0 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA –UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- DCH- CAMPUS V PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL Wilma Santos de Santana Souza PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010) SANTO ANTONIO DE JESUS 2011 1 WILMA SANTOS DE SANTANA SOUZA PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010) Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História ao Programa de Mestrado em História Regional e Local do Departamento de Ciências Humanas Campus V Santo Antônio de Jesus da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira. SANTO ANTONIO DE JESUS 2011 2 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Souza, Wilma Santos de Santana Práticas de cura e o culto ao anjo São Gabriel no município de Dom Macedo Costa- Ba (1967-2010) / Wilma Santos de Santana Souza . – Santo Antonio de Jesus, 2011. 142f. Orientadora: Profª. Drª. Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira. Dissertação (Mestrado ) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias. Campus V. 2011. Contém referências. WILMA SANTOS DE SANTANA SOUZA 1. Cura pela fé. 2. Cura - Aspectos religiosos. 3. Catolicismo. I.Oliveira, Ana Maria Carvalho dos Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias. CDD: 248.86 3 PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010) Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História. Santo Antônio de Jesus - BA, 06 de junho de 2011 Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira - UEFS/UNEB Orientadora _________________________________________________ Profª. Dr.ª Elizete da Silva / UEFS Examinadora _________________________________________________ Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito/ UNEB (Titular) Examinador 4 À Dona Dina, minha mãe. A Antonio, meu amor. 5 AGRADECIMENTOS Os agradecimentos se constituem como o momento mais complexo desse trabalho. Foram inúmeras as pessoas que contribuíram para o processo da pesquisa. Sou grata a todos que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidas nele, seja na elaboração do projeto de pesquisa e/ou no desenvolvimento, inclusive aquelas que, porventura, não mencionei nomes. A Deus, por ter me cercado de uma família maravilhosa e de amigos valiosos, me encorajando a cada dia. Agradeço a minha mãe, mulher forte, símbolo de amor e doação, que me educou para ser independente, decidida e lutar pelos meus objetivos, sem perder de vista, o respeito ao outro, a importância da família e dos amigos. Nunca esquecerei o seu abraço caloroso ao saber da aprovação no mestrado, muito menos o apoio e a dedicação diárias. Sem seu aconchego e acolhimento cotidianos, eu não teria conseguido. A meu pai (in memorian), que sempre vibrou com minhas conquistas e que chorou de alegria quando fui aprovada no vestibular. Naquele momento eu não entendia ao certo a emoção dele, mas a cada dia em que me realizo com esse ofício, compreendo. Aos meus irmãos Wilson, Uilian e Brenda que torcem por mim e sempre me apoiam. A todos familiares que de alguma forma contribuíram nessa jornada. À Maria Fernanda, minha sobrinha, que me alegra com seu lindo sorriso, nas poucas vezes em que a vejo. A Antonio, meu esposo, companheiro em todos os momentos no meu cotidiano e nesse trabalho, quem despertou em mim o interesse por essa pesquisa, agradeço imensamente pela colaboração, desde a elaboração do projeto ao acompanhamento e preocupação do processo seletivo e da escrita da dissertação, com seu carinho e atenção. Pelo apoio e compreensão de minhas “ausências”. Pelas conversas e reflexões diárias sobre as práticas de cura e seus envolvidos. Pelo acompanhamento às entrevistas, com sua dedicação, deixando seus afazeres, no deslocamento à Dom Macedo Costa e a Riachão dos Milagres que envolvia longos períodos diários. Enfim, parceiro imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa. Agradeço a minha querida orientadora, Doutora Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira, parceira perfeita para a realização desse trabalho, exigente, profissional, dedicada, amiga. Nunca esquecerei dos plantões de orientação, os quais recebia sua atenção exclusiva, das palavras de incentivo, do seu bom humor e das valiosas críticas, responsáveis pelo 6 desenvolvimento do trabalho. À Maria Luiza, sua filha, por sua doçura e suas palavras carinhosas ao atender-me ao telefone. Aos professores e amigos do Programa de Pós- Graduação em História Regional e Local da Universidade Estadual da Bahia-UNEB- Campus V, pessoas com as quais convivi durante à realização do curso. Agradeço aos professores Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira, Dr. Gilmário Moreira Brito e Dr.ª Suzana Severs pelas indicações de leitura e discussões sobre meu projeto. À Ane, Consuello e Vilma agradeço pelas preciosas colaborações, no esclarecimento de tantas dúvidas. Aos meus colegas de turma pelas discussões e pelos momentos de descontração, em especial à Lielva, Regina, Priscila, Fatinha, Didi, Marilva, Alex, Antonio e Carol, colegas que durante maiores períodos dividimos tanto angústias quanto risos. Guardarei com muito carinho os momentos em que dividi angústias e alegrias com minhas amigas Priscila, Regina, Lielva e Fatinha aqui em casa e das nossas reflexões valiosas. À banca examinadora composta pelos professores Dr. Gilmário Moreira Brito e Drª Elizete da Silva pelas valiosas sugestões apontadas durante a qualificação. Agradeço pelas indicações de leitura e pelo incentivo para a escrita da dissertação, que muito auxiliaram em seu desenvolvimento. Aos professores do Campus V, em especial a Edinaldo Antonio Souza pelo acolhimento no Tirocínio Docente e por suas contribuições e indicações bibliográficas. À professora Edinélia Maria Oliveira Souza e ao professor Denilson Lessa pelas reflexões e empréstimos de textos. Aos alunos do VII semestre do Curso de História, no ano de 2010 que me acolheram no período do Tirocínio Docente. A Elivaldo de Jesus, pela amizade e pela tão valiosa colaboração, desde a elaboração do projeto. Agradeço pelas indicações de leitura, pelos livros e textos emprestados, pelas reflexões e correções críticas e detalhadas. À Eliane, pelo incentivo e paciência nos momentos em que me acolheu em sua casa para que Elivaldo contribuísse com o desenvolvimento do trabalho. Aos amigos, sobretudo Wedmo e Eleny pelo estímulo e contribuições, na fase de elaboração do projeto e nas vezes em que estive em Recife-Pe para participação em eventos, agradeço pela acolhida. A Luiz e à Fernanda Karla, agradeço pelo apoio e incentivo, sobretudo em articular minha remoção para um colégio aqui em Santo Antonio de Jesus, o que ajudou significativamente para o desenvolvimento do trabalho. À Tea e à Gal, pelo apoio desde o momento da elaboração do projeto, com reflexões e auxílio técnico. À Gabriela Marambaia pela amizade, pelo incentivo ainda na fase do projeto e pela vibração com minha 7 aprovação. Agradeço a assessoria contante no auxílio às correções gramaticais. À Josele pela tradução do resumo. À Zenaide França pela revisão. À Valdelice pela amizade e torcida, pelo auxílio na busca dos livros durante o processo setivo e durante os estudos para a prova de proficiência. A Hamilton que também me aulixiou com empréstimos de livros. Aos casais amigos, Ana Rita e a Júnior, Lu e Alex, Sílvio e Synara, Gazo e Zana, Mica e Paula, Cleyson e Day, pelo apoio. Aos amigos do Colégio Estadual Luiz Viana Filho, que me acolheram sem ressalvas no meu processo de remoção no ano 2009, sobretudo Fátima, Rita, Geisa, Ângela, Ray, Neide, Sandra, José Luiz, Ana Lúcia, José Gilberto, Sônia, Socorro, Marly, Raquel pela preocupação com a escrita da dissertação. À Geisa, Fátima e Ângela, equipe gestora, pela compreensão em todos os momentos que necessitei me ausentar devido as atividades do Mestrado. À Jacy pela valiosa colaboração intermediando o contato com José Raimundo Galvão, depoente relevante para o trabalho. À Jaqueline por facilitar o contato com Egnaldo em Dom Macedo Costa, o qual agradeço pela colaboração. À Dalva, Dona Lourdes e Dona Raimunda pela preocupação com o meu bem-estar diário. Aos companheiros do Colégio Objetivo, em especial Cilene, Lourdinha, Neuza, Marilene, Peu que me incentivaram no período da seleção. Aos colegas do Colégio Juvenilia Peixoto Sampaio, sobretudo Ana Lúcia a quem agradeço pelo grandioso incentivo no período do processo seletivo e pela vibração com a aprovação. Aos colegas da Escola Municipal Antonio Carlos Souto, principalmente Denise, Julieta, Marilene, Elaine, Sônia que me apoiaram no processo seletivo e no início das aulas do Mestrado. À Secretaria de Educação Municipal de Laje pela concessão da licença remunerada por dois anos, incentivo relevante para meu aperfeiçoamento. A Seu Martins Góis da Silva pela consentimento na realização dessa pesquisa que envolve sua história de vida. Agradeço a acolhida em sua casa e a disponibilidade para narrar as histórias sobre sua vida e missão religiosa, permitindo o acesso a Igreja do Anjo São Gabriel, a casa dos romeiros e a seus arquivos pessoais de fotografias. Aos seus familiares que também contribuíram com valiosas informações, em especial a Manoel da Lapa. Aos funcionários da Biblioteca Municipal e da Câmara de Vereadores de Dom Macedo Costa pelo acolhimento e confiança. Aos depoentes, pelas valiosas narrativas sem as quais esse trabalho não se realizaria, sobretudo Dona Celina Francisca de Souza, minha sogra, e Dona Janete Souza pela paciência em narrar inúmeras vezes os casos de cura, nos momentos em que me deparava com dúvidas. Ao padre Nelson Franca pelo depoimento e incentivo. Ao 8 bispo Dom João Nilton pela acolhida e pelo depoimento. Ao padre Edésio Ribeiro pelo depoimento. Ao padre Sérgio pelo valioso incentivo. A José Raimundo Galvão por ter atendido ao meu pedido de conceder seu depoimento, mesmo no curto espaço de tempo em que esteve em Santo Antonio de Jesus no mês de abril de 2010. Agradeço pela confiança de todos. 9 RESUMO Esse trabalho analisa o culto ao Anjo São Gabriel e as práticas de cura proclamadas pelo Senhor Martins Góis da Silva, “Seu Martinho”, na Comunidade do Riachão dos Milagres, no município de Dom Macedo Costa-Ba, entre 1967 e 2010. As crenças da região, envolvendo devoções, promessas, peregrinações e a fé em milagres, constituem elementos típicos do catolicismo popular. As memórias dos devotos acerca dos casos de cura ocorridos na Igreja do Anjo São Gabriel, a história religiosa de Seu Martinho e sua ressonância política são os pontos centrais da análise empreendida. Utilizamos na construção da narrativa depoimentos orais, fotografias, extratos das atas da Câmara de Vereadores do município e livretos com os casos de cura. Palavras chave: Práticas de cura, catolicismo popular, memórias, História Regional. 10 ABSTRACT This essay analyzes the cult to Angel San Gabriel and cure‟s practices prescrited by Mr. Martins Góis da Silva “Seu Martinho” at Riachão dos Milagres Comunity in Dom Macedo Costa city from 1967 after 2010.The region‟s creed, involving devotion, promises, pilgrimage and faith in miracles back up tipical elements of popular catholicism. Devot‟s memories about the cases that occur at Angel San Gabriel Church, “Seu Martinho” religious history and his political resonance are central point‟s in this analysis. So, it was used in this essay oral depoiments, photos, city‟s council minutes and pocket book containing cure‟s cases. Keywords: cure‟s practices, popular catholicism, memories, regional history. 11 12 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ARENA - Aliança Nacional Renovadora MDB - Movimento Democrático Brasileiro CEBs - Comunidades Eclesiais de Base 13 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Mapa 1: Recôncavo Sul da Bahia........................................................................... 30 Mapa 2: Dom Macedo Costa-Bahia........................................................................ 31 Fotografia 1: Antiga Capela do Anjo São Gabriel.................................................. 41 Fotografia 2: Celebração na Antiga Capela............................................................ 42 Fotografia 3: Devotos em frente à nova Igreja nos anos 80................................... 44 Fotografia 4: Seu Martinho e um motorista de uma romaria.................................. 45 Fotografia 5: Motoristas das romarias...................................................................... 45 Fotografia 6: Capa do livreto com a história de Seu Martinho............................... 48 Fotografia 7: Igreja atual do Anjo São Gabriel......................................................... 49 Fotografia 8: Placa anexada à frente da Igreja do Anjo São Gabriel......................... 49 Fotografia 9: Casa de romeiros da Igreja do Anjo São Gabriel................................. 50 Fotografia 10: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce, junto à estátua do Padre Cícero ....................................................................................................... Fotografia 11: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce, junto à Igreja de Nossa Senhora da Dores .............................................................................................................. Fotografia 12: Livro da vida Dom Macedo Costa 2006............................................ 61 63 69 Fotografia 13: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel................................................ 86 Fotografia 14: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel................................................ 86 Fotografia 15: Ex-votos dispostos na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel........................................................................................................................ Fotografia 16: Caixas de medicamentos dispostas na sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel................................................................................................... Fotografia 17: Caixas de medicamentos dispostas na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel................................................................................................... Fotografia 18: Imagem do Caboclo. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel........................................................................................ Fotografia 19: Colares do Candomblé. Ex-votos dispostos na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel................................................................................... Fotografia 20: Imagem de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do 94 95 95 96 97 Anjo São Gabriel......................................................................................................... 97 Fotografia 21:Quadro de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel........................................................................................ 98 Fotografia 22: Bilhete disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel......................................................................................................................... 100 Fotografia 23: Ex-voto da Igreja do Anjo São Gabriel............................................. 101 Fotografia 24: Calendário distribuído na festa dos 43 anos de missão em 30/10/2010................................................................................................................. 130 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1 O CULTO AOS SANTOS, SANTAS E ANJOS EM BUSCA DE CURA: A FÉ NOS INTERCESSORES ENTRE O SER HUMANO E O DIVINO........................ 26 1.1. Recorrer aos milagres para os diversos males que acometem o corpo e a alma............................................................................................................................. 26 1.2. O cenário para a realização das curas.................................................................. 30 1.3. A missão religiosa do Mensageiro do Anjo São Gabriel..................................... 51 CAPÍTULO 2 “TENHO TODA CERTEZA DE QUE FIQUEI BOA LÁ”: OS CASOS DE CURA PROCLAMADOS NA IGREJA DO ANJO SÃO GABRIEL....................... 71 2.1. As curas para as variadas doenças....................................................................... 71 2.2. O “milagre” que traz a cura................................................................................. 82 2.3. Ato público de fé e devoção................................................................................ 92 CAPÍTULO 3 “HOJE ESTOU NA BATINA E COM A MINHA IGREJA”: AS REPRESENTAÇÕES DO MENSAGEIRO DO ANJO SÃO GABRIEL................. 106 3.1. A Igreja Católica e o catolicismo popular na comunidade................................ 106 3.2. As relações religiosas e políticas de Seu Martinho.............................................. 114 3.3. Redução da quantidade de devotos na Igreja do Anjo São Gabriel..................... 123 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 132 FONTES..................................................................................................................... 134 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 137 15 INTRODUÇÃO Nos diversos estudos sobre a religiosidade popular brasileira percebemos como as devoções populares vão ao longo do tempo se conservando, mas também se reinventando e transformando. Fortes representações culturais, a veneração e o culto aos santos e anjos, considerados intercessores do cotidiano, se manifestam de diversas maneiras, como na busca por milagres. Dentro dessa perspectiva, insere-se o estudo sobre as práticas de cura operadas por Seu Martins Góis da Silva, “Mensageiro do Anjo São Gabriel”1, também reconhecido e chamado de Martinho pela maioria das pessoas que o conhecem e com ele convivem na comunidade do Riachão dos Milagres2, área rural do município de Dom Macedo Costa, no Recôncavo Sul da Bahia, há cerca de quatro décadas. Aqui, o trataremos por Seu Martinho já que se trata de um senhor de 75 anos de idade. O interesse por esse tema tem raízes na minha própria formação cultural e religiosa. Desde criança, estive envolvida num universo rico em práticas religiosas plurais: A minha família sempre foi assumidamente católica, porém, com suas próprias ressignificações dessa religiosidade. Quando tínhamos um mal estar, logo minha mãe recorria às rezas contra “mau olhado” ou contra “ar do vento” proferidas por Dona Cotinha, uma senhora alegre que sempre nos recebia com entusiasmo, e logo após a reza nos dirigíamos para casa com uma sensação de bem-estar e alívio dos sintomas. Fé? Coincidência? Cura psicológica? Não sei. Supostamente, a fé de minha mãe era tão forte que, de logo, aliviava os sintomas do problema porque, da minha parte, as idas à Dona Cotinha eram por obrigação mesmo. Imaginem, uma criança de 6 a 7 anos que, ao final da tarde, ia à casa de Dona Cotinha, por três dias consecutivos, sofrendo com esse percurso, quando o desejo era o de assistir desenho animado, e não adiantava birra ou demonstração de fragilidade, pois, quanto mais frágil maior a necessidade da reza. Além da minha mãe, meu pai, (in memorian), também tinha sua forte devoção a São Cosme e São Damião, uma vez que oferecia, todos os anos, “caruru de sete meninos” aos santos, compromisso que herdou de sua mãe por ter parido gêmeos. Era um caruru de 1 Denominação dada por Seu Martins Góis da Silva a si próprio por ter recebido a mensagem do dom curativo através do Anjo Gabriel. 2 A delimitação da comunidade do Riachão dos Milagres será feita no primeiro capítulo desse trabalho no subitem 1.2: O cenário para a realização das curas 16 tradição, esperado por muitas pessoas, que, geralmente, no mês de dezembro freqüentavam a nossa casa para participar dessa devoção de meu pai para com os santos. Nunca entendemos muito toda aquela manifestação religiosa, mas tínhamos que participar ativamente. Confesso que não via a hora de completar meus oito anos para não mais compor a mesa dos sete meninos, no entanto, eu era uma garota pequena para a idade que tinha e, me lembro, perfeitamente, que até os nove anos ainda fiz parte da mesa, mesmo contra a minha vontade. Crescemos em meio às romarias feitas para Milagres de Brotas, às crenças de minha mãe, às leituras do catecismo, às promessas aos santos, ao culto às imagens em casa, as idas às ladainhas e às missas aos domingos. Formada nesse universo cercado por práticas religiosas diversas, sempre me interessei pela religiosidade popular e ao me deparar com os relatos sobre as práticas de cura proclamadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel, na comunidade Riachão dos Milagres, fiquei intrigada e com muitos questionamentos. Cada relato que ouvia aumentava a minha inquietação, gerando mais indagações. O contato com o assunto aconteceu na comunidade de Nossa Senhora Aparecida, zona rural do município de Varzedo-Ba, por intermédio de Dona Celina Francisca de Souza , minha sogra, senhora de uma profunda religiosidade, devota fervorosa de inúmeros santos da Igreja Católica. Ela narra vários casos de cura proclamados na Igreja do Anjo São Gabriel, vivenciados por ela mesma, por seus familiares e por alguns vizinhos da comunidade onde vive. Conta a efervescência na comunidade do Riachão dos Milagres nos anos de 1970/1980 e início dos anos 1990, que houve uma imensa procura pelas práticas de cura ali realizadas. As práticas curativas desenvolvidas na localidade a partir de 1967 tiveram início numa pequena capela construída por Seu Martinho e dedicada ao Anjo Gabriel, que é sempre denominado por ele e pelos devotos como Anjo São Gabriel 3, e é assim que o trataremos também, devido à representação que o anjo tem para essas pessoas, não como um anjo comum, mas como o Anjo São Gabriel mensageiro de Deus a Maria, nas histórias narradas nos Evangelhos da Bíblia cristã. Considerando-se todo esse contexto, alguns questionamentos referentes à procura pelos milagres realizados em Riachão dos Milagres, na figura de Seu Martins Góis Silva, bem como suas práticas nas últimas quatro décadas foram se formando. 3 O catecismo da Igreja Católica afirma que esta se associa aos anjos “para adorar o Deus três vezes santo”, festejando, principalmente, a memória dos anjos São Rafael, São Gabriel e São Miguel. 17 Entretanto, definimos como questões centrais para análise as seguintes: - Qual a realidade sócio-cultural das pessoas que buscam as práticas de curas realizadas em Riachão dos Milagres? - Como a Igreja Católica visualiza as práticas realizadas em Riachão dos Milagres? - A comunidade do Riachão dos Milagres sempre foi assim denominada? - Por que houve uma redução na procura pelas práticas de cura proclamadas por Seu Martins Góis Silva, a partir do final dos anos 90? O marco temporal desta pesquisa está estabelecido entre os anos de 1967 a 2010. Trilhando a memória e oralidade dos sujeitos envolvidos nas práticas de curas operadas por Seu Martinho chegamos a este período. No conjunto das narrativas foram percebidas diferentes visualizações no tocante a estas práticas de curas, que variavam de acordo com as décadas. Nos relatos referentes às décadas de 1970/1980 e início de 1990, percebe-se uma crença mais fervorosa e uma procura mais intensa em relação às curas. A partir da metade da década de 1990, há uma redução considerável da demanda. Direcionar-nos a esse universo envolvendo a crença popular nas práticas de curas operadas por Seu Martinho, significa esmiuçar práticas e simbolismos populares, extremamente complexos e divergentes também vivenciados em outros lugares e em outras épocas de nosso país, ampliando os horizontes sobre a nossa cultura religiosa popular. Como já mencionado, muitas são as dúvidas sedentas por respostas para uma reflexão sobre a religiosidade local. Reflexões essas com a função de auxiliar os estudos sobre a religiosidade local e regional, como também num âmbito maior, pois as peculiaridades das práticas religiosas apresentam, quase sempre, heranças de movimentos religiosos anteriores, representando a dimensão da religiosidade e da cultura popular que está sempre se reconstruindo. É imprescindível que tenhamos um olhar aguçado e criterioso, para não agirmos de maneira apenas entusiasta no tocante à história regional. Ao pensarmos a temática regional, nos cabe estudar o contexto levando-se em consideração determinado espaço e tempo, problematizando-o. Nesse sentido: Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da história regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica. O espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a 18 qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar 4 Não é fácil demarcar os limites de um espaço, de uma região, apesar da necessidade de delimitação para se conceber uma história regional. Segundo Ângelo Priori, “(...) a região enquanto categoria espacial é uma construção dos geógrafos; e enquanto espaço social, construído historicamente, nada mais é que uma questão do ponto de vista do historiador”5. Dessa forma, não existem regiões delimitadas e, sim, construções dos historiadores e geógrafos nesses espaços, pois, “ a região torna-se uma questão da opção e da construção do historiador; é a partir de suas crenças, do seu suporte teórico e das questões apresentadas que este delimita uma região.”6 Assim, o estudo das práticas de cura operadas por Seu Martinho, na zona rural de Dom Macedo Costa-Ba, não se delimita apenas ao espaço geográfico, onde está implantada a Igreja do Anjo são Gabriel, não se reduz apenas ao lugar do templo, uma vez que envolve a busca dessas práticas por pessoas de diversos municípios da região, nos direcionando a problemas que abrangem as experiências vivenciadas por inúmeros indivíduos. O espaço da Igreja do Anjo São Gabriel se constituiu pelas práticas e vivências cotidianas dos devotos que modificaram o lugar, transformando-o em um espaço de sociabilidades. Os depoimentos orais foram as fontes utilizadas na delimitação e denominação do espaço da comunidade do Riachão dos Milagres, uma vez que não foi encontrada nenhuma fonte escrita nos arquivos da Prefeitura Municipal de Dom Macedo Costa sobre a delimitação da comunidade e quando passou a ser denominada Riachão dos Milagres. As dificuldades foram grandes devido aos desencontros de informações no tocante às temporalidades em algumas narrativas, porém ao cruzar todas essas narrativas com as fotografias existentes no arquivo pessoal de Seu Martins Góis da Silva, foi possível analisarmos a denominação e delimitação da comunidade. A escolha pelo estudo da história local não significa uma simplificação do número de aspectos e variantes do enredo social, ao contrário, o local pode levar à construção de novos elementos que marquem as experiências históricas. Assim cada detalhe, aparentemente 4 BARROS, José D‟ Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ:Ed. Vozes. 2004 .p.153. 5 PRIORI, Ângelo. História Regional e Local: Métodos e Fontes. In: Pós- história. Assis. São Paulo:UNESP 1994. p. 182. 6 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX. Salvador-Ba: UNEB, 2002.p.47. Para uma discussão sobre história regional e a definição de região, ver: OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. (Org.) História Regional e Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010 19 insignificante numa busca de grandes acontecimentos, adquire imenso significado na rede de relações plurais dos múltiplos elementos de construção social. Da mesma forma, não se pode pensar a história local em oposição à história nacional, uma vez que a primeira envolve os processos sociais que perpassam comunidades regionais, nacionais e globais. Enquanto os estudos nacionais apontam à homogeneidade e semelhança, o estudo regional demonstra as particularidades, diferenças, rompendo com estereótipos historiográficos: [...] o estudo regional oferece novas éticas de análise do estudo de cunho nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da História (como os movimentos sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a identidade cultural etc.), a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o específico, o próprio, o particular. A historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida com as diferenças, a multiplicidade. A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer a ponte entre o individual e o social 7 Nessa perspectiva, é importante destacar a diferença entre História Regional e Microhistória, à medida que a primeira faz o estudo da realidade recortada por ela mesma, enquanto a segunda faz uma redução de escalas de observação para perceber aspectos que poderiam passar despercebidos numa análise macro. Para Erivaldo Neves: A história regional e local procura descobrir com a análise do cotidiano de uma comunidade, as suas relações com a totalidade histórica; a microhistória, na investigação intensiva de fragmentos do cotidiano comunitário ou de um indivíduo, tenta identificar macro-fenômenos sociais.8 Desse modo, se apresentam com metodologia distinta no processo de investigação histórica, sendo que na análise da Micro-História o que importa “não é tanto a „unidade de observação‟ , mas a „escala de observação‟ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como ele observa, e o que ele observa.”9 A diferença encontra-se no sentido em que “estudar “a” região e estudar “na” região são evidentemente coisas distintas”.10 7 AMADO, Janaína. História e Região: reconhecendo e reconstruindo espaços. In SILVA, M, A.(org) República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero.1990. p.12-13. 8 NEVES. Erivaldo Fagundes. História e região: tópicos de história regional e local. In: Ponta de Lança, São Cristóvão v.1, n. 2, p. 25-36. abr.-out. 2008. Disponível em:http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/ponta_de_lanca/revistas/Ponta_de_lanca_v01_n02_completa.pdf. Aces so em 10.11.2009 Revista Ponta de Lança p.33. 9 BARROS, José D‟ Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos históricos. In. OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. (Org.) História Regional e Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010. p 237. 10 Ibid p 238. 20 No estudo da história Regional é imprescindível uma identificação e um rigor com as fontes, seguindo-se de recursos metodológicos que sejam mais adequadas a elas, diferenciando-se do trabalho do romancista, pois mesmo que se produza um discurso a partir da análise do discurso, a interpretação dada às fontes pelo historiador precisa indicar evidências, validando a sua produção. Referindo-se ao uso dos documentos pelo historiador, Erivaldo Neves aponta o cuidado em “considerar que eles transcrevem ações simbólicas do passado sem inocência nem transparência.” 11 Na utilização dos depoimentos orais, o historiador deve avaliar “a relevância e precisão dos fatos narrados pelo entrevistado.” 12 A variedade de fontes no estudo da História Regional e Local, requer do historiador um tratamento ainda mais rigoroso com estas, pois elas dão uma idéia muito mais imediata do passado. Segundo Raphael Samuel: A História local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma idéia muito mais imediata do passado. Ele a encontra dobrando a esquina e descendo a rua. Ele pode ouvir seus ecos no mercado, ler o seu grafite nas paredes, seguir suas pegadas nos campos (...)13 Em nossa pesquisa, encontramos as práticas de cura realizadas na comunidade do Riachão dos Milagres através de fontes orais e estas demandam um trabalho cauteloso. As fontes e os métodos utilizados na História Regional e Local podem representar problemas se não forem analisados criteriosamente. É necessário ler cada fonte nas entrelinhas para não cair em armadilhas. O trabalho com história oral exige atenção redobrada, não que exista hierarquia entre as fontes, ou que as fontes escritas tenham maior validade que as orais, mas pela própria dificuldade e pelos desafios colocados por aqueles que se utilizam da metodologia da história oral, uma vez que se trabalha com depoimentos de pessoas envolvidas em processos históricos que testemunharam acontecimentos da vida privada ou coletiva. Assim, dentre os muitos desafios da história oral, destaca-se o das múltiplas temporalidades, pois as memórias que os entrevistados trazem sobre suas experiências de vida são filtradas e seletivas, as quais envolvem sentimentos, emoções e visões numa narrativa que misturam sentimentos do passado, ressignificados por emoções do tempo presente. Para Antonio Montenegro: 11 NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade.Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.. P.95 12 Ibid, p.101 13 SAMUEL, Raphael. História Oral e Local. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero. v.9. nº 19.1990 p.220. 21 A memória coletiva ou individual, ao reelaborar o real, adquire uma dimensão centrada em uma construção imaginária nos efeitos que essa representação provoca social e individualmente. Nesse sentido o tempo da memória se distingue da temporalidade histórica, haja vista que sua construção está associada ao vivido, como dimensão de uma elaboração da subjetividade coletiva e individual, associada a toda uma dimensão do inconsciente. 14 Desta forma, é impossível uma separação entre tempo, memória e espaço para o estudo da História, por isso é necessário estar atento aos depoimentos orais, para não confundir as temporalidades que, em sua maioria, não aparecem de maneira cronológica nos depoimentos devido ao esquecimento e à seletividade dos depoentes. No que se refere às práticas de curas realizadas por Seu Martinho, o confronto entre depoimentos é fundamental para a desconstrução de estereótipos concebidos naquela comunidade. O uso da metodologia e das fontes orais, antes bastante restrito, tem na atualidade alcançado um espaço mais amplo nas pesquisas das ciências humanas e, em especial, nas pesquisas históricas. Em se tratando da história regional e particularmente das pesquisas acerca do Recôncavo Baiano é significativo os trabalhos que dela se utilizam. 15 Neste sentido, destacamos de modo especial três trabalhos que rememoraram a história das práticas cotidianas e religiosas vivenciadas no Recôncavo Sul da Bahia. O primeiro deles é a dissertação de mestrado Memórias e Tradições: viveres de trabalhadores rurais no município de Dom Macedo Costa- Bahia 1930-1960 de Edinélia Maria de Oliveira Souza, que analisa as experiências vividas pelos trabalhadores rurais de Dom Macedo Costa, evidenciando o cotidiano destes. Tendo como foco as memórias de exescravos e mestiços, a autora mostra o dia a dia desses sujeitos, inseridos num contexto voltado à agricultura de subsistência, relatando suas heranças culturais.16 O segundo trabalho é a dissertação de mestrado Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, saberes e diferentes práticas curativas. Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – 14 MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2001. p. 20. 15 Sobre os estudos do Recôncavo, utizando História Oral ver: SANTOS, Edmar Ferreira. O Poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador. EDUFBA. 2009. CASTELLUCCI JÚNIOR, Wellington. Pescadores da Modernagem: cultura, trabalho e memória em Tairu, Ba (1960-1990). São Paulo: Annablume. 2007. SANTANA, Charles D‟Almeida, Fartura e Ventura Camponesa: trabalho, cotidiano e migrações, Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. 16 SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Memórias e Tradições: viveres de trabalhadores rurais do município de Dom Macedo Costa - Bahia (1930-1960). Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História Social. PUC/UNEB. São Paulo. 1999. 22 Bahia (1940-1980) de Denílson Lessa dos Santos, na qual busca analisar as práticas religiosas populares realizadas na região de Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo Sul da Bahia. Utilizando-se da história oral, o autor reflete como as práticas das benzedeiras, raizeiros, curandeiros, dentre outros, no período de 1941-1977, diferentemente das consideradas científicas, permearam as tradições, principalmente as baseadas nas experiências e costumes afro-descendentes da Bahia.17 O terceiro trabalho é Gente de promessa, de reza e de romaria: Experiências devocionais na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980), dissertação de mestrado de Elivaldo Souza de Jesus, na qual ele busca analisar as experiências devocionais de trabalhadores rurais do Recôncavo Sul da Bahia, entre 1940 e 1980. Partindo das ladainhas rezadas no espaço doméstico e as romarias ao santuário de Nossa Senhora dos Milagres de Brotas, onde o autor elucida o cotidiano desses sujeitos, nas mais variadas faixas etárias, no tocante à construção de identidades e suas sociabilidades, vinculando o trabalho diário destes e suas devoções aos santos e à prática do catolicismo popular. Analisando assim, nesse grupo social, seus valores, costumes e tradições culturais.18 Nesse universo voltado para a religiosidade do Recôncavo Sul, o estudo sobre as práticas de cura na Igreja do Anjo São Gabriel, mostra a diversidade religiosa da região, envolvendo as devoções e o culto ao divino, as peregrinações, promessas e crenças em milagres de uma forma pluralista. Seu Martinho, ao narrar sua história de vida, conta os fatos de maneira seqüencial abordando cronologicamente os acontecimentos que levaram a um cerne: a sua bem-sucedida “missão”, como fruto de uma vida religiosa e social intocável e de doação. No entanto, essas narrativas estão carregadas por suas expectativas de vida, seus desejos de infância, o seu sonho mal sucedido de ser padre e sua formação religiosa, os quais misturados formam depoimentos, onde os acontecimentos reais se confundem com a imaginação e as temporalidades não estão muito bem definidas, fazendo-se necessária uma análise criteriosa e apurada. 17 SANTOS, Denilson Lessa dos. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, saberes e diferentes práticas curativas. Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado do Programa de PósGraduação em História da UFBA. 2005. 18 JESUS, Elivaldo Souza de. “Gente de promessa, de reza e de romaria”: Experiências devocionais na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA. 2006. 23 Apropriando-se da metodologia da História Oral, pretendemos rememorar as práticas de cura realizadas por Seu Martinho, em Dom Macedo Costa-Ba, suas continuidades/ descontinuidades e, para tanto, utilizamos as memórias e recordações dos indivíduos, através das entrevistas concedidas. Segundo Paul Thompson: A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto à finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da história - seja em livros, museus, rádio ou cinema - pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras19 Desta forma, sendo os depoimentos orais impregnados de subjetividade e muita riqueza, foi necessária interpretação minuciosa, pois os mesmos carregam muito das crenças e das experiências de vida do entrevistado. Ademais, trabalhar com a memória é fazer com que as pessoas revivam os acontecimentos e se sintam sujeitos da história. Isso porque “a memória contém os elementos básicos para a construção de uma concepção histórica.”20 Referindo-nos às lembranças das pessoas que buscaram as práticas de cura de Seu Martinho, suas memórias indicam interpretações individuais, dependentes de suas necessidades, vivências e formação cultural, no contexto em que estejam inseridas. Através da memória, é possível recuperar as lembranças de acordo com quem as vivenciou. Aqui, o trabalho com a memória dos sujeitos envolvidos nessas práticas de cura, permitiram perceber a repercussão destas nas últimas quatro décadas dentre esses sujeitos, bem como, as mudanças e permanências à procura das mesmas. Utilizamos depoimentos orais de moradores das áreas rurais e urbanas das microrregiões de Santo Antonio de Jesus, Valença e Jequié, que narraram sobre as curas recebidas ou presenciadas com a intervenção de Seu Martinho, rememorando suas experiências. Seu Martinho, também nos relatou sobre sua missão e sobre as práticas de cura ocorridas na igreja do Anjo São Gabriel, na comunidade do Riachão dos Milagres. O uso de fotografias tem uma relevância nesse contexto, uma vez que se encontra em perfeita consonância com as fontes orais, ajudando a desvendar dúvidas e auxiliando no 19 20 THOMPSON, A voz do passado- história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1992. p.22. MONTENEGRO, Antonio Torres .Op. Cit, p. 18. 24 processo de rememorização dos entrevistados. Foram utilizadas fotografias da sala de promessas da Igreja do Anjo São Gabriel e do arquivo pessoal de Seu Martinho e as realizadas nas diversas visitas à comunidade de Riachão dos Milagres. A utilização dessas fotografias funcionaram como um forte artefato para esta pesquisa, dando margem a interpretações além do que pode ser simplesmente visto. A pesquisa no livro de Atas na Câmara de vereadores do município de Dom Macedo Costa, também auxiliou a analisar a participação política de Seu Martinho, no exercício do cargo de vereador no período de 1979 a 1982. Além disso, a utilização dos livretos “Salve o Mensageiro do Anjo São Gabriel” e os “Milagres do Anjo São Gabriel”, veiculados dentre os devotos da comunidade, revelaram-se como aliados nas discussões dos casos de cura ocorridos em Riachão dos Milagres, da abrangência das práticas religiosas ali vivenciadas e na análise como meio de propagandas para as curas. Os contatos com os entrevistados representaram momentos de tensão e expectativas. Cada possibilidade de entrevista era esperada com grande entusiasmo, em que um arsenal de questionamentos ia surgindo. No entanto, algumas entrevistas que criaram expectativas não renderam grandes narrativas, pois alguns entrevistados se intimidaram com a presença do gravador ou deram respostas curtas, sem descrever os acontecimentos, não rememoram detalhadamente suas experiências, mesmo com a nossa mediação. Contudo, outros entrevistados narraram detalhadamente suas experiências quanto às práticas religiosas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Esse trabalho divide-se em três capítulos: O primeiro capítulo intitulado O culto aos santos, santas e anjos em busca de cura: a fé nos intercessores entre o ser humano e o divino tem o objetivo de analisar através das narrativas, as sociabilidades vivenciadas pelos devotos que recorrem às práticas de cura proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Traz também a delimitação do espaço da comunidade do Riachão dos Milagres, a partir das práticas religiosas ali vivenciadas. Além disso, analisa a história religiosa de Seu Martinho que se confunde com sua própria história de vida, observando as narrativas dos envolvidos no universo de curas. Além dos depoimentos orais, as fotografias ajudaram significativamente na composição do capítulo. O segundo capítulo “Tenho toda certeza de que fiquei boa lá”: os casos de cura proclamados na Igreja do Anjo São Gabriel é composto, em sua primeira parte, pela análise de um conjunto de narrativas sobre alguns casos de cura ocorridos na igreja do Anjo São Gabriel e seus desdobramentos no imaginário dos populares que compõem esse universo. Na segunda parte, analisamos um caso de cura específico e a simbologia da água que envolve a 25 crença nas curas proclamadas por Seu Martinho. Na terceira e última parte, fazemos uma análise sobre os ex-votos depositados na sala de promessas da igreja, como um ato público de fé e devoção das pessoas nas curas que acreditam ter recebido. As fotografias, os livretos “Os Milagres do Anjo São Gabriel” e os depoimentos orais foram as fontes utilizadas nesse capítulo. No terceiro capítulo “Hoje estou na batina e com a minha igreja”: as representações do Mensageiro do Anjo São Gabriel, mostramos a atual relação do clero da Diocese frente às práticas religiosas ocorridas na Igreja do Anjo São Gabriel, bem como as representações e relações religiosas e políticas de Seu Martinho no município de Dom Macedo Costa. Refletimos sobre a redução da quantidade de devotos à procura de proclamação de curas, considerando a acessibilidade no atendimento médico hospitalar na região, as práticas religiosas das denominações neopentencostais, o movimento da Renovação Carismática Católica e as curas através dos dispositivos televisivos. Aliadas às fontes orais e às fotografias, utilizamos as atas da Câmara Municipal de Dom Macedo Costa, do período em que Seu Martinho atuou enquanto vereador, para analisar suas relações políticas locais. Assim, os depoimentos orais, as fotografias, os livretos e as pesquisas nas atas mencionadas ajudaram a refletir sobre as peregrinações de devotos da região da comunidade do Riachão dos Milagres em busca de curas e bênçãos, proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel por Seu Martinho, contribuindo, desta forma, para a compreensão que envolve a cultura e as práticas devocionais do nosso Recôncavo Sul. 26 CAPÍTULO 1 O CULTO AOS SANTOS, SANTAS E ANJOS EM BUSCA DE CURA: A FÉ NOS INTERCESSORES ENTRE O SER HUMANO E O DIVINO. As memórias dos devotos que recorrem à intervenção do divino para o alcance de curas na Igreja do Anjo São Gabriel, apontam características de um catolicismo popular fortemente vivenciado no Recôncavo Sul. Para demonstrar as expressões dessa religiosidade, neste capítulo, indicaremos as devoções aos santos, santas e anjos na região, bem como, o processo de substituição da nomeação da comunidade de Riachão por Riachão dos Milagres e discutiremos, em particular, a história religiosa de Seu Martinho . 1.1- Recorrer aos milagres para os diversos males que acometem o corpo e a alma. As narrativas dos devotos que recorrem aos saberes de práticas de cura demonstram as sociabilidades vivenciadas entre as mesmas. Os estudos sobre memória21 indicam que a memória individual, representa um pouco da memória coletiva, uma vez que evidenciam as lembranças sociais do grupo em que se relaciona. Nas palavras de Maurice Halbswachs: A lembrança é em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Certamente, que através da memória éramos colocados em contato diretamente com algumas de nossas antigas impressões, a lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e as confidências dos outros, permite-nos fazer uma ideia do que foi o nosso passado.22 21 Para os estudos sobre memória, ver LE GOFF, Jacques. . História e memória. 4. ed Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1996. MONTENEGRO, Antonio Torres Op,Cit. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos, Rio de janeiro, vol.02, n 3, 1989. 22 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Edições Vértices.1990. p.71 27 Ao analisarmos as narrativas, fazemos uma representação do passado através de histórias de vida que envolvem lembranças e esquecimentos, passagens que têm significados positivos na vida dessas pessoas e que são importantes serem lembradas. Ao contrário disso, acontecimentos que carregam traumas, sofrimentos, desafetos nem sempre os depoentes gostam de trazê-los à tona. Nesse sentido: O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com freqüência porque é desgastante ou embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante, muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos (...) Se o futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentre nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade.23 A memória não é o simples ato de recordar, ela é elemento constitutivo do reconhecimento de nós mesmos enquanto sujeito de uma sociedade, construindo assim identidades e formando consciências individuais e coletivas. Nessa perspectiva, ao analisarmos as narrativas sobre o universo de curas e as devoções religiosas desse trabalho estaremos compondo um contexto de vivências e sociabilidades que envolvem, de forma geral, pessoas residentes na zona urbana e moradores de áreas rurais no Recôncavo Sul 24, pessoas simples, de pouca ou baixa escolaridade, donas de casa, trabalhadores (as) rurais, devotos, como Dona Celina, que recorrem aos santos, santas e anjos para intercederem e resolverem os males cotidianos de uma maneira mais cômoda e imediata. Aí eu comecei a pedi a Deus e a Bom Jesus da Lapa, que eu era muito devota de Bom Jesus da Lapa e aí já conhecia o Anjo São Gabriel, já vinha rezano pra ele e aí eu pedia todo dia que me desse a cura pra eu não carecer ir pra médico.25 23 BOBBIO, Noberto. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.30-31. Sobre o Recôncavo Sul ver: O Recôncavo Baiano: uma região una e plural. In OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos.Op.Cit.. p.47-72. Sobre as sociabilidades no Recôncavo Sul ver: SANTOS, Denilson Lessa dos. Op.Cit.. JESUS, Elivaldo Souza de. Op.Cit. 25 Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada. Entrevista realizada na Comunidade de Nossa Senhora Aparecida- Varzedo-Ba, em 10/03/2010. 24 28 Na narrativa de Dona Celina, notamos uma prática de recorrer aos santos como uma forma de auxílio para o seu socorro. Ela suplica aos santos, ao anjo, a Deus uma cura para um mal que lhe acometia sem a utilização dos serviços da medicina oficial. Mostra sua devoção, seu cotidiano de orações sempre em busca de alívio para os males do dia a dia, de maneira mais prática e rápida. Da mesma forma que Dona Celina, outras pessoas recorrem aos diversos santos fazendo-lhes pedidos e promessas, dando mostras de uma religiosidade movida por uma fé profunda nesses intercessores para a resolução dos problemas cotidianos. Assevera Elivaldo de Jesus que: Por todos os cantos rurais do Recôncavo homens e mulheres acabaram dando vazão, no próprio espaço de suas vivências e no seu cotidiano, a um profundo sentimento religioso. O exercício da fé cristã ia sendo feito de um modo particular, impregnado de crenças, de devoção e apego aos santos, de mensagens de esperança na melhoria de vida e até mesmo de congregação e solidariedade entre desiguais.26 Assim, no Recôncavo Sul as práticas religiosas foram se formando e se ressignificando com o culto aos santos, a participação em rezas, romarias e muito apreço aos espaços considerados sagrados. Especificamente no município de Dom Macedo Costa, o padroeiro São Roque tem uma forte representação na identidade religiosa local: Contam os antigos moradores da localidade que a devoção a São Roque iniciou-se devido a um surto de “bexiga da peste” na localidade. Os poucos recursos financeiros impediam a busca da medicina para o tratamento da doença. A fé exerceu uma função definitiva na vida das pessoas, que se apegaram ao santo através de uma corrente de orações e penitências para que a terrível peste fosse afastada. A partir daí, todos os anos, no mês de agosto, a festa religiosa tem início, com os peditórios e o leilão, onde os fiéis doam produtos da roça e animais ao santo, em troca de proteção e saúde.27 O culto a São Roque aparece como uma forma encontrada pela comunidade em sua formação para amenizar os males que lhes afligiam, tendo a devoção ao santo padroeiro permanecida ano após ano, através do hábito de fazer promessas e da realização de uma festa 26 27 JESUS, Elivaldo Souza de. Op. Cit., p.21-22. SOUZA, Edinélia Maria Oliveira.Op. Cit.. p.83 29 religiosa. Outros santos também compõem o universo de devoções de Dom Macedo Costa como o culto a São Benedito, São Cosme e São Damião, Santo Antonio, Nossa Senhora e São José. 28Destacamos aqui São Roque por ser o padroeiro e ter denominado o município ainda quando era arraial de São Roque do Bate Quente. Notamos assim, uma religiosidade caracterizada por universo composto de uma tradição de fé e devoção aos santos, considerados fortes intercessores na solução para os males que acometem as pessoas no cotidiano. A devoção aos santos no Recôncavo Sul tem sua tradição desde o século XIX. Segundo Ana Oliveira, a presença de oratórios enquanto bem era constante do patrimônio de pequenos lavradores, médios e grandes fazendeiros da região e expressavam o apego aos santos e o exercício da religiosidade popular, característico das sociedades rurais do período, onde o estabelecimento das relações entre as pessoas e os santos, através de promessas, rezas, e outros meios, tomava o lugar do espaço deixado pela falta de assistência dos párocos e vigários responsáveis pelo bem-estar espiritual dos fiéis. De tal modo, ainda segundo Ana Oliveira: No campo e na cidade, a vida religiosa dos fiéis estava alicerçada em relações estabelecidas diretamente com os santos, através de alianças e contratos, expressando uma intimidade que era incentivada pela família e por toda a sociedade, que via nessas relações uma espécie de proteção suplementar àquela que advinha dos sacramentos.29 Em estudo sobre a epidemia da cólera na Bahia oitocentista, Onildo Reis David também aponta o recorrer aos santos como um costume dos baianos para resolver os problemas e salienta dentre as devoções o culto a São Roque de forma coletiva no município de Cachoeira-Ba, no qual as pessoas preferiam acreditar no poder de cura do santo a seguir as recomendações médicas para a prevenção da cólera.30. Dessa forma, percebemos que o culto e as devoções aos santos sempre tiveram uma forte influência no Recôncavo Sul no combate às 28 Ibid p. 81-92 OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Op. Cit .p.105. 30 DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: EDUFBA/ Sarah Letras, 1996. p. 96-97 29 30 doenças, simbolizando uma religiosidade marcada por uma intensa confiança nos santos na cura das mazelas de maneira individual ou coletiva. 1.2- O espaço para a realização das curas As crenças e vivências religiosas que tratamos nesse trabalho têm como espaço sagrado a localidade de Riachão dos Milagres, uma comunidade rural do município de Dom Macedo Costa, localizado na microrregião de Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo Sul da Bahia. RECÔNCAVO SUL DA BAHIA Fonte: CEI 1994.31 DOM MACEDO COSTA 31 JESUS, Elivaldo Souza de.Op. Cit., p. 21. 31 Fonte CEI 32 Trata-se de um pequeno município com pouco mais de 3.800 habitantes 33 que teve sua história iniciada quando surgiu um arraial, em 1883, a partir de uma capela dedicada a São Roque. Esta capela foi construída por um fazendeiro da região, cujas terras de sua fazenda se estendiam até o local onde hoje é o município. O arraial inicialmente era chamado de São Roque do Bate Quente, e tinha sua economia baseada nas lavouras de cana-de-açúcar, café, mandioca, fumo e uma discreta pecuária. Pertenceu ao município de São Felipe até o ano de 1962, quando ocorreu sua emancipação.34 Com um pouco das informações sobre o município de Dom Macedo Costa, poderemos adentrar na localidade onde abordamos a realização das práticas de cura a partir de 1967, em nome do Anjo São Gabriel, atraindo devotos de todo Recôncavo Sul, de outras regiões do Estado da Bahia e até de outros estados brasileiros35: a localidade de Riachão dos Milagres. Quando tomamos conhecimento do nome dessa localidade, de logo, nos 32 SOUZA, Edinélia Maria Oliveira.Op. Cit., p.25 Baseado no censo de 2007 do IBGE.Fonte: www.ibge.gov.br. Acesso em 18/07/2010 34 Informações baseadas no acervo da Biblioteca Municipal de Dom Macedo Costa-Ba. 35 Informações baseadas nos depoimentos das pessoas sobre as pessoas que buscavam as práticas de cura realizadas em Riachão dos Milagres. 33 32 inquietamos com uma possível associação dessa denominação com as práticas de cura ali proclamadas e com a relação entre água e milagres intrínseca na própria denominação.. Recorremos à prefeitura Municipal de Dom Macedo Costa a procura de documentos que nos mostrassem a partir de que período a localidade de Riachão dos Milagres passou a ser assim denominada, porém, apesar de toda boa vontade das pessoas que ali trabalham, tivemos a informação de que não existem esses tipos de registros ou documentos. Partimos assim para entrevistar alguns moradores mais antigos daquela localidade, e, a partir de suas vivências contaram um pouco da história, permitindo-nos fazer alguns registros: Desde que pra qui cheguei que já se chamava Riachão dos Milagres, é por que logo ali no fundo da casa de Martins tem um rio forte, chama Riachão, em função disso é Riachão, tanto é que do outro lado é jangada e da casa de Martins pra frente, ali é D. Vital, as localidades circunvizinhas. (...) Milagres é por conta da missão dele, aquilo ali chamava apenas Riachão.36 Trilhando a oralidade de Seu Antonio Barreto, percebemos a identificação da localidade de Riachão dos Milagres, a partir de um riacho, ponto de referência e de denominação do lugar, que passa a se chamar Riachão dos Milagres, após o surgimento da ideia de proclamação de milagres no local, modificando completamente aquele lugar, que se torna um espaço de vivências religiosas e sociais diferenciadas. Na visão de Michel de Certeau, “o espaço é o lugar praticado”37, no qual as pessoas com suas práticas e vivências cotidianas modificam esse lugar, transformando-o em um espaço de sociabilidades singulares. É o que aconteceu com a localidade de Riachão que se tornou Riachão dos Milagres, isso porque essas sociabilidades têm relevância incontestável na delimitação da região. Segundo Vera Silva: Elementos essenciais da definição de região são, em primeiro lugar, um território delimitado, passível de ser concebido como decomponível em subregiões, e, em segundo lugar, um sistema de valores e interesses que dá forma a uma identidade coletiva capaz de gerar “atitudes de lealdade e apego por parte dos habitantes. 38 36 Depoimento de seu Antonio Barreto Mota, ex-prefeito do município de Dom Macedo Costa. Entrevista realizada em 22/03/2010. 37 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ. Vozes. 1994. p.202. 38 SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: o Enfoque Metodológico e a Concepção Histórica. In SILVA, Marcos A. República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Martins Fontes.1990 p..44-45. 33 A partir de 1967, a comunidade de Riachão dos Milagres sofreu modificações no tocante às práticas religiosas vivenciadas no local que além de trazer pessoas de diversos municípios, transformou até o nome do lugar que passou a ser conhecido como Riachão dos Milagres. No caso de Riachão dos Milagres, Seu Martins Góis Silva, um filho do local, que morava e trabalhava na cidade de São Paulo, afirmou ter tido um sonho revelador em outubro daquele ano, através do qual passaria a ser o Mensageiro do Anjo São Gabriel realizando curas, com a utilização de água e orações.39 José Raimundo, ex-padre que atendia a localidade na década de 80, também menciona a denominação Riachão dos Milagres, a partir das práticas curativas realizadas por Seu Martinho: Riachão sempre se chamou, agora dos milagres, é dele pra cá, das coisas dele pra cá. Aquilo ali sempre se chamou Riachão. Por sinal é um lugar muito bem escolhido, você já notou que os místicos, os homens de Deus profundos, escolhem lugares parecidos? Onde a natureza é silenciosa, onde a vista do mundo é panorâmica, onde a gente conhece o verde numa tonalidade, daqui a pouco ele está em outra, o céu é azul, a montanha vai se perder. O lugar é ideal gente, eu não sei, acho que Deus gosta do que é bom, viu?40 A narrativa do ex-padre José Raimundo vem confirmar as palavras de Seu Antonio Barreto, apontando as práticas de cura realizadas na localidade como legitimadora do nome Riachão dos Milagres, que antes era apenas Riachão. Outro aspecto mencionado por ele é a beleza natural do local, com aspectos contemplativos, caracterizando um cenário ideal para a realização de experiências religiosas que seriam associadas a milagres, envolvendo todo um misticismo quanto à escolha de Deus por lugares e pessoas especiais para representarem milagres. Assim, a comunidade de Riachão dos Milagres, que antes de 1967 atendia pela denominação de Riachão passou a ter uma ressignificação voltada para práticas religiosas locais, movimentando a localidade com a vinda de devotos, romeiros ou até mesmo curiosos de diversos municípios da microrregião, como de Santo Antonio de Jesus, Varzedo, Nazaré, Muniz Ferreira, Cruz das Almas, São Felipe, São Félix, Sapeaçu e/ou de outras microrregiões 39 Discutiremos a história de Seu Martins Góis Silva no item 3 desse capítulo. Depoimento do ex-padre José Raimundo Galvão. Entrevista realizada no município de santo Antonio de Jesus, em 23/04/2010. 40 34 da Bahia como Laje, Mutuípe, Valença, Taperoá, Nilo Peçanha, Paulo Afonso, Jequié, Itabuna, Salvador e até do Estado de São Paulo, dentre outros. Seu Antonio do Sindicato narra um pouco de onde vinham as pessoas para Riachão dos Milagres: Estrada no começo não existia. Existiam os caminhos, cobertos com varge e ia todo mundo caminhando a pé, uns de animal, outro de pé. Agora era uma coisa chamada uma maravilha... Era muito carro que existia naquela localidade ali de Martinho, de toda paragem... Que quando começou sair o anúncio aí começava vir gente de toda paragem: São Paulo, Salvador, de tudo quanto era canto vinha gente pra alcançar o milagre naquela localidade (...). E muita gente alcançou milagre não só cura, como tuberculoso, aleijado, mas de vício.41 A narrativa de Seu Antonio do Sindicato nos mostra que, além da variedade de pessoas advindas de municípios circunvizinhos, ele também faz referências a pessoas que se deslocavam de Salvador e São Paulo para “alcançarem o milagre” na localidade de Riachão dos Milagres, mesmo diante das dificuldades de acesso, já que não existiam estradas com acesso direto e fácil para o deslocamento até Riachão dos Milagres. Para chegar até lá, tinha que passar pelas trilhas em meio ao mato a pé ou utilizando animais. O acesso de carro era dado por outra estrada, porém formava um caminho bem mais distante de ser percorrido. Por um ou por outro caminho, o acesso à localidade era difícil e cansativo, porém diante do “anúncio” de curas ali, as pessoas não mediam esforços para alcançar solução para suas doenças e males. E esses “milagres” alcançados para doenças e vícios, Seu Antonio do Sindicato fez questão de testemunhar em sua narrativa. Sendo a região “fruto dos saberes, dos discursos que a constituíram e que a sustentam,” 42 notamos como a localidade de Riachão foi se reestruturando através de um permanente processo de desconstrução e construção, passando a ser popularmente denominada como comunidade do Riachão dos Milagres. As sociabilidades vivenciadas no local abrangendo pessoas oriundas de diversos espaços que por ali permearam, desconstruíram e determinaram a denominação da comunidade, a partir de práticas religiosas voltadas para curas e dos discursos construídos sobre a região, sobre a especificidade daquele lugar, daquele local, sendo ele ímpar na sua natureza física e mítica. 41 Depoimento de Seu Antonio Carlos de Souza Santos, conhecido como Antonio do Sindicato do Sindicato. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 23/03/2010. 42 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. In: Fronteiras. Dourados, MS, v. 10, n. 17, p. 55-67, jan./jun. 2008.p.58 35 Para Erivaldo Neves, “a localidade se constitui no espaço onde uma comunidade se estabelece e se desenvolve”43. Isto é, a localidade é resultado da convivência e das vivências de um grupo que se percebe como comunidade. Neste sentido, a experiência religiosa da comunidade ressignificou o espaço, pois: a delimitação de um espaço, regional ou local, pressupõe “a identidade de poderes” nele exercidos, dos “sinais que exprimem seu âmbito” e dos registros ou memórias que expressam as reações do grupo social a ele submetidos.44 Desse modo, as práticas de cura experimentadas na comunidade possibilitaram a identificação da mesma como espaço de acontecimento de milagres, através da água benzida e aspergida por Seu Martinho. Este passou a ser associado como interventor de curas, com um poder recebido do anjo São Gabriel. Reportando-nos à narrativa do ex-padre, José Raimundo, ele afirma que a comunidade do Riachão dos Milagres apresenta características ideais para a experiência religiosa que é ali vivenciada, mencionando mesmo que de forma interrogativa que “Deus gosta do que é bom”. É possível que, as características naturais favoráveis propiciaram uma maior propagação das práticas curativas ali realizadas e a composição do cenário tenha influenciado também as pessoas na busca pelas práticas de cura em Riachão dos Milagres. Além disso, a localização da igreja ao alto de uma montanha com uma “vista panorâmica do mundo” representa uma proximidade com Deus: “O alto, o distante no espaço nos dá a sensação da transcendência, do que é imensamente maior do que nós (...)”45 Sabemos que a peregrinação aos diversos santuários se deve pela sacralidade dada àquele espaço, com destaque dentre os lugares comuns. Dessa forma, o poder do espaço considerado sagrado atrai pessoas, pois se torna um lugar especial para os devotos, representando um espaço de ligação entre pessoas comuns e o divino. Os devotos buscam se aproximar do espaço sagrado como um meio de fortalecimento da própria fé, para terem realizados seus pedidos. Para Mircea Eliade, a natureza simboliza um valor religioso muito 43 NEVES, Erivaldo Fagundes. História e Região: Tópicos de história regional e local.In: Revista Ponta de Lança, São Cristóvão. V.1. abr.-out 2008.p.26 44 MATTOSO, José. A história regional e local. In: ______. A escrita da história: teoria e métodos. Lisboa: Estampa, 1997.p. 169-194 apud NEVES, Erivaldo Fagundes.Ibid p.28-29. 45 TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. São Paulo: Paulus, 2004. p.371. 36 forte para o homem religioso.46 Sendo assim, toda a descrição das belezas naturais feitas pelo ex-padre, José Raimundo, pode ter de alguma forma ajudado a intensificar o misticismo acerca da localidade de Riachão dos Milagres. Na década de 80, a capela construída por Seu Martinho em 1967 e dedicada ao Anjo Gabriel, deu lugar a uma igreja maior, atendendo a quantidade de pessoas que passaram a procurar as práticas de cura proclamadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel 47 , na localidade de Riachão dos Milagres. Quando padre na década de 1980 e especificamente em 1982, José Raimundo passou a ser responsável pela paróquia do São Benedito, atuando na comunidade do Riachão dos Milagres e também narrou sobre esse episódio: Quando eu cheguei lá eu fiquei impressionado com algumas coisas que eu vi. Eu vi pessoas simples se aproximando dele com carinho, vi a maneira simples, carinhosa e dedicada com que ele tratava as pessoas. Vi pessoas relatando fatos de experiências pessoais de vida transformada, de doença curada e aquilo começou a me chamar atenção. Aí eu fiz daquela capela um espaço constante de celebrações. Comecei a visitar, comecei a marcar as celebrações e comecei a gostar de ir ali, aí que é o problema. (...) Eu disse por que não aproveitar todo este empenho de Martinho com o povo e canalizar isso pro bom sinal, pras coisas de Deus? Porque isso também é de Deus, essa compreensão que nem todos têm. (...) Aí eu comecei a dar apoio, comecei a celebrar regularmente na capela de Martinho, como fazia nos outros lugares. Coloquei mais uma capela na perspectiva do que era o trabalho apostólico maior da paróquia toda e comecei a dar essa assistência. Eu me lembro que logo nos primeiros meses que eu freqüentava ali, eu via aquela multidão dentro de uma capelinha que não cabia nem dez pessoas, nem vinte. Eu disse: Martinho vamos aumentar essa igreja com essa multidão que temos aqui, aí Martinho disse “vambora”. Aí eu incentivei acreditando que eu iria fazer com ele campanhas e tudo, quando eu volto da próxima vez que eu tinha traçado todo o roteiro, como fazer a igreja, como ficava o altar, como ficava isso, Martinho já tava com a igreja quase pronta. Conseguindo isso com que? Com a ajuda do povo, porque ali vem gente do sul da Bahia, vem gente de outro estado é uma coisa que anda sem ele fazer esforço, porque a pessoa dele era humilde, simples, amigo, eu nunca vi tratar mal uma simples pessoa que vinha ali. O carinho com os velhos, com as crianças, com os doentes. Do lado da casa, tinha e eu acho que tem até hoje uma casa grande pra receber os peregrinos, essas pessoas chegavam ali tinham banho, tinham cama, tinham comida, tinham todo um trato de uma pensão, de um lugar decente pra passar uma noite, pra passar um dia, o quanto quisesse.48 46 ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Sao Paulo: Martins Fontes, 1991.p. 57. 48 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. 37 Com a narrativa do ex-padre José Raimundo podemos melhor desenhar o nosso cenário: uma pequena capela que mal cabia dez ou vinte pessoas, tentando abarcar uma multidão de crentes galgando curas, transformação de vida, uma palavra de conforto, de afeto, na pessoa de Seu Martinho, o qual representava o Mensageiro do Anjo São Gabriel, “o escolhido”, o ser humano excepcional possuidor de uma missão divina, podendo ser o elo mais próximo entre Deus e esses fiéis. Compondo o cenário, ao lado da capela se localizava a casa dos romeiros e a residência de Seu Martinho, desenhados no alto de uma montanha, cercado por muita vegetação. O ex-pároco, contou que começou a se aproximar e a gostar do que estava vendo, passando a ser o incentivador de Seu Martinho com as celebrações regulares em sua capela, que não era obrigação dele. Em outro trecho de seu depoimento, ele nos diz isso: Olha, eu já via falar de Martinho, muito tempo antes de ter assumido a paróquia de São Benedito da qual faz parte Dom Macedo Costa, em cujo território está hoje a capela de Martinho, o célebre Riachão dos Milagres. (...) Mas, uma vez assumindo a paróquia de São Benedito, aquela porção de território coube pra mim. Não era uma igreja onde eu devesse celebrar não, pois não era uma igreja oficial. Era uma igreja particular de alguém que tinha o seu trabalho e que fez daquilo ali um ponto de romaria, de encontro, etc. Eu não teria nunca a obrigação de ter aquilo como uma capela a qual eu deva dá assistência como outras, tipo Jacarandá, tipo o próprio Dom Macedo Costa, mas eu assumindo aquilo ali, eu achei que eu também deveria incluir no pastoreio da igreja aquele território.49 Riachão dos Milagres está inserida entre as comunidades do município de Dom Macedo Costa, que ainda hoje não é sede paroquial, pertencendo à paróquia de São Benedito, no município de Santo Antonio de Jesus. Antes da emancipação, em 1962, a comunidade de Dom Macedo Costa estava agregada à paróquia de São Felipe, mas com a emancipação passou aos limites paroquiais do município de Santo Antonio de Jesus, agregada à paróquia de São Benedito. Como pároco responsável pela paróquia de São Benedito, o então padre José Raimundo não necessitaria celebrar na capela de Seu Martinho por ser particular, fora dos domínios paroquiais, porém, ele quis conhecer e passou a incentivar o crescimento da religiosidade desenvolvida ali. Possivelmente, o padre José Raimundo percebeu que ali na comunidade do Riachão dos Milagres, havia espaço para a difusão da fé católica, ainda que 49 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. 38 através de uma ressignificação desta de uma forma mais popularizada. Assim, Seu Martinho que atraía populares de outros espaços pela crença em sua missão de cura, seria um meio de ligação entre a Igreja e àquela comunidade, fortalecendo os laços da religião cristã-católica, na região. Nas palavras de Pierre Bourdieu: As crenças e práticas comumente designadas cristãs (sendo este nome a única coisa que tem em comum) devem sua sobrevivência no curso do tempo à sua capacidade de transformação à medida que se modificam as funções que se cumprem em favor dos grupos sucessivos que as adotam. Do mesmo modo, de um ponto de vista sincrônico, as representações e as condutas religiosas que invocam uma mensagem original única e permanente, devem sua difusão no espaço social ao fato de que recebem significações e funções radicalmente distintas por parte dos diferentes grupos ou classes.50 A missão de Seu Martinho representava para a comunidade novas formas de conduta social e religiosa, dando um novo significado às práticas religiosas da região. Com o incentivo do ex-padre José Raimundo e com a ajuda dos devotos, Seu Martinho resolveu ampliar sua capela tornando-a uma igreja, e foi inserido dentre as comunidades pertencentes à sede paroquial de São Benedito. Dessa forma, as práticas religiosas difundidas por Seu Martinho se espalhavam pela região, dentro dos dogmas da Igreja Católica. Além da Igreja do Anjo São Gabriel, o nosso cenário de devoções religiosas, ainda é composto por uma casa de romeiros, existente desde o período da simples capela, sendo esse um espaço devocional, com condições para recepcionar pessoas advindas de outros municípios com o intuito de curar suas mazelas. A iniciativa do ex- padre José Raimundo contribuiu para a inserção das práticas religiosas no conjunto das normas da Igreja católica, vivenciadas naquela localidade, evitando um deslocamento daquelas pessoas na formação de um culto à parte da Igreja Paroquial. Foram canalizados os símbolos representativos dos dogmas da Igreja Católica presentes na missão de Seu Martinho para torná-lo um líder leigo51 de uma igreja de comunidade, uma vez que se fosse deixado à própria sorte poderia representar um perigo para a Igreja; se destacando como uma espécie de messias, capaz de liderar um grupo grande de pessoas com a finalidade de mudança de vida. Assim, Seu Martinho apesar de ainda ser visto pelas pessoas 50 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.52. Segundo o Código de Direito Canônico, leigos são os fiéis cristãos que não são ministros ordenados (padres, bispos, diáconos) podendo desempenhar funções de leitores nas ações litúrgicas, “exercer o ministério da palavra, presidir as orações litúrgicas, administrar o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, de acordo com as prescrições de direito.” 51 39 que procuravam suas práticas religiosas como uma pessoa com um dom especial de cura, estava inserido dentro do universo da Igreja Católica e seguindo as suas normas. A prática de cultuar os santos, traço marcante do catolicismo popular, sempre simbolizou a dinâmica da religiosidade brasileira, principalmente de caráter leigo, seja num pequeno oratório familiar até os mais famosos santuários. Isso porque, os santos sempre tiveram lugar de destaque no cotidiano do povo brasileiro, caracterizando o catolicismo popular durante muito tempo como um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”52. Porém, nos fins do século XIX, ocorreu a romanização do catolicismo no Brasil, com o objetivo de restauração, no qual se estabeleceu que as práticas religiosas seguissem a fé Católica Apostólica Romana. Para Azzi: A mentalidade que domina a reforma é a necessidade de criar no Brasil uma nova Igreja, de caráter apostólico romano, e sob a inspiração tridentina, em substituição à Igreja luso-brasileira do período colonial e imperial, dominada pelo Padroado. 53 A Igreja estava preocupada com a reforma do clero e do povo cristão. Visava preparar os sacerdotes, sob a direção dos religiosos europeus e também afastar o povo do catolicismo devocional, orientando à prática do catolicismo sob a ótica da doutrina sacramental. Num outro trecho de sua narrativa, o ex-padre José Raimundo menciona: Eu me lembro que coloquei o Santíssimo Sacramento na capela. Martinho virou ministro da eucaristia. Martinho vinha para as reuniões de ministro normalmente (...). Eu digo a igreja só teve lucro, porque aquilo ali era um lugar de fé, de oração, de amor a Deus. Martinho recebia os roteiros de celebração, ele fazia igualzinho, ele fazia bem feito, ele reunia o povo, ele fazia tudo direitinho, porque restringir isso? É melhor deixar uma igreja fechada ou o povo sem Deus? Ou ter uma pessoa legal que faz essas coisas com espírito de fé, de confiança em Deus? Eu olho por essa ótica.54 A pequena capela do início se transformara numa igreja pertencente à paróquia de São Benedito, obedecendo às normas da Igreja Católica Romana, com aspecto doutrinário, sacramental e, Seu Martinho passou a realizar, então, atividades religiosas institucionalizadas pela igreja. Isso porque “a paróquia é o quadro institucional onde o padre prega, ensina, administra os sacramentos, celebra o culto de Deus e dos santos, e congrega os leigos em 52 OLIVEIRA, Pedro R. de.O. Cit. p.285-286. Apud DAVID, Onildo Reis. Op. Cit. p. 99. AZZI, Riolando. Elementos para a história do catolicismo popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira. Vol.36. fasc.141.março de 1976.p.119. 54 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. 53 40 associações religiosas.” 55 O ex- padre José Raimundo regulamentando as atividades paroquiais, instituiu Seu Martinho como ministro da Eucaristia56 e ele passou a realizar celebrações da palavra aos domingos, seguindo os roteiros de celebração da paróquia. A comunidade de Riachão dos Milagres se tornou uma comunidade religiosa formal e, dessa maneira, a Igreja Católica exercia seu controle sobre as atividades desenvolvidas por Seu Martinho, encaminhando o povo nas normas estabelecidas pela igreja. Talvez, Seu Martinho tomasse um outro rumo sem o incentivo do ex-padre José Raimundo, representando uma ameaça para a Igreja Católica, à medida em que dispersasse a comunidade. Pelo que podemos notar, os seguidores de Seu Martinho apoiaram o direcionamento dado pela Igreja ao seu dom curativo, afinal ajudaram na construção da igreja e houve um crescimento do número de adeptos em busca das práticas curativas realizadas em Riachão dos Milagres. Recorrendo ao arquivo pessoal de fotografias de Seu Martinho, encontramos algumas fotografias que narram um pouco da história da comunidade. Mencionamos como arquivo uma quantidade de álbuns que Seu Martinho guarda em sua residência, mas que não estão arrumados em ordem cronológica, não havendo nenhum tipo de referência escrita ou legenda para as fotografias, o que dificulta um pouco a análise dos fatos. 55 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe: Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis-RJ: Vozes. 1985. P.306 56 Segundo o Código de Direito Canônico,can. 230 §3, o Ministro Extraordinário da Sagrada Comunhão é um leigo, que na falta de um ministro ordenado (padre, bispo ou diácono) pode ser instituído pela Igreja católica, de forma temporária ou permanente para distribuir a comunhão (hóstias consagradas) para os fiéis na Missa ou em outras celebrações, quando for necessário. 41 Fotografia 1: Antiga capela do Anjo São Gabriel- Arquivo pessoal de Seu Martinho. A fotografia acima nos mostra a antiga capela construída por Martinho em devoção ao Anjo São Gabriel no final da década de 60. Era uma capela pequena, mas notamos a participação de homens, mulheres e crianças, pessoas simples, aparentemente da comunidade. Ao lado, a casa de romeiros aparece com uma faixa de funcionamento como posto de vacinação, mostrando a utilização do espaço religioso particular de Martinho como um espaço comunitário. Um espaço de práticas curativas religiosas servindo de palco para as práticas preventivas da medicina acadêmica. Aqui percebemos que as práticas curativas alternativas e oficiais não ocupam pólos opostos para as pessoas que as utilizam, se misturando e complementando-se; mostrando, com isso, que as pessoas recorrem tanto à medicina oficial quanto às práticas mágico-religiosas para curarem seus males. Podemos ainda recorrer ao depoimento do ex-padre José Raimundo e perceber que Seu Martinho tinha uma notabilidade, respeito e liderança junto ao povo da comunidade de Riachão dos Milagres, já que o ex-padre se mostra atento “ao empenho de Seu Martinho junto ao povo” e canaliza essa representatividade junto à comunidade para institucionalizar sua igreja, já que apresentava ideais religiosos de liderar uma missão. 42 Fotografia 2: Celebração na Antiga Capela- Arquivo pessoal de Seu Martinho. Analisando a fotografia 2, podemos observar uma celebração ainda na antiga capela construída por Seu Martinho. Como registrado na imagem, data de junho do ano de 1983, período fervoroso da missão desenvolvida na comunidade de Riachão dos Milagres. Percebemos pessoas com vasilhames de água nas mãos para ser benzida, outras com alguns ramos possivelmente também para serem benzidos, demonstrando a intensidade da fé dos devotos. A imagem apresenta os devotos com a cabeça baixa expressando obediência e indicando um ato de contrição57 para reconhecer os próprios pecados e buscar através da bênção,uma absolvição e a cura como recompensa. No contexto, vale salientar que “a contrição perfeita é necessária ao pecador. É ela que apaga a mancha e o sofrimento eterno do pecado”.58 Ademais, a fotografia mostra ainda uma maioria com as mãos acenando para o alto 57 Segundo Delumeau, “para São Tomás de Aquino a contrição é um arrependimento perfeito: nossa liberdade, inundada pela graça, eleva-se então ao nível da caridade e lamenta suas faltas por amor a Deus.” Ver DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão:as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII.São Paulo: Companhia das Letras, 1991.p.43. 58 DELUMEAU, Jean. Ibid..p.44. 43 em sinal de louvor, de entrega e de uma forte crença no que estava sendo ali exposto pelo líder religioso. Provavelmente, seriam romeiros que vieram em busca da intercessão do anjo São Gabriel, pois dentre as diversas manifestações do Catolicismo, na versão popular, os santos e anjos realizam o intermédio entre o ser humano e Deus, curando os males e propagando milagres. Sobremaneira, entendemos que a romaria até Riachão dos Milagres visa à recuperação dos males do corpo, dos vícios e da alma. Como no imaginário popular os santos “se fazem presentes na terra por meio de sua imagem”59, os devotos tendem a se deslocarem em Romaria para cumprir as promessas direcionadas aos santos daquele determinado lugar. Não poderia ser diferente na comunidade do Riachão dos Milagres; pois, além da imagem do Anjo São Gabriel, os devotos contam ainda com a intervenção direta e viva do seu mensageiro Seu Martinho através das orações e da água benta. Essas expressões de fé revelam o catolicismo popular como uma manifestação religiosa de gerações humanas concretas, mostrando os envolvidos enquanto sujeitos históricos, inseridos numa realidade social, econômica e cultural. Sendo assim, “O catolicismo popular é uma religião voltada para a vida aqui na terra. Nesse sentido, é uma religião prática”.60 Utilizaremos a expressão popular na perspectiva de que a sacralização do espaço Riachão dos Milagres passou a existir no imaginário dos devotos que buscam as práticas de cura lá realizadas. Para Michel Vovelle: A religião popular que se pode propor como objeto de estudo, não é uma realidade imóvel e residual, cujo núcleo seria uma “outra religião” vinda do paganismo e conservada pelo mundo rural: pelo menos não exclusivamente. Ela inclui todas as formas de assimilação ou de contaminação e, sobretudo, a leitura popular do cristianismo pós-tridentino, como também as formas de criatividade especificamente populares.61 Logo, o catolicismo popular não seria simplesmente uma contraposição ao catolicismo romano, mas uma manifestação de religiosidade em que os devotos utilizariam elementos característicos do catolicismo oficial para realizar suas devoções e cultos a santos 59 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.,. p.114. ZALUAR, Alba. Os homens de Deus, um estudo dos santos e festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. apud VIANA, Roberto dos Santos e ANDRADE, Solange Ramos. O perfil do fiel no culto ao santo popular: o caso Clodimar Pedrosa Lô em Maringá.In: Revista Brasileira de História das Religiões. Ano III, Vol. VII, maio de 2010, p 01. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/st2.html 61 VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. 2 ed. São Paulo: Brasiliense.1991 , p.167 60 44 muitas vezes não reconhecidos, de igual forma o ato de fazer peregrinações a lugares considerados sagrados pelos fiéis, sem que tenham reconhecimento da igreja. Para Alba Zaluar “ o catolicismo popular deriva tanto de uma matriz erudita, não totalmente conhecida e absorvida, quanto de uma tradição coletiva e anônima”62. Nesse sentido, Pedro Oliveira descreve o catolicismo popular como “o conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados pelos fiéis.”63A prática popular do catolicismo em Riachão dos Milagres dependia da crença dos devotos no dom pessoal de Seu Martinho, concedido pelo Anjo São Gabriel. Ao considerarmos o imaginário dos devotos relacionando-o a peregrinação à Riachão dos Milagres, partiremos da caracterização da religião tanto quanto fenômeno da sociedade, integrante dos elementos históricos e sócio-políticos, como da experiência mítica e individual. O imaginário se formaria pelo conjunto dessas representações, constituídos pelos discursos, práticas religiosas e elementos simbólicos presentes no culto e devoção aos santos e anjos e à peregrinação aos lugares vistos como sagrados. Fotografia 3: Devotos em frente à nova Igreja- Arquivo pessoal de Seu Martinho. 62 ZALUAR, Alba. 1983. apud VIANA, Roberto dos Santos e ANDRADE, Solange Ramos. Ano III, Vol. VII, maio de 2010, p 02. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/st2.htmlI 63 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.. p.113. 45 Ao observarmos a fotografia 3, vislumbramos uma quantidade de devotos em frente à nova igreja, recém construída. As pessoas que ali estavam pousaram para a foto e nela percebemos que todas as mulheres encontram-se vestidas seguindo o padrão exigido por Seu Martinho: Saia comprida e blusa com mangas64. Nossa suposição é que essa fotografia tenha sido tirada para mostrar a igreja ampliada e a quantidade de devotos que a frequentavam. Quiçá para demonstrar que podia acolher um número maior de fiéis para receber a bênção ou cura com a água em destaque nas mãos de Seu Martinho. Poderia ainda simbolizar que a construção da Igreja foi realizada com o auxílio de vários fiéis ou ter sido utilizada como meio de divulgação da Igreja do Anjo São Gabriel. Fotografia 4: Seu Martinho e um motorista de uma romaria- Arquivo pessoal de Seu Martinho. 64 Discutiremos no segundo capítulo as vestimentas usadas pelas mulheres pra freqüentar a Igreja do Anjo São Gabriel, exigidas por Seu Martinho. 46 Fotografia 5: Motoristas das romarias- Arquivo pessoal de Seu Martinho. As fotografias 4 e 5 demonstram os transportes utilizados para levar as pessoas, o que nos permite supor que se tratavam de romarias que comportavam uma boa quantidade de pessoas, afinal, os carros eram apropriados para a condução de passageiros e não simples automóveis de passeio ou de uso apenas familiar que também se deslocavam de outros municípios em romaria para Riachão dos Milagres. Datam dos anos de 1983 e 1984, respectivamente, e narram alguns aspectos da comunidade Riachão dos Milagres. Um aspecto é a existência de uma estrada que os levasse até à comunidade, diferentemente daquele período narrado por Seu Antonio, do Sindicato, do qual ele se refere apenas a algumas trilhas. Notamos que a estrada foi construída no intuito de facilitar o acesso à comunidade. Num outro depoimento, o de Dona Celina Francisca de Souza, ela faz referência ao difícil acesso a Riachão dos Milagres nos anos 70: Eu fiquei sabeno em 74, em 1974, que um primo meu já tinha ido lá e um cunhado, e depois eu fui levar Dete, a gente foi, cumade Lurde formou uma lotação, mais cumade Nenzinha e levou Dete, que já ficou sabeno porque 47 Dete tava doente ficou sabeno que ia levar pra lá aí nós foi (...). E aí nós foi até o riacho que pra lá carro num ia.65 Pela narrativa de Dona Celina, nos anos de 1970 não era possível o acesso de automóveis até Riachão dos Milagres, sendo necessário atravessar um riacho e fazer uma caminhada a pé numa certa etapa do caminho, possivelmente referia-se ao caminho cercado por muita vegetação mencionado por Seu Antonio do Sindicato em seu depoimento. A fotografia 4 ainda nos mostra Martinho recepcionando ou agradecendo, muito provavelmente, a um motorista que trouxe uma lotação de romeiros para a sua igreja. O depoimento de Dona Celina também menciona a formação de lotações desde a década de 1970 para a comunidade de Riachão dos Milagres, mesmo enfrentando as dificuldades encontradas na falta de infra-estrutura de acesso à comunidade. Provavelmente, os devotos se aventuravam em caminhões “pau-de- arara”66 até Riachão dos Milagres impulsionadas pela crença nas curas proclamadas por Seu Martinho. A mulher que aparece na fotografia aparenta satisfação, alegria... Sua presença chega a desviar o nosso olhar da cena central da foto, que é Seu Martinho e o motorista. A fotografia 5 nos indica que há vários outros ônibus estacionados no local, formando uma fila. Ao menos quatro poderíamos apontar, já que temos quatro aparentes motoristas de lotação pousando para a fotografia. É muito provável que, esses ônibus seguiam lotados para Riachão dos Milagres, com romeiros das áreas rurais dos municípios circunvizinhos, como Aratuípe, Jaguaripe, Nazaré, Laje, Valença, Taperoá, Varzedo, Santo Antonio de Jesus. Talvez as práticas de cura realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel tenham sido divulgadas por outros romeiros ou até pelos próprios motoristas das romarias. Além da divulgação oral dessas práticas, existia ainda a veiculação de livretos impressos com a história de Seu Martinho e com os casos de cura67 realizados com a sua intervenção. A figura 6 é um exemplo dos livretos produzidos na década de 1980 na comunidade, com a autorização de Seu Martinho. 65 Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada. Entrevista realizada na Comunidade de Nossa Senhora Aparecida- Varzedo-Ba, em 10/03/2010. 66 São conhecidos como pau-de arara, os caminhões utilizados como meio de transporte de pessoas, em geral de romeiros ou retirantes que permitiam o deslocamento de comunidades rurais organizadas a nível local para algum espaço sagrado ou cidade. Ver JESUS, Elivaldo Souza de . Op.Cit. p.71. 67 Discutiremos os casos de cura no capítulo 02. 48 Fotografia 6: Capa do livreto com a história de Seu Martinho. No livreto, ele aparece ainda trajando-se de branco e com os cabelos compridos. Encontram-se à mostra suas mãos segurando a Bíblia e um copo com água, símbolos de sua missão: as mãos que aspergem a água e são usadas nas orações, em alguns momentos sobre o local a ser curado, a água para intervir nas curas, com os ensinamentos contidos nos textos bíblicos, seguidos literalmente por ele e pregados para os devotos do anjo. A fotografia de Seu Martinho na capa do livreto, se apresenta “como linguagem imagética, síntese do texto escrito”68 68 BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. São Paulo: Annablume, 2009. p.209 49 Fotografia 7: Igreja atual do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza em 04/09/2009. A fotografia 7 nos traz a imagem atual da Igreja do Anjo São Gabriel, que passou por diversas fases, de simples capela, como mostrada na fotografia 1, a uma igreja sem muita estrutura, com duas portas, sem seguir os padrões de construção arquitetônico de uma igreja, mostrado na fotografia 3 e sua estrutura atual, nos padrões de uma igreja católica em sua arquitetura, mesmo se tratando de uma pequena igreja. Percebemos uma placa com informações em uma de suas paredes da frente, em reconhecimento ao trabalho desenvolvido por Seu Martinho na comunidade: Fotografia 8: Placa anexada à frente da Igreja do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza em 04/09/2009. 50 A homenagem é prestada pelo Prefeito e pela Secretária municipal de educação. Neste caso, supostamente, porque ao lado da Igreja tem uma escola municipal de Ensino Fundamental I, que foi construída na propriedade da família de Martinho, em meados da década de 1990, como uma reivindicação dele mesmo no período em que exerceu o mandato de vereador, atendendo a um dos anseios da comunidade. Não nos aprofundaremos aqui nessas questões, uma vez que, discutiremos em um dos subitens do terceiro capítulo deste trabalho as atuações políticas e religiosas de Seu Martinho na comunidade e como a comunidade o visualizava, aceitando ou negando suas práticas. Fotografia 9: Casa de romeiros da Igreja do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza em 04/09/2009. A fotografia 9 traz a casa de romeiros tal como ela é, e que não passou por modificações desde quando ainda existia a antiga capela. Continua simples, sem infraestrutura. É a mesma casa que serviu como posto de vacinação mostrada na figura 1. Ainda nos dias de hoje, não tem os serviços de água e esgoto na comunidade e as pessoas que lá se hospedam carregam água em grandes vasilhames no lombo dos animais. Geralmente, são os homens que realizam essa atividade, enquanto as mulheres são responsáveis pelas atividades domésticas da estalagem. Possivelmente, o trato não é mais de uma “pensão”, como foi descrito o ambiente pelo ex-padre, José Raimundo. Talvez o fosse nos anos 80. 51 A mulher que aparece na janela da casa na fotografia 9, é Dona Magnólia, uma romeira que veio de Taperoá-Ba para se tratar de uma aparente erisipela em sua perna esquerda e estava a cerca de três meses realizando o tratamento. Ela não nos concedeu entrevista gravada, mas pousou espontaneamente para a fotografia e nos informou que no período havia mais outras três pessoas se tratando lá na casa dos romeiros, dentre elas, uma senhora do município de Paulo Afonso-Ba, com um tumor no maxilar, que estava desenganada pela medicina oficial e recorreu às práticas de cura realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Dona Magnólia nos informou a ocorrência de avanços nos tratamentos, em ambos os casos. Essa senhora se recusou a dar entrevista ou mesmo ser fotografada, alegando não gostar de expor sua aparência para ninguém. O que nos chamou a atenção era o fato de que ela sempre conversava com as mãos escondendo o maxilar. Observando Dona Magnólia na fotografia da casa de romeiros da Igreja do Anjo São Gabriel, percebemos nesta senhora uma profunda religiosidade, a ponto de deixar seus familiares e ficar em tratamento em Riachão dos Milagres, crendo nas práticas mágicoreligiosas lá realizadas. Mesmo dois séculos após a tentativa da Igreja de romanizar o catolicismo e da medicina utilizar a mais moderna tecnologia, as devoções populares continuam a cada dia se firmando dentre as práticas religiosas populares no Brasil. Os santuários e espaços considerados sagrados recebem corriqueiramente milhares de pessoas em romarias para a realização de seus pedidos e pela busca de milagres, a exemplo de Dona Magnólia. 1.3: A missão religiosa do Mensageiro do Anjo São Gabriel Analisando as memórias dos indivíduos que recorreram às práticas curativas, proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel, observamos as sociabilidades vivenciadas entre eles e a forte crença na história religiosa de Seu Martinho. História essa, memorizada ativamente por essas pessoas, como um roteiro de vida influenciado pela fé e pela forte expressão de devoção desde a infância. Mas afinal qual a história de vida de Seu Martinho? De que maneira lhe foi revelada a sua missão? Quando começou sua vocação pela vida religiosa? 52 A história do Mensageiro do Anjo São Gabriel começa com sonhos. Inicialmente sonho que se tem acordado, os desejos cotidianos. Filho de família simples, detentora de uma pequena propriedade de terra, com agricultura familiar de subsistência. Seu Martinho sonhou, desde a infância, em ser padre. Entretanto, órfão de pai quando ainda muito pequeno, não disponibilizava de recursos para ingressar no seminário. Quando adulto, tentou sem êxito ir para o seminário porém, já estava com idade avançada para tal empreendimento. Foi trabalhar em São Paulo e, mesmo não conseguindo entrar para o seminário, continuava a seguir a vida religiosa, na Igreja Católica como Congregado Mariano69. Muitos poderiam ser os motivos que levaram Seu Martinho a migrar para São Paulo na década de 60. Segundo Charles Santana: [...] entre 1950 e 1980, municípios da sub-região do Planalto do Recôncavo experimentavam uma profunda transformação na sua vida no campo. A concentração de terras, o avanço sobre as matas, a derrubada dos quintais de café e a extinção de roças de fumo, processos que se articulavam em um único movimento, expulsaram os trabalhadores rurais para as cidades próximas, outras regiões e estados brasileiros.70 Pela relevância do contexto, a busca por melhores condições de vida oportunizada por um emprego que lhe trouxesse uma remuneração mais vantajosa, auxiliando-o numa condição social mais próspera para a sua família poderia ter levado Seu Martinho a migrar para São Paulo, pois o trabalho em sua pequena propriedade de terra não era tão vantajoso assim. A vida dos migrantes nordestinos em São Paulo nos anos 1960, segundo Eder Sader se caracterizava pelo enfrentamento de muitas dificuldades diante de uma cultura estranha, que desvalorizava os conhecimentos rurais e, muitas vezes, fazia o migrante se sentir sozinho, isolado, perdido, em frente a novos padrões de conduta bem distintos aos que estavam acostumados.71Seu Martinho também passou por esse processo de estranhamento aos costumes praticados pelas pessoas na metrópole que se confrontavam com os seus: 69 De acordo com o Manual Devocionário do Congregado Mariano, Congregado Mariano é o cristão que por vocação presta culto à Vigem Maria, orando constantemente e se colocando na condição de servo, cooperando ativamente, bob a graça da direção e autoridade da Igreja Católica, na obra de Maria. 70 SANTANA, Charles d‟Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. P.110 71 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995.p.88-95 53 Aí fui a São Paulo. Fui a São Paulo. Cheguei lá fui para casa de uma prima. Aí eu ia pra igreja. Quando foi um dia chegô e...Ah, você vai pra igreja chega tarde... Aqui num tem esse negócio de tá na igreja todo dia não. Deixa pra ir somente nos dias de domingo. Quando foi no outro dia eu fugi da casa dela, porque ela num queria que eu fosse pra igreja. 72 O depoimento de Seu Martinho mostra as dificuldades enfrentadas por ele em São Paulo em relação ao seu costume de freqüentar a igreja todos os dias. Não fazia parte do cotidiano de sua prima esse exercício religioso havendo um choque entre os costumes e um rompimento na relação entre Seu Martinho e a prima, já que ela exigiu que ele abandonasse o hábito de freqüentar a igreja diariamente e começasse a frequentar as celebrações somente aos domingos. A prima dele apontou um motivo para essa exigência: o horário de chegada de Seu Martinho da igreja. No entanto, ela trata com estranheza o hábito ao se referir ao mesmo como “esse negócio”, mostrando assim, as diferenças de padrões vivenciados entre ela e Seu Martinho. Seu Martinho afirma ter fugido da casa de sua prima devido às dificuldades impostas por ela com relação as suas visitas constantes e diárias à igreja, indo procurar abrigo na Santa Casa de Misericórdia, onde trabalhou por um período e teve seu primeiro sonho revelador: Na Santa Casa de Misericórdia, era... então tava lá trabalhando depois que quando.... rapaz eu tô um dia aí eu sonhando com um milagre aqui. Aí eu vim de férias disse assim: minha mãe, eu sonhei com um milagre aqui. Aqui tem minador de água? Ela disse: Meu filho aqui quando chove é minador, poça de água por todo canto, agora no verão, só tem o rio. Repeti a palavra eu, eu, eu sonhano com um milagre aqui e depois desse sonho, só via assim aquela multidão de gente evén gente, evén gente e chegava perto de mim desaparecia o povo e oxém... Eu dizia assim: é guerra, eu mermo dizia assim é guerra, que tanta gente assim... e depois desaparecia. Aí fui me embora cheguei aqui eu contano a ela a história toda e voltei a São Paulo.73 72 Depoimento de Seu Martins Góis da Silva, 75 anos. Entrevista realizada na Comunidade do Riachão dos Milagres, em 27/02/2010. 73 Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado. 54 Nesse primeiro sonho, Seu Martinho nos conta que sonhou com “um milagre” nas terras de sua família. Ele estava se referindo a uma fonte d‟água milagrosa, a qual atraía muitas pessoas para a localidade. Sonho este que ele teve quando morava e trabalhava na cidade de São Paulo, no mês de junho de 1967, um pouco antes do seu segundo sonho, que o fez retornar para sua terra natal de vez e levar adiante sua missão religiosa. Ao retornar a São Paulo, Seu Martinho nos conta que teve outro sonho, no dia 30 de outubro de 1967. Na narrativa de seu sonho, nos descreve as atividades por ele realizadas durante todo o seu dia, principalmente seu exercício religioso, como ir à missa e comungar. Ao chegar em casa à noite e se deitar, após leitura intensa da Bíblia, Seu Martinho afirma que teve um sonho ou talvez uma visão e viu um imenso clarão em seu quarto, mesmo as luzes estando apagadas: [...] numa base assim de uma, duas hora da madrugada, aí eu tô veno a casa toda clara, eu me assustei, quando eu ... eu olhei a frente assim dos pés ... assim dos pés pra minha cabeça na parede tava uma luz do tamanhe uma lua cheia, agora a luz falava, eu disse assim: oxém? Aí eu a paguei as luz e a luz acesa? Uma hora dessa? Mas aí a luz tava falando: O arcanjo Gabriel que foi enviado ao padre Cícero, que eu fizesse três jejum, três sexta-feira, ao espírito santo santificado, que daquele dia em diante eu não tocaria carne na boca, nem sal, não tomar bebida alcoólica, não pensar no sacramento do matrimônio. Aquela missão ocorreu num Juazeiro com o Padre Cícero que eu tinha que corresponder, para com os cegos, os aleijados, os tuberculosos e o que viesse marrado na corrente. 74 Seu Martinho narra que acordou preocupado e percebeu o mundo de uma maneira diferente, diante daquela visão. Pensou até que o mundo chegaria ao fim. Ao abrir a porta de sua residência, só ouvia o galo cantando: “Cristo nasceu!” “A tua vida modificou!”. Deslocou-se até a casa de um colega de trabalho e deparou-se com a admiração do mesmo quanto a sua chegada devido ao horário: era por volta de cinco horas da manhã. Ao entrar na casa do colega, viu na mesa da sala uma jarra cheia de água e Seu Martinho via uma igreja dentro da jarra com a cruz fora da mesma. Apontou para o colega o que estava vendo, mas ele o acusou de estar “ficando maluco”, mesmo assim, Seu Martinho insistiu em mostrar sua visão: 74 Entrevista com Seu Martins Góis da Silva, 75 anos. Depoimento citado. 55 É que eu tô veno a igreja dentro da água e a cruz tá de fora, aí eu disse assim vem vê, vem vê a igreja, óia que igreja bonita! A cruz tá toda de fora dento da água. A igreja dento da água e a cruz fora da água.” E ainda ele afirma ter ouvido uma voz que lhe dizia: “É com a água que tu vais fazer a cura!75 Seu Martinho narra também que teve a impressão de estar coberto com nuvens, dando um forte grito e desse modo: [...] quando dei aquele grito, aí as nuve saiu, levantô de cima de mim, devagazim, devagazim, devagazim, com espaço de dois metro de altura, a voz repetiu: “Volta a tua terra natal, vai fazer a tua capela, pra cuidar de tua missão” . Aí... a minha vida foi essa, né? Aí eu tive que... tinha cinco ano de firma, Matarazo, o meu chefe num queria que eu saísse da firma e eu deixei tudo lá pra vim cuidá da.... Segui a Deus e ao seu povo.76 A narrativa dos sonhos de Seu Martinho nos permite diversos questionamentos no que tange à formação de líderes religiosos nas mais variadas localidades, que se iniciam com a propagação da realização de milagres em nome de um santo e levam à construção de uma igreja, onde passam a acontecer peregrinações, romarias, promessas e cultos. As religiões parecem sugerir que “Deus está um pouco mais adiante”77, encaminhando, os fiéis a peregrinarem por diversas localidades em busca de acalanto religioso. “Não somente o que está no céu, mas também o que está distante, alhures, que está mais adiante serve como imagem forte da simbologia religiosa” 78 . Desse modo, as peregrinações à Riachão dos Milagres, se ancoravam na crença de sonhos, considerados sagrados. Os sonhos de Seu Martinho são carregados de toda uma simbologia que podemos começar a analisar pela visão apocalíptica do mundo que ele tem na interpretação de seus dois sonhos. No primeiro sonho citado por Seu Martinho, ele se apercebe de uma fonte milagrosa em suas terras e uma multidão que chegava perto dele e desaparecia e ao final ele se questionava se era guerra. Após o segundo sonho, ele afirma ter tido visões que o levaram à especulação de final do mundo. Essas interpretações de seus sonhos nos remetem à visão apocalíptica narrada na Bíblia cristã, na qual se refere a guerras, fim do mundo, narrando acontecimentos de maneira profética. Apocalipse, que pelo seu termo original possui o significado de revelação, passou então a ser mencionada como fim do mundo, devido às 75 Idem. Idem. Ibid. 77 TERRIN, Aldo Natale. Op. Cit. p.370. 78 TERRIN, Aldo Natale. Op. Cit. P.371. 76 56 diversas interpretações que foram dadas aos textos apocalípticos da Bíblia cristã, carregados de alegorias e de ressignificações. Elementos presentes na tradição católica aparecem no relato do segundo sonho de Seu Martinho: igreja, cruz, galo, água, anjo. A aparição desses elementos ajuda a validar o sonho como uma mensagem divina de missão, dando um reconhecimento cristão para adeptos e devotos. Para Mircea Eliade “a fé cristã é sustentada por uma revelação histórica: é a manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos do cristão, a validade das imagens e dos símbolos.”79. Nessa perspectiva, a cruz aparece na simbologia cristã como símbolo de salvação e redenção do mundo, com o acontecimento histórico da Paixão de Cristo, “é através da cruz (= centro) que acontece a comunicação com o céu e, ao mesmo tempo, que todo o universo é salvo.” 80 Na visão de Seu Martinho, a igreja aparece dentro da água e somente a cruz está fora da água, nos mostrando assim a representação salvífica da cruz para Seu Martinho, devido a sua formação católica. Grosso modo, poderíamos dizer que na representação religiosa dele, a cruz estaria atuando como um elemento de salvação da igreja, uma vez que esta última representa, na simbologia cristã o próprio universo.81 Em relação à cruz, seguimos aqui a perspectiva de Cândido Silva ao afirmar que , “ a vida dos cristãos sertanejos está alimentada em grande escala pela mística da cruz, decorrente da perspectiva penitencial que orientou sua formação, reforçada pelo regime de privações e sofrimentos constitutivos de seu mundo”82. A cruz, no sonho de Seu Martinho, demonstraria essa mística penitencial e de renúncias para a realização de sua missão. A água, nos dois sonhos de Seu Martinho, aparece como purificadora, regeneradora, o elemento sagrado capaz de realizar as curas, livrando os doentes de suas mazelas. Nos depoimentos dos devotos que se direcionam à igreja do Anjo São Gabriel, é sempre mencionada e considerada como sagrada, benta, santificada. “A água confere um novo nascimento, por um ritual iniciático, ela cura por um ritual mágico, ela assegura o renascimento post-mortem por rituais funerários”83símbolo de cura, na missão religiosa de Seu Martinho, a água apresenta-se como “ a substância mágica e medicinal por excelência; ela 79 ELIADE,Mircea. Op. Cit. p.161. Ibid. p. 163 81 Ibid. p. 162 82 SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia.São Paulo: Ática, 1982.p. 60. 83 ELIADE, Mircea. Tratado da História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes. 1998. P.154. 80 57 cura, rejuvenesce, assegura a vida eterna”84Com poder curativo, revela-se como o alívio para os problemas e mazelas dos devotos do Mensageiro do Anjo São Gabriel. O galo cantando aparece no imaginário de Seu Martinho, após o seu sonho como um símbolo de confirmação que o anúncio da missão havia acontecido. Fazendo uma alusão às histórias narradas nos Evangelhos, o galo cantou três vezes para confirmar que Pedro negaria a Jesus Cristo no momento de sua prisão e calvário.85 Da mesma forma, a figura do anjo Gabriel aparece nas histórias dos Evangelhos como anunciador de missão a Maria, a sua prima Isabel, também irradiado por uma forte luz. A ideia de troca entre os santos e os seres humanos para concessão de graças, também marca o sonho do Mensageiro do Anjo São Gabriel, quando o anjo determina que ele faça abstinência de carne, sal, bebida alcoólica e não se case para receber o poder de cura, elementos bastante estratégicos da análise do que é sagrado ou santo, como “sua suposição de poder, sua ambiguidade em relação ao homem, seu caráter de respeito e o sentimento de dependência que desperta.” 86 Sendo a religião “uma questão de sentimentos, atos e experiências”87, é notório que o sonho de seu Martins Góis, esteja impregnado pelos elementos constitutivos de sua formação religiosa. Os jejuns são constantemente narrados nas histórias do Evangelho que remetem à vida evangelizadora de Jesus Cristo, como sacrifício, purificação, com o objetivo maior de cumprir sua missão. Quanto ao celibato, seu Martins desejava ser padre, e esta é uma das condições exigidas pela Igreja Católica para se obter o sacramento da ordem. O sentimento de liderança também está fortemente presente no sonho revelador da missão de Seu Martinho, tido em 1967. Expressões como “seguir a Deus e ao seu povo” “vais fazer tua capela” e “corresponder à missão do Padre Cícero” mostram que sua missão estava marcada pela liderança de uma comunidade, na sua “terra natal”, uma liderança por um motivo excepcional, extraordinário, caracterizado pelo o que é sagrado, que provoca atitude de respeito por parte das pessoas. Esse sentimento de liderança nos remete ao fenômeno do carisma. Para Max Weber: 84 Ibid. p.157. A história de Jesus Cristo encontra-se nos livros dos evangelistas Marcos, Lucas, Mateus e João na Bíblia Sagrada. 86 THOMAS F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria pioneira Editora.1969 p. 36. 87 Ibid., p.34. 85 58 [...] uma certa qualidade de uma personalidade individual, e em virtude da qual se separa de homens comuns e é tratada como se fosse dotada de qualidades ou poderes sobrenaturais, sobre-humanas ou, pelo menos, especificamente excepcionais. Tais qualidades não são acessíveis à pessoa comum, mas são vistas como de origem divina ou como exemplares, e a partir delas o indivíduo é tratado como um líder88 Quando Seu Martinho afirma que acredita ter recebido uma missão religiosa, ele se diferencia das demais pessoas conferindo a si próprio uma condição especial, a condição de escolhido para execução de tarefas mágicas, reveladoras e poderosas, diante os outros: E a ideologia da revelação, da inspiração ou da missão, constitui a forma por excelência da ideologia carismática porque a convicção do profeta contribui para a operação de inversão e de transfiguração que o discurso profético realiza impondo uma representação da gênese do discurso profético que faz descer do céu o que ele devolve ao céu aqui na terra. 89 Desse modo, com a sua crença na importância de sua missão religiosa, muitas pessoas passaram a segui-lo com a convicção de que Seu Martinho tinha o dom da cura dado pelo Anjo Gabriel. Esse poder atraia os populares, muitas vezes desiludidos ou com medo de recorrer à medicina científica, preferiam se deixar encantar pelas promessas de curas rápidas e mágicas sem passar pelos longos e severos tratamentos médicos, envolvendo medicamentos caros, internamentos em hospitais e os temidos bisturis. Seu Martinho conseguiu conquistar seguidores que o respeitam e o aceitam a partir de uma missão religiosa de curar doentes das mais variadas mazelas, designada por um sonho ou visão que já dá um direcionamento de sua liderança na comunidade, caracterizada de forma extraordinária, sagrada, porém espontânea. Aqui percebemos como os homens respondem com respeito e fascinação a experiência religiosa que é vista como sagrada e extraordinária, uma vez que o poder visto como sagrado atrai o crente. O quê é designado como sagrado para as pessoas: [...] desperta sentimentos que se caracterizam, simultaneamente, por terror e atração, amor e medo, horror e fascinação; e esses sentimentos são acompanhados pela convicção do crente de que está preso e envolvido num destino mais elevado.90 88 WEBER apud O‟DEA, In: THOMAS, Op.Cit. p. 37. BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. , p.55 90 THOMAS, F. Op. Cit. p. 36 p. 37. 89 59 Esses sentimentos opostos de terror e atração, horror e fascínio, amor e medo, característicos dos fenômenos carismáticos podem ser percebidos na própria narrativa de Seu Martins Góis quando o seu colega de trabalho, Zé, ao saber de sua visão o questiona a respeito da sua sanidade mental: “tá ficano maluco?”. É o sentimento de indignação, que ao mesmo tempo aproxima os devotos, acreditando e procurando às práticas curativas proclamadas por Seu Martins Góis Silva. Tantas outras pessoas também ficam ou ficavam com esse sentimento de dúvida, porém acabam buscando aquelas práticas religiosas, acreditando na veracidade de uma missão. O ex-padre José Raimundo Galvão narrou em depoimento, um pouco da reação das pessoas que se viam entre o medo e o fascínio em conhecer as práticas religiosas vivenciadas em Riachão dos Milagres: “e o pior que às vezes os próprios católicos simples quando falavam em Martinho, já falavam com medo e quem ia lá já começava a ser olhado com suspeição”91 Reportando-nos mais uma vez a expressão “corresponder à missão do Padre Cícero” mencionada no sonho de Martinho, percebemos o modelo de santidade presente no imaginário deste. Daria continuidade à missão de ninguém menos que o Padre Cícero, figura tão venerada por milhares de devotos por todo o Brasil, com uma história de santidade, a qual Martinho trilharia um percurso bastante similar: menino de família pobre, com vocação desde criança para o sacerdócio, que perdeu o pai ainda muito cedo, contudo, perseverante em seguir seus desígnios religiosos. Padre Cícero, entretanto, diferente de Martinho, teve um padrinho rico comerciante, que custeou seus estudos e o enviou ao seminário em Fortaleza, após ter contado ao padrinho o sonho que teve com o seu já falecido pai, dizendo que Deus o ajudaria a dar continuidade aos seus estudos. Esse não teria sido o único sonho revelador do padre a Seu Martinho. Já ordenado padre, teria tido outro sonho revelador em abril de 1872, que alterou seus planos de residir em Fortaleza e o manteve num pequeno povoado rural de Juazeiro. Sonhou com o próprio Cristo o ordenando que tomasse conta dos pobres daquela região.92 Estabelecendo uma relação de analogia, Martinho também teve um sonho que o fez mudar de vida e assim, como na história do padre Cícero, tornou público o seu sonho ou visão com os desígnios do Anjo São Gabriel. Nessa perspectiva, Ralph Della Cava menciona os sonhos ou visões do Padre Cícero: 91 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. Sobre a história do Padre Cícero Romão Batista ver DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 92 60 Anos depois, ocorreram “outras visões” e, em todas elas, se discernia o mesmo padrão: figuras de indubitável autoridade apareciam para decretar e garantir ao piedoso clérigo o seu futuro rumo de ação. Nunca se mostrou avesso em revelar tais experiências aos amigos e parentes que, como ele, movidos pela mesma devoção e ingenuidade, chegaram a reverenciá-lo como um homem de singular e indelével vocação para a santidade.93 Seu Martinho também teve sonhos que vieram a definir os seus rumos de ação, por isso não poderíamos deixar de mencionar as polêmicas que envolvem a crença na missão do Mensageiro do Anjo São Gabriel a partir de um sonho, já que seu desejo desde criança foi enveredar na vida religiosa se tornando padre e mesmo sem êxito não abandonou a Igreja Católica, atuando então como leigo. Diante dessa realidade perguntaríamos: Há veracidade ou verossimilhança no sonho de Seu Martinho? Talvez não nos caiba o aprofundamento nessa questão, uma vez que tendo ou não veracidade ou verossimilhança, através desse sonho, Seu Martinho conseguiu e consegue até os dias de hoje manter devotos fiéis as suas práticas curativas a ponto de testemunharem mudança de vida atribuídas as mais diversas curas lá obtidas. Alguns devotos creem fervorosamente que a missão de seu Martinho é uma continuidade da missão do Padre Cícero: “ as pessoas é... sempre diz é... é o espírito do padre que invoca nele.. Eu acredito nisso.”94 E também o chamam de padrinho: “(...) eu acho, eu acredito que seja talvez pelo milagre que tomam lá na igreja aí chamam ele de padrinho.”95 Percebemos na fala de Florisce, uma moradora da comunidade de Riachão dos Milagres, que é forte a crença dos devotos na semelhança da missão de Seu Martinho com a do Padre Cícero. A denominação de padrinho pelos devotos ocorreria tanto pela associação da aspersão da água para curar as doenças com o batismo, quanto pela idéia de que o padre Cícero estaria agindo nas práticas de cura proclamadas por Seu Martinho, seguindo assim o sonho revelador da missão deste último que iria “corresponder à missão do padre Cícero”. A ligação entre o padre Cícero e Seu Martinho é muito forte no imaginário dos devotos na Igreja do Anjo São Gabriel. Essa crença impulsionou a romaria dele, com cerca de trinta devotos, a Juazeiro do Norte no ano de 1980. Contou-nos Dona Janete que a viagem para Juazeiro foi programada com muito entusiasmo por Seu Martinho e alguns devotos que frequentavam a Igreja do Anjo São Gabriel e que acreditavam que a sua missão fosse uma continuidade da missão do Padre Cícero. 93 Ibid. p..27. Depoimento de Florisce Fagundes dos Santos,35 anos, professora. Entrevista realizada no município de Dom Macedo Costa, em 25/03/2010. 95 Idem. 94 61 A viagem foi realizada de ônibus com a duração de um dia e se hospedaram numa casa de romeiros e em suas memórias a fé era tamanha que viajaram com pouco dinheiro e a maioria sem documentos. Dona Janete contou-nos ainda que o ônibus foi interceptado pela Polícia Rodoviária Federal, devido à ausência de documentos da maioria dos passageiros e correram o sério risco de não irem adiante na viagem, porém os policiais os deixaram seguir com a condição de retornarem na quarta-feira, no plantão deles. A romaria chegou ao destino no dia 23 de março de 1980, e no dia seguinte era feriado no município devido às comemorações do aniversário do Padre Cícero e, de acordo com as memórias de Dona Janete, não puderam conhecer alguns locais na cidade.96 Fotografia 10: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce. Junto da estátua do Padre CíceroArquivo de Dona Janete Souza Na fotografia 10, percebemos Seu Martinho como sujeito central e o gesto que ele faz com o braço, possivelmente, indique que ele conseguiu estar bem perto do Padre Cícero como continuador de sua missão, trazendo uma romaria com devotos com uma forte crença nesse sentido. Ele se posiciona a frente da romaria, demonstrando uma apropriação de sua 96 Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza. 62 representação diante dos devotos enquanto “Mensageiro do Anjo São Gabriel”. Quiçá se coloca como verdadeiro padrinho que o é daqueles romeiros, diante da estátua do “padim Ciço”. As relações de compadrio na comunidade do Riachão dos Milagres se apresentam de maneira muito intensa e Seu Martinho tem muitos afilhados, afilhadas, comadres e compadres, sejam de batismo ou crisma, sejam através da água benta aspergida na cabeça de alguns fiéis que passam a considerá-lo como padrinho. Para Charles Santana “o compadrio aparece como uma instituição profundamente enraizada nas tradições rurais, mas com múltiplos significados”97 Na Comunidade do Riachão dos Milagres, essa relação de compadrio estava simbolizada pela água benta, aspergida por Seu Martinho nas cabeças daqueles que ali se apresentavam em busca de cura. Desse modo, ele era chamado de padrinho, como um cuidador dos fiéis: “Padrinho é assim como pai. Por que pai? Pai é aquele que cuida dos seus filhos (...) então as pessoas o veem como um pai, então foi uma expressão de carinho que tiveram com ele chamá-lo de padrinho”98 Os romeiros da fotografia 10, segundo o relato de Dona Janete, são devotos, compadres, comadres, afilhados e afilhadas, residentes nas áreas urbana e rural do município de Dom Macedo Costa, Varzedo, Valença, Taperoá e Muniz Ferreira. Encontram-se dentre eles alguns familiares de Seu Martinho. Percebemos que as mulheres presentes na fotografia, trajam-se de acordo com as normas impostas por ele: saias ou vestidos abaixo dos joelhos e blusas com mangas. Os devotos assim acreditam na existência de uma relação entre a missão de Seu Martinho e a do Padre Cícero no tocante às curas alcançadas, como se fosse uma extensão das práticas religiosas ocorridas em Juazeiro : “Bem tem essa relação pelo seguinte: eu que estive lá no milagre do Padre Cícero, eu estava com uns 15 anos, eu fiquei admirado com os testemunhos de graças alcançadas, de curas lá no Ceará, Juazeiro do Norte”99 97 SANTANA, Charles d‟ Almeida. Op. Cit.. P.51 Depoimento de Manoel da Lapa Silva Santos, 45 anos, sobrinho de Seu Martins Góis da Silva. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 24/01/2011. 99 Idem. 98 63 Fotografia 11: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce. Arquivo de Dona Janete Na fotografia 11, Seu Martinho e alguns romeiros, pousaram para fotografia em frente da Igreja de Nossa Senhora das Dores. Na história do Padre Cícero, ao mudar-se para o povoado de Juazeiro no ano de 1872, “Instalou-se numa pequena casa coberta de palha, defronte à Capela de Nossa Senhora das Dores (...)”, começando o exercício de sacerdócio “entre os pobres que lhe haviam sido confiados por Cristo no sonho predestinado”100. Seu Martinho apresenta-se com uma história parecida: devido a um sonho retornou a sua “terra natal” e construiu uma capela nas terras de sua família, defronte a sua casa. O padre Cícero “providenciou a reforma e ampliação do templo”101, assim como a Capela do Anjo São Gabriel transformou-se em igreja, com a dedicação de Seu Martinho e o apoio dos devotos. O sonho revelador de Seu Martinho dividiu e ainda divide opiniões quanto a sua veracidade, já que muitos acham que é fruto de sua imaginação ou até plágio das histórias narradas na Bíblia cristã. No seu depoimento, padre Nelson Franca, pároco há mais de 30 anos em Santo Antonio de Jesus, assim caracteriza o sonho do Mensageiro do Anjo São Gabriel: 100 101 DELLA CAVA, Ralph. Op. Cit.. P. 26-27. CARVALHO. Gilmário de.Madeira Matriz. São Paulo: Annablume. 1994.p 105. 64 A gente espera que como a Igreja tem a sua prudência, não tem negado, não tem condenado, não tem proibido, mas ela também não pode chegar e colocar uma coroa na cabeça de Martinho e depois essa coisa de cada um atribuir que Deus lhe chamou de forma pessoal que em sonho ouviu isso, aquilo e aquilo outro, não é? O anjo Gabriel trazer uma mensagem, a gente sabe...Veja aí como as alucinações podem, levar as pessoas a plagiarem aquilo que a escritura sagrada diz. O anjo Gabriel foi aquele... é o portador da mensagem de Deus a Maria, que ela seria a mãe de Jesus Cristo, então o anjo é o grande comunicador de Deus, é o porta-voz de Deus, a gente pode usar essa expressão, então a Maria, o anjo Gabriel fez uma comunicação. Olha o Martinho aí plagiando o que o evangelho diz na Escritura Sagrada, para dizer que o anjo veio a ele e lhe fez uma comunicação também, não é? E essa coisa do sonho é muito controversa, até onde eu aprendi e posso até ter aprendido de forma errada, ou não ter aprendido tudo, mas aquilo que a gente sonha é sempre algo que já passou pelo nosso consciente, que volta, que explode a partir do nosso subconsciente, então o sonho é uma visão repetida de algo que já foi real e concreto na vida da gente. Aquilo que a gente pensa, aquilo que a gente experimentou e viveu. Será que Martinho... o que é que ele pensa, o seu ideário é composto de que? O que é que ele tem dito a si mesmo, e isso volta no sonho...102 O ex-padre José Raimundo, da paróquia de São Benedito, que acompanhou a missão de Seu Martins Góis nos anos 80, descreveu assim o sonho: Todo padre, toda freira foi chamado por Deus. Como é esse chamado? Pra alguns é uma tia, uma avó, uma mãe, uma circunstância, uma dificuldade, um problema. Ele foi um sonho e o sonho é bíblico, o sonho é bíblico. Deus falou a José pelo sonho, chamava José de o sonhador, lá vem o sonhador... Freud pega o sonho pelo lado da psicanálise e faz virar ciência de sonho e diz sonhar com isso é isso, sonhar com isso é isso, todo mundo acredita! Agora não acredita numa coisa antiga velha que muda a vida de uma pessoa, que direciona os rumos de uma comunidade. Quando as pessoas acreditam em sonhos elas vão longe, viu! O sonho é perigoso, sonhar é perigoso, que faz as pessoas tomarem rumos novos de vida. A palavra específica do sonho é utopia, quando a coisa é tópica, é aqui, você compra um remédio tópico você bota no lugar da doença, mas em grego não, é utópico, quando é utópico vai acontecer um dia, eu não sei quando é. O sonho é a utopia, é o não-lugar, mas eu sei que eu sonhei, eu sei que isso me persegue. Uma pessoa atingida por um sonho de Deus é uma pessoa que nunca mais tem sossego enquanto o sonho não se realiza. Como ele, largou tudo em São Paulo, veio pra ali e ali... Foi criticado não é só por padre não, foi criticado por leigos, políticos e depois os políticos tentaram se aproximar.103 Assim como seu sonho ou visão, que o iniciou em sua missão de curar doentes, desperta dúvidas e levam o padre Nelson Franca a questionar se há veracidade ou 102 Depoimento do Padre Nelson Franca, 61 anos, pároco da Igreja Matriz de Santo Antônio. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 25/02/2010. 103 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. 65 verossimilhança nas palavras de Seu Martinho, as suas práticas de cura também foram vistas com desconfiança e dúvidas por muitas pessoas. O padre Nelson Franca questiona se o sonho que Seu Martinho afirma ter tido não seria fruto de sua imaginação ou de sua formação religiosa, já que ele diz que desde criança gostaria de ser padre. Considerando-se tais premissas, todos os aspectos religiosos presentes no que ele afirma ter sido um sonho, o levaram a ocupar uma posição de liderança na Igreja. Já para o ex-padre José Raimundo, todo religioso recebe sua vocação por chamado, que no caso de Seu Martinho ocorreu através de um sonho e ele sinaliza em seu depoimento que há veracidade no sonho de Martinho, mencionando as próprias histórias narradas na Bíblia Cristã como parâmetro de comparação. Porém, o ex-pároco ressalta mais adiante o perigo representado pelos sonhos capazes de mudar a vida das pessoas. Teria Seu Martinho se baseado no desejo que disse ter depois de adulto ou nos seus anseios religiosos desde a infância para se dedicar a sua missão? Não sabemos ao certo, apenas sinalizamos as possibilidades, pois uma resposta mais enfática demandaria mais pesquisas e quem sabe incursões pela psicanálise. Outros elementos que o acompanharam em sua vida religiosa fazendo um diferencial dentre os leigos líderes de comunidade caracterizam o sonho ou visão de Seu Martinho. Ele só se vestia com roupas brancas durante um bom período de sua missão e não cortava os cabelos. O ex-padre José Raimundo também recorda como Seu Martinho se vestia: [...] me lembro que no início ele vestia uns chambres meio doidos, vivia pela rua. Eu disse: Vamos acabar com isso, vista de branco, você não acha que tem que vestir branco então vista calça e camisa e ele me ouvia, me ouvia, me ouvia, acabou sendo aquela pessoa amiga minha de coração mesmo que eu tive como um grande amigo durante o tempo em que estive na Paróquia do São Benedito, então é desse Martinho que eu falo, o que eu vi lá só foram demonstrações de fé, de humildade, de procura de Deus, de se render a graça de Deus na doença, numa dificuldade e procurar um homem de Deus que tinha às vezes esse dom e tem esse dom. O mal da gente é pensar que o dom de Deus só passa por alguns, que o dom de Deus é controlado por uma instituição, não é, o dom de Deus é tão livre como a palavra que voa que a gente não sabe nem de onde veio nem pra onde vai. Então, foi nessa perspectiva que eu dei todo o apoio a Martinho. Não sei como está Martinho hoje, mas gostaria que estivesse no mesmo espírito que conheci quando eu trabalhei com ele.104 104 Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado. 66 Pela narrativa do ex-padre percebemos que ele foi aos poucos direcionando as atitudes que Seu Martinho deveria tomar. Conduziu o modo dele se vestir para os padrões sociais considerados normais pela maioria das pessoas. Manteve o diferencial de vestir somente a cor branca, provavelmente, porque isso poderia atrair as pessoas, reforçando a representação de Seu Martinho como diferente, especial diante dos outros seres humanos. Seria Seu Martinho um ser humano com um dom de curar e o ex-padre afirma ter uma forte crença na existência desse dom, apoiando-o. Talvez alguns outros padres da Diocese de Amargosa não acreditassem nesse dom de Seu Martinho, uma vez que o ex-padre José Raimundo menciona como “o mal da gente” a crença no dom de Deus apenas para aqueles em que a Igreja Católica controla. Em nome de que grupo ou categoria o ex-padre José Raimundo estava falando naquele momento? Seu Martinho era visto como “esquisito”, “estranho”, no início de sua missão, se “vestia com uns chambres meio doidos”, talvez para ter notabilidade dentre os cristãos ou por sua própria formação religiosa que o levou a tomar essas atitudes. Com o direcionamento dado pelo ex-padre José Raimundo, ele foi mostrando suas qualidades religiosas sem se tornar marginalizado da sociedade, sem provocar receios, dúvidas e dentro da estrutura da Igreja Católica. O padre Nelson Franca nos passou outras impressões que teve a respeito de Seu Martinho: [...] quando aqui cheguei em 1978, é nas celebrações, nos momentos fortes de vida religiosa aqui na cidade de Santo Antonio, porque naquela época era uma paróquia só, o Martins se apresentou e veio e freqüentava as nossas celebrações, sobretudo junto ao apostolado da oração, que é uma associação religiosa que congrega, sobretudo os mais idosos, os mais maduros na caminhada de igreja e ele se ligou a este grupo só se apresentava vestido de branco como faz até os dias de hoje e... Nunca lhe dei um tratamento diferenciado, apesar dele buscar, porque desde muito cedo que ele buscava ainda na época o bispo da diocese era D. Alair, hoje já falecido e... Ele buscava um tratamento diferenciado, porque apesar de ter uma dificuldade no... de fonaudiologia, ele fala meio é pelo nariz e tal, mas ele tem uma palavra meio fluente e... cativadora. Ele tem sentimentos paternalistas que afloram de maneira imediata e rápida. Sentimentos assim que o fazem próximo e fácil, então assim ele se tem colocado diante das pessoas.105 Percebemos na narrativa do padre Nelson Franca, que Seu Martinho buscava um tratamento diferenciado dentre os demais cristãos-católicos, participando na paróquia dos 105 Depoimento do Padre Nelson Franca, 61 anos, pároco da Igreja Matriz de Santo Antônio. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 25/02/2010. 67 momentos festivos. Pelas palavras do padre, Seu Martinho já demonstrava um forte desejo de estar agregado à Igreja Católica, participando do Grupo Apostolado da Oração 106. Quando nos deparamos com os depoimentos do padre e do ex-padre parece que está se falando de duas pessoas diferentes. O que o ex-padre chama de “demonstrações de fé” o padre caracteriza como “sentimentos paternalistas”. Estaria Seu Martinho movido por atitudes paternalistas, que as tornariam “próximo e fácil” diante das pessoas? Ou acreditaria Seu Martinho estar se rendendo “às Graças de Deus”? Os representantes formais da Igreja Católica estariam distantes e inacessíveis à comunidade? E a comunidade em geral como visualizam/visualizavam Seu Martinho? É possível que Seu Martinho tenha buscado na religião uma maneira de se destacar socialmente diante das pessoas da localidade através de sua missão, atraindo adeptos e seguidores em busca de respostas para suas mazelas: Se a religião cumpre funções sociais (...), tal se deve ao fato de que os leigos não esperam da religião apenas justificações de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da morte. Contam com ela para que lhes forneça justificações de existir em uma posição social determinada, em suma de existir como de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhe são socialmente inerentes.107 Diferente, paternalista ou se rendendo “às Graças de Deus”, Seu Martinho recebia devotos todos os dias da semana em sua igreja para rezar e curar os males do corpo e da alma como nos conta Dona Janete Souza, uma senhora que morou lá em Riachão dos Milagres na casa de Seu Martinho, realizando serviços domésticos, recebendo os romeiros e cuidando da igreja por nove anos e meio: Ele orava muito quando tava em casa, todo sábado ele rezava o ofício, dia de domingo ele rezava muito e todo dia ele ia pra igreja e orava muito e sempre num faltava gente, toda noite tinha as orações na igreja. Ele ia pra igreja rezava o pessoal e tinha as oração dele (...) qualquer hora todo dia da 106 De acordo co a Enciclopédia Popular Católica, Apostolado da Oração “é uma união de fiéis que, pelo oferecimento diário de si mesmos, se unem ao sacrifício eucarístico, assim colaborando com Jesus Cristo na salvação do mundo. (...) Faz parte da sua espiritualidade a devoção eucarística e ao Coração de Jesus.” Disponível em http://www.ecclesia.pt/catolicopedia/. Acesso em 03/10/2010. 107 BOURDIEU, Pierre.Op. Cit., p.48 68 semana, ia qualquer um doente e ele tava em casa, ele recebia... de noite, de tardinha, num tinha horário não, ele tano em casa... ele num negava.108 Na narrativa de Dona Janete Souza, Seu Martinho tinha uma rotina de orações diárias e de atendimento aos devotos que buscavam suas práticas religiosas a qualquer momento do dia, da noite ou da semana. O acesso a Seu Martinho era fácil e simples para qualquer doente que o procurasse e a cura era realizada com orações e água. No seu sonho, Seu Martinho afirma que ouviu uma voz lhe autorizando a realizar as curas utilizando a água. “É com água que tu vais fazer a tua cura”, foi a frase que Seu Martinho diz ter ouvido após o seu sonho revelador da missão e é justamente essa água com características salvíficas que os devotos buscam em Riachão dos Milagres. As práticas de cura proclamadas por Seu Martinho ganharam corpo se espalhando como realização de milagres entre os devotos, pela crença na missão recebida de forma extraordinária, a água como elemento curativo e por Seu Martinho seguir algumas condições para levar adiante sua missão: celibato, jejuns, abstinência de carne e uso de roupas brancas. Dessa forma, “os três componentes da cura primitiva encontravam-se presentes num ou noutro momento: a fórmula encantatória, o medicamento e a condição especial do praticante."109 Em sua história, Seu Martinho passou por algumas atividades profissionais antes de dedicar-se totalmente a sua missão que podem ter ajudado a direcioná-lo as suas práticas religiosas curativas. No “livro da vida Dom Macedo Costa 2006”, pertencente à Biblioteca Municipal com pequenos relatos biográficos dos ilustres cidadãos macedences, encontramos a seguinte descrição de Seu Martinho, comprovada pela fotocópia da figura 12, logo a seguir. 108 Entrevista com Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 10/03/2010. 109 THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra nos séculos XVI e XVII. São Paulo: companhia das Letras. 1991. p.159. 69 Fotografia 12: Livro da vida Dom Macedo Costa 2006- Arquivo da Biblioteca Municipal. Fotografia de Wilma Souza em 20/03/2010. No texto da fotografia 12, podemos perceber que Seu Martinho se dedicou a atividades ligadas a área da saúde nos municípios de Nazaré das Farinhas, de Santo Antonio de Jesus indo muito além, quando serviu à Santa Casa de Misericórdia em São Paulo, mencionada em seu relato. Talvez suas atividades profissionais na área da saúde tenham influenciado para a realização de atividades religiosas voltadas para pessoas enfermas. Há fortes indícios de probabilidade que Seu Martinho, mesmo tendo deixado de se vestir exclusivamente com a cor branca, tenha preferido pousar para essa fotografia trajando roupas brancas, indicando, assim, sua relação com a enfermagem e com sua missão religiosa. Sabemos que numa sociedade onde a maioria das pessoas não tem formação acadêmica ou até mesmo formação no ensino médio, dominar a leitura e a escrita pode significar um poder muito grande diante das demais pessoas. Ao aparecer nessa fotografia com um livro nas mãos, a representação de Seu Martinho pode sugerir a demonstração de sua instrução escolar. Mesmo tendo concluído apenas o Ensino Fundamental I, “ele é um homem que tem facilidade de comunicação (...) tem uma caligrafia muito bonita (...) Fez curso de enfermagem, trabalhou no Hospital Maternidade em Nazaré da Farinhas”110. Desse modo, ele 110 Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. 70 se apresenta como portador de uma missão religiosa com certa escolaridade, denotando um diferencial diante dos populares. As devoções ao Anjo São Gabriel na comunidade do Riachão dos Milagres, demonstram a fé que muitas pessoas têm no poder do extraordinário para curar as doenças que, no caso das práticas mágico-curativas, estão associadas à expulsão de alguma presença misteriosa no corpo do doente. Keith Thomas ao refletir sobre os enfeitiçadores e feiticeiros na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, menciona que em algumas situações os esconjuramentos de doenças “dependiam das qualidades especiais do curandeiro”. 111 Já Ângela Nascimento, ao analisar os agentes de cura no povoado de Matinha dos Pretos-Ba, observou nos depoimentos a indicação que as rezadeiras e benzedores, além de ter “em média mais de 50 anos”, “tiveram no passado, contatos estreitos com outras rezadeiras”112, demonstrando as condições especiais desses. Para os fiéis, ao aspergir a água benta, Seu Martinho estaria expulsando ou exorcizando a “presença estranha” do corpo daqueles que se apresentavam para ser curados. Seu Martinho teria então “qualidades especiais” para realizar curas no imaginário dos devotos: Recebeu uma missão através de um anjo já venerado entre os devotos, “ o mensageiro fiel de Deus”113. Essa fé no poder do divino, “implica numa concepção de mundo que nada tem a ver com a doutrinal, mas é o resultado de uma longa experiência coletiva”114. É esse universo de curas vivenciado pelos populares que discutiremos no capítulo a seguir. 111 THOMAS, Keith. Op. Cit. p.159. NASCIMENTO.Maria Angela Alves do. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos-Ba: Eliminar, reduzir ou convalidar? (Doutorado em Enfermagem) Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP.1997 P. 230. 113 Expressão apresentada na Ladainha dos Santos Anjos. 114 Nascimento, Maria ângela Sampaio. Op. Cit.,p247 112 71 CAPÍTULO 2 “TENHO TODA CERTEZA DE QUE FIQUEI BOA LÁ”: OS CASOS DE CURA PROCLAMADOS NA IGREJA DO ANJO SÃO GABRIEL O universo de curas vivenciado pelos devotos na comunidade do Riachão dos Milagres, envolve fé, promessas, peregrinações e representações. Nessa perspectiva, analisaremos nesse capítulo a procura pelas práticas de cura para diversas doenças, envolvendo a crença em milagres proporcionados pela água e pelo dom curativo do “Mensageiro do Anjo São Gabriel”. Discutiremos também os ex-votos, enquanto ato público de fé e devoção desses fiéis, na realização dos referidos milagres. 2.1. As curas para as variadas doenças Falar de religiosidade e de fé no Brasil é percorrer um terreno fértil, composto de muita riqueza, cercado das mais diversas histórias presentes na memória das pessoas que as expõe com veemência, mostrando além da sensibilidade as súplicas e necessidades cotidianas, as vivências e reinvenções religiosas a cada geração. Qualquer espaço sagrado apresenta particularidades merecedoras de uma análise apurada, enriquecendo cada vez mais o campo da religiosidade contemporânea, em suas tradições, devoções, atos de fé e contrição, que narram as crenças das pessoas dos mais variados lugares, mostrando “que as devoções populares no Brasil, atravessam os séculos, crescendo e se reinventando”115 Na Igreja do Anjo Gabriel não poderia ser diferente. Está marcada por histórias de curas para os mais variados males, narradas por pessoas oriundas de municípios diferentes a Dom Macedo Costa-Ba e com histórias e vivências peculiares. Pessoas devotas de outros santos e santas diversos, mas que nos momentos de necessidade recorreram às práticas de cura proclamadas naquele espaço considerado sagrado por muitos, apresentando visivelmente semelhanças com outros espaços sagrados, mas com particularidades diferenciáveis para aqueles que fazem suas promessas e pedidos ao Anjo e recebem a graça desejada. Dentro 115 TORRES-LODOÑO, Fernando. Imaginária e devoções no catolicismo brasileiro. Notas de uma perquisa. Revista Projeto História, nº 21. São Paulo: PUC- SP/Programa de Pós-Graduação em História, novembro de 2000. p.248 72 desse universo, as memórias das vivências de cura são relatadas com fervorosa certeza do alcance da graça: Aí eu tive uma perca e fiquei sentino uma dor dum lado e essa dor me atrapaiô quase um méis, aí eu fui na casa de um curador que chamava Xavier quando chegou lá, ele me revisto, me espio, disse que eu tava grávida eu disse a le que não ele disse que tava , que eu podia vim pra casa comer muito moio e come o que a natureza pedisse que eu tava grávida aí que uma amiga minha disse não ela num ta grávida, ela ta doente, aí não num tem nada de deonte só tem saúde daqui a nove méis nenê chora, aí eu vim me embora . Quando chego em casa essa dor vai continuano aí chegou outra amiga minha disse que ia me levar pra Salvador. Aí eu me apaguei com o anjo São Gabrié, que o anjo São Gabrié me ajudasse que eu fosse lá e eu num precisasse ir pra salvador que eu tinha muito prazer e alegria no meu coração e ele me desse essa bença. Aí aqui formou a lotação nois foi. Chegou lá le foi pro altar e tudo ele coloco a mão em minha cabeça e disse quem tive doença pra rezá separado me acompanhe. Aí eu acompanhei ele lá pra casa dele, quando chego lá que ele coloco a mão na dor ele oro, também ele num me disse nada, só você vai ficar boa, quando cheguei em casa, com treis dia eu botei um pedacinho de parto desse tamanhe. Aí ele disse você ta com utroaframado e um pedaço do parto pegado. Você vai ficar boa. Com treis dia eu botei e fiquei boa. Recebi a bênça aí eu fui lá no outro dia de domingo, cheguei lá recebi bença de novo, ele me passo jejum eu fiz, sete jejum, sete sexta-feira. Aí pronto fiquei boa até a data de hoje.(...) Tem muitos anos isso, lá em 77, 78...116 Analisando o depoimento de Dona Maria Aurelina, percebemos que a procura pelos saberes ligados às práticas de cura é corriqueira em sua vida. Para resolver seus males, ela recorreu a um curador e como não obteve êxito, voltou-se para o Anjo São Gabriel e foi em lotação à Riachão dos Milagres, buscar as práticas de cura proclamadas pelo seu mensageiro. Por quais motivos Dona Aurelina não procurou um médico para resolver seu problema de saúde? Por que se apegou ao Anjo São Gabriel para não ter que ir a Salvador se tratar? Sabemos que no “Recôncavo da Bahia, diversas crenças, ritos, saberes ligados às práticas de cura foram experimentados por pessoas pertencentes às variadas camadas sociais da região.”117 A procura por práticas de cura faz parte do cotidiano de muitas pessoas no Recôncavo, sendo disseminadas e utilizadas para cura de seus males. Não poderia ser diferente para Dona Aurelina, que também era rezadeira, mas para alcançar a cura para os próprios males recorreu ao Mensageiro do Anjo São Gabriel, e quando, no decorrer de sua 116 Depoimento de Dona Maria Aurelina, conhecida como Dona Geninha, aposentada, rezadeira.Entrevista realizada na comunidade rural de Nossa Senhora Aparecida, Varzedo-Ba, em 10/03/2010. 117 SANTOS, Denilson Lessa dos. Op. Cit..p. 73 73 entrevista foi interrogada não tinha os mesmos poderes curativos que Seu Martinho respondeu: “É deferente, eu num rezo que nem ele não e eu tem esse puder? Esse puder só quem tem é ele mermo dado por Deus, né? Mas a gente mermo não.” 118 O imaginário popular acerca do sobrenatural, da relação de Deus, Anjos e Santos com o ser humano é construído a partir das vivências e ressignificações religiosas das pessoas. No depoimento de Dona Aurelina, percebemos como Seu Martinho é considerado por ela como um intercessor poderoso entre ela e Deus, tanto que, ainda que ela fosse identificada como uma rezadeira renomada na localidade onde reside, se deslocou em romaria para buscar as práticas de cura em Riachão dos Milagres. Outro fator que merece análise é a sua promessa ao Anjo São Gabriel para não precisar ir a Salvador buscar tratamento, o que implicaria em demorado deslocamento a uma cidade com uma cartografia estranha, desconhecida, distanciamento da família, tendo custos com transportes ou dependendo de favores políticos na obtenção de uma ambulância, demonstrando assim as dificuldades que muitas pessoas tinham no período mencionado em ter um atendimento médico, além do medo que essas pessoas tinham de se submeter a um procedimento cirúrgico ou ainda a dificuldade financeira para adquirir os medicamentos. Eram diversos obstáculos que impossibilitavam as pessoas, seja por falta de recursos financeiros ou por uma forte religiosidade, a optarem pelos procedimentos de curas com caráter mágico-religioso, através de orações, bênçãos e jejuns como foi o caso de D. Maria Aurelina. O hábito do jejum também merece destaque no depoimento de D. Maria Aurelina, a qual sugere uma recompensa divina por sua realização. Assim, através dos sete jejuns receitados por Seu Martinho, ela espera ter como recompensa a cura para sua enfermidade. Na religiosidade cristã, o jejum aparece como uma atitude de forte devoção por parte dos cristãos que o fazem, seguindo as histórias narradas nos Evangelhos. No imaginário cristão, ao jejuar, o indivíduo assume suas culpas e pede redenção pelos seus pecados, numa espécie de purificação. Dentre os seguidores das práticas de cura proclamadas por Seu Martinho, encontramos os que vão à igreja do Anjo São Gabriel com uma doença para ser tratada, galgando uma cura, aqueles que vão às celebrações aos domingos, os que levam os familiares para serem curados e aqueles que, por viverem em localidades próximas à Riachão dos Milagres, observam atentamente as práticas de cura realizadas. Nesse universo de curas, 118 Entrevista com Dona Maria Aurelina. Depoimento citado. 74 observamos adeptos119que passaram por curas rápidas, concedidas em curto período, apenas com a bênção e aspersão de água durante as celebrações aos domingos, aqueles que precisaram ir vários domingos e fazer jejuns e ainda outros que ficaram por meses na casa dos romeiros para um tratamento intensivo com bênçãos, aspersão de água e jejuns. È diante dessa complexidade e contextualização que, desde 1967, muitas pessoas de diversos municípios e do próprio município de D. Macedo Costa se apegaram às orações de Seu Martinho e suas práticas de cura milagrosas. Apesar de algumas relutarem um pouco em narrar os casos de cura experimentados por si ou por seus familiares, contarem de maneira resumida, tímida, receosa, sem mostrar a riqueza de detalhes, podemos ousadamente analisar nesses silêncios os motivos que levam as pessoas a colocarem em prática a sua fé, buscando, através da demonstração da mesma, a solução mais viável para os seus males. D. Tereza nos mostrou de maneira resumida, sobretudo rica ao tratar da cura concedida ao seu filho quando ele tinha sete anos de idade: Bom... eu soube porque o pessoal sempre comentava que ele fazia essa cura, né ? Então meu menino tava com problema de hérnia, aí eu levei a ele com as oração e o milagre que ele dava a ele, ele se curou. E até hoje ele não sente mais nada e ele tinha realmente sete ano de idade nessa época, hoje ele tem 30 ano e não sente nada sobre essa hérne.( ... )levou mais ou meno dois méis pra ele dá a cura dele.Todo domingo eu levava ele.Lá ele recebia as oração e tomava o milagre. (...) Nessa época médico era mais difíci, risos... Aí ele se curou com ele... apesar que não foi ele, é o anjo Gabriel, né ? É ele, é ele que dá cura. 120 Na narrativa de D. Tereza, observamos que ela começa pela autodefesa, quando explica o porquê procurou as práticas de cura realizadas por Seu Martinho assegurando que ela só foi por que outras pessoas comentaram que haviam obtido êxito, e também procede em seu depoimento a dificuldade que teria se buscasse atendimento médico, já que ela se reportou ao final da década de 1980. Acontece que na década de 1980, já havia ocorrido uma ampliação de profissionais da medicina científica porém, muitas pessoas preferiam recorrer às práticas de cura mágico-religiosas, principalmente, aquelas que tinham dificuldade de acesso 119 Nesse capítulo trabalhamos com os depoimentos de Dona Celina Francisca de Souza, Dona Maria Aurelina, Dona Tereza Jesus dos Santos, Dona Estelita Santos Souza e Dona Janete Souza. Todas são devotas do Anjo São Gabriel e adeptas das práticas religiosas realizadas em Riachão dos Milagres. As quatro primeiras buscaram as práticas de cura proclamadas Por Seu Martinho. As duas últimas já residiram na casa de Seu Martinho, ajudando nos afazeres domésticos e da igreja. 120 Depoimento de Dona Tereza Jesus dos Santos, 54 anos, agente de serviços gerais de uma creche. Entrevista realizada no município de D. Macedo Costa. em 25.03.2010. 75 à cidade.121Essa defesa de D. Tereza demonstra o receio de sofrer algum tipo de preconceito por não ter procurado a medicina tradicional para a resolução da doença de seu filho e sim ter recorrido às práticas mágico-religiosas. A concessão da cura não foi imediata, D. Tereza levou seu filho, ainda criança, alguns domingos para receber orações e o “milagre”, isto é, a aspersão e a ingestão da água benta, e somente depois do período de um mês, é que a hérnia veio a desaparecer. Mas quem será que diagnosticou uma hérnia no filho de D. Tereza? Se ela afirma não tê-lo levado ao médico, devido às dificuldades, quem fez esse diagnóstico? No início de seu depoimento, dona Tereza afirma que com as orações e com a água dada por seu Martins ao seu filho houve de fato a cura de uma hérnia. No final de seu depoimento, ela diz que quem curou o garoto foi o anjo Gabriel, utilizando uma frase interrogativa, mostrando a fé depositada nas pessoas tidas como intercessoras entre os assuntos terrestres, em especial as mazelas, e a solução celeste. Aqui, Seu Martinho aparece como um intermediário entre os seres humanos e o anjo Gabriel na busca pela cura dos males do corpo e da alma. Nesse trecho do depoimento de dona Tereza notamos que apesar dela tentar explicar que foi a fé no anjo Gabriel que trouxe a cura para seu filho, existe uma confusão entre a fé no anjo e na missão de Seu Martinho, este é sempre apontado como o próprio realizador do milagre, indicando que no universo da religiosidade popular, algumas pessoas ainda não sendo consideradas ou reconhecidas oficialmente pela Igreja católica são dimensionadas à categoria de santas, mensageiras pela fé dos devotos. Nesse sentido as falas de D. Tereza e de D. Aurelina se entrecruzam apontando Seu Martinho como diferente, sendo atribuído a ele detenção de poderes religiosos distintos das outras pessoas. Devido a um problema de saúde não solucionado através da medicina acadêmica, Dona Estelita, 52 anos, residente em Dom Macedo Costa, auxiliar de serviços gerais também recorreu às práticas curativas realizadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel, em Riachão dos Milagres: Eu fiquei 21 dia internada, aí todo dia... eu tomei 111 injeção só comprada e que a casa dava, só se veno quanto era. Aí cheguei, depois saí do hospital fiquei lá 15 dia aí melhorei fiquei boa (...) Me disseram que eu tava com água na “peres”(pleura), aqui perto do coração, mas aí fez o exame e saiu sangue vivo ele disse que não era , mas me deixaram 21 dias internada lá. Lá em Seu Martinho eu levei 15 dias tava entre a vida e a morte, e aí depois eu fiquei boa(... ) Fui curada só com água e reza dele. Ele rezava , ele me rezava todo dia seis horas, eu fiquei lá na casa dele mesmo aí eu fiquei boa.(...) Eu 121 Ver: SANTOS, Denilson Lessa dos. Op. Cit. p. 170-178. 76 já ia lá, aí uma dia eu tava dormino e sonhei que ia adoecer e eia morrer, mas eu não acreditei, aí eu fui pra fonte lavar uma roupa, aí eu cair com a bacia e a bacia bateu aqui na costela eu pensei que tinha quebrado a costela eu comecei ir pro médico, aí não foi nada disso, aí também meu esposo me internou eu fiquei lá internada esses dia todo aí também quando saí pensei que nem ia... aí eu desmaiava, aí também fiquei boa lá... tenho toda certeza que fiquei boa lá, então tanto que hoje eu não esqueço, sempre vou lá porque sei que foi lá que eu achei a bença.(...) foi há 21 ano atrás.122 A narrativa de D. Estelita está constituída de elementos que se entrecruzam com os depoimentos das outras pessoas que recorreram às práticas de cura de Seu Martinho como também traz elementos diferenciados. Dona Estelita consegue trazer uma maior riqueza de detalhes no seu processo curativo. Ela não tem receio em afirmar que ainda hoje freqüenta a igreja e que antes de buscar a sua cura já freqüentava a Igreja do Anjo Gabriel. Além disso, dona Estelita vivenciou um período de 21 dias no hospital e não conseguindo êxito recorreu aos cuidados de Seu Martins que a curou somente com reza e água, diferentemente do período no hospital no qual se submeteu a um tratamento com 111 injeções, em sua maioria comprada, tendo assim uma grande despesa. Nesse sentido o Padre Nelson Franca, quando questionado, sobre o porquê da procura e do êxito das práticas de cura proclamadas por Seu Martinho, respondeu: E assim grosso modo, dia após dia, ele foi trazendo as pessoas para junto de si e, volto a dizer sustentado naquela idéia antiga de que religião é freio, e isso por um tempo consegue sustentar aqueles que fazem da religião o seu instrumento de poder ou de catalisação das pessoas e tudo mais e a partir daí o Martinho foi, é... deixando de ser um líder religioso que atraía para as rezas para se tornar uma curandeiro que atraía para si pessoas é... marcadas pelas mais variadas mazelas, pelas mais variadas dificuldades de ordem física e psíquica sobretudo, então pessoas que desacreditavam do médico, da medicina normal, não é? Não atendiam as orientações patológicas, medicinais, não sei se a expressão é essa, porque na verdade elas queriam a sua cura imediata, como médico nenhum cura de forma imediata, não é? A ciência tem o período em que as drogas medicinais agem e tudo isso conduzido também por um comportamento também diante da orientação médica, já o curandeiro ele estabelece o seu tempo e esse tempo é sempre muito rápido e por isso é uma forma também de segurar as pessoas. 123 122 Depoimento de Dona Estelita Santos Souza, 52 anos, auxiliar de serviços gerais. Entrevista realizada no município de Dom Macedo Costa, em 24 de março de 2010. 123 Entrevista com o padre Nelson Franca.Depoimento citado. 77 No seu depoimento padre Nelson Franca desconsidera o dom curativo atribuído a Seu Martinho em sua missão, numa tentativa de valorizar apenas as práticas religiosas institucionalizadas pela Igreja. Para o padre, as pessoas recorrem a essas práticas de cura devido a uma possível agilidade no processo curativo que na realidade ocorre devido ao carisma de Seu Martinho, ao incentivo que ele dá às pessoas, que em sua maioria tem problemas de ordem psíquica. De tal modo, diante da demora do tratamento medicinal científico, preferem acreditar no poder do curandeiro, que além de oferecer tratamento rápido ainda consegue manter essas pessoas adeptas e seguidoras de sua prática. As palavras do padre Nelson Franca indicam que ele acredita nessa adesão por parte dos devotos, a partir do poder de sedução e convencimento de Seu Martinho, aparentemente maior que o do médico, sendo este último olhado com desconfiança aqueles que guiam suas vidas pela concepção divina e não pela concepção racional, científica. Uma vez que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem ou a de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia (...)124, os devotos legitimaram a missão de Seu Martinho como curativa, divina, devido a crença no dom concedido pelo anjo e que foi aos poucos se espalhando com a narrativa do sonho revelador e dos milagres proclamados com a intervenção de Seu Martinho. Reportando-nos ao depoimento de D. Estelita, notamos que ela mantém o costume de ir sempre à Igreja do Anjo Gabriel no intuito de agradecer à bênção recebida por ela na sua cura, em apenas 15 dias. Ela afirma na entrevista que o seu caso de cura ocorreu há 21 anos e ainda nos dias de hoje ela continua fiel e com um posicionamento de agradecimento e respeito à bênção recebida. Diversos são assim os casos de curas apontados pelos depoentes como decorrentes das práticas religiosas realizadas por Seu Martinho, que evidenciam a diversidade nas manifestações da religiosidade do Recôncavo Sul da Bahia. Outro caso de cura foi contado por Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada, residente na localidade rural de Nossa Senhora Aparecida, em Varzedo-Ba. Apareceu uma doença no dedo grande do pé e aí foi aumentano essa dor e agora não sangrava... só fazia doer, não inchava e não apresentava nada, agora só que quando tocava qualquer coisa em cima doía e se tocasse uma talisca de capim saía sangue. E eu sentia dor que chegá quase pra desmaiar e depois meu sogro conversano com Adélia, uma tia dele, aí ela dizeno pra eu 124 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2000 p.15. 78 ir logo procurar o médico porque tinha uma que tava com o dedo assim, amputô o dedo e depois foi obrigado a amputá a perna. Aí eu comecei a pedi a Deus e a Bom Jesus da Lapa, que eu era muito devota de Bom Jesus da Lapa e aí já conhecia o Anjo São Gabriel, já vinha rezano pra ele e aí eu pedia todo dia que me desse a cura pra eu não carecer ir pra médico. Aí quando foi um dia cumpade Martim, nesse tempo não era cumpade ainda eu chamava de padim, aí ele apareceu aqui, aí eu já tava com esse pobrema no dedo aí ele foi aparece, aí eu falei pra ele que tava com o dedo assim e que já me encaminharo pra eu ir pro médico, mas eu não tinha ido ainda, aí ele disse “ É você nunca fez unha, nunca pintô unha e paga o justo pelo pecador” aí chegou rezô meu dedo disse que eu ia receber três bença, eu ir domingo receber três bença e rezô o dedo e disse pra eu não comer coisa remoza e botano milagre em cima. Aí eu fiz um pedido ao anjo São Gabriel que eu ficasse boa do pé, eu ia no dia da festa do anjo, dia 30 de outubro, eu ia... isso foi no mês de março, uma quaresma,aí no dia 30 de outubro eu ia de pé descalço, ariar meu pé e ir descalça pra festa do anjo. Aí quando fui pra festa do anjo já tava curada do dedo. Eu não sei se era um cânce, o que era que tava no dedo, fiquei curada.125 Na narrativa de Dona Celina percebemos características marcantes da religiosidade vivenciada por grande parte dos fiéis que, no Brasil especificamente, demonstram suas devoções, fazendo promessas aos diversos santos para se livrarem dos males do cotidiano. O fiel assume com seu santo preferido uma relação de troca, fazendo uma promessa, na qual se oferece algo ao santo, caso seu pedido seja realizado. “Recebida cura ou a graça pedida, o fiel se vê na obrigação de pagar o voto feito”126. Na cura descrita por Dona Celina, existe a promessa feita por ela ao Anjo Gabriel para não haver a necessidade de um médico para a cura de sua mazela, nesse caso o voto não foi um objeto a ser depositado como pagamento e sim a realização de um ato público de fé, indo descalça agradecer a graça alcançada. Segundo Pedro Oliveira, no catolicismo popular, existem duas formas de culto aos santos e santas pelos devotos: O modo contratual e o modo de aliança (...) O modo contratual é aquele pelo qual o fiel pede uma graça ao santo, obrigando-se a um ato de culto pelo qual o santo seja recompensado pela graça alcançada. Sua forma típica é a promessa. (...) O outro modo de relação entre o fiel e o santo é o da aliança. Contrariamente ao primeiro, o que está em jogo não é uma graça determinada mas uma relação permanente de devoção e proteção. O fiel se faz devoto do santo, esperando deste que ele seja seu protetor celeste, uma espécie de padrinho no céu.127 125 Entrevista com Dona Celina Francisca de Souza.Depoimento citado. AZZI. Riolando. O Catolicismo Popular no Brasil. Petrópolis : Vozes, 1978.p 84. 127 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.. p.117-118. 126 79 Observamos no depoimento de Dona Celina a prática dos dois modos de culto aos santos analisados pelo autor. Ela vai fazendo as alianças com os santos de acordo com suas necessidades, faz promessas, paga e continua fiel ao santo que ajudou a resolver seus problemas. Outro ponto que merece destaque é a relação de apadrinhamento existente entre os fiéis e Seu Martinho como uma espécie de intercessor entre o Anjo São Gabriel e o fiel. A água benzida e utilizada por ele para a intervenção da cura o faz padrinho e protetor dos devotos. Dona Celina conta detalhes de seu processo curativo, mostrando como os santos são, no imaginário popular, fortes intercessores entre os seres humanos e o sobrenatural, um elo entre os primeiros e Deus, mas de uma forma mais aproximada dos humanos. Os santos, no imaginário popular, respondem aos seus pedidos de forma mais ágil, como se os acolhessem rapidamente e tivessem uma maior compaixão para com esses necessitados, a ponto de se tornarem um protetor, uma espécie de padrinho. Além dos santos e anjos, ainda têm aqueles que são considerados uma espécie de profeta capazes de agir aproximando ainda mais os devotos de seus santos. Aqui, Dona Celina recorreu a seu Martins Góis para realizar esse intermédio, rezando o seu dedo e o abençoando com a água tida como milagrosa. É interessante que nas práticas religiosas de cura, se procure geralmente explicações para a doença e, no caso narrado por Dona Celina, foi o próprio Seu Martinho quem deu essa explicação, acusando a “vaidade” feminina ao fazer as unhas, bem própria de sua formação tradicional religiosa baseada no Antigo Testamento da Bíblia. Outro ponto marcante na narrativa de Dona Celina, que é comum aos outros casos de cura mencionados nesse capítulo, é o medo de necessitar de ir ao médico devido às dificuldades de locomoção a Salvador, de ter que deixar os filhos, o cônjuge, sem contar com os gastos que são sempre apontados nessas memórias. Ir ao médico, necessitar da medicina acadêmica, representada pela figura humana, muitas vezes, gerava desconfiança entre as pessoas que estavam à mercê desse serviço. Submeter-se aos serviços médicos, significava depender exclusivamente do conhecimento científico, acadêmico, o quê, muitas vezes, deixava os populares inseguros, instáveis. No Rio de Janeiro imperial, as discussões dos médicos relatadas nos jornais indicavam “o reconhecimento de que cometiam muitos erros e imprecisões” 128, espalhando insegurança dentre os pacientes. Aqui na Bahia, em meados do século XIX, uma epidemia de cólera teria espalhado pânico na população, que passou também a demonstrar “medo dos 128 SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT,IFCH, 2001. P.33 80 médicos e dos hospitais”, associando-os a idéia de morte.129 Isso porque “as instalações e as condições de higiene dos hospitais de Salvador eram bastante criticadas pelos médicos da época”130 Desse modo, mesmo com “melhoramento nos serviços hospitalares, criação de serviços de educação sanitária, clínicas e casas de saúde particulares” em Santo Antonio de Jesus no final da década de 1970 131 , sendo que atendia de modo extensivo aos municípios da região, a procura por práticas curativas mágico-religiosas ainda se constituía como um hábito de parte da população que preferia seguir suas devoções religiosas, confiando seus problemas ao poder dos anjos e santos. Muitos casos de cura foram veiculados na comunidade através de alguns livretos, encomendados por Seu Martinho. Alguns devotos, ao visitarem a Igreja do Anjo São Gabriel, levavam consigo essas notícias de curas relatadas nos livretos: [...]Maria Vita dos Santos, residente no Amparo do Tororó , nº 21 S, Salvador recebeu uma graça do Anjo São Gabriel que sentia lepra há 4 anos de sofrimento que até deu bicho de mosca nos pés. Maria Sônia Mota Miranda, residente em Mercantia, Nazaré das Farinhas recebeu uma graça do Anjo São Gabriel em seus males que sentia aleijada, seus ombros pegados sobre seu rosto, desenganada dos médicos de Salvador, Nazaré das Farinhas, Santo Antonio de Jesus, está hoje forte gozando de boa saúde.[...]132 Os casos de cura contidos nos livretos informavam a doença curada, o doente e a localidade de onde esse se dirigia em busca da graça. Percebemos a ênfase dada ao estágio em que se encontrava a doença e ao período de tempo em que paciente estava acometido pelo mal, antes do recebimento da cura. Notamos também o destaque para os endereços dos pacientes curados, indicando a presença de devotos advindos de municípios diversos, não se resumindo à procura apenas dentre os moradores da comunidade. A indicação dos endereços nos livretos sugere ainda um meio de demonstrar veracidade aos relatos de cura, sendo que, quem duvidasse poderia verificar pessoalmente. O caso de cura de Maria Sônia, relatado no livreto, aponta para o fato dos médicos de três municípios não terem encontrado soluções 129 DAVID, Onildo Reis. Op. Cit., p.67. Ibid.,p 68. 131 SANTOS,Denilson Lessa dos. Op. Cit. p. 81. 132 Casos de cura contidos no livreto “ Os Milagres do Anjo São Gabriel”, produzido sob orientação de Seu Martinho, possivelmente na década de 1990. 130 81 para a doença, intensificando a ideia de milagre, acontecimento extraordinário, contrariando os pareceres da medicina. Ressignificando o uso institucional dos folhetos religiosos pela Igreja Católica até os anos de 1950, “ para veiculação de princípios religiosos através de orações quotidianas, rezas benditos e ladainha para todos os santos, orientação de novenas, instrução para realização de missas e várias outras cerimônias religiosas”133, Seu Martinho passou a utilizar-se dos livretos como meio de comunicação, através dos quais divulgava sua história de vida, marcada por renúncias para o exercício de sua missão religiosa. Ademais, também divulgava os “milagres do Anjo São Gabriel”, intercedidos por ele, o Mensageiro do Anjo. É importante salientar que a diversidade de informações presentes nos livretos também é algo destacado noutros casos, a exemplo dos estudos realizados sobre os folhetos religiosos no Nordeste por Gilmário Brito, o qual assevera que “esses folhetos religiosos primam pela quantidade de informações, quase todos apresentam, mais de uma mensagem religiosa”134. Destarte, no universo composto pela crença em curas milagrosas, os livretos narrando essas histórias desempenham importante papel para divulgação das curas Além da história de Seu Martinho e dos casos de cura, foi produzida também uma versão do livreto no ano de 2000 com uma mensagem narrada em versos: No Riachão dos Milagres/ o povo canta em louvor Pelos 33 anos/que a missão na terra chegou . Com a paz e a esperança/o amor de Deus a brilhar tem o Mensageiro Martins/ para o povo curar. Curar o que é dizer/ que remédio ele não dá Só um pouco de água benta/ para o povo se aliviar. Jesus quando andou no mundo Ensinou para todos/ o caminho verdadeiro do cristão Assim é o mensageiro Martins/ cuidando da sua missão. (...) O anjo São Gabriel desceu do céu Trazendo a nova mensagem/e na terra do Riachão Apareceu o seu milagres.135 133 BRITO,Gilmário Moreira. Op. Cit. P.37 Ibid. P.84 135 Mensagem contida no livreto “Os Milagres do Anjo São Gabriel” produzido no ano 2000, para a festa dos 33 anos de missão de Seu Martinho. 134 82 Ao analisarmos a mensagem do livreto, observamos uma série de elementos que asseguram para os devotos a religiosidade presente no exercício de sua missão enquanto mensageiro do anjo. O verso “o povo canta em louvor” sugere que a missão foi aceita e seguida pelos devotos que se dirigem à comunidade, entoando cantos em agradecimento. Nas palavras do poeta anônimo, a missão desempenhada por Seu Martinho traz a “paz, esperança e o amor de Deus a brilhar” ao usar “um pouco de água benta” e curar os males do povo. A cura para os devotos não ocorreria com o auxílio da medicina, “que remédio ele não dá”, demonstrando um campo de forças entre as práticas mágico-curativas e a medicina oficial. Os versos contidos na mensagem aproximam ainda, Seu Martinho de Jesus Cristo, reconhecendo “em Jesus a possibilidade de ser ao mesmo tempo: “Deus e Homem”, alguém que tendo experimentado a vida na terra é capaz de compreender as dúvidas e incertezas às quais estão submetidos os seres humanos”136. Assim Jesus em sua condição divina e humana teria ensinado aqui na terra “o caminho verdadeiro do cristão” ressaltando “seu papel de mediador junto ao Deus Pai.”137 E, Seu Martinho, ao “cuidar” de sua missão, cumpriria o papel de mediador entre os devotos e o Anjo São Gabriel, seguindo normas comportamentais e renunciando aos caminhos do pecado. 2.2 O “milagre” que traz a cura Na tradição cristã, a água além de simbolizar a vida, simboliza também a purificação do corpo e da alma, regenerando o homem dos seus pecados, tratando portanto de suas mazelas se apresentando como sagrada diante dos olhos e do imaginário cristão. A simbologia da água que cura e santifica encontra-se enraizada na religiosidade cristã e esse contato com a água sugere sempre uma regeneração, um renascimento, multiplicando o potencial da vida. “Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos, as águas (...) lavam os pecados, purificam e ao mesmo tempo regeneram.”138 Presente nas memórias das pessoas que buscam curas com a intercessão do Mensageiro do Anjo São Gabriel, a água aparece como elemento condutor nessa incessante 136 BRITO,Gilmário Moreira.Op. Cit. P.92 Ibid. 138 ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.p.107. 137 83 busca por milagres que circundam o imaginário das pessoas. Em todas as narrativas, o milagre da cura ocorre devido à ação da água santificada e despejada ou aspergida no doente que galga a cura. Os casos de cura referentes à ação de Seu Martinho envolvem não somente as pessoas que o procuraram e dão seu testemunho, como também os devotos, que mesmo não galgando curas para si acompanharam as inúmeras histórias de fé, promessas e milagres ocorridas ali envolvendo muitas outras pessoas, presenciando ou acompanhando esses acontecimentos que marcaram fortemente suas memórias. Dona Janete Souza, morou na casa de Seu Martinho durante nove anos, prestando serviços domésticos, cuidando da Igreja do Anjo São Gabriel e recebendo os romeiros que chegavam. Deste modo, mesmo quando Seu Martinho não estava, ela recebia as pessoas que o procuravam. Nesse período presenciou muitas histórias de devotos em busca das práticas de cura. Em seus relatos ela conta um pouco do cotidiano vivenciado na comunidade e narra que a procura pelas práticas curativas em Riachão dos Milagres era muito grande, trazendo pessoas de vários municípios, todos os dias : “Chegava muita gente, todo domingo meio de semana, chegava gente (... ) qualquer dia, qualquer hora, ele nunca se negava (..) vi muitas pessoas ficar boa lá, tanto faz home como mulé (...) vinha gente de todo canto...”139 Dentre os muitos casos contados por Dona Janete, um, o caso da mulher com problemas psicológicos, foi narrado mais detalhadamente, trazendo peculiaridades que também envolveu sua ação enquanto guardiã da Igreja do Anjo São Gabriel, Dona Janete narrou que numa noite, por volta das onze horas, oito homens levaram à igreja uma mulher amarrada, que “tinha ganhado neném, quebrou o resguardo e ficou maluca”140, para ser curada com o intermédio da água benzida por Seu Martinho. Este não se encontrava em casa e os homens pediram para Dona Janete abrir a igreja e dá um pouco de água benta para a mulher. Atendendo ao pedido dos homens, Dona Janete os levou até a igreja e, [...] Quando chegô lá na igreja eu mandei eles entrar, eles entraro, aí sentaro lá na igreja, a mulé tava amarrada os braço pra trás, aí eu peguei o milagre dei a ela, mandei ela abri a boca , ela abriu, tomou o milagre, molhei a cabeça dela, depois ela melhorou um pouquinho, conheci que ela tinha melhorado dei mais milagre pra ela tomar traveiz de novo.141 139 Entrevista com Dona Janete Souza. Depoimento citado. Idem. 141 Idem. Ibid. 140 84 Narrou-nos ainda Dona Janete, que após o recebimento do “milagre”, e recobrando um pouco a memória, a mulher avaliou negativamente as próprias vestimentas que estavam mostrando o colo e ao perceberem colocaram uma presilha para cobrir o decote. Após alguns instantes, desataram os braços da mulher e essa ajoelhou-se junto ao altar para rezar e, Uma hora da madrugada eles foram embora. Aí a mãe dela chamava Maria Elza e o nome dela era Antonia e foi oito homem levano ela, aí foram andano pra casa num precisou mais amarrar ela nem nada. Aí chego em casa ela dormiu ficou, no outro dia foi um dia de sexta-feira, de tarde Martinho chegou de Salvador,ela foi se rezá, lá ele rezou, mas já tava boa, aí no dia de domingo ela tornou ir, já foi levou o nenê, foi com um bocado de vizinha tudo pra igreja, recebeu a benção e ficou boa, até hoje tá boa.142 Esse caso narrado por Dona Janete exemplifica os muitos outros casos recorrentes nesse espaço considerado sagrado. Muitas pessoas com doenças de cunho psíquico ou psicológico, levadas por seus familiares, recorrem às práticas curativas mágico-religiosas com frequência, uma vez que a resolução vem com mais agilidade e sem as despesas e transtornos dos longos tratamentos que a ciência oferece. O sinal de que a cura foi alcançada com a aspersão da água benta é muito forte nas memórias de Dona Janete descrevendo minuciosamente que a mulher chegou amarrada com os braços para trás e segura por oito homens, indicando uma situação fora do comum. Esse caso de cura nos reporta à crença dos populares nos detalhes do sonho de Seu Martinho que o autorizava a curar, dentre outros “os que viessem amarrados na corrente”143. A narrativa de Dona Janete indica um detalhe importante: apesar de a mulher ter apresentado melhoras quanto a sua enfermidade, com a utilização da água benzida por Seu Martinho na igreja, ela retornou para que ele a rezasse. O contato com o Mensageiro do Anjo São Gabriel tem relevância para os que ali buscam curas. Nas memórias de Dona Janete, mesmo ela já estando “boa”, ele a rezou. Nas rezas proferidas por Seu Martinho ele não utiliza ramos ou folhas, apenas impõe ou toca as mãos sob o local enfermo, fazendo orações e derramando a água por ele benzida. No imaginário popular, as rezas seguidas de toques têm lugar especial. Esta crença no toque, aliás, é algo que se fez presente em outras sociedades como, por exemplo, na França e na Inglaterra antigas onde os súditos e os reis acreditavam que “pelo simples contato com suas mãos, realizado segundo os ritos tradicionais, pretendiam 142 143 Idem. Ibid. Sonho de Seu Martinho citado no subítem 3 do primeiro capítulo. 85 curar os escrofulosos”144, havendo assim a crença na santidade e poder curativo dos reis, os quais eram procurados pelos devotos que os tocavam e fazia sobre eles o sinal da cruz para a cura da tuberculose. 145 Essa fé no toque advinda de pessoas consideradas com poder divino, na cura de doenças, está presente também entre os fiéis do Mensageiro do Anjo São Gabriel, que, além de buscarem a aspersão da água benta na igreja, solicitam rezas sobre as enfermidades, como se o toque e a oração proclamada diretamente no local a ser curado, proporcionassem resultados imediatos. Ao analisarmos outras histórias, percebemos características parecidas mesmo partindo de espaços com vivências diferenciadas. As curas proclamadas por Pedro Batista em Santa Brígida146 apresentam algumas convergências com as narradas sobre Riachão dos Milagres. Dentre elas, está a quantidade de pessoas com problemas de ordem psíquica, psicológica ou neurológica à procura de cura, que chegavam amarradas e ao utilizar a água curada se controlavam e voltavam à normalidade. Outra semelhança que chama atenção nos dois casos é a fé no milagre que a água representa para os fiéis. Na narrativa de Dona Janete, a enferma que chegou amarrada e contida por oito homens não precisou da presença de Seu Martinho para receber sua cura. A própria Dona Janete, que era responsável pela Igreja onde ficava a água milagrosa, pode dar essa água para a mulher enferma que se acalmou e pode ser desamarrada, chegando até a rezar. Nos casos mencionados em Santa Brígida, os romeiros respeitavam muito o poder da água: “a água curada (..) poderia ser ingerida ou colocada em qualquer parte do corpo com aparente enfermidade. Era um produto desejado pelos romeiros e que nunca faltava em suas casas”147 Na igreja do Anjo São Gabriel, a água utilizada por Seu Martinho para realizar as curas é chamada pelos devotos de “milagre” que, dependendo do caso é ingerida, derramada no local a ser curado ou aspergida na hora da bênção na igreja aos domingos, durante as celebrações. Dezenas de garrafas e vasilhames de água são benzidos todos os domingos e os fiéis levam o “milagre” para suas casas, a fim de remediar as moléstias e infortúnios do dia a dia. 144 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. p.52. 145 Ver BLOCH, Marc. Op. Cit.. p.53. 146 GONZALEZ, Olegário Miguez. Bem aventurança em Santa Brígida: uma comunidade sob orientação de Pedro Batista. Dissertação de Mestrado de História da UFBA. Salvador: 2004. Santa Brígida é um município do Estado da Bahia, localizado no Nordeste baiano a 400 km de Salvador. 147 Ibid. p. 61-62 86 Fotografia 13: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel. Fotografia de Wilma Souza em 06/09/2009. Fotografia 14: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel. Fotografia de Wilma Souza em 30/10/2009. 87 As fotografias acima mostram os vasilhames de água postos para uma possível bênção. A fotografia 13 foi realizada num domingo de celebração, na qual ocorreu catequização das pessoas que ali freqüentam e no final recebem uma bênção com a água. Os vasilhames com água também são benzidos por Seu Martinho no final das celebrações, aos domingos. Segundo Pedro Oliveira “A benzeção é um conjunto de representações e práticas rituais que tem por fim produzir curas”148. De tal modo, é por esta crença na produção de curas a partir da benzeção que registramos como é intensa a crença de que a água benzida por Seu Martinho é milagrosa capaz de curar as mais variadas doenças, tanto que é grande a quantidade de vasilhames expostos para benzeção. Após a celebração, os devotos entram numa fila para receber o milagre, que é despejado na boca por três vezes e por fim derramado na cabeça. Só podem se posicionar na fila para receber essa água, as mulheres adequadamente vestidas com saias, blusas de manga, sem maquiagem e sem adereços ou enfeites. Os homens também devem estar trajando calça e camisa. Percebemos que a quantidade de vasilhames postos para essa celebração de domingo é muito pequena devido à quantidade de devotos que vai nos domingos de celebrações comuns. Os vasilhames que lá estavam postos pertenciam a uma família residente em JequiéBa, que se deslocou para o Riachão dos Milagres a fim de obter curas através da água na Igreja do Anjo São Gabriel. As vestimentas que devem ser utilizadas pelas mulheres, exigidas por Seu Martinho ao entrar na igreja e receber a bênção com a água, geram discussões entre os devotos e as autoridades da Igreja da paróquia, pois algumas mulheres se sentem obrigadas a usar as vestimentas que não são comuns em seu cotidiano, apenas para freqüentar a Igreja do Anjo São Gabriel. Outras devotas assumem definitivamente as vestimentas impostas por Seu Martinho, após ter alcançado a cura, como é o caso de Dona Estelita: Eu já vestia assim saia e não gosto de roupa sem manga, eu não gosto de nada assim .... sei lá. Aí sempre o povo fica me perguntano: por que você veste a roupa assim? Porque eu gosto...É porque eu mermo gosto... e eu achei assim que fiquei boa lá... eu também não gosto de andar com uma roupa assim... eu também não gosto.149 148 149 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Op. Cit.p.121. Entrevista com Dona Estelita Santos Souza.Depoimento citado. 88 Apesar de afirmar insistentemente que usa suas vestimentas por opção própria, na narrativa de Dona Estelita transparece que sua opção é devido à cura alcançada na Igreja do Anjo São Gabriel. Ela demonstra a insegurança e o medo de ter sua graça desfeita caso deixe de seguir as normas de vestimentas impostas por Seu Martinho e indica no seu depoimento que se veste de forma diferente, usando o tempo todo a expressão “roupa assim”, mostrando a indignação das pessoas ao vê-la com as vestimentas que costuma usar. Algumas atitudes de Seu Martinho foram observadas pelo padre Edésio Ribeiro, atual pároco da Igreja do São Benedito, à qual a Igreja do Anjo São Gabriel está agregada. Com relação à exigência de vestimentas para as mulheres imposta por ele, o padre Edésio comenta: Lembro com tristeza que ano passado, na época das missões, mandamos uma equipe de missionários para lá, foram duas mulheres e as duas foram expulsas por ele, exatamente ao chegarem, rejeitadas, né? Inclusive, com... segundo foi relatado por essas pessoas e por mais uma testemunha do local, inclusive com um certo ar de agressividade, que ali na igreja dele não entrava mulher de calça, não entrava mulher para pregar o evangelho. Que ali não entrava mulher de calça porque isso é coisa do satanás. Então, uma concepção bastante arcaica, moralista (..)150 A narrativa do pároco da Igreja do São Benedito indica que as concepções e regras seguidas e impostas por Seu Martinho são consideradas atrasadas, arcaicas e que, algumas pessoas, inclusive da própria comunidade, não aceitam essas concepções, relatando com indignação as atitudes de Seu Martinho na comunidade do Riachão dos Milagres. Em contrapartida, este último assume veementemente que está seguindo a palavra de Deus e cita textos bíblicos para respaldar seus argumentos: Se tiver de roupa decotada, de calça, de short, nunca dei, nem darei (...) Eu tenho que respeitar as palavras de Deus. Em Isaías 47, capítulo 8 a 12 a palavra de Deus diz assim: filha de Barbilônia, tu pega o moinho, tu vai moer a farinha. Tu atrevessastes o rio, botando tuas coxas de fora, perdendo a tua inudez, tu num é digna do meu reino,vai para as trevas. Isso é a palavra de Deus. Encontrei ela já prantada, jamais eu posso transpassar, dar a comunhão a uma mulher de short e de calça, não dou. Quarenta e dois anos de missão, nunca levei um pouco de água benta na boca de uma mulher e de uma moça, de calça nem de short, de batom, tu é doido? Tá de batom, tá de brincos, tá de....não!(...) Jesus almadiçoou a moda, a samaritana perguntou a 150 Depoimento do Padre Edésio Ribeiro, pároco da Igreja Matriz do São Benedito. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 26/02/2010 89 Ele: Senhor quem entrará no santuário pra te louvar?Ele respondeu para ela quem tiver com as mãos limpa, coração puro, quem não fosse vai-do-so pra saber amar a Ele(...)151 Seu Martinho faz uma releitura do capítulo 47, do livro de Isaías na Bíblia Sagrada para reforçar suas concepções de que a mulher não pode ser vaidosa, se apegando a moda. Ele faz sua própria interpretação dos textos bíblicos, afirmando que as mulheres ao se apresentarem com vestes impróprias aos seus olhos, não são dignas do “reino de Deus”. A “vaidade” é apontada por ele como a pior prática do ser humano, condenatória, irremediável, amaldiçoada pelo próprio Jesus, a quem ele não pode contrariar ou negar. E essa vaidade que é dita pausadamente e com intensidade na narrativa de Seu Martinho se caracteriza quando as mulheres usam calças, shorts, blusas decotadas, maquiagem e enfeites, como brincos, pulseiras, colares. Diante de uma releitura própria que Seu Martinho fez dos textos bíblicos, como iria aceitar as missionárias enviadas pelo padre Edésio, trajando calças? Seu Martinho afirmou que em 42 anos de missão nunca deu comunhão ou água benta a mulher de calça ou short, como deixaria missionárias usando calça evangelizar na sua igreja? Expulsar as missionárias, possivelmente, foi a forma que Seu Martinho encontrou para resistir às intervenções da Igreja Católica de tentar mudar suas orientações quanto ao comportamento naquele espaço religioso e no cotidiano de seus seguidores. A releitura que Seu Martinho faz dos textos bíblicos nos remonta às memórias de Seu Camilo em Pau de Colher152, ou onde segundo Gilmário Brito “sua atitude religiosa fez com que trabalhasse suas experiências e memórias no sentido de explicar e expor suas opiniões sobre o mundo e as relações que vivia, com base em referências bíblicas.” 153 Do mesmo modo, Seu Martinho ressignificou e adaptou os textos bíblicos à realidade em que vivia, as suas concepções de mundo e para os padrões que desejava para a comunidade do Riachão dos Milagres e seus devotos. Reportando-nos à fotografia 14, observamos o dia da festa do Anjo São Gabriel, 30 de outubro de 2010, na qual se comemorou os 43 anos de missão de Seu Martinho enquanto Mensageiro do Anjo. No festejo religioso, foi celebrada uma missa pelo padre responsável pela paróquia e Seu Martinho relembrou os seus 43 anos de missão com uma encenação, no início da celebração, entoando as seguintes canções religiosas: 151 Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado. Ver o primeiro subitem do capítulo 03: A incorporação da Bíblia em Pau de Colher. In: BRITO, Gilmário Moreira. Pau de Colher na letra e na voz. São Paulo: EDUC, 1999. 153 Ibid..p.200. 152 90 I Eu ia pelo caminho Encontrei Jesus, Ele me chamou Pra carregar a cruz Eu respondi, Meu senhor já vou No caminho de Jesus Eu também estou II Javé é meu amigo Ele é meu pai É meu irmão Porque me deu essa missão. Obrigado pai Javé Por ter me dado essa missão Fortalecei a minha fé Pra eu não cair em tentação As duas canções são bastante conhecidas na comunidade e são entoadas sempre para simbolizar a missão recebida por Seu Martinho, em 1967. Na primeira, utilizou elementos para descrever a missão recebida por ele, a cruz representa a missão, já que ele abdicou de sua vida particular em função de seu dom de cura. A segunda canção foi composta por um fiel devoto, morador da comunidade, Seu Raimundo, e também é entoada sempre na comunidade para reforçar a ideia do elo entre Deus e Seu Martinho e do sacrifício que ele faz devido a sua missão, com pedidos de agradecimento e ao mesmo tempo de súplica “fortalecendo a fé” para não abandoná-la, “caindo em tentação”. Para Seu Martinho e os devotos, a missão dele está condicionada à renúncia de práticas e hábitos, como não se casar, não comer carne vermelha e sal. Seriam as “tentações” apontadas na canção que a comunidade entoa todos os domingos nas celebrações. Apesar de não exercer um sacerdócio instituído pela Igreja, a manutenção da castidade foi uma das condições impostas pelo anjo para levar adiante sua missão, cabe salientar que a referida conduta também estabelecida pela Igreja Católica é “qualificada como uma ação do homem que se abstendo de relações sexuais poderá tornar-se imaculado”154. Destarte, para Seu Martinho e seus devotos a castidade representava a pureza necessária para servir ao anjo como mensageiro. 154 BRITO,Gilmário Moreira. Op. Cit.2009. p.93 91 As canções tendem a sugerir aos devotos uma mistura entre os textos do Antigo e do Novo Testamento da Bíblia. Ao mesmo tempo em que Seu Martinho é um seguidor dos textos do Antigo Testamento, obediente a Javé, representando um Deus vingativo, severo, que cobra criteriosamente o cumprimento das obrigações em troca do alcance de graças, Seu Martinho o coloca também como seu irmão, fazendo uma possível alusão a Jesus Cristo, o qual representa um Deus amor, capaz de perdoar até no último segundo antes da morte. Dessa forma, ele tenta passar para os fiéis uma representação que mescla as características e atitudes das duas representações de Deus na religião cristã-católica: o “Deus severo”, que exige obediência e o “Deus amor”, que catequiza os seguidores e é misericordioso. “ No catolicismo popular Jesus é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ganha a misericórdia divina para com os homens.”155 Neste sentido, as canções ajudam a projetar uma imagem de Seu Martinho misericordioso, obediente às leis, severo e exigente para com os devotos. Retomando a discussão referente à fotografia 12, é visível a quantidade e variedade de vasilhames de água postos no altar para o recebimento da bênção. É grande a diferença na quantidade de vasilhames entre a fotografia 13 e a fotografia 14, considerando que na segunda é um dia festivo, no qual pessoas de municípios variados marcaram presença para pagar suas promessas do recebimento de curas atuais ou de tempos passados e também levar para casa um pouco do “milagre” para os momentos de emergência em suas vivências cotidianas. É notório também que os vasilhames encontram-se sem tampas, um símbolo de que para os devotos a bênção vai adentrar o vasilhame e penetrar na água. Representando dessa forma, o simbolismo aquático mencionado por Mircea Eliade, em que: [...] Toda água natural adquire logo, pela antiga prerrogativa com a qual ela foi honrada na sua origem, a virtude da santificação no sacramento, quando Deus é invocado para tanto. Assim que as palavras são pronunciadas, o Espírito Santo, que desceu dos céus, para sobre as águas santificando-as por sua fecundidade; as águas assim santificadas impregnam-se por sua vez da virtude santificante...156 É perceptível também na fotografia 14 e nos chama a atenção, os diferentes tamanhos dos vasilhames de água para o recebimento da bênção. Possivelmente, aquelas 155 156 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Op. Cit. p..120. ELIADE,Mircea.Op. Cit. 2002. p. 153. 92 pessoas que moram em municípios distantes como Jequié, Varzedo, Taperoá, Valença, Nilo Peçanha, que só vão à igreja por ocasião da festa, levam vasilhames maiores para que tenham por mais tempo o “milagre” ao seu alcance e para distribuir entre amigos e familiares que, ausentes à festa, são depois presenteados com a água santificada. O dia da festa é freqüentado por devotos de municípios das microrregiões de Santo Antonio de Jesus, Valença e Jequié e muitas vezes são romeiros assíduos por tradição ou devoção, entretanto, não possuem vínculo efetivo na Igreja Católica da localidade onde residem. Um forte indício deste comportamento está presente nos questionamentos do padre Antenor que presidiu a festa, o qual além de perguntar a localidade oriunda de cada grupo que ali estava presente, indagou insistentemente sobre a participação desses enquanto missionários em suas respectivas comunidades, deixando claro a preocupação da Igreja com os devotos de ocasião, os seja, aqueles freqüentadores dos santuários, porém, sem um vínculo de participação assídua na igreja de sua comunidade. 2.3. Ato público de fé e devoção A veneração e o culto aos santos são preservados em vários lugares no Brasil. As devoções aos santos e anjos, esses intercessores do cotidiano, ocorrem das mais variadas maneiras dentre estas se manifesta através dos ex-votos, objetos visuais cujo propósito de produção é o de agradecimento por uma graça alcançada. Para Maria da Graça Góes: A designação ex-voto se aplica a um quadro, pintura ou objeto, placa com inscrições, figura esculpida em madeira ou cera a que se conferiu uma intenção votiva. O voto é a promessa, o ato anterior à graça, que uma vez alcançada, é cumprida através da gratidão do prometido na oferta do exvoto.157 157 GÓES, Maria da Graça Coutinho. Ex-votos, promessas e milagres: um estudo sobre a Igreja Nossa Senhora da Penha. Dissertação de Mestrado do programa de pós graduação em história, políticas públicas e bens culturais.Fundação Getúlio Vargas. 2009. p. 37. 93 A utilização de ex-votos no cumprimento de promessas existe desde a antiguidade, se realizando em espaços sagrados e salas de milagres até os dias atuais. Considerando o ex-voto uma imagem entre as muitas relacionadas às formas de devoção, ela é capaz de transmitir múltiplas informações que devem ser analisadas dentro do contexto social às quais elas se remetem. Para o historiador, a análise dos ex-votos apresenta dificuldades principalmente no tocante ao não-dito, uma vez que os ex-votos expostos nas Salas de Promessas deixam silêncios que dão margem a múltiplas interpretações. Como afirma Michel Vovelle: “O exvoto é um documento portador de uma mensagem codificada, desenhada e pintada, transmitida por pessoas que em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar suas crenças, receios e esperanças.”158 Dessa forma, o estudo sobre ex-votos aponta diversos direcionamentos, na medida em que se apresentam de maneira variável e enigmática. Trata-se de uma pesquisa exigente, como afirmou Vovelle “pois aborda o mundo do silêncio, das fontes indiretas, dos documentos subtraídos ou oblíquos” 159 A multiplicidade de ex-votos dispostos pelas salas de promessas das igrejas em todo país mostra a presença de fé das pessoas, seus anseios, histórias de vida. Eles aparecem como representações do corpo humano em cera, fotografias, objetos de uso cotidiano, bilhetes, cartas, roupas, adereços, etc. São testemunhos do elo entre o humano e o sagrado e remetem às memórias coletivas. Como ocorre nos diversos santuários brasileiros, na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel em Riachão dos Milagres, os fiéis utilizam diferentes ex-votos para expressar sua devoção. São fotografias, mensagens, caixas de remédios, garrafas de bebidas, embalagens de cigarro, peças de roupas, imagens de santos da Igreja Católica e de Orixás, muletas, mechas de cabelos, dentre outros. São narrativas de vida de muitas pessoas em diversos contextos e épocas, inscritas, documentadas e misturadas em um mesmo espaço. Na Sala de Promessas da Igreja do Anjo Gabriel encontram-se depositadas lembranças, que carregam marcas dos devotos, seus sonhos, sua fé, suas esperanças, simbolizando a intercessão do divino em cada indivíduo. Cada ex-voto merece atenção apurada, pois simboliza uma realidade de vida diferente, um ato de contrição peculiar. 158 VOVELE, Michel. Os ex-votos no território marselhês. In: ___.Imagens e imaginário na história: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XIX. . São Paulo: Ática. 1997 . p.113 159 Ibid. p.114 94 Fotografia 15: Ex-votos dispostos na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel - (Fotografia de Wilma Souza - 04/09/09). Embora dispostos em grande quantidade, como se pode vê na fotografia 15, a arrumação dos ex-votos dificulta o trabalho com os mesmos, visto que se encontram amontoados, empoeirados, misturados e em sua maioria não possuem mais os bilhetes de agradecimentos e quando os possuem, a ação do tempo já apagou as informações. Nessa fotografia, vemos uma imensa variedade de ex-votos, cada um relacionado a um pedido de cura diferente, de pessoas que atingiram curas referentes aos membros do corpo, doenças do pulmão, vícios, dentre outras e deixaram por lá seu ato de fé, pagando assim sua promessa. Ligados aos ex-votos, todos os tipos de adversidades que atingem o ser humano, representam as necessidades individuais e coletivas, nos quais se pode “(...) esperar encontrar a crônica da sociedade no passado por intermédio do acidente, da doença, da morte evitada, do milagre.”160 Nesta perspectiva, podemos entender que os ex-votos se apresentam como documentos que depositados na sala de milagres tem o potencial de comunicação, pois apresentam uma série de informações, sujeitas a leituras, interpretações e análises. Assim afirma José Oliveira: 160 VOVELLE, Michel. Op. Cit. 1991 p.177. 95 Todos os ex-votos da "sala de milagre" são documentos. Refletem a crença, a fé e as atitudes do homem diante da vida, da doença, da morte, da ambição, da festa, de variados valores sociais, políticos e econômicos que elucidam os comportamentos coletivos e as estruturas mentais. 161 Reportando-nos a José Oliveira podemos perceber que os ex-votos não podem ser ingenuamente observados somente como objetos nos seus diversos tipos de matérias-primas, pois os mesmos têm a função de expressar idéias, mensagens ou narrativas de acontecimentos vivenciados pelas pessoas. Fotografia 16: Caixas de medicamentos dispostos na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) Fotografia 17: Caixas de medicamentos dispostas na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza -04/09/09) 161 OLIVEIRA, José Cláudio Alves. Ex-votos da "sala de milagres" do santuário de Bom Jesus da Lapa na Bahia:semiologia e simbolismo no patrimônio cultural Revista de História da Biblioteca Nacional. Nº 41. Rio de Janeiro: fevereiro de 2009. p.11. 96 Os ex-votos mostrados nas fotografias 16 e 17 podem expressar diversas mensagens, simbolizando as doenças curadas na Igreja do Anjo São Gabriel e não mais a utilização dos medicamentos para as enfermidades, por isso foram ali depositados pelos fiéis. A busca pelo abandono dos medicamentos farmacêuticos é constante nas histórias de cura dos devotos, já que além de representarem uma dependência a um tratamento geralmente a longo prazo, também interferem no orçamento familiar do doente. As dificuldades relacionadas sobre estas interpretações são variadas, devido à falta de informações nesse tipo de ex-voto. Dentre os ex-votos dispostos na sala de promessa da Igreja do Anjo São Gabriel, encontram-se uns bastante intrigantes como as imagens de alguns orixás e adereços utilizados por candomblecistas como colares e pulseiras, mostrados nas fotografias a seguir. Questionado sobre aqueles tipos de ex-votos, Seu Martinho comentou: “Esses é das pessoas que curou do Candomblé e deixou de ir lá e colocou aqui as figura.” 162 Através desses ex- votos podemos refletir qual concepção de religiosidade afro-brasileira ainda continua sendo veiculada em algumas comunidades, muitas vezes associadas ao diabólico, ruim, negativo. Fotografia 18: Imagem do Caboclo. Ex-voto disposto na Sala de promessas da Igreja do Anjo São Gabriel (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) 162 Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado. 97 Fotografia 19: Colares do Candomblé. Ex-votos dispostos na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) Fotografia 20: Imagem de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) 98 Fotografia 21: Quadro de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) O depoimento de Dona Geninha, no início deste capítulo, demonstrou que a religiosidade popular no Recôncavo Sul é híbrida163, mesclando a crença nos processos curativos do Candomblé e nas práticas curativas proclamadas com a intercessão dos santos católicos quando ela narra que recorreu primeiro a um curador da região chamado Xavier para alcançar curas para sua doença e não tendo uma experiência exitosa, teria se “apegado” ao Anjo São Gabriel do qual ela já era devota, alcançando a cura para seu problema de saúde. Os ex-votos que simbolizam o abandono ao culto de orixás, estão dispostos em lugares bem visíveis na sala de promessas da Igreja do Anjo São Gabriel, sugerindo uma certa vitória de Seu Martinho frente àquelas pessoas da localidade que abandonaram o culto às religiões afro-brasileiras, sempre associadas por ele à aquisição de doenças, desastres, problemas familiares, dentre outros. O que levou essas pessoas a internalizarem essa visão, a ponto de abandonarem seus cultos e depositarem essas imagens como ex-votos? Os colares, por exemplo, representam uma espécie de guia dos seguidores do candomblé, sugerindo que essas pessoas já tinham sido iniciadas na religião, tendo através dessas guias proteção para todos os possíveis males cotidianos, como se o corpo estivesse fechado. Assim, na mitologia do candomblé, esses colares representam a identificação do indivíduo ao seu orixá e uma forte de vinculação. Nos questionamos, quais motivos levariam uma pessoa a duvidar de sua guia protetora, a ponto de prometê-la como ex-voto, caso fosse curada em outra religião? É bem 163 Para Peter Burke todas as culturas estão envolvidas entre si e nenhuma delas é pura, todas são híbridas, heterogêneas. 99 provável que estaria sofrendo algum tipo de preconceito religioso ou não teria encontrado as devidas respostas para seus males. Como se pode notar, muitos ex-votos representam armadilhas para a nossa análise, podendo nos conduzir a diversos caminhos. Devemos nos desvencilhar dessas armadilhas, fazendo uma leitura crítica dessas imagens, problematizando-as, contextualizando-as e esmiuçando-as. No estudo sobre os ex-votos verificamos que nos séculos XVIII e XIX, no Brasil se popularizou o uso dos ex-votos pintados retratando o episódio sofrido e a graça alcançada pelo devoto. De acordo com Guilherme Neves: “Na maioria das vezes os ex-votos pintados compõe-se de três elementos: a cena principal, que retrata o acontecimento; o espaço celeste, em que surge no alto a figura religiosa do intercessor; e a legenda, que narra por escrito o episódio.”164A legenda dessas pinturas mostrava suas datas, permitindo a percepção do contexto e as cenas permitiam análise da vida cotidiana da população da época. Segundo Jean Luiz Neves Abreu a prática de agradecimentos através desses ex-votos era compartilhada por todas as camadas da população da época, explicando assim a diversidade das ofertas votivas165. A partir do século XX, as fotografias acabaram substituindo essas formas de agradecimento pelo milagre. Segundo Luis Bonfim “A popularização das máquinas fotográficas, a partir da década de 1940, mudou o ambiente das Salas de Milagres de norte a sul do país.”166. Nesse sentido nem sempre as fotografias expostas nas Salas de milagres foram realizadas para aquele fim, sendo reaproveitadas de outros contextos, cenários e épocas e utilizadas como ex-votos, apontando caminhos diversos em suas leituras. Isso por que de acordo com Ana Mauad: (...) entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe muito mais do que os olhos podem ver. Intervalo que é ocupado por uma rede de 164 NEVES, Guilherme Pereira das. Milagres do cotidiano. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. nº 41. rio de Janeiro, fevereiro de 2009. p.19 165 ABREU, Jean Luis Neves. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos ex-votos mineiros do séc. XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.25,n.49, jan./jun.2005. p. 207 166 BONFIM, Luís Américo. Tradição reinventada. Revista de História da Biblioteca Nacional. nº 41. Rio de Janeiro, fevereiro de 2009. p.36 100 significados que remete tanto às problemáticas contemporâneas ao evento registrado, como ao código dominante de representação. 167 Na sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel, como já foi mencionado existe uma diversidade de ex-votos porém, não existem pinturas votivas, o que pode ser explicado pelo período de construção da igreja nos finais da década de 60 do século passado. Contudo, várias são as fotografias deixadas com ex-votos na sala de promessas da Igreja do Anjo São Gabriel. Representam a devolutiva dos pedidos feitos pelos fiéis e realizados com a intercessão do Anjo, característica própria do ex-voto: Fotografia 22: Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel ( Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) 167 MAUAD, Ana Maria. O Olho da história: análise da imagem fotográfica na construção de uma memória. Acervo-Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro: v. 6, n. 1-2, 1993, p. 25-40, jan.-dez.p.59 101 Fotografia 23- Ex-voto da Igreja do Anjo São Gabriel (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09) Nas imagens acima podemos notar que na fotografia 22 o bilhete indica um pedido de cura de uma pessoa, que está na Alemanha com um sério problema de saúde sem perspectiva de cura pela medicina oficial, mostrando que as pessoas recorrem às práticas de cura populares em todos os momentos, seja nos problemas de saúde mais simples aos mais complexos. Os indivíduos, portanto, fazem fortes demonstrações de fé e contrição nos momentos de desespero. A fotografia 23, de agradecimento pela realização de um casamento, nos sugere várias interpretações, visto que não é comum nessas fotografias, geralmente realizadas para compor um álbum de casamento, a presença de uma criança ao lado dos noivos que não sejam as damas de honra. Ora parece que os dois não eram casados, já tinha filhos e fez a promessa de realização do matrimônio para se apresentarem casados legalmente na sociedade. Ora a menina seria filha somente da noiva. A criança aparece ao lado da noiva, com uma certa intimidade com esta. Teria sido o fotógrafo que a posicionou assim? Se a menina fosse filha do casal não teria sido posicionada entre os dois? Quais críticas ou preconceitos esse casal vinha sofrendo para necessitar de uma promessa para oficializar o matrimônio? Ou seria 102 escassez de recursos financeiros? Ou ainda um dos noivos estava na indecisão? De quem será que partiu a promessa? A conclusão a que chegamos é que todas essas fotografias deixam lacunas e dúvidas no que se refere as suas reais intencionalidades, afinal a fotografia não consiste no retrato de uma verdade absoluta, nem a representação fiel dos eventos. A fotografia não conta a história tal como aconteceu, expressa apenas partes dela, representações, símbolos que devem ser decifrados. Como considera Maria Eliza Borges: A imagem fotográfica é fixa. É produzida a partir de um artefato físicoquímico e pressupõe a existência de um referente. É matéria que pode ser tocada e apalpada. Informa sobre os cenários, as personagens e os acontecimentos de uma determinada cultura material, é dotada de uma imensa variabilidade plástica, materializada por seus diferentes formatos e seus múltiplos enquadramentos. É fragmento congelado e datado. Como outras imagens, ela também pressupõe um jogo de inclusão e exclusão. É escolha, e como tal, não apenas constitui uma representação do real, como também integra um sistema simbólico pautado por códigos oriundos da cultura que os produz. Diferentemente da pintura, do desenho, da caricatura, a representação fotográfica pressupõe uma inter-relação entre o olho do fotógrafo, a velocidade da máquina e o referente.168 Neste contexto, nos cabe decodificar os ícones, perguntar sobre os silêncios, os vazios e as ausências deixadas nas fotografias e que são dificilmente detectadas, visto que a imagem fotográfica narra sobre o mundo nela apropriado, viabilizando diversas leituras. Segundo Boris Kossoy, a comunicação não-verbal presente nas imagens fotográficas pode enganar, sendo necessária uma leitura nas entrelinhas da mensagem por ela mostrada. 169 Nesse sentido, a fotografia narra os acontecimentos por elas mostrados, enfatizando os detalhes com o olhar do fotógrafo-narrador. Para Suzan Sontag: A própria realidade passou a ser entendida como um tipo de escrita, que tem de ser decodificada – enquanto as próprias imagens fotográficas foram, a princípio, comparadas à escrita. (O nome dado por Nièpce ao processo pelo qual a imagem aparece na chapa era heliografia, escrita do Sol; Fox Talbot chamava a câmera de caneta da natureza170 168 BORGES, M. E. L. História &Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.83 KOSSOY, Boris. Fotografia e História, 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial. 2001. 170 SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. p. 176. 169 103 Enquanto uma narrativa, a imagem fotográfica simplesmente não transmite informações como num relato, pois a mesma “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”171 . A fotografia 23 nos leva ainda a diversas possibilidades de interpretação, apresentando características de promessa a ser realizada e ex-votiva. Possivelmente, o rapaz teria apresentado alguma melhora com as práticas de cura proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Ou teria a família recorrido às práticas mágicocurativas como última instância depois de se esgotar as chances apontadas pela medicina acadêmica. Assim, a fotografia consegue relatar acontecimentos que podem ser interpretados por diversos caminhos, devido a sua subjetividade, envolvendo o olhar do fotógrafo que é seletivo e a leitura de quem vê, que também é seletiva, dependendo das vivências e sociabilidades. Podemos definir a memória também como processo de construção de uma identidade coletiva da qual a fotografia faz parte, pois elas contam os acontecimentos cotidianos, as histórias de vida, inclusive, aquelas deixadas nas salas de promessas das igrejas. Nesse sentido, Walter Benjamim comenta sobre as narrativas: “Cada história é o ensejo de uma nova história que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é o da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos.”172Ao observar uma fotografia, associamos a fatos históricos guardados na nossa memória, reconstruindo lembranças e conceitos. De tal modo, a fotografia tem papel restaurador da memória, narrando histórias com ajuda ou não de relatos orais e escritos, complementando e corrigindo idéias e imagens que construímos ao pensarmos em acontecimentos passados. Nessa perspectiva, Rousso afirma: É uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.173 As fotografias deixadas como ex-votos da Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel em Dom Macedo Costa-Ba, expõem as experiências religiosas vivenciadas pelas pessoas que procuram as práticas de cura operadas por Seu Martinho. Vislumbrando a 171 BENJAMIN,Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.In: Obras Escolhidas v.1, 2.ed. São Paulo: Brasiliense.1994, p. 204. 172 Idem. Ou a história aberta. In: Op. Cit.13 173 ROUSSO,H. “A memória não é mais como era”. In: Ferreira, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína.(org.) Usos e Abusos da História Oral.Rio de Janeiro: FGV. 2001. p. 94. 104 fotografia do casamento deixada como ex-voto, podemos ter leituras distintas, construir hipóteses a partir do contexto social e, nesta perspectiva, é viável que a fotografia indique a realização individual de um desejo formado a partir de um contexto social marcado por um padrão de família, no qual deve ocorrer o casamento formal, prestando contas à sociedade dessa relação. A menina da fotografia poderia ser filha somente da noiva e essa última possivelmente estaria sofrendo discriminações por ser mãe solteira. O casamento seria a solução para deixá-la numa situação mais cômoda no meio social em que estava inserida. Outra leitura imaginável seria a de um pai viúvo e estaria à procura de uma mãe para a sua filha. As fotografias são narrativas que abarcam uma série de sentidos a partir da intencionalidade de quem as produziu, devendo ser compreendidas como uma versão diante de múltiplas versões plausíveis. Nesse sentido, nos adverte Pesavento: Dizer que a história é uma narrativa verdadeira, de fatos acontecidos, com homens reais, não é, entretanto afirmar que, como narrativa, ela seja mimese daquilo que um dia teria ocorrido. Assim há sempre a presença do narrador que mediatiza tudo o que viu, vê ou ouviu falar e que conta e explica a terceiros uma situação não presenciada por estes. Interpõe-se, assim, um princípio de inteligibilidade e de proposta de conhecimento do ocorrido, que é representado - re-apresentado-a um público, ouvinte ou leitor.174 Os ex-votos dispostos na Sala de Promessas do Anjo São Gabriel geram tantos sentimentos de que muitas graças foram alcançadas. Não só as fotografias, mas todos os exvotos dispostos na Sala de Milagres da Igreja do Anjo Gabriel, relatam histórias de vida. Histórias de famílias, de esperanças, de curas, de preconceitos, de afetividade. Demonstram tristezas seguidas por êxitos e alegrias. Narram a religiosidade popular carregada de simbolismos, que envolvem fé, sofrimento, esperança e a busca incessante pelo sagrado. Representam ferramentas de intermédio simbólico entre o ser humano e o divino e cada exvoto se constitui de significados diferenciados, servindo como provas-testemunhais da intensa religiosidade das pessoas, de suas buscas através da fé para resolver as dificuldades cotidianas pela devoção e contrição aos anjos e santos. 174 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura. Revista de História das Idéias, Lisboa, vol. 21, 2000. p.34 105 Percebemos nesse capítulo indícios de questionamentos às práticas desenvolvidas por Seu Martinho em Riachão dos Milagres, de tal modo que, no próximo capítulo aprofundaremos as discussões sobre as relações estabelecidas entre a Igreja e Seu Martinho, bem como as representações deste e sua ressonância no campo da política. 106 CAPÍTULO 3 “HOJE ESTOU NA BATINA E COM A MINHA IGREJA”: AS REPRESENTAÇÕES DO MENSAGEIRO DO ANJO SÃO GABRIEL As práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres se caracterizam como elementos do catolicismo popular. Nesse sentido, discutiremos nesse capítulo a relação da Igreja Católica frente às devoções e crenças em milagres na Igreja do Anjo São Gabriel e as representações religiosas e políticas em torno de Seu Martinho. Analisaremos ainda os elementos ou as razões que apontam a redução no número de devotos em busca das práticas de cura no local, nos dias de hoje. 3.1- A Igreja Católica e o catolicismo popular na comunidade A Igreja do Anjo São Gabriel, na comunidade do Riachão dos Milagres está repleta de elementos que caracterizam a devoção popular como o culto aos santos, santas e anjos, a peregrinação, o pagamento de promessas e a forte crença na missão de Seu Martinho enquanto interventor dos milagres curativos de Deus aqui na terra. O último elemento indicado se constitui num traço peculiar do catolicismo popular no Brasil, no qual os populares se apropriam de um símbolo ou de uma personalidade extraordinária para depositar sua fé. Seu Martinho representa, portanto, essa personalidade já que afirma ser contemplado com o dom da cura de mazelas psíquicas e físicas, dependendo da necessidade e merecimento do devoto. Sobre o catolicismo popular Pedro Oliveira sugere a seguinte definição: [...] o conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados pelos fiéis. Concretamente, chamamos provisoriamente “catolicismo popular” as representações e práticas relativas ao culto dos santos e à transação com a natureza e não os sacramentos e a catequese formal.175 175 OLIVEIRA, Pedro A.Op. Cit. p.114 107 A nossa preocupação não é conceituar o “catolicismo popular” ou enquadrar as práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres no conceito discutido por Pedro Oliveira, mas a de demonstrar que a religiosidade católica vivida nos diversos santuários no Brasil possuem semelhanças e particularidades dignas de cautelosas análises. A Igreja do Anjo São Gabriel não necessitou da “intervenção das autoridades eclesiásticas” para que o culto ao anjo em 1967 tomasse um direcionamento e se intensificasse num universo de crença em milagres sob a intervenção de Seu Martinho, que sonhou recebendo a missão de ser o mensageiro do anjo, dando continuidade aos milagres do Padre Cícero. Os fiéis “adotaram” o Anjo São Gabriel que em sonho deu a Seu Martinho o privilégio de curar utilizando a água e transformaram a comunidade de Riachão dos Milagres num espaço cercado por práticas religiosas envolvendo fé e devoção. Em estudos sobre o catolicismo no sertão da Bahia,176 Cândido Silva argumenta que devido à necessidade do cristão leigo avivar no campo os ensinamentos doutrinais, ele obteve espaço “para desenvolver um processo seletivo reinterpretativo das expressões da fé,”177. Concordando com a perspectiva de análise de Cândido Silva podemos afirmar que, embora numa área distinta da sertaneja, em Riachão dos Milagres há uma re-interpretação das expressões de fé implicando numa prática devocional específica, singular àquela região do Recôncavo, envolvendo fé e devoção. Para os devotos da comunidade, o Anjo São Gabriel adquire características dos outros santos da Igreja, para os quais são realizadas promessas, peregrinações, romarias, culto fervoroso e ainda se faz presente para os fiéis na pessoa do mensageiro Seu Martinho. De acordo com Pedro Oliveira: Os santos são as representações fundamentais do catolicismo popular. Concebidos como seres pessoais e espirituais dotados de poderes sobrenaturais, eles são tidos como capazes de exercer influência sobre o curso da vida e da natureza. A noção popular é muito mais abrangente do que a dos santos canonizados, pois ela compreende também os diversos títulos devocionais de Jesus e de Maria , as almas de defuntos e figuras mais ou menos lendárias. Cada um desses seres espirituais pode conceder graças e proteção celestiais a quem lhe dedica culto ou invoca sua proteção. Assim, o catolicismo popular conhece uma multidão de santos, desde aqueles oficialmente reconhecidos pelo magistério eclesiástico até santos locais cujo culto não dura mais do que duas ou três gerações.178 176 SILVA, Cândido da Costa e. Op. Cit. Ibid. p.23. 178 OLIVEIRA, Pedro A. Op. Cit. p.114 177 108 Nesse universo formado pela veneração a diversos santos e santas, muitos devotos prestam culto ao Anjo São Gabriel, invocando sua proteção e afirmam ter alcançado as graças suplicadas, tendo o auxílio imprescindível de Seu Martinho através da água benta. A comunidade do Riachão dos Milagres apresenta dentre outras características peculiares, a presença de um Mensageiro do Anjo, com poderes mágico-curativos. Nesse sentido, Seu Martinho se instituiu e é representado como o interventor direto entre os devotos e o Anjo São Gabriel na comunidade. A narrativa do bispo Dom João Nilton indica essa representação: O que eu via falar de Martins era exatamente de um homem de fé e a sua casa era como que um santuário. Junto a sua casa uma igreja. Esta igreja sempre procurada pelo povo, uma igreja simples também, modesta, mas expressava ser uma casa acreditada pelo povo e onde se encontrava ex-votos, como sinais de reconhecimento, de gratidão a Deus por meio das orações de Martins, das bênçãos que ele fazia.179 As palavras do Dom João Nilton demonstram a força das práticas religiosas atribuídas a Seu Martinho na comunidade. Ao comparar a casa de Seu Martinho com um santuário, com a igreja “sempre procurada pelo povo”, é explicitado um movimento muito específico, norteado por uma crença que mobilizava as pessoas em torno de Seu Martinho, de sua igreja e suas práticas. O bispo deixa claro que “ouvia falar” dessas práticas, indicando que os padres comentavam sobre Seu Martinho e sobre a repercussão de sua missão na comunidade, representada por uma igreja simples, modesta, mas que era “acreditada” pelo povo e dessa forma, chamou a atenção das autoridades eclesiásticas. Dom João Nilton não dirigia a Diocese de Amargosa, no ano de 1967, quando se iniciou as práticas de cura na comunidade do Riachão dos Milagres. Assumindo a Diocese no ano de 1988, ele teve notícias da missão de Seu Martinho no auge de sua efervescência nos fins da década de 1980 e início da década de 1990, quando a capela foi ampliada para uma igreja, seguindo as orientações eclesiásticas. No seu depoimento, menciona a ligação entre a Igreja Católica e Seu Martinho: A Igreja o acolheu, o respeitou na sua simplicidade, na sua singeleza. Da parte dele também é.. não tenho mais elementos mais acredito que ele foi fazendo a sua vida, mas tendo uma referência e acho importante isso de 179 Depoimento do Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza, 67 anos, bispo responsável pela Diocese de Amargosa. Entrevista realizada no município de Amargosa-Ba, em 17/09/2010. 109 Martins: sua vinculação com a Igreja Oficial, com a Igreja estrutura, com a Igreja Católica, com a devoção aos santos, com a obediência às normas da Igreja e acredito que os párocos que cuidaram da paróquia, a qual Riachão dos Milagres pertence tiveram uma boa relação com Martins. Acredito que ele tivesse o espírito de obediência, de ver também até onde ele podia ir. Nunca ouvi dizer que houvesse conflitos maiores entre ele e a Igreja, a Igreja e ele, creio que da parte da Igreja houve uma compreensão de entrar no mundo da religiosidade e a gente sabe que existe uma religiosidade muito forte na vida do povo e nosso povo brasileiro, nosso povo latino, latinoamericano, nosso povo baiano tem uma alma religiosa. As palavras do bispo sugerem uma aproximação da Igreja com Seu Martinho, ressaltando que as práticas religiosas por ele realizadas foram sempre se aprimorando aos padrões eclesiásticos. Percebemos um campo de forças entre obediência e conciliação, visto que a base religiosa de Seu Martinho sempre foi a católica e na sua pregação acabava rearfimando as crenças e os princípios do catolicismo. Obedecendo a Igreja e suas normas, ele ocupava o espaço que lhe foi permitido por esta, evitando maiores conflitos. Em contrapartida, a Igreja “compreendendo” a “alma religiosa do povo”, exercia seu papel de conciliadora, sem alardes e, Seu Martinho com suas práticas conservava elementos de uma religiosidade tradicional, popular e rural. Diante da “forte religiosidade do povo”, religiosidade essa que não procura seguir padrões ou regras estabelecidas pela Igreja e sim ao que manda a fé, na busca por soluções rápidas para seus problemas cotidianos, a Igreja se aproximou de Seu Martinho, tornando-o líder religioso leigo daquela comunidade e tentando dispersar a representação de um ser extraordinário com poderes mágico-curativos. A Igreja assim direcionaria a representação de Seu Martinho como líder comunitário forte e obediente e dissociaria dele a ideia de milagres e curas, assumindo o controle da situação, uma vez que “as representações (...) são sempre determinadas pelos interesses do grupo que a forjam”180. Nesse sentido, a Igreja teria procurado legitimar entre os devotos a ideia de um Martinho leigo, exercendo atividades religiosas corriqueiras, representando apenas um católico praticante e devotado. A representação enquanto mensageiro do Anjo São Gabriel, voltado para curas e milagres passou a ser minimizada pela Igreja. Essa concebia as práticas de cura como um apoio que ele oferecia as pessoas com problemas cotidianos somatizados. Assim, a Igreja se esforçou para dominar a situação, afastando a representação de magia que 180 CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.1990. p.17 110 existia na religiosidade vivenciada na comunidade, com a crença do dom curativo de Seu Martinho. Quanto à magia, cabe sinalizar que a relação da Igreja com esta ao longo da história tem assumido duas conotações: uma diabólica e outra divina. Conforme indica Keith Tomas em estudo sobre a Inglaterra no final da Idade Média, os pregadores da Igreja proibiam a prática da magia pelos leigos, contudo: A Igreja não negava que a ação sobrenatural fosse possível, mas enfatizava que tal ação só poderia emanar de duas fontes possíveis: Deus ou o Diabo. Certos efeitos sobrenatuais poderiam ser previstos com confiança por homens de fé que seguissem os rituais prescritos por Deus e pela Igreja, como por exemplo os relativos à missa ou ao poder da água benta. Outros poderiam ocorrer milagrosamente, como as atividades curativas dos santos. Mas o resto era diabólico e, portanto, abominável.181 Seu Martinho atribuía um caráter divino a seus dons “mágicos”, entretanto, condicionando o dom curativo de Seu Martinho aos “rituais prescritos por Deus e pela Igreja”, essa procurou afastar as características de curas mágicas, possibilitando ao Mensageiro do Anjo São Gabriel um espaço para atuar como líder comunitário. Este, por sua vez com um provável espírito de obediência, na “sua simplicidade e singeleza”, acatou o acolhimento da Igreja e “foi fazendo a sua vida”, unindo o seu dom curativo ao seu lugar de líder leigo, atuando como Ministro da Eucaristia, na Igreja do Anjo São Gabriel. 182 Para Seu Martinho foi dado o poder de distribuir as hóstias consagradas e o de realizar celebrações aos domingos, na ausência dos padres. Ganhou mais respeito na comunidade e muitos até passaram a chamálo de “padre Martinho”. Com a estratégia da Igreja, de retirar de Seu Martinho o lugar de intercessor entre o divino e o terrestre, com seu dom curativo, ele passou a representar um líder católico apoiado pela Igreja, com o dom especial da cura. Contudo, de forma distinta do que narra o bispo, Seu Martinho realiza suas práticas religiosas mesclando as normas impostas pela Igreja com seus próprios códigos de Mensageiro do Anjo São Gabriel, e consegue atrair devotos e fiéis. A religiosidade vivenciada na comunidade do Riachão dos Milagres, ao contrário do que deseja a Igreja, não desconsidera a prática mágico-curativa, pelo contrário tem por ela preferência especial. É a atração pela prática mágico-religiosa que mantém viva a religiosidade da comunidade, com o culto forte ao Anjo São Gabriel e ao dom curativo dado em missão por ele a Seu Martinho. 181 182 THOMAS, Keith.Op. Cit.. p.215. Sobre a definição de Ministro da Eucaristia ver capítulo 1, p. 40. 111 As celebrações eucarísticas ocorridas na comunidade, revelam, em sua maioria, características de peregrinação e pagamento de promessas dos devotos ou de prestação de culto. Estão presentes a estas celebrações fiéis da comunidade ou de outros municípios, com o intuito de render graças pelos pedidos alcançados e de receber e levar para suas residências a água benzida por Seu Martinho. Acentua Pedro Oliveira que “é comum os devotos prestarem culto aos santos ou pagarem suas promessas nos espaços religiosos nos quais foram feitas”,183 isso faz com que os espaços religiosos adquiram suas próprias características e se revistam de elementos particulares e singulares. Neste sentido, cabe assinalar que os fiéis do Riachão dos Milagres, buscam a Igreja do Anjo São Gabriel não por serem praticantes da religiosidade católica, seguindo os dogmas e tradição da Igreja, dentre outros, o de frequentar as celebrações eucarísticas aos domingos, mas como já afirmamos anteriormente pelas práticas de cura lá realizadas. Em contraposição à representação construída pelo D. João Nilton, o atual pároco do São Benedito, responsável, portanto pela comunidade do Riachão dos Milagres, padre Edésio Ribeiro discorda da postura religiosa de Seu Martinho, estabelecendo uma relação conflituosa com o mesmo: Percebo, da parte dele, um certo descaso em relação à Igreja, não da estrutura hierárquica, mas a estrutura pastoral da Igreja, como se o trabalho dele se bastasse a si mesmo e ele não tivesse que ouvir ninguém, em relação a prática pastoral, mas eu vejo isso como algo constrangedor e não aceito isso pois ser Igreja é ser comunhão. A Igreja Católica prima sempre pela comunhão. O papa é o sinal visível da unidade da fé católica. Nós só temos um papa e as orientações do papa, bispos, cardeais devem ser seguidas pelos católicos. Eu não posso fazer uma igreja minha. Eu não posso tocar uma igreja. Como cristão-católico eu tenho que ser adepto e caminhar em comunhão com a igreja de Jesus Cristo, confiada aos apóstolos, continuada pelo papa e os bispos que são sucessores legítimos dos apóstolos. Estou falando de bispos católicos que têm a linhagem da sucessão apostólica. E esse senhor quer tocar uma igreja a partir dos seus princípios, inclusive princípios cristão-católicos já superados. A Igreja já se renovou e ele ainda está no passado. Isso vem a prejudicar a relação dele com a Igreja e ele até diz que com... e isso aí eu sou testemunha ocular, ele diz que com o papa ou sem o papa ele há de levar adiante a missão dele.184 As práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres aparentemente não agradam ao padre Edésio Ribeiro que 183 184 OLIVEIRA, Pedro A. Op. Cit. p.114 Entrevista com o padre Edésio Ribeiro. Depoimento citado. expressa indignação e 112 contrariedade. No seu depoimento, indica não se conformar com a autonomia sustentada por Seu Martinho e com a manutenção de seus princípios religiosos, que para o citado padre já estão superados, como por exemplo a exigência de vestimentas para as mulheres se apresentarem na igreja. Essa autonomia mantida por Seu Martinho, com uma certa distância de algumas normas que a Igreja impõe, se transforma em soberania e o torna um sucessor ilegítimo dos apóstolos para o padre. Sucessor ilegítimo, por não pertencer a “linhagem da sucessão apostólica”, por não ter realizado estudos teológicos, filosóficos de um seminário, não se submetendo completamente às normas da Igreja. No entanto, consegue manter por mais de quatro décadas as práticas religiosas de uma comunidade, que se consolidou a partir da missão desenvolvida por ele e pelos devotos. A narrativa do padre Edésio demonstra os conflitos existentes entre as práticas religiosas vivenciadas em Riachão dos Milagres e sua relação com a Igreja Católica. Embora esta última conviva com as práticas de cura realizadas por Seu Martinho, é factível que a Igreja optou por envolvê-las dentre os sacramentos e catequese formal, com o objetivo de orientar a religiosidade que se manifestava de forma fervorosa, canalizando para seus dogmas. Seu Martinho foi incentivado pelo padre a seguir as estruturas pastorais da Igreja e este por sua vez defendeu suas práticas ameaçando levar adiante uma igreja independente da Igreja Católica. Para Pierre Bourdieu: Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens da salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou à reprodução de um „corpus‟ deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por esta razão em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem enquanto tal.185 Considerado como simples leigo, a Igreja buscou destituir Seu Martinho da representação que lhe foi atribuída como ser especial cuja missão, com características mágicoreligiosas, e poder curativo atrai devotos e fiéis não seguidores da estrutura normativa da Igreja. Possivelmente porque para muitos fiéis não exista um distanciamento ou diferença 185 BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 2007, p.39. 113 entre as práticas curativas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel e as orientações da Igreja. A hierarquização da Igreja considerada tão relevante pelo padre Edésio não supera a dimensão da fé dos devotos no dom curativo de Seu Martinho, capaz de auxiliar na resolução de seus males. Desse modo, Seu Martinho quebra a ideia de monopolização da gestão do sagrado gerenciada pela Igreja, à medida em que ele se institui do capital religioso pelo dom recebido em sonho, diretamente do Anjo Gabriel. Assim, para os devotos não é relevante para a crença na missão se Seu Martinho se enquadra no grupo de “especialistas religiosos” instituído pela Igreja, mas a ligação dele com o Anjo Gabriel e a representação do mesmo como mensageiro do anjo, tendo a autoridade para realizar curas. Apesar da Igreja ter desenvolvido estratégias visando neutralizar a representação da missão afirmada por Seu Martinho, a comunidade de Riachão dos Milagres se apropriou de uma representação profética, passando a aceitá-lo enquanto “portador de um carisma puramente pessoal, o qual em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandamento”186, já que para Weber “o profeta é impulsionado pela vocação pessoal o que o distingue do sacerdote”187, conseguindo naturalmente atrair fiéis e divulgar sua missão. A narrativa do padre Nelson Franca indica a cautela da Igreja para não intensificar na comunidade a representação de Seu Martinho como um profeta: [...] a diocese nunca emitiu uma palavra a respeito dele nem contra nem a favor. Porque se dá uma palavra a favor, ela pode tá caindo num risco muito grande de assumir conseqüências maiores. Se ela diz uma palavra contrária ela pode assanhar os seus adeptos e acabar se tornando isso uma propaganda ainda maior a favor do Martinho. Então a Igreja tem uma prudência muito grande, ela conhece, ela acompanha e quando é necessário ela se posiciona e se manifesta. Então o caso é tão insignificante para nós igreja Diocese de Amargosa que a Igreja nunca se posicionou a esse respeito. A Igreja nunca procurou brigar com Martinho porque é melhor tê-lo como amigo do que como inimigo, não é? Então a Igreja nunca se posicionou nem contra nem a favor, mas a Igreja poderia até dizer, tolera Martinho porque a comunidade é maior e mais importante do que ele.188 As palavras do padre Nelson Franca apontam para a estratégia sábia da Igreja em relação à dimensão que a missão de Seu Martinho poderia adquirir na comunidade. Apesar de 186 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.4 ed. Vol.01. Brasília: editora Universidade de Brasília. 2000. p.303. 187 Ibid 188 Entrevista com o Padre Nelson Franca. Depoimento citado. 114 tratar a missão como “insignificante”, o padre demonstra a preocupação da Igreja com os rumos da comunidade de Riachão dos Milagres, uma vez que caso Seu Martinho rompesse com a Igreja, os seus adeptos poderiam segui-los, formando uma comunidade à parte, com princípios religiosos divergentes. É notório na narrativa do padre, a importância de Seu Martinho para a comunidade, “como amigo”, uma vez que a crença em sua missão, como católica, mantém fiéis para a Igreja. Seu Martinho atuava como leigo com um dom especial, uma espécie de chamado divino para a comunidade, que atraía muito mais a comunidade que os sacerdotes da Igreja. Para Weber “ (...) o sacerdote como membro de uma instituição com caráter de relação associativa, permanece legitimado pelo seu cargo, enquanto que o profeta (...) atua somente em virtude de seu dom pessoal”. O dom pessoal afirmado por Seu Martinho talvez, atraísse com maior intensidade seguidores e adeptos da comunidade e de outros municípios, ao contrário da catequese e dos dogmas difundidos através dos padres. Em seu processo de evangelização a Igreja Católica difundiu a fé cristã nas comunidades buscando controlar as expressões da religiosidade popular, entretanto “(...), a vivência religiosa pregada pelo clero, seja na Idade Média ou nos tempos modernos, não se estabeleceu de forma linear e triunfal.”189 De tal modo, mesmo com as tentativas de minimizar a expressividade da fé na religiosidade popular, na comunidade do Riachão dos Milagres esta se sustenta na devoção aos milagres realizados pelo Anjo São Gabriel através do mensageiro Seu Martinho. 3.2- As relações religiosas e políticas de Seu Martinho. A construção da imagem de Seu Martinho como mensageiro do Anjo São Gabriel foi se consolidando à medida que a notícia do seu sonho e dos diversos casos de cura se espalhou através dos devotos que procuraram suas práticas religiosas da comunidade do Riachão dos Milagres. Mesmo sem comprovação científica das curas, a ressonância que a divulgação dessas ganhava, proporcionavam a Seu Martinho uma posição de ser humano diferente, 189 DELEMEAU, Jean. L‟histoire de la christianisation. In: Um chemin d‟histoire: chretiénté et christianisation. Tradução de Eduardo Basto de Albuquerque. Paris: Fayard, p. 138-153, 1981. In: COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant‟Ana em Salvador (1860 – 1940) – Assis, SP : UNESP, 2004. p. 44 115 designado a intermediar a relação entre os seres humanos e o divino. Dom João Nilton narra a representação que lhe foi passada a respeito de Seu Martinho: [...] No caso de Martins, eu sempre ouvi dizer que as pessoas iam lá pra que ele rezasse ou iam rezar com ele e que algumas pessoas ficavam boas, curadas. Não sei se essas pessoas que foram curadas, se elas foram acompanhadas por médicos, não sei se tinham diagnósticos e depois se essas pessoas voltaram aos médicos, qual foi o parecer dos médicos a respeito do que era tido como cura. (...) As pessoas se dirigiam para lá sempre em busca de um socorro. Creio que a grande motivação de se procurar Martins era o homem que pode dar um jeito em uma situação. E aos poucos se criou naquela igreja ali junto à comunidade um lugar que eu devia dizer assim de peregrinação para onde as pessoas recorriam e recorriam, às vezes desesperadas, porque não encontravam na própria sociedade os meios, então Martins era uma referência de um homem que podia interceder a Deus pelas pessoas nas suas diversas necessidades.190 As palavras do bispo apontam para a ausência de serviços que permitissem as pessoas resolverem seus problemas e indicam a intensidade na procura pelas práticas religiosas realizadas por Seu Martinho, não somente pelo ato de fé dos devotos, mas porque ele passou a representar uma solução possível para os problemas cotidianos das pessoas que o procurassem. A ausência do Estado enquanto provedor, enquanto instituição que através dos serviços prestados pelos diferentes níveis governamentais e que deveria garantir a resolução dos problemas que afligiam as pessoas torna-se explícita, o Poder Público era omisso. De igual modo, a descrença nos serviços médicos também é subentendida. Pessoas da comunidade ou de outros municípios se dirigiam a Seu Martinho com o intuito de resolver do mais corriqueiro problema de saúde até as doenças com tratamento mais longo oferecido pela medicina, como o câncer. Além das doenças físicas ou psíquicas, muitos recorriam e ainda recorrem a Seu Martinho para interceder junto a outras situações cotidianas como benzer o carro que comprou ou os animais com moléstias nas fazendas, mostrando a proximidade e a confiança que os devotos depositam em Seu Martinho. A construção das relações religiosas de Seu Martinho foram aos poucos se tornando relações de poder. Os fiéis e devotos de sua missão lhes confiavam os seus problemas e encontravam soluções rápidas e possíveis. Em casos de doenças, mesmo não havendo “o parecer dos médicos do que era tido como cura”, esta era legitimada pelos devotos como 190 Entrevista com o Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza. Depoimento citado. 116 milagres aumentando o respeito e a crença no mensageiro do Anjo São Gabriel, como um líder carismático191 reconhecido pelos adeptos da sua missão. As relações sociais construídas por Seu Martinho o levaram ao envolvimento na política do município de Dom Macedo Costa. Seu Antonio Barreto Mota, prefeito do município na década de 1970, narra que se tornou amigo de Seu Martinho e conheceu sua missão em 1968 e ao perceber a ressonância que ele tinha diante dos devotos, o convidou para se candidatar a vereador quando novamente foi candidato a prefeito no ano de 1976: Convidei Martins para ser vereador porque ele além de ser uma pessoa que já tinha essa missão, ele era uma pessoa amiga, uma pessoa que se preocupava com os problemas do município, da região e do povo, então fazia por merecer participar das atividades do legislativo do município que não é nada mais, nada menos de que você se envolver com a comunidade e fazer alguma coisa por ela (...)192 A narrativa de Seu Antonio mostra que devido a sua missão, Seu Martinho passou a ser identificado como uma pessoa amiga, preocupada, sempre presente e pronto a ajudar. A sua solidariedade ou a sua missão ganhou contornos que ultrapassavam a esfera do religioso, por suas atividades assistencialistas, pelo seu carisma, sendo percebido como o indivíduo ideal para a carreira política no espaço do legislativo. Com atitudes parecidas com a troca de favores políticos e conseguindo juntar adeptos e seguidores para sua missão, Seu Antonio viu em Seu Martinho o candidato perfeito para exercer o cargo de vereador e conquistar votos para o grupo político da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), ao qual estava vinculado. Seu Martinho possuía um certo domínio religioso na comunidade, e para Seu Antonio Mota esse domínio poderia ser estendido para a esfera política. Nesse sentido, assevera Bourdieu que: A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política (...)193 191 Ver Dominação Carismática em WEBER, Max.Op. Cit.. p.158-161. Entrevista com Antonio Barreto Mota. Depoimento citado. 193 BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 2007, p.69 192 117 A candidatura de Seu Martinho na conjuntura política do período não representava perigo a ordem estabelecida, pois o grupo político ao qual se vinculava apoiava a situação ditatorial vigente no qual o espaço de atuação do legislativo ainda estava bastante restrito às práticas assistencialistas. Legitimado como um líder representante da comunidade do Riachão dos Milagres que por sua missão religiosa já acolhia os devotos e intercedia nas curas sem cobrar donativos, Seu Martinho afirma ter aceitado se candidatar vereador para conseguir melhorias para a comunidade, como ampliação, conservação das estradas, construção de prédio escolar na comunidade, atendimento médico, dentre outros. Eleito como suplente nas eleições de 1976, e segundo a narrativa de Seu Antonio Barreto Mota, conseguindo a mesma quantidade de votos do vereador eleito, Seu Marcolino Figueira, ficou na suplência devido a idade inferior.194 Seu Martinho afirmou que não fez campanha em seu próprio favor, apenas dizia que apoiava o prefeito, mas que os seus amigos, parentes, compadres, comadres e afilhados o elegeram. Com o afastamento do vereador eleito, por motivo de doença, Seu Martinho foi empossado vereador no dia 26 de maio de 1978.195 Nas atas das sessões dos anos de 1978 a 1982, percebemos a assiduidade de Seu Martinho nas sessões e encontramos algumas interferências, na sua maioria buscando melhorias para as estradas que levam à Riachão dos Milagres: No expediente nada foi apresentado, passando a ordem do dia o vereador Martins Góis da Silva, usou a palavra pedindo por meio deste legislativo que o Sr. prefeito mande colocar cascalho nestes meios de estradas que se acha em estado de ruína.196 A participação de Seu Martinho na política do município de Dom Macedo Costa foi impulsionada pelo incentivo de amigos e populares da comunidade, devido a sua missão religiosa e o acolhimento gratuito que dava aos devotos na casa dos romeiros, viabilizando serviços para a comunidade. Em todas as participações de Seu Martinho nas sessões encontramos reivindicações de melhoramentos das estradas para a área rural e também para a comunidade do Riachão dos Milagres. Apesar de possuir um reconhecimento no município, 194 Informações baseadas no depoimento citado de Seu Antonio Barreto Mota. Informações baseadas no livro de Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba do ano de 1977. 196 Ata da 203ª sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba em 19/10/1979. Livro de Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba do ano de 1977. 195 118 em seu mandato não conseguiu viabilizar grandes mudanças ou projetos na comunidade e seus requerimentos se resumiram a solicitações de melhoria das estradas.197 Após um ano do início de seu mandato, Seu Martinho, continuava requerendo a melhoria das estradas que davam acesso às comunidades rurais, provavelmente a precariedade das vias dificultava também o acesso dos devotos que recorriam as práticas de cura na Igreja do Anjo São Gabriel. Se Seu Martinho estava apontando a dificuldade de passagem de “carro grande ou pequeno, como também animais”, significa que havia uma grande procura por suas práticas e também já havia a sua representação enquanto proclamador de curas a ponto de considerar a comunidade como “seu sector”. Sua participação na política esteve sempre ligada a sua vida religiosa na comunidade e suas solicitações estavam atreladas a melhorias no acesso, possibilitando a procura pelas práticas religiosas atribuídas a sua missão. Seu sobrinho, Manoel da Lapa, narrou um pouco sobre o exercício do mandato de vereador de Seu Martinho, apontando as dificuldades na conciliação entre a vida religiosa e política: [...] então ele teria que seguir a risca o compromisso da igreja, mesmo ele sendo um homem público, mas ele não poderia sair da ética, principalmente dos princípios religiosos e para conciliar religião e política é complicado... então ele ficou no mandato mesmo assim ajudou em alguns projetos como o melhoramento das estradas, porque naquele tempo era precária a estrada ali, não tinha cascalho, não eram encascalhadas, não tinha acesso de carros pesados e ele junto com os colegas vereadores naquela administração naquela época conseguiu. Bom, ao bem estar daquela comunidade Riachão dos Milagres o que ele conseguiu foi isso aí, porque outros meios não foi viável, não foi possível..198 A narrativa de Manoel da Lapa reafirma a participação política limitada de seu Martinho, enquanto representante da comunidade, se resumindo a favores locais e de abrangência imediata, porém demonstra a preocupação com uma adequação entre a ética religiosa vivenciada na missão de Seu Martinho e sua postura política. Seria impossível conciliar a ética religiosa com o exercício de um cargo político? Ou seriam dois campos lugares de disputas diferentes na sociedade? De acordo com Bourdieu, 197 Informações baseadas na Ata da 25ª sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba em 27/10/1980. Livro de Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba do ano de 1977. 198 Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. 119 A concorrência pelo poder religioso deve sua especificidade (em relação por exemplo, à concorrência que se estabelece no campo político) ao fato de que seu alvo reside no monopólio do exercício legítimo do poder de modificar as bases duradouras e em profundidade a prática e a visão do mundo dos leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um habitus religioso particular, isto é uma disposição duradoura, generalizada e tranferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão (quase) sistemática do mundo e da existência.199 Nesse sentido, as possibilidades de liderança de Seu Martinho eram muito maiores no campo religioso do que no campo político. Como líder religioso, ainda que leigo, ele alcançou autonomia e características próprias de liderança atribuídas a sua missão, resolvendo as mazelas de seus devotos por seus próprios méritos de mensageiro obediente ao Anjo São Gabriel. Impunha ainda regras de comportamentos, hábitos particulares de acordo com sua crença e a sua concepção de mundo. Como político, Seu Martinho necessitava de solicitações formais na câmara de vereadores ou ao prefeito, dependendo de soluções de terceiros para solucionar as dificuldades apresentadas na comunidade e os hábitos ou mudanças de comportamento no campo político não estavam ao seu alcance. Nesse sentido, o discurso religioso é imposto e absorvido com maior rapidez face as soluções de problemas realizadas por Martinho, o mesmo não acontecia no campo político. Além disso, o exercício de seu cargo político demandava tempo o afastando da sua missão religiosa, uma vez que os devotos o procuravam e ainda o procuram a qualquer momento do dia para curar suas doenças. Com sua prática política, Seu Martinho perdia espaço no campo religioso, deixando porventura de atender os fiéis em suas ausências da comunidade. Seu Martinho também seguia algumas abstinências que lhe foram exigidas ao receber sua missão e pregava princípios religiosos presentes no Antigo Testamento, 200 afastando-o dessa forma das vivências no mundo da política marcado, em sua maioria por promessas não cumpridas, jogos de interesse, manipulações.201 A permanência de Seu Martinho na política, colocaria em risco a credibilidade alcançada por ele no exercício de sua missão religiosa, uma vez que “a dedicação, por obrigação, aos interesses dos mandantes, faz esquecer os interesses dos mandatários”202, o afastando do seu sonho: 199 BOURDIEU, Pierre.Op. Cit.. p.88. As abstnências seguidas por Seu Martinho, foram mencionadas no subítem 1.3 do primeiro capítulo. 201 O mundo da política aqui está sendo tomado num sentido bastante restrito, visto que o mesmo é bastante amplo e complexo, cujo especialistas da ciência política e da abordagem da história polítca procuram analisar. 202 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico.3 ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2000. p. 176. 200 120 Aí ele escalou eu pra ser o prefeito na saída dele aí eu não aceitei e disse assim: me desculpe, mas eu tenho minha missão não posso corresponder a uma irresponsabilidade (...) fui vereador uma vez, mas não que eu aceitasse, o povo que fez, mas eu não quis não (...) Eu tinha minha missão a cumprir, não ia me submeter a uma irresponsabilidade, né? Prefiro a morte antes da data, do tempo de que eu abandonar essa missão, a cruz que Deus me deu a carrregar. Realizei meus sonhos, hoje tô com minha igreja e realizei meu sonho, hoje estou na batina e tô com minha igreja, é o que eu queria, aí na missão distribuo a comunhão todo domingo, não é? 203 Exercendo sua missão religiosa, Seu Martinho realizou o seu sonho de criança: ser padre. Não conseguiu ser um sacerdote ordenado pela Igreja, porém conseguiu uma abrangência ainda maior, tendo a própria igreja, liderando uma comunidade e adquirindo o reconhecimento pelos fiéis. Como ministro da eucaristia ainda exercia/exerce a função de distribuir a eucaristia selecionando com rigor os fiéis que a recebem. Enquanto líder religioso Seu Martinho garantia a realização de seu sonho, mas ao se direcionar para o campo político ele perdia autonomia e colocava em risco a sua liderança religiosa. Com uma visível popularidade, vivenciando uma religiosidade na qual “ele se doa, cuida, sem distinção”204, Seu Martinho ganhou o respeito e a admiração da comunidade e dos devotos, traduzindo tal relação na política através da sua eleição, considerando que mesmo sem pedir votos obteve uma votação expressiva: Eu só dizia ao pessoal em geral, eu estou com o prefeito, ele me candidatou a vereador, mas eu não quero ser vereador, dizia ao povo, mas o povo tudo doidinho chegava e votava sem eu querer ser vereador. Através do povo ele ganhou, aí ele trouxe a estrada pra qui pra porta da igreja, né.(...) Meus irmãos, minhas irmãs, todos parentes, compadre, comadre, afilhados, eu não pedi voto a ninguém, só a palavra que eu dava eu não quero ser vereador. O apoio de Seu Martinho ao candidato a prefeito o ajudou a se eleger e mesmo sem pedir votos para si próprio, resultou em sua eleição como vereador. Sem a realização de campanha política a seu favor, Seu Martinho foi votado por seus familiares e amigos da comunidade, muito deles seus compadres, comadres e afilhados, sendo esses últimos um número que gira em torno de “pra mais de 600 afilhados”205. Somando-se a representação de Seu Martinho na comunidade, como amigo, padrinho, homem religioso, sério, com a 203 Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado. Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. 205 Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. 204 121 promessa de melhorias de estradas do candidato a prefeito, Seu Martinho foi eleito, retratando desse modo, o anseio da comunidade do Riachão dos Milagres de ser representada por um candidato de sua confiança. Seu Martinho, eleito pela ARENA, que se manteve no poder na maioria dos municípos do interior da Bahia nas eleições de 1978206, seguia uma postura política com característica conservadora, atendendo as necessidades imediatas da comunidade. Realizava os favores de acordo com as solicitações dos moradores do Riachão dos Milagres. As palavras do ex-prefeito demonstram que a comunidade solicitava favores como assistência médica, remédios, conserto da estrada. Dessa forma, Seu Martinho, enquanto representante no legislativo da comunidade, atuava com práticas conservadoras, seguindo uma política clientelista. Nesse período de abertura do processo político brasileiro começaram a emergir movimentos sociais, uma parcela da Igreja Católica assume o papel de assessora destes por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Surgiam movimentos ancorados pela Igreja católica, que reivindicavam melhores condições de vida e também uma maior participação nas decisões políticas o país.207 As CEBs se organizavam “principalmente nas zonas rurais (...) reunindo pessoas em torno à leitura e reflexão bíblica, à celebração do culto dominical, e de movimentos sociais em defesa dos direitos da cidadania”208 Criadas na década de 1960, foi no início da década de 1970 que as CEBs começaram a se difundir, inicialmente no campo com liderança leiga, apoiada pela Igreja. “Nas comunidades emergiam novas formas de catecismo, de liturgias, de vivência comunitária e de teologia”209. Assim, a Igreja se aproximava dos populares como grupos de devoção, mas também com características de grupo para discussões políticas. “Quando o Estado reprimia os sindicatos e as associações de bairros, as CEBs tornavam-se quase as únicas organizações 206 Sobre as aleiçoes de 1978 na Bahia ver capítulo IV de JACOBINA, André Teixeira. Clivagens partidárias: ARENA e MDB baianos em tempos de distensão (1974-1979) . Dissertação de Mestrado do programa de PósGraduação da UFBA. Salvador. 2010.p. 127 a 153 207 Ver FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo. Gestão Municipal e Participação Social no Brasil: A trajetória de Recife e Salvador (1986-2000). São Paulo: Annablume; Fapesb, 2004, p.75-81. Cabe ressaltar que dentre os evangélicos protestantes também há registros de indivíduos e grupos que atuaram na mobilização e defesa de movimentos visando a melhoria das condições de vida e a maior participação política no país, em especial, os movimentos de assessoria aos trabalhadores rurais Ver: SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e Realidade Brasileira: evangélicos progressitas em Feira de Santna. Feira de Santana. Editora da Uefs. 2010. p. 196-202 208 OLIVEIRA, Pedro A. R. de. Estruturas de Igreja e conflitos religiosos. In: SANCHIS, Pierre (Org). Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992. p. 45. 209 MAINWARING, Scott. Igrega Católica e Política no Brasil ( 1916-1985). São Paulo: Brasiliense. 2004.p 200. 122 populares onde as pessoas se organizavam para discutir suas vidas cotidianas, seus valores e suas necessidades políticas.”210 Diferenciando-se da emergência das CEBs, principalmente das comunidades rurais, a comunidade liderada por Seu Martinho seguia as formas tradicionais de catecismo, numa vivência comunitária onde prevalecia uma política de troca de favores dependente do grupo político vigente no poder. Ao contrário, as CEBs eram comunidades autônomas. “Estavam e ainda estão mais preocupadas com o próprio desenvolvimento do que criar laços no tradicional estilo populista, com políticos que poderiam lhe obter favores.”211 Seu Martinho se apresentava, então, numa perspectiva mais individualista, voltado para o cumprimento de sua missão que não se inseria no contexto liderado pela Igreja Popular “ uma comunidade de fé (...) ligada aos movimentos sociais, sindicais e político-partidários das classes populares.”212. A Igreja Popular, cujo núcleo era as CEBs, estava pautada numa espiritualidade “marcada pela ênfase na luta pela vida e pela libertação que se dá no campo histórico terreno”, se opondo a uma “espiritualidade de salvação individual”. Essa espiritualidade estava centrada na leitura da bíblia, buscando a “narrativa da libertação dos oprimidos mais do que uma ética de comportamento individual (como faz a leitura salvacionista)”213. Sempre preocupado com “uma ética de comportamento individual”, a religiosidade vivenciada na comunidade do Riachão dos Milagres divergia da proposta da Igreja Popular do período, que representava uma corporação religiosa na comunidade católico-romana do Brasil, realizando “um trabalho propriamente religioso produzindo e reproduzindo significados sagrados que deem sentido à vida social” 214 . Além disso, Seu Martinho não realizava uma catequese nos moldes propostos pela Igreja Popular relacionando os textos bíblicos às lutas e classes populares, exercendo ainda sua vereança numa linha política conservadora. Se a Igreja Popular apresentava-se conforme uma corporação religiosa, implica “que a Igreja não se transformou no todo, embora insista em seu caráter universal, a instituição abriga visões diferenciadas da fé e das práticas-religiosas”215. 210 Ibid Ibid 212 SILVA, Margarete Pereira da. O bispo de Juazeiro e a ditadura militar. In:ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org). Ditadura militar na Bahia : novos olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador : EDUFBA, 2009. p. 248. 213 OLIVEIRA, Pedro A. R. de. Estruturas de Igreja e conflitos religiosos. In: SANCHIS, Pierre (Org). Op. Cit. p. 51. 214 Ibid . p. 51. 215 SILVA, Margarete Pereira da. O bispo de Juazeiro e a ditadura militar. In:ZACHARIADHES, Grimaldo Carneiro (org). Op. Cit. p. 248. 211 123 Os movimentos sociais que demandavam a ampliação da cidadania no país, afloravam, porém “ isso não significa dizer que a partir daí desapareceria o clientelismo, presente na cultura política brasileira, nas relações entre Estado e Sociedade”. 216 Dessa forma, na Comunidade do Riachão dos Milagres, Seu Martinho exercia sua vereança, dentro dos moldes do clientelismo e representava uma liderança conservadora para os anseios dos moradores, com demandas imediatas e locais. Mesmo sem estar atuando enquanto vereador, mas tendo exercido uma postura política centrada na reivindicação do atendimento às demandas locais, Seu Martinho por sua representação de líder da comunidade, conquistou a construção de um prédio escolar com a doação do espaço no seu terreno: Conseguiu também depois por esse respaldo que ele tinha deixado como homem sério que foi também naquele mandato de vereador, um colégio, né um prédio que ele doou até o terreno pra que fosse instalado o prédio. Foi uma doação dele, foi reivindicação dele.217 A construção do prédio escolar se constitui como algo relevante para a comunidade do Riachão, considerando que antes da existência do prédio, as crianças em idade escolar para o Ensino Fundamental I, precisavam se deslocar para a comunidade próxima, a fim de estudar.218 Também significou uma conquista paupável e duradoura, como fruto do “respaldo” de Seu Martinho, enquanto vereador e líder religioso, ajudando a legitimar o seu papel de liderança na comunidade. 3.3- Redução da quantidade de devotos na Igreja do Anjo São Gabriel. A procura pelas práticas de cura proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel, vem passando por um processo de redução, desde a primeira década do ano 2000. A quantidade de 216 FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo.Op. Cit., p.82 Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. 218 Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 10/03/2010. 217 124 populares que se deslocam e se aglomeram na comunidade para resolverem suas mazelas corriqueiras ou as suas doenças incuráveis não é a mesma dos primeiros anos. A quantidade de devotos organizados em romarias, trajando as vestes impostas por Seu Martinho, todos os domingos para assistirem as celebrações, receberem a bênção e encherem seus vasilhames com água benzida também não é mais a mesma. Entretanto, existem ainda os populares fervorosos e fiéis que dão continuidade as suas devoções, há décadas. Existem também os populares que vão à procura de uma cura ou bênção, mas não mantém uma freqüência constante à igreja para a devoção do Anjo São Gabriel. A narrativa de Seu Antonio do Sindicato indica essa baixa procura pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel: [...] hoje digo a você que dimunuiu em torno de 70 a 80%, porque era gente, era muita gente que vinha, hoje diminuiu bastante. Não se sabe se foi por motivo da própria tradição dele, aí depois teve que mudar, você sabe que isso pra quem acompanha é um choque. Você já tem aquela tradição, só é branco, não corta cabelo, não faz barba, nada aí daqui a pouco você já começa a mudar o visual, corta cabelo, a roupa começa a vestir de qualquer cor, faz barba, aí pra quem tá indo já percebe que houve um choque naquela maneira de ser atendido.219 As mudanças realizadas na maneira de vestir-se de Seu Martinho foram apontadas como um motivo que teria levado à redução do número de devotos na Igreja do Anjo São Gabriel. Para Seu Antonio do Sindicato representou um “choque” essas transformações, as quais fizeram com que os devotos passassem a vê-lo com um ser humano com características comuns. A composição de sua imagem, constituída de elementos que o tornavam um ser humano excepcional, diferente, sustentavam a representação do humano escolhido para cumprir uma missão divina. O branco simboliza pureza, sacralidade, se aproximando no imaginário popular da representação dos anjos. As renúncias relacionadas ao cabelo e à barba certamente simbolizavam uma espécie de sacrifício no cumprimento da missão, quiçá uma renúncia aos apelos da vaidade e à medida que ele se desfez dessa composição, abriu precedentes para questionamentos no tocante à eficácia de suas práticas pelos devotos. O padre Nelson Franca aponta a mídia televisiva como uma alternativa para os populares obterem suas curas e bênçãos sem se deslocarem da comodidade de seus lares. 219 Entrevista com Seu Antonio Carlos de Souza Santos. Depoimento citado. 125 “Basta botar um copo com água em cima da televisão e depois beber aquela água, é muito mais cômodo e mais prático, então é meio complicado tudo isso”. 220 Programas católicos como a Novena dos Filhos do Pai Eterno, apresentada pelo padre Robson de Oliveira exibido na Rede Vida, a Missa de Cura exibidas às quartas-feiras à noite na Canção Nova e a celebrações eucarísticas com o padre Marcelo Rossi, na Rede Vida e na Rede Globo exemplificam a narrativa do padre. Soma-se ainda os programas evangélicos da Igreja Internacional da Graça de Deus, exibidos na Rede TV e da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rede Record. Esses programas apresentam-se como “um novo modo de “gestão da crença”, e também processos de atendimentos das demandas relacionadas com dimensões situacionais da vida dos fiéis.”221 A quantidade de ofertas de curas através dos programas religiosos na televisão tornou comum e possível em diversos espaços as práticas mágico-curativas. Dessa forma, as práticas religiosas vivenciadas na Igreja do Anjo São Gabriel não mais representariam uma novidade para os populares, visto que em seus lares, teriam ofertas religiosas semelhantes, com mais comodidade e sem ônus. Não apenas através da televisão, como também pelas ondas do rádio. É válido ressaltar que os padrões de vida urbanos foram aos poucos sendo incorporados às comunidades rurais. Na comunidade do Riachão dos Milagres a energia elétrica ocupou o lugar do candeeiro na década de 1990 222, e o rádio e a televisão eram movidas através da pilha e da bateria automotiva e por isso não eram constantemente utilizados como nos dias atuais. Nas memórias dos trabalhadores rurais do município de Dom Macedo Costa, nas décadas de 1930 a 1960, Edinélia Souza aponta para uma certa resistência desses para com o rádio, numa passagem em que um comprador de imagens propõe a uma trabalhadora a troca de uma de suas imagens por um rádio, indicando que “além de afastar-se de signos protetores de entidades prestadoras de auxílios, a troca dos santos pelo rádio aumentaria suas despesas financeiras, alteraria suas práticas cotidianas.” 223 Desse modo, no início da década de 1990 é que se popularizaria o uso da televisão nesses meios rurais, contribuindo ao certo para o processo de redução na procura pelas práticas religiosas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel. 220 Entrevista com o padre Nelson Franca. Depoimento citado. FAUSTO NETO, Antonio. Dispositivos de tele-cura e contratos da salvação. “Você que disse que Deus fazia isso só antigamente, Deus continua fazendo hoje pela televisão” (Missa de Cura e de Libertação, TV Canção Nova, 16.01.05). In UNIrevista.vol 3, nº 01. Julho de 2006. P. 1. 222 Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 10/03/2010. 223 SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Op. Cit.P.132. 221 126 Quando o padre Nelson Franca afirma que a televisão traz para a população a comodidade de receber as curas em casa e assistir aos cultos, ele demonstra que não somente a Igreja do Anjo São Gabriel perdeu devotos para os programas católicos, mas toda a Igreja Católica devido à proliferação de programas das denominações neopentecostais, abordando práticas curativas e de prosperidade econômica transmitidos pela televisão e pelo rádio. Vale ressaltar que a partir do final da década de 1970, o neopentecostalismo teria se iniciado no Brasil, surgindo “num clima de crise social, de desemprego, violência e tráfico de drogas, no Rio de Janeiro, com o aparecimento da Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça e Igreja Renascer em Cristo”.224 O crescimento do número de adeptos ao neopentecostalismo mostra a quebra da hegemonia da Igreja Católica nas últimas décadas e um processo de transformação da religiosidade brasileira. Nessa perspectiva, o longo percurso de interpretação da relação entre religião e modernidade será a matéria-prima do paradigma da secularização a qual abrange três grandes dimensões: a racionalização e laicização das condutas religiosas (desencantamento), acompanhado das forças econômicas; a quebra do monopólio religioso, com o conseqüente pluralismo de ofertas de sentido e crenças; e a diferenciação funcional das esferas, seja política, seja econômica ou religiosa, o que leva a que a religião se recolha para a esfera da vida privada dos indivíduos.225 As mudanças econômicas, sociais, políticas interferem diretamente nas dinâmicas religiosas dos populares, modificando-as ao longo do tempo. A Igreja Católica foi perdendo sua hegemonia à medida em que essas mudanças ocorridas na sociedade, desenvolveram nos populares o desejo de uma prática religiosa com promessas de resoluções mais rápidas pra os problemas cotidianos, fossem estes relacionados a curas de doenças, males financeiros ou mazelas sociais. No depoimento de Manoel da Lapa ele demonstra uma preocupação com as ofertas de outros segmentos religiosos: (...) se houve redução pode ser em função dessa nova era, essa nova juventude, elas são mais vaidosas. (...) Hoje vai pessoas lá, pessoas de fé, pessoas que conhece a palavra, vai em busca da palavra ou até de uma graça. Qualquer igreja católica ou qualquer igreja que prega verdadeiramente Jesus Cristo, através dela, as pessoas pode alcançar graça e cura. Agora eu digo, há 224 FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: Da constituinte ao impeachment. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1993. Tese de doutorado em Ciências Sociais.p.66.In: SANTOS, Adriana Martins dos. A construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições políticas soteropolitanas (1980-2002).Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Salvador, 2009. P.18 225 DÁVILA, Brenda Maribel Carranza. Movimentos do catolicismo brasileiro : cultura, mídia, instituição / Campinas,SP 2005. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.p.17 127 o verdadeiro Jesus Cristo, há o verdadeiro Deus, não viver do faz de conta ou de enganar quem quer ser enganado. Porque tem muitas pessoas se enganando aí, brincando com a palavra de Deus (...) É preciso ter cuidado.226 Na narrativa de Manoel da Lapa percebemos que ao mencionar as “muitas pessoas se enganando por aí”, possivelmente ele está se referindo aos adeptos das igrejas neopentecostais que oferecem cura e prosperidade imediata, sem exigir o cumprimento das normas impostas por Seu Martinho para o alcance de graças. Com uma juventude “mais vaidosa” “dessa nova era”, que não se enquadra nos princípios religiosos propostos na Igreja do Anjo São Gabriel, pautados numa releitura do Antigo Testamento. Dom João Nilton indicou outros fatores que contribuiriam para a redução na busca pelas práticas mágico-curativas: Hoje com um mundo mais secularizado e depois com os serviços que o próprio poder público vai oferecendo, as pessoas vão buscando já diretamente estes novos meios e aqui me parece que há uma certo declínio dessa busca do religioso, do sagrado como solução dos problemas, o que acho isso também interessante, porque faz uma provocação a respeito do que é a fé (...). Acredito que hoje já não se busca tanto o religioso para a solução de problemas. A sociedade moderna ela já oferece mais serviços e serviços que estão mais próximos do povo, há aqui já um outro modo, uma outra cultura, a cultura de você buscar mais o científico, não é que haja um abandono de Deus não é uma rejeição a Deus, mas é que você vai entendendo que você já tem outros meios para solucionar os seus próprios problemas.227 Em sua narrativa, o bispo aponta as mudanças da “sociedade moderna”, num “mundo mais secularizado” como os possíveis motivos para o declínio na busca pelo sagrado para resolução dos problemas cotidianos. Contudo, tais mudanças passariam por uma pluralidade de ideias e crenças, as quais indicariam novos caminhos religiosos para os populares. “A secularização multiplica os universos religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da modernidade”.228 Assim, ocorreria “uma religiosidade plural que busca espaços alternativos aos tradicionalmente instituídos,”229 apresentando diversas alternativas de práticas religiosas curativas para os populares, que além de oferecer curas para as doenças, auxiliaria com promessas de resolução dos problemas 226 Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado. Entrevista com o Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza. Depoimento citado. 228 STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, Modernidade e Tradição.Transformações do Campo Religioso. In: Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: Oct. 2001, Año III, nº03. p.116. 229 SILVA, Elizete da. A Igreja Universal do Reino de Deus e os reinos deste mundo. www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_I/elizete_silva.pdf. p 4. Acesso em 14/01/2011. 227 128 sócio-econômicos, pois na “teologia da prosperidade “Deus é grande e é Senhor de todas as riquezas, portanto só ele pode libertar o fiel da pobreza”230 Além das alternativas do ponto de vista religioso, o “mundo mais secularizado” apontado pelo bispo, engloba as mudanças ocorridas no sistema de saúde, que oferecem, senão o atendimento, mas a promessa de serviços com mais qualidade e de forma mais acessível nos últimos anos. As políticas públicas relacionadas à saúde mudaram nos anos 90 com a construção do Sistema Único de Saúde (SUS)231, que mesmo não atendendo satisfatoriamente a toda população usuária, significou um avanço para a sáude no Brasil, indicando uma alternativa de busca por curas, independente do caminho religioso. No município de Dom Macedo Costa, segundo os dados sobre o serviços de saúde no ano de 2009, existem três estabelecimentos de saúde pelo SUS na cidade e não foi apontada a ocorrência de nenhum serviço médico pela rede privada. Esses estabelecimentos funcionam apenas como postos de atendimento para consultas232, sendo que nos casos de doenças, com a necessidade de exames, cirurgias e internamentos, os pacientes tendem a se deslocar para o Hospital Regional no município vizinho de Santo Antonio de Jesus. Indo além das questões da religiosidade plural e do ampliar dos serviços médicos é preciso ponderar ainda que essa “outra cultura” aponta novas práticas cotidianas que aumentam as mazelas de saúde vivenciadas pelos devotos: As condições de vida, alimentação, higiene, o desemprego, as jornadas excessivas de trabalho, o desgaste físico e mental, entre outros problemas, levam a população a adoecer e procurar os serviços de saúde, na tentativa de uma assistência e resolutividade de seus problemas, muitos deles de depressão, angústia, estresse, e etc.233 Enfrentando dificuldades de acesso ou de resolução de seus males ao procurar os serviços de saúde, os populares tendem a recorrer as práticas alternativas de cura nos espaços religiosos, que se apresentam numa enorme diversidade nos últimos anos. Dessa forma, os males adquiridos com a correria vivenciada no cotidiano, que não deixa espaço para o lazer, a 230 SILVA, Elizete da. Protestantismo em Feira de Santana:algumas considerações. Disponível em hptt//www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_II/elizete_da_silva.pdf. P.8. Acesso em 14/01/2011. 231 Sobre a construção do SUS ver NEGRI, Barjas. A Política de Saúde no Brasil nos anos 90: Avanços e Limites. Brasília: Ministério da Saúde. 2002. P. 7-9. 232 Informações baseadas nos dados do IBGE. Disponível em http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 18/12/2010. 233 VALLA, V. V., 1999. A Educação Popular a Saúde Diante das Formas Alternativas de Lidar com a Saúde. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. (mimeo.) apud PIETRUKOWICZ, Marcia Cristina Leal Cypriano. Apoio social e religião: uma forma de enfrentamento dos problemas de saúde. Pós- Graduação em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 2001. 129 religiosidade, a vida em família, seriam atenuados não somente no aspecto medicinal, como também no religioso. O que nos chama a atenção é que mesmo com avanços nos serviços médicoshospitalares, com uma maior acessibilidade e veiculação de informações nesse sentido, a busca por práticas mágico-curativas não entrou em declínio, ao contrário houve um aumento de opções para os populares que recorrem a essa alternativa. Os cultos neopentencostais, a renovação carismática católica, seja no próprio espaço religioso, pelo rádio, televisão ou internet ampliaram as possibilidades de cura dos populares, que muitas vezes não precisam se deslocarem de seus lares, a bênção chega até eles, é só escolher a mídia. Nesse sentido, a mídia televisiva apresenta várias alternativas: (...) a partir dos últimos dez anos, a televisão religiosa tem adquirido mais notoriedade, visto o impulso que a Igreja católica veio a ter com o investimento maciço da TV Século XXI, a TV Canção Nova, a Rede Vida de Televisão, e outros canais católicos, além da expansão da programação das teletransmissoras neopentecostais.234 De certa forma, a facilidade com que a mídia se apresenta ao público em geral, seria a responsável pela redução na procura pelas práticas de cura proclamadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel. Quiçá também não necessitando se trajar de acordo com as normas impostas por Seu Martinho, as mulheres tenham optado em recorrer as curas ofertadas nas novenas, celebrações e cultos através da mídia televisa e radiofônica. As curas oferecidas nos programas religiosos através da mídia televisiva e radiofônica podem se apresentar como uma alternativa perante as práticas curativas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel, contudo é válido ressaltar que não significou o abandono dos devotos, pois estes continuam presentes, se deslocando ou até residindo em Riachão dos Milagres. Na festa de aniversário da missão que acontece todos os anos no dia 30 de outubro, ainda se percebe um bom número de devotos que vão à igreja, comemorar com Seu Martinho o seu dom curativo, intermediado pelo Anjo Gabriel. Nos dois últimos anos, 2009 e 2010, após a celebração, ele distribuiu como “lembrança” aos devotos um calendário, com fotos e mensagens de sua missão religiosa: 234 DÁVILA, Brenda Maribel Carranza. Op. Cit.p.189. 130 Fotografia 24: Calendário distribuído na festa dos 43 anos de missão em 30/10/2010. O calendário distribuído por Seu Martinho aos devotos presentes à sua festa de 43 anos de missão, indica uma preocupação em divulgar as práticas religiosas ocorridas na comunidade. Apesar de “ter facilidade de comunicação”, ele não se adaptou aos novos meios de divulgação e comunicação como a internet, com sites, blogs, etc. Procurou uma forma simples, acessível aos devotos e com grande poder de divulgação, afinal os calendários geralmente ficam pendurados nas paredes das casas nos cômodos mais visitados, como a sala e a cozinha, despertando a curiosidade e o interesse de quem o vê. A “lembrança” se constitui de elementos que despertam a atenção do receptor para as práticas religiosas de Seu Martinho. Vislumbramos uma comunicação direta dele com o devoto na bênção ofertada no topo do calendário, passando uma visão de proteção para a residência que a possuir. Apresentando-se como o Anjo Gabriel, na tradição católica, como “o patrono dos sacerdotes” e “o protetor de todos os servos e servas de Deus”235, com a bênção ofertada no calendário, os devotos se apropriam da representação de Seu Martinho enquanto padre ou servo com caráter extraordinário, diferente. O endereço e o número do celular expostos garantem a difusão do espaço sagrado para os interessados. As fotografias de Seu Martinho, da Igreja do Anjo Gabriel tendem a 235 Ver expressões na Ladainha dos Santos Anjos. 131 demonstrar a sua imagem, enquanto mensageiro do anjo, e a igreja, espaço sagrado para realização das práticas religiosas, reforçando “o ir e vir entre imagens e imaginários”236 A oração impressa no calendário mostra uma invocação dos devotos ao anjo, com súplicas que sugerem “desprezar o mundo”, numa referência ao cumprimento das abstinências próprias de sua missão religiosa, “vencer o demônio” e “ dominar as minhas más inclinações até o fim da minha vida”, apregoando “ condutas e atitudes que devem ser assimiladas por todos os devotos”237 e ao mesmo tempo contribuindo para a legitimação de sua representação enquanto homem religioso, casto, contrito, cumpridor de rigorosos códigos morais. O culto ao Anjo São Gabriel, o costume dos devotos em recorrer às práticas curativas intermediadas por Seu Martinho ainda constitui uma ação recorrente na comunidade do Riachão dos Milagres. Pode ter reduzido a quantidade de populares, ou a periodicidade com que esses recorrem a essas práticas porém, não ocorreu a indiferença por parte dos devotos. Esses continuam recorrendo à intervenção do Anjo, possivelmente conciliando com outras alternativas curativas oferecidas pela mídia ou ainda pelos serviços médicos-hospitalares. 236 237 BRITO,Gilmário Moreira.Op. Cit, 2009. p 191. Ibid.. p 95. 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo da história local tem ganhado importância e ampliado as discussões das questões relacionadas ao cotidiano das pessoas e as vivências de seus antepassados. A história “da gente comum, vista a partir de baixo”238, tem revelado minúcias sobre o cotidiano e os valores das camadas consideradas subalternizadas na sociedade e, em especial, sobre a cultura e a religiosidade populares brasileira. Nessa perspectiva, os estudos voltados para o Recôncavo Sul, merecem uma atenção cuidadosa devido à riqueza de elementos existentes na história do povo da região que tem se mostrado de extrema relevância para a construção/ reconstrução da cultura religiosa local e regional, uma vez que possui elementos constitutivos da história e da identidade religiosa brasileira, bem como peculiaridades da região. Buscamos compreender as vivências dos populares que recorriam/recorrem às práticas de cura operadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel há cerca de quatro décadas, percebendo a dimensão das crenças e dos cultos aos anjos, santos e santas diversos que levam os populares às peregrinações, promessas e busca de milagres, nos santuários mais famosos e/ou nos lugares menos conhecidos. Então, estudar esse universo de curas é também refletir sobre as influências religiosas, sociais e políticas que revestem o cotidiano dessas pessoas. As memórias sobre as curas narradas nesse trabalho possibilitaram a percepção sobre as vivências dos devotos que se dirigiam à Igreja do Anjo São Gabriel, demonstrando o dia a dia, as crenças, as dificuldades frente aos serviços públicos de saúde e a fé nos intercessores entre o ser humano e o divino, seja nos santos e anjos reconhecidos pela Igreja Católica ou no reconhecimento de um dom ou missão religiosa, como é o caso de Seu Martinho. É essa fé que muitas vezes, alivia as mazelas cotidianas, sustentando a esperança de dias melhores para esses fiéis. Percebemos, através das narrativas e dos momentos experimentados na Igreja do Anjo São Gabriel, a devoção intensa daqueles que ali buscam as práticas religiosas, retornando todos os anos no dia 30 de outubro, dia do recebimento da missão por Seu Martinho demonstrando agradecimentos pela graça alcançada, característica típica do catolicismo popular. Os devotos desse modo, agradecem, louvam, participam da celebração do aniversário da missão e levam para suas casas vasilhames com água benta, reacendendo o compromisso de fé naquele espaço considerado sagrado. 238 HOBSBAWM, E. Sobre História: Ensaios. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo, 1998.p.216. 133 Verificamos que a água, elemento imprescindível na realização das curas, apresentase com uma simbologia marcante na comunidade. É através dela que os devotos se sentem agraciados e curados pelo anjo que confiou Seu Martins como mensageiro. A água representa o elo entre o anjo e os devotos, o elemento que benzido com o dom curativo de Seu Martins, é capaz de curar as mais variadas doenças. Destacamos também a análise sobre o imaginário popular acerca dos “milagres” realizados na Igreja do Anjo São Gabriel, mostrando a conservação das devoções populares, como também um processo de transformação e reinvenção, mostrando que no Recôncavo Sul essas práticas religiosas de devoção e culto aos santos sempre fizeram parte do cotidiano de muitas pessoas, recorrendo às práticas mágico-religiosas para cura de males do corpo e da alma, de maneira individual ou coletiva. Analisamos ainda a relação e a representação religiosa e política de Seu Martinho na comunidade local e na região, visto que, mais do que simplesmente expressão de uma dada religiosidade se percebe uma relação de saberes e poderes. Verificamos ainda a relação da Igreja Católica com o catolicismo popular vivenciado na Igreja do Anjo São Gabriel que, diante da dimensão tomada pela missão de Seu Martinho se posicionou, encaminhando Martinho para atuar como líder leigo da comunidade. Em contrapartida, ele obtinha a tolerância da Igreja. Na análise dos depoimentos e das fotografias, identificamos uma redução da procura pelas práticas de cura realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel. No conjunto dessas narrativas, percebemos diversos motivos para tal: teologia de cura e prosperidade nas denominações neopetencostais, a atuação da Renovação Carismática Católica, celebrações de curas através da televisão e do rádio, modificações na forma de vestir de Martinho. Mesmo com um número menor de devotos, a crença na missão do Mensageiro do Anjo São Gabriel continua viva e se mantém com intensidade, atraindo fiéis de vários municípios que ressignificam as práticas religiosas populares. Ao final deste estudo esperamos contribuir com as discussões da História Regional e Local, ampliando a análise sobre a história dos populares do Recôncavo Sul, envolvendo suas crenças e práticas religiosas. 134 FONTES ORAIS Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada, residente em Nossa Senhora Aparecida, zona rural de Varzedo-Ba. Entrevista realizada em 10/03/2010. Duração: 19min40s. Depoimento de Dona Janete Souza, aposentada, residente no município de Santo Antonio de Jesus-Ba. Entrevistas realizadas em 10/03/2010 Duração:42min34s/13min41s. Depoimento de Dona Maria Aurelina dos Santos, aposentada, residente em Nossa Senhora Aparecida, zona rural de Varzedo-Ba. Entrevista realizada em 10/03/2010. Duração: 16min17s. Depoimento de Dona Tereza Jesus dos Santos, 54 anos, agente de serviços gerais de uma creche, residente no município de D. Macedo Costa. Entrevista realizada em 25.03.2010. Duração: 15min13s. Depoimento de Dona Estelita Santos Souza, 52 anos, auxiliar de serviços gerais da biblioteca municipal de Dom Macedo Costa, onde reside. Entrevista realizada em 24/03/ 2010.Duração: 9min26s. Depoimento de Padre Nelson Franca, pároco da Igreja Matriz de Santo Antonio, no município de Santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba, desde 1978. Entrevista realizada em 25/03 /2010. Duração: 41min17s. Depoimento de Seu Antonio Barreto Mota, ex-prefeito do município de Dom Macedo Costa. Entrevista realizada em 22/03/2010. Duração: 23min08s. Depoimento de José Raimundo Galvão, ex-padre da Paróquia do São Benedito, no município de santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba, residente no município de Aracaju- Se. Entrevista realizada em 23/04/2010. Duração: 39min14s. 135 Depoimento de Seu Antonio Carlos de Souza Santos, conhecido como Antonio do Sindicato do Sindicato, residente na área rural de D. Vital do município de Dom Macedo Costa-Ba. Entrevista realizada em 23/03/2010. Duração: 17mim17s. Depoimento de Seu Martins Góis Silva, 75 anos, aposentado, residente na Comunidade do Riachão dos Milagres, área rural do município de Dom Macedo Costa-Ba. Entrevista realizada em 27/02/2010.Duração: 1h08min21s. Depoimento de Florisce Fagundes dos Santos, 35 anos, professora, residente na Comunidade do Riachão dos Milagres, área rural do município de Dom Macedo Costa-Ba. Entrevista realizada em 25/03/2010.Duração: 09min28s. Depoimento do Padre Edésio Ribeiro, atual padre da Paróquia do São Benedito, no município de santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba. Entrevista realizada em 26/02/2010. Duração:31min52s. Depoimento do bispo Dom João Nilton dos Santos Souza, 67 anos, responsável pela Diocese de Amargosa. Entrevista realizada em 17/09/2010. Duração: 27min 13 s/ 12min44s. Depoimento de Manoel da Lapa Silva Santos, 45 anos, sobrinho de Seu Martins Góis da Silva, residente em Santo Antonio de Jesus-Ba Entrevista em 24/01/2011. Duração 55min14s. ICONOGRÁFICAS Fotografias do arquivo pessoal de Seu Martins Góis da Silva. Fotografias de Wilma Santos de Santana Souza, realizadas em 04/09/2009, 31/10/2009. Fotografias do arquivo pessoal de Dona Janete Souza. Gravação em DVD da festa dos 42 anos de missão, realizada por Wilma Santos de Santana Souza em 30/10/2009. 136 IMPRESSAS Livro da Vida Dom Macedo 2006– Acervo da Biblioteca de D. Macedo. Livreto “Salve o Mensageiro do Anjo São Gabriel”. Livreto “Os Milagres do Anjo São Gabriel”. 137 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABREU, Jean Luis Neves. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos exvotos mineiros do séc. XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.25,n.49, jan./jun.2005. ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. In: Fronteiras. 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