Além do azul do céu
(Time Was)
Nora Roberts
Passado e futuro se unindo numa louca paixão!
Uma luz risca o céu e tinge a mata de vermelho. Libby, que assiste a tudo
assustada, tem certeza de que um avião acabara de cair, e sob a chuva forte corre
para socorrer as vítimas.
Caleb abre os olhos e vê uma mulher adormecida a seu lado. Sente uma
profunda vontade de tocá-la, afagar-lhe o rosto suave, fazer amor com ela.
Quem seria a desconhecida? E o que fazem ali naquela cabana tosca, aquecida
apenas pelas chamas da lareira? Caleb, porém, não tem respostas para essas e
tantas outras perguntas que o atormentam. Nada do que o rodeia o faz lembrar o
mundo em que vive. Nada! Nem a mulher que acaba de acordar e o fita com
imensa ternura...
Além do azul do céu – Nora Roberts
TIME WAS
© 1989 Nora Roberts
Originalmente publicado pela Silhouette Books,
Divisão da Harlequin Enterprises Limited
ALÉM DO AZUL DO CÉU
© 1990 para a língua portuguesa
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de
reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.
Esta edição é publicada através de contrato com a
Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá.
Silhouette, Silhouette Intimate Moments e o colofão
são marcas registradas da Harlequin Enterprises B. V.
Tradução: Cláudia Dália Verde
NOVA CULTURAL: Av. Brig. Faria Lima, 2000
3° andar — CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil
Caixa Postal 2372
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressa na Artes Gráficas Parâmetro Ltda.
Digitalizado E Revisado Por: Alice Akeru
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Além do azul do céu – Nora Roberts
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CAPÍTULO I
Ele estava caindo. O painel de instrumentos era um caleidoscópio de luzes
e números piscantes, e a cabine girava como um carrossel enlouquecido. Não
precisava que os sinais de alarme avisassem que havia problemas. Não precisava
que a tela do computador confirmasse. A consciência do perigo havia se
instalado no momento em que sentiu o vácuo.
Xingando, tentando controlar o pânico, ele lutou com os controles,
empurrando a alavanca de energia ao ponto máximo. O veículo deu um salto e
estremeceu, enfrentando a atração da gravidade, que o atingiu como uma parede.
O espaço foi tomado pelos ruídos de metal sendo amassado.
— Não se despedace, benzinho — disse ele, entre dentes. — Não se
despedace!
Torceu o leme para a direita, e um palavrão lhe saiu dos lábios ao
perceber que, por mais exímias que fossem as manobras, a nave continuava
desgovernada.
As luzes se apagaram na cabine, deixando apenas o redemoinho de cores
do painel de instrumentos. A nave começou a girar em espiral, como uma pedra
atirada por um estilingue. A luz se tornou branca, quente e brilhante.
Instintivamente, ergueu o braço para proteger os olhos. A pressão súbita no peito
prendeu-lhe a respiração.
Brevemente, antes de perder a consciência, lembrou-se de que a mãe
queria que fosse advogado. Mas ele tinha escolhido voar.
Quando voltou a si, a nave estava em queda livre. Apavorante. Um olhar
para o painel mostrou apenas que os números se precipitavam em contagem
regressiva. Uma nova força o pregou ao assento, mas podia ver a curva da terra,
Sabendo que poderia desmaiar de novo a qualquer momento, inclinou-se
para ligar o piloto automático computadorizado. Deu instruções para pouso de
emergência numa área despovoada, e, se havia um Deus no céu, o dispositivo de
controle de queda daquele calhambeque ainda estaria funcionando.
Talvez, apenas talvez, ele vivesse para ver o dia seguinte. Talvez também
fosse o caso de se dedicar aos estudos de direito.
Viu o mundo que vinha a seu encontro, azul, verde e belo. Bobagem,
pensou. Aquilo era muito melhor do que passar a vida atrás de uma
escrivaninha.
Libby parou na varanda da cabana e contemplou o espetáculo produzido
pela natureza. As luzes dos relâmpagos abrindo a cortina agitada da chuva eram
melhores que as luzes de qualquer teatro. Seu rosto e cabelos estavam molhados
da água trazida pelo vento. Atrás dela tremulavam as luzes da cabana, num tom
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aconchegante de amarelo. Ao ouvir trovões ribombando, ficou contente por ter
pensado em providenciar velas e lampiões de querosene.
Mas a luz e o calor não a atraíram para dentro. Naquela noite preferia o
frio e a força bruta entrincheirada atrás da serra.
Se a tempestade durasse muito mais, a estrada de terra entre as montanhas
ficaria intransitável por dias e dias. Não tinha importância, pensou, apreciando
outro relâmpago cruzar o céu. Dispunha de muitos e muitos dias. Na verdade,
disse a si mesma, sorrindo, os braços cruzados sobre o peito para se esquentar,
tinha todo o tempo do mundo.
A decisão de juntar suas coisas e se esconder na cabana da família fora a
melhor que já tomara. Sempre gostara de montanhas, e a serra de Klamath, a
sudoeste de Oregon, era perfeita. Tinha uma vista espetacular, picos altos e
recortados, ar puro e solidão. Se tivesse de levar seis meses para escrever a tese
sobre os efeitos de influências modernizadoras sobre os habitantes das ilhas
Kolbari, tudo bem.
Passara cinco anos estudando antropologia cultural, três dos quais num
extenso trabalho de campo. Não tirava férias desde o décimo oitavo aniversário,
nenhum tempo só, longe da família, estudos e outros cientistas. A tese era
importante para ela, importante demais até. Ir para a cabana para trabalhar
sozinha, e ao mesmo tempo pensar na vida, tinha sido uma excelente idéia.
Libby havia nascido naquela cabana rústica de dois andares e passara os
primeiros cinco anos de vida nas montanhas, livre e solta como uma corça.
Sorriu para a tempestade ao lembrar-se de si mesma e da irmã menor,
descalças, acreditando que o mundo começava e acabava ali, onde moraram com
os pais hippies.
Ainda tinha nítida a lembrança da mãe tecendo esteiras e tapetes, e o pai
alegremente ocupado na horta. À noite houvera música e longas e fascinantes
histórias. Os quatro viviam felizes e eram auto-suficientes, só tendo contato com
outras pessoas nas excursões mensais à cidade de Brookings para comprar
mantimentos.
Poderiam ter continuado assim para sempre, mas os anos sessenta
terminaram, e veio a década de setenta. O dono de uma galeria de arte se
interessou pelas tapeçarias da mãe de Libby. Quase ao mesmo tempo, o pai
descobriu que certa mistura de ervas da horta fazia um chá calmante delicioso.
Antes que Libby completasse oito anos já tinha uma mãe famosa como artista e
um jovem empresário de sucesso como pai. A cabana foi relegada a recanto de
férias quando a família se mudou para a capital do Estado, Portland.
Libby sempre achava que fora aquele choque cultural que a motivara a
estudar antropologia. A fascinação pelas estruturas da sociedade e os efeitos de
influências externas nas comunidades primitivas muitas vezes lhe dominava a
vida. Chegava a esquecer do tempo presente em que vivia na busca ávida de
respostas. Era então que voltava para a cabana ou passava alguns dias com a
família, com medo de ficar perdida no passado.
"Amanhã", decidiu, "se a tempestade tiver acabado, vou ligar o
computador e começar o trabalho. Mas só quatro horas por dia." No ano anterior
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à ida para a cabana, a tendência de Libby havia sido trabalhar o triplo.
Tudo a seu tempo, era o que a mãe sempre dizia. Bem, daquela vez ia
recuperar um pouco da liberdade experimentada durante os primeiros cinco anos
de vida.
Serena, Libby deixou que o vento lhe desmanchasse os cabelos e ouviu o
martelar da chuva sobre pedra e terra. Sentia-se serena, apesar do temporal e do
estrondo dos trovões. Nunca havia visto em toda vida um lugar mais cheio de
paz.
Viu a luz atravessar o horizonte, e por um instante pensou que poderia ser
um raio, quem sabe um meteoro. Mas quando o céu ficou mais claro distinguiu
um vago contorno e uma cintilação rápida de metal. Deu um passo à frente, para
a chuva, apertando os olhos para ver melhor. Quando o objeto se aproximou
mais, levou a mão à garganta.
Um avião? O objeto pareceu tocar a copa dos pinheiros que conhecia bem,
de tanto olhá-los durante o pôr-do-sol. A colisão ecoou no bosque, paralisando-a
por segundos, antes que se refizesse e corresse para dentro, à cata de uma capa e
da caixa de primeiros socorros.
Momentos depois, acompanhada do ruído dos trovões, subiu no jipe.
Havia memorizado o ponto onde vira o avião cair, e contava com o senso de
direção que nunca a havia traído.
Levou quase meia hora de luta contra a tempestade que lhe empanava a
visão, e as trilhas e caminhos esburacados. Segurou firme o volante quando o
jipe afundou num riacho engrossado pela chuva. Conhecia bem demais os
perigos das inundações relâmpago nas montanhas. Mesmo assim, manteve uma
velocidade arriscada, enveredando por curvas e voltas do caminho, levada pelo
instinto e pela lembrança. E quase o atropelou.
Libby pisou fundo nos freios quando os faróis iluminaram a figura
amontoada ao lado da trilha estreita. O jipe derrapou, espalhando barro, antes
que as rodas se firmassem. Armada de uma lanterna de pilha, desceu para
ajoelhar-se ao lado dele.
Vivo, constatou com alívio, quando sentiu-lhe a pulsação na garganta.
Todo vestido de preto, e encharcado ate os ossos. Automaticamente, voltou ao
jipe para pegar um cobertor, jogou sobre o corpo inerte no chão e começou a
apalpar em busca de ossos quebrados.
Um corpo jovem, esbelto e musculoso. Examinando-o, Libby rezou para
que essas vantagens trabalhassem a seu favor. Iluminou-lhe o rosto com a
lanterna.
O corte na testa era preocupante. Mesmo debaixo da chuva forte, sangrava
muito; mas a possibilidade de algum dano na coluna a fez hesitar diante da idéia
de movê-lo. Com passos rápidos, voltou para pegar a caixa de primeiros
socorros. Quando pressionou gaze sobre o ferimento, ele abriu os olhos.
"Graças a Deus." Foi o primeiro pensamento de Libby, ao segurar-lhe a
mão para acalmá-lo.
— Você vai ficar bom. Não se preocupe. Está sozinho?
Ele tentou enxergar, mas tudo o que viu foi uma silhueta indistinta.
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— O quê?
— Havia mais alguém com você? Alguém mais se machucou?
— Não.
Ele fez um esforço para erguer o corpo. O mundo tornou a girar, e apoiouse nela. As mãos escorregaram na capa molhada, mas conseguiu dizer antes de
desmaiar:
— Estou só.
Ele não fazia idéia do tamanho da solidão.
Libby passou o resto da noite entre cochilos e sustos, tomando chá e
cuidando do hóspede. Conseguiu levá-lo até a cabana e deitá-lo num sofá. Tiroulhe a roupa, enxugou-o e cuidou dos ferimentos antes de se deixar cair, exausta,
na poltrona ampla ao lado da lareira. De tempos a tempos levantava-se para
verificar o pulso e as pupilas do homem que havia salvo.
Estava em estado de choque, e com toda a certeza tinha uma concussão,
mas o resto dos ferimentos não pareciam graves. Arranhões nas costelas e cortes
superficiais. "Um homem de muita sorte", pensou, enquanto tomava o chá e o
estudava à luz da lareira. A maioria dos loucos tem sorte. E quem, a não ser um
louco, voaria entre as montanhas com um tempo daqueles?
A tempestade continuava lá fora. Libby pôs a xícara de lado para colocar
mais lenha na lareira. A luz expandiu-se, encompridando as sombras que
bruxuleavam na sala. "Um louco bem atraente", pensou de novo, sorrindo e
esticando as costas doloridas. Teria um metro e oitenta e cinco e era muito bemproporcionado. Para sorte dos dois, Libby era forte, acostumada, em suas
pesquisas, a carregar mochilas pesadas e pacotes de equipamentos. Apoiou-se na
cornija da lareira e dedicou-se a admirá-lo.
"Atraente, sem a menor sombra de dúvida", pensou outra vez. E ficaria
ainda mais, quando recuperasse a cor. Mas, mesmo pálido, o rosto tinha uma
boa estrutura óssea. "Celta", pensou Libby, com as maçãs do rosto altas e finas e
a boca cheia, bem desenhada. Um rosto com barba de pelo menos dois dias.
Aquilo e o curativo na testa lhe davam um ar aventureiro, quase perigoso. Os
olhos eram azuis, lembrou-se, um azul escuro e intenso.
"Definitivamente, origens célticas", voltou a pensar, ao pegar a xícara de
chá. Os cabelos eram escuros e levemente ondulados, compridos demais para
um militar, refletiu, lembrando-se das roupas que vestia. O macacão preto
parecia um uniforme, com um tipo de insígnia sobre o bolso esquerdo. Talvez
pertencesse a algum corpo de elite da Força Aérea.
Libby deu de ombros e acomodou-se na poltrona. Por outro lado, ele
calçava tênis de cano alto, muito usados. Tênis e um relógio de pulso caríssimo,
com meia dúzia de mostradores. A única coisa que dava para descobrir à
primeira vista era que o relógio não estava marcando a hora certa. Pelas
aparências, tanto o relógio quanto o dono haviam sofrido avarias com o desastre.
Bocejando, Libby dirigiu-se ao hóspede adormecido:
— O relógio, não sei, mas acho que você vai ficar bom. — E depois disso
dormiu.
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Ele acordou uma vez com uma terrível dor de cabeça e a vista turva.
Havia uma lareira, ou uma excelente imitação. Sentiu o cheiro da madeira
queimando e... da chuva. Lembrava-se vagamente de ter tropeçado e
cambaleado debaixo de chuva. O máximo que podia se concentrar era no fato de
que estava vivo. E aquecido. Lembrou-se de haver sentido frio, de estar molhado
e desorientado, com medo de ter caído no mar. E então houvera... alguém. Uma
mulher. Voz baixa, grave... mãos macias, suaves... Tentou pensar, mas a cabeça
latejante não colaborou.
Viu-a sentada numa cadeira antiga, coberta por uma colcha colorida.
Alucinação? Talvez, mas certamente uma boa alucinação. Cabelos escuros, de
onde o fogo arrancava reflexos vermelhos, cortados à altura do queixo e cheios.
Estavam caídos sobre o rosto. Ela dormia, percebeu pela respiração regular. A
luz fazia a pele parecer dourada. As feições eram finas, quase exóticas, a boca
grande tinha um quê de infantil.
Para uma alucinação, não poderia ser melhor. Ele fechou os olhos, e
dormiu até o amanhecer. Quando acordou pela segunda vez, ela havia
desaparecido. O fogo ainda crepitava e uma luz aquosa entrava pela janela. A
dor de cabeça ainda estava lá, só que mais tolerável. Com dedos cautelosos,
apalpou a bandagem na testa. Pensou que poderia ter estado inconsciente horas
ou dias, pois, quando tentou sentar-se, sentiu o corpo fraco e flácido.
A mente não se encontrava em melhores condições, decidiu, usando as
poucas forças para examinar o ambiente ao redor. A sala pequena, na penumbra,
parecia feita de pedra e madeira. Ele já vira relíquias cuidadosamente
preservadas feitas desses materiais primitivos. Certa vez saíra de férias com a
família, numa excursão que incluía parques e monumentos. Virou a cabeça o
suficiente para ver as chamas consumindo a lenha. Calor seco, com cheiro de
fumaça. Mas era muito pouco provável que tivesse sido socorrido pela vigia de
um museu ou parque histórico.
O pior de tudo é que não tinha jeito de saber onde estava.
— Oh, você acordou! Já estava ficando preocupada. A voz de Libby vinha
da porta, onde havia parado com uma xícara de chá na mão. Ao ver que o
"paciente" a olhava um tanto confuso, sorriu animadoramente e foi até o sofá.
Ele parecia tão indefeso que a timidez, o grande problema de Libby a vida toda,
foi fácil de controlar.
Ele pôde vê-la melhor. Os cabelos estavam penteados, com uma risca do
lado. Castanho-avermelhados, muito brilhantes . "Exótica" era a palavra certa
para descrevê-la, tornou a pensar, por causa dos olhos ligeiramente amendoados,
o nariz fino e boca carnuda. De perfil, fazia-o lembrar-se de um desenho de
Cleópatra, a rainha do antigo Egito. Os dedos que ela pousou em seu pulso
estavam frios.
— Quem é você?
"Estável", pensou Libby, "e forte." Em voz alta falou:
— Nem enfermeira nem médica, mas acho que vai ter de se contentar
comigo — brincou. Em seguida, levantou-lhe as pálpebras, uma por vez, olhou-
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as bem de perto e perguntou:
— Quantas de mim está vendo?
— Quantas eu deveria ver?
Ela riu, ajeitando o travesseiro nas costas dele.
— Só uma, mas, como tem concussão, poderia ver gêmeas.
Ele sorriu e estendeu a mão para tocar-lhe o queixo um tanto quanto
pontudo:
— Só vejo uma, e é linda.
Libby jogou a cabeça para trás, o rosto vermelho. Não estava acostumada
a que a chamassem de linda, só de competente.
— Tome um pouco disto. É mistura secreta de meu pai, e ainda não foi
lançado no mercado.
Antes que pudesse recusar, ela chegou-lhe a xícara aos lábios.
— Obrigado. O que estou fazendo aqui? — murmurou ele, pensando que
aquele sabor trazia uma lembrança antiga, da infância.
— Se recuperando. Seu avião caiu na serra, a alguns quilômetros daqui.
— Meu avião?
— Não está lembrado?
Ela franziu as sobrancelhas e os olhos cor de mel, grandes, mostraram
uma expressão preocupada. Fez com que ele tomasse outro gole de chá,
resistindo à vontade absurda de afastar a mecha de cabelos que lhe caía na testa,
e tentou ajudar:
— Imagino que vá se lembrar logo. Levou uma pancada na cabeça. Eu
estava olhando a tempestade, senão não teria visto quando caiu. Foi uma sorte
ter se machucado tão pouco. Aqui não há telefone e o rádio está quebrado, por
isso nem pude chamar um médico.
— Rádio?
— Sim, nós temos um equipamento de radioamador, mas mandei
consertar e... Será que conseguirá comer?
— Talvez. Seu nome?
— Liberty Stone.
Colocou o chá na mesinha e a mão na testa dele para ver se estava com
febre. Extraordinário que não tivesse pegado sequer um resfriado. Ao ver que
ele continuava a olhá-la, como se não tivesse entendido, lembrou-se de explicar
o nome estranho.
— Acha esquisito uma mulher chamar-se assim? Meus pais eram hippies,
no início dos anos sessenta, portanto deram-me o nome do que mais amavam:
Liberty, ou seja, liberdade. O que ainda é melhor do que o nome da coitada da
minha irmã, que se chama Sunbeam.
— Raio de Sol?
— Sim, o que meus pais também gostavam. E o seu nome, qual é?
— Eu não... — A mão sobre a testa era fresca e real, portanto a moça
também era, raciocinou.
"Mas por que ela está dizendo tantos absurdos?"
— Perguntei seu nome. Costumo pedir aos homens que salvo de quedas
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de avião para que se identifiquem. Abriu a boca para responder... e teve um
branco mental. Um arrepio de pânico percorreu-lhe a espinha. Libby viu-o
pálido e de olhos vidrados antes que ele a segurasse pelo pulso e dissesse:
— Eu... eu não me lembro.
Libby pensou na falta que estava fazendo o rádio, e tranqüilizou-o,
embora ela mesma não se sentisse tão calma.
— Não force. Está desorientado. Quero que descanse, tente relaxar,
enquanto preparo algo para comer.
Assim que ele fechou os olhos, Libby correu para a cozinha. O homem
não tinha nada que o identificasse, lembrou- se, começando a preparar uma
omelete. Nem carteira, nem papéis, nem breve de piloto. Podia ser qualquer
coisa. Um criminoso, um psicopata... Não. Rindo por dentro, ralou queijo sobre
os ovos batidos. Sempre tivera a imaginação fértil. Afinal, a capacidade de "ver"
culturas primitivas e antigas como gente de verdade, famílias, amantes, crianças,
sempre a havia ajudado na carreira, onde a dedução era tão importante quanto as
descobertas arqueológicas.
Mas, imaginação à parte, também sempre fora boa em avaliar o caráter
das pessoas. Provavelmente essa qualidade também vinha do fascínio que sentia
por gente e seus hábitos. E admitiu, constrangida, que participava do espetáculo
da vida mais como espectador do que atriz.
O homem que se debatia com seus próprios demônios na sala não era uma
ameaça. Fosse quem fosse, era inofensivo. Libby fez a omelete dar uma volta no
ar, com perícia, e virou-se para pegar um prato. Com um grito, deixou cair a
frigideira e ovos. O paciente inofensivo estava parado à porta da cozinha,
gloriosamente nu.
— Hornblower. Caleb Hornblower — balbuciou ele, e começou a cair,
deslizando pelo batente.
Ouviu vagamente que ela o xingava. Sacudiu a cabeça para afastar a
tontura e abriu os olhos. Ela o segurou, tentando erguê-lo, os rostos muito
próximos. Tentou ajudá-la, fez um movimento brusco e caíram no chão.
—Sem ar, Libby, deitada de costas, presa sob o corpo dele, arquejou:
— Eu preferia quando você estava desorientado.
Ele teve tempo de perceber que ela era alta e muito firme antes de pedir:
— Desculpe. Derrubei você?
Libby soltou as mãos que ainda o abraçavam, culpando a queda pela falta
de ar que sentia, e respondeu:
— Sim. E agora, se não se importa, saia de cima de mim, você é meio
pesado.
Ele apoiou uma mão no assoalho e ergueu-se alguns centímetros. Estava
tonto, com certeza, mas não morto, e gostando da posição involuntária.
— Acho que estou fraco demais para me mexer.
Libby olhou-o nos olhos e descobriu que estavam risonhos. O típico riso
malandro de todos os homens, em todos os tempos, quando conseguem deixar
uma mulher sem graça.
— Hornblower, se você não se mexer, vai ficar muito mais fraco, eu
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garanto.
Sem corresponder ao sorriso foi saindo de sob o corpo pesado. Depois
ajudou-o a se levantar, tentando muito seriamente não desviar os olhos do rosto,
mesmo quando passou o braço pela cintura dele. Repreendeu-o:
— Se está planejando passear por aí, vai ter de esperar até que possa parar
em pé... e até eu procurar uma calça de meu pai para que se vista.
—— Certo — disse ele, caindo no sofá com um suspiro de satisfação.
— E desta vez fique quieto até eu voltar.
Ele não discutiu. Nem podia. A caminhada de ida e volta até a porta da
cozinha acabara com toda sua energia. A fraqueza era uma sensação estranha e
nada agradável. Não se lembrava de ter ficado doente um só dia da vida adulta.
Certo, havia se machucado bastante numa batida de aerocicleta, mas quantos
anos teria? Dezoito?
E o mais estranho era que podia lembrar de coisas passadas há muito
tempo, e não de como havia ido parar ali. Fechando os olhos, recostou-se e
tentou pensar apesar do latejamento da cabeça.
Seu avião tinha caído. Era o que ela, Libby, dissera.
Sentia-se mesmo como se tivesse caído de algum lugar. A memória
voltaria, assim como o nome tinha voltado, depois daquele apavorante branco
inicial. Ela chegou com um prato e disse:
— Por sorte, eu tinha acabado de fazer compras, ou teria de passar fome.
Quando ele abriu os olhos, Libby quase deixou cair a omelete pela
segunda vez. Era uma visão, aquele homem seminu, com um cobertor no colo e
o reflexo do fogo dançando na pele. Qualquer mulher levaria um choque. E ele
sorriu, dizendo:
— O cheiro é bom.
— Minha especialidade. Pode comer sozinho? — perguntou Libby,
sentando-se ao lado dele.
— Posso. A tontura só vem quando fico em pé.
Pegou o prato e, depois do primeiro bocado, olhou para ela, surpreso:
— Estes ovos são de verdade?
— De verdade? Claro que são.
Ele deu uma risadinha e pegou outra garfada, comentando:
— Faz... eu não sei quanto tempo faz desde que comi ovos de verdade
pela última vez.
Libby lembrou-se de que havia lido em algum lugar que no Exército se
usa alguma proteína de soja para imitar ovos.
— Estes são ovos de verdade de galinhas de verdade. E pode repetir
quantas vezes quiser — acrescentou, vendo a fúria com que comia.
Ele ergueu os olhos, e viu-a sorrir por cima da eterna xícara de chá.
— Não, isso deve bastar. Acho que ainda não agradeci por ter me
ajudado.
— Aconteceu de eu estar no lugar certo na hora certa.
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Ele correu os olhos pela sala e perguntou:
— Por que está aqui? Neste lugar?
— Acho que poderia dizer que estou de retiro. Sou antropóloga cultural e
acabei de passar vários meses fazendo pesquisa no campo. Estou escrevendo
minha tese.
— Aqui?
Libby ficou contente por ele não ter feito o comentário habitual: "Mas
você é jovem demais para ser cientista!" Pegou o prato vazio e o colocou de
volta na bandeja, dizendo:
— Por que não? É tranqüilo... a não ser por aviões que caem de vez em
quando. Como estão as costelas? Doem?
Ele olhou para baixo, reparando pela primeira vez nos arranhões.
— Não, na verdade, não. Só incomodam um pouco.
— Você tem muita sorte, sabia? Do jeito como o avião caiu, pensei que
não encontraria sobreviventes.
— O dispositivo de controle de quedas... — Ele teve uma rápida visão de
si mesmo apertando botões. Luzes, luzes que piscavam. O eco de sinais de
alarme. Tentou acertar o foco, concentrar, mas a visão se desfez.
— Você é piloto de testes?
— O quê? Não... Não, acho que não.
Ela apertou-lhe a mão, solidária. Logo arrependeu-se do gesto, que
poderia tê-lo acalmado, mas que a deixava nervosa.
— Não gosto de quebra-cabeças — resmungou ele.
— Pois eu adoro. Então vou ajudar você a montar este. Ele girou a cabeça,
até que seus olhos se encontrassem.
— Talvez não goste da solução.
Libby teve uma sensação desconfortável. Ele ia ficar forte. Quando as
feridas cicatrizassem, o corpo seria tão forte quanto a mente. E estavam
sozinhos... tão sós quanto Adão e Eva no paraíso. Afastou a sensação com um
movimento de ombros e distraiu-se bebendo chá. O que mais poderia fazer?
Jogar um homem com uma concussão na chuva?
Logo recomeçou a conversa:
— Não vamos saber até resolver o quebra-cabeça. Se a tempestade
acalmar, poderei levá-lo ao médico dentro de um ou dois dias. Nesse meio
tempo, terá de confiar em mim.
Ele confiava. Não saberia dizer por quê, mas desde o momento em que a
vira cochilando na poltrona soube que era alguém com quem poderia contar. O
problema era: não sabia se podia confiar em si mesmo, e se ela podia confiar
nele.
— Libby...
Ela voltou-se para olhá-lo, e o resultado foi que esqueceu o que queria
dizer.
— Você tem um rosto interessante — murmurou, e viu que os olhos de
mel ficaram alertas. Queria tocá-la, a vontade era quase irresistível, mas assim
que ergueu a mão ela se colocou fora de alcance, e começou a falar depressa:
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— Você tem de descansar mais. Tenho um quarto vazio no andar de cima.
Ontem à noite não fui capaz de fazer com que subisse, mas é muito mais
confortável do que o sofá.
Caleb não estava acostumado a se ver rejeitado. Teve de pensar um
pouco... Segundo acreditava, uma vez que houvesse atração entre um homem e
uma mulher, o resto era fácil. No entanto, ou estava mais perturbado do que
supunha ou Libby estava negando uma atração mútua e óbvia.
— Você está acasalada?
Libby ergueu tanto as sobrancelhas que elas desapareceram sob a franja
de cabelos.
— Estou o quê?
— Acasalada. Quero dizer: Você tem um companheiro?
A resposta veio depois de um riso espontâneo:
— Que palavra mais estranha para se usar. Não, não no momento. Deixe
que eu o ajude a subir a escada e... Bem, eu gostaria que se enrolasse no
cobertor, antes.
— Não estou com frio — disse ele, mas em seguida, dando de ombros,
prendeu o tecido em volta dos quadris.
Libby o fez colocar o braço sobre seus ombros, e passou o outro braço na
cintura de Caleb.
— Isso, se apóie em mim. Firme?
— Quase.
Começaram a andar, e Caleb percebeu que não tinha mais tonturas.
Poderia muito bem seguir sozinho, mas gostou da idéia de subir a escada
abraçado a ela. Comentou:
— Nunca estive num lugar como este.
— Sim, é um tanto rústico demais, mas eu gosto muito — respondeu
Libby, com a respiração opressa nem tanto pelo peso, mas sim pela proximidade
do corpo dele.
"Rústico" era pouco, pensou ele, mas não queria ofendê-la. Em vez disso,
prosseguiu o assunto:
— Sempre gostou?
— Sim, nasci aqui.
Chegaram até a cama. Libby instruiu-o:
— Pronto. Agora sente-se aqui enquanto eu arrumo as cobertas.
Caleb obedeceu, e, ao apoiar-se na armação ao pé da cama, levou um
susto. Era de madeira, com toda a certeza, mas não parecia ter mais que vinte ou
trinta anos. Aquilo era ridículo.
— Esta cama...
— É confortável, acredite. Meu pai a fez, por isso balança um pouco, mas
o colchão é bom.
Ele apertou mais a armação.
— Seu pai fez a cama? É de madeira?
— Carvalho sólido, e pesada como um caminhão. E saiba que eu nasci
nela, pois meus pais, naquela época, não acreditavam em médicos para fazer
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uma coisa tão básica e pessoal como um parto. Ainda acho difícil de imaginar
meu pai de rabo-de-cavalo, com colares de contas no pescoço.
Enquanto falava, Libby terminou os arranjos da cama e ergueu o corpo,
percebendo que Cal a olhava fixamente.
— O que foi? Algo errado?
A resposta foi um aceno negativo de cabeça. Ele devia mesmo precisar de
um descanso. Um longo descanso. Numa última tentativa de entender, fez um
gesto que abrangia toda a cabana:
— Isto aqui... foi algum tipo de experiência?
Libby teve uma expressão de divertimento e afeto.
— Acho que poderia se chamar assim — ponderou, e, indo até a cômoda
rústica, também construída pelo pai, remexeu nas gavetas e tirou uma calça de
ginástica, mostrando-a a Cal e dizendo:
— Pode usar isso aqui. Meu pai sempre deixa algumas roupas, e vocês
têm mais ou menos o mesmo tamanho. Cal pegou a calça e segurou-lhe a mão
para perguntar:
— Onde você disse que estamos?
Parecia tão preocupado que Libby apertou a mão estendida:
— Oregon, sudoeste de Oregon, perto da linha divisória da Califórnia, na
serra de Klamath. A tensão arrefeceu-se nos dedos dele.
— Oregon. Estados Unidos?
— Sem nenhuma dúvida — respondeu Libby, instintivamente erguendo a
mão para ver se ele estava com febre. Ele segurou-a pelo pulso, tentando não
apertar muito.
— Que planeta?
Libby olhou-o bem nos olhos, e pensou que ele era um excelente ator.
Conseguia dizer aquelas coisas e continuar sério. Entrou no que pensava ser uma
brincadeira:
— Terra. Você sabe, o terceiro contando a partir do sol. Descanse,
Hornblower, você está quase delirando.
— É... você tem razão.
— Se precisar de alguma coisa, grite.
Libby saiu, e Caleb permaneceu imóvel. Tinha uma sensação estranha e
má. Talvez a razão estivesse com ela: delírio. Se havia caído em Oregon, no
hemisfério norte de seu próprio planeta, não tinha desviado muito da rota.
"Rota", pensou de novo, e a cabeça recomeçou a latejar. Que rota estaria
seguindo quando aconteceu o acidente?
Olhou para o relógio de pulso e franziu a testa. Num gesto automático,
apertou um botãozinho lateral. Os mostradores piscaram uma série de numerais
vermelhos.
Los Angeles. Uma onda de alívio o invadiu ao reconhecer as coordenadas.
Estava voltando à base de Los Angeles depois... depois do quê, afinal de contas?
Deitou-se lentamente e viu que Libby tinha falado a verdade. A cama era
muito confortável. Talvez, se conseguisse dormir, fugir dali por algumas horas,
se lembraria do resto. Em atenção às exigências da dona da casa, vestiu a calça.
Além do azul do céu – Nora Roberts
14
Onde foi que me meti? "perguntava Libby a si mesma. Sentou-se em
frente do computador, os olhos fixos na tela vazia. Tinha um homem ferido sob
sua responsabilidade... um homem incrivelmente bonito. Com uma concussão,
amnésia parcial... e olhos de gato siamês. Com um suspiro, apoiou o queixo nas
mãos. A concussão não a assustava, pois havia feito um curso de enfermagem
como parte da preparação para lidar com tribos primitivas em lugares onde não
havia médicos nem hospitais.
Mas o curso não a havia preparado para tratar de amnésia, e muito menos
para enfrentar olhos azuis. O conhecimento que tinha dos homens vinha de
livros, onde aprendera os hábitos culturais e sócio-políticos. Conhecia os
homens por meio de pesquisas científicas.
Claro que podia demonstrar segurança, quando necessário. A batalha
contra uma timidez extrema havia sido longa e árdua. A arma principal fora a
ambição, que a levava a fazer perguntas quando teria preferido se perder na
multidão e ser ignorada. Por ambição havia encontrado forças para viajar,
trabalhar com estranhos, fazer uns poucos e selecionados amigos.
Mas, no que dizia respeito a um relacionamento pessoal, homem-mulher...
A maior parte dos homens que encontrava socialmente desistia logo de
uma conquista, em geral intimidados por sua inteligência e fixação no trabalho.
E daí havia a família. O pensamento a fez sorrir. A mãe continuava a ser a artista
sonhadora que tecia tapetes num tear artesanal. E o pai... Libby sacudiu a cabeça
ao pensar nele. William Stone poderia ter ficado milionário com a companhia
Herball Delights de chá, mas jamais seria um executivo de terno e gravata.
Música de Bob Dylan e reuniões de diretoria... o único namorado que
Libby se atrevera a levar para jantar com os pais tinha partido confuso e
desanimado... e, sem dúvida, morto de fome. Ainda se lembrava da expressão
atônita dele diante do suflê de abobrinha e soja preparado pela mãe.
Libby era uma combinação do idealismo, praticidade científica e
romantismo sonhador dos pais. Acreditava em grandes causas, equações
matemáticas e contos de fadas. Uma mente alerta e a sede de conhecimento
haviam-na ligado exageradamente ao trabalho, sem deixar lugar para romances
de verdade. E romances de verdade, quando lhe diziam respeito, deixavam-na
morrendo de medo.
Por isso buscava no passado, no estudo das relações humanas, a chave
para a própria personalidade.
Tinha vinte e três anos e, como se expressava Caleb, não estava
"acasalada". Gostou da palavra, era bonita, precisa e até romântica.
Acasalar, afinal, era um verbo perfeito para traduzir um relacionamento.
Mas um relacionamento verdadeiro, como o de seus pais.
Talvez o motivo pelo qual se sentia mais à vontade estudando do que
namorando fosse porque não havia encontrado ainda o companheiro certo para
se acasalar.
Sorrindo, colocou os óculos e mergulhou no trabalho.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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CAPÍTULO II
A chuva havia diminuído quando Caleb acordou. Ouviu o murmúrio
sincopado sobre o teto e as janelas. O som era relaxante como a canção de ninar
que ouvia quando criança.
Deitado, e ainda imóvel, tentou se lembrar de onde estava, e por quê.
Havia sonhado... alguma coisa sobre luzes intermitentes e um enorme
vazio negro. Sonhos que o tinham feito suar e acelerado as batidas do coração.
Fez um esforço consciente para se acalmar.
Um piloto tinha de ser forte, controlar o corpo e as emoções. Muitas vezes
precisava tomar decisões rápidas, baseadas até no instinto de sobrevivência. E os
rigores do vôo exigiam um corpo saudável, disciplinado.
Caleb era um piloto. Fechou os olhos e concentrou-se. Sempre quisera
voar. Tinha sido treinado. Sentiu a boca seca, no esforço para se lembrar...
qualquer coisa, mesmo um simples detalhe.
A ISF. Cerrou os punhos até a pulsação voltar ao normal. Tinha estado na
ISF e conseguido a patente de capitão. Capitão Hornblower. Era isso, tinha
certeza. Capitão Caleb Hornblower. Cal. Todos o chamavam de Cal, menos a
mãe. Uma mulher alta, belíssima, temperamental e risonha.
Estava indo bem. Pôde ver a mãe, o que lhe deu, mais que tudo, a noção
da própria identidade. Tinha família... não uma companheira, mas pai, mãe e um
irmão. O pai era um homem calmo, equilibrado, de quem se podia depender. O
irmão... Jacob. Cal esvaziou os pulmões quando a imagem se formou na mente:
Jacob era brilhante, impulsivo, teimoso.
A cabeça voltou a latejar, encerrando os esforços. Aquilo bastava, por
algum tempo.
Abriu os olhos devagar e pensou em Libby. Quem era ela? Não apenas
uma bonita mulher de cabelos castanhos e olhos de gato. Ser bonita era fácil, até
comum. E ela não era comum, talvez por causa do lugar. Fez uma careta para as
paredes de troncos e o vidro espesso das janelas. Nada era comum ali. E
certamente nenhuma mulher que conhecera teria escolhido viver ali, daquele
jeito. Sozinha.
Libby teria mesmo nascido na cama onde ele se deitava, ou estava
brincando? Cal pensou que grande parte do comportamento dela era estranho, e
talvez tudo não passasse de uma grande piada. Que ele não entendia.
Antropóloga cultural era a profissão de Libby. Talvez isso explicasse
tudo. Era possível que o acidente o levara para o meio de algum tipo de
experiência de campo, uma simulação. Por motivos todos seus, Liberty Stone
estava vivendo à maneira da época que estudava. Estranho, com certeza,
excêntrico, mas, pelo que Cal sabia, quase todos os cientistas eram um tanto
quanto excêntricos. Entendia claramente que uma pessoa se interessasse pelo
futuro, mas mergulhar de volta no passado era um mistério. O passado estava
Além do azul do céu – Nora Roberts
16
pronto, não podia ser mudado, nem consertado, então por que estudá-lo?
Só Liberty poderia explicar.
Tinha uma dívida para com ela. Pelo que conseguia se lembrar, teria
morrido se ela não aparecesse. Assim que se sentisse melhor, pagaria a dívida.
Gostava de pensar em si mesmo como um homem que acertava os débitos.
Liberty Stone, Libby. Repetiu o nome várias vezes para si mesmo e sorriu.
Gostava do som. Era suave como os olhos da dona. Uma coisa era ser bonita,
outra, completamente diferente, era ter olhos de veludo dourado. A gente podia
mudar a cor dos olhos, o formato, mas nunca a expressão. Talvez fosse esse o
segredo do seu encanto. Tudo o que Libby sentia transbordava pelos olhos.
Ele próprio, lembrou, erguendo-se a meio corpo, havia despertado várias
emoções naqueles olhos: preocupação, medo, humor, desejo.
Deixou cair a cabeça entre as mãos, ao ver que o quarto girava. Seu corpo
poderia estar desejando Libby Stone, mas ainda faltava muito para poder
satisfazer àquele desejo. Contrariado, voltou a recostar-se nos travesseiros. Um
pouco mais de descanso, era isso. Um dia ou dois, esperando que o corpo se
curasse, garantiriam a volta da memória. Sabia quem era, onde estava. O resto
viria por si.
Um livro sobre o criado-mudo chamou-lhe a atenção. Sempre gostara de
ler, quase tanto quanto de voar. Preferia a palavra escrita a fitas ou discos. Mais
uma lembrança sólida. Satisfeito, Cal pegou o livro.
O título deixou-o confuso. Viagem a Andrômeda parecia um nome bem
bobo para um livro, especialmente de uma coleção de ficção científica. Qualquer
um podia viajar para Andrômeda num fim de semana prolongado, se é que
queria se entediar até a morte. Franzindo ligeiramente a testa, folheou o livro, e
seus olhos caíram sobre o ano da publicação.
Estava certo. O suor pegajoso começou a brotar no corpo todo. Era
ridículo. O livro que tinha nas mãos era novo, a capa estava intacta e algumas
páginas coladas. "Erro de impressão", foi o primeiro pensamento que lhe veio,
mas a boca ficou seca. Tinha de ser um erro. Que outra explicação haveria para
ele estar segurando um livro publicado há quase três séculos?
Absorta no trabalho, Libby não tomou conhecimento da dorzinha no meio
das costas. Sabia muito bem que a postura era importante para quem passava
várias horas escrevendo, mas, quando se perdia no meio de civilizações antigas e
primitivas, sempre se esquecia de tudo.
Estava sem comer desde o café da manhã, e a xícara de chá que levara ao
escritório já tinha esfriado. Anotações e livros de referência esparramavam-se
por todos os lados, junto com roupas que ainda não arrumara nos armários e a
pilha de jornais comprados na cidade. Tinha tirado os sapatos e enroscado os pés
nas pernas da cadeira. Vez por outra parava de martelar o teclado do computador
para empurrar os óculos redondos de armação preta para o alto do nariz.
"Não se pode negar que o advento de implementos modernos tem um
efeito marcante e nem sempre positivo numa cultura isolada como a Kolbari. Os
ilhéus permaneceram, no final do século XX, num nível tribal e sem procurar,
como está implícito nos apontamentos da área de relações humanas, integração
Além do azul do céu – Nora Roberts
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com as modernas sociedades industriais. O que pode ser visto por certas facções,
tais como a oferta das conveniências do progresso, medicinal, industrial e
educacional, é mais freqüentemente..."
— Libby.
— O quê? — resmungou ela, voltando-se, contrariada, para um Cal pálido
e trêmulo, segurando-se no batente da porta e mostrando um livro que trazia na
outra mão.
— Oh! O que está fazendo de pé? Eu disse que era para chamar, se
precisasse de alguma coisa.
Aborrecida com ele e com a interrupção, levantou-se para oferecer uma
cadeira. No momento em que lhe tocou o braço, ele recuou.
— O que é isso no seu rosto?
O tom da voz a fez umedecer os lábios. Era fúria, com uma pitada de
medo, uma combinação perigosa.
— Óculos. Óculos para ler.
— Sei disso, droga. Por que está usando óculos?
"Vá devagar, menina", disse Libby para si mesma. Com toda a gentileza,
segurou-o pelo braço e falou como quem fala com um leão ferido:
— Preciso deles para trabalhar.
— E por que não consertou?
— Os óculos?
Ele rangeu os dentes, e a voz saiu ciciada:
— Os olhos. Por que não consertou os olhos?
Com toda a cautela, Libby tirou os óculos e escondeu-os atrás das costas.
— Por que não senta?
— Quero saber o que significa isto — disse ele, ao mesmo tempo que
recusava a cadeira com um gesto de cabeça. Libby olhou para o livro, que ele
sacudia a sua frente. Pigarreou:
— Não sei o que significa, ainda não li. Imagino que meu pai tenha
deixado no quarto. Ele gosta de ficção científica.
— Não é isso que eu... — "Paciência", pensou Cal. "Nunca tive muita
paciência, e agora preciso usar toda de que disponho." — Abra na página de
rosto — corrigiu-se em voz alta.
— Certo. Vou abrir, se você sentar. Está com uma aparência horrível.
Ele deu dois passos vacilantes até a cadeira.
— Abra. Leia a data.
"Ferimentos na cabeça podem causar comportamentos esquisitos", pensou
Libby. Não acreditava que ele fosse perigoso, mas, por via das dúvidas, decidiu
que era melhor não se precipitar, e, com um sorriso, leu:
— Mil novecentos e oitenta e nove. Novo em folha!
— Está querendo brincar comigo?
— Não... Caleb — balbuciou Libby. Ele estava furioso e apavorado.
Sentou-se a seu lado.
— Esse livro tem alguma coisa a ver com o seu trabalho? Libby arregalou
os olhos para Caleb e, depois, para o computador, e repetiu:
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Meu trabalho? Mas eu sou antropóloga, eu estudo...
— Eu sei o que "antropóloga" quer dizer. — "A paciência que se dane",
concluiu Cal. Raivoso, arrancou o livro das mãos dela. — Quero saber o que
significa isto!
— É um livro, só isso. Se conheço bem meu pai, trata-se de ficção
científica de segunda categoria sobre invasões do planeta... Você deve conhecer
este tipo de livro, mutantes, pistolas de raios e guerreiros do espaço, por aí.
Agora me dê o livro e volte para a cama. Vou preparar uma sopa.
Cal olhou para os olhos expressivos cheios de preocupação, para o sorriso
encorajador. Olhou em seguida para a mão quase protetora que segurava a sua,
embora estivesse obviamente assustada. Devia haver uma ligação. Era absurdo
acreditar naquilo, quase tão absurdo quanto acreditar na data do livro.
— Acho que estou perdendo o juízo.
Libby se esqueceu do medo e passou a mão pelo rosto dele, acalmando-o
como se acalma uma criança, ou um animal pequeno e perdido.
— Não. Você está ferido.
Dedos inesperadamente fortes se fecharam no pulso dela, os olhos
adquiriram um brilho intenso, desesperado.
— Problemas com o banco de dados? Sim, pode ser... Libby, por favor me
diga: que dia é hoje?
— 24 ou 25 de maio. Perdi a conta.
Lutando para afastar a ansiedade da voz, ele insistiu:
— Tudo. Por favor.
— Está bem: provavelmente hoje é terça-feira, 25 de maio de 1989. Que
tal?
— Ah!
Cal usou de todas suas forças para fabricar um sorriso. Soube naquele
momento que um deles dois era louco, e esperava, de todo coração, que a louca
fosse Libby. Quis saber:
— Tem alguma coisa para se beber nesta casa além de chá?
Libby ergueu os olhos, pensativa, e então lembrou-se:
— Conhaque. Deve haver uma garrafa lá embaixo. Espere aí.
— Está bem, obrigado.
Assim que ouviu passos descendo a escada, levantou-se com cuidado e
abriu a primeira gaveta à mão. Tinha de haver alguma coisa naquele lugar
ridículo que explicasse o que estava acontecendo.
Descobriu lingeríe, muito bem dobrada apesar da desordem do resto do
quarto. Deixou-se ficar, pensativo, contemplando os tecidos e modelos. Ela
havia dito que não estava acasalada, no entanto era óbvio que usava roupas de
baixo para agradar um homem. Pelo jeito preferia o passado romântico até para
escolher roupas íntimas. Segurou por um momento entre as mãos um sutiã cor
da pele rendado, imaginando Libby dentro dele, e logo guardou tudo e fechou a
gaveta.
Na segunda inspeção à cômoda achou um jeans e uma calça grossa de
acampamento. Puxou um zíper para cima e para baixo, imaginando para que
Além do azul do céu – Nora Roberts
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serviria. Tornou a guardar tudo e, aborrecido, virou-se para olhar a mesa de
trabalho, onde o computador estava ligado. Teve tempo pára pensar que era uma
máquina arcaica e barulhenta antes de dar com a pilha de jornais. Não se
preocupou com fotos ou manchetes, indo direto para a data:
23 de maio de 1989.
O estômago deu um salto. Ignorando um repentino zumbido no ouvido,
inclinou-se para pegar o jornal. As palavras dançaram sob seus olhos. Notícias
de uma reunião para decidir acordos sobre armas... armas nucleares, reparou,
horrorizado, e colheitas prejudicadas pela geada no meio-oeste. Resultados de
partidas de futebol. Bem devagar, sabendo que as pernas estavam prestes a
ceder, despencou de volta na cadeira.
"Uma pena", pensou. "Uma verdadeira pena, mas não é Libby Stone a
louca da casa."
Libby apareceu à porta e precipitou-se para ele, quase derrubando o
conhaque que trazia num cálice.
— Caleb, o que foi? Está branco como um lençol.
— Não foi nada. Levantei muito depressa, só isso — tranqüilizou-a,
sabendo que daquela hora em diante teria de ser muito cuidadoso com tudo que
falasse.
Libby o fez segurar o cálice com as duas mãos, dizendo:
— Acho que está precisando mesmo de uma bebida; ei, mais devagar!
Observou-o tomar tudo de um trago e sentou-se nos calcanhares, fazendo
uma careta:
— Bem, bebendo assim ou você sara ou cai duro outra vez.
O conhaque era autêntico, e não uma alucinação, decidiu Cal, O líquido
ardente escorregou pela garganta. Fechou os olhos e deixou que o fogo se
espalhasse.
— Ainda estou desorientado. Quanto tempo faz que estou aqui?
— Desde ontem à noite. Deve ter caído por volta da meia-noite —
informou Libby, notando que ele recuperava a cor e o controle sobre a voz.
Sentiu os músculos tensos do próprio corpo relaxarem.
— Você me viu cair?
— Bem, vi as luzes e ouvi o barulho da queda. Por um momento cheguei
a pensar que estava vendo um OVNI, um meteoro ou coisa parecida.
— Um... um... OVNI — repetiu ele, pasmado.
— Não que eu acredite em extraterrestres, discos voadores ou coisas
assim, mas meu pai sempre foi fascinado. Mas percebi que era um avião. Está se
sentindo melhor?
Cal não tinha a menor condição de começar a dizer a ela como e o que
estava sentindo. O que não deixava de ser conveniente. Precisava pensar, ou
acabaria falando demais.
Ainda esperando que tudo não passasse de um engano grotesco, sacudiu o
jornal que tinha na mão:
— Estou, sim, um pouco. Onde comprou isto?
— Estive em Brookings faz uns dois dias. Fica a cem, cento e dez
Além do azul do céu – Nora Roberts
20
quilômetros daqui. Comprei mantimentos e alguns jornais, que acabei não lendo.
As notícias já estão velhas.
Cal correu os olhos pelos jornais que ainda estavam no chão e disse, não
sem certa ironia:
— Sim, notícias bem velhas.
Libby levantou-se rindo e começou a arrumar o quarto.
— Sempre me sinto tão isolada aqui, mais do que quando viajo para fora
do país. Imagino que poderiam instalar uma colônia em Marte, e eu só
descobriria tempos depois.
— Uma colônia em Marte... Bem, decerto vai demorar ainda uns cem
anos — murmurou Cal, tentando dar um tom de dúvida para uma afirmação que
ele tinha certeza estar correta.
Libby olhou pela janela, suspirando.
— Que pena, não vou estar viva para ver. A chuva recomeçou. Vamos ver
se pegamos a previsão do tempo do telejornal.
Passou por cima dos livros, e pegou uma televisão portátil, que ligou. A
imagem demorou a se definir. Libby tirou os óculos e virou-se para Caleb,
surpreendendo uma expressão boquiaberta.
— Logo vão dar a previsão do tempo... Ei, Caleb, que cara é essa? Parece
que nunca viu uma televisão na vida!
— O quê?
Ele estremeceu, desejando tomar outro conhaque. Um aparelho de
televisão. Já ouvira falar neles, claro, assim como Libby tinha ouvido falar de
caravelas.
— Não pensei que você tivesse uma dessas.
— Somos rústicos, não primitivos, meu caro hóspede. E também acho que
devia voltar para a cama.
Era uma boa idéia. Quando acordasse, saberia que tudo não havia passado
de um sonho.
— Vou, sim. Posso levar os jornais?
Ela levantou-se para ajudá-lo, e fez uma ressalva:
— Não sei se ler vai lhe fazer bem.
— Acho que tenho coisas mais sérias com que me preocupar —
respondeu, erguendo-se e percebendo que o quarto não girava mais. Ainda
assim, não queria dispensar o conforto dos ombros de Libby. Gostava daqueles
ombros macios e do perfume que vinha dela.
— Libby, se eu acordar e descobrir que tudo isso foi ilusão, quero que
saiba que você foi a melhor parte dela.
— Obrigada por me dizer.
— Estou falando sério. A melhor parte, de longe — insistiu ele, sentindo
que o conhaque e a fraqueza haviam combinado para derrubá-lo. Libby teve
pouco trabalho para pô-lo na cama, mas o braço ficou em seus ombros o tempo
suficiente para que Cal lhe desse um leve beijo nos lábios.
— Uma linda ilusão.
Ela se contraiu assustada. Caleb nunca poderia imaginar o efeito que o
Além do azul do céu – Nora Roberts
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beijo lhe causara.
Quem era Caleb Hornblower? A pergunta interrompeu o trabalho de
Libby durante a noite. O interesse nos habitantes das ilhas Kolbari não era páreo
para o fascínio crescente exercido pelo confuso e inesperado hóspede.
Quem era, e o que fazer com ele? O problema era que tinha uma lista
completa de perguntas sem respostas para seu estranho paciente, Caleb
Hornblower. Libby gostava de fazer listas e usava toda a capacidade de
organização de que dispunha para trabalhar.
Quem era ele? Por que se atrevera a voar durante uma tempestade, à meianoite? De onde vinha e para onde ia? Por que havia entrado em pânico por causa
de um livro de ficção científica? Por que a tinha beijado?
Libby parou nesse ponto. Aquela pergunta em particular não era
importante, nem mesmo relevante. Não tinha sido um beijo de verdade, fez
questão de lembrar. E, mesmo que tivesse sido, não tinha importância. Gratidão,
pensou, e começou a roer a unha do polegar. Ele estava apenas dando mostras de
gratidão. Libby entendia, claro que entendia, que um beijo era, ou poderia ser,
um gesto bem trivial. Parte da cultura ocidental. Através dos séculos viera se
tornar tão desimportante quanto um sorriso ou aperto de mão. Era um sinal de
amizade, afeição, simpatia, gratidão. E desejo. Ela mordeu a unha mais
fortemente.
Nem todas as sociedades usavam o beijo, decerto. Muitas culturas
tribais... "Liberty Stone, você está ficando professoral", repreendeu-se. Olhou
para as mãos. "E voltou a roer unhas. Mau sinal!"
O que precisava fazer era tirar Hornblower da cabeça por um tempo e
encher o estômago. Levantou-se. Já que não conseguia mesmo trabalhar, podia
muito bem comer.
Vendo que o quarto de Caleb estava escuro, passou direto pela porta,
resolvendo que daria uma olhada nele ao voltar para cima. Sem dúvida precisava
de sono muito mais do que de comida.
Descendo a escada, ouviu um trovão distante. Outro mau sinal, pensou. Se
continuasse assim, levaria dias para poder descer a serra com ele.
Talvez já o estivessem procurando. Amigos, família, sócios. Uma mulher,
ou amante. Todo mundo tinha alguém.
Acendeu a luz da cozinha quando o céu se abriu ao primeiro relâmpago.
"Outro temporal", pensou, abrindo a porta da geladeira. Sem encontrar nada que
a agradasse, remexeu as prateleiras. Uma noite como aquela pedia um bom prato
de sopa e um lugar na frente da lareira. Sozinha.
Um pequeno suspiro acompanhou a abertura da lata de sopa. Fazia pouco
tempo que tinha começado a pensar na própria solidão. Como cientista, sabia o
motivo: pertencia a uma cultura de casais. "Solteiros ou não-acasalados”,
pensou sorrindo, solteiros em geral freqüentemente se encontravam insatisfeitos
e deprimidos com a própria companhia. Os meios de comunicação e diversão,
sutilmente... e às vezes não tão sutilmente, viviam falando dos prazeres do
relacionamento. As famílias cooperavam, pressionando os solteiros a se casarem
e continuarem o clã. Amigos de bom coração ofereciam ajuda e conselhos, em
Além do azul do céu – Nora Roberts
22
geral dispensáveis, sobre como arranjar um parceiro. O ser humano estava
programado, quase desde o nascimento, para procurar e descobrir um
companheiro do sexo oposto.
Talvez fosse por isso que Libby resistia. A análise era interessante,
refletiu, mexendo a sopa na panela. A busca da individualidade e autosuficiência haviam sido entranhadas nela desde o nascimento. Tinha tido
pouquíssimos namorados no colégio, e continuado assim na faculdade. Não se
interessava por ninguém.
Não, aquilo não era precisamente verdadeiro, corrigiu-se em pensamento.
O problema era que seu interesse sempre fora científico. Queria conhecer um
homem que a deslumbrasse a ponto de impedi-la de fazer listas e formular
hipóteses. Seu apelido no colégio era dra. Stone. E ela estava prestes a se tornar
uma doutora de verdade, assim que escrevesse a tese. Na faculdade, fora
considerada uma defensora da virgindade, e odiava ter causado tal impressão.
Tentando ignorar o fato, despejara todas as energias no estudo. A personalidade
afetuosa e meiga havia atraído amigos, homens e mulheres. No entanto,
relacionamentos íntimos eram outra questão.
Analisando todos os dados, nunca aparecera alguém que a fizesse... bem,
anelar. Libby ficou satisfeita com a palavra: anelar, querer muito, desejar. E não
havia um homem, em todo planeta capaz de fazer Liberty Stone anelar.
Com a colher de pau na mão, virou-se para pegar um prato, e pela
segunda vez viu Cal emoldurado pela porta. Deu um grito abafado, e a colher
voou pelos ares. Um relâmpago iluminou a cozinha, e a escuridão se instalou em
seguida.
— Libby?
Remexendo nas gavetas à cata de uma vela, ela protestou:
— Puxa vida, Caleb, você vive me assustando.
— Pensou que fosse um mutante de Andrômeda? — O tom seco da
resposta a fez franzir a testa. Fechou a gaveta com estrondo, prendendo o dedo.
Resmungou um palavrão e abriu outra.
— Não consigo encontrar os fósforos — explicou, virando-se e colidindo
com Caleb no escuro. Outro relâmpago iluminou-lhe o rosto, um efeito
fantasmagórico que a fez estremecer.
Ele segurou-lhe os ombros com firmeza e adoçou a voz:
— Está tremendo. Assustei você tanto assim?
— Não, eu... eu preciso achar os fósforos.
— Por que apagou a luz? — quis saber Caleb, aspirando o perfume que
vinha dela. Leve, e pecaminosamente feminino.
— Não apaguei. A tempestade deve ter derrubado algum poste e
interrompido a força. Caleb? Se importa de me soltar?
Ele afrouxou o aperto em seus ombros e respondeu:
— Cal. Todo mundo me chama de Cal.
— Pois eu gosto de Caleb. Vamos guardá-lo para ocasiões especiais.
Agora me solte.
— Por quê? — e as mãos deslizaram até os pulsos, subindo de novo numa
Além do azul do céu – Nora Roberts
23
carícia.
Libby ficou sem resposta. As mãos, que havia apoiado no peito nu para
empurrá-lo, sentiram as batidas fortes e ritmadas do coração. Lentamente ele
correu os dedos até os cotovelos, traçando círculos lentos e eróticos na pele
sensível da dobra do braço. Não podia vê-lo, mas sentia a respiração, que se
aproximava dos seus lábios.
— Porque... eu preciso achar os fósforos.
— Ah, bom!
Soltou-a, e Libby apoiou-se na beirada da pia para remexer de novo na
gaveta. Achou uma caixa, e levou quase um minuto para acender o fósforo.
Pensativo, as mãos enterradas nos bolsos da calça, Cal observou a chama
dançar. Ela acendeu duas velas, sempre de costas para ele.
— Eu estava esquentando sopa. Quer um pouco?
— Quero.
— Você parece bem melhor.
Cal sorriu contrariado ao pensar nas horas que havia passado no escuro,
forçando a memória a voltar.
— Pareço mesmo.
— Dor de cabeça?
— Muito leve.
Libby pegou a chaleira que mantinha sempre cheia para fazer chá,
derramou água sobre as folhas e arrumou tudo, meticulosamente, numa bandeja.
— Eu ia sentar ao pé do fogo.
— Certo — disse Cal, pegando as velas e iluminando o caminho.
"A tempestade ajuda", pensou Cal. "Faz tudo parecer ainda mais irreal.
Talvez, quando passar, eu já saiba o que fazer."
— A chuva acordou você?
— Foi — concordou ele, e não seria aquela sua última mentira. Mesmo
aborrecido, sorriu e aproximou uma cadeira do fogo. Havia certo encanto em
estar num lugar onde uma reles tempestade podia deixá-lo no escuro,
dependente de velas e lareira. Nenhum computador poderia armar cenário
melhor.
— Quanto tempo acha que vai levar para as luzes se acenderem?
— Uma hora, um dia... sabe-se lá. Meu pai sempre fala de comprar um
gerador, e acaba se esquecendo. Quando éramos crianças, às vezes passávamos
dias cozinhando aqui na lareira, no inverno. E dormíamos amontoados no chão
enquanto meus pais se revezavam para manter o fogo aceso.
— E você gostava. — Cal conhecia gente que acampava em áreas
preservadas. Para ele, aquilo não passava de saudosismo barato, mas ouvir
Libby falar o estava fazendo mudar de idéia.
— Adorava. Acho mesmo que meus primeiros cinco anos de vida me
prepararam para lidar com a parte primitiva da antropologia.
O medo havia passado e, embora gostasse de vê-la nervosa, Cal pensou
que, quanto mais relaxada estivesse, mais informações poderia conseguir.
— Que época você estuda?
Além do azul do céu – Nora Roberts
24
— Nenhuma em especial. Dedico-me à vida tribal, principalmente
culturas isoladas e os efeitos de ferramentas e máquinas modernas sobre elas.
Por exemplo, como a eletricidade muda os costumes sócio-políticos do homem
tradicional. Já fiz cursos sobre culturas extintas, astecas, incas. E, no outono,
pretendo ir ao Peru.
— E como começou seu interesse por esse trabalho?
— Acho que foi uma viagem à península de Iucatã, no México, quando eu
era criança. Vi todas aquelas ruínas maias, e achei maravilhosas. Já esteve no
México?
Cal lembrou-se de uma noite de farra em Acapulco.
— Sim, faz uns dez anos... — "mais ou menos dois séculos depois de
hoje", acrescentou em pensamento, com uma careta, em direção à xícara que
segurava.
— Foi ruim?
— O quê? Não. Este chá... o gosto não me é estranho.
Libby sorriu, ajeitando-se na poltrona, com os pés sob o corpo.
— Meu pai vai gostar de saber disso. Herbal Delight, é o nome da
empresa dele, que produz o chá. Tudo começou bem aqui, nesta cabana.
Cal tornou a olhar para a xícara, depois inclinou a cabeça para trás e riu.
— E eu que pensava que fosse lenda.
Um sorriso tímido se formou no rosto intrigado de Libby.
— Não entendi a graça.
— É difícil de explicar.
Deveria dizer a ela que em duzentos e sessenta e três anos a Herbal
Delight seria uma das maiores e mais poderosas empresas da Terra e suas
colônias? Deveria dizer que fabricaria não apenas chá, mas também combustível
orgânico e sabe Deus o que mais? Ali estava Cal Hornblower pensou, muito
bem acomodado na cabana onde tudo começara. Notou que Libby o olhava
como se fosse verificar sua febre outra vez.
— Minha mãe costumava me dar este chá, quando estive... —
interrompeu-se, pois não sabia que tipos de doenças infantis eram do tempo
dela. Com certeza não poderia falar de enjôos em viagens interplanetárias.
Decidiu por fim — ...quando eu não me sentia muito bem.
— A cura de todas as doenças. Você já está se lembrando de mais coisas.
Teria de tomar cuidado com a resposta:
— Retalhos, pedaços. É mais fácil lembrar da infância do que de ontem à
noite.
— Dizem que é assim mesmo. Você é casado? — perguntou Libby,
admirada com a própria audácia.
— Não. E seria terrível se eu fosse, querendo você como quero.
Libby ficou de boca aberta, e parou de fitar o fogo para encará-lo. Logo
levantou-se e passou a arrumar os prato na bandeja.
— Vou levar tudo isto para a cozinha.
— Não gostou do que eu disse?
Engolindo em seco, ela ganhou tempo.
Além do azul do céu – Nora Roberts
25
— Disse o quê?
— Que quero você — explicou Cal, segurando-a pelo pulso. Ficou
surpreso e deliciado ao notar que a veia latejava, A pesquisa palavra por palavra
no jornal não havia esclarecido como eram as relações homem-mulher da época.
Mas não acreditava que pudessem ser muito diferentes.
— Sim. Não.
Sorrindo, ele tirou a bandeja das mãos dela.
— Sim ou não?
— Não penso que seja uma boa idéia.
Ele levantou-se, fazendo-a recuar até sentir o calor do fogo nas pernas.
— Caleb...
— Esta não é uma ocasião especial? — perguntou, passando a ponta do
dedo no rosto dela e vendo que os olhos adquiriam o brilho das chamas na
lareira.
— Não. — Era ridículo. Ele não podia fazê-la tremer apenas com um leve
toque. Mas tudo o que tinha feito era tocar- lhe o rosto, e ela estava tremendo.
— Quando acordei e vi você dormindo na poltrona à luz do fogo pensei
que fosse uma ilusão. Você ainda parece uma ilusão. — Cal passou-lhe o dedo
sobre o lábio inferior.
— Pois não sou ilusão nenhuma. Sou uma pessoa que tem de abafar o
fogo para a noite, e você é uma pessoa que tem de ir para a cama.
— Podemos abafar o fogo, e então podemos ir para a cama.
Libby endireitou os ombros, sentindo que as palmas das mãos suavam.
Não iria gaguejar, prometeu-se. Não agiria como uma idiota inexperiente.
Trataria do caso como uma mulher forte e independente, uma mulher que sabia
o que queria.
— Não vou dormir com você. Nem conheço você.
Cal refletiu que aquela devia ser uma das condições. Muito graciosa, e
nem tão irracional assim.
— Tudo bem. De quanto tempo precisa para me conhecer?
Libby franziu a testa para observá-lo, e logo correu as mãos pelos cabelos,
num gesto de desânimo, dizendo:
— Não consigo perceber se você fala sério ou não, mas de uma coisa eu
sei: é o homem mais estranho que já vi na vida.
— E você não sabe nem o começo — comentou ele, vendo-a abafar o
fogo. Mãos competentes, pensou, um corpo atlético e os olhos mais vulneráveis
que já vira.
— Vamos nos conhecer amanhã, então poderemos dormir juntos.
Libby levantou tão depressa que bateu a cabeça na cornija. Xingando e
esfregando o ponto dolorido, voltou-se para ele.
— Não necessariamente. Na verdade, é bem improvável.
Ele pegou a tela e colocou-a na frente do fogo, como tinha visto ela fazer
antes.
— Por quê?
Libby procurou as palavras exatas para explicar:
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Porque... eu não faço esse tipo de coisa.
A expressão de assombro nos olhos muito azuis foi tão sincera que não
havia como não acreditar.
— Nunca?
— Francamente, Caleb Hornblower, não é da sua conta — replicou Libby,
tentando manter a dignidade. Pegou a bandeja, e os pratos escorregaram para o
lado. Teriam caído se Cal não segurasse a outra ponta.
— Por que ficou zangada? Só quero fazer amor com você.
Libby respirou fundo.
— Ouça. Já estou cheia dessa história. Fiz um favor, e não gosto que
insinue que tenho de ir para a cama com você como se fosse um complemento
do favor. Não acho que seja um elogio, na verdade acho até um insulto, que
você pense que eu faria amor com um desconhecido só porque é conveniente.
Cal inclinou a cabeça para o lado, tentando entender.
— Então é melhor se for inconveniente?
Libby não sabia se ria ou chorava.
— Escute aqui, Hornblower, levo você ao primeiro bar de "paquera" no
minuto em que a estrada ficar desimpedida. Até que aconteça, mantenha
distância.
E com isso saiu da sala, furiosa. Cal ficou ouvindo o barulho dos pratos
vindo da cozinha.
Tornou a enfiar as mãos nos bolsos e subiu a escada. As mulheres do
século XX eram muito difíceis de entender. Fascinantes, sem dúvida, mas
complicadas.
E o que seria esse tal "bar de paquera"?
CAPÍTULO III
Cal acordou no dia seguinte sentindo-se quase normal. Bem, normal era
uma maneira de se dizer... Encontrava-se numa situação bizarra, altamente
improvável segundo a maioria das teorias científicas de seu tempo, e, bem no
fundo, agarrava-se à tênue esperança de que estava tendo um longo e detalhado
sonho.
Se tivesse mesmo sorte, naquele momento estaria num hospital, sofrendo
de choque e uma ligeira lesão cerebral. Mas tudo indicava que havia sido
projetado duzentos e sessenta e três anos no passado, para o primitivo e violento
século XX.
Sua última lembrança antes de acordar no sofá de Libby era de estar
pilotando a nave. Não, não exatamente. Estava lutando para controlar a nave.
Algo acontecera... alguma coisa fora de foco, ainda. Mas séria, isso ele sabia.
Seu nome era Caleb Hornblower. Havia nascido no ano de 2222, tinha
trinta anos, não era acasalado e fora reformado pela International Space Force,
Além do azul do céu – Nora Roberts
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ISF, Força Espacial Internacional. Atingira a patente de capitão, e nos último;
dezoito meses fora piloto independente. Fazia entregas de rotina de suprimentos
para a Colônia Brigston, em Marte, e havia desviado da rota normal numa
viagem de volta à Terra por causa de uma chuva de meteoros. Fora então que
acontecera o acidente.
Naquele momento tinha de aceitar o fato de que algo o projetara no
tempo, para o passado. Tinha caído, não apenas através da atmosfera da Terra,
mas também através de dois séculos e meio. Via-se como um piloto saudável,
inteligente, preso num tempo em que as pessoas consideravam viagens
interplanetárias coisa de ficção científica e estavam, loucamente, brincando com
fissão nuclear.
O lado bom era que a experiência não o matara e que aterrissara numa
área isolada, nas mãos de uma linda morena, poderia ser pior, afinal.
O problema do momento era descobrir como voltar para o futuro. Vivo.
Ajeitou o travesseiro, coçou o rosto onde a barba crescia e imaginou qual
seria a reação de Libby se descesse para a sala e contasse sua história.
Provavelmente seria jogado porta afora, vestindo apenas a calça do pai
dela. Ou então ela chamaria as autoridades para trancá-lo no equivalente a uma
clínica de descanso e reabilitação de 1989. Tremia em pensar em como seria.
O que o contrariava mais naquela hora era ter estudado pouco história.
Tudo o que sabia sobre o século XX não encheria uma tela de computador. Mas
imaginava que teriam um jeito bastante primitivo de lidar com um homem que
declarava ter caído com seu F27 numa montanha depois de uma viagem de
rotina para Marte.
Até descobrir uma saída, teria de guardar segredo. E, para isso, precisava
tomar mais cuidado com o que dizer, e principalmente fazer.
Era óbvio que dera um passo em falso na noite anterior. Sentiu-se mal ao
lembrar da reação de Libby à sugestão inocente de que passassem a noite juntos.
"As coisas eram diferentes então... ou melhor, agora", pensou. Que pena não ter
prestado atenção nos velhos romances que a mãe gostava de ler.
Em qualquer caso, tinha problemas muito mais sérios do que ter sido
rejeitado por uma bela mulher. Precisava voltar à nave, tentar reconstruir na
cabeça todos os acontecimentos. E então teria de traçar o caminho de volta. Era
a única maneira de voltar para casa.
Lembrou-se de que Libby possuía um computador. Mesmo sendo arcaico,
podia combiná-lo com o mini que trazia no pulso e talvez conseguisse calcular
uma trajetória.
Antes disso, precisava de um banho, fazer a barba e comer mais ovos.
Abriu a porta e quase tropeçou em Libby.
A xícara de café fumegante que ela carregava quase se derramou sobre o
peito nu de Cal. Libby chegou a pensar que uma leve escaldadura não lhe faria
mal, mas segurou bem a xícara e falou:
— Pensei que gostaria de um café.
Cal reparou na voz gélida, nas costas tensas, e, com o seu melhor sorriso,
começou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
28
— Obrigado pelo café. Quero pedir desculpas, saí fora de órbita ontem.
— É assim que descreve o que fez?
— O que quero dizer é... você estava certa e eu errado — se aquilo não
desse certo, desistia de entender as mulheres.
— Tudo bem. Vamos esquecer o caso. — Tudo bem se eu achar que seus
olhos são lindos? — rebateu Cal, encantado ao ver que ela corava.
— Suponho que sim, se não pode deixar de dizer.
Ele estendeu a mão:
— Amigos?
— Amigos.
No momento em que deu a mão, Libby percebeu que tinha cometido um
erro. Ou pulado de um trampolim. Era difícil manter a pose, arrepiando-se toda
ao menor contato. Resolveu-se por uma retirada estratégica:
— Vou preparar alguma coisa para comer.
— Eu poderia tomar um banho?
Era um alívio discutir coisas práticas. Libby prontificou-se, guiando-o
pelo corredor até o banheiro, onde abriu o armário.
— Claro, vou mostrar onde está tudo. Aqui, toalhas. Nesta prateleira, um
aparelho de barbear e creme. Algum problema? —perguntou, estranhando o
jeito como ele olhava para a lâmina.
— Talvez esteja acostumado com barbeador elétrico, mas eu não tenho.
Cal sorriu fracamente, contemplando o que lhe parecia ser um instrumento
de tortura.
— Não tem importância.
Libby pegou uma escova de dentes de reserva, ainda na embalagem, e
entregou a ele, oferecendo:
— Pode pegar no quarto qualquer roupa que achar que sirva, jeans,
suéteres. A comida fica pronta em meia hora, certo?
— Certo.
Saiu, deixando Cal com os olhos fixos nos objetos de toalete que tinha
acabado de ganhar.
Fascinante. Depois de passar pelo pânico, medo e incredulidade, estava
achando tudo fascinante. Estudou a caixa de papelão e a escova de dentes com
um sorriso, como um menino que recebe um presente inesperado.
Os antigos usavam aquelas coisas três vezes ao dia, lembrou-se de ter
lido. Tinham sabores diferentes de pasta que esfregavam nos dentes. Parecia
horrível. Cal espremeu um pouco do creme de barbear no dedo, e tocou-o com a
língua. Era horrível. Como podiam ter agüentado? Claro, tudo acontecera num
tempo anterior à erradicação das doenças dentárias e das gengivas pelo uso
constante de flúor.
Abriu a caixa e correu o dedo pelas cerdas. Interessante. Arreganhou os
dentes fortes e brancos para o espelho. Talvez não devesse se arriscar.
Colocando tudo sobre a pia, virou-se para olhar o box. Coisa de velhos
vídeos, pensou. A banheira oval com um único chuveiro mal desenhado saindo
da parede. Tinha de arquivar todas as impressões, quem sabe poderia escrever
Além do azul do céu – Nora Roberts
29
um livro na volta.
O mais importante era descobrir como o chuveiro funcionava. Por cima da
borda da banheira havia três torneiras. Numa estava marcada a letra Q, na outra
F e a do meio tinha uma flecha. Cal coçou a cabeça. Claro que queriam dizer:
Quente e Fria, mas muito distantes do ajuste individual de temperatura a que
estava acostumado. Nada de entrar e dizer à unidade computadorizada que
queria quarenta e cinco graus a vapor. Era tudo faça-você-mesmo.
Primeiro quase se queimou, congelou e voltou a se queimar antes de
entrar em entendimentos com o chuveiro. Só então pôde sentir o conforto da
água limpando a pele. Achou um vidro onde estava escrito "xampu"; examinou a
embalagem, divertido, e colocou um pouco do conteúdo na mão.
O perfume de Libby.
Logo se viu tomado de desejo, quente como a água que corria sobre o
corpo. Era estranho, pensou, sem tirar os olhos do vidro de xampu. Atração
sempre havia sido fácil, simples, básica, mas aquela era dolorosa. Apertou o
estômago, esperando que passasse, e não passou.
Devia ter algo a ver com o acidente. Quando voltasse, teria de procurar
um centro de repouso para voltar à forma. Mas o prazer do banho estava
perdido. Enxugou-se rapidamente. O perfume de sabonete e xampu, o perfume
de Libby, pairava por toda parte.
O jeans ficara um pouco largo na cintura, mas Cal gostou. Algodão
natural era tão absurdamente caro que só os muitos ricos podiam usar. O suéter
preto, de gola alta, tinha um buraco no punho e o fez sentir-se em casa. Sempre
havia preferido roupas simples, confortáveis. Uma das razões de ter deixado a
ISF era que lá gostavam de uniformes e brilhos. Descalço e à vontade, seguiu o
aroma que vinha da cozinha.
Libby estava linda. A calça baggy acentuava a cintura feminina e fazia um
homem imaginar todas as curvas e ângulos sob o tecido. Gostava do jeito com
que ela havia arregaçado as mangas do pulo ver vermelho grande demais. Nunca
antes havia admirado tanto os cotovelos de uma mulher.
— Olá!
Libby não se assustou daquela vez, virando-se e dizendo alegremente:
— Olá! Pode sentar e comer, depois olho o curativo. Espero que goste de
rabanadas.
Mostrou o prato para ele, e, ao olhá-lo nos olhos, apertou mais a borda de
louça. Reconheceu o suéter, mas não se lembrou do pai vendo o peito musculoso
de Cal.
— Não fez a barba.
— Esqueci — mentiu ele, sem querer admitir que tinha tido medo de se
cortar. — Parou de chover.
Libby colocou o prato na mesa e respondeu ao comentário:
— Eu sei. O sol vai aparecer à tarde.
Inclinando-se para aspirar o aroma das rabanadas, Cal quis saber:
— Foi você mesma que fez?
— Sou uma grande cozinheira no café da manhã.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Não estou acostumado a isso.
— A comer?
Ele deu a primeira mordida, e fechou os olhos com um suspiro de prazer,
dizendo:
— A comer tão bem.
— E como comia antes? — interessou-se ela, vendo-o atacar a comida.
— Comida congelada, em geral — respondeu, sentindo-se seguro por ter
visto anúncios de congelados no jornal.
— Eu também, para dizer a verdade. Só quando venho para cá fico com
vontade de cozinhar, empilhar lenha, plantar ervas. Tudo o que fazíamos quando
eu era pequena.
E, apesar de ter ido em busca de solidão, havia descoberto que gostava da
companhia dele. Parecia inofensivo aquela manhã, como se a cena em frente à
lareira na noite passada não tivesse acontecido.
— O que você faz quando não está caindo com aviões?
— Vôo.
— Então está no exército.
Cal pegou o café e tratou de mudar de assunto.
— Não, não estou mais. Não sei se já a agradeci devidamente por tudo o
que fez. Gostaria de retribuir, Libby. Precisa de alguma coisa? Quer que eu faça
algum serviço?
— Não acho que esteja em condições de fazer trabalhos braçais.
— Se eu ficar na cama o dia todo outra vez vou acabar louco.
Libby aproximou-se para examiná-lo, tentando não se perturbar com a
sensualidade daquela boca.
— A cor está boa. Tem tontura?
— Não.
— Pode ajudar a lavar os pratos.
— Claro — assentiu Cal, olhando bem para a cozinha pela primeira vez.
Como o banheiro, era fascinante e assombrosa. A parede dos fundos era
de pedra e tinha um fogão a lenha embutido. Sobre ele, uma urna de cobre
batido cheia de flores e folhas secas. A ampla janela sobre a pia abria-se para um
panorama de montanhas e pinheiros. O céu era cinzento, sem nenhum trânsito.
Reconheceu o fogão e a geladeira, ambos de um branco lustroso. O chão de
tábuas largas tinha um brilho encerado e transmitia uma sensação de frescor e
maciez aos pés descalços.
— Está procurando alguma coisa? Cal voltou-se para ela, distraído.
— Desculpe, não ouvi direito.
— O jeito como olhava pela janela, parecia que estava querendo ver
alguma coisa.
— Não, só... apreciar a paisagem.
Satisfeita, Libby fez um gesto em direção ao prato.
— Acabou?
— Acabei. Gosto muito desta cozinha.
— Eu também. Claro que ficou muito melhor com o fogão novo. Não iria
Além do azul do céu – Nora Roberts
31
acreditar na peça de museu que usávamos antes.
Sem poder evitar um sorriso. Cal concordou:
— Não, eu não acreditaria.
— Por que será que, quando você faz essa cara, tenho a impressão de que
está rindo de mim?
— Não faço a menor idéia — foi a resposta de Cal, que pegou o prato,
levou-o até a pia e começou a abrir armários.
Libby acompanhou-o com o resto da louça, confidenciando:
— Se é que está procurando a lavadora de pratos, desista. Meus pais não
chegaram a esse ponto de desistir dos valores hippies. Nada de lavadora, nem
forno de microondas nem pratos aquecidos. Quer lavar ou enxugar?
— Enxugar — resolveu ele, enquanto Libby tampava a pia e pegava o
vidro de detergente
Observou, deliciado, enquanto ela enchia a pia com água quente,
espumosa, e começava a esfregar. Até o cheiro era bom, pensou, resistindo ao
impulso de se curvar e aspirar a essência de limão que subia do detergente.
Libby coçou o nariz com o ombro, indagando:
— Escute aqui, Hornblower, nunca viu uma mulher lavar louça?
Decidiu testar a reação:
— Não. Quer dizer, vi, uma vez, no cinema. Rindo, ela lhe estendeu um
prato.
— O progresso nos rouba esses pequenos prazeres. Dentro de cem anos
provavelmente vamos ter robôs que colocam os pratos na barriga e esterilizam
tudo.
— Digamos cento e cinqüenta anos. O que quer que eu faça com isto? —
perguntou Cal, com o prato na mão.
— Enxugue.
— Como?
A resposta veio acompanhada de sobrancelhas erguidas, intrigadas, e um
gesto de cabeça na direção de um pano muito bem dobrado:
— Pode tentar aquele objeto ali.
— Certo. Assim, não é? Eu estava querendo ir ver o que sobrou da minha
na... ha... do meu avião.
— Posso garantir que a trilha de lenhadores foi destruída. O jipe talvez
consiga passar, mas eu preferia esperar pelo menos mais um dia.
— Pode me ensinar o caminho? — pediu Cal, controlando a impaciência.
— Não, mas levo você.
— Já fez mais do que devia.
— Talvez, mas não vou lhe dar a chave do carro, e não poderia ir a pé por
essas estradas.
Enquanto Libby usava a ponta do pano de pratos para enxugar as mãos.
Cal pensava numa desculpa razoável, mas ela foi mais rápida:
— Por que não quer que eu veja seu avião, Hornblower? Mesmo que
fosse roubado, eu não saberia.
— Não roubei.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Libby acreditou no tom convicto, e prosseguiu:
— Bem, então vou ajudá-lo e encontrar os destroços assim que o caminho
ficar seguro. Agora sente-se e me deixe ver esse corte.
A mão foi até o corte, num gesto automático.
— Está bom.
— Não, está doendo. Vejo em seus olhos.
Nos dela havia um tipo de ternura que lhe deu vontade de relaxar e contar
tudo de uma vez, mas controlou-se e disse:
— A dor vai e vem.
— Então vou dar uma olhada, você toma duas aspirinas e dá-se um jeito.
Coragem, Cal.
E acrescentou, tirando-lhe o pano de pratos das mãos e levando-o até uma
cadeira:
— Seja um bom menino.
— Parece minha mãe.
Libby deu-lhe um tapinha no rosto e foi pegar anti-séptico e ataduras na
prateleira. Descobriu o ferimento, franzindo a testa de um jeito que o fez
remexer-se na cadeira. Ordenando que ficasse quieto, Libby examinou o corte
fundo, de bordas irregulares, debruadas de sangue seco.
— Hum, parece melhor. Pelo menos não há sinal de infecção. Vai ficar
com uma cicatriz.
Chocado, ele tocou o ferimento com os dedos, exclamando:
— Cicatriz?
"Ah, você é vaidoso", pensou Libby, divertida, e tranqüilizou-o:
— Não se preocupe, vai dar charme. Teria sido bem melhor se tivesse
levado alguns pontos, mas enfim... Vai arder um pouco quando eu puser o antiséptico.
Ele deixou escapar uma fieira de palavrões quando a ferida foi limpa.
Antes que Libby terminasse, agarrou-lhe o pulso.
— Arder? Um pouco? Engraçadinha.
— Deixe de ser patife, Hornblower. Pense em outra coisa.
Ele contraiu os maxilares e concentrou-se no rosto da mulher a sua frente.
Os olhos mostravam compreensão e firmeza enquanto continuava a limpar,
tratar e fazer o curativo.
Era mesmo linda, pensou Cal, com aquela luz do sol da manhã. Nada de
cosméticos, e aparentemente o rosto não havia sido reestruturado. Era o rosto
com que havia nascido. Forte, fino, e com uma elegância natural que dava
vontade de acariciá-lo de novo. A pele era macia como a de um bebê e mudava
de cor conforme os sentimentos.
Talvez, mas só talvez, fosse uma mulher comum do seu tempo. Mas, para
ele, era única, e tremendamente desejável.
Por isso é que o fazia doer, pensou. Por isso fazia com que a quisesse mais
do que tudo, mais do que era possível para ele naquela hora. Era real, com
certeza, mas a ilusão era ele. Um homem que nunca havia nascido, e que no
entanto nunca se sentira tão vivo.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Você sempre faz isso? — perguntou a ela.
— O quê?
— Salvar e tratar os homens.
Os lábios que o tentavam se curvaram num sorriso:
— Você é o primeiro. Pronto, acho que ficou bom.
— Não vai dar um beijo para sarar mais depressa? Sua mãe costumava
fazer isso, e provavelmente era outra tradição perdida no tempo. Quando ela riu,
o coração de Cal deu um pulo.
— Já que foi corajoso, vá lá — e roçou os lábios um pouco acima da
atadura.
— Ainda dói. Por que não tenta de novo?
— Porque tenho de pegar a aspirina... Caleb.
Ele levantou-se, segurando-a pela mão e dizendo:
— Deixo você nervosa. É muito estimulante.
— Não estou tentando estimular você.
— Nem precisa... Você tem mãos maravilhosas, Libby. Mãos de fada.
Enquanto falava, levou a mão dela até os lábios, roçando-os pela palma.
— Pare. Eu disse que...
Libby estranhou a própria voz, frágil e entrecortada. Ele beijou-lhe a testa,
de leve, e uma onda de fraqueza a fez dobrar os joelhos.
— ...que não vou para a cama com você.
Com um murmúrio de assentimento, ele passou a mão pelas costas,
puxando-a contra si. Os corpos se adaptavam, como se fossem feitos para dançar
juntos. Pela cabeça pouco romântica de Cal passaram imagens de violinos,
praias ao luar e palmeiras ao vento. Tudo inusitado, tão inusitado que ele
acompanhou o clima, alisando-lhe a nuca e dizendo baixinho:
— Eu não vou fazer amor, Libby. Só vou beijar você.
— Não, eu não quero...
Mas a mão em sua nuca era quente e forte, transmitindo pela espinha uma
sensação tão boa que não podia, não devia estar errada. Sentiu que os lábios dele
tocavam os seus.
Foi como ligar uma corrente elétrica. Um toque leve, tentador,
insuportavelmente erótico, contrastando com a aspereza da barba que lhe
arranhava a face quando ele virou a cabeça para traçar o contorno da boca com a
língua.
Libby nunca fora tocada tão intimamente. A língua tocou a sua, um sabor
novo e diferente, e então ele segurou o lábio inferior entre os dentes, parando no
ponto exato que dividia o prazer da dor.
Libby estava sendo seduzida, como nunca havia sonhado ser. Sedução
lenta, mansa, irresistível. Irresistível.
Cal sentiu pela mão pousada em seu peito que. Libby cedia. Nunca tivera
sensação parecida com uma mulher, aquele abandono, o gosto fresco do hálito,
como o ar ainda úmido que entrava pela janela.
As mãos de Libby subiram pelo peito de Cal até o pescoço, enroscaram-se
nos cabelos e puxaram a cabeça para mais perto, aprofundando o beijo. Ele
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estremeceu.
Aquele encontro, aquele beijo, era tudo impossível e irreal, pensou ele.
Mas estava acontecendo. Tinha em seus braços uma mulher que fora feita para
ele, a única, sabia. Apertou-a mais e mais, até que um gemido o fez parar.
Libby olhava para ele, assustada, quase amedrontada.
— Machuquei você?
— Não.
— Eu...
Ela tropeçou, andando de costas, até encontrar uma cadeira, onde se
apoiou, ofegante. Não conhecia aquele homem, e no entanto estivera a ponto de
se entregar a ele. Tinha a mente treinada para fazer perguntas, mas naquela hora
foi o coração, frágil e irracional, que tomou o controle.
— Se vai ficar aqui, nesta casa, não volte a tocar em mim.
— Não estava esperando por isso também. E nem sei se gostei.
— Então vai ser fácil evitar esse tipo de situação no futuro.
Cal enfiou as mãos nos bolsos e balançou-se nos calcanhares, sem se
preocupar em saber por que tinha ficado tão zangado de repente.
— Ouça, garota, a culpa foi tanto sua quanto minha.
— Você me agarrou.
— Não, eu só beijei. Quem me agarrou foi você. E não precisa ficar
vermelha. Não peguei você à força, Libby, sabe disso. Mas, se quer fingir que
tem gelo nas veias, fique à vontade.
A cor sumiu do rosto dela. Em contraste com sua palidez, os olhos
ficaram grandes e escuros. Vendo a mágoa que traduziam. Cal ficou furioso
consigo mesmo, e tentou consertar:
— Sinto muito.
— Não quero que me peça desculpas, mas sim sua cooperação — disse
Libby, muito tensa.
— Pois terá as duas.
— Tenho de trabalhar. Se quiser, pode levar a televisão para o quarto, ou
pegar um livro na estante perto da lareira. Eu agradeceria se ficasse fora do meu
caminho o resto do dia.
Cal enfiou as mãos nos bolsos. Se ela queria ver quem era mais teimoso,
veria:
— Combinado.
Libby esperou, de braços cruzados, que ele saísse da cozinha. Queria
quebrar alguma coisa, gritar, desabafar. Ele não tinha o direito de falar aquelas
coisas depois do que a havia feito sentir.
Gelo nas veias?! Seu problema agora era calor demais, querer demais. E
estava apavorada. Sentindo-se miserável, puxou a cadeira e despencou. Era uma
filha devotada, uma irmã carinhosa, uma amiga fiel. Mas nunca fora amante de
ninguém. Nunca tinha experimentado aquela necessidade ansiosa de intimidade.
Às vezes chegara a pensar que lhe faltava alguma coisa, que era uma mulher
desprovida de emoções.
Com um beijo, Cal havia despertado desejos há muito sublimados. Antes
Além do azul do céu – Nora Roberts
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daquele beijo, tinha quase acreditado que era feliz. E era, pensou,.dando um
soco na mesa. Não precisava de nenhum piloto fogoso, que não conseguira
manter o avião no ar, para aparecer e virar seu mundo de cabeça para baixo. Não
precisava de ninguém para mostrar que a vida oferecia mais, muito mais do que
estava acostumada a esperar dela.
Ridículo! Desanimada, mais do que aborrecida, levantou-se para tomar
uma xícara de café. Ele apenas tinha colocado em jogo uma verdade que Libby
tendia a esquecer: era jovem, normal, saudável. Uma mulher que tinha acabado
de passar meses numa ilha remota no sul do Pacífico. Precisava mesmo era
terminar a dissertação e voltar a Portland. Ver gente, ir ao cinema, a festas.
Precisava mesmo, repetiu, se livrar de Caleb Hornblower, mandá-lo de volta
para o céu, de onde tinha caído.
Com a xícara de café na mão, começou a subir a escada. Ao passar pelo
quarto dele, parou um instante e ouviu o barulho frenético de um programa de
auditório, na televisão, os gritos do apresentador e o delírio da platéia. "Um
homem que se diverte facilmente", pensou, entrando no seu quarto e fechando a
porta.
CAPÍTULO IV
Cal completou sua "educação" sobre o século XX durante a tarde, diante
da televisão. A cada dez ou quinze minutos mudava de canal, pulando de shows
de Prêmios para novelas, de entrevistas para comerciais. Gostou mais dos
comerciais, que eram curtos, brilhantes e intensos.
Seus preferidos eram os musicais, com jingles fáceis de decorar, mas
outros motivaram uma reflexão sobre a gente daquele tempo e lugar.
Ficou particularmente impressionado com o bando de mulheres que
lutavam contra manchas de gordura. Não conseguia imaginar a mãe, ou qualquer
outra mulher que conhecesse, se preocupando com qual detergente tornava o
branco mais branco. De qualquer modo, os comerciais eram muito divertidos.
Alguns mostravam homens e mulheres muito bonitos resolvendo todos os
problemas quando bebiam refrigerantes ou café. Parecia que todo mundo
trabalhava, muitos fora de casa, em trabalhos cansativos, de modo que
pudessem, ao fim do dia, ir a um bar com os amigos, beber cerveja.
Numa novela lacrimosa viu uma mulher conversando muito tensa com um
homem sobre a possibilidade de estar grávida. Era absurdo, pois ou uma mulher
estava grávida ou não estava. Não havia o que discutir. Mudando de canal, viu
um senhor barrigudo, de paletó xadrez, ganhar uma semana de férias no Havaí.
Pela reação do vencedor, Cal deduziu que aquilo devia ser muito importante no
século XX.
Assistindo ao jornal, perguntou-se como a humanidade teria sido capaz de
Além do azul do céu – Nora Roberts
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sobreviver até o século XXI e mais além. O assassinato era, obviamente, um
esporte popular, assim como discussões sobre limitação de armas e tratados
entre as nações. Pegando uma caixa de biscoitos que trouxera da cozinha e
mordendo um, achou que os políticos, em geral, não haviam mudado muito.
Ainda falavam cheios de rodeios, evitavam a verdade nua e crua e sorriam o
tempo todo. Mas imaginar que os líderes mundiais tinham mesmo negociado a
quantidade de armas nucleares que cada um poderia construir e manter era
cômico. Afinal, para que precisavam de tanta defesa?
Sacudiu a cabeça e voltou à novela, pensando que, afinal de contas,
haviam acabado por cair em si. E se esquecido das armas nucleares.
Gostava mesmo era das novelas. Apesar da imagem ondular e do som
defeituoso, gostou de ver as pessoas agindo, torturando-se por causa de
problemas, divórcios, casamentos e casos de amor. Aparentemente, o
relacionamento amoroso era um dos dez problemas mais importantes em 1989.
Na tela, uma loura curvilínea com lágrimas nos olhos e um homem rude,
sem camisa, caíram nos braços um do outro para um beijo longo e apaixonado.
A música subiu para acompanhar a cena. Era óbvio que o hábito de beijar era
comum para a época, refletiu Cal. Então por que Libby havia se ressentido
tanto?
Inquieto, levantou-se e foi até a janela. Ele mesmo não havia reagido
normalmente. O beijo o deixara nervoso, pouco à vontade e vulnerável, coisa
nunca acontecida.
Queria saber tudo sobre Liberty Stone, queria Liberty Stone, o que era
impossível. Tinha de pensar única e exclusivamente num jeito de voltar para
casa. O tempo com Libby seria apenas um interlúdio. Mesmo não pertencendo
ao tempo dela, sabia que não era do tipo que se ama e se deixa. Libby era uma
mulher para toda a vida.
Cal não tinha intenção de se estabelecer tão cedo. Seus pais tinham
acasalado cedo e casado relativamente jovens. Mas ele não tinha desejo de se
acasalar, juntar ou casar. E, quando o fizesse, seria lá, no futuro, que era seu
tempo. Libby já estaria reduzida a uma doce lembrança.
Encostou as palmas das mãos no vidro frio da janela como se fosse uma
prisão da qual precisava escapar. Haveria decerto homens que adorariam passar
por aquela experiência, mas Caleb preferia explorar as fronteiras de seu próprio
mundo e de seu próprio tempo.
Era verdade que tinha aprendido muito pela leitura de jornais e televisão.
Em 1989 o mundo ainda estava longe de alcançar a paz, as pessoas se
preocupavam com o que comer no jantar, e armas se vendiam nas lojas, como
brinquedos. Uma dúzia de ovos frescos podia ser comprada por um dólar, a
moeda americana da época, e todos faziam regime para emagrecer.
Tudo muito interessante, mas nenhuma daquelas informações o ajudaria.
Tinha de concentrar-se em se lembrar do que acontecera a bordo da nave.
Afastando as imagens da televisão e a sombra de Libby, que teimava em
tomar conta dos pensamentos, fixou-se nos momentos anteriores à queda. Foi
invadido por uma tontura que o obrigou a se apoiar na parede. Quando a tontura
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passou, deixando um latejar surdo na base do pescoço, lembrou-se das luzes. As
luzes que piscavam na cabine. O sistema de navegação avariado, o alarme.
O vácuo. Podia quase vê-lo, e mesmo ali, protegido, começou a suar frio.
Um buraco negro, largo, escuro e sedento. Não constava das cartas de
navegação. Ele nunca teria chegado tão perto se soubesse, se tivesse visto nos
mapas. Aparecera de repente, tragando a nave e Caleb para dentro.
Não. Não havia sido tragado, pois continuava vivo, e tinha caído na Terra.
Era possível que tivesse, de alguma forma, tocado a borda do buraco, sendo
lançado, em seguida, como um elástico, através do tempo e do espaço. Os
cientistas de sua era questionariam a idéia. Viagens através do tempo não
passavam de teorias, e teorias um tanto malucas.
Mas Cal havia feito a viagem.
Abalado, sentou-se na beirada da cama. Tinha sobrevindo ao que ninguém
mais na história sobrevivera para contar. Ergueu as mãos, com as palmas para
cima, e olhou-as como se fosse a primeira vez. Estava inteiro, pouco ferido e
perdido. Fechou os punhos, combatendo uma nova onda de pânico. Não podia
aceitar a idéia de que estava perdido. Se fora lançado para ali, era lógico que
pudesse ser lançado para fora. Para casa.
Tinha uma boa cabeça e muita habilidade. Olhou para o computador de
pulso. Não seria suficiente, mas se pudesse voltar à nave... Se é que havia
sobrado alguma coisa da nave.
Afastando o receio, começou a andar de um lado para outro. Tinha de
conectar seu minicomputador com a máquina de Libby. Tinha de tentar.
Ouviu passos no andar de baixo. Ela devia estar na cozinha, mas
dificilmente preparando outra refeição para ele. A lembrança do incidente no
café da manhã voltou, incômoda. Não podia ficar pensando naquilo, e, se tivesse
escolha, não faria Libby sofrer.
Ia se desculpar de novo, resolveu. Na verdade, se a conexão de
computadores desse certo, sairia da vida dela o mais rápido e suavemente
possível.
Pisando de leve, foi para o quarto dela. Esperava de todo coração que
continuasse ocupada até ele fazer alguns cálculos preliminares. Tinha de se
satisfazer com eles até encontrar a nave e usar o computador grande instalado lá.
Mesmo impaciente, hesitou por outro momento, atento a ruídos de fora. Libby
continuava na cozinha e, a julgar pela batedeira de panelas, ainda malhumorada.
O computador estava sobre a mesa, com sua tela engraçada e teclado
estranho, cercado de livros e papéis. Cal sentou-se na cadeira de Libby e sorriu
para a máquina.
— Ligue.
A tela continuou vazia.
— Computador, ligue — insistiu Cal, impaciente, e só então se lembrou
do teclado. Bateu uma ordem e esperou.
Nada.
Recostando-se, tamborilou os dedos sobre a mesa e pensou. Libby, por
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motivos ignorados, havia fechado a máquina. Era fácil de remediar. Empurrou
alguns papéis e pegou um abridor de cartas. Virou o teclado de cabeça para
baixo, preparando-se para desmontá-lo, e foi então que viu o botão.
“Idiota", disse a si mesmo, "esse pessoal liga tudo com botões." Juntando
a paciência que lhe restava, ligou o teclado e procurou mais botões no terminal.
Quando ouviu o zumbido, teve de abafar um grito de triunfo.
— Agora estamos nos entendendo, computador — murmurou, começando
a teclar:
Computador, avalie e conclua o fator curvatura do tempo...
Parou de novo, disse um palavrão, e tirou a capa de plástico do quadro de
memória. A impaciência o fazia desajeitado, ou, pior ainda, estúpido. Não se tira
nada de uma máquina que não tenha sido carregada. Era um trabalho delicado,
lento, mas forçou-se a correr. Terminou por conseguir uma conexão muito
precária com o computador de Libby e o seu mini.
Respirou fundo, cruzou os dedos e começou:
— Olá, Computador.
— Olá, Cal\ — As palavras metálicas biparam do mini de pulso e as letras
apareceram na tela de Libby.
— Meu bem, que bom ouvir sua voz.
— Afirmativo.
— Computador, forneça dados conhecidos da teoria de viagens no tempo
por intermédio da força da gravidade e aceleração.
— Teoria não testada, proposta pela primeira vez pelo dr. Linward
Bowers, 2110. A hipótese de Bowers..
Cal passou a mão pelos cabelos, irrequieto, e interrompeu:
— Não, não tenho tempo para isso, agora. Avalie e conclua. Viagem no
tempo e probabilidade de sobrevivência no encontro de buraco negro.
— Trabalhando... Dados insuficientes.
— Droga, pois aconteceu. Analise aceleração necessária e trajetória.
Ponto. — Ouviu Libby que subia, e só teve tempo de desligar o terminal antes
que ela entrasse.
— O que está fazendo?
Tentando dar-se um ar inocente. Cal sorriu e se levantou da cadeira,
dizendo:
— Procurando por você.
— Se estragou minha máquina...
— Não resisti e dei uma olhada nos papéis. Fascinante. Libby olhou para
a mesa de cara feia. Tudo parecia em ordem, por isso respondeu:
— Também acho. Poderia jurar que ouvi sua voz.
— Não há ninguém além de nós aqui, com certeza falei sozinho —
explicou, tentando sorrir. Se conseguisse distraí-la por alguns minutos, poderia
desconectar o mini e aguardar outra oportunidade. Deu um passo na direção
dela, e viu-se frente a frente com uma bandeja.
— Fiz um sanduíche para você.
Pegou a bandeja e a colocou sobre a cama. A amabilidade o fazia sentir-se
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39
culpado.
— Você é uma mulher muito boa.
— Não iria deixá-lo morrer de fome só porque me aborreceu.
— Não quero aborrecer você.
Ela fez um movimento na direção do computador, e Cal postou-se a sua
frente, ganhando tempo:
— Não consigo evitar, entende? Sinto muito que não tenha gostado do
que aconteceu...
— Já disse que iria esquecer.
— Mas não quero quê esqueça. Eu não quero esquecer. Você me tocou,
Libby, de um jeito como nunca ninguém...
— Eu tenho de trabalhar.
— Será que todas as mulheres acham difícil ser sinceras?
Libby perdeu a calma:
— Não estou acostumada com isto. Não sei lidar com a situação. Não me
sinto bem lidando com homens, eles não me interessam.
Quando ele riu, virou o rosto, furiosa e sem graça.
— A coisa mais ridícula que já ouvi. Você se interessa, sim, e se interessa
por mim.
Libby separou bem as sílabas do que dizia:
— Interesso-me pelo trabalho, por minha família.
Observando-a, Cal concluiu que acreditava no que estava dizendo. Ou
então estava decidida a acreditar. Nos dois dias em que estava ali, ele havia
aprendido a dor de duvidar de si mesmo. Se não pudesse agradecer a Libby de
outra forma, talvez pudesse mostrar-lhe a mulher que vivia dentro dela.
— Gostaria de andar um pouco?
— O quê? — Libby piscou.
— Andar.
— Por quê?
Ele tentou ficar sério. Ali estava uma mulher que exigia explicações e
motivos para tudo.
— O dia está bonito e eu gostaria de ver um pouco onde estou. Você
poderia me mostrar.
Libby separou os dedos que havia entrelaçado durante a conversa. Tinha
prometido a si mesma que tiraria algumas folgas, não era? Ele tinha razão, o dia
estava bonito, e o trabalho podia esperar.
— Vai ter de pôr os sapatos — respondeu simplesmente.
O ar estava frio, úmido e perfumado de pinho. E era pinho natural, não um
disco de perfume ou um simulador. A brisa leve soprava entre as árvores como
se fosse o mar. O céu límpido, azul-claro, só se turvava ao norte, com as últimas
nuvens carregadas. Passarinhos cantavam.
A não ser pela cabana atrás deles, e um barracão, não havia estruturas
feitas pelo homem: apenas montanhas, céu e floresta.
— Este lugar é incrível.
Libby sorriu, sentindo que aquele era mais um laço entre eles, e
Além do azul do céu – Nora Roberts
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concordou:
— Eu sei. Toda vez que venho não tenho mais vontade de ir embora.
Andando lado a lado, entraram na floresta iluminada entrecortadamente
pelo sol.
— E por que vai, então?
— Em primeiro lugar, por causa do trabalho. A universidade não me
pagaria para passear no bosque.
— E paga para quê?
— Para pesquisar.
— Como você vive quando não está pesquisando?
Libby inclinou a cabeça, para pensar melhor, e disse:
— Como? Calmamente, acho. Tenho um apartamento em Portland.
Estudo, dou aulas, leio.
O caminho estava começando a ficar íngreme.
— E para se divertir?
— Música, cinema — disse ela, dando de ombros.
— Televisão?
Libby teve de rir.
— Sim, às vezes até demais. E você? Lembra-se do que gosta de fazer?
— Voar. Não existe nada melhor, pelo menos para mim. Gostaria de levála comigo e mostrar — confessou Cal, com um sorriso encantador. Libby mal
notou que ele lhe segurava a mão.
— Será que você é confiável? — brincou ela, olhando para a atadura na
cabeça de Cal.
— Sou um bom piloto.
— Possivelmente — caçoou ela, abaixando-se para colher uma flor.
Num movimento rápido e natural, ele fez a flor passar da mão para os
cabelos de Libby, enquanto protestava:
— Absolutamente. Os instrumentos de vôo entraram em pane, senão eu
não estaria aqui.
— Para onde ia?
Teve de retardar o passo, pois Cal também havia decidido colher flores.
— Los Angeles.
— Uma viagem longa.
— Sim. Muito mais longa do que pensei — disse ele, achando que, sem
querer, Libby tinha feito uma piada.
— Acha que devem estar procurando você?
Cal ergueu a cabeça para o céu, e respondeu:
— Não por algum tempo. Se encontrarmos meu... avião amanhã, posso
consertá-lo e seguir viagem.
— Daqui a um ou dois dias poderemos ir com o jipe até a cidade. Você
terá condições de ver um médico, telefonar.
— Telefonar?! — exclamou Cal, com um ar tão perplexo que Libby
voltou a se preocupar com o ferimento na cabeça.
— Sim, para sua família, amigos, patrão.
Além do azul do céu – Nora Roberts
41
Cal voltou a tornar-lhe a mão, aspirando ao mesmo tempo o perfume das
flores que carregava, e falou distraído:
— Sim. Pode me dar as coordenadas e a distância daqui para o lugar onde
me encontrou?
Libby sentou-se na margem de um riacho estreito e rápido, para rir
melhor. Depois começou a falar e mostrar:
— Coordenadas e distância? E se eu disser que foi daquele lado? Quinze
quilômetros em linha reta, o dobro se for pela estrada.
Cal sentou-se ao lado dela. Tinha um perfume tão silvestre quanto as
flores, e mais excitante.
— Pensei que fosse cientista.
— O que não significa que posso lhe fornecer longitude e latitude, ou
coisa que o valha. Pergunte sobre os homens de lama da Nova Guiné, e vai ver
como eu brilho.
Cal apertou os olhos para observar a franja de pinheiros. Quando as
árvores rareavam, podia ver uma montanha escarpada, azul à luz do sol.
— Quinze quilômetros. E não há nada entre aqui e lá? Cidade, povoado?
— Não. Esta área ainda é remota. Só aparecem alguns campistas de vem
em quando.
Então era improvável que tivessem visto a nave. Uma preocupação a
menos. O problema principal era como localizá-la sem Libby. A maneira mais
fácil, pensou, seria sair de madrugada, no veículo dela.
Mas teria de esperar até o dia seguinte. Estava começando a entender que
o tempo era precioso, e caprichoso demais, para ser desperdiçado.
— Gosto daqui — declarou, e era verdade. Gostava de sentar na grama
fria, escutando o riacho. Como seria voltar ali dois séculos depois? O que
encontraria?
A montanha, decerto, e possivelmente parte da floresta que os rodeava. O
mesmo riacho poderia estar correndo sobre as mesmas pedras. Mas Libby não
estaria lá. A dor voltou, surda e lancinante.
— Quando eu voltar para casa, vou pensar em você aqui.
Pensaria? Libby olhou para a água, o sol que brincava de transformá-la
em jóia, e desejou não se importar.
— Talvez você volte um dia.
— Algum dia — repetiu ele, brincando com a mão que conservava entre
as suas. Ela seria um fantasma, então, uma mulher que vivera num átomo de
tempo, que o fizera desejar o impossível. Olhou bem para ela:
— Vai sentir saudade?
— Não sei — disfarçou Libby, mas não tirou a mão, porque sabia que
sentiria mais saudade do que ele pensava.
Olhando-a, Cal esqueceu a nave, as perguntas, o futuro. Começou a falar
ao mesmo tempo que, com as flores, fazia uma guirlanda para ela:
— Acho que vai. Costumam dar às estrelas, luas e galáxias nomes de
deusas, porque elas eram fortes, belas e misteriosas. Um mortal nunca podia
conquistá-las completamente.
Além do azul do céu – Nora Roberts
42
— A maioria das culturas tem crenças históricas em mitologia.
Astrônomos antigos... — começou Libby, os olhos baixos, mas Cal, após
colocar-lhe a guirlanda na cabeça, segurou-a pelo queixo, forçando-a a olhá-lo.
— Não estava falando de mitos, mesmo achando que você parece um,
coroada de flores. "Nenhuma filha da Beleza/Possui tanta mágica assim/E o
canto da Natureza/É sua doce voz para mim."
Libby sabia que aquele era um homem perigoso, pois podia sorrir como
um demônio e dizer poesia com voz de veludo. Os olhos dele eram como o céu
do fim da tarde, de um azul profundo, sonhador. Nunca pensara ser do tipo de
mulher que derrete só de olhar para os olhos de um homem. Não queria ser.
— Eu devia voltar. Tenho muito trabalho.
— Você trabalha demais... Ei, por que ficou zangada? Toquei num ponto
sensível?
Inquieta, mais irritada consigo mesma do que com ele, Libby deu de
ombros, reclamando:
— Sempre tem alguém me dizendo isso. Às vezes até eu mesma digo.
— Não é crime, é?
Libby riu, porque ele fez a pergunta a sério, e respondeu:
— Não, ainda não, pelo menos.
— Não é crime tirar um dia de folga?
— Não, mas...
— Basta responder não.
— De quando em quando, Hornblower, eu me pergunto se você existe.
Cal deitou-se na relva, para olhar o céu, dizendo:
— Existo, sim. O que você está vendo? Lá no alto?
Libby acompanhou-lhe o olhar.
— O céu. Azul, graças a Deus, com algumas nuvens que já estão se
desmanchando.
— Nunca se pergunta o que há além?
— Além do quê?
De olhos semicerrados, ele imaginou... o movimento infinito das estrelas,
o negro puro do espaço, a simetria perfeita das órbitas das luas e planetas. Falou:
—- Além do azul. Nunca pensa nos mundos lá em cima, inalcançáveis?
Libby viu só a abóbada azul, ao fundo, quebrada pela silhueta das
montanhas.
— Não. Acho que me preocupo mais com mundos passados. O trabalho
me faz ficar com os pés e os olhos no chão.
— Se vai existir um mundo amanhã, é preciso olhar para as estrelas —
disse Cal, e se arrependeu em seguida. Parecia inútil querer algo que poderia ser
perdido. Que estranho era que ele pensasse tanto no futuro, e Libby tanto no
passado, quando tinham o aqui e agora.
— Que tipo de filmes e música? — perguntou bruscamente. Libby
sacudiu a cabeça. Ele pensava desordenadamente. Cal explicitou:
— Agora há pouco, você disse que gostava de filmes e de música, para se
divertir. Quais?
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Todos os tipos. Eu me distraio com facilidade.
— Diga seu filme favorito.
— É difícil.
— Eu gostaria de saber, por favor, diga um nome.
Ela escolheu ao acaso:
— Casablanca.
— O nome é bonito. Do que se trata?
— Ora, ora, Hornblower. Todo mundo conhece esse filme.
— Eu perdi. Talvez estivesse viajando quando foi lançado.
Ela riu de novo, sacudindo a cabeça, os olhos brilhantes, e brincou:
— Oh, claro! Nós dois devíamos estar viajando nos anos quarenta.
Cal deixou passar aquele ar irônico, insistindo:
— Como era a história?
Para agradá-lo, e porque era fácil ficar ali sentada à beira da água e
divagar, Libby contou. Ele ouviu, mais atento à voz do que ao enredo de amor,
heroísmo e sacrifício. Gostou da expressão dos olhos dela falando de amantes
que se reencontravam e eram separados pelo destino.
— Nada de final feliz — murmurou ele, quando acabou.
— Não, mas eu gosto de pensar que Rick se encontrou com ela, anos
depois, no fim da guerra.
— Por quê?
Libby tinha deitado também, a cabeça apoiada nos braços, e falou:
— Porque tinham de ficar juntos. E quando duas pessoas foram feitas uma
para a outra acabam se encontrando, no final.
Voltou a cabeça, sorrindo, mas o sorriso apagou-se lentamente ao ver que
ele a olhava. Como se estivessem sós, pensou. Não apenas sós nas montanhas,
mas total e completamente sós, como Adão e Eva. Começou a levantar-se,
assustada, dizendo:
— Não.
Com um toque muito leve no ombro, ele a impediu:
— Gostaria que não tivesse medo de mim.
— Não tenho.
— Tem medo do quê, então?
— De nada.
— Mas está tensa.
Com os dedos longos e flexíveis, começou a massagear os músculos
rígidos dos ombros dela. Inclinou-se até os lábios tocarem, como a brisa, a testa
quente.
— Diga do que tem medo.
— Disto. Não sei como lutar contra o que estou sentindo — abriu-se
Libby, erguendo os braços para empurrá-lo.
— E por que tem de lutar? — quis saber Cal, correndo a mão pelo lado do
corpo de Libby, sentindo que a desejava tanto quanto ela a ele.
— É cedo demais — disse Libby, mas desistiu de empurrá-lo. O desejo
era mais forte.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Cedo? Pois eu acho que faz séculos que você me espera.
— Caleb, por favor.
Havia tal desespero na voz dela que Cal rolou para o lado e levantou-se,
virando-se de costas para olhar a água.
— Você sempre enlouquece os homens?
Libby apertou os joelhos contra o peito.
— Não, claro que não.
— Então é sorte minha — ironizou ele, olhando para o céu mais uma vez.
Queria voltar para lá, cortar o espaço. Livre. Sozinho. Ouviu a grama farfalhar
quando ela se levantou também, e perguntou-se se algum dia voltaria a ser
verdadeiramente livre.
— Quero você, Libby.
Ela não disse nada, nem podia. Sentia-se profundamente emocionada.
Enervado pelo silêncio. Cal fez meia-volta. Não era mais o paciente
amável, um pouco avoado, mas um homem saudável, furioso e perigoso.
— Droga, Libby, será que não posso dizer nada, sentir nada? As regras
são assim aqui? Bem, pois que se danem! Eu quero você, e se ficar por perto
mais tempo eu vou ter você.
Libby tinha achado que estava fraca demais, excitada demais para se
zangar, mas a arrogância do que ele dizia fez o milagre. Endireitou o corpo,
como uma flecha, e disparou:
— O quê? Quem está pensando que sou? Um carro novo, numa
revendedora? Pode querer o que bem entender, Cal, mas quando essas vontades
me dizem respeito trate de respeitar a minha opinião.
Ela estava magnífica, viva, os olhos cheios de fúria e os cabelos cheios de
flores. Lembraria sempre dela assim. Sabia disso, e que a lembrança seria doce e
amarga.
— Ouvirei sua opinião, sim. Mas alguma coisa vai acontecer antes de
minha partida.
Ficaram um instante parados, um na frente do outro, como gladiadores
prontos a entrar em luta.
Então, de repente, como que obedecendo a um sinal, abriram os braços.
Nenhum dos dois saberia quem dera o primeiro passo, só que de repente
estavam abraçados. As mãos de Libby se agarraram aos ombros dele, as flores
dos cabelos foram amassadas por dedos frenéticos. As bocas se encontraram
num beijo louco, abrasador.
Sem parar o beijo, escorregaram para o chão, e, ajoelhados, cada um
tomou o rosto do outro entre as mãos, olhando-se de perto, sérios, como se
quisessem decorar as feições distorcidas e embelezadas pelo desejo.
Foi então, olhos nos olhos, que caíram em si. Nos de Libby brilhavam
confusão e desejo. Nos de Cal, além do azul, além do desejo, queimava uma
chama desesperada, uma estranha mensagem que ela não podia entender.
As mãos caíram lentamente ao longo dos corpos. O que estavam sentindo
não cabia em palavras. Libby sacudiu a cabeça e levantou-se, calmamente, quase
como um autômato. Fez meia-volta e afastou-se sem olhar para trás.
Além do azul do céu – Nora Roberts
45
Bem mais tarde, quando o sol já se escondia nas montanhas e a floresta se
enchia de sombras, Cal abriu a mão e deixou cari uma flor esmagada que rolou
pra a água e seguiu seu caminho, sem que ele fizesse um só movimento para
detê-la.
CAPÍTULO V
Libby não conseguia se concentrar. Estava parada, olhando a tela do
computador, tentando se interessar pelas palavras já escritas. Os ilhéus de
Kolbari, com sua dança tradicional da lua, haviam perdido todo o encanto.
Era a última esperança de Libby para parar de pensar em Cal. O trabalho
sempre funcionara antes, para fugir de qualquer problema e fazê-la feliz. Já fora
capaz de terminar um seminário de final de semestre, na faculdade, enquanto
suas colegas de quarto davam uma festa barulhenta. Depois, como profissional,
escrevera em barracas à luz de lampiões, revisara anotações montada em
burricos e preparara conferências em plena selva. Sempre que começava um
projeto, nada podia impedi-la de continuar.
E, no entanto, era a terceira vez que lia o mesmo parágrafo sem prestar a
menor atenção.
Lamentou não ter se interessado mais por. química, enquanto tirava os
óculos para esfregar os olhos. Talvez assim pudesse entender melhor a reação
que Cal lhe provocava. Sempre havia defendido o ponto de vista de que havia
uma explicação científica para cada mistério do coração.
Até então.
Com um longo suspiro, empurrou a cadeira para longe da mesa e encolheu
as pernas. Sem tirar os olhos da tela, apoiou os cotovelos nos joelhos e o queixo
nas mãos. "Não estou apaixonada", pensou. Era impossível se apaixonar em tão
pouco tempo. O que existia entre ela e Cal era atração, não mais que isso. Forte,
quase irresistível, mas, ainda assim, atração. O amor dependia de outros fatores.
Origens comuns, interesses compartilhados, eram essas as bases para o
amor. Como podia amar Cal se a única coisa que sabia era que ele gostava de
voar? E comer acrescentou, com um sorriso relutante.
Compreensão dos sentimentos, objetivos, temperamento da outra pessoa,
era vital para que houvesse amor. E como podia amar Caleb Hornblower se não
entendia nada dele? Os sentimentos eram um mistério, os objetivos nunca
tinham sido discutidos, e o temperamento parecia mudar de hora para hora.
Um homem perturbado. Libby franziu a testa ao lembrar da expressão que
vivia surpreendendo nos olhos dele. Às vezes lembrava a de alguém que se
enganara de caminho, chegando a uma terra estranha.
Perturbado, sim, mas não apenas perturbado. Perturbador, também.
Personalidade forte, enorme encanto pessoal, grande autoconfiança. Na vida de
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Libby não havia lugar para um homem como Cal. Não combinava com ordem,
silêncio, estudo, tranqüilidade.
Ouviu-o entrar pela porta da cozinha e sentiu um frio na barriga. Estava
começando tudo de novo.
Decepcionada consigo mesma, puxou a cadeira de volta para perto da
mesa. Ia trabalhar. Ia trabalhar até a meia-noite, sem descanso. Ia esquecer
aquele homem, prometeu, mordendo a unha do polegar.
— Mas quem, afinal, é Caleb Hornblower?
A última coisa que esperava era uma resposta à pergunta resmungada. A
voz metálica quase a fez cair. Agarrou a borda da mesa, olhando, boquiaberta,
para a tela do computador.
— Hornblower, Caleb, Capitão de ISF, reformado.
Libby levou a mão à garganta, abanou a cabeça de um lado para outro e
cochichou:
— Oh, meu Deus. Espere um pouco.
— Esperando.
Não era possível, disse a si mesma, pressionando a mão incerta na boca.
Alucinação, era isso. Excesso de trabalho, estresse emocional e a falta de uma
boa noite de sono estavam lhe dando alucinações. Fechou os olhos e respirou
fundo, três vezes, mas, quando olhou para a tela de novo, lá estavam as palavras.
— Que raio está acontecendo aqui? — ela disse.
— Informação pedida e armazenada. Há necessidade de mais dados. —
de novo Libby ouviu o som metálico do minicomputador.
Libby empurrou alguns papéis sobre a escrivaninha que escondiam o
relógio de Cal. Podia jurar que a vozinha vinha dele. Seria possível? Localizou
com a ponta do dedo um fio da espessura de uma linha de costurar, transparente,
que ligava o relógio ao computador.
— Que tipo de jogo ele montou aqui?
— Quinhentos e vinte jogos estão armazenados neste terminal. Qual quer
jogar?
— Libby? — chamou Cal, parado à porta, pensando depressa. Era inútil
culpar-se por ter sido descuidado. Pensou em vez disso que,
subconscientemente, tinha desejado se colocar numa posição onde seria
obrigado a contar a verdade. Mas, quando ela se voltou, teve dúvidas se teria
sido uma boa idéia. Libby não estava apenas amedrontada, estava furiosa.
— Muito bem, Hornblower, quero que me explique direitinho o que está
acontecendo.
— Onde? — disfarçou ele, com um sorriso amarelo.
— Aqui, ora! — e Libby apontou a máquina.
— Você é que deve saber, é seu trabalho.
— Quero uma explicação, e já.
Caí aproximou-se. Ao ver o que estava escrito na tela, sorriu. Então ela
queria saber quem ele era. Não deixava de ser um consolo saber que o interesse
era mútuo.
— Não, você não quer.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Falou baixo, e teria segurado a mão dela, se a sua não tivesse sido
afastada por um tapa.
— Realmente, não quero. Eu exijo uma explicação. Você... você entra
aqui e liga seu relógio no meu computador, e...
— Então você já sabe. Por que perguntou?
— Porque quero saber como conseguiu conectar um relógio com o meu
CP.
— O seu o quê?
— CP, Computador Pessoal. Não finja que não entende a linguagem,
conhece a máquina melhor do que eu.
Cal segurou-a pelos ombros, e disse:
— Não vai acreditar nunca.
— É melhor me fazer acreditar. Esse relógio é uma espécie de
computador em miniatura?
— Sim, é — respondeu Cal, estendendo a mão para pegá-lo, mas Libby
impediu-o, predendo-lhe o pulso.
— Deixe aí. Nunca ouvi falar de um computador em miniatura que
responde a comandos verbais, se conecta com um CP e declara que armazena
mais de quinhentos jogos.
— Não, eu sei. Você nunca ouviu falar mesmo — concordou ele, olhando
os olhos faiscantes.
— Por que não me diz onde posso comprar, Hornblower? Seria um bom
presente de Natal para meu pai.
Ele sorriu, bem-humorado, para responder: :
— Na verdade, acho que esse modelo vai demorar um pouco para entrar
no mercado. Gostaria de ver um outro artigo?
— Gostaria de ver a verdade, sem piadas.
Cal queria ganhar tempo. Virando o pulso que ela ainda segurava,
apertou-lhe os dedos.
— Toda a verdade, ou só os pedaços mais simples?
— Você é um espião?
Para surpresa de Libby, ele caiu na risada. E beijou-a nas duas faces.
Irritada, ela insistiu:
— Está fugindo das perguntas. Você é um agente secreto?
— Por que pensa isso?
Libby levantou-se, e começou a andar pelo quarto, agitada, enquanto
dizia:
— Um palpite louco. Você sofreu uma queda de avião no meio de uma
tempestade onde qualquer pessoa sensata evitaria até mesmo dirigir, quanto
mais voar. Não tem carteira de identidade. Apregoa que não é do exército, mas
estava usando um uniforme esquisito. Seus tênis estavam caindo aos pedaços,
mas tem um relógio que deve custar uma fortuna. Um relógio que fala. Tudo
muito, muito estranho. Olhe, eu sei que os serviços secretos dispõem de
equipamentos muito avançados. Você pode não ser o James Bond, mas...
— Bond, James. Codinome 007. Personagem de ficção criado pelo
Além do azul do céu – Nora Roberts
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escritor Ian Fleming, no século XX. Os títulos dos livros são...
Cal passou a mão pelos cabelos e ordenou:
— Desligue. Libby, seria melhor ouvir o resto sentada.
Sem coragem para contestar, ela sentou-se na beirada da cama. Embora
fosse um pouco tarde para tais precauções. Cal soltou o fio e colocou-o, junto
com o relógio, no bolso.
— Você quer uma explicação.
Libby não tinha mais tanta certeza, mas, para não parecer covarde,
respondeu:
— Quero.
Cal sentou-se na cadeira e cruzou as pernas. Disposto a ir até o fim,
começou:
— Certo, mas não vai gostar. Eu estava voltando de uma viagem de rotina
da colônia de Brigston.
— Colônia de quê?
— De Brigston. Em Marte.
Libby fechou os olhos e esfregou o rosto com a mão.
— Por favor, Hornblower!
— Eu disse que não ia gostar.
— Está querendo que eu acredite que é marciano?
— Não seja ridícula.
Incapaz de ficar quieta, Libby pegou um travesseiro, atirou-o do outro
lado do quarto e recomeçou a andar.
— Eu, ridícula? Você chega e quer me enganar que está vindo de Marte, e
a ridícula sou eu?. Olhe, não é que eu queira me meter na sua vida, nem mesmo
espero algum tipo de gratidão humilde por ter tirado você da chuva, mas espero,
sinceramente, um pouco de respeito. Está em minha casa, Hornblower, e eu
mereço saber a verdade.
— Também acho, por isso estou contando a verdade, Libby viu que os
nervos não ajudariam em nada. Voltou a sentar-se na cama e abriu os braços,
recapitulando:
— Quer dizer que você é de Marte.
— Não, eu sou de Filadélfia.
— Ah, está começando a melhorar! Estava a caminho de Los Angeles
quando o seu avião caiu.
— Minha nave.
Ela manteve uma expressão impassível.
— Sua nave espacial, imagino.
— É, acho que o nome aqui é esse. Tive de mudar a rota por causa de uma
chuva de meteoros. Desviei-me... mais, sei agora, do que pensei a princípio,
porque meus instrumentos estavam oscilantes. Encontrei um buraco negro, que
não estava no meu mapa de navegação.
— Um buraco negro — repetiu Libby, sem vontade de rir. Os olhos dele
eram sinceros. Ele acreditava naquilo, pensou, apertando as mãos no colo. A
concussão, obviamente, era muito mais séria do que pensara.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Sim, uma estrela comprimida. Muito densa, com muita força. Sua
gravidade atrai tudo: poeira estelar, gás, até mesmo luz.
— Sim, eu sei o que é um buraco negro — disse Libby, cautelosa. Tinha
resolvido concordar com ele, para mantê-lo calmo até que ficasse convencido de
que devia voltar para a cama. Resumiu:
— Então você estava em sua nave espacial, caiu num buraco negro e
acabou aqui.
— Sim, se simplificarmos tudo. Não tenho certeza do que aconteceu, com
exatidão. Por isso foi que conectei meu computador de pulso com o seu. Preciso
de mais informações antes de poder calcular a viagem de volta.
— Para Marte?
— Que Marte, que nada! Para o século XXIII.
— Ah, entendo! — Libby exclamou, um sorriso congelado no rosto.
Cal percebia perfeitamente que ela o estava achando louco. "Paciência",
disse a si mesmo. Era muito difícil convencê-la em alguns minutos de algo que
ele ainda não conseguia aceitar,
— Não, não entende. Há séculos as pessoas desenvolvem teorias sobre
viagens no tempo. De uma forma geral, aceita-se que, se uma nave conseguir a
velocidade necessária e se catapultar em volta do sol poderia atravessar o tempo.
Por enquanto é só teoria, pois ninguém sabe como evitar que a nave seja sugada
pela gravidade do sol e se queime. É a mesma coisa com um buraco negro. Se eu
tivesse sido atraído para dentro, a força e a radiação teriam estraçalhado a nave.
Deve ter sido pura sorte, mas eu acertei a trajetória: velocidade, distância e
ângulo precisos. Em vez de ser atraído para dentro, fui expelido, e caí aqui,
duzentos e sessenta e três anos no passado — concluiu, afastando a cortina para
olhar o céu.
Libby levantou-se para pousar uma mão hesitante no ombro dele,
aconselhando:
— Devia ir se deitar.
Cal nem precisou olhar para ela para saber:
— Não acredita em mim.
— Não vou mentir que sim, mas você acredita.
Cal voltou-se, vendo no brilho dos olhos dourados que ela queria ajudá-lo
e não sabia como. Tirou o relógio do bolso e mostrou:
— Se não for verdade, como explicar isto? Como explicar tudo?
— Não há necessidade de explicações, agora. Sinto muito ter pressionado
você. Cal. Está exausto.
— Você não tem explicação, nem para isto! — E guardou o relógio no
bolso. — Nem para mim.
— É verdade. Minha teoria é que faz parte de uma operação do serviço
secreto, talvez algum grupo de elite da CIA. Com certeza estava esgotado, por
estresse, tensão, excesso de trabalho. Quando caiu, o choque e o trauma do
ferimento na cabeça completaram o quadro de insatisfação. Não quer mais
aquele tipo de trabalho, por isso resolveu se dar um tempo e uma história
diferente.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Resumindo, você me acha um louco.
Libby acariciou-lhe o rosto, compassiva:
— Não. Acho que está confuso e precisa de descanso e atenção.
Cal esboçou uma reação que não completou. Se insistisse mais, terminaria
por amedrontá-la. Libby não merecia nem metade dos problemas que estava
causando.
— É, pode ser. Ainda não me recuperei do acidente. Preciso descansar.
Levantou-se e foi para a porta, onde a voz dela o alcançou:
— Boa idéia, Caleb. E não se preocupe, tudo vai acabar bem.
Ele se virou, pensando que aquela seria a última vez que via Libby. Os
olhos dela estava escuros e cheios de compaixão, os lábios o fizeram lembrar-se
dos beijos à beira do riacho.
— Você é a mulher mais linda que já vi.
Libby contemplou, sem uma palavra, a porta que se fechava atrás dele.
Cal não dormiu. Deitado no escuro, só pensava em Libby. Ligou a
televisão e viu as figuras fantasmagóricas na tela, pensando que até elas eram
mais reais que Caleb Hornblower.
Libby não havia acreditado em nada. E, assim mesmo, tinha sido gentil e
calma. Gostaria de poder ficar com ela, sem explicar nada, sem pensar no
passado ou no futuro. Se pudesse escolher...
Mas não podia.
Havia deitado vestido, e levantou-se assim que ouviu os primeiros cantos
de passarinhos. Não tinha nada que levar, ou deixar. Na ponta dos pés, desceu a
escada e saiu.
O jipe estava estacionado perto da varanda, no mesmo lugar em que Libby
o havia deixado na noite do acidente. Cal foi até ele, com um último olhar para a
janela. Detestava ter de partir assim. Mais tarde interferiria numa onda de rádio
e diria que Libby precisava de ajuda. Ela ficaria furiosa.
Levou um tempo examinando os instrumentos fora de moda do painel.
Testou o volante e apertou o acelerador, curioso.
Entre os bancos havia uma alavanca com números de um a quatro, em
forma de H. Um barulho áspero o fez parar, quando mexeu na alavanca. Certo
de que sabia o suficiente para operar um veículo tão simples, começou a apertar
botões. Sem obter resposta, moveu o câmbio e pisou na embreagem. Através de
tentativa e erro, descobriu como funcionava. Engatou, então, a primeira marcha.
Era um começo, refletiu, e perguntou-se em que canto o projetista teria
escondido a ignição.
— Vai ter muito trabalho para ligar o motor sem isto — soou a voz de
Libby, na varanda, com uma mão na cintura e a outra exibindo a chave da
partida.
Ela estava furiosa, mas Cal não teve vontade de sorrir. Embaraçado,
mentiu:
— Eu só estava... pensando em dar um passeio.
Além do azul do céu – Nora Roberts
51
— Mesmo? Que azar o seu, eu não ter deixado a chave no contato.
Uma chave! Como não havia pensado nisso? Em voz alta, ele perguntou:
— Acordei você?
Libby desceu a escada e, meio brincando, meio sério, bateu-lhe no ombro:
— Que cara-de-pau você tem, Hornblower. Tentando me enganar com
aquele amontoado de bobagens para me fazer sentir pena, e depois vir roubar
meu carro. O que ia fazer, uma ligação direta e me deixar presa aqui? Pois um
grande piloto, como diz que é, devia ser mais rápido e silencioso.
— Eu só queria tomá-lo emprestado. Achei que seria melhor para você se
fosse sozinho ao local do acidente.
"E eu confiei nele", pensou Libby, odiando-se por ser tão ingênua. Tinha
tido pena dele, querido ajudar. Sentindo- se traída e abandonada, apertou a
chave na mão até machucá-la. Pois ia ajudá-lo; ah, ia sim!
— Bem, pode parar de pensar. Sente no outro banco.
—- Como?
— Eu disse, troque de lugar. Quero ir ao local do acidente, vou levar você
lá.
— Libby...
— Mexa-se, Hornblower, ou esse buraco na sua cabeça vai ganhar um
irmãozinho.
Vencido, ele passou pela alavanca de câmbio e ajeitou- se no banco de
passageiros, alertando-a:
— Depois não vá dizer que não avisei.
— E pensar que senti pena de você.
Cal observou, intrigado, enquanto ela colocava a chave e ligava o motor.
O rádio começou a falar, os limpadores de pára-brisa se mexeram e o sistema de
aquecimento começou a funcionar.
— Você me saiu melhor que a encomenda — resmungou ela, apertando
botões.
Sem esperar comentários, apertou a embreagem, engatou a marcha e
acelerou, saindo pela estradinha de terra.
Cal teve de gritar para ser ouvido acima do barulho do motor:
— Libby, eu estava fazendo o que achei que seria melhor. Não queria lhe
dar ainda mais trabalho.
Ela engatou a segunda marcha e fez alguns pedregulhos voarem,
respondendo no mesmo tom:
— Maravilha. Para quem você trabalha, Hornblower?
— Sou independente.
— Ah, sim! Se vende à melhor oferta?
Cal estranhou o tom ressentido, e quis saber:
— Claro. Não é assim com todo mundo?
— Nem todo mundo tem tabela de preços quando se trata de ser leal a seu
país. Nem todo mundo é mercenário.
Cal esfregou os olhos, não havia percebido que ela voltara ao assunto
"espião".
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Libby, não sou agente secreto. Não trabalho para a CAI...
— CIA.
— Seja lá o que for. Sou um piloto. Carrego suprimentos, gente,
máquinas. Faço entregas em portos espaciais, colônias, laboratórios.
Libby mordeu o lábio inferior e lançou o jipe num riacho raso, espalhando
água para os lados. Falou:
— Ah, voltamos à velha mentira. O que está brincando de ser desta vez?
Um caminhoneiro intergalático?
— É... mais ou menos isso.
— Chega, Cal. Não acredito mais que esteja louco, ou fora de si. Desista
da brincadeira.
— Não posso desistir. Só falei a verdade.
Se Libby não precisasse das duas mãos para manter o jipe na estrada. Cal
teria levado um bofetão.
— Pare com isso. Eu gostaria de nunca ter encontrado você. Caiu na
minha vida e me fez gostar de você, sentir coisas que nunca havia sentido, e
tudo o que sabe fazer é mentir.
Cal só viu uma opção. Num impulso, desligou a chave no contato. O jipe
deu um salto e parou. Com a mão livre, agarrou o suéter de Libby e a fez virarse, dizendo:
— Agora ouça...
Libby tinha os olhos cheios de lágrimas.
— Pelo amor de Deus, não chore, eu não agüento.
Libby limpou as lágrimas com as costas da mão, e retrucou:
— Não estou chorando, devolva a chave.
— Daqui a pouco, confie em mim. Não menti quando disse que ia embora
por achar que seria melhor para você.
— Não vai me contar em que confusão está metido?
— Vou. Depois de descobrirmos minha... meu avião, vou contar tudo que
quiser saber.
— Sem rodeios nem histórias ridículas?
— Vou contar tudo, palavra de escoteiro!
Segurou a mão que ela passava no rosto, e olhou-a bem para perguntar:
— Libby, o que foi que a fiz sentir?
— Não sei, nem quero saber — disse ela, livrando a mão para segurar o
volante.
— Queria que soubesse que nunca senti por mulher nenhuma o que sinto
por você. Gostaria que as circunstâncias fossem diferentes.
Ele já estava dizendo adeus, pensou Libby. Com o peito dolorido,
replicou:
— Esqueça! Vamos nos concentrar no que é preciso fazer.
Conservou os olhos na estrada enquanto ele devolvia a chave. Ligou o
motor e informou:
— Você eslava bem ali. Na curva. Acho que vinha daquela direção.
Quando o vi cair, tive a impressão de que foi ali, no alto. Estranho... parece que
Além do azul do céu – Nora Roberts
53
há um vazio entre as árvores.
Não era de estranhar, pensou Cal, considerando-se que uma nave de mais
de setenta metros de comprimento por trinta de largura tinha caído sobre elas.
— Por que não vamos ver?
Libby saiu da estrada e começou a subir a ladeira pedregosa. Cal começou
a agitar-se como um menino, dizendo:
— Que delícia! Desde criança que não dou um passeio assim.
— É bom você estar se divertindo.
Com esse comentário, Libby dirigiu toda a atenção para o caminho, sem
perceber que Cal apertava uma série de botões no relógio. Começou a se animar
quando estudou o raio direcional num dos mostradores.
— Vinte e cinco graus ao norte.
— O quê?
Usou a mão livre para mostrar:
— Para aquele lado. Dois quilômetros e meio.
— Como sabe?
A resposta veio envolta num sorriso brilhante:
— Confie em mim.
Subiram ao cimo onde os pinheiros eram mais densos. Os cornisos
esparsos estavam cheios de botões. Libby respirou o ar frio e desligou o motor:
— O jipe não passa por ali. Teremos de andar.
Cal já estava fora, oferecendo a mão impaciente e dizendo:
— Não está longe, algumas centenas de metros. Libby não deu a mão,
ficou olhando para o relógio, que emitia um bip lento e regular. Quis saber:
— Por que ele está fazendo isso?
— Está explorando a região. O alcance é só de dez quilômetros, mas
muito preciso.
Para exemplificar, estendeu o pulso e traçou um círculo, lentamente,
dizendo:
— Uma vez que duvido que haja alguma coisa metálica tão grande quanto
minha nave nos arredores, diria que já a encontramos.
Libby enfiou as mãos nos bolsos e saiu andando, avisando:
— Não comece de novo.
— Você disse que era cientista — lembrou Cal, acertando o passo com o
dela.
— E sou. Por isso é que sei que não há homens que esbarram em buracos
negros e caem na serra de Klamath, voltando de Marte.
Num gesto de paz. Cal rodeou-lhe os ombros com o braço.
— Está olhando para trás, Libby, não para a frente. Nunca viu ninguém
que tenha vivido há dois séculos, mas sabe que existiram. Por que é tão difícil
acreditar que existam daqui a dois séculos?
Libby pensou que, na verdade, Cal não era louco, e sim esperto até
demais. Contestou-o:
— Espero que existam, mas não tenho esperanças de lhes oferecer café.
Disse que contaria a verdade, toda a verdade, quando chegássemos ao avião.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Vou cobrar isso, fique sã... Oh, meu Deus!
Parou de repente, congelada.
A menos de dez metros, viu uma clareira entre as árvores, a mesma que
entrevira antes da subida. De perto, era como se uma foice enorme tivesse
ceifado a floresta, abrindo uma área livre, imensa. Vendo que Cal se adiantava,
alcançou-o para dizer:
— Mas não houve um incêndio. O que poderia ter causado isto?
— Aquilo.
Chegaram à clareira, e Cal apontou. Aninhada no chão pedregoso,
atapetado de agulhas de pinheiro, estava a nave. Árvores, algumas bem altas, se
espalhavam como palitos de dente em volta dela.
— Não chegue muito perto, até eu verificar a radiação — avisou Cal, sem
necessidade. Libby estava imobilizada pelo choque.
Verificou o nível de radiação no relógio, balançou a cabeça em
assentimento e voltou a passar o braço pelos ombros dela, dizendo:
— Dentro dos limites normais. A curva do tempo deve ter neutralizado os
excessos. Venha para dentro, quero mostrar meus mapas.
Assombrada, em silêncio, acompanhou-o. Era enorme, e não se parecia
em nada com um avião. "Um segredo militar", pensou. Por isso Cal havia sido
tão evasivo. Mas seria impossível um homem sozinho comandar um aparelho
tão grande.
A frente era o ponto mais estreito, achatado, com a forma de uma bala de
revólver, antes de se curvar para formar o corpo. Não tinha asas, o que fez o
estômago de Libby se contrair. No geral, lembrava uma arraia, das que nadavam
próximas ao fundo do mar.
"Uma experiência", pensou, subindo pelo tronco caído de um pinheiro.
O corpo era de uma cor metálica fosca, sem lustro suficiente para ser
chamada de prata. Marcas e arranhões, além da poeira, a cobriam. Como um
velho carro usado por toda a família, pensou Libby, aflita.
Claro, os arranhões tinham sido causados pelo acidente. No entanto,
vários pareciam antigos. A NASA, ou o governo, ou fosse quem fosse o
construtor daquilo, devia cuidar melhor de um veículo que deveria ter custado
milhões de dólares em impostos pagos pela população.
— Você veio nesta coisa sozinho — disse a Cal, quando ele passou a mão
pela "lataria" da nave.
— Claro. É muito fácil de manobrar.
— E a quem pertence?
— É minha. Eu disse que não tinha roubado — explicou ele, sorrindo de
prazer e estendendo a mão para que ela chegasse mais perto.
Todo contente, tomou-a os braços, girando num círculo e beijando-a na
boca.
— Caleb... — murmurou Libby, sem fôlego, empurrando-o.
— Estou me acostumando a beijá-la, e sou um homem afeito aos hábitos
— brincou ele, abraçando-a pela cintura.
Se estava querendo distraí-la, estava muito enganado. Libby ordenou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
55
— Controle-se. Já achamos esta... coisa. Prometeu uma explicação.
Sabemos muito bem que nenhum cidadão particular pode ser dono de uma...
geringonça dessas. Confesse, Hornblower.
— É minha. Ou vai ser, daqui a dez prestações.
Sempre sorrindo, tocou algum ponto e a porta se abriu. Libby observou
incrédula a engrenagem mover-se silenciosamente.
Incapaz de resistir, subiu os dois degraus até a ponte de comando. Tinha o
tamanho da sala da cabana, e era dominada por um painel de controle. Centenas
de botões coloridos e alavancas em frente a dois assentos de encostos altos na
forma de colheres.
— Sente, por favor — convidou Cal.
Sem se afastar da porta aberta, Libby esfregou os braços subitamente
arrepiados, dizendo:
— Está... frio aqui.
Ele foi até um painel e virou um botão, abrindo a frente da nave, e disse:
— Oh sim, devo ter fechado tudo na hora de cair.
Era lindo de se ver. A sua frente se estendiam a floresta, as montanhas
distantes e o céu. Um sol forte se derramava através do que poderia ser um párabrisa, se não tivesse dez metros de largura e altura. Sentindo que as pernas não a
sustentariam por muito tempo, foi até uma das cadeiras e sentou-se,
comentando:
— Não entendo. Não entendo nada disso.
Cal abriu uma gaveta, remexeu em papéis e tirou um cartão pequeno e
brilhante, concordando:
— Foi assim que me senti há dois dias. Esta é a minha licença de piloto,
Libby. Depois de ler, respire fundo. Sempre ajuda.
Na foto do canto, ele sorria o mesmo sorriso desarmante que tinha ao
vivo. O cartão anunciava que se tratava de um cidadão americano licenciado
para pilotar naves de modelos A e F. Altura de cento e oitenta e cinco
centímetros vírgula quatro, peso setenta quilos ponto três. Cabelos castanhos,
olhos azuis. E a data de nascimento era... 2222.
— Oh, meu Deus! — balbuciou Libby.
Ele segurou a mão que segurava o cartão, dizendo:
— Esqueceu de respirar. Libby, tenho trinta anos. Quando saí de Los
Angeles, há dois meses, era fevereiro de 2252.
— Isto é loucura!
— Pode ser, mas aconteceu.
Ela devolveu-lhe o cartão e levantou-se, o coração batendo tão forte que
sentia o sangue latejar nas têmporas. Alterada, tentou discutir, negar:
— É um truque. Não sei por que está fazendo isso, mas tudo não passa de
uma farsa muito bem elaborada. Vou voltar para casa.
Correu para a porta, que se fechou antes que pudesse passar. Cal queria
chegar perto, mas, vendo que ela estava quase em pânico, achou melhor ficar
parado para dizer:
— Sente-se, Libby, por favor. Não vou machucá-la. Sabe disso. Apenas
Além do azul do céu – Nora Roberts
56
sente um pouco, e ouça.
Envergonhada por ter tido medo, Libby voltou e sentou-se, rígida.
— E então?
Ele ocupou a outra cadeira, entrelaçou os dedos e pensou no que dizer.
Havia momentos em que o melhor jeito de enfrentar uma situação anormal era
tratá-la como se fosse normal.
— Ainda não tomou café. Que tal ovos com presunto? -— falou
bruscamente, feliz por ter tido a inspiração. Abriu uma porta na parede e tirou de
dentro uma espécie de bolsa prateada. Sem esperar uma resposta, abriu outra
porta e jogou a bolsa dentro. Apertou um botão e esperou sorrindo que soasse
um sinal. Tirando um prato de outro compartimento, abriu a segunda porta e,
com o prato, recolheu uma pilha de ovos fritos rodeados de pequenos cubos de
presunto, tudo saindo fumaça.
Libby não moveu as mãos geladas do colo, e ironizou:
— Você é cheio dos truques.
Passando o prato sobre o nariz da hóspede relutante. Cal corrigiu:
— Não é truque, é irradiação. Experimente, vamos! Não são tão bons
quanto os seus, mas dão para o gasto. Libby, tem de acreditar no que está
debaixo do seu nariz.
Ela moveu a cabeça, bem devagar, de um lado para outro, dizendo:
— Não. Acho que não.
E voltou a sacudir a cabeça, com mais firmeza. Dando de ombros. Cal
pegou um garfo de uma gaveta e mergulhou na comida.
— Sei como se sente.
Um tanto atrasada, ela resolveu seguir o conselho e respirou fundo três
vezes. Depois disse:
— Não, não sabe. Não está sentado numa coisa parecida com uma nave
espacial conversando com um homem que diz que veio do século XXIII.
— Não, mas estou na minha nave conversando com uma mulher mais ou
menos duzentos e cinqüenta anos mais velha que eu.
Libby piscou, surpreendida, e começou a rir, só um pouco histericamente.
— Isto é... cômico.
— Oh, sem dúvida!
— Não estou dizendo que acredito.
— Precisa de tempo.
A mão não estava mais fria, mas pouco firme, quando a pressionou contra
a cabeça.
— Preciso pensar.
— Tudo bem.
Com um suspiro, acomodou-se na cadeira e estudou o homem a sua
frente, terminando por dizer:
— Acho que vou aceitar os ovos com presunto, agora.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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CAPÍTULO VI
Libby experimentou os ovos. O gosto era fraco, mas não rançoso. No
segundo bocado pensou: "ovos irradiados". Havia ouvido falar desse novo
processo de conservação que começava a ser pesquisado. Enfim, era bem
melhor do que comida congelada esquentada num microondas.
Sentia-se como se tivesse acordado no meio de um filme de ficção
científica. Ainda incrédula, disse a Cal:
— Fico me repetindo que deve haver outra explicação para tudo isso, mais
plausível.
— Se descobrir, não deixe de me avisar -- brincou ele.
— Se for tudo verdade, admiro muito sua calma.
— Tive mais tempo que você para me acostumar. Vai comer o resto da
comida?
— Estou satisfeita, obrigada. Sirva-se.
E, mais uma vez espantada com o apetite do homem do futuro, olhou pelo
vidro da nave. Viu um casal de alces andando entre as árvores. Uma bela vista,
muito normal nas montanhas de Oregon. Se os alces estivessem passeando na
Quinta Avenida, em Nova Yorque, ainda seriam belos e reais. Mas, por motivos
de geografia básica, não seriam normais. Não se poderia negar que Cal era real.
Seria possível que ele, mais aquele veículo incrível, fossem uma vista normal
em outro lugar, em outro tempo qualquer?
Se fosse verdade... se Libby se deixasse, mesmo que fosse por um
momento, acreditar... O que ele estaria sentindo? Voltou a olhar os alces. Talvez
Cal estivesse tão confuso e deslocado como qualquer animal tirado do habitat
natural e atirado num mundo estranho.
Lembrou-se do pânico estampado no rosto dele no dia em que havia
entrado no quarto com o romance de ficção científica. Ela havia atribuído a
palidez e confusão aos efeitos do ferimento na cabeça, assim como as perguntas
e observações estranhas que ele vivia fazendo.
Mas a nave estava ali, e, por mais boa vontade que se tivesse, não poderia
ser confundida com um avião. Se aceitasse aquilo como realidade, e não como
parte de um sonho, então tinha de aceitar a história de Cal.
— Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia
— declamou ele. Vendo o olhar suspeito de Libby, sorriu explicando:
— Hamlet. Nós ainda lemos Shakespeare. Quer café?
Negando com a cabeça, Libby resolveu prosseguir com o interrogatório:
— Você disse que... quase caiu num buraco negro?
— Disse, e é o que penso. Vou precisar do computador grande para
confirmar. Meus instrumentos se descontrolaram todos ao atingirmos o campo
gravitacional, por isso desliguei o piloto automático e dei um jeito de virar para
o leste. Lembro da força que me sugava. Deve ser a mesma que uma mosca
Além do azul do céu – Nora Roberts
58
sente quando leva um golpe com um jornal. Desmaiei. Ao voltar a mim, estava
em queda livre para a Terra. Voltei a entregar a nave para o computador e pensei
que os problemas tinham acabado.
— O que não explica como acabou caindo aqui... ou melhor, agora.
— Não faltam teorias. Eu me inclino para a que lida com o continuum
espaço-tempo. Seria como um vaso curvo — e Cal exemplificou com a mão. —
Matematicamente, o vaso não é tempo nem espaço, e sim uma combinação dos
dois. Tudo nele se move através do espaço e do tempo. A gravidade é a curva do
vaso, que puxa tudo para baixo. A curva não é muito pronunciada em volta da
Terra, e não se sente a gravidade a não ser que, por exemplo, se caia num
abismo. Mas em volta do sol, e de um buraco negro... — e fechou mais a curva
da mão.
— Quer dizer que você ficou preso nessa curva?
— Não, que fui expelido por ela, como uma bola de gude que bate na
beirada de um vaso. E, em algum lugar, de algum modo, a volta foi
interrompida. A velocidade, a trajetória, enviou-me através de um túnel não só
de espaço mas de tempo também.
— Ouvindo você falar, parece até plausível.
— É a única teoria que tenho. Talvez se possamos olhar para ela pareça
mais lógica. — E, inclinando-se. Cal iluminou uma tela. — Computador.
— Sim, Cal.
Libby ergueu as sobrancelhas ao ouvir a voz macia, sensual, feminina.
— Desde quando vocês fazem computadores altos, loiros e cheios de
curvas?
— Viagens intergaláticas são solitárias, Libby. Precisamos de companhia.
Computador, mostre dados do diário de bordo zero-dois-zero-cinco. Na tela.
Girou a cadeira e inclinou-se quando uma tela pequena emergiu do
console. A cabine encheu-se de som. Impassível, Cal assistiu à própria imagem.
Libby olhava tudo como hipnotizada, à medida que a fita que ele chamava diário
de bordo passava na tela. Podia vê-lo no mesmo lugar em que sentava ali com
ela, mas havia luzes que piscavam, sinais apitando. Em meios às vibrações da
cabine, ele agarrou-se a uma alça de segurança. Suor brotava-lhe do rosto no
esforço para lutar contra o desastre.
— Amplie a imagem — comandou Cal.
E Libby viu o que ele vira através do pára-brisa: a vastidão do espaço,
sedutora e atraente. Estrelas, uma quantidade imensa delas, e um planeta
distante. E negro, negro total, cada vez mais forte e maior. A nave se
aproximava dele.
Ouviu Cal praguejando, ou antes a imagem que praguejava ao puxar uma
alavanca. Um barulho, de metal que se rasga. A cabine começou a girar numa
velocidade estonteante. E a tela ficou vazia.
— Droga, Computador, continue a voltar.
— Bancos de memória danificados. Impossível voltar mais.
— Que ótimo -- resmungou Cal, começando a pedir uma análise, mas
reparou em Libby. Ela estava amolecida na cadeira, cor de cera, os olhos
Além do azul do céu – Nora Roberts
59
vidrados. Cal aproximou-se dela num salto, e, contornando-lhe o rosto com as
mãos, pressionou de leve os polegares nos dois lados do pescoço, dizendo:
— Ei, calma!
— Foi como se eu estivesse lá.
— Sinto muito, Libby. Não pensei que fosse se impressionar tanto.
— Foi horrível, Cal. Foi horrível para você — balbuciou ela, já sem
duvidar de mais nada.
Cal acariciou-lhe os cabelos, deu-lhe um beijo de leve e consolou-a:
— Não. O desastre foi horrível. O resto não.
— E o que vai fazer agora?
— Descobrir o caminho de volta.
— E quando partirá? — perguntou Libby, sentindo como se estivesse
prestes a perder alguém muito querido, para sempre.
— Vai demorar um pouco. Preciso fazer alguns reparos na lataria da nave
e muitos cálculos.
— Gostaria de ajudá-lo, se soubesse como.
— Pode ficar por aí enquanto trabalho. Sei que tem muito que fazer, mas
pode perder algumas horas?
Libby sorriu, concordando:
— Claro. Não é sempre que me convidam para passar o dia numa nave
espacial. Posso olhar tudo?
— Como quiser. Vou começar os cálculos já.
Libby deixou-o sozinho, tentando não assustar-se quando as portas se
abriam silenciosamente a sua chegada. Entrou no que parecia ser uma sala de
estar. Sofás embutidos nas paredes, estofados de cor de laranja. Uma mesa de
algum material plástico presa ao chão. Revistas jogadas ao acaso. A versão do
futuro para as que vendem nas bancas, pensou, rindo, ao escolher uma. Batendoa distraidamente contra a coxa, passeou pelo aposento.
"Sou uma mulher sensata, e uma mulher sensata aceita o que não pode ser
negado. Mas..."
Não havia mas nem meio mas. Ela era uma cientista. Estudava o homem.
Por um tempo, estudaria o que o homem viria a ser em vez do que tinha sido.
Perambulou por mais de uma hora, observando, absorvendo. Um lugar em
desordem, estreito, parecia uma cozinha. Nada de fogão, apenas um aparelho
parecido com um forno de microondas embutido na parede. Uma espécie de
geladeira continha algumas garrafas, rotuladas em vermelho, branco e azul.
Cerveja, de uma marca que Libby conhecia.
O homem não mudara tanto assim. Escolheu outra marca conhecida de
refrigerante e desenroscou a tampa para provar. Impressionante, pensou, era
como se tivesse tirado a garrafa da sua própria geladeira. Levando a garrafa
consigo, como um velho amigo numa terra estranha, continuou a andar.
Chegou a um compartimento enorme, vazio a não ser por uma pilha de
caixas presas por tirantes num canto.
Lembrou-se de que Cal transportava suprimentos. Para Marte, assustouse, tomando outro gole da garrafa.
Além do azul do céu – Nora Roberts
60
Então o homem tinha conquistado Marte. Mesmo no século XX, já havia
planos para isto. Teria de perguntar a Cal quando a primeira colônia tinha sido
construída e como haviam escolhido os colonizadores. Já estava começando a
pensar naquilo como uma coisa normal, deixando que a mente científica se
deleitasse com a descoberta.
O segundo andar da nave continha quase só camarotes. Mobília simples,
funcional, quase tudo embutido. O estilo era muitas formas de plástico e cores
brilhantes.
Procurou e encontrou o camarote de Cal. Havia poucas diferenças dos
outros, e não ser pela desordem. Libby viu um macacão, semelhante ao que ele
usava quando o encontrou, jogado num canto. A cama estava desfeita. Na
parede havia uma fotografia, tridimensional, de Caleb no meio de um grupo.
Atrás do grupo, uma habitação de muitos andares e feita de vidro, um
jardim em terraços e muitas árvores no pátio gramado.
Libby adivinhou que devia ser a casa dele, e a família. Olhou-os de perto.
A mulher era alta, estonteante, e jovem demais para ter um filho de trinta anos.
Irmã? Não, ele havia falado só de um irmão.
Todos estavam rindo, e Cal tinha um braço nos ombros de outro homem,
da mesma altura e parecido o suficiente para que se percebesse ser o irmão.
Tinha os olhos verdes, e, mesmo na foto, muito penetrantes. "Difícil de
contentar", pensou Libby, voltando a atenção para o terceiro homem do grupo.
Tinha um ar sonhador, e o rosto, se não era belo como os dos filhos,
exprimia bondade.
"Prisioneiros do tempo", refletiu Libby. Fotografias faziam isso, tornavam
as pessoas prisioneiras do tempo. Como Cal, naquela hora. Ergueu a mão, como
se fosse acariciar a imagem sorridente, mas desistiu.
Tinha de se lembrar que ele só estava ali até poder ir embora. Tinha outra
vida, num outro mundo. O que sentia por ele era impossível, tão impossível
quanto estar dentro de um veículo projetado para viajar no espaço.
Foi acometida de um cansaço súbito, e sentou-se na cama. A situação era
totalmente absurda, e a parte mais absurda era que tinha se apaixonado, pela
primeira vez na vida. E o homem que amava logo estaria muito longe de seu
alcance. Suspirando, deitou-se sobre os lençóis macios e frescos. Talvez tudo
não passasse mesmo de um sonho, afinal de contas.
Cal encontrou-a ali, uma hora depois, enrodilhada na cama. Dormia, como
da primeira vez que a vira.
Era uma visão adorável, mas não era só a beleza que o atraía àquela hora.
Desde que passara a conhecer Libby, cada vez mais sentia que era uma mulher
para se amar, longa, docemente.
Uma pena que não fosse a mulher para ele. Cal desejou poder transformar
tudo num conto de fadas, fazer com que ela dormisse cem, duzentos anos e mais
um pouco, até poder acordá-la com um beijo e serem felizes para sempre.
Mas não era um príncipe, apenas um homem comum passando por uma
Além do azul do céu – Nora Roberts
61
situação extraordinária.
Em silêncio, chegou perto da cama e cobriu-a. Libby remexeu-se,
murmurando alguma coisa. Incapaz de resistir, ele acariciou-lhe o rosto,
fazendo-a abrir os olhos.
— Cal, tive o sonho mais incrível — começou ela, e, ao olhar em volta,
corrigiu-se: — Não foi sonho.
— Não, não foi. .Como se sente? — perguntou ele, sentando-se a seu
lado.
Libby afastou os cabelos do rosto, e quando os soltou eles se ajeitaram,
numa caída perfeita, em volta do rosto.
— Um pouco abalada, ainda. Desculpe ter dormido assim. Acho que tudo
o que aconteceu me tirou as energias. Aquela é sua família? — quis saber,
apontando para a foto.
— Sim. Meu irmão Jacob e meus pais, no tempo em que a vida era
simples.
— Parecem tão jovens para filhos adultos.
— Não é difícil permanecer jovem... quero dizer, não vai ser difícil, daqui
a algum tempo.
— E essa é sua casa?
— Cresci lá. Fica a vinte quilômetros da cidade.
— Pense só na história que vai ter para contar quando os vir de novo.
— Se eu me lembrar.
Libby levou um choque. Não queria ser esquecida, mesmo dali a duzentos
e tantos anos. Protestou:
— Mas não vai esquecer. Eu escreverei tudo para você.
— É uma boa idéia. Vai me deixar voltar com você?
— Voltar? — repetiu Libby, com uma certa esperança.
— Para a cabana. Já fiz tudo o que podia por agora. Posso começar a
trabalhar na nave amanhã. Estava esperando que me deixasse ficar até a partida.
— Oh... claro. Tenho dúzias de perguntas para fazer, e nem sei por onde
começar,
Ainda assim, saíram da nave e iniciaram a viagem de volta sem que Libby
perguntasse nada. Cal parecia contrariado, tenso. Para animá-lo, sugeriu:
— Que tal se nós almoçássemos na cidade?
— O quê?
— Não fique com a cabeça nas nuvens, Hornblower. Gostaria de ir até a
cidade? Afinal, viu tão pouca coisa do século XX. Se eu caísse de repente,
digamos, no ano de 1750, gostaria de explorar, ver gente. Só vai levar duas ou
três horas. O que diz?
Ele pareceu gostar, e sorrindo perguntou:
— Posso dirigir?
— Nem morta! Vou passar na cabana para pegar minha bolsa.
Levaram mais de meia hora para chegar à rodovia, através de um atalho
estreito onde o jipe teve de lutar bravamente contra a lama. Na pista asfaltada.
Cal viu os veículos que tanto o haviam fascinado na televisão. Corriam
Além do azul do céu – Nora Roberts
62
desajeitadamente, barulhentos. Sacudiu a cabeça quando Libby ultrapassou um
deles, agressivamente.
— Eu poderia ensinar você a pilotar um carrinho a jato em uma hora.
— Isso é um elogio? — disse Libby, sentindo o vento nos cabelos e
decidida a aproveitar até o último segundo daquela aventura inesperada.
— Sim. Vocês ainda usam... ãh... gasolina?
— Certo.
— Impressionante.
— Eu não seria tão superior no seu lugar. Afinal, não sabia nem ligar o
meu jipe.
— Mas acabaria descobrindo. Se estivéssemos em minha casa eu a levaria
almoçar em Paris. Já esteve lá?
— Não, e acho que vamos ter de nos contentar com pizza em Oregon.
— Por mim, será maravilhoso. Sabe o que estranho mais aqui? O céu. É
tão vazio...
Um carro passou por eles, o rádio ligado no último volume,
interrompendo Cal, que, depois de olhar o importuno, perguntou:
— O que era aquilo?
— Um carro.
— Sujeito a discussões, mas quero saber o que era o barulho.
— Música. Rock pauleira. — Libby ligou o próprio rádio, e explicou: —
E esta que está tocando também é rock, mas não pauleira.
— Eu gosto — declarou Cal, examinando as construções à beira da
estrada. Bonitas casas para uma só família, conjuntos de apartamentos
atarracados e um amplo shopping center de um andar só. O trânsito ficou pior
quando se aproximaram da cidade. Já se viam as formas retangulares e altas dos
edifícios de escritórios. Era uma paisagem poluída visualmente, na opinião de
Cal, mas tinha seu charme. Ali havia gente, a vida continuava.
Libby saiu da estrada e dirigiu-se ao centro.
— Conheço um lugarzinho simpático, italiano, bem tradicional. Toalhas
de xadrez vermelho, velas em garrafas de chianti, pizza, de massa feita à mão.
Cal fez um gesto de assentimento, distraído. Havia gente nas calçadas,
velhos, jovens, feios, bonitos. Barulho de motores, de vez em quando uma
buzina irritada. O ar estava mais quente do que na serra e cheirava a
escapamento. Para ele era como se uma figura de um livro antigo tivesse criado
vida.
Libby estacionou numa área coberta de pedregulhos, ao lado de um prédio
verde e branco. Na placa de néon na janela da frente estava escrito: "Rocky´s".
— Bem, é um pouco diferente de Paris, Cal.
— É ótimo — murmurou ele, sem parar de olhar em volta.
— Deve se sentir como Alice do outro lado do espelho.
Cal havia lido o livro, quando criança, e corrigiu-a:
— Mais como um de H. G. Wells, sabe, A Máquina do Tempo.
— É bom saber que a literatura sobreviveu. Está com fome?
— Eu nasci com fome — respondeu Cal, afastando uma nova onda de
Além do azul do céu – Nora Roberts
63
desânimo.
O restaurante tinha luzes fracas, estava quase vazio e cheirava a
especiarias. Ao canto havia uma vitrola automática tocando um sucesso recente.
Libby guiou Cal até uma mesa de canto, dizendo:
—- A pizza daqui é deliciosa. Já comeu pizza?
Ele respondeu mexendo na cera de vela endurecida na garrafa ao centro
da mesa!
— Algumas coisas transcendem o tempo. Pizza é uma delas.
A garçonete, jovem e gorducha, com um avental vermelho onde se lia
"Rocky´s" sobre o busto cheio e com algumas manchas de molho na blusa
branca, aproximou-se:
— O que vão querer?
Libby pensou no apetite do hóspede e pediu:
— Uma grande, com muito queijo e pimentão. Vai beber cerveja?
— Vou.
— Uma cerveja e um refrigerante dietético.
Antes que a garçonete se afastasse. Cal indagou:
— Por que todo mundo aqui faz dieta? A maioria dos comerciais fala em
perder peso, morrer de sede e ficar limpo.
Libby ignorou a olhadela curiosa que a moça lançou-lhes por sobre o
ombro e explicou:
— Sociologicamente nossa cultura é obcecada com saúde, nutrição e
forma física. Contamos calorias, levantamos pesos e bebemos litros de iogurte.
E comemos pizza, claro!A propaganda reflete as tendências atuais.
— Eu gosto de seu físico.
— Oh, obrigada!
— E do rosto, e do jeito que fala quando fica sem jeito.
Libby mudou de assunto:
— Por que não ouve a música?
— Porque parou.
— Ouça outra.
— Como?
— Na vitrola automática. Venha, pode escolher a canção — propôs
Libby, levantando-se e puxando-o pela mão.
Cal parou em frente à máquina, lendo os títulos e escolhendo:
— Esta, esta e mais esta. Como funciona?
— Precisa de moedas.
— Ouro? — estranhou Cal, fazendo Libby rir enquanto procurava na
bolsa.
— Não, vinte e cinco centavos de dólar. Não se usam moedas no século
XXIII?
Cal pegou a moeda que ela mostrava e examinou-a, dizendo:
— Não, mas já ouvi falar.
Sob o olhar atento de Cal, Libby introduziu moedas na máquina e apertou
botões. A música fluiu, lenta e romântica.
Além do azul do céu – Nora Roberts
64
— Como é o nome desta?
— A Rosa. Uma balada... tradicional.
— Vocês gosta de dançar?
— Gosto, se bem que não dance muito, eu...
— C... Quero ouvir a letra — pediu Cal, atraindo-a para si e encostando o
rosto nos cabelos dela.
Dançaram o ritmo preguiçoso da balada. Uma mãe com duas crianças
irrequietas descansou o cotovelo na mesa e olhou para eles com prazer e inveja.
Na cozinha de paredes de vidro um homem de bigode batia a massa, também
acompanhando o ritmo.
— É triste — disse Cal.
— Não, fala da sobrevivência do amor...
Libby desistiu de falar e fechou os olhos, sonhando, até a primeira música
acabar e um grito cortar o ar, acompanhado de uma frenética bateria.
— E esta, do que trata? — perguntou Cal.
— Da juventude — resmungou Libby, embaraçada ao ver os olhares que
haviam atraído. — Venha, vamos sentar.
— Mas quero dançar com você outra vez.
— Outra hora. Não é costume, aqui, dançar em pizzarias.
Cal não protestou e deixou-se levar até a mesa, onde as bebidas os
esperavam. Como Libby, ao abrir a geladeira da nave, Cal deliciou-se com a
visão familiar da garrafa de cerveja.
— Parece que estou em casa.
— Desculpe eu não ter acreditado em você no começo.
— Meu bem, nem eu acreditei em mim no começo. Agora, me diga, como
se namora em 1989? —- perguntou Cal, segurando a mão dela sobre a mesa.
— Bom, as pessoas vão ao cinema, a restaurantes.
— Estou com vontade de beijar você.
— Não acho que seja o momento...
— Não quer que a beije?
— Se ela não quer, fique sabendo que saio às cinco — intrometeu-se a
garçonete, colocando a pizza na frente deles.
Cal sorriu e colocou um pedaço no prato de papel, comentando:
— Ela é simpática, mas gosto mais de você.
— Você é sempre assim impertinente? — provocou Libby, mordendo o
primeiro bocado.
— Grande parte do tempo, mas gosto de você, e muito. E agora deve dizer
que também gosta de mim.
Libby levou algum tempo pegando outro bocado de pizza e mastigando,
limpando a boca com o guardanapo, para só então falar:
— Estou pensando... Gosto mais de você do que de todos os homens do
século XX que conheci.
— Um bom começo. Vai me levar ao cinema?
— Poderia.
— Como um namorado — e Cal tornou a segurar-lhe a mão.
Além do azul do céu – Nora Roberts
65
— Não. Como uma experiência, parte de sua educação para o meu tempo
— rebateu Libby, puxando a mão.
Ele abriu mais o sorriso, perigosamente charmoso, para dizer:
— Ainda assim, vai ganhar um beijo de boa noite.
Já estava escuro quando voltaram para a cabana. Libby, muito nervosa,
escancarou a porta e jogou a bolsa sobre o sofá, virando-se para encarar Cal, que
dizia:
— Não dei baixaria nenhuma.
— Não sei o que acham, lá na sua terra, de ser posto para fora do cinema,
mas por aqui chamamos de "baixaria".
— Eu só fiz alguns comentários práticos, menores, sobre o filme. Já ouviu
falar em liberdade de expressão?
Antes de responder, Libby foi até o armário e pegou a garrafa de
conhaque.
— Hornblower, ficar gritando que o filme é uma porcaria mentirosa não é
direito humano, e sim grosseria.
Ele deu de ombros, atirou-se no sofá e colocou os pés sobre a mesa de
centro.
— Ora, Libby, todas aquelas bobagens a respeito de criaturas da Galáxia
invadindo a Terra. Tenho um primo que mora lá, e ele não tem o rosto cheio de
desentupidores de pia.
Libby tomou de uma vez a primeira dose do conhaque e serviu-se de
outra, reconhecendo sua parte de culpa:
— Não devia ter levado você para ver um filme de ficção científica. Mas
era uma fantasia, Hornblower, nada mais.
— Pobre!
— Sua opinião, mas as pessoas que estavam lá tinham pago para ver —
acalmou-o ela.
— E que tal aquela idiotice sobre as criaturas absorverem toda a água do
corpo humano? E aquele caubói do espaço, disparando sua pistola laser. Faz
alguma idéia de como aquilo tudo é um grande embuste?
Mais um conhaque, e Libby se dispôs a falar:
— Não, não faço. Da próxima vez vou levá-lo para ver um faroeste. E
pare de me irritar. Passei a manhã numa nave espacial, e a tarde comendo pizza
e tentando assistir a um filme. É difícil juntar tudo e tirar conclusões.
Cal levantou-se, abraçou-a e a fez sentar-se a seu lado no sofá. Consoloua:
— Dê tempo ao tempo. Agora fale de Liberty Stone, meu assunto
predileto.
— Não há muito para dizer.
— Ótimo, terei menos que lembrar.
— Como já disse, nasci aqui.
— Na cama onde durmo.
Além do azul do céu – Nora Roberts
66
Libby tomou um gole e prosseguiu:
— Sim. Minha mãe tecia lã. Cobertores, enfeites de parede, tapetes. E
vendia suas obras para completar o orçamento do que meu pai plantava na horta.
— Eles eram pobres?
— Não, eram hippies.
— Não entendo.
— É difícil explicar. Os hippies tinham idéias belíssimas. Queriam ficar
próximos da terra, de si mesmos, eram contra qualquer tipo de poder material,
de violência no mundo, enfim... contra toda a estrutura da sociedade da época.
Um dia, um dono de galeria veio acampar por aqui com a família e viu os
trabalhos de minha mãe. O resto, como dizem, é história.
— Caroline Stone — disse Cal, bruscamente.
— Sim, por quê?
Cal riu, e foi pegar uma dose de conhaque para ele.
— Os trabalhos de sua mãe estão nos museus. Eu vi alguns. Têm um valor
imensurável.
Libby tomou um longo gole, pensando alto:
— Isto está ficando cada vez mais estranho. Você é que tem de falar, eu é
que tenho de entender você.
Incapaz de ficar quieta, Libby começou a andar de um lado para o outro,
segurando o cálice com as duas mãos.
— Você falou de Filadélfia e de Paris. Sabe o que significa? —
perguntou.
— O quê?
— Que nós conseguimos. Que o mundo não se acabou. De alguma forma,
mesmo tendo chegado perto de destruir tudo, sobrevivemos. Existe uma
Filadélfia no futuro, Hornblower, e é maravilhoso pensar nisso.
Sempre bebendo, rindo cada vez mais alto, Libby começou a dar piruetas
pela sala.
— Todos esses anos eu venho estudando o passado, tentando entender a
natureza humana, e agora tenho uma visão do amanhã. Nem sei como agradecer
sua vinda.
Cal observava-a, encantado. Ela estava corada, o corpo esbelto movia-se
com a graça de uma bailarina. O desejo era cada vez mais urgente, avassalador.
— Estou feliz por ser útil.
— Quero saber tudo, tudo, tudo! Como as pessoas vivem, o que sentem.
Como namoram, fazem amor e se casam. Do que as crianças brincam? Onde
está a garrafa? Ah, aqui! Spielberg ganhou um Oscar, afinal? Vocês comem
cachorro-quente? O pior dia da semana ainda é segunda-feira?
— Vai ter de fazer uma lista, e o que eu não puder responder passarei para
o computador.
De olhos brilhantes, belíssima, Libby parecia cada vez mais tentadora
enquanto dizia:
— Uma lista. Claro, eu faço listas incríveis. Sei que há perguntas mais
importantes: desarmamento nuclear, paz mundial, a cura do câncer, da Aids e do
Além do azul do céu – Nora Roberts
67
resfriado comum. Mas quero saber tudo, do inconseqüente ao importantíssimo.
Minha cabeça não pára: vocês fazem piqueniques aos domingos? Acabou a
fome no mundo, e a falta de moradia? Todos os homens beijam como você?
Cal interrompeu o gesto de levar o cálice aos lábios. Lenta,
deliberadamente, pousou-o na mesa para dizer:
— Não posso responder, pois só pratiquei em mulheres.
Libby também se livrou do copo, e afastou os cabelos do rosto, dizendo:
— Não sei por que perguntei isso. Acho que estou meio "alta".
— "Alta"?
— É... bêbada, talvez. Oh, Caleb, você me deixa confusa! Mesmo antes de
saber que era... tão diferente.
— Eu também me sinto confuso, Libby.
— É estranho, sabe, porque eu nunca deixei ninguém confuso. Acho que
sou covarde, pois cada vez que você chega perto quero fugir. Não. Mentira.
Uma vez me perguntou se eu tinha medo de você, e eu disse que não. Outra
mentira. Tenho medo sim, de você, de mim, e mais do que tudo de pensar que
talvez nunca mais sinta nada parecido por ninguém.
Parou um pouco, para recomeçar a caminhada pela sala, inquieta.
— Gostaria de saber o que fazer, o que dizer. Não tenho nenhuma
experiência desse tipo de coisa. E, ora bolas, gostaria que você me beijasse para
eu poder ficar quieta.
— Libby, sabe que quero você. Não fiz segredo disso. Mas diante dos
fatos... que vou partir daqui a alguns dias...
Libby lutou contra uma súbita vontade de chorar.
— É isso. Você vai embora. Não quero ficar imaginando como tudo
poderia ter sido. Quero saber. Eu sinto que... Oh, não sei o que sinto. A única
coisa que sei é que quero fazer amor com você. Hoje.
Estacou de repente, abalada com tanta sinceridade, e logo os nervos deram
lugar a uma calma absoluta, a uma certeza absoluta.
— Caleb, quero ficar com você esta noite.
Ele levantou-se, as mãos nos bolsos, tenso.
—- Quando cheguei, teria sido muito fácil. Mas tudo mudou, Libby.
Agora eu... gosto de você.
— Se gosta, por que não faz amor comigo?
— Quero tanto que chega a doer. Mas sei que você bebeu demais, e
também que não está em seu estado normal por tudo que passou em vinte e
quatro horas. Existem regras, Libby.
Ela deu o passo mais decisivo da vida ao estender as mãos para ele e
afirmar:
— Pois então, vamos quebrar todas!
CAPÍTULO VII
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Cal respirou fundo e tentou pensar com clareza.
— Libby... estou tentando me comportar como um homem do seu tempo,
compreensível. Mas não está dando certo.
— Pois prefiro que seja você mesmo. O tempo não muda tudo, Caleb —
respondeu ela. Tinha tomado uma decisão, e estava segura.
Cal sabia que o que sentia por ela era igual ao que sentira o primeiro
homem diante da primeira mulher na origem dos tempos, mas atração não era
tudo. Como explicar para Libby o turbilhão de emoções que se agitava dentro
dele? Como estabelecer a diferença sutil entre uma aventura agradável e uma
grande paixão? Tentou outra vez:
— Acho que devíamos conversar.
Lutando contra a timidez, e vencendo outra vez, Libby foi direta:
— Então não me quer?
— Imaginei dúzias de vezes como seria fazer amor com você.
— E, nessas fantasias, onde estávamos?
— Aqui. Ou na floresta. Ou a milhares de quilômetros daqui, em pleno
espaço. Perto de minha casa há um lago de águas claras, rodeado de flores
plantadas por meu pai. Vi você lá, comigo.
Doía, e muito, saber que ele voltaria àquele lago sem ela. Mas tinham o
momento presente, e era tudo o que importava. Libby avançou, sabendo que
cabia a ela dar o primeiro passo. Acariciando-lhe o rosto, convidou:
— Podemos começar por aqui. Beije-me outra vez, Caleb.
Como resistir? Como não ceder aos enormes olhos escuros, aos lábios
entreabertos? Como ignorar que ela estava a sua espera? Devagar, Cal beijou-a,
muito de leve. O desejo aflorou, urgente. Abalado, segurou-lhe os ombros,
afastando-a e pedindo:
— Libby...
— Não me faça seduzir você, porque não sei como — murmurou ela.
Rindo, apesar de tudo. Cal puxou-a contra si, escondendo o rosto nos
cabelos macios e dizendo:
— Tarde demais. Já estou seduzido.
— Verdade? Então me ensine o que vem depois — pediu, abraçando-o e
estremecendo ao sentir que ele lhe mordia o lóbulo da orelha..
— Depois... vem o prazer — e, com isso, carregou-a para cima.
Queria Libby na cama onde havia sonhado com ela. Deitou-a à luz pálida
do luar. Daria a ela tudo o que tinha. Compreendia o prazer, seus graus,
profundezas, camadas. Breve, muito breve, ela compreenderia também.
Despiu-a devagar, admirando os tornozelos finos, as pernas de louça, os
ombros arredondados. Viu que os olhos castanhos se acendiam de paixão
quando a tocava. Beijou-lhe a mão, sentindo-lhe a maciez e o gosto, e
murmurou:
— Vi você assim, mesmo quando tentava não ver.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Libby havia pensado que seria desajeitada, até mesmo passiva. Estava
deitada, nua, à luz do luar, e sentia-se linda sob a carícia dos olhos dele.
— E eu queria estar aqui com você, mesmo quando dizia que não —
respondeu, começando a despi-lo.
Cal estava decidido a ser paciente, perfeito, e muito, muito gentil. Sabia, e
sabia que ela não sabia, que havia centenas de caminhos que levavam ao prazer.
Daquela vez, da primeira vez, tomariam o caminho suave. As mãos
inexperientes fizeram-lhe o sangue ferver. Libby tinha um poder de sedução
espontâneo, irresistível. Segurou-lhe as mãos, sufocando um gemido.
— Fiz alguma coisa errada? — preocupou-se ela.
— Não, fez um pouco certo demais, desta vez. Vou querer que tire minha
roupa desse jeito, mas mais tarde. Hoje sou seu guia, vou mandar, e você
obedecer. Confie em mim.
— Confio — arquejou Libby. Ele afastou-lhe os cabelos do rosto e
começou a beijá-lo. Mordiscou o queixo, e enquanto isso roçava o corpo no
dela, as mãos tocando-a como a um violino e aquecendo-a, fazendo com que se
agarrasse a ele para não se perder naquele mar de sensações. Um longo beijo, e
os dedos sábios tocaram um ponto perto da base da espinha.
Libby arqueou o corpo e soltou um grito, logo abafado por outro beijo.
Cal sentiu-a frágil e receptiva, e pronta para recebê-lo.
Mas ainda não era o momento. Queria que aquela mulher, quase uma
visão sob o luar, seguisse com ele para mais longe, cada vez mais longe, saindo
da prata para o ouro e para o vermelho da paixão mais acesa. Começou por fazêla flutuar. Depois, voaram. Amor com Caleb era uma miríade de gostos e
sensações, uma sinfonia de sons. Tinha mãos quase que insuportavelmente
leves, em contraste com o áspero da barba crescida contra a pele fina. Libby
tocou- o, acariciou-o, descobrindo a dureza e a flexibilidade dos músculos, e
deleitando-se no poder recém-descoberto de fazê-lo estremecer.
Cal ergueu-a, e ficaram de joelhos no centro da cama, abraçados. Fez com
que se curvasse para trás e beijou-lhe o pescoço. Ela apertou mais o corpo contra
o dele, enterrando as unhas na carne. A paixão correu solta, até Cal recuperar o
controle da situação. Desceu a boca até um seio, sugando-o, mordendo-o.
Segurou a cintura fina e a fez deitar-se de costas, admirando a força com que ela
o puxou para si.
Tanto tempo. O pensamento ia e vinha na mente de Libby à medida que as
carícias a arrebatavam e traziam de volta à cama. Havia esperado tanto tempo
por aquilo, por ele. A resposta vinha completa e livre, amava-o por instinto.
Aquele homem tinha vindo do céu para lhe mostrar como era o amor na Terra.
Cal era experiente, e usava a experiência para levá-la além dos primeiros
estremecimentos de prazer, para o espaço de veludo reservado aos amantes.
Libby era inocente, mas também sabia o caminho, seu corpo sabia o que a mente
havia ignorado. Caleb penetrou-a, e ela acolheu-o dentro de si.
Corpos, corações e tempos. Tudo se fundiu naquele momento.
Além do azul do céu – Nora Roberts
70
Nuvens. Nuvens escuras, debruadas de prata. Libby flutuava numa.
Queria continuar vagando para sempre. Tinha soltado o corpo de Cal, e os
braços estavam caídos sobre os lençóis amassados. Não tinha força para um
novo abraço. Nem tinha voz. Queria lhe dizer para que não se mexesse, nunca
mais. De olhos fechados, sentindo o corpo que se adaptava tão bem ao seu,
contou cada batida do coração dele.
Seda. A pele de Libby era pura seda. Cal nunca se cansaria daquela
sensação. O rosto mergulhado nos cabelos fofos, sentiu-se voltar à terra como
uma pluma levada pela brisa. Como poderia lhe dizer que nunca havia amado
ninguém assim? Como poderia aceitar ter encontrado sua parceira num lugar e
tempo estranhos?
Sem querer pensar, Cal encostou os lábios no pescoço de Libby. Enquanto
pudesse, viveria de minuto a minuto.
— Você é tão adorável — terminou por dizer, erguendo-se num cotovelo
e contemplando-a. — Sua pele é tão quente — continuou, roçando-lhe os lábios
com os dele.
— Acho que nunca mais vou sentir frio. Caleb... você faz com que eu me
sinta...
— Como? Diga.
— Mágica. Indefesa. Forte... Oh, eu não sei.
Caleb deitou-se sobre ela.
— Vou amar você de novo, Libby, e de novo, e de novo. E a cada vez será
diferente.
A resposta de Libby foi abrir os braços para ele.
Tarde da noite, ainda estavam acordados, ouvindo o vento soprar entre as
árvores. Cal tinha razão. De cada vez era diferente, excitantes diferenças, e,
ainda assim, a mesma coisa. Libby esperava poder viver das lembranças daquela
noite.
— Está dormindo?
Acomodando-se melhor na curva do ombro dele, respondeu:
— Não.
Cal cobriu-lhe um seio com a mão, e colocou uma perna entre as dela.
— Que pena, pois queria acordar você. De um jeito especial. Ei, Libby!
— O quê?
— Falta alguma coisa.
— O quê?
— Comida.
— Não, agora?
— Agora. Não seria divertido eu ficar olhando enquanto você faz um
sanduíche?
— Quer dizer que ainda existem machistas no século XXIII?
— Que injustiça. Fui eu que fiz café de manhã.
Libby lembrou-se da bolsa prateada na nave, e protestou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Mais ou menos.
Aquela manhã parecia tão distante. Tudo havia mudado em poucas horas.
— Está bem, eu vou — disse Libby afinal, começando a se mexer, mas
Cal segurou-a pelos quadris.
— Só mais um pouquinho... — e levantaram vôo outra vez.
Mais tarde, Libby vestiu um roupão, perguntando-se se seria capaz da
tarefa simples de colocar uma fatia de presunto entre duas de pão. Sentia-se
inerte como um animal saciado, pronta para hibernar.
Cal acendeu o abajur e saiu da cama, gloriosamente nu, para dizer:
— Será que arranjaria alguns biscoitos, além do sanduíche?
— Provavelmente — e, vendo que ele ia para a porta, acrescentou: — Não
vai descer desse jeito.
— De que jeito?
— Bem... assim... — e Libby fez um gesto que abrangia todo o corpo.
Cal segurou o trinco da porta e sorriu. As alternâncias de liberação e
pudores antiquados em Libby o encantava.
— Por quê? Já deve saber como sou feito, a essa altura.
— Não é essa a questão.
— Então qual é?
Desistindo, ela apontou para as roupas esparramadas.
— Vista alguma coisa.
— O suéter? — caçoou.
— Muito engraçado, Hornblower.
— Você é tímida — sorriu ele, aceitando o jeans que ela havia se
apressado em lhe oferecer. Desceram.
— Por que não enche a chaleira? — sugeriu Libby, abrindo a geladeira.
— Com o quê?
Ela suspirou. Às vezes se esquecia de que ele vinha de outro mundo.
Explicou com paciência:
— Com água. Coloque sobre o queimador da frente e gire o botão logo
abaixo. Acende automaticamente.
Cal obedeceu, examinando o fogão, enquanto ela pegava presunto, queijo
e um tomate.
— Quer mostarda?
— Ha? Ah, sim, claro! — respondeu, distraído. Pensava na paciência
necessária para viver naquele tempo primitivo, olhando a chama lenta que
aquecia a água. Mas havia vantagens. A comida de Libby era muito melhor do
que a que estava acostumado a comer. E também era gostoso sentir madeira de
verdade sob os pés descalços e o cheiro da lenha queimando na lareira.
E também havia Libby. Não achou justo igualá-la às outras "vantagens".
Ela era diferente, única, e tudo que ele desejava de uma mulher. Perdido em
devaneios, aproximou o dedo da chama e recuou com um ai.
— O que foi?
— Nada. Queimei o dedo.
— Não brinque com fogo — repreendeu ela, c voltou a fazer sanduíches.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Tudo o que ele desejava de uma mulher? Impossível. Ele nem sabia
direito o que queria. Ou não tinha sabido, até encontrá-la.
O pensamento o fez tremer de medo. Teve a súbita certeza de ter decidido
que a queria no momento em que a vira cochilando na poltrona, na noite do
acidente. Absurdo. Nem a conhecia, então.
Não podia estar apaixonado por ela. Era atração, forte e honesta, mas
atração. Não era possível que estivesse apaixonado. Podia gostar de estar com
ela, de fazer amor, de rir e comer com ela. Gostava da sua presença, de seu
fascínio e da sensualidade, mas amor? Estava fora de cogitação.
Amor, para eles, era impossível. Amor implicava casa, família, tempo.
A chaleira começou a borbulhar, e Cal levou um susto. Estava exagerando
uma situação comum, era isso. Libby era especial para ele, seria sempre. Os dias
passados com ela se tornariam uma parte preciosa da vida, mas era essencial se
lembrar de que, para ele, a vida só começaria duzentos anos depois que Libby
deixasse de existir.
— Algum problema, Caleb?
Desviou os olhos da chaleira para ela, que segurava dois pratos, a cabeça
inclinada para o lado como sempre fazia para pensar.
— Não. Eu estava devaneando.
— Então coma. O estômago vazio dá delírios — brincou Libby,
estendendo-lhe um dos pratos.
Cal aceitou, e sentou-se para comer enquanto ela preparava o chá.
Libby pensava que a cena parecia tão natural, dois amantes levantando-se
para um lanche tarde da noite. A cabana vazia, uma coruja piando na floresta e o
luar. Nada de extraordinário, na verdade. Vendo que Cal já havia comido
metade do sanduíche, perguntou:
— Está se sentindo melhor, agora?
— Estou. Sente-se, Libby, queria lhe perguntar uma coisa.
Ela obedeceu, ajeitando o roupão e olhando-o com olhos pesados de sono,
mas atentos.
— Como é possível que eu tenha sido seu primeiro homem?
Quase engasgando no primeiro gole de chá, tossiu um pouco e
resmungou:
— Você e essa mania de ser direto. Eu não sei responder a essa pergunta.
— Por quê? Afinal, é uma mulher sensível, bonita. Outros homens devem
ter se sentido atraídos.
— Não... quero dizer, não sei. Na verdade, nunca prestei muita atenção.
— Fica sem jeito quando digo que é atraente?
— Não. Sim. Um pouco. Ora, não sei, Cal!
— É impossível que eu tenha sido o primeiro a dizer o quanto você é
adorável, cheia de calor, excitante.
Cal havia lhe segurado a mão, para evitar que ela se agarrasse à xícara de
chá como a uma tábua de salvação. Torcendo os dedos presos entre os dele, ela
insistiu:
— Não é impossível, não. Eu não saio muito com homens. Tenho de
Além do azul do céu – Nora Roberts
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estudar, de trabalhar.
— Mas estuda e trabalha no meio de homens — estranhou Cal, soltandolhe a mão.
— Sim, mas é diferente. Não sou muito expansiva, e para mim é fácil
manter distância... Às vezes me esqueço de ser social.
Cal começou a rir, mas teve medo de magoá-la. Ela parecia tão sincera.
Tentou outra abordagem:
— Acho que se subestima, Liberty Stone. Afinal, me recolheu e cuidou de
mim, e eu era um estranho.
— Não poderia largar você na chuva!
— Você, não, mas outras pessoas sim. Posso não entender muito de
história, Libby, mas duvido que a natureza humana tenha mudado tanto. Saiu no
meio da tempestade para me procurar, me trouxe para casa sem saber quem eu
era, deixou que eu ficasse mesmo quando a assustei. Se conseguir voltar para
meu tempo e lugar, será por sua causa.
Libby levantou-se para pegar uma outra xícara de chá, que não queria.
Não queria pensar em partida, mesmo sabendo que ele teria de ir. Era errado
fingir, mesmo por algumas horas, que Cal pudesse ficar com ela e se esquecer da
vida que deixara para trás. Já com a xícara na mão, virou-se para ele e conseguiu
sorrir ao dizer:
— Não acho que lhe dar uma cama e ovos mexidos seja uma grande obra
de caridade. Mas, se quiser ser grato, não vou discutir.
Cal percebeu que havia cometido uma gafe. Podia dizer pela expressão
dos olhos dela. Sorria, mas os olhos estavam tristes e escuros.
— Não quero magoá-la, Libby.
Ela desanuviou-se, e encheu também a xícara dele, sentando-se para dizer:
— Eu sei, não se preocupe. O que planeja fazer? Para voltar para casa,
quero dizer.
— Entende um pouco de física?
— Quase nada.
— Então digamos só que pus o computador da nave para trabalhar. Os
danos foram mínimos, não atrapalharão a viagem. Tenho de pedir que me leve
para o ponto de origem.
— Sim, claro. Imagino que queira ficar lá, agora que tem de trabalhar.
Seria mais prático e com certeza mais conveniente. Cal, entretanto, nem
pensou nisso, dizendo:
— Eu preferiria ficar aqui. Tenho minha aerocicleta a bordo, por isso
posso ir e vir com facilidade. Isso é, se não atrapalhar você.
— Não, imagine, não atrapalha nada. Eu só queria saber o que é
aerocicleta.
— Oh, só uma aerocicleta comum que, espero, não sofreu danos com o
acidente. Veremos amanhã. Você vai comer o resto desse sanduíche?
Libby passou-lhe a metade que não havia comido. Era ridículo, mas vez
por outra ele dizia coisas que a faziam duvidar que tudo não fosse, mesmo, um
sonho. Continuando na mesma linha de pensamento, falou em voz alta:
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Cal, acabo de pensar que não vou poder nunca falar de você, ou do
acidente, com ninguém.
Ele terminou o último bocado do sanduíche e respondeu:
— Sim, eu gostaria que esperasse até eu partir, depois ficará livre para
contar o que quiser.
Libby olhou-o, impaciente.
— Ora, não é sua permissão que estou pedindo. Diga, no século XXIII
eles têm hospícios com celas acolchoadas?
— Celas acolchoadas? É um tipo de brincadeira?
— Pelo contrário, é muito sério e provavelmente irei parar numa se eu
contar esta experiência por aí.
Libby levantou-se para tirar os pratos, e depois de uma reflexão Cal
segurou-a:
— Eu também tenho pensado se alguém vai acreditar em mim, quando
voltar.
— Ei, tive uma idéia! Eu poderia fazer uma cápsula do tempo. Escrever
tudo, juntar alguns objetos representativos da época e colocar numa caixa
vedada. Podemos enterrá-la, perto do riacho, e quando você voltar desenterra.
Que tal?
— Uma cápsula do tempo. Claro! Posso ver no computador um lugar que
não vá ser coberto por um deslizamento, ou edifício. Um lugar fácil de achar.
— Ótimo! — Libby pegou um bloco de notas na gaveta da pia,
começando a escrever.
— O que está fazendo?
— Tomando notas. Precisaremos fazer um relato de tudo, começando com
você e a nave. Deixe-me ver o que mais... Ah, um jornal, e uma fotografia de
nós dois. Vou comprar uma máquina polaróide. Depois objetos pessoais... ou
domésticos...
Foi interrompida por Cal, que, pegando-a pela cintura, puxou-a contra si
dizendo:
— Você está sendo tão científica... isso me excita.
— Deixe de ser bobo.
Ele não deixou, e beijou-lhe o pescoço.
— Cal...
— Hum?
— Eu queria... — O bloco escorregou-lhe das mãos e foi parar no
assoalho a seus pés.
— Queria o quê? Hoje pode ter tudo o que pedir, princesa.
Ela suspirou, enquanto Cal desamarrava o cinto do roupão e a despia.
— Você, Cal. Só você.
— Que bom poder atendê-la com tanta facilidade, senhorita... Ei, o que é
isto? — perguntou ele de repente, ao notar arranhões leves na pele de Libby.
Sentindo-se culpado, passou a mão no queixo, sentindo a barba.
— Libby, eu arranhei você.
— O quê? — perguntou ela, sonhadora.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Faz dias que não me barbeio, e sua pele é tão fina.
— Pois não senti nada! — Libby voltou a abraçá-lo.
— Só há uma coisa a fazer.
— Eu sei...
— Não, não sabe, sua assanhada. Tenho uma coisa a fazer... antes. — Em
seguida. Cal pegou-a no colo.
— Não precisa me carregar, posso andar até a cama.
— Talvez, mas prefiro o banheiro.
— Banheiro?
— É. Vou ter de enfrentar aquele instrumento de tortura, e você vai me
ajudar a não cortar a garganta.
Já estavam no meio da escada, e Libby tentou entender o que ele dizia:
— Instrumento de tortura? Não sabe usar um aparelho de barbear?
— Na minha terra somos civilizados. Tortura é crime punido por lei.
Chegaram ao banheiro, e Libby falou enquanto ele a punha no chão:
— Mesmo? Então suponho que as mulheres não usam salto alto, nem
cinta... Olhe, Cal, esta discussão pode ficar muito filosófica, mas é tarde. Com
licença, vou abrir este armário e... Pronto! Aqui está seu objeto abominável.
Cal olhou para a lâmina do aparelho com expressão de resignado terror.
— Certo. E o que faço com isto?
— Bem, não tenho nenhuma prática, mas acredito que vai ter de cobrir o
rosto com creme de barbear, depois correr o fio da lâmina sobre a barba.
Cal apertou o tubo e olhou para a substância branca, lembrando-se do
gosto.
— Então isto não era pasta de dente.
— Não, o que o fez pensar?... — Libby não demorou para imaginar a
cena, e curvou-se sobre a pia, rindo — Oh, pobre, pobre Hornblower.
Cal estudou o tubo. E, vingativamente, encheu a mão de creme,
espalhando-o pelo próprio rosto... e pelo de Libby também.
CAPÍTULO VIII
Libby acordou lentamente, resmungando quando o sol se intrometeu em
seus sonhos. Tentou se mexer e foi impedida por um braço que lhe envolvia a
cintura e uma perna possessiva sobre a sua. Com um suspiro de satisfação,
aconchegou-se mais contra Cal.
Não sabia as horas, e pela primeira vez na vida não estava preocupada.
Manhã ou tarde, era bom ficar na cama, cochilando, desde que fosse com Cal.
Ainda sonolenta, passou a mão nele. Sólido, pensou. Sólido e real. E, pelo
menos naquele momento, dela. Mesmo de olhos fechados podia vê-lo, cada
traço do rosto, cada linha do corpo. Nunca ninguém lhe pertencera tanto. Mesmo
Além do azul do céu – Nora Roberts
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os pais, apesar de todo amor, toda compreensão, pertenciam, em princípio, um
ao outro. Pensava neles como uma dupla da qual ela, Libby, não fazia parte. E
Sunny... sorriu ao lembrar-se da irmã. Embora fosse quase dois anos mais nova,
Sunny sempre fora independente e dona do próprio nariz, de um jeito que Libby
podia admirar, até invejar, mas nunca imitar.
Mas Cal... Era verdade que tinha apenas aparecido em sua vida, e
desapareceria depressa demais até, mas era dela, Libby. O riso, o temperamento,
a paixão... tudo lhe pertencia, ainda que temporariamente. Conservaria as
lembranças desse tempo como um avarento conserva o tesouro.
Amar daquele jeito, quando toda emoção, toda palavra e olhar tinham de
ser represados em uma questão de horas era precioso e dilacerante a um tempo.
Cal achou que estivesse dormindo, mas a forma, a textura, o perfume de
um corpo de mulher eram muito, muito reais. E o nome dela foi a primeira coisa
que lhe veio â mente ao acordar. Sentia-a contra si, perfeitamente adaptada,
mesmo adormecida. O toque leve e lento da mão dela o excitava e enchia de
ternura.
Havia perdido a conta do número de vezes que haviam se amado durante a
noite, mas sabia que amanhecia quando ela gritou o nome dele pela última vez.
A luz era difusa e perolada. Nunca a esqueceria. Libby era uma fantasia de
curvas suaves, membros ágeis e paixão incansável. Durante uma só noite ele
havia passado de professor a aluno.
Amar implicava mais do que prazeres incontáveis que um homem e uma
mulher pudessem se oferecer. Implicava paciência e confiança, generosidade e
alegria. Implicava felicidade ímpar de saber que sua parceira estaria lá quando
acordasse.
Parceira. A palavra flutuou-lhe na mente. Sua parceira. Seria fato ou
fantasia ele ter tido de viajar no tempo para encontrar uma parceira?
Não queria pensar, recusava-se. Tudo o que queria naquela hora era fazer
amor com Libby à luz do sol.
Cal virou-se e possuiu-a antes que qualquer um dos dois acordasse de vez.
O leve gemido saiu dos lábios dela e foi sufocado pelos dele. Aceitação. Afeto,
Sensualidade. Lenta, deliciosamente, moveram-se em uníssono, as mãos numa
exploração tranqüila, o beijo profundo.
— Eu amo você, Cal.
Ele ouviu as palavras, um murmúrio caridoso, e respondeu como um eco,
os lábios roçando o rosto dela.
Tinha sido fácil dizer, afinal. Nenhum deles havia dito "amo você" antes
para ninguém. As palavras foram o combustível que os levou ao auge.
Mais tarde, o rosto escondido entre os seios de Libby, Cal acordou de vez.
Ela havia dito que o amava? E ele havia repetido as palavras? Como saber,
perdido na fronteira impalpável entre o sono e a vigília, entre o prazer e o medo?
E não tinha coragem de perguntar. A resposta, positiva ou não, poderia
magoá-lo. Se não o amasse, seria como perder uma parte da alma, do coração.
Se o amasse, deixá-la seria como morrer um pouco.
Era melhor, para os dois, não ambicionar mais do que podiam. Ele queria
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fazê-la rir, encher-lhe os olhos de paixão e alegria, ouvi-las cantar na sua voz. E,
então, lembraria para sempre. Cal fechou os olhos, bem apertado. Não importa o
que acontecesse, lembraria para sempre.
E Libby também. Precisava ter certeza de seu lugar nas lembranças dela.
— Venha comigo — disse, puxando-a para fora da cama.
— Onde?
— Para o banheiro.
Libby estendeu a mão para o roupão, soltando-o em seguida e rindo.
— De novo? Não precisa fazer a barba.
— Folgo em saber.
— Então...
— Vamos tomar um banho.
E colocou-a na banheira, rindo e abrindo a torneira de água fria. Libby
soltou um grito agudo, mas Cal já havia entrado também, e ajustava a
temperatura da água. Já estava pegando prática.
Libby ergueu a cabeça, engoliu água, procurou os lábios dele e trocaram
um longo beijo molhado.
Era uma experiência nova e fascinante. O ar carregado de vapor, a pele
escorregadia, as mãos cheias de espuma. Estavam ambos tontos quando Cal
desligou o chuveiro e enrolou-a numa toalha.
— Acho que, se temos mesmo de trabalhar, é melhor sair desta casa.
— Certo.
— Depois de comer.
Libby desatou a rir.
— Sabe o que mais me encanta nesse seu futuro?
— O quê?
— Que se possa comer tanto e conservar um corpo como o seu.
Depois do almoço, quando as sombras da tarde já haviam esfriado o ar,
Libby parou em frente à nave e ajustou a jaqueta curta contra o corpo, dizendo:
— Estou aqui, olhando, e sei que é real, mas ainda não entendo esta
geringonça.
— Pois eu sinto o mesmo cada vez que olho para sua cabana. Libby, sei
que tem de trabalhar, e não quero empatar você, mas poderia esperar uns
minutos até eu verificar a aerocicleta?
— Não. Na verdade, gostaria de vê-la — respondeu Libby, disfarçando o
desapontamento por ele não ter pedido que ficasse o resto do dia.
— Volto num minuto.
Abriu a porta e desapareceu. Iria fazer aquilo novamente, dentro em
breve, e pela última vez. Teria de estar preparada. Pensou que a declaração de
amor, ouvida pela manhã, tinha sido mesmo um sonho. Cal gostava dela, mais
do que qualquer outra pessoa havia gostado, mas não tinha se apaixonado, total
e profundamente, como ela por ele.
E, por amor, ia fazer tudo o que pudesse para ajudá-lo, começando por
Além do azul do céu – Nora Roberts
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aceitar limitações. Era um dia lindo, depois da mais bela das noites. Sorrindo um
sorriso sincero, ergueu os olhos para o céu nublado. Seria uma noite chuvosa e
bem-vinda.
Quando tirou os olhos do céu, um zumbido metálico chamou-lhe a
atenção. Outra porta abriu-se na nave, uma porta de bagageiro, aparentemente.
O queixo de Libby caiu quando Cal, montado numa bicicleta aerodinâmica,
apareceu, pairando a dez centímetros do chão.
O ruído que fazia era ronronante. Tinha a forma semelhante à de uma
motocicleta, mas mais fina. Duas rodas para andar no chão, e um selim estofado
e estreito para o ciclista e acompanhante. O resto era um cilindro que se fendia
para formar o guidão.
Cal andou, ou antes, voou, para ela, e parou sorrindo, como um garoto que
exibe sua primeira mobilete. Mexendo nos controles manuais, comentou:
— Está ótima. Quer dar uma volta?
De testa franzida, Libby examinou os pequenos botões e mostradores na
junção do guidão. Parecia um brinquedo, e com isso em mente falou:
— Não sei, não.
— Ah, Libby, venha! Você vai gostar. Não vou deixar que nada lhe
aconteça — insistiu Cal, estendendo a mão.
Ela olhou para a máquina, pairando um pouco acima das agulhas de
pinheiros que forravam o chão da floresta. Era pequena, mas havia lugar para
dois no selim estreito, preto. O resto era pintado de azul-metálico, reluzente ao
sol. Parecia inofensiva, e era duvidoso que um veículo tão pequeno tivesse muita
força. Dando de ombros, montou atrás dele.
— Segure firme — avisou Cal.
A força da vibração assustou Libby.
— Hornblower, não temos de usar capacetes para... — as palavras se
perderam quando ele acelerou.
Incapaz de gritar, Libby fechou os olhos e agarrou-se às costas de Cal,
fazendo-o rir. Sentia o coração batendo contra ele, tão rápido e pesado como
durante o amor. Num movimento hábil, deu uma volta ao redor da nave e subiu
a encosta.
Velocidade fora sempre o único vício de Cal. Sentiu o ar bater no rosto,
agitar os cabelos, e acelerou mais. O céu, amante primeiro e o mais fiel,
chamou-o, mas ele resistiu, sabendo que Libby ficaria mais assustada que tudo
se subisse depressa demais. Escolheu correr pela floresta, serpenteando entre as
árvores, roçando a água, evitando as pedras. Um pássaro deixou um galho logo
acima das cabeças deles, pipilando de irritação diante daqueles humanos que
tentavam imitá-lo. O aperto de Libby relaxou um pouco, e mais e mais. Ela não
escondia mais o rosto nas costas dele.
— O que acha?
Estava quase conseguindo respirar, e o estômago tinha voltado ao lugar de
sempre. Ela abriu os olhos, com cuidado, e engoliu em seco, ameaçando:
— Assim que tocarmos o solo, você será um homem morto.
— Relaxe — a aerocicleta fez um ângulo de trinta graus para a direita,
Além do azul do céu – Nora Roberts
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depois para a esquerda, dançando entre as árvores.
"Fácil para ele falar'', pensou Libby. Outra olhada, e viu que agora
estavam bem longe do solo. Abriu a boca para ordenar que descessem, mas nada
disse. Estava voando. Não num imenso, pesado, avião a milhares de quilômetros
mas livre, leve, solta. O vento soprava no rosto, nos cabelos, trazendo um gosto
de primavera. Nada de motores barulhentos para estragar a sensação. Adejavam
pela floresta como pássaros brincalhões.
Cal parou no meio da clareira feita pela nave. Enquanto pairavam logo
acima do solo, virou-se para olhar para Libby e dizer:
— Quer que eu desça?
— Não, quero que suba — exclamou ela, atirando a cabeça para trás. Já
sentia a atração do céu.
Ele deu-lhe um beijo:
— A que altura?
— Qual é o limite?
— Não sei, mas não acho que devamos arriscar. Se subirmos muito,
alguém poderá nos ver.
Ele tinha razão. Libby afastou os cabelos do rosto, pensando que seu
senso prático se esvaía quando estava com Cal. Negociou:
— Então, até o alto das árvores. Só uma vez.
Feliz pela cumplicidade, Cal deu a volta. Esperou que ela o segurasse, e
tornaram a voar.
Ele nunca esqueceria. Mesmo que passasse o resto da vida no céu e no
espaço, nunca esqueceria como era voar com Libby. Ela ria, e o som era uma
carícia para os ouvidos, a pressão do corpo dela outra carícia. Só lamentava não
poder admirar-lhe o rosto durante a subida. Fazer amor com ela era igual, limpo
e claro como voar ao ar livre. Tão sedutor quanto desafiar a gravidade.
Resistiu à tentação de subir mais, atendo-se à copa das árvores. Lá
embaixo corria um riacho entre as pedras, e uma cascata alimentada pelas
chuvas de primavera e a neve que se derretia no alto das montanhas atirava suas
águas no vazio. O sol atravessava as nuvens, desenhando sombras móveis no
chão.
Por um momento, ambos ergueram o rosto para o céu, num pedido mudo.
Cal começou a descida, sem peso, sem barulho. Libby sentiu que seus
cabelos flutuavam, um arrepio percorreu-lhe o pescoço. Ao pousarem
maciamente, lembrou-se de Peter Pan e do pó de pir-lim-pim-pim.
— Tudo bem? — perguntou Cal, virando-se.
— Maravilhoso! Eu poderia ficar o dia todo lá em cima.
— Voar vicia, sabe? Que bom que gostou.
— Gostei? Eu adorei. Não vou nem perguntar como funciona, eu não iria
entender e, depois, talvez estragasse a festa. Agora vou embora, para que possa
trabalhar.
— Volto para a cabana ao anoitecer.
Deram-se as mãos, quase formalmente. Vendo aquilo, Libby soltou-o e
enfiou a sua no bolso, inquieta, dizendo:
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Certo. Sabe o caminho de volta?
— Sou bom navegador.
Os pássaros que haviam se assustado com a aerocicleta recomeçaram a
cantar. O tempo passava.
— Então, melhor eu ir.
Cal sabia que ela estava ganhando tempo, e aprovava a idéia, mesmo
sabendo que estariam juntos em questão de horas.
— Você poderia entrar comigo, mas aí não sei se consigo trabalhar.
Era tentador. Entrar, distraí-lo, longe do computador e das respostas por
mais algumas horas. Mas não seria honesto. Libby olhou para ele de novo, cheia
de amor e saudade antecipada:
— Eu também não rendi nada nesses últimos dias.
Cal curvou-se para beijá-la, despedindo-se:
— Então, até a noite.
Ficou olhando-a subir a ladeira, mas, ao chegar ao topo, Libby não olhou
para trás.
Libby passou a maior parte do tempo rascunhando um relato da série de
eventos da semana que passava. Usou as palavras e a teoria de Cal, para explicar
como ele havia ido parar ali, colorindo-as com suas próprias impressões. Depois
fez uma lista, caprichosa como sempre, de tudo que acontecera, desde a hora em
que vira o relâmpago no céu até deixar Cal ao lado da nave.
Era a parte mais simples, relatar fatos. Tinha uma memória impecável.
Sabia que isso seria uma faca de dois gumes depois que ele partisse, mas no
momento em que estava tinha de ser objetiva e dedicar ao relatório a mesma
competência que dedicava à tese.
Acabou e releu tudo, com pequenas correções. Pensou o quanto aquilo era
rotineiro, olhando a tela do computador. Quando Cal apresentasse a experiência
aos cientistas do seu tempo, queria que o fizesse da maneira mais profissional
possível.
Uma história fantástica, no sentido literal da palavra. Talvez, no século
XXIII, não fosse tão fantástica assim. Como seus contemporâneos reagiriam ao
ouvir a história? O explorador acidental, pensou Libby, sorrindo. Bem, Colombo
estava indo para a Índia ao descobrir o Novo Mundo.
Gostava de pensar que Cal seria tratado como uma espécie de herói, que o
nome dele entraria nos livros da história ao lado do de Marco Polo.
Reclinando-se, pensou que ele bem que parecia um herói. Deixou que os
óculos escorregassem para a ponta do nariz, não precisava deles para imaginar.
Alto, forte. A atadura na testa lhe dava um ar meio pirata, mesmo depois que
havia raspado a barba.
Talvez Cal não passasse de um homem comum de seu tempo. Um
homem, prosseguiu devaneando, que trabalhava como os outros, que odiava
levantar cedo, que ocasionalmente bebia demais ou esquecia de pagar contas.
Não era rico, genial, ou loucamente bem-sucedido. Era simplesmente Caleb
Hornblower, um homem que, ao errar o caminho de casa, tinha se tornado
extraordinário.
Além do azul do céu – Nora Roberts
81
Para ela, ele jamais seria um homem, e sim o homem.
Voltaria a amar alguém? Não, pensou Libby, com a calma da certeza
absoluta. Iria se contentar com o trabalho e a família, com as lembranças. Amar
de novo seria impossível. Desde criança acreditava que só havia no mundo um
homem para ela. Talvez por isso tivesse sido tão fácil se concentrar nos estudos
e na carreira, enquanto suas colegas pulavam de relacionamento em
relacionamento, de paixão em paixão.
Libby odiava cometer erros. Era um defeito, com certeza, e um pecado,
aquele orgulho, mas sempre havia detestado a idéia de dar um passo em falso,
pessoal ou profissionalmente. Baseada nisso havia estudado mais que a maioria
das pessoas, pesquisado com mais seriedade, considerado com mais cautela.
Tinha compensado, refletiu, ao apertar alguns botões e ver a tese que
aparecia na tela. Era bem jovem para o grau de sucesso alcançado. E pretendia
conseguir muito mais.
Era velha, talvez, para estar se apaixonando pela primeira vez. Mas
cautela e cuidado não a haviam deixado se perder. Amar Cal nunca seria um
erro.
Consolada, empurrou os óculos para o alto do nariz, abriu os dedos sobre
o teclado e começou a trabalhar.
Cal foi encontrá-la horas depois, a postura esquecida, absorta numa
cultura tão estranha para ela quanto a dela era para Cal. Tinha ligado a lâmpada
fluorescente quando escurecera, e a luz caía sobre suas mãos.
Mãos fortes, capazes, pensou Cal. Provavelmente herdadas da mãe artista.
As unhas eram curtas e sem esmalte, nas pontas dos dedos longos. Uma leve
cicatriz, quase apagada, circundava a base do polegar. Cal pensou em perguntar
a origem.
Achava que devia estar cansado, não física, mas mentalmente; por causa
dos números e cálculos, mas ao ver Libby a fadiga tinha desaparecido.
Tinha dado um jeito de não pensar nela durante a tarde, num esforço
deliberado para não largar tudo e voltar correndo. Havia dado resultado, e tinha
quase certeza do que fazer para voltar para casa. Conhecia as possibilidades e os
riscos. Olhando para Libby, conheceu o sacrifício.
Conhecia-a muito mal, forçou-se a pensar. A vida não estava ali, com ela.
Tinha uma casa, uma identidade. E uma família, que o amava.
No entanto, continuava parado olhando para Libby, absorvendo cada
sopro, cada gesto descuidado. A forma dos cabelos se enroscarem na nuca, o
jeito como os pés calçados só de meias batiam, impacientes, cada vez que os
dedos faziam uma pausa. De vez em quando descansava o queixo nas palmas
das mãos, fixando a tela com os olhos apertados. Cada movimento era uma festa
para os olhos de Cal. Quando finalmente chamou-a, foi com voz opressa:
— Libby!
Ela se assustou e girou a cadeira. O corredor escuro mostrava apenas uma
silhueta, encostada descontraidamente no batente da porta. Libby quase
desmaiou de amor.
— Oh! Não ouvi você entrar.
Além do azul do céu – Nora Roberts
82
— Você quando trabalha, trabalha mesmo.
— É... E o seu trabalho, rendeu?
— Rendeu.
— Não está com boa cara, Libby. Alguma coisa deu errado?
Ele avançou mais dentro do quarto, tocou-lhe a face, os olhos se
adoçaram.
— Não. E os seus cálculos?
— Vão indo. Na verdade, fiz mais progressos do que esperava.
Uma sombra passageira escureceu os olhos castanhos, mas a voz era
animada quando ela falou:
— Puxa, que bom. Voltou de aerocicleta?
— Sim. Deixei-a atrás do barracão.
Uma pergunta estúpida, repreendeu-se Libby. Com um veículo daquele.
Cal não voltaria a pé. Queria pedir que a amasse, naquela hora, ao surgir da lua.
O vento já soprava mais forte, anunciando chuva. Mas Cal parecia cansado e
triste. Olhando em volta, como que para criar coragem, Libby disse:
— Bem, deve estar com fome. Vamos descer?
Ele segurou-lhe a mão, e o computador, ainda ligado, foi esquecido.
— Podemos descer mais tarde. Gosto de ver você de óculos.
Rindo, ela colocou a mão no rosto, para tirá-los, mas Cal impediu o
movimento, segurando-a.
—- Não, não tire. Gosto desse ar... inteligente e sério — comentou,
beijando-a.
— Eu sou inteligente e séria.
Cal prosseguiu as carícias enquanto dizia:
— Sei disso. Mas fico com vontade de desmanchar essa pose intelectual.
Colando os lábios aos dela, murmurou:
— Libby!
— Diga!
— O que sabe me dizer sobre os homens de lama da Nova Guiné?
Num sopro, ela respondeu:
— Nada. Nada de nada. Por favor, me beije, Caleb.
— É o que estou fazendo.
— Agora me toque.
— É o que vou fazer.
Nunca era o que ela havia imaginado. Cal a desmanchava com um simples
toque de mãos. Começou a despi-la, desabotoando a camisa de flanela, abrindo
o jeans, puxando-a para a cama. Por baixo, uma camiseta branca, de algodão.
Cal achou-a fascinante, segurou a malha macia com prazer, tirando-a por sobre a
cabeça. Com os lábios e as mãos, redescobria segredos.
Delirante, Libby livrou-o do suéter. Era maravilhoso ver que o amor,
como a sede, se manifestava com a mesma intensidade por mais que fosse
saciado. Agora sabia que Cal a levaria ao mesmo ponto, seguindo rotas
previsíveis apenas pela imaginação.
A pele dele era lisa, macia. Era bom correr as mãos sobre ela e sentir a
Além do azul do céu – Nora Roberts
83
dureza dos músculos que cobria. Era bom ver o desejo cada vez mais forte
agitar-lhe a respiração.
Ser tão desesperadamente querida... Libby sentia, pelo modo como ele a
tocava, pela boca que procurava a dela para beijos cada vez mais ardentes. As
línguas se misturavam, eróticas, trocando sabores raros.
Incapaz de resistir mais, Cal a fez deitar-se na cama, transformando os
gemidos de excitação num grito primitivo de prazer. Libby agarrou-se às
cobertas tão enlouquecida quanto ele.
Daquela vez não houve sedução, tentativas. O desejo surgiu maduro e cru,
correndo para a satisfação. Os corpos se uniram num ritual de vida onde cada
um buscava a própria morte, a fim de existir no outro.
As nuvens de veludo deram lugar à tempestade. Excitante, cheia de
eletricidade. Libby, num movimento abrupto, rolou o corpo sobre o dele,
depositando beijos de fogo no pescoço, no peito, sentindo o gosto escuro e forte
da pele suada.
Cal queria mais, sempre mais. Via o corpo de Libby à luz baça da
lâmpada fluorescente sobre a mesa, e o suor lhe dava um brilho sobrenatural. Os
olhos pareciam dourados, como uma moeda antiga. Tributo para uma deusa. Era
uma deusa que se erguia sobre ele, o corpo voltado para trás como um arco, os
cabelos aureolados de luz.
Pensou que morreria por ela, morreria sem ela. Libby o tomou, como uma
deusa aceita uma oferenda. Estendeu as mãos, e os dedos hirtos se entrelaçaram.
E os pensamentos deixaram de existir.
Ficaram abraçados, mesmo depois que os tremores os abandonaram por
completo. Cal tentou se lembrar do que havia feito, o que Libby havia feito, mas
as sensações torrenciais se confundiam, como uma foto com excesso de luz
borra as imagens.
— Libby!
A resposta foi uma cabeça que se acomodou melhor sobre seu peito.
Libby gostava de ouvir o coração batendo sob o rosto.
— Desculpe — disse ele, acariciando-lhe os cabelos, ternamente.
Ela abriu os olhos, cheia de dúvidas.
— Desculpe por quê?
— Não sei o que aconteceu. Nunca tratei outra mulher assim.
— Não? — Cal não podia ver o sorriso que acompanhou a pergunta.
— Não. Não sei o que me aconteceu e...
Ela ergueu os olhos.
— Você está sorrindo?
— Estou.
— Por quê?
— Porque, Hornblower, se você tivesse tratado qualquer outra mulher do
jeito como acaba de me tratar, eu teria de me tornar uma assassina.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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CAPÍTULO IX
Na manhã seguinte, depois de se servir da segunda xícara de café, Libby
perguntou-se se o fato de enfrentar um novo dia diante do computador parecer
tão terrível teria algo a ver com o fato de estar apaixonada. Cal, sentado a sua
frente, parecia padecer do mesmo dilema, enquanto, tendo terminado as suas,
avançava no que restara das torradas de Libby.
Ele parecia preocupado, a mesma preocupação demonstrada na noite
anterior, antes de dormirem. Mais uma vez, na madrugada, Libby teve a certeza
de que tinha algo a dizer, algo que ela temia ouvir.
Queria descobrir um jeito de encorajá-lo, de aliviá-lo do peso de saber
quando se separariam. Suspirando, refletiu que o amor a estava enlouquecendo.
A noite tinha sido chuvosa, uma chuva longa, silenciosa, que havia durado
até o amanhecer. O dia ensolarado tinha uma luz etérea, com nesgas de neblina
junto ao chão.
Um bom dia para não trabalhar, passear sem destino no bosque, fazer um
amor preguiçoso debaixo do cobertor. Só que nada daquilo ajudaria Cal a voltar
para casa.
— Acho melhor você ir para a nave — sugeriu Libby, sem entusiasmo.
Cal assentiu com a cabeça, levantou-se e abriu a porta, enchendo a
cozinha com o canto dos pássaros. Falou:
— Eu estava pensando em voltar para o almoço. Sua comida é tão mais
gostosa do que a que tenho na nave que...
O sol brilhou mais forte para Libby, que concordou:
— Faça isso.
"Tudo tão normal", pensou ela. "Cal sair assim, com um beijo,
prometendo voltar para o almoço. Melhor assim, que a separação se faça
lentamente, como se fôssemos mesmo um casal comum."
Subiu, carregando uma xícara consigo, e trabalhou horas nervosamente,
culpando o excesso de cafeína por isso. Não queria aceitar que estava nervosa
porque Cal tinha parecido quieto e pensativo demais. Ambos tinham muito em
que pensar. E ele estaria de volta logo, portanto, como restava pouco tempo,
seria mais interessante parar de trabalhar e fazer almoço. Um almoço bem
caprichado. Desceu a escada pensando no cardápio, e ao chegar à sala ouviu o
ruído de um carro.
Visitas? Não se lembrava de ter recebido visitas ali, com exceção de Cal.
Um pouco aborrecida, abriu a porta da frente, e foi tomada pela surpresa.
— Oh, meu Deus! Mamãe! Papai! — E saiu, feliz, para cumprimentar o
casal que descia de uma caminhonete pequena e mal conservada.
— Liberty —exclamou Caroline Stone, com seu riso rouco e braços
abertos num gesto teatral. Vestia-se quase identicamente à filha: jeans
Além do azul do céu – Nora Roberts
85
desbotados e um suéter grande demais. Mas, ao contrário da lã vermelha de
Libby, Caroline era uma sinfonia de tons de cores tecidos por ela mesma. Usava
dois brincos pretos de pingente, na mesma orelha, e um colar de turmalina que
cintilava à luz da tarde.
Libby beijou o rosto da mãe, sentindo a pele macia, sem sombra de
maquiagem.
— Mamãe! O que veio fazer aqui?
— Bem, eu morava aqui, lembra-se? — respondeu ela, e beijou a filha de
novo, sob o olhar sorridente de William. Ali estavam duas das mulheres mais
importantes da vida dele. E, embora uma geração as separasse, notou com
orgulho que a esposa não parecia muito mais velha que a filha. Eram tão
parecidas que a maioria das pessoas achava que fossem irmãs. Puxando Libby
para um abraço, reclamou:
— E eu? Não ganho nada da minha menininha, a doutora?
— Ganha, sim. Um beijo para meu pai, o executivo.
— Não espalhe, Libby, e deixe-me olhar para você.
Sorrindo, ela retribuiu o exame carinhoso. O pai ainda usava os cabelos
mais compridos do que a moda pedia, se bem que as ondas louro-escuras
tivessem um toque de branco, assim como a barba. Fora as pequenas mudanças
trazidas pelo tempo, era ainda o jovem entusiasmado que a carregava nos
ombros através da floresta.
William Stone era muito alto, magro, desajeitado. Tinha faces encovadas
e olhos claros e cinzentos transbordantes de sinceridade.
— E então, o que acha? — perguntou Libby, exibindo-se numa pirueta.
William passou o braço pêlos ombros da esposa e deu o veredito.
— Nada mal. Fizemos um belo trabalho com as duas primeiras, Caro.
—— Um trabalho excelente, eu diria, mas que história é essa de "duas
primeiras"?
Foi Caroline quem respondeu, pegando alguma coisa na caminhonete:
— Você e Sunbeam, amor. Quer me ajudar a levar os mantimentos?
— Mas eu... mantimentos. — Mordendo o lábio, Libby viu que os pais
tiravam pacotes do carro. Vários pacotes. Tinha de contar a eles... alguma coisa.
Criou coragem, e, quando o pai colocou dois sacos pesados de papel pardo em
seus braços, disparou:
— E eu gostaria... isto é... eu tenho de dizer que... não estou sozinha.
— Que ótimo.
Com essa observação distraída, William pegou outro saco. Perguntou-se
se a mulher teria visto o pacote de batatas chips que havia comprado escondido.
Claro que sim, concluiu. Ela nunca perdia nada. Continuou para Libby:
— Sempre gostamos de conhecer seus amigos, menina.
— É, eu sei, mas este...
— Caro, não se sobrecarregue. Leve um saco só.
Vendo que não estava se fazendo entender, Libby bloqueou a passagem
do pai, e ouviu a porta de tela bater quando a mãe entrou. Tentou outra vez:
— Papai, eu preciso explicar — "O quê? Como?", prosseguiu o
Além do azul do céu – Nora Roberts
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pensamento.
— Estou ouvindo, Libby, mas fale depressa porque estes pacotes estão
pesados.
— É sobre Caleb.
O nome chamou a atenção do pai.
— Caleb de quê?
— Hornblower. Caleb Hornblower. Ele está... aqui. Ha... comigo.
William ergueu uma sobrancelha, inclinou a cabeça para um lado e disse
apenas:
— Oh, é mesmo?
Caleb Hornblower, que estava lá, com Libby, estacionou a aerocicleta
atrás do barracão e foi para a casa, convencendo-se de que estava certo. Não
havia nada demais em fazer um intervalo para almoçar, e o computador tinha
ficado ligado, trabalhando. Já havia consertado a maior parte das peças
danificadas da nave, e dentro de um, no máximo dois dias, estaria pronto para
levantar vôo.
Tinha todo o direito de passar uma hora ou duas com uma mulher bonita e
excitante. Não estava perdendo tempo.
E o sol girava em torno dos planetas, como sempre.
Nervoso, entrou pela porta da cozinha, e sorriu ao vê-la, agachada, de
costas, remexendo na gaveta da geladeira. Já sem sombra de mau humor,
caminhou na ponta dos pés e agarrou-a com firmeza, intimamente, pelos
quadris.
— Meu bem, eu nunca sei qual lado seu gosto mais.
— Caleb?
A exclamação atônita não veio da mulher que ele acabava de fazer girar
entre os braços, e sim da porta que ia para a sala. Cal voltou a cabeça e viu
Libby, a boca aberta, os olhos saltando fora das órbitas, os braços cheios de
pacotes de supermercado. Ao lado dela estava um homem alto e magro, com
cara de poucos amigos.
Lentamente, Caleb girou a cabeça de volta e viu que abraçava uma mulher
também muito atraente, se bem que mais velha do que a que esperava.
A desconhecida deu-lhe um lindo sorriso e disse:
— Olá! Você deve ser o amigo de Libby.
Depois de vários ensaios, Cal conseguiu responder.
— Sim. Devo ser.
— Talvez você devesse soltar minha mulher, para ela poder fechar a
geladeira — sugeriu William.
Obedecendo de imediato, e dando um passo atrás. Cal disse:
— Mil perdões, eu pensei que a senhora fosse Libby.
— E você costuma agarrar minha filha pela...
— Papai — cortou Libby, despejando os pacotes sobre a mesa. O começo
não havia sido dos mais promissores. e precisava consertar logo as coisas. —
Além do azul do céu – Nora Roberts
87
Este é Caleb Hornblower. Ele está... passando alguns dias comigo. Cal, estes são
meus pais, William e Caroline Stone.
Cal não tinha outra escapatória a não ser enfrentar os fatos. Enfiando as
mãos nos bolsos, declarou:
— Prazer em conhecê-los. Libby se parece muito com a senhora.
Caroline sorriu outra vez, tentando ajudá-lo. Estendeu a mão e brincou:
— Já me disseram, se bem que nunca com exemplos, como você fez.
Will, que tal se livrar dos pacotes e cumprimentar o amigo de Libby?
Will estava sem pressa. Antes, queria avaliar o homem. Boa aparência,
sem dúvida. Feições fortes, olhos firmes. O tempo diria mais. Estendeu a mão e
gostou do aperto frio e seguro.
— Hornblower, é isso?
Cal nunca havia sido tão examinado desde que entrara para a ISF.
Respondeu, sério:
— Sim. Devo pedir desculpas de novo?
— Não, uma vez basta — concedeu William, sem maiores comentários.
— Eu ia começar a fazer o almoço — interveio Libby, para aliviar o
clima.
— Boa idéia, mas eu faço. E você me dá uma mão, William — adiantouse Caroline, tirando uma couve-flor fresca de um dos sacos. E encontrou as
batatas chips e um vidro de salsichas picantes que William havia
"contrabandeado" no meio dos produtos naturais.
— Mas eu... — tentou reclamar o pai de Libby.
— Você pode fazer chá.
— Eu adoraria um pouco de chá — disse Libby, sabendo que seria uma
maneira segura de agradar ao pai. E, puxando Cal pela mão, avisou que
voltariam logo. Assim que chegaram na sala, virou-se para ele e perguntou:
— E agora? O que vamos fazer?
— Como assim?
Abafando uma exclamação de impaciência, Libby andou até a lareira,
dizendo:
— Temos de dizer alguma coisa a eles, e não podemos contar que você
acabou de vir do século XXIII.
— Não, melhor não contar mesmo.
Dividida, Libby empurrou um tronco de lenha com o pé e disse:
— Mas eu nunca minto para eles. Não consigo.
Cal foi até ela e segurou-lhe o queixo.
— Deixar alguns pequenos detalhes de fora não é mentir.
— Pequenos detalhes? Como o fato de você vir me visitar numa nave
espacial?
— É um bom exemplo.
Ela fechou os olhos. Devia ser engraçado, talvez achasse graça, dali a
cinco ou dez anos, mas naquela hora...
— Hornblower, a situação já seria... desconfortável mesmo que você não
fosse de onde... ou antes de quando é.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Que situação?
Cada vez mais impaciente, Libby fez um gesto de impotência com a mão,
tentando explicar:
— São meus pais, esta casa é deles e você e eu somos...
— Amantes — ajudou Cal.
— Dá para falar mais baixo?
Cal apertou-lhe os ombros, suavemente.
— Libby, eles já devem ter adivinhado. Afinal, eu quase beijei sua mãe na
geladeira.
— E quanto a isso...
— Pensei que fosse você.
— Eu sei. Ainda assim...
— Libby, entendo que não tenha sido a maneira mais tradicional de
conhecer seus pais, mas acho que, de nós quatro, quem levou o maior choque fui
eu.
Ela não pôde deixar de rir ao concordar:
— Talvez.
— Fui, sim. Assim sendo, acho que devemos simplesmente passar à etapa
seguinte.
— Que seria?...
— Almoçar.
Libby baixou a cabeça, desanimada. Com certeza amava a capacidade de
Cal de apreciar as coisas simples, mas tudo tinha um limite, por isso...
— Hornblower, eu gostaria de enfiar na sua cabeça dura que a situação é
delicada. O que nós vamos fazer? Se me perguntar de novo "como assim?" leva
um soco.
Cal segurou o rosto dela entre as mãos, dizendo:
— Você tem uma língua afiada. Vamos ver se é corajosa também nas
ações.
Libby não chegou a protestar, ele fechou-lhe a boca com os lábios antes.
Afinal, pensou, tudo aquilo parecia mais um sonho. E, nos sonhos, quando a
gente acorda tudo está normal.
Uma tosse longa e repreensora interrompeu o beijo. Libby separou-se
abruptamente de Cal e olhou para o pai.
— Ah...
— Sua mãe mandou avisar que o almoço está pronto — disse Will,
medindo Cal de alto a baixo antes de voltar para a cozinha.
— Acho que ele já está começando a gostar de mim — brincou Cal.
Na cozinha, William expressava outras idéias:
— Aquele homem está sempre agarrando uma das minhas mulheres.
Caroline riu com vontade, sacudindo os brincos.
— Uma de suas mulheres, francamente, Will! E, na verdade, ele tem
lindas mãos.
— Procurando encrenca, mocinha? — perguntou Will, engrossando a voz
e abraçando a esposa.
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Caroline lhe deu um beijo provocante antes de ir até a porta, dizendo:
— Sempre, meu querido. Ei, vocês dois, venham! Fiz uma salada.
Havia quatro pratos na mesa, em esteiras tecidas por Caroline. No centro,
uma mistura de verduras e ervas, além de bananas-da-terra, croutons de pão
integral e molho de iogurte. A mãe de Libby não acreditava em carne, conservas
e nada que não fosse estritamente natural.
Passando a travessa de salada para o visitante, Caroline começou a
conversa:
— Então, Cal... você também é antropólogo?
— Não, sou piloto — disse ele, ao mesmo tempo que Libby respondia por
sua vez:
— Cal é motorista de caminhão.
Libby engoliu o resto da frase, enquanto Cal se servia da salada,
calmamente, contente de fazer a vontade dela e dizer a verdade:
— Transporte de carga, principalmente, é o que eu faço. Libby acha que
não passo de um motorista de caminhão dos ares.
— Você voa? — quis saber William, tamborilando os longos dedos
esguios na mesa.
— Sim. É tudo o que sempre quis fazer.
Caroline inclinou-se, atenta, com a vivacidade que nunca a abandonava,
para dizer:
— Deve ser maravilhoso. Sunbeam, nossa outra filha, está fazendo um
curso de pilotagem. Talvez você possa dar uns palpites.
Libby, que passava a salada para a mãe, comentou entre divertida e
afetuosa:
— Sunny está sempre fazendo algum curso. É boa em tudo. Primeiro
aprendeu a saltar de pára-quedas e decidiu que o passo seguinte seria aprender a
voar.
— Faz sentido — disse Cal, olhando para Caroline. "Caroline Stone",
pensou, não pela primeira vez. A artista genial do século XX. Era tão incrível
quanto estar almoçando com Vincent Van Gogh ou Voltaire. Mas, antes de ser a
famosa Caroline Stone, era a mãe de Libby, por isso teria de ser tratada
normalmente.
— A salada está uma delícia, sra. Stone — elogiou.
— Caroline, obrigada — corrigiu-o, olhando para o marido e sabendo que
ele teria preferido as salsichas, batatas chips e cerveja gelada. Depois de mais de
vinte anos, ainda não havia conseguido converter o marido, o que não a impedia
de continuar tentando.
— Estou convicta de que a nutrição adequada é o que conserva a cabeça
atenta e aberta. Li um estudo, faz pouco tempo, que dizia que a dieta apropriada
e exercícios estão diretamente ligados a uma vida mais longa. Se cuidássemos
melhor de nossos corpos, poderíamos viver mais de cem anos.
Reparando na expressão do rosto de Cal, Libby deu-lhe um ligeiro
pontapé por baixo da mesa. Tinha a impressão de que ele estava prestes a
informar que as pessoas, normalmente, viviam mais de cem anos.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Qual é a vantagem de viver tanto se a gente tem de comer folhas e
gravetos? — começou William, mas, notando o olhar arrevezado da mulher,
apressou-se a acrescentar: — Não que estas folhas que estamos comendo não
sejam deliciosas...
— Vou deixar que coma um doce de sobremesa — consolou-o Caroline,
beijando-o no rosto. Depois passou a travessa para Cal, que notou os seis anéis
que brilhavam nos dedos.
— Quer repetir, Cal?
— Sim, obrigado. Eu admiro seu trabalho, sra. Stone — respondeu ele,
enchendo o prato, com o apetite que nunca deixava de surpreender Libby.
— É mesmo? Você tem alguma peça?
— Não, estão... fora do meu alcance — disse ele, lembrando-se da
exposição especial que vira no museu.
— De onde você é, Hornblower?
Cal voltou a atenção para o pai de Libby, que acabava de fazer a pergunta.
— Filadélfia.
— Quer dizer que seu trabalho é viajar de um lado para outro.
Sem conseguir conter um sorriso, Cal concordou:
— Mais do que o senhor imagina.
— Você tem família?
— Meus pais e meu irmão mais novo ainda estão lá... lá no leste.
Alguma coisa nos olhos e na voz de Cal, quando falou da família, fez com
que William começasse a simpatizar um pouco com ele.
"Chega", pensou Libby, "chega!" Empurrou o prato, pegou a xícara de chá
com as duas mãos e recostou-se na cadeira, os olhos no pai.
— Se tiver um formulário à mão, estou certa de que Cal pode preenchê-lo.
Assim você poder saber a data do nascimento e o número da carteira de
identidade, também.
— Você está ficando impertinente, não está? — comentou Will,
interrompendo a trajetória de uma garfada de salada.
— Eu sou impertinente.
Will deu-lhe tapinhas na mão, consolando-a:
— Somos o que somos, filhinha. Diga, Cal, a que partido político você
pertence?
— Pai!
William riu de lado e puxou a filha para o colo, dizendo:
— Eu estava brincando. Sabe, Cal, ela nasceu aqui.
— Sim, ela contou — disse Cal, vendo Libby passar o braço pelo pescoço
do pai.
— Costumava brincar pelada ali perto da porta enquanto eu capinava.
Libby riu sem querer, apertando mais o pescoço do pai:
— Monstro!
— Posso perguntar o que ele acha de Dylan?
Libby continuou apertando-lhe o pescoço, fingindo estrangulá-lo.
— Não.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Bob Dylan, o cantor e compositor, ou Dylan Thomas, o poeta? — quis
saber Cal, ganhando um olhar ferino de William e outro de surpresa de Libby,
que só então se lembrou de que ele gostava de poesia.
— Os dois — decidiu William.
— Dylan Thomas era brilhante mas deprimente. Prefiro ler Bob Dylan.
— Ler?
— As letras das músicas, pai, as letras. E agora, que tal me dizer o que
vieram fazer aqui?
— Queríamos ver a filhinha.
Libby beijou-lhe a bochecha, logo acima da barba, por saber que em parte
era verdade.
— Eu vi vocês quando voltei do Pacífico Sul. Tente de novo.
Olhando para a mulher, William começou:
— E eu queria que Caro respirasse ar fresco. Nós dois achamos que o ar
daqui funcionou bem das duas primeiras vezes, e que valia a pena tentar de
novo.
— Do que está falando, afinal?
— Que este lugar é bom para o estado de sua mãe.
Libby levantou-se, rápida, e segurou a mão da mãe, perguntando:
— Estado? Você está doente? Qual é o problema?
— Will, você não sabe falar sem rodeios. Ele está tentando dizer que
estou grávida, Libby.
Libby sentiu os joelhos enfraquecerem.
— Grávida? Mas como?
— E você ainda diz que é cientista — murmurou Cal, ganhando com a
frase a primeira gargalhada de Will.
— Mas...
Libby estava ainda sob a influência do impacto, e não se incomodou com
o comentário. Olhou do pai para a mãe. Eram jovens, pouco mais de quarenta
anos, e saudáveis. E era muito comum que casais tivessem filhos aos quarenta
anos. Mas aqueles eram seus pais. Ainda um pouco tonta, falou:
— Vocês vão ter um bebê. Não sei o que dizer.
— Experimente dizer "parabéns!" — sugeriu William.
— Não. Sim, quero dizer. Preciso me sentar — disse Libby, sentando-se
no chão, entre as duas cadeiras. E ainda respirou fundo, três vezes.
— Como está se sentindo? — perguntou Caroline.
— Estonteada. E você, mamãe?
— Com dezoito anos... embora tenha convencido Will a não fazer ele
mesmo o parto aqui na cabana, como foi com você e Sunny.
— Esta mulher esqueceu os valores da juventude — resmungou Will, que,
no fundo, também preferia um obstetra e hospital. Virou-se para a filha:
— E então, o que acha, Libby?
Ela ergueu-se nos joelhos, para abraçá-los, dizendo:
— Acho que devemos comemorar.
William levantou-se, foi até a geladeira e tirou uma garrafa, dizendo:
Além do azul do céu – Nora Roberts
92
— Pois estou um passo adiante, veja: sidra de maçã com gás.
A rolha pulou com o som festivo da bebida. Fizeram brindes a cada um,
ao bebê, à ausente Sunny, ao passado e ao futuro. Cal acompanhou-os, animado.
Ali estava outra coisa que não havia mudado, pensou. A felicidade que um
futuro bebê levava a quem o queria.
Ele mesmo nunca pensara muito seriamente em formar uma família. Sabia
que quando a hora e a mulher certa chegassem o resto se resolveria por si.
Naquele momento flagrou-se imaginando como seria se ele e Libby estivessem
brindando um filho deles.
Pensamentos impossíveis e perigosos. Tinha apenas alguns dias, ou
mesmo horas, para passar com ela, e famílias eram para toda a vida.
Os pensamentos então se desviaram dos pais de Libby para os seus.
Estariam olhando para o céu, tentando imaginar onde ele estaria? Se pelo menos
pudesse avisar que estava bem...
— Cal?
— Ah? O quê? Oh, desculpe — respondeu, despertado dos pensamentos
pelo chamado de Libby.
— Eu estava dizendo que devíamos acender o fogo.
— Claro.
Caroline deu o braço ao marido e comentou:
— Um dos meus lugares prediletos nesta casa é a frente da lareira. Estou
tão contente por termos resolvido passar uma noite aqui.
— Uma noite? — repetiu Libby.
Caroline decidiu na hora, e deu um apertão no braço do marido para que
não contestasse, explicando:
— Estamos indo para Carmel. Eu estava com vontade de ver o mar.
— Ela sentiu foi vontade de comer cheeseburger em vez de brotos de
alfafa. Foi assim que descobri que estava grávida — interveio William.
Sorrindo para o marido, Caroline continuou:
— E a gravidez me permite um cochilo depois do almoço. Por que não
vem junto, amor?
Saíram abraçados, e, subindo a escada, Will foi dizendo:
— É, é uma boa idéia, uma soneca. Carmel? Eu pensei que fôssemos
passar uma semana aqui. Desde quando decidimos ir para Carmel?
— Desde que vimos que dois é bom, quatro é demais, seu bobo.
— Pode ser, mas não resolvi ainda se gosto da idéia de Libby estar aqui
com ele.
— Libby gosta — declarou Caroline, entrando no quarto e enchendo-se de
recordações. As noites e manhãs partilhadas. Naquela cama tinham feito amor,
discutido política, planejado maneiras de salvar o mundo. Ali ela havia rido,
chorado e dado à luz. Sentou-se na beirada e correu as mãos pela colcha. Quase
conseguia ouvir o murmúrio das lembranças.
Will, as mãos nos bolsos de trás do jeans, foi até a janela.
Caroline sorriu para as costas magras, lembrando-se dele aos dezoito
anos. Mais magro ainda, ainda mais idealista, e maravilhoso igualmente. Sempre
Além do azul do céu – Nora Roberts
93
haviam amado aquele lugar, terem sido crianças ali, e ali criado suas próprias
crianças. Mesmo com as mudanças da vida, nunca haviam perdido a certeza
tranqüila de quem e o que eram. Caroline o entendia, ouvia-lhe os pensamentos
como se fossem seus.
Will começou a resmungar:
— Um piloto de carga. E que raio de nome é Hornblower? Alguma coisa
nele. Caro, não sei bem o quê, me parece falsa.
— Não confia em Liberty?
Ele se voltou, ofendido:
— Claro que sim. Não confio é nele.
Caroline colocou a mão em concha no ouvido e brincou:
— Ah! o eco dos tempos! As mesmas palavras que meu pai usou para se
referir a você.
— Ele não sabia avaliar as pessoas — protestou Will, olhando de novo
para fora da janela.
—— Quase nenhum homem sabe, quando se trata das escolhas feitas
pelas filhas. Ainda me lembro de você dizendo a meu pai que eu sabia cuidar da
minha vida. Vejamos... será que foi da primeira ou da segunda vez que ele pôs
você para fora de casa?
Ele teve de sorrir, retomando onde Caroline havia parado:
— Das duas. Ele disse que você voltaria em seis meses e que eu acabaria
vendendo margaridas numa esquina. Acabamos com ele, não foi?
— Isso aconteceu há quase vinte e cinco anos.
Will passou a mão pela barba.
— Não fique lembrando o tempo todo. Diga, não incomoda você eles
estarem aqui... juntos?
— Quer dizer, eles serem amantes?
Estremecendo e voltando a colocar as mãos nos bolsos, o pai de Libby
concordou:
— É. Ela é nossa filhinha.
— Pois também me lembro de você ter dito uma vez que fazer amor era a
expressão mais natural de afeição e confiança entre duas pessoas. Que os
problemas sexuais teriam de ser erradicados se o mundo quisesse mesmo
conhecer a paz e boa vontade.
— Eu nunca disse isso.
— Claro que disse. Foi um dia em que estávamos agarrados no banco de
trás de seu carrinho, embaçando as janelas.
Ele teve de sorrir.
— E parece que deu certo.
— Deu, principalmente porque eu já havia decidido que queria você. Foi
o primeiro homem que amei, Will, e estava certa. Venha até aqui, segure minha
mão. Aquele homem lá embaixo é o primeiro que Libby amou. Ela sabe que está
certa. Não, não comece a protestar. Criamos as meninas para ouvirem a voz do
coração. Acha que foi errado?
Will colocou a mão sobre a barriga já um pouco saliente da esposa e
Além do azul do céu – Nora Roberts
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declarou:
— Não. Vamos criar este aqui do mesmo jeito.
— Ele tem olhos expressivos e meigos, Will. Quando olha para Libby, é
com amor.
— Você sempre foi uma romântica incurável. Foi assim que a agarrei.
— E me conservou — murmurou Caroline, boca contra boca.
— Certo — e Will brincou com a barra do suéter, sabendo como seria
fácil despi-lo, e exatamente o que encontraria sob ele.
— Caro, você não está com tanto sono assim, está?
Com uma risada, ela atirou-se para trás, puxando-o consigo.
Fora da casa, Libby deixou-se cair na grama ao lado do riacho, dizendo:
— É tão estranho. Pensar que meus pais vão ter outro filho. Pareciam bem
contentes, não?
Cal sentou-se ao lado dela e concordou:
— Muito, a não ser quando seu pai ficava fazendo caras feias para mim.
Libby riu e descansou a cabeça no ombro dele.
— Desculpe. Na verdade, ele costuma ser muito mais simpático.
— Vou acreditar em sua palavra. — Cal arrancou uma folha de capim.
Não tinha muita importância o pai de Libby gostar dele ou não. Logo partiria,
afinal.
Libby adorava ficar perto da água, que corria fria e cristalina sobre as
pedras. A grama era alta e macia, salpicada de florzinhas azuis. No verão
haveria rabos-de-gato, da altura de um homem, curvando-se sobre o leito do
riacho. Haveria lírios do campo e junquilhos. Ao pôr-do-sol veados viriam
beber, e, às vezes, um urso, pescar.
Libby não queria pensar no verão, e sim naquela primavera, quando o ar
era tão fresco quanto a água. Na floresta mais adiante esquilos apostavam
corrida. Ela e Sunny tinham conseguido fazer vários deles virem comer em suas
mãos.
Aonde quer que fosse, para ilhas remotas, postos avançados no deserto,
ela sempre lembraria, agradecida, aqueles primeiros anos de vida.
— Imagine só, depois de tantos anos, talvez eu tenha um irmão. Bebê de
sorte!
Cal pensou em seu próprio irmão, Jacob, temperamental, inteligente e
impaciente, e ponderou:
— Pois eu sempre quis ter uma irmã.
— É... não chega a ser ruim, mas elas sempre parecem ser mais bonitas
que a gente.
Cal a fez rolar pela grama.
— Gostaria de conhecer essa sua Sunbeam. Ai! — E esfregou a cintura,
onde Libby o havia beliscado.
— Concentre-se em mim.
Cal apoiou-se num braço para estudar o rosto de Libby sob o seu,
Além do azul do céu – Nora Roberts
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dizendo:
— Pois não tenho feito outra coisa. Preciso voltar à nave...
Ela tentou valentemente não demonstrar tristeza. Tinha sido tão fácil
fingir que não existia nave nenhuma, nem o dia seguinte.
— Não tive chance de perguntar como vai indo.
"Rápido", pensou ele. "Rápido demais." Em voz alta, respondeu:
— Vou saber melhor quando verificar o computador. Pode inventar uma
desculpa para seus pais se eu não tiver voltado quando eles levantarem?
— Vou dizer que você está meditando no bosque. Meu pai vai adorar.
— Está bem. E, à noite... vou me concentrar em você — disse Cal,
beijando-a de leve.
— Só vai poder se concentrar, mesmo. Vou botar você dormindo no sofá.
— Ah, é?!
— Não tenha a menor dúvida.
— Nesse caso... — Cal escorregou sobre ela.
Muito mais tarde, durante a noite, quando o fogo estava baixo e a casa
silenciosa, Cal permanecia sentado no sofá, vestido. Já sabia como voltar e
como reverter o processo que o trouxera até ali.
Com mais alguns reparos, basicamente desnecessários, estaria pronto para
partir, tecnicamente. Mas, emocionalmente... nunca havia se sentido tão
dividido.
Se Libby lhe pedisse para ficar... Mas ela não faria isso, tinha certeza,
assim como ele não lhe pediria para ir junto.
Talvez, quando voltasse e fornecesse os dados para o mundo da ciência,
um novo meio, menos perigoso, pudesse ser criado para conquistar o tempo.
Talvez pudesse voltar.
Olhou para o fogo na lareira. Mais fantasias. Libby estava enfrentando a
realidade, e ele tinha de fazer o mesmo.
Ouviu passos na escada, e virou-se esperando ver Libby. Mas quem
desceu foi Will.
— Não consegue dormir? — perguntou a Cal.
— Não. E você?
Por amor à filha, ele estava disposto a fazer um esforço: se não
conseguisse ser simpático, seria, pelo menos, educado.
— Sempre gostei das noites da serra. O silêncio, a escuridão. Nunca
pensei que pudesse viver em outro lugar.
— Eu nunca imaginei viver num lugar assim ou como seria difícil ir
embora.
— Bem longe de Filadélfia.
— Muito.
A afirmação soou tão triste que Will amoleceu um pouco. Tirou da
prateleira a garrafa de conhaque e dois cálices e convidou:
— Quer uma bebida?
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Quero, obrigado.
William acomodou-se na cadeira onde Libby dormira na primeira noite,
esticando as pernas compridas.
— Eu costumava ficar aqui à noite, tentando descobrir o sentido da vida.
— Descobriu?
— Algumas vezes sim, outras não.
Havia sido mais fácil, estranhamente, quando suas preocupações maiores
eram a paz mundial e a reforma social. Aproximando-se da meia-idade, que
sempre parecera tão cinzenta e distante, olhava naquele momento para Cal
lembrando-se de que já fora jovem, muito mais jovem do que o homem com
quem estava conversando, com a cabeça nas nuvens e todo amor numa mulher.
"Os tempos mudam", pensou, "como na canção de Bob Dylan", e balançou o
cálice.
— Você está apaixonado por Libby?
— Era o que eu me perguntava quando você desceu.
William bebeu um gole de conhaque. Uma dúvida sincera era melhor do
que uma certeza falsa.
— E achou resposta?
— Nenhuma muito tranqüilizadora.
— Sabe, Cal, antes de conhecer Caro eu pensava em entrar para um
monastério tibetano. Ela tinha acabado de sair do colégio. O pai dela queria me
dar um tiro.
Cal sorriu. Estava começando a apreciar a bebida.
— Pois saiba que fiquei aliviado ao ver que você não tinha trazido armas.
— Sendo de natureza pacifista, só pensei nisso de passagem. O pai de
Caro ainda não desistiu. Não vejo a hora de contar que a engravidei de novo —
riu William, saboreando a idéia.
— Libby espera que seja menino.
— Ela disse? Foi a primeira. Cada filho é um milagre, mas a primeira... é
especial.
— Libby é um milagre. Mudou a minha vida.
William prestou mais atenção. Hornblower pode não saber, pensou, mas
sem dúvida está apaixonado. Comentou:
— Caro gosta de você. Ela sabe ver dentro do coração das pessoas. E eu
só queria dizer que Libby não é tão forte quanto parece. Tome cuidado com ela.
E com isso levantou-se, com medo de estar sendo paternal demais.
Aconselhou Cal:
— Durma. Caro com certeza vai se levantar com o sol para fazer
panquecas de trigo integral ou vitamina de iogurte. É o único defeito, para um
homem como eu que gosta de ovos com bacon. Você ganhou pontos por ter
comido aquele picadinho de tofu com berinjela.
— Estava ótimo.
— Não é à toa que ela gosta de você. Will foi até o primeiro degrau da
escada e parou para dizer:
— Sabe? Tenho um suéter igual ao seu. Sem disfarçar o sorriso, Cal
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97
respondeu:
— É? Que mundo pequeno.
CAPÍTULO X
Na manhã seguinte, Libby levantou-se e saiu da cabana pela porta da
cozinha, para encontrar a mãe.
— Sabia que você ia acordar cedo — saudou-a.
Caroline suspirou, decepcionada consigo mesma por ter perdido o nascer
do sol, e respondeu:
— Nem tão cedo assim. Estou ficando preguiçosa de uns meses para cá.
— Enjôo? — quis saber Libby.
Abraçando a filha pela cintura, Caroline sorriu:
— Não. Parece que todos os meus três filhos resolveram me poupar. Já
lhe agradeci por não ter me dado enjôo?
— Não.
— Então estou agradecendo agora, tome um beijo. Você está com
olheiras. Que tal um passeio, para ver se o ar fresco dá um jeito nelas?
— Eu gostaria, sim.
Começaram a andar, os guizos do brincos e pulseira de Caroline
produzindo um tintilar alegre. "Tudo tão parecido com a infância", pensou
Libby. As árvores, o céu, a cabana silenciosa atrás delas. E tanta coisa havia
mudado. Descansou a cabeça no ombro da mãe por um instante.
— Lembra de como costumávamos passear assim, você, Sunny e eu?
Caroline riu, olhando os galhos que formavam um túnel verde sobre elas,
e contestou:
— Lembro-me de andar com você. Sunny nunca andou. Do momento em
que ficou em pé começou a correr, seguida por nós duas, como estamos fazendo
agora.
"E como seria a nova criança?", perguntou-se Caroline em pensamento, já
entusiasmada com as possibilidades.
— E aí nós colhíamos flores ou frutinhas, para que o papai pensasse que
estávamos ocupadas em algo produtivo.
— Parece que nossos homens estão preguiçosos hoje.
Vendo que Libby não respondia, Caroline esperou até o silêncio voltar a
parecer natural. A floresta estava cheia de sons, o roçar de animais pequenos nos
arbustos, o canto dos pássaros voando. Depois disse:
— Gostei do seu amigo, Libby.
— Fico feliz com isso, queria que gostasse dele — respondeu, curvandose para pegar um graveto, que quebrou em pedacinhos. Era um gesto nervoso
que Caroline conhecia bem. Sunny teria despejado de uma vez tudo o que sentia,
mas Libby, sua filha quieta e sensata, guardava muito para si.
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— É mais importante que você goste dele, filha.
Percebendo de repente o que estava fazendo, Libby jogou fora o resto do
graveto e virou-se para a mãe:
— Gosto, e muito. Ele é bom, engraçado, forte. O tempo que passamos
juntos tem sido maravilhoso para mim. Nunca acreditei que fosse encontrar
alguém que me fizesse sentir o que Caleb faz.
Caroline tocou o rosto da filha, numa carícia breve.
— Mas não sorri quando diz isso. Por quê?
— Porque... porque a felicidade que sentimos agora... é transitória.
— Não entendo. Transitória por quê? Se você está apaixonada por ele...
— Eu estou, mamãe. Muito apaixonada — murmurou Libby.
— Então qual é o problema?
Libby respirou fundo. Era impossível explicar, mas tentaria:
— Ele tem de voltar para a família.
— Para Filadélfia?
— Sim... para Filadélfia — confirmou, com um sorriso triste.
— Eu não sei por que isso deveria fazer diferença, pois... — começou
Caroline, e subitamente parou, colocando a mão no braço de Libby e indagando:
— Oh, querida, ele é casado?
Seria para rir se a mãe não parecesse tão preocupada. Apressou-se em
desfazer o engano:
— Não, nada disso. Caleb jamais seria infiel. É muito difícil de explicar,
mas posso dizer que desde o começo nós dois sabíamos que ele teria de voltar...
para onde veio e que eu teria de ficar.
— Alguns milhares de quilômetros não interferem se duas pessoas
querem ficar juntas.
— As vezes a distância é bem maior do que parece... Mas não faça essa
cara, mamãe. Posso dizer com a maior sinceridade que eu não me arrependo do
tempo que passei com Cal. Quando eu era pequena havia um pôster na cabana,
você se lembra? Dizia mais ou menos assim: "Se você tem um amor, e esse
amor quer partir, deixe que ele se vá. Se ele não voltar, é porque nunca lhe
pertenceu".
— Pois nunca gostei daquele pôster — resmungou Caroline.
Desta vez Libby riu com gosto, e propôs:
— Sabe de uma coisa, vamos colher flores?
Horas depois, Libby e Cal acenaram para os pais que partiam, William
dirigindo a caminhonete malcuidada e os brincos de Caroline balançando
quando ela colocou a cabeça para fora, para mandar o último beijo.
— Gostei dos seus pais.
Libby abraçou-o:
— Eles também gostaram de você.
— Sua mãe, pode ser — admitiu ele, inclinando-se para um beijo.
— Meu pai também.
— Se me dessem um ou dois anos para tentar, talvez ele pudesse, aos
poucos...
Além do azul do céu – Nora Roberts
99
— Ele não fez nenhuma carranca hoje.
— Não. Limitou-se a franzir a testa. O que vai dizer a eles?
— Sobre o quê?
— Sobre eu não ficar aqui, com você.
— Vou dizer que você foi para casa — esclareceu Libby, com tanta
desenvoltura que Cal se ressentiu.
— Só isso?
— Eles não vão insistir se eu não quiser. E será mais simples para todo
mundo se eu falar a verdade.
— Qual é a verdade?
— Que não deu certo, que você foi cuidar da própria vida, e eu da minha.
— Sim, acho que é a melhor solução. Fingir que não aconteceu nada de
sério, só um namorico.
— Por que está irritado? Tem alguma idéia melhor?
— Não, achei a sua fantástica. E tenho de ir para a nave.
— Eu sei. Estou pensando em ir até a cidade comprar a máquina
fotográfica e algumas outras coisas. Se chegar cedo passo pela nave, para ver
como vai o trabalho.
— Tudo bem — esbravejou Cal, magoado e irritado por se sentir tão mal,
enquanto Libby parecia aceitar o destino com tranqüilidade e até bom humor.
Antes de pensar mais, agarrou-a, beijando-a com fúria.
Libby lutou bravamente para manter o equilíbrio, tanto físico como
emocional. As mãos de Cal percorreram-lhe o corpo, possessivas, mais com
raiva do que com amor.
— Caleb — começou a dizer quando ele a soltou com a mesma
brusquidão.
— Talvez isso lhe dê um pouco em que pensar — disse ele, fazendo meiavolta e saindo sem mais uma palavra.
Libby levou a mão nos lábios que ele havia mordido. Que tipo de carícia
era aquela? Nervosa, sentindo-se ofendida, sem merecer, decidiu que seguiria o
conselho e pensaria em poucas e boas para lhe dizer. Voltou para dentro da casa,
batendo a porta, e, momentos depois, tornou a batê-la ao sair, carrancuda, para
entrar no jipe.
O trabalho de Cal rendeu muito, o que, longe de agradá-lo, enfureceu-o
ainda mais. Tecnicamente poderia partir em vinte e quatro horas. A nave estava
consertada, os cálculos feitos em conjunto com o computador, os mais precisos
possível, diante das circunstâncias. A nave estava pronta, o dono não.
Quanto a Libby, com certeza estava preparada para as despedidas, para
mandá-lo embora, pensou Cal, dando os últimos retoques. Na verdade, estava
ansiosa para vê-lo pelas costas. Àquela hora devia estar na cidade, comprando a
máquina para tirar algumas fotos de lembrança antes de se livrar dele. Desligou
a soldadora a laser e verificou o trabalho.
Por que Libby tinha de ser tão prática e decidida?
Além do azul do céu – Nora Roberts
100
Porque era assim mesmo, lembrou-se, tirando os óculos de segurança. Era
uma das coisas que mais admirava nela. Prática, calorosa, inteligente, tímida.
Ainda podia ver o brilho dos olhos castanhos na primeira vez que havia dito que
a desejava. Um brilho dourado de confusão.
E, quando a tocara, Libby tinha ficado quente e trêmula. Era tão macia,
tão incrivelmente macia. Resmungando, ele guardou o laser no compartimento
de ferramentas junto com os óculos e bateu a porta. Não podia imaginar um
homem no universo capaz de resistir àqueles olhos, ou àquela pele, ou àquela
boca sexy...
Era uma parte do problema, admitiu, andando a esmo pela nave. Os
homens não resistiriam. Talvez ela nunca tivesse reparado antes. Talvez tivesse
vivido sempre metida entre os livros, o trabalho e as teorias das tendências
sociais do homem enquanto espécie. Um dia iria tirar aqueles óculos do nariz,
olhar em volta e perceber que havia homens, de carne e osso, olhando para ela.
Homens que podiam fazer promessas, pensou, arrasado. Mesmo que não
tivessem intenção de cumpri-las.
Talvez Libby nunca tivesse percebido quanta paixão, quanta sensualidade,
quanto poder possuía. Mas ele havia aberto as portas, e, uma vez que partisse,
outros homens cuidariam do fogo que ele havia acendido.
Só pensar naquilo o deixava louco, admitiu mais uma vez, correndo as
mãos pelos cabelos. Louco a ponto de ser levado para uma daquelas celas
acolchoadas de que Libby havia falado. Não podia agüentar sequer a suposição
de outra pessoa tocando, beijando Libby. Despindo-a.
Entrou no camarote com intenção de arrumá-lo, mas só conseguiu jogar
roupas e objetos de um lado para outro.
Estava sendo egoísta e injusto. E não dava a mínima! Era verdade que
teria de aceitar o fato de que a vida de Libby continuava, e que incluiria um ou
mais amantes, um marido, talvez, e filhos. Tinha de aceitar aquilo. Mas morreria
antes de aceitar passivamente.
Depois de chutar um sapato para o canto, enfiou as mãos nos bolsos e
olhou para a foto da família. Concentrou-se no rosto dos pais como nunca havia
feito antes. Fazia três... não, quatro meses, que não os via. Sem contar os
séculos...
Eram pessoas atraentes, de expressão forte, apesar do rosto levemente
abatido do pai. Guardava deles a impressão de que sempre haviam vivido
satisfeitos com a vida que levavam. Gostava de imaginá-los seguros, em casa:
sua mãe com os olhos mergulhados em algum livro técnico, enquanto o pai
cuidava das flores.
Cal tinha herdado o nariz da mãe. Aproximou-se para verificar melhor,
nunca havia reparado antes. Aparentemente ela estava satisfeita com o próprio
nariz e não se incomodara de passá-lo adiante para o filho.
E para Jacob também, percebeu, ao partir para o estudo da imagem do
irmão. Mas para Jacob ela também havia passado a mente brilhante. O que não
era um dom tão invejável, pois a inteligência excessiva tornara Jacob explosivo,
contestador e impaciente. Lembrou-se de ter ouvido a mãe dizer que J.T., o
Além do azul do céu – Nora Roberts
101
apelido que lhe davam em família, gostava mais de brigar do que de respirar.
Cal decidiu que com certeza herdara o temperamento mais estável do pai.
Só que, naquele momento, não se sentia nada estável.
Sentou-se na cama, com um suspiro, dizendo para as imagens na
fotografia:
— Vocês gostariam dela, queria que pudessem conhecê-la.
Nunca, que se lembrasse, havia tido vontade de apresentar uma namorada
à família. Talvez fosse o resultado de ter passado o dia com os pais de Libby.
Esfregou as mãos no rosto, sabendo que desperdiçava tempo em vez de
trabalhar. Já deveria ter partido, mas tinha se prometido mais um dia. Tinham de
preparar a cápsula do tempo de Libby... se é que ela ainda quereria falar com
ele.
Era provável que estivesse zangada por causa da cena daquela manhã.
Espreguiçando-se, pensou que não faria tanto mal assim. Melhor zangada do que
sorridente, apressando-o para ir embora. Olhou o relógio. Ela deveria voltar
dentro de duas horas, mais ou menos.
Melhor seria dormir ali para compensar a longa, frustrante e insone noite
que havia passado no sofá. Ligando uma fita de ninar ao lado da cama, fechou
os olhos e desligou-se.
"Idiota", ia pensando Libby, enquanto manobrava o jipe na trilha sinuosa
que a levaria para casa. "Idiota e convencido!" Era melhor que tivesse uma
explicação para quando se vissem de novo. Por mais que matutasse, não via
motivo para aquele beijo quase violento, que ele lhe dera ao sair.
Pensou numa vizinha de Portland, casada duas vezes e que dizia que os
homens não eram criaturas sensatas.
Pois Libby pensava o contrário, pelo menos do homem como espécie.
Descrito no papel, era lógico. Pela primeira vez, estava pessoalmente envolvida
com um representante de carne e sangue do gênero masculino, e estava também
perplexa.
Derrapou o jipe, por culpa do mistério que se chamava Caleb Hornblower.
Talvez tivesse algo a ver com a visita dos pais. Ou não, pois lembrava-se
de que ele já estava melancólico pela manhã, antes de William e Caroline
chegarem. "Melancólico mas não furioso", pensou melhor, e tinham feito um
amor tranqüilo e lento, ao lado do riacho, naquela tarde. Durante o jantar Caleb
parecia animado, um pouco introvertido, o que era natural. Devia ser muito
difícil para ele conviver com pessoas com quem não podia se abrir
completamente.
Sentiu uma pontada de simpatia, que afastou para dar livre vazão à raiva.
Não era motivo para descarregar as frustrações nela. Afinal, só queria ajudar,
não queria? Com a morte na alma, estava fazendo tudo o que podia para vê-lo de
volta onde ele queria estar.
E também tinha de pensar na própria vida. Aquilo a consolou um pouco,
enquanto subia uma ladeira. Devia estar escrevendo a tese e fazendo os planos
Além do azul do céu – Nora Roberts
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preliminares para o próximo estudo de campo. Tinha de pensar se aceitava ou
não dar um ciclo de conferências para o qual havia sido convidada. E, em vez
disso, servia de menina de recados, comprando máquinas fotográficas e
biscoitos de aveia. "Pela última vez", decidiu irritada, para só depois se dar
conta de que seria, mesmo, a última vez.
Parou o jipe onde a trilha se transformava numa picada. Não havia tido a
intenção consciente de ir encontrar Caleb. Durante a viagem tinha se prometido
voltar à cabana e trabalhar. E, no entanto, lá estava, levada pela emoção. Pelo
menos uma coisa, então, poderia fazer por si mesma.
Num impulso, pegou a polaróide nova de dentro da sacola de compras.
Tirou-a da caixa, leu as instruções e carregou-a com o primeiro dos filmes que
havia comprado. E pegou também o pacote de biscoitos crocantes de aveia.
Do alto da ladeira estudou a nave, deitada, enorme e silenciosa sobre as
pedras e árvores derrubadas, como um estranho animal adormecido. Parou de
pensar no homem lá dentro e concentrou-se no veículo.
"A nave do futuro", brincou, em pensamento, enquadrando-a no visor.
"Todos a bordo para Marte, Mercúrio e Vênus. Viagens expressas para Plutão e
Orion." E, sorrindo, tirou duas fotos. Sentada no alto da ladeira, ficou olhando a
revelação. "Há cinqüenta anos", pensou, "a idéia de fotografias instantâneas era
ficção científica." Olhou para a nave. Os homens trabalhavam depressa. Muito
depressa.
Precisando de mais alguns momentos de preparação antes de enfrentar
Cal, abriu o pacote de biscoitos e começou a comer um.
Não teria oportunidade, jamais, de mostrar a alguém a foto que já tomava
forma em sua mão. Uma era para a cápsula, mas a outra iria para seu arquivo
pessoal. Queria acreditar que a Libby cientista havia tirado a foto, e iria rotulá-la
junto com outras, por interesses científicos, apenas.
Mas sabia que aquilo nada tinha a ver com ciência, e tudo com o coração.
Não queria confiar apenas na memória.
Guardou as fotos no bolso, pendurou a máquina a tiracolo e começou a
descer.
Ao chegar à porta, ergueu a mão e riu. Será que era costume bater à porta
de um veículo espacial? Com uma sensação de estar sendo anacrônica, bateu
duas vezes. Um esquilo passou correndo e resolveu parar no tronco de uma
árvore caída para encará-la. Libby dirigiu-se a ele, como Alice aos animais do
País das Maravilhas:
— Sei que é esquisito, e por favor não conte para ninguém.
Atirou metade de um biscoito para o bichinho e tornou a bater, gritando
desta vez:
— Vamos lá, Hornblower, abra! Estou me sentindo como uma idiota aqui
fora.
Tentou bater mais forte, com os punhos, gritou. Um chute mais forte fez o
pé de Libby doer, e deu um passo atrás. Furiosa com Cal, estava quase voltando
quando lhe ocorreu que ele talvez não pudesse ouvi-la.
Chegando mais perto, começou a procurar o dispositivo que ele havia
Além do azul do céu – Nora Roberts
103
usado para abrir a porta. Demorou dez minutos, e quando finalmente a
geringonça cedeu entrou espumando, pronta para brigar:
— Escute aqui, Hornblower, eu...
Ele não estava na ponte de comando. Frustrada, Libby afastou os cabelos
do rosto. Será que aquele homem impossível nunca estava por perto quando
queria gritar com ele?
O que, na falta de nome melhor, Libby chamou de pára-brisa estava
aberto. Era muito alto para ser visto de fora, mas de dentro fornecia uma
estupenda vista panorâmica.
Atraída, foi até o painel de controle. Como seria, perguntou-se ocupando
uma das cadeiras, pilotar uma nave tão grande, com tanta potência? Examinou
os botões e alavancas a sua frente. Não era à toa que Cal gostava da máquina.
Mesmo uma mulher como ela, de pés firmemente plantados no chão, podia
imaginar a liberdade ilimitada de viajar através do espaço. Haveria planetas,
bolas de cor e luz. O cintilar das estrelas distantes, a incandescência das luas
orbitais.
Gostava de pensar em Cal ali, serpeando entre as estrelas como haviam
feito de aerocicleta, entre as árvores.
Libby deu um último olhar para os controles, para de pois fixar-se no
computador. Meio sem jeito, olhou em volta da ponte deserta antes de se
inclinar e dizer:
— Computador?
— Em funcionamento.
Levou um susto, e engoliu um riso nervoso. Queria fazer duas perguntas,
mas só uma resposta na verdade a interessava. Por acreditar que os fatos devem
ser enfrentados, inspirou, expirou e mergulhou.
— Computador, em que ponto estão os cálculos para a jornada de retorno
ao século XXIII?
— Cálculos completos. Índice de probabilidade formulado. Fatores de
risco, trajetória, impulso, grau da orbita, velocidade e fatores de sucesso
estabelecidos. Vai querer o relatório?
— Não.
Então ele tinha terminado. Libby sabia, mesmo enquanto tentava se
convencer que teria mais alguns dias com Cal. Ele não havia contado, mas
Libby achava que entendia por quê.
Não queria magoá-la, e sabia, era impossível não saber, exatamente como
Libby se sentia. Por mais que tivesse tentado tratar o relacionamento deles como
um momento isolado no tempo, uma aventura gratificante e passageira. Cal
podia ver através dela, e queria ser gentil.
Libby ia mostrar que estava feliz por ele. Tinha de mostrar, porque
sacrifício fazia parte do amor. Infelizmente.
Depois de um minuto de preparação, repetiu a pergunta que havia feito a
seu próprio computador:
— Computador?
— Em funcionamento.
Além do azul do céu – Nora Roberts
104
— Quem é Caleb Hornblower?
— Hornblower, Caleb, capitão da ISF, reformado. Nascido a 2 de
fevereiro de 2222, filho de Katrina Hardesty Hornblower e Byram Edward
Hornblower. Local de nascimento, Filadélfia, Pensilvânia. Formado na
Academia Wilson Freemont, 2237. Freqüentou a Universidade de Princeton,
saindo depois de devêsseis meses, sem diploma. Entrou para a ISF. Serviu de
2239 a 2245. Segue currículo militar...
Muito atenta, Libby ouviu a leitura da carreira militar de Cal. Muitos atos
heróicos, muitas advertências disciplinares. A ficha de piloto era impecável, já a
de disciplina deixava muito a desejar. Não pôde deixar de sorrir.
Lembrou-se do pai e da desconfiança que nutria quanto ao sistema militar.
"Sim", pensou, "com um pouco de tempo, ele acabaria por gostar muito de Cal."
— Nível de vida, 5.8 — continuou o computador.
— Pare — ordenou Libby. Não estava interessada no nível de vida de Cal.
Já havia bisbilhotado demais na vida pessoal dele, e, se queria outras respostas,
pediria ao interessado. E rápido.
Levantou-se e saiu à procura dele.
A música a guiou. Ouviu-a a princípio, distante e adorável, com uma vaga
curiosidade. Clássica e apaixonada. Enquanto a seguia, tentou identificar o
compositor.
Encontrou Cal adormecido no camarote. A música enchia todo o
ambiente, leve, calma, sedutora. Libby teve vontade de deitar também, esperar
que ele acordasse e fazer amor.
Culpa da música, decidiu. Tinha alguma coisa de erótica, como um beijo.
Mas não podia deixar-se influenciar, afinal estava zangada. E, mesmo assim,
tirou uma foto de Cal dormindo, escondendo-a em seguida no bolso,
envergonhada.
Encostou-se no batente da porta, levantou o queixo, numa pose
propositalmente desafiadora, e falou bem alto:
— Então é assim que você trabalha.
Ele não acordou. Libby pensou se devia sacudi-lo, mas teve uma idéia
melhor: levou dois dedos à boca, inalou e deu um assobio alto e estridente, que
havia aprendido com Sunny.
Cal levantou-se como um foguete, gritando:
— Alerta vermelho! — e só então viu Libby. Deixou-se cair na cabeceira
estofada, passando a mão pêlos olhos.
Estava sonhando. Solto no espaço, através da galáxia, senhor dos
controles da nave e vendo os mundos que corriam a milhares de quilômetros
abaixo dele. Libby estava lá, a seu lado, abraçava-lhe a cintura, fascinada e
maravilhada pelo vôo.
Então, no sonho, algo havia dado errado. A nave se sacudia, as luzes
piscavam, alarmes disparavam. Ouviu-a gritar quando começaram a cair. Não
sabia o que fazer, sua mente era um vazio total, e não estava conseguindo salvar
Libby.
E lá estava ela, enquanto o coração de Cal ainda disparava por efeito do
Além do azul do céu – Nora Roberts
105
sonho, com ar de valente e pronta para a briga.
— Por que assobiou?
— Porque pareceu ser o meio mais eficiente de acordar você. Ouça o que
lhe digo, Hornblower, se continuar trabalhando desse jeito vai ter uma estafa.
— Foi só um intervalo, não dormi bem a noite passada.
— Que pena — soou a voz indiferente de Libby, que, sem parar de fitá-lo,
pegou um biscoito no pacote que ainda carregava.
— O seu sofá está cheio de buracos.
— Vou mandar consertar. Talvez por isso tenha se levantado com o pé
esquerdo, não? 'Caiu pelo buraco — prosseguiu Libby, dando pequenas
mordidas no biscoito.
— Não sei o que quer dizer com isso.
— Levantar com o pé esquerdo? É uma expressão.
— Eu ouvi. Não levantei com pé esquerdo nenhum. E seu queixo está sujo
de farelo de biscoito.
— Bem, então imagino que você seja naturalmente grosseiro, e só fingiu
não ser nos primeiros dias.
— Não sou grosseiro.
— Não? Então, que tal arrogante?
Cal sacudiu a cabeça, disposto a resistir às tentativas de Libby para irritálo, e olhou o relógio, dizendo:
— Você ficou bastante tempo na cidade.
— O tempo é meu, Hornblower.
— Ei, Libby, está procurando briga?
Ela arregalou os olhos e arredondou a boca, tornando-se a imagem da
inocência, para dizer:
— Eu? Ora, Caleb, depois de conhecer meus pais deveria saber que sou
pacifista de nascença. Fui ninada com canções folclóricas sobre os desastres da
guerra.
Cal murmurou uma opinião, uma palavra de duas sílabas que Libby
pensava ser uma gíria exclusiva do século XX. Intrigada, inclinou a cabeça,
dizendo:
— Então esta ainda é a resposta quando alguém não encontra uma saída
inteligente ou espirituosa. É bom saber que certas tradições sobrevivem.
Cal jogou as pernas para fora da cama e, os olhos fixos em Libby, ergueuse lentamente. Ficou em pé, parado, para se acalmar. Nunca havia notado antes
que o queixo de Libby tinha o formato quadrado geralmente atribuído às pessoas
teimosas. Nem que os olhos de avelã eram capazes de tanta malícia e
impertinência.
— Você está me pressionando, garota. Creio que é meu dever informá-la
que não venho de uma família particularmente pacífica.
Com toda a calma, Libby escolheu outro biscoito.
— Puxa, que medo isso me dá.
Fechou o pacote e atirou-o para Cal sem avisar, de modo que, ao segurálo, ele amassou metade do conteúdo. Libby continuou, impassível:
Além do azul do céu – Nora Roberts
106
— Não sei que tipo de sangue corre em suas veias, Hornblower, mas
tenho mais o que fazer do que me preocupar. Pode ficar aqui emburrado, se
quiser, mas eu vou voltar ao trabalho.
Mal conseguiu fazer meia-volta. Cal agarrou-lhe os braços e a apertou
contra a parede, movendo-se com a rapidez de um gato. Aproximando muito os
olhos dos dela, falou, enquanto Libby se sentia como um rato apanhado por um
gato.
— Quer saber o que está errado comigo? A provocação foi toda por isso,
Libby?
Sem baixar a cabeça, ela respondeu:
— Pouco me importa o que esteja certo ou errado com você. Só quero que
pare de se comportar como um troglodita do século XXIII.
— Pois este troglodita vai lhe mostrar outra tradição que sobreviveu.
— Duvido.
Mas o olhar com que ela disse aquilo mostrava exatamente o contrário, e,
incapazes de continuar com a briga, deixaram que os atos tomassem o lugar das
palavras. A tensão arrefeceu, os corpos se juntaram e, abraçados, cobriram a
curta distância que os separava da cama.
CAPÍTULO X
Libby não conhecia e não aceitou a nova maneira com que Cal queria
amá-la. A cama cedeu ao peso deles, envolvendo-os como um casulo. A música
continuava, calma e bela, mas as mãos dele abriram-lhe os botões da camisa
com rudeza.
Ela não falou. Não teve idéia de pedir que parasse, ou de ceder às
lágrimas que com certeza o teriam feito voltar a si. Lutou, empurrando-o,
dividida entre o coração, que lhe dizia que estavam fazendo tudo errado, e o
corpo traiçoeiro, que faria qualquer coisa para ficar perto do de Cal.
Mas, se continuasse, Libby o odiaria depois. As boas lembranças seriam
substituídas por uma única, de violência, dominação, perversidade.
Cal, por sua vez, estava irritado, magoado, com ciúme, e no entanto sabia
que Libby não era responsável por nenhum daqueles sentimentos. Tinha-a sob
si, fisicamente mais fraca, e teria sido fácil dominá-la, possuí-la de uma vez por
todas, como um caçador que se considera com direito sobre a presa.
Tudo aquilo passou-lhe pela cabeça durante o curto tempo que levou para
tirar a roupa de Libby. Entretanto, ao ver o corpo esguio e tenso, indefeso sob
suas mãos, caiu em si. Desgostoso consigo mesmo, rolou para um lado,
soltando-a. Não tinha o direito, ninguém tinha, de usar algo de bonito e bom
como uma arma! Tinha querido feri-la por causa de um motivo que ela não
controlava. Atingira também a si mesmo.
— Libby!
Além do azul do céu – Nora Roberts
107
Ela sacudiu a cabeça, os olhos fechados. Cal continuou, sem deixar de
olhar para o teto:
— Eu não tenho desculpa... não existe desculpa para tratar você assim.
Libby engoliu as lágrimas, controlou a respiração e abriu os olhos para
dizer:
— Talvez não, mas deve haver um motivo. Eu gostaria de saber qual.
A resposta demorou bastante. Estavam deitados um ao lado do outro, mas
sem se tocarem. Ele poderia dar dúzias de motivos: falta de sono, excesso de
trabalho, ansiedade por causa da viagem que teria de fazer. Todos eram
verdadeiros, até certo ponto. Mas não seriam a verdade. Libby, ele sabia,
valorizava acima de tudo a honestidade. Começou, separando bem as palavras,
para não deixar dúvidas:
— Eu gosto de você. Não é fácil saber que não vamos nos ver nunca mais.
Sei que temos vidas separadas, em lugares e tempos separados... Talvez
estejamos fazendo o que tem de ser feito, mas eu odeio pensar que, para você,
tudo é tão fácil.
— Não é.
Mesmo se sentindo egoísta. Cal gostou de ouvir aquilo.
Ele, então, segurou a mão dela e confessou:
— Estou com ciúme.
— De quê?
— Dos homens que vai conhecer, que vai amar. Dos homens que irão
amar você.
— Mas...
— Não, não diga nada. Deixe que eu fale tudo de uma vez. Não é que eu
não saiba, intelectualmente, que estou errado. É uma reação espontânea, Libby,
e eu costumo aceitá-las. Um piloto às vezes salva vidas por seguir reações
espontâneas. Toda vez que imagino outro homem tocando em você como eu
toquei, vendo você como eu vi, enlouqueço um pouco.
Ela virou a cabeça para estudar-lhe o perfil.
— E é por isso que está zangado comigo? Por causa de futuros casos de
amor imaginários?
— Vá em frente, tem todo o direito de me achar um imbecil.
— Não estou achando.
Ele deu de ombros, e continuou a confissão:
— Posso até ver o homem: tem dois metros de altura, e parece um deus
grego.
— Que tal Adônis? Sempre gostei das estátuas — sugeriu Libby, sorrindo.
Cal quase sorriu também, mas conteve-se para dizer:
— Cale a boca. Ele tem cabelos louros, meio despenteados, e um queixo
forte, quadrado, com uma covinha.
— Como Michael Douglas?
Caleb olhou-a de lado, cheio de suspeitas.
— Conhece alguém assim?
— Só de ver no cinema — riu Libby, pressentindo que a crise estava
Além do azul do céu – Nora Roberts
108
passando. Beijou o ombro de Cal.
— Bom, seja lá como for, ele também é inteligente, o que me dá outra
razão para odiá-lo. É doutor, não em medicina, em filosofia. Pode discutir com
você durante horas. Os hábitos de acasalamentos tradicionais de tribos obscuras.
E também toca piano.
— Puxa, estou impressionada!
Quase com maldade, torturando-se, Cal foi adiante:
— Ele é rico. Leva você para Paris e faz amor num quarto com vista para
o Sena. E lhe dá um anel, com um brilhante enorme.
Libby pensou um pouco.
— Bem, bem. E ele declama poesias?
— Até escreve.
Com a mão no coração, Libby exclamou:
— Oh, meu Deus! Será que pode me dizer, senhor vidente, onde vou
encontrá-lo? Quero estar preparada.
Cal virou-se de lado, e viu que os olhos dela brilhavam, divertidos e já
sem traços de lágrimas.
— Está gostando da conversa, não está?
Erguendo a mão para acariciar-lhe o rosto, Libby disse:
— Estou. Imagino que se sentiria melhor se eu prometesse entrar para um
convento.
Ele puxou-lhe a mão até os lábios.
— Negócio fechado. Pode escrever um termo de compromisso?
Os olhos dele estavam claros de novo. Aquele era o Cal que ela amava e
compreendia.
— Vou pensar no assunto. Já acabamos de brigar?
— Parece. Sinto muito, Libby. Estava me comportando como um lupz.
— Não sei o que quer dizer lupz, mas você deve ter razão.
— Amigos? — quis saber ele, roçando-lhe os lábios.
— Amigos — e, antes que ele se afastasse, Libby segurou-lhe a cabeça e
puxou-o para si para um beijo mais longo, profundo e apaixonado.
— Cal?
— Hum? — fez ele, delineando os lábios queridos com a língua, para
guardar-lhe a forma e a textura.
— Esse homem, que eu vou encontrar, tem nome? Ai! Você me mordeu.
— E fiz muito bem.
— Era sua fantasia, não minha — repreendeu ela.
— E vai continuar sendo minha. Posso lhe dar outras, se se contentar com
fantasias. — Depois, sorrindo, ele correu a mão pela pele macia que a camisa
aberta expunha.
— Está bem, eu... — Libby parou de falar, sentindo a mão lhe acariciar o
seio.
Sem parar com as carícias. Cal continuou-as verbalmente:
— Se fôssemos a Paris, passaríamos os três primeiros dias na suíte do
hotel, sem sair da cama. Beberíamos champanhe, montes de garrafas, e pratos
Além do azul do céu – Nora Roberts
109
pequenos com nomes e gostos exóticos. Eu conheceria cada centímetro do seu
corpo, cada poro da sua pele. Ficaríamos naquela cama grande e macia, fazendo
viagens fantásticas.
— Cal — murmurou Libby, quando ele circundou-lhe os seios com uma
cadeia de beijos.
— Aí nos vestiríamos. Posso ver você, de branco, um vestido fino que
deixa à mostra os ombros e as costas. Um vestido que, quando os homens olham
para você, sentem vontade de me assassinar.
— Eu nem os vejo — suspirou Libby, passando a mão por todos os planos
e ângulos do corpo dele — Só vejo você.
— Há estrelas no céu. Milhões. O perfume de Paris invade o ar, é de água
e flores. Caminhamos quilômetros para que você veja todas aquelas luzes
incríveis e os maravilhosos prédios antigos. Paramos para tomar vinho numa
mesa de café com um guarda-sol. Daí voltamos e fazemos amor outra vez.
Os lábios procuraram os dela, novamente.
— Não precisamos de Paris para fazer isso.
— Não. — Ele colocou uma mão de cada lado da cabeça de Libby e
ergueu meio corpo. O rosto dela luzia, os olhos estavam esgazeados, o sorriso
era meigo. Cal queria gravar a cena, onde ela era a estrela única e absoluta.
— Oh, Libby, meu anjo, eu preciso de você.
Era tudo o que ela precisava ouvir, tudo o que pediria para ouvir.
Estendeu os braços.
Era urgente que se amassem. Libby saboreou a língua que lhe invadia a
boca, as mãos impacientes que lhe moldavam o corpo. Os sentimentos eram
espelhos uns dos outros, e a resposta foi explosiva. O sangue corria à flor da
pele, quente como lava. O calor era insuportável, delicioso, e aumentava à
medida que Cal a despia.
Um som primitivo escapou-lhe da garganta. Com uma velocidade e fúria
que o fizeram balançar, ela tirou-lhe a camisa, puxou o jeans para baixo.
Desesperada, rolou, revertendo as posições, beijando-o no corpo todo, como ele
fizera antes.
Poder. Era o afrodisíaco mais eficiente. Libby podia fazer Cal tremer,
pedir, murmurar o nome dela. Quase sem esforço, tornava-o indefeso.
E ele era lindo. Era lindo sentir a pele sob as mãos, o gosto na língua. E
ele era forte. Os músculos firmes tremiam sob o toque delicado das pontas dos
dedos.
E havia querido que ela lembrasse! Gemendo sob o peso das sensações
que ela lhe despertava, soube que Cal também lembraria, sempre. A música que
tanto amava lhe enchia a cabeça. Sempre que a ouvisse, Libby estaria com ele.
O calor irradiava do corpo que escalava o dele, chegando à boca. Um
beijo lento, provocante, onde ele queria se afogar. E de repente ela começava a
rir, fugindo das mãos gulosas, deixando-o louco de novo.
— Libby...
E então ela se fechou sobre ele como uma bainha de veludo. Deu um
gemido que soou como um grito de triunfo. Perdida no próprio prazer, alçou
Além do azul do céu – Nora Roberts
110
vôo.
Uma queda livre no espaço, um trampolim através do tempo. Cal conhecia
a ambos, mas nada se comparava ao que sentia. As mãos escorregaram tateando
a pele lisa. Quando as palmas das mãos se encontraram, mergulharam juntos.
Perfeição. Felicidade preguiçosa. Libby aconchegou-se, descansando a
cabeça sobre o coração de Cal, quase ronronando quando ele lhe alisou os
cabelos.
O corpo totalmente saciado, a mente calma e o coração tranquilo.
Perguntou-se quanto tempo duas pessoas poderiam ficar aninhadas numa cama
sem água ou comida. Para sempre. Sorriu consigo mesma. Estava quase
acreditando.
— Meus pais têm um gato amarelo, gordo, que se chama Marigold. Não
tem um grama de ambição — murmurou.
— Um gato chamado Marigold?
Ainda sorrindo, Libby correu a mão pelo braço nu:
— Você conheceu meus pais.
— Ah, sim! Eles gostam de nomes estranhos.
— Bem, e Marigold fica deitado no peitoril da janela toda tarde. A tarde
inteira. Agora, neste minuto, eu sei exatamente o que ele sente. Gosto de sua
cama, Hornblower.
— Sabe que também estou gostando cada vez mais?
Ficaram em silêncio por um tempo, sonhando. Depois Libby falou:
— Esta música, parece que já conheço.
— Salvadore Simeon.
— É um novo compositor?
— Depende do ponto de vista. Fim do século XXI.
— Oh! Poesia, música clássica e aerocicletas. Uma combinação
interessante.
— Acha? — ele perguntou.
— Acho, e muito. E sei também que você gosta de novelas e programas
de auditório.
Cal sorriu, vendo que Libby se erguia na cama, até ficar sentada.
— Isso foi pesquisa. Quero ter condições de falar com inteligência de
todas as formas de entretenimento popular do século XX. Ei, você acha que as
novelas foram arquivadas? Gostaria tanto de saber se Blake e Eva conseguiram
ficar juntos, apesar das intrigas de Dorian. E depois há o problema de saber
quem acusou Justin do assassinato do desprezível Carlton Slade. Eu aposto que
foi Vanessa, a de rosto suave e coração duro.
Erguendo os joelhos até o peito, Libby declarou:
— Ficou viciado. Não existem novelas no seu tempo?
— Claro que sim. Só que nunca tive tempo de assistir. Sempre achei que
era para trabalhadores domésticos.
Libby gostou da expressão precisa, sem especificação masculino-
Além do azul do céu – Nora Roberts
111
feminino.
— Trabalhadores domésticos. E eu ainda não fiz todas as perguntas que
queria. Quando voltarmos temos de terminar de escrever tudo o que aconteceu a
você.
— Tudo? — duvidou ele.
— Tudo que tenha relevância. Enquanto estivermos fazendo isso, e
arrumando a cápsula, você pode me informar sobre o futuro.
— Combinado — disse Cal, saindo da cama. Talvez fosse hora de
trabalhar de novo. Procurando a calça, viu a polaróide, caída no chão, e
perguntou:
— O que é isto?
—- Uma máquina fotográfica. Revela as fotos em cerca de dez segundos.
— É mesmo? — brincou Cal, revirando a máquina nas mãos. Como
presente de aniversário, aos dez anos, tinha ganhado uma que fazia exatamente a
mesma coisa, e cabia na palma da mão. E também marcava hora, temperatura e
tocava sua música predileta.
— Você está com aquele sorriso superior outra vez, Hornblower.
— Desculpe. Como funciona? A gente tem de apertar este botão?
— Sim, você... ei, não!
Mas era tarde demais. Cal há havia batido a foto.
— Hornblower, isto foi desonesto.
— Pensei que gostasse de fotografias — disse ele, com ar sensato,
esperando que a imagem se revelasse.
— Eu estou sem roupa.
— Sim, estou vendo. Nada mau. Só uma dimensão, mas transmite a
mensagem. Uma mensagem bem sensual, até.
Agarrando o lençol, Libby foi aos tropeções até os pés da cama e tentou
pegar a foto.
Cal segurou-a fora do alcance dela, virando-a para que Libby se visse, os
braços segurando as pernas nuas, cabelos revoltos, olhos pesados.
— Libby, adoro quando você fica vermelha.
Quando saíram da nave, as sombras já se alongavam. Depois de uma
breve discussão resolveram prender a aerocicleta no bagageiro do jipe e voltar
juntos.
— Seria uma boa idéia se eu tivesse uma corda — lamentou Libby.
— Para quê? — perguntou Cal, virando uma maçaneta sob o selim e
puxando duas tiras fortes, com ganchos. Libby deu de ombros.
— Bem, ótimo, então. Eu ajudo você a levantá-la.
E, unindo as palavras à ação, soprou os cabelos que lhe caíam sobre os
olhos e segurou a roda de trás. Cal olhou-a, duvidoso.
— Tudo bem, mas não vá ter uma distensão.
— Faz idéia de quanto equipamento carregamos nas escavações?
— Não — disse ele, sorrindo.
— Muito. Um, dois, três! — e abriu a boca, assombrada, quando
ergueram a aerocicleta à altura dos ombros. Não devia pesar mais que dez
Além do azul do céu – Nora Roberts
112
quilos.
— Hornblower, você é um amor por não ter me avisado — ironizou.
Prendendo as tiras com facilidade, ele respondeu:
— Obrigado. Vai me deixar dirigir desta vez?
Libby tirou as chaves do bolso e balançou-as, possessiva.
— Libby, por favor, não há ninguém por aqui.
— E daí? Nunca vi sua carteira de motorista.
— Mas, se eu sei pilotar aquilo ali, claro que posso dirigir seu
veiculozinho primitivo. Só quero ver como é. Ela cedeu, jogando-lhe as chaves.
— Só não quero que se esqueça de que este veiculozinho primitivo tem de
ficar no chão.
Contente como uma criança com um brinquedo novo, ele se instalou atrás
do volante, dizendo:
— Entendi. Trabalha com marchas, não é?
— Acredito que sim.
— Fascinante. E este pedal, para que serve?
— É a embreagem — disse Libby, começando a temer pela própria vida.
— Embreagem, claro. É o que desengata o sistema de modo que se possa
mudar marchas. Marchas mais altas para velocidades maiores. É essa a idéia,
não?
— E o outro pedal, ao lado da embreagem, é o freio. Preste atenção no
freio, Hornblower. Muita atenção.
Sorrindo, convencido, ele ligou o motor.
— Não se preocupe com nada. Vê só?
Andaram em marcha ré por cerca de vinte centímetros antes de uma
parada brusca.
— Só um minuto, acho que já entendi.
— Com calma, está bem? E tente andar para a frente.
— Sem problemas. — Mas o jipe corcoveou, fazendo com que Libby se
agarrasse ao freio de mão e rezasse. Cal se divertia como nunca, e ficou
desapontado quando o jipe finalmente rodou sem trancos.
— Viu? Fácil, fácil.
— Olhe para a frente, pelo amor de Deus. Oh, meu Deus! — e Libby
cobriu os olhos para não ver a árvore em que com certeza bateria.
— Você sempre fica assim nervosa quando outra pessoa dirige? —
interessou-se Cal, esquivando-se da árvore com perícia.
— Eu ainda vou acabar odiando você.
— Relaxe, garota. Vamos pegar um desvio.
— Cal, devíamos ir...
— Para a frente, e avante! Como eu ouvi no desenho animado.
— Acho que o certo seria "para o alto, e avante", mas nesse caso... Bem,
acho melhor ajustar meu cinto de segurança, por via das dúvidas. Prefiro uma
vida longa e tediosa.
Ele desceu uma ladeira cheia de pedras, guiando como, se nunca tivesse
feito outra coisa na vida. Olhou de lado para Libby e comentou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
113
— É quase tão bom quanto voar. Ou talvez não, mas chega perto.
— Cal, você está indo direto para o...
A água espirrou duas cortinas cintilantes de cada lado do jipe. Quando
chegaram à outra margem, Libby completou a frase, molhada até os ossos:
— ...riacho.
Cal, deliciado, fez um cavalo-de-pau e tornou a passar pelo riacho. E
Libby ouviu a própria gargalhada quando a água a atingiu pela segunda vez.
— Você pode ser louco, mas não é aborrecido. Cal.
— Sabe de uma coisa? Com algumas modificações, este jipe faria um
grande sucesso lá onde moro. Não entendo por que pararam de fabricar. Se eu
levasse este como protótipo ficaria milionário.
— Você não vai levar meu jipe embora. Ainda tenho catorze prestações a
pagar.
— Foi só uma idéia — tranqüilizou-a Cal. Por ele, continuaria dirigindo o
resto da noite, mas começava a esfriar. Fez meia-volta.
— Sabe onde estamos?
— Claro que sei, cerca de vinte graus a nordeste da nave. Eu disse que era
um bom navegador. Vamos fazer uma coisa: voltar para casa e tomar um banho
quente. Depois acendemos o fogo e tomamos um conhaque. Depois...
Cal resmungou alguma coisa e freou bruscamente. Um grupo de quatro
pessoas vestidas para excursões no campo apareceu alguns metros adiante.
Libby murmurou:
— Droga, é tão difícil que alguém venha para cá antes do fim da
primavera...
— Se continuarem naquela direção, vão parar em cima da nave — disse
Cal.
Libby engoliu um começo de pânico e sorriu para o grupo que se
aproximava, dizendo:
— Alô!
Um homem grande, por volta de quarenta anos, encostou- se no jipe.
— Bem, bem, e como vão? São as primeiras pessoas que encontramos
desde hoje de manhã.
— Os excursionistas não costumam vir até aqui.
— Foi por isso que escolhemos esta trilha, certo, Susie? — disse o
homem, dando tapinhas no ombro de uma mulher bonita e exausta, que
respondeu apenas com um vago aceno afirmativo de cabeça. O homem
continuou:
— Rankin, meu nome é Jim Rankin. Minha mulher, Susie e nossos filhos,
Scott e Joe — e enquanto isso apertava a mão de Cal.
— Prazer em conhecê-los, Cal Hornblower, Libby Stone.
— Vocês preferem andar de carro, hein?
Percebendo que Cal não sabia o que responder, Libby ajudou-o:
— É, e já estávamos voltando para casa.
— Pois nós gostamos de acampar — disse Jim, com um largo sorriso.
Dez segundos foram suficientes para ver que só Jim estava cheio de
Além do azul do céu – Nora Roberts
114
entusiasmo para percorrer as montanhas a pé. Podia ser uma vantagem.
— De onde vocês vieram?
— De Big Vista. É um bom camping, mas muito cheio. Queria mostrar à
mulher e aos garotos a natureza em estado bruto.
Libby calculou que os garotos teriam treze e quinze anos, e que estavam
quase chorando. Pensando na distância dali a Big Vista, não poderia culpá-los.
— Andaram bastante.
— Somos durões, certo, rapazes? — perguntou o pai, recebendo de volta
apenas olhares infelizes.
— Estão planejando subir por aqui? — quis saber Libby, mostrando o
caminho com um gesto.
— Na verdade, estamos sim. Queríamos chegar lá no alto antes de
escurecer.
Susie gemeu e começou a massagear um músculo dolorido do tornozelo.
— Não vão conseguir chegar indo por aqui. Mais adiante há uma área de
reflorestamento. Viram aquela espécie de clareira entre as árvores? — começou
Libby.
— Vimos, sim, e queríamos examinar melhor. Sem piscar, Libby mentiu:
— Criação de mudas. Proibido entrar e acampar, a multa é de quinhentos
dólares.
— Puxa, agradeço muito ter nos avisado.
— Pai, vamos para o hotel? — pediu um dos meninos.
— Com piscina e fliperama — acrescentou o outro.
— E uma cama, uma cama de verdade — murmurou a mulher.
Jim piscou para Cal e Libby, dizendo:
— A família fica meio rabugenta a esta hora. Esperem até o sol nascer
amanhã, pessoal. Vão ver que valeu a pena.
Libby levantou-se do banco e apoiou o quadril ao lado do jipe, falando
sempre como se o único objetivo fosse ajudá-los:
— Há uma trilha bem limpa na direção oeste, está vendo?
— Estou — Jim não gostava da idéia de mudar o itinerário, mas a ameaça
dos quinhentos dólares foi mais forte.
— Sim, se vocês andarem mais, pelo menos quatro ou cinco quilômetros,
verão uma clareira, boa para acampar. A vista é fabulosa. E chegarão bem antes
do pôr-do-sol.
— Podemos dar uma carona — prontificou-se Cal, que havia notado o
cansaço do menino mais novo. No momento em que ouviu a oferta, ele sorriu.
Só que o pai não tomou conhecimento, respondendo no mesmo tom entusiástico:
— Oh, não, não! Mas obrigado mesmo assim. Seria trapacear, não acham?
Susie ajeitou a mochila nas costas doloridas, passou pelo marido e disse
diretamente a Cal:
— Talvez, mas é uma questão de vida ou morte. Sr. Hornblower, se nos
levar até essa tal clareira, pagarei o que pedir.
— Susie, você...
Ela nem ligou para o marido, puxando Cal pela camisa molhada:
Além do azul do céu – Nora Roberts
115
— Cale a boca, Jim. Por favor. Eu tenho quatrocentos e cinqüenta e oito
dólares de equipamento nesta mochila. É sua.
Jim colocou a mão no braço da esposa e, rindo, começou:
— Susie, nós combinamos...
— Pois está tudo descombinado — começou ela, com voz estridente.
Num esforço para controlar-se, respirou fundo e continuou:
— Estou morrendo aqui, Jim. Acho que os meninos vão ficar
traumatizados para o resto da vida. Não quer ser responsável por isso, quer?
Bom, nem responda. Se quiser, continue andando, mas nós três estamos cheios
de bolhas, e minha perna esquerda vai ficar insensível durante anos.
— Susie, se eu soubesse que você estava assim...
Mas ela não estava disposta a deixar que o marido terminasse uma única
frase.
— Tudo bem, agora já sabe. Venham, meninos!
Subiram para o banco de trás do jipe. Depois de um momento, Jim, muito
triste, acompanhou-os.
Aliviada, Libby se dispôs a acabar com o mal-estar da família:
— Ah, é um lugar lindo! Provavelmente vão gostar mais ainda depois de
descansar e comer.
Susie suspirou, contente por estar se movendo sem esforço. Chegou até a
colocar uma mão carinhosa no joelho de Jim, dizendo:
— Pelo menos é cheio de árvores. Vocês dois são daqui?
— Eu, sim. Cal é de Filadélfia — esclareceu Libby, depois de indicar o
caminho.
— É mesmo? Nós também. É a primeira vez que vem para cá, sr.
Hornblower?
— Sim.
— Nós também. Queríamos mostrar aos filhos uma parte do país que
ainda não estivesse estragada. E mostramos — alegrou-se Susie, apertando mais
o joelho do marido.
Ainda resistindo, Jim apoiou o braço nas costas do banco, vaticinando:
— Esta é uma viagem que eles não esquecerão.
Os meninos se entreolharam e depois fizeram uma careta, mas não
ousaram falar. Ainda queriam convencer o pai a ir para um hotel.
— Então, você é de Filadélfia. Acha que nosso time ganha o campeonato
este ano?
Cal não quis se comprometer:
— Sou um torcedor esperançoso.
Recebeu em troca um tapa no ombro, enquanto Jim dizia:
— Um dos meus. Se eles melhorassem o meio de campo e mudassem o
ponta-direita talvez até conseguissem.
Futebol, percebeu enfim Cal. Ele estava falando de futebol. Sorriu para
dizer:
— É difícil prever este campeonato, mas imagino que vamos ganhar
vários títulos nos próximos duzentos anos.
Além do azul do céu – Nora Roberts
116
Jim riu com vontade:
— Isso é que é pensar a longo prazo.
Quando chegaram à clareira, os passageiros estavam bem mais animados.
Os meninos saíram correndo atrás de um coelho, enquanto Susie descia devagar,
poupando as pernas. Olhou para as montanhas atrás das quais o sol começava a
se esconder e exclamou:
— E muito bonito. Nem sei como agradecer a vocês. Salvaram a vida do
meu marido.
Cal olhou para o homem enérgico que já começava a dar ordem aos filhos
para que fizessem uma fogueira, e comentou:
— Ele me parece muito saudável, para dizer a verdade.
Sorrindo, Susie colocou a mochila no chão e explicitou:
— Não, eu é que ia assassiná-lo durante o sono. Agora não preciso mais,
pelo menos durante uns dois dias.
Jovial, Jim voltou e deu um abraço na mulher, que fez uma careta de dor.
— É como eu digo, Susie, um homem pode respirar de verdade aqui em
cima.
— Por enquanto — foi a resposta, em voz muito baixa.
— Nada a ver com Filadélfia, graças aos céus. Por que vocês dois não
ficam para jantar? Não há nada como comer ao ar livre.
Susie acrescentou:
— Eu gostaria muito. O cardápio para hoje é feijão enlatado, com
salsichas, se o pacote congelado agüentou a viagem, e de sobremesa deliciosos
abricós desidratados.
Cal sentiu-se tentado a aceitar, só para escutá-los. A família Rankin bem
que poderia estar numa novela, aliás era até mais divertida. Desculpou-se, no
entanto:
— Seria ótimo, mas temos de voltar.
Libby estendeu a mão para Susie, dizendo:
— Se seguirem a trilha à direita chegarão a Big Vista. É uma longa
caminhada, mas muito bonita — "e andarão na direção oposta à da nave",
pensou.
Jim remexeu na mochila que ainda carregava nas costas e tirou um cartão,
que estendeu para eles dizendo:
— Obrigado outra vez. Telefone para mim quando voltar, Hornblower.
Sou gerente de vendas na Bison Motors. Posso arranjar-lhes um bom negócio,
zero ou usado.
— Não esquecerei — disse Cal, pegando o cartão e entrando no jipe com
Libby. Com acenos de mão, deixaram os Rankin para trás.
— Zero ou usado o quê? — perguntou Cal.
— Ele se referia a carros.
— Ah... Sei...
Além do azul do céu – Nora Roberts
117
CAPÍTULO XII
Cal passou muito tempo pensando nos Rankin. Tinha perguntado a Libby
se eles eram uma família típica americana. A resposta fora bem-humorada. Se
existia um fenômeno chamado Família Americana, com certeza a representante
ideal seria a Família Rankin.
O interesse de Cal partia do ponto em que via vários paralelos entre eles e
sua própria família. O pai, embora fosse impossível confundi-lo com o
grandalhão e espalhafatoso Jim Rankin, sempre havia amado a natureza, lugares
intocados e viagens com a família. Como os outros meninos, Cal e Jacob tinham
passado muito tempo choramingando, reclamando e fazendo caretas diante do
mau gosto do pai. E, quando as coisas começavam a se complicar, era sempre a
mãe de Cal que dava um jeito em tudo.
"Famílias", pensou ele, "continuam através do tempo." Era reconfortante.
Ao voltarem à cabana, Cal e Libby acenderam o fogo e beberam
conhaque. Em seguida, por ser a mais organizada dos dois, convenceu-o a subir
para terminar o relatório.
Precisariam de três cópias: a primeira para a cápsula, a segunda para a
nave e Cal, e a terceira para Libby.
Lendo o que ela já havia escrito, Cal admirou o estilo. Não teve dúvidas
de que os cientistas do seu tempo achariam o relatório de Libby tanto conciso
quanto fascinante.
Passaram horas revisando, aperfeiçoando o que haviam feito, discutindo o
clima social, político e cultural do tempo dele. Libby o fez pensar em coisas que
nunca pensara, e em outras que não eram tão novas quanto ele achava.
Sim, ainda havia pobreza, mas não falta de moradia ou comida. Também
existiam conflitos, mas guerras grandes estavam praticamente extintas há mais
de cento e vinte anos. Ainda se discutia política, ainda se cantava para
adormecer bebês. As pessoas reclamavam que o trânsito no céu era impossível.
Que Cal se lembrasse, quatro ou cinco mulheres já haviam sido eleitas
presidente dos Estados Unidos da América.
Quanto mais perguntas Cal respondia, mais brotavam da cabeça de Libby.
Adormeceram, abraçados na cama, no meio de uma resposta.
Terminaram a cápsula do tempo na manhã seguinte, enchendo a caixa de
aço hermética que Libby havia comprado na cidade com o que pareceu mais
pertinente. Uma cópia do relatório foi envolvida em plástico antes de ser
guardada. Libby acrescentou um dos painéis tecidos pela mãe e uma gamela de
barro que o pai fizera quando ela era criança. Um jornal, uma revista semanal
ilustrada e, por insistência de Cal, uma colher de pau tirada da gaveta da
cozinha. E uma das fotos que Libby havia tirado da nave.
— Precisamos de mais coisas — murmurou Libby. Segurando um tubo de
pasta de dentes, Cal sugeriu:
— Eu queria isto, e uma peça de lingerie.
— Sim para a primeira, não para a segunda.
Além do azul do céu – Nora Roberts
118
— Por amor à ciência — lembrou Cal.
— Nem pensar. Precisamos de uma ferramenta. Sempre é bom descobrir
uma ferramenta numa escavação — rebateu Libby, remexendo numa gaveta e
tirando uma chave de fenda, um martelo pequeno e uma chave inglesa.
— Escolha, Cal.
Ele pegou a chave inglesa e deu outra sugestão:
— Que tal um livro?
Libby correu para a prateleira da sala e começou a examinar a estante,
enquanto dizia:
— Ótima idéia. Quero ficção popular, alguma coisa escrita nesta era. Ah,
já sei! Stephen King.
— Já li. Apavorante.
Libby levou o livro até a cozinha, colocando-o na caixa.
— O terror transcende os tempos, também. Se fizerem testes, vão
conseguir datar este material. Dará reforço a sua história. Venha comigo para
fora, tirar fotografias.
Cal pegou a máquina primeiro, e defendeu o direito de bater as fotos: a
cabana, Libby em frente à cabana, Libby ao lado do jipe. dentro do jipe. Libby
rindo para ele. E gritando:
— Desse jeito vai acabar o filme! Sabia que estou gastando um dólar por
foto? Antropologia pode ser um campo fascinante, mas não paga bem.
Cal foi para a frente da cabana, como Libby lhe mostrou que queria que
fizesse, desculpando-se:
— Puxa, nem pensei em perguntar. De quanto crédito você dispõe?
Tirando a primeira foto de Cal, parado com as mãos nos bolsos do jeans
emprestado, Libby respondeu:
— Não faço idéia, não é assim que medimos riqueza hoje em dia. Aqui
avaliam o quanto você vale, ou quanto ganha. Salário, rendas anuais, essas
coisas. Meus pais nunca se interessaram muito por dinheiro, e eu sou igual a
eles. Por que não pega a aerocicleta e monta, em frente da cabana?
Cal obedeceu, ainda preocupado com a conversa sobre dinheiro:
— Libby, não tenho como pagar, na sua moeda, tudo isso.
— Não seja bobo, eu estava brincando.
— E não posso pagar você por muito mais, também.
Entretida com a máquina, Libby nem levantou a cabeça:
— Não me deve nada. Não pense que fiz alguma coisa esperando
recompensa. E não me olhe assim. Não estou preparada para falar a sério.
— Não nos resta muito tempo.
— Eu sei, por isso não vamos estragar o pouco que temos — pediu Libby.
Não havia entendido tudo o que ele havia ditado para que ela digitasse no
computador na noite anterior, mas sabia que partiria antes do amanhecer.
Afastando o pesar que já sentia, comentou:
— Uma pena que esta máquina não dispare automaticamente. Seria
interessante tirar algumas fotos de nós dois juntos.
— Espere aí.
Além do azul do céu – Nora Roberts
119
Cal deu a volta pelo lado da cabana, voltando com uma enxada de jardim.
— Sente-se na escada — disse a Libby, e prendeu a máquina no selim da
aerocicleta, ajustando-a até enquadrar Libby.
— Pronto, consegui! — Satisfeito consigo mesmo, foi sentar-se ao lado
dela, abraçou-a e disse:
— Sorria.
Libby obedeceu, e Cal usou o cabo da enxada para apertar o botão,
sorrindo quando ouviu o dique. A foto apareceu.
— Muito criativo, Hornblower.
— Não se mexa.
Pegou a primeira foto, voltou a sentar-se perto dela e disparou mais duas
vezes. Depois pegou as fotos e contou:
— Uma para você, uma para a caixa e uma para mim.
— E, levantando-lhe o rosto com o dedo, beijou-a.
Libby pegou a primeira das três e estudou-a. Pareciam felizes, pensou.
Pessoas comuns e felizes. Significava muito para ela naquela hora, e iria
significar muito mais. Levantou-se, ainda com a foto na mão.
— É melhor irmos enterrar a cápsula.
Prenderam-na no bagageiro da aerocicleta, e Libby se viu prensada entre a
caixa e Cal. Quando chegaram ao riacho, ele desceu e fez cara feia ao ver a pá
que Libby lhe entregava. Então comentou:
— Esta ferramenta é muito primitiva. Tem certeza de que não existe um
jeito mais fácil?
— Não neste século, Hornblower. Trate de cavar — respondeu, apontando
para o chão.
— Você pode começar.
Libby sentou-se e encolheu as pernas.
— Não, não quero estragar sua festa.
Observou-o começar o trabalho. O que usaria, perguntou-se, para
desenterrar a cápsula? O que sentiria quando a abrisse? Estaria pensando nela,
sabia. E sentiria saudade. Esperava que se sentasse no mesmo lugar e lesse a
carta que ela havia escondido na caixa, sem que ele visse.
Era só uma página, mas continha todo o coração de Libby.
Descansando o queixo na mão, ouviu o canto da água e lembrou-se de
cada palavra:
"Cal. Quando ler isto, estará em casa. Quero que saiba como estou feliz
por você. Não posso dizer que entendo o que foi para você vir parar aqui, longe
de tudo o que conhecia, separado da família e dos amigos. Mas queria que
soubesse que, do fundo do coração, sempre torci para que tudo desse certo.
Não sei se posso fazer você entender o que foi para mim o tempo que
passamos juntos. Eu te amo tanto, Caleb. É mais forte que eu. Não passará um
dia sem que eu pense em você. Mas não serei infeliz. Por favor, não pense ou
lembre de mim com tristeza. O que você me deu nestes poucos dias é mais do
que já pude imaginar, mais do que precisava. Sempre que olhar para o céu, verei
você.
Além do azul do céu – Nora Roberts
120
Vou continuar estudando o passado para tentar entender por que o homem
é como é. Agora, tendo conhecido você, estou otimista quanto ao que o homem
pode vir a ser.
Seja feliz. Quero saber que está feliz. Não se esqueça de mim. Eu quis pôr
um ramo de alecrim na cápsula, mas tive medo de que virasse pó. Descubra um
aí, no seu tempo, e pense em mim. Lembre-se de mim. Libby.
Libby? — chamou Cal, que a observava, apoiado na pá.
— O quê?
— Onde você estava?
Olhando para o buraco, ela falou:
— Oh, não muito longe! Muito bem, eu sabia que um homem grande e
forte como você era capaz de cavar um buraco.
— Acho que fiz uma bolha.
Libby chegou perto dele e beijou a marca rosada entre o polegar e o
indicador.
— Vamos. Depois que você ajeitar a caixa no buraco, eu cubro.
— Ótimo — concordou Cal. Após colocar a caixa no buraco que cavara.
Cal entregou a pá para Libby. Ela olhou para o monte de terra que teria de jogar
no buraco, e coçou a cabeça.
— Quatro mulheres presidentes?
Cal alongou as costas cansadas, dizendo:
— Talvez cinco.
Concordando com a cabeça, Libby começou o trabalho.
— Cal?
— Hum? — reagiu ele, já pensando num cochilo reparador.
— As perguntas que fiz ontem foram as grandes, as importantes. Estive
pensando se poderia agora perguntar coisas mais pessoais.
— Pode.
— Então fale de sua família.
— O que gostaria de saber?
Trabalhando num ritmo estável, com elegância que Cal gostou de
apreciar, Libby explicou:
— Quem são eles, como são. Gostaria de imaginar que os conheço.
— Meu pai é técnico em pesquisas e desenvolvimento. Trabalho de
laboratório, isolado, fechado. É muito delicado, confiável. Em casa gosta de
jardinagem, plantar sementes de flores e tratar delas.
Respirando o perfume da terra recém-revolvida. Cal quase podia ver o pai
cultivando o jardim.
— Às vezes ele pinta. Paisagens e naturezas-mortas muito, muito ruins.
Ele sabe que pinta mal, mas declara que arte, para ser arte, não precisa ser boa.
Está sempre ameaçando pendurar alguma de suas obras na casa. Ele é... não sei,
equilibrado. Duvido de que tenha ouvido aquele homem levantar a voz mais de
uma dúzia de vezes em toda minha vida. Mas todos o ouvem. Ele é como uma
liga que mantém a família unida.
Espreguiçando-se na grama e olhando o céu, Cal continuou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
121
— Minha mãe é... como dizer... agitada? Ela tem tanta inteligência e
energia que chega a assustar. Intimida muita gente, e se diverte com isso. Acho
que é porque, por dentro, é mole como manteiga. Levanta a voz o tempo todo,
mas sempre se sente culpada depois. Jacob e eu lhe demos muito trabalho.
— O que ela gosta de fazer nas horas de folga?
— Ler. Romances baratos ou livros técnicos, dificílimos. É conselheirachefe do Ministério Unido das Nações, por isso está sempre entre pilhas de
documentos legais.
— Ministério Unido das Nações?
— Acho que você o chamaria de Organização das Nações Unidas, ONU.
Teve de ser ampliado em... droga, não sei quando foi. Acho que ampliaram por
causa das colônias e assentamentos.
— Parece um emprego de muito prestígio — comentou Libby, já
começando a se sentir intimidada.
— E é. Ela adora tanto o trabalho quanto as preocupações. A risada dela é
maravilhosa, daquelas cascateantes. Conheceu meu pai em Dublin. Ela era
advogada, e ele foi passar férias lá. Acasalaram-se e mudaram para a Filadélfia.
Libby bateu a terra sobre o buraco. Tinha sido impossível não ouvir o
carinho na voz dele, impossível não compreender.
— E seu irmão?
— Jacob. Ele é... intenso, é uma boa palavra para descrever meu irmão.
Herdou a inteligência de minha mãe, e o temperamento, acha ele, do avô dela.
Você nunca pode ficar tranquilo a respeito de J. T.; saber se ele vai sorrir ou lhe
dar um soco. Estudou direito e, de repente, resolveu que seria astrofísico.
Coleciona problemas para poder estudá-los ponto a ponto.
— Você gosta deles?
Cal ergueu os olhos, surpreso, e Libby explicou melhor:
— O que quero dizer é que a maioria das pessoas ama a família, mas nem
sempre da mesma forma com que ama os amigos. Eu me pergunto se você é
bem chegado a eles.
Libby falou e foi prender a pá na aerocicleta. Cal respondeu rápido:
— Sou, sim. Eles gostariam de você.
— Eu poderia conhecê-los se me levasse junto — e Libby mordeu os
lábios no momento em que as palavras saíram, incontroláveis. Não teve coragem
de se virar para olhar para Cal. Nem sabia quando o pensamento tinha entrado
em sua cabeça.
— Libby — disse ele, de pé atrás dela, as mãos segurando-lhe os ombros.
Ela se virou e abraçou-o, falando muito depressa:
— Estudei o passado. Se me levar com você, terei a chance de estudar o
futuro.
Cal emoldurou-lhe o rosto entre as mãos. Viu os olhos brilhantes de
lágrimas.
— E sua família?
— Eles entenderiam. Eu escreveria uma carta, tentaria explicar.
A voz de Cal era soturna quando argumentou:
Além do azul do céu – Nora Roberts
122
— Não acreditariam nunca. Passariam anos procurando por você,
querendo saber se ainda estava viva. Libby, não vê que é isso que me dilacera
quando penso na minha família? Eles não sabem onde estou, nem o que
aconteceu. Sei apenas que tentam saber se estou vivo ou morto.
Libby começou a falar, sentiu o desespero da própria voz, calou-se,
começou outra vez:
— Eu farei com que entendam. Se souberem que estou feliz, fazendo o
que quero fazer, ficarão satisfeitos.
— Talvez. Sim, se tivessem certeza. Mas não posso levar você, Libby.
Ela deixou cair os braços, e deu um passo atrás.
— Não, claro que não. Nem sei por que pensei nisso. Eu me deixei levar
por um sonho...
Cal puxou-a de volta, nervoso:
— Por favor, por favor não pense que eu não quero você, porque seria
mentira. Não é uma escolha entre certo e errado, Libby. Se eu tivesse certeza, se
a viagem de volta não envolvesse riscos, eu a jogaria dentro daquela maldita
nave mesmo contra a vontade.
Uma palavra chamou a atenção de Libby, que a repetiu:
— Riscos? Que riscos?
— Nada é à prova de tudo.
— Não me trate como criança. Que riscos?
Ele exalou longamente. Havia um cálculo que não tinha mencionado na
noite anterior.
— O fator de probabilidade de sucesso numa viagem pela curva do tempo
é 76.4.
— 76.4. Não é preciso ser gênio para concluir que isso deixa 23.6 de fator
de fracasso. O que acontece se você falhar?
— Não sei — respondeu Cal, mas podia ter um bom palpite. Uma das
possibilidades menos dolorosas era ser cozido na sucção gravitacional do sol.
— E não vou arriscar você, por mais que queira que venha — concluiu.
Libby resolveu não entrar em pânico, pois não adiantaria nada. Respirou
três vezes, como costumava, e sentiu que recuperava um certo equilíbrio para
dizer:
— Caleb, se se desse um pouco mais de tempo, acha que poderia controlar
melhor as condições?
— Talvez. Provavelmente. Libby, meu tempo está acabando. A nave já
ficou a descoberto muito tempo. Foi pura sorte termos encontrado os Rankin
ontem. O que acha que aconteceria comigo, com nós dois, se descobrissem a
nave? Se me descobrissem?
— A temporada de férias ainda demora algumas semanas para começar. E
pouquíssimos, uma dúzia se tanto, de excursionistas, vêm até aqui em um ano.
— Bastaria um.
Ele tinha razão, e Libby sabia. Estavam vivendo um tempo emprestado
desde o início. Erguendo a mão para tocar o ferimento quase cicatrizado na testa
dele, falou baixinho:
Além do azul do céu – Nora Roberts
123
— Nunca vou saber, vou? Se você conseguiu ou não.
Ele beijou-lhe os dedos.
— Sou um bom piloto, confie em mim. E será mais fácil me concentrar se
não estiver preocupado com você.
Tentando sorrir, ela cedeu:
— É difícil argumentar contra o bom senso. Sei que disse que tinha uns
últimos detalhes para acertar na nave. Vou andar até a cabana.
— Eu não demorarei.
— Não se apresse, eu preciso de um pouco de tempo. Vou preparar um
jantar de despedida.
Libby virou-se e começou a andar como se não tivesse preocupação
alguma na vida, e de repente virou-se para dizer por sobre o ombro:
— Oh, Hornblower, traga-me flores!
Ele colheu uma braçada. Não era fácil carregar tantas flores na
aerocicleta. O caminho logo abaixo ficou juncado de botões brancos, rosas e
azuis-claros. Tinham o perfume de Libby, fresco, natural, exótico.
Durante as horas que passara trabalhando na nave, um pensamento não
lhe havia saído da cabeça. Ela queria ir com ele. Abandonar tudo, toda uma vida,
por ele.
Talvez tivesse sido um impulso, uma coisa de momento.
Os motivos não importavam. Precisava conservar aquele pensamento doce
e único. Libby havia pedido para ir com ele.
Avistou uma luz difusa pela janela da cozinha. Ficou um tanto
preocupado enquanto guardava a aerocicleta e juntava melhor o seu buque.
Talvez ela estivesse dormindo, ou esperando por ele na sala da frente, junto ao
fogo.
Gostava de idéia de vê-la lá, enroscada no sofá, coberta por um dos
maravilhosos cobertores de Caroline Stone. Estaria lendo, os olhos sonolentos
por trás dos óculos.
Contente com a imagem, Cal abriu a porta e viu uma outra cena, muito
mais bonita.
Libby estava a sua espera, mas à luz de velas. Ainda as acendia, dezenas,
todas brancas. A mesa posta para dois exibia uma garrafa de champanhe num
balde com gelo. A sala cheirava a velas, a especiarias e a Libby.
Virou-se para sorrir para ele, tirando-lhe o fôlego.
Os cabelos estavam presos, descobrindo a longa e delicada curva do
pescoço. Usava um vestido cor de luar que rebrilhava ao menor movimento. O
tecido macio deixava os ombros nus e acompanhava as curvas do corpo como as
mãos de um amante. Ela avançou, estendendo os braços para pegar as flores. Cal
não moveu um músculo.
— Você não esqueceu. Trouxe minhas flores.
— Ah! Oh, sim, sim! Eu ia trazer mais, só que...
Libby pegou um vaso já com água, onde colocou as flores, dizendo:
Além do azul do céu – Nora Roberts
124
— Estas já são mais que suficientes. O jantar está quase pronto, espero
que goste.
— Você me ofusca, Liberty.
— Era o que eu queria, pelo menos uma vez.
Ficaram em silêncio, e a timidez tomou conta dela, que, torcendo os
dedos, tentou explicar:
— Comprei o champanhe e o vestido ontem, na cidade. Pensei que seria
gostoso fazer uma espécie de festa.
— Estou com medo de me mexer, acordar e descobrir que você
desapareceu.
Ela estendeu a mão, pegou a dele e apertou com força.
— Não. Vou ficar bem aqui. Por que não abre a garrafa?
— Primeiro quero beijar você.
— Está bem, mas só uma vez — disse Liberty, passando os braços pelo
pescoço dele.
Comeram, mas o capricho com que Libby havia preparado o jantar passou
despercebido. Não sentiram o gosto de nada. Até o champanhe era supérfluo. Já
estavam bêbados um do outro. Ficaram se olhando, enquanto as velas derretiam.
Levaram algumas para o quarto, enchendo-o com a luz bruxuleante para
poderem se olhar enquanto se amavam.
Foi tudo muito, muito doce. E febril. Força e ternura, exigências e
generosidade.
As horas passaram, sem conseguir separá-los. Lembrariam de cada
tremor, cada suspiro, cada batida do coração. As velas se derreteram iluminando
os corpos abraçados.
Então, embora não dissessem uma palavra, souberam que era a última
vez. As mãos pareciam tão mais meigas, os lábios tão mais macios.
Quando tudo acabou, a beleza do que tinham feito deixou Libby fraca e
chorosa. Para se defender, aconchegou-se a ele e rezou para dormir logo. Não
poderia suportar a visão de Cal indo embora.
Ele ficou imóvel, acordado até as primeiras luzes do dia invadirem o
quarto. Viu, aliviado, que Libby dormia. Não seria capaz de lhe dizer adeus. Ao
levantar-se uma dor, aguda e doce, trespassou-o. Em gestos rápidos, esforçandose para não pensar em nada, pegou o macacão que Libby havia separado.
Com medo de acordá-la, passou a mão de leve pelos cabelos e saiu do
quarto, pé ante pé. Libby só abriu os olhos quando ouviu o barulho do trinco da
porta da sala. Virando o rosto para o travesseiro, deixou que as lágrimas
corressem.
A nave estava preparada, os cálculos feitos. Caí sentou-s na ponte de
comando e viu a noite morrer. Era importante decolar antes de o sol nascer. O
tempo estava medido em milésimos de segundos. Pouca margem para erros. Sua
vida dependia daquilo.
Mas os pensamentos se recusavam a abandonar Libby. Como não havia
Além do azul do céu – Nora Roberts
125
percebido que seria tão terrível partir? E, no entanto, tinha de partir. Sua vida,
seu tempo não eram lá, com ela. Não adiantaria repisar de novo o que já sofrera
vezes sem conta.
E, no entanto, ficava parado, deixando passar momentos preciosos.
— Preparar para vôo orbital padrão.
— Sim — disse, distraído, ao computador. Os instrumentos começaram a
piscar. Respondendo ao que já era uma segunda natureza, Cal preparou-se para a
decolagem. Olhou para a tela.
— Todos os sistemas apostos. Pode começar a qualquer momento.
— Certo. Começar contagem regressiva.
— Começando. Dez, nove, oito, sete...
Da porta da cozinha, Libby ouviu o ruído. Impaciente, esfregou os olhos
molhados e fez força para ver. Um relâmpago. Achou que tinha visto um brilho
metálico atravessar o céu que clareava. E foi tudo, o bosque ficou em silêncio.
Ela estremeceu. Gostaria de acreditar que o tremor fora por causa do ar
matinal na pele seminua.
— Segure-se — murmurou. Então cedeu e deu-se ao luxo de mais
algumas lágrimas.
"A vida continua", murmurou como se fosse uma prece. "Os pássaros
começam a cantar. O sol já nasceu."
Libby queria morrer, mas precisava reagir. Sacudindo-se entrou na
cozinha e colocou a chaleira no fogo. Ia tomar uma xícara de chá, lavar os pratos
esquecidos do jantar. E depois subiria, para trabalhar.
E trabalharia, sim. Trabalharia até os olhos ficarem pesados, para então
dormir. Levantaria no outro dia e trabalharia, e assim dia após dia, até acabar a
tese. Seria a melhor tese que jamais alguém havia escrito. Ela seria doutora, e
começaria a viajar.
Sentindo a falta de Cal até o abençoado dia em que morresse.
Quando a água ferveu, serviu-se de chá e sentou-se à mesa da cozinha.
Depois de um momento, empurrou a xícara para o lado, deitou a cabeça entre os
braços e recomeçou a chorar.
— Libby.
Levantou-se com tanta brusquidão que a cadeira caiu. Lá estava ele,
parado à porta, o rosto cansado e alguma coisa de muito forte nos olhos. Libby
esfregou os seus. Era uma alucinação.
— Caleb?
— Por que está chorando?
Ouviu a voz dele, e apertou a mão contra o ouvido.
— Caleb... mas como? Eu ouvi. Eu vi. Você foi embora.
— E você está chorando desde que saí? — disse ele, dando um passo à
frente e tocando o rosto molhado. Aquele toque era real!
“Só posso estar louca", pensou.
— Não entendo. Como é possível você estar aqui?!
Além do azul do céu – Nora Roberts
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Ele deixou as mãos caírem ao lado do corpo.
— Primeiro, quero lhe fazer uma pergunta. Só uma. Você me ama?
— Eu... Oh, meu Deus!... Eu preciso sentar.
Ele a amparou pelo braço.
— Por favor, Libby, quero uma resposta. Você me ama?
— Eu te amo... Eu te amo... Oh, céus, como eu te amo!...
Caleb sorriu, apertando-a com força entre seus braços.
— Por que não me disse antes?
— Eu falei uma vez, só não repeti porque eu não queria... Sabia que você
precisava ir embora — disse Libby, levando a mão à cabeça. — Estou tonta. Me
deixe sentar.
Ele a soltou, e viu-a cair sobre uma cadeira, murmurando como que para
si própria:
— Eu não dormi, por isso estou tendo alucinações.
Cal a fez levantar a cabeça, deu-lhe um beijo, um longo beijo, trazendo-a
de volta para os braços dele.
— Acha que este beijo também é alucinação?
— Não... não, mas como é possível? Não entendo! Como pode estar aqui?
Ele a soltou, olhando-a bem dentro dos olhos.
— Vim de aerocicleta.
— Não, quero dizer... o que quero dizer? Eu estava ali, à porta. Ouvi a
decolagem. Cheguei a ver, num relance, mas vi, a nave no céu.
— Mandei-a de volta. O computador está pilotando.
— Mandou de volta? Oh, meu Deus, Caleb, por quê?!
— Você não desconfia?!
Os olhos de Libby encheram-se de esperança.
— Não, não pode ser por minha causa. Eu não acredito. Sua família...
— Gravei um disco laser para eles. Contei tudo, bem mais do que há no
relatório que deixei a bordo. Onde eu estava, por que tinha de ficar. Se a nave
conseguir chegar, e as chances de que chegue sem mim são as mesmas que teria
de chegar comigo, eles compreenderão.
— Não posso pedir que faça isso.
Ele segurou-lhe a mão.
— Você não pediu. Teria ido comigo, não é, Libby?
— Teria.
— Eu até poderia ter aceito a oferta, se tivesse certeza de que
sobreviveríamos. Ouça. Fique em pé e ouça. Comecei a contagem regressiva.
Havia me convencido de que minha vida estava lá onde a havia deixado. Tinha
uma dúzia de motivos lógicos para partir. E um, um só, para ficar. Eu te amo.
Minha vida está aqui. Chegue mais perto, venha! Eu vim através do tempo para
você, Libby. Não pense, nunca, que cometi um erro.
— Tenho medo de que vá pensar isso — disse ela, sacudindo a cabeça.
— O tempo é... O tempo foi... O tempo passou. Meu tempo está no
passado, Libby, com você.
— Eu te amo tanto, Caleb. Prometo te fazer muito feliz!
Além do azul do céu – Nora Roberts
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— Tenho certeza disso. Agora você precisa dormir.
— Nem pensar.
Ele beijou-a, riu, e o último vestígio de tensão dissipou-se. Cal estava no
lugar certo.
— Veremos! Mais tarde temos de conversar sobre o resto desta história.
— Resto?
— A parte casamento e família eu posso enfrentar.
— Não me pediu ainda.
— Mas vou pedir. Bem, mas, de qualquer jeito, vou precisar de uma
carteira de identidade nova. E de um emprego. Salário, rendas anuais, correio?
Libby o corrigiu:
— Alguma coisa que goste de fazer. É mais importante do que salário e
seguro-saúde.
— Seguro o quê?
— Não se preocupe. Acho que meu pai pode lhe dar um emprego até nos
ajeitarmos, e você entender alguns detalhes.
— Não sei se quero fazer chá — falou Cal, pensativo, enquanto subiam a
escada. Já entrando no quarto, teve uma inspiração.
— Ei, me diga uma coisa: como a gente consegue um brevê de piloto,
aqui?
Fim
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Nora Roberts – Alem do Azul do Ceu