UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
O Reencantamento do Mundo
Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu
José Maurício Paiva Andion Arruti
Rio de Janeiro
1996
1
José Maurício Paiva Andion Arruti
O Reeencantamento do Mundo
Trama histórica e Arranjos Territoriais Pankararu
Dissertação apresentada ao PPGAS
do Museu Nacional, como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em
Antropologia Social, realizada sob a
orientação do Prof. Dr. João Pacheco de
oliveira Filho e submetida à banca
composta pelos Prof. Dr. Mariza Peirano e
Otávio Velho.
Rio de Janeiro
fevereiro de 1996
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 2
À Ana,
Luciana
e Jorcyra.
Três mulheres que me inventaram.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 3
Resumo
Este trabalho tem por objeto as condições sociais e simbólicas da “invenção
cultural” e da “manipulação da identidade” entre grupos indígenas do Nordeste brasileiro,
concentrando-se sobre uma dessas situações: o etnônimo Pankararu, localizado no sertão
pernambucano do São Francisco, próximo à UHE de Itaparica. A análise desenvolve-se em
dois planos, cada um deles correspondendo a dois capítulos. Propomos uma interprestação
histórica sobre as emergências étnicas do Nordeste a partir das mudanças ideológicas e
contextuais que levaram o órgão indigenista oficial a atuar na região e o novo padrão de
indianidade gerado a partir daí, assim como das redes de contatos rituais e, depois, de
mediadores políticos e religiosos que permitiram a deflagração das emergências (Cap.1).
Apresentamos uma análise da emergência Pankarau e da construção de seu território a
partir da série de intervenções e ressignificações entre burocracia e política nativa, que
desembocam num “campo político autônomo” (Cap.2). Num segundo plano, propomos um
modelo descritivo capaz de sintetizar, sem reduzir, o processo de construção e mutação
territorial daqueles campo autônomo de novas relações sociais (Cap.3). Para em seguida
investirmos sobre as dinâmicas de desterritorializações e reterritorializações que fogem ao
recorte geométrico do território, descrevendo como uma topológica a constante produção
da etnicidade (Cap.4).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 4
Agradecimentos
O Macaco da Tinta
Este animal existe em abundância nas regiões do Norte e tem quatro ou
cinco polegadas de comprimento; os olhos são como cornalinas e o pêlo
é negro azeviche, sedoso e flexível, macio como uma almofada. possui
um instinto curioso: é grande apreciador da tinta nanquim, e quando as
pessoas escrevem, senta-se com as mãos uma sobre a outra e as pernas
cruzadas, esperando que tenham terminado, e bebe o que sobra da tinta.
Depois volta a sentar-se de cócoras e fica tranqüilo.
(J. L. Borges sobre Wang Ta-Hai, 1791)
O pequeno animal que me acompanha e se alimenta de tudo que deixo de escrever,
de tudo o que em meu discurso é lacunar, é falta, é incompletude, está sobre a mesa à
minha frente. Ele me olha mais excitado que o de costume, sabe que nestas páginas se
alimentará em fartura. Como cumprir aqui a tarefa do contra-dom?
As dívidas nunca são saldadas. Muitos sentimentos opostos combinam-se em mim
neste momento em que escrevo as últimas páginas deste trabalho. Dois deles são francos
lugares comuns aos quais não consigo resistir. Talvez confirmando a força dos lugares
comuns; com certeza revelando a razão já perdida das palavras rituais. A solidão do esforço
de redação de um trabalho dessas dimensões (não físicas ou teóricas, mas existenciais), é
algo que se sente a todo instante, a cada parágrafo, a cada dia, a cada fita transcrita, a cada
queixa anotada nas margens do caderno-de-campo, a cada maço de fotos constantemente
repassado, na busca de reminiscências e sensações que escaparam à toda caligrafia. Ao
mesmo tempo, nascendo de dentro desta solidão, a certeza de que não seria possível
manter-se são se, espreitando-nos, não existisse este círculo amoroso e amigável; rostos
que nos acenam de longe e prometem a recompensa do estar-ao-lado, depois que voltarmos
à superfície.
Muitos rostos me trouxeram à superfície e as listas são sempre infiéis. Fico, por
isso, com a menor delas. Emerson e Fabíola, por tudo de descoberta conjunta e recíproca;
Aline, Edu e Priscila, grandes empréstimos que aos poucos foram transformando-se em
conquistas; Nora e Jaime pela constante provocação e apoio (incluíndo o apoio definitivo
de suas casas nos momentos finais de redação); e como não?, minha família, José, Jorcyira,
Izabella, Alessandra e Lola (minha segunda mãe).
Ao meu orientador, o professor João Pacheco de Oliveira Filho, agradeço a total
liberdade e confiança em meu trabalho. Alguns mostraram extrema generosidade na leitura
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 5
de trechos desta dissertação, como os professores Moacir Palmeira e Márcio Goldman (à
época ainda mais professor que amigo) e os amigos Omar e, novamente, Emerson.
O trabalho de campo, por sua vez, multiplica as dívidas e os afetos. Muitas pessoas
mostraram-me que é possível ainda uma enorme dose de solidariedade com desconhecidos.
Ivson, Sílvia, José Filho e, principalmente, Vânia, foram fundamentais em Recife. Guga
(da ANAÍ-BA), recebeu-me com simpatia e despreendimento em Salvador. Em Petrolândia
(PE), Tacaratu (PE) e Paulo Afonso (BA), travei conhecimento e criei grande admiração
pelo trabalho de uma equipe pastoral, donde acredito ter retirado amigos e gostaria de
homenagear através do nome de Padre Adriano, sertanejo firme, que o acaso fez nascer na
Itália.
Em termos bastante concretos, esta dissertação não seria possível sem a bolsa
fornecida pelo CNPq e a dotação (tipo-B) do Concurso Fundação Ford/ANPOCS,
completadas durante o primeiro semestre de 1995 pela bolsa de assistente de pesquisa no
PPGAS do Museu Nacional, oferecida por meu orientador. Nem sem o apoio da grande
eficiência das funcionárias da secretaria e da biblioteca do PPGAS. Os colegas e
professores deste programa também mereceriam um agradecimento especial pelo ambiente
intelectual extremamente estimulante que me proporcionaram.
Um momento absolutamente mágico se produziu nos meses finais desta dissertação.
Minha filha Ana, nasceu em dezembro de 1995, quando tentava escrever as últimas páginas
que você tem nas mãos. O caos e a felicidade que a sua chegada instauraram na minha vida
são responsáveis por tudo de criativo que pode haver nessas páginas. A ela e sua mãe,
Luciana, eu agredeço isto, o inominável, o imensurável, o tão simples sentimento de ser
feliz.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 6
Conteúdo
Resumo ............................................................................................................................................................. 4
Agradecimentos ............................................................................................................................................... 5
Conteúdo .......................................................................................................................................................... 7
Apresentação .................................................................................................................................................... 8
Notas sobre o percurso do autor ao texto. ................................................................................................... 10
Notas sobre o nome e a pessoa .................................................................................................................... 13
Capítulo 1 – Da visibilidade .......................................................................................................................... 14
PARTE 1: OS DESAPARECIMENTOS .................................................................................................... 14
A produção da invisibilidade ................................................................................................................... 14
Estratégias da conquista........................................................................................................................... 17
A mecânica do fim ................................................................................................................................... 25
Memória da violência .............................................................................................................................. 32
PARTE 2: AS EMERGÊNCIAS ................................................................................................................. 41
A produção da visibilidade ...................................................................................................................... 41
A produção das emergências ................................................................................................................... 46
A instituição das viagens ......................................................................................................................... 53
Levantar aldeia ........................................................................................................................................ 59
Capítulo 2 – Do governo ............................................................................................................................... 67
PARTE 1: DOMÍNIO TUTELAR .............................................................................................................. 67
Atos de fundação ..................................................................................................................................... 67
O governo das coisas ............................................................................................................................... 79
PARTE 2: RESSIGNIFICAÇÕES .............................................................................................................. 92
Arranjos anteriores .................................................................................................................................. 92
Burocracia e magia .................................................................................................................................. 98
A representação indígena....................................................................................................................... 102
Estado-pai-patrão ................................................................................................................................... 105
Capítulo 3 - Etnogeografia ............................................................................................................................ 113
Um território Semântico ........................................................................................................................ 113
Geografia Jurídica. ................................................................................................................................ 117
Geografia Ecológica. ............................................................................................................................. 121
Geografia Mítica. ................................................................................................................................... 126
Geografia dos homens ........................................................................................................................... 130
Geografia dos recursos. ......................................................................................................................... 138
Geografia ritual ...................................................................................................................................... 144
Capítulo 4 - Uma aldeia aberta .................................................................................................................. 158
Topologia .............................................................................................................................................. 158
Desterritorializações e reterritorializações ............................................................................................ 159
Antropologia das políticas de identidade ............................................................................................... 169
Ser e não ser .......................................................................................................................................... 179
A construção do contraste...................................................................................................................... 186
Uma escrava e dois senhores ................................................................................................................. 196
Anexos: ......................................................................................................................................................... 201
A1 - A morte e a morte de Cavalcante ....................................................................................................... 201
Por Ulisses Lins de Albuquerque: ......................................................................................................... 201
Por João Binga: ..................................................................................................................................... 202
A2 - A categoria de "Remanescentes Indígenas" ....................................................................................... 203
A3 - Lista das entrevistas gravadas ............................................................................................................ 204
Bibliografia .................................................................................................................................................. 206
Documentos Citados .................................................................................................................................... 211
Outros documentos consultados ................................................................................................................. 214
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 7
Apresentação
“Brejo dos Padres” é o nome de um pequeno vale de terras úmidas e muito férteis,
localizado em pleno sertão pernambucano. Seu formato alongado, semelhante a um
anfiteatro voltado para as margens do São Francisco, deve-se ao espraiamento de uma das
últimas ramificações do maciço da Borborema que penetra o estado de Pernambuco, onde
onde, ao alcançar as margens daquele rio, ganha o nome de Serra de Tacaratu. Em fins do
século XVIII foram reunidos ali, por obra de padres de uma missão da ordem de São Felipe
Néry, um grupo de índios provenientes de diferentes tribos: ou transferidos de aldeamentos
recém-extintos, ou fugidos da perseguição bandeirante, ou simplesmente recolhidos de sua
perambulação vagabunda. Mesmo antes, segundo o que diz a parca mas orgulhosa história
oficial do município de Tacaratu, quando a missão instalou-se no local, já existia alí uma
maloca indígena denominada Cana Brava, formada pela reunião de índios Pancarus,
Umaus Vouvês e Geritacós, presumivelmente do grupo lingüistico Kariri.
Em 1878, um ato imperial extinguiu esse aldeamento, ocupado então por pouco
mais de 350 índios. Ao extingui-lo, o governo imperial contou com a ajuda de alguns
importantes membros das localidades vizinhas, Tacaratú e Jatobá, para organizar a
redistribuição das terras daquele brejo entre os caboclos que permaneciam ali. Foram
distribuídos, então, pouco menos de 100 lotes familiares suficientes para os caboclos do
Brejo produzirem para suas famílias, crescerem e se misturarem definitiva e livremente à
população local, prosperando em seu próprio interesse e de sua Comarca.
Passados pouco mais de 60 anos, o Serviço de Proteção ao Índio funda no mesmo
vale, denominado ainda Brejo dos Padres, o posto indígena Pankararu, reconhecendo na
população local, de cerca de 1100 habitantes, legítimos remanescentes daqueles antigos
habitantes do aldeamento extinto. Hoje, 55 anos depois, os Pankararu, que as estimativas
oficiais dizem ultrapassar os 5000, não só cresceram e se multiplicaram como tornaram-se
cada vez mais visíveis, no município, no estado e no país, saindo freqüentemente de seu
torrão para apresentam o Toré nas capitais, como forma de reclamarem providências contra
a invasão de suas terras. Não só não foram extintos como também se expandiram, dando
origem a novos grupos, ou ajudando que outros emergissem e retomassem suas tradições.
A primeira parte desta dissertação, além de começar a colocar aspas e itálicos nas
expressões até agora utilizadas, se dedicará a explorar os movimentos que permitiram essas
sucessivas passagens dos Pankararu de um estado ao outro. Nesta primeira parte, nosso
interesse repousa na duração, isto é, nas seqüências de ações e seus desdobramentos no
tempo, em que as relações e deslocamentos sociais, ainda que substantivamente espaciais,
ganham sentido ao se sucederem e nessa sucessão mudarem de natureza, oscilando entre o
invisível e o visível.
Nada mais distante, portanto, do conselho de Fustel de Coulange que recomendava
aos interessados em ressuscitar uma época, que esquecessem tudo que sabiam de fases
posteriores da história. Ao contrário, como propõe W. Benjamin, o nosso procedimento é o
da empatia. Interessa aqui voltar à experiência de uma população que viveu o continuum da
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 8
história como sucessivos sobressaltados e silenciosos "estados de exceção" e que hoje, não
menos sobressaltados, mas muito menos silenciosos, contorcem a flecha do progresso que
para seus historiadores e antropólogos ausentes, corria livre num tempo vazio e
homogêneo. Em outras palavras, essa primeira parte pretende apenas o que Christofer Hill
reconheceu ser a necessidade das gerações que se sucedem: formular novas perguntas ao
passado, encontrar novas áreas de simpatia na medida em que revivem distintos aspectos
das experiências de suas predecessoras. Porque se o passado não muda, a história, ao
contrário, é feita sempre no presente e para o presente.
No primeiro capítulo, nossa argumentação se faz em torno dos processos de
invisibilização e visibilização dos objetos e dos sujeitos sociais: aí descrevemos tanto a
tecitura de uma larga rede de relações de alcance regional, capaz de manter e reativar
circuitos rituais e criar uma reciprocidade política, quanto a produção de novas formas
narrativas capazes de fazer com que certos aspectos da realidade, primeiro, deixem de ser e
depois, voltem a ser enunciáveis. A partir daí foi possível construir uma relativa simetria
entre alguns processos que caminharam em sentidos contrários e que podem ser expressos
pela idéia de “conquista” (TODOROV,1993), num sentido que, no entanto, ultrapassa e
subverte sua apreensão enquanto modalidade de guerra: a conquista da memória, a
conquista da visibilidade, a conquista da simbolização identitária definem a relação entre
os Pankararu - assim como muitos outros grupos indígenas - e o órgão indigenista oficial,
onde cabe aos primeiros a iniciativa dos avanços e da "atração" para, de certa forma,
colocar nos termos de um paradoxo a relação entre ideário e ação tutelar. Para desenvolver
esta idéia, a segunda parte deste capítulo reconstituímos parcialmente os circuitos das
emergências étnicas do Nordeste ao longo das décadas de 1930 e 1940, incluindo aí o
trabalho de produção dos fatos etnográficos e a reapropriação política e simbólica de
circuitos rituais, num movimento de revelação, descoberta e busca dos “direitos” e das
identidades.
No segundo capítulo nos debruçamos sobre a documentação produzida pelo órgão
tutelar, principalmente ao nível do posto indígena Pankararu, na busca de um melhor
entendimento sobre como operou o domínio tutelar no seu cotidiano e na especificidade de
um trabalho onde as diretrizes indigenistas tinham todo o tempo que deparar-se com o que
lhes pareciam inadequações: do ambiente, das verbas, da mobilidade da população e,
enfim, dos próprios índios. Neste capítulo trabalhamos com algumas narrativas sobre o que
poderíamos chamar (recorrendo ao estilo cortaziano dos manuais) maneiras de produzir
índios e aldeias. Para isso recorremos freqüentemente ao movimento de ida e volta entre
documento, bibliografia e memória, não apenas como recurso para cobrir lacunas, mas para
revelar o tanto de conflito que existe entre esses dois registros, o oral e o escrito, em seus
permanentes processos de mitificação. Esse material abre-se também para as questões
relativas ao processo de autonomização de um campo político, numa tentativa de voltar aos
problemas propostos por uma primeira antropologia política, visitando também o que
parece ser um fértil campo de investigação sobre exercício do clientelismo em contexto
étnico.
Na segunda metade deste trabalho, voltamos nosso interesse para a extensão. Nela
nos dedicamos não às sucessões, mas às sobreposições, abandonando o triângulo
“tempo/história/memória”, para investigarmos o “espaço/território/posições”. Deslocamos
nossos esforços na construção de uma interpretação histórica sobre um processo regional,
para a construção de um modelo descritivo capaz de trabalhar intensivamente com a noção
de território.
O Território indígena é um símbolo forte, capaz de catalisar grupos, lutas,
inovações jurídicas, pressões de diferentes naturezas e escalas. Mas é forte, sobretudo,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 9
porque se afirma sobre uma idéia aparentemente muito simples, que está presente na
maioria dos discursos sobre o tema e que, como qualquer outro símbolo, retira sua força da
capacidade de condensar experiências, noções, crenças e aspirações, que são tão mais
intensificadas e plurivocais quanto mais o símbolo for capaz de reduzi-las a uma fórmula
elementar. Trata-se da expressão que, ao longo das lutas pela demarcação das terras
indígenas no Brasil, tornou-se uma espécie de dazibao impresso em postais, adesivos e
publicações simpatizantes ou militantes da causa indígena: "índio é terra". Na busca de
uma resposta, o território deixa de ser puro suporte, transformando-se em ponto de
convergência de processos naturais e sociais que em lugar de se polarizarem, se compõem
como um dos híbridos de que fala Latour (1994), através da convergência de discursos,
fatos e poderes que não podem ser reduzidos uns aos outros, mas percebidos como
constituindo uma rede.
No terceiro capítulo essa proposta ganha realidade através de uma descrição do que
concebemos como as várias geografias constituintes do território Pankararu, avançando
sobre temas abertos nos capítulos anteriores, como a autonomização do campo político e o
seu reverso, a sua magicização e ritualização. Neste ponto é possível jogar luz sobre algo
apenas esboçado no capítulo sobre as emergências: as formas culturais de lidar com a
territorialização. Revisitando problemáticas fundadoras, apontamos para a versão
Pankararu dos “valores místicos” e sua relação com a constituição de uma forma, ou ética
ou política.
No quarto e último capítulo proponho-me pensar os “limites do grupo” Pankararu,
trocando para isso o espaço geométrico pelo espaço relacional. Estabelecemos um
panorama da dispersão e da mobilidade Pankararu para pensar a identidade étnica como um
jogo de distâncias e aproximações. Exploramos, então, o que de contextual existe nas
identidades sociais, assim como no próprio trabalho etnográfico, deslocando um pouco a
insistência dos nossos olhares sobre o puramente contrastivo, para viabilizar uma reflexão
sobre o que seriam as condições sociais da “manipulação de identidade”. Para isso tivemos
que nos ocupar também do que vem a ser o “não-índio”. Já que as formas não são vazias, o
contraste e o contexto que explicam a possibilidade ou não de ser índio devem fazer
referência ao que existe do outro lado do portal.
Notas sobre o percurso do autor ao texto.
Esta dissertação tem seu ponto de partida marcado por um trabalho coletivo,
desenvolvido no âmbito do Projeto Estudos sobre Terras Indígenas (PETI) do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, ao qual estou ligado de
diferentes maneiras desde 1990, ano em que encerrava minha formação em história e,
através deste projeto, dava início aos meus primeiros contatos com a temática indígena e
com a bibliografia antropológica. Nesse projeto pude participar de discussões baseadas em
farto arquivo documental e da troca de experiências de campo entre os pesquisadores com
trabalhos em andamento, que tinham como foco a questão da territorialização das
sociedades indígenas e sua relação com o poder tutelar.
Tais discussões se empenhavam na criação de uma perspectiva sociológica que
abandonasse um tipo de produção sobre a questão da terra indígena freqüentemente presa à
prática da denúncia, para construir um olhar mais sistemático e não menos político sobre as
questões que envolvem a sua definição, organizando para isso um quadro de referências
tanto sobre os processos legais que levam até ela, quanto sobre as situações concretas a que
as populações étnicas (DESPRES,1975) estão submetidas no território nacional brasileiro.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 10
No momento de minha entrada no projeto, essas discussões se encaminhavam no
sentido da formulação de um tipo de acompanhamento dessas situações segundo o modelo
"atlas". Meu trabalho convergiu então para a leitura e discussão sobre questões
aparentemente técnicas, relacionadas com a definição das formas e problemas na
representação gráfica das áreas indígenas, com a natureza dos recortes regionais que
permitissem uma leitura comum de conjuntos de situações territoriais comparáveis e com a
seleção, organização e compatibilização de uma grande massa de material histórico que
deveria ser trabalhado em equipe. Além disso, em função do recorte regional do Atlas, me
envolvi com as questões mais diretamente relacionadas com a temática indígena no
Nordeste. Neste período compartilhei dos trabalhos de muitos companheiros, que foram em
grande medida absorvidos como parte de minha própria perspectiva e, por isso, difíceis de
serem discriminados. Além da orientação mais geral fornecida por João Pacheco de
Oliveira Filho, que veio a ser meu orientador nesta dissertação, sou tributário também do
trabalho de Antonio Carlos de S. Lima, a quem devo as primeiras bolsas de pesquisa nesta
temática.
Ao iniciar uma reflexão mais sistemática sobre o material recolhido para o conjunto
das áreas indígenas abarcadas pelo recorte que definimos então como Nordeste, passava a
fazer parte de um grupo anterior de mestrandos do PPGAS-MN que haviam iniciado,
muitas vezes do ponto zero, as reflexões sobre essas situações étnicas tão especiais. Os
trabalhos de Mércia Batista (1992) e Hênio Barreto Fo. (1992), Sidney Peres (1992),
Carlos G. Valle (1993) e Rodrigo Grunewald (1993) e os vários técnicos e metodológicos
de Jurandir Leite, foram por isso da maior importância para a constituição desta
dissertação, tanto na perspectiva analítica que abriram, quanto no mateial bruto que
trabalharam, permitindo algumas reanálises.
Tais observações sobre o trajeto do autor até o texto, por elementares que sejam,
ganham importância ao explicitarem quais as fontes e a inspiração dos movimentos
analíticos que se seguem e que, na dinâmica da escrita, eventualmente ficaram à sombra de
um narrador aparentemente absoluto e que não resistiu a pretensão à originalidade. Expor
os limites do trabalho, neste sentido, não significa demorar-me na enumeração de tudo que
poderia ter sido e não foi, ou do que ficou de fora e que poderia estar dentro, mas
justamente na explicitação d'o que foi feito e do como foi feito.
Depois de ter lidado com material de origem administrativa e historiográfica sobre
os Pankararu para a formulação das fichas do Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, em
1993 realizaria meu primeiro período de "campo", graças ao convite para um trabalho de
assessoria ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), integrado no
projeto mais amplo, coordenado por Aurélio Vianna, de Avaliação e Planejamento das
Atividades do Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco, que agrega um total de dez
Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR). Esse projeto respondia a necessidades
explicitadas pela própria direção do Pólo, a sugestões feitas por Alfredo Wagner B. de
Almeida numa avaliação preliminar e a questionamentos de agências financiadoras da
entidade. Segundo essas demandas, seria importante que a avaliação das atividades do Pólo
levasse em conta não apenas o seu foco privilegiado de ação na época, isto é, a população
camponesa reassentada nas agrovilas em função da construção das UHE's, mas também
toda a diversidade de categorias de trabalhadores rurais e povos indígenas existentes em
sua área de abrangência, restituindo-lhe com isso, uma atuação de caráter mais amplo.
Neste quadro, os povos indígenas ocupavam um lugar especialmente problemático, tendo
sido eleitos por pelo menos dois desses STR's, os de Glória (BA) e Petrolândia (PE), como
seus maiores problemas, ao lado das invasões ilegais das áreas de sequeiro das agrovilas e
dos problemas de negociação com a CHESF. Meu trabalho deveria centrar sua análise
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 11
sobre a relação entre grupos indígenas e sindicalismo rural, na busca de uma resposta para
aqueles confrontos.
Nessa primeira viagem visitei as áreas dos Tuxá e dos Kantaruré, ambas no
município de Glória (BA) e a área indígena Pankararu (PE), a qual dediquei a maior parte
do tempo, por tratar-se da situação mais conflitiva. O interesse do projeto de avaliação do
Pólo também convergia para essa situação, já que boa parte das lideranças do STR local e
da direção do próprio Pólo estão diretamente envolvidos no conflito, com graves custos
políticos para aquelas organizações. Isso imprimiu sobre meus primeiros contatos diretos
com a área indígena e com o conflito fundiário "a marca da encomenda", como já assinalou
criticamente Sigaud, com relação aos trabalhos de "avaliação de impactos sociais". Na
prática, isso estabeleceu como horizonte desejável para o trabalho o atendimento de uma
demanda, a proposição de um receituário de medidas minimizadoras do conflito e gerou
uma tensão, desde sua origem, entre minha avaliação sobre a natureza e relevância das
questões a serem postas e as questões que me eram impostas, marcadas por claras
dicotomias, como índios/posseiros, positivo/negativo, legítimo/ilegítimo.
Como será detalhado no capítulo 3, a entrada em campo foi marcada pela tentativa
de manter-me longe das posições mais fortes sobre o conflito, evitando qualquer contato
direto, ao menos num primeiro momento, com as lideranças sindicais e com as lideranças
indígenas mais engajadas numa oposição direta aos posseiros. Tive então que evitar o que
seria uma entrada tradicional, através do posto indígena e do seu chefe, o que só seria
realizado numa segunda viagem. Isso fez com que antes da entrada propriamente dita na
área indígena, eu percorresse várias "entradas" em campo, cada vez que tinha que negociar
uma nova mediação. Nessa périplo me defrontei com agentes engajados em uma parte ou
em outra do conflito de diferentes maneiras e, em cada uma dessas vezes, era obrigado a
posicionar-me politicamente, definir "o lado" de que estava, ou, quando o interlocutor já
fazia uma idéia da minha posição, tinha que enfrentar a arguição sobre posições e valores
éticos. Descobri com algum custo que em "campo" não há lugar "fora" ou "acima", não há
espaço para o puro observador, da mesma forma que não há o puro informante (FAVRETSAADA,1977). Em pouco tempo todas as precauções para tornar-me o observador mais
discreto não impediram que fosse largamente conhecido e diretamente associado ao tema
do conflito, ao qual meus interlocutores condicionavam virtualmente qualquer conversa,
qualquer recolha de dados. Senti-me confusamente engajado, na busca de uma posição de
equilíbrio alcançada, não com a conciliação de perspectivas, mas apenas com uma ruptura
total. Depois de ter produzido o segundo relatório, em que tratava da questão do conflito,
voltei à área para entregar uma cópia aos dirigentes sindicais e outra às lideranças
indígenas. No caso dos primeiros fui submetido a uma sabatinada organizada no Pólo, com
a presença de dirigentes e assessores, que resultou numa discussão acalorada e num
profundo desagrado com o resultado final. No caso dos segundos, o texto e minha tentativa
de expô-lo foram recebidos como algo exótico e que os desapontava ao perceberem que o
resultado daquelas conversas era algo tão inócuo.
A dissertação começou a ganhar forma a partir desta inadequação. Durante a
segunda viagem (1994), para aliviar a minha imagem da carga associada ao conflito, usei o
recurso de introduzir as conversas a partir de um pequeno questionário sobre o percurso de
vida do informante. Esse, que inicialmente era apenas um subterfúgio, acabou por
transformar-se no ponto central do trabalho etnográfico e na fonte mais rica de novas
problemáticas, abrindo-me perspectivas que, provavelmente, eu não conheceria de outra
forma. Assim, a dissertação ganhava forma a partir da frustração da "encomenda" e da
criação de recursos próprios à dinâmica daquele trabalho de campo.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 12
Notas sobre o nome e a pessoa
Ao longo desta dissertação tornou-se evidente a dificuldade de optar por uma forma
única e padronizada de situar o autor. Muitas vezes situamo-nos na primeira pessoa do
plural, não por encarnarmos o "olhar de águia" ou a "nobreza" própria da objetividade
científica, mas por assumirmos nosso ponto de vista como uma postura política ou analítica
partilhada com outros autores ou, por buscarmos o ponto de vista do leitor, na tentativa de
construir uma narrativa em perspectiva e uma argumentação que pudesse ser compartilhada
por todos estes que estão "de fora" do campo. Em outras passagens a própria dissertação
assume o papel de protagonista, e o autor desaparece sob a terceira pessoa como forma de
reproduzir a sensação muito real de que, em vários momentos do trabalho de pesquisa e de
redação, o texto tinha um destino próprio que impulsionava-o mais do que era dirigido por
ele. Finalmente, em outros momentos menos numeroros, a primeira pessoa do singular
domina, fazendo ver que a construção dos argumentos, dos encadeamentos entre esferas e
escalas e a conexão entre personagens eram produtos, em primeiro lugar, da minha ação, da
minha posição e do meu trânsito entre textos e contextos, produtos de uma experiência
pontual e pessoal muito concreta. Essas flutuações da pessoa verbal respondem, então, à
necessidade de construção de um texto etnográfico menos objetivista, mas também aos
inconvenientes disto resultar numa solução única. O incômodo que tais flutuações possam
provocar no leitor deve ser visto menos como uma desconsideração deste problema, do que
como sua explicitação.
Outra opção por vezes incômoda também deve ser esclarecida. Depois de testar
algumas soluções possíveis e de discutir esse aspecto com meu orientador, resolvemos
manter os nomes reais das pessoas que estão no centro das nossas argumentações. Essa
opção, até se demonstre o contrário, era a mais coerente com a perspectiva mais ampla
adotada por este traalho: tomar tais personagens e situações como efetivamente históricas.
Este trabalho tem a intenção de ajudar a entender não só certas questões antropológicas e
sociológicas desterritorializadas e - até certa medida - atemporais, mas também parte
importante da história indígena, do indigenismo e do Nordeste e, por isso, os dados brutos
trazidos pelas reconstituições realizadas aqui são, provavelmente, tão ou mais duradouros e
relevantes do que os modelos que propus para lhes dar forma e inteligibilidade. Adotada
esta perspectiva principalmente para a primeira parte desta dissertação (capítulos 1 e 2),
tornou-se excessivamente artificial e confuso e inútil voltar ao uso das iniciais ou dos
pseudônimos na segunda parte, quando, de fato, teria sido possível assumir a forma mais
convencional - mais abstrata e generalizante - da análise antropológica.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 13
Capítulo 1 – Da visibilidade
PARTE 1: OS DESAPARECIMENTOS
É útil começar explorando a pergunta sobre o que tornou possível que uma
população se tornasse invisível, ou melhor, já que a cegueira está nos olhos e não no
mundo, o que fez com que gerações de homens de ciência e homens de estado pudessem
desconhecer ou não reconhecer, sistematicamente, algumas faixas de realidade, para logo
em seguida reconhecerem-na, por vezes com o alarde das surpreendentes descobertas. Essa
pergunta não desconhece o perigo de se afirmar a existência de continuidades que
atravessam os tempos, sempre prontas a serem simplesmente observadas, sem incidir em
naturalizações grosseiras. Mas reconhecido não existir esse corte radical entre o olho e o
mundo, entre sujeito e objeto, nossa pergunta é sobre como se constrói ou se impede uma
relação entre eles, sobre como o (re) conhecimento é ou deixa de ser possível, sobre a
emergência dos objetos que, nesse ato mesmo de emergir, se tornam sujeitos.
A produção da invisibilidade
1
Um dos epítetos atribuídos a Rondon, patrono (quase padroeiro) do indigenismo
oficial brasileiro, “o civilizador da última fronteira” (COUTINHO, 1975), condensa muitos
dos significados atribuídos à ação do SPI. Quando surgiu, em 1910, sua intervenção
privilegiou Santa Catarina, Oeste paulista, Mato Grosso e, a seguir, Amazônia. Seus
objetivos: nacionalização do interior, localização (no sentido de fixação) da mão-de-obra,
abertura de terras e diminuição dos custos da “fronteira”. Seu léxico: grupos isolados,
atração, pacificação, fases de aculturação, assimilação-não-traumática. Criado como
SPILTN - Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais - era
vinculado ao Ministério da Agricultura Indústria e Comércio e tinha como atribuições a
proteção aos indígenas e a fixação de mão-de-obra não-estrangeira no campo, assumindo o
perfil de uma agência de colonização. Tanto a proteção quanto a fixação seriam operadas
por meio de um controle do acesso à propriedade e treinamento técnico da força de
trabalho, num caso em postos indígenas e, em outro, em centros agrícolas, o que lhe dava
uma dimensão claramente geopolítica. O contexto institucional do surgimento deste órgão,
assim como as relações que isso mantém com nossa problemática serão explorados mais
adiante, bastando aqui uma rápida caracterização de suas bases ideológicas e de como elas
sustentam o que estamos chamando da “invisibilidade” dos grupos indígenas do Nordeste.
Em 1918, o SPI perderia sua parte “LTN”, mas manteria a intenção programática
de transformar o índio em pequeno produtor rural capaz de se auto-sustentar e se integrar
ao mercado nacional de mão-de-obra. Essa transformação era pensada em termos de fases
que levavam do estado fetichista dos primitivos ao estado de civilização do proletário
rural. Nesse sentido, a estratégia e a ação do órgão estão marcadas por uma visão do índio
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 14
baseada na idéia de “transitoriedade” (LEITE e LIMA,1986), segundo a qual o “índio” é
um estado que precisa ser superado, mas de uma forma controlada pelo Estado, sem a qual
essa transição leva infalivelmente à degeneração. Esse controle será produzido através da
figura jurídica da “tutela”, que é introduzida no código civil em 1918 e estabelece para o
índio uma capacidade civil relativa, condicionada pelos seus progressivos “graus de
civilização”. A finalidade da tutela é transformar, através da orientação e da autoridade, as
condutas desviantes de indivíduos ou grupos com relação a um código dominante,
partilhado e conhecido pelos membros de uma determinada sociedade (OLIVEIRA
o
F ,1988). Tal aparato jurídico e administrativo era justificado pelos objetivos de atrair e
pacificar os grupos indígenas que ainda resistiam ao avanço da fronteira agrícola, em pleno
século XX. Era preciso atrair e pacificar e não exterminar aquelas populações, obtendo-se
dessa forma a mão-de-obra necessária e já “aclimatada” para os ideais de desbravamento e
preparação das terras ainda não colonizadas. Nesse quadro não existia lugar para a atuação
do órgão indigenista no Nordeste, região de colonização das mais antigas e já totalmente
integrada.
Durante a década de 1930 essa distância entre a região Nordeste e as estratégias do
órgão parece se acentuar, já que em 1934, depois de ter passado pelo Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio (1930-1934), ele é absorvido pelo Ministério da Guerra
como parte da Inspetoria Especial de Fronteiras e, em 1936 é aprovado o seu regulamento,
no qual se enfatiza a “nacionalização dos silvícolas” e a sua incorporação como “guarda de
fronteiras”.
2
Como já foi apontado, o olhar “científico” dirigido sobre os índios do Nordeste, até
as primeiras décadas do séc. XX, acompanhava o diagnóstico da extinção desses grupos,
naturalizando uma realidade produzida por decisões estatais, de fundo jurídico, como
veremos mais adiante. E os primeiros acadêmicos ou curiosos que começam a descobrir
nos “remanescentes” daqueles grupos indígenas “extintos” algum interesse acadêmico, o
fazem orientados por uma visão etapista e evolutiva, muito semelhante à descrita acima,
que operava como base ideológica do SPI. Assim, ao final da década de 30 e durante a
década de 40, os homens de ciência que começam a se interessar em produzir descrições a
partir da observação local e direta sobre aqueles “remanescentes”, e não mais apenas a
partir de documentação histórica, procuram neles principalmente curiosidades folclóricas
em rápido desaparecimento, que poderiam ajudar a entender a composição mais ampla do
folclore nordestino e conseqüentemente, parte da cultura nacional. É sob essa inspiração,
além das preocupações de mapeamento lingüístico, que Carlos Estevão de Oliveira, Max
Boudin e Mário Melo visitam e escrevem na década de 1930, pequenos textos sobre os
Pankararu, os Fulni-ô e os Xucurú, publicando artigos circunstanciais com mitos, cantigas,
elementos de parentesco e considerações sobre seu artesanato e algumas festas. Nestes
casos sempre se fez presente a preocupação em distinguir, em meio aos hábitos já
miscigenados aos dos regionais, o que aqueles remanescentes mantinham da cultura
tradicional.
Apesar da década de 1940 já ter assistido ao primeiro surto de emergências étnicas,
de que falaremos mais adiante, ao longo da década de 50 a situação não muda muito.
Continuam surgindo textos principalmente sobre língua e vocabulário, e compilações de
dados dos sécs. XVI e XVII. As descrições de Curt Nimuendajú sobre os Timbira de 1929
são reaproveitadas várias vezes em reanálises e surge o nome de Estevão Pinto que, junto a
outros temas do folclore regional, debruça-se sobre o material histórico, escreve pequenos
trabalhos sobre os Fulni-ô, os Tupiniquim e os Pankararu, e os reúne em dois volumes
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 15
dedicados aos “Índios do Nordeste”, sob uma preocupação sempre culturalista. Mais
adiante, nas décadas de 60 e 70, para além das tradicionais compilações de documentos e
vocabulários, a perspectiva arqueológica tem um forte incremento através da criação do
Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, coordenado pelo Museu Paraense Emílio
Goelde, fonte da grande maioria dos trabalhos sobre o tema indígena dirigido à região
nestas décadas. Reforçava-se o olhar fragmentário e passadista sobre a face indígena da
região. (BALDUS, 1968 e 1984). Exceção a esta perspectiva é o importante trabalho de
Hohental (1960) que produz um levantamento de fontes históricas sobre os aldeamentos
do Vale do São Francisco e o completa com viagens aos postos indígenas que já haviam
sido criados pelo SPI na região, recolhendo informações que complementassem os dados
documentais e objetos artesanais, numa combinação entre perspectivas histórica e
sociológica que resultou num catálogo de denominações e localidades largamente usado
ainda hoje.
A perspectiva da perda e da extinção no entanto mantém um longo fôlego, vindo a
informar ainda trabalhos da década de 1970 que, em outros pontos metodológicos e
teóricos, rompiam com aqueles primeiros. Os trabalhos de Amorim (1970), Silva (s/d),
Soares (1977), Bandeira (1972) e Carvalho (1977) caminham numa direção sociologizante
(com maior ou menor sofisticação), em lugar dos tradicionais recortes culturalistas ou
filológicos, abordando os grupos em pauta (Kariri, Pankararé, Pankararu e Potiguara)
como realidades contemporâneas. Classificam-nos, entretanto, como “subsegmentos
rurais” e, mantendo o diagnóstico dos trabalhos anteriores, tomam sempre o ponto de vista
do seu acelerado e irreversível processo de descaracterização étnica, pelas vias da
“proletarização”, “integração” ou “aculturação”. Enquanto os autores anteriores,
informados por uma preocupação mais folclórica, interessavam-se em registrar o que ainda
existia de tradição, apoiados numa metodologia fundada no recolhimento de “traços
culturais”, destacados do contexto em que eram produzidos e postos em circulação, esses
últimos autores voltam seus esforços principalmente para a preocupação em descrever e
avaliar o grau, o ritmo e as formas do processo de descaracterização dos grupos indígenas,
dos quais seria possível reconhecer apenas uma “última dimensão indígena” (SILVA,s/d).
O trabalho de Amorim se destaca entre os citados acima por sua preocupação em
articular um quadro teórico explicativo da situação indígena do Nordeste, adequando uma
proposta interpretativa geral da antropologia brasileira daquele momento sobre o processo
de assimilação, para uma situação regional. Para o que nos interessa apontar aqui, ele traz
a versão mais sofisticada de um esquema de análise partilhado por todos os outros,
podendo-se talvez incluir aí as próprias formulações mais genéricas do indigenismo
oficial. Seu texto parte da teoria da “fricção interétnica” elaborada por Roberto Cardoso de
Oliveira, da qual retira a noção de “potencial de integração”, combinando-a com a noção
de part-society. Sob esse ponto de vista, o Nordeste brasileiro é escolhido por representar
um “caso limite no processo de integração, um dos extremos do contínuo que tem como
pólo
oposto
as
populações
tribais
recém
contactadas
pelas
frentes
pioneiras”(AMORIM,1970:11). Seu estudo leva à conclusão de que a condição de partsociety assumida pelo indígena nordestino “reflete um estágio no longo processo de
integração à sociedade nacional, que no curso de uma situação permanente de fricção
interétnica assume ao longo da História formas e aspectos diversos.”(idem:91). E ainda,
“não é difícil a afirmação de que, a persistir o processo [econômico de integração ao
mercado] pescadores e agricultores Potiguara, aqueles mais rapidamente que estes,
caminham no sentido de se reunirem a tantos outros indígenas brasileiros que hoje formam
o último extrato da grande reserva de mão de obra nacional.”(idem:94).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 16
Essas eram as bases que sustentaram por tanto tempo a invisibilidade dos grupos
indígenas do Nordeste. O esforço de análise e clarificação da realidade, forjado dentro da
academia, produziu sua cegueira com relação a uma realidade emergente. O esforço de
planejamento da ação estatal foi a fonte da incapacidade do Estado em prever as
reviravoltas que suas próprias teorias e estratégias de intervenção provocariam sobre as
populações tuteladas. A seguir propomos uma interpretação do processo que levou aqueles
grupos ao estado de invisibilidade e depois, que os fez (ou, pelo qual se fizeram) visíveis
novamente.
Estratégias da conquista
1
O avanço da colonização pelo território nunca se deu na forma de uma fronteira, ao
menos como normalmente ela é imaginada - arco que avança de forma progressiva e
definitiva sobre espaços abertos. Pelo contrário, aproximando-se da descrição de Morse
(apud:VELHO,1979) sobre o avanço bandeirante, a conquista do Nordeste também se
caracterizou como um movimento irregular, conjunto sucessivo e desigual de experiências
e negociações reversíveis de uma frente de expansão que nunca foi única, mas sim
múltipla e complexa. Não é possível falar da colonização como de um fio de civilização
que se estende sobre o espaço selvagem. Não é possível traçar sobre o mapa as diferentes
linhas de separação no tempo, entre branco e índio, civilização e primitivismo, áreas
ocupadas e não ocupadas, comunidades integradas e autônomas. O que chamamos de
fronteira, dando-lhe um sentido abstrato e teórico, normalmente produzido a partir do
Estado (e aqueles que limitam seu trabalho à análise das suas ideologias e práticas também
se fazem prisioneiros da sua perspectiva), na verdade tomou a forma de um arquipélago,
criado por diferentes formas de territorialização: o esforço e a violência dos
empreendimentos estatais e particulares, em suas incursões sertão adentro, conseguiam
plantar manchas de civilização, ilhas pastoris, comerciais ou de subsistência, que existiam
por meses, anos, para depois submergirem no nada ou na selvageria dos tapuia ou dos
quilombolas.
O desenho da distribuição dos aldeamentos indígenas no século XIX e no séc. XX
(eles não necessariamente coincidem, como veremos) é, em grande medida, fruto desse
movimento irregular que se desenvolveu sobretudo ao longo do São Francisco e dos seus
principais afluentes, como o Panema, o Moxotó e o Pajeú. Foi através do São Francisco
que o movimento colonial, inicialmente esparramado pela zona da mata, se afunilou no
agreste e penetrou fundo pelo sertão, sendo útil, portanto, uma rápida revisão das rotas que
abriram o interior nordestino até o século XIX, para então nos determos um pouco mais
demoradamente num último momento daqueles aldeamentos indígenas.
2
O São Francisco começa a ser “subido” depois de vencida a primeira resistência
indígena na sua embocadura, em 1572. Neste período as expedições partiam
principalmente de Pernambuco (década de setenta), Sergipe (década de noventa) e Bahia
(ao longo de todo esse período). Ensaios de penetração que em 1630 foram interrompidos
pela presença holandesa em todo o lado esquerdo do São Francisco, da sua foz até Paulo
Afonso. É só com a restauração pernambucana em 1654 que o avanço colonial português
pelo sertão é encarado de uma forma progressivamente sistemática. Um passo fundamental
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 17
para isso foi o apelo da administração portuguesa, em 1667, para que os bandeirantes,
paulistas e baianos, iniciassem a busca de ouro e pedras preciosas São Francisco acima, o
que resultou no afluxo de um grande número de bandeiras1. Tem início, então, o avanço da
colonização do sertão interior nordestino, realizado através de três estratégias distintas e
sucessivas, ainda que por um largo período simultâneas. À estratégia da guerra justa
vieram se sobrepor sucessivamente, a estratégia da conversão e da mistura, cada uma delas
se opondo à anterior, ao mesmo tempo que revelando-se fruto dela.
A “guerra justa” tem lugar com as primeiras investidas bandeirantes pelo sertão
interior, e baseia-se no mesmo conceito jurídico-teológico medieval criado no contexto da
Guerra Santa contra os infiéis mouros, agora transplantado para a relação com os infiéis do
novo mundo2. Ainda que houvesse controvérsia sobre os requisitos necessários ao
reconhecimento de determinada ação militar como guerra justa, toda ação chamada
“defensiva” justificava o título. Nesse caso, defensivas eram consideradas também as
ações de represália e prevenção de ataques de nações indígenas hostis, levando à larga
utilização deste argumento pelas tropas bandeirantes e de moradores do sertão do São
Francisco. É sobretudo devido a ela que os documentos de época registram tantos
“ataques” indígenas.
Essas guerras se estendem por todo o séc. XVII e XVIII, em muitos casos,
encontrando forte resistência indígena. A mais prolongada de todas e que mobilizou o
maior número de indígenas - cerca de dez mil, segundo cálculo de cronistas antigos - e
tropas de moradores e bandeirantes ficou conhecida por Guerra dos Bárbaros ou
Confederação dos Cariris e durou mais de 10 anos, tendo início no Rio Grande do Norte,
em 1664 e estendendo-se pela Paraíba, Ceará e Pernambuco (ALMEIDA,1977). Em
Pernambuco esse estado de conflito se estenderia por nova série de enfrentamentos entre
os anos de 1694 e 1702, mobilizando novamente as tropas que já haviam operado na
Guerra dos Bárbaros (BARBALHO,1988:vol.6)3. As guerras, ameaças e capturas são
registradas em documentos esparsos por toda a primeira metade do XVIII, sob a sombra de
novas e eminentes guerras bárbaras. Assim, em 1700 por exemplo, com a justificativa de
se defenderem de novas investidas indígenas, os colonos das terras pernambucanas
organizavam trincheiras nos campos do Açú, para “futuras operações destinadas a, de vez,
arrasar os Jandiús”, principal grupo bárbaro do sertão naquele momento
(BARBALHO,1988:vol.6). Treze anos depois, sob o argumento de uma nova
confederação reunindo os Xucurú, Patió, Xocó, Guegues, Umans, Caratéus e Pepans,
organizavam-se novos ataques preventivos e, em 1715, o vice-rei autorizava “toda a guerra
ofensiva que puder, cativando a todos que nela aprisionar, os quais serão rematados em
praça pública para se tirarem os quintos de El-Rei... e o que restar das ditas presas se
1
Entre as quais, aquelas que viriam dar origem à mais poderosa empresa colonial do sertão do São
Francisco, a Casa da Torre. Numa das investidas da Casa da Torre durante as últimas décadas do séc. XVII,
na busca de salitre, pelo interior dos sertões de Rodelas, Paraiba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piaui e até
mesmo do Maranhão, um dos seus mestres auxiliares comandava um exército de 900 homens brancos, 200
índios mansos, 100 mamelucos, 150 escravos e alguns missionários (HOORNAERT,1992).
2
Na verdade, a análise da legislação colonial reconhece a captura de escravos indígenas através de duas
formas, a “guerra justa” e o “resgate”, enquanto a história social acrescenta a elas a forma dos “apresamentos
clandestinos” (FARAGE,1991). No Nordeste os resgates existiram principalmente na fase litorânea, servindo
à interação entre colonos e grupos Tupi, enquanto os apresamentos clandestinos foram tão generalizados que
tornaram-se virtualmente incomensuráveis para nós hoje. De qualquer modo, o formato de “guerra justa”
assume aqui um significado mais genérico que o expresso na legislação colonial, ao o concebermos mais
como “estratégia” que como figura jurídica.
3
Nelson Barbalho publicou entre 1982 e 1988 uma coletânea de 16 volumes, com documentos produzidos
entre 1600 e 1828, intitulada Cronologia Pernambucana: subsídios para a história do Agreste e do Sertão, que
será largamente utilizada daqui em diante.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 18
repartirá igualmente pelas pessoas que forem à dita guerra...” (BARBALHO,1988:vol.7).
Como resultado, continuavam sendo comercializados escravos Tapuias capturados em
guerras justas4. Impedimento real ou puro pretexto, a resistência indígena mobilizava
ações enfáticas por parte do governo imperial que, em 1700, mandava fazer
... guerra geral a todos os índios de corso, entrando-se por todas as
partes assim pelos sertões desta capitania da Bahia como pela de
Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte, para [...] fazer mais
formidável o nosso poder, e mais seguro o estrago dos contrários, e me
constar que de presente têm os ditos bárbaros destruído muitas
povoações e fazendas de gados com a morte das pessoas que nelas
assistiam, por cuja causa se despovoarão precisamente todas as mais
que os bárbaros ainda não tem chegado, o que será a ruina total do
Brasil... (BARBALHO,1988:vol.6)
Por força da guerra, iam sendo estabelecidos povoados pelo interior das extensas
sesmarias, ou mais além, que serviam como cabeças de ponte para a requisição de novas.
A maioria desses povoados eram constituídos pelas próprias populações apresadas ou
“amansadas”, por homens livres pobres e até mesmo por mocambos, que então ocupavam
e defendiam aquelas terras e suas fazendas contra o avanço de bandos indígenas
“selvagens”. A estratégia da guerra era assim complementada com a instalação dessas
povoações de índios mansos - aos quais se podia confiar o gado - ou com a permissão para
a instalação de pequenos rendeiros e agregados, que serviam como verdadeiras praças
fortes, garantindo a ocupação das grandes sesmarias ou até mesmo as ampliando, sem que
para isso os sesmeiros necessitassem da mobilização de qualquer cabedal.
3
Parcialmente sobreposta no tempo a esta primeira estratégia, tem lugar a estratégia
de conquista de homens e terras pela conversão. Neste caso, o gentio era encarado como
mão-de-obra livre e administrado por missionários, reunidos em territórios exclusivos
(normalmente uma “légua em quadro”). Eram recorrentes os enfrentamentos entre
fazendeiros e missionários, onde o poder de mobilização de mão-de-obra e terras pelos
religiosos era questionada militar e legalmente. Os jesuítas foram provavelmente os
primeiros a estabelecer aldeamentos no rio São Francisco, na década de 1650, tentando
realizar aí o que já haviam começado a experimentar no Amazonas, nos rios maranhenses
e nos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, isto é, uma experiência de aldeamentos afastados
dos centros coloniais, na tentativa de evitar o fracasso da experiência litorânea. No São
Francisco no entanto isso se mostrou praticamente impossível5, já que o rio era justamente
o eixo da colonização sertaneja (HOORNAERT,1992). Depois deles vieram os
capuchinhos, oratorianos e franciscanos. A empresa missionária dos capuchinhos
organizava-se de forma semelhante a dos jesuítas. Ambos trabalhavam com uma estrutura
6
Em 1710 chegavam à praça do Recife, 15 deles “pertencentes ao quinto de sua majestade”
(BARBALHO,1988:vol.7). Nas décadas seguintes, mesmo depois da escravidão indígena ter sido
formalmente proibida, continuam os registros de guerras contra levantes de aldeias, muitas vezes em aliança
com negros fugidos (BARBALHO,1988:vol.8).
5
No fim do século XVII, quando os jesuitas iniciam a instalação, no sertão de Rodelas, das missões de
Sorobabé, Curumambá e Acará, a Casa da Torre ordena ao seu sargento-mor e ao capitão da aldeia da
Vargem que expúlsem de lá os jesuitas, o que acontece no mesmo ano da fundação dos aldeamentos
(BARBALHO,1988:vol. 5).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 19
de apoio localizada nas cidades do litoral, no caso jesuíta os “colégios” e no caso dos
capuchinhos os “hospícios” e, a partir dessa estrutura permanente, de onde também
retiravam o principal de suas rendas, estendiam sua ação pelo sertão instalando aldeias.
Assim, os capuchinhos franceses, que já haviam se instalado em Olinda (1649) e Recife
(1656)6, em 1760 alcançavam um total de dez aldeias sustentadas pelo “hospício” da Bahia
e sete pelo de Pernambuco. O rompimento de relações diplomáticas entre Portugal e
França em 1698, no entanto, encerrou esse trabalho que é assumido anos depois pelos
capuchinhos italianos (HOORNAERT,1992). Os oratorianos fundam cinco aldeias em
Pernambuco e no Ceará, também na metade do XVII, mas passam, poucos anos depois, a
restringir sua ação aos trabalhos “deambulatórios”, transferindo alguns de seus
aldeamentos para os franciscanos. Junto com essas aldeias os franciscanos assumem
também, no final do séc. XVII, as missões abandonadas pelos jesuítas depois de sua
expulsão por Pombal (idem).
Assim, simultaneamente à última autorização oficial para que se fizessem guerras
contra os bárbaros em Pernambuco, tem lugar a primeira iniciativa imperial de incentivo
aos aldeamentos. Em 1700, o rei escreve ao governador daquele estado exigindo a
implantação de novas missões religiosas que acelerassem o povoamento dos sertões e
recomendando que os padres destinados às missões fossem acompanhados por tropas para
evitar a “insolência dos bárbaros” e as investidas de latifundiários, em especial as da Casa
da Torre, que tanto vinham obstruindo o trabalho missionário no sertão pernambucano.
Como forma de viabilizar tais missões, neste mesmo ano, surge o alvará régio que
ordenava que “a cada missão ou aldeiamento se desse uma légua de terra em quadro para
o sustento dos índios e missionários, e que cada aldeia se compusesse pelo menos de cem
casais” sendo que tais aldeias “fossem situadas à vontade dos índios e não ao arbítrio dos
sesmeiros ou donatários” (BARBALHO,1988:vol. 6). Tais aldeamentos deveriam cobrir a
função de “fazer face às constantes invasões de Acaroazes e Mocoazes sobre os
estabelecimentos pecuários e granjarias da população civilizada” (idem) com alguma
vantagem sobre as tropas bandeirantes e as guerras justas, que dispunham nas mãos de
particulares um poder cada vez mais desconfortável para o Estado. Esse é um momento
decisivo na ocupação do sertão, quando é possível acompanhar o esforço imperial de
ampliar sua rede de ação pelo interior, em substituição à livre ação dos proprietários
privados. Tal avanço passava a depender de um duplo esforço, o de dominar índios e
fazendeiros ferozes, cada um tentando estabelecer territórios próprios, indiferentes aos
objetivos estatais e civilizadores.
Além do incentivo à criação de missões, o governo imperial em 1700, alarmado
com os “arbítrios da Casa da Torre”, manda que sejam criados juízes ordinários de cinco
em cinco léguas pelo sertão de Rodelas, para dar o necessário apoio àquela iniciativa. Mais
tarde, no entanto, comunicado das ameaças que esses começavam a receber, passou a
enviar também àquelas localidades “ministros do Rei” acompanhados de soldados para
que ficassem “entendendo seus habitantes régulos que eram vassalos de S. Mj. e que não
era poderosa a distância a fazer que não resplandeça neles a sua suma justiça...” e para
evitar que tais ousadias provocassem uma desordem tal que se passasse a ter “...nesse caso
6
A atuação dos capuchinhos, como a dos jesuitas, era relativamente independente dos métodos e dos
objetivos estritamente coloniais, por razão de sua vinculação não ao padroado local, mas à Propaganda Fide,
criada para se contrapor às estreitas relações entre ação religiosa e objetivos estatais na América, Ásia e
África (HOORNAERT,1992).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 20
por muito maiores inimigos os nossos portugueses que os próprios índios...”7
(BARBALHO,1988:vol.6).
Nesse quadro a Igreja e suas missões surgiam como um recurso mais adequado e
cada vez mais necessário, como sugere a lei também outorgada nesses primeiros anos do
século XVIII, que proibia a implantação de fazendas de gado a menos de 10 léguas da
costa brasileira, por exigência dos senhores de engenho. É desta época que temos as
primeiras notícias da região sertaneja que nos interessa particularmente, conhecida então
como distrito da cachoeira de Paulo Afonso, quando é implantada aí a primeira fazenda de
gado, acompanhada de sítios de cultura, casas de agregado, currais etc. Acompanhando
esse grande incremento do avanço sobre o sertão, os capuchinhos são reintroduzidos no
trabalho missionário, mas agora através de um grupo italiano que, chegado em 1705, herda
os “hospícios” e aldeias de seus antecessores e criam duas prefeituras apostólicas, uma na
Bahia (1712) e outra, por desmembramento dessa primeira, em Pernambuco (1723). Como
resultado, em 1745, podem ser contadas 12 missões nas ilhas e às margens do São
Francisco.
Quadro 1
Relação dos aldeamentos de Missões religiosas de Pernambuco em 1745
Aldeia/missão
N. S. de Belém
Ilha
Acará
Beato Serafim
da Várzea
S. Félix
dos Cavalos
S. Antonio
Irapuâ
N. S. da Piedade
Inhamum
N. S.dos remédios Pontal
S. Maria
S. Maria
N. S. do Pilar
Caripós
N. S. do Ó
Sorobabé
N.
S.
da Assunção
Conceição
Pambu
N.
S
da Aricobé
Conceição
(Fonte: BARBALHO,1988:vol.7)
ou
Missionários
capuchinhos
italianos
capuchinhos
italianos
capuchinhos
italianos
capuchinhos
italianos
franciscanos
?
?
?
?
?
Grupos reunidos
Poru e Brancararu
?
Caboclos da língua
geral
Poru e Brancararu
Cariri
Cariri
Cariri
Tamaqueu
?
Caripó
Poru e Brancararu
Cariris
É preciso fazer referência às dificuldades que essas missões encontravam em
imobilizar tais populações em territórios por eles administrados, o que provoca inúmeras
queixas de administradores com relação às “fugas” de índios das suas respectivas missões.
É comum que tais fugas sejam imediatamente ligadas a uma irredutível resistência
indígena à dominação, entretanto, como foi apontado para outro contexto
(MONTEIRO,1994), elas apresentavam uma grande ambiguidade, que pode não encaixar7
Acompanhavam ainda outras reformas administrativas no sentido de estreitar o controle administrativo
sobre aquelas terras, como a criação dos “juízes de fora”, ouvidores de comarcas e a subdivisão da Província
de Pernambuco em duas comarcas, uma de mesmo nome e outra denominada Alagoas (idem).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 21
se exatamente neste modelo de resistência que normalmente lhe é imputado. John
Monteiro chamou a atenção para o fato de tais fugas muitas vezes servirem como
mecanismo e trunfo de negociação entre índios e administradores, já que através delas os
índios podiam se engajar em outros aldeamentos cuja administração se mostrasse mais
branda ou “legítima”, segundo um padrão estabelecido na própria relação entre dominador
e dominado. Através de alguns depoimentos documentados em inventários ou processos
judiciais, Monteiro identifica como algumas das motivações destas fugas a recusa em
servir aos herdeiros do antigo senhor, a busca de parceiras para casamentos em outras
aldeias, a recusa em aceitar um novo dono imposto por venda, o tratamento mais brando
de um senhor com relação ao outro, numa relação de casos em que o fugido, em lugar de
sair definitivamente dos aldeamentos, procurava paradeiro em outros. Dessas observações
Monteiro destaca como tais fugas serviram para reduzir as tensões inerentes à relação
senhor/escravo e para realizar uma redistribuição de mão-de-obra, já que elas acabaram
sendo capitalizadas por alguns senhores mais fortes, que conseguiram reverter em seu
benefício uma forma potencial de resistência ao sistemas de trabalho forçado, recusandose, inclusive através da força, a restituir os “fugidos” aos seus antigos donos.
No caso dos aldeamentos das margens do São Francisco, a ambigüidade das fugas
nos interessa no que ela revela, não do sistema de aldeamentos e de sua possível crise, mas
de um determinado padrão de mobilidade daquelas populações étnicas que, se também
pode ser buscado em formas culturais anteriores aos aldeamentos, certamente encontram
razão num dos efeitos específicos da dinâmica de territorialização dos próprios
aldeamentos, quando estes, a fim de maximizar sua administração, juntavam e repartiam
grupos de diferentes origens, criando com isso laços sociais e políticos entre aquilo que os
missionários e outros administradores concebiam como unidades administrativas
estanques.
Assim, sem negar uma dimensão de resistência a estas translações, elas muitas
vezes não levavam às matas, mas a outros aldeamentos. Em 1698 por exemplo, dava-se
notícia de fugas de índios “sem razão alguma aparente para fazê-lo”, das missões da
diocese de Olinda (que alcançava todo o sertão pernambucano do São Francisco) para as
missões da Bahia, acarretando, segundo o Bispo de Olinda, “quebra de produtividade,
desordens nos trabalhos religiosos etc.” (BARBALHO,1988:vol. 6). Reclamações do
mesmo tipo perduraram ao longo da documentação até as primeiras décadas do século
XVIII, levando a sérias desavenças entre os administradores provinciais desses estados
que, depois de terem disputado as posses de diversas missões das ilhas do São Francisco,
em 1728 e 1773 (BARBALHO,1988:vol.8), viam nessas fugas uma perda substancial de
mão-de-obra e riqueza (LIMA SOBRINHO,1929). As razões que não eram aparentes aos
missionários e administradores parecem estar na composição étnica desses aldeamentos,
que reuniam uma grande variedade de grupos e que, em muitos casos, os separavam de
suas metades, alocadas em outros aldeamentos, junto a outros grupos. Isso é reforçado pela
observação de que, ao contrário dos casos relatados por Monteiro para São Paulo, nos
aldeamentos do São Francisco tais fugas não eram individuais, nem se constituíndo como
fugas em massa. Sua escala parece ter sido familiar.
Aproveitando-se dessa grande mobilidade indígena, em 1884 a junta governativa
de Pernambuco ordenava ao diretor do aldeamento de Cimbres o empréstimo de dois
casais de “índios inteligentes” e de boa conduta para a nova missão de Jacaré, no alto
sertão, “a fim de ensinar aos desta missão a cultura das terras e mais serviços em que se
deviam empregar para a sua subsistência”. O aldeamento de Jacaré localizava-se na Serra
Negra, sendo ocupado por cerca de 200 habitantes oriundos das tribos Pipipões, Omaris,
Chocós e Caracús, anteriormente fugidos de missões da beira do São Francisco. Assim,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 22
existe um aspecto de grande relevância nessas “fugas” que está no que elas revelam, já a
partir de um período tão recuado, de uma dinâmica que nos será fundamental para a
construção do próximo capítulo. A ambigüidade das fugas neste contexto está no fato
delas traçarem um trajeto que não parte em linha reta dos aldeamentos para o espaço
selvagem, mas que desenha um ou vários circuitos de troca de homens e informação
(fatual e cultural) entre os aldeamentos.
4
No último quartel do séc. XVIII a política e a administração estatais passam por
transformações relacionadas ao projeto iluminista imposto por Pombal que produzem eco
na política de conquista colonial. Em função das disputas entre jesuítas e fazendeiros de
um lado (principalmente no Maranhão e Grão Pará), e das tentativas de reordenar as
formas econômicas na colônia de outro, é extinta a escravidão indígena e, em 1775 é
retirado o poder temporal dos missionários sobre os aldeamentos. Complementando essas
medidas e dando sentido a elas, em 1758 ordena-se a transformação dos aldeamentos em
vilas e dos missionários em párocos e, em 1775, passa-se a incentivar os casamentos
mistos, entre portugueses e índios (FARAGE, 1988, CUNHA,1992 e HOORNAERT,
1992). Tais emancipações administrativas preparavam a terceira estratégia de conquista,
marcada pela intenção explícita de romper com o isolamento relativo em que os
aldeamentos encerravam os indígenas. Numa tendência oposta, a administração pombalina
passa a incentivar e orientar a ocupação não indígena dos aldeamentos, na tentativa de
assimilar física e culturalmente os índios, criando uma população mais homogênea.
Se a estratégia da guerra concentrava energias em abrir terras e criar mão-de-obra
compulsória, na forma do escravo indígena, com altos custos militares e uma grande
dispersão da população que conseguia resistir, a estratégia da conversão também vinha
liberar terras, mas através da reunião da população indígena fragmentada pelas investidas
militares, colocando-a fora do alcance imediato dos proprietários de terras e do governo. A
estratégia da mistura surge nesse contexto como um avanço e uma economia, através do
apaziguamento de interesses conflitantes dentro de um múltiplo processo de colonização.
Transformar em “nacionais” as populações indígenas significava finalmente acabar com
todas as figuras de reserva, seja de terra ou de mão-de-obra, que então passam a estar
livres para sua mercantilização. Assim, no lugar das várias aldeias situadas nas ilhas do
São Francisco, é criada, em 1761, uma única vila, a de N. S. de Assunção. O mesmo
acontece com a missão de Santa Maria e com as de Cimbres e de Monte Alegre em 1762, e
com a de Palmeira dos Índios e outras, localizadas na Paraíba, no ano de 1763
(BARBALHO,1988:vol.8). Uma estratégia que mais tarde seria formalizada como
proposta de governo para a província de Pernambuco, como veremos a seguir, e que
durante a república continuaria sendo reeditada, mas então sob uma tradução cientificista e
humanitarista, na forma da doutrina indigenista de transformação daquelas populações em
trabalhadores nacionais.
Mesmo em 1808, quando se volta atrás em alguns avanços do diretório pombalino
e se re-instituem as guerras justas com o direito à escravização indígena, o ideário estatal
já está tão comprometido com esta nova perspectiva que essa segunda escravidão é
apresentada como temporária e revestida de uma justificativa pedagógica que presta contas
ao ideário de mutação daquelas populações: aqueles que ficassem responsáveis pelos
indígenas apresados deveriam ministrar-lhes o ensino agrícola, ofícios mecânicos e ensino
religioso. Ganhava a forma de lei uma mudança de perspectiva fundamental: o índio não
era mais pura alteridade que tem a qualidade da autonomia mas que por isso deve ser
objeto de destruição, ele agora é parte da população de súditos que forma o todo orgânico
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 23
que dá conteúdo à idéia de civilização e por isso não é mais objeto de destruição, mas
também não é mais autônomo e sim massa moldável, objeto de intervenção
transformadora.
Intensifica-se e explicita-se com isso, principalmente no Nordeste, a política de
reunião de diferentes grupos indígenas nos mesmos aldeamentos como forma de
homogenizá-los racial e socialmente, reduzindo o número de aldeamentos e tornando-os
mais densamente povoados, acelerando também a liberação de novas terras
(RIBEIRO,1970). Com a lei de terras de 1850, inaugura-se uma política fundiária ainda
mais agressiva através de uma decisão agregada àquela lei, que mandava incorporar aos
“próprios nacionais” as terras das aldeias de índios que “vivem dispersos e confundidos na
mesma população civilizada” (apud CUNHA,1992). Assim, depois de quebrada sua
resistência militar e introduzidos na lógica colonial pelas missões, essa nova orientação
leva-os à mestiçagem, estratégia agora mais eficaz de encaminhá-los ao desaparecimento.
Por isso, nesse último momento, os argumentos para a definição de uma política dirigida a
esses grupos já não eram apenas de caráter fundiário ou quantitativo, em que se acusava a
necessidade de novas terras ou a presença de poucos índios para a redução ou agrupamento
de aldeias, mas qualitativo, de caráter comportamental, onde se pretendia avaliar se
aquelas populações continuavam aparentando ou não serem indígenas, depois de toda uma
longa política de conversão e mistura; se elas continuavam ou não realizando suas
tradições, depois de serem tantas vezes reprimidas pelos poderes locais.
Em Pernambuco, a própria comissão criada para percorrer o estado, discriminando
quais seriam as terras públicas, é incumbida também de contar e medir as terras dos
aldeamentos indígenas, preparando-os para o ato de extinção.
5
É numa situação que revela a passagem as estratégias de conversão e de mistura,
que os primeiros registros do etnônimo Pankararu foram localizados, num levantamento
realizado por Hohental (1960). Num relatório do ano de 1702, referente à aldeia de N. S.
do Ó, organizada por missionários jesuítas na Ilha de Sorobabé, rio São Francisco, este
pesquisador encontra a primeira referência ao etnônimo: os “Pancararus” são citados junto
a outros três grupos, os Kararúzes (ou Cararús), os Tacaruba e os Porús. O aldeamento é
bem anterior a esta data e Hohental permite sugerir que os Pancararú e os Porú teriam se
agregado a ele entre 1696 (ano de um outro relatório em que não são citados) e 1702. Mais
tarde, os Pancararú e os Porú, que aparecem novamente associados, são localizados em
outros dois aldeamentos: no do Beato Serafim, em 1846, e no de N. S. de Belém, em 1845,
organizados por capuchinhos italianos nas ilhas da Vargem e do Acará, também no São
Francisco.
Já a localização dos atuais Pankararu, num dos contrafortes da Serra Grande ou
Serra da Borborema, próxima às margens do São Francisco, entre os municípios de
Tacaratu e Petrolândia, está associada ao registro de um quarto aldeamento, designado por
“Brejo dos Padres”, cuja origem e administração não é plenamente esclarecida pela
documentação e do qual sabe-se apenas que deve ter sido criado no início do século XIX
por oratorianos ou capuchinhos, possivelmente em 1802 (HOHENTAL,1960), a partir do
ajuntamento dos Pancararú e Porú com outros grupos identificados como Uman, Vouve e
Jeritacó (BARBALHO,1988:vol.8).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 24
Para que ganhe sua real dimensão de território de reunião, de mistura étnica, onde
são reunidos os mais diferentes grupos a fim de tornar mais fácil a produção do “caboclo”,
seria necessário acrescentar que a esta multiplicidade de denominações pode ainda ter se
somado, em função das reiteradas tentativas estatais e missionárias, grupos “brabios” da
Serra Negra, e a essas denominações tenham vindo se somar famílias de grupos hoje
conhecidos por Kambiwá e Kapinawá e de outros que já não é possível recuperar
(DOC.:1) 8.
Além disso, segundo sua tradição oral, os Pankararu seriam “parentes” dos
Pankararé, hoje localizados no Raso da Catarina, estado da Bahia, dos quais teriam se
separado por fissão de um grupo anterior, a partir do desmembramento de um primeiro
aldeamento localizado no então designado Curral dos Bois (BA) (HOHENTAL,1960).
O aldeamento do Brejo dos Padres constituiu-se, assim, como fruto da estratégia de
desterritorialização e reterritorialização que levou ora à repartição, ora à concentração de
diferentes grupos étnicos num mesmo espaço restrito. Estes estavam geralmente bastante
próximos a uma promissora povoação, no caso Tacaratu, à qual poderia servir como
reserva de mão-de-obra. Assim, o aldeamento do Brejo dos Padres poderia ser
progressivamente “misturado”, para transformar-se, num futuro próximo, ele também,
numa próspera povoação, como qualquer outra.
A mecânica do fim
1
A lei de terras de 1850 dá início a uma série de alterações na organização do campo
em Pernambuco. Os trabalhos de discriminação das terras públicas são acompanhados das
políticas simultâneas de libertação dos escravos através do fundo de emancipação do
8
Para maior comodidade do leitor, limpeza do texto e facilidade de consúlta, optamos em numerar
sequencialmente os documentos que utilizamos ao longo do texto e relacioná-los numa única lista de
documentos citados ao final do trabalho.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 25
Império, da tentativa de implantação da imigração norte-americana e das remodelações de
um determinado padrão de controle da mão-de-obra rural pobre, realizado na forma de
diferentes tipos de “colônias” que então são criadas, extintas, transformadas, agrupadas,
numa intensa busca da medida exata entre a tutela daquela população, que a ordem
demandava, e a liberação de homens e terras, que o progresso pedia. Por isso, a extinção
dos aldeamentos indígenas no Nordeste, e especificamente em Pernambuco, não pode ser
pensada apenas como desenvolvimento de uma série de ações que poderíamos ordenar
cronologicamente, sob a idéia de uma política indigenista com lógica própria, mas antes,
ela deve ser compreendida dentro deste quadro de alterações que compõem a reordenação
dos padrões de intervenção e controle sobre a população rural pobre nordestina num
momento de transição das relações de trabalho para o capitalismo
Foi no bojo desse processo e no contexto de ação da Comissão de Demarcação das
Terras Públicas da Capitania de Pernambuco, em 1857, que se realizou o único
levantamento sistemático sobre a situação das aldeias indígenas existentes no Pernambuco
do século XIX, ao qual temos acesso através de um relatório da Diretoria de Índios de
Lages (DOC.:1). Apesar do seu caráter extremamente sucinto, esse levantamento nos dá
uma espécie de instantâneo insuspeito dos últimos momentos de existência daqueles oito
aldeamentos. Suas informações substantivas podem ser resumidas no quadro da próxima
página.
Com exceção do aldeamento de Assunção, o relatório cita atos de expropriação
territorial em todos os outros, realizados por meios mais diretos e violentos ou através de
mecanismos legalmente regulamentados. A descrição fornecida pode ser reordenada de
forma a nos ajudar numa aproximação dos mecanismos acionados. No caso do
Aldeamento de Escada, por exemplo, existiam três tipos de ocupações legais, conflitantes
com a posse indígena. A primeira era urbana: no centro da aldeia estava localizada a Vila
de Escada, com 238 casas, em sua maioria de não índios, pagando um real de foro por
palmo ocupado. O segundo tipo correspondia a dois grandes arrendamentos de mil braças
em quadro cada. Nenhum dos dois arrendatários no entanto pagava o foro devido à
Diretoria Geral de Índios e, num dos casos, nem o limite das mil braças era respeitado,
tendo seu arrendatário avançado sobre novas terras para a instalação de engenhos de
açúcar. O terceiro tipo de destinação era a dos pequenos arrendamentos, renováveis
trianualmente, cuja quantidade não é mencionada. Como a documentação deixa perceber, a
situação de arrendamento permite ao arrendatário ultrapassar progressivamente os limites
de seus lotes e avançar sobre o restante das terras, geralmente através da derrubada das
matas que demarcam os limites entre suas áreas e a dos aldeados.
No caso de Barreiros a “Aldêia foi situada sem medição” no centro das terras
concedidas (não fica claro se antes ou depois) a João Paes Velho, que então a faz remover
para outro lugar e com sua extensão reduzida a apenas uma “légua em quadro”, em lugar
das quatro a que teria direito. Além disso, as bordas do aldeamento passam a ser
arrendadas para a edificação de engenhos de cana de açúcar, sendo que apenas parte desses
arrendatários pagavam os foros devidos. Com a tentativa da Diretoria corrigir a situação,
os rendeiros inadimplentes, revoltados com as cobranças, passaram a arrancar os marcos
dos limites e a invadir o restante das terras do aldeamento, reduzindo drasticamente aquela
última légua em quadra que restara à população aldeada. Outro exemplo da prática de
arrendamentos das terras do aldeamento para a edificação de engenhos, mas num momento
ainda não conflitivo, pode ser encontrado no aldeamento do Brejo dos Padres, que assistia
ao surgimento de diversas plantações de cana e à construção de várias moendas, parte
pertencente aos índios e parte pertencente “a divêrsas pessoas do povo que não tem pago
foro a esta Aldêia” (idem).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 26
Quadro 2
Aldeamentos de Pernambuco em 1857
Nome
Comarca
Localização
Distância
de Recife
10 léguas
População indígena
Dimensões
1 - Aldeia
da Escada
Vitória
margem oriental
do Ipojuca
212 em 68 famílias
margem sul do
rio Uma
23 léguas
460 em 191 famílias
Brejo da
Madre de
Deus
Garanhuns
Serra do Orubá,
até as margens
do Ipojuca
margem norte
do rio Panema
64 léguas
789 em 238 famílias
90 léguas
382 em 96 famílias
5 - Aldeia
da Baixa
Verde
6 - Aldeia
do Brejo
dos Padres
7 - Aldeia
da Assunção
Flores
?
110 léguas
foram
4 “léguas em
quadro”, invadidas
em 2 léguas
4 “léguas em
quadro”, quase
totalmente invadida
sem medição oficial,
com cerca de 3 x 2
léguas
os marcos foram
arrancados por
proprietários
vizinhos
dispersados por
fazendeiros vizinhos
2 - Aldeia
de Barreiros
Rio
Formoso
3 - Aldeia
de Cimbres
Tacartu
?
120 léguas
290 em 98 famílias
2 “léguas em
quadro”
Boa Vista
Ilha do rio São
Francisco
128 léguas
177 em 64 famílias
8 - Aldeia
de Santa
Maria
Boa Vista
3 ilhas contíguas
do rio São
Francisco
132 léguas
124 em 29 famílias,
reagrupadas depois
de dispersadas por
fazendeiros vizinhos
5 léguas na maior
largura da ilha, alem
de outras ilhas para
plantações
-
4 - Aldeia
de Águas
Bellas
(Fonte: DOC.:1)
Nos casos dos aldeamentos de Címbres e de Assunção, as suas terras estavam
sendo “esbulhadas” pelas Câmaras Municipais, sendo que o esbulho do aldeamento de
Assunção teria se completado pela ação de um juiz que, “a pretexto de pertencer o terreno
da Aldêia ao Patrimônio da Matriz, fez por em praça e foi arrematada a Ilha ... a hum
cunhado deste, e igualmente foi arrematado tudo o que pertencia a Aldêia por
insignificante preço” (idem). O mesmo mecanismo é usado também em Águas Belas com
resultados diferentes, já que depois da destruição dos marcos fronteiriços os próprios
índios passam a pagar foros ao pároco local, sob a alegação de que eles teriam doado as
terras a Nossa Senhora e, assim sendo, elas teriam passado a ser da Igreja e estar sob a
administração do seu representante, o pároco.
Na Baixa Verde e em Santa Maria a expropriação se realiza por puro ato de
violência. No primeiro caso, foram assassinados o Diretor de Índios e 60 aldeados, o
restante do aldeamento foi dispersado e “livres pessoas do povo”, “Próprios Nacionais”,
passaram a ocupar as suas terras. Já no segundo, a tomada das ilhas pelos fazendeiros foi
acompanhada da perseguição à sua população que então “se tem incorporado as ordas
selvagens que habitão a Serra Negra” (idem).
São assim mecanismos de expropriação: A) as terras arrendadas no interior dos
aldeamentos cujos foros deixam de ser pagos ao mesmo tempo em que suas extensões se
expandem; B) a reivindicação, por párocos, das terras doadas à Santa como pertencentes à
Igreja e por isso devendo estar sob sua administração; C) as transferências para outros
locais com suas áreas reduzidas; ou simplesmente D) o massacre e a expulsão. Este é o
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 27
leque das ações do progressivo desaparecimento físico dos aldeamentos que momentos
antes serviam para reunir grupos dispersos. Como resposta, restavam a esses grupos
poucas opções: ou o acordo com relação ao pagamento pelas terras que usavam, ou a fuga
para os agrupamentos de índios que ainda, em fins do séc. XIX e em pleno Nordeste,
mantinham-se arredios, refugiando-se neste último símbolo de resistência, a Serra Negra.
De outro lado, esse relatório deixa entrever que o tipo de atuação concreta restava à
Diretoria de Índios: A) um precário serviço de “aviventamento” dos marcos das aldeias,
tornando apenas mais visível o que era na verdade uma fronteira bastante frágil, B) a
reivindicação na justiça dos terrenos subtraídos ilegalmente, caso em que “...para
reivindicar o terreno [era] precizo autorização para a despeza que deve fazer-se em
diversos pleitos”, autorizações essas que, como diz o autor, dificilmente eram atendidas; e
C) uma tênue tentativa de mediação legal dos interesses conflitantes, para a qual faltava
em muitos casos interesse, em outros autonomia: “... e não está a Diretoria Geral
autorizada para receber esses foros do acordo para demarcar o terreno por que nenhumas
ordens do Governo tem recebido a tal respeito” (idem).
Sua atuação limitava-se ao exercício de uma autoridade muito frágil que só obtinha
sucesso quando era possível reproduzir entre a Diretoria e os invasores ou arrendatários
inadimplentes a mesma relação de poder da qual se pretendia proteger os aldeamentos
indígenas. No caso de Águas Belas por exemplo, depois de informar que quase todos os
marcos já haviam sido destruídos pelos proprietários vizinhos, o autor do relatório diz que
o “Diretor Actual” pretendia remediar o problema investindo sobre aqueles “usurpadores
mais recentes”, pela razão destes não serem “potentados”, ainda que alguns já tivessem se
adiantado em oferecer o pagamento de rendas à aldeia.
Ao final da sumária descrição, o autor faz sugestões de intervenção que, acreditava,
poderiam solucionar tanto as queixas dos fazendeiros que tinham seu gado furtado por
“selvagens”, quanto as queixas dos índios “esbulhados”, com as quais “a Diretoria Geral é
efetivamente atormentada”. O primeiro passo seria retomar as terras usurpadas e aviventar
todos os marcos dos aldeamentos, porque isto feito os índios teriam condições de produzir
o suficiente para suprir não só as suas próprias necessidades, como para cobrir as despesas
mais urgentes das outras aldeias. Como prova de sua viabilidade o autor cita os
aldeamentos de Escada e de Águas Belas, que têm “...conseguido fazer alguns
arrendamentos que já chegam para socorrer os índios enfermos, órfãos e velhos
decrépitos” e ainda alcançar um saldo que era administrado pela “Diretoria”. Conseguidas
as terras usurpadas, o segundo passo seria distribuir as ferramentas necessárias à lavoura e
reorganizar os aldeamentos segundo um regulamento semelhante ao das Colônias
Militares, acompanhado da construção de uma Casa de Correção em cada comarca “...
onde fossem penitenciados os proletários que se recusam a trabalhar”, assim como aqueles
que fugiam das aldeias. Ao se tornarem produtivas, acrescenta o autor, as aldeias estariam
também fornecendo à agricultura mais “dois mil colonos aclimatados e robustos”, num
momento em que justamente se reclama da “falta de braços”. Se aquela imensa massa de
proletários que vagava ociosa por todo o interior da província impunemente, diz o
relatório, fosse reunida em aldeamentos/colônias militares, ela daria mais impulso à
lavoura que aqueles colonos europeus, trazidos ao país ao custo de vultosos recursos e que
sofriam de todos os problemas de adaptação ao clima.
Temos aqui reunidos então, os principais elementos que constituirão, décadas
depois, durante o regime republicano, as propostas de militares positivistas e das elites
agrárias que vieram a se alocar no Ministério da Agricultura Indústria e Comércio. Não são
as mesmas propostas porque as idéias não percorrem o tempo descarnadas e, a cada
momento, é necessário situar a produção dos quadros de referência e do jogo de relações
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 28
políticas que lhes dão um sentido preciso, como veremos a seguir. Mas, se concordamos
em descartar o fantasma das continuidades históricas e a busca das origens, em oposição a
eles não podemos criar o fantasma da descontinuidade e da originalidade, que nos leva a
desconhecer que os aparelhos estatais e os momentos históricos muitas vezes recriam o
mesmo e que, se o seu quadro ideológico dá uma coerência às suas propostas, elas na
verdade podem estar “requentando” práticas e discursos muito anteriores, gerados em
contextos ideológicos mais ou menos distintos.
2
Assim, as soluções propostas pelo relatório de 1878 têm o seu próprio contexto, o
quadro mais amplo de idéias que estavam em pleno debate, no Pernambuco do final do
séc. XIX, mas que seriam aplicadas apenas parcialmente, com base nos instrumentos legais
gerados pela lei de terras de 1850. Nesta década surge a “Sociedade Auxiliadora da
Agricultura”, que reunirá, com maior ou menor sucesso ao longo do tempo, proprietários e
comerciantes pernambucanos em morosas disputas intra-classe dominante no sentido de
uma modernização do campo. Nessas discussões surgia como fator de ameaça, mas que
podia ser convertido em fonte de recursos, a abolição da escravatura: o temor de ver seus
escravos libertos numa desordem que em seu imaginário sempre remetia ao Haití, era
contrabalançada pela proposta de mobilizarem-se por uma abolição “lenta e gradual”,
através de indenizações com o dinheiro público que, argumentavam, seria convertido na
modernização dos engenhos e na imigração estrangeira (a americana), fundamentais para
sanar a reclamada “falta de braços” e modernizar o campo (BOMPASTOR, 1988)
Na verdade, como nos lembra Bompastor, a abundância de mão-de-obra no campo
tornava os proprietários indiferentes à imigração, que rapidamente fracassou, mas a
retórica da “falta de braços”, converteu-se na conquista das indenizações e na criação de
expedientes que respondiam às
“constantes reclamações [...] por leis que reprimam a vadiagem e
instituam o trabalho compulsório e a residência fixa para a população
pobre livre, principalmente depois das grandes secas da década de 70
que deslocaram para a zona da mata grande contingente de população
do agreste e sertão, contribuindo na ameaça à ordem e às propriedades
dos 'homens de bem'. “ (Memorial de Joaquim A. dos Santos Souza,
apresentado ao Congresso Agrícola de Pernambuco. apud
BOMPASTOR, 1988)
Expedientes que visavam à repressão da “vagabundagem” e da “ociosidade”
através de um “regime policial severo, a que deverão estar sujeitos todos os indivíduos
sem arte e sem ofício” (idem). Assim, respeitando essas orientações, a década de 18709
assiste a um rápido desaparecimento dos aldeamentos, sob a alegação padronizada de que
“os poucos índios que ali habitam, acham-se já confundidos na massa geral da população”,
como foi alegado ainda em 1869. Segundo o Barão de Buíque, Diretor Geral dos Índios em
1872, os aldeamentos que ainda existiam na província “conviria reduzir a um ou dois” 'já
que “em geral não vão bem nos aldeamentos, e dão-se continuamente conflitos, por causas
das terras” (DOC.:2).
9
As informações que se seguem foram extraidas da leitura de relatórios dos presidentes de província de
Pernambuco, microfilmados na Biblioteca Nacional (código PR-SPR 115. Rolos de 1 a 7, correspondente ao
período de 1838 a 1889).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 29
De fato, nessa década os aldeamentos são extintos sumariamente, guardando o
tempo apenas necessário para a medição das suas terras e sua repartição em lotes. Em 1869
eram registrados ainda oito aldeamentos em Pernambuco, sendo já iniciado o processo de
extinção de alguns deles: Brejo dos Padres, comarca de Tacaratu, Urubá, município de
Cimbres; Santa Maria da Boa Vista, município de Boa Vista; Assunção, na ilha da
Assunção, comarca de Cabrobó, Barreiros, município de Barreiros, Panema, da fregusia de
Águas Belas, município de Buíque; Baixa Verde, município de Flores; Escada, município
de Santo Antão (DOC.:3). Seis anos depois, o governo provincial já teria reduzido esse
número para quatro (DOC.:4).
3
A concentração desses desaparecimentos num estrito período de tempo pode ser
explicada com o recurso a três alterações de contexto: o impacto da lei de terras de 1850, a
aproximação da abolição e a conseqüente reorganização do controle sobre a população
pobre rural, como já foi visto. Mas também deve-se ao avanço efetivo de uma malha de
estradas de ferro e carroçáveis que alcançou tardiamente, em meados do século XIX, o
sertão interior, criando novos núcleos economicamente ativos e valorizando as suas terras.
Assim, se em 1802 era criada “a primeira estrada tronco-central de Pernambuco” cobrindo
um total de 59 localidades e alcançando os sertões do Panema e do Moxotó, num formato
semelhante ao da atual BR 232 (BARBALHO,1988:vol.12), em 1872, haviam se
acrescentado a ela quatro estradas de rodagem, sendo apenas 2 centrais, a de Santo Antão e
a de Limoeiro, que avançavam pouco mais de 50 km pelo interior da província (DOC.:2).
Um outro roteiro foi estabelecido pela Estrada de Ferro São Francisco, que também passou
a servir como meio de progressivo incremento das localidades interioranas.
Mas, a estrada que seria responsável pelo impacto mais direto sobre a região onde
se localiza o aldeamento de nosso interesse seria finalizada em 1882: a Estrada de Ferro
Paulo Afonso, cuja estação final era a localidade de Jatobá, à beira do São Francisco
(DOC.:5). Entre essa localidade e a vila de Tacaratu, no alto da serra, estava o aldeamento
de Brejo dos Padres. O impacto de uma estrada de ferro não era desconhecido pelos
proprietários e poderes locais e pode-se ter uma idéia da valorização das terras da região
através das transformações que lhe sucederam: dois anos depois da sua inauguração, era
iniciada a construção da primeira igreja da localidade, antes servida apenas pela de
Tacaratu, por iniciativa de um frei capuchinho e do engenheiro chefe da ferrovia e, apenas
cinco anos depois, em 1887, aquela minúscula localidade já tinha crescido o suficiente
para ser elevada à vila e tomar para si o papel de sede do governo, antes localizada em
Tacaratu.
A esta altura já tinham sido realizadas as recomendações do engenheiro José Luiz
da Silva, da Comissão de Demarcação de Terras Públicas, segundo as quais não era
necessário que restasse nem mesmo um aldeamento em Pernambuco, sendo suficiente a
demarcação de lotes familiares de 22500 braças quadradas, com a venda em hasta pública
das terras restantes. De fato, em 1878 já teriam sido todos extintos (DOC.:6). No discurso
oficial, a solução para os conflitos em que os aldeamentos estavam envolvidos era fazer
com que os próprios aldeamentos deixassem de existir. E, recomendava ainda, “não deve
perder de vista a precaução de ser privada ao índio contemplado na partilha dos terrenos a
faculdade do alienar os que lhe couberem porque só assim conseguir-se-há prende-los ao
solo e evitar que, abusando de sua bôa fé o defraudem por negociações lesivas os
especuladores” (DOC.:7). Uma recomendação que, já vimos, obedecia à orientação mais
geral de imobilização da população rural pobre como forma de solucionar a tão reclamada
“falta de braços”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 30
Sobrepondo-se a esta solução surgiriam outras, como a criação de vários tipos de
colônias, que iam das simplesmente agrícolas até as de militares, de indigentes e de órfãos.
Essa ligação entre política mais ampla de controle da população pobre rural e aquela
dirigida especialmente aos aldeados, algumas vezes, mostrava-se direta e imediata, como
em 1878, quando é anunciada a extinção do aldeamento do Riacho do Matto e a fundação
em seu lugar da Colônia Agrícola Socorro, que serviria para abrigar o grande número de
retirantes que estavam afluindo ao local, em decorrência da grave seca daqueles anos. Se
atentarmos para a possibilidade da população, que passou a ocupar a colônia, ser composta
também pela mesma população que já ocupava o aldeamento, então temos aqui um
exemplo de como atos administrativos não só criam novas categorias de população, novos
recortes classificatórios, como também criam ou fazem desaparecer objetos históricos. Em
outros casos, a relação entre essas duas políticas é igualmente direta mas menos visível, só
podendo ser recuperada se recorremos a outros tipos de fontes, menos comprometidas com
a razão de Estado e com os interesses de uma sociedade letrada, como a história oral dos
grupos locais subordinados.
Segundo relatos fornecidos pelos Pankararu, no momento da extinção de seu
aldeamento, suas terras foram repartidas em lotes distribuídos não só entre os índios, mas
também entre “jagunços” - clientela política dos fazendeiros locais - e, o mais importante,
entre os ex-escravos que estavam sendo libertados durante aqueles mesmos anos e
ameaçavam se dispersar pelo território nacional. Essas informações são confirmadas pelas
listas de emancipações financiadas pelo governo imperial: no ano de 1876 eram
apresentadas as primeiras listas das Juntas Classificatórias, responsáveis por indicar o
número de escravos que seriam emancipados nos anos seguintes, com dinheiro público,
em cada município. Para Pernambuco o fundo de emancipação destinou a quantia de
226.659$055, sobre o cálculo de 2$441 por escravo a ser libertado, o que resultava na
libertação de 92.855 pessoas, distribuídas por 26 municípios, tendo cabido a Tacaratu onde se localizava o aldeamento de Brejo dos Padres - 1.406 emancipações(DOC.:6).
Segundo a memória Pankararu, parte desses ex-escravos teriam sido fixados em lotes
familiares, nas terras do seu aldeamento, extinto no ano de 1877.
Segundo a Comissão de Demarcação dos aldeamentos, no momento de sua
extinção, o aldeamento de Brejo dos Padres teria tido sua área de 27.878.400 m2,(ou
5760.000,00 braças quadradas) dividida em 114 lotes, que variariam entre 302.500 m2 e
151.230 m2, distribuídos entre índios e não-índios (DOC.:8). Noventa e seis deveriam ser
ocupados então por famílias indígenas que somavam uma população de 363 indivíduos.
Deste terreno total o autor do relatório diz que apenas uma légua quadrada estava
absolutamente livre de usurpadores, o restante sendo ocupado por índios e “particulares”
que não lhes pagavam qualquer espécie de renda. Mas, acrescenta, “por exepção à regra
geral, neste aldeamento nunca se derão essas eternas questões entre aldeados, intruzos e
exploradores de terrenos, por esse feliz estado de coisas muito concorrerão os directores
parciaes distinguindo-se entre elles, o último sr. Manoel Botelho, que no exercício de suas
funções jamais prejudicou aos índios” (DOC.:7), repetindo as observações já feitas no
relatório anterior, de 1857.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 31
Memória da violência
1
O impacto local da extinção oficial do aldeamento do Brejo dos Padres e do seu
desmembramento em diversos lotes só pode ser alcançado pelo recurso à memória da
população que o habitava. Nela, a extinção da categoria legal “aldeamento” não faz
qualquer sentido e o que marca aquele período de final de século de uma forma mais ou
menos homogênea, alcançando ainda as primeiras décadas deste, numa quase completa
indistinção cronológica, é o que os Pankararu chamam de “as linhas”, em referência à
demarcação física (esta sim, bem concreta) dos lotes que cruzaram toda a extensão do
“Brejo”. Podemos dizer mesmo que é esse registro memorialístico, fonte de diferentes
narrativas de domínio comum, o primeiro elemento produtor de uma “identidade coletiva”.
São as histórias das “linhas”, das expulsões das terras pelo apossamento direto ou pelo
progressivo avanço do gado, das invasões da aldeia pelos “membros” de Tacaratu que
constituem a matéria prima do que Halbwachs (1990) chamou de “comunidade afetiva”.
Parte do sentimento de pertencer a uma comunidade que hoje é identificada como
Pankararu está no partilhamento da memória desses eventos. Não se trata de um conjunto
de histórias ilustrativas de situações e sentimentos passados, mas de narrativas que ainda
hoje encontram eco nas experiências presentes e que, de alguma forma, têm a capacidade
de explicar posições políticas, estigmas, rancores, motivando a própria ação social. Não
são enfim, propriamente história, mas memória, porque viva e por isso aglutinadora,
identificadora de uma população sob outros aspectos muito heterogênea.
Da mesma forma, a memória é o primeiro laço entre esta população - feita
comunidade pelo recurso a uma memória compartilhada - e o espaço ocupado,
transformado assim, pelo apego, em território. A repetição e atualização das narrativas da
expropriação são elas mesmas a maior expressão de sua ligação àquele território, ao
contrário do que a recorrente fórmula discursiva da “imemorialidade”, usada na
justificação de direitos indígenas sobre porções do território hoje nacional, insiste em
afirmar nos roteiros canonizados dos “laudos antropológicos”. No caso Pankararu, assim
como na maioria dos casos conhecidos no Nordeste, os laços territoriais são
fundamentalmente laços memoriais. Entre eles, a memória não pode ser um elemento
neutralizado frente a outros de maior peso funcional, como o nicho ecológico ou a
organização cosmológica, mas ao contrário, é ela que emerge em detrimento de outros
tipos de argumentação. Ela revela a natureza histórica dessas populações e, através de sua
natureza não-sancionada e marginal, revela principalmente a natureza conflitiva da própria
definição dessa história.
No entanto, o preço da desconstrução de narrativas históricas dominantes não pode
ser a reificação de uma forma de fazer história que, ao pretender dar lugar à “memória dos
vencidos”, procede segundo o mesmo realismo, apenas com os sinais invertidos. Algumas
das reflexões de Detienne (1980) sobre a análise do mito são extremamente úteis na crítica
ao trabalho com a memória, distinta em sua natureza, e não apenas em seu método ou em
suas fontes, da história tradicional. Como no caso do mito, à memória, ou à memória sobre
determinado período ou personagem, não se deve atribuir o caráter de relato único,
apreensível como uma totalidade da qual pode-se recuperar o objeto, dando-lhe uma forma
escrita a partir da constituição de um córpus de enunciados, desta forma domesticados, que
poderíamos então dissecar na busca de uma versão exata. A memória, no plano em que ela
nos interessa aqui, de repertório de narrativas de uma comunidade afetiva, não está ligada
à lembrança, que pode ser medida ou verificada pelo recurso à régua da vida individual.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 32
Ela é antes definida por um trabalho coletivo que se move num permanente jogo entre a
transmissão oral dos relatos e a sua permanente modificação. Ela está em permanente
relação com o oral, apresentando-se sempre como versão aberta, permanentemente
reconstruída pelas trocas sociais e constantemente reestabelecida pela repetição e pela
negociação de versões: são as “histórias que não cessamos de repetir e que contam com a
aquiescência de todos” (DETIENNE,1980). Se, para definir o mito, Detienne identifica
como central o trabalho da memória, em sua relação com a tradição, falar de memória é
também falar, em alguma medida, de mitificação.
2
Em primeiro lugar, a construção da memória Pankararu tem o efeito mesmo de
desfazer a confortável unidade representada pelo seu próprio etnônimo, tornado
designação oficial pelo órgão indigenista. Se na recriação da aldeia, a designação adotada
oficialmente foi Pancarú (depois Pankararu), todos os mais velhos sabem que seu
verdadeiro nome é “Pancarú Geritacó Cacalancó Umã Tatuxi de Fulô”, onde cada um
desses “sobrenomes” corresponde a uma das outras principais etnias que compuseram
historicamente o grupo. A composição desses sobrenomes varia um pouco de depoimento
para depoimento, mas o que importa reter é o próprio efeito e significado da existência
dessa forma de compor, sob uma mesma unidade, a memória da diversidade. Guardar
esses sobrenomes significou poder constituir uma unidade política e social sem precisar
apagar os germes da diferença, guardar a memória do quanto são outros, de modo a que
fosse possível conceber novas dispersões, como veremos na segunda parte deste capítulo.
O etnônimo e o grupo social e territorialmente identificado como Pankararu (é a
construção de sua própria memória que nos revela) são uma dentre outras possíveis
cristalizações identitárias (MARCUS,1991) produzidas ao longo do processo de
transfigurações pelo qual os índios do Nordeste têm passado. A unidade “Pankararu” não é
nem o ponto de partida de transformações, sob as quais se possa recuperar formas
ancestrais puras e autênticas, nem simplesmente o ponto de chegada, produto final e
fechado de um processo único de construção social e invenção cultural. Na verdade, uma
cristalização étnica de transformações históricas, ponto de convergência e de dispersão de
outras construções sociais e invenções culturais.
Estas dispersões, que produzirão em momentos seguintes novas cristalizações,
estão intimamente associadas à memória da violência: ao contrário do que afirma a
documentação disponível, segundo a qual teriam sido estabelecidas 96 famílias indígenas
nos lotes demarcados com o fim do aldeamento, contemplando todas que ali existiam, a
memória Pankararu fala de uma pequena minoria de famílias que teria ficado nas “linhas”,
e de uma grande maioria “corrida” para as serras que envolvem o Brejo ou ainda para mais
longe, “bolando no mundo”. É na expulsão dessas famílias que uma outra comunidade
Pankararu tem origem. Parte daqueles que foram “bolando no mundo” acabaram por
encontrar assento numa localidade que passaram a designar por Ouricuri, localizada no
município de Pariconha (AL) e que cerca de 100 anos depois seria identificada segundo
um dos sobrenomes Pankararu: os Geripancó.
As famílias que saíram de Pankararu, para vir pra cá, foi numa revolta
que houve, um Cavalcanti invadiu Pankararu e amarravam os índios
nas árvores e batiam para eles correrem. E os índios que não
agüentavam muito cacete correram cedo. Os índios corriam com medo...
[...]... Desses aqui mesmo, quando chegou Cavalcanti lá em Pankararu,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 33
bateu neles e tomou tudo que eles tinham. Então, o Zé Carapina saiu
desgostoso, bolando pelo mundo, chegava num pé de pau ficava. Quando
chegaram aqui era tudo mata. (Maria do Carmo Santos, Geripancó.
Transcrito em BRITO,1993)
Depois que o Zé Carapina já estava aqui, ainda na época da revolta de
Pernambuco, muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no
Ouricurí e o Zé Carapina deu apoio a eles. Vieram primeiro Manuel
Carapina, primo do meu avô. Chefe de família, trazia até filho. Depois
chegou João Porsenha de Palmeira dos Índios e a esposa dele era de
Pankararu, era da família Jacinto... (Genésio Miranda da Silva,
Geripancó. Idem)
Teria se constituído então um outro núcleo Pankararu, separado do Brejo por
alguns quilômetros e uma linha divisória estadual, mas mantendo com ele estreitas
relações, inclusive através de trocas matrimoniais. Com o tempo, a essa população
passaram a se somar outros pankararus que fugiam não mais da violência, mas das secas
ou da simples escassez de terras e, pelo que parece, até o momento em que, na segunda
metade deste século, como veremos adiante, esse grupo foi reconhecido pelo órgão
indigenista oficial como um grupo distinto, com direito a uma área indígena e um posto
indígena próprios, sob a designação Geripancó. Essas duas populações não se pensavam
como etnias distintas, nem se atribuíam designações diferenciadas, distinguindo-se apenas
pelo acréscimo do topônimo Ouricuri à designação Pankararu.
3
O sistema de metáforas que descreve essas concentrações, dispersões e
cristalizações étnicas organiza-se segundo o par de categorias de parentesco Troncos
Velhos/Pontas de Rama que traduz para esses grupos a distância entre eles e seus
antepassados, “índios puros”, ou entre grupos mais antigos e mais novos, tanto no que diz
respeito à sua aparência física quanto às suas “tradições”, significando a solução
classificatória para os fenômenos de natureza identitária da “mistura”. Nesse caso, podem
ser considerados parentes os grupos política e territorialmente distintos, através de
ancestrais comuns (reais ou imaginários) ou, de forma muito mais ampla, simplesmente
todos os “índios”, por oposição a todos os “civilizados”, “brancos” ou “brasileiros”. A
oposição, continuidade e complementaridade entre “troncos” e “pontas”, que marca tanto a
relação entre famílias dentro da aldeia Pankararu, quanto entre os Pankararu e outros
grupos, serve como uma forma de pensar o tempo e seus efeitos, não apenas segundo uma
genealógica, mas sobretudo segundo um jogo entre a imagem de laços naturais e
experiências eminentemente históricas.
Trata-se do recurso a uma metáfora própria da tradição judaico-cristã, que já foi
observada entre outros grupos camponeses brasileiros (WOORTMAN, 1994), mas que
diferencia-se no seu uso, entre outros motivos, por não implicar num sistema fixo de
relações hierárquicas, mas antes numa forma de expressar relações entre pares. Assim, na
situação do Brejo dos Padres, os grupos que vieram a se combinar no composto hoje
designado como Pankararu seriam troncos velhos com relação a este último, considerado
como ponta de rama daqueles. Mas quando o contexto envolve os Geripancó, por exemplo,
os Pankararu passam a ser pensados como troncos velhos, já que os Geripancó se
constituíram como um “enxame” deste primeiro grupo, sendo sua designação, ela mesma,
retirada do seu acervo de “sobrenomes”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 34
Temos então introduzida a outra metáfora: o “enxame”, que dá mobilidade ao par
de metáforas de parentesco tronco/pontas. A noção de enxame está carregada de uma idéia
de movimento, expansão e fracionamento para a constituição de novas unidades e por isso
traduz mais adequadamente o aspecto territorial do fenômeno das emergências. Segundo os
Pankararu, cada um dos seus sobrenomes permite que do grupo se solte um “enxame”, para
constituir um novo grupo, uma nova ponta de rama. Se no passado, diferentes grupos
puderam ser reunidos num mesmo território como estratégia de sobrevivência, porque não
pensar que hoje, também como estratégia de sobrevivência, um grupo possa dar origem a
outros, multiplicando os territórios indígenas?
4
Se a diversidade é tornada memória através das metáforas do parentesco, a carga
narrativa dessa memória acaba por concentrar-se num único e indistinto, ainda que
bastante largo, período de violências, que se seguiu à implantação das “linhas”. As
histórias que não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos, são
fundamentalmente as histórias de violência e de alienação, da terra e da “pureza”. E, da
mesma forma que este período acabou por concentrar o repertório memorialístico do
grupo, dentro deste período uma personagem assumiu por sua vez o lugar de símbolo do
arbítrio dos poderes locais: Francisco Antônio Cavalcante, chefe local do partido
conservador que, na década de 1870, dominava politicamente toda a região
(ALBUQUERQUE,1976), mais conhecido pelos Pankararu como Cavalcante,
administrador direto e, aparentemente extra-oficial, da instalação das “linhas”.
A época do Cavalcante, ele chegou aí que ele veio habituado com o
pessoal..., dos membros de Tacaratu. O Manoel Toscano, Zé Maria,
Mestre Abílio, naquela época prefeito era dotô, aí ele veio desse
conhecimento prá cá, e tinha o Antônio José também. Eles montaram
engenho aqui e foi naquela época que eles começaram a expulsá...
[...]... Ele encarrerava o pessoal do Ouricurí. Quer dizer que ele vinha
informado com o pessoal de Tacaratu, e vinham pra encarrerá os índios.
Esse Antônio José Fez engenho aqui e junto com o Cavalcante eles
lotearam essas terras, fizeram sessenta e doi lotes, que o pessoal
chamava 'os linheiros'. Então esse Cavalcante chegou aqui se
engraçando das índias, batendo nos índios, e o pessoal correram pro
Ouricuri. O pessoal mais velho foi embora e adepois os filhos foram
voltando, uns voltaram e outros ficaram lá, aquele pessoal mais velho
que ficaram envergonhado de tê apanhado..., porque você nolugar da
sua convivência e o sujeito chegá e batê..., aí eles se desterraram e
ficaram pra lá. Aí eles ficaram dominando, pegavam os índios e
baixavam a peia que era pra eles gritá: “Arco de reis! Arco de reis!” e a
peia comendo. E aí foi o tempo que veio o SPI e acabô todo o impasse. aí
foram vê que índio tinha dono, porque antes a polícia entrava aqui, batia
em índio, como o Cavalvcante que fazia descarrerá os índios pra ser
dono das índias... Aí foram fazendo isso e ficô os índios tudo
amedrontado. O meu pai falava..., tinham medo aqui também do BemQuerê, do Caxeado, que era aquele... [tenta lembrar por alguns
segundos] o Zé Maria ou Zé Barro, que também era de Tacaratu e
judiava dos índios. (Antônio Moreno)
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 35
Ao Cavalcante e seus jagunços é atribuída a maioria dos eventos de violência direta
que teriam sido impingidos à população por parte dos “membros” de Tacaratu. Violências
que foram marcadas por invasões constantes, pela proibição e repressão dos rituais, pelo
rapto ou defloramento de mulheres e meninas, pelo espancamento dos homens, como puro
exercício de poder ou como castigo e prevenção.
Os linheiros, quando chegou aqui o Cavalcante, começou de cima, dalí
daqueles ponto, e do Brejo aqui ele tomô tudo e quando acabô cortou
por linha. Tinha a linha dos Pereira, tinha a linha dos Barbosa, tinha a
linha dos Serafim, tinha a linha dos Binga, tinha a linha de Santo
Antônio, que é essa aqui, que passa por cima da igreja, daquele cajueiro
pro lado do cemitério. Ele é dono desse terreno, só não tá se lucrando,
mas ele é dono. Aqui do Barbosa, alí é a linha de Bela de Chico Grande,
alí é de Antônio Valéria. Tem deles que é da aldeia e tem deles que vem
já de outros canto, de fora, porque aqui , é como diz a história, hoje
misturô a nossa aldeia, nossa área, já foi no tempo desses cangaceiro.
Chegava, pegava uma bichinha dessa nova e “Vem cá!”, não queria
sabê nem quem era nem quem não era. Tem deles aqui que é arranjado
assim. (Mané Bizoro)
As “linhas” ou o “tempo de Cavalcante” formam o marco fundamental da
constituição de uma comunidade afetiva fundada na memória, servindo também como
momento de definição daqueles que são identificados como os maiores dilemas do grupo
hoje. São as “linhas” que separam um passado feito de índios de “tronco velho”, isto é,
puros e autênticos, de um presente feito de gente “braiada”, de “caboclos misturados”. São
elas também que separam um tempo de unidade da aldeia e o tempo atual de fragmentação
política e religiosa, que explode as lealdades por diferentes grupos (de que trataremos no
segundo segmento dessa dissertação), como conseqüência do impacto da expulsão de
grande número de famílias do Brejo e da mistura dos que ficaram.
A história do Cavalcante foi essa. Ele chegou aqui foi primeiro que o
Catarina. Chegou primeiro em Tacaratu e se deu a conhecê dos home de
lá e foi chegando, foi chegando e chegou aqui no Brejo e estudou o que
podia fazê. E foi, começou lá da Fonte Grande e, bom, de lá pra cá saiu
mediu doze braçadas (a braça é dez palmo e meio) e quando dava dez
braçada ele parava: “Aqui, um índio aqui.” e botava um índio na
cabeceira pra ser dono disso aqui, aí: “Mede mais outra légua...”, aí
media outra légua: “Aqui, fulano de tal.”, aí botava na frente desse
caboclo velho, “Vamos botá mais!”, e ia até o final, bem empareado e
quando chegaram aqui... aliás, ele chegou da Fonte Grande até o Bem
Querer, deu pra localizar vinte e cinco famílias, dez braças pra cada
uma. Ele ia botando um índio e depois do índio um negro, que era pra
eles fazer uma revolta, os índios corrê e os negro fazê que ia brigá, que
era pra ficar aquela terra ali pra o Pedro Catarina, pra o Cavalcante...
[...]... O velho Serafim foi meu avô. Ele foi dos que correu e fez uma
moradinha na serra. O filho dele, o pajé que morreu ano passado,
morava bem alí, essa roça alí era dele. Mas os negros que ficaram não
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 36
correram não. Os caboclos corriam e eles tomavam. Só ficaram dois
caboclos, o Leonardo e o outro, não sei como era o nome dele. O
Leonardo ficou lá na cabeceira, que casou até com a Aninha Bomba. O
cumpadre Zé Bomba que o sr. viu aqui, pois bem, aquele era neto da
Aninha Bomba. (João Binga)
Esse marco oblitera qualquer referência memorial anterior e em sua capacidade de
condensação acaba por estender-se abarcando personagens bem mais recentes, como o
Pedro Catarina, já em pleno século XX.
Aqui era coberto de gente pra iludi os índio, tanto pra caí no cangaço,
tanto... Era o Mané Vito, era o Pedro Catarina... O Mané Vito era um
cabra que ajuntô gente por aqui. Era marinheiro e ajuntô esses grupos
de gente pra andá no cangaço. Se quizesse ir, era na hora. Sofreram aqui
diversos. O Tenente Apitati, era polícia de Tacaratu, entrou aqui e lutou
com muitos índio aqui. Foi quem mais derrotô com nós. E hoje nós hoje,
graças a Deus, tamo liberto. (Mané Bizoro)
Um relato que Carlos Estevão de Oliveira faz de uma história que também me foi
relatada algumas vezes, mas sem as referências cronológicas, dá uma idéia de até onde vão
no tempo os fatos relatados como parte de um mesmo “tempo das linhas”.
Há uns doze anos passados o Inspetor do Quarteirão “Folha Branca”,
do município de “Tacaratu”, de nome Pedro Catarina, a pretexto de
prender um “caboclo”, invadiu, uma noite, a aldeia, e, indo até um
“terreiro”onde os “Praiás” estavam dançando, estabeleceu um conflito.
Por essa ocasião os “cabras”que o acompanhavam dispararam as
armas contra os caboclos, dando isso em resultado sairem gravemente
feridos a mulher Maria da Conceição e seu filho Manuel, que na época
tinha uns 11 anos de idade. Por uma grande ventura os feridos não
morreram. E, certamente por tratar-se de ferimentos em “caboclos”, não
houve necessidade de processo. (OLIVEIRA,1943 [1937]).
Na memória daquela população, uma fase de violência constante marca um período
único e compacto que vai pelo menos da década de 70 do século passado à de 20 deste
século. Antes ou depois destes cinqüenta anos é difícil recuperar qualquer relato que possa
ser atado a referências históricas. Cinqüenta anos que concentram as histórias que não
cessam de repetir e que só são rompidos com a chegada do órgão indigenista na década de
1930. O advento do indigenismo oficial representa a ruptura com um determinado domínio
memorialístico e a instauração de um novo, marcado por novos dilemas, novos
enfrentantes, novas armas.
5
Aqui cabe um esclarecimento sobre a atuação de Cavalcante no momento da
instalação das linhas que revela mais pontos de contradição entre a história escrita e os
relatos memorialísticos Pankararu. A documentação oficial que foi possível recuperar fala
do loteamento das terras dos antigos aldeamentos sendo realizado por um engenheiro
contratado pelo governo especialmente para isso, cabendo a ele todas as decisões,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 37
decorrentes de sua avaliação técnica. No entanto, a memória Pankararu é totalmente
indiferente à existência deste funcionário e insiste em que as decisões sobre os locais dos
lotes e a escolha dos seus ocupantes teriam sido tomadas por aquele chefe político local,
revelando uma das formas pelas quais decisões de âmbito não só estadual como nacional
podem ser reapropriadas no seu ponto final, no momento de sua efetiva realização, dandolhe um novo sentido.
Este confronto entre memória e registro histórico encontra mais pontos de interesse
quando os relatos tratam da morte de Cavalcante. Neste caso, a memória indígena conta
que na época do início das “linhas”, um grupo de índios, acossados pela alienação de suas
terras - que a certa altura não lhes permitia nem mesmo recolher os frutos de suas colheitas
- e por não terem clareza do que significavam “as linhas”, resolvem tomar uma atitude
contra a expropriação. Para isso reúnem-se na mata e, com o auxílio de sua “ciência”, isto
é, da garapa, do fumo e da jurema, consultam os Encantados sobre o que estava
acontecendo, o que estava por acontecer e o que deveriam fazer. Quando a “juremada” e o
fumo fizeram efeito, durante o longo período de ascetismo na mata, os Encantados lhes
avisaram dos planos dos “home” e da falsidade dos motivos que alegavam para a
delimitação das “linhas” no Brejo. “Era o fim”, pensaram. E como suas mortes fossem
inevitáveis, a única solução era tentar a morte do Cavalcante, visto como o principal
responsável pelas “linhas”. Aqueles mesmos índios vão então até a casa de Cavalcante em
Petrolândia, onde o próprio Cavalcante, de forma arrogante, lhes confirma as informações
dos Encantados, revelando suas intenções. Imediatamente um dos índios da comitiva saca
uma faca e lhe mata, ali mesmo na varanda de sua casa. A surpresa com o fato permitiu
que os índios conseguissem fugir, dirigindo-se para a cachoeira de Itaparica, onde mais
tarde foram encontrados pela polícia de Petrolândia e trucidados.
O papel marginal da memória Pankararu fica evidente ao recuperarmos o relato que
faz Ulisses Lins de Albuquerque, importante político pernambucano, que ao reunir suas
memórias coletou também histórias e curiosidades dos sertões que visitou e onde mantém
vastas relações de parentesco (Cf. Anexo1: A morte e a morte de Cavalcante). Nele
encontram-se muitos dos elementos do relato Pankararu, como o fato do assassinato ter
sido realizado por um grupo de “caboclos”, a presença de augúrios de fonte religiosa, o
assassinato ter se dado na frente da casa da vítima, a fuga em direção à cachoeira de
Itaparica e a conclusão com o massacre do grupo. No entanto, essa segunda versão diverge
da primeira no que é fundamental para a constituição da memória Pankararu: o motivo da
morte teria sido mais uma das disputas tradicionais entre políticos locais relacionado a um
conflito eleitoral e nela, a participação de alguns “caboclos”, cuja identidade é
inteiramente irrelevante, teria sido de simples executores, aliciados por uma das partes em
disputa, alienados da ação efetiva, coadjuvantes e não protagonistas da história. Não há
referências às “linhas”, não há referência nem mesmo à existência de uma aldeia da qual
teriam saído aqueles “caboclos”.
À nossa análise o que interessa não é, obviamente, verificar a veracidade dos
relatos, mas destacar a partir deles as possibilidades simbólicas de um mesmo evento
histórico. Na morte de Cavalcante o que é fundamental num enunciado pode ser
integralmente desconsiderado em outro e isso não nos remete apenas a uma diferença de
perspectivas que possam ser compatibilizadas. O fato joga-nos antes no campo de disputas
aberto pela memória, evidenciando uma alienação de outra natureza a que aquela
população é submetida , além do tipo de resposta que está a seu alcance. É neste ponto que
a memória encontra-se com o trabalho de mitificação, já que encontram-se naqueles
relatos vestígios de um diálogo com o repertório mítico Pankararu: é na cachoeira de
Itaparica, a mesma em que o grupo de assassinos de Cavalcante foi trucidado, que tem
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 38
origem os Encantados do panteão Pankararu. O trecho do relato de Ulisses Lins que fala da
fuga de um dos índios através da cachoeira, onde teria se jogado e de onde teria,
surpreedentemente, saído vivo, nos remete à forma pela qual são produzidos os
Encantados: depois de descobrirem o segredo do encantamento, um grupo de índios
antigos dirige-se à cachoeira e se joga nela, sobrevivendo na forma de Encantados. Aqui
parece que a versão regional deixa-se contaminar, através do gosto da “fábula”, pela
mitologia subordinada.
6
Um segundo aspecto que torna importante o relato Pankararu da morte de
Cavalcante é o de compor um duplo ao mito de Tarraxá, que narra justamente a relação
daquela população com seus dominadores. Ao combinarem-se numa mesma imagem, os
relatos sobre Tarraxá e sobre Cavalcante nos fornecem a narrativa aberta, ambígua e,
poderíamos arriscar, dialética, do drama social vivido por aquela população. Para que ele
fique evidente é preciso transcrever na íntegra o mito conforme ele nos foi contado.
Pelo o que eu ouvi dizê... Tá gravando?... Um tempo meu pai falava que
ele era um home que usava umas roupa de..., num tinha uma mescla
grossa que antigamente os cangaceiros usava? Bom, que nem a roupa de
caqui, mais grossa né, chamava mescla azul. Quando passava, de noite,
na boca da noite, ninguém passava alí, entre esses dois serrotes, o
Serrote das Moça alí e o Serrote do Tarraxá aqui.
Aí..., tá certo aí? [referindo-se ao gravador]..., passava esse home, como
quem era um cangacero. E disso surgia que ele reinava com os índios.
Não era um homem bom não, um Encanto bom não... Ele judiava dos
índios, até que um dia se juntô os folguedo, os Praiá né, e foi o índio Tito
na frente..., o Tito é o Cinta Vermelha, é um que trabalha na festa.
Foram lá prendê ele, porque ele pegou um home... Um índio plantou uma
roça de abóbora, tinha muita abóbora bonita e quando ele foi pegá uma
abóbora, ele disse: “Essa aí não.”. Ele escutou uma voz: “Essa não.”. O
cabra pensô “mas..., fui eu que plantei...” e ele repetiu as três vez “Essa
não”. E ele pegou. Quando chegou em casa, adoeceu, adoeceu, pegou
febre, morre não morre. Aí, os índios foram - tem os índio pra adivinhá
né, o feiticeiro, o pagé...: “Vamo lá pegá ele que ele tá morrendo...” E o
home morreu quando chegaram lá.
[depois disso...] Os índio vai com as flexas..., aí tocou a flexa na pedra e
a porta se abriu, e tinha um palácio grande né, - bem, assim me diziam,
eu tô contando que nem me contaram - aí [...] prenderam ele [o
Tarraxá]. Foram com as flexas, botaram as flexas aqui, que nem
general, e prenderam o home. Aí ele dixe: “Olha, eu tô preso mas eu vou
fazê um acordo com vocês. De hoje em diante, eu fico com esse - ele já
tinha levado muitos né - mas eu garanto a vocês..., vamos fazê um
tratado, que eu não vou mexê com mais nenhum. Ele foi pegá as abóbora
aqui perto de meu palácio, não obedeceu...”... Mas você vê, o home
planta e não tem direito né. E a minha roça é bem pertinho, eu planto
mandioca...
[P: O sr. nunca viu não?]... Não. Ele prometeu, se ele prometeu é que ele
não vem mais. Prometeu de nunca mais agravá os índios e de fazê mais
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 39
nada. Aí pronto, os índios se vieram embora, dançaram muito. Por causa
de uma abóbora... A História do Tarraxá é essa. Diz que ele agora é
bom, que acompanha os resadores, mas home..., eu não confio não.
(João de Páscoa)
Ao contrário da solução dada a Cavalcante, a que é dada a Tarraxá, em lugar do
conflito direto, leva à negociação. Em lugar da separação e da exclusão, a composição, a
absorção, a convivência, o acordo, sempre e profundamente, no entanto, marcados pela
tensão e pela desconfiança que caracterizam laços simultaneamente de conflito e
dependência: “mas home..., eu não confio não”.
Se nos apropriamos desses relatos como narrativas no sentido dado a elas por
Turner (1992), isto é, como fontes morais para o desempenho dos atores, repertórios de
seqüências, soluções, conceitos e papéis, formulados a partir de um tipo de conhecimento
que emerge da experiência dos dramas sociais, ou melhor, de uma determinada forma de
organizar a experiência vivida, então percebemos que Tarraxá e Cavalcante formam o
duplo que está na base do drama social Pankararu. A importância central dos dramas
sociais na dinâmica dos grupos e sociedades passa, como apontou o autor, pela capacidade
dessas sociedades transformarem seus dramas experenciados em parâmetros de
comportamentos sociais futuros, rearticulando valores e objetivos numa estrutura
significativa capaz de servir como fonte de conhecimento para a representação de novos
dramas. Com o duplo Tarraxá-Cavalcante podemos nos apropriar das ambigüidades da
relação entre índios e brancos no Brejo dos Padres, dando a ela uma narrativa que deriva
da experiência e orienta as ações. Como veremos a seguir, Tarraxá e Cavalcante convivem
nas fronteiras Pankararu.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 40
PARTE 2: AS EMERGÊNCIAS
A produção da visibilidade
...il n'y a pas d'autre moyen de s'approprier complètement sa propre
pensée du monde social que de reconstituer la genèse sociale des
concepts, produits historiques des luttes historiques que l'amnésie da la
genèse éternise et réifie. (BOURDIEU,1992)
1
No que delimitamos como o contexto de invisibilidade, os grupos, bandos, nações,
populações ou povos indígenas do Nordeste surgem na literatura acadêmica apenas quando
da reunião e comentário de textos e gravuras de antigos missionários e viajantes
(normalmente dos sécs. XVI ao XVIII) na busca de elementos que permitissem reconstituir
antigas repartições geográficas, famílias linguísticas, fragmentos de vocabulários ou ainda
avaliar sua "contribuição" para o avanço colonial (Cf. BALDUS, 1954). É nesse contexto
que o antropólogo Carlos Estevão de Oliveira realiza uma palestra, em julho de 1937, no
Instituto Histórico e Geográfico Pernambucano e comunica, como quem narra uma história
de aventuras e descobertas, sua última visita etnológica ao sertão nordestino
(OLIVEIRA,1943). Ele inicia comentando seu projeto de uma etnologia brasileira e de
como, dentro deste projeto, deparou-se com o problema da raridade de pesquisas sobre a
antropologia indígena do Nordeste , motivo pelo qual teria tomado a iniciativa de realizar
algumas viagens ao sertão (ver também OLIVEIRA,1931), das quais nesta palestra narra a
primeira (não fazendo referência à data).
Conta que, levado um dia a visitar a cachoeira de Itaparica e as obras da Cia
Industrial e Agrícola do Baixo São Francisco, ao final da tarde, teria se encantado com o
efeito do pôr-de-sol sobre as águas do São Francisco e, na "procura de uma elevação que
me proporcionasse a possibilidade de transportar para o 'film' de minha 'Roleflexe' uma
imagem do lindo ocaso que se descortinava diante dos meus olhos", teria feito uma
descoberta "toda filha do acaso": guiado por um caboclo do local, descobriu numa pequena
gruta um "ossuário indígena de real valor científico". Assim, sob um clima poético e de
descobertas, Carlos Estevão conduz seus incrédulos ouvintes através de evidências - e não
é gratuito que a primeira seja arqueológica - de uma ancestral presença indígena na região,
para em seguida levá-los ao encontro do grupo propriamente dito, de "remanescentes
indígenas" Pankararu da aldeia "Brejo do Padres". Numa segunda parte da palestra,
descreve rapidamente as festas e mitos deste grupo de "remanescentes", os nomes
tradicionais de seus utensílios, sua economia e o secular processo de espoliação a que
vinham sendo submetidos, para finalmente dar algumas notícias também dos
"remanescentes indígenas" que ainda se encontravam em "Colégio", "Águas Belas" e
"Palmeira dos Índios".
Ao encerrar a palestra, dirige um dramático apelo ao seu douto público. Depois de
sentir pulsar junto ao seu coração, hora por hora, há quase 30 anos, o coração dessa gente
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 41
que tanto tem sofrido "pelo estranho crime de terem sido dôna deste pais", diz que, nos
últimos dois anos havia começado a sentir de perto o sofrimento dos seus "descendentes"
em Pernambuco e Alagoas. Por isso apelava a todos que lhe ouviam, para que tomassem
"sob seu valioso amparo e proteção, não só os caboclos do 'Brejo dos Padres', como,
também, os demais remanescentes indígenas que ainda vivem em terras nordestinas".
Apelava para que o Instituto Histórico e Geográfico Pernambucano tornasse extensivo o
seu apelo aos institutos de Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará,
para que esses também amparassem e protegessem os "remanescentes indígenas que, por
ventura, existam naqueles estados".
No mesmo ano, em outubro, Carlos Estevão apresentaria uma versão reduzida desta
palestra no Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde o apelo, em função das relações que
esta instituição mantinha com Cândido Rondon, dirigia-se não mais ao instituto de
pesquisa, mas ao próprio órgão indigenista oficial.
Até o ano dessas palestras, existia no Nordeste10 apenas um posto do Serviço de
Proteção ao Índio, atuando junto aos Fulni-ô de Águas Belas desde 1928, mas Carlos
Estevão relata a existência de pelo menos mais três grupos e sugere que poderiam existir
outros. De fato, até que a próxima década se encerrasse, surgiriam além dos quatro já
citados, outros oito grupos mobilizados pelo reconhecimento de sua identidade indígena,
aos quais viriam se somar ainda outros, surgidos nas décadas de 1970, 80 e 90. O momento
da palestra de Carlos Estevão é pois, um momento de inflexão na história indígena no
Nordeste, dando início a um rápido e tumultuado processo de revitalização de tradições e
invenção cultural que faz do Nordeste hoje, não só uma importante região em se tratando
da presença indígena, como paradoxalmente, de uma importância crescente. Num trabalho
de 1993, foram registrados 27 grupos indígenas oficialmente reconhecidos no Nordeste,
cuja população vai de 30 a 4.750 pessoas, num total geral de 31.600, distribuídas em 46
áreas indígenas, entre adquiridas, identificadas, delimitadas ou homologadas (PETI,1993).
As demandas, no entanto, ainda não foram esgotadas e os números continuam em
expansão. Por surpreendente e mesmo incompreensível que seja à primeira vista, o fato é
que estamos assistindo a uma performática negação das expectativas que viciaram nosso
olhar a perceber os grupos indígenas caminhando sempre sobre a linha reta que leva da fase
áurea, anterior ao contato, para a de decadência, durante o contato e, finalmente, para o
indefectível desfecho que é a extinção.
Durante o período de gestão do SPI, que no Nordeste vai de 1924 até 1967, são 12
os grupos que se iniciam nas primeiras movimentações pela conquista do estatuto legal de
índio e pela conseqüente demarcação de terras reservadas, quase todas em locais de antigos
aldeamentos, a maioria alcançando o reconhecimento oficial e os primeiros atos
demarcatórios ainda ao longo das décadas de 1930 e 40. Interessa-nos daqui em diante
mapear os caminhos que esses grupos percorreram no sentido contrário ao que tinham sido
levados no final do século XIX.
2
Antes de mais nada, para tornar-se visível, foi preciso tornar-se simultaneamente
nomeável, isto é, parte do trabalho que permitiu conceber a existência de grupos indígenas
no Nordeste teve que ser investido sobre a própria forma de nomeá-los. A pergunta que
10
A região Nordeste conforme a utilizamos aqui, segue o recorte proposto por PETI (1993): do norte da
Bahia ao Piauí. O sul da Bahia, Espírito Santo e norte de Minas Gerais fazem parte, segundo esta divisão, de
um outro recorte da ação indigenista e da concentração de áreas indígenas que é distinguido como região
Leste.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 42
parece ter se imposto àqueles que vieram a realizar a mediação entre aquelas populações e
o órgão indigenista, sua tutela e seus direitos, parece ter sido a de como, afinal, designar
grupos de caboclos que se supõe ter ancestrais indígenas aldeados, sem incorrer na
imprecisão dificilmente aceita, à primeira vista, de simplesmente designá-los por índios, já
que não possuíam mais quase nenhum dos "sinais externos" reconhecidos pela "ciência
etnológica".
Nos documentos iniciais internos ao órgão indigenista, ou nos textos dos primeiros
folcloristas ou etnólogos sobre os grupos do Nordeste, fica clara uma indecisão no uso de
categorias, levando à alternância e combinação dos usos principalmente de "caboclo",
"descendentes indígenas", "remanescentes indígenas" e variantes, onde o "indígena" podia
ser substituído por designações étnicas ou toponímicas. Essa indecisão, com o tempo,
cedeu lugar a um franco predomínio do termo "remanescentes", categoria que se mantém
presente ainda hoje nos textos e discursos de autores e personagens que, através dela,
acabam por criar uma categoria especial de índios e, como veremos, um padrão particular
de “indianidade”11 (Cf. "Anexo 2: A categoria de Remnescentes indígenas - amostragem
aleatória"). Parece ter existido a necessidade de adequação de vocabulário que permitisse a
imediata inclusão daquelas populações no novo código de direitos instituído através do
status de índios (criado pelo decreto no 5.484/1928), mas sem ofender as evidências que
informavam o contrário.
Referir-se a eles como descendentes indígenas parece não ter se adequado
perfeitamente aos objetivos da mediação, já que em seu uso comum12, a "descendência"
pode estar referida a um lugar de origem (região ou nação), a uma raça, religião ou etnia,
sem que isso implique que o sujeito desta descendência seja efetivamente membro da
categoria, grupo, lugar ou religião a que a descendência faz referência. Além disso, a
descendência genérica a antepassados indígenas fez parte do imaginário romântico
brasileiro, da mesma forma que faz parte do mito das três raças, fundador da nacionalidade,
tornando-se inadequado para distinguir um tipo específico de população que pretende o
direito à tutela. Por outro lado, na sua aplicação mais particularmente antropológica, a
"descendência" deposita força na posição do ancestral, mais que na do que dele descende,
não estando implícita aí qualquer transmissão imediata de direitos. Ao se estabelecerem, no
código civil e no decreto de 1928, os direitos indígenas não ligaram-se à herança, mas ao
estado atual de ser silvícula. Ser descendente portanto não bastava.
A fórmula "remanescentes" parece ideal por apontar mais claramente para a
presencialidade do estado de índio, sem deixar de reconhecer uma "queda" com relação ao
modelo original: os remanescentes são uma espécie de índios caídos do nosso céu de mitos
nacionais e acadêmicos. Em termos legais, no entanto, o fato de serem "sobras", "restos",
"sobejos" (MIRADOR,1980), onde se reconhecem profundas e talvez irremediáveis perdas
11
“Indianidade” aqui designa uma determinada forma de ser e de conceber-se “índio”, no sentido genérico do
termo, construída na interação com o órgão tutelar. Associado a uma determinada imagem do que deve vir a
ser “índio”, a “indianidade” é criada basicamente na instituição de aparelhos burocráticos de origem estatal
que criam procedimentos estandartizados para lidar com a diversidade e que acabam por impor a ela o
modelo, tornando-a sob certos aspectos homogênea. É claro que esse movimento entre homogeneidade e
heterogeneidade não é linear e mesmo no interior da padronização existe o movimento no sentido da
diferenciação, de que falaremos ainda neste capítulo. No entanto o conceito de indianidade é de importância
central à análise da relação entre grupos indígenas e aparelho indigenista por dar a reconhecer uma forma
específica e de valor generalizante para essa interação (Cf. OLIVEIRA Fº,1988).
12
Neste caso o vocabulário sociológico e antropológico também aproxima-se do uso vulgar da categoria
(FREEDMAN,1986)
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 43
culturais, não negaria aos remanescentes indígenas seu direito ao status de índios. Assim,
remanescente tornou-se uma categoria fundamental na viabilização de um discurso sobre
os grupos e dos próprios grupos indígenas do Nordeste, fugindo à discussão sobre o ser ou
não ser através de um acordo tácito entre ser e não parecer: presta obediência ao índio
etnológico, pede passagem para o índio histórico e adentra o índio jurídico.
A qualidade de histórico é, assim, uma característica importante do uso da
categoria, que remete sempre ao par memória-direitos, em alternativa e, por vezes,
oposição ao par cultura-proteção. Em se tratando de remanescentes, o que está em jogo é a
manutenção de um teritório como reconhecimento do processo histórico de expoliação,
como já fizemos referência. Deles, em termos culturais, pode-se querer apenas alcançar sua
"última dimensão indígena" (SILVA,s/d), como fragmentos de vocabulário, ritos
sincréticos, vestígios de organizações sociais duais... Por outro lado, são riquíssimos com
relação à memória, compensando em relatos e documentação cartorial as "lacunas" que
deixam aos pesquisadores em termos de "traços" etnologicamente interessantes.
3
Se a construção da categoria de “remanescentes” constitui um contexto semântico
favorável à enunciação da existência daqueles grupos, é preciso apontar agora para o
contexto político que favoreceu a sua visibilização. Como temos tentado apontar, o
indigenismo oficial faz parte de um quadro mais amplo de estratégias de gestão territorial e
controle de população. Ainda que seja uma forma de intervenção dirigida sobre um tipo
específico de população, tal intervenção acompanha as alterações de percurso dos objetivos
estatais, mais ou menos externos a ela. Tais mudanças de contexto interferem diretamente
sobre a atuação do órgão e podem ser seguidas através das sucessivas mudanças de posição
na burocracia estatal. O SPI já havia ocupado lugar nos quadros do Ministério da
Agricultura, desde sua fundação em 1910 até 1930, mas nesse ano seria transferido para o
Ministério do Trabalho Indústria e Comércio -MTIC. Essa transferência seria acompanhada
de uma drástica redução do investimento material no órgão indigenista, levando a que o
número de unidades de ação junto aos povos indígenas sofresse uma brusca queda: de 67
em 1930 para 15 ou 19 em 1933 (LIMA,1992: quadro no 8). O órgão permaneceria neste
ministério por quatro anos, ao longo dos quais a sua diretoria insistiria na inadequação
deste vínculo administrativo, pleiteando não a volta ao MAIC, mas a subordinação ao
Ministério da Guerra, onde poderia exercer plenamente a função de intervenção sobre o
espaço, privilegiada naquele momento, na qual o controle das populações era visto mais
como um meio que como um fim. A relativa recuperação de prestígio, com a mudança para
o Ministério de Guerra em 1934, quando os militares eram projetados no centro do poder
decisório, significava também a maior ênfase na concepção do índio como "guarda de
fronteira", já que o primeiro momento dessa transferência significou a alocação do órgão na
então Inspetoria de Fronteiras. Neste momento, o controle e nacionalização das populações
indígenas significavam sobretudo o controle e a nacionalização das fronteiras através do
plano de colonização militar da região fronteiriça. (idem). No entanto, trata-se ainda de um
período de escassez de recursos, que parece funcionar principalmente como um período
preparatório para a grande expansão do seu espaço de atuação que ocorreria na década de
1940, "momento chave" na delimitação de um perfíl ideológico e operacional para o órgão,
com a sedimentação de normas, métodos, objetivos. A volta ao MAIC, em 1939,
representou então a conversão de ênfase da atuação do órgão sobre o problema fundiário
em geral, não restringindo-se apenas à preocupação com as fronteiras. A nacionalização
agora não concebia as populações indígenas como guardas de fronteiras, mas
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 44
principalmente como produtores, trabalhadores nacionais, conferindo um maior destaque
ao desenvolvimento do patrimônio indígena e à emancipação econômica das tribos (idem).
Se as palestras de Carlos Estevão não fazem qualquer menção a alterações no
contexto político na tentativa de resguardar seu caráter científico, o fato de serem
realizadas em 1937, nas dependências de uma instituição subordinada ao MAIC, dá a elas
um caráter bastante claro. O golpe de 1937 daria início a uma série de reformas
administrativas consolidadas até 1941, trazendo as condições de possibilidade de ação mais
enfática na direção da “integração nacional”. Ainda ecoava o perigo comunista que havia
circulado por todo o sertão interior, até a Bahia e Pernambuco, com a Coluna Prestes. Os
estados sofreriam intervenções e teriam início realizações econômicas de grande escala e
com caráter de intervenção territorial, que, no Nordeste, se traduziriam na construção da
usina hidrelétrica de Paulo Afonso e na drenagem do São Francisco. O Estado passaria a
intervir no sentido de estimular a diversificação agrícola com a criação de autarquias
especiais e finalmente, a política oficial de colonização é regulamentada, dispondo sobre a
criação de "colônias agrícolas nacionais" e "núcleos coloniais agro-industriais", a cargo do
MAIC. Tornar o índio, em lugar de "guarda", "agricultor", significava torná-lo
semanticamente mais adequado ao contexto retórico da "marcha para o oeste".
Nesse período, a ação protecionista ganha grande relevo na imprensa, sobretudo a
partir de 1943, com a organização da Expedição Roncador-Xingu, sendo no mesmo ano
criada a Fundação Brasil Central, que atuaria junto ao órgão indigenista em várias situações
realizando a colonização de vastas porções do interior centro-oeste do país (MT, GO, PA,
MA e parte de MG), o que restituía ao SPI sua parte "LTN". Surge, então, um novo padrão
de ação do órgão em que a idéia de reserva é pela primeira vez posta em prática com a
criação do Parque indígena do Xingu. Tudo isso, no entanto, não se opõe à idéia de
transformação do índio em agricultor, mas é a sua contrapartida lógica. Se no Parque do
Xingu entram em cena novas diretrizes, propostas pelo recém criado Conselho Nacional
Indigenista, que agrega antropólogos e defende o direito à manutenção das diferenças
culturais, nas regiões em que o "processo de assimilação" já havia sido iniciado, onde a
primitividade já havia sido maculada, tornava-se necessário não o isolamento, mas a
aceleração do processo de integração, dirigido primordialmente para as regiões de
colonização mais antiga, onde a fronteira agrícola já estava se fechando.
Surge um novo interesse sobre regiões em que a ação do Serviço fosse autosustentável, além de poder servir como fonte de renda para a manutenção dos que não
tivessem sua própria produção. No caso dos postos indígenas do Nordeste essa estratégia
fundiária sofreu uma adaptação, já que em lugar de primeiro demarcar as terras para depois
introduzir nelas colonos não-indígenas, o SPI encontra a maioria das terras a serem
demarcadas já ocupadas por posseiros, por projetos econômicos do próprio Estado ou por
cidades inteiras. A intervenção do Serviço nestes casos passa a assumir um caráter de
mediação dos conflitos provocados por essas sobreposições. Neste sentido, reforça-se a
estratégia de manter ou trazer para dentro das áreas indígenas colonos nacionais como
forma de acelerar pedagogicamente o processo, ao mesmo tempo em que tais áreas eram
vistas como podendo fornecer as rendas de que o Serviço necessitava e não dispunha. O
SPI passa a atuar na tentativa de transformar as posses não-indígenas em arrendamentos, ou
em tomar para si a intermediação dos arrendamentos que por ventura já existissem nas
terras dos antigos aldeamentos, de forma que, no momento mesmo da instalação dos postos
indígenas, eles já se constituíssem fontes de recursos.
Esse padrão de ação se reflete nos boletins do SPI a partir de 1940, quando a
valorização da idéia de "gestão do patrimônio indígena" e "emancipação dos postos
indígenas" permitiria que o SPI restringisse seus gastos e pudesse movimentar a renda
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 45
produzida entre os próprios postos indígenas, cobrindo as lacunas de uns com os
excedentes de outros. Os postos assumem um perfil bastante próximo ao dos citados
núcleos agrícolas ou agro-industriais que começavam a ser implantados pelo MAIC, a que
o SPI estava subordinado. Semelhanças de objetivos e métodos tão claras que, em alguns
casos, gerava duplicidades e concorrência entre eles, como é revelado numa carta de
janeiro de 1949. O encarregado do posto indígena Pankararu dirige-se ao chefe da sua
Inspetoria Regional, reclamando maiores incentivos para a produção de seu posto, tanto
para evitar a continuidade das críticas ao Serviço, quanto para melhorar sua performance
com relação a outras duas "repartições federais...de grande projeção - o Posto de Icó e o
Núcleo Colonial Agro-industrial do São Francisco” (DOC.:9). Tal incentivo à produção do
seu posto faria justiça ao caráter ordeiro dos seus índios e contribuiria “para que, assim, o
SPI nesta região não continue em plano muito inferior às citadas repartições, evitando-se
deste modo também, que as autoridades que as visitam e a este Posto, lancem ao nosso
Serviço, o seu ódio e sua crítica nada lisongeira..." (idem). Investir na atuação junto a
grupos mais próximos ao extremo final da linha que os leva de selvagens a trabalhadores
nacionais, passa a ter uma motivação um pouco mais que humanitária e protecionista.
A produção das emergências
1
O primeiro processo de reconhecimento de um grupo indígena no Nordeste é
parcialmente descrito num texto de 1931, de autoria do "capelão militar das tropas
revolucionárias do Norte", pe.. Alfredo Pinto Dâmaso. Neste texto, o autor faz uma defesa
do SPI contra as duras críticas feitas pelo jornal A Noite, do Rio, que o acusava de ser um
serviço de catequese leiga que punha Comte no lugar de Cristo, que desperdiçava grande
quantidade de dinheiro público inutilmente e que só fazia explorar os silvícolas. No artigo,
pe.. Dâmaso dá um depoimento pessoal sobre a utilidade, lisura e humanitarismo do SPI.
Conta que no ano de 1921 ele partiu da cidade de Águas Belas, no sertão pernambucano,
em direção à capital Federal para procurar auxílio junto ao SPI, como "porta-vóz das
queixas e dos gemidos de 500 infelizes patrícios - Os índios Carijós - victimas indefesas de
todas as vilanias da prepotência sertaneja..." (DÂMASO,1931)13. Chegando ao Rio de
Janeiro, procurou imediatamente o escritório do SPI e lá foi recebido pela diretoria e pelos
funcionários "como velho amigo, ou antes como um irmão entre irmãos, separados muito
embora, pela diversidade de credos, mas vinculados pelo mesmo pensamento, pelo mesmo
ideal - A salvação do índio" (idem). Como resultado desse contato e como prova da
falsidade da oposição entre "catequese religiosa" e "catequese militar", teria sido fundado
em 192414, sobre as terras do extinto aldeamento do Ipanema, o Posto Indígena Dantas
Barreto que, "Hoje em dia,... vae sendo um verdadeiro patronato agrícola, dentro de seus
minguados recursos" (idem. Grifos meus.).
13
Os Carijó de que fala o autor são hoje conhecidos como Fulni-ô, grupo de 2.790 pessoas que ocupa uma
área de aproximadamente 11.500 ha, incluindo a cidade de Águas Belas. Em documentos mais antigos o
grupo dessa região, da Serra do Comunati, próxima ao rio Panema (depois Ipanema), é designado como
Carnijó e aparece ocupando o aldeamento de Ipanema, fundado sobre terras doadas pelo governo imperial em
1705, extinto legalmente em 1861 e efetivamente repartido em lotes no ano de 1877 (PETI,1993).
14
Aqui existe uma discordância entre as datas apresentadas pela documentação do SPI, utilizada no Atlas das
Terras Indígenas do Nordeste (PETI,1993) e as informações do texto do Pe. Alfredo Dâmaso. No Atlas
informa-se que o primeiro contato com o SPI teria sido feito em 1925 e o posto indígena instalado em 1928.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 46
Em consequência da intervenção do SPI é desencadeada uma disputa judicial entre
o MAIC (representado pelo inspetor do SPI, Antônio Estigarriba) e o estado de
Pernambuco, na qual o governador pernambucano se apresenta como "árbitro". Nessa
disputa é reconhecido o direito indígena sobre aquelas terras e a cidade passa a pagar
arrendamento ao tutor dos "descendentes de Carnijós", o SPI, até que eles se emancipassem
(PETI,1993).
Junto à sumária descrição de como teria sido instalado o primeiro posto indígena no
Nordeste, pe. Dâmaso insiste na importância do Serviço e de sua atuação na região com
uma argumentação que oscila entre o humanitarismo e o pragmatismo político e
econômico. Em resposta à acusação de que com o órgão o país teria gasto 50 mil contos de
réis nos últimos 21 anos inutilmente, ele faz as contas e chega à conclusão de que aquele
orçamento representava apenas 132 réis de diária para cada índio assistido pelo órgão,
enquanto na cadeia de Campos Sales, ele compara, cada preso recebia 1$000 réis. E, para
finalmente encaminhar o leitor na direção de seu raciocínio, ele pergunta: "Quantas
centenas de milhar de contos teria gasto o governo para dar caça, inutilmente, aos heróicos
e invencidos legionários de Luiz Carlos Prestes?... E com a imigração estrangeira?"
(DÂMASO,1931). A proteção do indígena nordestino, além de ser um ato humanitário, de
prestação de contas pela violência colonial, também respeitaria a uma racionalidade
política, ao tutelar uma população rural pobre assediada pela ebolição política da época e a
uma racionalidade econômica que, diferente da que guiava a elite cafeeira, percebia nesta
população marginalizada, os "braços" de que tanto se sentia falta15. Citando o discurso de
um deputado estadual de 1915, Pe. Dâmaso lembra que apenas no período entre 1910 e
1914 teriam sido gastos 30.354 contos com o serviço de imigração estrangeira, sem que se
tivesse a certeza que o imigrante europeu se adaptaria e se fixaria ao solo nacional, já que
muitos realizavam uma segunda migração para países vizinhos. Por outro lado, poderia-se
gastar infinitamente menos com o "silvícola que do país não sae, que não emigra e que é
perfeitamente utilizável como elemento de trabalho e de riqueza econômica..." (apud
idem).
O que não aparece no relato do pe. Dâmaso, mas será igualmente importante para
entendermos a lógica de entrada do SPI no Nordeste, é o fato de, neste primeiro momento,
os Fulni-ô estarem concorrendo com os Potiguara de Baia da Traição (PB) pelo privilégio
de ter a proteção direta do órgão indigenista. Em 1922 o SPI enviaria um "ajudante adido"
àquelas duas comunidades a fim de "verificar a situação dos índios" e escolher o local mais
adequado para a instalação do seu primeiro posto indígena acima do sul da Bahia
(PERES,1992). Nos dois lugares, o representante do SPI foi extremamente bem recebido,
em Águas Belas (PE) pelo pe. Alfredo Dâmaso, que se apresentava então como "porta voz
dos Carnijós"; em João Pessoa (PB) pelo superintendente da Fábrica de Tecidos Rio Tinto,
instalada desde o início do século dentro dos limites do extinto aldeamento de Monte-Mor,
em que tinham sido aldeados os Potiguara e cujas terras, de onde a fábrica de tecidos
retirava madeira, eles reivindicavam (idem), isto é, pelos porta-vozes dos interesses
contrários `a reterritorialização potiguara.
O resutado dessas mediações tão discrepantes foi um relatório (1922) em que, ao
contrário dos Fulni-ô, os Potiguara eram apresentados como "indolentes", estando as
benfeitorias construídas em suas terras em estado decadente, as terras subaproveitadas e os
seus milhares de coqueiros sendo progressivamente vendidos para particulares, cujo
espírito empreendedor lhes servia de contraste. Tais "pretensos índios", na verdade não
apresentariam "nenhum traço de identidade" com os antigos Potiguara de que pretendiam
15
, Repetindo em 1931 o diagnóstico do autor do relatório sobre os aldeamentos de 1878.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 47
ser "descendentes" e, não encontrando neles qualquer "dos sinais externos geralmente
admitidos pela ciência etnográfica", quer fossem os traços fisionômicos, "a índole", os
costumes ou o "idioma", o autor do relatório declara-os "mestiços" (em "promiscuidade
com os civilizados"), que mereceriam por parte do Estado não a proteção "que deve
amparar o autoctone legítimo ou seus descendentes diretos", mas a assistência dispensada
aos "trabalhadores nacionais" (apud PERES,1992).
No outro extremo do relatório, dos Fulni-ô era destacado que, "apesar de alguma
miscigenação racial", tais índios "conservavam a língua e os costumes de seus
antepassados", assim como sua "coesão social", apesar de despossuídos de suas antigas
terras "por políticos locais". Além disso, apesar das duas áreas apresentarem posseiros
sobre as terras reivindicadas, no caso dos Potiguara, as indenizações teriam que ser muito
altas, enquanto no caso dos Fulni-ô os ocupantes já haviam manisfestado a disposição de
"pagar foros a um recebedor legal e idôneo" (idem).
Temos portanto reunidos, através dos argumentos do pe. Dâmaso em favor da
proteção dos remanescentes de Pernambuco, e através desse breve relato sobre os
elementos que estavam em jogo no momento de definição sobre o local mais apropriado
para a instalação de um posto indígena, alguns dos elementos básicos e mais fundamentais
que caracterizaram a atuação do órgão na região: a esfera de alcance de certos mediadores,
a viabilidade econômica do empreendimento e a presença de determinados traços e
evidências de uma remanescência e não apenas de uma descendência indígena que, como
veremos, corresponderam a um repertório mais preciso e objetivo que a vaga referência à
"ciência etongráfica". Da mesma forma, o fato do grupo escolhido ter sido o Fulni-ô e não
os Potiguara, nesse primeiro momento, será fundamental na orientação das ações
posteriores do órgão e no circuito que ele percorrerá.
2
Os Fulni-ô até hoje são considerados os que guardam os sinais diacríticos mais
evidentes com relação aos regionais. Como relacionava Max Boudin em 1949, as
diferenças que separavam os Fulni-ô dos sertanejos locais, com quem partilhavam a maior
parte das características culturais e econômicas, eram: A) falarem sempre, salvo raras
exceções, o ia-tê nas suas relações privadas; B) partilharem de características antropofísicas
como o cabelo grosso, preto e liso, parca pilosidade corporal, olhos oblíquos, maçãs
bastante acentuadas, estatura pequena, "cútis bronzeada ou côr grão de trigo" e C)
praticarem uma religião secreta, "diferença que acusa a singularidade da tribo, como
pertencendo a um mundo cultural completamente estranho ao nosso" (BOUDIN,1949).
Tudo isso permitiu que o SPI na década de 1920 os reconhecesse como último
grupo a resistir ao assédio civilizatório na região, o que chama a atenção de etnólogos
contemporâneos como Carlos Estevão de Oliveira, à época, diretor do Museu Goeldi. Em
1931 ele já publicava um artigo sobre o grupo, centrando sua atenção nas suas possíveis
afiliações lingüísticas, mas também fazendo referência ao patrimônio que lhes restou na
forma de uma organização social orientada por crenças religiosas:
Filhos do sol e da lua, os Fulini-ô são divididos em duas bandas
exogâmicas, estas abrangendo cinco clãs totêmicos. Que eu saiba, de
todos os povos indígenas do Brasil, estudados conscienciosamente, não
existe um, talvez, no qual o totemismo seja melhor caracterizado. As
crenças dos Fulni-ô pertencem ao mesmo círculo que as das populações
de Brejo dos Padres, de Palmeiro, e muito provavelmente tembém de
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 48
Palmeira dos Índios. Isto, de tôda evidência, não significa que todas
sejam inteirmamente idênticas. (OLIVEIRA,1931. Grifos meus)
Assim, além de apresentarem requisitos básicos para o reconhecimento de sua
identidade indígena pelo SPI, os Fulni-ô, através do texto de Carlos Estevão, ganham status
de raridade etnológica, através da investigação de um profissional de prestígio acadêmico.
Ao mesmo tempo, como num jogo de espelhos, através dos Fulni-ô, grupo já legitimado
por uma agência de estado especializada, esse antropólogo pode lançar as bases que mais
tarde, por um largo mimetismo, darão legitimidade ao surgimento de novos grupos, que,
apesar de não partilharem mais daqueles "traços de identidade", daqueles "sinais externos",
ganharam um mesmo círculo legitimador. Por isso é interessante a omissão em seus textos
sobre as datas precisas das visitas a cada uma dessas comunidades. Nesse texto de 1931 diz
que, apesar de sempre ter tido interesse no grupo, só naqueles últimos anos os teria
visitado, em companhia do Deputado Mário Mello e do inspetor do SPI, Antônio
Estigarriba, em consequência do reconhecimento oficial, mas não cita quando teriam
ocorrido as visitas ao Brejo dos Padres e às outras duas localidades. Da mesma forma, na
palestra de 1937 (OLIVEIRA,1943), deixa sugerido que já teria visitado o Brejo
anteriormente, mas mantém o silêncio para não desfazer justamente o efeito de descoberta
com o qual o seu texto contava.
O que é importante retermos, por enquanto, é o fato da experiência Fulni-ô não ter
chamado a atenção apenas de um restrito círculo de acadêmicos, mas também e
fundamentalmente, de uma série de comunidades que mantinham com esta laços rituais. A
experiência Fulni-ô realiza uma possibilidade até então desconhecida por outras
comunidades do Nordeste, servindo como ponto inicial a partir do qual se estendem os fios
com os quais será tecida a rede das emergências. Assim, a partir da mediação direta dos
Fulni-ô e do pe.. Dâmaso, num primeiro momento são reconhecidos outros quatro grupos:
os Pankararu, os Xukurú-Kariri, os Kambiwá e os Kariri-Xocó.
Os Pankararu, desde o início da década de 30, haviam estabelecido contatos
frequentes com o pe. Dâmaso, que inicialmente os havia recomendado a autoridades
locais16 e, mais tarde, passaria a apoiá-los em reivindicações fundiárias. Depois de
tomarem conhecimento, no entanto, da existência de um serviço do Estado que oferecia
proteção aos "remanescentes indígenas" e que estava entrando em conflito com
proprietários e autoridades locais em função da demarcação de terras indígenas, suas
lideranças intensificam as viagens para Águas Belas, dando-lhe um caráter reivindicatório.
Através da mediação do pe. Dâmaso, Carlos Estevão faz suas primeiras viagens ao Brejo
dos Padres em 1935 e 1937, enquanto inicia contatos diretos com o SPI e difunde no meio
acadêmico a aceitação da existência de "remanescentes indígenas" em diversos estados do
Nordeste que mereceriam atenção.
Já no ano de 1937, o Ministério da Guerra, a que o SPI estava subordinado, por
força das injunções de Carlos Estevão, envia ao local, para uma primeira avaliação, o
funcionário Cildo Meirelles, mas confirmando a desimportância da região no quadro
programático do órgão naquele momento e na sua própria definição de índio, arquivam-se
os trabalhos deste funcionário que serão retomados apenas três anos mais tarde, quando o
16
"Locais" aqui não deve se prender à moldura político administrativa. Nessas primeiras décadas a principal
cidade das redondezas, onde os pankararu frequentavam a feira semanal, ficava não só em outro município
como em outro estado: era Paulo Afonso, na Bahia, que lhes servia como referência econômica e política.
Isso é comum por muitas regiões do sertão, mas o que existia de particular nessa relação era a presença de um
destacamento militar reginal nessa cidade, que representando a autoridade federal na área, frequentemente
intervinha em questões mais gravas relacionadas aos Pankararu.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 49
órgão já teria sido transferido para o MAIC (DOC.:10). Assim, apenas em 1940 Carlos
Estevão poderia voltar à aldeia com a notícia da decisão do SPI de demarcar suas terras e
estabelecer ali um posto indígena17.
Através da mesma mediação e à mesma época, Carlos Estevão entra em contato
com os Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios (AL) e, junto ao deputado Medeiros Neto, dá
início ao seu processo de reconhecimento pelo SPI. O grupo no entanto, teria que esperar
até o ano de 1952 para que o Serviço adquirisse uma fazenda, instalasse um posto indígena
e depois passasse a reunir e a receber ali famílias indígenas oriundas de diferentes
localidades próximas. Constituídos como unidade territorial e sujeito político no final da
década de 1970, os Xukuru-Kariri intensificam sua mobilização e conseguem ampliar suas
terras (PETI,1993).
Os Kambiwá, localizados na Serra Negra (PE), local de refúgio de um grande
número de grupos fugidos das "guerras justas" e dos aldeamentos, também iniciam seu
processo de reconhecimento oficial ao final da década de 1930. Provavelmente por
intermédio dos Pankararu, com quem mantinham contatos regulares, os Kambiwá
conseguem auxílio do pe.. Dâmaso (que neste momento mantinha correspondência regular
com Getúlio Vargas) e sua autorização para voltarem a ocupar a Serra Negra
(BARBOSA,1993). Efetivamente, diversas famílias descendentes de antigos moradores da
serra se organizam para voltar a ocupá-la mas o seu principal líder é capturado, torturado e
morto por fazendeiros locais. As famílias reunidas deslocam-se para uma região próxima,
onde permanecem até 1954, quando conseguem estabelecer novos contatos com o ministro
da Agricultura, que finalmente demarca suas terras.
Um pouco depois desses primeiros contatos, em 1944, mas também por intermédio
do pe. Alfredo Dâmaso, o SPI estabelece um posto indígena em Porto Real do Colégio
(Al). O grupo de remanescentes Cariris reivindicava as terras de um aldeamento jesuítico
do séc. XVIII, extinto em 1759. Segundo a memória tribal, o imperador, numa viagem à
Cachoeira de Paulo Afonso, teria visitado a cidade de Porto Real de Colégio e lá, ao tomar
conhecimento das queixas dos caboclos, teria autorizado a concessão de novas terras para o
grupo (PETI,1993). Nesse momento, os Xocó, com quem mantinham relações e que
passavam por um período de violenta expropriação numa região mais acima do São
Francisco, intensificam sua migração para junto dos antigos Cariri, dando origem a uma
etnia que, em 1944, quando o SPI estabelece um posto indígena a 300 metros da sede da
prefeitura municipal de Porto Real de Colégio, se auto-denominaria Kariri-Xocó. A
demarcação das terras do grupo, no entanto, só viria a ocorrer em 1949.
3
Assim, a ação indigenista aplicada a uma situação a princípio excepcional, como a
dos Fulni-ô, dá partida a uma série de reivindicações de comunidades descendentes de
antigos aldeamentos indígenas, entre os anos de 1935 e 1944. A princípio os Fulni-ô e seu
"porta-voz", pe. Dâmaso, auxiliados por Carlos Estevão, servem de mediadores entre os
grupos emergentes e o SPI, mas a seguir, os próprios grupos recém reconhecidos passam a
atuar como mediadores entre o órgão e os futuros grupos, em novas emergências.
É isso que acontece no caso dos Xocó. Mesmo depois de terem migrado em grande
parte para as aldeias dos Kariri no final do séc. XIX, eles mantiveram relações com o
pequeno grupo que permaneceu no local e nunca deixaram de apoiá-los nas reivindicações
17
A memória do grupo tem registrado com clareza essa visita, quando, segundo contam, "o prof. Carlos" teria
chegado fazendo festa e abraçando a todos em grande alegria, comunicando que seus problemas estavam
resolvidos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 50
que fazia às autoridades pela retomada das antigas terras do grupo, às margens do São
Francisco, no atual município de Porto da Folha (SE). Tais reivindicações, feitas desde o
final do século junto às autoridades locais, às autoridades da capital do estado e até mesmo
através de viagens ao Rio de Janeiro, depois do reconhecimento dos Kariri-Xocó e da
instalação de um posto do SPI entre eles, passam a ser dirigidas ao próprio órgão
indigenista.
Ampliando essa rede de mediações, existem indícios de que os Pankararu foram os
mediadores na emergência Tuxá, segundo o que se lê numa carta do funcionário do SPI,
chefe do Posto Indígena (PI) Pankararu, datada de 1942 e endereçada ao cap. João Gomes
Apaco, líder indígena dos "índios rodelas" através dos pankararu. O grupo teria entregue
àquele funcionário um abaixo-assinado pedindo sua intermediação para que o SPI
interviesse na luta que há anos vinham travando pela restituição de suas terras. Na resposta,
o chefe de posto comunica que Rondon já havia sido informado de sua situação e, em
função disso, teria entrado em contato pessoal com o interventor Agamenon Magalhães no
sentido de pedir a liberação das ilhas do São Francisco, conseguindo uma resposta positiva
(DOC.:11). Como resultado dessas mediações, que podemos começar a identificar como
verticais (rodelas/lideranças > Pankararu/chefe de posto > SPI/Rondon >
interventor/estado), e das subsequentes viagens deflagradas por elas, os "rodelas"
obtiveram o seu reconhecimento como indígenas - sob o etnônimo de Tuxá - a criação de
um PI e a reconquista de uma de suas antigas ilhas no São Francisco.
Mais tarde os próprios Tuxá seriam a ponte entre outros grupos e o órgão
indigenista, como no caso dos Trucá, localizados na Ilha da Assunção, município de
Pesqueira (BA), 60 km acima dos Tuxá na margem oposta do São Francisco. As terras do
antigo aldeamento da Ilha de Assunção, reivindicadas pelo grupo, teriam sido expropriadas
ao longo do séc. XIX, até o aldeamento ser dado como extinto na década de 1870, apesar
do grupo continuar ocupando parte das terras da ilha. Na década de 1920, no entanto, o
bispo de Pesqueira toma posse do que restava dessas terras sob a alegação de que elas
teriam sido doadas pelo próprio grupo para Nossa Senhora, devendo por isso estar sob sua
administração, como representante da Igreja, reeditando uma das mecânicas da
expropriação que encontramos descrita no relatório da Diretoria de Índios de 1857. Na
década de 1940 essa comunidade é alertada pelos Tuxá da possibilidade de, sendo
reconhecidos como indígenas, terem de volta as terras do antigo aldeamento. Tem início aí
então um processo de retomada das terras do aldeamento pelos então auto-denominados
Trucá, que se arrasta até os anos de 1990 (BATISTA,1992).
A emergência Atikum, grupo étnico que hoje conta com cerca de 3600 pessoas,
localizado na Serra do Umã, município de Floresta (PE) em terras cuja extensão ultrapassa
os 15000ha, tem lugar também na década de 1940 em consequência de seu contato com os
Tuxá. Segundo relatos do grupo (GRUNEWALD,1993), foi numa das feiras da antiga
Rodelas (hoje inundada pela barragem de Itaparica) que um morador da Serra do Umã,
reclamando dos problemas da sua região, aliás comuns a muitas daquelas localidades,
como a invasão de roças pelo gado de fazendeiros vizinhos e a cobrança de “altos
impostos” pela prefeitura, ficou sabendo através de um tuxá que, como "remanescentes de
índios" poderiam alcançar o apoio do SPI e a demarcação de uma reserva, como os
próprios Tuxá já reivindicavam. O movimento no entanto parece ser deflagrado quando,
segundo depoimento transcrito, "... um caboclo da Serra Negra [...] disse: "Primo, aqui não
é conhecido que é índio? Então procure os direitos que o governo tá dando..." (apud
GRUNEWALD,1993). Depois disso foi formado um pequeno grupo que se dirigiu ao
Brejo dos Padres, para se informarem junto aos Pankararu, com os quais também
mantinham laços rituais ( o significado da expressão ficará mais claro a seguir), da forma
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 51
de entrar em contato com o SPI para irem "em busca dos direitos que foi dado" (idem).
Esta situação de emergência deixa entrever a malha que começa a se estender entre os
grupos já identificados e aqueles que estão por emergir, desenhando uma série de relações
agora num sentido horizontal: Rodelas (Tuxá) - Serra do Umã (Atikum) - Serra Negra
(Kambiwá) - Brejo dos Padres (Pankararu), que finalmente dá acesso à rede vertical: chefe
de posto (Brejo dos Padres) > chefe de inspetoria (Recife) > diretoria (Rio de Janeiro).
A última situação a que podemos ligar diretamente essa trama inicial das
emergências é a dos Pankararé, localizados no Brejo do Burgo, que fica no Raso da
Catarina, município de Glória (BA), com uma população hoje em torno de 800 pessoas. Os
Pankararé estariam ligados aos Pankararu por laços de parentesco que remetem ao
desmembramento de um mesmo grupo anterior num passado imemorial e foi através deles
que na década de sessenta retomariam suas tradições religiosas em plena mobilização pelo
reconhecimento de sua remanescência indígena. A memória da comunidade registra atos de
expropriação das suas terras desde o início do século, intensificados na década de 1920
com a forte presença do cangaço e das volantes e depois, entre as décadas de 1930 e 1950,
quando a comunidade passou a ter suas terras invadidas sistematicamente por uma família
de proprietários que então ocupavam o governo municipal. Suas festividades passam então
a ser reprimidas e suas roças invadidas, não mais apenas pelo gado dos fazendeiros, mas
por pistoleiros, que as destruíam como forma de intimidação. O impacto da construção da
UHE de Paulo Afonso, em fins da década de 1950, gerando grande afluxo de pessoas e a
dinamização econômica da região e consequente valorização das terras, marca o período de
enfrentamento mais sistemático e dirigido especificamente às suas posses, inclusive com o
assédio das autoridades locais nas figuras do prefeito e do delegado, grandes proprietários.
Na década de 1960, depois de tomarem conhecimento da expulsão de várias
famílias de posseiros da terras dos Pankararu, os Pankararé vão até eles em busca de apoio.
Através dessa mediação, eles entram finalmente em contato com a FUNAI e iniciam um
trabalho de retomada de "antigas práticas rituais, ao mesmo tempo que se esboça uma nova
organização política" (MAIA,1994). Só depois desses contatos o conflito local parece
assumir contornos mais claramente étnicos e as reivindicações do grupo passam de
demandas imadiatas pelas posses invadidas a demandas pelo seu reconhecimento como
indígenas.
Em resposta, os fazendeiros locais aumentam a pressão sobre suas terras e com
jagunços e com a própria força policial local passam a reprimir mais sistematicamente a
realização do Toré. Essa disputa se cristaliza num enfrentamento pontual, entre um
posseiro da comunidade e o prefeito de Glória, no qual a FUNAI intervém favoravelmente
à comunidade. Depois disso, parte da comunidade18 decide avançar definitivamnte no
processo de emergência e buscam o apoio dos Pankararu.
18
Essa descrição esquemática não permite fazer referência à complexidade dessa mobilização, que produziu
um fortíssimo faccionalismo interno, onde parte da comunidade aceita o novo formato político e outra parte
não, optando pela via da mobilização sindical. Esse faccionalismo é forte o bastante para separar famílias,
onde irmãos, pais e filhos, optam por identidades distintas. Como veremos no segundo seguimento desta
dissertação, índio e trabalhador rural podem não ser identidades compatíveis, simplesmente sobrepostas ou
complementares. Elas implicam em opções identitárias de grande investimento pessoal e coletivo. O texto de
Maia (1993) faz longa referência a este conflito, mas não o percebe exatamente desta forma, remetendo-o à
uma diferença entre ênfases dicursivas classista ou étnica. Nesta interpretação cabe aos sindicalistas o
demérito de não compreenderem a importância do discurso étnico. No caso de Soares , essa incompreensão é
tamanha que merece ser citada: "Alguns índios negam a sua identidade étnica verdadeira, apesar de serem
apontados por outros como pertencentes ao grupo Pankararé e seus parentes. Chegam a negar que alguém
seja índio no local e a dizer que 'isto é uma invenção'. " (SOARES,1977. Grifos nossos). Como veremos
(Cap.4), “índio” e “trabalhador rural” são, nesses casos, invenções contrastivas.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 52
Temos portanto um primeiro desenho da rede de relações que, do ponto de vista dos
grupos envolvidos, possibilitou sua passagem do estado genérico e pejorativo de caboclos,
para o estado também genérico mas juridicamente diferenciado de índios, na luta pela
reconquista da terra de morada e de trabalho. Um elemento fundamental desse quadro, no
entanto, ainda deve ser devidamente explorado:o trânsito de indivíduos e informações entre
as comunidades citadas, a partir do qual monta-se a rede de emergências, tem raízes e
repercussões que vão muito além de um ato técnico de transmissão de uma mensagem, eles
desenham um "fato social" fundamental na vida desses grupos e na sua organização
política, o fato das viagens.
A instituição das viagens
1
A trama dessas emergências sugere, e os depoimentos confirmam, que parte do
percurso seguido pelo órgão indigenista no seu reconhecimento de grupos indígenas pelo
Nordeste respeitou caminhos pré-definidos por fluxos tradicionais.
[P: Na época do seu avô já viajavam de uma tribo pra outra?] Já.
Ajudando um ao outro. Pegavam aqueles barco, tinham aqueles brancos
que tinham os barcos e tinham vezes que tinham contato com aqueles
índios e eles vinham pra essa Petrolândia velha. Atravessavam pra
Rodelas, pros Tuxá e iam fazê aquelas festas. Quando não, pegavam o
barco aqui em Petrolândia e subiam e levavam pra fazê aquelas festas.
Aí foi quando o negócio da CHESF acabou... (Antônio Moreno)19
Existia um circuito de trocas rituais entre comunidades hoje reconhecidas como
indígenas que poderíamos descrever segundo dois modelos, que algumas vezes parecem ter
sido desdobramentos um do outro: são aquelas que temos chamado viagens rituais, isto é,
o trânsito temporário de pessoas e famílias entre as comunidades, marcado por eventos
religiosos, que podem corresponder ou não a um calendário anual, e as viagens de fuga,
verdadeiras transferências demográficas, mas muitas vezes reversíveis, através das quais
grupos de famílias transferiam seu local de morada por tempo indeterminado, como recurso
à perseguição, ao faccionalismo, às secas ou à escassez de terras de trabalho.
Para os Pankararu, a cidade de Rodelas, e "os rodelas", atuais Tuxá, eram uma
referência permanente de suas viagens, antes da construção das usinas hidroelétricas que
bloquearam o canal desse fluxo de pessoas. Mantinham contatos também com outros
grupos, de outros pontos do São Francisco, como os Fulni-ô e os Geripancó, citados sobre
convites recíprocos para a realização de Toré, além dos Kambiwá, menos frequentemente.
Como fizemos referência, tanto pankararus quanto pankararés concordam perfeitamente
com a história que conta terem os dois grupos, num tempo imemorial, se originado de um
grupo anterior, que em sucessivos deslocamentos, teria se fragmentado quando da
passagem pela localidade de Brejo do Burgo. Em histórias cuja referência é o tempo de
vida, outros laços ainda são revelados.
19
Ao final, em anexo, apresentamos uma lista das entrevistas gravadas, com informações básicas sobre os
entrevistados.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 53
[...]Meu pai e minha mãe sairam daqui fugindo da seca e da revolta...,
sei lá não tinha o que comerem... Mas é a mesma coisa, corre pra
cima...Eu nasci no Pariconha, entre o Pariconha e o Brejo dos Padres,
quer dizer, eu sou mais pernambucano que alagoano. Foi aí perto de
Moxotó que eles atravessaram, depois de oito dias fomos pra lá,
chegando lá fui batizado, e já tinha lá índio daqui. Que os índios ia
trabalhá e ficava por ali, constituia família, é dessa família Cangula, do
João Tomás, tinha muitos deles lá. É onde deu origem à tribo dos
Geripancó, que todos aqules índios foi pra lá. A Funai comprou mais
terra e nós descemos de Palmeira a baixo e fomos ajudá a erguer a
aldeia dos Xucurus, isso foi na época de 1932 pra 33. Aí eu fiquei lá
menino, a minha meninice quase toda foi lá. Nós voltamos pra cá ná
época do Dr Carlos. Viemos só passear. Nós acompanhamos a
demarcação de lá. (João de Páscoa)
Num tempo mais largo que o das histórias de vida, a própria fundação do grupo
Geripancó está ligada a estas viagens de fuga, encontrando-se com a história Pankararu
justamente no momento maior da expropriação das terras do antigo aldeamento.
Isso aconteceu durante uma revolta muito violenta, que ocoreu em
Pankararu na época de um Cavalcanti. Os índios corriam à procura de
um lugar onde pudessem viver mais tranquilos. O índio José Carapina,
que veio de Pankararu, ao chegar no lugar, onde é hoje a aldeia
Geripancó, pediu o apoio a um proprietário...[...]... Depois que o Zé
Carapina já estava aqui, ainda na época da revolta em Pernambuco,
muitas pessoas vieram procurar os parentes aqui no Ouricuri, e Zé
Carapina deu apoio pra eles. Vieram primeiro o Manuel Carapina,
primo do meu avô, chefe de família, trazia até filho. Depois chegou João
Porsena, de Palmeira dos Índios e a esposa dele era de Pankararu, era
da família Jacinto... (Genésio Miranda da Silva, cacique Geripancó,
depoimento transcrito em BRITO,1993)
Assim, numa determinada dimensão, essas viagens ligam grupos, de origens
diferentes ou não, por laços de afinidade e parentesco que motivam e resultam delas, na
produção de uma comunidade ritual mais abrangente e em expansão, levando à
constituição de circuitos abertos de trocas, de homens, informação e cultura. Esses circuitos
desempenham o mesmo papel que Anderson (1989) atribuiu às peregrinações, que estão na
base das antigas "comunidades religiosas imaginadas", sob a experiência das quais "emerge
uma consciência de conexão" (ANDERSON,1989). Tais circuitos entre os índios do
Nordeste formaram uma comunidade ritual e de problemas comuns (o gado sobre as roças
surge em todos os relatos e a expropriação das terras de antigos aldeamentos em quase
todos) Se essa comunidade ritual assumia um caráter étnico, com certeza a afirmação de
uma remanescência indígena não era um valor associativo necessário à sua articulação e
funcionamento.
2
Independente das viagens de trocas rituais, existem notícias de viagens de
representantes dessas comunidades às capitais do estado e até mesmo ao Rio de Janeiro,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 54
em busca de apoio contra os sistemáticos atos de violência e expropriação territorial que
sofriam. O século XIX parece assistir à passagem dos pedidos de missionários em favor
dos índios, para pedidos dos índios em seu próprio nome, através de petições ao Imperador
ou de viagens que realizavam a fim de vê-lo pessoalmente para pedir-lhe sua "paternal
proteção". Dantas et alii (1992) sugerem que a viagem do Imperador à região em meados
do século teria produzido o efeito de dar realidade a uma figura um tanto mítica que lhes
era apresentada como um grande pai, ou mesmo como um padroeiro.
Como lembra Revel (1989), a itinerância do rei não é novidade, fazendo parte,
desde a Alta Idade Média, do repertório de recursos que o soberano tem para conhecer o
reino e se fazer conhecido por ele, reafirmar seus domínios periodicamente, através do
consumo no local dos seus produtos e rendimentos e da reafirmação de seus direitos. No
caso de PedroII, depois da recente Lei de Terras, tornava-se importante sua presença por
toda parte, arbitrando conflitos, regularizando situações de fato, pacificando o espaço
nacional e se fazendo necessário aos seus súditos: "Quando se desloca, o rei delimita o seu
território. Faz o seu reino existir e toma posse dele" (REVEL,1989). A novidade no entanto
foi que, ao se fazer presente, o poder soberano mostrou-se acessível, abrindo a
possibilidade de ser também buscado.
Com o mesmo objetivo de tomar posse de seus territórios, índios passam a
empreender viagens ao Rio de Janeiro, numa frequência grande o bastante para fazer
necessário ao governo central enviar circulares às províncias determinando que fossem
proibidas tais viagens (DANTAS et alii,1992). Apesar desta tentativa, parecia ter sido
instaurado um padrão, ou mesmo poderíamos dizer uma "tradição", na qual as
comunidades indígenas passam a ver o único recurso para a conquista ou garantia de seus
domínios territoriais: as viagens aos centros de autoridade, que as conectava com poderes
extra-locais. O recurso não era o Estado, nem os poderes públicos, mas o centro, o alto, e
quanto mais próximo dele fosse possível chegar, mais esperançosa a viagem. Mas só
excepcionalmente essas viagens ganhavam algum tipo de registro documental, como as dos
Xucuru-Kariri no início do século XIX, dos Xocó e Xucurú nas últimas décadas desse
mesmo século, e as novas viagens conjuntas de Xocó e Kariri-Xocó entre as décadas de
1910 e 1920 (PETI,1993 e SOUZA,1992).
Não é no vazio, portanto, que surgem, desde o início do século, as viagens de
representantes da comunidade de Brejo dos Padres às cidades vizinhas, na busca de
proteção contra o gado dos fazendeiros que invadiam suas roças. A década de 1930,
aparentemente sob o impacto dos programas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas), amplia a presença de poderes extra-locais na região, produzindo novos
centros de autoridade. Mas é na cidade de Bom Conselho que, apesar de não apresentar
qualquer papel regional destacado, a presença do pe. Alfredo Dâmaso e o seu apoio às
demandas de grupos de remanescentes criaram um centro de autoridade que passa a
substituir outros possíveis centros, até então ineficientes.
Meu pai viajava pro Rio de Janeiro pra resolvê esses problemas e nunca
resolveu, tinha partes que andava até de pé, pra parte de Minas. De
Governador quase a Três Rios andava de pé, pegava carona num canto e
ni outro... Mas nós não, porque graças a Deus agora a coisa melhorou
mais, porque o governo sempre dá uma passagem, uma coisa e outra...
[Viajavam com ele:] o Bernadino Pereira, o Mariano Tiú, Lino Barros,
que tinha o apelido de Lino Cabeludo [risos], o José de Barros que
morava lá dentro do posto, cinco, seis pessoas. Depois viajaram pra... A
primeira comarca pra que eles viajaram foi pra Flores, a primeira
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 55
cidade de Pernambuco é Flores, começaram pra lá, pra falar com o
Interventor, um doutor que eles chamavam na época Interventor
(Antônio Moreno)
Nesse circuito, a importância que passa a ter a cidade de Bom Conselho deriva do
seu papel de ponto de convergência de dois circuitos rituais. O efeito de nodosidade
(RAFFESTIN,1993) assumido por aquela cidade é criado pelo fato do seu pároco, o "pe.
Alfredo", ter no seu roteiro de serviços espirituais a cidade vizinha de Águas Belas, onde
localizam-se os Fulni-ô, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu,
Xukuru, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kambiwá e outros. A circulação e a comunicação intimamente associados em contextos de pouca especialização das redes de comunicação
(idem)- encontravam naquele ponto geográfico um eixo, um nó, para a articulação do
circuito dos possíveis centros de autoridade (como já tinham sido tentadas as cidades de
Flores e Floresta) e de trocas rituais. Não se tratava de um lugar privilegiado a priori, mas
que foi construído como lugar de reunião, de nodosidade em grande medida contingente,
onde era possível pôr em contato e por isso dar uma dimensão de experiência às narrativas
particulares, da mesma forma que trocar informações sobre mediadores. É através desse nó
que as informações e homens migram de um circuito para o outro, e é a partir dele que
aquele circuito de trocas rituias tornar-se-á o circuito das emergências.
As demandas dos caboclos do Brejo dirigidas ao pe. Dâmaso inicialmente não
falavam na criação de qualquer área de exclusividade que distinguisse entre aqueles que
eram ou não eram índios. A memória de uma ancestralidade indígena servia como fiadora
dos direitos que sabiam ter sobre as terras, mas não implicava desde o início na pretensão
de uma delimitação formal, subordinada a uma unidade identitária e política. Suas
necessidades passavam pela construção de "um travessãozinho pequeno" que cobriria a
extensão de aproximadamente vinte "tarefas" à volta do Brejo e, apesar de se considerarem
participando da mesma comunidade, as famílias que ocupavam as serras não encararam
esta como uma atividade que também lhes interessasse. O fato de partilharem de uma
mesma identidade, de laços de parentesco e dos mesmos cultos não produzia a imaginação
de um grupo fechado de interesses e obediência comuns.
Esse primeiro foi só aqui dentro do Saco do Brejo mesmo, só, nem lá no
pé da serra era ainda cercado, era só aqui no meio mesmo, dessas casas
pra cá nesses pézinho de serra aqui. E nessas roças todas aqui sobre um
valado... Cavavam e quando não plantavam aquele pinhão, usavam [...]
essa imburana..., eu sempre conservei, o senhor arrepare que minha
roça é toda cercada de cera viva, porque na época dos meus
antepassados, dos meus avós e bisavós era tudo cercado de cerca viva, e
eu conservei. E eles fizeram o cercado de mancambira, que é que nem
aqules pezinhos de abacaxí, só que uma fruta amarelinha, esse travessão
aqui era arrodiado com mancambira. (Antônio Moreno)
A referência não era um território, mas posses de uso familiar. Não existia um
perímetro circundando um território abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os
marcos do antigo aldeamento), mas a terra sobre a qual se investia um trabalho social, de
base familiar e sobre a qual havia um domínio não legal, mas hereditário. Era desse
domínio que sabiam estar sendo expropriados.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 56
... e aquilo alí, pra sobrevivê uma família de 10 filhos alí com aquele pé
de abóbora... Aí o meu pai foi vendo que aquilo não dava certo e foi
pedindo de um lado e outro, pro governo, uns achava que era certo,
correto aquilo, outros que não era, e foram até que deram o apoio de
confiança quando cercaram. Os índios já não podiam fazer nada mais,
vigiando o bicho à noite, quem plantava um pé de abóbora, outro de
macaxeira, aquilo alí era numa correria danada... Aí ele foi, falou com o
pe.. Alfredo e "fale com o interventor", que era o governo lá de Recife, e
ele foi embora lá pra Recife de pé, porque naquele tempo não tinha
carro... (Antônio Moreno).
Depois da entrada do SPI em Águas Belas e do reconhecimento dos Fulni-ô como
remanescentes indígenas com direitos a um território é que essa visão do domínio da terra
mudará de natureza, potencializando a memória de uma posse coletiva ancestral. Aqueles
que viajavam em busca de apoio passam então a viajar em busca dos direitos a que teriam
como "remanescentes".
Isso repercute sobre todos os aspectos da vida da comunidade, desde sua relação
com a memória, até o seu arranjo interno de autoridades, onde passam a ocupar um lugar
diferencial justamente aqueles que eram responsáveis pela busca dos direitos. João Moreno
foi a personagem que mais se destacou nas viagens aos centros de autoridade em busca de
ajuda, encabeçando um grupo de outros cinco ou seis companheiros que podiam variar um
pouco de viagem para viagem. Esse grupo de pessoas não tinha qualquer papel de
autoridade previamente estabelecida na organização política do Brejo, destacando-se
exclusivamente pelo exercício das viagens e por sua especialização nelas, ao passarem a
conhecer e se fazerem conhecer por autoridades extra-locais na sua busca de apoio.
Desenha-se dessa forma um tipo de autoridade local que retira seu status da capacidade de
acessar os centros de autoridade, e que passa a exercer um papel de representação que será
fundamental para produzir não só a imagem do grupo mas o próprio grupo, enquanto
conjunto de pessoas cujos interesses têm nessas pessoas um porta-voz (BOURDIEU,1989).
Forja-se assim, o que daqui em diante chamaremos de lideranças peregrinas, sob cujo
exercício de representação os grupos começam a ganhar forma.
Algumas características no entanto condicionam a assunção desse papel. João
Moreno, por exemplo, era um homem com experiência de outras viagens, empreendidas
para trabalhar em outros estados. Sabia rudimentos do vocabulário "da língua" e tinha "cara
de índio mesmo". Essas características não serão necessariamente repetidas a cada nova
liderança peregrina que emerge, mas dão uma medida do tanto de teatral que a
representação política indígena (como qualquer outra) tem que respeitar.
3
A referência de Carlos Estevão ao Brejo dos Padres, no texto de 1931, antes
portanto de sua primeira visita à esta comunidade e à de Palmeira dos Índios, deve ser
creditada à existência daquele circuito de trocas que o antropólogo provavelmente viu em
funcionamento durante sua visita à Águas Belas. O "círculo" mítico-religioso que ele supôs
existir e ao qual remete àquelas comunidades é já o anúncio, no seu pronunciamento sobre
o caso Fulni-ô, das suas futuras descobertas de outros grupos indígenas, transmitindo-se
por essa conexão, legitimidade etnológica a outros grupos emergentes. No entanto, como
veremos, a transmissão de legitimidade não se realiza apenas pelo reconhecimento de
semelhanças, mas também pela produção delas. O circuito de trocas que ligava uma série
de comunidades "remanescentes" e que Carlos Estevão de Oliveira declara supor ser um
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 57
"círculo" cultural, será o caminho percorrido pela padronização ritual futura das
comunidades segundo a semelhança imputada anteriormente.
Como vimos, o quadro ideológico e estratégico do SPI foi formulado com vistas a
sua atuação junto a grupos indígenas ainda não integrados, muitas vezes arredios,
beligerantes, que era preciso buscar, seduzir através de tradutores e de presentes, em
operações "heróicas" representadas pela máxima formulada por Rondon: "morrer se preciso
for, matar nunca. Esses não eram procedimentos que se adequassem ao contato com índios
do Nordeste. O SPI antes de procurar estava sendo procurado, antes de convencer, tinha
que ser convencido, antes de utilizar mediadores era alcançados por eles, que serviam de
"porta-vozes" dos "remanescentes". No Nordeste, os “especialistas da significação”
(TODOROV, 1993) que trabalhavam na “conquista”, eram os próprios “remanescentes”.
Vejamos.
Diante desta inversão de expectativas e procedimentos e na falta dos sinais
diacríticos mais evidentes, a solução do órgão para o tratamento com as demandas que lhe
alcançavam repetiu a sua natureza burocrática, estabelecendo um critério fixo, de
observação direta, imediata e de fácil apreensão. O inspetor regional do SPI, Raimundo
Dantas Carneiro, assediado por novos "remanescentes", institui como critério básico do
reconhecimento da remanescência indígena (acompanhando a sugestão presente nos textos
de Carlos Estevão de Oliveira) o Toré, tornado então, expressão obrigatória da
indianidade no Nordeste. O Toré era encarado por Raimundo Dantas Carneiro como uma
espécie de rito sumário na legitimação da presença do SPI, incorporando-o ao rito mais
largo que vem marcar a criação de espaços tutelares que abria a atuação do órgão: dançar o
Toré, hastear a bandeira e cantar o hino nacional. Para aquele inspetor, o Toré era "...a
conscientização de que eles eram índios [...], eles tinham que saber aqueles passos da dança
do índio", tomando para isso, como parâmetro de avaliação das performances, o Toré dos
Fulni-ô, considerado "o primitivo [...], o verdadeiro Toré" (depoimento de R. D. Carneiro,
transcrito em GRUNEWALD,1993).
Se a existência dos grupos e de uma antiga tradição comum a todos, na forma do
Toré, é pensada como realidade indiscutida, por outro lado Raimundo Dantas Carneiro tem
muita clareza do fato de estar instituindo uma espécie de rito de passagem, que nada tem a
ver com a verificação da legitimidade dos grupos emergentes, já que reconhecia-os como
"remanescentes" e não como os próprios "primitivos". Para aquele inspetor e,
consequentemente, para o órgão indigenista, o Toré passa a funcionar não como expressão
autêntica, mas como expressão obrigatória, que se investe de um caráter educativo,
instituindo ele mesmo uma autenticidade, em homologia às práticas políticas que
pretenderiam, através de um processo de conscientização, transformar a "classe em si",
numa "classe para si". R. D. Carneiro encara o Toré em sua força performática: ao mesmo
tempo que era uma declaração de querer ser, era o ato de se fazer índio, através do qual
eram absorvidos pela categoria jurídica sobre a qual o SPI estendia seu manto tutelar. Mais
tarde essa forma de encarar o Toré se perderia pelos corredores do órgão, cujos
funcionários, sem se darem conta da invenção de que são herdeiros, sob a amnésia da
gênese dos conceitos, eternizam e reificam o Toré como prova substantiva da veracidade
étnica20.
20
Em um relatório de 1989, para usarmos um exemplo suficientemente próximo, uma funcionária da FUNAI
se dispõe a ir até um grupo emergente para comprovar sua autenticidade atravavés de uma verificação sobre a
existência ou não de artezanato e a qualidade do desempenho do Toré, como se estivesse verificando a
existência de furos nas meias: "...No momento que foram interrogados sobre a dança do toré, se havia dentro
do grupo, alguma forma especial no momento da dança, surgiu um pouco de dúvida e o cacique acaba
dizendo que homens e mulhertes dançam juntos. Quando o grupo de doze pessoas foi dançar o Toré, percebí
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 58
É a instituição do Toré como expressão obrigatória da indianidade que cria um
nexo de outra natureza entre os dois circuitos de viagens de que já tratamos. De agora em
diante um circuito levará ao outro, não eventual ou acidentalmente, mas necessariamente,
já que a troca ritual é transformada em pressuposto da conquista de direitos.
Levantar aldeia
1
É a conexão entre esses circuitos que permitirá às lideranças peregrinas assumirem
um papel político ainda mais largo do que aquele que já desempenhavam como
representante de sua comunidade. Além de realizarem o trânsito de informações sobre os
direitos entre os centros de autoridade e seu grupo, passam a atuar como os agentes que
disseminarão as regras da expressão obrigatória da indianidade. Agregam à comunidade
ritual prévia, uma comunidade de direitos, ou melhor, de busca dos direitos, que estará
ligada à construcão do privilégio de um dos seus rituais sobre os outros possíveis.
É novamente João Moreno que depois do reconhecimento dos Pankararu e com
toda a legitimidade que isso lhe dava, passa a desempenhar também esse papel para os
grupos mais diretamente ligados pelos circuitos rituais ao Pankararu.
Porque o senhor sabe, essas festas daqui, a maior parte veio de
Pankararé, do Brejo do Burgo. Meu pai é que foi lá fazê como o
antropólogo, prá levá algum conhecimento pra eles. Os Tuxá... [P: Mas,
peraí. Como foi isso? O seu pai foi até lá pra ensinar?]
Pra ensinar sobre o ritual das festas, sobre as festas deles, que eles tão
mudando como assim,... como uma muda, cantavam num outro ritmo,
tinha outro som, parecido, mas já é outro som, aí dentro daquelas
mudanças, a pessoa vai cantando aquele toante e no suspendê daquele
toante, a pessoa vai suspendê diferente, não suspende como esse daqui,
pra ter modificação.
[P: Quer dizer que os Pankararé não sabiam fazer isso?] Não sabiam,
foi na época que eu era moleque, tinha uns sete pra oito anos [19471948], e que fui eu mais meu pai [...] meu irmão. Mas ele já tinha ido
mais vezes lá. Foi lá pra representá de como era pra fazer as festas, pros
toantes serem diferentes. [...] Lá tem parente dagente também, porque a
família da minha mãe tem família lá também. [P: A família da sua mãe
veio de lá ou foi pra lá?] Foi pra lá. A família dos Antônio Vieira tem lá
também.
[...] Os Tuxá, a dança deles é quase igual a dos Kambiwá, porque faz
assim que nem que vai um desfile, um do lado do outro. [P: E aqui não
teve nenhuma relação com os Tuxá?] Teve também, mas como convite,
porque as festas deles eles já faziam. Faziam convite pros daqui mandá
uma parte de epresentação pra lá e de lá praqui. [...], nessa época eu
não era nascido ainda não. Eles já tinham aqueles contatos. (Antônio
Moreno)
que não havia harmonia no som, nem no rítmo da dança e que todas as vestimentas estavão novas."
(SANTANA,1989)
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 59
Cada novo ponto nessa rede de emergências podia acionar outras linhas do circuito
de trocas rituais, transformando-o em caminhos da busca de direitos para outras
comunidades. As lideranças que iam buscar direitos num primeiro momento, logo depois
podiam estar transmitindo-os. Assim, por exemplo, depois de reconhecidos como
"remanescentes", os Tuxá, que como os Pankararu tinham originalmente o seu próprio
Toré, são procurados da comunidade da Serra do Umã que, como empecílio no seu
reconhecimento como Atikum, se diziam "fracos no toré". Um grupo de tuxás viaja então
para a Serra do Umã entre 1943 e 1945, para passarem seis meses, ao longo dos quais
reforçaram, ou ensinaram o segredo do Toré aos Atikum. Por sua vez, depois de
devidamente reconhecidos, os próprios Atikum estavam prontos para emprestar sua
legitimidade aos Truká, que os procuram para aprender o Toré depois de ficarem sabendo
dos direitos através dos Tuxá. (GRUNEWALD,1993).
2
O Toré, no entanto, apesar de necessário não é suficiente para o reconhecimento de
uma comunidasde como grupo indígena, que pode continuar sendo obstruído por interesses
locais ou do próprio órgão indigenista oficial, de acordo com a flutuação das verbas ou dos
cálculos de ganho político, sempre contextuais. O apoio de um grupo na emergência de
outro não se restringe por isso à transmissão do segredo do Toré, podendo levar a ações
mais claramente políticas, usando para isso as prerrogativas instituídas pelo estatuto
jurídico diferenciado de tutelados do Governo Federal. A relação entre Pankararu e
Pankararé pode novamente servir de ilustração para isso. Depois de terem ensinado o Toré,
através do João Moreno, os Pankararu, décadas depois, voltam a auxiliar a emergência
Pankararé através da atuação de uma segunda geração de lideranças peregrinas, agora
representada pelo João Tomás.
Como foi dito, o acirramento do conflito entre os Pankararé e autoridades locais na
década de 1960 fez com que, depois de ficarem sabendo da expúlsão de um grande número
de famílias de posseiros da área Pankararu, eles procurassem ajuda daquele grupo
novamente, agora não mais para aprenderem o Toré, mas para conseguirem realiza-lo. A
intensificação do conflito foi acompanhada de uma intensificação do investimento sobre a
possibilidade de terem o reconhecimento como remanescentes indígenas. No processo de
reorganização daquela população, segundo os moldes da indianidade, emerge um novo
grupo de lideranças que intensifica o intercâmbio com os Pankararu, como forma de
"fortalecer o ritual" do Toré, assim como para "levantar" novos terreiros, em função do que
o Toré passou a ser realizado mais frequentemente; os Praiá foram retomados, foram feitos
novos toantes e foi edificado um poró. O termo usado, desde então, para se referirem ao
que estava acontecendo era o de "levantar aldeia" (SOARES,1977) numa dupla referência
ao que concebiam como uma revivecência religiosa e como uma emergência política, mas
ainda além, numa associação mais profunda com a lógica de funcionamento de seu sistema
ritual, como veremos nos capítulos seguintes.
Isso canalizou a repressão local também sobre os signos de indianidade
estabelecidos pelo órgão na região, isto é, a realização do Toré, levando a que, os
Pankararé, numa situação de especial violência, viajassem em busca de apoio mais efetivo
no posto indígena Pankararu. Depois de ouvi-los, o encarregado daquele posto chamou o
então pajé do grupo, João Tomás, sugerindo que ele resolvesse o caso. Depois de um
rápido impasse em que o pajé queria que o chefe do Posto lhe desse uma autorização por
escrito para ir até a Bahia, que foi recusada pelo encarregado, ele acabou se decidindo ir
por conta própria, para o que reuniu então 15 jovens Pankararu e foi em direção à cidade de
Glória, onde procurou o delegado. Apresentando-se como pajé dos Pankararu, pediu
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 60
autorização para visitar os parentes Pankararé no Brejo do Burgo. É ele que nos narra essa
situação de enfrentamento, reproduzindo com detalhes, suas próprias falas:
"Eu quero falar com o sr. porque como agente passa muito tempo sem
ver os parentes, quando agente chega tem que usar qualquer uma
alegria, uma brincadeira pra gente brincar e tal. É a presença que
agente tem que fazer quando encontra um parente com o outro. Tem que
ter uma diversão igualmente como vocês branco." (João Tomás)
O delegado não mostrou maior interesse pelo caso e consentiu que seguissem
viagem. No entanto, isso parecia pouco e João Tomás insistiu:
"Não, mas peraí, eu tô indo mas eu vou querer autorização do sr. Porque
eu vou a fim de brincar e não sei se é uma noite, se é duas ou se é 15
dias. Eu preciso de sua autorização escrita." (idem)
Novamente o delegado não fez qualquer resistência e escreveu a autorização que
João Tomás a colocou no bolso partindo em seguida para o Brejo do Burgo. Chegando lá
perto das 15:00, chamou a comunidade para "brincar": "tava todo mundo muito tempo sem
dançá, aí eles tacaram o pé no Toré". Quando foi perto das 23:00, um rapaz chega
assustado e diz ao João Tomás que o delegado e o prefeito estavam chegando, com cinco
soldados para acabar com a brincadeira. João Tomás pediu então que parassem o Toré e os
colocou em formação, lado a lado, enquanto ele mesmo foi para a entrada do terreiro
esperar a chegada das autoridades e dos soldados. Ao chegarem, o prefeito perguntou quem
era o João Tomás e quem tinha autorizado a realização do Toré. João Tomás se apresentou,
comprimentou-o e respondeu que a autorização não era de ninguém, ele é que havia
autorizado e que podia autorizar porque ele era índio, estava no meio dos índios e "os
índios quando se encontram uns com os outros têm que dançar o Toré, porque não tem
outra diversão, porque não são brancos, não são civilizados, e a sua dança era aquela
mesmo". O prefeito pensou um pouco e pediu para que o João Tomás suspendesse o Toré
até que ele se entendesse com o delegado regional do órgão indigenista, em Recife.
O Toré estava sendo realizado no terreiro levantado em frente à casa de uma das
lideranças que emergiram com o acirramento dos conflitos no final da década de 1960 e, de
madrugada, as roças próximas ao terreiro, que estavam sendo disputadas com este índio
pelo irmão do prefeito, amanhecem destruídas. Ao amanhecer e tomar conhecimento da
destruição, João Tomás se dirige à Paulo Afonso para pedir ajuda do Major Reni21, que
junto à FUNAI, consegue responsabilizar a família do prefeito pela destruição das roças,
fazendo-os pagar os prejuízos causados. Dias depois, alguns Pankararé procurarão
novamente João Tomás, agora para avisá-lo das ameaças do prefeito e do delegado
diretamente à sua pessoa e para aconselha-lo a não mais voltar ao Raso da Catarina, porque
aquelas autoridades haviam fincado um mourão no meio da comunidade do Brejo do Burgo
anunciando que ele serviria para acorrentar o João Tomás, se ele aparecesse novamente. No
21
Para este final de década acumúlam-se referências sobre a atuação de um delegado, ou militar do exército
situado em Paulo Afonso, que teria prestado apoio sistemático aos Pankararu. A grafia de seu nome no
entanto, variou bastante de acordo com os informantes, sendo mesmo difícil avaliar se todos os relatos diziam
sobre o mesmo personagem. Assim, talvez este Major do exército, Reni, seja o mesmo delegado de polícia de
Paulo Afonso Ivi, ou Ivo Texeira Xavier. Não foi possível, infelizmente, apurar a identidade e filiação
institucional precisa desta (s) personagem (ns).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 61
dia seguinte, ele volta a procurar o Major Reni em Paulo Afonso, pedindo que lhe
fornecesse acompanhamento para que pudesse voltar ao Brejo do Burgo. O Major destaca
dois soldados e um sargento, que vai armado também de máquina fotográfica para registrar
o Toré. Ao chegarem na comunidade, bem cedo, eles arrancam o mourão e passam a
organizar o Toré, que dura todo o dia. À noite, depois de já terem se retirado, o prefeito
chega com a polícia e leva preso o dono do terreiro onde havia se realizado o Toré. Quando
estavam chegando de volta à Paulo Afonso ficam sabendo de prisão e João Tomás pede
novamente autorização ao Major Reni para que ele fosse soltar o rapaz. Ele volta então
acompanhado de um cabo e um sargento e consegue interceptar o jeep do prefeito, com o
delegado, soldados e o preso ainda na estrada. Tomam-lhes o preso e exigem que o prefeito
e o delegado os acompanhem até o quartel do exército em Paulo Afonso. Lá o Major Reni
lhes passa uma descompustura, lhes chama de “cachorros”, lhes ameaça fisicamente e os
expulsa do quartel na presença do João Tomás.
Em resposta, o delegado e o prefeito abrem processo contra o Mj. Reni na secretaria
de polícia de Salvador que foi rapidamente arquivado, mas, no plano local, o incidente
resultou na visibilização do grupo Pankararé, instituindo a sua identidade de índios para a
população local e para o próprio órgão indigenista, que mais tarde viria dar início ao
processo de reconhecimento do grupo. João Tomás, como pajé pankararu, mas
principalmente como liderança peregrina imbuída da missão não só da busca de direitos,
mas também do seu anúncio e da sua transmissão, legitimado por uma ordem de excessão,
para a qual a tutela abria então, assume para um outro grupo emergente o papel para os
Pankararé, ele mesmo, o papel de disseminador do campo de ação indigenista.
3
Além do ensino do Toré e da intervenção direta sobre conflitos locais, existe ainda
uma terceira forma desses grupos e de alguns de seus personagens mais destacados
intervirem diretamente na emergência de grupos vizinhos ou aparentados, preenchendo
com o código da indianidade os circuitos de trocas tradicionais: o empréstimo de
legitimidade, ou, segundo o vocabulário de Bourdieu, a transferência de capital simbólico
acumulado, através da simples mediação entre os grupos emergentes e as autoridades locais
ou indigenistas. João Tomás, depois de ter alcançado certa notoriedade entre outros grupos
indígenas e seus mediadores ou opositores diretos com o conflito junto aos Pankararé,
continuou atuando como disseminador do campo de ação indigenista entre os Kambiwá e
os Kapinawá, onde foi necessário apenas apresentar-se às autoridades locais respaldando a
pretensão daqueles grupos ao reconhecimento como "remanescentes". No primeiro caso,
em que já existia uma história de auxílios desde a época do Pe. Alfredo Dâmaso, a ajuda
agora, na década de 1970, não se dava pela apresentação a um mediador que viria a fazer a
relação entre o grupo e o órgão indigenista, mas pela interferência direta do próprio João
Tomás, transformado em mediador, que apresenta-se ao delegado local, que na época
reprimia o Toré Kambiwá, e o faz compreender a possibilidade de repetir o desempenho
obtido junto ao delegado de Glória.
No segundo caso, essa posição de autoridade na representação dos "direitos"
indígenas fica mais evidente. Desta vez é o João Tomás que se vê procurado por
mediadores, um grupo de freiras que atuava junto aos Kambiwá, para ir emprestar
legitimidade ao grupo num comício que seria realizado em praça pública, no município de
Buíque. Em meio aos pronunciamentos de autoridades locais, João Tomás é chamado a
subir ao palanque e se pronunciar sobre a questão da possível demarcação de uma área
indígena no município. Vendo-se numa situação extremamente delicada e que ele mesmo
avaliava como perigosa, assume um tom apaziguador e defende o diálogo entre fazendeiros
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 62
e índios, que levasse a um acordo amigável sobre os limites da provável área indígena,
ganhando a simpatia do prefeito local, ao mesmo tempo que confirmando a existência dos
direitos do grupo. Poucos anos depois, a FUNAI começaria a intervir timidamente sobre o
conflito através de ingerências junto à prefeitura local e, em 1980, enviaria uma
antropóloga ao local para a "detecção da identidade étnica" do grupo (SAMPAIO,1993).
Nos dois casos sua atuação permitiu transferir legitimidade do Tronco Velho Pankararu
para as Pontas de Rama indígena, além de incrementar seu próprio capital simbólico de
"levantador de aldeia" na visibilização de grupos ainda não re-conhecidos.
Um outro caso recente envolvendo os Pankararu é o dos Kantaruré, localizados na
base da Serra da Batida, município de Glória (BA), que a partir de 1985 passaram a
reivindicar o seu reconhecimento como indigenas. Neste caso, trata-se de um grupo que
afirma uma ligação direta com os pankararú, através de uma ancestral que teria se
deslocado do Brejo dos Padres, em período não identificado, acompanhando a peregrinação
da imagem de Nossa Senhora da Saúde de Tacaratu pelos municípios das margens do São
Francisco, num período de grande seca e numerosas doenças. Todo o grupo seria
descendente direto desta mesma ancestral que então veio a se estabelecer no pé da Serra da
Batida, quando não existia ainda nenhum outro agrupamento humano pelas redondezas.
1 - Fulni-ô
2 - Pankararu
3 - Xukuru-Kariri
4 - Kambiwá
5 - Kariri-Xocó
6 - Xocó
7 - Tuxá (antiga aldeia ,
8 - Truká
9 - Atikum
10 - Pankararé
11 -Kapinawá
12 - Geripancó
13 - Kantaruré
14 - Tuxá (nova aldeia)
15 - Tuxá (área de plantio)
16 - Tuxá de IInajá.
17 – Kaimbé
18 – Kiriri
19 - Tingui Botó
20 – Karapotó
21 – Xukuru
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 63
hoje submersa, pela UHE)
Essa história de fundação começou a ser recuperada em meados da década de 1980,
quando uma outra história de fundação tem lugar: Uma das mulheres da comunidade
voltava da feira de Glória, num dos tradicionais caminhões abertos onde viajam pessoas,
animais e mercadorias, quando, depois de seu lenço de cabeça ter se soltado, um índio
Tuxá, admirado com os seus cabelos, lhe pergunta se ela era "cabocla". Ela responde que
era "cabocla da Batida" e confirma a suspeita de ter ancestrais indígenas. O Tuxá então a
convence de procurar seus "direitos" na FUNAI. Chegando lá, no entanto, ela é informada
de que o órgão não realizava reconhecimentos individuais, sendo necessário que toda a sua
comunidade fosse "reconhecida". O assunto cai no esquecimento até que anos depois, às
vésperas das eleições municipais uma candidata a vereadora Pankararé os procura
oferecendo ajuda. Ela, em toca de seus votos, poderia apresenta-los aos "funcionários
certos" dentro da FUNAI e conseguir reforço com agencias indigenistas nãogovernamentais, como o Conselho Indigenista Missionário -CIMI- e a Associação Nacional
de Apoio ao Índio, com escritório na Bahia -ANAÍ/BA. A partir de então, a comunidade da
"Batida", recém-batizada Kantaruré, passa a fazer visitas regulares aos Pankararu, é
introduzida no circuito de reuniões com lideranças indígenas do Nordeste-Leste e nos
encontros com autoridades em Brasília, até que em 1989 a FUNAI de Recife envia uma
antropóloga para fazer o reconhecimento do grupo. Em 1995 os Kantaruré estavam na lista
de identificações da FUNAI, esperando apenas a liberação de verbas.
4
Se até aqui a ênfase recaiu na transmissão dos padrões, na atuação dos mediadores e
na comunicação dos “direitos”, cabe-nos agora tentar jogar luz sobre as diferentes formas
de apropriação daquilo que, a princípio, se mostra como canal de homogeneização. Nosso
objetivo será explicitar os vínculos entre algumas das noções apresentadas ao longo deste
capítulo e que são fundamentais para dar inteligibilidade às emergências, retirando-as
progressivamente da mecânica em que nossa descrição as teve que encerrar e abrindo para
o que poderiamos chamar de uma poética, isto é, para sua realidade de produção simbólica.
A proposta de Geertz de pensar a política como produção simbólica a partir da análise do
Bali clássico, parece um boa sugestão também no caso das emergências do grupos
indígenas do Nordeste: compreender as emergências significa também localizar e analizar
as emoções e projetos, nas suas formas de memórias e desejos por "direitos", que animam
os atos que nós normalmente chamamos de políticos, "elaborar uma poética do poder e não
uma mecânica" (GEERTZ,1991). Mas também, num outro sentido, agora metodológico,
buscar as categorias que permitam compreender simultaneamente a unidade e a variedade
das diferentes emergências, tomando como objeto não o conjunto de todas as emergências
catalogáveis, mas o discurso que as viabiliza, poderíamos dizer, o discurso da etnicidade,
enquanto princípio de engendramento dos significados, empréstimos, mediações e
parentescos reais ou fictícios, que erguem o sistema de significados depositados nas
metáforas da emergência (DUCROT e TODOROV,1974) e que nos abrem para os
possíveis da invenção cultural (TODOROV,1970).
O par de noções Tronco Velho / Pontas de Rama descreve mais que uma relação de
parentesco entre grupos indígenas, ele organiza um universo de relações fundamentalmente
marcadas pela idéia de "mistura" onde corre um fluxo diferencial de força religiosa e
legitimidade. Troncos velhos não são apenas os grupos que conseguiram manter um nexo
permanente com a terra e com a tradição, são também, coincidentemente ou não com este
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 64
primeiro recorte, aqueles que primeiro emergiram para os "direitos". Assim, as pontas de
rama podem ser estes mesmos grupos, quando comparados com os seus ancestrais, ou os
grupos de formação ou de emergência mais recente, quando comparadas com aqueles. Por
outro lado, a relação entre as pontes de rama e os troncos velhos podem ser de duas
naturezas. Elas podem ser de origem, quando se reconhece que uma ponta de rama surgiu
por "enxamamento" de um grupo anterior, ou por "levantamento de aldeia", quando a
relação não é de visibilidade, isto é, quando a relação da ponta de rama com o tronco velho
se produziu pela mediação que o tronco velho forneceu entre ela e os direitos através do
ensino do Toré ou do empréstimo de legitimidade frente às autoridades locais ou
indigenistas.
A transmissão do Toré não implica no simples ensino de uma coreografia, nem se
trata do "resgate" de uma tradição, por motivos de preservação cultural, mas
fundamentalmente na transmissão de uma força de natureza mágica. "Ensinar Toré",
implica na transmissão da "semente", "ensinar o caminho até os Encantados", que o grupo
emergente, do seu lugar de ponta de rama, perdeu ao longo das sucessivas misturas a que
foi submetido. Depois de recebida a semente, de transmito o Toré e os toantes, cabe ao
grupo emergente descobrir o segredo de sua relação com os Encantados, segredo que ao
final passa a ser o fulcro da identidade do grupo. Os segredos de um grupo são os seus
caminhos particulares, próprios, originais de "levantar os Praiá".
É com o desenvolvimento de sua religiosidade, através do Toré e do contato com os
"Encantados" que o grupo vai abandonando o terreno do caboclo e ultrapassando o do
índio indistinto (de natureza jurídica) para ganhar particularidade e se fazer Aticum,
Massacará, Xucurú etc. Ensinar o Toré e levantar uma aldeia são assim, simultaneamente,
atos políticos, coletivos, de invenção cultural e projeção do futuro, tanto quanto atos
místicos, particularizantes, de retomada de uma força mágica que lhes chega pelos troncos
velhos.
... O ritual daqui, ele não pode ser igual aos dos Fulni-ô, aonde pode ser
igual é com Geripancó, o Ouricurí, porque os índios de lá são daqui, é
toda família daqui. Agora, os Pankararé, os Tuxás, os Atikum, na serra
do Umã, os Kambiwá, Trucá, ilha da Assunção, nessas as festas tem que
ser diferentes. Tá certo, tem pessoas de Kambiwá que mora aqui na
aldeia, casado lá mesmo e mora aqui. Um primo meu, o pais dele era
tuxá e a mãe dele era irmã do meu pai. Mas ele como neto da parte de lá,
ele não pode usar a festa de lá aqui. Temos que acompanhar o nosso
ritual daqui. E já andou um antropólogo fazendo esse apanhado das
festas, em 83, 84. Sobre a parte das festas pra vê se eram todas iguais,
porque não pode ser tudo igual, tem que ter uma diferença.
Sobre a analogia entre levantar aldeia e levantar Praiá, por enquanto basta
acrescentar que, sendo conhecido entre os Pankararu como "brincadeira de índio", o Toré
pode ser realizado, a princípio, em muitas e distintas situações e lugares, com diferentes
objetivos: festas religiosas ou profanas, dentro da aldeia ou em cidades, em locais
reservados, como os terreiros, ou em locais públicos, como o saguão do palácio do governo
em Recife. Seu valor, para os Pankararu, está tanto em sua natureza pública quanto em sua
natureza religiosa, ainda que ela não se explicite sempre. Como Mauss apontou com
relação à prece, o Toré não é uma unidade indivisível, distinta dos fatos que o manifestam,
é apenas o sistema deles. Ponto de convergência de inúmeros fenômenos religiosos e
políticos, o Toré assume a forma de rito - como atitude tomada e ato realizado diante de
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 65
coisas sagradas - de credo - como expressão de idéias e sentimentos religiosos - e,
acrescentemos, de performance - como ato político que simultaneamente representa e
realiza o grupo enquanto objeto de "direitos". Como a prece, o Toré se dirige à divindade e
pretende influenciá-la, consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados,
sempre, no fundo, um instrumento de ação (MAUSS,1979). O Toré também "age
exprimindo idéias, sentimentos que as palavras [ou em nosso caso, as performances]
traduzem para o exterior e substantificam" (idem). A associação entre o Toré e a prece é
mais que fortuita e não diz apenas da sua realização em situações estritamente religiosas,
reservadas ao próprio grupo. Essa associação vale também, com a mesma força para o seu
desempenho público, já que nestes casos normalmente o Toré tem a intenção de
sensibilizar as "autoridades", o "governo", que na retórica pankararú estão fortemente
associados a concepções ético-religiosas. Instância distante, incorpórea, que se manifesta
através de enviados, eterna protetora, a quem se dirigem todos os pedidos e única fonte
alternativa de poder capaz de se opor à expropriação e à violência locais, o "governo"
assume um aspecto de sagrado que é traduzido na seguinte frase, inúmeras vezes repetida:
"abaixo de Deus o governo". A mensagem política dos "direitos" encontra lugar em meio à
mensagem religiosa da redenção das injustiças, da desproteção etc22.
Ensinar o caminho para os Encantados é, ao mesmo tempo, ensinar o caminho até
os "direitos": a mensagem é transmitida ao grupo emergente, ao mesmo tempo que ao
órgão indigenista, ela dá acesso ao sobrenatural ao mesmo tempo que ao "governo". No
mesmo jogo de duplos, nesse momento está sendo transmitida uma mensagem cujo
beneficiário é o grupo que aprende tanto quanto o grupo que ensina, já que com isso ele
tem fortalecida sua posição e autoridade frente aos grupos emergentes e ao órgão
indigenista, o seu lugar de Tronco Velho23. Ao mesmo tempo, o Toré, que é encarado pelos
próprios indígenas, a partir de seu aprendizado recíproco com a burocracia indigenista,
como a melhor forma de se levantar uma aldeia, tendo portanto um uso pragmático, é
também mais que isto, consistindo num ato de comunicação complexo, onde entram em
interação simultaneamente vários remetentes, vários destinatários e várias mensagens, cuja
apreensão depende dos diferentes contextos (dos atos de enunciação, mas também da
análise) a que a leitura dessas situações podem estar referidas. Mais ainda, nessas situações
é o próprio código da comunicação que está em jogo, já que são os procedimentos de
comunicação e uma determinada linguagem, mais que mensagens referenciais, que estão
sendo tematizadas e apreendidas24. Como resultado da relação de comunicação em que um
grupo ensina o Toré para o outro, temos a ampliação e o fortalecimento do código dessa
comunicação, condensando nele tanto as mecânicas quanto as poéticas da emergência, o
reencantamento do mundo.
22
Esse ponto, no que ele tem de repercussões para a relação cotidiana entre população indígena e órgão
indigenista será mais explorado no capítulo seguinte. Aqui caberia apenas apontar para a importância desta
associação, já que o mesmo tipo de conexão entre "governo" e poder divino pôde ser descrito para um
contexto radicalmente diferente por João pacheco de Oliveira (1988). Esse autor nos fornece um depoimento
Ticuna que poderia, sem qualquer dificuldade, ser posto na boca de um pankararu: "Naquele tempo eu não
tinha conhecimento porque naquele tempo mesmo não tinha FUNAI (...) De repente a notícia dela estava lá,
do governo que briga por nós, o governo dos índios mesmo. O governo dos índios existia! (...) Todos os
capitães antigos, de primeiro, nunca procuraram elas, aquelas palavras todas, a palavra do governo ou a
palavra de Deus. (...) Quando essa palavra do governo da terra nós não obedecemos, então também não existe
a crença no nosso pai do céu, porque é a mesma coisa" (idem).
23
Essa multiplicidade pode ainda ser estendida por outros planos e contextos, como o do pajé frente ao
quadro político interno à aldeia ou do tronco Pankararu frente a outros troncos.
24
Nesse caso podemos falar numa função meta-ritual, ou meta-religiosa, em homologia à função metalinguistica definida por Jakobson (s/d), quando fala da mensagem que visa esclarecer os meios de transmitir a
mensagem, isto é, o código.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 66
Capítulo 2 – Do governo
PARTE 1: DOMÍNIO TUTELAR
O que permitiu que nossa narrativa se fizesse relativamente confortável até o
momento, isto é, o efeito realista da soma de evidências históricas e memoriais que, apesar
de tudo, ainda poderiam ser vistas compondo uma linha de continuidade entre os Pankararu
de hoje e uma, ou várias sociedades ancestrais, não deve esconder o fato fundamental.
Independente do que aquela população fosse ou da forma pela qual se concebesse até fins
da década de 1930, a partir dos primeiros contatos com o “campo de ação indigenista”
(OLIVEIRA Fº,1988), acadêmico e estatal, ela seria produzida como indígena, através da
sua adequação a um determinado padrão de comportamento e de relações tão novo e bem
aceito quanto foi a radical alteração do seu lugar nos quadros de poder local e regional
decorrente desta adequação.
Atos de fundação
Possible, pero no interessante [...]. Usted replicará que la realidad no
tiene la menor obligación de ser interessante. Yo le replicaré que la
realidad puede prescindir de esa obligación, pero no las hipótesis. (J.L.
Borges)
1
Ao narrar a sua chegada ao Brejo dos Padres, como vimos, Carlos Estevão se
esforça por produzir em seu público o clima e a expectativa de uma descoberta. No entanto,
para alcançar esse efeito, ele tem que inverter, quase ponto a ponto, a ordem dos
acontecimentos, conforme conseguimos recuperá-los através de depoimentos dos
Pankararu. Ele sabe que parte importante do que tinha a dizer só seria ouvido, ou só teria o
impacto que ele desejava, se fosse ordenado de uma forma determinada, que respondia às
expectativas do seu público. Sabe, enfim, que deve fazer o seu tanto de ficção para ser
etnologicamente interessante.
O que eu posso explicá é que depois de dois dias eu soube que tinha esse
velhinho aí, dando conselho e corrigindo as aldeias, dizendo de algum
passado... Aí também ganhava as serras, precurando, precurando..., osso
de gente, essas coisas assim. Ele trabalhou muito só de andá. Ele foi na
dita cachoeira que nós falemos, lá no serrote do Padre, lá ele descobriu
que tinha umas caveira enterrada... (João Binga).
O “acaso” de que sua descoberta foi fruto, não foi o da descoberta do ossuário da
Gruta do Padre, mas o seu encontro com outras comunidades de “remanescentes
indígenas”, quando fazia uma das visitas guiadas aos Fulni-ô promovidas pelo pe. Alfredo
Dâmaso. Essa impressão é reforçada quando somos informados pelos Pankararu que este
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 67
padre já “dava apoio aos índios” do Brejo dos Padres nesta época e que eles o procuravam
em sua paróquia com regularidade, fazendo pedidos de auxílio contra os fazendeiros que
soltavam o gado sobre suas roças. A descoberta mostra-se, assim, como mais um momento
teatralizado do processo de visibilização daqueles grupos.
Mas não era apenas a descrição dos fatos que passava por uma adequação narrativa.
Os próprios fatos deveriam ser adequados à decrição. Ao descrever os rituais dos
remanescentes Pankararu, Carlos Estevão tem a possibilidade de confirmar suas
considerações do texto de 1931 num movimento inverso, agora citando os Fulni-ô a partir
do Brejo, como forma de emprestar aos Pankararu legitimidade etnológica, através de uma
argumentação circular:
Estou muito propenso a acreditar que a orientação a que obedece a
estrada onde se realiza aquela festa, tem por base uma organização
sociológica de duas bandas exogâmicas, formadas pelos “filhos do Sol”
e da “Lua”, à semelhançado que acontece com os “Fulni-ôs” e diversas
tribus do grupo Gê. (OLIVEIRA,1943)
Se não há como negar que a vontade de ver produz a visão e que muitas vezes
aceita-se que as boas razões justifiquem pequenas adequações descritivas, a “magia do
etnógrafo” (OWUSO,1978) neste caso foi um pouco mais longe e, em lugar de adequar
apenas o olho ao modelo, pretendeu também moldar o mundo segundo seus olhos.
Em 1935, quando chegou o dr. Carlos Estevão, ele chegou aqui nesse
terreiro... e procurou onde é que dançavam, e uma velhinha que
chamava Maria Calú falou: “dançavam aqui!”. Aí procurou pra ver se
tinha um cavador, mandou deitá com a enxada assim e disse que era alí
que dançavam mesmo, porque tava duro... Aí então reuniu o sarapó, o
meu pai, aqueles outros do conselho, o Mariano, Lindo Gomes, que eram
as pessoas mais velhas, o Bernaldino Pereira, Conceição... aí reuniram
eles para definir aquele assunto e acharam que era alí, aí disseram
“vamos fazer...tem que ter dois terreiros aqui, esse daqui é o terreiro do
poente e vamos...” e aí foi o... foi vê lá e localizou lá o outro... Localizou
o lugar do posto e disse que alí dava um lugar muito bom pro posto...
(Antônio Moreno)
Na falta da pura e simples evidência de se estar de frente a um grupo indígena, era
preciso buscar a legitimidade para a atuação tutelar nas fontes narrativas da etnologia que,
além de acervo descritivo, passa a funcionar como fonte de remodelação da realidade,
caminho que leva a uma ordem anterior provável, molde através do qual é possível corrigir
os desvios provocados pelos acidentes históricos sobre a forma imutável da cultura.
O que que ele organizô foi que a nossa classe fazia umas corrida
naquela estrada que desce em frente da igreja e ele achou que não tava
certo, ele disse que era pra fezê uma reserva mais suficiente, que fosse
num terreiro dagente, que fizesse largo, ou caçasse um lugarzinho no pé
da serra, num lugar lá separado da estrada, que passa gente toda hora.
Então que isso agente seguiu, mas na união ninguém seguiu, foi pocos
que seguiram. Então que era pra..., por exemplo, eu boto eles [os
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 68
“Praiás”] pra brincá hoje, amanhã o sr. bota alí, depois botam pro lado
de lá. “Aqui tá merecendo eles criarem um limite..., a regra era ser um
terreiro só, mas como eu alcancei aqui tudo com muitos anos, vocês
façam um terreiro no nascente e um no poente e outro aqui pro sul e
outro pro leste. Então se o povo não quizé se uni, fica só os dois,
nascente e poente, e se pegar e aborrecê, fica só um.”. Se nós tivesse
escutado, nós tava aqui..., mas tem uns vinte. (João Binga)
Os terreiros de Toré, como os encontrou o “dr. Carlos” estavam espalhados por
quase todo o arredor do Brejo, subindo as serras, acompanhando o movimento de fuga das
famílias expulsas pelas linhas. Apenas entre os principais existiam quatro terreiros e é
interessante que o terreiro posteriormente conhecido como “do nascente”, após a sugestão
do “dr. Carlos”, se localize encostado à nascente de água do pé da serra, conhecida como
Fonte Grande, responsável pela água que irriga todo o Brejo, através do pequeno córrego
que lhe corta ao meio, cuja direção é desenhada pelos contrafortes da Serra Grande e
paralelo ao qual corre a estrada que leva do Brejo à atual Itaparica (à época, levava à antiga
Petrolândia, hoje submersa). Não existindo evidências mais fortes para afirmar a existência
das bandas opostas e simétricas, justificadoras da suposição sobre um substrato mítico
comum aos já reconhecidos Fulni-ô, seria possível talvez criá-las, com pequenos acertos,
aparentemente, sem maiores consequências sobre a vida da comunidade.
Estabelecido o código de correspondência entre fatos e a descrição etnológica
interessante dos fatos, era preciso ainda, para o exercício da tutela, estabelecer a
correspondência a outro código, agora de origem estatal, mas igualmente adaptador da
realidade a um modelo prévio. Tudo indica, como veremos nos capítulos seguintes, que ao
chegar ao Brejo dos Padres, Carlos Estevão encontrou um tipo de distribuição de
autoridades que respeitava um único corte, de natureza mais evidentemente religiosa e
moral que propriamente de domínio ou exercício de poder. Esse corte dava lugar a uma
única autoridade, o “sarapó”, responsável pela guarda dos segredos da aldeia, conhecedor
profundo das tradições e dono do Terreiro do Índio Xupunhum25, hoje conhecido também
por Mestre Guia, o Encantado maior da aldeia, chefe de todos os outros Encantados, único
a ter uma festa anual, associada à festa do Umbu, conhecida como a maior festa da aldeia
(Cf descrição em OLIVEIRA,1943). Não exatamente abaixo, mas ao lado dele, vinham os
outros “pais de Praiá”, normalmente homens mais idosos, chefes de famílias extensas, cuja
autoridade moral estava ligada ao fato de possuírem um número variável de Praiás e,
eventualmente, concentrarem as lealdades de outros, com origem em outras famílias e
terreiros no seu próprio terreiro.
Para a criação de uma interface para a comunicação com o órgão indigenista no
entanto, se fazia necessária a imposição de uma moldura política às relações de autoridade
vigentes, discretas, informais e não hierárquicas.
25
Os elementos constituintes do sistema ritual Pankararu serão objeto de análise nos capítulos seguintes,
bastando por hora deixar claro apenas que nele existe um corpo de entidades sobrenaturais denominadas
Encantados, que se manifestam ou através dos seus “zeladores” em situações de culto doméstico, ou através
dos Praiás, nas situações de exercício do Toré. Os Praiá se constituem de dançadores vestidos de saia e
máscara de fibras de croá, encimadas por um disco de tecido e penas localizados na parte posterior da
máscara. Os terreiros são os locais onde se realiza o Toré e que em muitos casos associa-se ao pátio externo
de um agrupamento residencial que tende a coinciodir com o círculo de casas de uma família extensa e
agregados. O Índio Xupunhum ou Índio Mestre Guia é o Encantado mais importante da aldeia, manifestandose apenas uma vez por ano e num ritual onde se destacam várias diferenças com relação aos outros Torés e
outros Encantados. Um rápido apanhado de informações sobre esses personagens rituais (em especial as que
não exploradas neste trabalho) estão disponíveis no “Anexo 3: Notas sobre o sistema ritual Pankararu”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 69
Em 1935 veio o dr. Carlos Estevão para saber das origens daqui e as
pessoas não souberam bem explicar e foram atrás do pajé que naquela
época não era pajé, era sarapó...[Ele e “o outro”] só representavam
quando vinha assim, um representante, que chamavam eles, eles vinha
com arco e fazia a representação deles [...] Tinha assim... aquela pessoa,
mas não representava tanto assim, como tem hoje o cacique, tinha
aquelas pessoas representantes, mas que não faziam tanta coisa como
tão fazendo hoje [...]. Era por família, assim: morria o capitão, fica com
o filho, aí vai passando de filho pra neto, pra bisneto, vai dependendo
também do trabalho da pessoa, se a pessoa trabalhá importante e todo
mundo gosta... aquele será tirado só quando falecê. Mas se ele não
conseguir trabalá dioreito, então ele troca... (Antônio Moreno)
Para a sua transformação em índios foram criadas então, três figuras de poder que
corresponderiam a uma suposta repartição da vida tribal, mas na verdade refletiam apenas
uma repartição de poder com base no modelo estatal: o cacique (pensado como autoridade
política), o pagé (como autoridade religiosa), o capitão (como autoridade policial) e o
encarregado, conhecido como “chefe de posto”, ou simplesmente “chefe”, responsável
pelo poder tutelar e pela administração da área indígena e sua evolução econômica, e à qual
as outras três autoridades nativas deveriam prestar contas. A escolha do pagé encontrou
uma aparente tradução imediata na figura do “sarapó”, e sua escolha foi mais ou menos
evidente para Carlos Estevão. A escolha da segunda autoridade no entanto, por não
encontrar nenhuma correspondência com o sistema de distribuição de autoridades vigente,
foi atribuída ao próprio “sarapó”: Carlos Estevão pediu que ele escolhesse um homem de
confiança seu para o lugar de cacique. As primeiras adaptações, portanto, no sentido da
construção de uma indianidade, na situação Pankararu, se antecipariam à chegada do
próprio SPI, por ingerências do “dr. Carlos”, em suas primeiras visitas, de 1935 e 1937.
Com a chegada efetiva do SPI, mas ainda sob a orientação de Carlos Estevão, foi
realizada a primeira sucessão daquelas duas autoridades, já muito idosas, e uma “tradição”
de vida curta começava então a ser implantada: no lugar do velho pagé assumiu o seu filho,
ganhando o cargo um caráter hereditário, enquanto para o lugar de cacique, era repetido o
procedimento anterior, em que Carlos Estevão novamente pedia ao novo pagé que
escolhesse um homem de sua confiança. O terceiro cargo “nativo” só seria estabelecido
mais tarde, por ação direta do órgão indigenista: o lugar de capitão era assumido por João
Moreno.
... e aí meu pai ficou como capitão. Qualquer coisa que acontecia aqui
na aldeia, não é que nem hoje, que a coisa tá mais..., que o pessoal
evoluiram muito e a coisa tá mais evoluída.... Assim, quando tinha uma
teima, meu pai ia, apasiguava logo e o branco não sabia. Hoje tá
diferente porque qualquer teiminha que tem, se o chefe não resolve tem
que levar logo pro branco... (Antônio Moreno)
Com isso eram introduzidos os novos elementos que viriam assumir uma
importância fundamental no arranjo de autoridades Pankararu. O atributo que até então
teria dado um vago prestígio àqueles que na comunidade eram responsáveis pelas viagens
em busca dos direitos, isto é, as lideranças peregrinas, ganhava então um novo estatuto,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 70
formal e com atributos até então desconhecidos. Além disso, como ficará mais claro na
segunda parte deste capítulo, as duas adequações ao modelo da indianidade (a etnológica e
a estatal), apesar de pensadas em separado, estavam intimamente ligadas, já que o sistema
de distribuição de terreiros estava associado ao sistema de distribuição de autoridade e a
eleição de uma nova figura de autoridade dava lugar a um critério novo e externo ao
sistema dos terreiros.
2
É pouco depois da fundação do “Posto Indígena Pancararu” que se definirá para a
população local, remanescente e não-remanescente, o significado da transformação dos
caboclos do Brejo em índios Pankararu. Imediatamente após a fundação, entre 1940 e
1941, existiram (pelo que se pode recuperar pela quase nula documentação do período)
dois encarregados, Décio Dantas e Vicente Ferreira Viana, sendo que o primeiro parece ter
origem numa importante família de políticos de Tacaratu, a família Dantas. Sobre eles não
há qualquer registro na memória do grupo, permitindo supor que nem mesmo tenham
ocupado o posto indígena. Mas aproximadamente entre 1941 e 1942, vem ocupar o cargo
Orinculo Castelo Branco Bandeiras, mais conhecido pelo grupo como Castelo Branco,
aparentemente um sargento do exército reformado, que também não deixou quase nenhum
registro administrativo de sua passagem pelo posto, não permitindo por isso, um trabalho
de reconstituição das suas iniciativas protecionistas em termos de história administrativa,
sejam elas educacionais ou produtivas. O lugar que ele ocupa na memória do grupo, no
entanto, revela que com ele se define o significado (ou ao menos o primeiro significado)
atribuído à tutela e à noção de proteção.
Sua passagem produz grande impacto sobre o grupo e, ainda hoje, é lembrado como
o melhor chefe de posto, o menos ambíguo, o mais “perigoso” para os posseiros e mais
positivo com relação aos direitos indígenas sobre a terra. Em meio à massa de mais de
vinte e cinco encarregados que passaram pelo PI Pankararu ao longo de cinquenta e cinco
anos, ele é sem dúvida, o único sobre o qual é possível recuperar na memória da
comunidade, ou dos posseiros, relatos expressivos, concentrando em si a imagem do
período inaugural da atuação do órgão, que explica em grande medida a força de adesão
que o SPI alcança entre os Pankararu, ao mesmo tempo que dá uma medida aproximada do
impacto local representado pela mudança de estatuto legal dos caboclos do Brejo. Sua
atuação representou a abrupta inversão de sinais nas relações entre índios e particulares e
deu à idéia de proteção o sentido de guerra aberta, que respeitava uma lógica mais militar
que administrativa. Durante sua administração a aldeia deveria estar permanentemente
preparada para reuniões imediatas, de caráter tático, tendo criado a tradição (que ainda hoje
tenta-se fazer valer sem sucesso por parte de algumas lideranças) de reunir os índios no
posto indígena através do toante de um grande búzio, que ele soprava para convocar
reuniões gerais. É dessa época que vem a nostalgia de uma permanente mobilização da
aldeia proporcionada pelo posto indígena, de um estado de alerta e excitação que, pela
primeira vez, explicitava o confronto entre índios e não-índios.
Pra mim todos foram bons, mas primeiramente, Castelo Branco. [...]
Castelo Branco vinha montadinho numa besta, rodava por aqui. Um dia
eu tava na Tapera, ele passou e dixe “Ei, vá dizê aos índios que eu tô
circulado de posseiros aqui e é pra vim pra nós enfrentá”. Nesse tempo
no posto tinha um búzio e ele pegava naquilo e tocava “Buuuu-úuuuu...” e quando tocava aquele búzio, era novidade. Os cabras chegava
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 71
e “O que é ?”. “Castelo mandô dizê que é pra reuni lá no Brejo, e que
qué muito homem, pra tirá ele do círculo que os posseiro tem feito”. E
reunia aquele mundo de gente, um de foice, outro de facão... e quando
chegou, ele levantou-se, me abraçou e disse “Há..., agora eu sei que os
índio tão comigo...”. Tava só testando: “bom, agora nós vamo brincá.”.
Naquela época eram poucos por aqui, mas todos que tinha foram. Aí
quando chegou lá ele mandou..., uns cantava Toré, outros dançava Toré,
outros tocava violão..., eu sei que foi uma farra até doze horas da noite.
Eu sei que nesse tempo era uma animação danada. Depois chegô, parece
que o sr Agenor Guedes, depois o Santanna... 26 (Honório da
Carrapateira)
Até então, as relações entre índios e não índios, mesmo em se tratando das
lideranças que se mobilizaram pelo reconhecimento indígena e buscavam ajuda contra a
invasão das roças pelo gado, passavam por uma relação de vizinhança, bastante
mediatizada por relações de afinidade, trocas matrimoniais, laços de compadrio, de
emprego e de clientela. O discurso das lideranças dos posseiros, desde as mais velhas
(ativas durante as décadas de 1940 e 60) até as atuais (sindicalizadas) passa justamente pela
negação da existência do conflito, enumerando para isso os laços sociais e afetivos, as
histórias de namoros, casamentos, mais recentemente o hábito dos jogos de futebol (onde
índios e não-índios não jogam necessariamente em lados opostos), as viagens para a feira
nos mesmos “carros de aluguel” de Tacaratu, os filhos que estudam na mesma escola etc.
Porque nunca houve. Nunca houve conflito. Os conflitos eram o
seguinte... Nunca houve conflito porque sempre houve grande amizade
entre nós. Meu pai trabalhava como posseiro..., justamente os nossos
trabalhadores eram os índios, os próprios índios. No dia que meu pai
queria um batalhão, chegava então um compadre daquele -porque
calculadamente, uns 8 afilhados pai tem dentro daquela tribo (entre pai e
mãe)- então quando meu pai precisava de 20 homens pra trabalhar,
chamava um compadre daquele: “compadre, tal dia quero 20 homens”.
Isso era no sábado, quando ele vinha da feira de Itacaratu. Quando era
na segunda feira, seis horas da manhã, a casa estava completa. Ali ele
trabalhava. Se fosse possível, determinava para o segundo dia outro
tanto de trabalhadores e, com aquilo ali -não se tinha aparelho agrícolaera tudo assim: se trabalhava era com aquele pessoal, tudo amigado,
tudo como irmão. O que eles precisavam do meu pai... ele antecipava
dinheiro pra eles, fazia o adiantamento daquilo ali, tudo legalmente. Isso
ocorreu até o tempo que foi criada aquela tribo, até 1940. (Odilon
Gomes Maurício)
No depoimento deste que foi responsável pelas ações contra o SPI na década de
1950 e a mais importante liderança entre os posseiros naquele primeiro momento, são
26
Pelo que é possível recuperar através da documentação referente ao Posto Indígena Pankararu nos arquivos
do Museu do Índio, Agenor Guedes foi o encarregado seguinte à Castelo Branco e o Santana foi um dos
últimos a ocuparem o cargo, em fins da década de 80, e que realizou a demarcação de 1984. A lacuna de
memória entre esses dois encarregados nesse depoimento é representativa de vários outros depoimentos e dá
uma medida do grande vazio que marcou a presença e atuação normalmente burocratizada dos “chefes de
posto”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 72
enumerados os nomes dos índios que não só trabalharam ou agenciaram trabalhadores para
o seu pai, mas também dos que eram seus afilhados e dos que vieram a casar com parentes
seus.
eu não quero maltratar, porque ali tem rapazes de bem, como o [...]
casado com sobrinha minha, que mora justamente lá dentro [...] o Neco
Barros. A mulher dele é filha de um primo legítimo meu, a Maria. Tem
uma que morreu, outra sobrinha minha, que era casada com Valdevino,
que é o pai daquele índio por nome... [Rosalvo?] Não, Rosalvo Julião é
filho de dona Menina. Aquilo ali é um amigão da gente. Ele comenta:
“rapaz, isso me dói”. Certas coisas..., que ele não compartilha dessas
coisas. O finado Antonio Pereira se aproximava de meu pai e dizia:
“Compadre, a coisa que mais eu sinto é ver o sofrimento de vocês e não
poder dar uma palavra. Porque vocês sofrem injustamente, vocês não
merecem isso. [Quem é esse senhor?] O Chico Pereira, justamente
aquele que meu pai era padrinho de 2 filhos dele: de Antonio e de Zé
Pereira. E Zé Pereira é casado com uma menina que é filha de uma
prima legítima minha. [...] Eu tenho uma neta casada com um índio que
é neto de Chico Pereira. O nome dele é José... José ... Tem o apelido:
José Ronaldo Pereira. Se acha em Recife, é um grande profissional no
movimento de solda. [...] Ele tem horror, tem as melhor propriedade
dentro do Brejo, entregou pra mãe e o irmão e diz que tem até nojo de
ver a safadeza que ocorre ali dentro do Brejo... (idem)
Os posseiros com os quais os Pankararu tinham problemas relativos à invasão do
gado sobre suas roças eram também aqueles que mantinham relações mais constantes, de
parentesco e/ou de patronagem. Era comum que esses pequenos proprietários também
utilizassem os serviços ou mesmo os pequenos engenhos de índios para a manufatura de
melado e rapadura. No entanto, quando foram definidos os limites legais da área indígena,
todos aqueles que não foram incluídos no estatuto de índios passaram ao estatuto de
posseiros, independentemente do tempo que ocupavam a área ou da documentação que
tivessem dela, passando a ser obrigados a pagarem foro pela terra que usavam ao SPI. A
princípio essa situação, para os posseiros absurda, foi condensada na imagem inaugural de
Castelo Branco, acontecendo com a sua imagem algo semelhante ao que já foi descrito
sobre a posição de Cavalcante na memória Pankararu, levando ao mesmo tipo de confusões
cronológicas, inclusive no domínio da escrita, quando o advogado dos posseiros enviou
uma petição ao SPI reclamando da série de arbitrariedades praticadas por Castelo Branco,
onde se incluia também a própria demarcação da área indígena (DOC.:13)
No depoimento de Odilon Gomes Maurício, fica claro o contraste entre as imagens
de paz e de guerra, antes e depois da chegada daquele encarregado.
E por aí existia essa amizade, sem nenhum conflito. Depois de 1940, com
todas as atrapalhadas, como se fez, que veio [...] Eurico Castelo
Bandeira, foi quando justamente ele obrigou de fazer coação a
população pagarem renda dentro do prazo determinado. Dentro de 48
horas, quem não se assujeitasse a pagar o arrendamento seria expulso e
seus bens ou retirado dentro de 24 hora, senão seu gado seria ferrado
com o ferro do próprio posto, o SPI [...]. A essa altura, como eu já tinha
dito que, com meu pai, que não sujeitariamos, e outro representante,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 73
Severo Gomes Maurício, que era adjunto de promotor naquela época,
um homem justamente muito credenciado, então que não sujeitaria
pagar, tendo que juntar o gado no campo até horas da noite, pra no dia
seguinte, dentro do prazo de 48 horas retirarmos, como retiramos, para
Barba do Casado, onde hoje ali ao lado tá a grande empresa, a
Barragem do Xingó. [...]
[Castelo Branco] Invadiu as nossas propriedades, eu perdi oito tarefas
de mandioca, de ano e dois anos, em ordem de farinha, como eu não quis
sujeitar-me a pagar o arrendamento ele expulsou-me e eu perdi tudo.
[...] Severo Gomes Maurício, que era meu tio, esse perdeu a propriedade
dele. Não foi por completo, porque depois, quando chegou um chefe por
nome de Vicente Ferreira, muito cidadão, muito bem conceituado,
contemplou as desordem praticada por Eurico Castelo Branco Bandeira,
e foi o autor que mandou chamar-me (nessa época eu morava no
município de Delmiro), que viesse fazer um acerto com ele e voltasse
para a minha casa. (Odilon Gomes Maurício)
Além do pagamento das terras usadas diretamente, Castelo Branco restringe o
acesso aos outros recursos disponíveis e antes usados livremente. As capinas são então
vedadas ao gado dos não-índios, as fruteiras e coqueiros passam a ter seus frutos colhidos
por ordem do encarregado para serem distribuídos entre a população ou vendidos pelos
próprios índios (e não como parte da renda do posto indígena) na feira de Tacaratu. Era um
cenário de abundância e soberania para a população indígena e de barbárie para as
autoridades locais.
Era um bárbaro! Que quando foi levada a ação pelo Dr. José Ferreira
Lima, advogado, escrevia: “o elemento com nome de Castelo Branco Bandeira,
não se escreve o nome dele com letra maiúscula, só escrevo com letra
minúscula porque aquilo foi um bandido que tinha aqui dentro do município de
Petrolândia... (idem)
O padrão dominante nas relações locais entre índios e não-índios era então
invertido, e os Pankararu reviviam a história da morte de Cavalcante. Como resposta, os
posseiros passam a recorrer às autoridades de Tacaratu, como o promotor, o prefeito e o
delegado, que eram em muitos casos seus próprios parentes. O território indígena no
entanto, como domínio da União, estava fora da sua esfera de ação e Castelo Branco fazia
valer suas prerrogativas de interventor sobre um território especial. O último
acontecimento que envolve a figura de Castelo Branco demonstra até onde esta
prerrogativa podia ser usada. Esse caso é relatado com minúcias por quase todos os homens
mais idosos da área indígena ou dos posseiros, mesmo que eles não tenham presenciado o
acontecimento, encontrando variações mínimas entre os diferentes narradores. Essa
estabilidade do relato é importante como índice não de uma veracidade, que seria
assegurada pelas diferentes fontes, mas da forma como o relato foi fixado através das
inumeráveis vezes em que já foi repetido, carregado que está do valor de um evento
paradigmático das potencialidades de um conflito eternizado e permanentemente
sublimado por variados laços de dependência. Entre os Pankararu, muitas vezes o relato
ganha um aspecto humorístico, que tira sua graça da inversão das hierarquias vigentes, da
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 74
excepcionalidade da realização de um desejo e dos seus detalhes grotescos , numa espécie
de “carnavalização” (no sentido dado ao termo por Baktin) da história de Cavalcante.
O contexto do evento é a busca, por parte dos posseiros, de providências contra o
que consideravam as arbitrariedades de Castelo Branco, junto ao presidente da república,
Getúlio Vargas, depois de terem reconhecido a nulidade da ação das autoridades locais. Em
resposta, a presidência da república simplesmente faz comunicar ao SPI a queixa, que
então a transmite ao Castelo Branco. Nesse ambiente de exasperação, um dos posseiros da
área que havia subescrito a queixa, casado com uma “menina do Brejo”, morador em
Tacaratu e policial destacado no batalhão da localidade de Quixaba, vizinha ao Brejo,
envolve-se numa desavença com um índio e, com a autoridade de policial, confisca e
quebra a faca que o índio portava. O índio faz queixa à Castelo Branco, experimentando
um tipo de recurso que até então não tinha existido. É nesse ponto então que começa mais
uma das histórias que não cessamos de repetir e que contam com a aquiescência de todos:
O soldado tomou a faca de um caboclo. Eles acharam ruim, falaram
para o Castelo Branco, que mandou dizer ao soldado que não era pra
atravessar mais a área indígena. O soldado destacava na Quixaba e
quando ia pra Tacaratu tinha que atravessar o Brejo. O soldado por sua
vez também era um pau duro, dixe: “passo hoje”. E às cinco e pouco foi
de Tacaratu. Quando chegou na Folha Brnca, disseram a ele: “home,
não passe lá não”, “vou, passo nesse instante lá”. Aí foi e quando
chegou em certa altura, tinha uma turma de caboclo e disseram de novo:
“não vai lá não” e ele: “vou”. E passou lá onde Castelo Branco estava.
Quando chegou arriou o rifle em Castelo, “páaa...”. Castelo Branco
pulou, que era prático que era danado..., pulou dez metros de altura e a
bala passou. Quando ele desceu ele tornou, “páaa...”. Castelo já pulou
mais pra perto dele e quando no terceiro tiro, o Castelo já tava pegado
nele assim, segurou o rifle e ele detonou no chão, cascou a boca do rifle
que ficou que nem uma flô... Aí a caboclada “roouum”, aí bateram,
“pou, pou, pou, pou, pou, pou... Pou, pou, pou, pou, pou, pou.”. No meio
um caboclinho deste tamaninho assim que tinha, arrancou de um punhal
bem assim e mandou no peito do soldado. Quando ele madou, o Castelo
Branco pegou. E dixe: “olhe, não mate, não faça isso não porque você
faz só desgraça, dele, sua e a minha”
Aí marraram o soldado e levaram para o posto. Ele apitou no búzio e
não ficou um caboclo na aldeia pra não chegá no posto. Ele dixe: “Aqui nós vai
matá um porco e assá ele aí, no meio do tempo”. Assá não, tucá aquele toco
assim no espeto e mostrá o fogo e comia aquilo, correndo um sangue danado.
“Caboclo e chefe come assim. E quem não for caboclo diga, mas quem for
come assim, correndo sangue”. Depois dixe: “Agora, vá um piquete pra Igreja
lá embaixo, armado”. O que fosse que tivesse de arma na aldeia ia. Quem não
tivesse espingarda ia com a enxada, quem não tivesse enxada ia com picareta,
quem não tivesse picareta ia com machado, mas todo mundo armado de cacete:
“E quando o carro da polícia chegá, os caboclo vem na frente, caminhando bem
devagarinho e o carro é pra vim atrás deles, assim ó: vruum, vruum, vruum... [o
sr. Marcelino ri enquanto conta] ... e quando chegá na igreja é pra ter otra
patrulha de caboclo pra arrudiarem o carro. E, olhe, sorte da polícia toda, com
sargento e tudo, se uma bala de catinga...” (O sr. sabe o que é uma bala de
catingueira..., que estrala quando tá seca: “trá!” e avoa fora os passarinho em
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 75
bando...) Pois bem, ele dixe: “sorte deles de uma bala de catingueira não
estralá, porque se estralá uma bala de catingueira nós vamo pensá que é um tiro
e é pra deixá tudo em pó, caminhão com polícia e tudo”... [rindo bastante]
Mas não houve, nem uma espoleta não estralô. Aí eles chegaram no
posto, Castelo Branco entrou com o sargento, dixe: “Olha o seu cachorro.
Vamo conversá” e trancou-se por dentro com o sargento. Ficaram conversando
e sairam e dixe: “Mande desamarrá seu cachorro e carrege”. E o soldado,
machucado de pau, roncando no chão seu Zé Maurício, como um porco. Como
um porco, seu Zé Maurício... (Marcelino Viana)
A história havia chegado ao conhecimento do juiz de direito de Petrolândia,
Antonio Correia de Araújo, que então mobilizou a polícia do município para resgatar o
policial preso no posto e trazer junto com ele o encarregado do posto indígena. Apesar da
polícia não ter conseguido retirar Castelo Branco da área indígena, mais tarde ele seria
processado e transferido27. Segundo lembram os Pankararu, foi o “dr. Carlos” que lhe foi
buscar para leva-lo à capital onde seria defendido do processo por um advogado da União.
Nos relatórios do SPI, esta história também aparece como exemplar, na demonstração dos
problemas que o órgão enfrentava na defesa da posse indígena da terra: quando não eram
os obstáculos impostos pelos governos estaduais na doação das terras necessárias ao órgão,
como nos casos do Amazonas e Pará, eram os antagonismo dos senhores de terra,
auxiliados pelos políticos locais. O relatório de 1942 da diretoria do SPI ao MAIC assim se
queixava do caso na sua introdução:
... sendo o juiz de direito da Comarca de Itaparica [...] um dos ocupantes
da terra dos Pancararús, tornou-se o chefe da oposição ao SPI e
arranjou meios de processar os seus serventuários pelo crime de se
defenderem e os índios, de atentados contra êles cometidos à luz do dia e
à vista de todos. (DOC.:14)
3
A atuação de Castelo branco no sentido de liberar uma violência até então
sublimada resultaria, no entanto, numa ambiguidade fundamental, onde a oposição
declarada entre índios e posseiros não conseguiria se sobrepor e apagar os laços e alianças
pessoais e familiares que cruzavam a fronteira entre as duas categorias. Por um lado, o
exercício do novo poder e a realidade de um território de exceção produziram imediata
adesão por parte de uma população até então subordinada, tendo sido em parte absorvidos
no seu próprio arranjo interno de autoridades; por outro, essa nova ordem teria que ser
permanentemente negada nas relações face-a-face, como forma de preservar alianças e
relações de trabalho e afeição, que muitas vezes implicavam num papel de honra.
João Moreno, voltando a um personagem fundamental neste primeiro período,
constitui uma situação individual que revela essa ambigüidade. Ao assumir o cargo de
27
Odilon Gomes Maurício complementa a narrativa do ponto de vista da cidade explicando que enquando o
delegado foi até a área buscar o soldado e Castelo Branco, o juiz de Petrolândia ficou esperando sua chegada
andando de um lado para o outro da rua "que nem lançadeira" e que, sob a decepção de não vê-lo trazido,
resolve castigar o próprio delegado: "... ele levantou a mão assim no queixo dele, balançou pra lá e pra cá e
disse: 'Eu deveria arrancar-te a farda no meio da rua, mas em todo caso eu vou te dar um jeito'. E mandou ele
pra Santa Maria da Boa Vista, que naquela época a maleita matava até os paus, quanto mais cristão que
chegava assim."(Odilon Gomes Maurício)
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 76
“capitão”, imbuído e sustentado pela legitimidade conquistada em seu desempenho de
liderança peregrina, responsável pela própria presença do órgão, passava a gerir os assuntos
internos com ações repressivas, no lugar da prática de convencimento e aconselhamento,
características das antigas autoridades. Por outro lado, ele era um dos que estavam mais
fortemente enredados em relações de aliança com aqueles que agora representavam o
inimigo permanente.
[...] João Moreno casou-se com uma prima minha. Ele viuvou e casou-se
com uma moça aí do Bem-querer, prima minha, parente da gente. [...] A
gente onde encontrava dialogava. [...] que era muito amigo da gente. A
gente viajava junto pra Tacaratu, chegava ali no Brejo, ia subindo e ele
alcançava a gente: “Ah, vamo batendo papo”, até chegar dentro de
Tacaratu. Nas demarcações, em cima das demarcações dos limites com
Tacaratu tinha um caboclo por nome Antonio Curinga, caboclo velho,
justamente Zé Coringa, irmão dele era compadre de pai. Pai era
padrinho de João Coringa. (Odilon Gomes Maurício)
Essa situação das alianças que demarcava, em lugar de uma linha de distinção, uma
larga faixa de “mistura”, produz a ambigüidade do engajamento Pankararu no modelo de
relacionamento conflitivo proposto pelo tipo de atuação tutelar de Castelo Branco. No
lugar da franca oposição que supostamente existia entre índios e não-índios, surgem muitas
situações onde a oposição é negada, ou cuja responsabilidade é transferida para um lugar
de autoridade fora do alcance das decisões indígenas.
Como já foi apontado no capítulo anterior, a entrada do órgão, representado como
“governo dos índios”, tem uma leitura por parte dos Pankararu que aproxima-o de uma
certa lógica ou ética religiosa, na qual assume o lugar de “pai”, que restitui os “direitos”
aos seus protegidos, devendo também isentar-lhes do conflito direto. A “luta”, ao contrário
do que ocorre com o vocabulário da militância camponesa (CAMEFORD,1995), não surge
como um valor no vocabulário Pankararu. A entrada deste terceiro elemento, o poder
tutelar, naquela precária e desfavorável situação de equilíbrio anterior entre índios e nãoíndios, tem dois efeitos aparentemente contraditórios. Primeiro, altera o estado do jogo de
forças, expondo uma tensão até então encoberta por laços de dependência desiguais,
viabilizando enfim o conflito propriamente dito. De outro lado, por operar como uma
instância externa e superior, com a qual os índios mantém uma relação de dependência e
obediência, ele também serve para encobrir o conflito, agora no entanto sem anulá-lo. Ao
assumirem a postura pública de obediência e impotência frente a uma instância superior
que toma para si o objetivo de retomada territorial, os índios garantem, ou pretendem
garantir, o espaço privado das “lealdades primordiais”, dos “fluxos de troca” e das relações
de “favor / ajuda” que produziam “adesões” (PALMEIRA,1989) por cima ou por fora dos
recortes categoriais. Podem então, manter antigos laços, mas impondo-lhes um novo
sentido que não é mais o de manter um equilíbrio de relações de dependência desiguais.
Esse efeito marca o discurso e a postura não só dos Pankararu, mas também dos
posseiros, que desde então evitam tratar do conflito como se estivesse no plano do arbítrio
indígena. Os seus “direitos” à terra são direitos que lhe foram atribuídos pelo “governo” e
os atos de destruição dos símbolos deste território federal, como os marcos da demarcação,
as cercas que cobrem o perímetro da área, ou as placas que anunciam a área de propriedade
da União, são pensados como insultos, não aos índios ou à soberania territorial indígena,
mas como desrespeitos ao “governo”, já que a terra a “ele” pertence. Em geral, os
Pankararu se representam e são representados pelos posseiros, no domínio público, mais
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 77
como objeto e pretexto da ação estatal, que para os posseiros estão relacionados a
interesses políticos difusos, do que como protagonistas das conquistas fundiárias.
Os meus primeiros encontros com as lideranças do grupo, em 1993, foram
marcados justamente pela forte impressão causada por um discurso que assumia antes de
tudo o lugar do tutelado. Na verdade, esse discurso não é homogêneo, sofrendo alterações
provocadas pela mudança dos contextos de enunciação, dependendo do tipo de experiência
e engajamento que determinada liderança guarda com relação ao conflito. Mas podemos
tomá-lo como um discurso hegemônico ou, ao menos, como o sub-texto que informa as
variações. Nesse discurso “o governo” aparece como pai displicente, que deve proteger seu
filho, mas que tem lhe faltado nas horas mais importantes. Uma das imagens que foram
usadas é a da briga de dois irmãos por uma espiga de milho, onde o pai dá razão a ambos,
em lugar de decidir pelo direito de um deles.
Em uma reunião realizada no posto indígena, onde tive a oportunidade de
apresentar os objetivos de minha pesquisa a cerca de quinze lideranças, que incluíam o
pagé e o cacique, pude ter uma idéia do alcance deste discurso básico e relativamente
padronizado. O cacique abriu a reunião dizendo que a questão não era deles, dos índios,
mas “dos home”, isto é, “o governo”, que demarcou as terras, pôs cercas e é
constantemente desrespeitado pelos posseiros: “...é uma vergonha pro governo”, “... eu me
queixo só do governo”, porque ele tem poder, tem “exercício”, tem “leitura” e “se não usa
é porque não quer”. Segundo o cacique, os Pankararu não podem fazer nada porque eles
não são donos, o dono é “o governo”. Nas palavras de outra liderança, a imagem do
governo-pai ganhava uma variante: não existiria apenas um pai para dois filhos, mas dois
pais que não deveriam permitir que seus filhos brigassem. Os diferentes governos dos
índios e dos posseiros, como pais preocupados, deveriam se entender, para que seus filhos
não tivessem que “se acabar”: “... o governo demarcou as reservas pros índios não ficarem
soltos pelo mundo. Por isso nós estamos em casa aguardando ele, até ele percebê que os
índios estão precisando de ajuda. E só ele pode fazer porque a terra é dele”. Nestes
depoimentos, a relação tutelar vem garantir direitos, assistência e proteção, mas sob o
preço de não destituí-los do lugar do oprimido que, afinal, é o que justifica a própria
relação tutelar. A manutenção deste lugar deve garantir o precário equilíbrio entre o
exercício dos novos direitos territoriais, marcados por um ideário de distinção e exclusão, e
as relações de afinidade, clientela e parentesco, que negam a tão clara distinção.
... naquela época a gente não entendia das coisa, quando nós dizia nós
quer então nós caçava força e ia, e todos acompanhava. Mas agora eu já
tô diferente: na hora que nós embalança, temo que jogar a União de
frente, porque eles tão ganhando pra isso. Nós não vamos deixar um
chefe de posto assentado e enfrentar uma questão. Nós não vamos deixar
um delegado assentado na cadeira, e nós morrer aqui, que se nós morrer
aqui aquela questão nossa não vai servir, que nós morremo. Então o que
nós temos que fazer é ele procurar um meio pra nossa defesa. Eu acho
que os índio tão certo, eles não tão errado não. O problema nosso é
querer. E eles tem que dar. Então, eles não ganha nas costas da gente?
Então eles tem que pagar nós também, porque se não fosse nós eles não
ganhava a imensidade... Porque o empregado da FUNAI ganha bem, os
mais fraco a gente sabe. E os mais forte? Então eles tem que fazer o que
nós quer. Esse daí [referindo-se ao atual chefe de posto, um índio
Pankararu], se disser “vamo lá no caldeirão brigar” ele se afasta. E ele
têm razão, porque se ele brigar ele morre novo e não consegue o que ele
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 78
quer. E ele dizendo eu quero... Nós tem que fazer o meio da imprensa,
fazer a nossa vontade, e ficar livre, que nós fazendo isso nós peguemo o
que nós queremo (Zé de Bernarda).
O governo das coisas
1
Os encarregados que sucederam Castelo Branco alterariam definição do papel do
encarregado de posto, fazendo da tutela rotina administrativa e estabelecendo um novo
padrão de relacionamento entre índios e não-índios. O primeiro, logo após o conflito,
reverteria inclusive os atos de expulsão de posseiros operados por Castelo Branco,
restituindo suas posses e restaurando parcialmente a ordem vigente. Se a ênfase de Castelo
Branco recaía sobre o território e sobre os problemas relativos à manutenção de suas
fronteiras, dando à administração da área indígena e à tutela um sentido aproximado ao do
exercício do poder soberano -isto é, a produção e controle dos mecanismos de
exclusividade de um espaço e dos bens com origem neste espaço, por uma determinada
população, através de arranjos táticos e diplomáticos, na extensão dos quais poderia
suceder a guerra- a dos encarregados seguintes recaía sobre a produtividade. Os Boletins
Internos do SPI dão pistas sobre a natureza dessa diferença de atuação. Para os
encarregados que lhe sucederam, a ênfase passou a estar na produção de bens e na autosustentação da -como então era encarada- empresa tutelar (Cf. Cap.1/2). Fundamental de
agora em diante passava a ser o governo das coisas (FOUCAULT,1979), no qual suas
iniciativas e resultados passam a ser expressos em termos numéricos. O território é
completamente abstraído e a própria população é encarada como mais um dos itens do
patrimônio indígena, ao surgir como índice contábil: número de homens, de mulheres, de
crianças, nascimentos e mortes.
O afastamento do conflito fica evidenciado pela forma periférica e distanciada
como ele aparece na documentação daí por diante. Assim, em 1945, num relatório de
viagem de Túbal Fialho Vianna, inspetor do SPI enviado à área para inspecionar a
passagem do cargo de encarregado de Agenor da Silva Guedes para Sebastião Francisco da
Silva, registrava-se que os rendeiros já não pagavam seus foros ao posto desde 1942,
recusando-se a responder os chamados do encarregado. Na ocasião, o inspetor procurou
apoio da polícia de Tacaratu sem sucesso, conseguindo mais tarde um destacamento de
Petrolândia para conseguir a presença dos posseiros no posto e a quitação dos atrasos
(DOC.:15). O andamento das ações dos posseiros na justiça faria com que esse tipo de ação
fosse interrompida estabelecendo-se uma trégua em que os encarregados passam a ser
responsáveis pela vigilância sobre os índios para que eles não invadam as áreas
consideradas de litígio.
Tendo chegado ao meu conhecimento que índiod desse posto em atitude
hostil vg estão cercando trechos propriedades Caldeirão vg Bemquerer
vg Brejino vg justamente na área litigiosa vg determino tomeis
providências sentido sustar quaisquer atos vg não consentindo de
maneira alguma a continuação de trabalhos de cerca pt Convém lembrar
aos caboclos que a ação encontra-se mãos justiça única autoridade que
decidirá causa pt Aguardo resposta (Telegrama de Raimundo Dantas
Carneiro para Coriolando Mendonça em 1953. DOC.:16)
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 79
Nos avisos mensais, esse distanciamento vai ficando claro pela sobreposição de
umas poucas observações pontuais sobre o conflito, entremeadas por informações
sitemáticas sobre a produção do posto. Assim, em 1954, a sumária informação de que
“alguns índios, chefiados pelo descendente de índios Cícero José Barros voltaram a
trabalhar na área em litígio” (grifos meus), recusando-se em obedecer às ordens do posto,
não tem qualquer continuidade nos “Avisos” anteriores e posteriores, onde abundam
notificações sobre a produção e comercialização agropecuária: “fizemos plantio de
coqueiros,..., plantamos 56 mudas de bananeiras, capinamos todos os campos de
fruticultura...” (Grifos meus. DOC.:17).
No início da década de 1940 estava em plena vigência o modelo de ação indigenista
que optava pelo arrendamento das terras, como forma de incrementar o patrimônio
indígena (PERES,1992). Segundo este modelo, “a criação das terras indígenas era
orientada a englobar a maior faixa de terra possível, a fim de que o poder tutelar fosse
exercido sobre um campo social mais abrangente” (idem), isto é, a maior faixa de terra
ocupada, como forma de criar um “mercado fundiário tutelado”. Sob esta perspectiva,
demarcar uma terra com posseiros significa a possibilidade de tutelar uma parte de
população e terras produtivas maior que aquela à qual a sua ação estaria legitimada a
princípio. Isso fazia dos arrendamentos não só uma prática recorrente, mas uma política
explícita, dentro de uma estratégia que se queria empresarial.
Por isso, as atuações dos encarregados que sucederam a Castelo Branco e que foram
vistas, por parte dos Pankararu, como uma degeneração da sua ação fundadora e exemplar,
da perspectiva do órgão indigenista, parece ter significado apenas uma correção de rumos,
substituindo uma performance discrepante e talvez anacrônica ou fora de contexto. Daí em
diante, a produção documental ganha volume, mas sempre sob um caráter contábil. As
poucas cartas enviadas pelos primeiros encarregados vão sendo substituídas por
formulários padronizados, onde vamos vendo não só a voz indígena, mas a do encarregado
também, sumirem sob a massa de dados numéricos que lhes é solicitada. Em lugar de
relatórios eventuais e subjetivos, onde os encarregados tinham espaço de se apresentarem,
narrarem as dificuldades por que passavam e construírem uma imagem mais concreta da
situação indígena, surgem os “avisos” mensais, onde lhes é exigida a contabilidade dos
nascimentos, óbitos, população, produção agrícola, pecuária, benfeitorias e acontecimentos
excepcionais, tudo de preferência sob uma forma contábil e “organizados segundo a feição
que ora foi imprimida ao Boletim Interno, para que à proporção que novos detalhes
venham sendo fornecidos à S.O.A., seja ampliado e melhorado até que se consiga dar-lhe a
forma estatística que tem ela em vista.” (DOC.:18).
Tais estatísticas tinham por fim avaliar o avanço dos postos na direção daquilo que
passou a ser um objetivo do órgão indigenista: a emancipação econômica (é bom frisar)
dos postos indígenas. Ainda que não pudessem por lei, como estabelecimentos de
assistência e educação, desempenhar papel de fonte de rendas, os boletins passam a apelar
frequentmente para que as inspetorias promovessem a emancipação de seus postos, como
forma de viabilizar a transferência de parte das verbas disponíveis para a ampliação do seu
mercado de tutelados, que em breve, esperavam, estariam produzindo suas próprias rendas.
No Boletim Interno de janeiro de 1943, a Diretoria definia para seus inspetores e
encarregados aquilo que o órgão estava concebendo como emancipação. Suas despesas
correntes eram, então, repartidas em dois tipos: A) pessoal administrativo, trabalhos de
orientação, ensino, tratamento e assistência, além de trabalhos manuais e B) ferramentas,
medicamentos, roupas, alimentos, aquisição de veículos, animais de criação e trabalho,
construção de cercas, estradas etc. O primeiro tipo de despesas fazia parte do orçamento
específico da República, mas para o segundo, o órgão dependia de planos quinqüenais,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 80
onde sua cota era cada dia mais escassa (DOC.:19). A emancipação consistia exatamente
no fim dos gastos do segundo tipo, já que a emancipação definitiva só seria possível
“quando serventuários indígenas aos poucos ingressados nos empregos e administração
dos postos” bastassem a todos os cuidados e funções, sendo também as rendas suficientes
para este fim (idem).
Com esse novo modelo de relação e de trabalho dos encarregados surge uma massa
documental volumosa, em larga medida, redundante e progressivamente impessoal, onde o
caráter empresarial da tutela vai se tornando mais evidente, quase restringindo-se a dar
notícia sobre as benfeitorias, plantações, colheitas, gado e comercialização do próprio
posto. O ano de 1943 marca para a área indígena Pankararu o início do empreendimento
tutelar, sob a gestão de Agenor da Silva Guedes, sob esse formato patrão-empresário.
Foram iniciadas então as construções dos prédios que viriam compor o “grupo do posto”,
servindo ainda hoje como núcleo da presença do órgão indigenista na área. São eles a sede
do posto indígena, a escola primária, a farmácia, um galpão, que posteriormente abrigaria a
casa de farinha, uma oficina de ferreiro e de carpintaria e um aviário. Dava-se início
também ao plantio de alguns trechos de terras do Brejo, chamados de “talões”, e à
aquisição de animais de trabalho e de criação em benefício das rendas do posto, tudo com
as verbas destinadas às benfeitorias, que vinham com seu emprego pré-determinado,
sugerindo iniciativas que deveriam ser padronizadas. Quanto às verbas de “auxílio aos
índios”, que deveriam ser progressivamente substituídas por rendas do próprio posto dentro
do programa de emancipação, o encarregado empregava na compra de material didático,
concerto de cercados, roçagem das picadas que marcam o perímetro da aldeia, pagamento
das dívidas contraídas pelo encarregado anterior e das contas do médico de Tacaratu, que
auxiliava a população indígena nos momentos de surto do tracoma, mal constante ao longo
dos anos.
A meta definida num plano de trabalho para o ano de 1945, pelo encarregado
Agenor da Silva Guedes, era inicialmente incrementar o cultivo das culturas tradicionais
(milho e feijão), tanto quanto possível através do emprego de máquinas, “visando ,
dest'arte, a educação agrícola dos índios, baseada nos moldes racionais, a-fim-de crear
nêles uma consciência agrícola, tanto quanto possível liberta da rotina” (DOC.:20). Além
da mecanização, sua atuação visava “desenvolver a policultura”, incentivando também a
mandioca e a palma, retomando a cana de açucar, o arroz, a banana e fazendo alguns
experimentos com o abacaxí, completamente fracassados. O plantio das palmas, que era
comum junto aos posseiros, deveria ser introduzido na economia indígena junto com o
gado, que era incentivado pela Inspetoria, como prática a ser adotada em todo o país,
conforme já aparecia no relatório do órgão para o ano de 1942.
A criação de bovinnos e correlativamente a de equinos, que o SPI está
fazendo, se destinam a construir a base da instalação econômica das
tribus. Isso porém está sendo feito com extremo cuidado, pois os índios
não se encontram ainda em condições de geri-la com o necessário
critério e economia. [...] É indispensável ministrar a todos os índios a
esse respeito uma educação especial e que predominem estímulos a
abastança e se criem hábitos de posse e instituições do valor real do
gado no comércio local e da importância da criação na vida futura da
tribu. (DOC.:14)
Apesar dos esforços dos encarregados no entanto, a criação do gado na área
indígena Pankararu encontraria como obstáculos a geografia do local, recortada por serras,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 81
e as constantes secas. Seu rebanho não ultrapassaria as 40 cabeças, muitas vezes vendidas
em urgência e por baixo preço nos perídos de seca. As dificuldades com as criações
refletem-se também no grande número de “termos de morte de gado”, através dos quais os
encarregados comunicavam o progressivo esvaziamento dos rebanhos. Além disso, o
sucesso desse trabalho de emancipação esbarraria no problema dos arrendamentos que
deixavam de ser pagos e tinham grande importância no total da renda indígena num
primeiro momento. Em 1943, por exemplo, os arrendamentos representavam o dobro do
que era alcançado com a produção agrícola e quase a metade do que era dedicado ao fundo
perdido dos “auxílios ao índio”:
Quadro 4 - Movimento orçamentário do PI Pankararu de 1943
Rubricas
Valores
sobras de 1942
4.961,20
auxílio aos índios
12.000,00
verba para benfeitorias
14.500,00
produção agrícola
cana
1.800,00
banana 70,00
arroz
70,00
côco
40,00
milho 30,00
arrendamentos
5.394,00
Total
38.765,20 (DOC.: 20)
2
Quanto à atuação policial dos encarregados, os que sucederam Castelo Branco
também representam uma ruptura com sua forma de atuar. O poder coercitivo da tutela
passa a ser exercido mais sobre a própria população do que no sentido de liberação do
território indígena. A preocupação com a produção era acompanhada da preocupação com
a disciplinarização dos hábitos, das festas e do sexo. É possível perceber o tipo de controle
que os encarregados tentarão manter sobre a comunidade através de alguns eventos
excepcionais que, por colocarem sua autoridade em jogo, serão comunicados à inspetoria,
na busca de conselhos ou de auxílio, mas através dos quais também temos notícia de sua
recorrência. Esses eventos estarão sempre relacionados ao trinômio, brigas, sexo e cachaça,
que podem surgir associados ou não. Alguns desses eventos envolvem “defloramentos” de
“virgens” por outros índios da própria aldeia, que gerando conflitos e ameaças familiares
ou não, levam à intervenção do encarregado que então usa da própria autoridade para a
punição dos culpados, ou submete o caso às autoridades policiais do município, trazendo
de volta para dentro da aldeia um tipo de intervenção que Castelo Branco teria interditado
em nome da soberania tutelar ou da autonomia da área indígena com relação às autoridades
locais.
Em abril de 1949, por exemplo, o encarregado do posto relatava ao inspetor o
“rapto” de uma índia por seu cunhado, a fuga de ambos para São Paulo e a posterior volta
dos dois para a aldeia, fato que o encarregado considerava uma ameaça frontal a sua
autoridade, pretendendo levá-lo às autoridades judiciais do município. Mas como
acreditava que essas providências não teriam qualquer consequência, já que a “virgem” era
maior de idade, pedia autorização à Inspetoria para emancipar aqueles dois indivíduos,
banindo-os das terras do patrimônio indígena, “providência que servirá, além do mais, de
exemplo para os demais tutelados deste posto indígena” (DOC.:21). Outro relato
significativo desta atuação data de abril de 1967, quando outro encarregado solicitava ajuda
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 82
contra o “grande disrespeito proveniente da caxaça” e reclamava da falta de funcionários
para controlar a população. Neste relato, o encarregado revelava que, em sua ação de
controle moral, contava com o auxílio apenas dos pajé e do cacique, que no entanto
eventualmente ausentavam-se para o trabalho na roça em “épocas de inverno”. Contava
ainda que estava perdendo a autoridade (ao encontrar um grupo de onze índios bêbados,
lhes ordenou que comparecessem no PI e nenhum deles apareceu) e pedia autorização
então para enviar os eventuais índios bêbados ao delegado do município, além do
destacamento de um policial permanente no posto indígena (DOC.:22).
Essa perspectiva do controle policial permanente e, preferencialmente, assumido
como auto-regulação pelos próprios indígenas, seria institucionalizada em 1969, já na
gestão da FUNAI, com a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN). Em outubro deste ano,
o presidente do órgão percorreria as comunidades indígenas da 3a. DR para expor às
autoridades policiais locais “o plano de Recrutamento Indígena da FUNAI na região” e
aliciava nas aldeias, os “elementos suficientemente aculturados para aprender exercício da
tarefa policial”. Tratava-se de uma iniciativa “valiosa no seu processo de aculturação, além
de preencher um claro, no que tange ao exercício do poder de polícia no território
indígena” (DOC.:23).
Na sua visita à área indígena Pankararu, depois de relatar um quadro caótico, onde
cerca de 3000 remanescentes “bastante aculturados” estariam numa situação “marcada por
séria indisciplina” (índios portando armas, bêbados, assassinatos etc), por invasões de
posseiros em mais da metade da área e pela presença de vendedores de cachaça nas suas
bordas, o presidente da FUNAI toma algumas providências para reestabelecer a ordem no
posto indígena, pedindo a captura pela polícia de Petrolândia de alguns infratores fugidos
que seriam enviados para o Centro de Recuperação e Treinamento do Krenak (MG) e
selecionando doze rapazes índios que seriam embarcados para Belo Horizonte onde seriam
treinados, durante quatro meses, pela PM, além de providenciar o destacamento de dois
soldados de Petrolândia para o posto indígena até a volta dos rapazes da GRIN.
O particularmente interessante é que, além de estabelecer novas formas de controle
e de regulação de conflitos cada vez mais burocratizadas, criava-se com isso, mais uma
fonte de autoridade que viria compôr o cada vez mais complexo arranjo de autoridades no
interior da área indígena. Os jovens da GRIN viriam se combinar e competir com as
autoridades estatutárias -cacique, pajé e capitão- com as autoridades de mediação lideranças peregrinas-0 e com a própria autoridade tutelar -encarregado do posto indígena.
É justamente dos quadros da GRIN que sairá pelo menos uma das lideranças de destaque
(inclusive econômica) hoje entre os Pankararu.
3
O controle sobre a população encontrava um ponto de convergência com a
regulação contábil através da produção de censos sobre os “assistidos do posto indígena”.
Ainda que, ou justamente porque a população é um elemento, em maior ou menor medida,
volátil na constituição do poder, os aparelhos estatais preocupam-se com sua contabilidade
permanente, dando-lhe com isso, uma representação através da qual podem medir sua
extensão como recurso e como custo, ou em outros termos, podem avaliar
permanentemente o estoque de energia que deve ser integrado às suas estratégias
(RAFESTIN,1993). Essa contabilidade permanente permite ter um controle mais ou menos
seguro sobre os fluxos desta população e, através deste controle, criar mecanismos de
regulação desses fluxos. A criação de uma área indígena, com fronteiras bem delimitadas,
deveria coincidir com um determinado recorte populacional também fixo ou constante,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 83
através do qual fosse possível prever um determinado desempenho simbólico e econômico
para o órgão. Seu efeito primeiro era o de territorializar uma população dando-lhe uma
moldura jurídica e contábil. Os mecanismos acionados neste controle variaram no tempo e
na extensão, mas um ofício do encarregado do posto indígena Pankararu de 1965 dá notícia
de um deles. Nele o encarregado perguntava se A) o decreto 5.484 de 02/06/28 que
permitia aos índios e seus descendentes venderem seus produtos agrícolas nos mercados
isentos de impostos ainda era válido; B) se o referido decreto amparava também as
mercadorias produzidas em propriedades fora da área indígena e C) se o posto indígena
tinha novamente o poder de conceder permissão por escrito aos índios, ou seus
descendentes, para que eles viajassem para outros estados, ou se ainda valia a proibição
dessas permissões sob a pena dos encarregados arcarem pessoalmente com as despesas que
aqueles índios em trânsito provocassem às suas Inspetorias (DOC.:24).
Além do controle que ela permite exercer, ou ao menos planejar exercer, a
representação sobre a população é fundamental também nas argumentações por pedidos de
mais verbas, primeiro entre os postos e a inspetoria, depois entre as inspetorias e a diretoria
e, finalmente, entre o SPI e o ministério a que estava subordinado. Contabilizar tutelados
representava uma forma de ampliar patrimônio, no sentido de um acúmulo de importância
frente aos objetivos mais gerais de controle e adestramento da população pobre rural.
Lançando mão destes dados, produzimos um levantamento a partir de períodos mais largos
e nos deparamos com uma curva de crescimento populacional que apresentava uma
desproporcional depressão entre as décadas de 1950 e 1960.
Quadro 5
Variação da população Pankararu total.
Dados oficiais.
4000
3000
2000
1000
0
1857 1878
1944
1950
1955
1960
1964
1972
1975
1978
1983
População
1986
(DOCs.: 1; 6; 25; 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34).
Como lembra Rafestin (1993), o momento do recenseamento é justamente um dos
momentos da relação entre o aparelho estatal e a população a ele submetida, que deixa
transparecer as estratégias e conflitos que são indicações úteis sobre a coerência e
integração, de um lado entre o aparelho e a população e de outro, entre os diferentes níveis
internos ao aparelho: “A energia dispensada pode, portanto, fornecer uma boa informação,
uma informação medíocre, uma informação imaginária ou nenhuma informação” (idem). A
informação fornecida pela depressão no gráfico acima deveria, assim, ser avaliada,
impondo à pesquisa o tema da oscilação populacional.
Por ser uma informação que se degrada, ela precisa ser reposta constantemente, o
órgão indigenista gerou uma rotina de contabilização através de um formulário padrão (os
“Avisos de posto”) que começou a ser aplicado em 1949 e no qual os encarregados
deveriam registrar o movimento mensal do patrimônio indígena, incluíndo aí a produção
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 84
agrícola e sua comercialização, a compra, venda, nascimento e morte de animais e o
movimento populacional, discriminando entre nascimentos e mortes de homens, mulheres
e crianças e os números totais resultantes. Foi a partir desses “avisos” que passamos a
buscar uma explicação para aquela depressão, antecedida e sucedida de períodos de grande
constância. Neste olhar mais pontual sobre as contagens populacionais, a variação dos
números mostrou-se ainda mais brusca e aparentemente incongruente (Cf. Qruadro 6).
Durante esse período de grande variação numérica, as notícias agregadas
enfatizavam o impacto dos problemas da seca sobre as condições de vida locais e o
consequente êxodo de indígenas da área, decorrente das secas que caracterizam a década de
50 como um período especialmente miserável. No ano de 1950, o encarregado comunicava
à inspetoria a necessidade de recursos urgentes para deter o surto de tracoma que atingia
toda a população Pankararu, chegando a admitir que em todas as famílias existiria ao
menos uma pessoa com a doença, na maioria das vezes crianças (DOC.:35). No ano
seguinte, o encarregado referia-se ao mês de fevereiro como o ápice da maior estiagem da
região nos últimos 19 anos, quando a completa ausência de chuvas atingiu a marca dos
quatro meses, fazendo com que os índios abandonassem o aldeamento à “procura de
subsistência noutras regiões”, sendo que naqueles dois primeiros meses do ano “afastaramse do posto 153 selvicolas, deixando suas famílias em lamentável estado de penúria [...]
Além do mais, o enorme surto de gripe campeia toda zona, já tendo atingido índios. O
tracoma por sua vez continua proliferando no aldeamento” (DOC.:36).
Quadro 6
Curvas mensais da "população assistida" pelo posto indígena Pankararu entre os
anos de 1949 e 1964
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
49
50
51
52
53
54
57
58
59
60
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
55
56
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 85
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
61
62
63
64
A fuga de homens em busca de trabalho em outros locais continua sendo
comunicada nos anos seguintes até que, em agosto de 1955, é novamente contabilizada: o
encarregado aponta a saída de 100 índios, “... muitos deles são casados e deixam as suas
famílias sem o menor recurso, as quais diariamente apelam para o PI em que nada quasi
lhes pode atender..” (DOC.:27).
Depois destes avisos, as queixas sobre a falta de chuvas e de recursos passam a se
intercalar com notícias de pequenas chuvas que trazem esperanças temporárias de novos
invernos. Mas em janeiro de 1956, novamente num tom desesperado, o encarregado dizia
que o posto indígena passava pela “fase mais negra de sua existência”, levando à fuga da
aldeia e ao aumento da mortalidade infantil que, num período de quinze dias do mês de
março, teria levado à morte de nove crianças com menos de um ano. Além disso, a febre
aftosa assolava o gado, e uma gripe de grandes proporções atingia a região contagiando
vários índios da aldeia. Em outubro deste mesmo ano, o encarregado se lamentava do posto
estar “ficando quase completamente despovoado pela saída freqüente de seus habitantes”
(DOC.:37).
Mas, apesar de sua gravidade, os relatos não explicam inteiramente a brutalidade
das variações na contagem dos censos populacionais, fato reforçado pela observação de
que, em 1950, já era anunciada a saída de um grande número de índios; essa alteração
numérica aparece na contabilização dos avisos. Somos levados então à questão da
qualidade dos dados disponíveis ao etnógrafo. Questão que não deve ser vista apenas como
um problema de diplomática, ao qual fosse suficiente apenas aplicar uma crítica interna da
documentação. Neste caso, estamos diante de dois problemas relativos às fontes
documentais, eles mesmos informações etnográficas relevantes. Como é possível imaginar,
a contagem mensal de uma população de tão grandes dimensões e distribuída numa área
relativamente grande e bastante acidentada impõe à eficácia dessa contabilização uma série
de obstáculos que são de grande relevância para o entendimento da relação tutelar. O rigor
e a fidelidade dos dados apresentados dependiam não só da importância dispensada e do
acesso que esses encarregados conseguiam ter às diferentes localidades da área indígena
(Cf. Cap.3), mas também do método de levantamento censitário empregado pelo
encarregado e da definição mais cotidiana de “índio” e de “Pankararu”, que delimitavam o
universo de “assistidos”.
É bastante provável que, visando uma simplificação do trabalho de recenseamento,
de outra forma trabalhoso e, aparentemente inútil, o método aplicado, tenha consistido na
maior parte das vezes, na simples soma e subtração de nascimentos e óbitos que lhes iam
sendo comunicados pela população, sobre um total já contabilizado uma única vez no
início da sua gestão, ou mesmo herdado da contabilidade do encarregado anterior. A
aparente simplicidade do método, no entanto, escondia uma característica fundamental da
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 86
população Pankararu e de sua relação com a área indígena: a sua mobilidade. Uma visão
mais detalhada e menos confiante do registro burocrático e documental que se nos
aapresentam como a realidade mesma, indica a grande variação que podem alcançar as
saídas temporárias da área indígena. A constância da relação entre as curvas de natalidade e
óbitos confirma a impressão de que a linearidade inicial das contagens deve-se ao método
de soma e subtração de nascimentos e óbitos.
Quadro 6
Quadro comparativo das taxas de natalidade e mortalidade Pankararú (1949-1964)
mortalidade infantil (até 5 anos)
mortalidade total
45
40
natalidade
35
30
25
20
15
10
5
0
49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64
anos
A questão de método liga-se, assim, a uma questão conceitual: afinal, quem são os
“índios assistidos”? Essa questão desdobra-se em: quem é índio, quem é Pankararu e quem
é da área indígena Pankararu. Não se trata de um problema trivial e o silêncio sobre a
questão na maior parte do tempo coberto pela documentação não deve permitir a
naturalização do recorte suposto. Essas questões surgiram com a própria tentativa de
aplicar sobre a população étnica do Brejo dos Padres o princípio administrativo que
supunha a perfeita identidade entre população e território, pensado como trecho contínuo
de terra, delimitado por uma linha de fronteira. Desde o primeiro momento, a situação
Pankararu impunha a esta lógica de ação o problema de lidar com uma população indígena
externa à área indígena, cuja relação com o seu território não podia ser traduzida em termos
análogos ao da relação entre nação e Estado-nação. Por mais que a administração
indigenista se esforçasse por regular o fluxo de pessoas através de suas fronteiras, este
fluxo se mostrava na prática incontrolável.
Em 1950, o encarregado Coriolando Mendonça consultava a sua Inspetoria sobre a
possibilidade de aceitar o retorno para a área indígena de “índios que daqui se ausentaram
há mais de dez anos” (DOC.:38), antes, portanto, da demarcação da área. A consulta vinha
acompanhada de uma rápida explicação sobre o contexto desses pedidos. Dizia que
“ultimamente, no entanto, têm procurado retornar ao aldeamento dezenas de pessoas que
daqui se ausentaram muito antes de ser criado o posto indígena e que, convidadas pelo
primeiro encarregado, quando da época de sua criação, para retornarem às suas antigas
residências, não aceitaram o convite” (idem). Sua própria opinião sobre os procedimentos a
serem tomados vinham logo a seguir: “Julgo que tais pessoas já se encontram emancipadas
da tutela indígena, não só por esse motivo [morarem fora da área], mas principalmente pelo
crescido número de anos em que se encontravam fora de sua tribo, em franca
promiscuidade com civilizados, em cujo meio constituíram família” (idem).
Na década seguinte, este dilema seria encarado de outra forma. Num dos últimos
relatórios do SPI, de 1966, o encarregado Cícero Cavalcante de Albuquerque traduz em
termos numéricos essa inadequação entre diferentes concepções de território, utilizando
para isso a categoria chave da mestiçagem, de grande importância para os próprios
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 87
Pankararu. Ao referir-se à população sob a administração do posto indígena, não como
índios nem como remanescentes, mas como “mestiços ou caboclos”, agregava numa
mesma categoria mais ampla, os “assistidos”, também os “particulares”, casados com os
mestiços. A este levantamento, o encarregado agregava uma tabela com o volume das
posses de tais mestiços, na forma de animais, lavoura cultivada, árvores frutíferas, casas e
cereais comercializados, reforçando a idéia de contagem de homens como a contabilização
de patrimônio de diferentes maneiras. O seu recenseamento resulta na seguinte tabela:
Quadro 7
"Recenceamento [...] dos mestiços de índios pancarús com a raça branca e também
com negros..."
Discriminação por
Mestiços de índios
Particulares casados com ditos
idades
pancaraús
mestiços
com brancos e negros
homens mulheres totais homens
mulheres
totais
menores de 6
286
315
601
de 7 a 12
242
185
427
3
3
6
de 15 a 20
231
257
488
de 21 a 40
245
322
567
20
21
41
de 41 a 60
149
163
312
19
20
39
de 61 a 80
42
42
84
4
1
5
de 81 a 90
1
6
7
1
2
3
de 91 a 100
1
1
2
TOTAIS
1.197
1.291
48
2.488 47
95
(Fonte: DOC.:39)
A observação desta tabela é interessante por sugerir a repartição de diferentes
períodos de relacionamento entre índios e não índios que estaria relacionada à instalação do
posto indígena e à delimitação de uma fronteira admistrativa, separando o dentro e o fora.
Notemos que, entre a população acima dos 60 anos, registram-se alguns poucos
casamentos mistos, que se intensificarão muito entre a população de 21 a 60 anos, que
pode estar relacionada à mudança de prestígio da população no quadro regional, para ser
interrompida logo depois e retomada entre a população de 7 a 12 anos. Naquela primeira
metade da década de 1960, ao vazio de casamentos da população entre 15 e 20 anos, parece
estar relacionado um período intensificado do conflito entre índios e posseiros, quando os
militares sediados em Paulo Afonso passam a prestar sistemático apoio aos Pankararu e
expulsam grande número de famílias de posseiros de dentro da área, independentemente de
trâmites legais.
Num outro sentido, o relatório apontava para classificações internas àqueles
“assistidos”, dos quais 619 alfabetizados e 225 portadores de eleitor. E a informação mais
relevante: o relatório dava os números dos “mestiços pancararús que estão com residências
fora das terras deste Posto Indígena, vivendo uns em municípios adjacentes e outros, em
outros estados” (grifos meus), contabilizando 633 pessoas (359 homens e 274 mulheres.
DOC.:39), cerca de um quarto da população total da área. A importância numérica
daqueles que estão com residência fora é, enorme, mas o relatório lhes faz apenas uma
rápida menção, identificando, como locais de suas residências, não somente os municípios
próximos, mas também os estados de Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo. É importante,
no entanto, fazer referência mais precisa a esta categoria de “assistidos”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 88
A população designada como de “municípios adjacentes” concentrava-se quase toda
na cidade de Petrolândia, localizada à beira do São Francisco, antes da inundação do lago
da UHE de Itaparica. Em decorrência dos projetos de irrigação do DNOCS das década de
1930 e 1940, houve grande afluxo de índios para o trabalho nas novas frentes que se
abriam em Petrolândia e na sua vizinha, Barreiros. Na primeira, trabalhavam “de meia” na
época das chuvas e em olarias, na época das secas; enquanto na segunda, as atividades se
concentravam nas “granjas”, na colheita de fruteiras e na “cata da algaroba”, muito
utilizada como ração para o gado. Em Petrolândia, nessa época, parte dos índios saídos da
área concentravam-se numa pequena vila com pouco mais de vinte casas muito pobres.
Fora daí, espalhavam-se por pequenos ranchos temporários dispersos, ou nas propriedades
locais, como agregados. O fato de estarem fora não significava que tivessem cortado seus
laços com o território. Estes mantidos através do exercício de sua vida ritual, não eram
reproduzidos fora da área, ao menos enquanto o Brejo dos Padres fosse suficientemente
próximo, numa manutenção de sua relação com a área indígena que permitia continuarem
listados no posto como “assistidos”.
Depois da construção da UHE Itaparica e da retirada da população da beira do lago,
essas famílias foram espalhadas pelas agrovilas e, em parte, na nova cidade de Petrolândia,
cerca de 15 km abaixo, nas margens do São Francisco. Recentemente, a essas famílias vêm
se acrescentando outras, que passam a utilizar de forma irregular, segundo os planos da
CHESF, os lotes fornecidos, acrescentando às casas construídas pela empresa, outras
destinadas aos filhos recentemente casados ou a parentes próximos28, que encontram aí
uma nova fonte de recursos fundiários, já escassos dentro da área indígena. Na maior parte,
se não na totalidade dos casos, as famílias que ocupam lotes nas agrovilas mantém roça,
casa ou laços de trabalho eventual com as terras mais extensas da família na área indígena,
permanecendo assim vinculadas ao posto indígena.
O segundo núcleo externo de assistidos pelo posto indígena Pankararu é formado
pela comunidade da localidade de Ouricuri, no município de Água Branca (atualmente
Pariconha- AL) que aparece neste relatório, vagamente, como estando com residência em
Alagoas. Várias famílias com origem no Brejo dos Padres ocupam a região de Água Branca
desde o final do século passado, quando das expulsões decorrentes das linhas. Formado
este núcleo, no entanto, a população continuaria mantendo contatos regulares com o Brejo
dos Padres, através de relações religiosas e de parentesco, até que, depois de 1940, também
passaria a receber assistência regular do posto indígena. As duas comunidades sempre
mantiveram estreitas relações, inclusive através de trocas matrimoniais e pelo que parece,
até o momento de reconhecimento como área indígena Geripancó em 1992, não se
pensavam como etnias distintas, não se atribuiam designações diferenciadas, distinguindose apenas pelo acréscimo de topônimo Ouricuri à designação Pankararu.
Assim, em 1983, essa comunidade do Ouricuri seria visitada pela equipe de
dentistas da FUNAI a pedidos dos Pankararu, durante uma missão que inicialmente visava
apenas os Pankararu e Pankararé. No relatório desta equipe, a “aldeia do Ouricuri” era
identificada como “grupo isolado Pankararu”, de 80 famílias distribuídas em 50 casas,
somando uma população aproximada de 500 pessoas, distantes do posto indígena 48km,
em estrada de terra, o que representava uma viagem de 1h 40min, de carro. (DOC.:40). Só
em meados da década de 1980, essa situação seria alterada, em decorrência da iniciativa do
então chefe de posto Pankararu, conforme o que me foi relatado por índios pankararu e
geripancó. Segundo os relatos, a comunidade do Ouricuri teria iniciado o seu processo de
28
Esse é um problema generalizado por todas as agrovilas que, com a demora na implantação do plano
original da CHESF, criam novas soluções para dar conta da criação de novas famílias com o casamento dos
filhos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 89
emergência como área indígena distinta, em decorrência de sugestão do encarregado, que
na época avaliou que aquela população já teria crescido numericamente o bastante para ter
direito a um posto indígena próprio. Depois de um acerto sobre as denominações possíveis,
optou-se por adotar um dos sobrenomes Pankararu, passando a designar-se Geripancó.
Por último, a outra grande concentração de pankararus fora da aldeia localiza-se na
cidade de São Paulo, para onde desde a década de 1940, mas principalmente a partir de 60,
muitos pankararus passaram a viajar regularmente como “paus de arara”, com destino a
turmas de trabalho da companhia de luz do estado. Mais tarde, com o crescimento deste
afluxo e o estabelecimento de algumas famílias de forma permanente na cidade, as viagens
foram facilitadas e se tornaram quase obrigatórias na vida de um jovem pankararu das
décadas de 70 e 80. Viajavam por um mês, seis meses, até dois anos, depois voltavam e
passavam dois meses, ou, em época de inverno bom, todo um ano, para aproveitar as
oportunidades de plantio. Essa oscilação muitas vezes levou a que alguns índios fizessem
até quinze viagens ao longo de toda a juventude, voltando a se estabelecer
permanentemente na aldeia depois dos 40 ou 50 anos de idade, quando as viagens
começavam a ficar mais espaçadas, até se encerrarem ou permanecerem na forma de
simples visitas aos parentes ou filhos que começavam o mesmo processo ou que resolviam
se estabelecer permanentemente em São Paulo.
Como se pode ter uma idéia, a flutuação da “população assistida” dependia de
fatores que estavam muitos distantes do que poderia sugerir a simples soma e subtração dos
nascimentos e mortes sobre uma massa numérica constante. Respondia a uma variação de
método do recenceamento, mas também a uma questão de definição sobre os limites dessas
população, provocados por sua enorme mobilidade e por um tipo de relação com o teritório
que o toma como referência identitária, ponto que concentra celebrações rituais e para onde
convergem as demandas assistenciais. Como já havia sido sugerido por Oliveira (1960), a
importância dos postos indígenas e de um teritório demarcado para o processo identitário
está no laço criado pelo estabelecimento de determinados direitos, representados, entre
outras coisas, pela assitência que, paradoxalmente aos objetivos assimilacionistas, reforça
a adesão a uma identidade indígena. O território, então, está numa relação com a etnicidade
que não passa exatamente, ou exclusivamente, pela manutenção de uma integridade
identitária ou de um contínuum cultural, que pudéssemos tomar como expressão de uma
unidade, de uma comunidade, mas como local de referência na produção das identidades.
Frente aos novos locais para onde os sujeitos ou os pequenos grupos se deslocam, em
migração ou diáspora, esses sujeitos e grupos encontram novos contextos identitários, que
lhes impõem a produção de novas e diferentes identidades, sempre relacionais, levando ao
que Marcus (1991) chamou de uma “dispersão da identidade”. O território indígena surge,
nesse contexto de dispersão identitária, como local de referência para onde pode-se sempre
retornar como forma de reproduzir constantemente a identidade indígena.
Mas, justamente por isso, na situação Pankararu, ao contrário do que foi apontado
para os casos Tikuna e Terena por Cardoso de Oliveira (1960), a distinção entre índios
assistidos (que estão na área indígena) e os não-assistidos (que estão fora da área indígena)
não corresponde necessariamente à distinção entre aqueles que passam a valorizar e
aqueles que passam a desvalorizar a identidade indígena.
O território ou, na perspectiva de Cardoso de Oliveira, a “área de influência do
Posto Indígena”, funcionaria como um espaço de atração da identidade indígena, levando a
tutela ao seguinte paradoxo: seus próprios instrumentos de integração passam a ter por
efeito impulsos “contra-assimilacionistas” que favorecem a manutenção de um nível
mínimo de diferenciação. Teríamos, assim, o triângulo que atravessa toda a nossa
argumentação, território/direitos/identidade, guardando, no entanto, uma importante
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 90
diferença em relação às conclusões de Cardoso de Oliveira. A categoria de assistidos, com
a plasticidade que assume na situação Pankararu, permite que a tutela continue alcançando
aqueles que estão fora da área indígena, mas ligados a ela das mais variadas formas,
através de relações rituais, de parentesco ou de investimento produtivo. Assim, o governo
tutelar agrega às relações rituais e de afinidade ou parentesco uma relação com o território,
que passa pelo estabelecimento de uma referência de “direitos”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 91
PARTE 2: RESSIGNIFICAÇÕES
Os Pankararu de hoje são fruto do arbitrário poder tutelar que, através de sucessivas
adequações, ou atos de fundação e rotinização, transformou-os em índios, requisito prévio
de seu exercício. O modelo da indianidade, no entanto, se é útil para delimitar o tipo de
relação em que os grupos indígenas são introduzidos através da tutela, não resolve o
problema das diferenças entre as soluções particulares. Estas, adaptando o modelo a
populações específicas, gera formas originais de arranjos de poder. No coração da
homogeneização emerge novamente a diferença: qual a forma Pankararu da indianidade?
Ou melhor, voltando ao início da formulação, qual o efeito particular que aquelas
sucessivas atualizações, com base em um único modelo, assumiram na situação Pankararu?
Mas ao tentar responder a esta pergunta, impõe-se uma logicamente anterior: quais foram
as formas prévias que lhes serviram como objeto de adaptações?
Arranjos anteriores
1
Uma forma possível de começar essa descrição seria respeitar o roteiro proposto por
aquele que é o texto canônico da antropologia política, a “Introdução” ao volume sobre os
Sistemas Políticos Africanos (EVANS-PRITCHARD & M FORTES,1981). Nele, os
autores, apesar de trabalharem basicamente com a dualidade do com e sem Estado, falam
na verdade de três modelos possíveis: o das sociedades estatais, onde as relações políticas
seriam reguladas por uma organização administrativa; um primeiro tipo de sociedades não
estatais, onde as relações políticas seriam reguladas pelo sistema de linhagens e um
terceiro, onde as relações politicas acompanhariam as relações de parentesco. Neste caso,
os autores diferenciam o “sistema de parentesco” do “sistema de linhagem” por
identificarem no primeiro “a série de relações ligando o indivíduo a outras pessoas e a
unidades sociais particulares através da família bilateral”, característica de sociedades
muito pequenas, nenhuma das quais discutida no livro. A dificuldade de se identificar uma
estrutura mais definida e generalizável, abstraída de seus “conteúdos culturais” parece ser a
maior razão para o desinteresse daquele grupo de antropólogos por sociedades deste tipo.
Se estivessemos trabalhando com tipologias, poderíamos encaixar os Pankararu,
entre os quais não existe um sitema de linhagem ou clânico, neste terceiro tipo, ainda que
eles não respeitem nem mesmo os critérios básicos definidos pelos autores para descrever o
tipo: entre os Pankararu “as relações políticas” não “são confinantes com as relações de
parentesco” nem “a estrutura política e a organização de parentesco se encontram
completamente fundidas” (idem).
Na situação Pankararu, para definir a ordem política anterior ao estabelecimento do
domínio tutelar seria preciso fazer referência justamente aos outros dois pontos que EvansPritchard e M. Fortes reconhecem, dos quais intuem a importâcia, mas deixam por
desenvolver: a associação entre "função política" e “valores místicos”, onde percebem os
rituais dando sentido para a vida pública e, por isso, fazendo-a funcionar; e o problema dos
limites do grupo político, onde tematizam um certo desacordo entre relações sociais e laços
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 92
políticos, o que lhes coloca o problema (que afinal pode pôr em cheque toda a série de
textos que compõem o volume que apresentam) de não poderem tomar os “grupos”
analisados como unidades isoladas, ou mesmo, poderíamos avançar ainda sobre a questão,
como “grupos”.
Insistindo ainda neste mesmo texto, mais pelo que sugere do que pelo que
estabelece, é importante avançar sobre uma área evitada porque considerada do interesse
apenas da administração colonial e não do antropólogo: a substituição da ordem tradicional
não estatal pela implantação de poderes que lhe eram estranhos e que, supõem, não podem
aproveitar as estruturas de poder nativo para o seu exercício. Neste caso, o governo
colonial recrutaria indivíduos como agentes administrativos, assimilando-os à noção
estereotipada de chefe africano, fazendo com que aqueles indivíduos tivessem, pela
primeira, vez o apoio da força à sua autoridade. Isso levaria ao colapso da forma anterior
que seria completamente substituída por um sistema burocrático de modelo europeu.
Independentemente das revisões atuais dos estudos destes primeiros antropólogos que
podem contrariar estas afirmações, a situação dos Pankararu diverge num ponto
fundamental que sustenta esta argumentação. Ao contrário das sociedades africanas que
foram submetidas às normas dos governos coloniais, o ajustamento dos Pankararu às
normas do governo tutelar não se deu sob a ameaça do uso da força, nem como a ocupação
de uma nação ou povo estrangeiro, mas, pelo contrário, foi recebido como restauração de
“direitos”, entre os quais, o do exercício de sua vida ritual. Isso dispôs um tipo de interação
entre a ordem tradicional e o modelo imposto como norma, em termos muito diferentes que
poderia ser possível supor nos casos africanos.
Tentaremos então recuperar aquela que era a organização política Pankararu
anterior ao SPI, sem no entanto pretender a descrição de um suposto “ponto zero” sobre o
qual a ação colonial ou tutelar teria vindo agir, introduzindo a dinâmica histórica numa
suposta estática das formas culturais. As considerações sobre as desterritorializações e
reterritorializações, fusões e dispersões dos grupos ancestrais aos grupos observados hoje,
feitas no capítulo anterior, são suficentes na demonstração da inviabilidade de um trabalho
histórico nesses termos. Ao contrário, procuraremos descrever o que concebemos como um
dos momentos de “equilíbrio” (GLUCKMAN, 1987) pelo qual teria passado aquela ordem
de relações políticas então vigente no Brejo dos Padres (e seu desdobramento pelas serras
ao redor). As nossas questões devem responder as questões relativas aos efeitos da situação
histórica específica (OLIVEIRA,1988) em que se chocaram duas concepções de autoridade
e a partir da qual os agentes definiram uma nova ordem social e política,
instrumentalizando os novos recursos segundo seus próprios interesses, mas também
segundo o que Sahlins chamou de “mal entendidos” (SAHLINS,1990).
O caminho encontrado para isso foi o da análise do funcionamento do sistema ritual
contemporâneo, onde julgamos encontrar não apenas semelhanças com aquele que
procuramos reconstituir, “iluminando assim, o mais remoto com a luz do que o é menos”
(GEERTZ,1991), mas também aquele que seria o modelo ideal de um determinado arranjo
das formas de autoridade. Através das queixas dos Pankararu sobre as transformações e
distorções encontradas no funcionamento do atual sistema ritual, é possível descrever,
assim como por negativo, o que seria a forma ancestral desse mesmo sistema, segundo os
Pankararu. Se é duvidoso que o ideal possa servir como referência do histórico, com
certeza ele nos serve de índice sobre o que subexiste como modelo de ação: desrespeitado
por sua própria realização no mundo, mas reconhecido e valorizado pelos atores na
composição de um paradigma político.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 93
2
Como dissemos, a organização social Pankararu não se faz através da repartição de
linhagens, quando muito, aproximando-se do sentido mais frouxo a que pode fazer
referência o formato clânico (MIDDLETON,1986), sem que possamos afirmar a presença
de uma descendência unilateral ou de um ancestral comum identificável. Na verdade, são
passíveis de identificação direta, através da nomeação particularizada, apenas algumas
famílias que alcançaram certa importância política ou religiosa, deixando um grande
número de unidades familiares sem qualquer outra referência mais geral que a aldeia a que
pertencem. Existem apenas duas categorias mais amplas, em que todas as famílias
Pankararu encontram um lugar: a aldeia e o tronco.
As aldeias são definidas de forma variável; fora as mais antigas e inclusivas, não é
sempre óbvia para qualquer pankararu, podendo ter seus limites mais ou menos estendidos
segundo o maior ou menor detalhamento da descrição. A identificação da família extensa
na base da organização das aldeias não nos leva a dar excessiva importância à busca de
regras de parentesco associadas às regras de residência, como será justificado no próximo
capítulo. Aqui também, a constituição e continuidade de um grupo vicinal “num certo
sentido correspondem a criações intencionais de alguns indivíduos que, por capacidades
reconhecidas, conseguem polarizar arredor de si os seus parentes mais próximos, para isso
manipulando com as regras de residência e incentivando certas escolhas matrimoniais”
(OLIVEIRA,1988).
Os troncos são formas de classificar famílias que se aproximam apenas vagamente
da forma de descendência clânica. Os laços de descendência que um “tronco” indica, não
são fixos, ainda que exista a forte tendência para a descendência agnática, como de resto é
comum entre a população regional não-indígena. Mesmo assim, existem muitos casos em
que a referência ancestral é uma mãe em lugar de um pai. Além disso, os troncos não
fazem necessariamente referência a um único ancestral comum, nem assumem forma
totêmica, já que o culto a um Encantado não delimita o universo de indívíduos com origem
num mesmo tronco, nem os indivíduos de um mesmo tronco se restringem ao culto dos
mesmos Encantados.
Os troncos estão assim, no plano mais geral a que a noção de descendência pode
fazer referência, não indicando regras de filiação direta, mas a participação num grupo
amplo, marcado por uma origem que remete não a um personagem específico, um ancestral
fundador, mas a um outro grupo situado num momento historicamente determinado: a
situação de violência, desagregação e mistura provocada pela implantação das “linhas” (Cf.
capítulo 1). A distinção entre troncos não está referida a regras estruturais de um sistema de
parentesco, mas à classificação de famílias segundo um status definido pelo grau de pureza
e mistura, ou, para usarmos uma fórmula local, pela antiguidade indígena do tronco. O
tronco serve então como solução classificatória para a transmissão de um status
diferenciado, mas sem que isso implique em regras especiais definidoras de casamentos
preferenciais ou grupos de obediência, ação, direitos ou exercício ritual diferenciado.
Se a forma aldeia relaciona-se à organização local das famílias e dos laços de
lealdade, os troncos as separam segundo linhas verticais de pureza e impureza, que as
tornam mais ou menos indígenas. Essa classificação, no entanto, depende sempre de uma
memória do fato colonial e de uma interpretação sobre seus efeitos e sobre o intenso
trânsito de indivíduos entre as rede de parentesco que cruzam e unem as diferentes famílias
das diferentes aldeias (a tão conhecida fórmula “aqui é tudo parente”). Não se trata de um
quadro classificatório claro, mas de um móvel das disputas por recursos e pela definição de
direitos políticos. Apesar disso, a distinção entre troncos velhos e novos não cria grupos
corporados de ação, nem um universo bem definido e interrelacionado de pessoas com
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 94
direitos e obrigações específicas, nem muito menos serve para a eleição de personagens
com poderes de chefia. Funciona antes como um classificador de uma imprecisão tácita,
que permite trocas de acusação, podendo ou não produzir limites rígidos, de acordo com a
evolução e continuidade dos faccionalismos.
3
Quanto às figuras de autoridade, só há registro de uma designação especial que
indicaria o desempenho de um papel de autoridade destacado dos demais. Como já
mencionamos, o “sarapó” representava a autoridade moral de base religiosa e não parece
ter exercido outros poderes que os de influência moral e religiosa interna à comunidade.
Sua função precípua era a de zelar pelo principal Encantado da aldeia, o Índio Xupunhum,
ou, como também é conhecido, o Índio Mestre Guia. Este é o único Encantado a ter uma
festa especial em sua homenagem, realizada em sequência à festa do umbú29, que marca o
início do calendário agrícola. Acompanhando esta função de destaque, o “sarapó”
concentrava também a guarda do maior “batalhão de Praiás” da aldeia, concentrando com
isso, na sua casa e no seu terreiro, o principal da vida ritual local. Mas mesmo o “sarapó”,
que parece fornecer um lugar estruturalmente diferenciado nesse arranjo de autoridades
Pankararu, não parece ter exercido qualquer papel de poder repressivo, de decisão ou
governativo sobre o conjunto das outras autoridades estrururalmente indiferenciadas. A
primeira novidade neste arranjo, de que temos notícia, foi o surgimento dos mediadores
entre a comunidade e as autoridades extra-locais que temos chamado de lideranças
peregrinas. A montagem local do campo de ação indigenista nem mesmo esses
personagens parecem ter exercido qualquer poder repressivo ou governativo, tendo sido
introduzidos no quadro de autoridades de fonte moral, diferenciando-se apenas na fonte
desta autoridade moral, que no caso derivava da sua especialização no que dizia respeito ao
tratamento das questões que envolvessem agentes externos à comunidade. Grosso modo,
parece ser esse o quadro político encontrado pelo SPI e, antes dele, pelo “dr. Carlos”.
Desse ponto de vista, então, é possível ter uma idéia aproximada do impacto que alcançou
a sobreposição a este arranjo de uma moldura burocrática que a princípio parecia apenas
prestar contas puramente formais à interface estatal.
É necessário, portanto, fazer uma rápida descrição da lógica de organização dos
“terreiros”, para que possamos nos aproximar do que pode ter sido o arranjo de autoridades
Pankararu anterior à ordem tutelar. Os elementos constituintes do sistema ritual do Toré
Pankararu estão divididos entre A) personagens: os Encantados, os Praiá, os pais de Praiá e
os dançadores; B) situações rituais: o particular e o Toré público, que podem assumir o
caráter de simples demonstrações teatrais, como expressão folclórica, ou serem dedicados
ao culto dos Encantados, ligadas ou não ao pagamento de promessas; e C) locais: as
cachoeiras, serrotes, casas e terreiros. Os locais serão trabalhados mais detidamente no
próximo capítulo, sendo suficiente por enquanto uma rápida exposição sobre a organização
dos personagens e das situações rituais ligadas ao seu universo religioso, onde
identificamos as fontes dos laços de autoridade.
Os Encantados não são deuses nem espíritos de ancestrais mortos, são índios que
descobriram o segredo de se encantar e que, assim, alcançaram a imortalidade. Não
constituem, por isso, um universo finito de entidades, mas uma comunidade que pode ser
ampliada no tempo com o acréscimo de mais índios que venham a se encantar. Os mais
antigos desses Encantados, que são também os mais poderosos, têm seus nomes, sua
história de origem ou suas características associadas à geografia local através dos serrotes,
29
Para uma descrição desta festa ver OLIVEIRA,1943.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 95
das fontes d'água e das cachoeiras. Depois de encantados, esses índios se manifestam a
determinados indivíduos escolhidos para serem seus zeladores. O anúncio desta escolha se
dá através do envio de uma semente, da qual tais zeladores passam a cuidar, guardando-a
dentro de um pote de barro, num local secreto dentro de sua própria casa. A escolha de um
índivíduo por um Encantado lhe confere propriedades mágicas, como o poder de
adivinhação, de enfeitiçamento e de cura. Recebida a semente, o escolhido tem que
levantar do Praiá, num período de tempo indeterminado, mas não muito longo, sob pena de
sofrer represálias, ou transferir essa responsabilidade para um zelador já respeitado, ao
terreiro do qual passa a dever lealdade.
“Levantá é tecê”. Isto é, para levantar um Praiá, o zelador do encantado, que passará
a ser também um “pai de Praiá”, deve confeccionar ou contratar a confecção, por um dos
poucos artesãos especializados na aldeia, da roupa e da máscara de palha de ouricuri que
servem para encobrir a personalidade do dançador e que é, quando vestida sob
determinadas prescrições, a materialização do próprio Encantado. O Praiá é a conjunção em
ato, do Encantado, do dançador e da roupa e máscara de ouricuri devidamente consagrada
pelo zelador. Os zeladores não são as mesmas pessoas que ocupam o lugar de dançadores.
Aos primeiros cabe um papel mais religioso, de orientação e guarda da tradição, através do
cuidado com as sementes que lhes foram transmitidas, com as roupas dos Praiás e com o
contato permanente com os Encantados, funções que normalmente se associam às
qualidades de rezador e pai de família. Os segundos são normalmente homens jovens,
casados ou não, capazes de “segurar a brincadeira” do Toré, já que ela geralmente implica
em muitas horas seguidas de dança dentro de pesadas roupas de palha de ouricuri, ou fibras
de croá, e nos rituais do Menino do Rancho e da festa do Umbú, em disputas corporais que
exigem grande vitalidade física.
Esses dançadores são escolhidos pelo zelador dentro de seu círculo familiar ou de
afinidade, que coincidem com um determinado recorte espacial, onde se incluem grupos de
residência que poderíamos pensar em termos de grupos vicinais. Essa escolha se dá
segundo determinadas qualidades morais que, apesar de não explicitadas e nem sempre
respeitadas, associam-se, por um lado, à exclusão da cachaça e da promiscuidade e, por
outro, a valores como o trabalho e a lealdade à situação tribal, incluindo aí a constância da
sua presença na vida ritual da aldeia. Esses dançadores não constituem um grupo fixo de
pessoas e uma mesma “tropa de Praiás” pode ter o seu corpo de dançadores variando de
Toré para Toré, ainda que dentro de um universo finito, definido pelos critérios já
apontados. Ainda que seja comum a população local conhecer e reconhecer, através de suas
características corporais ou de suas performances, a identidade dos dançadores, esta não
pode ser revelada, fazendo parte sempre respeitada dos segredos que compõem o ritual, sob
o risco, para aquele que a pronuncia, de sanções que podem levar da doença à morte. A
escolha e o chamado dos dançadores pelo zelador para a realização de um Toré, envolve
uma antecedência que pode ir de quinze até dois ou três dias, dependendo do rigor do
zelador, da importância da situação ou mesmo da freqüência com que o Toré é realizado.
Essa antecedência está relacionada às prescrições de purificação física e espiritual que o
ritual envolve, tanto para os dançadores quanto para os zeladores: durante aqueles dias lhes
é proibido qualquer contato sexual, qualquer bebida e qualquer “sentimento ruim no
coração”.
A escolha dos zeladores portanto, está estreitamente relacionada ao prestígio moral
de certos indivíduos dentro da comunidade, em função do qual tornam-se capacitados a
acumular Praiás em sua casa, por anunciação dos Encantados ou por transmissão da
obrigação por outros anunciados, que não querem ou não podem assumir as
responsabilidades de zeladores. A este acúmulo de Praiás numa única casa denomina-se
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 96
“batalhão de Praiás”. Sua importância religiosa, acompanhada de poderes mágicos, se
materializa na constituição de um terreiro, que é o lugar apropriado para a realização do
Toré. No modelo ideal do sistema do Toré Pankararu, toda vida ritual se concentra num
único ou num pequeno número de terreiros mais importantes que servem também à dança
dos Praiás dos zeladores menores. Da mesma forma, não se aceita facilmente que dois
Torés se realizem simultaneamente em dois lugares diferentes, ou que os Praiás mais
próximos, ou dos terreiros mais importantes, não sejam chamados para cada Toré
realizado. Assim, quanto menor o número de terreiros, melhor, porque a concentração
ritual realiza no plano simbólico a união social e política do grupo. Fica claro então o outro
aspecto de importância fundamental para nossa análise que envolve o sistema do Toré: ao
papel de pai de Praiá agrega-se o de dono de terreiro, que é o lugar de convergência da vida
ritual Pankararu. A autoridade moral e religiosa, portanto, está intimamente relacionada à
capacidade de criar lealdades, não só através da criação de um grande batalhão de Praiás,
mas também pela capacidade de agregar, ao redor de um mesmo terreiro, grande número de
dançadores e de outros “pais de Praiá”. Em todos esses casos nunca é explicitada a
precedência de um pai de Praiá sobre outro, funcionando em termos gerais o ideário da
congregação horizontalizada de Praiás num mesmo terreiro para a realização de rituais
comuns.
4
Assim, não há vestígios de que a organização social e política dos Pankararu
apresentasse, no momento em que se dá o contato com o SPI, uma chefia centralizada que
englobasse seus diferentes núcleos familiares. As unidades familiares, que tenderam a
constituir grupos de residência, ou grupos vicinais, parecem ter tendido a respeitar um tipo
de autoridade que emergia da figura de patriarcas dotados de qualidades especiais,
geralmente associadas a uma combinação variável de poder mágico, valor moral e outras
variáveis como a capacidade de criação de lealdades rituais, da agregação do maior número
de pessoas através de laços familiares e, ou, de trabalho e de crédito, tão importantes nos
períodos de seca. Essas autoridades, no entanto, não exerciam poder governativo ou
repressivo e, como dissemos, não representavam, com exceção do “sarapó”, uma
especialização suficiente ao ponto de ganhar designação especial, exercendo sobretudo o
papel de mediadoras de conflitos entre os próprios pankararu. Nesta organização política
sem cargos de poder específicos ou qualquer hierarquia mais estruturada que a discreta
distribuição de prestígio religioso e o corte básico entre o “sarapó” e os outros “pais de
Praiá”, as disputas eram resolvidas individualmente ou através de acertos entre as famílias
dos envolvidos, com o recurso à violência física, ou àquelas autoridades morais, que agiam
como conselheiros, sem poderes de resolução de conflitos ou punição dos faltosos,
sustentadas apenas no poder de influência sobre as opiniões.
As histórias de caráter acentuadamente míticos de que já lançamos mão confirmam
essa ausência de uma hierarquia de poderes, ou de uma especialização de competências.
Tanto no primeiro mito do Tarraxá, quanto na história da morte de Cavalcante, as decisões
são tomadas em conjunto, por um grupo de homens ou Encantados que resolvem
coletivamente o que fazer. No caso da primeira narrativa, os Encantados entram em
negociações diretas com o Tarraxá e decidem pelo acordo; na segunda narrativa, um grupo
de homens se isola da comunidade, durante dias em que respeitam as prescrições de
purificação corporal e espiritual, para entrarem em contato com os Encantados e serem por
eles aconselhados como agir. Em nenhuma dessas histórias um personegem especial ganha
destaque e nem mesmo seus nomes são discriminados. Existe uma homologia entre o plano
de organização de poderes encantados e terrenos, onde, no primeiro, existe apenas um
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 97
maior entre os iguais, que no entanto não exerce papel ativo nas histórias narradas. Ao
contrário das figuras de chefia, que exercem poder de mando, o seu lugar parece ser o do
centro imóvel, onde o destaque se dá justamente por seu distanciamento, seu isolamento,
mas sem ferir o princípio de horizontalidade, o que é reforçado pelo fato deste Encantado
principal ser cego (ele usa sua máscara de fibras de ouricuri de trás para frente e em lugar
de dançar, é guiado pela mão, por um auxiliar) e por sua festa, ao contrário de todas as
outras, não implicar nem em dança, sendo embalada por toantes baixos e calmos. No plano
terreno, também encontramos um maior, dentre outros iguais, que também parece retirar
sua autoridade do lugar de imobilidade que ocupa frente à discreta disputa por prestígio
ritual existente entre os outros “pais de Praiá”. Neste caso, também a política se realiza por
meios rituais, na disputa por homens (GEERTZ,1991).
Mas como já havíamos feito referência, mesmo para este momento imediatamente
anterior à chegada do governo tutelar, é possível identificar a existência de uma figura que
foge ao modelo, retirando seu prestígio, não do exercício ritual dos terreiros ou da
mediação com os Encantados, mas da capacidade de mediação com outro plano igualmente
distante e incorpóreo de poder. São as lideranças peregrinas, que passaram a realizar, na
década anterior à chegada do SPI e continuam realizando depois dele ter se estabelecido,
viagens para os lugares de poder, em busca dos direitos. Elas se transformarão em
referências políticas para a população Pankararu e serão também a via de entrada e de
controle das novas formas de autoridade estatutárias, moldadas segundo a repartição de
poderes estatal.
Burocracia e magia
Com a sua (auto)identificação como remanescentes, os Pankararu ganham também
uma forte consciência da falta, da queda com relação a uma suposta ordem anterior,
marcada pela idéia de índios puros. Em função disto, as recomendações do “dr. Carlos” e
as mudanças impostas pelo órgão indigenista assumem uma legitimidade própria da relação
de poder estabelecida através das relações de saber: elas têm origem na palavra de
autoridade de quem sabe melhor o que é ser índio. Esse efeito de verdade dos discursos
científico e burocrático não pode ser desconsiderado na análise da situação de mudanças
profundas pelas quais passou a população Pankararu.
É preciso, portanto, partir em primeiro lugar da consideração sobre a capacidade de
persuasão e sedução deste saber, que teria o poder de orientá-los na direção de uma
originalidade perdida e, em segudo lugar, do reconhecimento de que tais mudanças
traduziam também expectativas bem mais realistas, de sujeitos envolvidos nas disputas de
prestígio e autoridade, ao mesmo tempo que traduziam em termos culturais, isto é, em
termos apreensíveis pela ética que orientava o equilíbrio dinâmico da política local. A
montagem do novo quadro sobre o qual passaria a funcionar a organização política
indígena, de natureza burocrática e estatutária não veio substituir o arranjo de autoridades
nativo, como algo completamente estranho e externo, mas combinar-se a ela, através de
sucessivas e recíprocas reinterpretações. Ainda que seja mais um capítulo fundamental da
história de descontinuidades daquela população, essa descontinuidade não pode ser
expressa nos termos da dicotomia tradicional/moderno. Para que seja possível
apreendermos a forma pela qual se deu essa passagem e suas ressignificações,
descreveremos a seqüência de situações que marcam o estabelecimento de um novo padrão
de autoridade e um novo tipo de equilíbrio.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 98
1
Depois de ter criado a figura do pajé, preenchida pelo antigo sarapó, e ter
supervisionado a passagem, dois anos depois, desse cargo e do cacique para seus
sucessores de uma forma que pretendia tornar “tradicional”, o “dr. Carlos” não assistiu à
segunda sucessão daqueles cargos, realizada pelos próprios pankararu. É João Binga, hoje
cacique Pankararu, o principal narrador da história dessa sucessão, na qual ocupou papel de
protagonista, ao longo da década de 1960. “Merece ter um pajé, um cacique e um capitão”,
teria dito o “pessoal do governo”, segundo o João Binga. Em função disso, passaram a
ocupar esses lugares, sucessivamente, o Joaquim Serafim, o Narcíso e o João Moreno,
componentes do grupo que realizou as primeiras viagens em busca dos “direitos” e aos
quais o João Binga, ainda muito jovem, começou a acompanhar: “Tudo ia certo e eu
viajavam sempre com eles de um lado pro outro sem ser nada”. Acompanhava-os na
expectativa de vir a constituir-se ele mesmo numa autoridade, inevitavelmente de novo
tipo, onde as viagens serviam como momento de formação necessário, que agora vinha
complementar os outros requisitos por ele já preenchidos, como sobrinho do pajé e neto do
antigo “sarapó”, a quem auxiliava no zelo do “terreiro da nascente” e cujo zelo
provalmente herdaria. A relação entre esses personagens era a seguinte: Joaquim Serafim,
falecido em 1994 com 107 anos, na época pajé, morava na aldeia “Serrinha”, localizada
fora do Brejo dos Padres, em que se reuniam parte das famílias que tiveram que fugir para
os contrafortes da Serra Grande no momento das linhas, assim como seus descendentes. O
seu pai, o antigo “sarapó”, teria sido um dos “corridos” pelos linheiros, mas no início do
século voltou para o Brejo, construindo aí um novo terreiro, que ficou conhecido como “Da
nascente” e deixando o terreiro do Encantado Xupunhum, o principal Encantado da aldeia,
sob o zelo do seu filho, que continuaria agregando seu próprio círculo de lealdades. Um
dos homens ligados a este terreiro era o também jovem João Tomás, morador da aldeia
vizinha “Macaco”. “E se agradou dele”, diz João Binga, referindo-se à relação preferencial
que começou a se estabelecer entre o pajé Joaquim Serafim e João Tomás. Efetivamente,
em pouco tempo, Joaquim Serafim faria João Tomás seu sucessor, através da criação do
cargo de “sub-pajé”. Este e o cargo de “sub-cacique” estavam sendo criados, naquele
momento, como forma de transferir para pessoas mais jovens e mais disponíveis para
viagens parte das atribuições dos cargos, ainda que mantendo a hierarquia com os seus
titulares.
Sentindo-se frustrado nas suas expectativas de tornar-se ele mesmo pajé, João
Binga intercede junto às autoridades tribais contra João Tomás, falando-lhes de suas
desconfianças em relação ao caráter do concorrente. Apesar disso, João Tomás é
empossado no cargo de sub-pajé e procura João Binga para anunciar pessoalmente o fato.
O encontro transforma-se num confronto pessoal e o João Binga acusa-o de “vigarista”.
Depois de tomar conhecimento do confronto, Joaquim Serafim procura João Binga durante
a feira de domingo, realizada em frente ao posto indígena que reunia toda a população
pankararu, para chamar-lhe a atenção e exigir dele, daquele dia em diante, respeito ao João
Tomás como sub-pajé. Embaraçado com a situação pública, João Binga tenta transformar
tudo num mal-entendido, mas imediatamente João Tomás surge e os ânimos alteram-se
novamente. Ofendido, João Binga faz um aviso a Joaquim Serafim: se ele "tem o poder” e
faz com ele o que quizer, mesmo assim, não é possível ir contra a natureza. Diz que sabia
que aquilo não daria certo e, quando isso acontecesse, colocaria a todos “lá embaixo”.
Mais tarde, numa de suas viagens às FUNAI's de Recife e Brasília, João Tomás
adquire com o órgão um “documento” que o nomeava pajé, “uma carteirinha com retrato,
plastificado, carimbo..., e com aquilo se engrandeceu” (João Binga). De posse do
“documento” ele passou a se considerar e efetivamente a ser considerado, não só pelo
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 99
órgão indigenista, mas também entre os Pankararu, como o pajé titular, ameaçando
frontalmente a autoridade do Joaquim Serafim. O cacique deposto procura então João
Binga, arrependido da escolha e buscando algum tipo de apoio. Depois de saborear ainda
por algum tempo o gosto da profecia realizada e de se fazer indiferente, João Binga resolve
agir, mas para isso primeiro vai “pedir ao homem”: recolhe-se ao terreiro pelo qual zelava,
o do “capitão da nascença” e lá passa alguns dias fumando, bebendo garapa, “fala em outra
língua” e finalmente consegue do Encantado um sinal. O Encantado mostra-lhe um par de
coqueiros no alto de um monte perto da “nascença” e pede para que ele os observe: entre
eles, uma carreira de formigas descia de um coqueiro e subia no outro. Seu “defensor”
explica a imagem: um dos coqueiros o representava e o outro, a João Tomás. O conjunto
significava que os dois poderiam trabalhar juntos porque ambos tinham poderes para isso
(“a classe nossa tá na mão de vocês dois”), mas como em lugar disso, eles disputavam um
mesmo lugar, “nada ia pra frente”. Depois, finalmente, o Encantado dá a receita a seu
protegido e zelador: ele deveria pegar homem seu de total confiança e o mandar até Recife,
antes que o João Tomás chegasse lá, para o encontro com o diretor do SPI. Esse homem de
confiança deveria conversar com o superintendente de Recife para explicar-lhe a situação e
pedir-lhe que retirasse das mãos do João Tomás o “documento” que lhe dava poderes de
pajé, antes que ele conseguisse encontrar-se com o diretor da FUNAI. Esse homem de
confiança era o professor da escola do posto indígena, amigo do superintendente.
De fato, o superintendente retirou o “documento” do João Tomás, pouco antes da
entrevista e, sem ele, João Tomás não teve coragem de apresentar-se ao diretor do órgão.
Pouco tempo depois, como represália, o João Tomás tentou interditar o terreiro do Joaquim
Serafim, que novamente recorreu ao João Binga. Enfraquecido pela retirada do
“documento” e com sua popularidade em baixa, em decorrência da sua atuação
excessivamente repressiva, João Tomás viu-se desautorizado na interdição do terreiro, que
continuaria funcionando e abandonou o cargo.
2
Mais tarde, ao final da década de 1960, seria o próprio João Binga que alcançaria o
cargo, não mais de pajé, mas de cacique, através de uma situação de viagem, em
conseqüência de um desentendimento entre o encarregado de posto e as autoridades tribais.
O desentendimento decorria da repartição da produção agrícola do posto, onde o
encarregado se recusava a entregar uma parte dos produtos para a população, para
convertê-la em renda do posto indígena, em especial a produção de garapa e rapadura.
Parte das lideranças tribais dirigem-se então até a “superintendência” para pedir a
substituição do encarregado. Como de costume, o João Binga encontrava-se entre eles. No
escritório da superintendência, foram feitas as reclamações, mas, como o João Binga
mantinha-se calado, o superintendente perguntou-lhe se aquilo tudo era verdade. “Só a
metade”, respondeu. Para “fazê justiça reta” e não para defender o encarregado, ele explica
que, se alguns não bebiam a garapa do posto sempre ou não a levavam para os filhos, era
porque o produto não era suficiente e não por recusa do “chefe”.
Satisfeito com sua posição, o superintendente encerra a reunião e o chama para
conversar. Diz que, com aquela declaração, tanto o encarregado quanto ele tinham “ganho
pontos”. João Binga aproveita, queixa-se do problema das terras em disputa com os
posseiros, que recentemente tinham queimado o travessão que protegia suas roças do gado
e consegue do superintendente uma ordem por escrito dirigida ao encarregado, exigindo
que requisitasse às polícias de Tacaratu e Petrolândia proteção aos índios, enquanto eles
refizessem o travessão. Caso o encarregado não cumprisse a determinação dentro de seis
dias, como supôs João Binga, ele mesmo deveria mandá-lo para o Rio de Janeiro e estava
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 100
autorizado a ir com aquele “documento” até os delegados de Petrolândia e Tacaratu para
fazer a requisição.
Voltando à área, João Binga apresentou o documento ao encarregado, mas não
entregou-o (como ele mesmo frisa na narrativa) e o encarregado se viu obrigado a cumprir
as ordens dadas. Parece ter sido justamente a repercussão deste fato que deflagrou sua
ascensão ao cargo de cacique, em substituição ao antigo, já muito idoso, que veio a falecer
pouco tempo depois.
3
O rápido resumo dessas situações de disputa pelos cargos de poder de natureza
estatutária, instituídos pelo órgão indigenista, revela o lugar de destaque de algumas
relações e mecanismos, que ajudam a compreender a relação de ressignificações, mais que
de simples substituição do antigo pelo moderno ou do tradicional pelo burocrático. Desde a
primeira situação de disputa entre João Binga e João Tomás, o “documento”, esse elemento
novo, fruto direto da presença de uma ordem letrada de base burocrática, assume um papel
de destaque nas disputas de poder, tão mais significativo pelo fato da totalidade dos
personagens citados nos relatos acima não serem alfabetizados30. A entrada deste novo
elemento na dinâmica de disputas pelos lugares de poder, a princípio, revela a substituição
ou subordinação das regras anteriores, que passavam basicamente pelas disputas de
lealdades através do exercício ritual, colocando em seu lugar uma titulação abstrata, que
retira o seu poder do fato de ter origem na estrutura estatal, independente de qualquer
consentimento da população a que faz referência.
Por outro lado, esse poder atribuído ao “documento” tem uma forte semelhança
com outros tipos de objetos mágicos, que retiram sua força da performatividade de que são
capazes, ou do fato de carregarem em si, na forma de uma espécie de mana, o poder
daqueles que lhe produziram. A autoridade daquele que possuía o documento, como fica
claro no caso do João Tomás, sustentava-se na crença do poder do documento, antes de
qualquer valor legal com repercussões concretas, que isso pudesse implicar. Não existe
nenhuma legislação ou determinação interna do órgão, que regule a distribuição de
documentos, instituindo pessoas em cargos políticos tribais e, mesmo que ela exisisse, o
fato de não estar de posse do “documento”, no momento da entrevista com o diretor do
SPI, não deveria produzir o efeito de quebra de poder que isso teve sobre ele31. A própria
resposta encontrada pelo João Binga, para a situação imposta por essse novo elemento, o
documento, reforça sua plena absorção no sistema mágico: ele recorre aos Encantados e
são os Encantados que lhe dão a chave de quebra de poder do documento, reconhecendo
sua importância, antes de desconhecê-la, mas também assimilando-a ao seu próprio código,
como qualquer outro elemento mágico que poderíamos remeter a uma ordem tradicional.
30
É digno de nota como alguns desses personagens, notadamente João Tomás e Quitéria ( que como veremos
n capítulo seguinte, encabeçam as facções da área à época de nossas visitas, em 1993 e 94) possuem grossas
pastas com uma série de documentos de origens variadas, relativos a diferentes assuntos, que eles conhecem
de memória, algumas vezes até mesmo sendo capazes de descrever pormenorizadamente os seus conteúdos.
31
Igualmente interessante é ver os funcionários do órgão participando plenamente desta magicização do
documento.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 101
A representação indígena
1
Já no ano de 1980, a pretexto de resolver o problema das terras em litígio com os
posseiros, ou como ele dizia na época, “conseguir a escritura da Carta Régia”, João Binga e
Manuel Oliveira, casado com a irmã do primeiro, faziam muitas viagens às FUNAI's de
Recife e Brasília. Antes de uma delas no entanto, João Binga percorreu a maior parte das
famílias do “Brejo”, recolhendo assinaturas num “documento” cujo conteúdo era
absolutamente desconhecido por aqueles que o assinavam (na sua totalidade nãoalfabetizados), mas que dizia referir-se ao pedido da “Carta Régia”. Desconfiadas com
aquelas sucessivas viagens e com o “documento”, Quitéria e Maria Berta, outras duas
lideranças, que eventualmente participavam das viagens, resolvem verificar a veracidade
das histórias contadas pelo cacique e, acompanhadas de Antônio Moreno, filho do já
falecido João Moreno, vão à Recife, poucas horas depois do cacique e do seu companheiro
partirem para Brasília. Lá, descobrem que as assinaturas recolhidas na verdade legitimavam
um documento de transferência das terras da horta do posto indígena para o nome do
cacique.
As terras, transformadas em horta pelo posto na década de 1940, correspondiam às
terras antes dedicadas à Santo Antônio, padroeiro da área indígena, “dono” da igreja do
Brejo e ocupavam uma das faixas de terra delimitada pelas “linhas”. Antes do SPI apossarse dessas terras, eram de usofruto dos zeladores da igreja, que se sucediam
hereditariamente e se faziam responsáveis pela organização das festas religiosas, compra de
panos para o altar, pintura da fachada etc. No momento em que a FUNAI preparava-se
para devolver essas terras para a comunidade, João Binga criava um artifício para apossarse individualmente delas, através da criação de um “documento”. Ao descobrirem o
artifício, o grupo em viagem para Recife dirige-se para Brasília e lá interrompe a transação.
Em decorrência, Antônio Moreno é erguido ao cargo de Capitão, desativado após a morte
de seu pai e as terras do posto divididas entre os seus dezesseis antigos zeladores e João
Binga é destituído do cargo de cacique.
É necessário observar que as viagens das lideranças aos escritórios da FUNAI
reúnem um número variável delas, alternando de forma mais ou menos regular, segundo as
oportunidades. Em alguns momentos, um certo número delas pode intensificar seu trânsito
e monopolizar as mediações e o acesso às informações, como aconteceu no relato acima
com o João Binga e seu cunhado, mas, por princípio, o recurso às viagens está sempre
aberto a quem se disponha e tenha legitimidade local, isto é, tenha prestígio junto à
população de sua seção ou aldeia, para se engajar nelas. O grupo de lideranças empenhado
nas viagens, muitas vezes, é composto de autoridades concorrentes entre si. Assim, se a
participação nas viagens precisa ser legitimada por uma determinada carga de prestígio
(note-se: prestígio e não “representatividade”, como a define a ciência política), ou por
uma relação de confiança bastante estreita com uma liderança já plenamente legitimada, ela
é também, em si, uma fonte de prestígio de grande importância. Além do valor puramente
emblemático da participação nas viagens, através delas, aquelas lideranças se fazem
reconhecer como “representantes” da coletividade para as autoridades externas
(inicialmente apenas o SPI, depois a FUNAI, e mais tarde um amplo campo de agências de
investimento social e de mediação desses investimentos, como veremos no capítulo
seguinte) e, através desta representatividade, tornam-se capazes de alcançar benefícios que
podem ser canalizados com relativa precisão para sua aldeia ou seção. A construção da
“representatividade”, neste caso, envolve mais teatralidade do que normalmente já compõe
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 102
a representação política de natureza parlamentar, por exemplo. Representar, como esta
noção surge nos discursos, não se relaciona com portar-a-voz, mas portar-a-imagem,
performatizar o grupo, que afinal não é constituído pela opinião, mas por uma
“indianidade”, que se constitui, de um lado, pela realização do Toré e, de outro, pelo
desempenho do papel de oprimido.
Voltemos à análise da situação criada com a deposição do cacique para que essas
reflexões ganhem sentido. Com ela, as lideranças responsáveis pela anulação do
“documento” sobre a roça, ganham larga notoriedade: Maria Berta, concorrente da
Quitéria, deixaria a área Pankararu e iria juntar-se à parte de sua família nos Geripancó,
tornando-se lá uma grande liderança. Quitéria, por outro lado, intensificaria sua
participação nas viagens e, em pouco tempo, tornar-se-ia a mais assídua e conhecida das
lideranças Pankararu, centrando sua atuação no tema da retomada das terras ocupadas pelos
posseiros. Ela, João Tomás, João Binga, Hilda e Antônio Moreno seriam as lideranças mais
destacadas neste sentido: muitas vezes, todos viajariam juntos apesar das graves diferenças
entre eles. A permanência de João Binga no grupo não se deu sem resistências, mas acabou
por ser contornada pela relação de parentesco com Quitéria. Numa das suas viagens a
Brasília, os funcionários do órgão insitiram na necessidade de apresentação de uma pessoa
que ocupasse oficialmente o cargo de cacique que se encontrava vago, como João Binga
lhe era o mais próximo, Quitéria, “representando” o grupo, lhe restitui o cargo. Esta volta
estaria tão comprometida numa relação de dívida com Quitéria, que sua atuação seria
definitivamente alterada por sua subordinação a ela. Mais tarde, um outro parente seu
assumiria o cargo de pajé, intensificando a centralidade de Quitéia como autoridade de
mediação.
2
O fato de exercer forte influência sobre as duas principais lideranças estatutárias do
grupo e de não exercer nenhum cargo formal, somar-se-iam a uma capacidade de
“representação”, que a tornariam cada vez mais visível. Quitéria explora ao máximo, em
seu discurso, o lugar de mulher e de subordinada, estabelecendo um discurso em grande
medida padronizado, mas de grande força dramática. É interessante que, em nossas
conversas, ela tenha citado quase exclusivamente nome de mulheres, ao falar dos
responsáveis pelas fontes de recursos que ela tem conseguido mobilizar ao longo dos
últimos anos, tanto na LBA e na EMATER local, quanto junto ao Museu do Índio, no Rio
de Janeiro, ou junto à Secretaria de Cultura do estado de Pernambuco etc. Pude assistir
também um pouco dessa retórica nos encontros realizados entre as lideranças e as juíza e
promotora de Tacaratu, em situações de negociação sobre o conflito com posseiros.
Em seus discursos para os jornais e nas rádios, Quitéria relaciona os atentados que
teriam sido cometidos pelos posseiros contra sua pessoa, fala do filho que perdeu com o
susto provocado por um deles e maximiza assim, ao narrar no presente, fatos muitas vezes
ocorridos, mas há mais de 10 ou 20 anos, um conflito cuja violência cotidiana é muito
atenuada e que não provocou, ao menos diretamente até agora, nenhuma morte. Esses
atentados algumas vezes são “descobertos” através de boatos que permitem evitá-los e,
assim, eternizar a suspeita. Durante minha estadia em área pude assistir à descoberta de um
desses atentados que mais tarde seria citado numa rádio local durante uma entrevista sobre
o conflito com os posseiros. Enquanto eu estava no posto indígena Quitéria chegou
bastante e sinceramente assustada dizendo estar transferindo a família de sua casa naquelas
próximas noites para a casa de parentes, por ter ficado sabendo que os posseiros iriam
tentar matá-la: uma menina que é criada por ela e que ajuda a cuidar dos seus filhos,
naquele dia pela manhã, teria levantado cedo e ido embora para junto da mãe, sem dar
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 103
maiores explicações, apesar das insistências. Como sua mãe trabalha de doméstica na casa
de posseiros em Itaparica, a associação entre uma coisa e outra bastou para que se
caracterizasse a ameaça e para que Quitéria corresse para o posto indígena, exigindo que o
“chefe”, seu sobrinho, comunicasse o fato à Polícia Federal, como realmente o fez. É de se
notar que seus parentes próximos, apesar de não contradizê-la, não se mobilizaram com a
suspeita, nem mesmo o “chefe”, apesar de a ter comunicado imediatamente à FUNAI.
Além disso, Quitéria muitas vezes mobilizaria em suas viagens à Recife um grupo
relativamente extenso de parentes na realização de Torés, como forma de “representar” a
aldeia para as autoridades. Posteriormente, essa forma de “representação”, quando as
disputas por lealdades se transformariam em faccionalismo cismático, se generalizaria e,
através dela, outros grupos buscariam alcançar o seu tanto de “representatividade” e de
recursos externos.
O resultado de todo esse investimento, na construção de uma imagem, levaria à
constituição da Imagem da Quitéria, como literalmente a imagem do grupo para muitas das
agências de mediação e de apoio, que assistiram ao grupo desde inícios da década de 1980.
Isso pode ser ilustrado com o fato do volume produzido pela CONDEPE (Companhia de
Desenvolvimento de Pernambuco), sobre as comunidades indígenas do estado, ter como
capa uma foto de rosto dela. Quitéria mistura todas essas representações à de um vigor
quase inesgotável, que lhe permite estar em vários lugares ao mesmo tempo, como
representante do povo Pankararu, como representante das mulheres indígenas, como
representante dos índios do Nordeste. Seu discurso não deixa nenhum desses elementos
passarem despercebidos ao observador, explicitando constantemente não só as
características enumeradas, mas igualmente o fato do sofrimento redobrado que isto lhe
impõe, como a mais “visível”, a mais mobilizada das lideranças e, sempre, a mais “visada”
por seus inimigos, os posseiros. Nos documentos produzidos pelo sindicato ou em
depoimentos pessoais de posseiros a que pude ter acesso, esse papel de ícone Pankararu
assumido por Quitéria torna-se evidente. A queixa de seus inimigos contra ela muitas vezes
é a calúnia: por denunciar emboscadas que não existiram, tentativas de arrombamento de
sua casa que nunca aconteceram, mas que compõem a teatralização do subordinado.
3
O outro elemento de grande importância, que essas situações nos apresentam, é o
lugar ocupado pelas viagens nessa nova ordem. Elas estão na própria origem do órgão
indigenista na área, como vimos no capítulo anterior, associado à convergência de um
circuito de viagens de trocas rituais e um circuito de viagens de busca dos direitos, já
tradicionais, não fazendo parte, portanto, de um novo estado das coisas em oposição a um
estado anterior; mas, depois de estabelecida a relação tutelar, elas foram bastante alteradas,
tanto em seus circuitos quanto no papel que passaram a desempenhar nos arranjos de poder
tribais.
Em primeiro lugar, as viagens abandonam os circuitos frouxos e relativamente
aleatórios percorridos, em decorrência do surgimento de personagens capazes de garantir a
mediação entre os grupos e autoridades que lhes acessariam “direitos”. Em lugar desses
circuitos variáveis, estabelece-se um desenho fixo, no qual as “centralidades”
(RAFESTIN,1993) são os entrepostos do órgão indigenista, mediador privilegiado e, até
um determinado momento, exclusivo do fluxo dos “direitos”. Agora, os centros de poder
para onde se dirigem as lideranças peregrinas são os escritórios das Inspetorias (mais
tarde, das DR's e, hoje, das ADR's), da própria diretoria do órgão, no Rio de Janeiro e
depois em Brasília, ou no Museu do Índio (RJ), onde foram depositados os “documentos”
de legitimação e registro das posses indígenas. Em segundo lugar, as viagens, que antes
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 104
apresentavam-se como uma fonte alternativa de prestígio, compondo mais uma das
variáveis que se agregavam à lógica dos terreiros, tornam-se, com a criação dos cargos de
poder estatutários, uma via de acesso direto àqueles cargos, por meio do contato com o
poder tutelar, assumindo o lugar de um verdadeiro pai ou da posse dos “documentos”,
objetos de conteúdo obscuro emanados d'Ele e que se faziam assim, imantados por sua
autoridade. Com o estabelecimento do governo tutelar, as viagens não são mais uma fonte
de prestígio alternativa, mas requisito indispensável para qualquer indivíduo que venha
ocupar um lugar de poder. De outro lado, as viagens passam a funcionar, igualmente, como
fonte do equilíbrio de forças do arranjo político, ao servir como recurso contra os possíveis
abusos das autoridades instituídas.
Além disso, com as mudanças mais recentes de contexto, em que as alterações
econômicas e territoriais ligadas às UHE's provocam a entrada no cenário regional de um
grande número de agências de intervenção e assistência, as viagens dão acesso a outros
entrepostos de direitos, alternativos ao órgão indigenista, dando também um sentido mais
amplo e permanente à idéia da busca de direitos. Os “direitos” agora não se restringem
apenas aos recursos fundiários, mas a todo tipo de recursos possíveis de alcançar através da
mediação com agências externas: indigenistas ou não, oficiais ou não.
A transformação das viagens na forma mais importante de visibilização do grupo
indígena junto às autoridades faz com que elas passem, de certa forma, a orientar as
prioridades do próprio órgão ao constrangê-lo frente à imprensa, através de denúncias ou
através das ocupações das sedes, onde os grupos de lideranças peregrinas acampam por
determinados períodos, como forma de “sensibilizar as autoridades”. Análago às primeiras
lideranças peregrinas, nesse caso também passa a existir uma especialização, onde alguns
deles acabam por produzir sua própria imagem como símbolo étnico, sendo reconhecidos
pelas autoridades e fazendo com que o grupo saiba deste reconhecimento, retirando daí seu
capital político.
Estado-pai-patrão
1
A rotinização da tutela teve por efeito também o de agregar à noção de tutor e
empresário à de patrão, justificando a utilização da mão-de-obra indígena com argumentos
administrativo-educacionais emancipatórios. O plano de emancipação dos postos indígenas
incluía o emprego de serventuários indígenas que, aos poucos, assumiriam a administração
dos postos, até o dia em que a área pudesse ser absorvida pela administração municipal
como mais uma de suas unidades administrativas. Essa possibilidade abre passagem para o
surgimento de novos personagens que povoarão o cenário da relação tutelar e passarão a
ocupar um lugar permanente e de crescente importância no contexto Pankararu.
Até onde foi possível verificar através dos registros das folhas de pagamento
trimestrais depositadas no setor de microfilmes do Museu do Índio, tal emprego parece ter
sido constante desde os primeiros momentos de atuação do órgão, ainda que sempre
mesclado com a presença de outros funcionários não-indígenas, que deveriam lhes servir
como exemplo. As funções desempenhadas no posto indígena eram as seguintes:
encarregado, auxiliar, auxiliar de ensino, auxiliar de ensino agrícola, aprendiz, trabalhador,
aprendiz índio e servente, sendo que a participação dos índios concentrava-se nas três
últimas funções (Quadro 8).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 105
Quadro 8
Índios assalariados pelo Posto Indígena Pankararu (dados com lacunas para 19401949)
m./a Trabalhadores
aprendiz índio
servente
.
12/4 José Mariano
0
João Moreno
José Angelo
Pedro Bernardo
Manoel Serafim
12/4 Joaquim Vermelho
Cícero Gomes
Pedro Martins da Silva
2
Augusto Grande
Saturnino Pereira
12/4 Joaquim Vermelho
Cícero Gomes
3
Augusto Grande
Saturnino Pereira
03/4 Joaquim Vermelho
Manoel Angelo
7
Francisco Alves da
Silva
Cícero Barros
06/4 Joaquim Vermelho
Manoel Angelo
7
Cícero Barros
João Antônio dos Santos
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
09/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
7
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
04/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
8
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
06/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
8
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
12/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
8
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
04/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
9
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
06/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
9
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
Manoel Vicente Pereira
09/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
9
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
12/4 Joaquim Vermelho
João Antônio dos Santos
9
Manoel Angelo
Francisco Alves da Silva
(Fonte: DOC.:41)
Os Pankararu assalariados pelo posto indígena, durante os nove anos a que as folhas
de pagamento depositadas nos arquivos do Museu do Índio dão acesso, faziam parte, na
quase totalidade, daquela lista de lideranças peregrinas que os relatos apontam como
responsáveis pelas buscas dos “direitos”. Por outro lado, alguns dos funcionários nãoindígenas citados, seriam absorvidos pelo grupo, através de casamentos, ou, como no caso
especial de uma professora tornada moradora na área e expulsa como posseira no início da
década de 1990. Com isso, o SPI criava um espaço de relações sociais e patronais
alternativo ao anteriormente representado pelos posseiros, além de engajar aquelas figuras
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 106
de destaque na mobilização pelos direitos numa relação assimétrica, comprometendo-os
frente à população com a própria imagem do órgão. Desde então, a relação entre órgão
tutor e tutelados passa a assumir um caráter ambíguo, no qual o argumento da emancipação
gera formas de controle e aliciamento, levando, não ao progressivo desaparecimento da
relação tutelar, mas à sua perpetuação.
Tal emprego de indígenas vai se acentuar ao longo dos anos até surgir como uma
forma eficaz, por um lado, de controle das críticas e pressões indígenas (como pude
presenciar, ser funcionário implica para alguns, na impossibilidade de formular críticas
diretas ao órgão ou aos seus responsáveis); por outro, de instrumento de barganha com as
lideranças indígenas, onde os empregos entram no rol dos recursos com os quais a FUNAI
daria acesso. A contrapartida disso é que o emprego surge como moeda para as relações de
autoridade internas à aldeia, de que passam a dispor as lideranças de maior trânsito pelo
órgão. A seguir, organizamos alguns dados que dão uma dimensão da importância
desempenhada pelo funcionalismo indígena atualmente32.
Quadro 9
Admissão de funcionários indígenas pela ADR 3 (1971-1987)
4
Pankararú
3
outros
2
1
0
71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
83
84
85
86
87
À época em que esses dados foram recolhidos (outubro de 1994), do número total
de funcionários, pouco menos de um quarto eram indígenas. Ainda que a concentração de
admissões observadas para o período 1986-1987 coincida com um período excepcional em
termos de admissões em geral (Cf. Quadro 10). Esses dados apontam para uma política de
gestão das relações entre o órgão e a política local, que combina práticas clientelistas e um
tipo de público muito particular, os grupos indígenas, sobre o qual operam complexos
processos identitários, que ultrapassam os limites da prática clientelística mais comum. As
implicações da convergência destas duas práticas e discursos, o étnico e o clientelístico,
ainda está por ser devidamente avaliado. Aqui temos condições apenas de chamar a atenção
para a importância da questão, fornecendo alguns dados preliminares.
Dentre os funcionários de origem indígena admitidos pela ADR3, a grande maioria
era Pankararu (19 contra 3 Fulni-ô, 2 Tuxá, 2 Xukuru-Kariri e 1 Potiguara), mas isso não
significa que esse grupo tenha a maioria real das admissões. Isso demonstra apenas uma
preferência por parte dos Pankararu por permanecer em sua própria área indígena ao
exercerem seus cargos. Segundo o que é corrente, os maiores clientes da FUNAI em termos
de empregos são, em primeiro lugar, os Fulni-ô, em segundo, os Tuxá e, apenas em terceiro
lugar, os Pankararu. A importância deste tipo de recurso para os grupos indígenas
nordestinos e o correspondente engajamento das suas lideranças na sua busca leva ao
cacique Kiriri empenhar-se em reunir o apoio de outras lideranças da região numa
reivindicação coletiva para que a mudança nos critérios de admissão de funcionários, da
32
Os quadros que se seguem foram montados a partir da consulta direta aos arquivos do Departamento
Pessoal da FUNAI de Recife.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 107
simples indicação para o concurso, não seja aplicável aos candidatos indígenas ou, se o for,
que os concursos se restrinjam aos indígenas.
Quadro 10
Admissão de funcionários pela ADR 3 (1970 - 1990).
70
65
60
55
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90
Percebe-se assim que o argumento inicial empregado pelo SPI para justificar essa
prática é desmentido pelo uso de tais empregos, mais como recursos ampliadores da
mobilidade indígena, que como uma suposta capacitação para a autonomização da
administração das áreas, visando sua futura emancipação. Pela falta do número total de
funcionários pankararu fora da 3a DR não é possível avaliar o quanto o caso Pankararu é
especial, mas é possível traçar o perfil dos seus funcionários em área: a grande maioria
deles (17 dos 19) é composto de mulheres e, entre elas, a maioria, de professoras de
primeiro grau, ocupando grande parte das vagas das escolas dentro da área indígena.
Quadro 11
Escolas e Professoras da aldeia Pankarau (1994)
Localização da
Subordin No(subord.) das
escola
ação
profas
1 “Grupo” do posto
FUNAI
5 (FUNAI)
indígena
2 “Grupo” do posto
Município 5 (Município)
indígena
3 Serrinha
FUNAI
2 (FUNAI), 2
(Município)
4 Espinheiro
FUNAI
2 (FUNAI), 2
(Município)
5 Espinheiro
Município ?
6 Agreste
Convênio 1 (Município)
7 Saco dos Barros
FUNAI
1 (FUNAI), 3
(Município)
8 Tapera
Município 2 (município)
9 Carrapateira
Município 2 (município)
OBS:
Prédio da FUNAI
Prédio construído pelo
Lions Club
O que é interessante de observar nessa situação, independentemente do que a sua
concentração funcional possa implicar, é o próprio mecanismo de alcance desses empregos
e o efeito que têm sobre o arranjo de autoridades internas. Eles nos apontam para uma outra
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 108
forma de conquistar lealdades, na disputa pela conquista de homens (e mulheres),
enfatizada pelo fato desses funcionários permanecerem na DR e, principalmente, na sua
própria área.
2
Durante muito tempo, a entrada de um funcionário indígena dependeu apenas de
uma indicação e, assim, era possível que um funcionário mais antigo ou, mais
frequentemente, uma liderança de contato com o órgão, com boa entrada nos seus
escritórios, os solicitasse. Um largo encadeamento de relações de clientela era então
acionado de forma que o preenchimento de um único cargo podia estar alimentando as
relações da liderança dentro da área com as suas lealdades, as relações do chefe de posto
com as lideranças, de funcionários dos escritórios de Recife e Brasília com esses chefes e,
por fim, do órgão com os grupos como um todo. No caso dos Pankararu, segundo relatos
dos próprios funcionários indígenas, a mediadora mais importante na conquista de
empregos, desde que se generalizaram na década de 1980, foi Quitéria. Assim, por
exemplo, o atual chefe de posto dos Kiriri, seu sobrinho, depois de ter viajado ainda
criança com a família para São Paulo, onde permaneceu até 1986, e de onde vinha visitar a
AI anualmente, às vezes passando o período de colheita para auxiliar a família, foi trazido
de volta por uma oferta de emprego de enfermeiro no posto indígena. No caso de outro
sobrinho, hoje chefe de posto na própria AI Pankararu, que Quitéria também trouxe de São
Paulo (neste caso, a sua oscilação entre a AI e São Paulo ocorria em períodos mais curtos,
de cerca de seis meses), o emprego foi conseguido através de uma busca direta em Brasília,
para onde foram juntos atrás de uma vaga em alguma Universidade ou de um emprego, o
que surgisse primeiro. Saiu de lá com o segundo, transformando-se em motorista do posto
indígena.
Em primeiro lugar, é interessante destacar como a generalização do recurso do
emprego na FUNAI tornou-os, até determinado momento, uma fase na “carreira” (no
sentido dado ao termo por GOFFMAN,1980) de um jovem indígena bem sucedido,
assemelhando-se às antigas viagens na busca de direitos, mas que agora assumem uma
dimensão individual, biográfica e não comunitária. Entretanto, caso tais jovens quisessem
sair da AI, existia um outro circuito a ser percorrido, que passa por uma peregrinação pelas
salas da FUNAI de Brasília, na “busca de uma portaria”. O relato de uma jovem sobrinha
da Quitéria, irmã de um dos chefes citados acima, em visita à casa dos pais depois de cerca
de sete anos morando no Mato Grosso, e orgulhosa de sua própria história de ascensão
funcional, permite reunir numa mesma situação individual, vários dos elementos até então
dispersos.
Cerca de 30 anos, essa moça foi da terceira turma a se formar como professora entre
os Pankararu e, nessa época, as jovens saídas da escola e selecionadas podiam optar entre
assumir o emprego de professora primária pela prefeitura ou pela FUNAI. Como sua
aspiração era, em suas palavras, trabalhar numa “aldeia de verdade”, onde vivessem
“índios de verdade”, ela optou em buscar o emprego na FUNAI. Conseguido o emprego, a
transferência para uma “aldeia de verdade” dependia de uma “portaria de transferência”,
que só poderia ser conseguida em Brasília, para onde viajou e, como era comum à época,
passou a ocupar um pequeno hotel de cidade satélite, custeada pelo próprio órgão. Como
ela mesmo explica, hoje isso já não acontece mais porque a FUNAI construiu uma “Casa
do Índio”, que permanece constantemente lotada de “índios em trânsito”, na sua maioria do
Nordeste, muitos buscando “portarias” que lhes permitam trabalhar em outras aldeias.
Depois de instalada, saía diariamente do hotel num ônibus da FUNAI, que percorria as
cidades recolhendo seus funcionários para o trabalho nos escritórios centrais. Nesses
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 109
escritórios, então, passava os dias tentando estabelecer contatos com funcionários através
dos quais fosse possível conseguir uma “portaria” que lhe levasse ao emprego desejado.
Assim, conheceu o homem que veio a ser seu marido, funcionário da FUNAI,
trabalhando como professor em sua própria aldeia, Bacairí, com um irmão empregado
como auxiliar de um dos escritórios da FUNAI de Brasília, a quem visitava. Estabelecida
esta relação, ela conseguiu a oferta de emprego como professora entre os Bacairí, onde
depois de alguns meses, começou a namorar e casou com o mediador de sua entrada na
área “de verdade”.
Depois de 1988, no entanto, esse roteiro mudaria. A partir daquele ano, a FUNAI
pararia de contratar novos funcionários e as relações de emprego passariam a ocorrer
basicamente através da prestação de serviço, desde então muito utilizada para a contratação
dos chefes de posto indígena. Se, por um lado, a não-estabilidade implica num instrumento
mais eficaz de controle da própria FUNAI sobre seus funcionários, por outro lado, explica
uma aparente ampliação das opções dos grupos com relação à escolha de seus próprios
chefes de posto, não ficando presos somente ao universo de funcionários do órgão,
podendo convidar, se seu poder de barganha for suficiente, qualquer outra pessoa para o
cargo, normalmente um indígena, da mesma forma que exonerá-lo a qualquer momento.
Esse é o caso do irmão da última informante citada, convidado pelos Xucuru para ser seu
chefe de posto.
Da mesma forma, algumas vezes através das relações de parentesco, os Pankararu
foram buscar em outras aldeias os seus chefes de posto, que, durante a década de 1980,
chegou a contar com um Fulni-ô, um Tuxá e um Xukuru-Kariri, quando, finalmente em
abril de 1992, eles inauguraram uma nova fase nesse relacionamento, conseguindo
contratar para o cargo de “chefe” um “filho da aldeia”. Apartir daí a relação entre
funcionalismo indígena e política tribal fica mais explícita. Ainda que isso não venha
ocupar uma discussão mais detalhada, seria necessário chamar a atenção para o paradoxo
identitário desses jovens chefes. Se, a princípio, esses chefes filhos da aldeia poderiam
significar um ganho político dos grupos indígenas na conquista da plena gestão de seus
próprios negócios, o que se observa é o discurso e a prática desses jovens, presos às
dualidades, por um lado, da relação tutelar e, por outro, do faccionalismo interno. Um
chefe de posto indígena é, em parte, tutor e em parte tutelado, sem que uma dessas posições
elimine a outra, como poderia sugerir o significado mais elementar do termo. No seu
discurso, o “índio” aparece alternadamente na terceira e na primeira pessoa e a sua relação
com o cargo é tanto de poder, quando exerce sobre a população uma autoridade e um
governo cuja origem está fora dela, quanto de dependência, já que se vê obrigado por essa
posição a maximizar as ações do órgão em favor do grupo, sem que isso esteja, na maioria
das vezes, ao seu alcance. Frente às autoridades, ele é mediador e interessado: frente ao
órgão, ele é seu representante e, ao mesmo tempo, “relativamente incapaz”. Por outro lado,
se é a figura capacitada a fornecer a maior representatividade ao grupo, está
definitivamente preso às relações de autoridade familiares, a que deve obediência, sendo
antes de tudo e, em parte, à sua revelia, instrumento da luta faccional.
3
A liderança peregrina que vimos emergir algumas páginas atrás retira sua força da
capacidade de gerar recursos, na forma de projetos de desenvolvimento, de apoios
financeiros, de doação de gêneros, de serviços públicos antes inexistentes, mas
principalmente de empregos dentro do próprio órgão indigenista oficial; novos recursos
canalizados para circuitos tão tradicionais quanto o grupo de parentela. Desta forma, os
signos étnicos são apropriados por determinadas lideranças possuidoras do acesso
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 110
privilegiado a determinados centros ou agências de recursos que têm seu apoio ao “grupo”
transformado em capital faccional, estejam conscientes disso ou não.
O que é especialmente interessante é que tais recursos não criam simplesmente uma
clientela vinculada a uma figura central, no modelo da patronagem. Quando Quitéria
investe seu prestígio dentro do órgão e frente ao público indigenista mais largo no alcance
de cargos funcionais ou de possibilidades de qualificação de jovens através da formação
técnica ou universitária, ela tem aparelhado uma rede familiar bastante larga, que
potencializam laços que poderiam simplesmente se fragmentar com a ramificação das
trocas rituais e matrimoniais. Não só mantém os laços como os restitui quando traz de
volta, para a área indígena, jovens que tinham ido buscar oportunidades em São Paulo. Em
alguns casos, Quitéria explicitamente tem o projeto de fazer de jovens parentes, futuras
lideranças, dando-lhes uma formação política, desde a mais tenra idade, quando os
carregava em suas viagens à Brasília. Um tipo de formação, portanto, que desloca a ênfase
da preparação ritual para o conhecimento dos circuitos das viagens, para o domínio da
lógica da mediação.
Quadro 12
Política e parentesco
1 - Velho Serafim ( ): antigo “sarapó” (Brejo).
2 - Joaquim Serafim ( ): primeiro pajé da AI
(Serrinha).
3 - João Moreno ( ): primeiro capitão da AI (Brejo).
4 - Antônio Moreno: atual capitão da AI, afastado da
política (Brejo).
5 - Dedé: liderança sindical histórica (agrovila).
6 - Conrado: importante referência na manutenção dos
contatos dos índios das agrovilas com a AI (agrovila).
7 - João de Páscoa: sub-pajé da AI entre 1981 e 1982
(Serrinha).
8 - Renato: atual pajé da aldeia dissidente do “EntreSerras” (Serrinha).
9 - João Binga: atual cacique oficial da AI (Brejo).
10 - Antônio : considerado cacique da população
Pankararu da favela de São Paulo.
11 - Antônio Binga ( ): referência religiosa da
família Binga (Brejo).
12 - Miguel Binga: atual pajé oficial da AI (Brejo).
13 - Quitéria: liderança de maior destaque externo
(Brejo).
14 - José Julião: importante autoridade de base
econômica (Tapera).
15 - Agenor Julião: importante autoridade de base
econômica (Brejo).
16 - João: chefe do posto indígena (Brejo).
17 - Paulo: liderança em formação, por iniciativa
direta de Quitéria (estudando fora).
18 - Ronaldo: chefe do posto indígena Kiriri.
19 - Valmir: chefe do posto indígena Pancaru.
20 - Cosme: liderança em formação, convidado pelos
Xucurú para chefe de posto (estudando fora).
21 - Malaquias ( ): linheiro.
22 -Zé da Viúva: liderança entre os posseiros.
O efeito deste investimento, no entanto, é a construção de um tronco familiar, com
uma consistência que nenhum outro pode alcançar através dos recursos de domínio
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 111
comum, como os terreiros, aproximando-o muito da forma de uma linhagem. Uma família
que se constrói tão por completo vai buscar seu ancestral mítico na mesma geração das
lideranças atuais. Através destes laços de clientela, essa liderança peregrina, ponto chave
das mediações, se faz uma família extensa e de grande poder de gravidade, que
possibilitará reverter recursos materiais em recursos rituais, plenamente calcados no
paradigma político do grupo. Se, ao final deste capítulo, fizemos aparentemente o caminho
de volta de Geertz à Foster, foi para completar o quadro múltiplo que compõe, hoje, as
fontes de autoridade e as formas de arregimentação de lealdades Pankararu. A plena
inteligibilidade desses laços continua dependendo da capacidade dos grupos familiares e
rituais de expressarem o modelo de desempenho dos terreiros, como será demonstrado no
capítulo a seguir.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 112
Capítulo 3 - Etnogeografia
Esse capítulo pretende realizar uma reflexão sobre processo ou sobre o complexo de
elementos e relações que constituem um território étnico, nas suas múltiplas, transversas e
conflitantes conjugações dos aspectos jurídicos, ambientais, políticos, míticos, rituais,
históricos etc. Podemos tomar como ponto de partida para isso, como provocação e como
exercício, a frase que ao longo das lutas pela demarcação das terras indígenas tornou-se
uma espécie de emblema, um dazibao impresso em postais, adesivos e publicações
militantes ou simpatizantes da causa indígena: “índio é terra”. Esse dazibao, que penetrou
nosso senso comum e passou a informar nossas análises, não pelo trabalho de observação e
crítica, mas pelas frestas das vontades e pela prática da denúncia, sempre as mais bem
intencionadas, teve o efeito porém de naturalizar, em termos de necessidade, preservação e
equilíbrio, uma relação extremamente complexa. Partiremos portanto, da pergunta: afinal,
o que se diz e o que se faz quando se afirma que índio é terra?
Um território Semântico
É justamente na associação entre corpo e terra, isto é, nas metáforas que buscam
compreender o espaço através de sua associação ao "corpo da terra" e que, através de
analogias bio-médicas, suprem a necessidade de uma aparência científica, que Rafestin
(1986) encontra as bases representacionais de uma antropologia do espaço, assim como
também as razões de seus limites. A grande barreira para seu real avanço estaria, segundo
ele, na insistência por parte dos geógrafos em ignorar a necessidade epistemológica de criar
distinções mais rigorosas entre as noções de espaço, território e territorialidade. Ignorância
esta que se sustentaria na crença de que o mundo se ordena segundo um arranjo de objetos
independentes do espírito ou, como diria Latour (1994), na lei constitucional da
modernidade que separa em pólos opostos e absolutamente distintos, sujeito e objeto. Para
reconciliar tais pólos, mais que para superar tal oposição, Rafestin recicla a metáfora do
corpo como forma de estabelecer uma relação entre espaço e território que pode ser
pensada como homóloga àquela que existe, no corpo humano, entre órgãos endossomáticos
e exossomáticos, isto é, entre os instrumentos naturais ao homem e aquela longa série de
instrumentos que foram sendo produzidos pelo próprio homem e que aos poucos vão se
agregando aos seus instrumentos naturais, assim como modificando-os.
Rafestin concebe então o território como produto de uma, como ele chama,
ecogênese, um processo no qual natureza e cultura se fundem para a criação de uma
dimensão nova, em que o espaço é ordenado segundo os sistemas informacionais
disponíveis ao homem. O território estaria, assim, no campo da produção de significados e
instrumentos culturais, mais que no campo dos objetos naturais. Concebido como produto
de uma ecogênese, sua análise deve levar em conta as disposições e arranjos não aleatórios
de objetos e homens sobre uma determinada superfície, que exprimem conhecimentos e
práticas de apropriação desta superfície e que traduzem o espaço em formas culturais.
Esse debate com o fisicalismo é, aliás, uma constante entre geógrafos e cientistas
sociais que se dedicam à temática territorial, num permanente exorcismo da evidência do
espaço e da naturalidade da natureza. A maior atenção sobre este problema e o relativo
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 113
sucesso em sua superação marcariam aqueles trabalhos mais recentes que Soja (1993)
identifica como geografias pós-modernas. Neles a abordagem seria marcada pela tentativa
de eliminar todo resquício dualista através da superação da dicotomia fundadora que
Lefebvre propôs entre natureza - onde o espaço é tomado como contexto, continente ou
substrato material previamente dado - e segunda natureza - onde ele aparece numa relação
dialética com a produção social, emergindo da aplicação do trabalho humano deliberado33.
Segundo Rafestin, se de um lado é preciso expulsar o fisicalismo, de outro seria preciso
impedir a sua substituição por um outro reducionismo sedutor, o do mentalismo. Na mesma
linha, Soja propõe aos geógrafos que finalmente substitua-se tais dualismos físico-mentais
pelo suis-generis do "socialmente produzido e reproduzido", onde nem mesmo a natureza,
normalmente pensada como sinônimo do previamente dado, foge à lógica da produção
humana. O território passa a ser concebido ao mesmo tempo como ambiente e como
produto das práticas sociais, nas mais diferentes escalas de relações de poder, do qual elas
passariam a estar no centro da definição, conforme as propostas de Foucault (1979).
Assim, motivado pela busca de seu próprio caminho na desconstrução do espaço,
cada autor constrói novas distinções conceituais. Para Lefebvre, entre natureza e segunda
natureza. Para Soja entre espaço físico, mental e social (síntese dos anteriores); entre
espaço per-se, contextual e socialmente produzido etc. Para Rafestin entre espaço, território
e territorialidade; nós, redes e tessituras; nodosidade, centralidade e marginalidade etc.
Todos se colocando como desafio (que Soja identifica como um dos mais impressionantes
da teoria social contemporânea) a definição das interrelações existentes entre os mundos
natural, mental e social.
Minha intenção não é, no entanto, avançar pelo interior dessas discussões
conceituais, nem optar por um ou outro plano de descontrução, nem, muito menos,
acrescentar a estes, outros conceitos que, na verdade, poderiam continuar se multiplicando
segundo a criatividade ou os interesses específicos de cada autor ou de cada texto
A utilidade dessas discussões está, primeiro, em operar o necessário deslocamento
da noção de território com relação, de um lado, à noção de espaço e, de outro, à noção de
Estado, rompendo com as abordagens dos objetos e escalas antes privilegiados pelos
naturalistas ou pelos fundadores da geografia política (e também da antropologia política),
cujas análises supõem uma autonomia entre as diferentes geografias, política, econômica,
ecológica, humana etc., e reificam os limites político-administrativos sustentados no
modelo do Estado-nação. Em segundo lugar, sua utilidade está no fato de demonstrar que
tais distinções conceituais variam, sem perder sua validade, segundo interesses específicos,
referidos a contextos ou conjunto de contextos de pesquisa e que, por mais que pretendam
uma validade universalizante, na forma de conceitos, só assumem significado quando
ajudam a revelar a raridade das situações históricas ou etnográficas. No nosso caso, ao
ajudar-nos a revelar o sentido preciso que a expressão "índio é terra" assume frente à
situação Pankararu.
É a partir desta perspectiva da raridade - que encontra forte homologia com o que,
no plano da historiografia VEYNE (1995) define como "nominalismo" - que Barel (1986)
33
A versão marxista deste debate, da qual Soja oferece um largo panorama, substantivamente não tem lugar
aqui, mas os termos em que ela de desenvolve guardam algum interesse. Não devemos nos enganar com a
aparência bizantina que podem assumir as discussões acerca da localização do espaço na base ou na superestrutura social, de sua caracterização como determinação, substrato ou reflexo das relações sociais de
produção. A cada disciplina, seu próprio fetichismo. De alguma forma, essa busca de uma última instância
pode estar presente também nas mais elaboradas construções etnográficas, ainda que nestes casos a última
instância não seria econômica, como no marxismo, mas de parentesco ou cosmológica, de maneira que,
pensada em sua suposta imutabilidade, confude-se com a própria definição ontológica do grupo em questão.
Teremos um exemplo adiante.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 114
afirma a polissemia do termo território e o obstáculo que ela representa à tentativa de
tomá-lo como conceito. Este autor propõe fazer dele uma imagem maleável, um bricolage,
em que as questões que lhe estão relacionadas, a cada vez que são postas e respondidas,
recriam novamente a idéia do que ele próprio vem a ser. Neste sentido é que Barel concebe
o território como um especificador, que impõe às práticas sociais e à sua análise a
concretude de: A) um constrangimento técnico (condicionantes de um espaço ecológico
determinado), B) uma qualificação categórica (os índios do Brejo dos Padres e não os
índios em geral) e C) uma fronteira (os limites dentro dos quais tais práticas podem ser
consideradas legítimas). Tomá-lo como um especificador, no entanto, não significa uma
volta à posição realista e empirista, já que quando nos referimos a um território através de
uma nomeação simples, como "o território Pankararu", isso não corresponde à afirmação
de uma unidade ou concretude que permitiria abordá-lo como objeto dado e isolado entre
outros objetos, mas à idéia de que sua complexidade encontra um deterninado arranjo (que
Barel prefere chamar de sistema), ele sim nomeável.
Este arranjo, na sua natureza de fato social, faz do território um fenômeno imaterial
e simbólico, ainda que tramado sobre um suporte e sob constrangimentos materiais, uma
relação entre agentes, agências, expectativas, memória e natureza. Todo elemento, físico
ou histórico, que entra na sua composição passa pelo crivo de um processo de simbolização
que os desmaterializa, ao mesmo tempo que, por outro lado, a entrada de novos elementos
provoca rearranjos no conjunto. Nem fato imposto, nem criação aleatória, o território é
uma recriação do real, uma reapropriação do espaço de acordo com obstáculos e
mananciais que não são mais apenas montanhas, rios, nichos ecológicos, mas também
cercas, fronteiras, relações de afinidade e parentesco, domínios sagrados, áreas de atrito,
regiões consagradas a trocas e festividades e aqueles próprios rios, nichos e montanhas
nomeados e, por isso, sobrecarregados de sentido. Enfim, o particularmente importante
nessas considerações sobre uma nova abordagem do território é que, por tomá-lo como
jogo de representações, que informam e são informadas por práticas sociais e relações de
poder, isso implica, primeiro, que recortar territórios significa classificar sujeitos,
identidades e, segundo, que a relação entre grupos, homens e seus territórios não é unívoca.
Na verdade, "nada interdita aos atores sociais que eles habitem mais de um território"
(BAREL,1986), e o múltiplo pertencimento territorial, possível e provável em situações em
que os atores tem ampliadas as possibilidades de mobilidade, gera fenômenos de
sobreposição de pertencimentos, identidades e interesses.
Assim, é por dar consequência a esta perspectiva da raridade, que toma o território
como “especificador”, segundo a proposta de Barel, que se torna necessário recusar a noção
de sistema: deve-se agregar a preocupação com a disposição dos objetos no espaço, à
preocupação com sua disposição no tempo. Se a noção de sistema é sedutora por sugerir
uma série de relações recíprocas, ela parece também vir sempre acompanhada de uma idéia
de circularidade, de unidade e de um número pré-definido de variáveis que contribuem para
um mesmo fim, repondo ao final de uma série de operações, por vezes conflitivas, a
integridade da unidade inicial. Por isso optamos pela utilização da noção de arranjos
territoriais, que remete à imagem de uma determinada disposição temporária dos objetos e
das relações no espaço34.
Mas a opção pelo uso da noção de “arranjos territoriais” não é explicada apenas por
este diálogo com os geógrafos. É necessário explicitar a convergência de perspectivas
antropológicas que lhe serviu de base: as análises em termos de organização, no que elas
34
A fora certas discordâncias, a noção de “arranjo territorial” pode ser vista como uma tentativa de gerar a
contrapartida espacial para o que João Pacheco de Oliveira (1988) definiu como “situações históricas”, num
avanço sobre a categoria de “situação social” de Gluckman (1987).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 115
se opõem às análises em termos de estrutura (no sentido britânico) e de função. Segundo
R. Firth (1974), a relação entre estes três tipos de análise se define por uma espécie de
divisão do trabalho analítico, onde caberia à organizacional a descrição da dinâmica social
enquanto à análise estrutural interessariam as formas e princípios e à funcional, as
finalidades. A primeira viria completar e dar mobilidade às outras ao focalizar as próprias
atividades sociais, em sua relação com as formas e finalidades. Ao passar as atividades
para um primeiro plano, o antropólogo tem condições de focar a capacidade criativa dos
sujeitos e dos grupos sociais frente a situações funcional ou estruturalmente “amorfas”,
como as de mudança social. Através da análise das formas de ordenação sistemática das
relações sociais, materializadas nos atos de escolha e de decisão, chegaríamos à dinâmica e
ao processo, ao que poderíamos chamar de “território vivido”.
Nosso ponto de partida está no reconhecimento da arbitrariedade das fronteiras dos
grupos sociais, cujos sujeitos estão permanentemente superando as barreiras impostas ao
seu intercâmbio social, mesmo que tenham sido criadas por eles mesmos (FIRTH,1974).
Muitos antropólogos, que em alguns casos podem divergir bastante sob outros aspectos, se
utilizaram da perspectiva organizacional. Seriam exemplos bastante diferentes da aplicação
de uma abordagem em termos de organização, para citarmos apenas os mais presentes
neste trabalho: a noção de situação social, onde a investigação das relações é realizada a
partir da comparação e análise detalhada de situações específicas ou do encadeamento de
momentos históricos que revelam formas de converter em ação prática certos elementos do
sistema de relações subjacentes e que desenham não uma estrutura mas situações de
equilíbrio (GLUCKMAN,1987); a análise de grupos étnicos não como grupos formalmente
estruturados ou constituídos de conteúdos culturais, mas como formas de organizar
socialmente a cultura (BARTH,1976); e a análise das variações sobre modelos ideais de
comportamento político, onde em lugar de serem observados apenas os aspectos estruturais
definidores de unidades políticas, são formas de organização das lealdades que se
sobrepõem a estes aspectos(GEERTZ,1991). Na análise deste último autor, a política passa
a se constituir de dois aspectos, complementares mas também contraditórios: a cultura e o
poder. É o jogo entre eles que fornece as possibilidades diferenciadas de pertencimentos
sociais, alternativos ou opostos, onde se vão recortando os círculos de adesão entre os quais
os indivíduos encontram margens mais ou menos largas para a negociação de suas
lealdades
A diferença da proposta dos arranjos está na sua ênfase sobre os quadros de
referência espaciais, por meio dos quais materializa o que a princípio é pensado como série
de relações soltas num espaço vazio. Estamos na busca das formas de territorialização das
diferentes possibilidades de organização, reintroduzindo na análise a materialidade das
relações simbólicas, sem que essa materialidade sirva apenas como pano de fundo mais ou
menos difuso, ou como moldura espacial das análises sociais.
Este tipo de leitura do território possibilita pensar como os deslocamentos entre
esferas da organização operam, os paradoxos que sua inscrição no espaço podem encerrar,
seus efeitos sobre práticas e identidades e, no seu caminho de volta, os efeitos dessas
práticas e identidades, na permanente moldagem dos territórios. Os fenômenos de
supressão e emergência de identidades e de invenção cultural podem ser lidos, portanto
(sem prejuízo de outras perspectivas), como movimentos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização. A exclusividade de certos pertencimentos pode
levar à contradição entre territórios e a negociação entre identidades pode estar relacionada
à sobreposição destes. O trabalho de construção de uma identidade étnica pode
corresponder à pretensão a um território total que “congele” os rearranjos ou lhe imponha
regras, na tentativa de eliminar o paradoxo dos múltiplos pertencimentos excludentes.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 116
Uma das implicações das críticas às abordagens espaciais poderia ser definida
então, como a busca dos princípios ordenadores dessa relação entre identidades e espaços
sociais, suas chaves de tradutibilidade ou, de outra forma, a delimitação do arranjo
territorial particular a cada sociedade ou a cada "situação histórica" desta sociedade. Por
isso, uma abordagem territorial da situação Pankararu deve implicar a observação dos
diferentes planos de práticas, representações e pertencimentos espaciais que se sobrepõem,
se combinam e interferem uns nos outros por meio de sucessivos deslizamentos, que vão
caracterizando diferentes arranjos territoriais. Não se trata da simples multiplicação de
pontos de vista sobre a realidade, como poderíamos pensar em analogia com as diferentes
leituras possíveis de um texto. Aqui a multiplicidade não é uma qualidade do observador,
mas da própria realidade, que cabe ao obsevador guardar.
Geografia Jurídica.
1
Do ponto de vista jurídico, a geografia Pankararu, em primeiro lugar, um arranjo
geométrico feito sobre um espaço vazio, baseado legislação imperial instituída pela
mediação da Igreja, na sua forma missionária. Nesse arranjo, o espaço é tomado como um
plano em branco, onde é pontuado um centro, escolhido de forma mais ou menos aleatória,
tomando como referência o sistema de hierarquia dos lugares estabelecido pela ordem
missionária, o cemitério ciado pela Missão, mais do que qualquer sistema de lugares
nativo, ao qual aliás, não se faz referência. Desse centro são estendidas quatro linhas
imaginárias em direção aos pontos cardeais. Ao completarem uma légua cada, essas linhas
são cortadas perpendicularmente por outras quatro linhas que formam então um quadrado
perfeito e que dão forma à terra indígena Pankararú, segundo a memória que estes
mantêm da doação imperial de uma sesmaria à missão religiosa que aldeou seus
antepassados durante os séculos XVIII e XIX. A única notícia ofial da presença de um
aldeamento religioso no local, do qual não há o registro de fundação, diz respeito a sua
extinção, em 1878. A demarcação teve como suposto a doação imperial de terras ao extinto
aldeamento do Brejo dos Padres, como foi comum ter ocorrido por toda a região. Na falta
de uma documentação histórica concreta, utilizou-se os parâmetros estabelecido por este
padrão de doação imperial: "Hei por bem, e mando que a cada uma Missão se dê uma légua
de terra em quadra para a sustentação dos Índios e Missionários..." (citado em DANTAS e
DALARI,1980), sendo que a légua era a utilizada pela medição das sesmarias, com 6.600
metros.
O quadrado perfeito da terra Pankararu (como os outros quadrados ou hexágonos
indígenas, em especial pelo Nordeste) torna caricato (ainda que nem para todos evidente) o
artificialismo das fronteiras administrativas que pretendem dar forma geográfica aos grupos
indígenas, não permitindo imaginar ali qualquer processo naturalizável de adequação da
organização social, acomodação histórica ou adaptação ambiental. A definição de uma área
indígena é antes, a delimitação dos limites de um território estatal de tipo particular, cujo
suposto fundamental é o de servir como referência à aplicação do artifício jurídico da
tutela, que dá ao órgão indigenista poder de polícia e de gerente empresarial. A delimitação
dos limites de validade da tutela permite criar distinções categóricas num universo de
população antes indistinta aos olhos oficiais e até mesmo regionais, da mesma forma que
décadas antes aquelas distinções haviam sido apagadas pelo ato de extinção dos
aldeamentos. Mas também permite criar uma população, produtiva, eleitoral, que passa a
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 117
contar em censos oficiais, que é submetida a diferentes tipos de melhoramentos e
uniformizações. Intervenções que moldam hábitos, criam arranjos espaciais e novas
hierarquias de lugares e ainda regulam mercados de trocas políticas e econômicas. A área
indígena não é um elemento natural do grupo indígena, mas uma "função" da tutela -no
sentido que Alliès (1980) lhe atribui para definir a relação entre Estado e território
nacional-, isto é, meio de sua ação e não apenas limite de sua competência.
2
Quando da primeira intervenção local do órgão indigenista, em 1940, no entanto, os
limites da terra reivindicada não foram respeitados. No trabalho de demarcação, em que a
atuação indígena, como de regra (PERES,1992), restringiu-se a termos puramente técnicos,
servindo mais como redutora de custos que como participação efetiva no processo, o
funcionário responsável reduziu aquele quadrado em meia légua nos seus eixos leste e
norte, o que transformou os mais de 14.000 ha iniciais nos 8.100ha oficialmente
reconhecidos.
José Binga, Bernardo Tiú, Mariano Tiú, Dino Tiú, Argentino Serafim,
João Moreno e Anjo Bomba eram as lideranças que cuidavam de tudo na
aldeia, faziam as viagens pra Bom Conselho..., e o João Moreno tinha
direito até de prender, como realmente prendia os índios na cadeia do
posto indígena. Mas foram eles também, segundo João Binga, que
puseram tudo a perder, já que eram eles que, na primeira demarcação,
administraram o serviço enquanto outros iam abrindo as picadas.
Abriram o sul, o Oeste, mas quando chegou no Leste, o Cildo Meireles
só levou a picada até meia légua. Eles então reclamaram e o Cildo
Meireles organizou uma reunião com eles em Tacaratu, onde lhes disse
que o resto que não seria demarcado eles não perderiam, porque ficaria
como reserva deles, reserva de madeira e mel. Anjo Bomba no primeiro
momento negou, ameaçou de telefonar para o Padre Alfredo Dâmaso,
mas o Cildo disse que não era necessário e que ele daria como
recompensa a eles, lideranças, 30 mil réis para cada um e mais uma
roupa de mescla da boa para cada um. As lideranças aceitaram. (João
Binga)
Quando o Dr Carlos chegou ele falou "eu vou escolher dois índios pra
ser liderança", e o homem tá demarcando as terras, o agrimesor, junto
com os índios. E o finado Antônio Barbosa fazendo os marcos. Ele
arrodiou tudo e até aí tudo bem, porque era um légua ao sul, uma légua
ao norte, uma légua ao leste, ao oeste.[...] Mas quando esse Cildo
Meirelles chegou aqui no Barrocão, numa fonte que chama Ambú, falou:
"pára!". Deixa que ele já tinha feito um trato com os Nunes, de Tacaratu,
que era a família mais conhecida aqui em riqueza, aí ele foi e os índios
ficaram aqui esperando, os bestas, os idiotas... [...]...
Quando ele voltou, ele disse: "Essa área, nós não vamos pra lá não, nós
vamos virá aqui ó...". "Mas e essa outra doutor?". "Não, esa vocês não
perdem, essa área fica pra vocês caçá e pra vocês tirá madeira pra vocês
fazê suas casas. Isso é uma reserva pra vocês". "Mas assim do lado de
fora?". "Fica assim pra conhecê que é um reserva, mas ninguém entra, é
suas, quando quizé pode vim aí.". Deixa que por baixo do pano ele deu
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 118
três mil réis dos nove contos que tinha recebido dos Nunes, três mil réis
pra o João Moreno, três para o Anjo Bomba, três para o João Binga
Velho e acho que ele ainda deu pra outro. Eu sei que tudo isso não
chegou a dar 12 mil réis e ele ficou com o resto do dinheiro. E ficou lá
aberto, os homens vieram, cercaram e que índio que entrá lá hoje pra
tirá mais um pau? Foi subornado ou não foi? [...]... E depois todo
mundo ficou sabendo que eles se venderam por três mil réis. (João de
Páscoa).
Essa opção do funcionário do órgão, de estender os limites da área numa direção e
reduzí-los na outra, não aparece justificada em nenhuma parte da documentação
consultada. Seu efeito, no entanto, foi muito claro e alcançou grande duração: criou os
limites da área e, simultaneamente, conferiu um novo status legal não só à população que
era objeto da relação tutelar, como àquela que lhe avizinhava e que, muitas vezes não se
distinguia dela com clareza. A evidência da picada de terra e do travessão de arame que se
interpôs a elas não separava apenas suas terras, mas as dispunha em status sociais e
jurídicos diferenciados. Criava não só uma área de domínio da União mas também
categorias sociais: índios e não-índios, índios e posseiros. Um grande número de pequenos
camponeses e criadores não-indígenas que exerciam suas posses - sem registro legal - sobre
aquelas terras por gerações, em lugar de serem retirados, são absorvidos e transformados
em arrendatários das terras em que já cultivavam, de acordo com os princípios
estabelecidos pelo órgão para a valorização do patrimônio indígena (Cf. capítulo 2/1).
Em 1954, porém, depois de várias situações em que se recusavam a pagar os
“foros”, aqueles camponeses, "pequenos proprietários" ou "condôminos", como aparecem
auto-referidos na documentação de época, transformados em "arrendatários", negaram-se
definitivamente a continuar pagando a renda sobre as terras nas quais trabalhavam e
iniciaram sucessivas tentativas de reversão de seu novo estatuto jurídico e da realidade
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 119
instituída no local pelo SPI. Primeiro através do pedido de anulação da ação demarcatória
daquele órgão, que tramitou durante mais de dez anos e foi perdido em 1965. Depois, em
1966, através do pedido de reconhecimento do seu direito ao "uso capião", em que
perderam novamente. Esta última ação, no entanto, ao mesmo tempo em que deu ganho ao
grupo indígena, recusou-se a concssão de "restituição de posse" das terras dos
"arrendatários", requerida pelo órgão indigenista (agora já sob a sigla FUNAI) e que
implicaria na expulsão definitiva dos posseiros do local. Dessa forma, a ambiguidade entre
direito e domínio é mantida, já que ao dar ganho de causa à FUNAI, reconhece o direito
indígena à terra, mas ao negar a "restituição de posse", também reconhece a legitimidade da
situação dos posseiros. Ambos passam a reivindicar a decisão da justiça no reconhecimento
de seus direitos e a situação permanece nessa dualidade, pontuada por conflitos, até 1984,
quando é organizado um Grupo de Trabalho da FUNAI para realizar uma revisão da área
Pankararu.
O relatório resultante do GT de 1984 propõe ao órgão corrigir a diminuição
realizada na área pretendida em 1940, abarcando todo o quadrado maior, com exceção de
um pequeno trecho na sua face leste, na qual foi feito um corte para deixar de fora a cidade
de Tacaratu, elevando os 8.100ha para 14.294ha. Com relação à área em litígio no vértice
sudoeste, o GT realiza o levantamento fundiário das posses, com fim à desapropriação dos
"invasores", como aparecem classificados genericamente num documento da FUNAI sobre
o acompanhamento das terras indígenas de todo o Nordeste (DOC.:43). Essa proposta no
entanto é recusada no Ministério da Agricultura e, num acordo com as lideranças indígenas
(cacique, pajé, presidente da associação comunitária), essas trocam o acréscimo da área ao
norte e ao leste pela promessa de imediato "desintrusamento" do antigo trecho em litígio.
Em 1987, a mesma área demarcada pelo SPI é então homologada, agora pela FUNAI, sem
que a promessa de "desintrusamento" fosse cumprida. Apenas em 1993, por força de uma
ação civil pública movida pela Procuradoria da República contra a União, FUNAI e
INCRA, a Justiça decide-se pela retirada de doze famílias de posseiros, identificados como
suas principais lideranças, na tentativa de viabilizar as demais retiradas. Esses posseiros, no
entanto, recorrem e ganham a suspensão da decisão, voltando a situação à mesma
indefinição anterior.
3
Essa rápida descrição da situação jurídica da terra Pankararu parece suficiente para
demonstrar a necessidade de uma distinção operacional entre terra e área (LEITE,1993)
que nos permita continuar pensando a geografia jurídica sem confundir o domínio indígena
com sua realidade estritamente legal. Algumas vezes o acompanhamento da situação de
uma terra indígena através da massa documental, ao mesmo tempo redundante e lacunar
produzida pela FUNAI, esbarra na dificuldade de distingüir as múltiplas dimensões do
território indígena. A distinção analítica entre área e terra permite discriminar o conjunto
de atos administrativos do órgão indigenista, operadores da definição e da gestão de um
determinado recorte administrativo sobre o espaço, do conjunto de eventos que se operam
naquele recorte espacial ou que tem impacto físico sobre ele, incluíndo a arena de conflitos
políticos pela re-definição de seus limites e dos limites daqueles atos administrativos.
Assim, no caso Pankararu, como em muitos outros35, existem diferentes propostas de
limites, difrentes situações no processo administrativo que desenham áreas distintas do
35
Conferir, por exemplo, o resumo em forma de listagem apresentado no ATLAS DAS TERRAS
INDÍGENAS DO NORDESTE, onde é possível perceber a existência de três áreas correspondentes a uma
mesma terra Geripancó, duas para a terra Tuxá, três para a terra Potiguara, duas para a terra Tapeba, três para
a terra Tingui-Botó e cinco para a terra Xukuru-Kariri.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 120
ponto de vista jurídico e que podem mesmo ser fisicamente descontínuas, sobrepostas ou
paralelas quanto ao seu encaminhamento. O que lhes dá unidade, entretanto é o fato de
estarem referidas a uma mesma realidade sociológica, a terra indígena36.
Na situação Pankararu, uma única terra é dividida em duas áreas, que têm existência
em diferentes propostas legais e que, como veremos a seguir, acabam ganhando uma
realidade política inesperada, mas sem compor em nenhum momento com os interesses dos
citados posseiros. É justamente no seu ponto de sobreposição que se localiza a área crítica
do conflito fundiário local. A situação complica um pouco mais quando a indefinição
jurídica emerge da terra e atinge os corpos, como é caso de um dos principais argumentos
das lideranças do grupo de posseiros-ex-arrendatários-invasores da área indígena.
Argumentam existirem famílias descendentes de seus ancestrais casadas dentro da aldeia e
hoje consideradas indígenas, da mesma forma que existiriam muitas famílias de posseiros
descendentes de índios, mais frequentemente de índias, casadas com não-índios e
transferidas para fora do que hoje são os limites da área indígena: ex-índios-posseiros-exarrendatários-invasores (!). De fato, esta não é uma situação particular da área Pankararu
mas, como foi demonstrado por Peres (1992), desde a década de 1920 o SPI via o recurso
ao arrendamento de terras indígenas como uma forma de estender sua malha tutelar à
população sertaneja, cumprindo, sob a forma de um novo padrão de mediação de conflitos,
parte dos objetivos retirados do órgão com a sua passagem de Serviço de Proteção aos
Índios e Locazização de Trabalhadores Nacionais - SPILTN, para apenas SPI.
Geografia Ecológica.
1
A repartição ecológica da região sertaneja onde se localiza a área indígena
Pankararu não é imediatamente classificável segundo as diferentes tipologias de regiões
naturais. Como chamaram a atenção Andrade e Madureira (1981), as regiões internas ao
estado de Pernambuco precisam ser compreendidas com relação ao processo histórico de
penetração econômica a que já fizemos referência.
Num primeiro momento, que chega até meados do Império, o estado de
Pernambuco era repartido em apenas duas regiões bem definidas, a de mata, dedicada à
produção de açúcar e a de sertão, dedicada à pecuária, ainda que desde sempre fosse
possível identificar pequenas "ilhas" de utilização diversificada do solo. Essa repartição
dual orientou também os traços gerais da distribuição da mão-de-obra, na primeira
concentrando-se o uso de escravos negros e na segunda, a exploração da mão-de-obra
juridicamente livre, com grande presença indígena. Tardiamente, no entanto, com a
intensificação da exploração agrícola da Serra da Borborema e com o avanço dos meios de
comunicação durante o século XIX, foram favorecidos os cultivo de mandioca, algodão,
cereais e, mais tarde, de cana de açúcar, café e fruteiras, em detrimento do espaço antes
totalmente dedicado ao gado. É nesse processo de transformação de parte do perfil da
região sertaneja que surge a região hoje conhecida por agreste, criada através do próprio
36
Muitas vezes os processos jurídicos dos quais as áreas dependem se desenrolam em ritmos alternados,
sendo influenciados pelo andamento uns dos outros, assim como pelas pressões do grupo por esse ou aquele
direito ainda não reconhecido. Dessa forma, os conflitos reais orientam os processos legais que, por sua vez,
informam as pretensões dos grupos e assim a delimitação da terra e a definição do arranjo territorial
propriamente dito.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 121
avanço colonizador e ainda em expansão37. Por isso, muitos dos viajantes que achamos na
busca de fontes descritivas da região estudada quando se referiam ao sertão ou ao alto
sertão na maior parte das vezes não alcançavam grandes distâncias do litoral, se tomarmos
os referenciais de hoje, ficando Tacaratu e arredores totalmente intocados por esse tipo de
literatura.
Assim, a antiga região sertaneja é hoje denominada caatinga e subdividida entre
agreste e sertão, cujos limites são desenhados pelo maciço da Borborema, que divide o
estado de Pernambuco duas vezes, através de duas cadeias de montanhas quase paralelas
que cortam-no obliquamente no sentido Nordeste-sudoeste. O primeiro e mais fundamental
desses cortes é o que separa as duas grandes regiões da zonas da mata e da caatinga, o
segundo é o que divide a caatinga em sertão e agreste. Ao sul do estado essas duas linhas
de serras atingem a sua maior penetração, levando a zona da mata e o agreste pelo interior
do estado. As serras que separam mata e caatinga alcançam entre 500 e 700 metros,
dividindo brutalmente a paisagem e sucessivos terrenos em brejos úmidos e chapadas
desprotegidas que formam pequenos desertos e minúsculos oásis. As serras que dividem
agreste de sertão podem alcançar até 800 metros de altitude, funcionando como
importantes divisoras de águas que separam as bacias do atlântico e do São Francisco
(Vasconcelos Sobrinho,1949).
Elevação que tem origem nas formações primárias dos Cariris ao norte, essa
segunda linha de serras espalha-se em diferentes direções ao sul, formando, numa dessas
derivações, a Serra de Tacaratu, que penetra estreita e solitária o sertão até encontrar-se
com o leito do São Francisco, na região do Moxotó, num ponto distante cerca de 300 km,
em linha reta, do litoral pernambucano. Essa posição que ocupa no contexto da Borborema
pemite que a Serra de Tacaratu carregue consigo umidade, na forma de precipitações que
alimentam pequenos brejos no interior de seus contrafortes em pleno sertão, configurando,
por sua vez, uma sub-região específica da região sertaneja do Moxotó. Rica em argila, esta
sub-região tornou-se ao longo da dácada de 1940 a maior produtora de feijão de
Pernambuco, com safras de mais de 50 mil sacas, além da produção comercial mais
modesta de algodão, e da cana-de-açúcar para consumo local (Vasconcelos Sobrinho,1949)
manufaturado em pequenos engenhos de rapadura, açucar mascavo e cachaça, numa
diversificação que a tornava muito distinta do litoral, principalmente no que concerne à
mão-de-obra (figura 4).
37
"À proporção que se torna mais povoada e que a área agrícola ou de pecuária semi-intensiva se expande
para o oeste, o agreste cresce em detrimento do sertão. A microrregião de Arco Verde por exemplo, que em
1968, ao ser estabelecida, era considerada sertaneja, a partir de 1978, ao serem criadas as mesorregiões, foi
considerada de agreste. Dentro de alguns anos certamente, a microrregião do Alto Pajeú também será
transferida para o agreste, isto porque as regiòes não são naturais, mas o resultado da ação da sociedade e do
seu processo de evolução" (ANDRADE & MADUREIRA,1981).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 122
Depois de 1985, o município de Petrolândia passou a fazer parte , segundo a
regionalização do IBGE realizada naquele ano, da microregião do Sertão do São Francisco,
composta também pelos municíoios de Afrânio, Belém do São Francisco, Cabrobó,
Floresta, Orocó, Petrolina e S. Maria da Boa Visa. Contudo, a construção da Usina
Hidrelétrica (UHE) de Itaparica alterou essa classificação e a partir do censo de 1990 o
município de Petrolândia passa a fazer parte de uma nova microregião, que leva o nome da
Barragem. Essa região constitui um dos pontos mais secos do Nordeste, onde as chuvas,
concentradas entre novembro e maio, oscilam em anos "sem seca", por volta de 400mm
(IBGE apud DOC.:44)
2
Um desses pequenos brejos, formado pela vaga aberta em meio aos últimos
contrafortes da Serra de Tacaratu (mais conhecida pela população local como Serra
Grande), ganha a forma de um anfiteatro, com sua cabeceira à leste abrindo-se no sentido
oeste em direção às margens do São Francisco. Este pequeno "oásis verdejante", que seviu
para a localização do aldeamento de Brejo dos Padres, é um ponto avançado do agreste em
plena área sertaneja, contrastante com a paisagem em torno, marcada por uma pecuária
ultra-extensiva e articulada, até meados deste século, a uma agricultura de subsistência em
geral pouco expressiva. No centro deste anfiteatro, os missionários criaram o "cemitério
Pankararu" a partir do qual, como vimos, estende-se o grande quadrado da área indígena.
As mudanças de infra-estrutura decorrentes da instalação das UHE de Paulo Afonso
e Itaparica e mesmo antes, quando das frustradas tentativas de irrigação das margens do
São Francisco pelo DNOCS na década de 1930, atenuam, aos olhos do viajante de hoje, o
contraste entre o Brejo e seus arredores, onde se sucedem cidades e áreas de irrigação. Mas
o relato de um observador de 1878 pode dar uma idéia mais precisa deste contraste em
períodos anteriores.
Os terrenos deste aldeamento são fertilizados por diversos riachos sendo
o mais importante o denominado - Brejo dos Padres - Os planaltos se
conservão sempre verdejantes, a Serra de Tacaratu que se estende por
36 kilometros, tendo a orla sedimentaria e a parte central mais elevada,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 123
de granito rica de pheldspato e mica ferruginosa. Donde resulta a
uberdade do solo deste aldeamento, podendo ser cultivados todos os
produtos da zona inter-tropical - No aldeamento, e , em muitos lugares
proximos se encontram salitre (nitrato de potassa) e nas aguas que
vertem das camadas sedimentárias, vem devolvido o sal gema formando
grandes incrustrações.
Limpidas fontes de puras e cristalinas aguas aqui se encontrão; benéfico
refrigério para aquelles que viajão por este inhospito sertão,
principalmente em epochas como a que infeliz e atualmente se atravessa,
na qual o horrivel flagelo da secca, devasta esta província e mais quatro
de suas ermans do norte!!
Achei como mais acima disse, os terrenos da aldeia bem cultivados pelos
índios, elles como os mais habitantes da região de Tacaratu,
desconhecião os males que affligem o sertão desta província durante as
seccas, viram-se em pouco tempo, nas mesmas tristes circunstâncias de
numerosos retirantes que invadindo os terrenos, na sua passagem pela
aldeia, em uma noite tudo destruirão, obrigando por este modo aos
índios, implorarem socorros à comissão, que na Villa de Tacaratu, os
distribuia por ordem do Governo Imperial.
Aboletados na aldeia, na villa, nos seus subúrbios e pela estrada que
segue para Pyranhas, a margem do Rio de S. Francisco, encontrei para
mais de oito mil desses infelizes famintos, maltrapilhos e muitos em tal
estado que mal podião promover o passo. Triste e repugnante
espetáculo. (DOC.:6)
3
Apeasar da designação "Brejo dos Padres" referir-se históricamente a toda a área do
aldeamento, o brejo é um recorte ecológico retangular no interior daquele quadrado
jurídico. Ao ultrapassar os contrafortes da serra que dão forma ao anfiteatro "verdejante", o
quadrado da área de 14290 ha inclui também outras duas regiões ecologicamente distintas,
uma ao sul e outra ao norte do Brejo. Para distinguí-las entre si nos referiremos a elas daqui
por diante como as seções norte, centro (o Brejo) e sul (figura 5). Ainda que esta não seja
uma categoria nativa, nem administrativa, a diferenciação entre essas três seções (o termo
foi escolhido por falta de outro melhor) é muito nítida para os Pankararu e para o órgão
indigenista, como ficará claro ao longo dessas geografias. Por enquanto destacaremos
apenas suas configurações ecológicas diferenciadas.
Na seção central, que compõe o retângulo irregular mais profundo do anfiteatro,
encontramos a paisagem que o relato acima descreve: uma terra bastante úmida e escura,
alimentada por quatro fontes d'água que nascem na cabeceira dos contrafortes e que , antes
das obras de canalização realizadas ao longo da última década, formavam um pequeno rio
que escorria até a estreita saída desse anfiteatro, procurando desembocar, quando a seca
permitia, no São Francisco. Uma região rica em fruteiras, em especial as mangueiras,
goiabeiras e pinhas, que podem complementar a renda familiar de seus moradores em
épocas menos secas. Como a qualidade do solo permite plantar de tudo, desde o milho e os
diferentes tipos de feijão até a cana, introduzida ali em inícios do século passado e que por
muito tempo alimentou pequenos engenhos de índios, não-índios (Cf. Capítulo 1/1) e do
SPI (Cf. Capítulo 2/1) na fabricação de "mel", garapa e rapadura.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 124
Ultrapassando esses contrafortes, do lado de fora do anfiteatro, a paisagem muda
bastante. Não existe mais a proteção natural que permite a concentração e precipitação das
poucas nuvens que chegam do litoral e a secura quase permanente torna a terra branca,
arenosa, quando não dura e pedregosa. Na seção sul, a encosta da serra desce de uma única
vez, em curvas de nível largas que formam pastos naturais. Duas fontes d'água hidratam
um estreito trecho dessa seção, umidecendo a pequena depressão que depois volta a elevarse seguindo três ou quatro quilômetros secos até as bordas da área. Nesta parte regada,
cerca de um terço de toda a seção, planta-se feijão e milho, ficando os dois terços de
encostas restantes dedicados à mandioca. Sua importância para os Pankararu está no papel
que essa região desempenha, pois além de reserva de madeira, é também onde floresce o
umbú, fruta natural da região, quase um símbolo étnico, central na mitologia de suas festas.
Do lado externo à área homologada, ao norte dos contrafortes, a serra não desce de
uma única vez, mas desenha degraus e muitas valas que chegando ao seu ponto mais baixo
voltam a subir, formando uma espécie de estreita "barriga" antes de dar continuidade ao
contraforte. A forma acidentada dessa seção dificulta muito a agricultura, tornando-a
plenamente utilizável apenas para a mandioca, ainda que seus moradores nunca percam a
oportunidade de plantar os tradicionais feijão e milho. Por outro lado, torna-a rica em
estreitas e altas formações rochosas, às vezes de aspecto imponente, conhecidas como
"serrotes". Nesta seção não há nenhuma fonte d'água natural, o que faz com que seus
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 125
moradores dependam quase exclusivamente das chuvas, que são complementadas, com
dificuldade, por caminhões-pipa que eles mesmos pagam ou que, próximo às eleições, são
fornecidos pelo poder público. Na ausência desses dois recursos, o cotidiano é feito das
"carradas" de potes d'água entre a serra e o Brejo, no lombo do jegue ou na cabeça de
mulheres e crianças, que assim começam os seus serviços matinais às 4:00 e os terminam
às 7:00, depois de duas viagens. Tendo em conta o desenho jurídico, essa seção da terra
Pankararu fica em grande parte fora da área homologada em 1987 e dentro da identificada
em 1984.
Geografia Mítica.
1
Os limites da área indígena Pankararu são normalmente designados pelos próprios
índios como "trilho", "trilha", "linha", ou "círculo". Segundo uma perspectiva tradicional e
corrente, o desenho da área é um grande círculo que tem por centro o cemitério do Brejo
dos Padres, de onde parte uma linha de uma légua em raio. Esta forma de designar a área se
mantém, ainda que progressivamente venha se popularizando o conhecimento dos
documentos oficiais que demarcam a área como um quadrado.
Essa distorção da percepção espacial foi explorada num trabalho recente (Ribeiro,
1992) como expressão direta de um aspecto da cosmologia Pankararu, expressão de suas
estruturas de pensamento. O referido trabalho descreve a narrativa de uma índia que
explica a área a partir de sua repartição em três círculos concêntricos, onde o menor
corresponderia ao mesmo tempo ao centro geográfico da área e ao conjunto de moradores
mais puramente índios, o círculo intermediário corresponderia aos moradores "misturados"
e descendentes da mistura com não-índios e o círculo maior corresponderia às franjas
geográficas da área, tomadas na sua maior parte pelos posseiros. Um diagrama que explora
a idéia de um grupo compacto que vai progressivamente sendo assediado pelo avanço
civilizatório, que lhe toma as terras e a própria etnicidade. Um movimento de fora para
dentro onde a resistência ao assédio localiza-se num centro territorial intacto política e
etnicamente. Dessa descrição a autora parte para suas análises sobre a forma circular e sua
repartição em metades que sustentariam uma abordagem estruturalista dos "mitos" que
recolheu em sua estadia em área. Sua análise toma tanto o mito narrado quanto a cultura
Pankararu e sua organização espacial como textos, que se somam num único texto, prontos
a serem lidos, repartidos e recombinados, segundo regras internas de oposições duais.
Não me ocuparei aqui de uma leitura destas análises estruturais, mas da discussão
com os seus pontos de partida teórico e factual: com sua opção em trabalhar os mitos, a
organização espacial e a "cultura Pankararu" como texto, expulsando daí todo traço de
dinamismo, além de sua base empírica. Tais elementos , recolhidos sem o devido
posicionamento das “vozes” acarreta uma tomada de posição, consciente ou inconsciente,
na disputa política nativa, ao consagrar como étnicos símbolos na verdade faccionais.
2
Neste caso, a opção em tomar a cultura como texto significou trabalhá-la como
artefato, congelando as narrativas para apreende-las apenas a partir de uma análise sintática
de seus componentes, desconhecendo sua qualidade pragmática, fundamental para suas
transformações semânticas, que são, então, desconsideradas. Mas não se trata de um debate
entre posições simplesmente alternativas, opções teóricas inocentes, já que as
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 126
considerações que a autora tece podem ser contraditas se considerarmos tais narrativas não
como textos, mas como enunciados ou discursos, estes sim, indissociáveis dos sujeitos de
enunciação e de seus jogos de posição. Como acontece no caso de Ribeiro, a opção pela
metáfora do texto pode levar ao apagamento do lugar dos sujeitos produtores e ao
hipertrofiamento do sujeito leitor, que então domina aquele universo de significados como
um exegeta domina um único texto. Ao contrário dos exegetas, no entanto, o etnógrafo
antes de decifrar, repartir em pares de oposição e hierarquizar o "texto" cultural, é obrigado
a investir no trabalho prévio e fundamental de "estabelecer o texto", a partir da reunião de
enunciados dispersos numa forma organicamente coerente, linear, continuista e limpa de
todas as vozes marginais, de todas as rasuras e anotações laterais, que reintroduziriam os
sujeitos produtores. Só assim o texto cultural pode ser apresentado como produto de uma
cultura, descontextualizada, a-temporal, unitária, objetivada.
Romper com essa unidade significa correr o risco de abdicar da elegância do
discurso científico que disserta sobre o outro com pleno domínio de sua ontologia, significa
sobretudo abdicar da confortável inocência que vê o trabalho etnográfico como a pura
"busca de informações". Num texto sobre feitiçaria entre camponeses franceses
contemporâneos, Favret-Saada (1977) deixa claro como essa busca deve levar em conta
que os "informantes" estão inseridos em relações sociais e em jogos de posição, status e
poder que encontram nos seus enunciados tanto a manifestação de um estado deste jogo,
quanto mais um dos seus lances. Nesses casos, para apreender o sentido do que é dito, o
etnógrafo deve compreender que ele também, no momento em que entra nesse espaço
social, passa a ocupar um lugar nos jogos de posição e que o que lhe é dito responde a uma
avaliação de quem fala sobre a posição que ele suposta ou realmente ocupa. Com isso, as
questões que Favret-Saada se coloca procuram menos o deciframento ou exegese dos
textos nativos, do que a compreensão dos efeitos sociais de tais enunciados e a "descrição
do sistema de lugares" (idem) em que estão inseridos, restituindo aos textos nativos sua
realidade de discurso.
A referência que já fizemos (Cf. Capítulo1/1) à abordagem do mito por Detienne
(1980) ajuda-nos aqui também a compreender a necessidade de relativizar relatos de
memória mitificantes e de nos afastastarmos das concepções do mito impressas desde o
século XIX, em que ele surgia como uma totalidade cujo objeto era um relato de origem,
passível de ser imobilizado em forma escrita, estabelecido num córpus de enunciados
domesticados, que poderíamos, então, dissecar na busca ou de oposições binárias
estruturantes ou de vestígios de um pensamento histórico contorcido e frustrado. Ao
contrário, o mito, na sua necessária relação com o oral e na sua natureza de memória
aberta, está permanentemente sendo reconstruído pelas trocas sociais. Abandonamos então
o plano da estrutura, do Mito, para ingressar no fluxo, no que foi chamado mythisme. No
nosso caso, no entanto, trata-se de analisar a memória através da observação das sucessivas
metamorfoses das palavras e recitações, não sob diferentes gerações, como sugere Detienne
aos antropólogos, mas sob diferentes espaços sociais. Trata-se de abri-lo às possibilidades
da polifonia, tanto como problema quanto como representação, conforme as propostas
dialógicas que pretendem revelar o que, do empreendimento etnográfico, foi obscurecido
pelos complexos processos da escrita (MARCUS,1991). Para isso é preciso em primeiro
lugar situar a "voz" que nos faz o relato mítico, isto é, contextualizar e definr os fluxos de
associações que operam no discurso.
3
Pois bem, para a entrada de um antropólogo numa área indígena no Brasil é
necessária uma autorização da FUNAI que, após fazer uma consulta ao CNPq e aprovar a
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 127
entrada do antropólogo (processo que dura de quatro a seis meses), comunica
imediatamento a visita ao respectivo posto indígena, orientando seu encarregado na
recepção e acompanhamento do pesquisador. No caso Pankararu isso significa que o
antropólogo é introduzido na área através da aldeia central do Brejo dos Padres, onde
localizam-se o PI e as lideranças de maior destaque hoje. Ainda que o relato de Ribeiro não
faça qualquer referência a isso, esse foi necessariamente o seu itinerário de "entrada em
campo". Na minha primeira visita, no entanto, depois de uma avaliação feita com base nas
escassas informações que possuía acerca do conflito fundiário que iria encontrar e das
posições que os agentes do órgão indigenista vinham tomando nele, optei por evitar o
itinerário oficial. Em lugar de entrar em campo através do seu núcleo políticoadministrativo, cheguei a ele por suas bordas, entrando em contato primeiro com as aldeias
mais afastadas do centro, para progressivamente alcançar suas lideranças mais centrais,
conseguindo finalmente, através delas, autorização para permanência no Brejo. Sofria
também, apesar de todos os “sinais de alerta epistemológicos”, da expectativa de guardarme num lugar “fora” do jogo faccional, pelo recurso de tentar entrar na “área” da forma
mais independente possível das mediações já estabelecidas. A ilusão do meio termo era
possível porque estava trabalhando inicialmente com uma imagem de faccionalismo
definido em termos bem nítidos, onde grupos de interesses aproximam-se de grupos
corporados. Na situação Pankararu, no entanto, o dilema faccional operava por
mecanismos mais discretos. Mesmo assim a estratégia adotada teve sua validade ao
permitir-me uma maior clareza e controle sobre os compromissos em que ia me enredando.
O seu maior efeito prático foi o de me fazer disponível num mercado de alianças, onde as
diferentes posições internas à aldeia, ou externas a ela,entre os posseiros e “posseiros
potenciais”, puderam testar o meu valor de uso. Com isso tive acesso a uma grande
variedade narrativas, ora alternativas, ora opostas àquelas que estavam disponíveis na
posição oficial do Brejo dos Padres, com as quais também tive contato. Dentre essas
narrrativas surgiu uma que se opunha simetricamente àquela apresentada por Ribeiro como
a narrativa fundamental da "cosmologia Pankararu" e que permitia não exatamente uma
“reanálise etnográfica”, mas um novo ponto de partida etnográfico: um outro mito colonial,
inteiro, articulado, expressivo, que inverte a lógica do anterior e surge como mais um duplo
narrativo, como no caso Tarraxá-Cavalcante (Cf. Capítulo1/1). Nesta segunda narrativa da
alienação colonial o avanço sobre suas terras não teria se dado de forma progressiva e de
fora para dentro, mas de forma abrupta pela tomada do próprio núcleo territorial.
Se por toda a terra pankararu a história das "linhas" é conhecida e recontada, ligados
que estão, como numa "comunidade afetiva", por uma mesma memória da violência, no
"Brejo" as narrativas falam do apossamento e da mistura como um erro cuja causa foi a
ingenuidade de seus antepassados, que deixaram que os posseiros fossem chegando aos
poucos, tomando emprestado um pasto, um bebedouro, usando uma fonte d'água, até que
os índios se vissem forçados a sair das suas terras, expulsos pelo gado e pelas "linhas", que
de certa forma já seriam resultado desse processo. Daí a relação entre centro e bordas
apontada no texto de Ribeiro.
Ao contrário destas, as narrativas encontradas entre a população das serras na seção
norte, descrevem esse mesmo momento como uma intervenção dada num só golpe pelos
poderes locais, que teriam repartido as melhores terras, isto é, as terras do "Brejo", em
linhas de lotes e as distribuído entre não-índios que por isso passaram a ser conhecido
como "linheiros". Parte dos índios teria fugido imediatamente para outros locais e parte
teria se refugiado nas serras. Deste segundo grupo, uma parcela teria começado a descer
das serras e retomar as terras expropriadas através de alianças com o invasor, na forma de
casamentos, relações de trabalho ou da pura submissão, enquanto uma segunda metade,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 128
irredutível, trocava as facilidades ecológicas do Brejo por uma irredutibilidade étnica e
moral. Por isso, as famílias expulsas do centro seriam as mais puras e as do Brejo, as mais
misturadas. Os índios do "Brejo" de hoje seriam, assim, descendentes daqueles que teriam
cedido às exigências e à mistura com os "linheiros", que teriam feito concessões aos
"membros" de Tacaratu, assim traindo "a nação", "braiando"-se com o seu dominador.
Mistura que teria deixado rastros nos corpos, marcas corporais e religiosas de uma
determinada versão da história e de uma determinada repartição do espaço social.
Temos então dois mitos de colonização opostos. Um descreve a etnicidade
protegida pela existência de um centro territorial resguardado do avanço colonial,
esboçando uma história controlada e progressiva desse avanço. Outro descreve essa história
como um assalto violento que implode o centro territorial como referência da etnicidade,
empurrando-a para as franjas, expondo-a à fragmentação e minando-a através daqueles que
optaram por abdicar da etnicidade em nome dos recursos escassos, obtidos a partir daí,
através da "mistura" (figura 6).
Tais narrativas não são apenas expressão de concepções abstratas sobre o universo,
atualização de estruturas mentais ou versões pretensamente objetivas de um fato passado,
mas são, sobretudo, discursos sobre o território e a etnicidade. Desencontros entre
diferentes concepções do ser Pankararu, que definem papéis nas lutas por classificações,
lutas por se fazer ver e fazer crer, por dar a conhecer e se fazer reconhecer, por impor a
definição legítima das divisões do mundo social e com isso fazer e desfazer grupos
(BOURDIEU,1989). Organizam o espaço e estabelecem projetos, já que um território é
criado também graças a um fenômeno de transação entre o passado e o devir
(BAREL,1986), entre o sofrido e o desejado. A memória, aqui também em pleno trabalho
de mitificação, reapropria-se dos fatos do passado, que por sua vez são inscritos e reinscritos no espaço vivido.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 129
Geografia dos homens
1
Como já fizemos referência, os pankararu se distribuem basicamente segundo duas
classificações, os troncos e as aldeias, ambas relacionadas à organização das famílias,
histórica no caso da primeira e espacial no caso da segunda. A classificação dos grupos de
famílias em status diferentes através da sua ligação a "troncos" familiares que se dividem
entre os "antigos" e os "recentes", não corresponde a qualquer produção de segmentações,
classes ou linhagens, já que ela opera uma dicotomia básica entre aqueles que descendem
de índios "puros" e aqueles que descendem de índios "misturados" ou "braiados", em
referência a uma forma de organização que é mais histórica que estrutural. Por isso, essa
distinção não chega nem a pôr em risco a identidade indígena dessas famílias de troncos
mais novos, já que participam plenamente da repartição da terra, dos rituais e da
organização política, nem a criar uma forma de organização da sociedade que tenha
repercussão sobre as relações cotidianas ou de parentesco, ficando seu uso relacionado à
(des)classificação de alguém ou de algum grupo familiar em ocasiões de oposição
especialmente acirrada. A própria distinção entre as famílias de cada tronco não é muito
clara e surge como mais um objeto de disputas: ao perguntarmos sobre as famílias que
seriam de tronco velho, quase sempre recebe-se respostas imediatas, que relacionam
vagamente duas ou três bem conhecidas, mas ao perguntarmos sobre as famílias que seriam
mais novas o assunto torna-se delicado, podendo algumas vezes implicar num interdito (ao
menos para um observador externo), por estar quase sempre associado ao lugar dos
"negros" (Cf. cap.4).
2
Abaixo dos "troncos" está a família, que é a classificação social que funciona
cotidianamente, definindo aqueles a quem se pede ajuda, a quem se acompanha nas
definições políticas, com quem se planta, perto de quem se mora, e com quem se
compartilha a comida e o trabalho da "farinhada". Sua organização está diretamente ligada
à disposição espacial das casas, que distribuem-se segundo dois tipos de disposição: ou
agrupadas lado a lado, em linha reta ao longo das principais vias de acesso internas à área,
ou em grupos de casas de uma mesma família, cuja disposição tende à forma circular, com
o foco gravitacional na casa do patriarca.
Os agrupamentos do primeiro tipo estão bem delimitados geograficamente:
localizam-se ao longo da estrada que vai da entrada da área indígena até o sopé da serra,
onde dividem-se indo por um lado para o posto indígena e por outro para o "terreiro do
nascente", passando por todo o conjunto de prédios públicos do Brejo, como o "centro de
produção artesanal", a igreja e o cemitério, a casa de farinha coletiva, o clube, as pequenas
"biroscas", as duas escolas, a farmácia, a merendeira e as caixas d'água (figura 7).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 130
Os agrupamentos do segundo tipo distribuem-se por toda a área indígena, inclusive
pelos terrenos que se seguem imediatamente a essas primeiras fileiras de casas em forma de
arruamentos, subindo todo o sopé da serra, ocupando-a e se estendendo até os limites da
área e mesmo depois, principalmente no sentido norte, onde se confundem com os
agrupamentos de não-índios. Tal organização das residências reune famílias extensas
ligadas por laços de descendência e voltadas para um espaço comum, capitaneado por uma
casa principal. Essa casa, de um patriarca ou de uma matriarca, a princípio, está na origem
do agrupamento, tendo-se seguido a ela as casas dos filhos, netos e mesmo de irmãos e
sobrinhos. Ao formarem uma unidade mais ou menos definida, tais agrupamentos
desenham círculos onde o espaço interno, para onde normalmente estão voltadas, pode
assumir o lugar de convergência das atividades de lazer e ritual daquele agrupamento
familiar (figura 8). Como algumas vezes esses patriarcas são também "pais de Praiá", esses
espaços internos servem como terreiros onde se realizam os Torés. Neste caso, então,
ultrapassam as funções de lazer familiares, tornando-se referência religiosa para um cículo
de vizinhos de extensão variável.
Como já havíamos mencionado (Capítulo2/2), são para esses Terreiros que podem
convergir as lealdades mais próximas, dependendo da capacidade do patriarca principal de
conseguir manter ao redor daquele núcleo o maior número de "pais de Praiá", ou mesmo de
concentrar no seu próprio terreiro um grande número de Praiás, que comporiam um mesmo
"batalhão", tão mais factível quanto maior o número de parentes que permanecem ligados
ao núcleo original. Além disso, tais famílias, ao manterem laços mais extensos e constantes
sob a influência de uma casa principal, mantêm também uma interação cotidiana mais
intensa, com a possibilidade de compartilhar da distribuição de gêneros e insumos
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 131
agrícolas, da disciplina dos jovens e das crianças etc., passando a servir como referência
para a administração do posto indígena onde o "pai" da casa principal serve de interlocutor
privilegiado. Esse modelo de distribuição espacial das famílias em núcleos residenciais não
difere muito daquele que é corrente entre a população regional, mas ao ser aplicado ao
contexto Pankararu, produz efeitos particulares em termos de organização política e ritual
que estão na origem do formato aldeia: unidades político-administrativas de uso mais
comum tanto pela população quanto pelo posto indígena, sendo também a base de
referência dos censos feitos na área, além de ser, teoricamente, a unidade básica de onde
saem as "lideranças".
Sobre as aldeias é necessário fazer referência à dificuldade em se estabelecer com
precisão um mapa com seus limites, localizações e denominações. De fato, uma mesma
pessoa pode, em momentos diferentes ou segundo uma maior ou menor insistência do
pesquisador, identificar num mesmo trecho da área um número diferente de aldeias. Em
primeiro lugar elas não apresentam limites precisos; em segundo, o termo aldeia é também
aplicado pelos Pankararu na designação de realidades de diferentes escalas, valendo para
toda área indígena, para os seus maiores recortes internos, de base ecológica (os recortes
aos quais nos referimos como “seções”) e para recortes menores de base residencial e
familiar. Assim, a dificuldade em distingüir e mapear as aldeias é saber quando um
seguimento interno ao que incialmente foi apontado como uma única aldeia pode também
ser considerado como tal.
Não se trata de uma repartição por segmentação, onde uma designação maior
conteria designações menores, progressivamente concêntricas. Também não existem outras
categorias para a identificação dos recortes e pertencimentos espaciais além das aldeias,
nem uma hierarquia dos recortes. As unidades que hoje são designadas como aldeias não se
distinguem tanto em função de fronteiras territoriais quanto a partir de uma série de laços
de respeito e lealdades, a princípio bastante discretos, que as aproximam mais da imagem
de áreas de gravidade de núcleos relativamente móveis. Como os laços de aliança, respeito,
lealdade e frequência ritual variam no tempo ou segundo as avaliações feitas pelos
informantes, a distinção entre as aldeias, quando procuramos um desenho mais detalhado
depende, numa boa dose, do atual estado das relações. Assim, ainda que remetam a
recortes espaciais, tendo por isso certa inelasticidade, essas áreas de gravidade podem ser
mais ou menos extensas, podem ser subdivididas em unidades menores ou reagrupadas ao
longo do tempo, dependendo dos arranjos de autoridade a que já fizemos referência
(Capítulo 1/2). A dificuldade classificatória surge apenas quando se pretende dar uma
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 132
função administrativa a essas áreas de gravidade, denominando-as de aldeias, conforme o
vocabulário tutelar.
Quadro 12
Incidência das designações de aldeias e suas variações de população segundo quatro
censos.
POPULAÇÃO
ALDEIAS
Brejo dos
Padres
Olaria
Saco dos
Barros
Bem-querer
Caldeirão
Caxeado
Saco do
Romão
Serrinha
Macaco
Espinheiro
Barrocão
Logradouro
Cardoso
Tapera
Carrapateira
Agreste
total
Déc. de 1950
(DOC.:45))
1236
1974
(DOC.:46)
1245
1975
(DOC.:31)
1244
1984
(DOC.:42)
1329
-
116
158
116
158
522
-
100
21
21
68
100
21
68
175
16
26
-
316
260
1812
220
120
141
81
40
93
40
44
2508
220
120
141
81
17
23
93
40
44
2486
271
362
95
175
173
237
128
3509
Num registro realizado provavelmente por um encarregado de posto na década de
1950, por exemplo, a área indígena era repartida em apenas três aldeias (DOC.:45). Outros
dois registros censitários, de 1974 e 1975 (DOC.:46 e DOC.:31), chegaram aos mesmos
números para as seções norte e sul, com uma pequena diferença para a seção centro, mas
também com discordâncias quanto aos nomes das aldeias. Da mesma forma, o último
censo por aldeia de que dispomos (DOC.:42) não coincide com o nosso próprio
levantamento, apontando para um número e para nomes de aldeia diferentes (esses
diferentes recortes registrados pelo órgão oficial podem ser comparados no quadro 12).
No processo de coleta de informações para a montagem do mapa de aldeias (figura
9) ficou claro que a posição ocupada pelos informantes orientava diretamente a sua
percepção dessas repartições e que, apesar disso, efetivamente no Brejo ocorre um
fenômeno de multiplicação das lideranças. Finalmente, que tais recortes podem fazer
referência a um nível de agrupamentos maiores, pela prestação de lealdades. Este último
ponto ficou especialmente claro quando a informação foi prestada por uma “informante”
tão comprometida quanto Quitéria. Ao ser perguntada apenas sobre o nome das lideranças
e a aldeia de origem, ela forneceu um quadro que claramente superestima a representação
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 133
da seção central e a sua unidade em torno de duas lealdades, elas mesmas ligadas entre si.
Abaixo apresentamos a lista na ordem em que ela nos foi recitada, com o acréscimo apenas
da seção a que cada uma das localidades citadas corresponde (quadro 13).
Essas observações nos levam a dois processos contraditórios. A princípio é possível
afirmar que os recortes e designações de aldeias mais detalhados se referem a conjuntos
ampliados de residências agregadas que vão tomando importância numérica, espacial e
ritual a ponto de merecerem, com o tempo, uma designação particular. Assim, as unidades
político-administrativas mais claramente seriam fruto de uma progressiva autonomização
de núcleos de sociabilidade bastante aproximados às famílias extensas e associados aos
grupos de Toré. Mas, num sentido contrário a este, existe uma outra forma de criar recortes
em termos de aldeias está associada ao surgimento de um novo tipo de autoridade
estatutária, por incentivo do órgão indigensita, em meados da década de 1980, designadas
genericamente como “lideranças”. Com isso, de forma aproximada ao que aconteceu com a
fundação dos primeiros cargos estatutários de cacique, pajé e capitão, atribui-se um título e
um lugar burocrático ao que antes era um tipo de autoridade informal e discreta. Por outro
lado, abre-se um espaço puramente formal para a aquisição de status político, que passa ter
um valor em si e não mais referenciado às funções próprias das autoridades de fundo moral
e ritual. No caso das “lideranças”, esse efeito é ampliado pela relativa desimportância
burocrática do título e pelo númeo virtualmente ilimitado de lideranças que podem existir
numa mesma área indígena.
A chave da contradição entre estas duas formas de se recortar aldeias pode, no
entanto, ser parcialmente encontrada na diferença entre os dois tipos de agrupamentos a
que fizemos referência inicialmente. As famílias e grupos de residência reunidos nos
arruamentos ao longo da estrada que leva à igreja do Brejo e dela ao Posto Indígena e à
“fonte da nascente” tendem à (ou manifestam a) fragmentação de uma urbanização seminal
e à individualização das famílias nucleares, voltadas mais para um espaço público que para
um espaço familial e ritual. Nesses casos, há uma divisão socio-espacial das atividades,
onde a morada, a roça e o círculo ritual não mais se sobrepõem no espaço. É nesta região
que se encontram os “índios sem terras” que trabalham nas terras de outros índios, de
posseiros ou fora da área, como rendeiros, “meeiros” ou diaristas. É aí que estão
concentrados também aqueles que largaram ou complementam o trabalho na roça com
trabalhos nas cidades próximas. De outro lado, o formato do arruamento não facilita que
um núcleo familiar se desenvolva como núcleo residencial e é comum que os filhos dessas
famílias se desloquem com relação à casa dos pais, avançando junto com o avanço das
ruas, sendo absorvidos em núcleos residenciais fora do Brejo por meio do casamento ou
ainda saindo da área indígena, em suas buscas de emprego nas cidades próximas, em São
Paulo ou em outras áreas indígenas, às quais têm acesso via parentesco ou via empregos na
FUNAI.
Quadro 13
Lista de lideranças Pankararu a partir do Brejo em agosto de 1993
Nome
Abílio Barros
Aldeia
Pebão
Fernando Miguel dos
Santos
José Monteiro dos
Santos
Ciriaco
Ciriaco
lealdade
“acompanha o
pajé”
“acompanha o
pajé”
“acompanha o
pajé”
Seção
Centro
Centro
Centro
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 134
Marcelino Izidoro da
Silva
Júlio Izidoro da Silva
Saco dos
Barros
Olaria
Miguel Monteiro dos
Santos
Denésio Antônio dos
Santos
José João dos Santos
Ospresios
Mariano Antônio de
Souza
João Monteiro da Luz
David Monteiro Neto
José Manoel Oliveira
José João dos Santos
João Gomes da Silva
Antônio do
Nascimento
Abílio Pedro dos
Santos
Herculano Pedro dos
Santos
José Torres da Cruz
Honório Avelino dos
Santos
Germano
Agenor Gomes Julião
Antônio Moreno da
Silva
Hilda Bezerra Barros
João Tomás
Quitéria
“acompanha o
pajé”
“acompanha o
pajé”
(o próprio pajé)
Centro
Centro
Centro
“cidade livre” “acompanha o
pajé”
Petrolândia
“acompanha o
pajé”
Ospresios
“acompanha o
pajé”
Riacho
(o próprio
Fundo
cacique)
Riacho
“ac ompanha o
Fundo
cacique”
Riacho
“ac ompanha o
Fundo
cacique”
Gitó
“ac ompanha o
cacique”
Gitó
“ac ompanha o
cacique”
Gitó
“ac ompanha o
cacique”
Saco do Toco ?
fora da área
indígena
fora da área
indígena
Centro
Saco do Toco
?
Centro
Tapera
Tapera
?
?
Sul
Sul
Agreste
Fontinha
Fontinha
?
?
?
Sul
Centro
Centro
Tamarino
Serrinha
Brejo dos
Padres
?
?
?
Norte
Norte
Centro
Centro
Centro
Centro
Centro
Centro
Centro
Centro
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 135
1 - Piancó
2 - Salão
3 - Lagoinha
4 - Mundo Novo
5 - Juazeiro
6 - Pedra de Amolar
7 - Pau Ferro
8 - Pau Branco
9 - Mata Burro
10 - Barriguda
11 - Umbuzeiro dos
Bois
12 - Logradouro
13 - Serrinha
14 - Roça de Cima
15 - Barrocão
16 - Espinheiro
17 - Pedra Miúda
18 - Baixa do Lero
19 - Porteirão
20 - Folha Branca
21 - Pau d'arco
22 - Saco do Romão
23 - Brejo
24 - Saco dos Barros
25 - Bem-querer de
cima
26 - Bem-querer de
baixo
27 - Caxeado
28 - Caldeirão
29 - Formosa
30 - Marreca
31 - Tapera
32 - Brejinho dos
Correias
33 - Carrapateira
34 - Olho d'água do
Julião
35 - Salgadinho
36 - Gameleira
37 - Baubá
A primeira e mais evidente consequência desta mudança na organização espacial
das residências e na sua concentração no Brejo é a mudança que traz com relação aos
arranjos de autoridade anteriores. Deixa de existir o tipo de autoridade que atua sobre uma
família extensa reunida no mesmo núcleo residencial, ou sobre um círculo mais ou menos
largo de respeito ligado ao exercício do Toré e a autoridade do chefe de posto emerge como
centralizadora da regulação moral. Isso cria forte dependência com relação à intervenção
direta do chefe de posto na resolução de conflitos entre vizinhos, na mediação com agentes
externos ou na distribuição de gêneros. A proximidade, mas também essa diferença de
organização social faz com que a maior parte do tempo de serviço do chefe de posto seja
dedicada à tentativa de resolução destes pequenos conflitos gerados dentro do próprio
Brejo, envolvendo disputas de quintal, bebida, ofensas etc., ao contrário do que ocorre com
as outras seções, onde disputas menores são mediadas pelas autoridades formais ou
informais de base familiar ou ritual. Isso ficou especialmente claro nas últimas visitas da
administração regional da FUNAI à área indígena, que presenciei, motivadas pelos
conflitos fundiários com posseiros das seções norte e centro, que foram tratadas em
reuniões em separado. O constrangimento e certa irritação dos funcionários no caso da
reunião realizada no Brejo veio justamente do fato de um grande número de “lideranças”
usarem a reunião para tentar resolver questões internas e fazer queixas sobre o chefe de
posto por ele não as conseguir resolver, passando para um segundo plano a questão do
conflito com posseiros propriamente dita.
3
Voltando à repartição mais simplificada das aldeias que conseguimos montar com o
auxílio de índios de diferentes localizações, observamos que, se destacarmos os desenhos
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 136
das três seções, conseguimos um efeito que podemos considerar como da projeção da
experiência histórica sobre a organização espacial.
A) Na seção central o desenho das
aldeias aproxima-se bastante de um
simetrismo que passou quase intocado
ao longo dos últimos cem anos: linhas
paralelas se cruzando em ângulos
quase retos formam subdiviões mais
densamente povoadas que as que
podemos observar nas outras seções.
Suas bordas coincidem com o
desenho da linha de divisão de águas
dos contrafortes da Serra Grande.
Cortando essas aldeias e ligando todas entre si, desce o pequeno riacho que nasce na
cabeceira do Brejo e o percorre até a cidade de Itaparica, enquanto paralelo a ele sobe a
estrada que vem de Itaparica, “cidade livre” e Petrolândia e que termina no centro quase
exato da área indígena. Por ser cortada pela maior e mais movimentada via de acesso à
área, é nessa seção que se concentram as residências em forma de arruamento, com
pouco espaço para plantio constante e apenas o suficiente para pequenas hortas e para as
antigas áreas de pomar, onde floresce grande número de fruteiras que no verão
complementam a renda das famílias. Associado a essa falta de terrenos de plantio, é
nessa seção que mora a grande maioria dos índios que trabalham nas cidades próximas
ou como "meeiros", diaristas ou rendeiros de outros índios, dos posseiros, ou de
proprietários vizinhos à área.
B) Na seção sul o desenho das linhas
é mais simplificado, recortando
unidades bem mais largas, mas
também com os menores números
absolutos de homens por aldeia. Suas
terras são usadas na maior parte para
pasto, mas existem trechos, em
especial os que ficam próximos à
concentração das fontes nascentes (e
que no mapa surgem os mais
repartidos e povoados:
Tapera, Brejinho dos Correias e Carrapateira) que têm se mostrado bons para o plantio,
atraindo índios das outras seções. Essa região fica fora das disputas relativas à mitologia
das “linhas”, tendo uma ocupação recente, que remete no máximo à decada de 1940,
servindo hoje como área de expansão.
C) Ao contrário das outras duas, o
desenho da seção norte é
desordenado, formado por linhas
divergentes que se cruzam em
diferentes direções. Um desenho que
adequa-se ao caótico roteiro das
curvas de nível de um trecho
encravado num estreito vale, mas
também e
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 137
principalmente, um desenho que confirma a imagem memorialística da fuga das
"linhas".Ainda que com uma área equivalente às outras duas, possui quase o dobro de
repartições, mas uma densidade menor que a seção central. É aí que as unidades
residenciais do primeiro tipo parecem ter maior força de organização sobre o espaço.
No quadro abaixo é possível ter uma idéia do crescimento populacional
diferenciado dessas seções, cabendo entre os anos 1940 e 1980, um crescimento de 15%
para a seção centro, esgotada pelo aumento da densidade de moradias; um crescimento de
30% para a seção norte e, ainda que isso signifique pouco em números absolutos, um
crescimento de 200% para a seção sul, que depois de 1984 foi ainda mais acentuado, com a
retirada das últimas famílias de posseiros da região do Brejinho dos Correias.
Quadro 14
Comparação do crescimento populacional das tês seções da áre indígena Pankararu.
2500
2000
1500
1000
500
0
déc. de 40
1975
1984 Seção
Sul
Seção
Norte
Seção
Centro
Geografia dos recursos.
1
A duplicidade da versão do mito colonial não responde apenas a discordâncias entre
registros de memória, mas é resultado de uma determinada correlação de forças no presente
e de um determinado projeto para o futuro, que procura justificação no passado. Para que
essa transação entre passado, interesses presentes e devir fique mais clara, é necessário
combinar as diferentes geografias vistas até agora com uma quinta geografia, marcada pela
disputa na definição espacial dos recursos sociais e materiais disponíveis em área,
representados pela ação do órgão indigenista oficial, mas também pela atuação direta ou
indireta de outras agências governamentais e não-governamentais.
A instalação do posto indígena em 1940 deu-se na seção central e ecologicamente
privilegiada, o Brejo, acrescentando aos seus atributos ecológicos o de sede do órgão
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 138
tutelar e, progressivamente, o de sede política, até então inexistente. Isso, por sua vez,
tornou-a a seção privilegiada na ordem de surgimento e concentração dos prédios públicos,
basicamente escolas e farmácias, assim como da assistência mais próxima e constante da
ação tutelar. As outras seções também vieram a ser atendidas com prédios públicos e
serviço de assistência, mas ficaram sempre em segundo plano na ordem das implantações e
no número de estabelecimentos e de funcionários. Assim, apenas no final da década de
1950 seria construído um prédio na Serrinha para dar lugar a uma casa de farinha “com
dependências para a instalação de uma escola, sub-posto, e farmácia, para atendimento dos
descendentes alí residentes, cujo número é superior a 300 e fica afastado da sede do PI
aproximadamente 3 km.”, enquanto no Brejo eram construídas “casas indígenas, internato
hospitalar de índios”, era feita a manutenção das máquinas da oficina de costura e eram
adquiridas ferramentas para serem distribuídas aos índios (DOC.:47). A localização do
posto determinava também a localização das cerimônias cívicas eventualmente
acompanhadas de potatchs governamentais que contrastavam com a rotina de secas e falta
de recursos do posto:
“Foi comemorado solenemente neste PI a semana do índio [...] tendo
sido distribuído entre os índios presentes, gêneros alimentícios, carne
etc. como parte das comemorações. Foi iniciada a distribuição de
enxadas e sementes de cereais aos índios para cultivo de suas terras,
reina contentamento entre nossos tutelados pelas providências
tomadas...” (MI:filme173,fotg.2035)
Essa desigualdade de recursos nas diferentes seções, até mesmo em função da
diferença de concentração populacional, durante muito tempo não ofendeu a paridade
relativa entre as aldeias distribuídas por todo o "círculo". No entanto, na década de 1980,
uma série de mudanças regionais afetaram esse equilíbrio local, acentuando as diferenças.
2
Até esta década a principal estrada próxima à área indígena era a que levava da
antiga Petrolândia até Tacaratu e que cruzava quase toda a seção norte no sentido lesteoeste. Isso não só facilitava deslocamentos como fazia dessa seção uma porta de entrada
privilegiada para a área, já que essa estrada funcionava como um corredor de mercadorias e
pessoas de importância muito maior que a estrada que ainda hoje liga Petrolândia apenas
ao Brejo e que cruza toda a seção centro. No entanto, a construção da Usina Hidrelétrica
(UHE) de Itaparica resultou em mudanças que alteraram o arranjo entre cidades até então
existente. O alagamento da antiga Petrolândia e a construção da Petrolândia nova, 45 km
abaixo nas margens do São Francisco, possibilitou a criação de um novo pólo regional para
onde convergiram novos investimentos, um fluxo de pessoas redobrado e um setor de
serviços de importância muito maior do que o disponível em Tacaratu. Essa alteração
levou, por sua vez, à construção de uma nova estrada ligando as duas cidades que, porém,
não corta a área indígena da mesma forma: em lugar de cruzar toda a seção sul, a nova
estrada a corta em diagonal (sentido sudeste-noroeste) num trecho novo e bem mais
reduzido. Além disso, o fluxo entre essas duas cidades tornou-se bastante desigual,
deslocando a importância da feira semanal de Tacaratu para a feira diária de Nova
Petrolândia. Um relatório de 1985 (DOC.:48) relatava a conseqüência imediata da
construção dessa estrada: o aumento da pressão sobre as terras indígenas que passariam a
ser beneficiadas com a sua proximidade. Neste relatório o funcionário da FUNAI
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 139
identificava a construção de cercas na aldeia do Espinheiro por famílias da vila de Barreiras
e da Baixa do Mulungu, localidades por onde passaria a nova estrada, e por um funcionário
da construtora que realizava as obras no local. Os terrenos, comprados ou apossados,
começavam na estrada e se estendiam pelo interior da área indígena identificada em 1984,
indo encostar nos limites da área homologada em 1987.
Encostado à fronteira oeste da área indígena, na altura da saída do Brejo, foi
construído o bairro-acampamento da CHESF, destinado aos funcionários da empresa
durante os anos de construção da UHE. Esse bairro planejado, hoje chamado cidade de
Itaparica, foi construído sobre terra bastante fértil e úmida, favorecida com a passagem dos
pequenos riachos com origem no Brejo dos Padres, antes ocupada por pomares e granjas. O
novo bairro foi aparelhado com uma grande escola de primeiro e segundo graus, posto
telefônico, uma igreja, jardins decorativos irrigados diariamente, um clube com sede,
salões e quadras de esporte, um hospital, bares, uma pequena estação rodoviária e casas
que diferiam em modelo e tamanho segundo a posição hierárquica dos funcionários. Ainda
mais a oeste, do outro lado da estrada estadual e na margem do rio, em terras
desfavoráveis, surgiu um grande bairro popular para os trabalhadores braçais da barragem,
a ““cidade livre””. Apenas com o recorte das ruas planejado, uma igreja no centro e um
desenho que sugeria espaço para um plano de expansão, inicialmente esse bairro surgiu
como uma monumental e instantânea favela de papelão, madeira, plástico e zinco, sem
qualquer tipo de serviço público ou tratamento de água ou esgoto. A planificação aparente
em seu desenho não correspondeu a uma igual ação planificada do poder público, mas
rapidamente a “cidade livre” ganhou a sua própria feira, comércio e um afluxo de pessoas
que não estavam diretamente ligadas ao trabalho nas barragem, boa parte delas removida
com as desapropriações. Hoje conhecida como Jatobá, a antiga “cidade livre” move
campanha pela emancipação.
Articulando essas novas unidades surge um sistema de transporte precário, feito de
uma única linha de ônibus que liga diariamente Nova Petrolândia, Jatobá e Itaparica com
intervalos de 90 a 120 minutos e que vai até o Brejo dos Padres duas vezes durante o dia,
uma às 6:00 e outra às 14:00. Ainda que insuficiente, esse serviço é mais eficiente que o
transporte nos “carros de aluguel” (caminhonetes abertas adaptadas com estreitos bancos
de madeira para transporte de gente e mercadoria), sempre imprevisíveis.
Além disso, a construção do acampamento da CHESF viabilizou a extensão do
terminal da rede elétrica, que lhe servia, até o "Brejo", cortando toda a seção central. Nesse
caso, tanto a extensão da rede quanto o fornecimento da eletricidade foram e são gratuitos,
por se tratar de uma linha exclusivamente dirigida à área indígena. Ao contrário, a rede que
mais tarde passou a alimentar a seção norte da área não contou com as mesmas vantagens.
Como as aldeias dessa seção tiveram que aproveitar uma extensão da rede que se dirige à
cidade de Tacaratu, e que por isso tem caráter comercial, tanto a sua instalação quanto o
consumo foram e continuam sendo pagos pelos próprios índios.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 140
A todas essas alterações somou-se a série de recursos e financiamentos especiais
que passaram a afluir à região pela iniciativa governamental, interessada em minimizar a
oposição sindical à construção da barragem, em especial através da atuação da EMATER.
Foram realizados relatórios de avaliação do impacto social das barragens que deram maior
visibilidade aos Pankararu e a outros grupos indígenas próximos, em especial os Tuxá,
Além disso, a imprensa regional dirigia a atenção para o local, marcado pelas paralizações
nas obras da barragem realizadas pelos sindicatos. Tudo isso fez com que a região ganhasse
interesse também para a ação de órgãos assistencialistas, como a LBA e diferentes tipos de
agências não-governamentais, que iam do Lions Club ao CIMI - Conselho Indigenista
Missionário. Essa mudança de conjuntura possibilitou à FUNAI propor uma série de
projetos econômicos e culturais que então eram canalizados para os postos indígenas da
região e que tinham na origem de seus recursos programas governamentais mais amplos,
como o Programa de Integração Nacional (PIN), o Programa de Apoio ao Pequeno
Produtor (PAPP), o Polonoroeste etc38. Somam-se a essas ainda as mudanças que atingiram
38
A criação desses projetos, suas argumentações, planos de aplicação, áreas priorisadas e sua aplicaçaõ real
são matéria ainda de reflexão. Pelo que se pode perceber através do caso Pankararu, esses planos podem: A)
se transformar em simples distribuição de gêneros e ferramentas (segundo critérios que, como veremos, vão
alimentar faccionalismos internos); B) não chegar ao conhecimento das autoridades indígenas, que afirmam
ter uma idéia muito vaga de sua existência e aplicação; C) chegar ao conhecimento das autoridades
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 141
o campo indigenista no Brasil nesta última década e conferiramà região Nordeste uma nova
visibilidade, atestada pela atenção das antigas agências ou pela criação de novas, na própria
região.
Em todos esses casos, no entanto, e é isso que nos importa aqui, o ponto de
referência para a atuação dentro da área indígena Pankararu é sempre o Brejo dos Padres,
local de maior concentração populacional e onde encontra-se localizado o posto indígena.
Transporte fácil, água encanada e distribuída por caixas d'água públicas, luz gratuita e
recursos sociais variados como creche, casa de farinha coletiva, centro de produção
artesanal, clube e um pequeno caminhão, todos surgidos ao longo da década de 1980,
marcam hoje uma diferença grande entre o "Brejo" e as outras duas seções, em especial no
que diz respeito à seção norte, onde a falta desses recursos se soma às desvantagens de suas
geografias jurídica e ecológica (figura 10).
3
Boa parte desses recursos surgidos na última década não têm origem nem são
mediados pela FUNAI, mas são alcançados diretamente pelas lideranças indígenas em mais
uma das variações do que chamamos de “busca dos direitos”. Com a ampliação do número
de agências governamentais e não governamentais na região foi possível ampliar ainda
mais a noção de “direitos” e o campo de atuação das “lideranças peregrinas”. As viagens
que passam a ser feitas, então, apesar de estarem sempre vinculadas ao conflito fundiário,
não buscam mais exclusivamente soluções fundiárias, nem apenas os empregos na FUNAI,
mas também o apoio de outras agências na forma de projetos de desenvolvimento
comunitário, ou de auxílio a "pequenos produtores"39. Um número relativamente grande de
lideranças passa a participar das viagens em busca dos novos “direitos” e, como vimos, o
fato de serem concorrentes era um dos motivos de participarem juntos das mesmas viagens,
como forma de ter um controle mais estreito do que os concorrentes alcançavam.
Algumas mudanças se impuseram com o trânsito entre essas novas agências de
assistência. Uma delas, e talvez uma das mais importantes, foi o surgimento das
“associações comunitárias”40 que passaram a ser a interface legal nas transações de
transferência de verbas e de realização de convênios entre agências de apoio e grupos
indígenas. No caso dos Pankararu, a primeira associação foi criada por Quitéria, a mais
visível das lideranças peregrinas, que vimos emergir no capítulo anterior. Além de formar
lideranças através da “busca” de empregos (e vagas em cursos superiores e de
especialização) para sua jovem parentela na FUNAI, como presidente por tempo
indeterminado desta associação, essa liderança se habilita formalmente a falar pela
“comunidade Pankararu”, agregando mais um título àqueles das autoridades estatutárias
indígenas, que nesse caso se queixam dos chefes indígenas por usarem as verbas para outros fins e,
finalmente, D) combinar todas as alternativas acima.
39
As novas formas de organização política dos grupos indígenas, que se sobrepõem imperfeitamente e
alteraram as relações políticas fundadas na etnia e no cacicado, constituem um campo de investigação de
grande importância, ainda que quase completamente inexplorado. No caso do Nordeste em particular, parece
existir uma grande comunicação entre essas novas formas de organização e a experiência de mobilização
política do campesinato, transformada nos últimos anos com a intervenção estatal através do Projeto
Nordeste, na forma do PAPP, o que acaba nos remetendo para outro universo bibliográfico: Novaes (1994),
Machado (1987) e Chalout (1986).
40
Estas não significam, porém, grande autonomia com relação à FUNAI, ao menos até o momento, já que foi
o próprio escritório do órgão de Recife que designou um funcionário especialmente para orientar os grupos
na montagem das referidas associações. Como resultado está havendo uma multiplicação dessas associações
não só entre as áreas indígenas, mas também dentro de cada uma delas, o que no caso Pankararu, como
veremos, tem servido como novo repertório faccional.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 142
criadas pela intervenção do órgão indigenista. Essa precedência está à concentração de
recursos no Brejo dos Padres, tornando mais tensa a relação entre autoridades internas, em
especial aquelas da seção norte, a principal das quais é ainda João Tomás, ex-pajé,
concorrente do atual cacique (Capítulo 2/2) e reconhecido “levantador de aldeia”
(Capítulo1/2). Depois da volta do cacique ao cargo por intermédio da presidente da
associação, é ela que passa a ser a principal autoridade global da área indígena.
Quando em 1987 a FUNAI vai rever as dimensões da área, com base nos trabalhos
de identificação realizados em 1984, é com esse grupo de lideranças do Brejo que são
realizadas as negociações. O trabalho do Grupo Interministerial de 1984 (DOC.:42) tinha
evidenciado o erro de Cildo Meirelles na demarcação de 1940 e propunha a correção da
área para os 14290 ha reivindicados historicamente pelo grupo, mas ao negociar uma
solução para a rápida homologação da área, que estava sendo exigida pelo BID, o órgão
propõe, numa reunião em que se encontravam apenas as lideranças do Brejo, manter a área
original em troca da promessa de acelerar a retirada dos posseiros da fronteira oeste da
seção central. Foi o fechamento deste acordo, que as lideranças da seção norte só ficaram
sabendo mais tarde, através de uma notícia de jornal onde aparecia a foto das lideranças ao
lado dos funcionários da FUNAI, que deu uma natureza sísmica ao faccionalismo ritual e
mítico.
Depois disso as lideranças das seções norte e sul deixaram de viajar juntas, João
Tomás passou a organizar suas próprias viagens para a capital, seus contatos com outras
organizações indígenas e com o CIMI, criou uma nova associação comunitária indígena
Pankararu, com sede na sua casa, na aldeia do Espinheiro, e se fez reconhecer, através de
um abaixo-assinado de várias lideranças da seção norte, cacique de uma nova “aldeia”,
criada a partir de um dos sobrenomes Pankararu: Entre-Serras-Pankararu-Cana-Brava. A
oposição entre mitos coloniais deixava de expressar apenas uma vaga disputa por
legitimidade para demarcar um faccionalismo visível. As queixas sobre o tratamento
desigual quando da distribuição de gêneros, sementes e ferramentas passa a alimentar a
expectativa de ter o seu próprio posto indígena. João Tomás, em 1989, toma a iniciativa,
portanto, de “levantar” sua própria aldeia, exigindo para isso da FUNAI o reconhecimento
oficial do abaixo-assinado e a instalação de um posto indígena na Serrinha41.
As lutas com relação à identidade passam pela definição de propriedades, estigmas
e emblemas ligados à origem através do lugar de origem e dos sinais físicos, rituais e
genealógicos que lhe são correlatos, e que no caso Pankararu se traduzem na luta pela
definição de fronteiras étnica e de legitimidade: uma primeira separando aqueles que são
daqueles que não são índios, outra separando aqueles mais e menos legitimamente índios,
mais ou menos "misturados". Entre ser e não ser, ser puro ou impuro, "a fronteira, esse
produto de um ato jurídico e de delimitação [que] produz a diferença cultural do mesmo
modo que é produto dela" (BOURDIEU,1989) e deve também estar fundamentada na
objetividade do grupo a que ela se dirige. Como diria Durkheim, uma ilusão bem
fundamentada na realidade. Com a possibilidade de uma mediação independente, as
acusações mútuas de menor legitimidade étnica, na disputa pela distribuição e alocação de
recursos escassos, desenham uma repartição geopolítica que tem a pretensão de se tornar
definitiva. As lutas simbólicas pela imposição de uma divisão legítima da área procuram se
41
Nada disso foi conseguido ainda e o administrador regional da FUNAI vem tentando, através de sucessivas
conversas, convencer João Tomás e as outras lideranças que o acompanham de que este projeto é inviável.
Sem ter a dimensão exata de todos os elementos implicados nesta ruptura, o administrador tem argumentado
que se os recursos da FUNAI são poucos para um posto, a situação ficaria pior com dois. Até a minha última
visita à área ele ainda não tinha conseguido demover as lideranças do Entre-Serras de seus objetivos e
continuava adiando qualquer tipo de procedimento.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 143
realizar socialmente, criando grupos e repartindo de fato o território indígena. A geografia
simbólica, tão imbricada com as geografias jurídica e ecológica, torna-se geo-política.
Geografia ritual
Em todas essas descrições, contudo, passou desapercebido um aspecto fundamental
do drama étnico Pankararu: o desencantamento. Fazemos referência a ele na última das
geografias porque está associado à economia do espaço que nos foi a mais difícil de
perceber, porque a menos pública, porque ligada muito indiretamente às motivações
iniciais de nossas viagens a campo e porque não nos foi formulada explicitamente em
nenhum momento. Sua expressividade é, digamos, doméstica, contraponto das expressões
obrigatórias da indianidade, não remetendo a representações de si para o outro, mas à
tradução dos diferentes embates que temos tentado mapear, dando-lhes uma resposta
satisfatória nos termos de seu próprio conjunto ritual e cosmológico.
1
O desencantamento está relacionado a dois problemas de descontinuidade dos
signos étnicos aparentemente estanques, mas que revelam sua relação no desenho desta
última geografia, definida pelos recentes rearranajos de um espaço mágico. Ambos
emergem do contexto de mudanças regionais a que fizemos referência nas páginas
anteriores, ligados às recentes conquistas materiais e intelectuais do grupo, que o tornaram
progressivamente mais visível. O primeiro destes problemas surge com a construção da
UHE de Itaparica e com a transformação da sua cachoeira numa grande barragem, que
domesticou suas águas e a desencantou. O segundo refere-se a um dos efeitos do
faccionalismo que descrevemos na geografia anterior: a disposição dos lugares religiosos.
A cahoeira era um lugar sagrado onde nós ouvia gritos de índio,
cantoria de índio, berros, gritos. O encanto acabô porque o governo qué
assim né... Eu acho que se o governo quisesse acabá com os índios
dentro de 24 horas ele acabava. Ele não acaba por causa dos direitos
humano, por causa do direito mundial do índio e do ser Humano, porque
senão já tinha acabado.
Olha, essa cachoeira, quando ela zuava, tava perto dela chovê ou de um
índio viajá. E a cachoeira não zuou mais, chove quando qué, sem tá...
Acabou-se o encanto dela. Então esse era todo o lugar sagrado que
agente pediu pra preservá, mas... É a força maior combatendo a menor...
Era uma grande cachoeira, de um grande rio, que agente ouvia os
cantos, das tribos indígena, vários cantos de tribos indígenas cantando
junto que nem numa festa. Mas hoje em dia não se vê mais nada... Aquele
encanto acabô. (João de Páscoa).
A duplicidade do uso da palavra “encanto”, referindo-se a personagens religiosos
(os Encantados) e a um determinado estado de seres ou espaços geográficos (a cachoeira
de Itaparica que pode ser encantada e desencantada) não é acidental, mas de ordem
genética. Como já assinalamos anteriormente, o Toré, tornado expressão obrigatória da
indianidade dos índios do Nordeste, está fundado num tipo de conhecimento e de produção
mística que também remete ao sue pólo oposto, o da diferenciação. Ao se ensinar o Toré,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 144
os toantes são “levantados” sempre de forma diferente, a dança é sempre particularizada e
o contato com os Encantados tem sempre que se dar de uma forma original, para a qual não
existe ensino possível. Ao ensinar o Toré transmite-se apenas a “semente” e a forma de
entrar em contato, mas o caminho para “levantar os Praiá” e antes, para produzir seus
próprios Encantados, deve ser descoberto sozinho pelo grupo, através da tradicional
combinação entre garapa, fumo, jurema e reclusão na mata. Assim, “levantar aldeia”
implica descobrir o segredo, diferente dos outros segredos de outras aldeias, nos quais está
em jogo uma forma particular de produzir seus próprios Encantados. Os Encantados
nascem, portanto, simultaneamente à aldeia, um produz o outro por meio de um mesmo ato
mágico que se faz segredo. Não são heróis fundadores, são heróis diferenciadores, cujo
segredo é o núcleo da identidade indígena. Produção da aldeia e encantamento estão
indissoluvelmente ligados.
No caso Pankararu o segredo da aldeia estava na sua relação com a cachoeira de
Itaparica. Era da cachoeira que vinham os sinais de morte e vida: nos sons de sua
correnteza era possível divisar os gritos e cantos de outras tribos passadas, através de seus
estrondos eram anunciados ou a morte de um índio de grande valor moral ou a chegada das
chuvas42. Segundo a "ciência" da aldeia, um índio que tinha anunciada sua morte (natural
ou não) podia decidir fugir dela através do encantamento, se fosse “importante” o bastante
para merecer essa distinção, isto é, se tivesse valores morais e espirituais, normalmente
associados ao papel de “pai de Praiá”, plenamente reconhecidos. Para isso reunia seus
próximos e era preparado por eles, mediante sucessivas sessões de fumo e cantos, para a
sua “viagem”. Depois de preparado, dirigia-se sozinho à cachoeira e se jogava nela,
voltando mais tarde na forma de Encantado. O processo se completava depois de sua
primeira visita à aldeia, que ocorria dentro de uma ou duas semanas, durante as quais
aqueles que o prepararam permaneciam em recolhimento, fumando, cantando e bebendo
garapa.
... aí nós preparava ele e ia pra nossa cachoeira, [...] O sr viajava hoje e
quando era amanhã, que passava oito dia, nós tinha que acendê o fogo
num reservado e esperá a sua chegada. Quando tava com oito dia,
quinze dia que o sr não chegava naquele ponto, nós tinha que esperá
naquele ponto, acendê o cachimbo... [...] E quando ele chegava (...nós
não estamo brincando com espírito morto como os outros alí, nós tamos
trabalhando com os Índio), quando é com oito dia, agente esperava
aquele camaradinha que se encantô, que é vivo, é vivo graças a Deus.
[...] Quando era com oito dia ele trazia a vida dele numa semente e nós
tamos nessa ilusão. A semente que é pra nós ficá adorando. Nós adora a
semente mais ou menos como adora um santo, ou mais do que isso. [...]
Todo Encantado dessa aldeia aqui foi-se jogado da cachoeira. (Mané
Bizoro)
Assim, o desaparecimento da cachoeira significa o fim do segredo Pankararu e,
portanto, o esgotamento de sua capacidade de diferenciação, o fim da produção de novos
Encantados e seu progressivo afastamento da aldeia que então vai, ela também, se
desencantando. Isso significa a perda da “força”, da capacidade de consulta aos augúrios,
42
Antes do segredo da aldeia estar depositado na cachoeira de Itaparica, os seus Encantados tinham morada
nas cachoeiras de Paulo Afonso, de onde já teriam se tranferido quando elas foram totalmente esgotadas em
seu potencial mágico com as sucessivas barragens.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 145
fundamentais nas histórias da morte de Cavalcante, da sucessão do pajé e na defesa dos
índios, como na história de Tarraxá. É o fim das “sementes” e de alguma forma, o
agravamento dos efeitos da “mistura” no tempo, isto é, a progressiva perda do contato com
as fontes de diferenciação étnica.
Porque ele graças a Deus ensina a nós: "Olhe, vai chegá um fulano
assim, assim, por essa forma assim..." e portanto nós tem aquele
mistério. Depois que eles quebraram nosso encanto nós nunca mais
tivemos democracia de conhecê..., se conhece, ainda tem muitos caboclo
aqui que ainda conhece, mas já é meio difícil. Não era que nem era nesse
tempo que era popular (Mané Bizoro)
Mas, se a cachoeira de Itaparica desapareceu deixando todo o grupo sem uma
referência mágica fundamental, o faccionalismo que divide as seções centro e norte separa
também o Brejo de importantes símbolos religiosos. Esses locais são as serras ou serrotes,
como chamam os trechos que se destacam das serras como pontas protuberantes, formadas
por pedras inteiriças, assumindo formas estreitas e relativamente isoladas de sua massa
mais compacta. Dentro desses serrotes encontram-se ricos castelos em que os Encantados
moram e que alguns índios têm o dom de visitar em sonhos. Os serrotes e as serras, assim
como a principal fonte d’água da aldeia, a "nascente", são por isso fonte de toda a força da
aldeia, suas reservas de encanto e os marcos de uma identidade que se expressa na
paisagem. O Brejo dos Padres fica, assim, quase perfeitamente rodeado de pontos que
concentram referências mágicas, mas a maioria deles se encontra fora do próprio Brejo, na
seção norte.
Além das serras e serrotes existe aquele que ainda hoje é considerado o Terreiro do
principal Encantado do grupo, o Terreiro do Xupunhum ou Índio Mestre Guia, que fica na
Serrinha, localizado no agrupamento residencial capitaneado pela casa do velho pajé.
Como já fizemos referência (Capítulo 2/1), no momento de instalação das “linhas”, o
antigo “sarapó” da aldeia teria sido um dos expulsos do Brejo, transferindo-se para o alto
das serras e lá refazendo o terreiro do seu “principal”. Mais tarde, quando já muito velho,
volta para o Brejo e deixa em seu lugar, cuidando do seu Terreiro, seu filho, que viria a lhe
suceder como pajé. Quando este novo pajé sente-se velho demais para acompanhar as
viagens das lideranças e cobrir toda a área indígena, passa a eleger auxiliares que ganham o
título de “sub-pajé”, dando origem às disputas por sua sucessão, que num primeiro
momento tiveram como personagens os atuais caciques do Brejo e do Entre-Serras
(Capítulo 2/2). Depois dessas disputas, porém, sucederam-se alguns sub-pajés, escolhidos
preferencialmente dentro do seu próprio agrupamento de lealdades, mas que por vezes
ocuparam esse cargo por muito pouco tempo. O último desses sub-pajés foi Miguel Binga,
filho de uma irmã do Joaquim Serafim casada com Antônio Binga, irmão do atual cacique.
Seu lugar genealógico, somado a certas habilidades mágicas e à herança deixada por seu
pai colocavam-no numa situação privilegiada para o cargo de pajé. A herança consistia em
um importante Terreiro que congregava um número alto de Praiás e de lealdades. É
interessante notar que todas as outras tentativas de Joaquim Serafim constituir um sucessor
passavam pela escolhe de alguém do seu círculo ritual, mas sem qualquer importância
estrutural aparente, como João Tomás, João de Páscoa e por último, depois de Miguel
Binga, o Renato, os dois últimos seus genros Cf. quadro 11).
As razões desse tipo de opção por pessoas sem qualquer importância de em círculos
de parentesco, aliança ou descendência, seriam justificadas mais tarde, com os fatos
decorrentes da escolha de Miguel Binga para o cargo de sub-pagé. Envolvido numa estreita
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 146
rede de lealdades, ligado a interesses bem marcados pelo pertencimento a uma família que
se auto-constituiu como grupo, dono do seu próprio Terreiro de prestígio, Miguel Binga
teria mantido a relação hierárquica com o pajé titular por pouco tempo, depois do que
deixou de frequentar com a mesma assiduidade a Serrinha, realizando seus próprios Torés,
algumas vezes sem chamar os Praiás do “velho Serafim”. Sua visibilidade prévia como
filho de um importante “pai de Praiá” somada ao cargo estatutário e à íntima participação
no círculo de afinidades do cacique e da presidente da associação comunitária, a Quitéria,
deram a Miguel Binga uma visibilidade e naturalidade no cargo que em pouco tempo lhe
autorizariam a desconhecer a titularidade do velho Serafim.
Inicialmente isso não implicou em qualquer repartição formal entre os grupos de
famílias ligadas aos terreiros. Mesmo tendo assumido o cargo de pajé de toda a área
indígena, Miguel Binga continuava realizando a festa tradicional do Umbu, ligada ao
terreiro do Xupunhum, do qual o velho pajé continuava sendo o zelador. A evolução da
disputa faccional em rompimento geopolítico, no entanto, reinvestiria de um novo sentido
também essa disputa pela autoridade religiosa. Já não era possível insistir na idéia de
substituição de Miguel Binga do lugar de pajé e a evolução da disputa acabaria sendo
canalizada no sentido proposto por João Tomás, de um rompimento frontal com o núcleo
tão homogêneo de autoridades do Brejo, instituindo um novo pajé, próprio da seção norte e
legítimo herdeiro do “velho Serafim”, assim como do seu Terreiro, trunfo na simbolização
étnica. Por essa via as lideranças plenamento engajadas no faccionalismo ganham
expressão ritual e viabilizam, enfim, uma unidade em termos rituais, fundamental para
qualquer discussão sobre rompimento definitivo das duas áreas.
Caberia fazer uma ressalva antes de continuarmos. Esse faccionalismo e seus
efeitos de exclusão são particularmente evidentes entre as lideranças faccionais em luta
justamente, como diz Bourdieu (1989), pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a
conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social
e, portanto, pelo poder de fazer ou desfazer grupos. Isso significa que tais fronteiras entre
seções e entre terreiros e rituais não têm a mesma realidade para esses personagens
protagonistas do faccionalismo e para a população mais ampla, que todo o tempo joga com
as possibilidades abertas por ele. Nessas disputas os oponentes não criam fronteiras no
interior da população, mas, para voltar a uma imagem usada antes, criam núcleos de
legitimidade e de concentração de lealdades que irão exercer maior ou menor poder de
atração sobre os homens. A repartição territorial só será realidade e só será justificada se,
na dinâmica da disputa, os oponentes conseguirem criar uma repartição entre os homens, e
não o contrário. Desenha-se assim, portanto, o que percebemos como o atual drama étnico
Pankararu: por um lado, expropriados da fonte de seu encantamento, e de seu segredo de
produzirem novos Encantados que revitalizem a aldeia; por outro, repartidos ao meio nos
seus rituais mais centrais, cabendo à facção menos favorecida em termos jurídicos,
ecológicos e de mediação com os novos recursos, isto é, expropriada em termos de
recursos, o Encantado Guia da aldeia (figura 11) e parte importante da geografia
encantada, cuja posse, por sua vez, expropria a facção oposta dos símbolos étnicos comuns
a ambas.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 147
2
Mas novamente devemos recusar a oposição tradicional/moderno. A descrição que
apresentamos do desencantamento encaixa-se perfeitamente numa determinada narrativa
Pankararu da “queda”. Ao se conceberem como remanescentes, os Pankararu formularam
algumas imagens que explicam a sua impureza, mas que também servem como nexo entre
os índios de hoje e os de antes. A principal destas imagens está relacionada à multiplicação
dos terreiros de Toré: um passado de unidade, onde todo o grupo “brincava” o Toré num
único Terreiro se opõe ao movimento histórico de multiplicação de terreiros, que leva a um
crescente “individualismo”, assim como o puro se opõe ao misturado, o tronco velho se
opõe à ponta de rama e, poderíamos acrescentar, a cultura se opõe à história, a ordem
natural ao arbítrio humano.
Se a cachoeira de Itaparica, fonte de encantamento da aldeia, e os serrotes e
nascentes, locais de moradia dos Encantados, até a construção de Itaparica estavam no
plano da ordem natural, os terreiros, lugares de exercício ritual, ao contrário, são pensados
como locais por excelência da construção humana, lugares criados pelas mãos e pés do
homem e por isso passíveis de mudanças mas também de regulação. A ordem dos terreiros
é variável, móvel, tanto para o bem quanto para o mal, já que se a multiplicação dos
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 148
terreiros divide as lealdades, por outro lado, "quanto mais o índio brinca, mais ele cresce".
Nesta leitura, o desaparecimento da cachoeira de Itaparica teria tido um efeito de
desencantamento justamente por ter significado a intromissão da ordem das mudanças no
plano do que era pensado como imutável. Mas, sem nos adiantarmos muito na
argumentação, caberia chamar a atenção para que aqui também é preciso guardar alguma
distância com relação às dicotomias. A possibilidade de regulação da vida ritual justifica a
organização dos terreiros sugerida por Carlos Estevão aos Pankararu (Capítulo 2/1) tenha
sido tão bem recebida pelo grupo. Ela traduzia, ou talvez, produzia ( ao menos no plano
discursivo), a uma imagem ideal de sua sociedade, que passou a estar associada a um
passado perdido. O princípio organizador proposto, onde a reunião dos Torés num único
Terreiro substituiria a sua já avançada fragmentação, era perfeitamente adequado à sua
lógica ritual, enquanto organizadora das disputas por lealdades: quanto menos terreiros,
maior a concentração de lealdades, maior integridade identitária. Essas recomendações são
frequentemente citadas para explicar o faccionalismo e a fraqueza do grupo na disputa
fundiária com os posseiros.
Mas o que eu tô lhe dizendo é que o que tá acontecendo hoje só tá
acontecendo porque nós não seguimos o que o padre..., o que o Carlos
Estevão falou. Porque até os próprio povo de fora acha que nós é
desunido. O sr. veja, o moço aqui de casa é virado pro nascente, mas tem
vez que fazem festa lá e ele não vai. Não pode ser. Mas não é porque ele
não queira, é porque quando eles vem avisá, tá fora da hora, não pode.
Porque nesse ponto eu cuido dele, que não será todo mundo que pode
pegá nele pra saí. Tem aquela pessoa competente que na hora eu vou
chamá. Porque se eu pegá uma pessoa qualqué pra esse fim, não tá
certo. Aí é onde eu quero chegá, que eu tô descobrindo o segredo da
aldeia..., mas não existe possibilidade de eu ser castigado porque eu não
tô mentindo. Tô falando verdade. (João Binga, )
Mas isso aqui antes era uma coisa bem pacífica, porque era bem
resolvido na hora. Assim, reunia todos, trazia aquelas famílias que
brigô... E qualquer melhoramento também reunia tudo, contava aquela
história, porque tomava a palavra um por um e um por todos, e resolvia
sem tumulto nenhum. Hoje tá um negócio que..., como..., negócio que
vem dentro quase que nem uma política...[...] Hoje tamos com aquela
parte..., o pessoal não tem mais aquele..., aquela parte de tá fazendo as
festas todos juntos, porque cada quem tem um terreiro, mas o meu pai
não queria isso, queria todo mundo reunido, porque quando fosse pra
chamar uma pessoa que fosse pra uma viagem ou que fosse pra chamar
uma atenção sobre a parte do mal que ele tá fazendo, tava todo mundo
junto, cada quem defendendo o seu trabalho. (Antônio Moreno)
A tensão desenhada entre a valorização do paradigma político da unidade e o
exercício ritual que leva à multiplicidade dos Terreiros seria compatibilizada a princípio ou
teoricamente, de acordo com o sistema ritual idealizado pelos Pankararu, segundo o qual
ocupariam espaços sociais distintos: os espaços privados seriam dedicados ao exercício dos
“Particulares”, estes sim, tão numerosos quanto o número de famílias ou “zeladores” de
Encantados, e cujo exercício poderia se dar simultaneamente em vários lugares por grupos
diferentes. No espaço público estaria o Toré, destinado à comunhão do grupo como um
todo através da reunião dos “pais de Praiá” e rituais coletivos que mobilizariam todo o
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 149
“batalhão” de Encantados da aldeia e que, por isso, não poderia ser realizado em mais de
um lugar simultaneamente.
Nos "Particulares" o ritual é de escala familiar, realizado dentro de casa, reunindo
apenas os parentes mais próximos para fumar e beber garapa, situação em que recebem
energia dos Encantados e reforçam a união da família. No Particular seriam realizadas
consultas aos Encantados sobre a situação de parentes distantes, sobre acontecimentos
futuros, seriam feitas consultas sobre o melhor procedimento em situações de conflito.
Além disso, seriam realizadas curas, diretamente pelos Encantados, na forma dos Praiá, se
eles já tivessem sido “levantados” ou através dos seus “zeladores”, se eles ainda não
tivessem saído das suas “sementes”. Com relação às curas, o Particular pode variar
bastante, na sua forma e potência, mas um critério básico distingue as suas formas de
pagamento, revelando a oposição entre o caráter privado do Particular e o caráter público
do Toré. Se o objeto da cura for uma mulher, o pagamento aos Encantados será sempre
através de um novo Particular, mas se o objetivo tiver sido um homem, de qualquer idade,
então o Encantado poderá escolher se pedirá um novo Particular ou um Toré.
Tal Particular se faz através da oferta de comida, garapa e fumo para os Praiás e
convidados, sempre em pequeno número, próximo ao círculo doméstico da pessoa curada,
dentro de casa e de forma mais cerimoniosa. Mas no caso do pagamento com o Toré, a
família deve realizar uma festa pública, com gastos relativamente altos, para a qual toda a
aldeia imediatamente passa a estar convidada e para a qual serão chamados, na sua forma
ideal, todos os Praiás da aldeia. Dependendo da expectativa do Encantado que receberá o
pagamento e da disponibilidade material da família devedora, a demora na realização dessa
festa pode se arrastar por meses ou anos, até que se tenha conseguido reunir recursos
suficientes para a sua realização. Nos casos em que o Toré não ocorre como pagamento de
promessa, não sendo por isso de responsabilidade exclusiva de um único núcleo familiar,
os gastos são cotizados informalmente entre os participantes e, em lugar de realizar-se num
único dia, pode durar até uma semana ou pouco mais, dependendo do êxito do ritual.
Este deveria ser o sistema relativamente estável dos Pankararu, no qual as
necessidades domésticas de cultos aos antepassados, de consultas oraculares e de curas
seriam cobertas pelos Particulares, sem que isso ofendesse a unidade da aldeia. Por isso,
nas narrativas sobre o faccionalismo, as lideranças do Brejo vêm a multiplicação dos
Terreiros como uma indevida ruptura com as lealdades anteriores, por meio do qual os
moradores das outras duas seções estariam subvertendo o princípio de unidade, enquanto
na versão das lideranças da seção norte, acompanhando a oposição dos seus mitos
coloniais, essa multiplicação teria tido origem na própria ruptura territorial das famílias
com um espaço comum na época das “linhas”. A sua expulsão e dispersão teria levado a
que houvesse uma correlata dispersão ritual, sendo que nessa dispersão o próprio Toré
começaria a se misturar com outros tipos de cultos, como o dos ex-escravos, introduzidos
na aldeia (Capítulo1/1). Fecha-se então o círculo que liga exercício ritual à mitologia da
“queda”.
3
Recentemente a repartição em três seções ganhou realidade no plano ritual. O
surgimento de um novo terreiro na Tapera, poucos anos depois da separação do EntreSerras, em 1992, veio complicar e sedimentar o quadro faccional. Depois de um conflito no
interior daquele que era o único Terreiro da seção sul, parte das suas famílias parou de
frequentá-lo. Nesta mesma época estava morando temporariamente na área a filha de uma
das lideranças locais, que havia se mudado para Palmeira dos Índios e lá se casado com um
Xukuru-Kariri. A combinação entre a ruptura do Terreiro e a presença daquele casal que,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 150
aparentemente, possuia habilidades rituais especiais, resultou na criação um novo Terreiro,
que passou a ser frequentado por metade das famílias da seção sul que possuem Praiás,
rompidas com o primeiro terreiro, num total de 30 famílias e 14 Praiás. A atividade ritual
deste terreiro passou a ser tão intensa e bem sucedida que em pouco tempo, além daquelas
30 famílias e de um grande número dos que só iam para “brincar”, passou também a
frenquentá-lo um número expressivo de índios do Brejo. de significar mais uma
indesejável fragmentação do exercício ritual e das lealdades, acrescentava-se à situação um
problema ainda mais grave: parte dos Praiá levantados especialmente para esse Terreiro, o
foram com “instrução” dos Xukuru-Kariri, incluindo por isso nos seus Torés vários toantes
de Palmeira dos Índios.
O núcleo de autoridades da aldeia, que coincide perfeitamente com o núcleo ritual
do Brejo, imediatamente tentou impedir a continuidade daquele Terreiro, buscando apoio
para isso junto às famílias do antigo Terreiro e em especial junto a mais destacada
liderança da seção, o Zé de Bernarda, que não é nem pai nem zelador de Praiá. Inicialmente
Zé de Bernarda tentou um acordo de convivência pacífica, mas o cacique e o pajé se
mostravam irredutíveis, chegando a sugerir apoio policial caso ele concordasse em usar sua
autoridade para desmantelar o novo Terreiro. Zé da Bernarda não é “pai de Praiá”, não é
zelador nem tem marcas de valor mágico, não ocupa nenhum cargo estatutário nem se
constituiu como uma liderança de mediação, especializada em um ou outro dos circuitos
percorridos pelas lideranças peregrinas. Toda sua autoridade ele retira da sua capacidade de
mediação e no seu discurso enfatiza antes de tudo as relações de lealdade, de
convencimento, num tipo de intervenção que nunca ou raramente passa pela tomada de
decisões, muito menos repressivas. Assim, declara absoluta lealdade ao cacique e ao pajé,
mas deixa claro que é contra qualquer intervenção. A fonte de sua autoridade está na sua
capacidade de alcançar consenso, de produzir acordos, de ser aceito, mais do que impor
qualquer tipo de ordem.
... Eu tava no meio e não ia querer proteger nem uma parte e nem outra
porque eu ia desgostar no outro terreiro de cá da Serra mais da metade
do povo daqui. Então que eu como um líder que eles queria, eu não
trabalhava dessa forma desgostando o povo. Trabalhava com que com o
tempo eles se juntasse. Que se juntasse eu tava no meio... Aí eu não tinha
saída pra canto nenhum. (Zé de Bernarda)
Por outro lado, a criação daquele Terreiro tinha o efeito de uma revigoração da vida
ritual da sua seção e como sua autoridade não dependia exatamente destes rearranjos entre
Terreiros, era simpático às mudanças.
Eu, na época que começou, eu me achava sozinho e não me achava com
coragem [de tentar interromper o novo terreiro], mas hoje é ainda pior,
que eu tenho dois filhos casados e quando eu penso que eles tão
drumindo em casa, eles tão lá. Aí ficou mais pior pra eu, porque se eu
não podia fazê nada, agora ficou mais pior. Eu fui falá com eles, [dizer
que] o cacique e o pajé não era de boa vontade, mas eles disseram "Mas,
pai, lá agente não podemos dexá, porque lá agente dança, agente se
deita e drome e ninguém pisa no pescoço, ninguém faz nada, então é lá o
lugar que eu vou". E só deles me falá eu reparei, que os homens de idade
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 151
que tem lá é poucos. São os jovem assim, da idade deles, as esposas e
fazendo dentro dum respeito desses, eu não posso fazê nada.
Eu posso ajudá pra vê se eles segura ao menos uns quatro anos assim.
Porque uma brincadeira dessa, sem cana, sem nada, só eles só, fumando
o cacimbo, botando pra Eles e dançando e brincando... Eles tira oito dia,
oito dia! E você não vê uma palavra, um home chegá e dizê que fulano
disse que o outro era feio. Oito dia com oito noite e na outra já tiraram
seis porque pros outros dois já não tavam aguentando. Aí então que eu
achei que não posso fazê nada com um povo desse, porque se eu for fazê,
vou aborrecê uma parte do Brejo (que vem muita gente) e daqui... Eu
achei bonito foi no dia do domingo rapaz, no dia que começa a festa.
Quando foi o dia de domingo, encostou um carro aí da feira da “cidade
livre”, desceu um morro de muié e home, pegaram o carro, foram à
“cidade livre”, quando voltaram, subiram alí, cada um com um saco,
menino, na cabeça pra comê lá. Eu achei bonito o magote de gente... (Zé
de Bernarda)
A freqüência dos Torés nesse novo Terreiro cresceu tanto que praticamente
inviabilizou a realização de outros Torés no terreiro concorrente. Um acordo entre eles, no
entanto, firmou que nos casos em que fosse para o pagamento de promessas o novo
Terreiro teria que interromper suas “brincadeiras” para a realização do Toré no antigo. Mas
essa sobreposição de um Terreiro ao outro significava também, e era aí que as lideranças
do Brejo sustentavam a oposição ao seu surgimento, a precedência de um Toré com
“instruções” de outra aldeia dentro da área indígena Pankararu. Em função disso as
lideranças do Brejo tentaram obrigar a expulsão do casal vindo de fora. Não conseguiriam,
mas no ano seguinte o casal por conta própria voltaria a estabelecer residência em Palmeira
dos Índios, mantendo no entanto estreitas relações com o Terreiro e trazendo junto com
eles outros Xukuru-kariri, em números progressivamente ampliados. Por isso, as lideranças
do Brejo passaram a insistir para que as lideranças daquela seção não aceitassem mais essas
visitas, esbarrando num princípio fundamental que regia as relações entre aquelas e outras
aldeias do baixo e médio São Francisco: a valorização do circuito de trocas rituais
(Capítulo1/1), que nas palavras do Zé de Bernarda aparece quase como um panindianismo.
Aí eles responderam que tirasse essas 2 pessoas. Que eu tirasse essas 2
pessoas junto com Honório, que tava resolvido o causo, que eles era de
fora. Mas mesmo assim eu respondi, porque eles era de fora mas tinha
Lídio que era primo dela. E o outro era índio e ninguém podia jogar os
pés no próprio índio, que o índio, que ele more em São Paulo, que ele
more no Amazonas, que ele more no Fulni-ô, que ele more no Xucuru,
que ele more em Pesqueira, que ele more no Pankararé, se ele chegou
aqui ele é índio, ele é irmão da gente, tem que receber. Mas eles não se
conformava com a minha palavra, então que eu botei um ziper na boca.
Só disse a eles que eles fizessem o que eles quisesse, agora eu, ficava no
meio. Nem defendia o lado de baixo nem o lado de cima. Inté que eles
acha que eu não tenho essa alta razão, mas eu não desgosto eles.
[...] Entonce, que eles acha que é uma coisa que não é certo, mas mesmo
assim as 2 pessoa que eles não gostava já foram embora. Tão vindo aqui
sempre só pra vim... Se vem, como teve aqui agora uma festa de 8 dias,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 152
eles vieram assistir, junto com os índio de Palmeira dos Índio, que eles
também reclamaram mas eu disse que... [Veio muita gente de lá?] Veio
umas 10 pessoas. Eu digo: mesmo assim é índio, e eles receberam a
visita. Não é nada de desacerto, eles não são branco...
[...] Se, peraí, um índio daqui chegando em Palmeira, ele não acharia
muito bom que eles desse o apoio a ele, abrace, brinque e dance com
eles? Igualmente chegando de Palmeira, chegando de Funiô, chegando
de Pankararé, chegando dos Kiriri de... chegando de Águas Bela,
chegando de Rodela (como já tem vindo aqui), nós vamo espantar ele?
Não, recebemo com o maior prazer que temo a visita de um irmão de
fora. Agora, o branco não. O branco nós não queremo aqui... (Zé de
Bernarda)
Apesar do cacique e pajé manterem posição contrária à continuidade do Terreiro, a
saída daquele casal amenizou o confronto e as lideranças das duas seções puderam chegar a
uma posição menos tensa e a um acordo temporário: os responsáveis pelo novo Tereiro
passariam a ter a obrigação de avisar com antecedência sobre a realização de suas festas e o
problema da identidade dos Praiá de outra “instrução” ficaria em suspenso, para ser
discutido.
4
Todo Encantado dessa aldeia aqui foi se jogado da cachoeira. A CHESF
é uma grande empresa, mas foi feito foi assim.
[E depois que a cachoeira acabou?] Não faz mais, agora só tem os que
tinham. Quando ia um índio se acabá ela estrondava lá: "Báaaauuu...",
chega estrondava. Aí nós ficava: "Ai meu Deus quem é?", era aquele.
Agora não zoa mais, quebrou a nossa força, nosso prestígio. Agora não
encanta mais. Encanta assim, quando um índio agora se acaba, nós já
tem nossa fé que enterra ele naquele ponto, como já temos alí o sr
Miguel Monteiro, o pajé. Nós tem uma grande festinha deles, alí tão pra
vê se nós descobre outro segredo (Mané Bizoro).
Se a cachoeira de Itaparica desapareceu, carregando a fonte de novos Encantados, se
ocorre a multiplicação de Terreiros importantes, ameaçando não só as lealdades
estabelecidas mas também uma identidade ritual Pankararu e se o principal Terreiro da
aldeia, conhecido como símbolo étnico, lhes foi expropriado pela facção oposta, as
lideranças do Brejo iniciaram a busca de um novo segredo, para resolver simultaneamente
aqueles que identificamos como os dois núcleos do atual dilema identitário Pankararu. A
criação de um novo segredo através do trabalho coletivo de um núcleo familiar e ritual é
simultaneamente o trabalho de reencantamento. Encontrar um novo segredo é criar uma
nova identidade, ao mesmo tempo que descobrir uma nova forma de encantamento. Hoje
existe por parte das lideranças do Brejo o movimento na direção de uma restituição da
unidade perdida que é também um reinvestimento mágico do mundo. Vejamos.
Antônio Binga, pai do atual pajé, era sobrinho do último sarapó da aldeia, que foi
também o primeiro pajé (Cf. Quadro 11). Conhecido e respeitado por seu poder de cura,
predição e magia, ele era ”pai” de um grande batalhão de Paiás que agregava à volta do seu
terreiro uma família numerosa e uma série de lealdades construidas por meio do exercício
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 153
do Toré. Era marcado também por alguns signos de distinção aos quais são atribuídos
caráter mágico: nasceu em 20 de outubro e nesta mesma data foi batizado, foi levado “ao
rancho”, casou-se e morreu. Depois de sua morte, seu filho, Miguel Binga, herdou os
trabalhos no zêlo do seu batalhão de 12 Praiás, excepcionalmente grande para a média, e do
seu terreiro, um dos poucos que possuem um Poró, vindo daí toda a autoridade que possui
para ocupar o cargo de pajé. A morte de Antônio Binga, no entanto, não significou o seu
desaparecimento.
Todo dia 20 de outubro sua numerosa e bem situada família promove um grande
Toré na casa em que ele morou e que ainda é mantida no mesmo estado em que ele a
deixou. Reunem-se no dia 19 para um culto familiar, os mais velhos sentam-se à volta de
seu leito e, depois de beberem garapa e fumarem, conseguem conversar com ele e com sua
esposa, também já morta. No dia em que ocorre a festa propriamente dita, o dia 20, sua
família arruma a casa e em especial o seu quarto, preparam sua cama e esticam sobre ela
suas roupas: calça, chapéu, chinelos e maracá. Desde muito cedo grande parte da aldeia
aflui ao seu terreiro e lá basicamente três grupos religiosos aparecem representados: os
“penitentes”, os dançadores de São Gonçalo, que vem de uma cidade próxima na qual os
Binga possuem parentes e que é muito conhecida em toda a região por suas festas de São
Gonçalo e, finalmente, os Praiá, os do seu terreiro e muitos outros convidados.
Caberia um rápido esclarecimento sobre esses três grupos e sua participação na
festa do Antônio Binga. Os Praiá dançam o Toré em roda realizando evoluções em oito,
sem qualquer liderança visívele entre eles. Marcando o seu ritmo, cada um deles balança
um maracá (pequena cabaça redonda à qual se acrescenta um punho de madeira e grãos,
para que tenha o efeito de um chocalho) enquanto a música, chamada toante, é cantada por
“cantador” ou “cantadeira” que permanece a maior parte do tempo sentado na “cabeceira”
da roda. Os toantes são músicas em que muitas vezes o lugar da letra é ocupado pela
conjunção de sons encadeados que lembram aos Pankararu uma suposta língua dos
antepassados. Cada Praiá tem três toantes que são criados, ou “levantados”, junto com o
próprio Praiá e durante um Toré cada um desses toantes é cantado três vezes para cada uma
dos Praiá presentes. Cada três ciclos completos do mesmo toante representa um rodada,
depois da qual os Praiá interrompem rapidamente a dança para convergirem em direção à
cabeceira da roda, onde envolvem o cantador e marcam o intervalo com um grito uníssono.
Depois disso seguem-se outros toantes, três para cada Praiá, depois do que tudo volta a ser
repetido. Nos intervalos maiores entre essas rodas os Praiá param para descançar num lugar
reservado que chamam Poró, interditado a mulheres, crianças e estrangeiros. Existe
portanto um grande número de toantes levantados e a habilidade que distingue um bom
cantador e que se supõe ser um “dom” está justamente em guardar e distinguir as mínimas
variações entre os toantes que corespondem aos diferentes Praiá. São poucos os que sabem
distinguí-los apenas ouvindo-os, raríssimos os que sabem entoá-los, a todos, corretamente.
Como a própria forma de designar a roda de Toré - por “brincadeira” - indica, este é
um ritual religioso do qual não se exclui uma forte carga de divertimento profano. Mas no
caso do Toré do dia 20 de outubro, dedicado a Antônio Binga, existe um investimento
específico de distanciamento desses aspectos lúdicos e profanos, de forma a torná-lo o mais
cerimonioso possível, o mais imóvel, padronizado, na busca de uma espécie de
canonização das sequências que o compõem. A sua família introduziu algumas alterações
significativas no funcionamento do seu terreiro. Agora só pessoas escolhidas dentro da
família podem dançar com seus Praiá, e as prescrições ficaram mais rigorosas, exigindo-se
15 dias de purificação em lugar dos dois ou três dias mais comuns. Ao Poró foi
acrescentado um cruzeiro dos Penitentes, apesar dele nunca ter feito parte deste grupo. O
parâmetro para esta construção parece estar na imobilidade do Toré do Índio Xupunhum, o
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 154
que revela a direção tomada no sentido de substituir uma figura imóvel por outra. Esse
aspecto é reforçado pelas características das performances dos outros dois grupos rituais.
Os penitentes43 formam irmandades bastante numerosas e generalizadas nas
diferentes comunidades rurais e semi-urbanas da região. Existe uma irmandade entre os
posseiros do Bem-querer, Caxeado e Calderão, da mesma forma que existe outra nas
agrovilas e no Brejo dos Padres, onde participam índios de todas as seções, ganhando
grande importância moral e política. Participar destas irmandades indica a permanente
manutenção de predicados morais e religiosos e a sua “saída”, inicialmente restrita aos
homens nas sextas-feiras de quaresma, encontra-se generalizada, havendo lugar também
para um grupo de “beatas” que promovem ladainhas e novenas ao longo de todo o ano. A
procissão dos penitentes, no entanto, continua restrita aos homens. Partem do adro da
Igreja perto da meia-noite e percorrem todos os “cruzeiros” (pequenas cruzes de madeira
localizadas pelas estradas e caminhos que marcam o local de morte de familiares) dentro de
um determinado raio que pode extender-se bastante, o que leva a procissão a prolongar-se
pela madrugada. Ela é composta por dois grupos, um compacto, que sai na frente
carregando uma grande cruz forrada de azul, cantando “benditos” e elevando “credos” e
outro disperso, que segue o primeiro a uma certa distância, os homens com as cabeças
cobertas e os dorsos nús, lanhando-se com longas “disciplinas” que se aplicam na cadência
das orações. A participação na irmandade dos Penitentes em nada exclui a participação nos
Toré, podendo reforçar a posição moral de certos indivíduos.
O terceiro grupo, dos dançadores de São Gonçalo, é descrito por Pereira de Queiroz
(1973) justamente a partir de uma correspondência que encontra com as irmandades de
Penitentes, relacionada à idéia de ritos funerários e de purgação dos pecados, seja dos
vivos, que participam das danças e das procissões, seja dos mortos, que não puderam pagar
suas promessas e deixam esta tarefas aos seus parentes. Neste último caso, a dança de São
Gonçalo aproxima-se do papel desempenhado pelo Toré no pagamento de promessas e de
curas alcançadas; rituais coletivos, muitas vezes patrocinado com recursos da família
extensa, onde se prevê grandes gastos com a consumação ritual. No que diz respeito a sua
performance também existem aproximações formais com o Toré, sendo a dança de São
Gonçalo realizada em rodas que evoluem de forma semelhante, regida por um(a) cantador
(deira), mas que se combina a procissão em que também se porta uma cruz de madeira
forrada de tecido colorido, acompanhada de “salve-rainhas”, “padre-nossos” e “avemarias”, aproximando-se neste caso dos Penitentes.
Esse três grupos rituais, sob a cerimônia patrocinada pela família Binga, mesclam
seus elementos semelhantes e alternam suas seqüências particulares, num ciclo que iniciase às 6:00 e se encerra depois das 18:00 do dia 20 de outubro. Às 6:00 os três grupos e um
grande número de pankararus saem de sua casa em direção à igreja, onde cada um dos
grupos presta sua homenagem. É comum que em meio à dança de São Gonçalo, ao Toré e
às orações dos Penitentes muitas pessoas que não estão diretamente ligadas a estes grupos
recebam seus “guias”, inclusive as “zeladoras” de Praiá, que então realizam curas no local.
Perto do meio-dia, a multidão reunida parte da igreja em direção ao cemitério, onde faz um
círculo à volta da cova de Antônio Binga, cantam, rezam e dançam e, “os que estão mais
preparados”, dizem o ver. Saindo do cemitério todos dirigem-se novamente para o terreiro
43
O fato de não ter sido possível dedicar espaço a este grupo ritual, ao longo deste trabalho não faz justiça à
importância que assume em termos de regulação moral e de criação de novas linhas de afiliação e lealdades
que vem se combinar com as desenhadas pelo Toré. Isso só reforça a interpretação em termos de arranjo, já
que levar em conta esse agrupamento ritual, que não é excludente com relação a outros, poderia significar o
desenho talvez de uma nova geografia ritual, abrindo nossa observação para outras formas e relações de
territorialização Pankararu.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 155
de sua casa e sua família reúne-se mais uma vez ao redor do seu leito para novas orações,
entrando novamente em contato com ele. Depois da sessão familiar uma pessoa da família
fica à porta da casa organizando a entrada de parte do público, que então faz fila para
visitar seu quarto. Neste momento os que lhe eram mais próximos, que passaram os dias
anteriores em preparação para tal, o vêm e falam com ele. Depois disso volta-se a dançar o
Toré e a consumir a grande fartura de carne, garapa e fumo que é distribuida, até o fim da
festa, perto do início da noite. Com relação à carne, é sempre morto um boi inteiro,
complementado com outros animais menores, sempre machos.
Fica claro o investimento familiar na criação de um ritual de tão grandes proporções
que seja capaz de, ao mesmo tempo, criar um contraponto à festa do Índio Mestre Guia do
terreiro da Serrinha e servir de caminho para a descoberta de outro segredo de
encantamento. Antônio Binga tem sido feito então o novo Encantado ao qual se tenta dar
um peso mais familiar, ainda que através dele também construa-se a precedência de um
determinado grupo familiar sobre os outras da aldeia. Esse trabalho inclui também o
agregamento de elementos que não faziam parte da prática ritual de Antônio Binga, mas
que agora se fazem necessários como forma de ampliar os vínculos com os diferentes
grupos religiosos da área. A família Binga que é, ela mesma em grande parte, construída
por esta tecitura de relações privilegiadas, ganhando uma unidade e consistência que não
são encontradas em outras famílias, encontra por esse caminho a resolução simultânea dos
dois dilemas da “queda”: a perda do segredo de encantar e a perda da unidade ritual. Um
processo de construção, enfim, de uma família, de uma aldeia, de um novo segredo de
encantamento, e de um núcleo de legitimidade étnica e de atração de lealdades.
5
Um elemento básico ao qual é necessário voltar para que fique clara a sua
importância está relacionado ao que foi apresentado, por esta razão, como uma primeira
geografia. Na base das questões abordadas ao longo de toda esta dissertação, mas mais
intensamente neste capítulo, está a noção de territorialização, entendida em referência ao
processo de atribuição de uma base teritorial fixa a uma determinada sociedade e à
transformação, com isso, do que era apenas mais um dos diferentes princípios
organizadores da sociedade, embutido ou mesclado a outros, num princípio hegemônico
(OLIVEIRA Fo.,1993).
É esse processo de enquadramento numa moldura territorial, criada de forma
arbitrária com relação à sociedade sobre a qual é aplicada, que constitui um ponto chave
para a apreensão do sentido das mudanças por que passam os Pankararu. O território se
impõe àquela sociedade como elemento fixo sobre o qual é preciso investir grande carga de
“invenção cultural” para restituir-lhe significado cultural, através da composição de
invenções simultâneas: o novo segredo de encantamento, com a criação do Encantado
Antônio Binga; o clã Binga, em plena construção de seu próprio ancestral; um novo
símbolo étnico, que é constituído a partir de um símbolo faccional; uma nova unidade
ritual, que é também a constituição das possibilidades de recuperação da unidade política
segundo um sistema ideal.
Esse sistema realiza um modelo Pankararu de equilíbrio e unidade anterior à
violência colonial, marcada pelas linhas ou pela progressiva mistura. Na atual busca deste
modelo podem ser vistos os diferentes efeitos de territorialização sendo recombinados num
arranjo particular que pretende restituir a coerência às suas sobreposições contraditórias. A
tensão entre o modelo da unidade, associada ao espaço público e à representação do étnico,
e o exercício ritual na sua prática no mundo, que leva à constituição de lealdades
associadas a círculos familiares auto-constituidos de forma ritual, parece ser a pista mais
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 156
forte sobre o princípio ordenador da relação entre identidades e espaços sociais e sua
possibilidade de tradução num arranjo territorial próprio aos Pankararu, demarcado pela
situação histórica definida a partir da década de 1980. A dinâmica entre autoridades rituais,
políticas e familiares e sua permanente busca de compatibilização com a composição
heterogênea do território encontra o seu mito de origem na violência colonial, cujos
deslocamentos teriam retirado nossa imagem dos Pankararu da imobilidade do modelo,
para o equilíbrio do arranjo. As mudanças introduzidas progressivamente pelos “direitos” e
pelos novos “recursos”, principalmente a partir da década de 1980, introduziriam novos
elementos no arranjo e alterariam o equilíbrio. A solução dada pelo Pankararu é o recurso
mais uma vez ao modelo na tentativa de resconstituí-lo através de rearranjos que permitam
sobrepor menos inexatamente suas diferentes geografias. A busca da reconstituição de uma
unidade étnica passa pela pretensão a um território total, congelado sob um determinado
rearranjo, impondo-lhe regras, ou um centro imóvel, na tentativa de eliminar o paradoxo
dos múltiplos pertencimentos excludentes.
Isso não significa voltar à concepção do território como elemento explicativo da
política e da identidade (este ponto exploraremos no capítulo seguinte), em termos de
conquista, de necessidade, de manutenção etc. O teritório deve ser explicado como um
“quase-objeto” (LATOUR,1994) onde intercedem formas materiais e processos de
desmaterialização. No jogo entre materialização e desmaterialização encontramos o espaço
de exercício da política, através do que descrevemos como o exercício ritual. Através dele
é possível estender os fios que ligam os processos de construção étnica. Contra o
monopólio dos recursos, existe a arma da expropriação dos signos étnicos: o domínio dos
cargos de governação, não impede que a principal forma de criação e manutenção das
lealdades, o sistema ritual, se fragmente dando origem a novos círculos de adesão que
precisam ser energicamente combatidos ou contrapostos, com a criação de um ritual tão
monumental que os deixe na sombra. Para isso, são acionadas as relações de parentesco
que, no entanto, precisam ser constantemente produzidas, tanto no exercício ritual quanto
na distribuição de recursos.
Da mesma forma, seria errôneo pensar a questão da História para os Pankararu em
termos de imposição de mudanças que teriam levado à destruição e reconstituição de uma
determinada forma cultural, já que nela a criação, na sua forma de descoberta de segredo
tem um lugar central, dando permanente dinâmica, e portanto historicidade, à sua
cosmologia e formas rituais. As sementes de novos Encantados, o levantar o Praiá, a
descoberta do segredo e a multiplicação dos Terreiros formam um sistema de metáforas
criativas, abertas, cuja maior característica é a de permitir aos Pankararu reinvestirem
permanentemente o mundo de um caráter mágico, onde o cultural não se opõe ao histórico,
o mítico não se opõe ao ritual, a ordem natural não exclui a criação humana e onde o
humano é a base do sobre-humano. Aqui, o reencantamento não é uma retomada, uma
restauração, uma revivescência, é o próprio modus operandi.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 157
Capítulo 4 - Uma aldeia aberta
O exterior e o interior formam uma dialética da dissecação, e a
geometria evidente dessa dialética nos cega desde o momento em que a
fizemos aparecer nos domínios metafóricos. Ela tem a nitidez decisiva do
sim e do não , que tudo decide. Fazemos de tal dialética, sem tomar
maiores cuidados, uma base para as imagens que comandam todos os
pensamentos do positivo e do negativo. Os lógicos traçam círculos que se
produzem ou se excluem e logo todas as suas regras ficam claras. O
filósofo, com o interior e o exterior, pensa o ser e o não-ser. A metafísica
mais profunda enraiza-se numa geometria implícita, numa geometria que
-queiramos ou não- espacializa o pensamento; se o metafísico não
desenhasse será que ele pensaria?
[...] Tornar concreto o interior e vasto o exterior, são, parece, as tarefas
iniciais, os primeiros problemas de uma antropologia da imaginação.
(BACHELARD,1984)
Topologia
Se o segundo capítulo buscou responder questões relativas à implantação do
governo tutelar de formato estatal ("colonial") sobre uma população indígena organizada
em moldes não-administrativos ("sem Estado") e o terceiro capítulo desenvolveu a análise
do arranjo territorial Pankararu de uma forma que veio a destacar uma geografia de
natureza ritual (“valores místicos”), este capítulo se dedicará à descrição do que, nas
formulações de uma antropologia política inaugural, foi apontado como o problema dos
“limites do grupo”. Mas, como aqui parecem mais críticos os limites da antropologia
política, sou levado a reformular o problema em termos de identidade: quais os limites da
identidade Pankararu? Nos deparamos então, novamente, com o dazibao “índio é terra”,
agora sob um outro ângulo, para recomeçar nosso jogo de perguntas e respostas: se índio é
terra, quem está fora da terra já não é índio e quem está dentro... é sempre índio, ou
expropriador das terras e do índio? O território é o limite? Ou é possível fugir desta
dicotomia ontológica entre o ser o do não-ser, que lhe é emprestada?
De fato, não é novidade que muitas vezes identidade e terra indígena podem
simplesmente não ser coincidentes, nem estarem ligadas por relações de dependência,
causa ou efeito. Entre os Pankararu, o uso da idéia de “mistura”, ainda que denote
intercurso sexual entre índios e não-índios e os frutos desse intercurso, pode também, por
extensão, conotar o desrespeito à uma espécie de ordem natural de disposição das pessoas,
em que os que são índios deveriam estar dentro, assim como os que não são, deveriam estar
fora, da área indígena. Assim, as situações de índios fora e de pessoas consideradas não
indígenas dentro da área, seja morando, trabalhando ou participando das festas, também
são pensadas como situações de mistura, que podem sugerir a nostalgia de um insulamento
que nunca existiu:
Aqui tá uma aldeia aberta, entra quem quer que seja. Aqui não tem mais
um decô [decoro] que nem os Fulni-ô. Nos Fulni-ô, chegô lá na cancela:
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 158
"Que é que vocês qué?" Aí você volta. Entra se dissé o que vai vê, o que
vai buscá. Mas aqui?! Aberto pro lado do Bem-Querê, aberto pro lado
de Petrolândia, aberto pra tudo, entra quem qué. [P: O sr. acha que
cercá a área toda podia ser uma solução?] Podia, porque tinha respeito.
E morá porteiro em cada porteira: "Que que você qué fazê lá dentro?".
Mas tem uma estrada de Petrolândia pra Tacaratu, aí fica sem jeito
também né. Podia tê uma área separada... Mas não tem solução mais
não. Aqui só quando..., sei lá, só quando Deus mandá mesmo, ou então
emancipá esse povo e a polícia tomá conta... (João de Páscoa)
Na “aldeia aberta” Pankararu o que normalmente é pensado como o de fora da
categoria índio é tão importante na constituição dos seus mitos de colonização, na
instituição de sua organização política e na criação de mediadores, que alteram essa
organização e sua relação com o poder tutelar, que a própria repartição entre os de fora e os
de dentro fica comprometida. A mistura nos impõe a necessidade de descrever o território
também como um espaço de trocas e negociações identitárias que não é demarcado através
de fronteiras cujos marcos que possam ser recitados com precisão, mas estabelecido através
de um jogo entre distâncias permanentemente repostas, mesuradas, reavaliadas, entre
pessoas e relações, que servem ora para desfazer a idéia de unidade Pankararu, criando
repartições internas ou atenuando dicotomias, ora reestabelecendo essa unidade, ao
aproximar o que está distante.
Essas distâncias definem um território relacional e não geométrico, que pode se
estender ou se contrair de acordo com os contextos, excluindo ou incluindo indivíduos ou
agrupamentos inteiros, de acordo com o estado de um jogo de posições que possui grande
número de variáveis. A mistura funciona como força de atração e repulsão que estabelece
as distancias definidoras de um território que não pode ser objeto de uma grafia, por
complexa que ela seja, mas de uma logia, onde os topos podem ser grupos ou indivíduos,
organizados segundo significados que variam no tempo e no espaço e não exatamente
segundo sistemas ou estruturas.
A intenção deste capítulo é reunir uma série de situações empíricas que possam nos
ajudar na discussão sobre a natureza da relação entre território e identidade. Ao contrário,
ou numa necessária contrapartida do que fiz no capítulo anterior, onde tentei dar o máximo
de concretude a um território que podia quase sempre ser grafado, aqui estaremos de frente
com o que esse território tem de relacional e portanto impossível de ser representado
graficamente. A realidade da mediação entre território e identidade realizada pela abstração
dos “direitos” nos dá acesso a um território imaterial. Aqui o território aparecerá
fundamentalmente como referência, fundamental, mas não como moldura, abrindo-se para
o "vasto exterior" da identidade Pankararu, onde a dicotomia do ser / não ser tem um
caráter mais pendular que geométrico.
Desterritorializações e reterritorializações
O primeiro tema da "aldeia aberta" está na mobilidade Pankararu e na expansão dos
fronteiras identitárias que compõem o território topológico, na multiplicação dos espaços
de validade e transformação da identidade indígena. Para isso identifiquei três territórios
avançados da mistura que hoje caracterizam circuitos regulares da saída dos Pankararu,
não estando mais portanto, apenas no plano das viagens temporárias e/ou eventuais dos
circuitos rituais, das "buscas de direitos" e das "busca de portarias", nem das já plenamente
firmadas como um território outro, como no caso das áreas Geripancó e Kantaruré. São
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 159
elas, a situação das agrovilas criadas na beira do lago de Itaparica depois da construção da
UHE, a situação dos jovens indígenas que vão buscar sua escolarização fora da área e,
finalmente, a situação dos Pankararu de São Paulo, onde estima-se existirem 1500 índios
ocupando uma única favela no bairro do Morumbi. Essa situações vem se combinar de
formas diferentes com o tema das viagens, presente ao longo de toda esta dissertação:
viagens de trocas rituais, de fuga das secas, de busca de direitos, de “enxamamento”, de
busca de emprego, de levantar aldeia, de busca de recursos.
1
A construção da UHE de Itaparica inundou uma área de 834 km2, atingindo direta
ou indiretamente 40.000 pessoas ao fazer desaparecer as cidades de Petrolândia, Itacuruba
(PE), Rodelas, povoado de Barra do Tarraxil em Chorocó, Glória (BA) e outros 23 núcleos
rurais, áreas agriculturáveis e ilhas (Pólo Sindical/CEDI - Políticas Públicas e
Desenvolvimento Regional, 1993). Com relação ao Município de Petrolândia a área
inundada foi de 14.310 ha (8,9% do município) e a população atingida foi de 6.400 pessoas
(46% da população rural e 27% da população total do município), das quais 1.342 famílias
foram reassentadas entre a cidade de Nova Petrolândia (226) e as 16 agrovilas (1.116) de
um projeto de irrigação que ainda espera conclusão. O projeto das agrovilas abrange uma
área de 5.712ha, divididos em 1723 lotes que variam de 1,5 a 6 ha e divide-se em dois subprojetos: Barreiras, com 2.682 ha dividos em 809 lotes, distribuídos por 10 agrovilas e Icó
Mandantes, com área de 3.030 ha dividida em 914 lotes, distribuídos em 16 agrovilas
(idem).
Esta nova realidade tem se mostrado um dos maiores desafios do sindicalismo
local, que concentra aí grande parte de seu esforço de articulação, na criação do seu próprio
pessoal técnico especializado, na negociação de prazos para o cronograma de implantação
dos projetos etc. Assim, além de significar a reterritorialização de populações camponesas
e ribeirinhas, onde estas tiveram suas unidades de exercício ritual, dominação social e
organização política fragmentadas, as agrovilas representam também uma transformação
nas técnicas agrícolas, na estratégia sindical e na relação dos próprios trabalhadores rurais
com o sindicato, a cada dia com maiores responsabilidades pela administração dos
projetos.
Nas agrovilas foram assentados aqueles que possuíam propriedades ou que
simplesmente trabalhavam em terras atingidas pelo lago, seja como diaristas, meeiros,
rendeiros etc. Isso fez com que muitos dos Pankararu que trabalhavam na beira do rio
durante os períodos em que a área indígena mais sofria com a seca (Cf. a discussão sobre a
categoria de "assistidos" do Capítulo 2/1), recebessem também seus lotes nas agrovilas. O
mais comum é que essas famílias tenham origem na seção norte, onde as condições de
plantio se desagregam com mais facilidade e mais rapidamente, levando-as a assumirem,
como meeiros ou rendeiros, lotes "de beira", de 1 a 3 tarefas de diferentes proprietários,
principalmente nas épocas de seca, sem no entanto abandonar as terras da família dentro da
área indígena44.
Para além das alterações que isso traz com relação ao contexto político local, onde
as antigas formas de subordinação e alianças são bruscamente substituídas por outras ainda
em plena estruturação, existe a produção de uma série de novas relações de autoridade
internas às próprias agrovilas, às quais os Pankararu aí instalados também passam a estar
44
O desenvolvimento da agricultura irrigada levou à formação de aglomerados de trabalhadores temporários
em certos trechos irrigados, formando verdadeiros "bairros rurais", como na periferia de Barreiros, onde em
1985 foram cadastradas pela CHESF para o plano de desocupação, 288 famílias (PANDOLF,1986).
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 160
subordinados. As agrovilas organizam-se em pequenos arruados, onde as casas se
distribuem em duas fileiras de frente uma para outra e cujas terras de fundos são dedicadas
à agricultura, estando ainda sendo instalados os sistemas de irrigação por aspersão cuja
tubulação passa sob a terra, poucos centímetros abaixo da superfície arável. Apesar de
generalizado pela maior parte das agrovilas, o atraso na instalação desse sistema é bastante
desigual. Naquelas em que o sistema já começou a funcionar, como é o caso das agrovilas
1 e 2, já se desenha um novo arranjo entre funções técnicas e de representação, que tem
dado origem a pelo menos, pelo que pude observar diretamente, cinco novos lugares de
autoridade: A) o responsável pela operação das bombas d´água, localizadas na beira do
lago, que alimentam todo o sistema de aspersão da agrovila; B) o fiscal de roças, que
percorre os lotes familiares verificando o funcionamento do sistema, orientando os
agricultores em suas dúvidas e fiscalizando o cumprimento de determinadas obrigações; C)
o representante da agrovila junto ao sindicato; D) o presidente da Associação Comunitária,
que tende a ser cada vez mais comum nas agrovilas, como forma de viabilizar um
planejamento da produção e de sua comercialização e, E) o representante da agrovila na
"pastoral renovada", função menos técnica e oficial, mas não menos freqüente e política,
que tem criado diversas lideranças comunitárias nas agrovilas para discutir no âmbito das
atividades paroquiais questões que vão desde os problemas de convivência, até os de
comercialização, de relação com a CHESF etc., criando uma sobreposição que leva a uma
certa disputa por competência com a atuação sindical. Essas funções não são
necessariamente remuneradas nos casos "C" e "D" e nunca no caso "E", cabendo-lhes
também, dependendo de características pessoais, funções lúdicas. Nas agrovilas que visitei
foi possível identificar índios exercendo alguns desses cargos.
Apesar de não ter produzido um levantamento sistemático da distribuição dos
Pankararu pelas agrovilas, foi possível identificar uma concentração diferencial nas
agrovilas 1 e 2, onde se distribuem cerca de dez famílias plenamente reconhecidas como
indígenas, contra as agrovilas 4, 7, 8 e 11, onde se distribuem outras dez. Esses no entanto
são os números de posses legais de índios. Deve-se levar em conta também que um número
crescente de outros núcleos familiares vem se agregando a estes, ao longo de um período
de tempo longo demais para respeitar as regras impostas pela CHESF, que pretendem
regular o crescimento das agrovilas a partir de um plano a expansão. Esses novos núcleos
tem origem no casamento dos filho, ou entre os Pankararu, pela absorção de parentes com
origem na área indígena, que usam os lotes dos parentes já instalados nas agrovilas como
forma de expansão ou reposição do patrimônio familiar ou das terras em condições de
plantio durante os períodos de seca, já esgotados dentro da área indígena.
Um levantamento sistemático dessas famílias teria que lidar também com a questão
da definição de índio dentro das agrovilas, em geral referida a dois usos: um mais largo e
generalizado, identifica como índios todos aqueles que tem parentesco dentro da área; o
outro, bem mais restrito, divide essa categoria entre aqueles quem só tem parentesco e
aqueles que, além do parentesco, mantém uma relação periódica com a área indígena,
trabalhando nas terras da sua família (ou nas suas próprias terras), ou participando dos
chamados que lhe são eventualmente feitos para as festas ou para trabalhos coletivos. Os
números apresentados acima correspondem a esta definição mais estreita, usada por
aqueles mais engajados na política Pankararu.
Mas, mesmo a participação nestas festas e trabalhos da área indígena podem não se
dar de forma direta. É comum que mulheres de dentro da aldeia percorram as agrovilas
convidando para “brincadeiras” de Toré ou para “festas de menino do rancho” e recolhendo
donativos para a sua organização. Nos casos de trabalhos coletivos, quando se sentem
impossibilitados de participar diretamente, os índios da agrovila pagam dias de trabalhos
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 161
para seus parentes, para que estes dobrarem o tempo dedicado aos trabalhos. Nessa
dinâmica, foi criada uma liderança de ligação entre a área e as agrovilas, que tornou-se
responsável pelos chamados da aldeia aos seus filhos do lado de fora. Essa liderança
encontra-se diretamente relacionada por parentesco ao João Tomás e ao Antônio Moreno,
numa ponte com as lideranças tanto da seção norte quanto de seção centro. Por seu
intermédio os índios das agrovilas participaram, por exemplo, das duas grandes picadas
coletivas feitas sobre terrenos de posseiros que estavam sendo realizadas durante minhas
viagens à campo, uma independente da outra, nas fronteiras norte e leste.
Como a maioria dos assentados nessas agrovilas, esse senhor nunca trabalhou fora
da região, tendo substituído a alternativa de viagem para São Paulo, pela de trabalho na
antiga beira de rio. Mas, como forma de destacar alguns dos outros elementos que o
aproximam do perfil de uma liderança indígena, diz: A) ter viajado para Brasília já uma
vez, para cuidar das questões referentes à homologação da área de 8100ha e de ter sido
chamado outras vezes; B) ter a “semente” de um “mestre” que ainda não “levantou” e que
ainda pretende levantar; C) ter construído uma capela dedicada à São Pedro na sua
agrovila, onde realiza as festas do dia do Santo Padroeiro da aldeia e, D) sempre registrar
todos os seus documentos no posto indígena, assim como sempre recorrer a ele quando
precisa de ajuda legal. Essa liderança não exerce nenhum daqueles cargos que descrevi
acima, mas cabe a ele o intercâmbio entre as diferentes famílias indígenas espalhadas pelas
agrovilas, mantendo entre si e entre elas e a área um vínculo permanente e que lhes
permitem se pensar com alguma unidade.
Se mesmo algumas das famílias indígenas que moram nas agrovilas e mantém um
contato mais efetivo com a aldeia parecem manter uma relação muito indireta com a vida
tribal, utilizando parte dos salários da CHESF como recurso para a manutenção de um laço
aparentemente formal e, sob certo aspecto, folclórico, com as atividades para as quais são
chamadas, esses laços, por tênues que sejam, servem por sua vez, para que elas preservem
algum vínculo com familiares e com a "tradição. É preciso reconhecer neste "folclórico"
um caráter de distanciamento quase sempre reversível, a manutenção de um canal aberto ao
retorno, através de laços políticos ou mágicos.
3
A segunda situação de saída dos Pankararu da área indígena se dá através do
processo de escolarização dos seus jovens. Depois de completarem a primeira fase do
primeiro grau nas escolas existentes dentro da área indígena, os jovens Pankararu têm que
sair para completar os estudos nas cidades próximas. Levando em conta apenas os números
referentes às escolas da FUNAI (quatro das nove existentes na área indígena. Cf. Quadro
11), para as quais obtive informações no posto indígena, uma média anual de 40 alunos
completam a quarta série do primeiro grau, dos quais três quintos tem origem nas escolas
do Brejo e os outros dois quintos nas escolas da Serrinha e do Espinheiro. Esses alunos
dirigem-se então, principalmente, para as duas escolas de Tacaratu e para uma escola de
Itaparica, restando ainda um número muito reduzido que se dirige para Paulo Afonso,
quando possuem parentes na cidade.
Aquelas que freqüentam as escolas de Tacaratu não dispõem de transporte e são
obrigadas a subir à pé a serra, percorrendo trilhas muito íngremes da encosta numa
caminhada de cerca de hora e meia. Já as que estudam em Itaparica têm por transporte um
caminhão de carga aberto, posto a disposição pela prefeitura. Nele alguns poucos tem por
assento estreitas tábuas de madeira dispostas ao comprido em ambos os lados da carroceria,
enquanto a grande maioria viaja de pé, aglomerando-se sem qualquer outro apoio além dos
seus próprios colegas de viagem. A viagem dura em média 40 minutos e o caminhão sai do
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 162
Brejo com os jovens indígenas atravessa toda a região de litígio, onde serve de transporte
também aos filhos dos posseiros que estudam na mesma escola de Itaparica. Existe uma
discreta tendência de separação entre índios e posseiros em bancos de lados opostos da
carroceria, mas ela não resiste às condições da viagem, que torna qualquer tentativa de
distinção precária. Nada disso, no entanto, faz que a viagem pareça especialmente
desagradável ou tensa para aqueles jovens. Pelo contrário, a situação serve como momento
de grande divertimento para a maioria deles e para um certo investimento erótico,
favorecido pela grande quantidade de meninos e meninas em permanente e jocoso contato
físico, que o balanço do caminhão sobre a estrada de areia vem intensificar. Esta situação
da viagem e o fato de partilharem das mesmas classes na escola favorece a indistinção
entre índios e filhos de posseiros, permitindo também que, fora dali, venham participar das
mesmas festas e surjam namoros.
Depois de completado o segundo grau há um grande afunilamento no número de
jovens que seguem os estudos. Todo ano a FUNAI distribui um número restrito de fichas
de inscrição para o vestibular que ela subvencionará. Cerca de 15 fichas que são
distribuídas segundo critérios muito pouco claros e normalmente apontados como mais
uma das formas de favorecimento das relações de parentesco e aliança do chefe de posto
(Cf. Quadro 12). Uma faculdade que recebe com certa regularidade esses jovens é a de
Arco Verde, onde no ano de 1994 existiam quatro índias cursando o magistério. Como
trata-se de uma cidade próxima e de um curso bastante flexível, essas jovens passam
apenas dois ou três dias da semana por lá, em dormitórios pagos, para o que não recebem
ajuda da FUNAI. Até pouco tempo, no entanto, foi bastante comum que os jovens se
dirigissem para as escolas agrícolas federais de São Cristóvão (SE) e Belo Jardim (PE),
para onde a FUNAI concede bolsas de estudo. Mas, mais recentemente o curso tem se
mostrado inútil na busca de emprego e o auxílio da FUNAI, que se compromete em
fornecer material escolar, roupa de cama, colchão, alimentação etc., tem se mostrado
bastante irregular, levando a uma diminuição do número de alunos interessados. No ano de
1994 estavam matriculados nessas escolas apenas quatro alunos. Em alguns poucos casos,
esses jovens conseguem ainda, através de mediações próprias, junto à FUNAI bolsas e
custeamento de cursos de maior status, em especial os de direito. Mas esses casos são raros
e parecem ter dependido de uma conjuntura especialmente favorável.
Fora casos especiais, como o dos jovens da família Binga (novamente cf. Quadro
12), em que a entrada nesses cursos está marcada por um determinado projeto de formação
de novas lideranças com diferentes capacitações (mas, em certa medida, mesmo nesses
casos) o movimento de saída da aldeia para a escolarização, desde o segundo grau nas
cidades próximas, é percebido como um momento de distanciamento com relação à vida
tribal, quando se tem acesso a um tipo de conhecimento que, quando não é hostil às
tradições, coloca sérios problemas para as suas formas de transmissão e para o lugar que as
lideranças antigas lhe atribuem na vida política da comunidade. De fato, é aí que se abrem
as perspectivas de trabalho fora da lavoura e de relações mais estreitas com não-indíos, que
podem levar a casamentos, intensificando a “mistura”. Trata-se de um paradoxo vivido
pelas famílias, que percebem essa saída, por um lado, como um das formas de reproduzir
ou retardar a fragmentação dos seus recursos fundiários, ou mesmo de amplia-los, mas, por
outro, a reconhecem como uma virtual perda da participação desses filhos na vida da
aldeia, que pode levar ao resultado inverso do esperado.
Existe, no entanto, uma certa imagem do seu próprio ciclo de vida que serve como
uma promessa de solução para este paradoxo, segundo a qual a este distanciamento
seguiria-se o casamento com outros jovens da própria área indígena, a conseqüente volta ao
trabalho na roça (mesmo que intercalado com o trabalho fora) acompanhada de um novo
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 163
interesse por parte daqueles jovens, agora pais de família, pelos assuntos da aldeia,
definidos em dois pontos básicos: os rituais e o conflito fundiário.
A recente retomada dos trabalhos de pastoral pelas dioceses locais agrega a esse
jogo de distâncias relacionado ao universo juvenil, a recente participação em "grupos
jovens", que já tem sua versão dentro da aldeia. Neste caso a contradição fica por conta da
ambigüidade que este trabalho de pastoral encontra quando confrontado com a questão da
religiosidade indígena. Apesar da Igreja nunca ter tido uma atuação regular dentro da área
indígena, os Pankararu estão plenamente inseridos no universo religioso cristão através da
participação em grande número de festas e rituais do catolicismo popular, como as festas
de Padre Cícero e do Bom Jesus da Lapa, para onde viajam em turmas, ou em outras mais
próximas nas quais assumem o papel de atores principais, como no culto dos Penitentes,
nas festas de São Gonçalo e na festa de Nossa Senhora da Saúde, padroeira de Tacaratu,
onde aos Pankararu cabe um dia especial, que abre a própria festa.
Assim, a entrada mais sistemática da igreja na aldeia recentemente não encontra a
princípio nenhum tipo de obstáculo por parte das famílias, mas como este trabalho, que os
diocesanos denominam de “pastoral renovada”, tem por objeto privilegiado a criação de
pequenas lideranças jovens, há uma antecipação na forma dos jovens virem a se interessar
pelos assuntos da política tribal, com relação ao ciclo já esperado, descrito acima. O
surgimento de um novo discurso político, que se antecipa à inserção do jovem como pai de
família plenamente inserido no universo dos homens adultos, provoca um deslocamento
com relação à orientação pelo grupo familiar mais amplo, o que é agravado pelo íntimo
contato que nesta fase escolar os jovens Pankararu mantém com os outros “grupos jovens”
de que fazem parte os filhos dos posseiros. Essas mudanças até o momento não
despertaram mais que pequenos incômodos pontuais, encobertas que estão pelas funções
lúdicas a que a atuação desses grupos tem servido, mas a disposição de parte dessas jovens
lideranças em constituírem uma associação comunitária independente como forma de
encaminhar suas próprias reivindicações à FUNAI ou às prefeituras locais, como forma de
suprir necessidades desconsideradas pelas lideranças mais velhas, aponta para uma
alteração nesta relação entre os dois universos etários.
4
Finalmente chegamos à terceira situação de desterritorialização. Em vinte e seis de
julho de 1994, o jornal Notícias Populares de São Paulo abria a primeira página do seu
caderno "Plantão NP" com a seguinte manchete, em grande destaque: ÍNDIO ELIMINADO
NA FAVELA, e, em corpo menor, FUGIU DA TRIBO PARA MORRER EM SÃO PAULO.
Ao lado da manchete, era estampada a foto do corpo de Jair Selestino (sic) de Barros, 20
anos, estendido numa calçada, sem camisa, sobre uma poça de sangue. Em segundo plano,
distinguiam-se na escuridão duas viaturas da polícia local. A matéria que acompanhava a
manchete e a foto, dava continuidade à linguagem lacônica e dramatizante informando:
... Jair estava chegando em sua casa, na favela Real Parque (zona sul),
às 8h da noite de ontem, quando foi trucidado. / Segundo Fernando
Monteiro do Santos, 25, primo de Jair, ele iria começar a trabalhar
ontem como ajudante de pedreiro. / Fernando explicou que os grandes
fazendeiros estão invadindo as terras dos Pankararu. "Ficamos sem
terra pra plantar e caçar", contou Fernando. / Aqui, cerca de 1500
pankararus, segundo Fernando, se concentram nas favelas Real Parque
e Paraisópolis. "Ficamos próximos para poder ajudar um ao outro". /
Apesar de estarem na cidade grande, eles realizam reuniões onde
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 164
celebram seus rituais e conversam em sua língua nativa, o Iatê. / O
assassinato de Jair abalou os índios. "Não estamos tendo sossego em
lugar nenhum de uma terra que era nossa muito antes dos portugueses
chegarem", disse o índio Geraldo Francelino dos Santos.
(PER45.:1994/07/26)
Logo a seguir a reportagem apresenta as declarações de um funcionário da FUNAI
que, inquirido sobre o assunto, deu ao caso o tratamento de um caso de polícia e de
fatalidade moralizante, ao afirmar que, provavelmente, o índio assassinado teria sido
expulso da aldeia, baseado numa suposta tradição do grupo de "mandar embora quem
apronta confusão na tribo".
Cerca de duas semanas depois, o Jornal Folha de São Paulo dedicava uma página
inteira do seu caderno "Cotidiano" para comentar a inusitada existência de uma tribo
indígena residindo em pleno bairro do Morumbi. A manchete consistia da seguinte frase
entre aspas, "No mato a gente tem mais liberdade" e, em letras menores, a sub-manchete:
Indígenas dizem que gostariam de voltar para sua terra, mas que ficam na cidade devido
às chances de trabalho. Dividida em três blocos, a matéria contava como os Pankararu
tinham criado uma "rede de solidariedade" nas favelas de São Paulo, inclusive com a
formalização de uma entidade, a SOS ÍNDIO FAVELADO, que serviria para dar ajuda
àqueles que chegam de sua área indígena procurando trabalho e lugar para ficar em São
Paulo. Além de informar que o pajé da favela, o já citado Fernando Monteiro dos Santos,
reunia seus parentes para rituais todas as semanas, a matéria se apressava em fazer algumas
comparações, como entre as crenças dos Pankararu e o candomblé, acrescentando
Quando procuram emprego, os pancararus não contam que são
indígenas para evitar discriminação. E a identidade cultural passa
desapercebida. Os pancararus que vivem em São Paulo são mestiços com peles branca ou preta. (PER.:1994/08/07)
Nos blocos seguintes a reportagem traz como exemplos, alguns depoimentos de
indígenas sobre as razões de terem ido para São Paulo e suas expectativas futuras, para
concluir que todos prefeririam estar em sua a área indígena natal, não fosse o desemprego e
a falta de terras. Em seguida, é feito um rápido resumo da situação que os teria retirado da
sua área, localizada entre os municípios de Tacaratu e Petrolândia, sertão de Pernambuco:
Os pancararus são, oficialmente, donos de uma reserva em Pernambuco
com 8100ha. Mas cerca de dois terços de suas terras estão ocupadas por
400 famílias de trabalhadores rurais. / Os invasores da terra têm apoio
da Central Única dos Trabalhadores (CUT-PE). / "Há mais de 200 anos
as famílias moram lá", diz Januário Moreira da Silva Neto, presidente
do sindicato dos trabalhadores rurais de Petrolândia, filiado à CUT. / ...
A violência das favelas paulistas já matou mais pancararus do que o
conflito de terra. Cinco já morreram na cidade, segundo Fernando
Monteiro dos Santos... (idem)
Mais adiante,
45
As citações retiradas de matérias de jornais aparecerão sucedidas do código "PER:" seguido da data de
publicação. Sua referência completa pode ser recuperada ao final desta dissertação, na lista das Notícias de
Periódicos consultadas.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 165
cerca de 1500 pancararus moram na cidade. Em 90, diz Santos, eram
cerca de 150. / A FUNAI (...) considera esses números exagerados, mas
reconhece que uma comunidade de pancararus se instalou em São
Paulo. / Segundo a FUNAI, os pancararus são os primeiros indígenas a
migrarem em massa para São Paulo. (idem)
Uma semana depois, o assunto também ocuparia uma página inteira do jornal
Diário de Pernambuco, sob o título Índios voltam à tribo com medo de morrer e, em letras
menores, Pankararus que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência
urbana. A matéria falava das dificuldades da área indígena envolvida no conflito, mas
insistia em que os Pankararus estariam voltando em levas e acrescentava
... O trucidamento do índio Jair Celestino de Barros, 20 anos, no último
dia 25 de julho, saiu no "Aqui Agora" do SBT e apavarou os 5800
indígenas que vivem da cultura de subsistência, em terras de conflitos
com posseiros, margeando a barragem de Itaparica. / Segundo
levantamento feito pela Associação Indígena do Índio Pankararu, mais
de 10 índios já morreram nos últimos 40 dias na capital paulista.
(PER.:1994/08/15)
A intensificação do fluxo de deslocamentos de trabalhadores do campo, em especial
do Nordeste, para as grande cidades do Sudeste a partir da década de 1940, atingiu também
os Pankararu. A maioria dos homens entre 50 e 70 anos, mas também muitas mulheres,
tiveram experiência de trabalhado em São Paulo. Esse trabalho se deu na maioria dos casos
para os homens, nas equipes de desmatamento da Cia de Luz do Estado. Alguns "gatos”,
como são chamados os agenciadores de mão-de-obra, iam buscá-los na própria aldeia, para
entregá-los em lotes diretamente ao “empreiteiros” de obras civis e outras, criando um
fluxo constante de Pankararus nas décadas de 1950 e 1960 para aquela cidade. Em pouco
tempo São Paulo tornaria-se uma referência para todo o grupo, que tem lá filhos e irmãos.
As conclusões da análise de Garcia Jr. (1989) sobre os deslocamentos de
nordestinos para o "Sul" e sobre o papel que desempenham não no abandono das suas
formas de organização social anteriores, mas na sua manutenção, são muito esclarecedoras
da relação especial que se estabeleceu entre o território Pankararu de Pernambuco e a
cidade de São Paulo, em especial, a favela Real Parque, no bairro do Morumbi, onde se
desenha uma espécie de reterritorialização Pankararu. A partir da década de 1940 foi
estabelecido um fluxo de homens que saíam da área indígena temporariamente, para
trabalhar curtos períodos, sem se integrarem permanentemente à cidade, como forma de
reequilibrarem o orçamento doméstico em ano de seca ou em situações emergências,
voltando sempre que as necessidades imediatas já tivessem sido cobertas, ou quando se
anunciasse um bom inverno.
Com o tempo essa tornou-se uma saída também para as famílias numerosas com
dificuldade de repartir suas terras entre os herdeiros, levando a que essas viagens se
tornassem quase uma fase no ciclo de vida dos jovens indígenas que lá iam buscar recursos
para casar, para comprar novos pedaços de posse dentro da área indígena ou recursos para
instituírem negócio dentro ou fora da área. É possível que um homem engajado nessas
viagens, aos 50 anos, quando já começa a abandona-las, tenha repartido sua juventude entre
São Paulo e a área indígena, passando um total de até 15 anos fora, distribuídos em
períodos de estadia que vão de seis meses a dois anos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 166
Em alguns casos mesmo é possível que os depoimentos invertam o sentido do
movimento e o que passa a figurar como "viagem" é a volta para a aldeia durante os
invernos, em anos intercalados para plantar com a família. Isso é possível porque na
maioria dos casos os empregos que arranjam em São Paulo são temporários, como peões da
construção civil, ou como artesãos autônomos em oficinas mecânicas e de carpintaria, ou
mesmo em empregos instáveis como os de empregadas domésticas, serventes etc. Mas a
partir da segunda geração de Pankararus trabalhadores em São Paulo, que coincidiu
aproximadamente com a idade adulta das primeiras gerações de crianças alfabetizadas pelo
posto indígena, as mulheres intensificam sua viagens e aparentemente passaram a servir de
base para permanências mais estáveis. A cada núcleo familiar instalado lá, tornava-se mais
fácil e provável que novos jovens percorressem o mesmo caminho, fazendo com que essas
viagens assumiram um caráter sistemático e familiar.
O fato de construírem uma base espacial relativamente homogênea, logrando
reproduzir uma organização política que reproduz nos seus traços mais gerais aquela da
aldeia e assumindo um caráter de grupo formalizado que não é mais um simples agregado
de famílias desterritorializadas, diminui os custos materiais e afetivos da transferência, de
que nos fala Garcia Jr (1989), num efetivo processo de reterritorialização.
Depois das notícias sobre o assassinato do jovem Pankararu, a comunidade
localizada na favela ganha grande visibilidade, emancipando-se do discurso das lideranças
do Brejo, onde sempre apareciam como mais um dos argumentos justificadores da
necessidade de mais terras. Destaca-se então um personagem que apresenta o primeiro
pedido de providências com sugestões concretas à FUNAI, sobre a situação do grupo do
Morumbi: Frederico M. B., Pankararu de meia idade, residente em São Paulo, pedreiro de
profissão e dono de uma micro-empresa de reparos e pinturas, dirige-se à FUNAI e, se
dizendo que sensibilizado pelas péssimas condições em que vivem os índios na favela e
tentando corrigir uma situação pela qual também já sofreu, denuncia a situação de
calamidade, de preconceito e violência em que seus parentes vivem e exige que o órgão
providencie "carteirinhas de índio", para que eles possam provar sua identidade e, com
isso, terem acesso aos seus "direitos". Além disso, Frederico declarava estar doando 24
alqueires (aproximadamente 58ha ou 580 mil m2) de um terreno de sua propriedade na
favela, para que o grupo pudesse fundar ali sua própria aldeia indígena. Como iniciativas
independentes de qualquer providência da FUNAI, Frederico também comunicava que o
grupo estava formando a associação SOS Comunidade Pankararu de São Paulo, para tentar
conseguir, junto à empresas, doações em animais para criação e máquinas de costura.
A idéia não foi bem recebida nem pelas lideranças do grupo em Pernambuco, nem
pela FUNAI que, depois de uma reunião conjunta nos primeiros dias de 1995, decidiram
não aceitar a proposta de uma nova área e restringir o reconhecimento apenas à declaração
oficial de que, quando fosse o caso, determinados indivíduos estariam “registrados no
posto indígena” da área de origem. Além disso, ficou acertado que um funcionário do
órgão e uma liderança da aldeia iriam até Brasília para confirmar quem é e quem não é
índio. Só então, seriam providenciados os registros de nascimentos.
O conflito que emerge entre as posições das lideranças de São Paulo e as de
Pernambuco parece passar pela definição do estatuto das viagens que levaram aquela
população até lá: a sua compatibilidade e mesmo funcionalidade para a posição das
lideranças do Brejo, engajadas na busca de recursos fundiários e de projetos de
desenvolvimento, está em caracterizar aquela saída de pankararus como uma diáspora,
onde, em termos ideais, todos estariam dispostos a voltar, justificando, assim, as demandas
por recursos. No entanto, a nova posição dos Pankararu de São Paulo, ou de parte deles,
vem no sentido de transformar seu deslocamento em mais um enxame, dando continuidade
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 167
ao movimento de fragmentação e expansão da identidade Pankararu, através de mais uma
reterritorialização que se quer definitiva.
Na abordagem da imprensa a identidade indígena aparece ameaçada de diluição
entre outras identidades alternativas e concorrentes, como a de nordestino e de negro.
Ligado a isso, existe uma rede de agentes e agências de mediação que já se deixam
perceber em disputa pelo lugar de representantes, de porta-vozes legítimos, desse grupo
indígena particular, rede que aliás distingue-se da que opera através das lideranças
tradicionais da aldeia em Pernambuco. De outro lado, há a discussão sobre o que é ser
índio e quais os requisitos necessários para ser reconhecido como tal. Existe também a
questão da territorialização das identidades e sua tendência à definir fronteiras precisas,
num território jurídico-administrativo. Uma situação que constitui uma espécie de "exagero
sociológico" em estado natural dos elementos que estão no centro deste trabalho, mas que
aqui só é possível apontar em seus traços mais gerais.
5
Trabalhar com a heterogeneidade das relações sociais não é, assim, uma
questão descritiva, uma mania de antropólogo com o rigor do empírico,
mas a condição de possibilidade de constituir um campo de questões a
serem examinadas, uma problemática. (GARCIA JR,1989)
Esses discursos e situações que vêm sendo descritos, tomados isolada e
superficialmente, podem apenas servir de exemplos do que indistinta e genericamente tem
sido chamado de "manipulação da identidade". Minha intenção no entanto, não é estampar
sobre elas um rótulo que resolve apenas um problema de classificação desses sujeitos e
dessas situações, encontrando um lugar para aqueles que não estão, ou que estão em muitos
lugares simultaneamente. Afirmar a "manipulação da identidade", se não temos como
ponto de partida uma posição substantivista, é uma simples tautologia que deixa a
descoberto, porém, questões fundamentais do ponto de vista antropológico: quais, afinal, as
condições sociais de possibilidade dessa "manipulação"? Quem são esses sujeitos de difícil
classificação? Como e quando o seu hibridismo identitário se manifesta? Em que momento
ele tem que se resolver, por que meios, através de que critérios? Como ele é representado
pelo sujeito e pela comunidade?...
Enfim, a afirmação sobre a pragmaticidade de certas situações individuais e de
grupo, algumas vezes feita como veredicto e explicação sobre a natureza dos processos
identitários, na verdade é apenas o ponto de partida para a investigação de situações
concretas, onde seja possível revelar o funcionamento desse senso prático que orienta os
jogos de identidade.
Nos dedicamos agora ao detalhamento de três situações particulares de mistura
onde estão em jogo certos usos da identidade indígena, para tentarmos através delas,
alguma forma de inteligibilidade sobre a manipulação que ultrapasse a crença em sujeitos
racionais em pleno exercício do seu cálculo estratégico. Trata-se, portanto, de um
investimento sobre o que poderíamos conceber como análises de situações individuais ou
situações identitárias, isto é, a combinação de duas perspectivas um tanto distantes que
esperamos poder reconciliar: a aplicação da perspectiva de "situações sociais" de
Gluckman sobre narrativas de percursos individuais46, com ênfase sobre a experiência e
significação social.
46
Neste caso nos inspiramos em perspecitivas denominadas como "micro-história" e histórias de vida, ainda
que também adequando suas pretensões e pressupostos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 168
Antropologia das políticas de identidade
1
Num texto de 1984, Maria R. de Carvalho se propunha “apreender a identidade dos
povos indígenas do Nordeste fundamentalmente da perspectiva do território, fator
considerado indispensável à sua integridade física e socio-cultural”. Apesar de não
partilharmos dos seus pressupostos, segundo os quais o território é um meio da integridade
sócio-cultural47, neste texto há ao menos uma sugestão de análise que consideramos
extremamente feliz quando aplicada à situação Pankararu: um dos caminhos que levam do
território à identidade passa pelos “direitos”, pensados como inerentes à situação de índios.
Isso nos levaria à uma dicotomia feita não em termos propriamente étnicos, mas de
indianidade. O corte não está entre Pankararu e brasileiro, negro, Xucuru ou outros rótulos
que podem ser normalmente tomados como étnicos, mas no corte entre índios e não-índios,
que é um corte fundamentalmente jurídico. A referência ao território é a referência a um
determinado espaço donde emana legitimidade. Pertencer ao território indígena significa
partilhar dos diretos que fazem referência a ele. Não se trata portanto, da mesma referência
que os Matupit de Epstein ou os Nuer de Evans-Pritchard fazem às suas aldeias ou terras,
porque no caso dos Pankararu, essa relação está mediada e irremediavelmente alterada pela
existência dos “direitos” criados com o advento do indigenismo. Assim também, quando
um Pankararu, como o Pataxó usado no exemplo da autora, dá a dimensão do seu
conhecimento do território citando detalhadamente seus limites em termos de pontos, retas,
léguas ao sul, ao norte, leste e oeste a partir da porta da igreja etc., o que está sendo
caracterizado não é apenas ou principalmente o seu “domínio do lugar” em referência ao
“mundo dos antigos”, mas também e fundamentalmente, o conhecimento de limites legaisadministrativos estabelecidos pelos “direitos”, desconhecidos do “mundo dos antigos”. É
preciso, portanto, buscar uma nova leitura da relação entre identidade e território que não
se prenda à naturalização dessas categorias, mas justamente invista sobre o que tenho
chamado de jogos de distâncias desses sujeitos com relação a elas.
Bourdieu (1989) aponta para uma forma de responder nossas perguntas sobre a
natureza desses jogos de distância ao afirmar que as classes sociais são criadas pela adesão
a uma forma de classificação lógica, ligadas a uma visão de mundo que conectam os
indivíduos a grupos na medida em que aqueles podem descobrir propriedades comuns, para
além da diversidade de situações particulares que os isolam e dividem. Uma identidade
social seria, assim, construída sobre traços ou experiências comuns que depois de
parecerem apenas comparáveis durante muito tempo, descobrem um princípio de
pertinência próprio a lhes servir de vínculo real. A ênfase neste caso recai, portanto, na
47
Segundo a autora, uma das condições do território indígena exercer suas funções de meio da integridade
socio-cultural é a sua natureza jurídica de propriedade estatal sob a posse de “povos que o partilham
comunalmente”. Isso tornaria a propriedade privada objetivamente inviável e assim seria assegurada a
inalienabilidade dos territórios e o respeito às culturas das comunidades indígenas. Segundo este raciocínio, a
função fundamental do território indígena passa pelo impedimento que ele representaria ao processo de
transformação da terra indígena em mercadoria. Esse não será um ponto abordado nesta dissertação, mas a
situação Pankararu coloca um problema básico para essa série de encadeamentos lógicos. Nela o
impedimento da propriedade privada não é impedimento para a fragmentação das posses nem para a
transformação da terra em mercadoria, já que se não há propriedade privada, há um intenso mercado de
posses entre os indígenas, assegurado, legitimado e regulado pelo posto indígena, que representa o próprio
Estado e que não só reconhece as transações como as documenta. Como qualquer outro mercado, este
também produz desníveis sociais e econômicos, acúmulos nas mãos de alguns e um número crescente de
“índios sem terra” dentro da área indígena.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 169
capacidade dos sujeitos políticos estabelecerem correspondências adequadas entre
discursos e princípios de classificação, entre as posições dos agentes no espaço social e a
estrutura deste mesmo espaço, por um lado a forma das distribuições e por outro a natureza
das divisões segundo as quais se organizam realmente. Desse ponto de vista, as classes
sociais e a luta de classes, por exemplo, estariam longe de serem puro reflexo de uma
realidade objetiva, realização "necessária", "determinada" por um recorte em "última
instância", mas pelo contrário, seriam o produto de uma disputa entre formas possíveis de
classificar o mundo social. Um produto simbólico, ainda que sustentado em recortes
objetivos. A relação entre identidade indígena e território encontra forte correspondência
com esta relação descrita por Bourdieu.
Mas, para avançar nesta analogia, é necessário recuperar o uso feito por Goffman
(1980) da noção de "categoria". Para ele, uma categoria é qualquer termo que impute
identidade a um “agregado” ou “conjunto de membros” que podem ser agrupados por
designações como "nós", "a gente", "da parte de" "companheiros" ou outras, de uma forma
que os que estão fora possam reconhecer os que estão dentro da categoria como um mesmo
grupo, ainda que o conjunto total desses indivíduos não constitua um único grupo em
sentido estrito. Posseiros e índios, ao menos nesses casos enquadrados como de mistura
pelos Pankararu, devem ser vistos como termos designativos de identidades categóricas,
não como realidade ontológicas. Isso significa, no mínimo, duas coisas.
Primeiro, os membros de uma categoria, ainda que, através do pertencimento a ela,
tenham acusado características comuns, não possuem necessariamente "capacidade para a
ação coletiva , nem um padrão estável e totalizador de interação mútua" (GOFFMAN,
1980). Os membros de uma categoria podem reunir-se ou não em um ou mais grupos
sociais que os englobem ou os representem em maior medida, mas o que de fato seu uso
evidencia é uma forma de classificar que serve para identificar os indivíduos dentro de um
todo social. Ainda que essa classificação não seja capaz de gerar uma ação coletiva, pode
orientar as relações que seus membros estabelecem com o resto da sociedade, por permitir
reconhecer no outro um membro de sua categoria ou de uma categoria diferente ou oposta.
Segundo, o fato de pertencer a uma categoria não implicar necessariamente a
constituição de um grupo, significa que os indivíduos podem não dar a esse pertencimento
o estatuto de identidade, no seu sentido político e por isso mais excludente. Estabelecidas
estas distinções, é possível construir o vocabulário básico do território topológico, sem a
reificação de classificações abstratas. Para os Pankararu, a mistura é justamente a faixa de
possibilidades abertas entre a pertinência à uma “categoria” e a efetiva constituição de um
“grupo”, ou simplificando, entre o pertencimento e a identidade, através do que
normalmente é concebido como manipulação. O jogo entre mistura e partição é, portanto,
um jogo classificatório ao mesmo tempo que político, já que é na capacidade de fazer com
que a sua categoria apareça como um grupo que, como afirma Bourdieu (1989), está o
maior capital político do representante, do porta voz, do mediador etc. É a aparente
existência do grupo como tal que legitima o papel de líder ou porta-voz. Ao mesmo tempo,
é o desempenho desse papel que dá existência ao grupo, da mesma forma que é do
desmonte desta conexão entre pertencimento e identidade que saem os ganhos de seus
adversários. Em lugar de uma antropologia política impõe-se, portanto, uma antropologia
das políticas de identidade.
2
Vejamos o segundo tema da "aldeia aberta", revelado pelas distinções categóricas
que impõem fronteiras identitárias dentro do próprio território político-administrativo
indígena. A primeira destas distinções emerge com a reelaboração da experiência histórica
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 170
da mistura com os "negros"48 ex-escravos, que foram implantados no antigo aldeamento do
Brejo dos Padres (Capítulo 1/1), junto com as “linhas” e que deixaram marcas físicas,
distinções sociais e religiosas não muito claras ao visitante, mas que servem de elemento
importante nas disputas faccionais.
Esse foi um assunto particularmente difícil de abordar em detalhe junto a qualquer
dos informantes com os quais realizei entrevistas, sendo-me vedado, portanto, enquanto
tema na construção de genealogias. Mas, como veremos, não é no plano a que pode dar
conta a reconstrução objetiva dos laços de descendência que a distinção entre índios e
negros ganha expressividade. Essa distinção, na maioria das vezes surge como acusação
em momentos críticos de desafio político ou em disputas por recursos e é praticamente
apenas como vocabulário faccional que seu emprego ganha sentido, mas sempre um
sentido genérico e, portanto, maleável. As acusações reciprocas de “negro” não se prestam
a uma resolução objetiva, que pudesse solucionar definitivamente a disputa, já que
nenhuma das partes está segura de sua “pureza”. Nem é possível aos Pankararu desenhar
um limite claro no interior do seu sistema ritual, entre heranças diferenciadas.
Exceções a isso talvez sejam duas localidades onde o senso comum não explicitado
reconhece uma franca concentração de famílias com traços físicos e desempenho religioso
mais claramente classificáveis como "negros". Uma na seção norte e outra na seção centro.
São elas, o Barrocão, na margem norte da área indígena, encostado ao "trilho", e a "rua dos
pretos", dentro do próprio Brejo dos Padres. É no Barrocão que se situa o terreiro do Josias,
uma referência religiosa local, celibatário, cerca de 60 anos, filho de pai índio e mãe
branca. Josias concentra em sua casa um grande número de referências religiosas de
diferentes origens, ganhando com esta capacidade de compatibilizar festas e rituais grande
notoriedade na sua seção. Na sala de sua casa existe um grande altar de cimento, com um
nicho para a imagem de Santo Antônio, padroeiro da aldeia, e a sua volta se dispõem
alternadamente, imagens de outros santos e de familiares seus já mortos, acompanhados de
algumas referências aos Encantados e ao Toré, como o maracá e o círculo de penas usado
na mascará dos Praiá. Ao lado da casa foi construída uma capela em devoção a São José,
onde é guardada a Cruz dos Penitentes, usada nas noites de vigília da “tropa de penitentes”
local: uma cruz de madeira com cerca de metro e meio forrada de tecido azul, de onde
pendem presas numerosas fitas coloridas deixadas por devotos. Seu terreiro é uma
importante referência para a realização de Torés, por “brincadeira” todos os sábados à
noite, quando se realiza em primeiro lugar a resa do “terço”, ou eventualmente e durante o
dia, quando por “promessa”, como na “festa do menino do rancho”.
Essas cerimônias e rituais realizados no Terreiro do Josias apresentam diferenças
significativas com relação aos outros terreiros visitados. Sem alongar a descrição, seria
suficiente apontar as seguintes particularidades. A) Nele é possível ver Praiás infantis,
coisa inconcebível segundo a "tradição" declarada por aqueles que são considerados
autoridades religiosas de toda a aldeia (não só o cacique e o pajé), já que o trato com os
Encantados é "fino", implica em prescrições e envolve "segredos", que estariam fora do
alcance de uma criança; B) A regularidade dos Torés todos os sábado se e a sua
combinação com a realização do “terço” também não encontra correspondência em
qualquer outro; C) Entre os Praiá a que seu terreiro dá acesso encontram-se também figuras
típicas do panteão da umbanda brasileira.
Essas particularidades não impedem que esse terreiro seja muito freqüentado. Pelo
contrário, ele reúne um grande número de pessoas, incluindo algumas bastante respeitadas.
48
Talvez não seja supérfluo lembrar que, ao contrário do contexto urbano, em muitas situações rurais, entre
elas a que serve de contexto aos Pankararu, o peso pejorativo no uso da distinção de cor ou raça recai sobre
“negro” em lugar de “preto”.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 171
Mas a maior parte de seu público é de jovens, que freqüentam a "brincadeira" como ponto
de encontros, atraindo por isso também, alguns vendedores de balas e biscoitos, que armam
seu negócio sobre pequenos caixotes improvisados.
No entanto, mesmo no caso do terreiro do Josias, onde a mistura torna-se evidente e
pontuada geograficamente, não é a isso que o termo “negro” tem por objeto. Se aplicado a
situações como estas, ele não assume o caráter acusatório que lhe é fundamental e que o
torna politicamente relevante. A acusação de negro não tem por objetivo constatar ou
reafirmar algo dado, em maior ou menor medida, à vista de todos, mas justamente revelar o
que a princípio estaria sendo dissimulado. Seu objetivo é o de questionar a legitimidade de
um indivíduo ou agregado que reivindica direitos ou representatividade. Nesse sentido
negro surge como categoria política na mesma medida em que a categoria índio o é. Ela
fala não, ou não principalmente, sobre cultura, mas sobre “direitos”, pertencimentos e
identidades.
Desde o meu primeiro encontro com João Tomás esse caráter acusatório ficou
muito claro. Foi na primeira entrevista em que se falou explicitamente do faccionalismo e
em que ouvi pela primeira vez a segunda versão do mito colonial, que se fez presente
também a distinção entre índios e negros, como num único pacote da semântica faccional.
Ao chegar na casa do João Tomás pela primeira vez sabia apenas se tratar de uma liderança
importante, mas não tinha idéia do peso dessa importância, nem da relação que mantinha
com as outras lideranças, muito menos ainda tinha-me dado conta plenamente da repartição
da área em seções politicamente diferenciadas. Apresentei-me então, como de costume,
repetindo mais uma vez um texto monótono sobre quem eu era e quais os meus interesses
de pesquisa, onde dava ênfase ao conflito entre índio e posseiros. João Tomás ouviu-me e,
ao contrário do comportamento que estava acostumando-me a enfrentar, em que o
interlocutor tinha que ser quase literalmente capturado ao longo de um diálogo
monossilábico, ele imediatamente perguntou-me o que eu achava da situação.
A inversão de papéis me deixou desconcertado e temi os riscos de começar um
contato importante enunciando a opinião "errada". Tentei desvencilhar-me dizendo que era
uma situação "complicada", mas ele insistiu, pedindo que eu explicasse quem eu achava
que "complicava" a situação, ou "os posseiros" ou "nós índios". O pronome inclusivo era a
pista que ele me dava sobre a resposta esperada, e eu a segui. No entanto, seu passo
seguinte foi justamente desfazer a inclusividade do "nós" passando a acusar os "índios do
Brejo" de não serem índios legítimos, mas "misturados", "negros", que teriam expúlso os
índios legítimos para cima das serras, onde hoje as comunidades da Serrinha, Espinheiro,
Logradouro e Barriguda estariam estabelecidas. Ao contrário do que seria justo, dizia ele,
são os negros que recebem os recursos da FUNAI, são suas terras que estão sendo
privilegiadas, em detrimento das em que os índios moram, ainda não homologadas.
Mas, em sua natureza de vocabulário faccional, esta versão da repartição entre
negros e índios encontrava reciprocidade. Na semana seguinte, numa segunda visita ao
João Tomás, enquanto conversávamos, chegou um rapaz que vinha percorrendo as casas
com um recado das lideranças do Brejo dos Padres, onde estava sendo convocada uma
reunião urgente de toda a aldeia, aparentemente relacionada com o conflito com posseiros
da seção central. O rapaz dizia ainda que, segundo a mensagem, o João Tomás deveria se
encarregar de avisar da reunião por todo o Espinheiro, enquanto ele seguiria em frente,
passando por outras aldeias. A resposta do João Tomás foi irônica e arrogante, dizendo que
lá não existiam índios, apenas negros e brancos, que não tinham nada a ver com problemas
de índios. Depois do momento de exasperação provocado pelo diálogo com o mensageiro,
João Tomás e sua esposa explicaram-me que dias antes as lideranças do Brejo teriam se
recusado a enviar para a Serrinha e Espinheiro os mantimentos fornecidos pela FUNAI.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 172
Na semana anterior, como depois fui informado, João Tomás havia encontrado na
feira de Petrolândia o "delegado da FUNAI" conversando com lideranças do Brejo dos
Padres. Aproximou-se do grupo mas, percebendo que tinham interrompido a conversa com
sua aproximação, recuou para retirar-se quando o "delegado" chamou-o para explicar a
situação: os que estavam ali acusavam-no de distribuir a parte de sua seção numa doação
de grãos da FUNAI a negros e brancos da região. João confirmou ironicamente que, se ele
estava dando mantimento a negros, todos eles eram negros “assinados no posto indígena”.
Além disto, como ele não sabia nem ler, nem escrever, nem tinha as carteirinhas e o
carimbo da FUNAI (fazendo alusão à proximidade daquelas lideranças ao chefe de posto),
não tinha responsabilidade nisto.
Fora de situações como essas o uso do termo "negro" é parcimonioso, por que não
convém tocar num assunto sempre constrangedor. A acusação permanece sempre na sua
forma incompleta, incapaz de tornar-se prova, porque não foi feita para isso. O limite entre
índios e negros não é mensurável, não é passível de ser desenhado sobre a terra, na forma
de uma fronteira, ele está irremediavelmente perdido e só pode ser recriado enquanto
distância que separa, ou deveria separar, os que tem dos que não tem direitos.
4
Mas se o corte índio/negro assume o papel básico de vocabulário faccional, existe
outro, que fala mais diretamente da etnicidade, que é o corte entre índios e posseiros. Nesse
caso, a mistura cria um terceiro lugar, o vértice que dá forma e dinâmica à relação entre as
estas duas categorias básicas, de domínio comum e manipuladas de forma absolutamente
realista pela imprensa, por toda a documentação disponível (independente de sua origem)
e, o que é mais importante, pelos diferentes mediadores acionados pelos conflitos, estejam
eles de um lado, de outro, ou sob o dilema de não poderem acomoda-se confortavelmente
em nenhum dos dois. A mistura é o terceiro lado, que traz ao palco o que é impossível de
ser domesticado pelo vocabulário oficial, seja ele posseiro ou indígena.
Na verdade, a dicotomia entre índios e posseiros, por ser usada em todas as
instâncias e de forma tão repetida, transforma o papel social dessas noções. Elas deixam de
ser instrumentos de descrição da realidade, para tornarem-se criadoras de realidade, além
de serem, em si mesmas, realidades a serem descritas. Ao falarmos do conflito nos termos
dessa oposição, aos poucos deixamos de nos referir a uma realidade concreta para
trabalharmos com uma abstração, ao mesmo tempo que, por um "efeito de teoria"
(BOURDIEU,1989), a sua reificação tende a torna-la real, enquanto quadro de referências
necessário para os agentes em interação, passando a organizar a própria realidade em lugar
de apenas descreve-la.
Para nos libertarmos deste efeito das disputas, devemos começar por perceber que
na sua existência cotidiana mais vulgar, essas categorias podem ser substituídas por outras,
intercambiáveis, mas não exatamente correspondentes. Existe um leque relativamente largo
de rótulos que podem ser atribuídos aos sujeitos em interação e que substituem de um lado
o "posseiro" e de outro o "índio", de uma forma não gratuita. Essas designações não variam
segundo indivíduos, mas segundo as posições relativas a que esses indivíduos ocupam nos
diferentes momentos de enunciação. A dicotomia índios/posseiros é submetida, pelos
próprios atores dos conflitos, à variações que tem como resultado a flexibilização
necessária ao seu uso cotidiano, em que estão em jogo as relações mais diretas, de
afinidade e parentesco. Cria-se com isso um campo semântico mais complexo, em que, em
lugar de termos apenas uma oposição direta e perfeitamente refletida, descobrimos uma
grade de categorias que servem para ressignificar a pura oposição.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 173
Assim, no interior desse campo semântico, se um não-índio aparece no discurso de
um índio no papel de marido , bom vizinho ou enfim, em situações sem maior turbulência,
que não implicam em competição por recursos materiais ou simbólicos, ele pode ser
designado como "brasileiro", "branco", "particular" ou simplesmente não ganhar qualquer
designação especial, figurando apenas através de um simples "ele não é índio". Nesse
último caso, o mais atenuado de todos, opta-se por uma forma de designar que indica a
exclusão do nós, sem que ela implique numa oposição ao nós. Por outro lado, sempre que a
situação implicava em conflito ou tensão, foi possível observar que, invariavelmente,
passava-se a designa-lo, dependendo do nível de tensão investido na situação de
enunciação, por formas que variavam entre o "civilizado" e o "posseiro". Nesse último
caso, quando a categoria não era imposta desde o início pelo próprio encaminhamento do
diálogo com o entrevistador, ela era usada justamente quando se pretendia dar ênfase ao
caráter conflitivo da relação entre aquele que falava e aquele que era objeto da fala.
Da mesma forma, a auto-desinação ou a designação de outro como índio, como
Pankararu ou como caboclo, respondia a uma gradação semelhante, sempre como forma de
(re)situar a força e o significado que se deveria atribuir àquilo que inicialmente se
apresentava como uma cristalina dicotomia. Nesse casos, a categoria de caboclo é a mais
rica e ambígua. Ela pode ser usada por índios e não-índios para se referirem a índios e não
índios, mas como sempre, de acordo com a situação de enunciação. É difícil imaginar que
qualquer pessoa se refira a um índio e a um não-indio durante uma mesma seqüência de
enunciados discurso igualmente como caboclos, ainda que isso fosse possível se eles
fossem referidos em momentos diferentes. Por exemplo, um vizinho (índio ou não) pode
referir-se ou não a um índio como caboclo, mas na boca de um posseiro (isto é, de um
indivíduo que se posiciona numa situação de enunciação conflitiva), quase sempre a noção
escolhida será essa e seu sentido deverá revelar uma desclassificação, ou melhor, uma reclassificação com relação à categoria índio, onde intervém a idéia de mistura e portanto de
impureza, deslegitimidade com relação aos direitos, quase sempre territoriais, que lhe são
atribuídos.
A relevância sociológica desta distinção de usos está no fato delas operarem como
uma espécie de shifter49, indicativo dos lugares ocupados pelos referentes, de sua relação
com aquele que enuncia, assim como das diferentes situações em que ambos estão
inseridos, que podem variar do amistoso ao conflituoso. Tais designações portanto, não
nomeiam pessoas tomadas isoladamente, mas as introduzem num sistema de relações,
apontando imediatamente para as posições que o sujeito e o referente ocupam nesse
sistema, quando colocados em relação. Elas servem para continuamente estabelecer a
fronteira entre o que é e o que não é Pankararu. Em outras palavras, elas denotam a
distância a que o referente se situa com relação aos limites do pertencimento Pankararu.
Expressões cujo objeto só pode ser determinado em relação aos interlocutores, servindo
para situar quem fala e de quem se fala, expressões que nos remetem não a um texto, mas a
um situação de discurso, ao contexto da enunciação.
Isso explica em boa medida o que parecia ser uma contradição nos depoimentos de
representantes sindicais sobre o conflito, quando insistem em citar a participação comum
49
Poderíamos pensar essas categorias como índices, no sentido semiológico proposto por Pierce (1972), em
que um índice é um signo que se encontra ele próprio em contiguidade com o objeto denotado (por oposição
ao símbolo que refere-se a alguma coisa por força de uma regra e ao ícone, que relaciona-se com seu objeto
por partilhar com ele uma mesma qualidade ou uma mesma configuração), mas o fato das designações com
que trabalhamos serem índices não só do lugar ocupado pelo referente, mas também daquele que enuncia,
assim como da situação em que ambos estão colocados, acaba por aproxima-los da figura lingüística do
shifter descrito por Jakobson (s/d), ou até mesmo por ultrapassá-la na quantidade de informações agregadas.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 174
de índios e posseiros em atividades de lazer, como exemplo que provaria não existir um
conflito, mas antes uma "situação artificial" criada pela FUNAI. Trata-se de uma afirmação
que, apesar de ser parte da estratégia discursiva sindical deste conflito, acaba por
reconhecer a forma múltipla de relacionamento entre as partes. Para que fique mais claro:
existe uma diferença entre posseiros e representantes de posseiros, assim como existe uma
diferença entre índios e lideranças indígenas, mas as lideranças indígenas, por terem que
representar a mais alta legitimidade étnica, têm que evitar ao máximo a "mistura", evitando
também os espaços de franca mediação e nesse sentido dificilmente um não-índio dentro da
área será apenas branco ou brasileiro para elas. Da mesma forma, mas num sentido
contrário, os representantes dos posseiros tem que minimizar ao máximo sua imagem de
invasores ao mesmo tempo que esvaziar a legitimidade daqueles que se dizem índios,
muitas vezes dirigindo-se a eles como "caboclos" e insistindo nos exemplos que
evidenciam a "mistura" social.
A participação comum nos jogos de futebol por exemplo (exemplo, aliás,
exaustivamente utilizado por estes últimos), é antes um tempo e um espaço de mediação
das tensões que gradua e relativiza o conflito do que uma prova de que esse conflito não
existe. Mais um espaço entre outros que impedem a transformação do conflito em violência
aberta, mas que não negam a competição e a consciência da repartição entre aqueles que
são e que não são, entre os que tem direitos e os que pretendem ter. O conflito, por se dar
entre categorias que não são impermeáveis uma à outra, não se confunde com uma
oposição homogênea: ela é uma oposição negociada mas nunca esquecida.
O que a princípio poderia ser visto apenas como a proliferação de nomes para
designar um mesmo objeto, com o tempo foi revelando-se uma forma relacional de
classificação das pessoas, ainda que essas diferentes formas de classificação não sejam
formalizadas por aqueles que as enunciam, servindo, nas falas cotidianas, como um
elemento de retórica quase naturalizada. Observa-las, no entanto, nos serve para
percebermos a mutabilidade e construtividade das relações e dos limites entre categorias
que estão sempre se adequando às situações de tensão em que são empregadas, assim como
para alterar o que, a princípio, definimos como o universo espacial de análise, os limites do
território Pankararu.
5
Existem também os posseiros potenciais, isto é, sujeitos ou famílias que estão na
parte da área que não foi homologada, mas que ainda é pretendida pelo grupo, podendo por
isso serem alcançados pela fronteira dicotomizadora. Dentre eles existem os de inserção
categórica duvidosa, cuja "indianidade" ainda tem que ser negociada (trabalharei com
essas duas situações mais a frente) e os que são "registrados no posto", isto é, que
alcançaram o estatuto jurídico de índios, com os direitos a que ele dá acesso, por vias que
não passam necessariamente por uma negociação relativa ao pertencimento ou à
identidade, mas pela troca de interesses diretamente com o responsável no momento pelo
"registro" e cuja legitimidade está permanentemente em questão.
A entrevista com José João do Nascimento, um dos posseiros expúlsos em 1992 do
Brejinho dos Correias, seção sul, é rica em exemplos nesse sentido, ele mesmo
considerando-se lesado por seu pai não ter “assinado sua família” como indígena quando
isso foi possível. No seu relato fica claro como toda a categoria pode ser reduzida ao seu
aspecto jurídico.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 175
Você sabe que alí não tem índio legítimo, a maioria ali é tudo assinado.
Eu mesmo conheço um rapaz branco dos olhos azuis, do Bem Querer e
assinado por índio. (José João do Nascimento)
Como prova disso passa a enumerar aquelas famílias que hoje só são indígenas
porque seus pais "se assinaram" como índios poucas décadas atrás, independente de
qualquer relação de parentesco com a aldeia, em contraste com sua família, que de ambos
os lados tem relações de parentesco com os índios, mas ficou de fora. De um lado, Tereza,
irmã de sua mãe, nascida no Bem-Quer, era casada com Laurentino Barros, "índio do
Brejo", e por isso, todos os seus filhos (portanto, “primo-irmãos” do João) são "assinados
como índios". Seu pai também, mesmo sendo natural de Alagoas, se considerava e era
considerado "parente" do atual vice-chefe de posto, através de um parente comum da aldeia
de Geripancó. O próprio João José, por sua vez, tem um filho índio, com uma das meninas
que namorou no Brejo dos Padres e que hoje é casada com um índio amigo seu, com quem
"trocava dias" de trabalho. Hoje seu amigo e sua ex-namorada moram no próprio Brejinho
dos Correias, numa das áreas retiradas dos posseiros. Acrescenta ainda que, além das terras
de que foi retirado no Brejinho do Correias, ele tem um terreno no Olho D'água do Julião,
na seção norte, dentro da área não homologada, na qual cria cinco ou seis cabeças de gado,
e das quais quem cuida é um outro rapaz "assinado como índio", parente de criação dele (o
avô do rapaz foi criado por sua família), morador do Bem-Querer, onde toda a sua
parentela é de posseiros.
Esse no entanto, não é um discurso exclusivamente comprometido com a posição
de um excluído da área. Os mesmos elementos são encontrados também numa parte dos
depoimentos indígenas, ainda que com os sinais invertidos. Neles, tais casos surgem como
demonstração da conversão de valores operada nas relações entre índios e brancos em
função da emergência dos direitos indígenas, enfatizando, assim, a distância e não
apagando-a.
A maioria desses posseiros aí, como aquele primeiro causo que eu tava
lhe contando, de apanhá lagarta entre outubro e novembro, alí tem
posseiro que é filho de índio, eles é que não querem se representá. Na
época eles achavam que índio era bicho e hoje eles tem vontade de ser
índio e não pode mais. Já é tarde. Mas que tem famílias deles..., que se
for pra fazer exame, as famílias deles tudo tem sangue de caboclo,
porque tanto cabocla cruzava com branco lá, quanto branca cruzava
com índio aqui... (Antônio Moreno da Silva)
Mas o registro no posto tem também um outro papel, aparentemente contrário a
este, servindo não para não índios entrarem na área, mas para índios saírem. Existe uma
série de situações em que a saída da área surge como movimento compulsório ou como
única alternativa de reprodução social, decorrentes da escassez de terras e das dificuldades
com as secas50, das situações de conflito aberto51, além é claro, dos casamentos,
oportunidades de emprego etc. Mas, na maioria desses casos, ao se afastarem do território,
50
Que obrigam a muitos pais de família irem buscar parte de sua renda familiar em trabalhos temporários ou
permanentes nas cidades próximas, enquanto suas esposas e filhos cuidam da roça e da criação, que dessa
forma passa a representar a complementação e não mais o principal da renda familiar.
51
Em que o enfrentamento com posseiros ou com outros indígenas impuseram o deslocamento de famílias
para fora da área, como foi o caso do conflito de 1982, em que seis famílias indígenas foram expulsas da
"Marreca", depois de terem tentado ocupar terrenos dos quais outros posseiros já haviam sido expulsos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 176
que além de objeto é também referência dos seus direitos, esses índios buscam carregar
consigo a prova de pertencimento à ele. Chegamos ao ponto então em que o território se
faz mais imaterial.
Como já tentei deixar claro, quando os Pankararu falam em seus direitos, eles não
se referem apenas ao acesso à terra, mas a todo acervo de recursos simbólicos, materiais,
incluindo aí o fato de estarem fora da competência legal, policial e tributária dos poderes
locais. Uma frase ouvida algumas vezes em referência à segurança que sentiam por estar
recebendo apoio da Polícia Federal contra os posseiros da fronteira sudoeste era "..nós
somos federal". No caso do afastamento de sua base territorial, a mistura ganha o
significado da ameaça de indistinção com relação à população não-indígena e impõe a
criação de instrumentos simbólico aos quais se possa recorrer em momentos em que a
distinção se faça necessária.
É, o sr. sabe..., porque se eu chegá num lugar... Porque nossa classe, de
índio..., a nossa classe é baixa. Porque o índio [fala pausadamente] é
aquele que tem a qualidade e o cabelo. Nós tudo somos igual aos
posseiros. Aí, quer dizê, nossa prova é aquele documento que quando:
"Vocês d'a'onde?" e nós: "Nós somo de Pankararu". Mas se nós não
apresentá o documento, nós num parece sê índio. Pode sê, mas num
parece.
Agora, terá outras coisas pra gente dá as prova, porque o índio, ele tem
que sabê alguma coisa, tem que cantá o Toré, tem que dançá, tem que
fazê qualquer uma forma daquela parte, né. Aí o camarada, não fazendo
parte nenhuma nem tendo o documento, não é índio, é mesmo um
particular. Agora, nossa classe aqui, o sr. olha alí pro Brejo, nós tudo
somo índio mistiço. É dificil o sr. encontrá uma pessoa que tenha uma
classe..., porque índio tem cabelo e tem qualidade, mas nós somo tudo
assim, misturado. Quer dizer que nosso conhecimento de índio é o
documento do posto. (Honório Avelino)
O "documento" a que o sr. Avelino faz referência são as carteiras de identificação
fornecidas pela FUNAI e distribuídas pelo Posto Indígena em 1986 (Cf. a coincidência de
datas com o Quadro 10) conhecidas por "carteirinhas da FUNAI" ou "carteirinhas de
índio". Essas carteirinhas isentam qualquer índio das tachas de comercialização nas feiras
locais ou da fiscalização nas estradas, põem, ao menos teoricamente, seus portadores fora
do alcance das polícias militar e civil, dá acesso à estadia nas "Casas do Índio" que existem
nas capitais em que a FUNAI possui representação e, fundamentalmente, dá o sentimento,
ao seu portador, da manutenção do laço com seu território de origem, que o distingue
efetiva ou imaginariamente da massa anônima das capitais pelas quais perambula em busca
de emprego. Nesses casos, a carteirinha surge como objeto carregado de um poder especial,
capaz de manter um vínculo entre o indivíduo e algo de intermediário entre o nome
próprio, cujo valor é territorializado e o anonimato em que penetra nesses momentos de
desterritorialização.
Por outro lado, muitas das histórias que ouvi e que procuravam justificar a
necessidade das "carteirinhas" faziam referência à garantias mínimas contra os arbítrios de
autoridades de toda natureza, quando estavam fora da área indígena. Direitos que
normalmente nós associaríamos aos de cidadania e que os Pankararu sabem possuir não
como cidadãos plenos, mas como tutelados. Algumas dessas histórias diziam da sua
proteção contra, por exemplo, as exigências de subornos de policiais rodoviários que ao
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 177
encontrarem irregularidades nos carros em que a população se desloca para as feiras,
podiam apreender até mesmo toda a carga transportada. Mas além desses direitos existem
outros, onde a distinção propiciada pelas "carteirinhas de índio" com relação a população
local passa do plano, digamos, das garantias civis, para o de um clientelismo que vai do
ingênuo ao corruptor.
Nos dias de festa no clube de Tacaratu, um clube aliás folcloricamente chamado de
"Clube do Índio", os organizadores dão direito a que entrem, gratuitamente, no máximo
quatro jovens que apresentem a "carteirinha". Para um exemplo menos inocente sobre as
virtualidades da "carteirinha", seria suficiente fazer referencia a um encontro que tive na
prefeitura de Tacaratu, quando procurava, inutilmente, alguma documentação sobre a
relação entre poderes públicos municipais e grupo indígena. Nessa oportunidade, a
funcionária que foi designada para me orientar era uma "cabocla Pankararu", como a me
revelar depois, por insistências jocosas das outras funcionárias, mas apressou-se em
explicar que ela na verdade apenas "possuía" uma "carteirinha" e não era exatamente uma
índia. Cerca de 25 anos, filha de pai Pankararu e mãe "brasileira", ela é "prima-irmã" do
então vice-chefe do posto indígena, tendo nascido na aldeia mas crescido na cidade de
Tacaratu.
Ao me interessar por sua história, declarou não conhecer nada dos problemas ou
tradições da aldeia (o que é pouco provável, ao menos no sentido absoluto em que
manifestou sua ignorância) dizendo que no máximo poderia informar-me das "vantagens"
de se possuir uma "carteirinha de índio", que então passou a enumerar: ter escola básica,
material didático gratuito, bolsa de estudos da FUNAI caso pretenda estudar em escolas
particulares ou cursos de formação em Arco Verde, Delmiro Goulveia e até em Recife e,
finalmente, ter prioridade na disputa de empregos públicos. Explica que tirou a sua
"carteirinha" justamente para apresentar-se no concurso público do magistério estadual,
mas como a pediu muito tarde, a carteirinha só saiu depois do fim do prazo de matrícula e
ela não passou na prova. Para confirmar a tese de que a "carteirinha" lhe daria a garantia
imaginada, citou o caso de uma amiga que a apresentou a tempo e passou. Perguntei se a
sua amiga não teria passado por ter estudado o bastante, ao que ela fez uns trejeitos
cômicos e respondeu com ironia se eu acreditava que no Brasil existiam concursos
públicos52.
Chegamos portanto ao ponto paradoxal em que “os direitos” que estabelecem o
vínculo entre identidade e território, podem ganhar autonomia, se desterritorializar e
romper com qualquer vínculo identitário ou qualquer demanda territorial. Caricatura do
índio jurídico, abstrato, que não é sujeito de cultura, nem de laços comunitários e
territoriais, nem mesmo da indianidade, mas apenas da tutela, que neste último caso
aparece mais uma vez superdimencionada por aqueles que lhe são objeto. Uma tutela
também que tem muito pouco a ver com qualquer modelo de guerra, muito menos a de
conquista (LIMA,1992).
Por outro lado, a etnografia deve ser cautelosa com os enunciados. Nem mesmo a
completa desterritorialização, aparente no último testemunho, pode ser levada
excessivamente à sério, já que é preciso estarmos atentos sobretudo ao tipo de
representação que os sujeito procuram projetar ao falarem de sua inserção em determinadas
categorias. Representações que respondem a uma casuística que pode-se fazer muito
variável, segundo a complexidade de cenários a que um mesmo sujeito está referido.
52
Além dessas vantagens, declaradas por aqueles que eram beneficiários dos "direitos", conheci também os
argumentos daqueles que se consideram vítimas desse "direitos". Entre os posseiros é corrente a
interpretação, de que a distribuição de "carteirinhas" para pessoas de fora da aldeia serviria como estratégia
de aumento do número de "índios assistidos" pelo posto indígena, que retiraria disso maior peso político.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 178
Afirmar tão enfaticamente a exclusiva pragmaticidade de sua inserção numa determinada
categoria parece justificar um pertencimento ao qual o ambiente é relativamente hostil.
Estamos no campo do que Goffman chamou de “política de identidade”, no qual o
pertencimento a um grupo mais amplo, garantia da identidade de "ser humano normal",
tem que ser constantemente confrontado com o fato de que se é diferente e que seria
absurdo negar essa diferença. Em especial quando essa diferença começa a ser
progressivamente visibilizada e popularizada, alterando sua situação anterior , em que tais
diferenças podiam passar mais ou menos desapercebidas.
Assim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser
humano como outro qualquer, diz-se a ele que não seria sensato tentar
encobrir-se ou abandonar “seu” grupo. Em resumo, diz-se-lhe que ele é
igual a qualquer outra pessoa e que ele não o é - embora os porta-vozes
concordem pouco entre si em relação a até que ponto ele deveria
pretender ser um outro. Essa contradição e essa pilhéria constituem a
sua sorte e seu destino. Elas desafiam constantemente aqueles que
representam o estigmatizado, obrigando esses profissionais a apresentar
uma política coerente de identidade, permitindo-lhes que percebam logo
os aspectos "inautênticos” de outros programas recomendados, mas, ao
mesmo tempo com muita lentidão, que não pode haver nenhuma solução
“autêntica”. (GOFFMAN,1980)
Aqui reintroduso o tema da relação entre a assunção de rótulos sociais e o papel
daqueles que se fazem seus porta-vozes, mas ao qual devo acrescentar o problema da
natureza coletiva desses rótulos. A relação entre rótulos e um conjunto de direitos que não
são individuais, cuja administração não deve ser apenas coletiva, mas comunal, abre no
caso Pankararu um campo de disputas que atinge diretamente a atuação das lideranças
indígenas e sindicais e a própria definição do que vem a ser índio, ou mais especificamente,
do que faz de alguém um Pankararu. As partes seguintes encerram este trabalho com a
análise de duas situações etnográficas em que se manifesta a dupla face deste tema, no qual
estão em jogo justamente os limites extremos da identidade.
Ser e não ser
1
O encaminhamento jurídico do conflito entre "grupo Pankararu" e "posseiros" do
Caldeirão e Bem Querer, resultou na ordem de retirada de 12 famílias de posseiros da área
em litígio. Justamente as famílias mais combativas, entre elas a do ex-presidente do
sindicato dos trabalhadores rurais de Petrolândia que era também representante local da
CUT-Rural e candidato a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Imediatamente o sindicato de trabalhadores rurais de Petrolândia, ao qual a quase
totalidade dos posseiros é filiada, entre outros entraves à execução dessa decisão judicial,
pediu um laudo antropológico sobre a identidade étnica de Nivaldo, um dos doze da lista,
filho de índia Pankararu e neto de uma antiga liderança indígena, que trabalhou muitos
anos no PIN Pankararu e cuja família é considerada um dos "troncos velhos" da aldeia.
Nivaldo nasceu no Brejo dos Padres e saiu de lá ainda criança, quando seus pais se
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 179
transferiram das terras da família da mãe para trabalhar e morar nas terras da família do
pai, um posseiro do Bem Querer.
A procuradoria Geral da República acolheu o pedido dos posseiros e solicitou um
"parecer técnico" sobre aquela situação étnica individual à FUNAI, que imediatamente
enviou uma antropóloga para a área. Ao chegar, a antropóloga da FUNAI encontrou o
grupo de parentes indígenas do Nivaldo e, em seu relatório, registra que tais pessoas
"insistiam em afirmar seu [do Nivaldo] direito à permanência na área indígena" (DOC.:49),
argumentando que não era possível negar esse direito a um sobrinho ou primo sem
correrem o risco, eles também, de terem suas próprias identidades questionadas. No sentido
contrário, os argumentos enumerados contra a atribuição de uma identidade indígena para
Nivaldo eram de duas ordens. Primeiro, "não o consideravam como tal pelo fato do mesmo
não participar dos rituais e dos movimentos de interesse da coletividade Pankararu".
Segundo, porque ele "havia sido autuado duas vezes pela Polícia Federal vendendo bebida
alcoólica na localidade onde reside e que está situada dentro dos 8.100 ha homologados
para a área indígena". De um lado, a lógica da consangüinidade e da afinidade, além do
medo de perder o controle sobre os critérios de atribuição de identidade, de outro, a
participação efetiva na vida ritual e política da aldeia, incluindo aí a subordinação às regras
estabelecidas pelo órgão tutelar.
A decisão tomada pela antropóloga foi a de entregar a responsabilidade de escolha
ao grupo, que deveria tirar uma posição através de critérios próprios. Em função disso, o
chefe de posto propôs uma reunião imediata para que se tomasse uma decisão o mais
rápido possível. A reunião foi integrada pelas lideranças, pelo pajé e por Nivaldo e seus
familiares indígenas, num total de 25 pessoas, mas nessa ocasião o pajé condicionou
qualquer decisão à presença de todas as lideranças e do cacique, que nesse momento estava
em Brasília, acompanhado da Quitéria, negociando assuntos da comunidade.
A visita encerrou-se, então, com um relatório onde a antropóloga deixava em aberto
a questão e justificava sua decisão com argumentos antropológicos dirigidos à Procuradoria
da República: salientava o perigo de solicitações desse tipo contribuírem para o
fortalecimento da dúvida sobre a etnicidade dos índios do Nordeste, defendia o direito do
próprio grupo decidir quem são os integrantes da tribo e alertava para a estratégia de
entrave que este tipo de pedido representava, perguntando-se, finalmente, sobre "quantos
casos iguais a este não poderão ser levantados...?"
Mais tarde, com a volta do cacique e da Quitéria à aldeia, a decisão foi tomada e o
Nivaldo considerado "posseiro", como todos os outros na lista de expulsão.
2
Num pólo oposto ao desta primeira situação, encontramos o dilema identitário do sr
Marcelino Viana, cerca de 75 anos, filho de pai e mãe brasileiros, ocupante de um sítio
localizado na seção norte da terra indígena, na área que ficou de fora da homologação de
1987, mas que continua como terra reivindicada pelas lideranças do "Entre-Serras". Além
do valor intrínseco dessa situação para a análise, a importância do sr Marcelino também
está no fato de ter sido ele, a primeira pessoa a apresentar-me à área indígena, em certas
condições que caracterizam o tipo de inserção que o sr. Marcelino encontra naquele
contexto étnico.
Em função de ter optado em percorrer um roteiro não oficial ao entrar na área
indígena (Cf. Capítulo 3), deixei de ter também algumas das facilidades de uma
apresentação oficial ao grupo. Os poucos pesquiadores com os quais conversei e que
tinham estado em área, já haviam perdido contato com ela há vários anos e nenhum deles
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 180
pôde se oferecer para indicar-me uma família ou pessoa em especial53 como contato.
Fiquei, então, apenas com a sugestão da equipe de assessores do Centro Ecumênico de
Informação e Documentação (CEDI), que era a de procurar os párocos locais para, a partir
deles, buscar alguma orientação sobre a entrada em área. Foi assim que fui sendo indicado
de pároco em pároco, entre as dioceses de Glória (BA), Paulo Afonso (BA), Petrolândia
(PE) e finalmente Jatobá (PE), para aí, então, com o apoio inicialmente reticente dos
membros da equipe pastoral, estabelececer, finalmente, a forma de minha entrada em área.
A equipe pastoral, que havia iniciado seu trabalho nas dioceses da região há pouco mais de
um ano, ainda não tinha estabelecido um contato direto com o Brejo dos Padres, que em
seus cronogramas começaria a ser visitado no ano seguinte, mas o pároco de Jatobá se
ofereceu para colocar-me em contato com o sr Marcelino Viana, que considerava ter ótimas
relações dentro da área indígena.
Depois de termos sido apresentados, o sr Marcelino prontificou-se em acompanharme num passeio pelas casas indígenas com as quais tinha mais contato. Para minha
surpresa e seu regozijo, esse passeio teve início às 7:30 e, ao terminar às 19:30, haviamos
percorrido as aldeias de Logradouro, Barriguda, Barrocão (ou Roça de Cima) e parte da
Serrinha, contando um total de mais ou menos 50 residências. Por onde passávamos, era o
sr Marcelino que tomava a palavra para explicar a minha presença alí, contando sempre a
mesma história e tomando ele mesmo a iniciativa fazer as perguntas que achava relevantes,
na maioria das vezes apenas confirmando um conhecimento prévio, enfatizando sua
intimidade com a história e situação daquelas famílias. Ao introduzir esses encontros, o
sr.Marcelino em primeiro lugar contava sobre como o antigo padre de Petrolândia lhe havia
anunciado a chegada do novo padre da região, de como esse novo padre lhe havia pedido
para que ele lhe mostrasse a região e seus moradores "de pés", de como este padre ia
anotando o nome dos moradores, casa por casa e, finalmente, numa linha de perfeita
continuidade do seu ponto de vista, de agora esse último padre lhe havia pedido para que
ele fizesse o mesmo "com este sr do Rio" que trabalhava para a universidade.
O sr Marcelino era sempre muito bem recebido por todos e, por isso, nenhum deles
deixou de responder-he as perguntas: número e nome dos moradores, quem era filho de
quem, quem era brasileiro e quem era índio dentro das mesmas casas etc. A cada pergunta
respondida o sr Marcelino se virava para mim e me mandava anota-las. Ainda que esta
dinâmica tenha me surpreendido e me constrangesse um pouco, assim como a alguns dos
interrogados, a seguimos por todo o resto do dia. Uma dinâmica que foi definida pelo sr
Marcelino, independente de qualquer acerto anterior e, através da qual (só aos poucos fui
me dando conta disso) o sr Marcelino conseguia múltiplos efeitos de reconhecimento. Ao
narrar a seqüência de apresentações que levavam do antigo padre ao novo pesquisador do
Rio, ele demonstrava para a população local sua importância como mediador de
autoridades externas, reconhecido e recomendado por sucessivos personagens de outro
status social que, dessa forma, lhe emprestavam prestígio. De alguma forma se apropriava
também da minha imagem e emprestava o seu próprio significado a ela, de forma a que
mais tarde eu pudesse ser identificado, como realmente fui, como "o moço do sr
Marcelino". Por outro lado, a mim ele dava prova cabal do seu prestígio e de sua
importância para qualquer trabalho que eu quisesse desenvolver no local, garantindo com
isso seu lugar de mediador na relação daquele trecho da área com outros possíveis agentes
externos. Por último (e isso eu só perceberia muito mais tarde) ele estava em plena
53
Agradeço às pesquisadoras Rita Costa e Silvia Martins por terem me recebido tão gentilmente e terem
perdido parte do seu tempo na tentativa de traçar um perfil da área e das lideranças que, enfim, lhes parecia
muito confuso.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 181
campanha para o fortalecimento de suas pretensões a ser absorvido como Pankararu pelo
posto indígena.
3
O pai do seu Marcelino Viana, o seu Chico Viana, chegou a Tacaratu como criança
de colo, carregado por sua mãe, retirantes da seca de Serra Talhada. Chegados a Tacaratu,
um índio importante da aldeia, o Pedro Velho do Logradouro, tomou-os sob sua proteção e
batizou seu Chico, absorvendo-os no círculo de sua família extensa e fazendo dele um de
seus filhos, sem maiores distinções com relação aos outros. De outro lado, a mãe do seu
Marcelino era filha de uma família de não-índios vizinhos à área indígena, do "Brejinho de
Fora". O pai dela era dono de propriedades que iam da beira do São Francisco até o
"círculo dos índios" (aproximadamente uma légua), encostando nas terras do Pedro Velho
do Logradouro. Ambos representavam a autoridade no local, sendo procurados em caso de
disputas que, quando não conseguiam resolver por acordo, encaminhavam para a polícia de
Tacaratu.
Essa proximidade entre duas figuras importantes da região, foi traduzida no
casamento entre seu Chico e a filha dos de "Brejinho de Fora". Com o casamento, seu
Chico foi morar nas terras da família da esposa, que no entanto, ao longo dos anos tiveram
seus limites bastante reduzidos através da grilagem de proprietários vizinhos. Por isso, à
época em que começaram a ter seus filhos, já passavam dificuldades e, mais tarde
recorreram ao expediente comum na região, de envia-los para trabalharem fora, como foi o
caso do seu Marcelino, que depois de passar a infância na beira do "círculo", partilhando
das tradições de seu pai, viajou "de Maceió p'ra baixo" a procura de trabalho e enviando
dinheiro para a família. Depois de morar em São Paulo, voltou à área em 1940, quando
conseguiu readquirir parte das terras que tinham sido de seu avô materno, entre o rio e o
"círculo".
O seu Marcelino Viana casou-se então com dona Maria, filha de uma neta do
mesmo Pedro Velho, com um brasileiro. Três dos dez filhos de seu Marcelino Viana e
dona Maria moram em São Paulo, os outros sete casaram-se com índios e índias e moram
"dentro da aldeia". Esses sete filhos e os 30 netos gerados por eles são "registrados" como
índios no posto da FUNAI.
A inserção do seu Marcelino Viana nas redes de relações locais não é menos
significativa que sua árvore genealógica, exercendo um importante papel econômico e
religioso para seus vizinhos Pankararu. Por conseguir um saldo de culturas modesto, mas
constante, ele destaca-se na função de empréstimo de farinha para consumo imediato e de
grãos (feijão e milho), tanto para consumo quanto para semente, quando surgem as
oportunidades de plantio durante a época das chuvas. Por possuir algumas vacas e cabras,
pode igualmente servir de leite alguma mãe de recém nascidos ou promover uma
distribuição de carne de tempos em tempos. Esses serviços entram num circuito de trocas
de longo prazo, onde aqueles que se beneficiam deles podem se sentir ligados por laços de
obrigação durante alguns anos, principalmente se levarmos em conta que tais serviços não
são prestados apenas uma vez. Seu Marcelino Viana não retira lucro de tais serviços que
(espera-se) são retribuídos em iguais proporções. Isso também acontece com os
empréstimos em dinheiro. A soma das recém conquistadas aposentadorias dele e de dona
Maria, e do dinheiro enviado eventualmente por seus filhos de São Paulo, permitem um
saldo que é emprestado em pequenas quantias, geralmente pelo período de um mês.
No plano religioso seu Marcelino Viana é importante tanto como celebrador quanto
como mediador. Dono de uma capacidade retórica admirada por índios e não índios da
região, suas histórias e preleções são ouvidas com atenção e divertimento. Por seu
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 182
conhecimento das tradições, história e geografia religiosa da área e por conhecer pelo nome
a maioria e freqüentar um grande número de famílias indígenas, muitas vezes é chamado
para "puxar novenas", assim como para participar dos "Toré" realizados na seção norte da
área. Entre os "penitentes" que se reúnem na igreja central do Brejo dos Padres, é um dos
que dirigem as celebrações e organizam as procissões, em que participam um grande
número dos índios mais velhos e respeitados e um número menor de jovens. Como
mediador, o prestígio acumulado ao longo dos anos junto aos párocos de Tacaratu e
Petrolândia (para onde, nos bons períodos, sempre faz doações), serve para prestar favores
importantes à população local, quando empresta sua casa para a realização de missas ou
quando pede para terceiros a visita do pároco para a realização de casamentos ou extremaunções etc. Pedidos que, em geral, não eram atendidas de outra forma.
Assim, esse lugar de mediador externo do sr Marcelino diz respeito basicamente a
autoridades religiosas. Ele mesmo me contou e pude ouvir de outras pessoas, histórias em
que padres das cidades próximas só teriam ido até àquelas localidades realizar casamentos,
extrema-unções , batizados ou simples missas, através do empenho do sr Marcelino, sendo
que em muitas dessas vezes era na sua casa que tais cerimônias se realizavam. Não que a
sua casa fugisse ao padrão local ou que o sr Marcelino seja especialmente abastado, mas
porque isso é resultado de uma política de relacionamentos em que praticamente todo o
excedente econômico que ele consegue produzir é dispensado na alimentação das suas
relações com autoridades religiosas da Igreja ou locais, através de doações às festas, aos
santos e aos Praiá.
Porque ele e sua esposa possuem aposentadoria e porque todos os seus filhos já são
casados, o produto das suas 70 tarefas de roça (feijão, milho e mandioca - nunca com
menos de dois anos), de suas três vacas leiteiras e quatro cabras, lhe permite fazer vários e
sucessivos empréstimos em gêneros e em espécie para os moradores daquelas localidades,
doações ao cofre da igreja e farta oferta de carne e feijão nos Torés, quando é tradicional
que os Praiá percorram as casas para se alimentarem. Tudo isso acompanhado de uma
habilidade mnemônica e retórica especiais e reconhecidas por todos, muito úteis na
realização de sermões, das novenas dos penitentes, dos terços, dos Torés ou ainda em
situações excepcionais, em que já retirou espíritos ruins do corpo de pessoas, ou mesmo na
prosa cotidiana, em que é conhecido pelo prazer de contar casos e pequenas parábolas
moralizantes.
4
Tudo isso faz do seu Marcelino Viana um personagem muito conhecido, bem aceito
e, sob certos aspectos, necessário na área indígena. Mas afinal, ele é índio ou posseiro? A
definição identitária do sr Marcelino é extremamente delicada e é justamente aí que a sua
relação com os seus vizinhos torna-se tensa em função de duas graves falhas na
reciprocidade. A primeira se dá quando os recursos da FUNAI alcançam a área e são
distribuídos entre seus vizinhos, sem que ele seja contemplado. A segunda e mais
fundamental, está nas ameaças que correm na forma de boatos, sobre a sua expulsão da
área, quando a proposta total da terra indígena for aceita, tornando-o então legalmente um
posseiro. O importante é que a correção dessas falhas dependeria de um ato formal de que
já falamos em outras situações: o fornecimento de uma "carteirinha de índio", emitida pela
FUNAI. Ter uma carteirinha a princípio não mudaria o padrão de suas relações locais, mas
funcionaria como a contrapartida daqueles dons, tornaria perfeita a troca e romperia com a
distinção, de fundo mais jurídico que cultural ou afetivo, entre ele e seus vizinhos,
tornando-o um legítimo usufruidor das eventuais distribuições do órgão oficial e
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 183
encerrando com o perigo, que lhe ronda, de ser transformado em "posseiro" e expulso de
sua casa, distanciado de seus filhos e netos.
A emissão da "carteirinha", pelo que dizem ele e outros informantes, nunca foi um
problema e muitos índios e não-índios, principalmente comerciantes, mesmo sem qualquer
relação genealógica ou efetiva com a área, já teriam conseguido a "carteirinha", sendo que
o seu caso seria o mais justo dentre eles. De fato, existiram conversas com lideranças da
área, tanto do atual Entre-Serras, quanto do Brejo e nenhuma delas lhe impôs qualquer
problema, a carteirinha chegou a se confeccionada, mas o processo foi embargado nas
mãos da Quitéria Binga. É importante observar, no entanto, que nada foi claramente
formulado, nem o pedido, nem a recusa, nenhum argumento formal, que permitisse réplica,
mas que também impusesse um ponto final nas suas pretensões. As negociações sobre a
identidade de seu Marcelino Viana, assim como sobre a situação de um trecho do território
Pankararu e sobre uma definição local de índio, continuam, nesse caso, abertas. Ambos
dependem da extensão de certas relações de afinidade e reciprocidade, dependem, como
demonstrarei, de uma definição quanto aos embates políticos internos, definidores do
próprio território Pankararu.
5
As situações do Nivaldo e do sr. Marcelino tornam-se interessantes pelo contraste
nos termos em que foram negociadas, nos mediadores envolvidos, no tempo de resolução e
na sua própria solução, permitindo-nos uma visão um pouco mais complexa dos elementos
envolvidos na definição da identidade dos sujeitos que habitam o espaço da mistura. O
contraste entre essas duas situações e sua inteligibilidade deve ter como ponto de partida
alguns dos elementos descritos pelo arranjo territorial. Por isso, primeiro uma breve
retomada da situação na seção sul.
Ao realizar o acordo de 1987, as lideranças do Brejo delimitam como seu território
apenas os 8100 ha demarcados na década de 1940, centrando sua disputa na expulsão dos
posseiros do Bem-Querer, Caldeirão e Caxeado. Não existe portanto, a possibilidade do
arranjo sugerido pelo sindicato, segundo o qual poderia-se evitar a extensão da área ao sul,
com a conquista da área reivindicada ao norte. Isto porque, por um lado, tal proposta
desconhecia as repartições internas à própria área e tomava o território como um espaço
vazio, sobre o qual seria possível mover livremente a população. De outro lado, a própria
imagem das lideranças indígenas passava a estar vinculada àquele conflito, tanto para suas
lealdades internas quanto para suas fontes de recursos externos, servindo como justificativa
de suas demandas e funcionando como dramatizador do seu lugar de oprimido.
Nesse contexto a oposição entre índios e posseiros, que se estende pela imprensa
regional, que se torna tema das avaliações políticas internas ao sindicato, que tem sido
explorada nas eleições tanto ao nível municipal quanto estadual e federal, oposição que se
tem tentado contornar através de acordos sobre a re-alocação das fronteiras físicas entre
ambos os grupos, faz com que a questão sobre quem fica de dentro e quem fica de fora,
seja objeto de considerações periódicas. Se, por um lado, a convivência entre índios e
posseiros nos mesmos bares, nos mesmos carros de aluguel, no ônibus, na escola, na feira,
etc., tem favorecido as aproximações e a "mistura", por outro lado essa "mistura",
combinada com um discurso intensificado sobre o conflito, tem imposto aos "misturados" a
tomada de posições mais claras, exigindo a solução das ambigüidades que lhes são
constitutivas. Assim, as alianças e afinidades cristalizam-se como "tomadas de posição",
ainda que na maioria das vezes isso não signifique uma ruptura absoluta com aquele que
lhe passa a ser exterior, deixando estrategicamente abertas as possibilidades de novas
negociações. De qualquer forma, a questão do território vai impondo ponderações
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 184
explícitas a cada casamento misto realizado, a cada fase da vida dos filhos, a cada jogo de
futebol, a cada festa de São João.
Mas a mistura não se define positiva ou negativamente apenas em relação à
identidade indígena. Do outro lado desta faixa de indistinção a forte e histórica
sindicalização dos posseiros, assim como a forma como essa inserção política tem sido
construída através de praticas religiosas, da dinâmicas de formação de várias escalas de
lideranças, lhes serve como referência identitária positiva e oposta à identidade indígena.
Para eles não se trata de ser índio ou não-índio, mas de ser índio e subordinado à FUNAI
ou "trabalhador rural" engajado em lutas sociais, fortemente respaldadas por uma história
quase heróica de vitórias contra as barragens, que lhes fornecem uma identidade também
tendencialmente holista e não apenas presa à dicotomia provocada pelo conflito, como se
verá mais detalhadamente adiante.
Na seção norte ao contrário, as lideranças tem como seu maior objetivo a conquista
de uma área ainda não reconhecida, de preferência como área indígena independente do
Brejo para que se possa assumir a autonomia necessária em termos de recursos e serviços.
Nessa seção, até 1993, a questão de delimitar precisamente por onde passa a linha de
fronteira da área nunca ocupou diretamente a população local. Os moradores da região por
isso não tem tido que optar explicitamente por uma das identidades, fazendo com que sua
"mistura" não se opere entre categorias excludentes. De outro lado, como a região tem uma
baixa participação sindical, nunca existiu uma opção identitária positiva e excludente,
como na região do Brejo. Além disso, a necessidade de constituir um grupo forte que
justifique a formação de uma unidade administrativa independente, igualmente favorece as
inclusões e absorções, dando um sentido tendencialmente positivo aos casos duvidosos.
A demonstração mais cabal deste estado das relações de mistura foi expressa na
última discussão a que assistimos entre as lideranças desta seção e representantes da
FUNAI sobre a definição do corte a ser produzido por uma fronteira identitária que venha
distinguir quem fica dentro e quem fica fora da fronteira jurídica. Nessas discussões sobre
o número e os nomes das famílias que eventualmente deveriam sair no caso de uma
delimitação da área norte, o número variou entre 30, numa primeira lista feita pelas
próprias lideranças, e quase 400 famílias, quando a conta foi refeita sob a orientação da
FUNAI, que trabalhava com critérios estereotipados e externos à dinâmica própria da
mistura. Tal disparate significa, no mínimo, uma margem bastante ampla de negociação.
A identidade, como aquelas duas situações biográficas demonstram, não é apenas
contrastiva e operada por critérios internos ao grupo. Ela é fundamentalmente contextual e,
se não se prende a esquemas genealógicos, a quadros de origem geográfica ou religiosa,
não são por isso menos positivas ou submetidas a regras sociais passíveis de avaliação pela
população local. Isso sugere que o território Pankararu depende do citado sistema de
sobreposições territoriais combinadas, mas também ajuda a postular uma relação entre esse
sistema e uma topologia das identidades, onde a relação entre índio e terra não é negada,
mas retomada num outro plano, que não os supõe ligados por uma necessidade, causa ou
efeito, mas por uma relação de construtividade, contextual, de jogo de linguagem e trocas
sociais, circuitos materiais (econômicos e genéticos) representáveis espacialmente.
Como deve ter ficado claro, ao argumentar pela identidade indígena de uma das
lideranças dos posseiros, o sindicato não tinha em vista a solução de uma injustiça pontual,
sua estratégia era atingir diretamente a legitimidade da reivindicação territorial Pankararu
através da exposição máxima do dilema da mistura através da exploração de uma situação
individual. Contornando a etiqueta política que se interpõe às suas declarações oficiais, que
não lhe permite questionar diretamente os direitos indígenas, ou a sua identidade, a solução
encontrada é sugerir a dúvida por recurso à metonímia. Mas a lógica que rege essa
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 185
estratégia é a mesma que já vimos funcionando no depoimento de José João: reivindicar a
virtualidade da identidade indígena através da redução desta identidade ao seu aspecto
formal, isto é, "ser registrado no posto", na expectativa de revelar por um lado, o arbitrário
de ser ou não índio (portanto, de ser ou não posseiro) e por outro, que a sua disputa não é
exatamente com os índios, mas com o aparelho burocrático que, assim, não os representaria
perfeitamente, a FUNAI. Esse exercício de sociologia prática por parte dos líderes sindicais
não deixou de ter efeitos sobre a população local, em especial sobre a parte indígena da
família do Nivaldo, mas foi nula do ponto de vista legal, onde prevaleceu a decisão das
lideranças indígenas mais engajadas e igualmente atentas para a mesma questão.
A construção do contraste
Nos itens anteriores procuramos delimitar quais seriam as principais situações em
que a identidade Pankararu teria que negociar com as possibilidade de distancia e
aproximação e quais as possibilidades que os pertencimentos categoriais abririam para isso.
Buscamos assim, dar alguma realidade e validade para a idéia do território topológico, um
território definido pela série de posições recíprocas dos sujeitos e não por fronteiras
administrativas, a que uma análise da relação entre identidade e território deveria fazer
menção. No entanto, um ponto importante deste jogo entre formas de produzir distancias e
aproximação, ainda permanece obscuro.
Se até aqui a perspectiva que concebe o tema da identidade em termos
exclusivamente contrastivos foi contraposta a uma perspectiva centrada na
contextualidade, o reducionismo da fórmula "auto-identificação" pode ainda ser submetida
a outro tipo de consideração crítica, retomando algumas sugestões já indicadas nas páginas
anteriores: a opção entre ser e não ser índio não é uma opção entre identidade e não
identidade. A alternativa à indianidade ou ao ser-Pankararu não é o vazio identitário que a
antropologia do contraste reúne sob as categorias também vazias de "nacionais", "brancos",
"regionais" etc.
Durante a experiência de campo foi impossível fugir à pergunta sobre o porque de
alguns sujeitos terem optado em negar a possibilidade de “se assinarem no posto”. A
resposta que toma como centro explicativo o estigma, parecia-me muito genérica e externa,
até mesmo um pouco deslocada naquela situação. Na busca de uma resposta mais
etnográfica ficou claro que do "outro lado" do limite social traçado pela categoria "índios",
a categoria “posseiro”, cujo uso se arrasta por mais de 50 anos, deveria ter produzido ou ter
sido produzida simultaneamente a algum pertencimento menos contingente. O subtítulo a
seguir interessa-se justamente em trabalhar com as possibilidades abertas por essa questão,
cuja relevância, acredito, está em revelarem como os processos identitários são de mão
dupla e que diferentes tipos de recorte, como os de classe e etnia, apesar de sempre terem
ocupado profissionais entre os quais o diálogo é muito frágil, possuem homologias que
devem ser exploradas.
1
Num primeiro momento, as famílias atingidas pela demarcação da área indígena se
auto-designavam “condôminos” de propriedades que percorriam uma cadeia dominial
iniciada no Garcia D´Ávila da Casa da Torre em fins do século XVIII e que os atingia por
mecanismos de partilha e herança. Neste caso a situação de "poprietários" sempre foi
evidenciada e as primeiras tentativas de negociação sempre foram intermediadas por
autoridades locais, com os quais mantinham relações de parentesco. Seja através da
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 186
descrição das relações de patronagem que mantinham com os Pakararu, seja através da
demonstração da relação que mantinham com aquelas autoridades, o discurso das antigas
lideranças dos posseiros, surgidas naquele primeiro momento, é marcado pela tentativa de
delimitação de uma diferença que é de status social e de comportamento, cabendo aos
índios o tradicional lugar de cachaceiros, traiçoeiros, preguiçosos etc. No trecho que se
segue uma das maiores lideranças deste período conta parte do périplo que foi necessário
para conseguir as certidões de propriedade das terras ainda hoje em litígio. Meu interesse
neste depoimento, no entanto, está na forma pela qual ele ainda manifesta uma forma de
distinção, todo o tempo sublinhada.
Quando eu fui a Petrolândia eu fui lá no cartório, o tabelião muito meu
amigo, o juiz muito meu amigo, ele disse "Maurício, o que eu posso fazer
para facilitar, porque vai ser 60 mil cruzeiro a mais pra fazer essa
retificação. Você... eu vou fazer uma petição em seu nome, como
advogado, encaminho ao juiz de direito e assim você me dá um despacho
nisso, porque vai ser uma coisa absurda isso que você tem a pagar por
essa retificação". Bateu o documento, eu assinei, aí ele tocou para o juiz,
o juiz muito meu amigo concedeu retificação e tudo.[...]. Levei todos os
dados, entreguei ao juiz federal, ele combinou, veio o Dr. Dernival José
de Moura, que era nosso advogado, aí diz: "Doutor, o que temos a
fazer?" Diz ele: "Tem que ir a Brasília buscar a cópia da sentença" Veja
bem: no dia 22 de dezembro, às duas horas da... às 8 horas da manhã...
[interrupção: uma moça entra na sala onde conversávamos] Essa é
minha filha, que é esposa do presidente da câmara de vereadores. [...] É
chefe de seção do DRE - Departamento Regional de Educação e
Cultura... Bem, conclusão, o que aconteceu: peguei um ônibus pra
Governador Valadares, para pegar um avião para antecipar a viagem.
Mas houve uma atrapalhada eu cheguei uma hora da tarde e o avião
tinha partido ao meio dia para Brasília. Aí eu peguei o Vitória-Minas,
trem de luxo.
[...]
Deu 4 horas da tarde tava tudo encadernado, ela mandou que eu fosse
olhar o serviço que não era muito bom, Tava o secretário geral, muita
gente. Eu agradeci a todos: "Quanto custa?" "É 15 mil cruzeiros".
Paguei, dei uma gorjetinha de 10 mil cruzeiros, naquele tempo era um
dinheirão, o rapaz ficou tão contente. (Odilon Gomes Maurício)
Ao longo da década de 1980, no entanto, as novas lideranças dos posseiros
mudariam radicalmente seus procedimentos e seu discurso, impondo uma censura, ou
etiqueta, ao discurso vigente sobre o conflito. Os posseiros de Bem-quer, Caldeirão e
Caxiado, principais focos do enfrentamento, se engajariam na militância sindical e, a partir
da década de 1970, participariam ativamente da reformulação do sindicato local , inclusive
através da participação nos quadros de sua diretoria. Nesse processo, as novas gerações de
posseiros assumiriam uma nova identidade social ("trabalhadores rurais") e, a partir deste
pertencimento, seriam introduzidos em círculos mais amplos de identidade, regionais e
nacionais, marcados por um discurso classista, onde a ênfase no lugar do oprimido é
também um elemento chave.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 187
2
No sub-médio São Francisco o sidicalismo mais combativo cresce como
conseqüência do conflito determinado pela expulsão dos camponeses da área de influência
da UHE de Itaparica. Sua construção foi aprovada em 1975, tendo como previsão do
término das obras o ano de 198354 e os primeiros conflitos decorrentes do início dos seus
trabalhos ocorreram por ocasião do deslocamento da população da área do canteiro de
obras em outubro de 1976. Dois anos depois foi realizado o Encontro de agricultores de
Petrolândia no qual representantes de comunidades ameaçadas começaram seu processo de
organização e, em conseqüência dessa mobilização, cria-se em 1979, uma articulação de
vários sindicatos sob o nome de "Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco".
A história da mobilização camponesa no sub-médio São Francisco e em especial em
Itaparica ainda não recebeu a mesma atenção dispensada sobre outras comunidades
atingidas por barragens. No pouco que se escreveu, o interesse pela mobilização e pelas
condições sociais dessa mobilização está orientado por uma filosofia da história ligada a
determinismos de classe e que não se atém a processos de construção identitária. O
interesse recai então, em primeiro lugar, sobre os "fenômenos inibidores" da formação de
um sindicalismo combativo no sertão, num momento de plena mobilização política
nacional, trabalhando-se sobre a suposição de que o, poderíamos dizer, natual, seria a
passagem imediata de uma coisa à outra (PANDOLFI,1986). As razões dos “fenômenos
inibidores”, por seu turno, serão encontradas em processos macro-econômicos ou em
estruturas sociais subjscentes que, no entanto, poderiam ser encontradas na própria região
da Zona da Mata, principal parâmetro comparativo. Nesta perspectiva, a relação entre
barragens e mobilização é suposta também como direta e natural, ainda que se reconheça
alguma importância à mediação55 das pastorais religiosas nesse processo de mobilização,
como fica claro na descrição feita do encerramento da segunda concentração de
trabalhadores em Petrolândia:
Os trabalhadores se encaminharam em procissão pelas principais ruas
da cidade até a Igreja da Matriz, carregando suas faixas, cantando hinos
feitos por eles próprios e que contam sua luta. Na Igreja, todos rezam o
Pai Nosso de mãos dadas e encerrando a concentração Dom José
Rodrigues deu a benção a todos os trabalhadores e incentivou a todos
continuarem a sua luta pela terra. (Pólo Sindical do Sub-médio São
Francisco. 2a. Concentração dos Trabalhadores rurais da barragem de
Itaparica. Apud PANDOLFI, 1986)
A hipótese expressa em Pandolfi (1986) é que "independentemente da orientação
que possa ter sido oferecida pelos representantes da Igreja Católica, o momento de
resistência teria ocorrido de uma maneira ou de outra, tendo em vista que, por detrás de
tudo, se sobrepunha a forma violenta como se realizou a expulsão dos moradores de
Sobradinho e de Moxotó." (PANDOLFI,1986. Grifos meus). Isso porque tais expressões de
religiosidade não são pensadas como parte de um processo de produção de grupos, mas
como manifestações de um contínuo que leva “grupos” (tomados como realidades pré54
Na verdade as obras só se encerraram em 1987 e as comportas acabaram de ser fechadas em 1988.
Na verdade o termo mediadores não é utilizado pela autora, que pensa a atuação dessas pastorais em
termos de “vanguarda”, retirando daí uma série de problemáticas particulares a este tipo de análise e que lhe
dão um forte teor evolucionista, como o dilema analítico e ideológico, apresentado como problema histórico e
sociológico, da dicotomia "vanguardas"/"espontaneismo" camponês (PANDOLF,1986).
55
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 188
existentes) do "misticismo do passado [...] a um realismo diretamente compromissado com
a reprodução social do trabalho" (Paulo Henrique Martins, Coronelismo, poder burguês e
movimentos populares. apud PANDOLFI,1986).
Ao optarmos no entanto, em pensar a política como produção identitária, o que
passa a ser importante é justamente essa "de uma maneira ou de outra" em que as relações
se estabelecerem. E são nelas que a relação entre mobilização contra a expropriação da
CHESF, construção de uma identidade de trabalhador rural e a oposição desta identidade à
de índios se estabelece. Em lugar de resposta natural à esta desterritorialização, a
emergência daquele agregado de famílias como grupo político está relacionada a um
demorado trabalho prévio, desenvolvido ao longo da década de 1960, de investimento
simbólico sobre a categoria de "trabalhador rural", baseado nas relações rituais de uso
tradicional entre as comunidades locais, ainda que reinvestidos num discurso onde o termo
chave é a "luta".
3
Ao contrário do sindicalismo rural pernambucano da Zona da Mata, de longa
tradição em mobilização política com reivindicações trabalhistas, o sindicalismo no sertão
do sub-médio São Francisco, até meados da década de 1960, desempenhava funções
exclusivamente assistênciais e, de fato, foi apenas com a ameaça de despossessão gerada
pela construção da UHE de Itaparica e a conseqüente subida do lago formado por sua
barragem que esse sindicalismo passou a desempenhar um papel combativo.
A relação entre ameaça e mobilização, no entanto, não é natural, ela está
estreitamente vinculada a um trabalho de revalorização de suas bases e particularidades
culturais, sem a qual não é possível compreender a distância e a oposição construídas entre
as categorias de índio e trabalhador rural, ao menos nos Municípios de Petrolândia e
Tacaratu. A identidade de "posseiros", por isso, não se fez simplesmente em oposição à de
"índio" (a pura contrastividade), mas esteve intimamente ligada à construção da categoria
mais geral de "trabalhadores rurais", sustentada num novo arranjo discursivo em cujo
centro está, de um lado, a noção de "luta" e de outro o lugar do oprimido, que passa a ser
um lugar em disputa.
É preciso recuperar o processo de construção desta identidade em seus traços mais
gerais, na busca da chave que permita compreender tais oposições e sobreposições
discursivas. A pessoa que se tornou a mais importante referência deste processo nos
forneceu uma longa narrativa sobre as estratégias de mobilização inicialmente adotadas,
onde fica evidente a importância de uma mobilização de fundo cultural e tradicionalista na
construção da identidade de trabalhador rural. Ao contrário da oposição que uma
perspectiva evolucionista gostaria de estabelecer entre o misticismo do passado e uma
racionalidade moderna do movimento sindical, esse depoimento e os que lhe seguirão
enfatizam a continuidade e, algumas vezes, a unidade entre eles. No depoimento a seguir a
então jovem freira que militava entre as famílias que possivelmente seriam atingidas pelo
lago formado pelas barragens, nos fornece um relato de suas estratégias de mobilização da
população local.
... Uma das coisas que eu tinha atenção era de ver quais seriam as que
eram consideradas líderanças e não líderes...Porque toda a comunidade
tem gente com jeito para várias coisas, um tem pra festa, um tem pra
dança, um tem pra isso, pra aquilo, então o grupo era um grupo variado,
era os que dançavam, os que rezavam, por isso que tinham as danças de
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 189
São Gonçalo, as corridas de cavalo, essas coisas. Sempre tem umas
pessoas que organizam e eu trabalhava com as lideranças dos diversos
dons... Eu colocava nesses termos: que Deus deu dons a cada um e cada
deveria desenvolver os seus dons, então cada um apresentava o que
gostava mais de fazer, esse era o grupo...quer dizer não era questão
política nem nada. Era em cima do que eles gostavam de fazer e a partir
dali se refletia o que fazer. Sempre em cima de atividades concretas,
relacionando isso com o que queriam mudar ou não, ali ou em outra
situação. E articulava. Por exemplo, o grupo de reisado que havia aqui,
ia preparar o reisado lá da volta do Moxotó, o outro ia preparar a
novena [...]. aproveitando os pontos de convergência...[...]
...E então pegava esse grupo que tinha uma tradição, pessoas idosas que
traziam aquilo com toda a garra, então pegava esse grupo e um daqueles
que já estavam na quarta ou quinta geração, que era mais um grupo
jovem que fazia aquilo, mas fazia mais rindo [...] então juntava com
esses, juntava com outros e ia discutir, como é que eles viam, como eram
aquelas historias ali, e reconstruía as vezes as questões que eles tinham
ali...era por aí, então o pessoal começava a se expressar pra outras
pessoas e não só pra dentro...[...]
... os grupos eram formados por lideranças diversas e ali se refletia cada
aspecto daquela questão a partir de um conjunto maior, como isso se dá
no pais, como isso acabou, por exemplo, se você pega do ponto de vista
das danças, você tentava mostrar como foi que aquilo aconteceu nessa
civilização brasileira, era interessantíssimo o pessoal se sentia mesmo
como aqueles que conseguiam trazer até hoje uma coisa que foi cortada,
começavam a se sentir orgulhosos de ter aquilo ali. As vezes tinha
comunidade que tinha vergonha, diziam: "agente tem umas dancinhas
aí...", eu perguntava que dancinhas são essas?, eu venho participar. "Ah,
a senhora não vai gostar não...". Aí depois eles se sentiam bem, achavam
que eram os tais por terem conseguido durante anos e anos, centenas de
anos, ter aquela tradição que muitos tinham perdido, então começava
por aí, valorizando a cultura, valorizando o que eles tinham no
momento... E depois, começou a pensar. melhor nas questões de outro
nível, fora da própria bíblia, mas sem perder de vista isso, uma coisa que
eu acho que valeu a pena ter seguido essa linha foi de não quebrar o que
eles valorizavam, e uma coisa que eles valorizavam muito aqui era a
questão da reza... (Josefa Alves Lopes de Barros56)
56
Josefa Alves Lopes de Barros, natural de Alagoas, cerca de cinquenta anos, mais conhecida nos círculos
sindicais e entre a população camponesa local como Josefina ou Fina, no início da década de 1960, recém
ordenada freira, fazia parte dos quadros da pastoral de Petrolândia. Depois de ter passado por cursos de
formação teológica e sociológica em São Paulo e em Recife, onde formou-se como assistente social, Josefina
começaria a desenvolver um trabalho de aplicação das idéias da Teologia da Libertação a partir do incentivo
à formação de comunidades de base, num método que se aproximava mais da perspectiva da Comissão
Pastoral da Terra (da Bahia) do que daquele que as dioceses locais de então esperavam. Isso fez com que ela
se chocasse diretamente com a orientação do Bispado de Pernambuco, à qual estava subordinada. Depois de
uma série de desentendimentos entre ela e o pároco de Tacaratu, decorrente de seu trabalho junto à população
local, ela seria afastada daquela diocese e mais tarde se desligaria da Igreja, como forma de voltar à sua
militância. Depois deste desligamento Josefia se instalaria na região, primeiro de uma forma extremamente
precária, sem salário fixo e vivendo basicamente de doações dos camponeses, para formação dos "quadros"
do Pólo Sindical. Hoje Josefina exerce a função de assessora do Pólo e de outras entidades sindicais rurais.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 190
Neste relato duas coisas importantes ficam claras. Primeira: ao contrário do que
previa a estratégia da CHESF (não divulgar os mapas do lago projetado, para manter a
desmobilização) e justamente por causa dela, o processo de mobilização de comunidades
locais contra a barragem de Itaparica ultrapassou em larga media o número de daquelas que
viriam a ser atingidas. Segunda, que em parte explica a primeira: o início desse processo de
mobilização tomava como ponto de partida a discussão de questões que estavam em pauta
nas próprias comunidades, não impondo inicialmente, nem o tema das barragens, nem um
discurso de classe, o que fez com que aquelas populações passassem a se pensar e se
mobilizar, ao menos inicialmente, mais em termos que remetiam a uma forma de vida e de
sociabilidade "tradicionais", do que como "vanguarda" sertaneja ou qualquer outra
perspectiva "moderna".
Assim: A) apesar das comunidades do Brejo dos Padres e do Bem-Querer,
Caldeirão e Caxiado não terem sido atingidas pela barragem, elas foram objeto de
mobilização; B) nesse processo, o tema privilegiado, imposto como problema fundamental
pelas próprias comunidades, era a definição dos limites da área indígena, questão com a
qual já conviviam há 20 anos; C) ao se constituírem como grupo mobilizado, perceberamse não apenas como "nacionais" ou "regionais", mas como um grupo cultural, cujos laços
eram também de natureza lúdica e religiosa.
Aos olhos da equipe pastoral, pronta que estava em reforçar para ressignificar tais
tradições, aquelas famílias não se diferenciavam substantivamente das outras, caboclas ou
indígenas, pouco importava para sua práxis política. Em função disso, a equipe pastoral se
propôs promover encontros entre índios e posseiros como forma de viabilizar negociações
diretas. Algumas destas reuniões chegaram a se realizar, mas foram sistemática e
progressivamente deslegitimadas e mesmo obstruídas pela FUNAI.
O que agente achou sempre era que, quando agente conseguia que os
índios que estavam junto dos posseiros, [...], começava a pensar que
agente podia trabalhar por índios e posseiros, aí vinha a interferência da
FUNAI. Eles não tem uma autonomia de estarem sós, de sentarem lá e
conversarem tudo, do ponto de vista organizado e resolverem alguma
coisa. Quem trata da questão da terra alí é a FUNAI. [...] Ainda teve um
momento que se formou uma comissão mista de índios e posseiros, já
mesmo com a FUNAI presente, mas que agente queria que eles
dialogassem entre eles, que cada um trouxesse as questões e colocasse
em discussão, agente chegou a fazer isso umas duas ou três vezes.
Depois foi feita uma visita, esse rapaz que fez os mapas, ele fez junto
com um grupo dos índios que eles conheciam um mapa de
consenso...mas aí a FUNAI não aceitou, as lideranças já tinham
aceitado, porque em vez de fazer uma linha reta, eles faziam uma linha
onde faziam curvas que obedeciam as terras dos posseiros mais pra cá e
dos índios mais pra lá... (Josefa Alves Lopes de Barros)
A viabilidade dessas negociações para a equipe pastoral estava justamente no fato
de tomar aqueles dois agregados, distintos pelas categorias de índios e posseiros, como
fazendo parte de um mesmo grupo mais amplo, de uma mesma classe de trabalhadores
rurais, e portanto com interesses, de classe, comuns. Suas diferenças culturais e rituais não
lhes pareciam maiores que a variedade cultural e ritual existente entre aquelas e outras
comunidades camponesas, e em lugar de obstáculo eram vistas como motor do próprio
trabalho de mobilização. No entanto, não só as tentativas de negociação conjunta foram
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 191
frustradas, como o próprio trabalho da equipe pastoral dentro da área indígena se encerrou
em pouco tempo. O lugar do oprimido assumido pelos Pankararu, ao se colocarem como
objeto da tutela, tece como vimos (Cf. Capítulo 2/1), um discurso onde o que passa ao
primeiro plano é a dependência que mantém com relação ao governo-pai: seus direitos
emanam d'ele e por isso a ele devem obediência, suas terras não são suas, mas d'o governo,
e por isso, o conflito não é com eles, mas com o governo. Os Pankararu não se concebiam
com autonomia para negociar diretamente com os posseiros, porque aqueles que seriam
seus mediadores (a FUNAI), tém sua razão de ser numa concepção que os toma como
primitivos mudos ou incompetentes de se auto-representar. Na verdade, o que a equipe
pastoral tratava em termos de mediação, na verdade, na relação travada entre os Pankararu
e órgão oficial era de fato e de direito uma relação tutelar.
O lugar do “terceiro” (SIMMEL,1986) que a pastoral pretendia ocupar, como
“imparcial”, já era ocupado para os Pankararu, pel'o governo, não como imparcial que
viabiliza acordos entre as partes, mas como tutor que se responsabiliza pelo destino de uma
dessas partes. Isso somado à perda de confiança do grupo indígena no grupo da pastoral,
decorrente de sua freqüente movimentação entre os posseiros, levou a um incidente, dentro
da área indígena, em que os pneus do carros das freiras foram furados e elas ameaçadas,
dando fim ao trabalho junto aos Pankararu. A contrapartida deste afastamento foi uma
maior aceitação da pastoral entre as comunidades de Caldeirão, Caxeado e Bem-querer,
onde passaram a sobrepor então, às discussões sobre a área indígena, as relativas à
mobilização contra a subida do lago de Itaparica.
O resultado foi uma intensa participação dessas comunidades na fundação do novo
formato sindical na região, onde os posseiros da área indígena vieram ocupar cargos de
direção em sucessivas diretorias e na própria presidência do sindicato e do Pólo Sindical.
Depois da subida do lago, em 1989, essa preponderância ficou ainda mais evidenciada, já
que por não serem atingidas pelo lago, ficaram fora da ampla desagregação provocada
sobre as outras comunidades desterritorializadas e distribuídas arbitrariamente pelas
agrovilas, onde não só vizinhos, mas as próprias famílias foram separadas.
4
Uma série de condições especiais, que se somaram as apontadas acima, permitiram
que aquele conjunto de famílias de posseiros litigantes com a área indígena se tornasse um
importante (talvez o mais importante) núcleo de militantes deste novo sindicalismo.
Condições que ajudam a explicar um pouco da conflitante relação entre grupos indígenas e
o sindicalismo rural de toda esta larga região do São Francisco.
Uma marca fundamental do movimento camponês local sempre foi a grande
heterogeneidade das relações de produção vigentes na região antes das alterações
provocadas pela UHE: pequenos proprietários, posseiros, parceiros, arrendatários e
assalariados. Neste quadro coube pouca capacidade de mobilização àqueles que não eram
proprietários ou tinham a posse da sua terra de trabalho, sempre integralmente absorvidos
pelo processo de trabalho, do qual não tinham o controle (PANDOLFI,1986). Isso
funcionou como um critério de seleção para aqueles que se tornariam lideranças do STR e
do próprio Pólo Sindical. O fato das terras indígenas não terem sido atingidas pelo lago,
privilegiou aquelas famílias de posseiros ao coloca-los numa situação em que,
simultaneamente, estavam na luta pela reposição das parcelas alagadas, mas não tinham
sofrido o grande impacto desmobilizador que consistiu na transferência para as agrovilas,
já mantinham suas moradas, grupos de vizinhança e núcleo de mobilização dentro da área
indígena.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 192
Associada a esta adequação sociológica, aquelas famílias
de posseiros
radicalizariam o seu distanciamento com relação aos "índios" por meio da constituição de
um discurso específico sobre a "luta" e do lugar nele ocupado pelo Estado. Esse discurso
têm forte sustentação numa determinada configuração social das relações de poder locais,
em que as relações de dependência e parceria anteriores à construção da barragem de
Itaparica não opunham pequenos a grandes proprietários, nem supunha sempre a oposição
entre a propriedade e a não-propriedade da terra como foco das relações de poder. Muitas
vezes a dependência se estabelecia entre proprietários e não-proprietários dos meios de
produção, em especial das bombas de irrigação, que depois da UHE perderiam sua
utilidade. Assim, o campo de ação do sindicalismo não se estabelecia sobre as relações
patrão-empregado, nem entre posse-grilagem de terras, mas sobre os efeitos específicos da
intervenção territorial de um projeto governamental de grande escala que unificaria, ao
menos temporariamente, diferentes segmentos sociais igualmente expropriados. As
informações sobre a estrutura agrária e de ocupação da mão-de-obra, ilustram em parte essa
situação.
Utilização da terra
Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985)
1975
1985
Sertão do S.
Petrolândia
Sertão do S.
Francisco
Francisco
Total = 100%
888323
23643
969020
Lavoura %
9,1
21,6
14,1
Pastagem %
79,7
52,3
22,5
Matas/Florestas
3,7
4,4
49,8
%
Não utilizadas % 8,2
21,5
13,5
(Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44)
Petrolândia
16280
28,8
21,5
33,9
15,7
Condição do produtor em Petrolândia (1975-1985)
total= %
Proprietários Arrendatários Parceiros % Ocupantes
%
%
%
n.
área
n.
área
n.
área
n.
área n.
área
estab. ha
estab. ha
estab.
ha
estab. ha
estab. ha
1975 1281
25167 73
84,2
0,1
0,01
0,1
4,7
26
11
1985 1309
16722 76
90,4
3,3
1,3
6
2,2
15
6
(Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44)
Relações de trabalho
Comparação entre Petrolândia e sua Micro-região (1975-1985)
1975
1985
Sertão do S.
Petrolândia
Sertão do S.
Francisco
Francisco
População total
65688
5688
89060
Não-assalariado
58911
5284
72198
Assalariado
1154
75
3321
permanente
Petrolândia
4002
3653
118
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 193
Assalariado
2355
310
7889
214
temporário
Parceiros e
3268
17
5654
17
outros
(Fonte: Censo agropecuário 1975 - 1985 IBGE apud Diagnósticos... DOC.:44)
Mesmo depois da implantação da barragem e de todo o desenvolimento de infraestrutura decorrente dela, os pequenos agricultores, com menos de 10 ha somam 72.8% e
ocupam 21,2% da superfície agropecuária do município. Do total de produtores a grande
maioria (92%) pratica agricultura familiar, sem a contratação de outras formas de mão-deobra. O grande número de migrantes fez com que o município de Petrolândia crescesse
5,03% entre 1970 e 1980 (enquanto o crescimento de sua micro-região foi de 3,5%) e
38,8% entre 1980 e 1990, levando de uma população de menos de 23 mil habitantes no
início deste período para a de 32.934 no início da década de 1990, mas a estrutura das
relações de produção e trabalho continuariam em boa medida semelhante, no que
importava à atuação sindical.
Como vimos, as agrovilas absorveriam direta ou indiretamente uma grande parcela
desta população, através dos reassentamentos oficiais ou das ocupações ilegais, e a "luta"
continuaria sendo definida em relação aos poderes públicos, em especial a CHESF. Tudo
isso convergiu para que o campo de ação privilegiado para a militância sindical não
residisse nas relações de trabalho, mas no embate com aparelhos de poder estatais no
sentido da reparação dos danos provocados pelo impacto territorial de políticas públicas de
larga escala, ao longo da últimos vinte anos. Por isso, a capacidade de mobilização e o
delineamento do discurso e das estratégias básicas de enfrentamento que permitiu a
incorporação de diferentes segmentos camponeses numa mesma "luta" foi o enfrentamento
com o Estado.
Fica evidente o contraste com o discurso indígena, em que o Estado, o "governo",
assume o papel de protetor, de reparador das perdas e não como aquele que as inflige.
Neste contexto específico, a "luta" se opõe aos "direitos", o enfrentamento se opõe à
proteção e as alianças passam a ser francamente polarizadas. Desde as primeiras viagens de
João Moreno, na década de 30, despontam como personagens importantes na mediação em
direção aos "direitos", representantes locais do exército e das companhias agrícolas de
desenvolvimento, assim como os responsáveis pelas obras da UHE de Paulo Afonso. Tal
polarização será reforçada pela ação do exército na expulsão de posseiros na década de
1960 (época em que se iniciavam as primeiras mobilizações contra as barragens) e da
Polícia Federal na década de 1980 (período em que se dão as mais fortes mobilizações,
inclusive com a invasão e paralização do canteiro de obras da UHE).
Estas polarizações não permaneceram, por isso, confinadas às relações mais diretas
e locais: dos 20 diretores que compõem o STR de Petrolândia, a maioria é de reassentados;
todos fazem parte da direção do Pólo Sindical, que é filiado por sua vez, simultaneamente,
à CUT e à FETAPE; e muitos apresentam fortes vínculos com outras entidades e partidos
políticos, no desempenho de múltiplos papéis sociais57. Como parte integrante desta
militância sindical, a atual geração de posseiros da área indígena é também introduzida
num círculo de pertencimentos e de discursos mais genéricos que, paradoxalmente, ao
estabelecer a conexão entre o local e o global, faz que discursos até então substantivamente
57
Em 1991 eles se distribuíam da seguinte forma: 1 membro da direção da CUT-PE; 1 presidente do PT
local; 1 vereador pelo PT; 1 diretor de uma Associação de Irrigação, entre outras participações de menor
destaque.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 194
opostos se sobreponham e entrem numa espécie de curto-circuito simbólico. Como
representante da classe trabalhadora rural do sub-médio São Francisco, como braço local
de organizações sindicais e partidos de esquerda de amplitude nacional, os posseiros
engajam-se num discurso homogeneizador onde eles e os índios fazem parte de um mesmo
universo de oprmidos. Nada mais distante porém, de qualquer possibilidade de realização
prática.
De um lado o discurso sindical, ao falar em nome dos posseiros enfatiza a violência
da Polícia Federal em suas intervenções sobre a área em litígio, o trabalho sistemático da
FUNAI e de seus advogados no sentido de produzir situações de impasse e de forjarem
para a imprensa e para a justiça um conflito que na verdade não existe, já que são todos
amigos, jogam bola juntos etc. Segundo esta versão, reeditando um discurso permanente e
sustentado também por um aspecto da representação indígena (Cf. Cap2/1), o conflito não
é entre índios e trabalhadores rurais, mas novamente entre trabalhadores rurais e aparelhos
de Estado, cujos agentes manipulam a situação local e a ingenuidade política do grupo
indígena, para alcançar ganhos políticos municipais, estaduais e mesmo nacionais. Para os
círculos mais amplos a que estão ligados e com os quais sua imagem está comprometida, é
virtualmente inconcebível que trabalhadores mobilizados, ligados a uma perspectiva
progressista, estejam contra os índios, a fração oprimida por natureza de nossa sociedade,
símbolo nacional do politicamente correto. Isso leva os mediadores de ambos os lados,
aliados em outras situações por representarem classes igualmente oprimidas, a se
confrontarem com o curto-circuito discursivo provocado pela impossibilidade de espelhar
no outro o dominador. Ao encarnarem a dualidade que sustenta o seu próprio lugar de
mediadores, são obrigados a reposicionar seus pares em campos homólogos. O recurso em
negar o conflito com os indígenas permite a esta militância reintroduzir na relação o seu
inimigo permanente e reassumem o lugar de oprimido, tornando novamente claras as
posições ocupadas:
A luta contra as barragens deu um nível de consciência maior pelo fato
de ser clara, de saber contra quem se está lutando, contra alguém que é
o governo, ou quando são os grandes proprietários. A questão indígena é
mais difícil de compreender, porque ela não consegue clarear... (Josefa
Alves Lopes de Barros)
Assim, apesar das coincidências no que diz respeito aos problemas com a seca, com
a implantação de políticas e serviços públicos e outras questões muitas vezes abordadas
pelas lideranças indígenas e sindicais, não é possível sobrepor as categorias índio e
trabalhador rural, a não ser que uma delas perca todo seu conteúdo identitário e passe a
apontar apenas um pertencimento categorial. Isso fica claro nas situações criadas pelos
sucessivos encontros promovidos pelo Fórum da Seca:
...Os encontros de seca estavam tratando de questões mais gerais, nós
tentamos várias vezes, aí foram muitas vezes, nós fazíamos o convite,
mandávamos prá lá, falava com a FUNAI pra liberar, porque para a
participação dos índios eles precisam ser liberados, conversava com os
próprios índios sobre a importância..., com as próprias lideranças [...],
mesmo não podendo mais fazer o que fazia, agente queria pegar por um
ângulo mais amplo. Pra ver a possibilidade de reagrupar, de ter
reaproximações [...]. Cada vez que tinha um encontro, cada ano, agente
considerava que não tinha acontecido nada e fazia de novo o convite.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 195
[...]... cada vez que acontece uma luta que seja mais geral, é importante
a participação, sendo índio ou não índio, porque na verdade existem
muitas situações em que eles são atingidos igualmente, e a seca é uma.
Tem áreas ali que na seca são problemáticas mesmo, a não ser os que
moram na várzea, e por isso poderiam tratar das questões mais gerais
juntos. [...] Aí é que eu vejo que a FUNAI sempre foi um entrave, porque
nunca liberou o pessoal para participar dos encontros maiores, só quem
participava eram os índios que já estavam fora, na área dos posseiros,
como a dona Dedé e outras. (Josefa Alves Lopes de Barros)
Existe, portanto, uma distinção entre índios que estão "dentro" da área indígena e
índios que estão "fora", cabendo a estes uma maior autonomia para participarem das
"questões mais gerais". Os Pankararu que têm uma tal autonomia estão em geral , em uma
das situações de desterritorialização e reterritorializações que descrevi, mas no que diz
respeito especificamente à participação em questões capitaneadas pelo STR, estes índios se
concentram nas agrovilas. Isso nos abre, finalmente, uma última área de investimento com
relação ao que chamei de políticas de identidade. Se a situação biográfica do sr. Marcelino
Vianna ajuda a compreender como funciona a micropolítica do ser e não ser quando as
categorias em oposição são "índio" e "posseiro", no coração mesmo da área indígena, a
seguir procuro dar inteligibilidade a esta micropolítica quando as categorias em oposição
são "índio" e "trabalhador rural", na fronteira mais distante deste território topológico,
numa área de gravidade quase zero.
Se os cenários de desterritorialização descritos anteriormente permitem uma visão
genérica e sincrônica dos espaços de dispersão e distinção, este último fôlego investe sobre
uma visão pessoal e diacrônica da formação de um destes espaços58, sobre o aspecto
vivido destas fissuras identitárias.
Uma escrava e dois senhores
1
Dona Dedé, ou Maria José de Souza, é um dos principais símbolos que o sindicato
e os posseiros têm para argumentar sobre a artificialidade do conflito criado entre os
Pankararu e eles. Ela, índia legítima, é uma das lideranças sindicais mais antigas e ativas so
STR de Petrolândia, líder das mulheres trabalhadoras rurais. Sua mãe era da família de
João Moreno e seu pai, também índio, morava numa fazenda vizinha ao Brejo dos Padres,
fora dos limites do que futuramente viria a ser delimitado como área indígena, onde era
vaqueiro. Com o casamento, sua mãe passou a morar também naquela fazenda e foi lá que
dona Dedé nasceu. Na década de 1950, com as novas oportunidades abertas na região,
decorrentes da implantação dos projetos de irrigação do DNOCS, o pai de dona Dedé
abandonaria o emprego de vaqueiro para trabalhar no DNER, carregando de volta para a
então já demarcada área indígena sua esposa e filhos. A familia de dona Dedé passaria a
ocupar terras da família de sua mãe na Serrinha, onde manteriam uma pequena roça
complementada com o "trabalho de mea" em pequenos lotes de beira de rio. O trânsito
entre a Serrinha e a beira de rio permitiu que dona Dedé fizesse seus estudos em Barreiras,
58
Ao lado das agrovilas, a favela Real Parque, no Morumbi (SP), consiste num outro espaço sobre o qual
seria fundamental um investimento etnográfico. Um investimento sobre esta outra reterritorialização, que
fizesse justiça a complexidade da situação, no entanto, mostrou-se inadaptável aos limites desta dissertação.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 196
onde veio conhecer seu futuro marido e onde passou a morar depois de casar-se em 1961.
A partir deste período, passou a trabalhar também como diarista para a SUDENE na capina
de beira de rio.
Depois de enviuvar, dona Dedé iniciaria sua participação nas atividades da Igreja,
onde era ("..., quer dizer, ainda sou...") da Legião de Maria. Em 1979 uma das reuniões da
"Legião" foi marcada não em Barreiros, como de costume, mas em Petrolândia. Chegando
àquela cidade no dia marcado, dona Dedé dirigiu-se ao prédio da Igreja em busca do grupo
de oração. Encontrou numa das suas salas uma numerosa reunião, em que particiapavam os
padres e freiras e onde todos rezavam e cantavam com entusiasmo. Inicialmente dona Dedé
estranhou a repentina ampliação do seu grupo de orações e sentiu falta de algumas pessoas
que lhe eram tradicionais, mas como "tava o povo todo da igreja lá..., teve leitura da bíblia
[... e] musica de igreja, música de luta...", ela só se daria conta de não se tratar de uma
reunião da Legião de Maria ao final dos trabalhos da manhã: "eu tinha entrado na porta
errada". Era uma reunião do sindicato. No entanto, mesmo depois de esclarecido o engano,
dona Dedé permaneceria para os trabalhos da tarde, ao fim dos quais teria se destacado ao
ponto de receber a tarefa de convocar as pessoas de sua comunidade para realizar lá a
mesma reunião. Era "a porta errada", diz, "mas continuei achando que estava certa", porque
continuava nas "tarefas da igreja", através das "caminhadas, leituras, cânticos..."
Rapidamente dona Dedé tornou-se sucessivamente responsável por sua região
(localidades de Mato Grosso, Santa Helena e Brejinho), representante de base,
representante do sindicato e suplente da diretoria. Sua vida "passou a ser só isso",
conversando com o povo, fazendo cadastro das comunidades, participando ativamente nas
paralisações das obras da barragem de Itaparica e viajando para diferentes encontros
sindicais. Dona Dedé foi progressivamente abandonando as reuniões da Legião de Maria,
enquanto as outras mulheres reclamavam de suas faltas. Mas, como ela explica,
... um escravo não pode servir a dois senhor. Eu sentia que na igreja já
tinha muita gente resando alí, pelos doentes e tudo, que nem agente
fazia, mas no sindicato, era poucos os que queria enfrentá o que nós tava
enfrentando. [...] ...eu tô fazendo porque eu acho que Deus mandô,
porque se eu ficasse rezando lá na igreja e vendo o povo precisando, o
rio inundando, tudo ficando dentro d'água e eu só lá na igreja, resando,
resando Ave Maria pelo povo, achava que tava errada.
É significativo no entanto que dona Dedé se refira apenas "a dois senhor", isto é à
sua lealdade por um lado à identidade de "filha de Maria" e de outro à de liderança sindical.
A sua relação com a área indígena é constante mas de outra natureza. Todos os seus
exemplos sobre sua relação com a aldeia são relacionados à festividades ou eventos
religiosos.
Quando tinha as festas assim, agente ia, quando tinha a novena, agente
mandava sempre ajuda para a novena lá dos índios. Mesmo morando
aqui eu nunca deixei de participar das festas deles, da novena, da
ladainha, que tinha uma parte que fazia parte daqui, no dia cinco de
maio, ia pra lá e tinha vezes que até dançava. [...]
....outro dia mesmo pediram contribuição aí, que ia ter uma festa, de
menino, dia dois de dezembro, mas elas não me explicaram direito que
festa era, elas passaram aqui pedindo ajuda... Elas moram na aldeia e
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 197
quando precisam de qualquer coisa elas vem passando aqui, pedindo a
todos. [...] Esse povo todo daqui vai pra participar. Minha família de lá
tem Praiá e quando agente chega lá, gasta um pouco. É a família do
Antônio Moreno, minha mãe é prima legítima dele, pois o pai dele é
irmão de minha avó.
Assim, as agrovilas, através das famílias indígenas que moram lá e mantém um
contato mais efetivo com a aldeia, servem como fonte de recursos para a organização das
festividades tradicionais, quando, geralmente mulheres, passam recolhendo contribuições.
Ao mesmo tempo, essas "ajudas" abrem espaço para que, aqueles que não têm mais o
mesmo contato efetivo com a aldeia, preservem algum vínculo com familiares ou com a
"tradição", mesmo que, por vezes, tomada sob um aspecto quase folclórico. Mas, é preciso
reconhecer, esta exterioridade está sempre aberta à reconversões de caráter mágico, que
servem de canal aberto a possíveis retornos:
Eu sou católica e esse negócio de espírito manisfestá... [balança
negativamente a cabeça], a única coisa que..., se eu me sentir adoentada,
eu posso mandá alguém resá. Uma senhora que as vezes agente se
admira das coisas que ela vai falando... ela não sabe lê... e fala tão... não
sei porque, eu acho que ela fala muita coisa certa, ela não sabe da minha
vida, mas diz umas coisas que eu fico assim olhando...
2
No plano político no entanto essas reconversões não parecem mais possíveis.
Durante o Fórum da Seca, realizado em Ouricurí, em meados de 1992, em que dona Dedé
participou como representante do sindicato de Petrolândia, os organizadores a procuraram
dizendo que o Fórum estava sem representação indígena, numa sugestão de que ela
assumisse esse papel. Apesar de confirmar ser índia, respondeu que estava lá como
representante dos trabalhadores rurais e não tinha sido eleita pelos índios
... não tinha esse poder. Eles como trabalhador rural eu represento, mas
como índios... Sei que é o mesmo sofrimento que nós aqui sentimos com a
seca, porque eu ando por todas as áreas, mas eu não podia representar,
era ilegal...
De volta a Petrolândia procurou o chefe do Posto Indígena para explicar-lhe a
situação e pedir que ele mandasse uma liderança no próximo encontro, em dezembro.
Apesar do "chefe" (chefe do posto indígena) ter confirmado o convite, no dia marcado "o
transporte do Pólo ficou esperando mas não veio ninguém representá". O chefe disse que o
posto indígena não tinha dinheiro, mesmo com o transporte, estadia e alimentação
fornecidas num caso pelo Pólo e pelo próprio Fórum. Mas dona Dedé não vê relação entre
essa negativa do chefe do posto e o conflito no Caxiado e no Bem-Querer, já que
... o Fórum da Seca é um lugar pra defendê todas as pessoas, não é um
negócio assim de conflito... porque, eu não vou fazer nada que vá ferir os
índios... Acho que, não... eles sabem que eu não vou fazer isso. [...] É
uma coisa que eu sinto tanto..., que eu peço "olhe, isso aí [o conflito
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 198
índios vs posseiros] é uma coisa que eu não posso metê minha mão aí"...
Eu fico com dó de não podê fazê nada. [...] Sempre que agente conversa
com um acha que ele tem razão, conversa com o outro e também acha
que ele tem razão...
3
Para dona Dedé é confuso o jogo de exclusões e inclusões de que participa. Não
parece claro para ela que "trabalhador rural" possa ser uma categoria identitária
correspondente e concorrente com a de "índio". Essa ambigüidade da sua situação permite
aos dirigentes sindicais utilizarem a sua imagem como um exemplo do artificialismo que
caracterizaria o que, segundo eles, a FUNAI e a imprensa chamam de conflito. A
"manipulação", portanto, é de mão dupla. No caso de dona Dedé fica claro que as relações
que mantém com a área indígena restringem-se à seção norte, onde mantém boas relações
com as lideranças, em especial com dona Hilda. Com relação à seção centro, onde se
localiza o conflito com posseiros que participam diretamente do sindicato, suas relações
são mais próximas às de evitação.
Nem mesmo em situações em que estavam empenhadas nos mesmos objetivos,
como ocorreu na época em que ela e Quitéria freqüentavam a prefeitura reivindicando a
inclusão de mulheres nas frentes de emergência, elas se reuniram a pretexto de reforçar as
reivindicações. Por outro lado, se em seu discurso o uso do "nós" e do "eles" oscila
constantemente, referindo-se ora a índios, ora a trabalhadores rurais, ao fim fica claro que
ele pende com maior intensidade para um desses lados.
Eu acho que num divia tê deixado criar raiz... daquele povo do BemQuerer e Caldeirão, antes... [...] Porque agora, despejá todo mundo sem tê pra
onde ir..., sem direitos humanos, se o índio tem diretos humanos agente
também tem. Eu falo isso pra eles mesmos... Não sei não... Essa parte me dói
muito. Já imaginou aquele bocado de criança na rua... Eu não sou contra que
eles saia que eu sei que é dos índios, mas eu fico triste é com o modo que eles
qué..., como diz assim, despejado, né.
Dona Dedé torna viva a distinção analítica que procuramos construir entre
"pertencimento" e "identidade": por pertencimento, as formas pelas quais as classificações
sociais e culturais fornecem um quadro de referência e de possibilidades de inclusão
classificatória, círculos mais ou menos frouxos de reconhecimento, de semelhanças e
afinidades objetivas, enquanto por identidade nomearíamos as formas pelas quais essas
classificações são acionadas politicamente, transformando o simples recorte classificatório
numa categoria social com força de mobilização, levando a um engajamento subjetivo.
Trata-se da distância entre identificar-se com e o identificar-se como.
Não é de criar limites rigorosos entre essas duas categorias, mas apontar para uma
distinção que teve utilidade metodológica para esta etnografia. Uma distinção entre coisas e
não tanto entre palavras. Como objetos de observação, pertencimento e identidade não
estão separados por uma linha conceitual, mas por processos e situações matizadas.
*
Porque todo ato de criação de identidade é um ato político, ao mesmo tempo, toda
ação política envolve a criação e reificação de identidades. Se os processos de construção
dos sujeitos coletivos criam classificações sociais, tais classificações se apropriam de
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 199
recortes existentes tanto no mundo visível, constituído de espaços e recursos limitados,
quanto num mundo invisível, mas nem por isso menos efetivo, como as genealogias
obscuras, os mitos sempre reinterpretados, ou nos sentimentos individuais. A mágica da
política está justamente na capacidade de agenciar tais sentimentos, imagens e
controvérsias de forma a construir realidade. Para isso são necessários rituais, simbologias
e cerimoniais que estão sempre confrontando pertencimentos sociais distintos e, neste
confronto, dando um conteúdo ao processo identitário, situando-o para além do que poderia
ser reduzido às fórmulas confortáveis da oposição entre formas contrastivas, ou dos
cálculos manipulatórios. Esta etnografia da trama histórica, dos arranjos territoriais e do
processo identitário que dão conteúdo ao etnônimo Pankararu, procurou apreender,
articular e explicitar esta complexidade, sem dúvida reduzindo-a, para torná-la inteligível,
mas buscando, sobretudo, captura-la em seu movimento.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 200
Anexos:
A1 - A morte e a morte de Cavalcante
Por Ulisses Lins de Albuquerque:
ABRO AQUI UM PARÊNTESES - já que falei em Jatobá de Tacaratu (hoje
Petrolândia) - para, num rápido retrospecto histórico, referir-me a essa região que foi teatro,
nos fins do Império, de uma hecatombe de maiores proporções que a de Garanhuns,
ocorrida muitos anos depois.
Em 1886, na povoação de Jatobá, pertencente ao município de Tacaratu
(desenvolvendo-se, com a inauguração da estrada de ferro de Piranhas a Jatobá, passava a
povoação a sede do município em 1887), dominava o coronel Francisco Antônio
Cavalcante, chefe do Partido Conservador.
Intolerante, violento mesmo, Cavalcante era acusado de haver mandado espancar o
capitão Inacinho Queirós, seu adversário, que, assim desfeitado, planejou uma vindicta em
regra, contando com a colaboração de outras vítimas da truculência daquele chefe
sertanejo. Cavalcante dispunha do destacamento policial e, sabendo-se ameaçado, aliciou
vários homens de confiança, mantendo-se sempre vigilante. Seus inimigos, entretanto, não
lhe perdoavam os constrangimentos sofridos e - gente brava e briosa - estavam dispostos a
tudo, contanto que realizassem o intento de exercer contra ele um desforço violento.
Para isso - dizia-se mais tarde (e isso me foi referido, se não me falha a memória,
pelo velho coronel Oldrado Lima, em Moxotó, quando da minha primeira passagem por
aquela vila, em 1919) -, Inacinho havia industriado um rapaz de sua confiança para,
fingindo-se de louco, ir a Jatobá a fim de observar o movimento do pessoal armado de
Cavalcante e verificar a hora mais conveniente para o assalto à povoação. Entretanto, há
pouco tempo fui informado de que ele havia mandado avisar a Cavalcante a hora exata em
que lhe tomaria a porta.
O certo é que a 26 de dezembro (de 1886), Inacinho entrava na localidade com o
seu grupo, atacando a casa de Cavalcante, no momento em que os capangas deste, em seu
maior número, se haviam afastado para o almoço, nas proximidades da estação da via
férrea. Cavalcante estava em casa com cinco capangas apenas e todos foram mortos pelo
grupo assaltante (inclusive ele próprio), tendo sido ferida gravemente uma sua filha, que
lhe fornecia munição durante o tiroteio. É quando se aproximam os soldados do
destacamento policial, bem assim os demais aliciados de Cavalcante. Mas Inacinho já se
havia retirado com os companheiros, dos quais ficava morto o de nome João Silvestre, e,
ferido gravemente, Cipriano Queirós - matador de Cavalcante - que eram os mais arrojados
do grupo.
Cipriano - caboclo valente, genioso - ficou prostrado em frente à casa de Cavalcante
e passou a ser interrogado para revelar quem tomara parte no assalto; negando-se a isso, ia
tendo os olhos arrancados a punhal, respondendo às interpelações que lhe eram feitas sob
ameaças de piores torturas, com os maiores impropérios e os mais cabeludos desaforos! E
morreu assim, com um estoicismo selvagem, sem nada confessar!
Mas, nesse ínterim, alguém informava que os assaltantes haviam seguido pela
estrada que se dirigia à cachoeira de Itaparica - em desacordo, consoante me informaram,
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 201
com as instruções de um caboclo feiticeiro que havia dito a Inacinho: "Depois da luta, não
sigam para a cachoeira! Procurem ganhar a catinga!"
Em chegando às proximidades da cahoeira, a gente de Cavalcante aproxima-se
cautelosamente e, não divisando o grupo de Inacinho, que se ocultava atrás dos serrotes, de
onde podia, entrincheirado, dizimar os que se aproximassem, - fez alto, a concertar planos.
É quando um primo de Inacinho, que fazia parte do pessoal de Cavalcante, disse, de
maneira a ser ouvido a uma certa distância: "Ora! Eu queria ver Inacinho, para oferecer-lhe
garantias, caso ele esteja disposto a entregar-se"... Inacinho, ouvindo aquilo, saiu do
esconderijo, apresentando-se ao parente, fazendo depois com que os demais companheiros
se aproximassem, confiado na palavra do primo. Resultado: ele e cinco do grupo foram
sumariamente fuzilados! Um, apenas, escapou: não querendo entrgar-se, despiu-se, atirouse ao rio, desceu aos trambolhões pela cachoeira, como se tivesse virado peixe...salvandose, ninguém sabe como!
E quatorze defuntos iam para o cemitério, naquele dia fatídico.
ALBUQUERQUE, Ulisses Lins de. Um sertanejo e o sertão: memórias; introdução de
Francisco de Assis Barbosa. 2.ed. Rio de Janeiro, J. Olímpio; Brasília, INL, 1976. (p. 8991), 242p. ilust. 21cm. (Documentos brasileiros, v.n.173)
Por João Binga:
... os caboclos velhos foram do lado de lá dessa serra, que tem outra entre serras que
eles chamam Quixaba Grande, aí os caboclos (acho que tiveram uma ciência) foram pro
mato e disseram "Vamos fazê garapa azeda, comprar um litro de cachaça, um pouco de
fumo e bebê uma juremada..."
(O velho meu avô correu daqui. Meia noite ele vinha arrancá mandioca que tava
grande, aí quando tava acabando de enche o aió aí o povo escutava que os que era dono
dizia: "Ei, peraí que nós vamos lhe matá!"...)
Aí quando tava tudo pronto, aí juntô os doze caboclo, doze índio, e disseram: "Nós
não qué mulhé pra nós, só qué nós homens..", aí ficou cada um batendo seu cachimbo,
cantaram, cantaram e aí os caboclos foram pra Quixaba Grande e foram bebê a Santa
Maria, quando acabaram de bebê, foram esperar pelo efeito e, quando o efeito chegou, eles
recordaram e disseram: "Pronto, nós tamos perdidos, os home estão com aquela medição
com falsidade, o caboclo não fica alí nem perto, ele vai ter que saír dali...", "É mesmo",
disse, "É, disse porque vi.".
Aí o Cavalcante tava morando em Petrolândia, e os caboclos disse: "Mas e aí, o que
é que nós faz?", "Mexe a jurema prá nós vê", Fizeram pensamento bem feito e de lá nem
voltaram pra casa. O caboclo disse: "Nós só ganha se matá o Cavalcante. Já tamos perdido,
é matá ou morrê. Vamos chegá lá antes mesmo dele mijá.". E foram direto pra Petrolândia
e foram batê na porta: "Cavalcante, Cavalcante, tá doirmindo? Acorda!". Aí as filhas dele
veio pra atendê e eles pediram: "A sra. faz o favor de chamá ele que nós tem uma história
pra contá pra ele.". Quando ele chegou, dois caboclo pegaram ele e perguntaram: "Escuta,
que negócio é aquele das terras?", ele disse: "O negócio é esse mesmo.". Aí eles pegô logo
na abertura dele.
[P: Matô o Cavalcante?]... Matô. Quando acabaram e os índios vinha, chegaram
aqui na estrada pra lá, fez uma puchada aqui e na entrada pra Piranhas, em vez de ter
corrido pra cá, pra própria Quixaba Grande, que não tem rio, só pedra e areia, mato,
correram praqui e entraram pras tocas da cachoeira, pertinho de Petrolândia. Aí a polícia
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 202
saiu no rastro e quando chegaram, matô todo mundo. Desde o começo disso aqui tem quem
persiga...
A2 - A categoria de "Remanescentes Indígenas"
(amostragem aleatória)
s/d
"Os remanescentes potiguara vivem no Posto Indígena Potiguara, na Paraiba... [...]
Os Potiguara: remanescentes integrados?" (MOONEN,s/d)
OBS: No caso da segunda frase, trata-se do título de uma parte do texto dedicada à
discussão das categorias "assimilados" e "integrados". O "remanescentes" lhe passa
desapercebido.
1937 "Neste vale, tão belo quanto f'értil, e que fica situado entre Itaparica e Tacaratú,
vivem atualmente, em número bastante elevado, remanesncentes de tribos filiados
a vários grupos indígenas, alí, outrora, reunidas por influência da catequese
religiosa [...] Como em geral, todos os nossos caboclos, o povo do Brejo dos Padres
é hospitaleiro e obsequiaor, muito embora desconfiado [...] ...que tomem sob seu
valioso amparo e proteção, não só os caboclos do Brejo dos Padres, como também,
os demais remanescentes indígenas que ainda vivem em terras nordestinas.
(OLIVEIRA,1943).
1947 "Mirandela, outrora Saco dos Morcegos, tem suas origens nos primitivos
aldeamentos jesuíticos, com sua grande igreja em estilo português e uma grande
praça. Nas cercanias do vilarejo residem para mais de mil índios (caboclos)
remanescentes dos Tupiniquins, conservando os traços perfeitos de raça com seus
tipos aventureiros. Não são ferozes." (Pe. Renato Galvão, citado em
ROSALBA,1976).
1949 "Os Fulni-ô eram, até hoje, considerados como os últimos remanescentes dos
históricos índios Kariri, cujo habitat abrangia o nordeste do Brasil..."
(BOUDIN,1949)
1955 "Essa questão das terras dos índios da Baia da Traição e não do 'que se dizem
caboclos', como insinuavam os reclamantes, é muito antiga e não pode ser resolvida
a não ser judicialmente, por meio de uma demarcação. [...]. Isso porque os
remanescentes potiguara se julgam donos de certas porções de terras de que os
reclamntes se acham apossados (Mota Cabral citado em AMORIM,1971)
1968 "... as terras em apreço foram e continuam pertencendo à União Federal, sob a
administração da Fundação Nacional do Índio, representante dos remanescentes
pancararus, localizados naquelas terras do município de Petrolândia deste estado e
mais ainda, de que não devem sob nenhum pretexo, molestar os índios
pancararus..." (CARNEIRO,1968a).
1968 "No lugar denominado "Brejo dos Padres", município de Tacaratú, em pleno sertão
de Pernambuco, recanto aprasível e encantador, vivem e trabalham os descendentes
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 203
indígenas dos Pancararus, ou Pancarus, primitivamente chamados Brancararus, ramo
dos Tapuia." (CARNEIRO,1968b)
1976 "O presente trabalho pretende analizar a situação dos remanescentes Kiriri de
Mirandela, a partir da publicação de documentos inéditos do extinto SPI, que se
relacionam com a criação do Posto Indígena de Tratamento Governador Góes
Calmon..." (ROSALBA,1976).
1977 "A população indigena Pankararé, ou Pankaré, como eles se auto-identificam, em
quase nada se distinguem dos seus vizinhos brasileiros, a não ser na consciência de
pertencerem a uma etnia diferenciada e viver em situação de 'fricção' [...].
Estabelecido este quadro, achamos que este grupo indígena remanescente deve ser
classificado como pertencendo a um sub-tipo camponês, ou seja, como campesinato
indígena, aqui entendido como sendo aquela parcela de índios integrados à sociedade
nacional..." (SOARES,1977)
1983 "Analisamos as condições de vida da comunidade, concluindo-se ser realmente
remanescentes Pankararú, que vivem isolados, em condições de vida precária...
[...] não discutimos sobre seus direitos com relação à FUNAI por tratar-se de grupo
isolado e desaldeado..." (A.C.V.M.,1983)
1969 "São cerca de 3.000 os remanescentes Pankararús, do grupo linguístico Gê,
bastante aculturados, conservando apenas alguns ritos e danças (...), raríssimos os que
falam o idioma originário da tribo." (QUEIRÓS,1969).
A3 - Lista das entrevistas gravadas
1 - Pe. Adriano (pároco de Jatobá e Petrolândia) sobre os "penitentes", tradicional grupo
religioso atuante tanto antre os posseiros quanto entre os índios: 60'.
2 - Antônio José dos Santos (jovem liderança Pankararú, aldeia do Brejo) sobre história de
vida, sobre atuação e histórico do grupo jovem da AI: 60'.
3 - Mané Bizoro (liderança tradicional, aldeia do Brejo) sobre história de vida, sobre
tradições da aldeia, sobre saída de grupos que vieram a fundar as aldeias de Jeripancó
e Pancarú: 60'.
4 - Gustavo Barbosa da Luz (liderança emergente, vila de Jatobá) sobre história de vida,
disputas internas ao grupo, sobre disputas com posseiros, conflitos com FUNAI e
projetos políticos: 120'.
5 - Antônio Moreno ("capitão" da AI, filho de importante liderança do passado, aldeia do
Brejo) sobre sua história de vida e de seu pai, primeiros contatos para o
reconhecimento oficial da aldeia, visita do antropólogo Carlos Estevãoe desavenças
internas às lideranças: 60'.
6 - Manezinho de Venâncio (tradicional contador de "histórias", aldeia do Brejo) sobre
chegada do branco no Brasil e na aldeia, informações sobre os linheiros, história de
vida: 60'.
7 - João de Páscoa (ex-pajé, aldeia da Serinha) sobre história de vida, disputas intenas às
lideranças, presença dos linheiros, mistura racial: 60'.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 204
10 - Francisquinha Coelho (ex-posseira do Brejinho dos Correias, cidade de Tacaratú)
sobre sua expulsão da área pelos índios: 30'.
11 - José João do Nascimento (ex-posseiro do Brejinho dos Correias, cidade de Tacaratú)
sobre sua expulsão da área pelos índios: 60'.
12 - Reunião com lideranças do Pólo Sindical (sede do Pólo, cidade de Petrolândia) sobre o
conflito com os índios, sobre violência da Polícia Federal, tentativasde acordo e
espectativa com relação ao último acordo: 90'.
13 - Maria José de Souza (índia moradora das agovilas, participante do sindicato) sobre sua
história de vida, enfocando suas relações com a igreja, com o sindicato e com a
aldeia
14 - Josefa A. L. de Barros (ex-freira, fundadora do sindicato na região, assessora da
FETAPE) sobre história de vida, tentativas de iniciar trabalho na aldeia durante a
década de 70, repressão militar, estratégias de organização política na região,
fundação do sindicato, problemas com a FUNAI: 90'.
15 - Otacílio (liderança camponesa, reassentado na beira do lago) sobre a experiência da
subida do lado em Moxotó e início da mobilização dos camponeses em Itaparica: 90'.
16 - Zé de Bernarda (liderança, aldeia da Tapera) sobre história de vida, crescimento das
lideranças, problemas com posseiros, disputas pelo lugar de cacique: 60'.
17 - Honório (liderança, aldeia da Tapera) sobre história de vida, problemas com posseiroa,
carteirinha da FUNAI, disputas pelo lugar de cacique: 30'.
18 - Miguel Binga (pajé, aldeia do Brejo) sobre história de vida, história de sua eleição para
pajé: 30'.
19 - João Binga (cacique, aldeia do Brejo) sobre sua história de vida, história do grupo,
"encantados", história de sua participação na liderança, linheiros, perda das tradições:
90'.
20 - Marcelino Viana (liderança informal, aldeia do logradouro) sobre sua história de vida,
sua realção comos chefes de posto indígena e sua situação étnica atual: 90'.
21 - Nair Maria dos Santos (posseira do Bem Querer) sobre sua história de vida, sua
relações familiares com índios, sobre a violência da Polícia Federal: 90'.
22 - Odilon Gomes Maurício (mais antigo e combativo posseiro do Caldeirão) sobre sua
história de vida, sobre a história e percursos da disputa pelas terras: 120'.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 205
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Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 210
Documentos Citados
Abreviaturas utilizadas nas referências a seguir:
MI - Centro de Documentação do Museu do Índio.
AN - Arquivo Nacional.
BN - Setor de periódicos da Biblioteca Nacional.
DOC.:1.
"Demonstração dos números das Aldeias existentes nesta província de
Pernambuco, seu pessoal, sua população e extensão que cada uma tem". 13/dez/1857.
Arquivo Público de Pernambuco, coleção Diretoria de Índios, livro D-11.
DOC.:2.
Relatório do Presidente
BN/microfilmes: código PR-SPR115.
de
Província
de
Pernambuco.
1872.
DOC.:3.
Relatório do Presidente
BN/microfilmes: código PR-SPR115
de
Província
de
Pernambuco.
1869.
DOC.:4.
Relatório do Presidente
BN/microfilmes: código PR-SPR115.
de
Província
de
Pernambuco.
1875.
DOC.:5.
(PE)
Tacaratu Histórico. S/d. Informativo da prefeitura municipal de Tacaratu
DOC.:6.
Relatório do Presidente
BN/microfilmes: código PR-SPR115.
de
Província
de
Pernambuco.
1878.
DOC.:7.
Relatório de José Luiz da Silva (engenheiro responsável pela Comissão de
medição das terras da provícia de Pernambuco) apresentado ao Exmo. Sr.
Conselheiro Sinimbú (Min. e Secr. dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas) sobre o aldeamento do Brejo dos Padres. jun/1878. Arquivo Público de
Pernambuco, coleção RTP (Repartição de Terras Públicas) vol.17, pag.391.
DOC.:8.
Relatório da Inspetoria Geral das Terras eColonização apresentado ao
Conselheiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, presidente do Conselho de
Ministros. 1878. AN/microfilmes: rolo 030.0.78, código 559.
DOC.:9.
Carta de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da
4a. IR com lista de pedidos precedida de justificativas. 31/jan/1949. MI/microfilmes:
rolo , fotogramas 688-701.
DOC.:10.
Relatório de Cildo Meireles (escriturário) ao Cel. Vicente de Paula
Vasconcelos (diretor do SPI) sobre os trabalhos de demarcação das terras do PIP no
antigo aldeamento de Brejo dos Padres. Jan/1941. MI/microfilmes: rolo 175,
fotograma 335.
DOC.:11. Carta (s/a) ao Cap. João Gomes Campos Apaco e demais índios rodelas, sobre
o memorial em do dia 14 corrente, de que são signatários. 17/out/1942.
MI/microfilmes: rolo173, fotograma14.
DOC.:12. Relatório de viagem de Sônia Elizabete Lima Santana (assistente social da
FUNAI/3a. SUER) à comunidade da Serra da Batida em 03/03/89. FUNAI, processo
no. 300628.89-4 de 11/4/89.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 211
DOC.:13.
DOC.:14. Relatório do SPI ao Ministro (?). 1942. Biblioteca do MI: relatórios do SPI,
vários anos encadernados juntos.
DOC.:15. Relatório de viagem de Túbal Fialho Vianna (inspetor do SPI) na supervisão da
passagem do cargo de encarregado do PI Pankararu, de Agenor da Silva Guedes para
Sebastião Francisco da Silva. Fev/1945. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 28-30.
DOC.:16. Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro (inspetor da 4a. IR) a Coriolando
Mendonça (encarregado do PI Pankararu) sobre áreas em litígio. 19/nov/1953.
MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 754.
DOC.:17. Avisos de Posto, por Coriolando Mendonça. Jan-dez/1954 MI/microfilmes:
rolo 173, fotogramas 1407ss.
DOC.:18. Boletin Interno do SPI, no. 36. 31/jan/1945. Biblioteca do MI, boletins do SPI,
vol.4 (no. 36-47)
DOC.:19. Boletin Interno do SPI, no. 14. 31/jan/1943. Biblioteca do MI, boletins do SPI,
vol.2 (no. 14-25)
DOC.:20. Relatório de Agenor da Sliva Guedes (encarregado do PI Pankararu) ao Diretor
do SPI, sobre movimento do ano de 1944 e planejamento para o ano de 1945.
19/jan/1945. MI/microfilmes: rolo 175, fotogramas 342-349.
DOC.:21. Cartas de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao Chefe da 4a.
IR relatando distúrbios no PI e sugerindo punições aos faltosos. 15/abr/1949 e
10/mai/1949. MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 380-382.
DOC.:22. Carta de Antônio José Torres (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a. IR
solicitando ajuda polícial para o controle dos índios. 21/abr/1967. MI/microfilmes:
rolo 175, fotograma 194.
DOC.:23. Arquivo do PETI: FNF0261
DOC.:24. Ofício de Natiel V. Barros (encarregado do PI Pankararu) pedindo informações
à Inspetoria do SPI. 12/mai/1965. MI/microfilmes: rolo 175, fotograma 16.
DOC.:25. Cf. DOC.:19
DOC.:26. Relatório de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) à 4a. IR
sobre as atividades do ano de 1950. 11/jan/1951. MI/microfilmes: rolo 173,
fotogramas 909-916.
DOC.:27. Avisos de Posto, por Coriolando Mendonça. Jan-dez/1955. MI/microfilmes:
rolo 173, fotogramas 1591ss.
DOC.:28. Avisos de Posto, por Pedro Dantas Cangerana. Jan-dez/1960. MI/microfilmes:
rolo 174, fotogramas 717ss.
DOC.:29. Avisos de Posto, por Geraldo Vieira Melo. Jan-dez/1964. MI/microfilmes: rolo
174, fotogramas 1424ss.
DOC.:30. Dados para a formulação do Plano de Assistência Social e Econômica/ FUNAI.
1972. FUNAI-BSB/SEDOC: série projetos especiais.
DOC.:31. Dados Gerais sobre a 3a. DR/FUNAI. 1975. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados
informativos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 212
DOC.:32. Relatório de inspeção de Ismarth de Araújo Oliveira (presidente da FUNAI) à
3a. Delegacia Regional, entre 06 e 13 de maio de 1978. S/d. FUNAI-BSB/SEDOC:
série dados informativos.
DOC.:33. Relatório de viagem de Dinarte Nobre Madeiro (delegado da 3a. Regional da
FUNAI) para vistoria dos PI's Pankararu, Pankararé, Rodela, Atikum e Trucá entre
17 e 22 de outubro de 1983/ por Geraldo Vieira de Melo (chefe de seção de
fiscalização). 12/dez/1983. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos.
DOC.:34. Portaria Interministerial de 26/11/1986.
DOC.:35. Carta de Rui Pedro de Aquino (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a.
IR reforçando alerta sobre surto de Tracoma e solicitando ajuda. 16/ago/1950.
MI/microfilmes: rolo 173, fotograma 693.
DOC.:36. Carta de Coriolando Mendonça (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da 4a.
IR relatando situação dos tutelados em consequência do longo período de estiagem.
21/fev/1951. MI/microfilmes: rolo 173, fotograma 920.
DOC.:37. Avisos de Posto, por Rui Pedro de Aquino. Jan-dez/1956. MI/microfilmes: rolo
173, fotogramas 1775ss.
DOC.:38. MI 173/934ss (p.23)
DOC.:39. MI 175/91ss (p.25)
DOC.:40. Relatório de Viagem de ACVM (coordenador da equipe odontológica da
FUNAI 3A. DR) à localidade de Ouricuri (AL). 05/dez/1983. FUNAI: processo
002898.
DOC.:41. Folhas de pagamento do Posto Indígena Pankararu: 31/dez/1940; 31/dez/1942;
30/dez/1943; 31/mar/1947; 30/jun/1947; 30/set/1947; 30/set/1948; 15/abr/1948;
30/jun/1948; 31/dez/1948; 30/abr/1949; 30/jun/1949; 30/set/1949; 31/dez/1949.
MI/microfilmes: rolo 173, fotogramas 2; 12; 15; 116-118; 168-171; 333; 334; 337;
339; 378.
DOC.:42. Relatório de Claudio L. F. Santana sobre levantamento de áreas indígenas para
delimitação, medição e demarcação: PI pankararu. 13/dez/1984. 7f. + mapa./ FUNAI.
DOC.:43. Relatório do Departamento de Assuntos Fundiários da FUNAI sobre as áreas
da 3a. DR. 1987. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados informativos.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 213
Outros documentos consultados
1941/09/19. VÁRIOS; "MEMORIAL com vistas ao poder competente, Sr. Dr. Inspetor do
SPI". 5f.; / Condôminos da propriedade Brejinho de Itaparica - PE.
1957/06/18. Ofício de Rui Pedro de Aquino (encarregado do PI Pankararu) ao chefe da IR4
sobre providências de melhorias nesta unidade indígena. 18/jul/1957. MI/microfilmes:
rolo174, fotograma 174.
1969/09/25. FUNAI-portaria231 de 25/09/69, BA 36 de 30/09/69 (p.1) cria a Guarda Rural
Indígena. FUNAI-portaria48/N de 28/01/72, BA 08 de 01/02/72 (p.1) altera a portaria
anterior.
1974/12. Relatório de estágio de Armando Marcos Martins de Arruda para o VI curso de
auxiliar técnico em indigenismo, sobre o posto indígena Pankararu. Dez/1974. FUNAIBSB/SEDOC: série avaliação indigenista.
1975
DADOS informativos: PIN Pankararu. 4f.; / FUNAI.
1975/12. Planejamento de viagens aos postos indígenas da 3a. DR: Situação em dezembro
de 1975. FUNAI-BSB/SEDOC: série dados gerais.
1977/03 DADOS informativos: PIN Pankararu. 5f.; / FUNAI: ASPLAN.
1977/03/18. CÓPIA de documentos de transferência de posse de terras, por ocasião (1916)
do falecimento do títular, Roque Gomes da Costa.
1980/03/07. VERAS, Adeilson B. G.; RELATÓRIO n.1. /resp.: Centro dos Trabalhadores
Rurais do S-M-S-F - PE/BA (CTRS-PE/BA).
1980/04/14. COELHA, Francisquina e SILVA, Antonio.; RELATÓRIO n.3; / CTRSPE/BA.
1980/05/06. SILVA, Petrúcio F.; PROFERE sentença (n.2v17-208/8) sobre a ação de
reintegração de posse movida pela FUNAI contra Miguel Gomes Maurício e
outros. 6f.; / Juizado Federal da 2a. vara de PE.
1980/10/09. COELHO, Vicente ; LOPES, Josefa; e SOUZA, Celso de.; CARTA ao
Delegado da PF em PE denunciando sequestro, violência e ameaças por parte de
agentes da PF.
1980/10/30. VÁRIOS; ATA da "Reunião de entidades sobre a questão Pankararú e
posseiros de Tacaratú e Petrolândia". 5f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, CPT-SP, STR,
Pólo Sindical, PT.
1980/11/13. "PROJETO Pankararu 1980/81" (anexo: portaria de aprovação n.894). 23f.; /
FUNAI: ASPLAN; FBS.
1981/02 CARTA à Imprensa: "Posseiros buscam diálogo com índios".; / Posseiros do
Município de Petrolândia.
1981/03/11. SILVA, João A.; MAURÍCIO, Odilon G.; LIMA, José F.; SILVA, José M. da;
SOUSA, Eraldo de.; CARTA: "Documento de Repúdio à FUNAI".; / Comissão
Representativa dos Posseiros.
1982/08 "PROJETO de construção de açudes no PI Pankararu". 4f.; / FUNAI: ASPLAN.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 214
1984/06/05. Relatório de Claudio Luiz Ferreira Sant'Ana (coordenador do GT portaria
1647/E de 05/06/84) para a Identificação e delimitação da AI Pankararu. 22/out/1984.
FUNAI: processo 2275/84.
1984/08/05. COELHO, Vicente.; CARTA aos MIn. do Interior e Min. Extraordinário para
Ass. Fundiários relatando situação de conflito.
1984/09/04. FONSECA, Jurandy M. da.; OFÍCIO ao pres. do STR de Petrolândia em
resposta à carta enviada aos Min. do Interior e Extraordinário; / presidência da
FUNAI.
1984/09/15. RELATÓRIO da Reunião da Comissão de Posseiros de Caldeirão e Benquerer
para elaboração da proposta sobre os limites da reserva Pankararú, Município de
Petrlândia.
1984/10/11. DOMINGUES, Nelson Marabuto.; OFÍCIO ao pres. do STR de Petrolândia
pedindo nome para compor GT.
1984/12/07. DOMINGUES, Nelson Marabuto.; OFÍCIO ao Presid. do STR de Petrolândia
aceitando indicação de integrante de GT.; / FUNAI..
1985/01/02. COELHO, Vicente.; OFÍCIO ao Deleg. Regional da FUNAI de Recife
denunciando derrubada do Travessão.; / STR de Petrol.
1985/02/20. SOUZA, Eraldode; OFÍCIO ao Chefe do PI Pankararú sobre acordos quanto
ao Travessão e cercas. ; / SRT de Petrol.
1985/09/09. Vicente,1985 na verdade é: Relatório de viagem de Claudio Luiz Ferreira
Sant'Ana ("antropólogo 1/D2" da FUNAI) ao PI Pankararu, para verificação de
denúncias sobre invasões na área indígena e negociações com autoridades locais sobre
transferência de recursos para aquela comunidade. 09/set/1985. FUNAI: processo
2898/84.
1986/03/03. ARAÚJO, José A. de; "RELATÓRIO de viagem ao PIN Pankararu..., para
apreciação e parecer, encaminhado ao delegado regional da FUNAI.". 6F.; /
FUNAI.
1986/10/28. LIMEIRA, Maria; PROFERE "voto" na ação civil (n. 67255-PE) sobre
reitegração de posse movida pela FUNAI contra Miguel Gomes Maurício e
outros. 4f.; / Tribunal Federal de Recursos.
1987/05/30. SOUZA, Eraldo de; OFÍCIO aos Min. do Interior e da Reforma e
desenvolvimento Agrário e ao pres. da FUNAI (06/03) apresentando
reivindicações e propostas (incompleto).; / STR de Petrolândia.
1987/05/30. SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO aos ministros do Interior e da Reforma e
Desenvolvimento Agrário. 5f.; / STR de Petrolândia; STR.
1987/07/12. OCORRÊNCIA (n.36/87) de homicídio registrada da delegacia de
Petrolândia; / delegacia de Petrolândia.
1987/07/15. SARNEY, José.; PROFERE decreto n.94.603 de 14/07/87 homologando a
demarcaçào da AI Pankararu (com 8100ha).
1987/07/20. SOUZA, Eraldo J. de e MAURÍCIO, Odilon G.; CARTA ao Min. da Ref. Agr.
e do Des. Agrário pedindo evitar a aplicação do decr. n.94603.; / STR de
Petrolândia.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 215
1987/07/24. SOUZA, Eraldo J. de; CARTA ao Min. do Interior pedindo evitar a aplicação
do decr. n. 94603.; / STR de Petrolândia.
1987/09/22. SILVA, Walter ; OFÍCIO ao Polo Sindical de Petrolândia-PE. encaminha ata
de reunião realizada em Tacaratú, em 16/09/87.; / ADR de Paulo Afonso/FUNAI.
1987/11/20. CARTA (telegramas) alertando sobre perigos da aplicação do decr. n. 94630 e
pedindo intervenção de Miguel Arraes (gov. de PE) e Romero Jucá Filho (pres. da
FUNAI).; / .
1988/01/04. SOUZA, Eraldo J. de e SILVA NETO, Januário M. ; OFÍCIO ao chefe do PI
Pankararu pedindo respeito ao acordo de set. de 88 (não realizar serviços na área
em litígio).; / STR de Petrolândia.
1988/09/23. SILVA NETO, Januário M.; CARTA ao Chefe do PI Pankararu pedindo a
suspensão da construção das cercas.; / STR de Petrolândia.
1989/05/10. SILVA NETO, Januário M; CARTA (telegrama) à FUNAI onde o STR de
Petrolandia aceita participar de GT de levantamento fundiário.; / STR de
Petrolândia.
1989/06/26. SOUZA, Eraldo J. de e LEAL, Maria Elita.; MOÇÃO (n.13/89) dos
vereadores de Petrolândia em apoio aos posseiros do Caldeirão e repúdio às
arbitrariedades da PF.; /por: Bancada do PT.
1989/06/29. SOUZA, Eraldo J. de.; CARTA aberta com pedido de apoio à moção n.13/89
aprovada pela Camara dos Vereadores de Petrolândia-PE; / Liderança do PT.
1989/07/05. VÁRIOS; ATA da "Reunião da equipe técnica/Pólo Sindical/Comissão de
posseiros de Petrolândia, sobre o conflito na área de 8100ha. 4f.; / INCRA,
FUNAI, CEPA, Pólo Sindical, Comissão de posseiros.
1989/08/02. SILVA, Fulgêncio da.; CARTA ao Administrador Regional da FUNAI sobre
invasão indígena das terras do Brejinho dos Correias.; / Polo Sindical do SMSF.
1989/08/19. NOTÍCIA: "Pankararus em pé de guerra. Exército pode intervir".; / Jornal
Diário de Pernambuco.
1989/08/29. COELHO, Vicente; CARTA aberta: "Nota ao público".?f.; / STR de
Petrolândia, Pólo, FETAPE, CUT-PE.
1989/09.DOSSIÊ: Os Posseiros e os índios Pankararú.; / Pólo Sindical do S-M-S-F.
1989/09/05. NOTÍCIA: "FETAPE defende volta do diálogo com a FUNAI na disputa com
índios".; /por: Jornal Diário de Pernambuco.
1989/10.RELATÓRIO "Pankararu e posseiros de Tacaratu e Petrolândia. (resumo
jurídico". 11f.; / CIMI : Ass. Jurídica.
1989/10/30. VÁRIOS; ATA da "Reunião de entidades sobre a questão Pankararu e
posseiros de Tacaratu e Petrolândia". 5f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, STR de
Petrolândia, Pólo Sindical do SmSF.
1990/06.PANKARARU, Cosme; CARTA à Secretaria Rural da CUT Nacional, pedindo
solidariedade e denunciando contradição de seus filiados de Pernambuco (anexos:
"Moção de apoio aos trabalhadores rurais e indígenas" aprovado pela CUT" e
"Histórico do conflito") 7f.; / Povo indígena Pankararú: lideranças.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 216
1990/08/14. VÁRIOS; ATA da "Reunião sobre a questão Pankararu e posseiros de
Petrolândia e Tacaratú", realizada dia 09 de agosto de 1990.; / CUT, PT, CpT,
CIMI, Pólo Sindical.
1990/08/21. VÁRIOS; ATA da "Reunião da comissão sobre a questão Pankararu e
posseiros de Tacaratu e Petrolândia". 3f.; / CPT, CIMI, PT, STR de Petrolândia,
Pólo Sindical do SmSF.
1990/09/13. VIEIRA, Ademar; CARTA ao Porantim exigindo direito de resposta à matéria
publicada sob o título "Pankararú - Conflitos que já duram 50 anos." (anexo:
resposta). 4f.; / Pólo Sindical do SmSF.
1990/09/20. VÁRIOS; "RELATÓRIO de viagem da Comissão de entidades na área de
Petrolândia e Tacaratú", sobre a "questão pankararú e posseiros", nos dias 03 e 04
de setembro de 1994. ?f.; / CUT, CPT, CIMI, UNI, STR.
1990/11/06. SILVA NETO, Januário e SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO ao Juiz de direito da
Comarca de Petrolândia, denunciando atos de vandalismo na AI Pankararú e
pedindo providências. 2f.; / STR de Petrolândia.
1990/11/07. LIMA, Antônio G. de; OFÍCIO ao Juiz de direitoda Comarca de Petrolândia,
prestando declarações (acompanha notas manuscritas pelo juiz). 3f.; / autor.
1990/11/13. SILVA, Osvaldo J. da; OFÍCIO ao Juiz de direito da Comarca de Petrolândia,
prestando declarações. 1f.; / autor.
1990/12/18. VÁRIOS; DOSSIÊ sobre os índios Pankararu da favela Parque Real do
Morumbi-SP. 6f.; Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do
Ministério da Justiça, Programa SOS criança, liderança jovem Pankararu.
1991/01/04. SILVA NETO, Januário da; CARTA aberta: "O Pólo Sindical do Sub-médio
São Francisco e a situação dos Posseiros e dos índios Pankararú. 1f.; / Pólo
Sindical do SmSF.
1991/05/13. SOUZA, Eraldo J. de e SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO à Procuradoria da
União no estado de Pernambuco, sobre "A real situação dos posseiros". 4f.; / STR
de Petrolândia.
1991/11/14. OFÍCIO ao juiz de direito da Comarca de Petrolândia, ajuizando notificação
judicial contra Eraldo J. de Souza. 1f.; / FUNAI.
1991/11/28. INFO: Área indígena Pankararu: Proposta de contrato para indenização e
retirada de invasores da área. 3f.; / FUNAI: SUAF.
1992/01/21. TRINDADE, Vera; OFÍCIO ao juiz de direito da Comarca de Petrolândia,
apresentando o protesto de Eraldo J. de Souza contra a FUNAI pela notificação
judicial. ?f.; / autor.
1992/02/17. CORDEIRO, Fernando A. S.; PROFERE "Mandado de intimidação" à ADR
de Paulo Afonso - FUNAI. 2f.; / Juizado de Direito da Comarca de Petrolândia.
1993. Laudo antropológico sobre a situação étnica de Nivaldo Santos, por Vânia Fialho.
1993. Recife: FUNAI.
1993/07. Diagnósticos Preliminares do Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco
(encontros municipais): Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolândia. Junjul/1993.
Arruti, 1996 - O Reencantamento do Mundo / 217
1993/08/09. OFÍCIO ao superintendente do INCRA, solicitando providências pelo
reassentamento dos posseiros ameaçados de expulsão da AI . 2f.; / STR de
Petrolândia.
1993/08/09. SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO ao juiz de direito da 9a. vara da Justiça Federal
do Recife, com agravo contra o deferimento da liminar de expulsão dos 12
posseiros da Cldeirão e Bemquerer. 7f.; / posseiros.
1993/08/14. SILVA NETO, Januário da; CARTA aberta: "Nota de esclarecimento" sobre a
posição do sindicato frente ao conflito. 2f.; / STR de Petrolândia.
1993/08/16. SILVA NETO, Januário da e SOUZA, Celso P. de; OFÍCIO ao
superintendente da PF, lotado em Recife, apresentando representação contra a
delegada da PF, Sverina Maria do Nascimento Gonçalves.; / STR de Petrolândia.
1993/09/30. SOUZA, Vania Fialho de P. e ; "RELATÓRIO técnico de viagem"sobre
"condição étnica de Nivaldo Dantas de Lima". 5f.; / FUNAI.
1993/10.SILVA NETO, Januário da; CARTA a Gilson Oliveira (chefe de redação do
Diário de Pernambuco): "Nota de Repúdio às calúnias". 2f.; / STR de Petrolândia.
1993/10/03. VIEIRA, Ademar e SILVA NETO, Januário da; OFÍCIO ao superintendente
da PF em Recife, com representação contra o comandante dos policiais federais
em exercício na AI Pankararú. 2f.; / Pólo Sindical do SmSF.
1993/10/08. JESUS, Quitéria M. de; ASSOCIAÇÀO Indígena do Índio Pankararu
(estatuto). 11f.; / Comunidade Pankararu.
1993/10/11. SILVA NETO, Januário da; OFÍCIO ao superintendente da PF em Recife,
denunciando ação ilegal de agentes da PF, no acobertamento de ações indígenas.
2f.; / STR de Petrolândia.
1993/10/12. PORTARIA com exame de lesão corporal de Eraldo J. de Souza. 2f.; /
Delegacia Municipal de Polícia de Petrolândia.
1993/10/12. TORRES, Paulo e SILVA, Goya da Costa e; OFÍCIO ao Ministério da Justiça,
denunciando violências praticadas pela PF contra Eraldo J. de Souza. 2f.; /
AATR-BA.
1993/10/13. CARTA aberta: "Nota de repúdio". 4f.; / Pólo Sindical do SmSF.
1993/10/14. COELHO, Vicente da C.; CARTA aberta: "Polícia Federal agride
sindicalista". 2f.; / Pólo Sindical do SmSF.
1993/10/19. SOUZA, Eraldo J. de; OFÍCIO ao Procurador da República em Recife,
apresentando representação contra o agente chefe da PF por violências. 4f.; /
autor.
1993/10/20. TORRES, Paulo e SILVA, Goya da Costa e; CARTA ao Pólo Sindical do
SmSF-BA/PE, manifestando solidariedade contra as violências praticadas pela
PF. 2f.; / AATR-BA.
1993/12/28. LUZ, Gustavo B. da et alii.; ASSOCIAÇÃO Indígena Pankararu (ficha de
inscrição na Receita Federal, estatuto e ata de criação). 6f.; / Comunidade
Pankararu.
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1993/12/28. VÁRIOS; "ATA da reunião sobre a questão do litígio entre índios Pankararu e
posseiros do município de Petrolândia". 2f.; / INCRA, PF, FUNAI, Polícia Civil
Estadual, STR, SINTEPE, FETAPE, deputados estaduais, índios e posseiros.
1994/02/28. RELATÓRIO de visita dos diretores do STR de Petrolândia e da comissão de
posseiros à área do decreto, nos dias 03 e 15 de fevereiro de 19994. 1f.; / STR de
Petrolândia e Comissão de Posseiros.
1994/05/07. SANTOS, João Tomás dos; ASSOCIAÇÃO Comunitária Indígena Espinheiro
Tacaratu (ata da assembléia geral de reformuação total do estatuto..., histórico e
estatuto). ?f.; / Comunidade Pankararu.
1994/08/24. MAPAS eleitorais com o resultado das eleições de 1994, das seções 58 e 59
(dentro da AI). 23f.; / TRE de Pernambuco.
1994/09.VÁRIOS; CARTA aberta: "Porque apoiamos Eraldo". 1f.; / Pólo Petrolândia,
Pólo Sertão Central, Pólo Araripe, PóloPajeú, FETAPE, CENTRÚ, JUP e
Associação de moradores de Petrolândia.
1994/09/23. SILVA NETO, Januário da; "CARTA de repúdio" às notícias de jornais
acusando Eraldo, candidato do PT, de defender a extinção dos índios do nordeste.
1f.; / Pólo Sindical do SmSF.
1994/10/14. AZEVEDO Fo, Ermínio de; "RELATÓRIO de atividades" referentes aos
estudos para reassentamento dos posseiros. 2f.; / INCRA.
1994/10/19. VÁRIOS; ATA da reunião sobre a questão do litígio entre índios Pankararu e
posseiros. 3f.; / CDCAL-PE,INCRA, PF, FUNAI, STR de Petrolândia, Pólo,
FETAPE, CIMI, ÍNDIOS E POSSEIROS.
1994/10/24. VÁRIOS; OFÍCIO ao superintendente regional do INCRA com "Propostas
aprovadas pelos órgãos presentes na reunião do dia 19 de outubro de 1994, sobre
a questão do litígio entre índios Pankararu e posseiros do município de
Petrolândia-PE, sob a coorrdenação do presidente da Comissão de Defesa da
Cidadania da Assembléia Legislativa-PE". 3f.; / CDCAL-PE,INCRA, PF, FUNAI,
STR de Petrolândia, Pólo, FETAPE, CIMI, ÍNDIOS E POSSEIROS.
S/D. Questionário referente a cada uma das aldeias ou agrupamentos indígenas localizados
no município onde se localiza o posto indígena. S/d. MI/microfilmes: rolo175,
fotograma322.
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José Maurício Paiva Andion Arruti. O Reencantamento do Mundo