu de lá ainda criança, quando seus pais se Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 179 transferiram das terras da família da mãe para trabalhar e morar nas terras da família do pai, um posseiro do Bem Querer. A procuradoria Geral da República acolheu o pedido dos posseiros e solicitou um "parecer técnico" sobre aquela situação étnica individual à FUNAI, que imediatamente enviou uma antropóloga para a área. Ao chegar, a antropóloga da FUNAI encontrou o grupo de parentes indígenas do Nivaldo e, em seu relatório, registra que tais pessoas "insistiam em afirmar seu [do Nivaldo] direito à permanência na área indígena" (DOC.:49), argumentando que não era possível negar esse direito a um sobrinho ou primo sem correrem o risco, eles também, de terem suas próprias identidades questionadas. No sentido contrário, os argumentos enumerados contra a atribuição de uma identidade indígena para Nivaldo eram de duas ordens. Primeiro, "não o consideravam como tal pelo fato do mesmo não participar dos rituais e dos movimentos de interesse da coletividade Pankararu". Segundo, porque ele "havia sido autuado duas vezes pela Polícia Federal vendendo bebida alcoólica na localidade onde reside e que está situada dentro dos 8.100 ha homologados para a área indígena". De um lado, a lógica da consangüinidade e da afinidade, além do medo de perder o controle sobre os critérios de atribuição de identidade, de outro, a participação efetiva na vida ritual e política da aldeia, incluindo aí a subordinação às regras estabelecidas pelo órgão tutelar. A decisão tomada pela antropóloga foi a de entregar a responsabilidade de escolha ao grupo, que deveria tirar uma posição através de critérios próprios. Em função disso, o chefe de posto propôs uma reunião imediata para que se tomasse uma decisão o mais rápido possível. A reunião foi integrada pelas lideranças, pelo pajé e por Nivaldo e seus familiares indígenas, num total de 25 pessoas, mas nessa ocasião o pajé condicionou qualquer decisão à presença de todas as lideranças e do cacique, que nesse momento estava em Brasília, acompanhado da Quitéria, negociando assuntos da comunidade. A visita encerrou-se, então, com um relatório onde a antropóloga deixava em aberto a questão e justificava sua decisão com argumentos antropológicos dirigidos à Procuradoria da República: salientava o perigo de solicitações desse tipo contribuírem para o fortalecimento da dúvida sobre a etnicidade dos índios do Nordeste, defendia o direito do próprio grupo decidir quem são os integrantes da tribo e alertava para a estratégia de entrave que este tipo de pedido representava, perguntando-se, finalmente, sobre "quantos casos iguais a este não poderão ser levantados...?" Mais tarde, com a volta do cacique e da Quitéria à aldeia, a decisão foi tomada e o Nivaldo considerado "posseiro", como todos os outros na lista de expulsão. 2 Num pólo oposto ao desta primeira situação, encontramos o dilema identitário do sr Marcelino Viana, cerca de 75 anos, filho de pai e mãe brasileiros, ocupante de um sítio localizado na seção norte da terra indígena, na área que ficou de fora da homologação de 1987, mas que continua como terra reivindicada pelas lideranças do "Entre-Serras". Além do valor intrínseco dessa situação para a análise, a importância do sr Marcelino também está no fato de ter sido ele, a primeira pessoa a apresentar-me à área indígena, em certas condições que caracterizam o tipo de inserção que o sr. Marcelino encontra naquele contexto étnico. Em função de ter optado em percorrer um roteiro não oficial ao entrar na área indígena (Cf. Capítulo 3), deixei de ter também algumas das facilidades de uma apresentação oficial ao grupo. Os poucos pesquiadores com os quais conversei e que tinham estado em área, já haviam perdido contato com ela há vários anos e nenhum deles Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 180 pôde se oferecer para indicar-me uma família ou pessoa em especial53 como contato. Fiquei, então, apenas com a sugestão da equipe de assessores do Centro Ecumênico de Informação e Documentação (CEDI), que era a de procurar os párocos locais para, a partir deles, buscar alguma orientação sobre a entrada em área. Foi assim que fui sendo indicado de pároco em pároco, entre as dioceses de Glória (BA), Paulo Afonso (BA), Petrolândia (PE) e finalmente Jatobá (PE), para aí, então, com o apoio inicialmente reticente dos membros da equipe pastoral, estabelececer, finalmente, a forma de minha entrada em área. A equipe pastoral, que havia iniciado seu trabalho nas dioceses da região há pouco mais de um ano, ainda não tinha estabelecido um contato direto com o Brejo dos Padres, que em seus cronogramas começaria a ser visitado no ano seguinte, mas o pároco de Jatobá se ofereceu para colocar-me em contato com o sr Marcelino Viana, que considerava ter ótimas relações dentro da área indígena. Depois de termos sido apresentados, o sr Marcelino prontificou-se em acompanharme num passeio pelas casas indígenas com as quais tinha mais contato. Para minha surpresa e seu regozijo, esse passeio teve início às 7:30 e, ao terminar às 19:30, haviamos percorrido as aldeias de Logradouro, Barriguda, Barrocão (ou Roça de Cima) e parte da Serrinha, contando um total de mais ou menos 50 residências. Por onde passávamos, era o sr Marcelino que tomava a palavra para explicar a minha presença alí, contando sempre a mesma história e tomando ele mesmo a iniciativa fazer as perguntas que achava relevantes, na maioria das vezes apenas confirmando um conhecimento prévio, enfatizando sua intimidade com a história e situação daquelas famílias. Ao introduzir esses encontros, o sr.Marcelino em primeiro lugar contava sobre como o antigo padre de Petrolândia lhe havia anunciado a chegada do novo padre da região, de como esse novo padre lhe havia pedido para que ele lhe mostrasse a região e seus moradores "de pés", de como este padre ia anotando o nome dos moradores, casa por casa e, finalmente, numa linha de perfeita continuidade do seu ponto de vista, de agora esse último padre lhe havia pedido para que ele fizesse o mesmo "com este sr do Rio" que trabalhava para a universidade. O sr Marcelino era sempre muito bem recebido por todos e, por isso, nenhum deles deixou de responder-he as perguntas: número e nome dos moradores, quem era filho de quem, quem era brasileiro e quem era índio dentro das mesmas casas etc. A cada pergunta respondida o sr Marcelino se virava para mim e me mandava anota-las. Ainda que esta dinâmica tenha me surpreendido e me constrangesse um pouco, assim como a alguns dos interrogados, a seguimos por todo o resto do dia. Uma dinâmica que foi definida pelo sr Marcelino, independente de qualquer acerto anterior e, através da qual (só aos poucos fui me dando conta disso) o sr Marcelino conseguia múltiplos efeitos de reconhecimento. Ao narrar a seqüência de apresentações que levavam do antigo padre ao novo pesquisador do Rio, ele demonstrava para a população local sua importância como mediador de autoridades externas, reconhecido e recomendado por sucessivos personagens de outro status social que, dessa forma, lhe emprestavam prestígio. De alguma forma se apropriava também da minha imagem e emprestava o seu próprio significado a ela, de forma a que mais tarde eu pudesse ser identificado, como realmente fui, como "o moço do sr Marcelino". Por outro lado, a mim ele dava prova cabal do seu prestígio e de sua importância para qualquer trabalho que eu quisesse desenvolver no local, garantindo com isso seu lugar de mediador na relação daquele trecho da área com outros possíveis agentes externos. Por último (e isso eu só perceberia muito mais tarde) ele estava em plena 53 Agradeço às pesquisadoras Rita Costa e Silvia Martins por terem me recebido tão gentilmente e terem perdido parte do seu tempo na tentativa de traçar um perfil da área e das lideranças que, enfim, lhes parecia muito confuso. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 181 campanha para o fortalecimento de suas pretensões a ser absorvido como Pankararu pelo posto indígena. 3 O pai do seu Marcelino Viana, o seu Chico Viana, chegou a Tacaratu como criança de colo, carregado por sua mãe, retirantes da seca de Serra Talhada. Chegados a Tacaratu, um índio importante da aldeia, o Pedro Velho do Logradouro, tomou-os sob sua proteção e batizou seu Chico, absorvendo-os no círculo de sua família extensa e fazendo dele um de seus filhos, sem maiores distinções com relação aos outros. De outro lado, a mãe do seu Marcelino era filha de uma família de não-índios vizinhos à área indígena, do "Brejinho de Fora". O pai dela era dono de propriedades que iam da beira do São Francisco até o "círculo dos índios" (aproximadamente uma légua), encostando nas terras do Pedro Velho do Logradouro. Ambos representavam a autoridade no local, sendo procurados em caso de disputas que, quando não conseguiam resolver por acordo, encaminhavam para a polícia de Tacaratu. Essa proximidade entre duas figuras importantes da região, foi traduzida no casamento entre seu Chico e a filha dos de "Brejinho de Fora". Com o casamento, seu Chico foi morar nas terras da família da esposa, que no entanto, ao longo dos anos tiveram seus limites bastante reduzidos através da grilagem de proprietários vizinhos. Por isso, à época em que começaram a ter seus filhos, já passavam dificuldades e, mais tarde recorreram ao expediente comum na região, de envia-los para trabalharem fora, como foi o caso do seu Marcelino, que depois de passar a infância na beira do "círculo", partilhando das tradições de seu pai, viajou "de Maceió p'ra baixo" a procura de trabalho e enviando dinheiro para a família. Depois de morar em São Paulo, voltou à área em 1940, quando conseguiu readquirir parte das terras que tinham sido de seu avô materno, entre o rio e o "círculo". O seu Marcelino Viana casou-se então com dona Maria, filha de uma neta do mesmo Pedro Velho, com um brasileiro. Três dos dez filhos de seu Marcelino Viana e dona Maria moram em São Paulo, os outros sete casaram-se com índios e índias e moram "dentro da aldeia". Esses sete filhos e os 30 netos gerados por eles são "registrados" como índios no posto da FUNAI. A inserção do seu Marcelino Viana nas redes de relações locais não é menos significativa que sua árvore genealógica, exercendo um importante papel econômico e religioso para seus vizinhos Pankararu. Por conseguir um saldo de culturas modesto, mas constante, ele destaca-se na função de empréstimo de farinha para consumo imediato e de grãos (feijão e milho), tanto para consumo quanto para semente, quando surgem as oportunidades de plantio durante a época das chuvas. Por possuir algumas vacas e cabras, pode igualmente servir de leite alguma mãe de recém nascidos ou promover uma distribuição de carne de tempos em tempos. Esses serviços entram num circuito de trocas de longo prazo, onde aqueles que se beneficiam deles podem se sentir ligados por laços de obrigação durante alguns anos, principalmente se levarmos em conta que tais serviços não são prestados apenas uma vez. Seu Marcelino Viana não retira lucro de tais serviços que (espera-se) são retribuídos em iguais proporções. Isso também acontece com os empréstimos em dinheiro. A soma das recém conquistadas aposentadorias dele e de dona Maria, e do dinheiro enviado eventualmente por seus filhos de São Paulo, permitem um saldo que é emprestado em pequenas quantias, geralmente pelo período de um mês. No plano religioso seu Marcelino Viana é importante tanto como celebrador quanto como mediador. Dono de uma capacidade retórica admirada por índios e não índios da região, suas histórias e preleções são ouvidas com atenção e divertimento. Por seu Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 182 conhecimento das tradições, história e geografia religiosa da área e por conhecer pelo nome a maioria e freqüentar um grande número de famílias indígenas, muitas vezes é chamado para "puxar novenas", assim como para participar dos "Toré" realizados na seção norte da área. Entre os "penitentes" que se reúnem na igreja central do Brejo dos Padres, é um dos que dirigem as celebrações e organizam as procissões, em que participam um grande número dos índios mais velhos e respeitados e um número menor de jovens. Como mediador, o prestígio acumulado ao longo dos anos junto aos párocos de Tacaratu e Petrolândia (para onde, nos bons períodos, sempre faz doações), serve para prestar favores importantes à população local, quando empresta sua casa para a realização de missas ou quando pede para terceiros a visita do pároco para a realização de casamentos ou extremaunções etc. Pedidos que, em geral, não eram atendidas de outra forma. Assim, esse lugar de mediador externo do sr Marcelino diz respeito basicamente a autoridades religiosas. Ele mesmo me contou e pude ouvir de outras pessoas, histórias em que padres das cidades próximas só teriam ido até àquelas localidades realizar casamentos, extrema-unções , batizados ou simples missas, através do empenho do sr Marcelino, sendo que em muitas dessas vezes era na sua casa que tais cerimônias se realizavam. Não que a sua casa fugisse ao padrão local ou que o sr Marcelino seja especialmente abastado, mas porque isso é resultado de uma política de relacionamentos em que praticamente todo o excedente econômico que ele consegue produzir é dispensado na alimentação das suas relações com autoridades religiosas da Igreja ou locais, através de doações às festas, aos santos e aos Praiá. Porque ele e sua esposa possuem aposentadoria e porque todos os seus filhos já são casados, o produto das suas 70 tarefas de roça (feijão, milho e mandioca - nunca com menos de dois anos), de suas três vacas leiteiras e quatro cabras, lhe permite fazer vários e sucessivos empréstimos em gêneros e em espécie para os moradores daquelas localidades, doações ao cofre da igreja e farta oferta de carne e feijão nos Torés, quando é tradicional que os Praiá percorram as casas para se alimentarem. Tudo isso acompanhado de uma habilidade mnemônica e retórica especiais e reconhecidas por todos, muito úteis na realização de sermões, das novenas dos penitentes, dos terços, dos Torés ou ainda em situações excepcionais, em que já retirou espíritos ruins do corpo de pessoas, ou mesmo na prosa cotidiana, em que é conhecido pelo prazer de contar casos e pequenas parábolas moralizantes. 4 Tudo isso faz do seu Marcelino Viana um personagem muito conhecido, bem aceito e, sob certos aspectos, necessário na área indígena. Mas afinal, ele é índio ou posseiro? A definição identitária do sr Marcelino é extremamente delicada e é justamente aí que a sua relação com os seus vizinhos torna-se tensa em função de duas graves falhas na reciprocidade. A primeira se dá quando os recursos da FUNAI alcançam a área e são distribuídos entre seus vizinhos, sem que ele seja contemplado. A segunda e mais fundamental, está nas ameaças que correm na forma de boatos, sobre a sua expulsão da área, quando a proposta total da terra indígena for aceita, tornando-o então legalmente um posseiro. O importante é que a correção dessas falhas dependeria de um ato formal de que já falamos em outras situações: o fornecimento de uma "carteirinha de índio", emitida pela FUNAI. Ter uma carteirinha a princípio não mudaria o padrão de suas relações locais, mas funcionaria como a contrapartida daqueles dons, tornaria perfeita a troca e romperia com a distinção, de fundo mais jurídico que cultural ou afetivo, entre ele e seus vizinhos, tornando-o um legítimo usufruidor das eventuais distribuições do órgão oficial e Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 183 encerrando com o perigo, que lhe ronda, de ser transformado em "posseiro" e expulso de sua casa, distanciado de seus filhos e netos. A emissão da "carteirinha", pelo que dizem ele e outros informantes, nunca foi um problema e muitos índios e não-índios, principalmente comerciantes, mesmo sem qualquer relação genealógica ou efetiva com a área, já teriam conseguido a "carteirinha", sendo que o seu caso seria o mais justo dentre eles. De fato, existiram conversas com lideranças da área, tanto do atual Entre-Serras, quanto do Brejo e nenhuma delas lhe impôs qualquer problema, a carteirinha chegou a se confeccionada, mas o processo foi embargado nas mãos da Quitéria Binga. É importante observar, no entanto, que nada foi claramente formulado, nem o pedido, nem a recusa, nenhum argumento formal, que permitisse réplica, mas que também impusesse um ponto final nas suas pretensões. As negociações sobre a identidade de seu Marcelino Viana, assim como sobre a situação de um trecho do território Pankararu e sobre uma definição local de índio, continuam, nesse caso, abertas. Ambos dependem da extensão de certas relações de afinidade e reciprocidade, dependem, como demonstrarei, de uma definição quanto aos embates políticos internos, definidores do próprio território Pankararu. 5 As situações do Nivaldo e do sr. Marcelino tornam-se interessantes pelo contraste nos termos em que foram negociadas, nos mediadores envolvidos, no tempo de resolução e na sua própria solução, permitindo-nos uma visão um pouco mais complexa dos elementos envolvidos na definição da identidade dos sujeitos que habitam o espaço da mistura. O contraste entre essas duas situações e sua inteligibilidade deve ter como ponto de partida alguns dos elementos descritos pelo arranjo territorial. Por isso, primeiro uma breve retomada da situação na seção sul. Ao realizar o acordo de 1987, as lideranças do Brejo delimitam como seu território apenas os 8100 ha demarcados na década de 1940, centrando sua disputa na expulsão dos posseiros do Bem-Querer, Caldeirão e Caxeado. Não existe portanto, a possibilidade do arranjo sugerido pelo sindicato, segundo o qual poderia-se evitar a extensão da área ao sul, com a conquista da área reivindicada ao norte. Isto porque, por um lado, tal proposta desconhecia as repartições internas à própria área e tomava o território como um espaço vazio, sobre o qual seria possível mover livremente a população. De outro lado, a própria imagem das lideranças indígenas passava a estar vinculada àquele conflito, tanto para suas lealdades internas quanto para suas fontes de recursos externos, servindo como justificativa de suas demandas e funcionando como dramatizador do seu lugar de oprimido. Nesse contexto a oposição entre índios e posseiros, que se estende pela imprensa regional, que se torna tema das avaliações políticas internas ao sindicato, que tem sido explorada nas eleições tanto ao nível municipal quanto estadual e federal, oposição que se tem tentado contornar através de acordos sobre a re-alocação das fronteiras físicas entre ambos os grupos, faz com que a questão sobre quem fica de dentro e quem fica de fora, seja objeto de considerações periódicas. Se, por um lado, a convivência entre índios e posseiros nos mesmos bares, nos mesmos carros de aluguel, no ônibus, na escola, na feira, etc., tem favorecido as aproximações e a "mistura", por outro lado essa "mistura", combinada com um discurso intensificado sobre o conflito, tem imposto aos "misturados" a tomada de posições mais claras, exigindo a solução das ambigüidades que lhes são constitutivas. Assim, as alianças e afinidades cristalizam-se como "tomadas de posição", ainda que na maioria das vezes isso não signifique uma ruptura absoluta com aquele que lhe passa a ser exterior, deixando estrategicamente abertas as possibilidades de novas negociações. De qualquer forma, a questão do território vai impondo ponderações Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 184 explícitas a cada casamento misto realizado, a cada fase da vida dos filhos, a cada jogo de futebol, a cada festa de São João. Mas a mistura não se define positiva ou negativamente apenas em relação à identidade indígena. Do outro lado desta faixa de indistinção a forte e histórica sindicalização dos posseiros, assim como a forma como essa inserção política tem sido construída através de praticas religiosas, da dinâmicas de formação de várias escalas de lideranças, lhes serve como referência identitária positiva e oposta à identidade indígena. Para eles não se trata de ser índio ou não-índio, mas de ser índio e subordinado à FUNAI ou "trabalhador rural" engajado em lutas sociais, fortemente respaldadas por uma história quase heróica de vitórias contra as barragens, que lhes fornecem uma identidade também tendencialmente holista e não apenas presa à dicotomia provocada pelo conflito, como se verá mais detalhadamente adiante. Na seção norte ao contrário, as lideranças tem como seu maior objetivo a conquista de uma área ainda não reconhecida, de preferência como área indígena independente do Brejo para que se possa assumir a autonomia necessária em termos de recursos e serviços. Nessa seção, até 1993, a questão de delimitar precisamente por onde passa a linha de fronteira da área nunca ocupou diretamente a população local. Os moradores da região por isso não tem tido que optar explicitamente por uma das identidades, fazendo com que sua "mistura" não se opere entre categorias excludentes. De outro lado, como a região tem uma baixa participação sindical, nunca existiu uma opção identitária positiva e excludente, como na região do Brejo. Além disso, a necessidade de constituir um grupo forte que justifique a formação de uma unidade administrativa independente, igualmente favorece as inclusões e absorções, dando um sentido tendencialmente positivo aos casos duvidosos. A demonstração mais cabal deste estado das relações de mistura foi expressa na última discussão a que assistimos entre as lideranças desta seção e representantes da FUNAI sobre a definição do corte a ser produzido por uma fronteira identitária que venha distinguir quem fica dentro e quem fica fora da fronteira jurídica. Nessas discussões sobre o número e os nomes das famílias que eventualmente deveriam sair no caso de uma delimitação da área norte, o número variou entre 30, numa primeira lista feita pelas próprias lideranças, e quase 400 famílias, quando a conta foi refeita sob a orientação da FUNAI, que trabalhava com critérios estereotipados e externos à dinâmica própria da mistura. Tal disparate significa, no mínimo, uma margem bastante ampla de negociação. A identidade, como aquelas duas situações biográficas demonstram, não é apenas contrastiva e operada por critérios internos ao grupo. Ela é fundamentalmente contextual e, se não se prende a esquemas genealógicos, a quadros de origem geográfica ou religiosa, não são por isso menos positivas ou submetidas a regras sociais passíveis de avaliação pela população local. Isso sugere que o território Pankararu depende do citado sistema de sobreposições territoriais combinadas, mas também ajuda a postular uma relação entre esse sistema e uma topologia das identidades, onde a relação entre índio e terra não é negada, mas retomada num outro plano, que não os supõe ligados por uma necessidade, causa ou efeito, mas por uma relação de construtividade, contextual, de jogo de linguagem e trocas sociais, circuitos materiais (econômicos e genéticos) representáveis espacialmente. Como deve ter ficado claro, ao argumentar pela identidade indígena de uma das lideranças dos posseiros, o sindicato não tinha em vista a solução de uma injustiça pontual, sua estratégia era atingir diretamente a legitimidade da reivindicação territorial Pankararu através da exposição máxima do dilema da mistura através da exploração de uma situação individual. Contornando a etiqueta política que se interpõe às suas declarações oficiais, que não lhe permite questionar diretamente os direitos indígenas, ou a sua identidade, a solução encontrada é sugerir a dúvida por recurso à metonímia. Mas a lógica que rege essa Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 185 estratégia é a mesma que já vimos funcionando no depoimento de José João: reivindicar a virtualidade da identidade indígena através da redução desta identidade ao seu aspecto formal, isto é, "ser registrado no posto", na expectativa de revelar por um lado, o arbitrário de ser ou não índio (portanto, de ser ou não posseiro) e por outro, que a sua disputa não é exatamente com os índios, mas com o aparelho burocrático que, assim, não os representaria perfeitamente, a FUNAI. Esse exercício de sociologia prática por parte dos líderes sindicais não deixou de ter efeitos sobre a população local, em especial sobre a parte indígena da família do Nivaldo, mas foi nula do ponto de vista legal, onde prevaleceu a decisão das lideranças indígenas mais engajadas e igualmente atentas para a mesma questão. A construção do contraste Nos itens anteriores procuramos delimitar quais seriam as principais situações em que a identidade Pankararu teria que negociar com as possibilidade de distancia e aproximação e quais as possibilidades que os pertencimentos categoriais abririam para isso. Buscamos assim, dar alguma realidade e validade para a idéia do território topológico, um território definido pela série de posições recíprocas dos sujeitos e não por fronteiras administrativas, a que uma análise da relação entre identidade e território deveria fazer menção. No entanto, um ponto importante deste jogo entre formas de produzir distancias e aproximação, ainda permanece obscuro. Se até aqui a perspectiva que concebe o tema da identidade em termos exclusivamente contrastivos foi contraposta a uma perspectiva centrada na contextualidade, o reducionismo da fórmula "auto-identificação" pode ainda ser submetida a outro tipo de consideração crítica, retomando algumas sugestões já indicadas nas páginas anteriores: a opção entre ser e não ser índio não é uma opção entre identidade e não identidade. A alternativa à indianidade ou ao ser-Pankararu não é o vazio identitário que a antropologia do contraste reúne sob as categorias também vazias de "nacionais", "brancos", "regionais" etc. Durante a experiência de campo foi impossível fugir à pergunta sobre o porque de alguns sujeitos terem optado em negar a possibilidade de “se assinarem no posto”. A resposta que toma como centro explicativo o estigma, parecia-me muito genérica e externa, até mesmo um pouco deslocada naquela situação. Na busca de uma resposta mais etnográfica ficou claro que do "outro lado" do limite social traçado pela categoria "índios", a categoria “posseiro”, cujo uso se arrasta por mais de 50 anos, deveria ter produzido ou ter sido produzida simultaneamente a algum pertencimento menos contingente. O subtítulo a seguir interessa-se justamente em trabalhar com as possibilidades abertas por essa questão, cuja relevância, acredito, está em revelarem como os processos identitários são de mão dupla e que diferentes tipos de recorte, como os de classe e etnia, apesar de sempre terem ocupado profissionais entre os quais o diálogo é muito frágil, possuem homologias que devem ser exploradas. 1 Num primeiro momento, as famílias atingidas pela demarcação da área indígena se auto-designavam “condôminos” de propriedades que percorriam uma cadeia dominial iniciada no Garcia D´Ávila da Casa da Torre em fins do século XVIII e que os atingia por mecanismos de partilha e herança. Neste caso a situação de "poprietários" sempre foi evidenciada e as primeiras tentativas de negociação sempre foram intermediadas por autoridades locais, com os quais mantinham relações de parentesco. Seja através da Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 186 descrição das relações de patronagem que mantinham com os Pakararu, seja através da demonstração da relação que mantinham com aquelas autoridades, o discurso das antigas lideranças dos posseiros, surgidas naquele primeiro momento, é marcado pela tentativa de delimitação de uma diferença que é de status social e de comportamento, cabendo aos índios o tradicional lugar de cachaceiros, traiçoeiros, preguiçosos etc. No trecho que se segue uma das maiores lideranças deste período conta parte do périplo que foi necessário para conseguir as certidões de propriedade das terras ainda hoje em litígio. Meu interesse neste depoimento, no entanto, está na forma pela qual ele ainda manifesta uma forma de distinção, todo o tempo sublinhada. Quando eu fui a Petrolândia eu fui lá no cartório, o tabelião muito meu amigo, o juiz muito meu amigo, ele disse "Maurício, o que eu posso fazer para facilitar, porque vai ser 60 mil cruzeiro a mais pra fazer essa retificação. Você... eu vou fazer uma petição em seu nome, como advogado, encaminho ao juiz de direito e assim você me dá um despacho nisso, porque vai ser uma coisa absurda isso que você tem a pagar por essa retificação". Bateu o documento, eu assinei, aí ele tocou para o juiz, o juiz muito meu amigo concedeu retificação e tudo.[...]. Levei todos os dados, entreguei ao juiz federal, ele combinou, veio o Dr. Dernival José de Moura, que era nosso advogado, aí diz: "Doutor, o que temos a fazer?" Diz ele: "Tem que ir a Brasília buscar a cópia da sentença" Veja bem: no dia 22 de dezembro, às duas horas da... às 8 horas da manhã... [interrupção: uma moça entra na sala onde conversávamos] Essa é minha filha, que é esposa do presidente da câmara de vereadores. [...] É chefe de seção do DRE - Departamento Regional de Educação e Cultura... Bem, conclusão, o que aconteceu: peguei um ônibus pra Governador Valadares, para pegar um avião para antecipar a viagem. Mas houve uma atrapalhada eu cheguei uma hora da tarde e o avião tinha partido ao meio dia para Brasília. Aí eu peguei o Vitória-Minas, trem de luxo. [...] Deu 4 horas da tarde tava tudo encadernado, ela mandou que eu fosse olhar o serviço que não era muito bom, Tava o secretário geral, muita gente. Eu agradeci a todos: "Quanto custa?" "É 15 mil cruzeiros". Paguei, dei uma gorjetinha de 10 mil cruzeiros, naquele tempo era um dinheirão, o rapaz ficou tão contente. (Odilon Gomes Maurício) Ao longo da década de 1980, no entanto, as novas lideranças dos posseiros mudariam radicalmente seus procedimentos e seu discurso, impondo uma censura, ou etiqueta, ao discurso vigente sobre o conflito. Os posseiros de Bem-quer, Caldeirão e Caxiado, principais focos do enfrentamento, se engajariam na militância sindical e, a partir da década de 1970, participariam ativamente da reformulação do sindicato local , inclusive através da participação nos quadros de sua diretoria. Nesse processo, as novas gerações de posseiros assumiriam uma nova identidade social ("trabalhadores rurais") e, a partir deste pertencimento, seriam introduzidos em círculos mais amplos de identidade, regionais e nacionais, marcados por um discurso classista, onde a ênfase no lugar do oprimido é também um elemento chave. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 187 2 No sub-médio São Francisco o sidicalismo mais combativo cresce como conseqüência do conflito determinado pela expulsão dos camponeses da área de influência da UHE de Itaparica. Sua construção foi aprovada em 1975, tendo como previsão do término das obras o ano de 198354 e os primeiros conflitos decorrentes do início dos seus trabalhos ocorreram por ocasião do deslocamento da população da área do canteiro de obras em outubro de 1976. Dois anos depois foi realizado o Encontro de agricultores de Petrolândia no qual representantes de comunidades ameaçadas começaram seu processo de organização e, em conseqüência dessa mobilização, cria-se em 1979, uma articulação de vários sindicatos sob o nome de "Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco". A história da mobilização camponesa no sub-médio São Francisco e em especial em Itaparica ainda não recebeu a mesma atenção dispensada sobre outras comunidades atingidas por barragens. No pouco que se escreveu, o interesse pela mobilização e pelas condições sociais dessa mobilização está orientado por uma filosofia da história ligada a determinismos de classe e que não se atém a processos de construção identitária. O interesse recai então, em primeiro lugar, sobre os "fenômenos inibidores" da formação de um sindicalismo combativo no sertão, num momento de plena mobilização política nacional, trabalhando-se sobre a suposição de que o, poderíamos dizer, natual, seria a passagem imediata de uma coisa à outra (PANDOLFI,1986). As razões dos “fenômenos inibidores”, por seu turno, serão encontradas em processos macro-econômicos ou em estruturas sociais subjscentes que, no entanto, poderiam ser encontradas na própria região da Zona da Mata, principal parâmetro comparativo. Nesta perspectiva, a relação entre barragens e mobilização é suposta também como direta e natural, ainda que se reconheça alguma importância à mediação55 das pastorais religiosas nesse processo de mobilização, como fica claro na descrição feita do encerramento da segunda concentração de trabalhadores em Petrolândia: Os trabalhadores se encaminharam em procissão pelas principais ruas da cidade até a Igreja da Matriz, carregando suas faixas, cantando hinos feitos por eles próprios e que contam sua luta. Na Igreja, todos rezam o Pai Nosso de mãos dadas e encerrando a concentração Dom José Rodrigues deu a benção a todos os trabalhadores e incentivou a todos continuarem a sua luta pela terra. (Pólo Sindical do Sub-médio São Francisco. 2a. Concentração dos Trabalhadores rurais da barragem de Itaparica. Apud PANDOLFI, 1986) A hipótese expressa em Pandolfi (1986) é que "independentemente da orientação que possa ter sido oferecida pelos representantes da Igreja Católica, o momento de resistência teria ocorrido de uma maneira ou de outra, tendo em vista que, por detrás de tudo, se sobrepunha a forma violenta como se realizou a expulsão dos moradores de Sobradinho e de Moxotó." (PANDOLFI,1986. Grifos meus). Isso porque tais expressões de religiosidade não são pensadas como parte de um processo de produção de grupos, mas como manifestações de um contínuo que leva “grupos” (tomados como realidades pré54 Na verdade as obras só se encerraram em 1987 e as comportas acabaram de ser fechadas em 1988. Na verdade o termo mediadores não é utilizado pela autora, que pensa a atuação dessas pastorais em termos de “vanguarda”, retirando daí uma série de problemáticas particulares a este tipo de análise e que lhe dão um forte teor evolucionista, como o dilema analítico e ideológico, apresentado como problema histórico e sociológico, da dicotomia "vanguardas"/"espontaneismo" camponês (PANDOLF,1986). 55 Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 188 existentes) do "misticismo do passado [...] a um realismo diretamente compromissado com a reprodução social do trabalho" (Paulo Henrique Martins, Coronelismo, poder burguês e movimentos populares. apud PANDOLFI,1986). Ao optarmos no entanto, em pensar a política como produção identitária, o que passa a ser importante é justamente essa "de uma maneira ou de outra" em que as relações se estabelecerem. E são nelas que a relação entre mobilização contra a expropriação da CHESF, construção de uma identidade de trabalhador rural e a oposição desta identidade à de índios se estabelece. Em lugar de resposta natural à esta desterritorialização, a emergência daquele agregado de famílias como grupo político está relacionada a um demorado trabalho prévio, desenvolvido ao longo da década de 1960, de investimento simbólico sobre a categoria de "trabalhador rural", baseado nas relações rituais de uso tradicional entre as comunidades locais, ainda que reinvestidos num discurso onde o termo chave é a "luta". 3 Ao contrário do sindicalismo rural pernambucano da Zona da Mata, de longa tradição em mobilização política com reivindicações trabalhistas, o sindicalismo no sertão do sub-médio São Francisco, até meados da década de 1960, desempenhava funções exclusivamente assistênciais e, de fato, foi apenas com a ameaça de despossessão gerada pela construção da UHE de Itaparica e a conseqüente subida do lago formado por sua barragem que esse sindicalismo passou a desempenhar um papel combativo. A relação entre ameaça e mobilização, no entanto, não é natural, ela está estreitamente vinculada a um trabalho de revalorização de suas bases e particularidades culturais, sem a qual não é possível compreender a distância e a oposição construídas entre as categorias de índio e trabalhador rural, ao menos nos Municípios de Petrolândia e Tacaratu. A identidade de "posseiros", por isso, não se fez simplesmente em oposição à de "índio" (a pura contrastividade), mas esteve intimamente ligada à construção da categoria mais geral de "trabalhadores rurais", sustentada num novo arranjo discursivo em cujo centro está, de um lado, a noção de "luta" e de outro o lugar do oprimido, que passa a ser um lugar em disputa. É preciso recuperar o processo de construção desta identidade em seus traços mais gerais, na busca da chave que permita compreender tais oposições e sobreposições discursivas. A pessoa que se tornou a mais importante referência deste processo nos forneceu uma longa narrativa sobre as estratégias de mobilização inicialmente adotadas, onde fica evidente a importância de uma mobilização de fundo cultural e tradicionalista na construção da identidade de trabalhador rural. Ao contrário da oposição que uma perspectiva evolucionista gostaria de estabelecer entre o misticismo do passado e uma racionalidade moderna do movimento sindical, esse depoimento e os que lhe seguirão enfatizam a continuidade e, algumas vezes, a unidade entre eles. No depoimento a seguir a então jovem freira que militava entre as famílias que possivelmente seriam atingidas pelo lago formado pelas barragens, nos fornece um relato de suas estratégias de mobilização da população local. ... Uma das coisas que eu tinha atenção era de ver quais seriam as que eram consideradas líderanças e não líderes...Porque toda a comunidade tem gente com jeito para várias coisas, um tem pra festa, um tem pra dança, um tem pra isso, pra aquilo, então o grupo era um grupo variado, era os que dançavam, os que rezavam, por isso que tinham as danças de Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 189 São Gonçalo, as corridas de cavalo, essas coisas. Sempre tem umas pessoas que organizam e eu trabalhava com as lideranças dos diversos dons... Eu colocava nesses termos: que Deus deu dons a cada um e cada deveria desenvolver os seus dons, então cada um apresentava o que gostava mais de fazer, esse era o grupo...quer dizer não era questão política nem nada. Era em cima do que eles gostavam de fazer e a partir dali se refletia o que fazer. Sempre em cima de atividades concretas, relacionando isso com o que queriam mudar ou não, ali ou em outra situação. E articulava. Por exemplo, o grupo de reisado que havia aqui, ia preparar o reisado lá da volta do Moxotó, o outro ia preparar a novena [...]. aproveitando os pontos de convergência...[...] ...E então pegava esse grupo que tinha uma tradição, pessoas idosas que traziam aquilo com toda a garra, então pegava esse grupo e um daqueles que já estavam na quarta ou quinta geração, que era mais um grupo jovem que fazia aquilo, mas fazia mais rindo [...] então juntava com esses, juntava com outros e ia discutir, como é que eles viam, como eram aquelas historias ali, e reconstruía as vezes as questões que eles tinham ali...era por aí, então o pessoal começava a se expressar pra outras pessoas e não só pra dentro...[...] ... os grupos eram formados por lideranças diversas e ali se refletia cada aspecto daquela questão a partir de um conjunto maior, como isso se dá no pais, como isso acabou, por exemplo, se você pega do ponto de vista das danças, você tentava mostrar como foi que aquilo aconteceu nessa civilização brasileira, era interessantíssimo o pessoal se sentia mesmo como aqueles que conseguiam trazer até hoje uma coisa que foi cortada, começavam a se sentir orgulhosos de ter aquilo ali. As vezes tinha comunidade que tinha vergonha, diziam: "agente tem umas dancinhas aí...", eu perguntava que dancinhas são essas?, eu venho participar. "Ah, a senhora não vai gostar não...". Aí depois eles se sentiam bem, achavam que eram os tais por terem conseguido durante anos e anos, centenas de anos, ter aquela tradição que muitos tinham perdido, então começava por aí, valorizando a cultura, valorizando o que eles tinham no momento... E depois, começou a pensar. melhor nas questões de outro nível, fora da própria bíblia, mas sem perder de vista isso, uma coisa que eu acho que valeu a pena ter seguido essa linha foi de não quebrar o que eles valorizavam, e uma coisa que eles valorizavam muito aqui era a questão da reza... (Josefa Alves Lopes de Barros56) 56 Josefa Alves Lopes de Barros, natural de Alagoas, cerca de cinquenta anos, mais conhecida nos círculos sindicais e entre a população camponesa local como Josefina ou Fina, no início da década de 1960, recém ordenada freira, fazia parte dos quadros da pastoral de Petrolândia. Depois de ter passado por cursos de formação teológica e sociológica em São Paulo e em Recife, onde formou-se como assistente social, Josefina começaria a desenvolver um trabalho de aplicação das idéias da Teologia da Libertação a partir do incentivo à formação de comunidades de base, num método que se aproximava mais da perspectiva da Comissão Pastoral da Terra (da Bahia) do que daquele que as dioceses locais de então esperavam. Isso fez com que ela se chocasse diretamente com a orientação do Bispado de Pernambuco, à qual estava subordinada. Depois de uma série de desentendimentos entre ela e o pároco de Tacaratu, decorrente de seu trabalho junto à população local, ela seria afastada daquela diocese e mais tarde se desligaria da Igreja, como forma de voltar à sua militância. Depois deste desligamento Josefia se instalaria na região, primeiro de uma forma extremamente precária, sem salário fixo e vivendo basicamente de doações dos camponeses, para formação dos "quadros" do Pólo Sindical. Hoje Josefina exerce a função de assessora do Pólo e de outras entidades sindicais rurais. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 190 Neste relato duas coisas importantes ficam claras. Primeira: ao contrário do que previa a estratégia da CHESF (não divulgar os mapas do lago projetado, para manter a desmobilização) e justamente por causa dela, o processo de mobilização de comunidades locais contra a barragem de Itaparica ultrapassou em larga media o número de daquelas que viriam a ser atingidas. Segunda, que em parte explica a primeira: o início desse processo de mobilização tomava como ponto de partida a discussão de questões que estavam em pauta nas próprias comunidades, não impondo inicialmente, nem o tema das barragens, nem um discurso de classe, o que fez com que aquelas populações passassem a se pensar e se mobilizar, ao menos inicialmente, mais em termos que remetiam a uma forma de vida e de sociabilidade "tradicionais", do que como "vanguarda" sertaneja ou qualquer outra perspectiva "moderna". Assim: A) apesar das comunidades do Brejo dos Padres e do Bem-Querer, Caldeirão e Caxiado não terem sido atingidas pela barragem, elas foram objeto de mobilização; B) nesse processo, o tema privilegiado, imposto como problema fundamental pelas próprias comunidades, era a definição dos limites da área indígena, questão com a qual já conviviam há 20 anos; C) ao se constituírem como grupo mobilizado, perceberamse não apenas como "nacionais" ou "regionais", mas como um grupo cultural, cujos laços eram também de natureza lúdica e religiosa. Aos olhos da equipe pastoral, pronta que estava em reforçar para ressignificar tais tradições, aquelas famílias não se diferenciavam substantivamente das outras, caboclas ou indígenas, pouco importava para sua práxis política. Em função disso, a equipe pastoral se propôs promover encontros entre índios e posseiros como forma de viabilizar negociações diretas. Algumas destas reuniões chegaram a se realizar, mas foram sistemática e progressivamente deslegitimadas e mesmo obstruídas pela FUNAI. O que agente achou sempre era que, quando agente conseguia que os índios que estavam junto dos posseiros, [...], começava a pensar que agente podia trabalhar por índios e posseiros, aí vinha a interferência da FUNAI. Eles não tem uma autonomia de estarem sós, de sentarem lá e conversarem tudo, do ponto de vista organizado e resolverem alguma coisa. Quem trata da questão da terra alí é a FUNAI. [...] Ainda teve um momento que se formou uma comissão mista de índios e posseiros, já mesmo com a FUNAI presente, mas que agente queria que eles dialogassem entre eles, que cada um trouxesse as questões e colocasse em discussão, agente chegou a fazer isso umas duas ou três vezes. Depois foi feita uma visita, esse rapaz que fez os mapas, ele fez junto com um grupo dos índios que eles conheciam um mapa de consenso...mas aí a FUNAI não aceitou, as lideranças já tinham aceitado, porque em vez de fazer uma linha reta, eles faziam uma linha onde faziam curvas que obedeciam as terras dos posseiros mais pra cá e dos índios mais pra lá... (Josefa Alves Lopes de Barros) A viabilidade dessas negociações para a equipe pastoral estava justamente no fato de tomar aqueles dois agregados, distintos pelas categorias de índios e posseiros, como fazendo parte de um mesmo grupo mais amplo, de uma mesma classe de trabalhadores rurais, e portanto com interesses, de classe, comuns. Suas diferenças culturais e rituais não lhes pareciam maiores que a variedade cultural e ritual existente entre aquelas e outras comunidades camponesas, e em lugar de obstáculo eram vistas como motor do próprio trabalho de mobilização. No entanto, não só as tentativas de negociação conjunta foram Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 191 frustradas, como o próprio trabalho da equipe pastoral dentro da área indígena se encerrou em pouco tempo. O lugar do oprimido assumido pelos Pankararu, ao se colocarem como objeto da tutela, tece como vimos (Cf. Capítulo 2/1), um discurso onde o que passa ao primeiro plano é a dependência que mantém com relação ao governo-pai: seus direitos emanam d'ele e por isso a ele devem obediência, suas terras não são suas, mas d'o governo, e por isso, o conflito não é com eles, mas com o governo. Os Pankararu não se concebiam com autonomia para negociar diretamente com os posseiros, porque aqueles que seriam seus mediadores (a FUNAI), tém sua razão de ser numa concepção que os toma como primitivos mudos ou incompetentes de se auto-representar. Na verdade, o que a equipe pastoral tratava em termos de mediação, na verdade, na relação travada entre os Pankararu e órgão oficial era de fato e de direito uma relação tutelar. O lugar do “terceiro” (SIMMEL,1986) que a pastoral pretendia ocupar, como “imparcial”, já era ocupado para os Pankararu, pel'o governo, não como imparcial que viabiliza acordos entre as partes, mas como tutor que se responsabiliza pelo destino de uma dessas partes. Isso somado à perda de confiança do grupo indígena no grupo da pastoral, decorrente de sua freqüente movimentação entre os posseiros, levou a um incidente, dentro da área indígena, em que os pneus do carros das freiras foram furados e elas ameaçadas, dando fim ao trabalho junto aos Pankararu. A contrapartida deste afastamento foi uma maior aceitação da pastoral entre as comunidades de Caldeirão, Caxeado e Bem-querer, onde passaram a sobrepor então, às discussões sobre a área indígena, as relativas à mobilização contra a subida do lago de Itaparica. O resultado foi uma intensa participação dessas comunidades na fundação do novo formato sindical na região, onde os posseiros da área indígena vieram ocupar cargos de direção em sucessivas diretorias e na própria presidência do sindicato e do Pólo Sindical. Depois da subida do lago, em 1989, essa preponderância ficou ainda mais evidenciada, já que por não serem atingidas pelo lago, ficaram fora da ampla desagregação provocada sobre as outras comunidades desterritorializadas e distribuídas arbitrariamente pelas agrovilas, onde não só vizinhos, mas as próprias famílias foram separadas. 4 Uma série de condições especiais, que se somaram as apontadas acima, permitiram que aquele conjunto de famílias de posseiros litigantes com a área indígena se tornasse um importante (talvez o mais importante) núcleo de militantes deste novo sindicalismo. Condições que ajudam a explicar um pouco da conflitante relação entre grupos indígenas e o sindicalismo rural de toda esta larga região do São Francisco. Uma marca fundamental do movimento camponês local sempre foi a grande heterogeneidade das relações de produção vigentes na região antes das alterações provocadas pela UHE: pequenos proprietários, posseiros, parceiros, arrendatários e assalariados. Neste quadro coube pouca capacidade de mobilização àqueles que não eram proprietários ou tinham a posse da sua terra de trabalho, sempre integralmente absorvidos pelo processo de trabalho, do qual não tinham o controle (PANDOLFI,1986). Isso funcionou como um critério de seleção para aqueles que se tornariam lideranças do STR e do próprio Pólo Sindical. O fato das terras indígenas não terem sido atingidas pelo lago, privilegiou aquelas famílias de posseiros ao coloca-los numa situação em que, simultaneamente, estavam na luta pela reposição das parcelas alagadas, mas não tinham sofrido o grande impacto desmobilizador que consistiu na transferência para as agrovilas, já mantinham suas moradas, grupos de vizinhança e núcleo de mobilização dentro da área indígena. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 192 Associada a esta adequação sociológica, aquelas famílias de posseiros radicalizariam o seu distanciamento com relação aos "índios" por meio da constituição de um discurso específico sobre a "luta" e do lugar nele ocupado pelo Estado. Esse discurso têm forte sustentação numa determinada configuração social das relações de poder locais, em que as relações de dependência e parceria anteriores à construção da barragem de Itaparica não opunham pequenos a grandes proprietários, nem supunha sempre a oposição entre a propriedade e a não-propriedade da terra como foco das relações de poder. Muitas vezes a dependência se estabelecia entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção, em especial das bombas de irrigação, que depois da UHE perderiam sua utilidade. Assim, o campo de ação do sindicalismo não se estabelecia sobre as relações patrão-empregado, nem entre posse-grilagem de terras, mas sobre os efeitos específicos da intervenção territorial de um projeto governamental de grande escala que unificaria, ao menos temporariamente, diferentes segmentos sociais igualmente expropriados. As informações sobre a estrutura agrária e de ocupação da mão-de-obra, ilustram em parte essa situação. Utilização da terra Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985) 1975 1985 Sertão do S. Petrolândia Sertão do S. Francisco Francisco Total = 100% 888323 23643 969020 Lavoura % 9,1 21,6 14,1 Pastagem % 79,7 52,3 22,5 Matas/Florestas 3,7 4,4 49,8 % Não utilizadas % 8,2 21,5 13,5 (Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44) Petrolândia 16280 28,8 21,5 33,9 15,7 Condição do produtor em Petrolândia (1975-1985) total= % Proprietários Arrendatários Parceiros % Ocupantes % % % n. área n. área n. área n. área n. área estab. ha estab. ha estab. ha estab. ha estab. ha 1975 1281 25167 73 84,2 0,1 0,01 0,1 4,7 26 11 1985 1309 16722 76 90,4 3,3 1,3 6 2,2 15 6 (Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44) Relações de trabalho Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985) 1975 1985 Sertão do S. Petrolândia Sertão do S. Francisco Francisco População total 65688 5688 89060 Não-assalariado 58911 5284 72198 Assalariado 1154 75 3321 permanente Petrolândia 4002 3653 118 Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 193 Assalariado 2355 310 7889 214 temporário Parceiros e 3268 17 5654 17 outros (Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44) Mesmo depois da implantação da barragem e de todo o desenvolimento de infraestrutura decorrente dela, os pequenos agricultores, com menos de 10 ha somam 72.8% e ocupam 21,2% da superfície agropecuária do município. Do total de produtores a grande maioria (92%) pratica agricultura familiar, sem a contratação de outras formas de mão-deobra. O grande número de migrantes fez com que o município de Petrolândia crescesse 5,03% entre 1970 e 1980 (enquanto o crescimento de sua micro-região foi de 3,5%) e 38,8% entre 1980 e 1990, levando de uma população de menos de 23 mil habitantes no início deste período para a de 32.934 no início da década de 1990, mas a estrutura das relações de produção e trabalho continuariam em boa medida semelhante, no que importava à atuação sindical. Como vimos, as agrovilas absorveriam direta ou indiretamente uma grande parcela desta população, através dos reassentamentos oficiais ou das ocupações ilegais, e a "luta" continuaria sendo definida em relação aos poderes públicos, em especial a CHESF. Tudo isso convergiu para que o campo de ação privilegiado para a militância sindical não residisse nas relações de trabalho, mas no embate com aparelhos de poder estatais no sentido da reparação dos danos provocados pelo impacto territorial de políticas públicas de larga escala, ao longo da últimos vinte anos. Por isso, a capacidade de mobilização e o delineamento do discurso e das estratégias básicas de enfrentamento que permitiu a incorporação de diferentes segmentos camponeses numa mesma "luta" foi o enfrentamento com o Estado. Fica evidente o contraste com o discurso indígena, em que o Estado, o "governo", assume o papel de protetor, de reparador das perdas e não como aquele que as inflige. Neste contexto específico, a "luta" se opõe aos "direitos", o enfrentamento se opõe à proteção e as alianças passam a ser francamente polarizadas. Desde as primeiras viagens de João Moreno, na década de 30, despontam como personagens importantes na mediação em direção aos "direitos", representantes locais do exército e das companhias agrícolas de desenvolvimento, assim como os responsáveis pelas obras da UHE de Paulo Afonso. Tal polarização será reforçada pela ação do exército na expulsão de posseiros na década de 1960 (época em que se iniciavam as primeiras mobilizações contra as barragens) e da Polícia Federal na década de 1980 (período em que se dão as mais fortes mobilizações, inclusive com a invasão e paralização do canteiro de obras da UHE). Estas polarizações não permaneceram, por isso, confinadas às relações mais diretas e locais: dos 20 diretores que compõem o STR de Petrolândia, a maioria é de reassentados; todos fazem parte da direção do Pólo Sindical, que é filiado por sua vez, simultaneamente, à CUT e à FETAPE; e muitos apresentam fortes vínculos com outras entidades e partidos políticos, no desempenho de múltiplos papéis sociais57. Como parte integrante desta militância sindical, a atual geração de posseiros da área indígena é também introduzida num círculo de pertencimentos e de discursos mais genéricos que, paradoxalmente, ao estabelecer a conexão entre o local e o global, faz que discursos até então substantivamente 57 Em 1991 eles se distribuíam da seguinte forma: 1 membro da direção da CUT-PE; 1 presidente do PT local; 1 vereador pelo PT; 1 diretor de uma Associação de Irrigação, entre outras participações de menor destaque. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 194 opostos se sobreponham e entrem numa espécie de curto-circuito simbólico. Como representante da classe trabalhadora rural do sub-médio São Francisco, como braço local de organizações sindicais e partidos de esquerda de amplitude nacional, os posseiros engajam-se num discurso homogeneizador onde eles e os índios fazem parte de um mesmo universo de oprmidos. Nada mais distante porém, de qualquer possibilidade de realização prática. De um lado o discurso sindical, ao falar em nome dos posseiros enfatiza a violência da Polícia Federal em suas intervenções sobre a área em litígio, o trabalho sistemático da FUNAI e de seus advogados no sentido de produzir situações de impasse e de forjarem para a imprensa e para a justiça um conflito que na verdade não existe, já que são todos amigos, jogam bola juntos etc. Segundo esta versão, reeditando um discurso permanente e sustentado também por um aspecto da representação indígena (Cf. Cap2/1), o conflito não é entre índios e trabalhadores rurais, mas novamente entre trabalhadores rurais e aparelhos de Estado, cujos agentes manipulam a situação local e a ingenuidade política do grupo indígena, para alcançar ganhos políticos municipais, estaduais e mesmo nacionais. Para os círculos mais amplos a que estão ligados e com os quais sua imagem está comprometida, é virtualmente inconcebível que trabalhadores mobilizados, ligados a uma perspectiva progressista, estejam contra os índios, a fração oprimida por natureza de nossa sociedade, símbolo nacional do politicamente correto. Isso leva os mediadores de ambos os lados, aliados em outras situações por representarem classes igualmente oprimidas, a se confrontarem com o curto-circuito discursivo provocado pela impossibilidade de espelhar no outro o dominador. Ao encarnarem a dualidade que sustenta o seu próprio lugar de mediadores, são obrigados a reposicionar seus pares em campos homólogos. O recurso em negar o conflito com os indígenas permite a esta militância reintroduzir na relação o seu inimigo permanente e reassumem o lugar de oprimido, tornando novamente claras as posições ocupadas: A luta contra as barragens deu um nível de consciência maior pelo fato de ser clara, de saber contra quem se está lutando, contra alguém que é o governo, ou quando são os grandes proprietários. A questão indígena é mais difícil de compreender, porque ela não consegue clarear... (Josefa Alves Lopes de Barros) Assim, apesar das coincidências no que diz respeito aos problemas com a seca, com a implantação de políticas e serviços públicos e outras questões muitas vezes abordadas pelas lideranças indígenas e sindicais, não é possível sobrepor as categorias índio e trabalhador rural, a não ser que uma delas perca todo seu conteúdo identitário e passe a apontar apenas um pertencimento categorial. Isso fica claro nas situações criadas pelos sucessivos encontros promovidos pelo Fórum da Seca: ...Os encontros de seca estavam tratando de questões mais gerais, nós tentamos várias vezes, aí foram muitas vezes, nós fazíamos o convite, mandávamos prá lá, falava com a FUNAI pra liberar, porque para a participação dos índios eles precisam ser liberados, conversava com os próprios índios sobre a importância..., com as próprias lideranças [...], mesmo não podendo mais fazer o que fazia, agente queria pegar por um ângulo mais amplo. Pra ver a possibilidade de reagrupar, de ter reaproximações [...]. Cada vez que tinha um encontro, cada ano, agente considerava que não tinha acontecido nada e fazia de novo o convite. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 195 [...]... cada vez que acontece uma luta que seja mais geral, é importante a participação, sendo índio ou não índio, porque na verdade existem muitas situações em que eles são atingidos igualmente, e a seca é uma. Tem áreas ali que na seca são problemáticas mesmo, a não ser os que moram na várzea, e por isso poderiam tratar das questões mais gerais juntos. [...] Aí é que eu vejo que a FUNAI sempre foi um entrave, porque nunca liberou o pessoal para participar dos encontros maiores, só quem participava eram os índios que já estavam fora, na área dos posseiros, como a dona Dedé e outras. (Josefa Alves Lopes de Barros) Existe, portanto, uma distinção entre índios que estão "dentro" da área indígena e índios que estão "fora", cabendo a estes uma maior autonomia para participarem das "questões mais gerais". Os Pankararu que têm uma tal autonomia estão em geral , em uma das situações de desterritorialização e reterritorializações que descrevi, mas no que diz respeito especificamente à participação em questões capitaneadas pelo STR, estes índios se concentram nas agrovilas. Isso nos abre, finalmente, uma última área de investimento com relação ao que chamei de políticas de identidade. Se a situação biográfica do sr. Marcelino Vianna ajuda a compreender como funciona a micropolítica do ser e não ser quando as categorias em oposição são "índio" e "posseiro", no coração mesmo da área indígena, a seguir procuro dar inteligibilidade a esta micropolítica quando as categorias em oposição são "índio" e "trabalhador rural", na fronteira mais distante deste território topológico, numa área de gravidade quase zero. Se os cenários de desterritorialização descritos anteriormente permitem uma visão genérica e sincrônica dos espaços de dispersão e distinção, este último fôlego investe sobre uma visão pessoal e diacrônica da formação de um destes espaços58, sobre o aspecto vivido destas fissuras identitárias. Uma escrava e dois senhores 1 Dona Dedé, ou Maria José de Souza, é um dos principais símbolos que o sindicato e os posseiros têm para argumentar sobre a artificialidade do conflito criado entre os Pankararu e eles. Ela, índia legítima, é uma das lideranças sindicais mais antigas e ativas so STR de Petrolândia, líder das mulheres trabalhadoras rurais. Sua mãe era da família de João Moreno e seu pai, também índio, morava numa fazenda vizinha ao Brejo dos Padres, fora dos limites do que futuramente viria a ser delimitado como área indígena, onde era vaqueiro. Com o casamento, sua mãe passou a morar também naquela fazenda e foi lá que dona Dedé nasceu. Na década de 1950, com as novas oportunidades abertas na região, decorrentes da implantação dos projetos de irrigação do DNOCS, o pai de dona Dedé abandonaria o emprego de vaqueiro para trabalhar no DNER, carregando de volta para a então já demarcada área indígena sua esposa e filhos. A familia de dona Dedé passaria a ocupar terras da família de sua mãe na Serrinha, onde manteriam uma pequena roça complementada com o "trabalho de mea" em pequenos lotes de beira de rio. O trânsito entre a Serrinha e a beira de rio permitiu que dona Dedé fizesse seus estudos em Barreiras, 58 Ao lado das agrovilas, a favela Real Parque, no Morumbi (SP), consiste num outro espaço sobre o qual seria fundamental um investimento etnográfico. Um investimento sobre esta outra reterritorialização, que fizesse justiça a complexidade da situação, no entanto, mostrou-se inadaptável aos limites desta dissertação. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 196 onde veio conhecer seu futuro marido e onde passou a morar depois de casar-se em 1961. A partir deste período, passou a trabalhar também como diarista para a SUDENE na capina de beira de rio. Depois de enviuvar, dona Dedé iniciaria sua participação nas atividades da Igreja, onde era ("..., quer dizer, ainda sou...") da Legião de Maria. Em 1979 uma das reuniões da "Legião" foi marcada não em Barreiros, como de costume, mas em Petrolândia. Chegando àquela cidade no dia marcado, dona Dedé dirigiu-se ao prédio da Igreja em busca do grupo de oração. Encontrou numa das suas salas uma numerosa reunião, em que particiapavam os padres e freiras e onde todos rezavam e cantavam com entusiasmo. Inicialmente dona Dedé estranhou a repentina ampliação do seu grupo de orações e sentiu falta de algumas pessoas que lhe eram tradicionais, mas como "tava o povo todo da igreja lá..., teve leitura da bíblia [... e] musica de igreja, música de luta...", ela só se daria conta de não se tratar de uma reunião da Legião de Maria ao final dos trabalhos da manhã: "eu tinha entrado na porta errada". Era uma reunião do sindicato. No entanto, mesmo depois de esclarecido o engano, dona Dedé permaneceria para os trabalhos da tarde, ao fim dos quais teria se destacado ao ponto de receber a tarefa de convocar as pessoas de sua comunidade para realizar lá a mesma reunião. Era "a porta errada", diz, "mas continuei achando que estava certa", porque continuava nas "tarefas da igreja", através das "caminhadas, leituras, cânticos..." Rapidamente dona Dedé tornou-se sucessivamente responsável por sua região (localidades de Mato Grosso, Santa Helena e Brejinho), representante de base, representante do sindicato e suplente da diretoria. Sua vida "passou a ser só isso", conversando com o povo, fazendo cadastro das comunidades, participando ativamente nas paralisações das obras da barragem de Itaparica e viajando para diferentes encontros sindicais. Dona Dedé foi progressivamente abandonando as reuniões da Legião de Maria, enquanto as outras mulheres reclamavam de suas faltas. Mas, como ela explica, ... um escravo não pode servir a dois senhor. Eu sentia que na igreja já tinha muita gente resando alí, pelos doentes e tudo, que nem agente fazia, mas no sindicato, era poucos os que queria enfrentá o que nós tava enfrentando. [...] ...eu tô fazendo porque eu acho que Deus mandô, porque se eu ficasse rezando lá na igreja e vendo o povo precisando, o rio inundando, tudo ficando dentro d'água e eu só lá na igreja, resando, resando Ave Maria pelo povo, achava que tava errada. É significativo no entanto que dona Dedé se refira apenas "a dois senhor", isto é à sua lealdade por um lado à identidade de "filha de Maria" e de outro à de liderança sindical. A sua relação com a área indígena é constante mas de outra natureza. Todos os seus exemplos sobre sua relação com a aldeia são relacionados à festividades ou eventos religiosos. Quando tinha as festas assim, agente ia, quando tinha a novena, agente mandava sempre ajuda para a novena lá dos índios. Mesmo morando aqui eu nunca deixei de participar das festas deles, da novena, da ladainha, que tinha uma parte que fazia parte daqui, no dia cinco de maio, ia pra lá e tinha vezes que até dançava. [...] ....outro dia mesmo pediram contribuição aí, que ia ter uma festa, de menino, dia dois de dezembro, mas elas não me explicaram direito que festa era, elas passaram aqui pedindo ajuda... Elas moram na aldeia e Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 197 quando precisam de qualquer coisa elas vem passando aqui, pedindo a todos. [...] Esse povo todo daqui vai pra participar. Minha família de lá tem Praiá e quando agente chega lá, gasta um pouco. É a família do Antônio Moreno, minha mãe é prima legítima dele, pois o pai dele é irmão de minha avó. Assim, as agrovilas, através das famílias indígenas que moram lá e mantém um contato mais efetivo com a aldeia, servem como fonte de recursos para a organização das festividades tradicionais, quando, geralmente mulheres, passam recolhendo contribuições. Ao mesmo tempo, essas "ajudas" abrem espaço para que, aqueles que não têm mais o mesmo contato efetivo com a aldeia, preservem algum vínculo com familiares ou com a "tradição", mesmo que, por vezes, tomada sob um aspecto quase folclórico. Mas, é preciso reconhecer, esta exterioridade está sempre aberta à reconversões de caráter mágico, que servem de canal aberto a possíveis retornos: Eu sou católica e esse negócio de espírito manisfestá... [balança negativamente a cabeça], a única coisa que..., se eu me sentir adoentada, eu posso mandá alguém resá. Uma senhora que as vezes agente se admira das coisas que ela vai falando... ela não sabe lê... e fala tão... não sei porque, eu acho que ela fala muita coisa certa, ela não sabe da minha vida, mas diz umas coisas que eu fico assim olhando... 2 No plano político no entanto essas reconversões não parecem mais possíveis. Durante o Fórum da Seca, realizado em Ouricurí, em meados de 1992, em que dona Dedé participou como representante do sindicato de Petrolândia, os organizadores a procuraram dizendo que o Fórum estava sem representação indígena, numa sugestão de que ela assumisse esse papel. Apesar de confirmar ser índia, respondeu que estava lá como representante dos trabalhadores rurais e não tinha sido eleita pelos índios ... não tinha esse poder. Eles como trabalhador rural eu represento, mas como índios... Sei que é o mesmo sofrimento que nós aqui sentimos com a seca, porque eu ando por todas as áreas, mas eu não podia representar, era ilegal... De volta a Petrolândia procurou o chefe do Posto Indígena para explicar-lhe a situação e pedir que ele mandasse uma liderança no próximo encontro, em dezembro. Apesar do "chefe" (chefe do posto indígena) ter confirmado o convite, no dia marcado "o transporte do Pólo ficou esperando mas não veio ninguém representá". O chefe disse que o posto indígena não tinha dinheiro, mesmo com o transporte, estadia e alimentação fornecidas num caso pelo Pólo e pelo próprio Fórum. Mas dona Dedé não vê relação entre essa negativa do chefe do posto e o conflito no Caxiado e no Bem-Querer, já que ... o Fórum da Seca é um lugar pra defendê todas as pessoas, não é um negócio assim de conflito... porque, eu não vou fazer nada que vá ferir os índios... Acho que, não... eles sabem que eu não vou fazer isso. [...] É uma coisa que eu sinto tanto..., que eu peço "olhe, isso aí [o conflito Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 198 índios vs posseiros] é uma coisa que eu não posso metê minha mão aí"... Eu fico com dó de não podê fazê nada. [...] Sempre que agente conversa com um acha que ele tem razão, conversa com o outro e também acha que ele tem razão... 3 Para dona Dedé é confuso o jogo de exclusões e inclusões de que participa. Não parece claro para ela que "trabalhador rural" possa ser uma categoria identitária correspondente e concorrente com a de "índio". Essa ambigüidade da sua situação permite aos dirigentes sindicais utilizarem a sua imagem como um exemplo do artificialismo que caracterizaria o que, segundo eles, a FUNAI e a imprensa chamam de conflito. A "manipulação", portanto, é de mão dupla. No caso de dona Dedé fica claro que as relações que mantém com a área indígena restringem-se à seção norte, onde mantém boas relações com as lideranças, em especial com dona Hilda. Com relação à seção centro, onde se localiza o conflito com posseiros que participam diretamente do sindicato, suas relações são mais próximas às de evitação. Nem mesmo em situações em que estavam empenhadas nos mesmos objetivos, como ocorreu na época em que ela e Quitéria freqüentavam a prefeitura reivindicando a inclusão de mulheres nas frentes de emergência, elas se reuniram a pretexto de reforçar as reivindicações. Por outro lado, se em seu discurso o uso do "nós" e do "eles" oscila constantemente, referindo-se ora a índios, ora a trabalhadores rurais, ao fim fica claro que ele pende com maior intensidade para um desses lados. Eu acho que num divia tê deixado criar raiz... daquele povo do BemQuerer e Caldeirão, antes... [...] Porque agora, despejá todo mundo sem tê pra onde ir..., sem direitos humanos, se o índio tem diretos humanos agente também tem. Eu falo isso pra eles mesmos... Não sei não... Essa parte me dói muito. Já imaginou aquele bocado de criança na rua... Eu não sou contra que eles saia que eu sei que é dos índios, mas eu fico triste é com o modo que eles qué..., como diz assim, despejado, né. Dona Dedé torna viva a distinção analítica que procuramos construir entre "pertencimento" e "identidade": por pertencimento, as formas pelas quais as classificações sociais e culturais fornecem um quadro de referência e de possibilidades de inclusão classificatória, círculos mais ou menos frouxos de reconhecimento, de semelhanças e afinidades objetivas, enquanto por identidade nomearíamos as formas pelas quais essas classificações são acionadas politicamente, transformando o simples recorte classificatório numa categoria social com força de mobilização, levando a um engajamento subjetivo. Trata-se da distância entre identificar-se com e o identificar-se como. Não é de criar limites rigorosos entre essas duas categorias, mas apontar para uma distinção que teve utilidade metodológica para esta etnografia. Uma distinção entre coisas e não tanto entre palavras. Como objetos de observação, pertencimento e identidade não estão separados por uma linha conceitual, mas por processos e situações matizadas. * Porque todo ato de criação de identidade é um ato político, ao mesmo tempo, toda ação política envolve a criação e reificação de identidades. Se os processos de construção dos sujeitos coletivos criam classificações sociais, tais classificações se apropriam de Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 199 recortes existentes tanto no mundo visível, constituído de espaços e recursos limitados, quanto num mundo invisível, mas nem por isso menos efetivo, como as genealogias obscuras, os mitos sempre reinterpretados, ou nos sentimentos individuais. A mágica da política está justamente na capacidade de agenciar tais sentimentos, imagens e controvérsias de forma a construir realidade. Para isso são necessários rituais, simbologias e cerimoniais que estão sempre confrontando pertencimentos sociais distintos e, neste confronto, dando um conteúdo ao processo identitário, situando-o para além do que poderia ser reduzido às fórmulas confortáveis da oposição entre formas contrastivas, ou dos cálculos manipulatórios. Esta etnografia da trama histórica, dos arranjos territoriais e do processo identitário que dão conteúdo ao etnônimo Pankararu, procurou apreender, articular e explicitar esta complexidade, sem dúvida reduzindo-a, para torná-la inteligível, mas buscando, sobretudo, captura-la em seu movimento. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 200 Anexos: A1 - A morte e a morte de Cavalcante Por Ulisses Lins de Albuquerque: ABRO AQUI UM PARÊNTESES - já que falei em Jatobá de Tacaratu (hoje Petrolândia) - para, num rápido retrospecto histórico, referir-me a essa região que foi teatro, nos fins do Império, de uma hecatombe de maiores proporções que a de Garanhuns, ocorrida muitos anos depois. Em 1886, na povoação de Jatobá, pertencente ao município de Tacaratu (desenvolvendo-se, com a inauguração da estrada de ferro de Piranhas a Jatobá, passava a povoação a sede do município em 1887), dominava o coronel Francisco Antônio Cavalcante, chefe do Partido Conservador. Intolerante, violento mesmo, Cavalcante era acusado de haver mandado espancar o capitão Inacinho Queirós, seu adversário, que, assim desfeitado, planejou uma vindicta em regra, contando com a colaboração de outras vítimas da truculência daquele chefe sertanejo. Cavalcante dispunha do destacamento policial e, sabendo-se ameaçado, aliciou vários homens de confiança, mantendo-se sempre vigilante. Seus inimigos, entretanto, não lhe perdoavam os constrangimentos sofridos e - gente brava e briosa - estavam dispostos a tudo, contanto que realizassem o intento de exercer contra ele um desforço violento. Para isso - dizia-se mais tarde (e isso me foi referido, se não me falha a memória, pelo velho coronel Oldrado Lima, em Moxotó, quando da minha primeira passagem por aquela vila, em 1919) -, Inacinho havia industriado um rapaz de sua confiança para, fingindo-se de louco, ir a Jatobá a fim de observar o movimento do pessoal armado de Cavalcante e verificar a hora mais conveniente para o assalto à povoação. Entretanto, há pouco tempo fui informado de que ele havia mandado avisar a Cavalcante a hora exata em que lhe tomaria a porta. O certo é que a 26 de dezembro (de 1886), Inacinho entrava na localidade com o seu grupo, atacando a casa de Cavalcante, no momento em que os capangas deste, em seu maior número, se haviam afastado para o almoço, nas proximidades da estação da via férrea. Cavalcante estava em casa com cinco capangas apenas e todos foram mortos pelo grupo assaltante (inclusive ele próprio), tendo sido ferida gravemente uma sua filha, que lhe fornecia munição durante o tiroteio. É quando se aproximam os soldados do destacamento policial, bem assim os demais aliciados de Cavalcante. Mas Inacinho já se havia retirado com os companheiros, dos quais ficava morto o de nome João Silvestre, e, ferido gravemente, Cipriano Queirós - matador de Cavalcante - que eram os mais arrojados do grupo. Cipriano - caboclo valente, genioso - ficou prostrado em frente à casa de Cavalcante e passou a ser interrogado para revelar quem tomara parte no assalto; negando-se a isso, ia tendo os olhos arrancados a punhal, respondendo às interpelações que lhe eram feitas sob ameaças de piores torturas, com os maiores impropérios e os mais cabeludos desaforos! E morreu assim, com um estoicismo selvagem, sem nada confessar! Mas, nesse ínterim, alguém informava que os assaltantes haviam seguido pela estrada que se dirigia à cachoeira de Itaparica - em desacordo, consoante me informaram, Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 201 com as instruções de um caboclo feiticeiro que havia dito a Inacinho: "Depois da luta, não sigam para a cachoeira! Procurem ganhar a catinga!" Em chegando às proximidades da cahoeira, a gente de Cavalcante aproxima-se cautelosamente e, não divisando o grupo de Inacinho, que se ocultava atrás dos serrotes, de onde podia, entrincheirado, dizimar os que se aproximassem, - fez alto, a concertar planos. É quando um primo de Inacinho, que fazia parte do pessoal de Cavalcante, disse, de maneira a ser ouvido a uma certa distância: "Ora! Eu queria ver Inacinho, para oferecer-lhe garantias, caso ele esteja disposto a entregar-se"... Inacinho, ouvindo aquilo, saiu do esconderijo, apresentando-se ao parente, fazendo depois com que os demais companheiros se aproximassem, confiado na palavra do primo. Resultado: ele e cinco do grupo foram sumariamente fuzilados! Um, apenas, escapou: não querendo entrgar-se, despiu-se, atirouse ao rio, desceu aos trambolhões pela cachoeira, como se tivesse virado peixe...salvandose, ninguém sabe como! E quatorze defuntos iam para o cemitério, naquele dia fatídico. ALBUQUERQUE, Ulisses Lins de. Um sertanejo e o sertão: memórias; introdução de Francisco de Assis Barbosa. 2.ed. Rio de Janeiro, J. Olímpio; Brasília, INL, 1976. (p. 8991), 242p. ilust. 21cm. (Documentos brasileiros, v.n.173) Por João Binga: ... os caboclos velhos foram do lado de lá dessa serra, que tem outra entre serras que eles chamam Quixaba Grande, aí os caboclos (acho que tiveram uma ciência) foram pro mato e disseram "Vamos fazê garapa azeda, comprar um litro de cachaça, um pouco de fumo e bebê uma juremada..." (O velho meu avô correu daqui. Meia noite ele vinha arrancá mandioca que tava grande, aí quando tava acabando de enche o aió aí o povo escutava que os que era dono dizia: "Ei, peraí que nós vamos lhe matá!"...) Aí quando tava tudo pronto, aí juntô os doze caboclo, doze índio, e disseram: "Nós não qué mulhé pra nós, só qué nós homens..", aí ficou cada um batendo seu cachimbo, cantaram, cantaram e aí os caboclos foram pra Quixaba Grande e foram bebê a Santa Maria, quando acabaram de bebê, foram esperar pelo efeito e, quando o efeito chegou, eles recordaram e disseram: "Pronto, nós tamos perdidos, os home estão com aquela medição com falsidade, o caboclo não fica alí nem perto, ele vai ter que saír dali...", "É mesmo", disse, "É, disse porque vi.". Aí o Cavalcante tava morando em Petrolândia, e os caboclos disse: "Mas e aí, o que é que nós faz?", "Mexe a jurema prá nós vê", Fizeram pensamento bem feito e de lá nem voltaram pra casa. O caboclo disse: "Nós só ganha se matá o Cavalcante. Já tamos perdido, é matá ou morrê. Vamos chegá lá antes mesmo dele mijá.". E foram direto pra Petrolândia e foram batê na porta: "Cavalcante, Cavalcante, tá doirmindo? Acorda!". Aí as filhas dele veio pra atendê e eles pediram: "A sra. faz o favor de chamá ele que nós tem uma história pra contá pra ele.". Quando ele chegou, dois caboclo pegaram ele e perguntaram: "Escuta, que negócio é aquele das terras?", ele disse: "O negócio é esse mesmo.". Aí eles pegô logo na abertura dele. [P: Matô o Cavalcante?]... Matô. Quando acabaram e os índios vinha, chegaram aqui na estrada pra lá, fez uma puchada aqui e na entrada pra Piranhas, em vez de ter corrido pra cá, pra própria Quixaba Grande, que não tem rio, só pedra e areia, mato, correram praqui e entraram pras tocas da cachoeira, pertinho de Petrolândia. Aí a polícia Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 202 saiu no rastro e quando chegaram, matô todo mundo. Desde o começo disso aqui tem quem persiga... A2 - A categoria de "Remanescentes Indígenas" (amostragem aleatória) s/d "Os remanescentes potiguara vivem no Posto Indígena Potiguara, na Paraiba... [...] Os Potiguara: remanescentes integrados?" (MOONEN,s/d) OBS: No caso da segunda frase, trata-se do título de uma parte do texto dedicada à discussão das categorias "assimilados" e "integrados". O "remanescentes" lhe passa desapercebido. 1937 "Neste vale, tão belo quanto f'értil, e que fica situado entre Itaparica e Tacaratú, vivem atualmente, em número bastante elevado, remanesncentes de tribos filiados a vários grupos indígenas, alí, outrora, reunidas por influência da catequese religiosa [...] Como em geral, todos os nossos caboclos, o povo do Brejo dos Padres é hospitaleiro e obsequiaor, muito embora desconfiado [...] ...que tomem sob seu valioso amparo e proteção, não só os caboclos do Brejo dos Padres, como também, os demais remanescentes indígenas que ainda vivem em terras nordestinas. (OLIVEIRA,1943). 1947 "Mirandela, outrora Saco dos Morcegos, tem suas origens nos primitivos aldeamentos jesuíticos, com sua grande igreja em estilo português e uma grande praça. Nas cercanias do vilarejo residem para mais de mil índios (caboclos) remanescentes dos Tupiniquins, conservando os traços perfeitos de raça com seus tipos aventureiros. Não são ferozes." (Pe. Renato Galvão, citado em ROSALBA,1976). 1949 "Os Fulni-ô eram, até hoje, considerados como os últimos remanescentes dos históricos índios Kariri, cujo habitat abrangia o nordeste do Brasil..." (BOUDIN,1949) 1955 "Essa questão das terras dos índios da Baia da Traição e não do 'que se dizem caboclos', como insinuavam os reclamantes, é muito antiga e não pode ser resolvida a não ser judicialmente, por meio de uma demarcação. [...]. Isso porque os remanescentes potiguara se julgam donos de certas porções de terras de que os reclamntes se acham apossados (Mota Cabral citado em AMORIM,1971) 1968 "... as terras em apreço foram e continuam pertencendo à União Federal, sob a administração da Fundação Nacional do Índio, representante dos remanescentes pancararus, localizados naquelas terras do município de Petrolândia deste estado e mais ainda, de que não devem sob nenhum pretexo, molestar os índios pancararus..." (CARNEIRO,1968a). 1968 "No lugar denominado "Brejo dos Padres", município de Tacaratú, em pleno sertão de Pernambuco, recanto aprasível e encantador, vivem e trabalham os descendentes Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 203 indígenas dos Pancararus, ou Pancarus, primitivamente chamados Brancararus, ramo dos Tapuia." (CARNEIRO,1968b) 1976 "O presente trabalho pretende analizar a situação dos remanescentes Kiriri de Mirandela, a partir da publicação de documentos inéditos do extinto SPI, que se relacionam com a criação do Posto Indígena de Tratamento Governador Góes Calmon..." (ROSALBA,1976). 1977 "A população indigena Pankararé, ou Pankaré, como eles se auto-identificam, em quase nada se distinguem dos seus vizinhos brasileiros, a não ser na consciência de pertencerem a uma etnia diferenciada e viver em situação de 'fricção' [...]. Estabelecido este quadro, achamos que este grupo indígena remanescente deve ser classificado como pertencendo a um sub-tipo camponês, ou seja, como campesinato indígena, aqui entendido como sendo aquela parcela de índios integrados à sociedade nacional..." (SOARES,1977) 1983 "Analisamos as condições de vida da comunidade, concluindo-se ser realmente remanescentes Pankararú, que vivem isolados, em condições de vida precária... [...] não discutimos sobre seus direitos com relação à FUNAI por tratar-se de grupo isolado e desaldeado..." (A.C.V.M.,1983) 1969 "São cerca de 3.000 os remanescentes Pankararús, do grupo linguístico Gê, bastante aculturados, conservando apenas alguns ritos e danças (...), raríssimos os que falam o idioma originário da tribo." (QUEIRÓS,1969). A3 - Lista das entrevistas gravadas 1 - Pe. Adriano (pároco de Jatobá e Petrolândia) sobre os "penitentes", tradicional grupo religioso atuante tanto antre os posseiros quanto entre os índios: 60'. 2 - Antônio José dos Santos (jovem liderança Pankararú, aldeia do Brejo) sobre história de vida, sobre atuação e histórico do grupo jovem da AI: 60'. 3 - Mané Bizoro (liderança tradicional, aldeia do Brejo) sobre história de vida, sobre tradições da aldeia, sobre saída de grupos que vieram a fundar as aldeias de Jeripancó e Pancarú: 60'. 4 - Gustavo Barbosa da Luz (liderança emergente, vila de Jatobá) sobre história de vida, disputas internas ao grupo, sobre disputas com posseiros, conflitos com FUNAI e projetos políticos: 120'. 5 - Antônio Moreno ("capitão" da AI, filho de importante liderança do passado, aldeia do Brejo) sobre sua história de vida e de seu pai, primeiros contatos para o reconhecimento oficial da aldeia, visita do antropólogo Carlos Estevãoe desavenças internas às lideranças: 60'. 6 - Manezinho de Venâncio (tradicional contador de "histórias", aldeia do Brejo) sobre chegada do branco no Brasil e na aldeia, informações sobre os linheiros, história de vida: 60'. 7 - João de Páscoa (ex-pajé, aldeia da Serinha) sobre história de vida, disputas intenas às lideranças, presença dos linheiros, mistura racial: 60'. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 204 10 - Francisquinha Coelho (ex-posseira do Brejinho dos Correias, cidade de Tacaratú) sobre sua expulsão da área pelos índios: 30'. 11 - José João do Nascimento (ex-posseiro do Brejinho dos Correias, cidade de Tacaratú) sobre sua expulsão da área pelos índios: 60'. 12 - Reunião com lideranças do Pólo Sindical (sede do Pólo, cidade de Petrolândia) sobre o conflito com os índios, sobre violência da Polícia Federal, tentativasde acordo e espectativa com relação ao último acordo: 90'. 13 - Maria José de Souza (índia moradora das agovilas, participante do sindicato) sobre sua história de vida, enfocando suas relações com a igreja, com o sindicato e com a aldeia 14 - Josefa A. L. de Barros (ex-freira, fundadora do sindicato na região, assessora da FETAPE) sobre história de vida, tentativas de iniciar trabalho na aldeia durante a década de 70, repressão militar, estratégias de organização política na região, fundação do sindicato, problemas com a FUNAI: 90'. 15 - Otacílio (liderança camponesa, reassentado na beira do lago) sobre a experiência da subida do lado em Moxotó e início da mobilização dos camponeses em Itaparica: 90'. 16 - Zé de Bernarda (liderança, aldeia da Tapera) sobre história de vida, crescimento das lideranças, problemas com posseiros, disputas pelo lugar de cacique: 60'. 17 - Honório (liderança, aldeia da Tapera) sobre história de vida, problemas com posseiroa, carteirinha da FUNAI, disputas pelo lugar de cacique: 30'. 18 - Miguel Binga (pajé, aldeia do Brejo) sobre história de vida, história de sua eleição para pajé: 30'. 19 - João Binga (cacique, aldeia do Brejo) sobre sua história de vida, história do grupo, "encantados", história de sua participação na liderança, linheiros, perda das tradições: 90'. 20 - Marcelino Viana (liderança informal, aldeia do logradouro) sobre sua história de vida, sua realção comos chefes de posto indígena e sua situação étnica atual: 90'. 21 - Nair Maria dos Santos (posseira do Bem Querer) sobre sua história de vida, sua relações familiares com índios, sobre a violência da Polícia Federal: 90'. 22 - Odilon Gomes Maurício (mais antigo e combativo posseiro do Caldeirão) sobre sua história de vida, sobre a história e percursos da disputa pelas terras: 120'. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 205 Bibliografia ALBUQUERQUE, Ulisses (1976) Um sertanejo e o sertão: memórias. 2.ed. Rio de Janeiro: J. Olímpio; Brasília, INL (Documentos brasileiros, v.n.173). ALLIÈS, Paul (1980) L'invention du Territoire. Press Universitaires de Grenoble. ALMEIDA, Horácio de. (1977) "Confederação dos Cariris ou Guerra dos Bárbaros". Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Julho/setembro. AMORIM, P. M. de. (1970) Índios camponeses: Os Potiguara de Baía daTraição. São Paulo: Revista do Museu Paulista. n.s. vol.XIX, 1970. ANDERSON, Benedict. (1989) Nação e consciência Nacional. São Paulo: Ática. ANDRADE, Manoel C. de e MADUREIRA, S. de B. (1981) Produção do Espaço e regionalização em Pernambuco (Textos para Discussão). Recife: Mestrado em Desenvolvimento Urbano e Regional da UFPE. BACHELARD, Gaston (1984) A Poética do Espaço. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. BALDUS, Herbert. (1954) Bibliografia crítica da etnologia brasileira. 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"Demonstração dos números das Aldeias existentes nesta província de Pernambuco, seu pessoal, sua população e extensão que cada uma tem". 13/dez/1857. Arquivo Público de Pernambuco, coleção Diretoria de Índios, livro D-11. DOC.:2. Relatório do Presidente BN/microfilmes: código PR-SPR115. de Província de Pernambuco. 1872. DOC.:3. Relatório do Presidente BN/microfilmes: código PR-SPR115 de Província de Pernambuco. 1869. DOC.:4. Relatório do Presidente BN/microfilmes: código PR-SPR115. de Província de Pernambuco. 1875. DOC.:5. (PE) Tacaratu Histórico. S/d. Informativo da prefeitura municipal de Tacaratu DOC.:6. Relatório do Presidente BN/microfilmes: código PR-SPR115. de Província de Pernambuco. 1878. DOC.:7. Relatório de José Luiz da Silva (engenheiro responsável pela Comissão de medição das terras da provícia de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr. Conselheiro Sinimbú (Min. e Secr. dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas) sobre o aldeamento do Brejo dos Padres. jun/1878. Arquivo Público de Pernambuco, coleção RTP (Repartição de Terras Públicas) vol.17, pag.391. DOC.:8. Relatório da Inspetoria Geral das Terras eColonização apresentado ao Conselheiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, presidente do Conselho de Ministros. 1878. AN/microfilmes: rolo 030.0.78, código 559. DOC.:9. Carta de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a. IR com lista de pedidos precedida de justificativas. 31/jan/1949. MI/microfilmes: rolo , fotogramas 688-701. DOC.:10. Relatório de Cildo Meireles (escriturário) ao Cel. Vicente de Paula Vasconcelos (diretor do SPI) sobre os trabalhos de demarcação das terras do PIP no antigo aldeamento de Brejo dos Padres. Jan/1941. MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 335. DOC.:11. Carta (s/a) ao Cap. João Gomes Campos Apaco e demais índios rodelas, sobre o memorial em do dia 14 corrente, de que são signatários. 17/out/1942. MI/microfilmes: rolo173, fotograma14. DOC.:12. Relatório de viagem de Sônia Elizabete Lima Santana (assistente social da FUNAI/3a. SUER) à comunidade da Serra da Batida em 03/03/89. FUNAI, processo no. 300628.89-4 de 11/4/89. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 211 DOC.:13. DOC.:14. Relatório do SPI ao Ministro (?). 1942. Biblioteca do MI: relatórios do SPI, vários anos encadernados juntos. DOC.:15. Relatório de viagem de Túbal Fialho Vianna (inspetor do SPI) na supervisão da passagem do cargo de encarregado do PI Pankararu, de Agenor da Silva Guedes para Sebastião Francisco da Silva. Fev/1945. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 28-30. DOC.:16. Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro (inspetor da 4a. IR) a Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) sobre áreas em litígio. 19/nov/1953. MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 754. DOC.:17. Avisos de Posto, por Coriolando Mendonça. Jan-dez/1954 MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 1407ss. DOC.:18. Boletin Interno do SPI, no. 36. 31/jan/1945. Biblioteca do MI, boletins do SPI, vol.4 (no. 36-47) DOC.:19. Boletin Interno do SPI, no. 14. 31/jan/1943. Biblioteca do MI, boletins do SPI, vol.2 (no. 14-25) DOC.:20. Relatório de Agenor da Sliva Guedes (encarregado do PI Pankararu) ao Diretor do SPI, sobre movimento do ano de 1944 e planejamento para o ano de 1945. 19/jan/1945. MI/microfilmes: rolo 175, fotogramas 342-349. DOC.:21. Cartas de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao Chefe da 4a. IR relatando distúrbios no PI e sugerindo punições aos faltosos. 15/abr/1949 e 10/mai/1949. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 380-382. DOC.:22. Carta de Antônio José Torres (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a. IR solicitando ajuda polícial para o controle dos índios. 21/abr/1967. MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 194. DOC.:23. Arquivo do PETI: FNF0261 DOC.:24. Ofício de Natiel V. Barros (encarregado do PI Pankararu) pedindo informações à Inspetoria do SPI. 12/mai/1965. MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 16. DOC.:25. Cf. DOC.:19 DOC.:26. Relatório de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) à 4a. IR sobre as atividades do ano de 1950. 11/jan/1951. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 909-916. DOC.:27. Avisos de Posto, por Coriolando Mendonça. Jan-dez/1955. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 1591ss. DOC.:28. Avisos de Posto, por Pedro Dantas Cangerana. Jan-dez/1960. MI/microfilmes: rolo 174, fotogramas 717ss. DOC.:29. Avisos de Posto, por Geraldo Vieira Melo. Jan-dez/1964. MI/microfilmes: rolo 174, fotogramas 1424ss. DOC.:30. Dados para a formulação do Plano de Assistência Social e Econômica/ FUNAI. 1972. FUNAI-BSB/SEDOC: série projetos especiais. DOC.:31. Dados Gerais sobre a 3a. DR/FUNAI. 1975. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 212 DOC.:32. Relatório de inspeção de Ismarth de Araújo Oliveira (presidente da FUNAI) à 3a. Delegacia Regional, entre 06 e 13 de maio de 1978. S/d. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos. DOC.:33. Relatório de viagem de Dinarte Nobre Madeiro (delegado da 3a. Regional da FUNAI) para vistoria dos PI's Pankararu, Pankararé, Rodela, Atikum e Trucá entre 17 e 22 de outubro de 1983/ por Geraldo Vieira de Melo (chefe de seção de fiscalização). 12/dez/1983. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos. DOC.:34. Portaria Interministerial de 26/11/1986. DOC.:35. Carta de Rui Pedro de Aquino (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a. IR reforçando alerta sobre surto de Tracoma e solicitando ajuda. 16/ago/1950. MI/microfilmes: rolo 173, fotograma 693. DOC.:36. Carta de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a. IR relatando situação dos tutelados em consequência do longo período de estiagem. 21/fev/1951. MI/microfilmes: rolo 173, fotograma 920. DOC.:37. Avisos de Posto, por Rui Pedro de Aquino. Jan-dez/1956. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 1775ss. DOC.:38. MI 173/934ss (p.23) DOC.:39. MI 175/91ss (p.25) DOC.:40. Relatório de Viagem de ACVM (coordenador da equipe odontológica da FUNAI 3A. DR) à localidade de Ouricuri (AL). 05/dez/1983. FUNAI: processo 002898. DOC.:41. Folhas de pagamento do Posto Indígena Pankararu: 31/dez/1940; 31/dez/1942; 30/dez/1943; 31/mar/1947; 30/jun/1947; 30/set/1947; 30/set/1948; 15/abr/1948; 30/jun/1948; 31/dez/1948; 30/abr/1949; 30/jun/1949; 30/set/1949; 31/dez/1949. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 2; 12; 15; 116-118; 168-171; 333; 334; 337; 339; 378. DOC.:42. Relatório de Claudio L. F. Santana sobre levantamento de áreas indígenas para delimitação, medição e demarcação: PI pankararu. 13/dez/1984. 7f. + mapa./ FUNAI. DOC.:43. Relatório do Departamento de Assuntos Fundiários da FUNAI sobre as áreas da 3a. DR. 1987. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 213 Outros documentos consultados 1941/09/19. VÁRIOS; "MEMORIAL com vistas ao poder competente, Sr. Dr. Inspetor do SPI". 5f.; / Condôminos da propriedade Brejinho de Itaparica - PE. 1957/06/18. Ofício de Rui Pedro de Aquino (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da IR4 sobre providências de melhorias nesta unidade indígena. 18/jul/1957. MI/microfilmes: rolo174, fotograma 174. 1969/09/25. FUNAI-portaria231 de 25/09/69, BA 36 de 30/09/69 (p.1) cria a Guarda Rural Indígena. FUNAI-portaria48/N de 28/01/72, BA 08 de 01/02/72 (p.1) altera a portaria anterior. 1974/12. Relatório de estágio de Armando Marcos Martins de Arruda para o VI curso de auxiliar técnico em indigenismo, sobre o posto indígena Pankararu. Dez/1974. FUNAIBSB/SEDOC: série avaliação indigenista. 1975 DADOS informativos: PIN Pankararu. 4f.; / FUNAI. 1975/12. Planejamento de viagens aos postos indígenas da 3a. DR: Situação em dezembro de 1975. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados gerais. 1977/03 DADOS informativos: PIN Pankararu. 5f.; / FUNAI: ASPLAN. 1977/03/18. CÓPIA de documentos de transferência de posse de terras, por ocasião (1916) do falecimento do títular, Roque Gomes da Costa. 1980/03/07. VERAS, Adeilson B. G.; RELATÓRIO n.1. /resp.: Centro dos Trabalhadores Rurais do S-M-S-F - PE/BA (CTRS-PE/BA). 1980/04/14. COELHA, Francisquina e SILVA, Antonio.; RELATÓRIO n.3; / CTRSPE/BA. 1980/05/06. SILVA, Petrúcio F.; PROFERE sentença (n.2v17-208/8) sobre a ação de reintegração de posse movida pela FUNAI contra Miguel Gomes Maurício e outros. 6f.; / Juizado Federal da 2a. vara de PE. 1980/10/09. COELHO, Vicente ; LOPES, Josefa; e SOUZA, Celso de.; CARTA ao Delegado da PF em PE denunciando sequestro, violência e ameaças por parte de agentes da PF. 1980/10/30. VÁRIOS; ATA da "Reunião de entidades sobre a questão Pankararú e posseiros de Tacaratú e Petrolândia". 5f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, CPT-SP, STR, Pólo Sindical, PT. 1980/11/13. "PROJETO Pankararu 1980/81" (anexo: portaria de aprovação n.894). 23f.; / FUNAI: ASPLAN; FBS. 1981/02 CARTA à Imprensa: "Posseiros buscam diálogo com índios".; / Posseiros do Município de Petrolândia. 1981/03/11. SILVA, João A.; MAURÍCIO, Odilon G.; LIMA, José F.; SILVA, José M. da; SOUSA, Eraldo de.; CARTA: "Documento de Repúdio à FUNAI".; / Comissão Representativa dos Posseiros. 1982/08 "PROJETO de construção de açudes no PI Pankararu". 4f.; / FUNAI: ASPLAN. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 214 1984/06/05. Relatório de Claudio Luiz Ferreira Sant'Ana (coordenador do GT portaria 1647/E de 05/06/84) para a Identificação e delimitação da AI Pankararu. 22/out/1984. FUNAI: processo 2275/84. 1984/08/05. COELHO, Vicente.; CARTA aos MIn. do Interior e Min. Extraordinário para Ass. Fundiários relatando situação de conflito. 1984/09/04. FONSECA, Jurandy M. da.; OFÍCIO ao pres. do STR de Petrolândia em resposta à carta enviada aos Min. do Interior e Extraordinário; / presidência da FUNAI. 1984/09/15. RELATÓRIO da Reunião da Comissão de Posseiros de Caldeirão e Benquerer para elaboração da proposta sobre os limites da reserva Pankararú, Município de Petrlândia. 1984/10/11. DOMINGUES, Nelson Marabuto.; OFÍCIO ao pres. do STR de Petrolândia pedindo nome para compor GT. 1984/12/07. DOMINGUES, Nelson Marabuto.; OFÍCIO ao Presid. do STR de Petrolândia aceitando indicação de integrante de GT.; / FUNAI.. 1985/01/02. COELHO, Vicente.; OFÍCIO ao Deleg. Regional da FUNAI de Recife denunciando derrubada do Travessão.; / STR de Petrol. 1985/02/20. SOUZA, Eraldode; OFÍCIO ao Chefe do PI Pankararú sobre acordos quanto ao Travessão e cercas. ; / SRT de Petrol. 1985/09/09. Vicente,1985 na verdade é: Relatório de viagem de Claudio Luiz Ferreira Sant'Ana ("antropólogo 1/D2" da FUNAI) ao PI Pankararu, para verificação de denúncias sobre invasões na área indígena e negociações com autoridades locais sobre transferência de recursos para aquela comunidade. 09/set/1985. FUNAI: processo 2898/84. 1986/03/03. ARAÚJO, José A. de; "RELATÓRIO de viagem ao PIN Pankararu..., para apreciação e parecer, encaminhado ao delegado regional da FUNAI.". 6F.; / FUNAI. 1986/10/28. LIMEIRA, Maria; PROFERE "voto" na ação civil (n. 67255-PE) sobre reitegração de posse movida pela FUNAI contra Miguel Gomes Maurício e outros. 4f.; / Tribunal Federal de Recursos. 1987/05/30. SOUZA, Eraldo de; OFÍCIO aos Min. do Interior e da Reforma e desenvolvimento Agrário e ao pres. da FUNAI (06/03) apresentando reivindicações e propostas (incompleto).; / STR de Petrolândia. 1987/05/30. SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO aos ministros do Interior e da Reforma e Desenvolvimento Agrário. 5f.; / STR de Petrolândia; STR. 1987/07/12. OCORRÊNCIA (n.36/87) de homicídio registrada da delegacia de Petrolândia; / delegacia de Petrolândia. 1987/07/15. SARNEY, José.; PROFERE decreto n.94.603 de 14/07/87 homologando a demarcaçào da AI Pankararu (com 8100ha). 1987/07/20. SOUZA, Eraldo J. de e MAURÍCIO, Odilon G.; CARTA ao Min. da Ref. Agr. e do Des. Agrário pedindo evitar a aplicação do decr. n.94603.; / STR de Petrolândia. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 215 1987/07/24. SOUZA, Eraldo J. de; CARTA ao Min. do Interior pedindo evitar a aplicação do decr. n. 94603.; / STR de Petrolândia. 1987/09/22. SILVA, Walter ; OFÍCIO ao Polo Sindical de Petrolândia-PE. encaminha ata de reunião realizada em Tacaratú, em 16/09/87.; / ADR de Paulo Afonso/FUNAI. 1987/11/20. CARTA (telegramas) alertando sobre perigos da aplicação do decr. n. 94630 e pedindo intervenção de Miguel Arraes (gov. de PE) e Romero Jucá Filho (pres. da FUNAI).; / . 1988/01/04. SOUZA, Eraldo J. de e SILVA NETO, Januário M. ; OFÍCIO ao chefe do PI Pankararu pedindo respeito ao acordo de set. de 88 (não realizar serviços na área em litígio).; / STR de Petrolândia. 1988/09/23. SILVA NETO, Januário M.; CARTA ao Chefe do PI Pankararu pedindo a suspensão da construção das cercas.; / STR de Petrolândia. 1989/05/10. SILVA NETO, Januário M; CARTA (telegrama) à FUNAI onde o STR de Petrolandia aceita participar de GT de levantamento fundiário.; / STR de Petrolândia. 1989/06/26. SOUZA, Eraldo J. de e LEAL, Maria Elita.; MOÇÃO (n.13/89) dos vereadores de Petrolândia em apoio aos posseiros do Caldeirão e repúdio às arbitrariedades da PF.; /por: Bancada do PT. 1989/06/29. SOUZA, Eraldo J. de.; CARTA aberta com pedido de apoio à moção n.13/89 aprovada pela Camara dos Vereadores de Petrolândia-PE; / Liderança do PT. 1989/07/05. VÁRIOS; ATA da "Reunião da equipe técnica/Pólo Sindical/Comissão de posseiros de Petrolândia, sobre o conflito na área de 8100ha. 4f.; / INCRA, FUNAI, CEPA, Pólo Sindical, Comissão de posseiros. 1989/08/02. SILVA, Fulgêncio da.; CARTA ao Administrador Regional da FUNAI sobre invasão indígena das terras do Brejinho dos Correias.; / Polo Sindical do SMSF. 1989/08/19. NOTÍCIA: "Pankararus em pé de guerra. Exército pode intervir".; / Jornal Diário de Pernambuco. 1989/08/29. COELHO, Vicente; CARTA aberta: "Nota ao público".?f.; / STR de Petrolândia, Pólo, FETAPE, CUT-PE. 1989/09.DOSSIÊ: Os Posseiros e os índios Pankararú.; / Pólo Sindical do S-M-S-F. 1989/09/05. NOTÍCIA: "FETAPE defende volta do diálogo com a FUNAI na disputa com índios".; /por: Jornal Diário de Pernambuco. 1989/10.RELATÓRIO "Pankararu e posseiros de Tacaratu e Petrolândia. (resumo jurídico". 11f.; / CIMI : Ass. Jurídica. 1989/10/30. VÁRIOS; ATA da "Reunião de entidades sobre a questão Pankararu e posseiros de Tacaratu e Petrolândia". 5f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, STR de Petrolândia, Pólo Sindical do SmSF. 1990/06.PANKARARU, Cosme; CARTA à Secretaria Rural da CUT Nacional, pedindo solidariedade e denunciando contradição de seus filiados de Pernambuco (anexos: "Moção de apoio aos trabalhadores rurais e indígenas" aprovado pela CUT" e "Histórico do conflito") 7f.; / Povo indígena Pankararú: lideranças. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 216 1990/08/14. VÁRIOS; ATA da "Reunião sobre a questão Pankararu e posseiros de Petrolândia e Tacaratú", realizada dia 09 de agosto de 1990.; / CUT, PT, CpT, CIMI, Pólo Sindical. 1990/08/21. VÁRIOS; ATA da "Reunião da comissão sobre a questão Pankararu e posseiros de Tacaratu e Petrolândia". 3f.; / CPT, CIMI, PT, STR de Petrolândia, Pólo Sindical do SmSF. 1990/09/13. VIEIRA, Ademar; CARTA ao Porantim exigindo direito de resposta à matéria publicada sob o título "Pankararú - Conflitos que já duram 50 anos." (anexo: resposta). 4f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1990/09/20. VÁRIOS; "RELATÓRIO de viagem da Comissão de entidades na área de Petrolândia e Tacaratú", sobre a "questão pankararú e posseiros", nos dias 03 e 04 de setembro de 1994. ?f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, STR. 1990/11/06. SILVA NETO, Januário e SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO ao Juiz de direito da Comarca de Petrolândia, denunciando atos de vandalismo na AI Pankararú e pedindo providências. 2f.; / STR de Petrolândia. 1990/11/07. LIMA, Antônio G. de; OFÍCIO ao Juiz de direitoda Comarca de Petrolândia, prestando declarações (acompanha notas manuscritas pelo juiz). 3f.; / autor. 1990/11/13. SILVA, Osvaldo J. da; OFÍCIO ao Juiz de direito da Comarca de Petrolândia, prestando declarações. 1f.; / autor. 1990/12/18. VÁRIOS; DOSSIÊ sobre os índios Pankararu da favela Parque Real do Morumbi-SP. 6f.; Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da Justiça, Programa SOS criança, liderança jovem Pankararu. 1991/01/04. SILVA NETO, Januário da; CARTA aberta: "O Pólo Sindical do Sub-médio São Francisco e a situação dos Posseiros e dos índios Pankararú. 1f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1991/05/13. SOUZA, Eraldo J. de e SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO à Procuradoria da União no estado de Pernambuco, sobre "A real situação dos posseiros". 4f.; / STR de Petrolândia. 1991/11/14. OFÍCIO ao juiz de direito da Comarca de Petrolândia, ajuizando notificação judicial contra Eraldo J. de Souza. 1f.; / FUNAI. 1991/11/28. INFO: Área indígena Pankararu: Proposta de contrato para indenização e retirada de invasores da área. 3f.; / FUNAI: SUAF. 1992/01/21. TRINDADE, Vera; OFÍCIO ao juiz de direito da Comarca de Petrolândia, apresentando o protesto de Eraldo J. de Souza contra a FUNAI pela notificação judicial. ?f.; / autor. 1992/02/17. CORDEIRO, Fernando A. S.; PROFERE "Mandado de intimidação" à ADR de Paulo Afonso - FUNAI. 2f.; / Juizado de Direito da Comarca de Petrolândia. 1993. Laudo antropológico sobre a situação étnica de Nivaldo Santos, por Vânia Fialho. 1993. Recife: FUNAI. 1993/07. Diagnósticos Preliminares do Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco (encontros municipais): Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolândia. Junjul/1993. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 217 1993/08/09. OFÍCIO ao superintendente do INCRA, solicitando providências pelo reassentamento dos posseiros ameaçados de expulsão da AI . 2f.; / STR de Petrolândia. 1993/08/09. SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO ao juiz de direito da 9a. vara da Justiça Federal do Recife, com agravo contra o deferimento da liminar de expulsão dos 12 posseiros da Cldeirão e Bemquerer. 7f.; / posseiros. 1993/08/14. SILVA NETO, Januário da; CARTA aberta: "Nota de esclarecimento" sobre a posição do sindicato frente ao conflito. 2f.; / STR de Petrolândia. 1993/08/16. SILVA NETO, Januário da e SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO ao superintendente da PF, lotado em Recife, apresentando representação contra a delegada da PF, Sverina Maria do Nascimento Gonçalves.; / STR de Petrolândia. 1993/09/30. SOUZA, Vania Fialho de P. e ; "RELATÓRIO técnico de viagem"sobre "condição étnica de Nivaldo Dantas de Lima". 5f.; / FUNAI. 1993/10.SILVA NETO, Januário da; CARTA a Gilson Oliveira (chefe de redação do Diário de Pernambuco): "Nota de Repúdio às calúnias". 2f.; / STR de Petrolândia. 1993/10/03. VIEIRA, Ademar e SILVA NETO, Januário da; OFÍCIO ao superintendente da PF em Recife, com representação contra o comandante dos policiais federais em exercício na AI Pankararú. 2f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1993/10/08. JESUS, Quitéria M. de; ASSOCIAÇÀO Indígena do Índio Pankararu (estatuto). 11f.; / Comunidade Pankararu. 1993/10/11. SILVA NETO, Januário da; OFÍCIO ao superintendente da PF em Recife, denunciando ação ilegal de agentes da PF, no acobertamento de ações indígenas. 2f.; / STR de Petrolândia. 1993/10/12. PORTARIA com exame de lesão corporal de Eraldo J. de Souza. 2f.; / Delegacia Municipal de Polícia de Petrolândia. 1993/10/12. TORRES, Paulo e SILVA, Goya da Costa e; OFÍCIO ao Ministério da Justiça, denunciando violências praticadas pela PF contra Eraldo J. de Souza. 2f.; / AATR-BA. 1993/10/13. CARTA aberta: "Nota de repúdio". 4f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1993/10/14. COELHO, Vicente da C.; CARTA aberta: "Polícia Federal agride sindicalista". 2f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1993/10/19. SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO ao Procurador da República em Recife, apresentando representação contra o agente chefe da PF por violências. 4f.; / autor. 1993/10/20. TORRES, Paulo e SILVA, Goya da Costa e; CARTA ao Pólo Sindical do SmSF-BA/PE, manifestando solidariedade contra as violências praticadas pela PF. 2f.; / AATR-BA. 1993/12/28. LUZ, Gustavo B. da et alii.; ASSOCIAÇÃO Indígena Pankararu (ficha de inscrição na Receita Federal, estatuto e ata de criação). 6f.; / Comunidade Pankararu. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 218 1993/12/28. VÁRIOS; "ATA da reunião sobre a questão do litígio entre índios Pankararu e posseiros do município de Petrolândia". 2f.; / INCRA, PF, FUNAI, Polícia Civil Estadual, STR, SINTEPE, FETAPE, deputados estaduais, índios e posseiros. 1994/02/28. RELATÓRIO de visita dos diretores do STR de Petrolândia e da comissão de posseiros à área do decreto, nos dias 03 e 15 de fevereiro de 19994. 1f.; / STR de Petrolândia e Comissão de Posseiros. 1994/05/07. SANTOS, João Tomás dos; ASSOCIAÇÃO Comunitária Indígena Espinheiro Tacaratu (ata da assembléia geral de reformuação total do estatuto..., histórico e estatuto). ?f.; / Comunidade Pankararu. 1994/08/24. MAPAS eleitorais com o resultado das eleições de 1994, das seções 58 e 59 (dentro da AI). 23f.; / TRE de Pernambuco. 1994/09.VÁRIOS; CARTA aberta: "Porque apoiamos Eraldo". 1f.; / Pólo Petrolândia, Pólo Sertão Central, Pólo Araripe, PóloPajeú, FETAPE, CENTRÚ, JUP e Associação de moradores de Petrolândia. 1994/09/23. SILVA NETO, Januário da; "CARTA de repúdio" às notícias de jornais acusando Eraldo, candidato do PT, de defender a extinção dos índios do nordeste. 1f.; / Pólo Sindical do SmSF. 1994/10/14. AZEVEDO Fo, Ermínio de; "RELATÓRIO de atividades" referentes aos estudos para reassentamento dos posseiros. 2f.; / INCRA. 1994/10/19. VÁRIOS; ATA da reunião sobre a questão do litígio entre índios Pankararu e posseiros. 3f.; / CDCAL-PE,INCRA, PF, FUNAI, STR de Petrolândia, Pólo, FETAPE, CIMI, ÍNDIOS E POSSEIROS. 1994/10/24. VÁRIOS; OFÍCIO ao superintendente regional do INCRA com "Propostas aprovadas pelos órgãos presentes na reunião do dia 19 de outubro de 1994, sobre a questão do litígio entre índios Pankararu e posseiros do município de Petrolândia-PE, sob a coorrdenação do presidente da Comissão de Defesa da Cidadania da Assembléia Legislativa-PE". 3f.; / CDCAL-PE,INCRA, PF, FUNAI, STR de Petrolândia, Pólo, FETAPE, CIMI, ÍNDIOS E POSSEIROS. S/D. Questionário referente a cada uma das aldeias ou agrupamentos indígenas localizados no município onde se localiza o posto indígena. S/d. MI/microfilmes: rolo175, fotograma322. Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 219