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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA –UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- DCH- CAMPUS V
PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA
REGIONAL E LOCAL
Wilma Santos de Santana Souza
PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO
MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010)
SANTO ANTONIO DE JESUS
2011
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WILMA SANTOS DE SANTANA SOUZA
PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO
MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010)
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História ao Programa de
Mestrado em História Regional e Local do Departamento
de Ciências Humanas Campus V Santo Antônio de Jesus
da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira.
SANTO ANTONIO DE JESUS
2011
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Souza, Wilma Santos de Santana
Práticas de cura e o culto ao anjo São Gabriel no município de Dom Macedo Costa- Ba
(1967-2010) / Wilma Santos de Santana Souza . – Santo Antonio de Jesus, 2011.
142f.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira.
Dissertação (Mestrado ) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de
Ciências Humanas e Tecnologias. Campus V. 2011.
Contém referências.
WILMA SANTOS DE SANTANA SOUZA
1. Cura pela fé. 2. Cura - Aspectos religiosos. 3. Catolicismo. I.Oliveira, Ana Maria
Carvalho dos Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências
Humanas e Tecnologias.
CDD: 248.86
3
PRÁTICAS DE CURA E O CULTO AO ANJO SÃO GABRIEL NO
MUNICÍPIO DE DOM MACEDO COSTA-BA (1967-2010)
Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História.
Santo Antônio de Jesus - BA, 06 de junho de 2011
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira - UEFS/UNEB
Orientadora
_________________________________________________
Profª. Dr.ª Elizete da Silva / UEFS
Examinadora
_________________________________________________
Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito/ UNEB (Titular)
Examinador
4
À Dona Dina, minha mãe.
A Antonio, meu amor.
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AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos se constituem como o momento mais complexo desse trabalho.
Foram inúmeras as pessoas que contribuíram para o processo da pesquisa. Sou grata a todos
que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidas nele, seja na elaboração do projeto de
pesquisa e/ou no desenvolvimento, inclusive aquelas que, porventura, não mencionei nomes.
A Deus, por ter me cercado de uma família maravilhosa e de amigos valiosos, me
encorajando a cada dia.
Agradeço a minha mãe, mulher forte, símbolo de amor e doação, que me educou para
ser independente, decidida e lutar pelos meus objetivos, sem perder de vista, o respeito ao
outro, a importância da família e dos amigos. Nunca esquecerei o seu abraço caloroso ao
saber da aprovação no mestrado, muito menos o apoio e a dedicação diárias. Sem seu
aconchego e acolhimento cotidianos, eu não teria conseguido.
A meu pai (in memorian), que sempre vibrou com minhas conquistas e que chorou
de alegria quando fui aprovada no vestibular. Naquele momento eu não entendia ao certo a
emoção dele, mas a cada dia em que me realizo com esse ofício, compreendo. Aos meus
irmãos Wilson, Uilian e Brenda que torcem por mim e sempre me apoiam. A todos familiares
que de alguma forma contribuíram nessa jornada. À Maria Fernanda, minha sobrinha, que me
alegra com seu lindo sorriso, nas poucas vezes em que a vejo.
A Antonio, meu esposo, companheiro em todos os momentos no meu cotidiano e
nesse trabalho, quem despertou em mim o interesse por essa pesquisa, agradeço imensamente
pela colaboração, desde a elaboração do projeto ao acompanhamento e preocupação do
processo seletivo e da escrita da dissertação, com seu carinho e atenção. Pelo apoio e
compreensão de minhas “ausências”. Pelas conversas e reflexões diárias sobre as práticas de
cura e seus envolvidos. Pelo acompanhamento às entrevistas, com sua dedicação, deixando
seus afazeres, no deslocamento à Dom Macedo Costa e a Riachão dos Milagres que envolvia
longos períodos diários. Enfim, parceiro imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa.
Agradeço a minha querida orientadora, Doutora Ana Maria Carvalho dos Santos
Oliveira, parceira perfeita para a realização desse trabalho, exigente, profissional, dedicada,
amiga. Nunca esquecerei dos plantões de orientação, os quais recebia sua atenção exclusiva,
das palavras de incentivo, do seu bom humor e das valiosas críticas, responsáveis pelo
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desenvolvimento do trabalho. À Maria Luiza, sua filha, por sua doçura e suas palavras
carinhosas ao atender-me ao telefone.
Aos professores e amigos do Programa de Pós- Graduação em História Regional e
Local da Universidade Estadual da Bahia-UNEB- Campus V, pessoas com as quais convivi
durante à realização do curso. Agradeço aos professores Dr. Raimundo Nonato Pereira
Moreira, Dr. Gilmário Moreira Brito e Dr.ª Suzana Severs pelas indicações de leitura e
discussões sobre meu projeto. À Ane, Consuello e Vilma agradeço pelas preciosas
colaborações, no esclarecimento de tantas dúvidas. Aos meus colegas de turma pelas
discussões e pelos momentos de descontração, em especial à Lielva, Regina, Priscila, Fatinha,
Didi, Marilva, Alex, Antonio e Carol, colegas que durante maiores períodos dividimos tanto
angústias quanto risos. Guardarei com muito carinho os momentos em que dividi angústias e
alegrias com minhas amigas Priscila, Regina, Lielva e Fatinha aqui em casa e das nossas
reflexões valiosas.
À banca examinadora composta pelos professores Dr. Gilmário Moreira Brito e Drª
Elizete da Silva pelas valiosas sugestões apontadas durante a qualificação. Agradeço pelas
indicações de leitura e pelo incentivo para a escrita da dissertação, que muito auxiliaram em
seu desenvolvimento.
Aos professores do Campus V, em especial a Edinaldo Antonio Souza pelo
acolhimento no Tirocínio Docente e por suas contribuições e indicações bibliográficas. À
professora Edinélia Maria Oliveira Souza e ao professor Denilson Lessa pelas reflexões e
empréstimos de textos. Aos alunos do VII semestre do Curso de História, no ano de 2010 que
me acolheram no período do Tirocínio Docente.
A Elivaldo de Jesus, pela amizade e pela tão valiosa colaboração, desde a elaboração
do projeto. Agradeço pelas indicações de leitura, pelos livros e textos emprestados, pelas
reflexões e correções críticas e detalhadas. À Eliane, pelo incentivo e paciência nos momentos
em que me acolheu em sua casa para que Elivaldo contribuísse com o desenvolvimento do
trabalho.
Aos amigos, sobretudo Wedmo e Eleny pelo estímulo e contribuições, na fase de
elaboração do projeto e nas vezes em que estive em Recife-Pe para participação em eventos,
agradeço pela acolhida. A Luiz e à Fernanda Karla, agradeço pelo apoio e incentivo,
sobretudo em articular minha remoção para um colégio aqui em Santo Antonio de Jesus, o
que ajudou significativamente para o desenvolvimento do trabalho. À Tea e à Gal, pelo apoio
desde o momento da elaboração do projeto, com reflexões e auxílio técnico. À Gabriela
Marambaia pela amizade, pelo incentivo ainda na fase do projeto e pela vibração com minha
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aprovação. Agradeço a assessoria contante no auxílio às correções gramaticais. À Josele pela
tradução do resumo. À Zenaide França pela revisão. À Valdelice pela amizade e torcida, pelo
auxílio na busca dos livros durante o processo setivo e durante os estudos para a prova de
proficiência. A Hamilton que também me aulixiou com empréstimos de livros. Aos casais
amigos, Ana Rita e a Júnior, Lu e Alex, Sílvio e Synara, Gazo e Zana, Mica e Paula, Cleyson
e Day, pelo apoio.
Aos amigos do Colégio Estadual Luiz Viana Filho, que me acolheram sem ressalvas
no meu processo de remoção no ano 2009, sobretudo Fátima, Rita, Geisa, Ângela, Ray,
Neide, Sandra, José Luiz, Ana Lúcia, José Gilberto, Sônia, Socorro, Marly, Raquel pela
preocupação com a escrita da dissertação. À Geisa, Fátima e Ângela, equipe gestora, pela
compreensão em todos os momentos que necessitei me ausentar devido as atividades do
Mestrado. À Jacy pela valiosa colaboração intermediando o contato com José Raimundo
Galvão, depoente relevante para o trabalho. À Jaqueline por facilitar o contato com Egnaldo
em Dom Macedo Costa, o qual agradeço pela colaboração. À Dalva, Dona Lourdes e Dona
Raimunda pela preocupação com o meu bem-estar diário.
Aos companheiros do Colégio Objetivo, em especial Cilene, Lourdinha, Neuza,
Marilene, Peu que me incentivaram no período da seleção. Aos colegas do Colégio Juvenilia
Peixoto Sampaio, sobretudo Ana Lúcia a quem agradeço pelo grandioso incentivo no período
do processo seletivo e pela vibração com a aprovação.
Aos colegas da Escola Municipal Antonio Carlos Souto, principalmente Denise,
Julieta, Marilene, Elaine, Sônia que me apoiaram no processo seletivo e no início das aulas do
Mestrado.
À Secretaria de Educação Municipal de Laje pela concessão da licença remunerada
por dois anos, incentivo relevante para meu aperfeiçoamento.
A Seu Martins Góis da Silva pela consentimento na realização dessa pesquisa que
envolve sua história de vida. Agradeço a acolhida em sua casa e a disponibilidade para narrar
as histórias sobre sua vida e missão religiosa, permitindo o acesso a Igreja do Anjo São
Gabriel, a casa dos romeiros e a seus arquivos pessoais de fotografias. Aos seus familiares que
também contribuíram com valiosas informações, em especial a Manoel da Lapa.
Aos funcionários da Biblioteca Municipal e da Câmara de Vereadores de Dom
Macedo Costa pelo acolhimento e confiança. Aos depoentes, pelas valiosas narrativas sem as
quais esse trabalho não se realizaria, sobretudo Dona Celina Francisca de Souza, minha sogra,
e Dona Janete Souza pela paciência em narrar inúmeras vezes os casos de cura, nos momentos
em que me deparava com dúvidas. Ao padre Nelson Franca pelo depoimento e incentivo. Ao
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bispo Dom João Nilton pela acolhida e pelo depoimento. Ao padre Edésio Ribeiro pelo
depoimento. Ao padre Sérgio pelo valioso incentivo. A José Raimundo Galvão por ter
atendido ao meu pedido de conceder seu depoimento, mesmo no curto espaço de tempo em
que esteve em Santo Antonio de Jesus no mês de abril de 2010. Agradeço pela confiança de
todos.
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RESUMO
Esse trabalho analisa o culto ao Anjo São Gabriel e as práticas de cura proclamadas pelo
Senhor Martins Góis da Silva, “Seu Martinho”, na Comunidade do Riachão dos Milagres, no
município de Dom Macedo Costa-Ba, entre 1967 e 2010. As crenças da região, envolvendo
devoções, promessas, peregrinações e a fé em milagres, constituem elementos típicos do
catolicismo popular. As memórias dos devotos acerca dos casos de cura ocorridos na Igreja do
Anjo São Gabriel, a história religiosa de Seu Martinho e sua ressonância política são os
pontos centrais da análise empreendida. Utilizamos na construção da narrativa depoimentos
orais, fotografias, extratos das atas da Câmara de Vereadores do município e livretos com os
casos de cura.
Palavras chave: Práticas de cura, catolicismo popular, memórias, História Regional.
10
ABSTRACT
This essay analyzes the cult to Angel San Gabriel and cure‟s practices prescrited by Mr.
Martins Góis da Silva “Seu Martinho” at Riachão dos Milagres Comunity in Dom Macedo
Costa city from 1967 after 2010.The region‟s creed, involving devotion, promises, pilgrimage
and faith in miracles back up tipical elements of popular catholicism. Devot‟s memories about
the cases that occur at Angel San Gabriel Church, “Seu Martinho” religious history and his
political resonance are central point‟s in this analysis. So, it was used in this essay oral
depoiments, photos, city‟s council minutes and pocket book containing cure‟s cases.
Keywords: cure‟s practices, popular catholicism, memories, regional history.
11
12
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ARENA - Aliança Nacional Renovadora
MDB - Movimento Democrático Brasileiro
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base
13
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapa 1: Recôncavo Sul da Bahia...........................................................................
30
Mapa 2: Dom Macedo Costa-Bahia........................................................................
31
Fotografia 1: Antiga Capela do Anjo São Gabriel..................................................
41
Fotografia 2: Celebração na Antiga Capela............................................................
42
Fotografia 3: Devotos em frente à nova Igreja nos anos 80...................................
44
Fotografia 4: Seu Martinho e um motorista de uma romaria..................................
45
Fotografia 5: Motoristas das romarias......................................................................
45
Fotografia 6: Capa do livreto com a história de Seu Martinho...............................
48
Fotografia 7: Igreja atual do Anjo São Gabriel.........................................................
49
Fotografia 8: Placa anexada à frente da Igreja do Anjo São Gabriel.........................
49
Fotografia 9: Casa de romeiros da Igreja do Anjo São Gabriel.................................
50
Fotografia 10: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce, junto à estátua
do Padre Cícero .......................................................................................................
Fotografia 11: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce, junto à Igreja de
Nossa Senhora da Dores ..............................................................................................................
Fotografia 12: Livro da vida Dom Macedo Costa 2006............................................
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Fotografia 13: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel................................................
86
Fotografia 14: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel................................................
86
Fotografia 15: Ex-votos dispostos na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São
Gabriel........................................................................................................................
Fotografia 16: Caixas de medicamentos dispostas na sala de Promessa da Igreja
do Anjo São Gabriel...................................................................................................
Fotografia 17: Caixas de medicamentos dispostas na Sala de Promessa da Igreja
do Anjo São Gabriel...................................................................................................
Fotografia 18: Imagem do Caboclo. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da
Igreja do Anjo São Gabriel........................................................................................
Fotografia 19: Colares do Candomblé. Ex-votos dispostos na Sala de Promessas
da Igreja do Anjo São Gabriel...................................................................................
Fotografia 20: Imagem de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do
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95
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Anjo São Gabriel.........................................................................................................
97
Fotografia 21:Quadro de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da
Igreja do Anjo São Gabriel........................................................................................
98
Fotografia 22: Bilhete disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São
Gabriel......................................................................................................................... 100
Fotografia 23: Ex-voto da Igreja do Anjo São Gabriel............................................. 101
Fotografia 24: Calendário distribuído na festa dos 43 anos de missão em
30/10/2010................................................................................................................. 130
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................
15
CAPÍTULO 1
O CULTO AOS SANTOS, SANTAS E ANJOS EM BUSCA DE CURA: A FÉ
NOS INTERCESSORES ENTRE O SER HUMANO E O DIVINO........................ 26
1.1. Recorrer aos milagres para os diversos males que acometem o corpo e a
alma............................................................................................................................. 26
1.2. O cenário para a realização das curas.................................................................. 30
1.3. A missão religiosa do Mensageiro do Anjo São Gabriel..................................... 51
CAPÍTULO 2
“TENHO TODA CERTEZA DE QUE FIQUEI BOA LÁ”: OS CASOS DE
CURA PROCLAMADOS NA IGREJA DO ANJO SÃO GABRIEL....................... 71
2.1. As curas para as variadas doenças.......................................................................
71
2.2. O “milagre” que traz a cura.................................................................................
82
2.3. Ato público de fé e devoção................................................................................
92
CAPÍTULO 3
“HOJE ESTOU NA BATINA E COM A MINHA IGREJA”: AS
REPRESENTAÇÕES DO MENSAGEIRO DO ANJO SÃO GABRIEL................. 106
3.1. A Igreja Católica e o catolicismo popular na comunidade................................
106
3.2. As relações religiosas e políticas de Seu Martinho.............................................. 114
3.3. Redução da quantidade de devotos na Igreja do Anjo São Gabriel..................... 123
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................
132
FONTES.....................................................................................................................
134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................
137
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INTRODUÇÃO
Nos diversos estudos sobre a religiosidade popular brasileira percebemos como as
devoções populares vão ao longo do tempo se conservando, mas também se reinventando e
transformando. Fortes representações culturais, a veneração e o culto aos santos e anjos,
considerados intercessores do cotidiano, se manifestam de diversas maneiras, como na busca
por milagres.
Dentro dessa perspectiva, insere-se o estudo sobre as práticas de cura operadas por
Seu Martins Góis da Silva, “Mensageiro do Anjo São Gabriel”1, também reconhecido e
chamado de Martinho pela maioria das pessoas que o conhecem e com ele convivem na
comunidade do Riachão dos Milagres2, área rural do município de Dom Macedo Costa, no
Recôncavo Sul da Bahia, há cerca de quatro décadas. Aqui, o trataremos por Seu Martinho já
que se trata de um senhor de 75 anos de idade.
O interesse por esse tema tem raízes na minha própria formação cultural e religiosa.
Desde criança, estive envolvida num universo rico em práticas religiosas plurais: A minha
família sempre foi assumidamente católica, porém, com suas próprias ressignificações dessa
religiosidade. Quando tínhamos um mal estar, logo minha mãe recorria às rezas contra “mau
olhado” ou contra “ar do vento” proferidas por Dona Cotinha, uma senhora alegre que sempre
nos recebia com entusiasmo, e logo após a reza nos dirigíamos para casa com uma sensação
de bem-estar e alívio dos sintomas. Fé? Coincidência? Cura psicológica? Não sei.
Supostamente, a fé de minha mãe era tão forte que, de logo, aliviava os sintomas do problema
porque, da minha parte, as idas à Dona Cotinha eram por obrigação mesmo. Imaginem, uma
criança de 6 a 7 anos que, ao final da tarde, ia à casa de Dona Cotinha, por três dias
consecutivos, sofrendo com esse percurso, quando o desejo era o de assistir desenho animado,
e não adiantava birra ou demonstração de fragilidade, pois, quanto mais frágil maior a
necessidade da reza.
Além da minha mãe, meu pai, (in memorian), também tinha sua forte devoção a São
Cosme e São Damião, uma vez que oferecia, todos os anos, “caruru de sete meninos” aos
santos, compromisso que herdou de sua mãe por ter parido gêmeos. Era um caruru de
1
Denominação dada por Seu Martins Góis da Silva a si próprio por ter recebido a mensagem do dom curativo
através do Anjo Gabriel.
2
A delimitação da comunidade do Riachão dos Milagres será feita no primeiro capítulo desse trabalho no
subitem 1.2: O cenário para a realização das curas
16
tradição, esperado por muitas pessoas, que, geralmente, no mês de dezembro freqüentavam a
nossa casa para participar dessa devoção de meu pai para com os santos. Nunca entendemos
muito toda aquela manifestação religiosa, mas tínhamos que participar ativamente. Confesso
que não via a hora de completar meus oito anos para não mais compor a mesa dos sete
meninos, no entanto, eu era uma garota pequena para a idade que tinha e, me lembro,
perfeitamente, que até os nove anos ainda fiz parte da mesa, mesmo contra a minha vontade.
Crescemos em meio às romarias feitas para Milagres de Brotas, às crenças de minha
mãe, às leituras do catecismo, às promessas aos santos, ao culto às imagens em casa, as idas
às ladainhas e às missas aos domingos.
Formada nesse universo cercado por práticas religiosas diversas, sempre me
interessei pela religiosidade popular e ao me deparar com os relatos sobre as práticas de cura
proclamadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel, na comunidade Riachão dos Milagres,
fiquei intrigada e com muitos questionamentos. Cada relato que ouvia aumentava a minha
inquietação, gerando mais indagações.
O contato com o assunto aconteceu na comunidade de Nossa Senhora Aparecida,
zona rural do município de Varzedo-Ba, por intermédio de Dona Celina Francisca de Souza ,
minha sogra, senhora de uma profunda religiosidade, devota fervorosa de inúmeros santos da
Igreja Católica. Ela narra vários casos de cura proclamados na Igreja do Anjo São Gabriel,
vivenciados por ela mesma, por seus familiares e por alguns vizinhos da comunidade onde
vive.
Conta a efervescência na comunidade do Riachão dos Milagres nos anos de
1970/1980 e início dos anos 1990, que houve uma imensa procura pelas práticas de cura ali
realizadas. As práticas curativas desenvolvidas na localidade a partir de 1967 tiveram início
numa pequena capela construída por Seu Martinho e dedicada ao Anjo Gabriel, que é sempre
denominado por ele e pelos devotos como Anjo São Gabriel 3, e é assim que o trataremos
também, devido à representação que o anjo tem para essas pessoas, não como um anjo
comum, mas como o Anjo São Gabriel mensageiro de Deus a Maria, nas histórias narradas
nos Evangelhos da Bíblia cristã.
Considerando-se todo esse contexto, alguns questionamentos referentes
à procura pelos
milagres realizados em Riachão dos Milagres, na figura de Seu Martins Góis Silva, bem como
suas práticas nas últimas quatro décadas foram se formando.
3
O catecismo da Igreja Católica afirma que esta se associa aos anjos “para adorar o Deus três vezes santo”,
festejando, principalmente, a memória dos anjos São Rafael, São Gabriel e São Miguel.
17
Entretanto, definimos como questões centrais para análise as seguintes: - Qual a
realidade sócio-cultural das pessoas que buscam as práticas de curas realizadas em Riachão
dos Milagres? - Como a Igreja Católica visualiza as práticas realizadas em Riachão dos
Milagres? - A comunidade do Riachão dos Milagres sempre foi assim denominada? - Por que
houve uma redução na procura pelas práticas de cura proclamadas por Seu Martins Góis
Silva, a partir do final dos anos 90?
O marco temporal desta pesquisa está estabelecido entre os anos de 1967 a 2010.
Trilhando a memória e oralidade dos sujeitos envolvidos nas práticas de curas operadas por
Seu Martinho chegamos a este período. No conjunto das narrativas foram percebidas
diferentes visualizações no tocante a estas práticas de curas, que variavam de acordo com as
décadas. Nos relatos referentes às décadas de 1970/1980 e início de 1990, percebe-se uma
crença mais fervorosa e uma procura mais intensa em relação às curas. A partir da metade da
década de 1990, há uma redução considerável da demanda.
Direcionar-nos a esse universo envolvendo a crença popular nas práticas de curas
operadas por Seu Martinho, significa esmiuçar práticas e simbolismos populares,
extremamente complexos e divergentes também vivenciados em outros lugares e em outras
épocas de nosso país, ampliando os horizontes sobre a nossa cultura religiosa popular.
Como já mencionado, muitas são as dúvidas sedentas por respostas para uma
reflexão sobre a religiosidade local. Reflexões essas com a função de auxiliar os estudos sobre
a religiosidade local e regional, como também num âmbito maior, pois as peculiaridades das
práticas religiosas apresentam, quase sempre, heranças de movimentos religiosos anteriores,
representando a dimensão da religiosidade e da cultura popular que está sempre se
reconstruindo.
É imprescindível que tenhamos um olhar aguçado e criterioso, para não agirmos de
maneira apenas entusiasta no tocante à história regional. Ao pensarmos a temática regional,
nos cabe estudar o contexto levando-se em consideração determinado espaço e tempo,
problematizando-o. Nesse sentido:
Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da história
regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região
específica. O espaço regional, é importante destacar, não estará
necessariamente associado a um recorte administrativo ou geográfico,
podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a
18
qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema
histórico que irá examinar 4
Não é fácil demarcar os limites de um espaço, de uma região, apesar da necessidade
de delimitação para se conceber uma história regional. Segundo Ângelo Priori, “(...) a região
enquanto categoria espacial é uma construção dos geógrafos; e enquanto espaço social,
construído historicamente, nada mais é que uma questão do ponto de vista do historiador”5.
Dessa forma, não existem regiões delimitadas e, sim, construções dos historiadores e
geógrafos nesses espaços, pois, “ a região torna-se uma questão da opção e da construção do
historiador; é a partir de suas crenças, do seu suporte teórico e das questões apresentadas que
este delimita uma região.”6
Assim, o estudo das práticas de cura operadas por Seu Martinho, na zona rural de
Dom Macedo Costa-Ba, não se delimita apenas ao espaço geográfico, onde está implantada a
Igreja do Anjo são Gabriel, não se reduz apenas ao lugar do templo, uma vez que envolve a
busca dessas práticas por pessoas de diversos municípios da região, nos direcionando a
problemas que abrangem as experiências vivenciadas por inúmeros indivíduos. O espaço da
Igreja do Anjo São Gabriel se constituiu pelas práticas e vivências cotidianas dos devotos que
modificaram o lugar, transformando-o em um espaço de sociabilidades.
Os depoimentos orais foram as fontes utilizadas na delimitação e denominação do
espaço da comunidade do Riachão dos Milagres, uma vez que não foi encontrada nenhuma
fonte escrita nos arquivos da Prefeitura Municipal de Dom Macedo Costa sobre a delimitação
da comunidade e quando passou a ser denominada Riachão dos Milagres. As dificuldades
foram grandes devido aos desencontros de informações no tocante às temporalidades em
algumas narrativas, porém ao cruzar todas essas narrativas com as fotografias existentes no
arquivo pessoal de Seu Martins Góis da Silva, foi possível analisarmos a denominação e
delimitação da comunidade.
A escolha pelo estudo da história local não significa uma simplificação do número de
aspectos e variantes do enredo social, ao contrário, o local pode levar à construção de novos
elementos que marquem as experiências históricas. Assim cada detalhe, aparentemente
4
BARROS, José D‟ Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ:Ed. Vozes.
2004 .p.153.
5
PRIORI, Ângelo. História Regional e Local: Métodos e Fontes. In: Pós- história. Assis. São Paulo:UNESP
1994. p. 182.
6
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX.
Salvador-Ba: UNEB, 2002.p.47. Para uma discussão sobre história regional e a definição de região, ver:
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. (Org.) História Regional e
Local: Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010
19
insignificante numa busca de grandes acontecimentos, adquire imenso significado na rede de
relações plurais dos múltiplos elementos de construção social. Da mesma forma, não se pode
pensar a história local em oposição à história nacional, uma vez que a primeira envolve os
processos sociais que perpassam comunidades regionais, nacionais e globais.
Enquanto os estudos nacionais apontam à homogeneidade e semelhança, o estudo
regional
demonstra
as
particularidades,
diferenças,
rompendo
com
estereótipos
historiográficos:
[...] o estudo regional oferece novas éticas de análise do estudo de cunho
nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da História
(como os movimentos sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a
identidade cultural etc.), a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o
específico, o próprio, o particular. A historiografia nacional ressalta as
semelhanças, a regional lida com as diferenças, a multiplicidade. A
historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o
cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer a ponte entre o
individual e o social 7
Nessa perspectiva, é importante destacar a diferença entre História Regional e Microhistória, à medida que a primeira faz o estudo da realidade recortada por ela mesma, enquanto
a segunda faz uma redução de escalas de observação para perceber aspectos que poderiam
passar despercebidos numa análise macro. Para Erivaldo Neves:
A história regional e local procura descobrir com a análise do cotidiano de
uma comunidade, as suas relações com a totalidade histórica; a microhistória, na investigação intensiva de fragmentos do cotidiano comunitário
ou de um indivíduo, tenta identificar macro-fenômenos sociais.8
Desse modo, se apresentam com metodologia distinta no processo de investigação
histórica, sendo que na análise da Micro-História o que importa “não é tanto a „unidade de
observação‟ , mas a „escala de observação‟ utilizada pelo historiador, o modo intensivo como
ele observa, e o que ele observa.”9 A diferença encontra-se no sentido em que “estudar “a”
região e estudar “na” região são evidentemente coisas distintas”.10
7
AMADO, Janaína. História e Região: reconhecendo e reconstruindo espaços. In SILVA, M, A.(org) República
em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero.1990. p.12-13.
8
NEVES. Erivaldo Fagundes. História e região: tópicos de história regional e local. In: Ponta de Lança, São
Cristóvão
v.1,
n.
2,
p.
25-36.
abr.-out.
2008. Disponível
em:http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/ponta_de_lanca/revistas/Ponta_de_lanca_v01_n02_completa.pdf. Aces
so em 10.11.2009 Revista Ponta de Lança p.33.
9
BARROS, José D‟ Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos históricos. In. OLIVEIRA,
Ana Maria Carvalho dos Santos; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. (Org.) História Regional e Local:
Discussões e Práticas. Salvador: Quarteto, 2010. p 237.
10
Ibid p 238.
20
No estudo da história Regional é imprescindível uma identificação e um rigor com as
fontes, seguindo-se de recursos metodológicos que sejam mais adequadas a elas,
diferenciando-se do trabalho do romancista, pois mesmo que se produza um discurso a partir
da análise do discurso, a interpretação dada às fontes pelo historiador precisa indicar
evidências, validando a sua produção. Referindo-se ao uso dos documentos pelo historiador,
Erivaldo Neves aponta o cuidado em “considerar que eles transcrevem ações simbólicas do
passado sem inocência nem transparência.”
11
Na utilização dos depoimentos orais, o
historiador deve avaliar “a relevância e precisão dos fatos narrados pelo entrevistado.” 12
A variedade de fontes no estudo da História Regional e Local, requer do historiador
um tratamento ainda mais rigoroso com estas, pois elas dão uma idéia muito mais imediata do
passado. Segundo Raphael Samuel:
A História local requer um tipo de conhecimento diferente daquele
focalizado no alto nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador
uma idéia muito mais imediata do passado. Ele a encontra dobrando a
esquina e descendo a rua. Ele pode ouvir seus ecos no mercado, ler o seu
grafite nas paredes, seguir suas pegadas nos campos (...)13
Em nossa pesquisa, encontramos as práticas de cura realizadas na comunidade do
Riachão dos Milagres através de fontes orais e estas demandam um trabalho cauteloso. As
fontes e os métodos utilizados na História Regional e Local podem representar problemas se
não forem analisados criteriosamente. É necessário ler cada fonte nas entrelinhas para não cair
em armadilhas. O trabalho com história oral exige atenção redobrada, não que exista
hierarquia entre as fontes, ou que as fontes escritas tenham maior validade que as orais, mas
pela própria dificuldade e pelos desafios colocados por aqueles que se utilizam da
metodologia da história oral, uma vez que se trabalha com depoimentos de pessoas envolvidas
em processos históricos que testemunharam acontecimentos da vida privada ou coletiva.
Assim, dentre os muitos desafios da história oral, destaca-se o das múltiplas
temporalidades, pois as memórias que os entrevistados trazem sobre suas experiências de vida
são filtradas e seletivas, as quais envolvem sentimentos, emoções e visões numa narrativa que
misturam sentimentos do passado, ressignificados por emoções do tempo presente. Para
Antonio Montenegro:
11
NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da
modernidade.Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002.. P.95
12
Ibid, p.101
13
SAMUEL, Raphael. História Oral e Local. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/ Marco
Zero. v.9. nº 19.1990 p.220.
21
A memória coletiva ou individual, ao reelaborar o real, adquire uma
dimensão centrada em uma construção imaginária nos efeitos que essa
representação provoca social e individualmente. Nesse sentido o tempo da
memória se distingue da temporalidade histórica, haja vista que sua
construção está associada ao vivido, como dimensão de uma elaboração da
subjetividade coletiva e individual, associada a toda uma dimensão do
inconsciente. 14
Desta forma, é impossível uma separação entre tempo, memória e espaço para o
estudo da História, por isso é necessário estar atento aos depoimentos orais, para não
confundir as temporalidades que, em sua maioria, não aparecem de maneira cronológica nos
depoimentos devido ao esquecimento e à seletividade dos depoentes.
No que se refere às práticas de curas realizadas por Seu Martinho, o confronto entre
depoimentos é fundamental para a desconstrução de estereótipos concebidos naquela
comunidade.
O uso da metodologia e das fontes orais, antes bastante restrito, tem na atualidade
alcançado um espaço mais amplo nas pesquisas das ciências humanas e, em especial, nas
pesquisas históricas. Em se tratando da história regional e particularmente das pesquisas
acerca do Recôncavo Baiano é significativo os trabalhos que dela se utilizam. 15 Neste sentido,
destacamos de modo especial três trabalhos que rememoraram a história das práticas
cotidianas e religiosas vivenciadas no Recôncavo Sul da Bahia.
O primeiro deles é a dissertação de mestrado Memórias e Tradições: viveres de
trabalhadores rurais no município de Dom Macedo Costa- Bahia 1930-1960 de Edinélia
Maria de Oliveira Souza, que analisa as experiências vividas pelos trabalhadores rurais de
Dom Macedo Costa, evidenciando o cotidiano destes. Tendo como foco as memórias de exescravos e mestiços, a autora mostra o dia a dia desses sujeitos, inseridos num contexto
voltado à agricultura de subsistência, relatando suas heranças culturais.16
O segundo trabalho é a dissertação de mestrado Nas Encruzilhadas da Cura:
Crenças, saberes e diferentes práticas curativas. Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul –
14
MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 6 ed. São Paulo:
Contexto, 2001. p. 20.
15
Sobre os estudos do Recôncavo, utizando História Oral ver: SANTOS, Edmar Ferreira. O Poder dos
candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador. EDUFBA. 2009. CASTELLUCCI
JÚNIOR, Wellington. Pescadores da Modernagem: cultura, trabalho e memória em Tairu, Ba (1960-1990).
São Paulo: Annablume. 2007. SANTANA, Charles D‟Almeida, Fartura e Ventura Camponesa: trabalho,
cotidiano e migrações, Bahia 1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998.
16
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Memórias e Tradições: viveres de trabalhadores rurais do município de
Dom Macedo Costa - Bahia (1930-1960). Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História Social.
PUC/UNEB. São Paulo. 1999.
22
Bahia (1940-1980) de Denílson Lessa dos Santos, na qual busca analisar as práticas religiosas
populares realizadas na região de Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo Sul da Bahia.
Utilizando-se da história oral, o autor reflete como as práticas das benzedeiras, raizeiros,
curandeiros, dentre outros, no período de 1941-1977, diferentemente das consideradas
científicas, permearam as tradições, principalmente as baseadas nas experiências e costumes
afro-descendentes da Bahia.17
O terceiro trabalho é Gente de promessa, de reza e de romaria: Experiências
devocionais na ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980), dissertação de mestrado
de Elivaldo Souza de Jesus, na qual ele busca analisar as experiências devocionais de
trabalhadores rurais do Recôncavo Sul da Bahia, entre 1940 e 1980. Partindo das ladainhas
rezadas no espaço doméstico e as romarias ao santuário de Nossa Senhora dos Milagres de
Brotas, onde o autor elucida o cotidiano desses sujeitos, nas mais variadas faixas etárias, no
tocante à construção de identidades e suas sociabilidades, vinculando o trabalho diário destes
e suas devoções aos santos e à prática do catolicismo popular. Analisando assim, nesse grupo
social, seus valores, costumes e tradições culturais.18
Nesse universo voltado para a religiosidade do Recôncavo Sul, o estudo sobre as
práticas de cura na Igreja do Anjo São Gabriel, mostra a diversidade religiosa da região,
envolvendo as devoções e o culto ao divino, as peregrinações, promessas e crenças em
milagres de uma forma pluralista.
Seu Martinho, ao narrar sua história de vida, conta os fatos de maneira seqüencial
abordando cronologicamente os acontecimentos que levaram a um cerne: a sua bem-sucedida
“missão”, como fruto de uma vida religiosa e social intocável e de doação. No entanto, essas
narrativas estão carregadas por suas expectativas de vida, seus desejos de infância, o seu
sonho mal sucedido de ser padre e sua formação religiosa, os quais misturados formam
depoimentos, onde os acontecimentos reais se confundem com a imaginação e as
temporalidades não estão muito bem definidas, fazendo-se necessária uma análise criteriosa e
apurada.
17
SANTOS, Denilson Lessa dos. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, saberes e diferentes práticas curativas.
Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado do Programa de PósGraduação em História da UFBA. 2005.
18
JESUS, Elivaldo Souza de. “Gente de promessa, de reza e de romaria”: Experiências devocionais na
ruralidade do Recôncavo Sul da Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em História da UFBA. 2006.
23
Apropriando-se da metodologia da História Oral, pretendemos rememorar as práticas
de cura realizadas por Seu Martinho, em Dom Macedo Costa-Ba, suas continuidades/
descontinuidades e, para tanto, utilizamos as memórias e recordações dos indivíduos, através
das entrevistas concedidas. Segundo Paul Thompson:
A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso
depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral
pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto à
finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria
história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar barreiras que
existam entre professores e alunos, entre gerações, entre instituições
educacionais e o mundo exterior; e na produção da história - seja em livros,
museus, rádio ou cinema - pode devolver às pessoas que fizeram e
vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias
palavras19
Desta forma, sendo os depoimentos orais impregnados de subjetividade e muita
riqueza, foi necessária interpretação minuciosa, pois os mesmos carregam muito das crenças e
das experiências de vida do entrevistado. Ademais, trabalhar com a memória é fazer com que
as pessoas revivam os acontecimentos e se sintam sujeitos da história. Isso porque “a
memória contém os elementos básicos para a construção de uma concepção histórica.”20
Referindo-nos às lembranças das pessoas que buscaram as práticas de cura de Seu
Martinho, suas memórias indicam interpretações individuais, dependentes de suas
necessidades, vivências e formação cultural, no contexto em que estejam inseridas. Através da
memória, é possível recuperar as lembranças de acordo com quem as vivenciou. Aqui, o
trabalho com a memória dos sujeitos envolvidos nessas práticas de cura, permitiram perceber
a repercussão destas nas últimas quatro décadas dentre esses sujeitos, bem como, as mudanças
e permanências à procura das mesmas.
Utilizamos depoimentos orais de moradores das áreas rurais e urbanas das
microrregiões de Santo Antonio de Jesus, Valença e Jequié, que narraram sobre as curas
recebidas ou presenciadas com a intervenção de Seu Martinho, rememorando suas
experiências. Seu Martinho, também nos relatou sobre sua missão e sobre as práticas de cura
ocorridas na igreja do Anjo São Gabriel, na comunidade do Riachão dos Milagres.
O uso de fotografias tem uma relevância nesse contexto, uma vez que se encontra em
perfeita consonância com as fontes orais, ajudando a desvendar dúvidas e auxiliando no
19
20
THOMPSON, A voz do passado- história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1992. p.22.
MONTENEGRO, Antonio Torres .Op. Cit, p. 18.
24
processo de rememorização dos entrevistados. Foram utilizadas fotografias da sala de
promessas da Igreja do Anjo São Gabriel e do arquivo pessoal de Seu Martinho e as
realizadas nas diversas visitas à comunidade de Riachão dos Milagres. A utilização dessas
fotografias funcionaram como um forte artefato para esta pesquisa, dando margem a
interpretações além do que pode ser simplesmente visto.
A pesquisa no livro de Atas na Câmara de vereadores do município de Dom Macedo
Costa, também auxiliou a analisar a participação política de Seu Martinho, no exercício do
cargo de vereador no período de 1979 a 1982. Além disso, a utilização dos livretos “Salve o
Mensageiro do Anjo São Gabriel” e os “Milagres do Anjo São Gabriel”, veiculados dentre os
devotos da comunidade, revelaram-se como aliados nas discussões dos casos de cura
ocorridos em Riachão dos Milagres, da abrangência das práticas religiosas ali vivenciadas e
na análise como meio de propagandas para as curas.
Os contatos com os entrevistados representaram momentos de tensão e expectativas.
Cada possibilidade de entrevista era esperada com grande entusiasmo, em que um arsenal de
questionamentos ia surgindo. No entanto, algumas entrevistas que criaram expectativas não
renderam grandes narrativas, pois alguns entrevistados se intimidaram com a presença do
gravador ou deram respostas curtas, sem descrever os acontecimentos, não rememoram
detalhadamente suas experiências, mesmo com a nossa mediação. Contudo, outros
entrevistados narraram detalhadamente suas experiências quanto às práticas religiosas
realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel.
Esse trabalho divide-se em três capítulos: O primeiro capítulo intitulado O culto aos
santos, santas e anjos em busca de cura: a fé nos intercessores entre o ser humano e o divino
tem o objetivo de analisar através das narrativas, as sociabilidades vivenciadas pelos devotos
que recorrem às práticas de cura proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Traz também a
delimitação do espaço da comunidade do Riachão dos Milagres, a partir das práticas
religiosas ali vivenciadas. Além disso, analisa a história religiosa de Seu Martinho que se
confunde com sua própria história de vida, observando as narrativas dos envolvidos no
universo de curas. Além dos depoimentos orais, as fotografias ajudaram significativamente
na composição do capítulo.
O segundo capítulo “Tenho toda certeza de que fiquei boa lá”: os casos de cura
proclamados na Igreja do Anjo São Gabriel é composto, em sua primeira parte, pela análise
de um conjunto de narrativas sobre alguns casos de cura ocorridos na igreja do Anjo São
Gabriel e seus desdobramentos no imaginário dos populares que compõem esse universo. Na
segunda parte, analisamos um caso de cura específico e a simbologia da água que envolve a
25
crença nas curas proclamadas por Seu Martinho. Na terceira e última parte, fazemos uma
análise sobre os ex-votos depositados na sala de promessas da igreja, como um ato público de
fé e devoção das pessoas nas curas que acreditam ter recebido. As fotografias, os livretos “Os
Milagres do Anjo São Gabriel” e os depoimentos orais foram as fontes utilizadas nesse
capítulo.
No terceiro capítulo “Hoje estou na batina e com a minha igreja”: as representações
do Mensageiro do Anjo São Gabriel, mostramos a atual relação do clero da Diocese frente às
práticas religiosas ocorridas na Igreja do Anjo São Gabriel, bem como as representações e
relações religiosas e políticas de Seu Martinho no município de Dom Macedo Costa.
Refletimos sobre a redução da quantidade de devotos à procura de proclamação de curas,
considerando a acessibilidade no atendimento médico hospitalar na região, as práticas
religiosas das denominações neopentencostais, o movimento da Renovação Carismática
Católica e as curas através dos dispositivos televisivos. Aliadas às fontes orais e às
fotografias, utilizamos as atas da Câmara Municipal de Dom Macedo Costa, do período em
que Seu Martinho atuou enquanto vereador, para analisar suas relações políticas locais.
Assim, os depoimentos orais, as fotografias, os livretos e as pesquisas nas atas
mencionadas ajudaram a refletir sobre as peregrinações de devotos da região da comunidade
do Riachão dos Milagres em busca de curas e bênçãos, proclamadas na Igreja do Anjo São
Gabriel por Seu Martinho, contribuindo, desta forma, para a compreensão que envolve a
cultura e as práticas devocionais do nosso Recôncavo Sul.
26
CAPÍTULO 1
O CULTO AOS SANTOS, SANTAS E ANJOS EM BUSCA DE CURA: A FÉ NOS
INTERCESSORES ENTRE O SER HUMANO E O DIVINO.
As memórias dos devotos que recorrem à intervenção do divino para o alcance de
curas na Igreja do Anjo São Gabriel, apontam características de um catolicismo popular
fortemente vivenciado no Recôncavo Sul. Para demonstrar as expressões dessa religiosidade,
neste capítulo, indicaremos as devoções aos santos, santas e anjos na região, bem como, o
processo de substituição da nomeação da comunidade de Riachão por Riachão dos Milagres e
discutiremos, em particular, a história religiosa de Seu Martinho
.
1.1-
Recorrer aos milagres para os diversos males que acometem o corpo e a alma.
As narrativas dos devotos que recorrem aos saberes de práticas de cura demonstram
as sociabilidades vivenciadas entre as mesmas. Os estudos sobre memória21 indicam que a
memória individual, representa um pouco da memória coletiva, uma vez que evidenciam as
lembranças sociais do grupo em que se relaciona. Nas palavras de Maurice Halbswachs:
A lembrança é em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda
de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada. Certamente, que através da memória éramos
colocados em contato diretamente com algumas de nossas antigas
impressões, a lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou
menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e
as confidências dos outros, permite-nos fazer uma ideia do que foi o nosso
passado.22
21
Para os estudos sobre memória, ver LE GOFF, Jacques. . História e memória. 4. ed Campinas, SP: Ed. da
UNICAMP, 1996. MONTENEGRO, Antonio Torres Op,Cit. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento,
silêncio. In: Estudos históricos, Rio de janeiro, vol.02, n 3, 1989.
22
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Edições Vértices.1990. p.71
27
Ao analisarmos as narrativas, fazemos uma representação do passado através de
histórias de vida que envolvem lembranças e esquecimentos, passagens que têm significados
positivos na vida dessas pessoas e que são importantes serem lembradas. Ao contrário disso,
acontecimentos que carregam traumas, sofrimentos, desafetos nem sempre os depoentes
gostam de trazê-los à tona. Nesse sentido:
O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com freqüência
porque é desgastante ou embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na
rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não
obstante, muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos (...) Se o futuro se
abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo passado é
aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio
dentre nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa
identidade.23
A memória não é o simples ato de recordar, ela é elemento constitutivo do
reconhecimento de nós mesmos enquanto sujeito de uma sociedade, construindo assim
identidades e formando consciências individuais e coletivas. Nessa perspectiva, ao
analisarmos as narrativas sobre o universo de curas e as devoções religiosas desse trabalho
estaremos compondo um contexto de vivências e sociabilidades que envolvem, de forma
geral, pessoas residentes na zona urbana e moradores de áreas rurais no Recôncavo Sul 24,
pessoas simples, de pouca ou baixa escolaridade, donas de casa, trabalhadores (as) rurais,
devotos, como Dona Celina, que recorrem aos santos, santas e anjos para intercederem e
resolverem os males cotidianos de uma maneira mais cômoda e imediata.
Aí eu comecei a pedi a Deus e a Bom Jesus da Lapa, que eu era muito
devota de Bom Jesus da Lapa e aí já conhecia o Anjo São Gabriel, já vinha
rezano pra ele e aí eu pedia todo dia que me desse a cura pra eu não carecer
ir pra médico.25
23
BOBBIO, Noberto. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.30-31.
Sobre o Recôncavo Sul ver: O Recôncavo Baiano: uma região una e plural. In OLIVEIRA, Ana Maria
Carvalho dos Santos.Op.Cit.. p.47-72. Sobre as sociabilidades no Recôncavo Sul ver: SANTOS, Denilson Lessa
dos. Op.Cit.. JESUS, Elivaldo Souza de. Op.Cit.
25
Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada. Entrevista realizada na Comunidade de
Nossa Senhora Aparecida- Varzedo-Ba, em 10/03/2010.
24
28
Na narrativa de Dona Celina, notamos uma prática de recorrer aos santos como uma
forma de auxílio para o seu socorro. Ela suplica aos santos, ao anjo, a Deus uma cura para um
mal que lhe acometia sem a utilização dos serviços da medicina oficial. Mostra sua devoção,
seu cotidiano de orações sempre em busca de alívio para os males do dia a dia, de maneira
mais prática e rápida.
Da mesma forma que Dona Celina, outras pessoas recorrem aos diversos santos
fazendo-lhes pedidos e promessas, dando mostras de uma religiosidade movida por uma fé
profunda nesses intercessores para a resolução dos problemas cotidianos. Assevera Elivaldo
de Jesus que:
Por todos os cantos rurais do Recôncavo homens e mulheres acabaram
dando vazão, no próprio espaço de suas vivências e no seu cotidiano, a um
profundo sentimento religioso. O exercício da fé cristã ia sendo feito de um
modo particular, impregnado de crenças, de devoção e apego aos santos, de
mensagens de esperança na melhoria de vida e até mesmo de congregação e
solidariedade entre desiguais.26
Assim, no Recôncavo Sul as práticas religiosas foram se formando e se
ressignificando com o culto aos santos, a participação em rezas, romarias e muito apreço aos
espaços considerados sagrados. Especificamente no município de Dom Macedo Costa, o
padroeiro São Roque tem uma forte representação na identidade religiosa local:
Contam os antigos moradores da localidade que a devoção a São Roque
iniciou-se devido a um surto de “bexiga da peste” na localidade. Os poucos
recursos financeiros impediam a busca da medicina para o tratamento da
doença. A fé exerceu uma função definitiva na vida das pessoas, que se
apegaram ao santo através de uma corrente de orações e penitências para que
a terrível peste fosse afastada. A partir daí, todos os anos, no mês de agosto,
a festa religiosa tem início, com os peditórios e o leilão, onde os fiéis doam
produtos da roça e animais ao santo, em troca de proteção e saúde.27
O culto a São Roque aparece como uma forma encontrada pela comunidade em sua
formação para amenizar os males que lhes afligiam, tendo a devoção ao santo padroeiro
permanecida ano após ano, através do hábito de fazer promessas e da realização de uma festa
26
27
JESUS, Elivaldo Souza de. Op. Cit., p.21-22.
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira.Op. Cit.. p.83
29
religiosa. Outros santos também compõem o universo de devoções de Dom Macedo Costa
como o culto a São Benedito, São Cosme e São Damião, Santo Antonio, Nossa Senhora e São
José. 28Destacamos aqui São Roque por ser o padroeiro e ter denominado o município ainda
quando era arraial de São Roque do Bate Quente. Notamos assim, uma religiosidade
caracterizada por universo composto de uma tradição de fé e devoção aos santos,
considerados fortes intercessores na solução para os males que acometem as pessoas no
cotidiano.
A devoção aos santos no Recôncavo Sul tem sua tradição desde o século XIX.
Segundo Ana Oliveira, a presença de oratórios enquanto bem era constante do patrimônio de
pequenos lavradores, médios e grandes fazendeiros da região e expressavam o apego aos
santos e o exercício da religiosidade popular, característico das sociedades rurais do período,
onde o estabelecimento das relações entre as pessoas e os santos, através de promessas, rezas,
e outros meios, tomava o lugar do espaço deixado pela falta de assistência dos párocos e
vigários responsáveis pelo bem-estar espiritual dos fiéis. De tal modo, ainda segundo Ana
Oliveira:
No campo e na cidade, a vida religiosa dos fiéis estava alicerçada em
relações estabelecidas diretamente com os santos, através de alianças e
contratos, expressando uma intimidade que era incentivada pela família e por
toda a sociedade, que via nessas relações uma espécie de proteção
suplementar
àquela
que
advinha
dos
sacramentos.29
Em estudo sobre a epidemia da cólera na Bahia oitocentista, Onildo Reis David
também aponta o recorrer aos santos como
um costume dos baianos para resolver os
problemas e salienta dentre as devoções o culto a São Roque de forma coletiva no município
de Cachoeira-Ba, no qual as pessoas preferiam acreditar no poder de cura do santo a seguir as
recomendações médicas para a prevenção da cólera.30. Dessa forma, percebemos que o culto e
as devoções aos santos sempre tiveram uma forte influência no Recôncavo Sul no combate às
28
Ibid p. 81-92
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Op. Cit .p.105.
30
DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: EDUFBA/ Sarah
Letras, 1996. p. 96-97
29
30
doenças, simbolizando uma religiosidade marcada por uma intensa confiança nos santos na
cura das mazelas de maneira individual ou coletiva.
1.2-
O espaço para a realização das curas
As crenças e vivências religiosas que tratamos nesse trabalho têm como espaço
sagrado a localidade de Riachão dos Milagres, uma comunidade rural do município de Dom
Macedo Costa, localizado na microrregião de Santo Antonio de Jesus, no Recôncavo Sul da
Bahia.
RECÔNCAVO SUL DA BAHIA
Fonte: CEI 1994.31
DOM MACEDO COSTA
31
JESUS, Elivaldo Souza de.Op. Cit., p. 21.
31
Fonte CEI 32
Trata-se de um pequeno município com pouco mais de 3.800 habitantes 33 que teve
sua história iniciada quando surgiu um arraial, em 1883, a partir de uma capela dedicada a
São Roque. Esta capela foi construída por um fazendeiro da região, cujas terras de sua
fazenda se estendiam até o local onde hoje é o município. O arraial inicialmente era chamado
de São Roque do Bate Quente, e tinha sua economia baseada nas lavouras de cana-de-açúcar,
café, mandioca, fumo e uma discreta pecuária. Pertenceu ao município de São Felipe até o
ano de 1962, quando ocorreu sua emancipação.34
Com um pouco das informações sobre o município de Dom Macedo Costa,
poderemos adentrar na localidade onde abordamos a realização das práticas de cura a partir de
1967, em nome do Anjo São Gabriel, atraindo devotos de todo Recôncavo Sul, de outras
regiões do Estado da Bahia e até de outros estados brasileiros35: a localidade de Riachão dos
Milagres. Quando tomamos conhecimento do nome dessa localidade, de logo, nos
32
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira.Op. Cit., p.25
Baseado no censo de 2007 do IBGE.Fonte: www.ibge.gov.br. Acesso em 18/07/2010
34
Informações baseadas no acervo da Biblioteca Municipal de Dom Macedo Costa-Ba.
35
Informações baseadas nos depoimentos das pessoas sobre as pessoas que buscavam as práticas de cura
realizadas em Riachão dos Milagres.
33
32
inquietamos com uma possível associação dessa denominação com as práticas de cura ali
proclamadas e com a relação entre água e milagres intrínseca na própria denominação..
Recorremos à prefeitura Municipal de Dom Macedo Costa a procura de documentos
que nos mostrassem a partir de que período a localidade de Riachão dos Milagres passou a ser
assim denominada, porém, apesar de toda boa vontade das pessoas que ali trabalham, tivemos
a informação de que não existem esses tipos de registros ou documentos. Partimos assim para
entrevistar alguns moradores mais antigos daquela localidade, e, a partir de suas vivências
contaram um pouco da história, permitindo-nos fazer alguns registros:
Desde que pra qui cheguei que já se chamava Riachão dos Milagres, é por
que logo ali no fundo da casa de Martins tem um rio forte, chama Riachão,
em função disso é Riachão, tanto é que do outro lado é jangada e da casa de
Martins pra frente, ali é D. Vital, as localidades circunvizinhas. (...) Milagres
é por conta da missão dele, aquilo ali chamava apenas Riachão.36
Trilhando a oralidade de Seu Antonio Barreto, percebemos a identificação da
localidade de Riachão dos Milagres, a partir de um riacho, ponto de referência e de
denominação do lugar, que passa a se chamar Riachão dos Milagres, após o surgimento da
ideia de proclamação de milagres no local, modificando completamente aquele lugar, que se
torna um espaço de vivências religiosas e sociais diferenciadas. Na visão de Michel de
Certeau, “o espaço é o lugar praticado”37, no qual as pessoas com suas práticas e vivências
cotidianas modificam esse lugar, transformando-o em um espaço de sociabilidades singulares.
É o que aconteceu com a localidade de Riachão que se tornou Riachão dos Milagres, isso
porque essas sociabilidades têm relevância incontestável na delimitação da região. Segundo
Vera Silva:
Elementos essenciais da definição de região são, em primeiro lugar, um
território delimitado, passível de ser concebido como decomponível em subregiões, e, em segundo lugar, um sistema de valores e interesses que dá
forma a uma identidade coletiva capaz de gerar “atitudes de lealdade e
apego por parte dos habitantes. 38
36
Depoimento de seu Antonio Barreto Mota, ex-prefeito do município de Dom Macedo Costa. Entrevista
realizada em 22/03/2010.
37
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ. Vozes. 1994. p.202.
38
SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: o Enfoque Metodológico e a Concepção Histórica. In SILVA,
Marcos A. República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Martins Fontes.1990 p..44-45.
33
A partir de 1967, a comunidade de Riachão dos Milagres sofreu modificações no
tocante às práticas religiosas vivenciadas no local que além de trazer pessoas de diversos
municípios, transformou até o nome do lugar que passou a ser conhecido como Riachão dos
Milagres. No caso de Riachão dos Milagres, Seu Martins Góis Silva, um filho do local, que
morava e trabalhava na cidade de São Paulo, afirmou ter tido um sonho revelador em outubro
daquele ano, através do qual passaria a ser o Mensageiro do Anjo São Gabriel realizando
curas, com a utilização de água e orações.39
José Raimundo, ex-padre que atendia a localidade na década de 80, também
menciona a denominação Riachão dos Milagres, a partir das práticas curativas realizadas por
Seu Martinho:
Riachão sempre se chamou, agora dos milagres, é dele pra cá, das coisas
dele pra cá. Aquilo ali sempre se chamou Riachão. Por sinal é um lugar
muito bem escolhido, você já notou que os místicos, os homens de Deus
profundos, escolhem lugares parecidos? Onde a natureza é silenciosa, onde a
vista do mundo é panorâmica, onde a gente conhece o verde numa
tonalidade, daqui a pouco ele está em outra, o céu é azul, a montanha vai se
perder. O lugar é ideal gente, eu não sei, acho que Deus gosta do que é bom,
viu?40
A narrativa do ex-padre José Raimundo vem confirmar as palavras de Seu Antonio
Barreto, apontando as práticas de cura realizadas na localidade como legitimadora do nome
Riachão dos Milagres, que antes era apenas Riachão. Outro aspecto mencionado por ele é a
beleza natural do local, com aspectos contemplativos, caracterizando um cenário ideal para a
realização de experiências religiosas que seriam associadas a milagres, envolvendo todo um
misticismo quanto à escolha de Deus por lugares e pessoas especiais para representarem
milagres.
Assim, a comunidade de Riachão dos Milagres, que antes de 1967 atendia pela
denominação de Riachão passou a ter uma ressignificação voltada para práticas religiosas
locais, movimentando a localidade com a vinda de devotos, romeiros ou até mesmo curiosos
de diversos municípios da microrregião, como de Santo Antonio de Jesus, Varzedo, Nazaré,
Muniz Ferreira, Cruz das Almas, São Felipe, São Félix, Sapeaçu e/ou de outras microrregiões
39
Discutiremos a história de Seu Martins Góis Silva no item 3 desse capítulo.
Depoimento do ex-padre José Raimundo Galvão. Entrevista realizada no município de santo Antonio de Jesus,
em 23/04/2010.
40
34
da Bahia como Laje, Mutuípe, Valença, Taperoá, Nilo Peçanha, Paulo Afonso, Jequié,
Itabuna, Salvador e até do Estado de São Paulo, dentre outros. Seu Antonio do Sindicato narra
um pouco de onde vinham as pessoas para Riachão dos Milagres:
Estrada no começo não existia. Existiam os caminhos, cobertos com varge e
ia todo mundo caminhando a pé, uns de animal, outro de pé. Agora era uma
coisa chamada uma maravilha... Era muito carro que existia naquela
localidade ali de Martinho, de toda paragem... Que quando começou sair o
anúncio aí começava vir gente de toda paragem: São Paulo, Salvador, de
tudo quanto era canto vinha gente pra alcançar o milagre naquela localidade
(...). E muita gente alcançou milagre não só cura, como tuberculoso,
aleijado, mas de vício.41
A narrativa de Seu Antonio do Sindicato nos mostra que, além da variedade de
pessoas advindas de municípios circunvizinhos, ele também faz referências a pessoas que se
deslocavam de Salvador e São Paulo para “alcançarem o milagre” na localidade de Riachão
dos Milagres, mesmo diante das dificuldades de acesso, já que não existiam estradas com
acesso direto e fácil para o deslocamento até Riachão dos Milagres. Para chegar até lá, tinha
que passar pelas trilhas em meio ao mato a pé ou utilizando animais. O acesso de carro era
dado por outra estrada, porém formava um caminho bem mais distante de ser percorrido. Por
um ou por outro caminho, o acesso à localidade era difícil e cansativo, porém diante do
“anúncio” de curas ali, as pessoas não mediam esforços para alcançar solução para suas
doenças e males. E esses “milagres” alcançados para doenças e vícios, Seu Antonio do
Sindicato fez questão de testemunhar em sua narrativa.
Sendo a região “fruto dos saberes, dos discursos que a constituíram e que a
sustentam,”
42
notamos como a localidade de Riachão foi se reestruturando através de um
permanente processo de desconstrução e construção, passando a ser popularmente
denominada como comunidade do Riachão dos Milagres. As sociabilidades vivenciadas no
local abrangendo pessoas oriundas de diversos espaços que por ali permearam,
desconstruíram e determinaram a denominação da comunidade, a partir de práticas religiosas
voltadas para curas e dos discursos construídos sobre a região, sobre a especificidade daquele
lugar, daquele local, sendo ele ímpar na sua natureza física e mítica.
41
Depoimento de Seu Antonio Carlos de Souza Santos, conhecido como Antonio do Sindicato do Sindicato.
Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 23/03/2010.
42
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região.
In: Fronteiras. Dourados, MS, v. 10, n. 17, p. 55-67, jan./jun. 2008.p.58
35
Para Erivaldo Neves, “a localidade se constitui no espaço onde uma comunidade se
estabelece e se desenvolve”43. Isto é, a localidade é resultado da convivência e das vivências
de um grupo que se percebe como comunidade. Neste sentido, a experiência religiosa da
comunidade ressignificou o espaço, pois:
a delimitação de um espaço, regional ou local, pressupõe “a identidade de
poderes” nele exercidos, dos “sinais que exprimem seu âmbito” e dos
registros ou memórias que expressam as reações do grupo social a ele
submetidos.44
Desse modo, as práticas de cura experimentadas na comunidade possibilitaram a
identificação da mesma como espaço de acontecimento de milagres, através da água benzida
e aspergida por Seu Martinho. Este passou a ser associado como interventor de curas, com um
poder recebido do anjo São Gabriel.
Reportando-nos à narrativa do ex-padre, José Raimundo, ele afirma que a
comunidade do Riachão dos Milagres apresenta características ideais para a experiência
religiosa que é ali vivenciada, mencionando mesmo que de forma interrogativa que “Deus
gosta do que é bom”. É possível que, as características naturais favoráveis propiciaram uma
maior propagação das práticas curativas ali realizadas e a composição do cenário tenha
influenciado também as pessoas na busca pelas práticas de cura em Riachão dos Milagres.
Além disso, a localização da igreja ao alto de uma montanha com uma “vista panorâmica do
mundo” representa uma proximidade com Deus: “O alto, o distante no espaço nos dá a
sensação da transcendência, do que é imensamente maior do que nós (...)”45
Sabemos que a peregrinação aos diversos santuários se deve pela sacralidade dada
àquele espaço, com destaque dentre os lugares comuns. Dessa forma, o poder do espaço
considerado sagrado atrai pessoas, pois se torna um lugar especial para os devotos,
representando um espaço de ligação entre pessoas comuns e o divino. Os devotos buscam se
aproximar do espaço sagrado como um meio de fortalecimento da própria fé, para terem
realizados seus pedidos. Para Mircea Eliade, a natureza simboliza um valor religioso muito
43
NEVES, Erivaldo Fagundes. História e Região: Tópicos de história regional e local.In: Revista Ponta de
Lança, São Cristóvão. V.1. abr.-out 2008.p.26
44
MATTOSO, José. A história regional e local. In: ______. A escrita da história: teoria e métodos. Lisboa:
Estampa, 1997.p. 169-194 apud NEVES, Erivaldo Fagundes.Ibid p.28-29.
45
TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. São Paulo: Paulus, 2004.
p.371.
36
forte para o homem religioso.46 Sendo assim, toda a descrição das belezas naturais feitas pelo
ex-padre, José Raimundo, pode ter de alguma forma ajudado a intensificar o misticismo
acerca da localidade de Riachão dos Milagres.
Na década de 80, a capela construída por Seu Martinho em 1967 e dedicada ao Anjo
Gabriel, deu lugar a uma igreja maior, atendendo a quantidade de pessoas que passaram a
procurar as práticas de cura proclamadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel
47
, na
localidade de Riachão dos Milagres. Quando padre na década de 1980 e especificamente em
1982, José Raimundo passou a ser responsável pela paróquia do São Benedito, atuando na
comunidade do Riachão dos Milagres e também narrou sobre esse episódio:
Quando eu cheguei lá eu fiquei impressionado com algumas coisas que eu
vi. Eu vi pessoas simples se aproximando dele com carinho, vi a maneira
simples, carinhosa e dedicada com que ele tratava as pessoas. Vi pessoas
relatando fatos de experiências pessoais de vida transformada, de doença
curada e aquilo começou a me chamar atenção. Aí eu fiz daquela capela um
espaço constante de celebrações. Comecei a visitar, comecei a marcar as
celebrações e comecei a gostar de ir ali, aí que é o problema. (...) Eu disse
por que não aproveitar todo este empenho de Martinho com o povo e
canalizar isso pro bom sinal, pras coisas de Deus? Porque isso também é de
Deus, essa compreensão que nem todos têm. (...) Aí eu comecei a dar apoio,
comecei a celebrar regularmente na capela de Martinho, como fazia nos
outros lugares. Coloquei mais uma capela na perspectiva do que era o
trabalho apostólico maior da paróquia toda e comecei a dar essa assistência.
Eu me lembro que logo nos primeiros meses que eu freqüentava ali, eu via
aquela multidão dentro de uma capelinha que não cabia nem dez pessoas,
nem vinte. Eu disse: Martinho vamos aumentar essa igreja com essa
multidão que temos aqui, aí Martinho disse “vambora”. Aí eu incentivei
acreditando que eu iria fazer com ele campanhas e tudo, quando eu volto da
próxima vez que eu tinha traçado todo o roteiro, como fazer a igreja, como
ficava o altar, como ficava isso, Martinho já tava com a igreja quase pronta.
Conseguindo isso com que? Com a ajuda do povo, porque ali vem gente do
sul da Bahia, vem gente de outro estado é uma coisa que anda sem ele fazer
esforço, porque a pessoa dele era humilde, simples, amigo, eu nunca vi tratar
mal uma simples pessoa que vinha ali. O carinho com os velhos, com as
crianças, com os doentes. Do lado da casa, tinha e eu acho que tem até hoje
uma casa grande pra receber os peregrinos, essas pessoas chegavam ali
tinham banho, tinham cama, tinham comida, tinham todo um trato de uma
pensão, de um lugar decente pra passar uma noite, pra passar um dia, o
quanto quisesse.48
46
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Sao Paulo: Martins
Fontes, 1991.p. 57.
48
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
37
Com a narrativa do ex-padre José Raimundo podemos melhor desenhar o nosso
cenário: uma pequena capela que mal cabia dez ou vinte pessoas, tentando abarcar uma
multidão de crentes galgando curas, transformação de vida, uma palavra de conforto, de afeto,
na pessoa de Seu Martinho, o qual representava o Mensageiro do Anjo São Gabriel, “o
escolhido”, o ser humano excepcional possuidor de uma missão divina, podendo ser o elo
mais próximo entre Deus e esses fiéis. Compondo o cenário, ao lado da capela se localizava a
casa dos romeiros e a residência de Seu Martinho, desenhados no alto de uma montanha,
cercado por muita vegetação. O ex-pároco, contou que começou a se aproximar e a gostar do
que estava vendo, passando a ser o incentivador de Seu Martinho com as celebrações
regulares em sua capela, que não era obrigação dele. Em outro trecho de seu depoimento, ele
nos diz isso:
Olha, eu já via falar de Martinho, muito tempo antes de ter assumido a
paróquia de São Benedito da qual faz parte Dom Macedo Costa, em cujo
território está hoje a capela de Martinho, o célebre Riachão dos Milagres.
(...) Mas, uma vez assumindo a paróquia de São Benedito, aquela porção de
território coube pra mim. Não era uma igreja onde eu devesse celebrar não,
pois não era uma igreja oficial. Era uma igreja particular de alguém que
tinha o seu trabalho e que fez daquilo ali um ponto de romaria, de encontro,
etc. Eu não teria nunca a obrigação de ter aquilo como uma capela a qual eu
deva dá assistência como outras, tipo Jacarandá, tipo o próprio Dom
Macedo Costa, mas eu assumindo aquilo ali, eu achei que eu também
deveria incluir no pastoreio da igreja aquele território.49
Riachão dos Milagres está inserida entre as comunidades do município de Dom
Macedo Costa, que ainda hoje não é sede paroquial, pertencendo à paróquia de São Benedito,
no município de Santo Antonio de Jesus. Antes da emancipação, em 1962, a comunidade de
Dom Macedo Costa estava agregada à paróquia de São Felipe, mas com a emancipação
passou aos limites paroquiais do município de Santo Antonio de Jesus, agregada à paróquia
de São Benedito. Como pároco responsável pela paróquia de São Benedito, o então padre José
Raimundo não necessitaria celebrar na capela de Seu Martinho por ser particular, fora dos
domínios paroquiais, porém, ele quis conhecer e passou a incentivar o crescimento da
religiosidade desenvolvida ali. Possivelmente, o padre José Raimundo percebeu que ali na
comunidade do Riachão dos Milagres, havia espaço para a difusão da fé católica, ainda que
49
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
38
através de uma ressignificação desta de uma forma mais popularizada. Assim, Seu Martinho
que atraía populares de outros espaços pela crença em sua missão de cura, seria um meio de
ligação entre a Igreja e àquela comunidade, fortalecendo os laços da religião cristã-católica,
na região. Nas palavras de Pierre Bourdieu:
As crenças e práticas comumente designadas cristãs (sendo este nome a
única coisa que tem em comum) devem sua sobrevivência no curso do
tempo à sua capacidade de transformação à medida que se modificam as
funções que se cumprem em favor dos grupos sucessivos que as adotam. Do
mesmo modo, de um ponto de vista sincrônico, as representações e as
condutas religiosas que invocam uma mensagem original única e
permanente, devem sua difusão no espaço social ao fato de que recebem
significações e funções radicalmente distintas por parte dos diferentes grupos
ou classes.50
A missão de Seu Martinho representava para a comunidade novas formas de conduta
social e religiosa, dando um novo significado às práticas religiosas da região. Com o incentivo
do ex-padre José Raimundo e com a ajuda dos devotos, Seu Martinho resolveu ampliar sua
capela tornando-a uma igreja, e foi inserido dentre as comunidades pertencentes à sede
paroquial de São Benedito. Dessa forma, as práticas religiosas difundidas por Seu Martinho se
espalhavam pela região, dentro dos dogmas da Igreja Católica. Além da Igreja do Anjo São
Gabriel, o nosso cenário de devoções religiosas, ainda é composto por uma casa de romeiros,
existente desde o período da simples capela, sendo esse um espaço devocional, com condições
para recepcionar pessoas advindas de outros municípios com o intuito de curar suas mazelas.
A iniciativa do ex- padre José Raimundo contribuiu para a inserção das práticas
religiosas no conjunto das normas da Igreja católica, vivenciadas naquela localidade, evitando
um deslocamento daquelas pessoas na formação de um culto à parte da Igreja Paroquial.
Foram canalizados os símbolos representativos dos dogmas da Igreja Católica presentes na
missão de Seu Martinho para torná-lo um líder leigo51 de uma igreja de comunidade, uma vez
que se fosse deixado à própria sorte poderia representar um perigo para a Igreja; se
destacando como uma espécie de messias, capaz de liderar um grupo grande de pessoas com a
finalidade de mudança de vida. Assim, Seu Martinho apesar de ainda ser visto pelas pessoas
50
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.52.
Segundo o Código de Direito Canônico, leigos são os fiéis cristãos que não são ministros ordenados (padres,
bispos, diáconos) podendo desempenhar funções de leitores nas ações litúrgicas, “exercer o ministério da
palavra, presidir as orações litúrgicas, administrar o batismo e distribuir a sagrada Comunhão, de acordo com as
prescrições de direito.”
51
39
que procuravam suas práticas religiosas como uma pessoa com um dom especial de cura,
estava inserido dentro do universo da Igreja Católica e seguindo as suas normas.
A prática de cultuar os santos, traço marcante do catolicismo popular, sempre
simbolizou a dinâmica da religiosidade brasileira, principalmente de caráter leigo, seja num
pequeno oratório familiar até os mais famosos santuários. Isso porque, os santos sempre
tiveram lugar de destaque no cotidiano do povo brasileiro, caracterizando o catolicismo
popular durante muito tempo como um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo
e pouco padre”52. Porém, nos fins do século XIX, ocorreu a romanização do catolicismo no
Brasil, com o objetivo de restauração, no qual se estabeleceu que as práticas religiosas
seguissem a fé Católica Apostólica Romana. Para Azzi:
A mentalidade que domina a reforma é a necessidade de criar no Brasil uma
nova Igreja, de caráter apostólico romano, e sob a inspiração tridentina, em
substituição à Igreja luso-brasileira do período colonial e imperial, dominada
pelo Padroado. 53
A Igreja estava preocupada com a reforma do clero e do povo cristão. Visava
preparar os sacerdotes, sob a direção dos religiosos europeus e também afastar o povo do
catolicismo devocional, orientando à prática do catolicismo sob a ótica da doutrina
sacramental. Num outro trecho de sua narrativa, o ex-padre José Raimundo menciona:
Eu me lembro que coloquei o Santíssimo Sacramento na capela. Martinho
virou ministro da eucaristia. Martinho vinha para as reuniões de ministro
normalmente (...). Eu digo a igreja só teve lucro, porque aquilo ali era um
lugar de fé, de oração, de amor a Deus. Martinho recebia os roteiros de
celebração, ele fazia igualzinho, ele fazia bem feito, ele reunia o povo, ele
fazia tudo direitinho, porque restringir isso? É melhor deixar uma igreja
fechada ou o povo sem Deus? Ou ter uma pessoa legal que faz essas coisas
com espírito de fé, de confiança em Deus? Eu olho por essa ótica.54
A pequena capela do início se transformara numa igreja pertencente à paróquia de
São Benedito, obedecendo às normas da Igreja Católica Romana, com aspecto doutrinário,
sacramental e, Seu Martinho passou a realizar, então, atividades religiosas institucionalizadas
pela igreja. Isso porque “a paróquia é o quadro institucional onde o padre prega, ensina,
administra os sacramentos, celebra o culto de Deus e dos santos, e congrega os leigos em
52
OLIVEIRA, Pedro R. de.O. Cit. p.285-286. Apud DAVID, Onildo Reis. Op. Cit. p. 99.
AZZI, Riolando. Elementos para a história do catolicismo popular. In: Revista Eclesiástica Brasileira.
Vol.36. fasc.141.março de 1976.p.119.
54
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
53
40
associações religiosas.”
55
O ex- padre José Raimundo regulamentando as atividades
paroquiais, instituiu Seu Martinho como ministro da Eucaristia56 e ele passou a realizar
celebrações da palavra aos domingos, seguindo os roteiros de celebração da paróquia. A
comunidade de Riachão dos Milagres se tornou uma comunidade religiosa formal e, dessa
maneira, a Igreja Católica exercia seu controle sobre as atividades desenvolvidas por Seu
Martinho, encaminhando o povo nas normas estabelecidas pela igreja. Talvez, Seu Martinho
tomasse um outro rumo sem o incentivo do ex-padre José Raimundo, representando uma
ameaça para a Igreja Católica, à medida em que dispersasse a comunidade.
Pelo que podemos notar, os seguidores de Seu Martinho apoiaram o direcionamento
dado pela Igreja ao seu dom curativo, afinal ajudaram na construção da igreja e houve um
crescimento do número de adeptos em busca das práticas curativas realizadas em Riachão dos
Milagres. Recorrendo ao arquivo pessoal de fotografias de Seu Martinho, encontramos
algumas fotografias que narram um pouco da história da comunidade. Mencionamos como
arquivo uma quantidade de álbuns que Seu Martinho guarda em sua residência, mas que não
estão arrumados em ordem cronológica, não havendo nenhum tipo de referência escrita ou
legenda para as fotografias, o que dificulta um pouco a análise dos fatos.
55
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e Dominação de Classe: Gênese, estrutura e função do
catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis-RJ: Vozes. 1985. P.306
56
Segundo o Código de Direito Canônico,can. 230 §3, o Ministro Extraordinário da Sagrada Comunhão é um
leigo, que na falta de um ministro ordenado (padre, bispo ou diácono) pode ser instituído pela Igreja católica, de
forma temporária ou permanente para distribuir a comunhão (hóstias consagradas) para os fiéis na Missa ou em
outras celebrações, quando for necessário.
41
Fotografia 1: Antiga capela do Anjo São Gabriel- Arquivo pessoal de Seu Martinho.
A fotografia acima nos mostra a antiga capela construída por Martinho em devoção
ao Anjo São Gabriel no final da década de 60. Era uma capela pequena, mas notamos a
participação de homens, mulheres e crianças, pessoas simples, aparentemente da comunidade.
Ao lado, a casa de romeiros aparece com uma faixa de funcionamento como posto de
vacinação, mostrando a utilização do espaço religioso particular de Martinho como um espaço
comunitário. Um espaço de práticas curativas religiosas servindo de palco para as práticas
preventivas da medicina acadêmica. Aqui percebemos que as práticas curativas alternativas e
oficiais não ocupam pólos opostos para as pessoas que as utilizam, se misturando e
complementando-se; mostrando, com isso, que as pessoas recorrem tanto à medicina oficial
quanto às práticas mágico-religiosas para curarem seus males. Podemos ainda recorrer ao
depoimento do ex-padre José Raimundo e perceber que Seu Martinho tinha uma notabilidade,
respeito e liderança junto ao povo da comunidade de Riachão dos Milagres, já que o ex-padre
se mostra atento “ao empenho de Seu Martinho junto ao povo” e canaliza essa
representatividade junto à comunidade para institucionalizar sua igreja, já que apresentava
ideais religiosos de liderar uma missão.
42
Fotografia 2: Celebração na Antiga Capela- Arquivo pessoal de Seu Martinho.
Analisando a fotografia 2, podemos observar uma celebração ainda na antiga capela
construída por Seu Martinho. Como registrado na imagem, data de junho do ano de 1983,
período fervoroso da missão desenvolvida na comunidade de Riachão dos Milagres.
Percebemos pessoas com vasilhames de água nas mãos para ser benzida, outras com alguns
ramos possivelmente também para serem benzidos, demonstrando a intensidade da fé dos
devotos.
A imagem apresenta os devotos com a cabeça baixa expressando obediência e
indicando um ato de contrição57 para reconhecer os próprios pecados e buscar através da
bênção,uma absolvição e a cura como recompensa. No contexto, vale salientar que “a
contrição perfeita é necessária ao pecador. É ela que apaga a mancha e o sofrimento eterno do
pecado”.58 Ademais, a fotografia mostra ainda uma maioria com as mãos acenando para o alto
57
Segundo Delumeau, “para São Tomás de Aquino a contrição é um arrependimento perfeito: nossa liberdade,
inundada pela graça, eleva-se então ao nível da caridade e lamenta suas faltas por amor a Deus.” Ver
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão:as dificuldades da confissão nos séculos XIII a XVIII.São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.p.43.
58
DELUMEAU, Jean. Ibid..p.44.
43
em sinal de louvor, de entrega e de uma forte crença no que estava sendo ali exposto pelo
líder religioso.
Provavelmente, seriam romeiros que vieram em busca da intercessão do anjo São
Gabriel, pois dentre as diversas manifestações do Catolicismo, na versão popular, os santos e
anjos realizam o intermédio entre o ser humano e Deus, curando os males e propagando
milagres. Sobremaneira, entendemos que a romaria até Riachão dos Milagres visa à
recuperação dos males do corpo, dos vícios e da alma. Como no imaginário popular os santos
“se fazem presentes na terra por meio de sua imagem”59, os devotos tendem a se deslocarem
em Romaria para cumprir as promessas direcionadas aos santos daquele determinado lugar.
Não poderia ser diferente na comunidade do Riachão dos Milagres; pois, além da imagem do
Anjo São Gabriel, os devotos contam ainda com a intervenção direta e viva do seu
mensageiro Seu Martinho através das orações e da água benta.
Essas expressões de fé revelam o catolicismo popular como uma manifestação
religiosa de gerações humanas concretas, mostrando os envolvidos enquanto sujeitos
históricos, inseridos numa realidade social, econômica e cultural. Sendo assim, “O
catolicismo popular é uma religião voltada para a vida aqui na terra. Nesse sentido, é uma
religião prática”.60 Utilizaremos a expressão popular na perspectiva de que a sacralização do
espaço Riachão dos Milagres passou a existir no imaginário dos devotos que buscam as
práticas de cura lá realizadas. Para Michel Vovelle:
A religião popular que se pode propor como objeto de estudo, não é uma
realidade imóvel e residual, cujo núcleo seria uma “outra religião” vinda do
paganismo e conservada pelo mundo rural: pelo menos não exclusivamente.
Ela inclui todas as formas de assimilação ou de contaminação e, sobretudo, a
leitura popular do cristianismo pós-tridentino, como também as formas de
criatividade especificamente populares.61
Logo, o catolicismo popular não seria simplesmente uma contraposição ao
catolicismo romano, mas uma manifestação de religiosidade em que os devotos utilizariam
elementos característicos do catolicismo oficial para realizar suas devoções e cultos a santos
59
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.,. p.114.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus, um estudo dos santos e festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983. apud VIANA, Roberto dos Santos e ANDRADE, Solange Ramos. O perfil do fiel no culto ao santo
popular: o caso Clodimar Pedrosa Lô em Maringá.In: Revista Brasileira de História das Religiões. Ano III,
Vol. VII, maio de 2010, p 01. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/st2.html
61
VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. 2 ed. São Paulo: Brasiliense.1991 , p.167
60
44
muitas vezes não reconhecidos, de igual forma o ato de fazer peregrinações a lugares
considerados sagrados pelos fiéis, sem que tenham reconhecimento da igreja. Para Alba
Zaluar “ o catolicismo popular deriva tanto de uma matriz erudita, não totalmente conhecida e
absorvida, quanto de uma tradição coletiva e anônima”62. Nesse sentido, Pedro Oliveira
descreve o catolicismo popular como “o conjunto de representações e práticas religiosas dos
católicos que não dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiéis.”63A prática popular do catolicismo em Riachão dos Milagres dependia da crença
dos devotos no dom pessoal de Seu Martinho, concedido pelo Anjo São Gabriel.
Ao considerarmos o imaginário dos devotos relacionando-o a peregrinação à Riachão
dos Milagres, partiremos da caracterização da religião tanto quanto fenômeno da sociedade,
integrante dos elementos históricos e sócio-políticos, como da experiência mítica e individual.
O imaginário se formaria pelo conjunto dessas representações, constituídos pelos discursos,
práticas religiosas e elementos simbólicos presentes no culto e devoção aos santos e anjos e à
peregrinação aos lugares vistos como sagrados.
Fotografia 3: Devotos em frente à nova Igreja- Arquivo pessoal de Seu Martinho.
62
ZALUAR, Alba. 1983. apud VIANA, Roberto dos Santos e ANDRADE, Solange Ramos. Ano III, Vol. VII,
maio de 2010, p 02. Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/st2.htmlI
63
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.. p.113.
45
Ao observarmos a fotografia 3, vislumbramos uma quantidade de devotos em frente
à nova igreja, recém construída. As pessoas que ali estavam pousaram para a foto e nela
percebemos que todas as mulheres encontram-se vestidas seguindo o padrão exigido por Seu
Martinho: Saia comprida e blusa com mangas64. Nossa suposição é que essa fotografia tenha
sido tirada para mostrar a igreja ampliada e a quantidade de devotos que a frequentavam.
Quiçá para demonstrar que podia acolher um número maior de fiéis para receber a bênção ou
cura com a água em destaque nas mãos de Seu Martinho. Poderia ainda simbolizar que a
construção da Igreja foi realizada com o auxílio de vários fiéis ou ter sido utilizada como
meio de divulgação da Igreja do Anjo São Gabriel.
Fotografia 4: Seu Martinho e um motorista de uma romaria- Arquivo pessoal de Seu Martinho.
64
Discutiremos no segundo capítulo as vestimentas usadas pelas mulheres pra freqüentar a Igreja do Anjo São
Gabriel, exigidas por Seu Martinho.
46
Fotografia 5: Motoristas das romarias- Arquivo pessoal de Seu Martinho.
As fotografias 4 e 5 demonstram os transportes utilizados para levar as pessoas, o
que nos permite supor que se tratavam de romarias que comportavam uma boa quantidade de
pessoas, afinal, os carros eram apropriados para a condução de passageiros e não simples
automóveis de passeio ou de uso apenas familiar que também se deslocavam de outros
municípios em romaria para Riachão dos Milagres. Datam dos anos de 1983 e 1984,
respectivamente, e narram alguns aspectos da comunidade Riachão dos Milagres. Um aspecto
é a existência de uma estrada que os levasse até à comunidade, diferentemente daquele
período narrado por Seu Antonio, do Sindicato, do qual ele se refere apenas a algumas trilhas.
Notamos que a estrada foi construída no intuito de facilitar o acesso à comunidade. Num
outro depoimento, o de Dona Celina Francisca de Souza, ela faz referência ao difícil acesso a
Riachão dos Milagres nos anos 70:
Eu fiquei sabeno em 74, em 1974, que um primo meu já tinha ido lá e um
cunhado, e depois eu fui levar Dete, a gente foi, cumade Lurde formou uma
lotação, mais cumade Nenzinha e levou Dete, que já ficou sabeno porque
47
Dete tava doente ficou sabeno que ia levar pra lá aí nós foi (...). E aí nós foi
até o riacho que pra lá carro num ia.65
Pela narrativa de Dona Celina, nos anos de 1970 não era possível o acesso de
automóveis até Riachão dos Milagres, sendo necessário atravessar um riacho e fazer uma
caminhada a pé numa certa etapa do caminho, possivelmente referia-se ao caminho cercado
por muita vegetação mencionado por Seu Antonio do Sindicato em seu depoimento. A
fotografia 4 ainda nos mostra Martinho recepcionando ou agradecendo, muito
provavelmente, a um motorista que trouxe uma lotação de romeiros para a sua igreja. O
depoimento de Dona Celina também menciona a formação de lotações desde a década de
1970 para a comunidade de Riachão dos Milagres, mesmo enfrentando as dificuldades
encontradas na falta de infra-estrutura de acesso à comunidade.
Provavelmente, os devotos se aventuravam em caminhões “pau-de- arara”66 até
Riachão dos Milagres impulsionadas pela crença nas curas proclamadas por Seu Martinho. A
mulher que aparece na fotografia aparenta satisfação, alegria... Sua presença chega a desviar
o nosso olhar da cena central da foto, que é Seu Martinho e o motorista.
A fotografia 5 nos indica que há vários outros ônibus estacionados no local,
formando uma fila. Ao menos quatro poderíamos apontar, já que temos quatro aparentes
motoristas de lotação pousando para a fotografia.
É muito provável que, esses ônibus seguiam lotados para Riachão dos Milagres, com
romeiros das áreas rurais dos municípios circunvizinhos, como Aratuípe, Jaguaripe, Nazaré,
Laje, Valença, Taperoá, Varzedo, Santo Antonio de Jesus. Talvez as práticas de cura
realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel tenham sido divulgadas por outros romeiros ou até
pelos próprios motoristas das romarias.
Além da divulgação oral dessas práticas, existia ainda a veiculação de livretos
impressos com a história de Seu Martinho e com os casos de cura67 realizados com a sua
intervenção. A figura 6 é um exemplo dos livretos produzidos na década de 1980 na
comunidade, com a autorização de Seu Martinho.
65
Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada. Entrevista realizada na Comunidade de
Nossa Senhora Aparecida- Varzedo-Ba, em 10/03/2010.
66
São conhecidos como pau-de arara, os caminhões utilizados como meio de transporte de pessoas, em geral de
romeiros ou retirantes que permitiam o deslocamento de comunidades rurais organizadas a nível local para
algum espaço sagrado ou cidade. Ver JESUS, Elivaldo Souza de . Op.Cit. p.71.
67
Discutiremos os casos de cura no capítulo 02.
48
Fotografia 6: Capa do livreto com a história de Seu Martinho.
No livreto, ele aparece ainda trajando-se de branco e com os cabelos compridos.
Encontram-se à mostra suas mãos segurando a Bíblia e um copo com água, símbolos de sua
missão: as mãos que aspergem a água e são usadas nas orações, em alguns momentos sobre o
local a ser curado, a água para intervir nas curas, com os ensinamentos contidos nos textos
bíblicos, seguidos literalmente por ele e pregados para os devotos do anjo. A fotografia de Seu
Martinho na capa do livreto, se apresenta “como linguagem imagética, síntese do texto
escrito”68
68
BRITO, Gilmário Moreira. Culturas e linguagens em folhetos religiosos do Nordeste: inter-relações
escritura, oralidade, gestualidade, visualidade. São Paulo: Annablume, 2009. p.209
49
Fotografia 7: Igreja atual do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza em 04/09/2009.
A fotografia 7 nos traz a imagem atual da Igreja do Anjo São Gabriel, que passou por
diversas fases, de simples capela, como mostrada na fotografia 1, a uma igreja sem muita
estrutura, com duas portas, sem seguir os padrões de construção arquitetônico de uma igreja,
mostrado na fotografia 3 e sua estrutura atual, nos padrões de uma igreja católica em sua
arquitetura, mesmo se tratando de uma pequena igreja. Percebemos uma placa com
informações em uma de suas paredes da frente, em reconhecimento ao trabalho desenvolvido
por Seu Martinho na comunidade:
Fotografia 8: Placa anexada à frente da Igreja do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza
em 04/09/2009.
50
A homenagem é prestada pelo Prefeito e pela Secretária municipal de educação.
Neste caso, supostamente, porque ao lado da Igreja tem uma escola municipal de Ensino
Fundamental I, que foi construída na propriedade da família de Martinho, em meados da
década de 1990, como uma reivindicação dele mesmo no período em que exerceu o mandato
de vereador, atendendo a um dos anseios da comunidade. Não nos aprofundaremos aqui
nessas questões, uma vez que, discutiremos em um dos subitens do terceiro capítulo deste
trabalho as atuações políticas e religiosas de Seu Martinho na comunidade e como a
comunidade o visualizava, aceitando ou negando suas práticas.
Fotografia 9: Casa de romeiros da Igreja do Anjo São Gabriel- Fotografia de Wilma Souza em 04/09/2009.
A fotografia 9 traz a casa de romeiros tal como ela é, e que não passou por
modificações desde quando ainda existia a antiga capela. Continua simples, sem infraestrutura. É a mesma casa que serviu como posto de vacinação mostrada na figura 1. Ainda
nos dias de hoje, não tem os serviços de água e esgoto na comunidade e as pessoas que lá se
hospedam carregam água em grandes vasilhames no lombo dos animais. Geralmente, são os
homens que realizam essa atividade, enquanto as mulheres são responsáveis pelas atividades
domésticas da estalagem. Possivelmente, o trato não é mais de uma “pensão”, como foi
descrito o ambiente pelo ex-padre, José Raimundo. Talvez o fosse nos anos 80.
51
A mulher que aparece na janela da casa na fotografia 9, é Dona Magnólia, uma
romeira que veio de Taperoá-Ba para se tratar de uma aparente erisipela em sua perna
esquerda e estava a cerca de três meses realizando o tratamento. Ela não nos concedeu
entrevista gravada, mas pousou espontaneamente para a fotografia e nos informou que no
período havia mais outras três pessoas se tratando lá na casa dos romeiros, dentre elas, uma
senhora do município de Paulo Afonso-Ba, com um tumor no maxilar, que estava
desenganada pela medicina oficial e recorreu às práticas de cura realizadas na Igreja do Anjo
São Gabriel. Dona Magnólia nos informou a ocorrência de avanços nos tratamentos, em
ambos os casos. Essa senhora se recusou a dar entrevista ou mesmo ser fotografada, alegando
não gostar de expor sua aparência para ninguém. O que nos chamou a atenção era o fato de
que ela sempre conversava com as mãos escondendo o maxilar.
Observando Dona Magnólia na fotografia da casa de romeiros da Igreja do Anjo São
Gabriel, percebemos nesta senhora uma profunda religiosidade, a ponto de deixar seus
familiares e ficar em tratamento em Riachão dos Milagres, crendo nas práticas mágicoreligiosas lá realizadas. Mesmo dois séculos após a tentativa da Igreja de romanizar o
catolicismo e da medicina utilizar a mais moderna tecnologia, as devoções populares
continuam a cada dia se firmando dentre as práticas religiosas populares no Brasil. Os
santuários e espaços considerados sagrados recebem corriqueiramente milhares de pessoas em
romarias para a realização de seus pedidos e pela busca de milagres, a exemplo de Dona
Magnólia.
1.3: A missão religiosa do Mensageiro do Anjo São Gabriel
Analisando as memórias dos indivíduos que recorreram às práticas curativas,
proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel, observamos as sociabilidades vivenciadas entre
eles e a forte crença na história religiosa de Seu Martinho. História essa,
memorizada
ativamente por essas pessoas, como um roteiro de vida influenciado pela fé e pela forte
expressão de devoção desde a infância. Mas afinal qual a história de vida de Seu Martinho?
De que maneira lhe foi revelada a sua missão? Quando começou sua vocação pela vida
religiosa?
52
A história do Mensageiro do Anjo São Gabriel começa com sonhos. Inicialmente
sonho que se tem acordado, os desejos cotidianos. Filho de família simples, detentora de uma
pequena propriedade de terra, com agricultura familiar de subsistência. Seu Martinho sonhou,
desde a infância, em ser padre. Entretanto, órfão de pai quando ainda muito pequeno, não
disponibilizava de recursos para ingressar no seminário. Quando adulto, tentou sem êxito ir
para o seminário porém, já estava com idade avançada para tal empreendimento. Foi trabalhar
em São Paulo e, mesmo não conseguindo entrar para o seminário, continuava a seguir a vida
religiosa, na Igreja Católica como Congregado Mariano69.
Muitos poderiam ser os motivos que levaram Seu Martinho a migrar para São Paulo
na década de 60. Segundo Charles Santana:
[...] entre 1950 e 1980, municípios da sub-região do Planalto do Recôncavo
experimentavam uma profunda transformação na sua vida no campo. A
concentração de terras, o avanço sobre as matas, a derrubada dos quintais de
café e a extinção de roças de fumo, processos que se articulavam em um
único movimento, expulsaram os trabalhadores rurais para as cidades
próximas, outras regiões e estados brasileiros.70
Pela relevância do contexto, a busca por melhores condições de vida oportunizada
por um emprego que lhe trouxesse uma remuneração mais vantajosa, auxiliando-o numa
condição social mais próspera para a sua família poderia ter levado Seu Martinho a migrar
para São Paulo, pois o trabalho em sua pequena propriedade de terra não era tão vantajoso
assim.
A vida dos migrantes nordestinos em São Paulo nos anos 1960, segundo Eder Sader
se caracterizava pelo enfrentamento de muitas dificuldades diante de uma cultura estranha,
que desvalorizava os conhecimentos rurais e, muitas vezes, fazia o migrante se sentir sozinho,
isolado, perdido, em frente a novos padrões de conduta bem distintos aos que estavam
acostumados.71Seu Martinho também passou por esse processo de estranhamento aos
costumes praticados pelas pessoas na metrópole que se confrontavam com os seus:
69
De acordo com o Manual Devocionário do Congregado Mariano, Congregado Mariano é o cristão que por
vocação presta culto à Vigem Maria, orando constantemente e se colocando na condição de servo, cooperando
ativamente, bob a graça da direção e autoridade da Igreja Católica, na obra de Maria.
70
SANTANA, Charles d‟Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações: Bahia
1950-1980. São Paulo: Annablume, 1998. P.110
71
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores
da grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995.p.88-95
53
Aí fui a São Paulo. Fui a São Paulo. Cheguei lá fui para casa de uma prima.
Aí eu ia pra igreja. Quando foi um dia chegô e...Ah, você vai pra igreja
chega tarde... Aqui num tem esse negócio de tá na igreja todo dia não. Deixa
pra ir somente nos dias de domingo. Quando foi no outro dia eu fugi da casa
dela, porque ela num queria que eu fosse pra igreja. 72
O depoimento de Seu Martinho mostra as dificuldades enfrentadas por ele em São
Paulo em relação ao seu costume de freqüentar a igreja todos os dias. Não fazia parte do
cotidiano de sua prima esse exercício religioso havendo um choque entre os costumes e um
rompimento na relação entre Seu Martinho e a prima, já que ela exigiu que ele abandonasse o
hábito de freqüentar a igreja diariamente e começasse a frequentar as celebrações somente aos
domingos. A prima dele apontou um motivo para essa exigência: o horário de chegada de Seu
Martinho da igreja. No entanto, ela trata com estranheza o hábito ao se referir ao mesmo
como “esse negócio”, mostrando assim, as diferenças de padrões vivenciados entre ela e Seu
Martinho.
Seu Martinho afirma ter fugido da casa de sua prima devido às dificuldades impostas
por ela com relação as suas visitas constantes e diárias à igreja, indo procurar abrigo na Santa
Casa de Misericórdia, onde trabalhou por um período e teve seu primeiro sonho revelador:
Na Santa Casa de Misericórdia, era... então tava lá trabalhando depois que
quando.... rapaz eu tô um dia aí eu sonhando com um milagre aqui. Aí eu
vim de férias disse assim: minha mãe, eu sonhei com um milagre aqui. Aqui
tem minador de água? Ela disse: Meu filho aqui quando chove é minador,
poça de água por todo canto, agora no verão, só tem o rio. Repeti a palavra
eu, eu, eu sonhano com um milagre aqui e depois desse sonho, só via assim
aquela multidão de gente evén gente, evén gente e chegava perto de mim
desaparecia o povo e oxém... Eu dizia assim: é guerra, eu mermo dizia assim
é guerra, que tanta gente assim... e depois desaparecia. Aí fui me embora
cheguei aqui eu contano a ela a história toda e voltei a São Paulo.73
72
Depoimento de Seu Martins Góis da Silva, 75 anos. Entrevista realizada na Comunidade do Riachão dos
Milagres, em 27/02/2010.
73
Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado.
54
Nesse primeiro sonho, Seu Martinho nos conta que sonhou com “um milagre” nas
terras de sua família. Ele estava se referindo a uma fonte d‟água milagrosa, a qual atraía
muitas pessoas para a localidade. Sonho este que ele teve quando morava e trabalhava na
cidade de São Paulo, no mês de junho de 1967, um pouco antes do seu segundo sonho, que o
fez retornar para sua terra natal de vez e levar adiante sua missão religiosa.
Ao retornar a São Paulo, Seu Martinho nos conta que teve outro sonho, no dia 30 de
outubro de 1967. Na narrativa de seu sonho, nos descreve as atividades por ele realizadas
durante todo o seu dia, principalmente seu exercício religioso, como ir à missa e comungar.
Ao chegar em casa à noite e se deitar, após leitura intensa da Bíblia, Seu Martinho afirma que
teve um sonho ou talvez uma visão e viu um imenso clarão em seu quarto, mesmo as luzes
estando apagadas:
[...] numa base assim de uma, duas hora da madrugada, aí eu tô veno a casa
toda clara, eu me assustei, quando eu ... eu olhei a frente assim dos pés ...
assim dos pés pra minha cabeça na parede tava uma luz do tamanhe uma lua
cheia, agora a luz falava, eu disse assim: oxém? Aí eu a paguei as luz e a luz
acesa? Uma hora dessa? Mas aí a luz tava falando: O arcanjo Gabriel que foi
enviado ao padre Cícero, que eu fizesse três jejum, três sexta-feira, ao
espírito santo santificado, que daquele dia em diante eu não tocaria carne na
boca, nem sal, não tomar bebida alcoólica, não pensar no sacramento do
matrimônio. Aquela missão ocorreu num Juazeiro com o Padre Cícero que
eu tinha que corresponder, para com os cegos, os aleijados, os tuberculosos e
o que viesse marrado na corrente. 74
Seu Martinho narra que acordou preocupado e percebeu o mundo de uma maneira
diferente, diante daquela visão. Pensou até que o mundo chegaria ao fim. Ao abrir a porta de
sua residência, só ouvia o galo cantando: “Cristo nasceu!” “A tua vida modificou!”.
Deslocou-se até a casa de um colega de trabalho e deparou-se com a admiração do mesmo
quanto a sua chegada devido ao horário: era por volta de cinco horas da manhã. Ao entrar na
casa do colega, viu na mesa da sala uma jarra cheia de água e Seu Martinho via uma igreja
dentro da jarra com a cruz fora da mesma. Apontou para o colega o que estava vendo, mas ele
o acusou de estar “ficando maluco”, mesmo assim, Seu Martinho insistiu em mostrar sua
visão:
74
Entrevista com Seu Martins Góis da Silva, 75 anos. Depoimento citado.
55
É que eu tô veno a igreja dentro da água e a cruz tá de fora, aí eu disse assim
vem vê, vem vê a igreja, óia que igreja bonita! A cruz tá toda de fora dento
da água. A igreja dento da água e a cruz fora da água.” E ainda ele afirma ter
ouvido uma voz que lhe dizia: “É com a água que tu vais fazer a cura!75
Seu Martinho narra também que teve a impressão de estar coberto com nuvens,
dando um forte grito e desse modo:
[...] quando dei aquele grito, aí as nuve saiu, levantô de cima de mim,
devagazim, devagazim, devagazim, com espaço de dois metro de altura, a
voz repetiu: “Volta a tua terra natal, vai fazer a tua capela, pra cuidar de tua
missão” . Aí... a minha vida foi essa, né? Aí eu tive que... tinha cinco ano de
firma, Matarazo, o meu chefe num queria que eu saísse da firma e eu deixei
tudo lá pra vim cuidá da.... Segui a Deus e ao seu povo.76
A narrativa dos sonhos de Seu Martinho nos permite diversos questionamentos no
que tange à formação de líderes religiosos nas mais variadas localidades, que se iniciam com
a propagação da realização de milagres em nome de um santo e levam à construção de uma
igreja, onde passam a acontecer peregrinações, romarias, promessas e cultos. As religiões
parecem sugerir que “Deus está um pouco mais adiante”77, encaminhando, os fiéis a
peregrinarem por diversas localidades em busca de acalanto religioso. “Não somente o que
está no céu, mas também o que está distante, alhures, que está mais adiante serve como
imagem forte da simbologia religiosa”
78
. Desse modo, as peregrinações à Riachão dos
Milagres, se ancoravam na crença de sonhos, considerados sagrados.
Os sonhos de Seu Martinho são carregados de toda uma simbologia que podemos
começar a analisar pela visão apocalíptica do mundo que ele tem na interpretação de seus dois
sonhos. No primeiro sonho citado por Seu Martinho, ele se apercebe de uma fonte milagrosa
em suas terras e uma multidão que chegava perto dele e desaparecia e ao final ele se
questionava se era guerra. Após o segundo sonho, ele afirma ter tido visões que o levaram à
especulação de final do mundo. Essas interpretações de seus sonhos nos remetem à visão
apocalíptica narrada na Bíblia cristã, na qual se refere a guerras, fim do mundo, narrando
acontecimentos de maneira profética. Apocalipse, que pelo seu termo original possui o
significado de revelação, passou então a ser mencionada como fim do mundo, devido às
75
Idem.
Idem. Ibid.
77
TERRIN, Aldo Natale. Op. Cit. p.370.
78
TERRIN, Aldo Natale. Op. Cit. P.371.
76
56
diversas interpretações que foram dadas aos textos apocalípticos da Bíblia cristã, carregados
de alegorias e de ressignificações.
Elementos presentes na tradição católica aparecem no relato do segundo sonho de
Seu Martinho: igreja, cruz, galo, água, anjo. A aparição desses elementos ajuda a validar o
sonho como uma mensagem divina de missão, dando um reconhecimento cristão para adeptos
e devotos. Para Mircea Eliade “a fé cristã é sustentada por uma revelação histórica: é a
manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos do cristão, a validade das imagens e
dos símbolos.”79. Nessa perspectiva, a cruz aparece na simbologia cristã como símbolo de
salvação e redenção do mundo, com o acontecimento histórico da Paixão de Cristo, “é através
da cruz (= centro) que acontece a comunicação com o céu e, ao mesmo tempo, que todo o
universo é salvo.” 80
Na visão de Seu Martinho, a igreja aparece dentro da água e somente a cruz está fora
da água, nos mostrando assim a representação salvífica da cruz para Seu Martinho, devido a
sua formação católica. Grosso modo, poderíamos dizer que na representação religiosa dele, a
cruz estaria atuando como um elemento de salvação da igreja, uma vez que esta última
representa, na simbologia cristã o próprio universo.81 Em relação à cruz, seguimos aqui a
perspectiva de Cândido Silva ao afirmar que , “ a vida dos cristãos sertanejos está alimentada
em grande escala pela mística da cruz, decorrente da perspectiva penitencial que orientou sua
formação, reforçada pelo regime de privações e sofrimentos constitutivos de seu mundo”82. A
cruz, no sonho de Seu Martinho, demonstraria essa mística penitencial e de renúncias para a
realização de sua missão.
A água, nos dois sonhos de Seu Martinho, aparece como purificadora, regeneradora,
o elemento sagrado capaz de realizar as curas, livrando os doentes de suas mazelas. Nos
depoimentos dos devotos que se direcionam à igreja do Anjo São Gabriel, é sempre
mencionada e considerada como sagrada, benta, santificada. “A água confere um novo
nascimento, por um ritual iniciático, ela cura por um ritual mágico, ela assegura o
renascimento post-mortem por rituais funerários”83símbolo de cura, na missão religiosa de
Seu Martinho, a água apresenta-se como “ a substância mágica e medicinal por excelência; ela
79
ELIADE,Mircea. Op. Cit. p.161.
Ibid. p. 163
81
Ibid. p. 162
82
SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia.São
Paulo: Ática, 1982.p. 60.
83
ELIADE, Mircea. Tratado da História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes. 1998. P.154.
80
57
cura, rejuvenesce, assegura a vida eterna”84Com poder curativo, revela-se como o alívio para
os problemas e mazelas dos devotos do Mensageiro do Anjo São Gabriel.
O galo cantando aparece no imaginário de Seu Martinho, após o seu sonho como um
símbolo de confirmação que o anúncio da missão havia acontecido. Fazendo uma alusão às
histórias narradas nos Evangelhos, o galo cantou três vezes para confirmar que Pedro negaria
a Jesus Cristo no momento de sua prisão e calvário.85 Da mesma forma, a figura do anjo
Gabriel aparece nas histórias dos Evangelhos como anunciador de missão a Maria, a sua
prima Isabel, também irradiado por uma forte luz.
A ideia de troca entre os santos e os seres humanos para concessão de graças,
também marca o sonho do Mensageiro do Anjo São Gabriel, quando o anjo determina que ele
faça abstinência de carne, sal, bebida alcoólica e não se case para receber o poder de cura,
elementos bastante estratégicos da análise do que é sagrado ou santo, como “sua suposição de
poder, sua ambiguidade em relação ao homem, seu caráter de respeito e o sentimento de
dependência que desperta.”
86
Sendo a religião “uma questão de sentimentos, atos e
experiências”87, é notório que o sonho de seu Martins Góis, esteja impregnado pelos
elementos constitutivos de sua formação religiosa. Os jejuns são constantemente narrados nas
histórias do Evangelho que remetem à vida evangelizadora de Jesus Cristo, como sacrifício,
purificação, com o objetivo maior de cumprir sua missão. Quanto ao celibato, seu Martins
desejava ser padre, e esta é uma das condições exigidas pela Igreja Católica para se obter o
sacramento da ordem.
O sentimento de liderança também está fortemente presente no sonho revelador da
missão de Seu Martinho, tido em 1967. Expressões como “seguir a Deus e ao seu povo” “vais
fazer tua capela” e “corresponder à missão do Padre Cícero” mostram que sua missão estava
marcada pela liderança de uma comunidade, na sua “terra natal”, uma liderança por um
motivo excepcional, extraordinário, caracterizado pelo o que é sagrado, que provoca atitude
de respeito por parte das pessoas. Esse sentimento de liderança nos remete ao fenômeno do
carisma. Para Max Weber:
84
Ibid. p.157.
A história de Jesus Cristo encontra-se nos livros dos evangelistas Marcos, Lucas, Mateus e João na Bíblia
Sagrada.
86
THOMAS F. Sociologia da religião. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria pioneira Editora.1969 p.
36.
87
Ibid., p.34.
85
58
[...] uma certa qualidade de uma personalidade individual, e em virtude da
qual se separa de homens comuns e é tratada como se fosse dotada de
qualidades ou poderes sobrenaturais, sobre-humanas ou, pelo menos,
especificamente excepcionais. Tais qualidades não são acessíveis à pessoa
comum, mas são vistas como de origem divina ou como exemplares, e a
partir delas o indivíduo é tratado como um líder88
Quando Seu Martinho afirma que acredita ter recebido uma missão religiosa, ele se
diferencia das demais pessoas conferindo a si próprio uma condição especial, a condição de
escolhido para execução de tarefas mágicas, reveladoras e poderosas, diante os outros:
E a ideologia da revelação, da inspiração ou da missão, constitui a forma por
excelência da ideologia carismática porque a convicção do profeta contribui
para a operação de inversão e de transfiguração que o discurso profético
realiza impondo uma representação da gênese do discurso profético que faz
descer do céu o que ele devolve ao céu aqui na terra. 89
Desse modo, com a sua crença na importância de sua missão religiosa, muitas
pessoas passaram a segui-lo com a convicção de que Seu Martinho tinha o dom da cura dado
pelo Anjo Gabriel. Esse poder atraia os populares, muitas vezes desiludidos ou com medo de
recorrer à medicina científica, preferiam se deixar encantar pelas promessas de curas rápidas e
mágicas sem passar pelos longos e severos tratamentos médicos, envolvendo medicamentos
caros, internamentos em hospitais e os temidos bisturis.
Seu Martinho conseguiu conquistar seguidores que o respeitam e o aceitam a partir
de uma missão religiosa de curar doentes das mais variadas mazelas, designada por um sonho
ou visão que já dá um direcionamento de sua liderança na comunidade, caracterizada de
forma extraordinária, sagrada, porém espontânea. Aqui percebemos como os homens
respondem com respeito e fascinação a experiência religiosa que é vista como sagrada e
extraordinária, uma vez que o poder visto como sagrado atrai o crente. O quê é designado
como sagrado para as pessoas:
[...] desperta sentimentos que se caracterizam, simultaneamente, por terror e
atração, amor e medo, horror e fascinação; e esses sentimentos são
acompanhados pela convicção do crente de que está preso e envolvido num
destino mais elevado.90
88
WEBER apud O‟DEA, In: THOMAS, Op.Cit. p. 37.
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. , p.55
90
THOMAS, F. Op. Cit. p. 36 p. 37.
89
59
Esses sentimentos opostos de terror e atração, horror e fascínio, amor e medo,
característicos dos fenômenos carismáticos podem ser percebidos na própria narrativa de Seu
Martins Góis quando o seu colega de trabalho, Zé, ao saber de sua visão o questiona a respeito
da sua sanidade mental: “tá ficano maluco?”. É o sentimento de indignação, que ao mesmo
tempo aproxima os devotos, acreditando e procurando às práticas curativas proclamadas por
Seu Martins Góis Silva. Tantas outras pessoas também ficam ou ficavam com esse sentimento
de dúvida, porém acabam buscando aquelas práticas religiosas, acreditando na veracidade de
uma missão. O ex-padre José Raimundo Galvão narrou em depoimento, um pouco da reação
das pessoas que se viam entre o medo e o fascínio em conhecer as práticas religiosas
vivenciadas em Riachão dos Milagres: “e o pior que às vezes os próprios católicos simples
quando falavam em Martinho, já falavam com medo e quem ia lá já começava a ser olhado
com suspeição”91
Reportando-nos mais uma vez a expressão “corresponder à missão do Padre Cícero”
mencionada no sonho de Martinho, percebemos o modelo de santidade presente no imaginário
deste. Daria continuidade à missão de ninguém menos que o Padre Cícero, figura tão
venerada por milhares de devotos por todo o Brasil, com uma história de santidade, a qual
Martinho trilharia um percurso bastante similar: menino de família pobre, com vocação desde
criança para o sacerdócio, que perdeu o pai ainda muito cedo, contudo, perseverante em
seguir seus desígnios religiosos. Padre Cícero, entretanto, diferente de Martinho, teve um
padrinho rico comerciante, que custeou seus estudos e o enviou ao seminário em Fortaleza,
após ter contado ao padrinho o sonho que teve com o seu já falecido pai, dizendo que Deus o
ajudaria a dar continuidade aos seus estudos.
Esse não teria sido o único sonho revelador do padre a Seu Martinho. Já ordenado
padre, teria tido outro sonho revelador em abril de 1872, que alterou seus planos de residir em
Fortaleza e o manteve num pequeno povoado rural de Juazeiro. Sonhou com o próprio Cristo
o ordenando que tomasse conta dos pobres daquela região.92
Estabelecendo uma relação de analogia, Martinho também teve um sonho que o fez
mudar de vida e assim, como na história do padre Cícero, tornou público o seu sonho ou visão
com os desígnios do Anjo São Gabriel. Nessa perspectiva, Ralph Della Cava menciona os
sonhos ou visões do Padre Cícero:
91
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
Sobre a história do Padre Cícero Romão Batista ver DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro. 2.ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985
92
60
Anos depois, ocorreram “outras visões” e, em todas elas, se discernia o
mesmo padrão: figuras de indubitável autoridade apareciam para decretar e
garantir ao piedoso clérigo o seu futuro rumo de ação. Nunca se mostrou
avesso em revelar tais experiências aos amigos e parentes que, como ele,
movidos pela mesma devoção e ingenuidade, chegaram a reverenciá-lo
como um homem de singular e indelével vocação para a santidade.93
Seu Martinho também teve sonhos que vieram a definir os seus rumos de ação, por
isso não poderíamos deixar de mencionar as polêmicas que envolvem a crença na missão do
Mensageiro do Anjo São Gabriel a partir de um sonho, já que seu desejo desde criança foi
enveredar na vida religiosa se tornando padre e mesmo sem êxito não abandonou a Igreja
Católica, atuando então como leigo. Diante dessa realidade perguntaríamos: Há veracidade ou
verossimilhança no sonho de Seu Martinho? Talvez não nos caiba o aprofundamento nessa
questão, uma vez que tendo ou não veracidade ou verossimilhança, através desse sonho, Seu
Martinho conseguiu e consegue até os dias de hoje manter devotos fiéis as suas práticas
curativas a ponto de testemunharem mudança de vida atribuídas as mais diversas curas lá
obtidas. Alguns devotos creem fervorosamente que a missão de seu Martinho é uma
continuidade da missão do Padre Cícero: “ as pessoas é... sempre diz é... é o espírito do padre
que invoca nele.. Eu acredito nisso.”94 E também o chamam de padrinho: “(...) eu acho, eu
acredito que seja talvez pelo milagre que tomam lá na igreja aí chamam ele de padrinho.”95
Percebemos na fala de Florisce, uma moradora da comunidade de Riachão dos
Milagres, que é forte a crença dos devotos na semelhança da missão de Seu Martinho com a
do Padre Cícero. A denominação de padrinho pelos devotos ocorreria tanto pela associação
da aspersão da água para curar as doenças com o batismo, quanto pela idéia de que o padre
Cícero estaria agindo nas práticas de cura proclamadas por Seu Martinho, seguindo assim o
sonho revelador da missão deste último que iria “corresponder à missão do padre Cícero”.
A ligação entre o padre Cícero e Seu Martinho é muito forte no imaginário dos
devotos na Igreja do Anjo São Gabriel. Essa crença impulsionou a romaria dele, com cerca de
trinta devotos, a Juazeiro do Norte no ano de 1980. Contou-nos Dona Janete que a viagem
para Juazeiro foi programada com muito entusiasmo por Seu Martinho e alguns devotos que
frequentavam a Igreja do Anjo São Gabriel e que acreditavam que a sua missão fosse uma
continuidade da missão do Padre Cícero.
93
Ibid. p..27.
Depoimento de Florisce Fagundes dos Santos,35 anos, professora. Entrevista realizada no município de Dom
Macedo Costa, em 25/03/2010.
95
Idem.
94
61
A viagem foi realizada de ônibus com a duração de um dia e se hospedaram numa
casa de romeiros e em suas memórias a fé era tamanha que viajaram com pouco dinheiro e a
maioria sem documentos. Dona Janete contou-nos ainda que o ônibus foi interceptado pela
Polícia Rodoviária Federal, devido à ausência de documentos da maioria dos passageiros e
correram o sério risco de não irem adiante na viagem, porém os policiais os deixaram seguir
com a condição de retornarem na quarta-feira, no plantão deles. A romaria chegou ao destino
no dia 23 de março de 1980, e no dia seguinte era feriado no município devido às
comemorações do aniversário do Padre Cícero e, de acordo com as memórias de Dona
Janete, não puderam conhecer alguns locais na cidade.96
Fotografia 10: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce. Junto da estátua do Padre CíceroArquivo de Dona Janete Souza
Na fotografia 10, percebemos Seu Martinho como sujeito central e o gesto que ele
faz com o braço, possivelmente, indique que ele conseguiu estar bem perto do Padre Cícero
como continuador de sua missão, trazendo uma romaria com devotos com uma forte crença
nesse sentido. Ele se posiciona a frente da romaria, demonstrando uma apropriação de sua
96
Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza.
62
representação diante dos devotos enquanto “Mensageiro do Anjo São Gabriel”. Quiçá se
coloca como verdadeiro padrinho que o é daqueles romeiros, diante da estátua do “padim
Ciço”. As relações de compadrio na comunidade do Riachão dos Milagres se apresentam de
maneira muito intensa e Seu Martinho tem muitos afilhados, afilhadas, comadres e
compadres, sejam de batismo ou crisma, sejam através da água benta aspergida na cabeça de
alguns fiéis que passam a considerá-lo como padrinho. Para Charles Santana “o compadrio
aparece como uma instituição profundamente enraizada nas tradições rurais, mas com
múltiplos significados”97
Na Comunidade do Riachão dos Milagres, essa relação de compadrio estava
simbolizada pela água benta, aspergida por Seu Martinho nas cabeças daqueles que ali se
apresentavam em busca de cura. Desse modo, ele era chamado de padrinho, como um
cuidador dos fiéis: “Padrinho é assim como pai. Por que pai? Pai é aquele que cuida dos seus
filhos (...) então as pessoas o veem como um pai, então foi uma expressão de carinho que
tiveram com ele chamá-lo de padrinho”98
Os romeiros da fotografia 10, segundo o relato de Dona Janete, são devotos,
compadres, comadres, afilhados e afilhadas, residentes nas áreas urbana e rural do município
de Dom Macedo Costa, Varzedo, Valença, Taperoá e Muniz Ferreira. Encontram-se dentre
eles alguns familiares de Seu Martinho. Percebemos que as mulheres presentes na fotografia,
trajam-se de acordo com as normas impostas por ele: saias ou vestidos abaixo dos joelhos e
blusas com mangas. Os devotos assim acreditam na existência de uma relação entre a missão
de Seu Martinho e a do Padre Cícero no tocante às curas alcançadas, como se fosse uma
extensão das práticas religiosas ocorridas em Juazeiro : “Bem tem essa relação pelo seguinte:
eu que estive lá no milagre do Padre Cícero, eu estava com uns 15 anos, eu fiquei admirado
com os testemunhos de graças alcançadas, de curas lá no Ceará, Juazeiro do Norte”99
97
SANTANA, Charles d‟ Almeida. Op. Cit.. P.51
Depoimento de Manoel da Lapa Silva Santos, 45 anos, sobrinho de Seu Martins Góis da Silva. Entrevista
realizada no município de Santo Antonio de Jesus, em 24/01/2011.
99
Idem.
98
63
Fotografia 11: Seu Martinho e romaria em Juazeiro do Norte-Ce. Arquivo de Dona Janete
Na fotografia 11, Seu Martinho e alguns romeiros, pousaram para fotografia em
frente da Igreja de Nossa Senhora das Dores. Na história do Padre Cícero, ao mudar-se para o
povoado de Juazeiro no ano de 1872, “Instalou-se numa pequena casa coberta de palha,
defronte à Capela de Nossa Senhora das Dores (...)”, começando o exercício de sacerdócio
“entre os pobres que lhe haviam sido confiados por Cristo no sonho predestinado”100. Seu
Martinho apresenta-se com uma história parecida: devido a um sonho retornou a sua “terra
natal” e construiu uma capela nas terras de sua família, defronte a sua casa. O padre Cícero
“providenciou a reforma e ampliação do templo”101, assim como a Capela do Anjo São
Gabriel transformou-se em igreja, com a dedicação de Seu Martinho e o apoio dos devotos.
O sonho revelador de Seu Martinho dividiu e ainda divide opiniões quanto a sua
veracidade, já que muitos acham que é fruto de sua imaginação ou até plágio das histórias
narradas na Bíblia cristã. No seu depoimento, padre Nelson Franca, pároco há mais de 30
anos em Santo Antonio de Jesus, assim caracteriza o sonho do Mensageiro do Anjo São
Gabriel:
100
101
DELLA CAVA, Ralph. Op. Cit.. P. 26-27.
CARVALHO. Gilmário de.Madeira Matriz. São Paulo: Annablume. 1994.p 105.
64
A gente espera que como a Igreja tem a sua prudência, não tem negado, não
tem condenado, não tem proibido, mas ela também não pode chegar e
colocar uma coroa na cabeça de Martinho e depois essa coisa de cada um
atribuir que Deus lhe chamou de forma pessoal que em sonho ouviu isso,
aquilo e aquilo outro, não é? O anjo Gabriel trazer uma mensagem, a gente
sabe...Veja aí como as alucinações podem, levar as pessoas a plagiarem
aquilo que a escritura sagrada diz. O anjo Gabriel foi aquele... é o portador
da mensagem de Deus a Maria, que ela seria a mãe de Jesus Cristo, então o
anjo é o grande comunicador de Deus, é o porta-voz de Deus, a gente pode
usar essa expressão, então a Maria, o anjo Gabriel fez uma comunicação.
Olha o Martinho aí plagiando o que o evangelho diz na Escritura Sagrada,
para dizer que o anjo veio a ele e lhe fez uma comunicação também, não é?
E essa coisa do sonho é muito controversa, até onde eu aprendi e posso até
ter aprendido de forma errada, ou não ter aprendido tudo, mas aquilo que a
gente sonha é sempre algo que já passou pelo nosso consciente, que volta,
que explode a partir do nosso subconsciente, então o sonho é uma visão
repetida de algo que já foi real e concreto na vida da gente. Aquilo que a
gente pensa, aquilo que a gente experimentou e viveu. Será que Martinho... o
que é que ele pensa, o seu ideário é composto de que? O que é que ele tem
dito a si mesmo, e isso volta no sonho...102
O ex-padre José Raimundo, da paróquia de São Benedito, que acompanhou a missão
de Seu Martins Góis nos anos 80, descreveu assim o sonho:
Todo padre, toda freira foi chamado por Deus. Como é esse chamado? Pra
alguns é uma tia, uma avó, uma mãe, uma circunstância, uma dificuldade,
um problema. Ele foi um sonho e o sonho é bíblico, o sonho é bíblico. Deus
falou a José pelo sonho, chamava José de o sonhador, lá vem o sonhador...
Freud pega o sonho pelo lado da psicanálise e faz virar ciência de sonho e
diz sonhar com isso é isso, sonhar com isso é isso, todo mundo acredita!
Agora não acredita numa coisa antiga velha que muda a vida de uma pessoa,
que direciona os rumos de uma comunidade. Quando as pessoas acreditam
em sonhos elas vão longe, viu! O sonho é perigoso, sonhar é perigoso, que
faz as pessoas tomarem rumos novos de vida. A palavra específica do sonho
é utopia, quando a coisa é tópica, é aqui, você compra um remédio tópico
você bota no lugar da doença, mas em grego não, é utópico, quando é
utópico vai acontecer um dia, eu não sei quando é. O sonho é a utopia, é o
não-lugar, mas eu sei que eu sonhei, eu sei que isso me persegue. Uma
pessoa atingida por um sonho de Deus é uma pessoa que nunca mais tem
sossego enquanto o sonho não se realiza. Como ele, largou tudo em São
Paulo, veio pra ali e ali... Foi criticado não é só por padre não, foi criticado
por leigos, políticos e depois os políticos tentaram se aproximar.103
Assim como seu sonho ou visão, que o iniciou em sua missão de curar doentes,
desperta dúvidas e levam o padre Nelson Franca a questionar se há veracidade ou
102
Depoimento do Padre Nelson Franca, 61 anos, pároco da Igreja Matriz de Santo Antônio. Entrevista realizada
no município de Santo Antonio de Jesus, em 25/02/2010.
103
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
65
verossimilhança nas palavras de Seu Martinho, as suas práticas de cura também foram vistas
com desconfiança e dúvidas por muitas pessoas. O padre Nelson Franca questiona se o sonho
que Seu Martinho afirma ter tido não seria fruto de sua imaginação ou de sua formação
religiosa, já que ele diz que desde criança gostaria de ser padre. Considerando-se tais
premissas, todos os aspectos religiosos presentes no que ele afirma ter sido um sonho, o
levaram a ocupar uma posição de liderança na Igreja.
Já para o ex-padre José Raimundo, todo religioso recebe sua vocação por chamado,
que no caso de Seu Martinho ocorreu através de um sonho e ele sinaliza em seu depoimento
que há veracidade no sonho de Martinho, mencionando as próprias histórias narradas na
Bíblia Cristã como parâmetro de comparação. Porém, o ex-pároco ressalta mais adiante o
perigo representado pelos sonhos capazes de mudar a vida das pessoas. Teria Seu Martinho se
baseado no desejo que disse ter depois de adulto ou nos seus anseios religiosos desde a
infância para se dedicar a sua missão? Não sabemos ao certo, apenas sinalizamos as
possibilidades, pois uma resposta mais enfática demandaria mais pesquisas e quem sabe
incursões pela psicanálise.
Outros elementos que o acompanharam em sua vida religiosa fazendo um diferencial
dentre os leigos líderes de comunidade caracterizam o sonho ou visão de Seu Martinho. Ele só
se vestia com roupas brancas durante um bom período de sua missão e não cortava os cabelos.
O ex-padre José Raimundo também recorda como Seu Martinho se vestia:
[...] me lembro que no início ele vestia uns chambres meio doidos, vivia pela
rua. Eu disse: Vamos acabar com isso, vista de branco, você não acha que
tem que vestir branco então vista calça e camisa e ele me ouvia, me ouvia,
me ouvia, acabou sendo aquela pessoa amiga minha de coração mesmo que
eu tive como um grande amigo durante o tempo em que estive na Paróquia
do São Benedito, então é desse Martinho que eu falo, o que eu vi lá só foram
demonstrações de fé, de humildade, de procura de Deus, de se render a graça
de Deus na doença, numa dificuldade e procurar um homem de Deus que
tinha às vezes esse dom e tem esse dom. O mal da gente é pensar que o dom
de Deus só passa por alguns, que o dom de Deus é controlado por uma
instituição, não é, o dom de Deus é tão livre como a palavra que voa que a
gente não sabe nem de onde veio nem pra onde vai. Então, foi nessa
perspectiva que eu dei todo o apoio a Martinho. Não sei como está Martinho
hoje, mas gostaria que estivesse no mesmo espírito que conheci quando eu
trabalhei com ele.104
104
Entrevista com o ex-padre José Raimundo Galvão. Depoimento citado.
66
Pela narrativa do ex-padre percebemos que ele foi aos poucos direcionando as
atitudes que Seu Martinho deveria tomar. Conduziu o modo dele se vestir para os padrões
sociais considerados normais pela maioria das pessoas. Manteve o diferencial de vestir
somente a cor branca, provavelmente, porque isso poderia atrair as pessoas, reforçando a
representação de Seu Martinho como diferente, especial diante dos outros seres humanos.
Seria Seu Martinho um ser humano com um dom de curar e o ex-padre afirma ter uma forte
crença na existência desse dom, apoiando-o. Talvez alguns outros padres da Diocese de
Amargosa não acreditassem nesse dom de Seu Martinho, uma vez que o ex-padre José
Raimundo menciona como “o mal da gente” a crença no dom de Deus apenas para aqueles em
que a Igreja Católica controla. Em nome de que grupo ou categoria o ex-padre José Raimundo
estava falando naquele momento?
Seu Martinho era visto como “esquisito”, “estranho”, no início de sua missão, se
“vestia com uns chambres meio doidos”, talvez para ter notabilidade dentre os cristãos ou por
sua própria formação religiosa que o levou a tomar essas atitudes. Com o direcionamento
dado pelo ex-padre José Raimundo, ele foi mostrando suas qualidades religiosas sem se tornar
marginalizado da sociedade, sem provocar receios, dúvidas e dentro da estrutura da Igreja
Católica.
O padre Nelson Franca nos passou outras impressões que teve a respeito de Seu
Martinho:
[...] quando aqui cheguei em 1978, é nas celebrações, nos momentos fortes
de vida religiosa aqui na cidade de Santo Antonio, porque naquela época era
uma paróquia só, o Martins se apresentou e veio e freqüentava as nossas
celebrações, sobretudo junto ao apostolado da oração, que é uma associação
religiosa que congrega, sobretudo os mais idosos, os mais maduros na
caminhada de igreja e ele se ligou a este grupo só se apresentava vestido de
branco como faz até os dias de hoje e... Nunca lhe dei um tratamento
diferenciado, apesar dele buscar, porque desde muito cedo que ele buscava
ainda na época o bispo da diocese era D. Alair, hoje já falecido e... Ele
buscava um tratamento diferenciado, porque apesar de ter uma dificuldade
no... de fonaudiologia, ele fala meio é pelo nariz e tal, mas ele tem uma
palavra meio fluente e... cativadora. Ele tem sentimentos paternalistas que
afloram de maneira imediata e rápida. Sentimentos assim que o fazem
próximo e fácil, então assim ele se tem colocado diante das pessoas.105
Percebemos na narrativa do padre Nelson Franca, que Seu Martinho buscava um
tratamento diferenciado dentre os demais cristãos-católicos, participando na paróquia dos
105
Depoimento do Padre Nelson Franca, 61 anos, pároco da Igreja Matriz de Santo Antônio. Entrevista realizada
no município de Santo Antonio de Jesus, em 25/02/2010.
67
momentos festivos. Pelas palavras do padre, Seu Martinho já demonstrava um forte desejo de
estar agregado à Igreja Católica, participando do Grupo Apostolado da Oração 106. Quando nos
deparamos com os depoimentos do padre e do ex-padre parece que está se falando de duas
pessoas diferentes. O que o ex-padre chama de “demonstrações de fé” o padre caracteriza
como “sentimentos paternalistas”. Estaria Seu Martinho movido por atitudes paternalistas,
que as tornariam “próximo e fácil” diante das pessoas? Ou acreditaria Seu Martinho estar se
rendendo “às Graças de Deus”? Os representantes formais da Igreja Católica estariam
distantes
e
inacessíveis
à
comunidade?
E
a
comunidade
em
geral
como
visualizam/visualizavam Seu Martinho?
É possível que Seu Martinho tenha buscado na religião uma maneira de se destacar
socialmente diante das pessoas da localidade através de sua missão, atraindo adeptos e
seguidores em busca de respostas para suas mazelas:
Se a religião cumpre funções sociais (...), tal se deve ao fato de que os leigos
não esperam da religião apenas justificações de existir capazes de livrá-los
da angústia existencial da contingência e da solidão, da miséria biológica, da
doença, do sofrimento ou da morte. Contam com ela para que lhes forneça
justificações de existir em uma posição social determinada, em suma de
existir como de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhe são
socialmente inerentes.107
Diferente, paternalista ou se rendendo “às Graças de Deus”, Seu Martinho recebia
devotos todos os dias da semana em sua igreja para rezar e curar os males do corpo e da alma
como nos conta Dona Janete Souza, uma senhora que morou lá em Riachão dos Milagres na
casa de Seu Martinho, realizando serviços domésticos, recebendo os romeiros e cuidando da
igreja por nove anos e meio:
Ele orava muito quando tava em casa, todo sábado ele rezava o ofício, dia de
domingo ele rezava muito e todo dia ele ia pra igreja e orava muito e sempre
num faltava gente, toda noite tinha as orações na igreja. Ele ia pra igreja
rezava o pessoal e tinha as oração dele (...) qualquer hora todo dia da
106
De acordo co a Enciclopédia Popular Católica, Apostolado da Oração “é uma união de fiéis que, pelo
oferecimento diário de si mesmos, se unem ao sacrifício eucarístico, assim colaborando com Jesus Cristo na salvação do mundo. (...) Faz parte da sua espiritualidade a devoção eucarística e ao Coração de Jesus.” Disponível
em http://www.ecclesia.pt/catolicopedia/. Acesso em 03/10/2010.
107
BOURDIEU, Pierre.Op. Cit., p.48
68
semana, ia qualquer um doente e ele tava em casa, ele recebia... de noite, de
tardinha, num tinha horário não, ele tano em casa... ele num negava.108
Na narrativa de Dona Janete Souza, Seu Martinho tinha uma rotina de orações diárias
e de atendimento aos devotos que buscavam suas práticas religiosas a qualquer momento do
dia, da noite ou da semana. O acesso a Seu Martinho era fácil e simples para qualquer doente
que o procurasse e a cura era realizada com orações e água. No seu sonho, Seu Martinho
afirma que ouviu uma voz lhe autorizando a realizar as curas utilizando a água. “É com água
que tu vais fazer a tua cura”, foi a frase que Seu Martinho diz ter ouvido após o seu sonho
revelador da missão e é justamente essa água com características salvíficas que os devotos
buscam em Riachão dos Milagres.
As práticas de cura proclamadas por Seu Martinho ganharam corpo se espalhando
como realização de milagres entre os devotos, pela crença na missão recebida de forma
extraordinária, a água como elemento curativo e por Seu Martinho seguir algumas condições
para levar adiante sua missão: celibato, jejuns, abstinência de carne e uso de roupas brancas.
Dessa forma, “os três componentes da cura primitiva encontravam-se presentes num ou
noutro momento: a fórmula encantatória, o medicamento e a condição especial do
praticante."109
Em sua história, Seu Martinho passou por algumas atividades profissionais antes de
dedicar-se totalmente a sua missão que podem ter ajudado a direcioná-lo as suas práticas
religiosas curativas. No “livro da vida Dom Macedo Costa 2006”, pertencente à Biblioteca
Municipal com pequenos relatos biográficos dos ilustres cidadãos macedences, encontramos
a seguinte descrição de Seu Martinho, comprovada pela fotocópia da figura 12, logo a seguir.
108
Entrevista com Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município de Santo Antonio de Jesus,
em 10/03/2010.
109
THOMAS, Keith. Religião e o declínio da magia: crenças populares na Inglaterra nos séculos XVI e XVII.
São Paulo: companhia das Letras. 1991. p.159.
69
Fotografia 12: Livro da vida Dom Macedo Costa 2006- Arquivo da Biblioteca Municipal. Fotografia de Wilma Souza
em 20/03/2010.
No texto da fotografia 12, podemos perceber que Seu Martinho se dedicou a
atividades ligadas a área da saúde nos municípios de Nazaré das Farinhas, de Santo Antonio
de Jesus indo muito além, quando serviu à Santa Casa de Misericórdia em São Paulo,
mencionada em seu relato. Talvez suas atividades profissionais na área da saúde tenham
influenciado para a realização de atividades religiosas voltadas para pessoas enfermas. Há
fortes indícios de probabilidade que Seu Martinho, mesmo tendo deixado de se vestir
exclusivamente com a cor branca, tenha preferido pousar para essa fotografia trajando roupas
brancas, indicando, assim, sua relação com a enfermagem e com sua missão religiosa.
Sabemos que numa sociedade onde a maioria das pessoas não tem formação
acadêmica ou até mesmo formação no ensino médio, dominar a leitura e a escrita pode
significar um poder muito grande diante das demais pessoas. Ao aparecer nessa fotografia
com um livro nas mãos, a representação de Seu Martinho pode sugerir a demonstração de sua
instrução escolar. Mesmo tendo concluído apenas o Ensino Fundamental I, “ele é um homem
que tem facilidade de comunicação (...) tem uma caligrafia muito bonita (...) Fez curso de
enfermagem, trabalhou no Hospital Maternidade em Nazaré da Farinhas”110. Desse modo, ele
110
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
70
se apresenta como portador de uma missão religiosa com certa escolaridade, denotando um
diferencial diante dos populares.
As devoções ao Anjo São Gabriel na comunidade do Riachão dos Milagres,
demonstram a fé que muitas pessoas têm no poder do extraordinário para curar as doenças
que, no caso das práticas mágico-curativas, estão associadas à expulsão de alguma presença
misteriosa no corpo do doente. Keith Thomas ao refletir sobre os enfeitiçadores e feiticeiros
na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, menciona que em algumas situações os
esconjuramentos de doenças “dependiam das qualidades especiais do curandeiro”. 111 Já
Ângela Nascimento, ao analisar os agentes de cura no povoado de Matinha dos Pretos-Ba,
observou nos depoimentos a indicação que as rezadeiras e benzedores, além de ter “em média
mais de 50 anos”, “tiveram no passado, contatos estreitos com outras rezadeiras”112,
demonstrando as condições especiais desses.
Para os fiéis, ao aspergir a água benta, Seu Martinho estaria expulsando ou
exorcizando a “presença estranha” do corpo daqueles que se apresentavam para ser curados.
Seu Martinho teria então “qualidades especiais” para realizar curas no imaginário dos
devotos: Recebeu uma missão através de um anjo já venerado entre os devotos, “ o
mensageiro fiel de Deus”113. Essa fé no poder do divino, “implica numa concepção de mundo
que nada tem a ver com a doutrinal, mas é o resultado de uma longa experiência coletiva”114.
É esse universo de curas vivenciado pelos populares que discutiremos no capítulo a seguir.
111
THOMAS, Keith. Op. Cit. p.159.
NASCIMENTO.Maria Angela Alves do. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos
Pretos-Ba: Eliminar, reduzir ou convalidar? (Doutorado em Enfermagem) Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto da USP.1997 P. 230.
113
Expressão apresentada na Ladainha dos Santos Anjos.
114
Nascimento, Maria ângela Sampaio. Op. Cit.,p247
112
71
CAPÍTULO 2
“TENHO TODA CERTEZA DE QUE FIQUEI BOA LÁ”: OS CASOS DE CURA
PROCLAMADOS NA IGREJA DO ANJO SÃO GABRIEL
O universo de curas vivenciado pelos devotos na comunidade do Riachão dos
Milagres, envolve fé, promessas, peregrinações e representações. Nessa perspectiva,
analisaremos nesse capítulo a procura pelas práticas de cura para diversas doenças,
envolvendo a crença em milagres proporcionados pela água e pelo dom curativo do
“Mensageiro do Anjo São Gabriel”. Discutiremos também os ex-votos, enquanto ato público
de fé e devoção desses fiéis, na realização dos referidos milagres.
2.1. As curas para as variadas doenças
Falar de religiosidade e de fé no Brasil é percorrer um terreno fértil, composto de
muita riqueza, cercado das mais diversas histórias presentes na memória das pessoas que as
expõe com veemência, mostrando além da sensibilidade as súplicas e necessidades cotidianas,
as vivências e reinvenções religiosas a cada geração. Qualquer espaço sagrado apresenta
particularidades merecedoras de uma análise apurada, enriquecendo cada vez mais o campo
da religiosidade contemporânea, em suas tradições, devoções, atos de fé e contrição, que
narram as crenças das pessoas dos mais variados lugares, mostrando “que as devoções
populares no Brasil, atravessam os séculos, crescendo e se reinventando”115
Na Igreja do Anjo Gabriel não poderia ser diferente. Está marcada por histórias de
curas para os mais variados males, narradas por pessoas oriundas de municípios diferentes a
Dom Macedo Costa-Ba e com histórias e vivências peculiares. Pessoas devotas de outros
santos e santas diversos, mas que nos momentos de necessidade recorreram às práticas de cura
proclamadas naquele espaço considerado sagrado por muitos, apresentando visivelmente
semelhanças com outros espaços sagrados, mas com particularidades diferenciáveis para
aqueles que fazem suas promessas e pedidos ao Anjo e recebem a graça desejada. Dentro
115
TORRES-LODOÑO, Fernando. Imaginária e devoções no catolicismo brasileiro. Notas de uma perquisa.
Revista Projeto História, nº 21. São Paulo: PUC- SP/Programa de Pós-Graduação em História, novembro de
2000. p.248
72
desse universo, as memórias das vivências de cura são relatadas com fervorosa certeza do
alcance da graça:
Aí eu tive uma perca e fiquei sentino uma dor dum lado e essa dor me
atrapaiô quase um méis, aí eu fui na casa de um curador que chamava Xavier
quando chegou lá, ele me revisto, me espio, disse que eu tava grávida eu
disse a le que não ele disse que tava , que eu podia vim pra casa comer
muito moio e come o que a natureza pedisse que eu tava grávida aí que uma
amiga minha disse não ela num ta grávida, ela ta doente, aí não num tem
nada de deonte só tem saúde daqui a nove méis nenê chora, aí eu vim me
embora . Quando chego em casa essa dor vai continuano aí chegou outra
amiga minha disse que ia me levar pra Salvador. Aí eu me apaguei com o
anjo São Gabrié, que o anjo São Gabrié me ajudasse que eu fosse lá e eu
num precisasse ir pra salvador que eu tinha muito prazer e alegria no meu
coração e ele me desse essa bença. Aí aqui formou a lotação nois foi.
Chegou lá le foi pro altar e tudo ele coloco a mão em minha cabeça e disse
quem tive doença pra rezá separado me acompanhe. Aí eu acompanhei ele lá
pra casa dele, quando chego lá que ele coloco a mão na dor ele oro, também
ele num me disse nada, só você vai ficar boa, quando cheguei em casa, com
treis dia eu botei um pedacinho de parto desse tamanhe. Aí ele disse você ta
com utroaframado e um pedaço do parto pegado. Você vai ficar boa. Com
treis dia eu botei e fiquei boa. Recebi a bênça aí eu fui lá no outro dia de
domingo, cheguei lá recebi bença de novo, ele me passo jejum eu fiz, sete
jejum, sete sexta-feira. Aí pronto fiquei boa até a data de hoje.(...) Tem
muitos anos isso, lá em 77, 78...116
Analisando o depoimento de Dona Maria Aurelina, percebemos que a procura pelos
saberes ligados às práticas de cura é corriqueira em sua vida. Para resolver seus males, ela
recorreu a um curador e como não obteve êxito, voltou-se para o Anjo São Gabriel e foi em
lotação à Riachão dos Milagres, buscar as práticas de cura proclamadas pelo seu mensageiro.
Por quais motivos Dona Aurelina não procurou um médico para resolver seu problema de
saúde? Por que se apegou ao Anjo São Gabriel para não ter que ir a Salvador se tratar?
Sabemos que no “Recôncavo da Bahia, diversas crenças, ritos, saberes ligados às práticas de
cura foram experimentados por pessoas pertencentes às variadas camadas sociais da
região.”117 A procura por práticas de cura faz parte do cotidiano de muitas pessoas no
Recôncavo, sendo disseminadas e utilizadas para cura de seus males. Não poderia ser
diferente para Dona Aurelina, que também era rezadeira, mas para alcançar a cura para os
próprios males recorreu ao Mensageiro do Anjo São Gabriel, e quando, no decorrer de sua
116
Depoimento de Dona Maria Aurelina, conhecida como Dona Geninha, aposentada, rezadeira.Entrevista
realizada na comunidade rural de Nossa Senhora Aparecida, Varzedo-Ba, em 10/03/2010.
117
SANTOS, Denilson Lessa dos. Op. Cit..p. 73
73
entrevista foi interrogada não tinha os mesmos poderes curativos que Seu Martinho
respondeu: “É deferente, eu num rezo que nem ele não e eu tem esse puder? Esse puder só
quem tem é ele mermo dado por Deus, né? Mas a gente mermo não.” 118
O imaginário popular acerca do sobrenatural, da relação de Deus, Anjos e Santos
com o ser humano é construído a partir das vivências e ressignificações religiosas das pessoas.
No depoimento de Dona Aurelina, percebemos como Seu Martinho é considerado por ela
como um intercessor poderoso entre ela e Deus, tanto que, ainda que ela fosse identificada
como uma rezadeira renomada na localidade onde reside, se deslocou em romaria para buscar
as práticas de cura em Riachão dos Milagres. Outro fator que merece análise é a sua promessa
ao Anjo São Gabriel para não precisar ir a Salvador buscar tratamento, o que implicaria em
demorado deslocamento a uma cidade com uma cartografia estranha, desconhecida,
distanciamento da família, tendo custos com transportes ou dependendo de favores políticos
na obtenção de uma ambulância, demonstrando assim as dificuldades que muitas pessoas
tinham no período mencionado em ter um atendimento médico, além do medo que essas
pessoas tinham de se submeter a um procedimento cirúrgico ou ainda a dificuldade financeira
para adquirir os medicamentos. Eram diversos obstáculos que impossibilitavam as pessoas,
seja por falta de recursos financeiros ou por uma forte religiosidade, a optarem pelos
procedimentos de curas com caráter mágico-religioso, através de orações, bênçãos e jejuns
como foi o caso de D. Maria Aurelina.
O hábito do jejum também merece destaque no depoimento de D. Maria Aurelina, a
qual sugere uma recompensa divina por sua realização. Assim, através dos sete jejuns
receitados por Seu Martinho, ela espera ter como recompensa a cura para sua enfermidade. Na
religiosidade cristã, o jejum aparece como uma atitude de forte devoção por parte dos cristãos
que o fazem, seguindo as histórias narradas nos Evangelhos. No imaginário cristão, ao jejuar,
o indivíduo assume suas culpas e pede redenção pelos seus pecados, numa espécie de
purificação.
Dentre os seguidores das práticas de cura proclamadas por Seu Martinho,
encontramos os que vão à igreja do Anjo São Gabriel com uma doença para ser tratada,
galgando uma cura, aqueles que vão às celebrações aos domingos, os que levam os familiares
para serem curados e aqueles que, por viverem em localidades próximas à Riachão dos
Milagres, observam atentamente as práticas de cura realizadas. Nesse universo de curas,
118
Entrevista com Dona Maria Aurelina. Depoimento citado.
74
observamos adeptos119que passaram por curas rápidas, concedidas em curto período, apenas
com a bênção e aspersão de água durante as celebrações aos domingos, aqueles que
precisaram ir vários domingos e fazer jejuns e ainda outros que ficaram por meses na casa dos
romeiros para um tratamento intensivo com bênçãos, aspersão de água e jejuns.
È diante dessa complexidade e contextualização que, desde 1967, muitas pessoas de
diversos municípios e do próprio município de D. Macedo Costa se apegaram às orações de
Seu Martinho e suas práticas de cura milagrosas. Apesar de algumas relutarem um pouco em
narrar os casos de cura experimentados por si ou por seus familiares, contarem de maneira
resumida, tímida, receosa, sem mostrar a riqueza de detalhes, podemos ousadamente analisar
nesses silêncios os motivos que levam as pessoas a colocarem em prática a sua fé, buscando,
através da demonstração da mesma, a solução mais viável para os seus males. D. Tereza nos
mostrou de maneira resumida, sobretudo rica ao tratar da cura concedida ao seu filho quando
ele tinha sete anos de idade:
Bom... eu soube porque o pessoal sempre comentava que ele fazia essa cura,
né ? Então meu menino tava com problema de hérnia, aí eu levei a ele com
as oração e o milagre que ele dava a ele, ele se curou. E até hoje ele não
sente mais nada e ele tinha realmente sete ano de idade nessa época, hoje ele
tem 30 ano e não sente nada sobre essa hérne.( ... )levou mais ou meno dois
méis pra ele dá a cura dele.Todo domingo eu levava ele.Lá ele recebia as
oração e tomava o milagre. (...) Nessa época médico era mais difíci, risos...
Aí ele se curou com ele... apesar que não foi ele, é o anjo Gabriel, né ? É ele,
é ele que dá cura. 120
Na narrativa de D. Tereza, observamos que ela começa pela autodefesa, quando
explica o porquê procurou as práticas de cura realizadas por Seu Martinho assegurando que
ela só foi por que outras pessoas comentaram que haviam obtido êxito, e também procede em
seu depoimento a dificuldade que teria se buscasse atendimento médico, já que ela se reportou
ao final da década de 1980. Acontece que na década de 1980, já havia ocorrido uma
ampliação de profissionais da medicina científica porém, muitas pessoas preferiam recorrer às
práticas de cura mágico-religiosas, principalmente, aquelas que tinham dificuldade de acesso
119
Nesse capítulo trabalhamos com os depoimentos de Dona Celina Francisca de Souza, Dona Maria Aurelina,
Dona Tereza Jesus dos Santos, Dona Estelita Santos Souza e Dona Janete Souza. Todas são devotas do Anjo São
Gabriel e adeptas das práticas religiosas realizadas em Riachão dos Milagres. As quatro primeiras buscaram as
práticas de cura proclamadas Por Seu Martinho. As duas últimas já residiram na casa de Seu Martinho, ajudando
nos afazeres domésticos e da igreja.
120
Depoimento de Dona Tereza Jesus dos Santos, 54 anos, agente de serviços gerais de uma creche. Entrevista
realizada no município de D. Macedo Costa. em 25.03.2010.
75
à cidade.121Essa defesa de D. Tereza demonstra o receio de sofrer algum tipo de preconceito
por não ter procurado a medicina tradicional para a resolução da doença de seu filho e sim ter
recorrido às práticas mágico-religiosas. A concessão da cura não foi imediata, D. Tereza
levou seu filho, ainda criança, alguns domingos para receber orações e o “milagre”, isto é, a
aspersão e a ingestão da água benta, e somente depois do período de um mês, é que a hérnia
veio a desaparecer. Mas quem será que diagnosticou uma hérnia no filho de D. Tereza? Se ela
afirma não tê-lo levado ao médico, devido às dificuldades, quem fez esse diagnóstico? No
início de seu depoimento, dona Tereza afirma que com as orações e com a água dada por seu
Martins ao seu filho houve de fato a cura de uma hérnia. No final de seu depoimento, ela diz
que quem curou o garoto foi o anjo Gabriel, utilizando uma frase interrogativa, mostrando a fé
depositada nas pessoas tidas como intercessoras entre os assuntos terrestres, em especial as
mazelas, e a solução celeste. Aqui, Seu Martinho aparece como um intermediário entre os
seres humanos e o anjo Gabriel na busca pela cura dos males do corpo e da alma.
Nesse trecho do depoimento de dona Tereza notamos que apesar dela tentar explicar
que foi a fé no anjo Gabriel que trouxe a cura para seu filho, existe uma confusão entre a fé no
anjo e na missão de Seu Martinho, este é sempre apontado como o próprio realizador do
milagre, indicando que no universo da religiosidade popular, algumas pessoas ainda não
sendo consideradas ou reconhecidas oficialmente pela Igreja católica são dimensionadas à
categoria de santas, mensageiras pela fé dos devotos. Nesse sentido as falas de D. Tereza e de
D. Aurelina se entrecruzam apontando Seu Martinho como diferente, sendo atribuído a ele
detenção de poderes religiosos distintos das outras pessoas.
Devido a um problema de saúde não solucionado através da medicina acadêmica,
Dona Estelita, 52 anos, residente em Dom Macedo Costa, auxiliar de serviços gerais também
recorreu às práticas curativas realizadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel, em Riachão
dos Milagres:
Eu fiquei 21 dia internada, aí todo dia... eu tomei 111 injeção só comprada e
que a casa dava, só se veno quanto era. Aí cheguei, depois saí do hospital
fiquei lá 15 dia aí melhorei fiquei boa (...) Me disseram que eu tava com
água na “peres”(pleura), aqui perto do coração, mas aí fez o exame e saiu
sangue vivo ele disse que não era , mas me deixaram 21 dias internada lá. Lá
em Seu Martinho eu levei 15 dias tava entre a vida e a morte, e aí depois eu
fiquei boa(... ) Fui curada só com água e reza dele. Ele rezava , ele me rezava
todo dia seis horas, eu fiquei lá na casa dele mesmo aí eu fiquei boa.(...) Eu
121
Ver: SANTOS, Denilson Lessa dos. Op. Cit. p. 170-178.
76
já ia lá, aí uma dia eu tava dormino e sonhei que ia adoecer e eia morrer, mas
eu não acreditei, aí eu fui pra fonte lavar uma roupa, aí eu cair com a bacia e
a bacia bateu aqui na costela eu pensei que tinha quebrado a costela eu
comecei ir pro médico, aí não foi nada disso, aí também meu esposo me
internou eu fiquei lá internada esses dia todo aí também quando saí pensei
que nem ia... aí eu desmaiava, aí também fiquei boa lá... tenho toda certeza
que fiquei boa lá, então tanto que hoje eu não esqueço, sempre vou lá porque
sei que foi lá que eu achei a bença.(...) foi há 21 ano atrás.122
A narrativa de D. Estelita está constituída de elementos que se entrecruzam com os
depoimentos das outras pessoas que recorreram às práticas de cura de Seu Martinho como
também traz elementos diferenciados. Dona Estelita consegue trazer uma maior riqueza de
detalhes no seu processo curativo. Ela não tem receio em afirmar que ainda hoje freqüenta a
igreja e que antes de buscar a sua cura já freqüentava a Igreja do Anjo Gabriel. Além disso,
dona Estelita vivenciou um período de 21 dias no hospital e não conseguindo êxito recorreu
aos cuidados de Seu Martins que a curou somente com reza e água, diferentemente do período
no hospital no qual se submeteu a um tratamento com 111 injeções, em sua maioria
comprada, tendo assim uma grande despesa.
Nesse sentido o Padre Nelson Franca, quando questionado, sobre o porquê da
procura e do êxito das práticas de cura proclamadas por Seu Martinho, respondeu:
E assim grosso modo, dia após dia, ele foi trazendo as pessoas para junto de
si e, volto a dizer sustentado naquela idéia antiga de que religião é freio, e
isso por um tempo consegue sustentar aqueles que fazem da religião o seu
instrumento de poder ou de catalisação das pessoas e tudo mais e a partir daí
o Martinho foi, é... deixando de ser um líder religioso que atraía para as
rezas para se tornar uma curandeiro que atraía para si pessoas é... marcadas
pelas mais variadas mazelas, pelas mais variadas dificuldades de ordem
física e psíquica sobretudo, então pessoas que desacreditavam do médico, da
medicina normal, não é? Não atendiam as orientações patológicas,
medicinais, não sei se a expressão é essa, porque na verdade elas queriam a
sua cura imediata, como médico nenhum cura de forma imediata, não é? A
ciência tem o período em que as drogas medicinais agem e tudo isso
conduzido também por um comportamento também diante da orientação
médica, já o curandeiro ele estabelece o seu tempo e esse tempo é sempre
muito rápido e por isso é uma forma também de segurar as pessoas. 123
122
Depoimento de Dona Estelita Santos Souza, 52 anos, auxiliar de serviços gerais. Entrevista realizada no
município de Dom Macedo Costa, em 24 de março de 2010.
123
Entrevista com o padre Nelson Franca.Depoimento citado.
77
No seu depoimento padre Nelson Franca desconsidera o dom curativo atribuído a
Seu Martinho em sua missão, numa tentativa de valorizar apenas as práticas religiosas
institucionalizadas pela Igreja. Para o padre, as pessoas recorrem a essas práticas de cura
devido a uma possível agilidade no processo curativo que na realidade ocorre devido ao
carisma de Seu Martinho, ao incentivo que ele dá às pessoas, que em sua maioria tem
problemas de ordem psíquica. De tal modo, diante da demora do tratamento medicinal
científico, preferem acreditar no poder do curandeiro, que além de oferecer tratamento rápido
ainda consegue manter essas pessoas adeptas e seguidoras de sua prática.
As palavras do padre Nelson Franca indicam que ele acredita nessa adesão por parte
dos devotos, a partir do poder de sedução e convencimento de Seu Martinho, aparentemente
maior que o do médico, sendo este último olhado com desconfiança aqueles que guiam suas
vidas pela concepção divina e não pela concepção racional, científica. Uma vez que “o que
faz o poder das palavras e das palavras de ordem ou a de subverter, é a crença na legitimidade
das palavras e daquele que as pronuncia (...)124, os devotos legitimaram a missão de Seu
Martinho como curativa, divina, devido a crença no dom concedido pelo anjo e que foi aos
poucos se espalhando com a narrativa do sonho revelador e dos milagres proclamados com a
intervenção de Seu Martinho.
Reportando-nos ao depoimento de D. Estelita, notamos que ela mantém o costume
de ir sempre à Igreja do Anjo Gabriel no intuito de agradecer à bênção recebida por ela na
sua cura, em apenas 15 dias. Ela afirma na entrevista que o seu caso de cura ocorreu há 21
anos e ainda nos dias de hoje ela continua fiel e com um posicionamento de agradecimento e
respeito à bênção recebida.
Diversos são assim os casos de curas apontados pelos depoentes como decorrentes
das práticas religiosas realizadas por Seu Martinho, que evidenciam a diversidade nas
manifestações da religiosidade do Recôncavo Sul da Bahia.
Outro caso de cura foi contado por Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos,
aposentada, residente na localidade rural de Nossa Senhora Aparecida, em Varzedo-Ba.
Apareceu uma doença no dedo grande do pé e aí foi aumentano essa dor e
agora não sangrava... só fazia doer, não inchava e não apresentava nada,
agora só que quando tocava qualquer coisa em cima doía e se tocasse uma
talisca de capim saía sangue. E eu sentia dor que chegá quase pra desmaiar e
depois meu sogro conversano com Adélia, uma tia dele, aí ela dizeno pra eu
124
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2000 p.15.
78
ir logo procurar o médico porque tinha uma que tava com o dedo assim,
amputô o dedo e depois foi obrigado a amputá a perna. Aí eu comecei a pedi
a Deus e a Bom Jesus da Lapa, que eu era muito devota de Bom Jesus da
Lapa e aí já conhecia o Anjo São Gabriel, já vinha rezano pra ele e aí eu
pedia todo dia que me desse a cura pra eu não carecer ir pra médico. Aí
quando foi um dia cumpade Martim, nesse tempo não era cumpade ainda eu
chamava de padim, aí ele apareceu aqui, aí eu já tava com esse pobrema no
dedo aí ele foi aparece, aí eu falei pra ele que tava com o dedo assim e que já
me encaminharo pra eu ir pro médico, mas eu não tinha ido ainda, aí ele
disse “ É você nunca fez unha, nunca pintô unha e paga o justo pelo
pecador” aí chegou rezô meu dedo disse que eu ia receber três bença, eu ir
domingo receber três bença e rezô o dedo e disse pra eu não comer coisa
remoza e botano milagre em cima. Aí eu fiz um pedido ao anjo São Gabriel
que eu ficasse boa do pé, eu ia no dia da festa do anjo, dia 30 de outubro, eu
ia... isso foi no mês de março, uma quaresma,aí no dia 30 de outubro eu ia de
pé descalço, ariar meu pé e ir descalça pra festa do anjo. Aí quando fui pra
festa do anjo já tava curada do dedo. Eu não sei se era um cânce, o que era
que tava no dedo, fiquei curada.125
Na narrativa de Dona Celina percebemos características marcantes da religiosidade
vivenciada por grande parte dos fiéis que, no Brasil especificamente, demonstram suas
devoções, fazendo promessas aos diversos santos para se livrarem dos males do cotidiano. O
fiel assume com seu santo preferido uma relação de troca, fazendo uma promessa, na qual se
oferece algo ao santo, caso seu pedido seja realizado. “Recebida cura ou a graça pedida, o fiel
se vê na obrigação de pagar o voto feito”126. Na cura descrita por Dona Celina, existe a
promessa feita por ela ao Anjo Gabriel para não haver a necessidade de um médico para a
cura de sua mazela, nesse caso o voto não foi um objeto a ser depositado como pagamento e
sim a realização de um ato público de fé, indo descalça agradecer a graça alcançada.
Segundo Pedro Oliveira, no catolicismo popular, existem duas formas de culto aos
santos e santas pelos devotos:
O modo contratual e o modo de aliança (...) O modo contratual é aquele pelo
qual o fiel pede uma graça ao santo, obrigando-se a um ato de culto pelo
qual o santo seja recompensado pela graça alcançada. Sua forma típica é a
promessa. (...) O outro modo de relação entre o fiel e o santo é o da aliança.
Contrariamente ao primeiro, o que está em jogo não é uma graça
determinada mas uma relação permanente de devoção e proteção. O fiel se
faz devoto do santo, esperando deste que ele seja seu protetor celeste, uma
espécie de padrinho no céu.127
125
Entrevista com Dona Celina Francisca de Souza.Depoimento citado.
AZZI. Riolando. O Catolicismo Popular no Brasil. Petrópolis : Vozes, 1978.p 84.
127
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de.Op. Cit.. p.117-118.
126
79
Observamos no depoimento de Dona Celina a prática dos dois modos de culto aos
santos analisados pelo autor. Ela vai fazendo as alianças com os santos de acordo com suas
necessidades, faz promessas, paga e continua fiel ao santo que ajudou a resolver seus
problemas. Outro ponto que merece destaque é a relação de apadrinhamento existente entre os
fiéis e Seu Martinho como uma espécie de intercessor entre o Anjo São Gabriel e o fiel. A
água benzida e utilizada por ele para a intervenção da cura o faz padrinho e protetor dos
devotos.
Dona Celina conta detalhes de seu processo curativo, mostrando como os santos são,
no imaginário popular, fortes intercessores entre os seres humanos e o sobrenatural, um elo
entre os primeiros e Deus, mas de uma forma mais aproximada dos humanos. Os santos, no
imaginário popular, respondem aos seus pedidos de forma mais ágil, como se os acolhessem
rapidamente e tivessem uma maior compaixão para com esses necessitados, a ponto de se
tornarem um protetor, uma espécie de padrinho. Além dos santos e anjos, ainda têm aqueles
que são considerados uma espécie de profeta capazes de agir aproximando ainda mais os
devotos de seus santos. Aqui, Dona Celina recorreu a seu Martins Góis para realizar esse
intermédio, rezando o seu dedo e o abençoando com a água tida como milagrosa. É
interessante que nas práticas religiosas de cura, se procure geralmente explicações para a
doença e, no caso narrado por Dona Celina, foi o próprio Seu Martinho quem deu essa
explicação, acusando a “vaidade” feminina ao fazer as unhas, bem própria de sua formação
tradicional religiosa baseada no Antigo Testamento da Bíblia.
Outro ponto marcante na narrativa de Dona Celina, que é comum aos outros casos de
cura mencionados nesse capítulo, é o medo de necessitar de ir ao médico devido às
dificuldades de locomoção a Salvador, de ter que deixar os filhos, o cônjuge, sem contar com
os gastos que são sempre apontados nessas memórias. Ir ao médico, necessitar da medicina
acadêmica, representada pela figura humana, muitas vezes, gerava desconfiança entre as
pessoas que estavam à mercê desse serviço.
Submeter-se aos serviços médicos, significava depender exclusivamente do
conhecimento científico, acadêmico, o quê, muitas vezes, deixava os populares inseguros,
instáveis. No Rio de Janeiro imperial, as discussões dos médicos relatadas nos jornais
indicavam “o reconhecimento de que cometiam muitos erros e imprecisões” 128, espalhando
insegurança dentre os pacientes. Aqui na Bahia, em meados do século XIX, uma epidemia de
cólera teria espalhado pânico na população, que passou também a demonstrar “medo dos
128
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, CECULT,IFCH, 2001. P.33
80
médicos e dos hospitais”, associando-os a idéia de morte.129 Isso porque “as instalações e as
condições de higiene dos hospitais de Salvador eram bastante criticadas pelos médicos da
época”130 Desse modo, mesmo com “melhoramento nos serviços hospitalares, criação de
serviços de educação sanitária, clínicas e casas de saúde particulares” em Santo Antonio de
Jesus no final da década de 1970
131
, sendo que atendia de modo extensivo aos municípios
da região, a procura por práticas curativas mágico-religiosas ainda se constituía como um
hábito de parte da população que preferia seguir suas devoções religiosas, confiando seus
problemas ao poder dos anjos e santos.
Muitos casos de cura foram veiculados na comunidade através de alguns livretos,
encomendados por Seu Martinho. Alguns devotos, ao visitarem a Igreja do Anjo São Gabriel,
levavam consigo essas notícias de curas relatadas nos livretos:
[...]Maria Vita dos Santos, residente no Amparo do Tororó , nº 21 S,
Salvador recebeu uma graça do Anjo São Gabriel que sentia lepra há 4 anos
de sofrimento que até deu bicho de mosca nos pés.
Maria Sônia Mota Miranda, residente em Mercantia, Nazaré das Farinhas
recebeu uma graça do Anjo São Gabriel em seus males que sentia aleijada,
seus ombros pegados sobre seu rosto, desenganada dos médicos de Salvador,
Nazaré das Farinhas, Santo Antonio de Jesus, está hoje forte gozando de boa
saúde.[...]132
Os casos de cura contidos nos livretos informavam a doença curada, o doente e a
localidade de onde esse se dirigia em busca da graça. Percebemos a ênfase dada ao estágio em
que se encontrava a doença e ao período de tempo em que paciente estava acometido pelo
mal, antes do recebimento da cura. Notamos também o destaque para os endereços dos
pacientes curados, indicando a presença de devotos advindos de municípios diversos, não se
resumindo à procura apenas dentre os moradores da comunidade. A indicação dos endereços
nos livretos sugere ainda um meio de demonstrar veracidade aos relatos de cura, sendo que,
quem duvidasse poderia verificar pessoalmente. O caso de cura de Maria Sônia, relatado no
livreto, aponta para o fato dos médicos de três municípios não terem encontrado soluções
129
DAVID, Onildo Reis. Op. Cit., p.67.
Ibid.,p 68.
131
SANTOS,Denilson Lessa dos. Op. Cit. p. 81.
132
Casos de cura contidos no livreto “ Os Milagres do Anjo São Gabriel”, produzido sob orientação de Seu
Martinho, possivelmente na década de 1990.
130
81
para a doença, intensificando a ideia de milagre, acontecimento extraordinário, contrariando
os pareceres da medicina.
Ressignificando o uso institucional dos folhetos religiosos pela Igreja Católica até os
anos de 1950, “ para veiculação de princípios religiosos através de orações quotidianas, rezas
benditos e ladainha para todos os santos, orientação de novenas, instrução para realização de
missas e várias outras cerimônias religiosas”133, Seu Martinho passou a utilizar-se dos livretos
como meio de comunicação, através dos quais divulgava sua história de vida, marcada por
renúncias para o exercício de sua missão religiosa. Ademais, também divulgava os “milagres
do Anjo São Gabriel”, intercedidos por ele, o Mensageiro do Anjo. É importante salientar
que a diversidade de informações presentes nos livretos também é algo destacado noutros
casos, a exemplo dos estudos realizados sobre os folhetos religiosos no Nordeste por Gilmário
Brito, o qual assevera que “esses folhetos religiosos primam pela quantidade de informações,
quase todos apresentam, mais de uma mensagem religiosa”134. Destarte, no universo
composto pela crença em curas milagrosas, os livretos narrando essas histórias desempenham
importante papel para divulgação das curas
Além da história de Seu Martinho e dos casos de cura, foi produzida também uma
versão do livreto no ano de 2000 com uma mensagem narrada em versos:
No Riachão dos Milagres/ o povo canta em louvor
Pelos 33 anos/que a missão na terra chegou .
Com a paz e a esperança/o amor de Deus a brilhar tem o
Mensageiro Martins/ para o povo curar.
Curar o que é dizer/ que remédio ele não dá
Só um pouco de água benta/ para o povo se aliviar.
Jesus quando andou no mundo
Ensinou para todos/ o caminho verdadeiro do cristão
Assim é o mensageiro Martins/ cuidando da sua missão.
(...)
O anjo São Gabriel desceu do céu
Trazendo a nova mensagem/e na terra do Riachão
Apareceu o seu milagres.135
133
BRITO,Gilmário Moreira. Op. Cit. P.37
Ibid. P.84
135
Mensagem contida no livreto “Os Milagres do Anjo São Gabriel” produzido no ano 2000, para a festa dos 33
anos de missão de Seu Martinho.
134
82
Ao analisarmos a mensagem do livreto, observamos uma série de elementos que
asseguram para os devotos a religiosidade presente no exercício de sua missão enquanto
mensageiro do anjo. O verso “o povo canta em louvor” sugere que a missão foi aceita e
seguida pelos devotos que se dirigem à comunidade, entoando cantos em agradecimento. Nas
palavras do poeta anônimo, a missão desempenhada por Seu Martinho traz a “paz, esperança
e o amor de Deus a brilhar” ao usar “um pouco de água benta” e curar os males do povo. A
cura para os devotos não ocorreria com o auxílio da medicina, “que remédio ele não dá”,
demonstrando um campo de forças entre as práticas mágico-curativas e a medicina oficial.
Os versos contidos na mensagem aproximam ainda, Seu Martinho de Jesus Cristo,
reconhecendo “em Jesus a possibilidade de ser ao mesmo tempo: “Deus e Homem”, alguém
que tendo experimentado a vida na terra é capaz de compreender as dúvidas e incertezas às
quais estão submetidos os seres humanos”136. Assim Jesus em sua condição divina e humana
teria ensinado aqui na terra “o caminho verdadeiro do cristão” ressaltando “seu papel de
mediador junto ao Deus Pai.”137 E, Seu Martinho, ao “cuidar” de sua missão, cumpriria o
papel de mediador entre os devotos e o Anjo São Gabriel, seguindo normas comportamentais
e renunciando aos caminhos do pecado.
2.2 O “milagre” que traz a cura
Na tradição cristã, a água além de simbolizar a vida, simboliza também a purificação
do corpo e da alma, regenerando o homem dos seus pecados, tratando portanto de suas
mazelas se apresentando como sagrada diante dos olhos e do imaginário cristão. A simbologia
da água que cura e santifica encontra-se enraizada na religiosidade cristã e esse contato com a
água sugere sempre uma regeneração, um renascimento, multiplicando o potencial da vida.
“Em qualquer conjunto religioso em que as encontremos, as águas (...) lavam os pecados,
purificam e ao mesmo tempo regeneram.”138
Presente nas memórias das pessoas que buscam curas com a intercessão do
Mensageiro do Anjo São Gabriel, a água aparece como elemento condutor nessa incessante
136
BRITO,Gilmário Moreira.Op. Cit. P.92
Ibid.
138
ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.p.107.
137
83
busca por milagres que circundam o imaginário das pessoas. Em todas as narrativas, o milagre
da cura ocorre devido à ação da água santificada e despejada ou aspergida no doente que
galga a cura.
Os casos de cura referentes à ação de Seu Martinho envolvem não somente as
pessoas que o procuraram e dão seu testemunho, como também os devotos, que mesmo não
galgando curas para si acompanharam as inúmeras histórias de fé, promessas e milagres
ocorridas ali envolvendo muitas outras pessoas, presenciando ou acompanhando esses
acontecimentos que marcaram fortemente suas memórias.
Dona Janete Souza, morou na casa de Seu Martinho durante nove anos, prestando
serviços domésticos, cuidando da Igreja do Anjo São Gabriel e recebendo os romeiros que
chegavam. Deste modo, mesmo quando Seu Martinho não estava, ela recebia as pessoas que
o procuravam. Nesse período presenciou muitas histórias de devotos em busca das práticas de
cura. Em seus relatos ela conta um pouco do cotidiano vivenciado na comunidade e narra que
a procura pelas práticas curativas em Riachão dos Milagres era muito grande, trazendo
pessoas de vários municípios, todos os dias : “Chegava muita gente, todo domingo meio de
semana, chegava gente (... ) qualquer dia, qualquer hora, ele nunca se negava (..) vi muitas
pessoas ficar boa lá, tanto faz home como mulé (...) vinha gente de todo canto...”139
Dentre os muitos casos contados por Dona Janete, um, o caso da mulher com
problemas psicológicos, foi narrado mais detalhadamente, trazendo peculiaridades que
também envolveu sua ação enquanto guardiã da Igreja do Anjo São Gabriel, Dona Janete
narrou que numa noite, por volta das onze horas, oito homens levaram à igreja uma mulher
amarrada, que “tinha ganhado neném, quebrou o resguardo e ficou maluca”140, para ser curada
com o intermédio da água benzida por Seu Martinho. Este não se encontrava em casa e os
homens pediram para Dona Janete abrir a igreja e dá um pouco de água benta para a mulher.
Atendendo ao pedido dos homens, Dona Janete os levou até a igreja e,
[...] Quando chegô lá na igreja eu mandei eles entrar, eles entraro, aí sentaro
lá na igreja, a mulé tava amarrada os braço pra trás, aí eu peguei o milagre
dei a ela, mandei ela abri a boca , ela abriu, tomou o milagre, molhei a
cabeça dela, depois ela melhorou um pouquinho, conheci que ela tinha
melhorado dei mais milagre pra ela tomar traveiz de novo.141
139
Entrevista com Dona Janete Souza. Depoimento citado.
Idem.
141
Idem. Ibid.
140
84
Narrou-nos ainda Dona Janete, que após o recebimento do “milagre”, e recobrando
um pouco a memória, a mulher avaliou negativamente as próprias vestimentas que estavam
mostrando o colo e ao perceberem colocaram uma presilha para cobrir o decote. Após alguns
instantes, desataram os braços da mulher e essa ajoelhou-se junto ao altar para rezar e,
Uma hora da madrugada eles foram embora. Aí a mãe dela chamava Maria
Elza e o nome dela era Antonia e foi oito homem levano ela, aí foram
andano pra casa num precisou mais amarrar ela nem nada. Aí chego em casa
ela dormiu ficou, no outro dia foi um dia de sexta-feira, de tarde Martinho
chegou de Salvador,ela foi se rezá, lá ele rezou, mas já tava boa, aí no dia de
domingo ela tornou ir, já foi levou o nenê, foi com um bocado de vizinha
tudo pra igreja, recebeu a benção e ficou boa, até hoje tá boa.142
Esse caso narrado por Dona Janete exemplifica os muitos outros casos recorrentes
nesse espaço considerado sagrado. Muitas pessoas com doenças de cunho psíquico ou
psicológico, levadas por seus familiares, recorrem às práticas curativas mágico-religiosas com
frequência, uma vez que a resolução vem com mais agilidade e sem as despesas e transtornos
dos longos tratamentos que a ciência oferece. O sinal de que a cura foi alcançada com a
aspersão da água benta é muito forte nas memórias de Dona Janete descrevendo
minuciosamente que a mulher chegou amarrada com os braços para trás e segura por oito
homens, indicando uma situação fora do comum. Esse caso de cura nos reporta à crença dos
populares nos detalhes do sonho de Seu Martinho que o autorizava a curar, dentre outros “os
que viessem amarrados na corrente”143.
A narrativa de Dona Janete indica um detalhe importante: apesar de a mulher ter
apresentado melhoras quanto a sua enfermidade, com a utilização da água benzida por Seu
Martinho na igreja, ela retornou para que ele a rezasse. O contato com o Mensageiro do Anjo
São Gabriel tem relevância para os que ali buscam curas. Nas memórias de Dona Janete,
mesmo ela já estando “boa”, ele a rezou. Nas rezas proferidas por Seu Martinho ele não
utiliza ramos ou folhas, apenas impõe ou toca as mãos sob o local enfermo, fazendo orações e
derramando a água por ele benzida. No imaginário popular, as rezas seguidas de toques têm
lugar especial. Esta crença no toque, aliás, é algo que se fez presente em outras sociedades
como, por exemplo, na França e na Inglaterra antigas onde os súditos e os reis acreditavam
que “pelo simples contato com suas mãos, realizado segundo os ritos tradicionais, pretendiam
142
143
Idem. Ibid.
Sonho de Seu Martinho citado no subítem 3 do primeiro capítulo.
85
curar os escrofulosos”144, havendo assim a crença na santidade e poder curativo dos reis, os
quais eram procurados pelos devotos que os tocavam e fazia sobre eles o sinal da cruz para a
cura da tuberculose. 145
Essa fé no toque advinda de pessoas consideradas com poder divino, na cura de
doenças, está presente também entre os fiéis do Mensageiro do Anjo São Gabriel, que, além
de buscarem a aspersão da água benta na igreja, solicitam rezas sobre as enfermidades, como
se o toque e a oração proclamada diretamente no local a ser curado, proporcionassem
resultados imediatos.
Ao analisarmos outras histórias, percebemos características parecidas mesmo
partindo de espaços com vivências diferenciadas. As curas proclamadas por Pedro Batista em
Santa Brígida146 apresentam algumas convergências com as narradas sobre Riachão dos
Milagres. Dentre elas, está a quantidade de pessoas com problemas de ordem psíquica,
psicológica ou neurológica à procura de cura, que chegavam amarradas e ao utilizar a água
curada se controlavam e voltavam à normalidade.
Outra semelhança que chama atenção nos dois casos é a fé no milagre que a água
representa para os fiéis. Na narrativa de Dona Janete, a enferma que chegou amarrada e
contida por oito homens não precisou da presença de Seu Martinho para receber sua cura. A
própria Dona Janete, que era responsável pela Igreja onde ficava a água milagrosa, pode dar
essa água para a mulher enferma que se acalmou e pode ser desamarrada, chegando até a
rezar. Nos casos mencionados em Santa Brígida, os romeiros respeitavam muito o poder da
água: “a água curada (..) poderia ser ingerida ou colocada em qualquer parte do corpo com
aparente enfermidade. Era um produto desejado pelos romeiros e que nunca faltava em suas
casas”147
Na igreja do Anjo São Gabriel, a água utilizada por Seu Martinho para realizar as
curas é chamada pelos devotos de “milagre” que, dependendo do caso é ingerida, derramada
no local a ser curado ou aspergida na hora da bênção na igreja aos domingos, durante as
celebrações. Dezenas de garrafas e vasilhames de água são benzidos todos os domingos e os
fiéis levam o “milagre” para suas casas, a fim de remediar as moléstias e infortúnios do dia a
dia.
144
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo:
Companhia das Letras. 1993. p.52.
145
Ver BLOCH, Marc. Op. Cit.. p.53.
146
GONZALEZ, Olegário Miguez. Bem aventurança em Santa Brígida: uma comunidade sob orientação de
Pedro Batista. Dissertação de Mestrado de História da UFBA. Salvador: 2004. Santa Brígida é um município do
Estado da Bahia, localizado no Nordeste baiano a 400 km de Salvador.
147
Ibid. p. 61-62
86
Fotografia 13: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel. Fotografia de Wilma Souza em 06/09/2009.
Fotografia 14: Altar da Igreja do Anjo São Gabriel. Fotografia de Wilma Souza em 30/10/2009.
87
As fotografias acima mostram os vasilhames de água postos para uma possível
bênção. A fotografia 13 foi realizada num domingo de celebração, na qual ocorreu
catequização das pessoas que ali freqüentam e no final recebem uma bênção com a água. Os
vasilhames com água também são benzidos por Seu Martinho no final das celebrações, aos
domingos.
Segundo Pedro Oliveira “A benzeção é um conjunto de representações e práticas
rituais que tem por fim produzir curas”148. De tal modo, é por esta crença na produção de
curas a partir da benzeção que registramos como é intensa a crença de que a água benzida por
Seu Martinho é milagrosa capaz de curar as mais variadas doenças, tanto que é grande a
quantidade de vasilhames expostos para benzeção.
Após a celebração, os devotos entram numa fila para receber o milagre, que é
despejado na boca por três vezes e por fim derramado na cabeça. Só podem se posicionar na
fila para receber essa água, as mulheres adequadamente vestidas com saias, blusas de manga,
sem maquiagem e sem adereços ou enfeites. Os homens também devem estar trajando calça e
camisa. Percebemos que a quantidade de vasilhames postos para essa celebração de domingo
é muito pequena devido à quantidade de devotos que vai
nos domingos de celebrações
comuns. Os vasilhames que lá estavam postos pertenciam a uma família residente em JequiéBa, que se deslocou para o Riachão dos Milagres a fim de obter curas através da água na
Igreja do Anjo São Gabriel.
As vestimentas que devem ser utilizadas pelas mulheres, exigidas por Seu Martinho
ao entrar na igreja e receber a bênção com a água, geram discussões entre os devotos e as
autoridades da Igreja da paróquia, pois algumas mulheres se sentem obrigadas a usar as
vestimentas que não são comuns em seu cotidiano, apenas para freqüentar a Igreja do Anjo
São Gabriel. Outras devotas assumem definitivamente as vestimentas impostas por Seu
Martinho, após ter alcançado a cura, como é o caso de Dona Estelita:
Eu já vestia assim saia e não gosto de roupa sem manga, eu não gosto de
nada assim .... sei lá. Aí sempre o povo fica me perguntano: por que você
veste a roupa assim? Porque eu gosto...É porque eu mermo gosto... e eu
achei assim que fiquei boa lá... eu também não gosto de andar com uma
roupa assim... eu também não gosto.149
148
149
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Op. Cit.p.121.
Entrevista com Dona Estelita Santos Souza.Depoimento citado.
88
Apesar de afirmar insistentemente que usa suas vestimentas por opção própria, na
narrativa de Dona Estelita transparece que sua opção é devido à cura alcançada na Igreja do
Anjo São Gabriel. Ela demonstra a insegurança e o medo de ter sua graça desfeita caso deixe
de seguir as normas de vestimentas impostas por Seu Martinho e indica no seu depoimento
que se veste de forma diferente, usando o tempo todo a expressão “roupa assim”, mostrando
a indignação das pessoas ao vê-la com as vestimentas que costuma usar.
Algumas atitudes de Seu Martinho foram observadas pelo padre Edésio Ribeiro,
atual pároco da Igreja do São Benedito, à qual a Igreja do Anjo São Gabriel está agregada.
Com relação à exigência de vestimentas para as mulheres imposta por ele, o padre Edésio
comenta:
Lembro com tristeza que ano passado, na época das missões, mandamos uma
equipe de missionários para lá, foram duas mulheres e as duas foram
expulsas por ele, exatamente ao chegarem, rejeitadas, né? Inclusive, com...
segundo foi relatado por essas pessoas e por mais uma testemunha do local,
inclusive com um certo ar de agressividade, que ali na igreja dele não
entrava mulher de calça, não entrava mulher para pregar o evangelho. Que
ali não entrava mulher de calça porque isso é coisa do satanás. Então, uma
concepção bastante arcaica, moralista (..)150
A narrativa do pároco da Igreja do São Benedito indica que as concepções e regras
seguidas e impostas por Seu Martinho são consideradas atrasadas, arcaicas e que, algumas
pessoas, inclusive da própria comunidade, não aceitam essas concepções, relatando com
indignação as atitudes de Seu Martinho na comunidade do Riachão dos Milagres. Em
contrapartida, este último assume veementemente que está seguindo a palavra de Deus e cita
textos bíblicos para respaldar seus argumentos:
Se tiver de roupa decotada, de calça, de short, nunca dei, nem darei (...) Eu
tenho que respeitar as palavras de Deus. Em Isaías 47, capítulo 8 a 12 a
palavra de Deus diz assim: filha de Barbilônia, tu pega o moinho, tu vai
moer a farinha. Tu atrevessastes o rio, botando tuas coxas de fora, perdendo
a tua inudez, tu num é digna do meu reino,vai para as trevas. Isso é a palavra
de Deus. Encontrei ela já prantada, jamais eu posso transpassar, dar a
comunhão a uma mulher de short e de calça, não dou. Quarenta e dois anos
de missão, nunca levei um pouco de água benta na boca de uma mulher e de
uma moça, de calça nem de short, de batom, tu é doido? Tá de batom, tá de
brincos, tá de....não!(...) Jesus almadiçoou a moda, a samaritana perguntou a
150
Depoimento do Padre Edésio Ribeiro, pároco da Igreja Matriz do São Benedito. Entrevista realizada no
município de Santo Antonio de Jesus, em 26/02/2010
89
Ele: Senhor quem entrará no santuário pra te louvar?Ele respondeu para ela
quem tiver com as mãos limpa, coração puro, quem não fosse vai-do-so pra
saber amar a Ele(...)151
Seu Martinho faz uma releitura do capítulo 47, do livro de Isaías na Bíblia Sagrada
para reforçar suas concepções de que a mulher não pode ser vaidosa, se apegando a moda. Ele
faz sua própria interpretação dos textos bíblicos, afirmando que as mulheres ao se
apresentarem com vestes impróprias aos seus olhos, não são dignas do “reino de Deus”. A
“vaidade” é apontada por ele como a pior prática do ser humano, condenatória, irremediável,
amaldiçoada pelo próprio Jesus, a quem ele não pode contrariar ou negar. E essa vaidade que
é dita pausadamente e com intensidade na narrativa de Seu Martinho se caracteriza quando as
mulheres usam calças, shorts, blusas decotadas, maquiagem e enfeites, como brincos,
pulseiras, colares. Diante de uma releitura própria que Seu Martinho fez dos textos bíblicos,
como iria aceitar as missionárias enviadas pelo padre Edésio, trajando calças? Seu Martinho
afirmou que em 42 anos de missão nunca deu comunhão ou água benta a mulher de calça ou
short, como deixaria missionárias usando calça evangelizar na sua igreja? Expulsar as
missionárias, possivelmente, foi a forma que Seu Martinho encontrou para resistir às
intervenções da Igreja Católica de tentar mudar suas orientações quanto ao comportamento
naquele espaço religioso e no cotidiano de seus seguidores.
A releitura que Seu Martinho faz dos textos bíblicos nos remonta às memórias de
Seu Camilo em Pau de Colher152, ou onde segundo Gilmário Brito “sua atitude religiosa fez
com que trabalhasse suas experiências e memórias no sentido de explicar e expor suas
opiniões sobre o mundo e as relações que vivia, com base em referências bíblicas.”
153
Do
mesmo modo, Seu Martinho ressignificou e adaptou os textos bíblicos à realidade em que
vivia, as suas concepções de mundo e para os padrões que desejava para a comunidade do
Riachão dos Milagres e seus devotos.
Reportando-nos à fotografia 14, observamos o dia da festa do Anjo São Gabriel, 30 de
outubro de 2010, na qual se comemorou os 43 anos de missão de Seu Martinho enquanto
Mensageiro do Anjo. No festejo religioso, foi celebrada uma missa pelo padre responsável
pela paróquia e Seu Martinho relembrou os seus 43 anos de missão com uma encenação, no
início da celebração, entoando as seguintes canções religiosas:
151
Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado.
Ver o primeiro subitem do capítulo 03: A incorporação da Bíblia em Pau de Colher. In: BRITO, Gilmário
Moreira. Pau de Colher na letra e na voz. São Paulo: EDUC, 1999.
153
Ibid..p.200.
152
90
I
Eu ia pelo caminho
Encontrei Jesus,
Ele me chamou
Pra carregar a cruz
Eu respondi,
Meu senhor já vou
No caminho de Jesus
Eu também estou
II
Javé é meu amigo
Ele é meu pai
É meu irmão
Porque me deu essa missão.
Obrigado pai Javé
Por ter me dado essa missão
Fortalecei a minha fé
Pra eu não cair em tentação
As duas canções são bastante conhecidas na comunidade e são entoadas sempre para
simbolizar a missão recebida por Seu Martinho, em 1967. Na primeira, utilizou elementos
para descrever a missão recebida por ele, a cruz representa a missão, já que ele abdicou de sua
vida particular em função de seu dom de cura. A segunda canção foi composta por um fiel
devoto, morador da comunidade, Seu Raimundo, e também é entoada sempre na comunidade
para reforçar a ideia do elo entre Deus e Seu Martinho e do sacrifício que ele faz devido a sua
missão, com pedidos de agradecimento e ao mesmo tempo de súplica “fortalecendo a fé” para
não abandoná-la, “caindo em tentação”.
Para Seu Martinho e os devotos, a missão dele está condicionada à renúncia de
práticas e hábitos, como não se casar, não comer carne vermelha e sal. Seriam as “tentações”
apontadas na canção que a comunidade entoa todos os domingos nas celebrações. Apesar de
não exercer um sacerdócio instituído pela Igreja, a manutenção da castidade foi uma das
condições impostas pelo anjo para levar adiante sua missão, cabe salientar que a referida
conduta também estabelecida pela Igreja Católica é “qualificada como uma ação do homem
que se abstendo de relações sexuais poderá tornar-se imaculado”154. Destarte, para Seu
Martinho e seus devotos a castidade representava a pureza necessária para servir ao anjo
como mensageiro.
154
BRITO,Gilmário Moreira. Op. Cit.2009. p.93
91
As canções tendem a sugerir aos devotos uma mistura entre os textos do Antigo e do
Novo Testamento da Bíblia. Ao mesmo tempo em que Seu Martinho é um seguidor dos textos
do Antigo Testamento, obediente a Javé, representando um Deus vingativo, severo, que cobra
criteriosamente o cumprimento das obrigações em troca do alcance de graças, Seu Martinho o
coloca também como seu irmão, fazendo uma possível alusão a Jesus Cristo, o qual representa
um Deus amor, capaz de perdoar até no último segundo antes da morte. Dessa forma, ele tenta
passar para os fiéis uma representação que mescla as características e atitudes das duas
representações de Deus na religião cristã-católica: o “Deus severo”, que exige obediência e o
“Deus amor”, que catequiza os seguidores e é misericordioso. “ No catolicismo popular Jesus
é o protótipo dos santos: bom e justo, ele sofre sem ter pecado, e por esse sofrimento ganha a
misericórdia divina para com os homens.”155 Neste sentido, as canções ajudam a projetar uma
imagem de Seu Martinho misericordioso, obediente às leis, severo e exigente para com os
devotos.
Retomando a discussão referente à fotografia 12, é visível a quantidade e variedade
de vasilhames de água postos no altar para o recebimento da bênção. É grande a diferença na
quantidade de vasilhames entre a fotografia 13 e a fotografia 14, considerando que na segunda
é um dia festivo, no qual pessoas de municípios variados marcaram presença para pagar suas
promessas do recebimento de curas atuais ou de tempos passados e também levar para casa
um pouco do “milagre” para os momentos de emergência em suas vivências cotidianas. É
notório também que os vasilhames encontram-se sem tampas, um símbolo de que para os
devotos a bênção vai adentrar o vasilhame e penetrar na água. Representando dessa forma, o
simbolismo aquático mencionado por Mircea Eliade, em que:
[...] Toda água natural adquire logo, pela antiga prerrogativa com a qual ela
foi honrada na sua origem, a virtude da santificação no sacramento, quando
Deus é invocado para tanto. Assim que as palavras são pronunciadas, o
Espírito Santo, que desceu dos céus, para sobre as águas santificando-as por
sua fecundidade; as águas assim santificadas impregnam-se por sua vez da
virtude santificante...156
É perceptível também na fotografia 14 e nos chama a atenção, os diferentes
tamanhos dos vasilhames de água para o recebimento da bênção. Possivelmente, aquelas
155
156
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Op. Cit. p..120.
ELIADE,Mircea.Op. Cit. 2002. p. 153.
92
pessoas que moram em municípios distantes como Jequié, Varzedo, Taperoá, Valença, Nilo
Peçanha, que só vão à igreja por ocasião da festa, levam vasilhames maiores para que tenham
por mais tempo o “milagre” ao seu alcance e para distribuir entre amigos e familiares que,
ausentes à festa, são depois presenteados com a água santificada.
O dia da festa é freqüentado por devotos de municípios das microrregiões de Santo
Antonio de Jesus, Valença e Jequié e muitas vezes são romeiros assíduos por tradição ou
devoção, entretanto, não possuem vínculo efetivo na Igreja Católica da localidade onde
residem. Um forte indício deste comportamento está presente nos questionamentos do padre
Antenor que presidiu a festa, o qual além de perguntar a localidade oriunda de cada grupo que
ali estava presente, indagou insistentemente sobre a participação desses enquanto missionários
em suas respectivas comunidades, deixando claro a preocupação da Igreja com os devotos de
ocasião, os seja, aqueles freqüentadores dos santuários, porém, sem um vínculo de
participação assídua na igreja de sua comunidade.
2.3. Ato público de fé e devoção
A veneração e o culto aos santos são preservados em vários lugares no Brasil. As
devoções aos santos e anjos, esses intercessores do cotidiano, ocorrem das mais variadas
maneiras dentre estas se manifesta através dos ex-votos, objetos visuais cujo propósito de
produção é o de agradecimento por uma graça alcançada. Para Maria da Graça Góes:
A designação ex-voto se aplica a um quadro, pintura ou objeto, placa com
inscrições, figura esculpida em madeira ou cera a que se conferiu uma
intenção votiva. O voto é a promessa, o ato anterior à graça, que uma vez
alcançada, é cumprida através da gratidão do prometido na oferta do exvoto.157
157
GÓES, Maria da Graça Coutinho. Ex-votos, promessas e milagres: um estudo sobre a Igreja Nossa Senhora
da Penha. Dissertação de Mestrado do programa de pós graduação em história, políticas públicas e bens
culturais.Fundação Getúlio Vargas. 2009. p. 37.
93
A utilização de ex-votos no cumprimento de promessas existe desde a antiguidade, se
realizando em espaços sagrados e salas de milagres até os dias atuais. Considerando o ex-voto
uma imagem entre as muitas relacionadas às formas de devoção, ela é capaz de transmitir
múltiplas informações que devem ser analisadas dentro do contexto social às quais elas se
remetem. Para o historiador, a análise dos ex-votos apresenta dificuldades principalmente no
tocante ao não-dito, uma vez que os ex-votos expostos nas Salas de Promessas deixam
silêncios que dão margem a múltiplas interpretações. Como afirma Michel Vovelle: “O exvoto é um documento portador de uma mensagem codificada, desenhada e pintada,
transmitida por pessoas que em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para
testemunhar suas crenças, receios e esperanças.”158
Dessa forma, o estudo sobre ex-votos aponta diversos direcionamentos, na medida
em que se apresentam de maneira variável e enigmática. Trata-se de uma pesquisa exigente,
como afirmou Vovelle “pois aborda o mundo do silêncio, das fontes indiretas, dos
documentos subtraídos ou oblíquos” 159
A multiplicidade de ex-votos dispostos pelas salas de promessas das igrejas em todo
país mostra a presença de fé das pessoas, seus anseios, histórias de vida. Eles aparecem como
representações do corpo humano em cera, fotografias, objetos de uso cotidiano, bilhetes,
cartas, roupas, adereços, etc. São testemunhos do elo entre o humano e o sagrado e remetem
às memórias coletivas.
Como ocorre nos diversos santuários brasileiros, na Sala de Promessas da Igreja do
Anjo São Gabriel em Riachão dos Milagres, os fiéis utilizam diferentes ex-votos para
expressar sua devoção. São fotografias, mensagens, caixas de remédios, garrafas de bebidas,
embalagens de cigarro, peças de roupas, imagens de santos da Igreja Católica e de Orixás,
muletas, mechas de cabelos, dentre outros. São narrativas de vida de muitas pessoas em
diversos contextos e épocas, inscritas, documentadas e misturadas em um mesmo espaço.
Na Sala de Promessas da Igreja do Anjo Gabriel encontram-se depositadas
lembranças, que carregam marcas dos devotos, seus sonhos, sua fé, suas esperanças,
simbolizando a intercessão do divino em cada indivíduo. Cada ex-voto merece atenção
apurada, pois simboliza uma realidade de vida diferente, um ato de contrição peculiar.
158
VOVELE, Michel. Os ex-votos no território marselhês. In: ___.Imagens e imaginário na história:
fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XIX. . São Paulo: Ática. 1997 . p.113
159
Ibid. p.114
94
Fotografia 15: Ex-votos dispostos na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel - (Fotografia de
Wilma Souza - 04/09/09).
Embora dispostos em grande quantidade, como se pode vê na fotografia 15, a
arrumação dos ex-votos dificulta o trabalho com os mesmos, visto que se encontram
amontoados, empoeirados, misturados e em sua maioria não possuem mais os bilhetes de
agradecimentos e quando os possuem, a ação do tempo já apagou as informações. Nessa
fotografia, vemos uma imensa variedade de ex-votos, cada um relacionado a um pedido de
cura diferente, de pessoas que atingiram curas referentes aos membros do corpo, doenças do
pulmão, vícios, dentre outras e deixaram por lá seu ato de fé, pagando assim sua promessa.
Ligados aos ex-votos, todos os tipos de adversidades que atingem o ser humano,
representam as necessidades individuais e coletivas, nos quais se pode “(...) esperar encontrar
a crônica da sociedade no passado por intermédio do acidente, da doença, da morte evitada,
do milagre.”160
Nesta perspectiva, podemos entender que os ex-votos se apresentam como
documentos que depositados na sala de milagres tem o potencial de comunicação, pois
apresentam uma série de informações, sujeitas a leituras, interpretações e análises. Assim
afirma José Oliveira:
160
VOVELLE, Michel. Op. Cit. 1991 p.177.
95
Todos os ex-votos da "sala de milagre" são documentos. Refletem a crença,
a fé e as atitudes do homem diante da vida, da doença, da morte, da ambição,
da festa, de variados valores sociais, políticos e econômicos que elucidam os
comportamentos coletivos e as estruturas mentais. 161
Reportando-nos a José Oliveira podemos perceber que os ex-votos não podem ser
ingenuamente observados somente como objetos nos seus diversos tipos de matérias-primas,
pois os mesmos têm a função de expressar idéias, mensagens ou narrativas de acontecimentos
vivenciados pelas pessoas.
Fotografia 16: Caixas de medicamentos dispostos na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel.
(Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
Fotografia 17: Caixas de medicamentos dispostas na Sala de Promessa da Igreja do Anjo São Gabriel.
(Fotografia de Wilma Souza -04/09/09)
161
OLIVEIRA, José Cláudio Alves. Ex-votos da "sala de milagres" do santuário de Bom Jesus da Lapa na
Bahia:semiologia e simbolismo no patrimônio cultural Revista de História da Biblioteca Nacional. Nº 41. Rio
de Janeiro: fevereiro de 2009. p.11.
96
Os ex-votos mostrados nas fotografias 16 e 17 podem expressar diversas mensagens,
simbolizando as doenças curadas na Igreja do Anjo São Gabriel e não mais a utilização dos
medicamentos para as enfermidades, por isso foram ali depositados pelos fiéis. A busca pelo
abandono dos medicamentos farmacêuticos é constante nas histórias de cura dos devotos, já
que além de representarem uma dependência a um tratamento geralmente a longo prazo,
também interferem no orçamento familiar do doente. As dificuldades relacionadas sobre
estas interpretações são variadas, devido à falta de informações nesse tipo de ex-voto.
Dentre os ex-votos dispostos na sala de promessa da Igreja do Anjo São Gabriel,
encontram-se uns bastante intrigantes como as imagens de alguns orixás e adereços utilizados
por candomblecistas como colares e pulseiras, mostrados nas fotografias a seguir.
Questionado sobre aqueles tipos de ex-votos, Seu Martinho comentou: “Esses é das pessoas
que curou do Candomblé e deixou de ir lá e colocou aqui as figura.”
162
Através desses ex-
votos podemos refletir qual concepção de religiosidade afro-brasileira ainda continua sendo
veiculada em algumas comunidades, muitas vezes associadas ao diabólico, ruim, negativo.
Fotografia 18: Imagem do Caboclo. Ex-voto disposto na Sala de promessas da Igreja do Anjo São
Gabriel (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
162
Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado.
97
Fotografia 19: Colares do Candomblé. Ex-votos dispostos na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São
Gabriel. (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
Fotografia 20: Imagem de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel.
(Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
98
Fotografia 21: Quadro de Iemanjá. Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel.
(Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
O depoimento de Dona Geninha, no início deste capítulo, demonstrou que a
religiosidade popular no Recôncavo Sul é híbrida163, mesclando a crença nos processos
curativos do Candomblé e nas práticas curativas proclamadas com a intercessão dos santos
católicos quando ela narra que recorreu primeiro a um curador da região chamado Xavier para
alcançar curas para sua doença e não tendo uma experiência exitosa, teria se “apegado” ao
Anjo São Gabriel do qual ela já era devota, alcançando a cura para seu problema de saúde.
Os ex-votos que simbolizam o abandono ao culto de orixás, estão dispostos em
lugares bem visíveis na sala de promessas da Igreja do Anjo São Gabriel, sugerindo uma certa
vitória de Seu Martinho frente àquelas pessoas da localidade que abandonaram o culto às
religiões afro-brasileiras, sempre associadas
por ele à aquisição de doenças, desastres,
problemas familiares, dentre outros. O que levou essas pessoas a internalizarem essa visão, a
ponto de abandonarem seus cultos e depositarem essas imagens como ex-votos? Os colares,
por exemplo, representam uma espécie de guia dos seguidores do candomblé, sugerindo que
essas pessoas já tinham sido iniciadas na religião, tendo através dessas guias proteção para
todos os possíveis males cotidianos, como se o corpo estivesse fechado. Assim, na mitologia
do candomblé, esses colares representam a identificação do indivíduo ao seu orixá e uma forte
de vinculação. Nos questionamos, quais motivos levariam uma pessoa a duvidar de sua guia
protetora, a ponto de prometê-la como ex-voto, caso fosse curada em outra religião? É bem
163
Para Peter Burke todas as culturas estão envolvidas entre si e nenhuma delas é pura, todas são híbridas,
heterogêneas.
99
provável que estaria sofrendo algum tipo de preconceito religioso ou não teria encontrado as
devidas respostas para seus males.
Como se pode notar, muitos ex-votos representam armadilhas para a nossa análise,
podendo nos conduzir a diversos caminhos. Devemos nos desvencilhar dessas armadilhas,
fazendo uma leitura crítica dessas imagens, problematizando-as, contextualizando-as e
esmiuçando-as.
No estudo sobre os ex-votos verificamos que nos séculos XVIII e XIX, no Brasil se
popularizou o uso dos ex-votos pintados retratando o episódio sofrido e a graça alcançada
pelo devoto. De acordo com Guilherme Neves: “Na maioria das vezes os ex-votos pintados
compõe-se de três elementos: a cena principal, que retrata o acontecimento; o espaço celeste,
em que surge no alto a figura religiosa do intercessor; e a legenda, que narra por escrito o
episódio.”164A legenda dessas pinturas mostrava suas datas, permitindo a percepção do
contexto e as cenas permitiam análise da vida cotidiana da população da época. Segundo Jean
Luiz Neves Abreu a prática de agradecimentos através desses ex-votos era compartilhada por
todas as camadas da população da época, explicando assim a diversidade das ofertas
votivas165.
A partir do século XX, as fotografias acabaram substituindo essas formas de
agradecimento pelo milagre. Segundo Luis Bonfim “A popularização das máquinas
fotográficas, a partir da década de 1940, mudou o ambiente das Salas de Milagres de norte a
sul do país.”166. Nesse sentido nem sempre as fotografias expostas nas Salas de milagres
foram realizadas para aquele fim, sendo reaproveitadas de outros contextos, cenários e épocas
e utilizadas como ex-votos, apontando caminhos diversos em suas leituras. Isso por que de
acordo com Ana Mauad:
(...) entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe muito mais do
que os olhos podem ver. Intervalo que é ocupado por uma rede de
164
NEVES, Guilherme Pereira das. Milagres do cotidiano. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. nº
41. rio de Janeiro, fevereiro de 2009. p.19
165
ABREU, Jean Luis Neves. Difusão, produção e consumo das imagens visuais: o caso dos ex-votos mineiros
do séc. XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.25,n.49, jan./jun.2005. p. 207
166
BONFIM, Luís Américo. Tradição reinventada. Revista de História da Biblioteca Nacional. nº 41. Rio de
Janeiro, fevereiro de 2009. p.36
100
significados que remete tanto às problemáticas contemporâneas ao evento
registrado, como ao código dominante de representação. 167
Na sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel, como já foi mencionado existe
uma diversidade de ex-votos porém, não existem pinturas votivas, o que pode ser explicado
pelo período de construção da igreja nos finais da década de 60 do século passado. Contudo,
várias são as fotografias deixadas com ex-votos na sala de promessas da Igreja do Anjo São
Gabriel. Representam a devolutiva dos pedidos feitos pelos fiéis e realizados com a
intercessão do Anjo, característica própria do ex-voto:
Fotografia 22: Ex-voto disposto na Sala de Promessas da Igreja do Anjo São Gabriel ( Fotografia de Wilma
Souza em 04/09/09)
167
MAUAD, Ana Maria. O Olho da história: análise da imagem fotográfica na construção de uma memória.
Acervo-Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro: v. 6, n. 1-2, 1993, p. 25-40, jan.-dez.p.59
101
Fotografia 23- Ex-voto da Igreja do Anjo São Gabriel (Fotografia de Wilma Souza em 04/09/09)
Nas imagens acima podemos notar que na fotografia 22 o bilhete indica um pedido
de cura de uma pessoa, que está na Alemanha com um sério problema de saúde sem
perspectiva de cura pela medicina oficial, mostrando que as pessoas recorrem às práticas de
cura populares em todos os momentos, seja nos problemas de saúde mais simples aos mais
complexos. Os indivíduos, portanto, fazem fortes demonstrações de fé e contrição nos
momentos de desespero.
A fotografia 23, de agradecimento pela realização de um casamento, nos sugere
várias interpretações, visto que não é comum nessas fotografias, geralmente realizadas para
compor um álbum de casamento, a presença de uma criança ao lado dos noivos que não sejam
as damas de honra. Ora parece que os dois não eram casados, já tinha filhos e fez a promessa
de realização do matrimônio para se apresentarem casados legalmente na sociedade. Ora a
menina seria filha somente da noiva. A criança aparece ao lado da noiva, com uma certa
intimidade com esta. Teria sido o fotógrafo que a posicionou assim? Se a menina fosse filha
do casal não teria sido posicionada entre os dois? Quais críticas ou preconceitos esse casal
vinha sofrendo para necessitar de uma promessa para oficializar o matrimônio? Ou seria
102
escassez de recursos financeiros? Ou ainda um dos noivos estava na indecisão? De quem será
que partiu a promessa?
A conclusão a que chegamos é que todas essas fotografias deixam lacunas e dúvidas
no que se refere as suas reais intencionalidades, afinal a fotografia não consiste no retrato de
uma verdade absoluta, nem a representação fiel dos eventos. A fotografia não conta a história
tal como aconteceu, expressa apenas partes dela, representações, símbolos que devem ser
decifrados. Como considera Maria Eliza Borges:
A imagem fotográfica é fixa. É produzida a partir de um artefato físicoquímico e pressupõe a existência de um referente. É matéria que pode ser
tocada e apalpada. Informa sobre os cenários, as personagens e os
acontecimentos de uma determinada cultura material, é dotada de uma
imensa variabilidade plástica, materializada por seus diferentes formatos e
seus múltiplos enquadramentos. É fragmento congelado e datado. Como
outras imagens, ela também pressupõe um jogo de inclusão e exclusão. É
escolha, e como tal, não apenas constitui uma representação do real, como
também integra um sistema simbólico pautado por códigos oriundos da
cultura que os produz. Diferentemente da pintura, do desenho, da caricatura,
a representação fotográfica pressupõe uma inter-relação entre o olho do
fotógrafo, a velocidade da máquina e o referente.168
Neste contexto, nos cabe decodificar os ícones, perguntar sobre os silêncios, os
vazios e as ausências deixadas nas fotografias e que são dificilmente detectadas, visto que a
imagem fotográfica narra sobre o mundo nela apropriado, viabilizando diversas leituras.
Segundo Boris Kossoy, a comunicação não-verbal presente nas imagens fotográficas pode
enganar, sendo necessária uma leitura nas entrelinhas da mensagem por ela mostrada. 169
Nesse sentido, a fotografia narra os acontecimentos por elas mostrados, enfatizando
os detalhes com o olhar do fotógrafo-narrador. Para Suzan Sontag:
A própria realidade passou a ser entendida como um tipo de escrita, que tem
de ser decodificada – enquanto as próprias imagens fotográficas foram, a
princípio, comparadas à escrita. (O nome dado por Nièpce ao processo pelo
qual a imagem aparece na chapa era heliografia, escrita do Sol; Fox Talbot
chamava a câmera de caneta da natureza170
168
BORGES, M. E. L. História &Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.83
KOSSOY, Boris. Fotografia e História, 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial. 2001.
170
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. p. 176.
169
103
Enquanto uma narrativa, a imagem fotográfica simplesmente não transmite
informações como num relato, pois a mesma “conserva suas forças e depois de muito tempo
ainda é capaz de se desenvolver”171 . A fotografia 23 nos leva ainda a diversas possibilidades
de interpretação, apresentando características de promessa a ser realizada e ex-votiva.
Possivelmente, o rapaz teria apresentado alguma melhora com as práticas de cura
proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel. Ou teria a família recorrido às práticas mágicocurativas como última instância depois de se esgotar as chances apontadas pela medicina
acadêmica. Assim, a fotografia consegue relatar acontecimentos que podem ser interpretados
por diversos caminhos, devido a sua subjetividade, envolvendo o olhar do fotógrafo que é
seletivo e a leitura de quem vê, que também é seletiva, dependendo das vivências e
sociabilidades.
Podemos definir a memória também como processo de construção de uma identidade
coletiva da qual a fotografia faz parte, pois elas contam os acontecimentos cotidianos, as
histórias de vida, inclusive, aquelas deixadas nas salas de promessas das igrejas. Nesse
sentido, Walter Benjamim comenta sobre as narrativas: “Cada história é o ensejo de uma nova
história que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da
memória é o da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros
textos.”172Ao observar uma fotografia, associamos a fatos históricos guardados na nossa
memória, reconstruindo lembranças e conceitos. De tal modo, a fotografia tem papel
restaurador da memória, narrando histórias com ajuda ou não de relatos orais e escritos,
complementando e corrigindo idéias e imagens que construímos ao pensarmos em
acontecimentos passados. Nessa perspectiva, Rousso afirma:
É uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma
representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do
indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar,
social, nacional.173
As fotografias deixadas como ex-votos da Sala de Promessas da Igreja do Anjo São
Gabriel em Dom Macedo Costa-Ba, expõem as experiências religiosas vivenciadas pelas
pessoas que procuram as práticas de cura operadas por Seu Martinho. Vislumbrando a
171
BENJAMIN,Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.In: Obras Escolhidas v.1,
2.ed. São Paulo: Brasiliense.1994, p. 204.
172
Idem. Ou a história aberta. In: Op. Cit.13
173
ROUSSO,H. “A memória não é mais como era”. In: Ferreira, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína.(org.)
Usos e Abusos da História Oral.Rio de Janeiro: FGV. 2001. p. 94.
104
fotografia do casamento deixada como ex-voto, podemos ter leituras distintas, construir
hipóteses a partir do contexto social e, nesta perspectiva, é viável que a fotografia indique a
realização individual de um desejo formado a partir de um contexto social marcado por um
padrão de família, no qual deve ocorrer o casamento formal, prestando contas à sociedade
dessa relação. A menina da fotografia poderia ser filha somente da noiva e essa última
possivelmente estaria sofrendo discriminações por ser mãe solteira. O casamento seria a
solução para deixá-la numa situação mais cômoda no meio social em que estava inserida.
Outra leitura imaginável seria a de um pai viúvo e estaria à procura de uma mãe para a sua
filha.
As fotografias são narrativas que abarcam uma série de sentidos a partir da
intencionalidade de quem as produziu, devendo ser compreendidas como uma versão diante
de múltiplas versões plausíveis. Nesse sentido, nos adverte Pesavento:
Dizer que a história é uma narrativa verdadeira, de fatos acontecidos, com
homens reais, não é, entretanto afirmar que, como narrativa, ela seja mimese
daquilo que um dia teria ocorrido. Assim há sempre a presença do narrador
que mediatiza tudo o que viu, vê ou ouviu falar e que conta e explica a
terceiros uma situação não presenciada por estes. Interpõe-se, assim, um
princípio de inteligibilidade e de proposta de conhecimento do ocorrido, que
é representado - re-apresentado-a um público, ouvinte ou leitor.174
Os ex-votos dispostos na Sala de Promessas do Anjo São Gabriel geram tantos
sentimentos de que muitas graças foram alcançadas. Não só as fotografias, mas todos os exvotos dispostos na Sala de Milagres da Igreja do Anjo Gabriel, relatam histórias de vida.
Histórias de famílias, de esperanças, de curas, de preconceitos, de afetividade. Demonstram
tristezas seguidas por êxitos e alegrias. Narram a religiosidade popular carregada de
simbolismos, que envolvem fé, sofrimento, esperança e a busca incessante pelo sagrado.
Representam ferramentas de intermédio simbólico entre o ser humano e o divino e cada exvoto se constitui de significados diferenciados, servindo como provas-testemunhais da intensa
religiosidade das pessoas, de suas buscas através da fé para resolver as dificuldades cotidianas
pela devoção e contrição aos anjos e santos.
174 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura. Revista de
História das Idéias, Lisboa, vol. 21, 2000. p.34
105
Percebemos nesse capítulo indícios de questionamentos às práticas desenvolvidas por
Seu Martinho em Riachão dos Milagres, de tal modo que, no próximo capítulo
aprofundaremos as discussões sobre as relações estabelecidas entre a Igreja e Seu Martinho,
bem como as representações deste e sua ressonância no campo da política.
106
CAPÍTULO 3
“HOJE ESTOU NA BATINA E COM A MINHA IGREJA”: AS REPRESENTAÇÕES
DO MENSAGEIRO DO ANJO SÃO GABRIEL
As práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres se
caracterizam como elementos do catolicismo popular. Nesse sentido, discutiremos nesse
capítulo a relação da Igreja Católica frente às devoções e crenças em milagres na Igreja do
Anjo São Gabriel e as representações religiosas e políticas em torno de Seu Martinho.
Analisaremos ainda os elementos ou as razões que apontam a redução no número de devotos
em busca das práticas de cura no local, nos dias de hoje.
3.1- A Igreja Católica e o catolicismo popular na comunidade
A Igreja do Anjo São Gabriel, na comunidade do Riachão dos Milagres está repleta
de elementos que caracterizam a devoção popular como o culto aos santos, santas e anjos, a
peregrinação, o pagamento de promessas e a forte crença na missão de Seu Martinho
enquanto interventor dos milagres curativos de Deus aqui na terra. O último elemento
indicado se constitui num traço peculiar do catolicismo popular no Brasil, no qual os
populares se apropriam de um símbolo ou de uma personalidade extraordinária para depositar
sua fé. Seu Martinho representa, portanto, essa personalidade já que afirma ser contemplado
com o dom da cura de mazelas psíquicas e físicas, dependendo da necessidade e merecimento
do devoto. Sobre o catolicismo popular Pedro Oliveira sugere a seguinte definição:
[...] o conjunto de representações e práticas religiosas dos católicos que não
dependem da intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados
pelos fiéis. Concretamente, chamamos provisoriamente “catolicismo
popular” as representações e práticas relativas ao culto dos santos e à
transação com a natureza e não os sacramentos e a catequese formal.175
175
OLIVEIRA, Pedro A.Op. Cit. p.114
107
A nossa preocupação não é conceituar o “catolicismo popular” ou enquadrar as
práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres no conceito discutido
por Pedro Oliveira, mas a de demonstrar que a religiosidade católica vivida nos diversos
santuários no Brasil possuem semelhanças e particularidades dignas de cautelosas análises. A
Igreja do Anjo São Gabriel não necessitou da “intervenção das autoridades eclesiásticas” para
que o culto ao anjo em 1967 tomasse um direcionamento e se intensificasse num universo de
crença em milagres sob a intervenção de Seu Martinho, que sonhou recebendo a missão de ser
o mensageiro do anjo, dando continuidade aos milagres do Padre Cícero. Os fiéis “adotaram”
o Anjo São Gabriel que em sonho deu a Seu Martinho o privilégio de curar utilizando a água
e transformaram a comunidade de Riachão dos Milagres num espaço cercado por práticas
religiosas envolvendo fé e devoção.
Em estudos sobre o catolicismo no sertão da Bahia,176 Cândido Silva argumenta que
devido à necessidade do cristão leigo avivar no campo os ensinamentos doutrinais, ele obteve
espaço “para desenvolver um processo seletivo reinterpretativo das expressões da fé,”177.
Concordando com a perspectiva de análise de Cândido Silva podemos afirmar que, embora
numa área distinta da sertaneja, em Riachão dos Milagres há uma re-interpretação das
expressões de fé implicando numa prática devocional específica, singular àquela região do
Recôncavo, envolvendo fé e devoção.
Para os devotos da comunidade, o Anjo São Gabriel adquire características dos
outros santos da Igreja, para os quais são realizadas promessas, peregrinações, romarias, culto
fervoroso e ainda se faz presente para os fiéis na pessoa do mensageiro Seu Martinho. De
acordo com Pedro Oliveira:
Os santos são as representações fundamentais do catolicismo popular.
Concebidos como seres pessoais e espirituais dotados de poderes
sobrenaturais, eles são tidos como capazes de exercer influência sobre o
curso da vida e da natureza. A noção popular é muito mais abrangente do
que a dos santos canonizados, pois ela compreende também os diversos
títulos devocionais de Jesus e de Maria , as almas de defuntos e figuras mais
ou menos lendárias. Cada um desses seres espirituais pode conceder graças e
proteção celestiais a quem lhe dedica culto ou invoca sua proteção. Assim, o
catolicismo popular conhece uma multidão de santos, desde aqueles
oficialmente reconhecidos pelo magistério eclesiástico até santos locais cujo
culto não dura mais do que duas ou três gerações.178
176
SILVA, Cândido da Costa e. Op. Cit.
Ibid. p.23.
178
OLIVEIRA, Pedro A. Op. Cit. p.114
177
108
Nesse universo formado pela veneração a diversos santos e santas, muitos devotos
prestam culto ao Anjo São Gabriel, invocando sua proteção e afirmam ter alcançado as graças
suplicadas, tendo o auxílio imprescindível de Seu Martinho através da água benta. A
comunidade do Riachão dos Milagres apresenta dentre outras características peculiares, a
presença de um Mensageiro do Anjo, com poderes mágico-curativos. Nesse sentido, Seu
Martinho se instituiu e é representado como o interventor direto entre os devotos e o Anjo São
Gabriel na comunidade. A narrativa do bispo Dom João Nilton indica essa representação:
O que eu via falar de Martins era exatamente de um homem de fé e a sua
casa era como que um santuário. Junto a sua casa uma igreja. Esta igreja
sempre procurada pelo povo, uma igreja simples também, modesta, mas
expressava ser uma casa acreditada pelo povo e onde se encontrava ex-votos,
como sinais de reconhecimento, de gratidão a Deus por meio das orações de
Martins, das bênçãos que ele fazia.179
As palavras do Dom João Nilton demonstram a força das práticas religiosas
atribuídas a Seu Martinho na comunidade. Ao comparar a casa de Seu Martinho com um
santuário, com a igreja “sempre procurada pelo povo”, é explicitado um movimento muito
específico, norteado por uma crença que mobilizava as pessoas em torno de Seu Martinho, de
sua igreja e suas práticas. O bispo deixa claro que “ouvia falar” dessas práticas, indicando
que os padres comentavam sobre Seu Martinho e sobre a repercussão de sua missão na
comunidade, representada por uma igreja simples, modesta, mas que era “acreditada” pelo
povo e dessa forma, chamou a atenção das autoridades eclesiásticas.
Dom João Nilton não dirigia a Diocese de Amargosa, no ano de 1967, quando se
iniciou as práticas de cura na comunidade do Riachão dos Milagres. Assumindo a Diocese no
ano de 1988, ele teve notícias da missão de Seu Martinho no auge de sua efervescência nos
fins da década de 1980 e início da década de 1990, quando a capela foi ampliada para uma
igreja, seguindo as orientações eclesiásticas. No seu depoimento, menciona a ligação entre a
Igreja Católica e Seu Martinho:
A Igreja o acolheu, o respeitou na sua simplicidade, na sua singeleza. Da
parte dele também é.. não tenho mais elementos mais acredito que ele foi
fazendo a sua vida, mas tendo uma referência e acho importante isso de
179
Depoimento do Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza, 67 anos, bispo responsável pela Diocese de
Amargosa. Entrevista realizada no município de Amargosa-Ba, em 17/09/2010.
109
Martins: sua vinculação com a Igreja Oficial, com a Igreja estrutura, com a
Igreja Católica, com a devoção aos santos, com a obediência às normas da
Igreja e acredito que os párocos que cuidaram da paróquia, a qual Riachão
dos Milagres pertence tiveram uma boa relação com Martins. Acredito que
ele tivesse o espírito de obediência, de ver também até onde ele podia ir.
Nunca ouvi dizer que houvesse conflitos maiores entre ele e a Igreja, a Igreja
e ele, creio que da parte da Igreja houve uma compreensão de entrar no
mundo da religiosidade e a gente sabe que existe uma religiosidade muito
forte na vida do povo e nosso povo brasileiro, nosso povo latino, latinoamericano, nosso povo baiano tem uma alma religiosa.
As palavras do bispo sugerem uma aproximação da Igreja com Seu Martinho,
ressaltando que as práticas religiosas por ele realizadas foram sempre se aprimorando aos
padrões eclesiásticos. Percebemos um campo de forças entre obediência e conciliação, visto
que a base religiosa de Seu Martinho sempre foi a católica e na sua pregação acabava
rearfimando as crenças e os princípios do catolicismo. Obedecendo a Igreja e suas normas, ele
ocupava o espaço que lhe foi permitido por esta, evitando maiores conflitos. Em
contrapartida, a Igreja “compreendendo” a “alma religiosa do povo”, exercia seu papel de
conciliadora, sem alardes e, Seu Martinho com suas práticas conservava elementos de uma
religiosidade tradicional, popular e rural.
Diante da “forte religiosidade do povo”, religiosidade essa que não procura seguir
padrões ou regras estabelecidas pela Igreja e sim ao que manda a fé, na busca por soluções
rápidas para seus problemas cotidianos, a Igreja se aproximou de Seu Martinho, tornando-o
líder religioso leigo daquela comunidade e tentando dispersar a representação de um ser
extraordinário com poderes mágico-curativos. A Igreja assim direcionaria a representação de
Seu Martinho como líder comunitário forte e obediente e dissociaria dele a ideia de milagres e
curas, assumindo o controle da situação, uma vez que “as representações (...) são sempre
determinadas pelos interesses do grupo que a forjam”180.
Nesse sentido, a Igreja teria procurado legitimar entre os devotos a ideia de um
Martinho leigo, exercendo atividades religiosas corriqueiras, representando apenas um
católico praticante e devotado. A representação enquanto mensageiro do Anjo São Gabriel,
voltado para curas e milagres passou a ser minimizada pela Igreja. Essa concebia as práticas
de cura como um apoio que ele oferecia as pessoas com problemas cotidianos somatizados.
Assim, a Igreja se esforçou para dominar a situação, afastando a representação de magia que
180
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil.1990. p.17
110
existia na religiosidade vivenciada na comunidade, com a crença do dom curativo de Seu
Martinho. Quanto à magia, cabe sinalizar que a relação da Igreja com esta ao longo da história
tem assumido duas conotações: uma diabólica e outra divina. Conforme indica Keith Tomas
em estudo sobre a Inglaterra no final da Idade Média, os pregadores da Igreja proibiam a
prática da magia pelos leigos, contudo:
A Igreja não negava que a ação sobrenatural fosse possível, mas enfatizava
que tal ação só poderia emanar de duas fontes possíveis: Deus ou o Diabo.
Certos efeitos sobrenatuais poderiam ser previstos com confiança por
homens de fé que seguissem os rituais prescritos por Deus e pela Igreja,
como por exemplo os relativos à missa ou ao poder da água benta. Outros
poderiam ocorrer milagrosamente, como as atividades curativas dos santos.
Mas o resto era diabólico e, portanto, abominável.181
Seu Martinho atribuía um caráter divino a seus dons “mágicos”, entretanto,
condicionando o dom curativo de Seu Martinho aos “rituais prescritos por Deus e pela Igreja”,
essa procurou afastar as características de curas mágicas, possibilitando ao Mensageiro do
Anjo São Gabriel um espaço para atuar como líder comunitário. Este, por sua vez com um
provável espírito de obediência, na “sua simplicidade e singeleza”, acatou o acolhimento da
Igreja e “foi fazendo a sua vida”, unindo o seu dom curativo ao seu lugar de líder leigo,
atuando como Ministro da Eucaristia, na Igreja do Anjo São Gabriel. 182 Para Seu Martinho
foi dado o poder de distribuir as hóstias consagradas e o de realizar celebrações aos domingos,
na ausência dos padres. Ganhou mais respeito na comunidade e muitos até passaram a chamálo de “padre Martinho”. Com a estratégia da Igreja, de retirar de Seu Martinho o lugar de
intercessor entre o divino e o terrestre, com seu dom curativo, ele passou a representar um
líder católico apoiado pela Igreja, com o dom especial da cura.
Contudo, de forma distinta do que narra o bispo, Seu Martinho realiza suas práticas
religiosas mesclando as normas impostas pela Igreja com seus próprios códigos de
Mensageiro do Anjo São Gabriel, e consegue atrair devotos e fiéis. A religiosidade vivenciada
na comunidade do Riachão dos Milagres, ao contrário do que deseja a Igreja, não
desconsidera a prática mágico-curativa, pelo contrário tem por ela preferência especial. É a
atração pela prática mágico-religiosa que mantém viva a religiosidade da comunidade, com o
culto forte ao Anjo São Gabriel e ao dom curativo dado em missão por ele a Seu Martinho.
181
182
THOMAS, Keith.Op. Cit.. p.215.
Sobre a definição de Ministro da Eucaristia ver capítulo 1, p. 40.
111
As celebrações eucarísticas ocorridas na comunidade, revelam, em sua maioria,
características de peregrinação e pagamento de promessas dos devotos ou de prestação de
culto. Estão presentes a estas celebrações fiéis da comunidade ou de outros municípios, com
o intuito de render graças pelos pedidos alcançados e de receber e levar para suas residências
a água benzida por Seu Martinho. Acentua Pedro Oliveira que
“é comum os devotos
prestarem culto aos santos ou pagarem suas promessas nos espaços religiosos nos quais foram
feitas”,183 isso faz com que os espaços religiosos adquiram suas próprias características e se
revistam de elementos particulares e singulares. Neste sentido, cabe assinalar que os fiéis do
Riachão dos Milagres, buscam a Igreja do Anjo São Gabriel não por serem praticantes da
religiosidade católica, seguindo os dogmas e tradição da Igreja, dentre outros, o de frequentar
as celebrações eucarísticas aos domingos, mas como já afirmamos anteriormente pelas
práticas de cura lá realizadas.
Em contraposição à representação construída pelo D. João Nilton, o atual pároco do
São Benedito, responsável, portanto pela comunidade do Riachão dos Milagres, padre Edésio
Ribeiro discorda da postura religiosa de Seu Martinho, estabelecendo uma relação conflituosa
com o mesmo:
Percebo, da parte dele, um certo descaso em relação à Igreja, não da
estrutura hierárquica, mas a estrutura pastoral da Igreja, como se o trabalho
dele se bastasse a si mesmo e ele não tivesse que ouvir ninguém, em relação
a prática pastoral, mas eu vejo isso como algo constrangedor e não aceito
isso pois ser Igreja é ser comunhão. A Igreja Católica prima sempre pela
comunhão. O papa é o sinal visível da unidade da fé católica. Nós só temos
um papa e as orientações do papa, bispos, cardeais devem ser seguidas pelos
católicos. Eu não posso fazer uma igreja minha. Eu não posso tocar uma
igreja. Como cristão-católico eu tenho que ser adepto e caminhar em
comunhão com a igreja de Jesus Cristo, confiada aos apóstolos, continuada
pelo papa e os bispos que são sucessores legítimos dos apóstolos. Estou
falando de bispos católicos que têm a linhagem da sucessão apostólica. E
esse senhor quer tocar uma igreja a partir dos seus princípios, inclusive
princípios cristão-católicos já superados. A Igreja já se renovou e ele ainda
está no passado. Isso vem a prejudicar a relação dele com a Igreja e ele até
diz que com... e isso aí eu sou testemunha ocular, ele diz que com o papa ou
sem o papa ele há de levar adiante a missão dele.184
As práticas religiosas vivenciadas na comunidade do Riachão dos Milagres
aparentemente não agradam ao padre Edésio Ribeiro que
183
184
OLIVEIRA, Pedro A. Op. Cit. p.114
Entrevista com o padre Edésio Ribeiro. Depoimento citado.
expressa indignação e
112
contrariedade. No seu depoimento, indica não se conformar com a autonomia sustentada por
Seu Martinho e com a manutenção de seus princípios religiosos, que para o citado padre já
estão superados, como por exemplo a exigência de vestimentas para as mulheres se
apresentarem na igreja. Essa autonomia mantida por Seu Martinho, com uma certa distância
de algumas normas que a Igreja impõe, se transforma em soberania e o torna um sucessor
ilegítimo dos apóstolos para o padre. Sucessor ilegítimo, por não pertencer a “linhagem da
sucessão apostólica”, por não ter realizado estudos teológicos, filosóficos de um seminário,
não se submetendo completamente às normas da Igreja. No entanto, consegue manter por
mais de quatro décadas as práticas religiosas de uma comunidade, que se consolidou a partir
da missão desenvolvida por ele e pelos devotos.
A narrativa do padre Edésio demonstra os conflitos existentes entre as práticas
religiosas vivenciadas em Riachão dos Milagres e sua relação com a Igreja Católica. Embora
esta última conviva com as práticas de cura realizadas por Seu Martinho, é factível que a
Igreja optou por envolvê-las dentre os sacramentos e catequese formal, com o objetivo de
orientar a religiosidade que se manifestava de forma fervorosa, canalizando para seus dogmas.
Seu Martinho foi incentivado pelo padre a seguir as estruturas pastorais da Igreja e este por
sua vez defendeu suas práticas ameaçando levar adiante uma igreja independente da Igreja
Católica. Para Pierre Bourdieu:
Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens da salvação por
um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como
detentores exclusivos da competência específica necessária à produção ou à
reprodução de um „corpus‟ deliberadamente organizado de conhecimentos
secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha
a desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se
transformam por esta razão em leigos (ou profanos, no duplo sentido do
termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico
acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo
simples fato de que a desconhecem enquanto tal.185
Considerado como simples leigo, a Igreja buscou destituir Seu Martinho da
representação que lhe foi atribuída como ser especial cuja missão, com características mágicoreligiosas, e poder curativo atrai devotos e fiéis não seguidores da estrutura normativa da
Igreja. Possivelmente porque para muitos fiéis não exista um distanciamento ou diferença
185
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 2007, p.39.
113
entre as práticas curativas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel e as orientações da Igreja.
A hierarquização da Igreja considerada tão relevante pelo padre Edésio não supera a dimensão
da fé dos devotos no dom curativo de Seu Martinho, capaz de auxiliar na resolução de seus
males. Desse modo, Seu Martinho quebra a ideia de monopolização da gestão do sagrado
gerenciada pela Igreja, à medida em que ele se institui do capital religioso pelo dom recebido
em sonho, diretamente do Anjo Gabriel. Assim, para os devotos não é relevante para a crença
na missão se Seu Martinho se enquadra no grupo de “especialistas religiosos” instituído pela
Igreja, mas a ligação dele com o Anjo Gabriel e a representação do mesmo como mensageiro
do anjo, tendo a autoridade para realizar curas.
Apesar da Igreja ter desenvolvido estratégias visando neutralizar a representação da
missão afirmada por Seu Martinho, a comunidade de Riachão dos Milagres se apropriou de
uma representação profética, passando
a aceitá-lo enquanto “portador de um carisma
puramente pessoal, o qual em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um
mandamento”186, já que para Weber “o profeta é impulsionado pela vocação pessoal o que o
distingue do sacerdote”187, conseguindo naturalmente atrair fiéis e divulgar sua missão. A
narrativa do padre Nelson Franca indica a cautela da Igreja para não intensificar na
comunidade a representação de Seu Martinho como um profeta:
[...] a diocese nunca emitiu uma palavra a respeito dele nem contra nem a
favor. Porque se dá uma palavra a favor, ela pode tá caindo num risco muito
grande de assumir conseqüências maiores. Se ela diz uma palavra contrária
ela pode assanhar os seus adeptos e acabar se tornando isso uma propaganda
ainda maior a favor do Martinho. Então a Igreja tem uma prudência muito
grande, ela conhece, ela acompanha e quando é necessário ela se posiciona e
se manifesta. Então o caso é tão insignificante para nós igreja Diocese de
Amargosa que a Igreja nunca se posicionou a esse respeito. A Igreja nunca
procurou brigar com Martinho porque é melhor tê-lo como amigo do que
como inimigo, não é? Então a Igreja nunca se posicionou nem contra nem a
favor, mas a Igreja poderia até dizer, tolera Martinho porque a comunidade é
maior e mais importante do que ele.188
As palavras do padre Nelson Franca apontam para a estratégia sábia da Igreja em
relação à dimensão que a missão de Seu Martinho poderia adquirir na comunidade. Apesar de
186
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.4 ed. Vol.01. Brasília:
editora Universidade de Brasília. 2000. p.303.
187
Ibid
188
Entrevista com o Padre Nelson Franca. Depoimento citado.
114
tratar a missão como “insignificante”, o padre demonstra a preocupação da Igreja com os
rumos da comunidade de Riachão dos Milagres, uma vez que caso Seu Martinho rompesse
com a Igreja, os seus adeptos poderiam segui-los, formando uma comunidade à parte, com
princípios religiosos divergentes. É notório na narrativa do padre, a importância de Seu
Martinho para a comunidade, “como amigo”, uma vez que a crença em sua missão, como
católica, mantém fiéis para a Igreja. Seu Martinho atuava como leigo com um dom especial,
uma espécie de chamado divino para a comunidade, que atraía muito mais a comunidade que
os sacerdotes da Igreja. Para Weber “ (...) o sacerdote como membro de uma instituição com
caráter de relação associativa, permanece legitimado pelo seu cargo, enquanto que o profeta
(...) atua somente em virtude de seu dom pessoal”. O dom pessoal afirmado por Seu Martinho
talvez, atraísse com maior intensidade seguidores e adeptos da comunidade e de outros
municípios, ao contrário da catequese e dos dogmas difundidos através dos padres.
Em seu processo de evangelização a Igreja Católica difundiu a fé cristã nas
comunidades buscando controlar as expressões da religiosidade popular, entretanto “(...), a
vivência religiosa pregada pelo clero, seja na Idade Média ou nos tempos modernos, não se
estabeleceu de forma linear e triunfal.”189 De tal modo,
mesmo com as tentativas de
minimizar a expressividade da fé na religiosidade popular, na comunidade do Riachão dos
Milagres esta se sustenta na devoção aos milagres realizados pelo Anjo São Gabriel através
do mensageiro Seu Martinho.
3.2- As relações religiosas e políticas de Seu Martinho.
A construção da imagem de Seu Martinho como mensageiro do Anjo São Gabriel foi
se consolidando à medida que a notícia do seu sonho e dos diversos casos de cura se espalhou
através dos devotos que procuraram suas práticas religiosas da comunidade do Riachão dos
Milagres. Mesmo sem comprovação científica das curas, a ressonância que a divulgação
dessas ganhava, proporcionavam a Seu Martinho uma posição de ser humano diferente,
189
DELEMEAU, Jean. L‟histoire de la christianisation. In: Um chemin d‟histoire: chretiénté et christianisation.
Tradução de Eduardo Basto de Albuquerque. Paris: Fayard, p. 138-153, 1981. In: COUTO, Edilece Souza.
Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant‟Ana em Salvador (1860 – 1940) –
Assis, SP : UNESP, 2004. p. 44
115
designado a intermediar a relação entre os seres humanos e o divino. Dom João Nilton narra
a representação que lhe foi passada a respeito de Seu Martinho:
[...] No caso de Martins, eu sempre ouvi dizer que as pessoas iam lá pra que
ele rezasse ou iam rezar com ele e que algumas pessoas ficavam boas,
curadas. Não sei se essas pessoas que foram curadas, se elas foram
acompanhadas por médicos, não sei se tinham diagnósticos e depois se essas
pessoas voltaram aos médicos, qual foi o parecer dos médicos a respeito do
que era tido como cura. (...) As pessoas se dirigiam para lá sempre em busca
de um socorro. Creio que a grande motivação de se procurar Martins era o
homem que pode dar um jeito em uma situação. E aos poucos se criou
naquela igreja ali junto à comunidade um lugar que eu devia dizer assim de
peregrinação para onde as pessoas recorriam e recorriam, às vezes
desesperadas, porque não encontravam na própria sociedade os meios, então
Martins era uma referência de um homem que podia interceder a Deus pelas
pessoas nas suas diversas necessidades.190
As palavras do bispo apontam para a ausência de serviços que permitissem as
pessoas resolverem seus problemas e indicam a intensidade na procura pelas práticas
religiosas realizadas por Seu Martinho, não somente pelo ato de fé dos devotos, mas porque
ele passou a representar uma solução possível para os problemas cotidianos das pessoas que o
procurassem. A ausência do Estado enquanto provedor, enquanto instituição que através dos
serviços prestados pelos diferentes níveis governamentais e que deveria garantir a resolução
dos problemas que afligiam as pessoas torna-se explícita, o Poder Público era omisso. De
igual modo, a descrença nos serviços médicos também é subentendida. Pessoas da
comunidade ou de outros municípios se dirigiam a Seu Martinho com o intuito de resolver do
mais corriqueiro problema de saúde até as doenças com tratamento mais longo oferecido pela
medicina, como o câncer. Além das doenças físicas ou psíquicas, muitos recorriam e ainda
recorrem a Seu Martinho para interceder junto a outras situações cotidianas como benzer o
carro que comprou ou os animais com moléstias nas fazendas, mostrando a proximidade e a
confiança que os devotos depositam em Seu Martinho.
A construção das relações religiosas de Seu Martinho foram aos poucos se tornando
relações de poder. Os fiéis e devotos de sua missão lhes confiavam os seus problemas e
encontravam soluções rápidas e possíveis. Em casos de doenças, mesmo não havendo “o
parecer dos médicos do que era tido como cura”, esta era legitimada pelos devotos como
190
Entrevista com o Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza. Depoimento citado.
116
milagres aumentando o respeito e a crença no mensageiro do Anjo São Gabriel, como um
líder carismático191 reconhecido pelos adeptos da sua missão.
As relações sociais construídas por Seu Martinho o levaram ao envolvimento na
política do município de Dom Macedo Costa. Seu Antonio Barreto Mota, prefeito do
município na década de 1970, narra que se tornou amigo de Seu Martinho e conheceu sua
missão em 1968 e ao perceber a ressonância que ele tinha diante dos devotos, o convidou para
se candidatar a vereador quando novamente foi candidato a prefeito no ano de 1976:
Convidei Martins para ser vereador porque ele além de ser uma pessoa que
já tinha essa missão, ele era uma pessoa amiga, uma pessoa que se
preocupava com os problemas do município, da região e do povo, então
fazia por merecer participar das atividades do legislativo do município que
não é nada mais, nada menos de que você se envolver com a comunidade e
fazer alguma coisa por ela (...)192
A narrativa de Seu Antonio mostra que devido a sua missão, Seu Martinho passou a
ser identificado como uma pessoa amiga, preocupada, sempre presente e pronto a ajudar. A
sua solidariedade ou a sua missão ganhou contornos que ultrapassavam a esfera do religioso,
por suas atividades assistencialistas, pelo seu carisma, sendo percebido como o indivíduo
ideal para a carreira política no espaço do legislativo.
Com atitudes parecidas com a troca de favores políticos e conseguindo juntar adeptos
e seguidores para sua missão, Seu Antonio viu em Seu Martinho o candidato perfeito para
exercer o cargo de vereador e conquistar votos para o grupo político da ARENA (Aliança
Renovadora Nacional), ao qual estava vinculado. Seu Martinho possuía um certo domínio
religioso na comunidade, e para Seu Antonio Mota esse domínio poderia ser estendido para a
esfera política. Nesse sentido, assevera Bourdieu que:
A estrutura das relações entre o campo religioso e o campo do poder
comanda, em cada conjuntura, a configuração da estrutura das relações
constitutivas do campo religioso que cumpre uma função externa de
legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da
ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem
política (...)193
191
Ver Dominação Carismática em WEBER, Max.Op. Cit.. p.158-161.
Entrevista com Antonio Barreto Mota. Depoimento citado.
193
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit. 2007, p.69
192
117
A candidatura de Seu Martinho na conjuntura política do período não representava
perigo a ordem estabelecida, pois o grupo político ao qual se vinculava apoiava a situação
ditatorial vigente no qual o espaço de atuação do legislativo ainda estava bastante restrito às
práticas assistencialistas. Legitimado como um líder representante da comunidade do Riachão
dos Milagres que por sua missão religiosa já acolhia os devotos e intercedia nas curas sem
cobrar donativos, Seu Martinho afirma ter aceitado se candidatar vereador para conseguir
melhorias para a comunidade, como ampliação, conservação das estradas, construção de
prédio escolar na comunidade, atendimento médico, dentre outros. Eleito como suplente nas
eleições de 1976, e segundo a narrativa de Seu Antonio Barreto Mota, conseguindo a mesma
quantidade de votos do vereador eleito, Seu Marcolino Figueira, ficou na suplência devido a
idade inferior.194 Seu Martinho afirmou que não fez campanha em seu próprio favor, apenas
dizia que apoiava o prefeito, mas que os seus amigos, parentes, compadres, comadres e
afilhados o elegeram. Com o afastamento do vereador eleito, por motivo de doença, Seu
Martinho foi empossado vereador no dia 26 de maio de 1978.195
Nas atas das sessões dos anos de 1978 a 1982, percebemos a assiduidade de Seu
Martinho nas sessões e encontramos algumas interferências, na sua maioria buscando
melhorias para as estradas que levam à Riachão dos Milagres:
No expediente nada foi apresentado, passando a ordem do dia o vereador
Martins Góis da Silva, usou a palavra pedindo por meio deste legislativo que
o Sr. prefeito mande colocar cascalho nestes meios de estradas que se acha
em estado de ruína.196
A participação de Seu Martinho na política do município de Dom Macedo Costa foi
impulsionada pelo incentivo de amigos e populares da comunidade, devido a sua missão
religiosa e o acolhimento gratuito que dava aos devotos na casa dos romeiros, viabilizando
serviços para a comunidade. Em todas as participações de Seu Martinho nas sessões
encontramos reivindicações de melhoramentos das estradas para a área rural e também para a
comunidade do Riachão dos Milagres. Apesar de possuir um reconhecimento no município,
194
Informações baseadas no depoimento citado de Seu Antonio Barreto Mota.
Informações baseadas no livro de Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba
do ano de 1977.
196
Ata da 203ª sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba em 19/10/1979. Livro de
Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba do ano de 1977.
195
118
em seu mandato não conseguiu viabilizar grandes mudanças ou projetos na comunidade e
seus requerimentos se resumiram a solicitações de melhoria das estradas.197
Após um ano do início de seu mandato, Seu Martinho, continuava requerendo a
melhoria das estradas que davam acesso às comunidades rurais, provavelmente a precariedade
das vias dificultava também o acesso dos devotos que recorriam as práticas de cura na Igreja
do Anjo São Gabriel. Se Seu Martinho estava apontando a dificuldade de passagem de “carro
grande ou pequeno, como também animais”, significa que havia uma grande procura por suas
práticas e também já havia a sua representação enquanto proclamador de curas a ponto de
considerar a comunidade como “seu sector”.
Sua participação na política esteve sempre ligada a sua vida religiosa na comunidade
e suas solicitações estavam atreladas a melhorias no acesso, possibilitando a procura pelas
práticas religiosas atribuídas a sua missão. Seu sobrinho, Manoel da Lapa, narrou um pouco
sobre o exercício do mandato de vereador de Seu Martinho, apontando as dificuldades na
conciliação entre a vida religiosa e política:
[...] então ele teria que seguir a risca o compromisso da igreja, mesmo ele
sendo um homem público, mas ele não poderia sair da ética, principalmente
dos princípios religiosos e para conciliar religião e política é complicado...
então ele ficou no mandato mesmo assim ajudou em alguns projetos como o
melhoramento das estradas, porque naquele tempo era precária a estrada ali,
não tinha cascalho, não eram encascalhadas, não tinha acesso de carros
pesados e ele junto com os colegas vereadores naquela administração
naquela época conseguiu. Bom, ao bem estar daquela comunidade Riachão
dos Milagres o que ele conseguiu foi isso aí, porque outros meios não foi
viável, não foi possível..198
A narrativa de Manoel da Lapa reafirma a participação política limitada de seu
Martinho, enquanto representante da comunidade, se resumindo a favores locais e de
abrangência imediata, porém demonstra a preocupação com uma adequação entre a ética
religiosa vivenciada na missão de Seu Martinho e sua postura política. Seria impossível
conciliar a ética religiosa com o exercício de um cargo político? Ou seriam dois campos
lugares de disputas diferentes na sociedade? De acordo com Bourdieu,
197
Informações baseadas na Ata da 25ª sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba em
27/10/1980. Livro de Atas nº 03 da Câmara Municipal de Vereadores de Dom Macedo Costa-Ba do ano de 1977.
198
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
119
A concorrência pelo poder religioso deve sua especificidade (em relação por
exemplo, à concorrência que se estabelece no campo político) ao fato de que
seu alvo reside no monopólio do exercício legítimo do poder de modificar as
bases duradouras e em profundidade a prática e a visão do mundo dos leigos,
impondo-lhes e inculcando-lhes um habitus religioso particular, isto é uma
disposição duradoura, generalizada e tranferível de agir e de pensar
conforme os princípios de uma visão (quase) sistemática do mundo e da
existência.199
Nesse sentido, as possibilidades de liderança de Seu Martinho eram muito maiores
no campo religioso do que no campo político. Como líder religioso, ainda que leigo, ele
alcançou autonomia e características próprias de liderança atribuídas a sua missão, resolvendo
as mazelas de seus devotos por seus próprios méritos de mensageiro obediente ao Anjo São
Gabriel. Impunha ainda regras de comportamentos, hábitos particulares de acordo com sua
crença e a sua concepção de mundo. Como político, Seu Martinho necessitava de solicitações
formais na câmara de vereadores ou ao prefeito, dependendo de soluções de terceiros para
solucionar as dificuldades apresentadas na comunidade e os hábitos ou mudanças de
comportamento no campo político não estavam ao seu alcance. Nesse sentido, o discurso
religioso é imposto e absorvido com maior rapidez face as soluções de problemas realizadas
por Martinho, o mesmo não acontecia no campo político. Além disso, o exercício de seu
cargo político demandava tempo o afastando da sua missão religiosa, uma vez que os devotos
o procuravam e ainda o procuram a qualquer momento do dia para curar suas doenças. Com
sua prática política, Seu Martinho perdia espaço no campo religioso, deixando porventura de
atender os fiéis em suas ausências da comunidade.
Seu Martinho também seguia algumas abstinências que lhe foram exigidas ao receber
sua missão e pregava princípios religiosos presentes no Antigo Testamento,
200
afastando-o
dessa forma das vivências no mundo da política marcado, em sua maioria por promessas não
cumpridas, jogos de interesse, manipulações.201 A permanência de Seu Martinho na política,
colocaria em risco a credibilidade alcançada por ele no exercício de sua missão religiosa, uma
vez que “a dedicação, por obrigação, aos interesses dos mandantes, faz esquecer os interesses
dos mandatários”202, o afastando do seu sonho:
199
BOURDIEU, Pierre.Op. Cit.. p.88.
As abstnências seguidas por Seu Martinho, foram mencionadas no subítem 1.3 do primeiro capítulo.
201
O mundo da política aqui está sendo tomado num sentido bastante restrito, visto que o mesmo é bastante
amplo e complexo, cujo especialistas da ciência política e da abordagem da história polítca procuram analisar.
202
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico.3 ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2000. p. 176.
200
120
Aí ele escalou eu pra ser o prefeito na saída dele aí eu não aceitei e disse
assim: me desculpe, mas eu tenho minha missão não posso corresponder a
uma irresponsabilidade (...) fui vereador uma vez, mas não que eu aceitasse,
o povo que fez, mas eu não quis não (...) Eu tinha minha missão a cumprir,
não ia me submeter a uma irresponsabilidade, né? Prefiro a morte antes da
data, do tempo de que eu abandonar essa missão, a cruz que Deus me deu a
carrregar. Realizei meus sonhos, hoje tô com minha igreja e realizei meu
sonho, hoje estou na batina e tô com minha igreja, é o que eu queria, aí na
missão distribuo a comunhão todo domingo, não é? 203
Exercendo sua missão religiosa, Seu Martinho realizou o seu sonho de criança: ser
padre. Não conseguiu ser um sacerdote ordenado pela Igreja, porém conseguiu uma
abrangência ainda maior, tendo a própria igreja, liderando uma comunidade e adquirindo o
reconhecimento pelos fiéis. Como ministro da eucaristia ainda exercia/exerce a função de
distribuir a eucaristia selecionando com rigor os fiéis que a recebem. Enquanto líder religioso
Seu Martinho garantia a realização de seu sonho, mas ao se direcionar para o campo político
ele perdia autonomia e colocava em risco a sua liderança religiosa. Com uma visível
popularidade, vivenciando uma religiosidade na qual “ele se doa, cuida, sem distinção”204,
Seu Martinho ganhou o respeito e a admiração da comunidade e dos devotos, traduzindo tal
relação na política através da sua eleição, considerando que mesmo sem pedir votos obteve
uma votação expressiva:
Eu só dizia ao pessoal em geral, eu estou com o prefeito, ele me candidatou a
vereador, mas eu não quero ser vereador, dizia ao povo, mas o povo tudo
doidinho chegava e votava sem eu querer ser vereador. Através do povo ele
ganhou, aí ele trouxe a estrada pra qui pra porta da igreja, né.(...) Meus
irmãos, minhas irmãs, todos parentes, compadre, comadre, afilhados, eu não
pedi voto a ninguém, só a palavra que eu dava eu não quero ser vereador.
O apoio de Seu Martinho ao candidato a prefeito o ajudou a se eleger e mesmo sem
pedir votos para si próprio, resultou em sua eleição como vereador. Sem a realização de
campanha política a seu favor, Seu Martinho foi votado por seus familiares e amigos da
comunidade, muito deles seus compadres, comadres e afilhados, sendo esses últimos um
número que gira em torno de “pra mais de 600 afilhados”205. Somando-se a representação de
Seu Martinho na comunidade, como amigo, padrinho, homem religioso, sério, com a
203
Entrevista com Seu Martins Góis da Silva. Depoimento citado.
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
205
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
204
121
promessa de melhorias de estradas do candidato a prefeito, Seu Martinho foi eleito, retratando
desse modo, o anseio da comunidade do Riachão dos Milagres de ser representada por um
candidato de sua confiança.
Seu Martinho, eleito pela ARENA, que se manteve no poder na maioria dos
municípos do interior da Bahia nas eleições de 1978206, seguia uma postura política com
característica conservadora, atendendo as necessidades imediatas da comunidade. Realizava
os favores de acordo com as solicitações dos moradores do Riachão dos Milagres. As palavras
do ex-prefeito demonstram que a comunidade solicitava favores como assistência médica,
remédios, conserto da estrada. Dessa forma, Seu Martinho, enquanto representante no
legislativo da comunidade, atuava com práticas conservadoras, seguindo uma política
clientelista.
Nesse período de abertura do processo político brasileiro começaram a emergir
movimentos sociais, uma parcela da Igreja Católica assume o papel de assessora destes por
meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Surgiam movimentos ancorados pela Igreja
católica, que reivindicavam melhores condições de vida e também uma maior participação nas
decisões políticas o país.207 As CEBs se organizavam “principalmente nas zonas rurais (...)
reunindo pessoas em torno à leitura e reflexão bíblica, à celebração do culto dominical, e de
movimentos sociais em defesa dos direitos da cidadania”208
Criadas na década de 1960, foi no início da década de 1970 que as CEBs começaram
a se difundir, inicialmente no campo com liderança leiga, apoiada pela Igreja. “Nas
comunidades emergiam novas formas de catecismo, de liturgias, de vivência comunitária e de
teologia”209. Assim, a Igreja se aproximava dos populares como grupos de devoção, mas
também com características de grupo para discussões políticas. “Quando o Estado reprimia os
sindicatos e as associações de bairros, as CEBs tornavam-se quase as únicas organizações
206
Sobre as aleiçoes de 1978 na Bahia ver capítulo IV de JACOBINA, André Teixeira. Clivagens partidárias:
ARENA e MDB baianos em tempos de distensão (1974-1979) . Dissertação de Mestrado do programa de PósGraduação da UFBA. Salvador. 2010.p. 127 a 153
207
Ver FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo. Gestão Municipal e Participação Social no Brasil: A trajetória de
Recife e Salvador (1986-2000). São Paulo: Annablume; Fapesb, 2004, p.75-81. Cabe ressaltar que dentre os
evangélicos protestantes também há registros de indivíduos e grupos que atuaram na mobilização e defesa de
movimentos visando a melhoria das condições de vida e a maior participação política no país, em especial, os
movimentos de assessoria aos trabalhadores rurais Ver: SILVA, Elizete da. Protestantismo Ecumênico e
Realidade Brasileira: evangélicos progressitas em Feira de Santna. Feira de Santana. Editora da Uefs. 2010. p.
196-202
208
OLIVEIRA, Pedro A. R. de. Estruturas de Igreja e conflitos religiosos. In: SANCHIS, Pierre (Org).
Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992. p. 45.
209
MAINWARING, Scott. Igrega Católica e Política no Brasil ( 1916-1985). São Paulo: Brasiliense. 2004.p
200.
122
populares onde as pessoas se organizavam para discutir suas vidas cotidianas, seus valores e
suas necessidades políticas.”210
Diferenciando-se da emergência das CEBs, principalmente das comunidades rurais, a
comunidade liderada por Seu Martinho seguia as formas tradicionais de catecismo, numa
vivência comunitária onde prevalecia uma política de troca de favores dependente do grupo
político vigente no poder. Ao contrário, as CEBs eram comunidades autônomas. “Estavam e
ainda estão mais preocupadas com o próprio desenvolvimento do que criar laços no
tradicional estilo populista, com políticos que poderiam lhe obter favores.”211
Seu Martinho se apresentava, então, numa perspectiva mais individualista, voltado
para o cumprimento de sua missão que não se inseria no contexto liderado pela Igreja Popular
“ uma comunidade de fé (...) ligada aos movimentos sociais, sindicais e político-partidários
das classes populares.”212. A Igreja Popular, cujo núcleo era as CEBs, estava pautada numa
espiritualidade “marcada pela ênfase na luta pela vida e pela libertação que se dá no campo
histórico terreno”, se opondo a uma “espiritualidade de salvação individual”. Essa
espiritualidade estava centrada na leitura da bíblia, buscando a “narrativa da libertação dos
oprimidos mais do que uma ética de comportamento individual (como faz a leitura
salvacionista)”213.
Sempre preocupado com “uma ética de comportamento individual”, a religiosidade
vivenciada na comunidade do Riachão dos Milagres divergia da proposta da Igreja Popular do
período, que representava uma corporação religiosa na comunidade católico-romana do
Brasil, realizando “um trabalho propriamente religioso produzindo e reproduzindo
significados sagrados que deem sentido à vida social”
214
. Além disso, Seu Martinho não
realizava uma catequese nos moldes propostos pela Igreja Popular relacionando os textos
bíblicos às lutas e classes populares, exercendo ainda sua vereança numa linha política
conservadora. Se a Igreja Popular apresentava-se conforme uma corporação religiosa, implica
“que a Igreja não se transformou no todo, embora insista em seu caráter universal, a
instituição abriga visões diferenciadas da fé e das práticas-religiosas”215.
210
Ibid
Ibid
212
SILVA, Margarete Pereira da. O bispo de Juazeiro e a ditadura militar. In:ZACHARIADHES, Grimaldo
Carneiro (org). Ditadura militar na Bahia : novos olhares, novos objetos, novos horizontes. Salvador :
EDUFBA, 2009. p. 248.
213
OLIVEIRA, Pedro A. R. de. Estruturas de Igreja e conflitos religiosos. In: SANCHIS, Pierre (Org). Op. Cit.
p. 51.
214
Ibid . p. 51.
215
SILVA, Margarete Pereira da. O bispo de Juazeiro e a ditadura militar. In:ZACHARIADHES, Grimaldo
Carneiro (org). Op. Cit. p. 248.
211
123
Os movimentos sociais que demandavam a ampliação da cidadania no país,
afloravam, porém “ isso não significa dizer que a partir daí desapareceria o clientelismo,
presente na cultura política brasileira, nas relações entre Estado e Sociedade”. 216 Dessa forma,
na Comunidade do Riachão dos Milagres, Seu Martinho exercia sua vereança, dentro dos
moldes do clientelismo e representava uma liderança conservadora para os anseios dos
moradores, com demandas imediatas e locais.
Mesmo sem estar atuando enquanto vereador, mas tendo exercido uma postura
política centrada na reivindicação do atendimento às demandas locais, Seu Martinho por sua
representação de líder da comunidade, conquistou a construção de um prédio escolar com a
doação do espaço no seu terreno:
Conseguiu também depois por esse respaldo que ele tinha deixado como
homem sério que foi também naquele mandato de vereador, um colégio, né
um prédio que ele doou até o terreno pra que fosse instalado o prédio. Foi
uma doação dele, foi reivindicação dele.217
A construção do prédio escolar se constitui como algo relevante para a comunidade
do Riachão, considerando que antes da existência do prédio, as crianças em idade escolar para
o Ensino Fundamental I, precisavam se deslocar para a comunidade próxima, a fim de
estudar.218 Também significou uma conquista paupável e duradoura, como fruto do “respaldo”
de Seu Martinho, enquanto vereador e líder religioso, ajudando a legitimar o seu papel de
liderança na comunidade.
3.3- Redução da quantidade de devotos na Igreja do Anjo São Gabriel.
A procura pelas práticas de cura proclamadas na Igreja do Anjo São Gabriel, vem
passando por um processo de redução, desde a primeira década do ano 2000. A quantidade de
216
FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo.Op. Cit., p.82
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
218
Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município
de Santo Antonio de Jesus, em 10/03/2010.
217
124
populares que se deslocam e se aglomeram na comunidade para resolverem suas mazelas
corriqueiras ou as suas doenças incuráveis não é a mesma dos primeiros anos. A quantidade
de devotos organizados em romarias, trajando as vestes impostas por Seu Martinho, todos os
domingos para assistirem as celebrações, receberem a bênção e encherem seus vasilhames
com água benzida também não é mais a mesma. Entretanto, existem ainda os populares
fervorosos e fiéis que dão continuidade as suas devoções, há décadas. Existem também os
populares que vão à procura de uma cura ou bênção, mas não mantém uma freqüência
constante à igreja para a devoção do Anjo São Gabriel.
A narrativa de Seu Antonio do Sindicato indica essa baixa procura pelo Mensageiro
do Anjo São Gabriel:
[...] hoje digo a você que dimunuiu em torno de 70 a 80%, porque era gente,
era muita gente que vinha, hoje diminuiu bastante. Não se sabe se foi por
motivo da própria tradição dele, aí depois teve que mudar, você sabe que
isso pra quem acompanha é um choque. Você já tem aquela tradição, só é
branco, não corta cabelo, não faz barba, nada aí daqui a pouco você já
começa a mudar o visual, corta cabelo, a roupa começa a vestir de qualquer
cor, faz barba, aí pra quem tá indo já percebe que houve um choque naquela
maneira de ser atendido.219
As mudanças realizadas na maneira de vestir-se de Seu Martinho foram apontadas
como um motivo que teria levado à redução do número de devotos na Igreja do Anjo São
Gabriel. Para Seu Antonio do Sindicato representou um “choque” essas transformações, as
quais fizeram com que os devotos passassem a vê-lo com um ser humano com características
comuns. A composição de sua imagem, constituída de elementos que o tornavam um ser
humano excepcional, diferente, sustentavam a representação do humano escolhido para
cumprir uma missão divina. O branco simboliza pureza, sacralidade, se aproximando no
imaginário popular da representação dos anjos. As renúncias relacionadas ao cabelo e à barba
certamente simbolizavam uma espécie de sacrifício no cumprimento da missão, quiçá uma
renúncia aos apelos da vaidade e à medida que ele se desfez dessa composição, abriu
precedentes para questionamentos no tocante à eficácia de suas práticas pelos devotos.
O padre Nelson Franca aponta a mídia televisiva como uma alternativa para os
populares obterem suas curas e bênçãos sem se deslocarem da comodidade de seus lares.
219
Entrevista com Seu Antonio Carlos de Souza Santos. Depoimento citado.
125
“Basta botar um copo com água em cima da televisão e depois beber aquela água, é muito
mais cômodo e mais prático, então é meio complicado tudo isso”. 220 Programas católicos
como a Novena dos Filhos do Pai Eterno, apresentada pelo padre Robson de Oliveira exibido
na Rede Vida, a Missa de Cura exibidas às quartas-feiras à noite na Canção Nova e a
celebrações eucarísticas com o padre Marcelo Rossi, na Rede Vida e na Rede Globo
exemplificam a narrativa do padre. Soma-se ainda os programas evangélicos da Igreja
Internacional da Graça de Deus, exibidos na Rede TV e da Igreja Universal do Reino de
Deus, na Rede Record. Esses programas apresentam-se como “um novo modo de “gestão da
crença”, e também processos de atendimentos das demandas relacionadas com dimensões
situacionais da vida dos fiéis.”221
A quantidade de ofertas de curas através dos programas religiosos na televisão
tornou comum e possível em diversos espaços as práticas mágico-curativas. Dessa forma, as
práticas religiosas vivenciadas na Igreja do Anjo São Gabriel não mais representariam uma
novidade para os populares, visto que em seus lares, teriam ofertas religiosas semelhantes,
com mais comodidade e sem ônus. Não apenas através da televisão, como também pelas
ondas do rádio.
É válido ressaltar que os padrões de vida urbanos foram aos poucos sendo
incorporados às comunidades rurais. Na comunidade do Riachão dos Milagres a energia
elétrica ocupou o lugar do candeeiro na década de 1990 222, e o rádio e a televisão eram
movidas através da pilha e da bateria automotiva e por isso não eram constantemente
utilizados como nos dias atuais. Nas memórias dos trabalhadores rurais do município de Dom
Macedo Costa, nas décadas de 1930 a 1960, Edinélia Souza aponta para uma certa resistência
desses para com o rádio, numa passagem em que um comprador de imagens propõe a uma
trabalhadora a troca de uma de suas imagens por um rádio, indicando que “além de afastar-se
de signos protetores de entidades prestadoras de auxílios, a troca dos santos pelo rádio
aumentaria suas despesas financeiras, alteraria suas práticas cotidianas.” 223 Desse modo, no
início da década de 1990 é que se popularizaria o uso da televisão nesses meios rurais,
contribuindo ao certo para o processo de redução na procura pelas práticas religiosas
realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel.
220
Entrevista com o padre Nelson Franca. Depoimento citado.
FAUSTO NETO, Antonio. Dispositivos de tele-cura e contratos da salvação. “Você que disse que Deus fazia
isso só antigamente, Deus continua fazendo hoje pela televisão” (Missa de Cura e de Libertação, TV Canção
Nova, 16.01.05). In UNIrevista.vol 3, nº 01. Julho de 2006. P. 1.
222
Informações baseadas no depoimento de Dona Janete Souza, aposentada. Entrevista realizada no município
de Santo Antonio de Jesus, em 10/03/2010.
223
SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Op. Cit.P.132.
221
126
Quando o padre Nelson Franca afirma que a televisão traz para a população a
comodidade de receber as curas em casa e assistir aos cultos, ele demonstra que não somente
a Igreja do Anjo São Gabriel perdeu devotos para os programas católicos, mas toda a Igreja
Católica devido à proliferação de programas das denominações neopentecostais, abordando
práticas curativas e de prosperidade econômica transmitidos pela televisão e pelo rádio.
Vale ressaltar que a partir do final da década de 1970, o neopentecostalismo teria se
iniciado no Brasil, surgindo “num clima de crise social, de desemprego, violência e tráfico de
drogas, no Rio de Janeiro, com o aparecimento da Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja
Internacional da Graça e Igreja Renascer em Cristo”.224 O crescimento do número de adeptos
ao neopentecostalismo mostra a quebra da hegemonia da Igreja Católica nas últimas décadas e
um processo de transformação da religiosidade brasileira. Nessa perspectiva,
o longo percurso de interpretação da relação entre religião e modernidade
será a matéria-prima do paradigma da secularização a qual abrange três
grandes dimensões: a racionalização e laicização das condutas religiosas
(desencantamento), acompanhado das forças econômicas; a quebra do
monopólio religioso, com o conseqüente pluralismo de ofertas de sentido e
crenças; e a diferenciação funcional das esferas, seja política, seja econômica
ou religiosa, o que leva a que a religião se recolha para a esfera da vida
privada dos indivíduos.225
As mudanças econômicas, sociais, políticas interferem diretamente nas dinâmicas
religiosas dos populares, modificando-as ao longo do tempo. A Igreja Católica foi perdendo
sua hegemonia à medida em que essas mudanças ocorridas na sociedade, desenvolveram nos
populares o desejo de uma prática religiosa com promessas de resoluções mais rápidas pra os
problemas cotidianos, fossem estes relacionados a curas de doenças, males financeiros ou
mazelas sociais. No depoimento de Manoel da Lapa ele demonstra uma preocupação com as
ofertas de outros segmentos religiosos:
(...) se houve redução pode ser em função dessa nova era, essa nova
juventude, elas são mais vaidosas. (...) Hoje vai pessoas lá, pessoas de fé,
pessoas que conhece a palavra, vai em busca da palavra ou até de uma graça.
Qualquer igreja católica ou qualquer igreja que prega verdadeiramente Jesus
Cristo, através dela, as pessoas pode alcançar graça e cura. Agora eu digo, há
224
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: Da constituinte ao impeachment. Campinas, Universidade
Estadual de Campinas, 1993. Tese de doutorado em Ciências Sociais.p.66.In: SANTOS, Adriana Martins dos. A
construção do Reino: a Igreja Universal e as instituições políticas soteropolitanas (1980-2002).Dissertação
(Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Salvador, 2009. P.18
225
DÁVILA, Brenda Maribel Carranza. Movimentos do catolicismo brasileiro : cultura, mídia, instituição /
Campinas,SP 2005. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas.p.17
127
o verdadeiro Jesus Cristo, há o verdadeiro Deus, não viver do faz de conta
ou de enganar quem quer ser enganado. Porque tem muitas pessoas se
enganando aí, brincando com a palavra de Deus (...) É preciso ter cuidado.226
Na narrativa de Manoel da Lapa percebemos que ao mencionar as “muitas pessoas se
enganando por aí”, possivelmente ele está se referindo aos adeptos das igrejas neopentecostais
que oferecem cura e prosperidade imediata, sem exigir o cumprimento das normas impostas
por Seu Martinho para o alcance de graças. Com uma juventude “mais vaidosa” “dessa nova
era”, que não se enquadra nos princípios religiosos propostos na Igreja do Anjo São Gabriel,
pautados numa releitura do Antigo Testamento.
Dom João Nilton indicou outros fatores que contribuiriam para a redução na busca
pelas práticas mágico-curativas:
Hoje com um mundo mais secularizado e depois com os serviços que o
próprio poder público vai oferecendo, as pessoas vão buscando já
diretamente estes novos meios e aqui me parece que há uma certo declínio
dessa busca do religioso, do sagrado como solução dos problemas, o que
acho isso também interessante, porque faz uma provocação a respeito do que
é a fé (...). Acredito que hoje já não se busca tanto o religioso para a solução
de problemas. A sociedade moderna ela já oferece mais serviços e serviços
que estão mais próximos do povo, há aqui já um outro modo, uma outra
cultura, a cultura de você buscar mais o científico, não é que haja um
abandono de Deus não é uma rejeição a Deus, mas é que você vai
entendendo que você já tem outros meios para solucionar os seus próprios
problemas.227
Em sua narrativa, o bispo aponta as mudanças da “sociedade moderna”, num “mundo
mais secularizado” como os possíveis motivos para o declínio na busca pelo sagrado para
resolução dos problemas cotidianos. Contudo, tais mudanças passariam por uma pluralidade
de ideias e crenças, as quais indicariam novos caminhos religiosos para os populares. “A
secularização multiplica os universos religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista
como interna e estrutural ao processo da modernidade”.228 Assim, ocorreria “uma
religiosidade plural que busca espaços alternativos aos tradicionalmente instituídos,”229
apresentando diversas alternativas de práticas religiosas curativas para os populares, que além
de oferecer curas para as doenças, auxiliaria com promessas de resolução dos problemas
226
Entrevista com Manoel da Lapa Silva Santos. Depoimento citado.
Entrevista com o Bispo Dom João Nilton dos Santos Souza. Depoimento citado.
228
STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, Modernidade e Tradição.Transformações do Campo Religioso. In:
Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: Oct. 2001, Año III, nº03. p.116.
229
SILVA, Elizete da. A Igreja Universal do Reino de Deus e os reinos deste mundo.
www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_I/elizete_silva.pdf. p 4. Acesso em 14/01/2011.
227
128
sócio-econômicos, pois na “teologia da prosperidade “Deus é grande e é Senhor de todas as
riquezas, portanto só ele pode libertar o fiel da pobreza”230
Além das alternativas do ponto de vista religioso, o “mundo mais secularizado”
apontado pelo bispo, engloba as mudanças ocorridas no sistema de saúde, que oferecem,
senão o atendimento, mas a promessa de serviços com mais qualidade e de forma mais
acessível nos últimos anos. As políticas públicas relacionadas à saúde mudaram nos anos 90
com a construção do Sistema Único de Saúde (SUS)231, que mesmo não atendendo
satisfatoriamente a toda população usuária, significou um avanço para a sáude no Brasil,
indicando uma alternativa de busca por curas, independente do caminho religioso. No
município de Dom Macedo Costa, segundo os dados sobre o serviços de saúde no ano de
2009, existem três estabelecimentos de saúde pelo SUS na cidade e não foi apontada a
ocorrência de nenhum serviço médico pela rede privada. Esses estabelecimentos funcionam
apenas como postos de atendimento para consultas232, sendo que nos casos de doenças, com a
necessidade de exames, cirurgias e internamentos, os pacientes tendem a se deslocar para o
Hospital Regional no município vizinho de Santo Antonio de Jesus.
Indo além das questões da religiosidade plural e do ampliar dos serviços médicos é
preciso ponderar ainda que essa “outra cultura” aponta novas práticas cotidianas que
aumentam as mazelas de saúde vivenciadas pelos devotos:
As condições de vida, alimentação, higiene, o desemprego, as jornadas
excessivas de trabalho, o desgaste físico e mental, entre outros problemas,
levam a população a adoecer e procurar os serviços de saúde, na tentativa de
uma assistência e resolutividade de seus problemas, muitos deles de
depressão, angústia, estresse, e etc.233
Enfrentando dificuldades de acesso ou de resolução de seus males ao procurar os
serviços de saúde, os populares tendem a recorrer as práticas alternativas de cura nos espaços
religiosos, que se apresentam numa enorme diversidade nos últimos anos. Dessa forma, os
males adquiridos com a correria vivenciada no cotidiano, que não deixa espaço para o lazer, a
230
SILVA, Elizete da. Protestantismo em Feira de Santana:algumas considerações. Disponível em
hptt//www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_II/elizete_da_silva.pdf. P.8. Acesso em 14/01/2011.
231
Sobre a construção do SUS ver NEGRI, Barjas. A Política de Saúde no Brasil nos anos 90: Avanços e
Limites. Brasília: Ministério da Saúde. 2002. P. 7-9.
232
Informações baseadas nos dados do IBGE. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso em 18/12/2010.
233
VALLA, V. V., 1999. A Educação Popular a Saúde Diante das Formas Alternativas de Lidar com a Saúde.
Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. (mimeo.) apud PIETRUKOWICZ,
Marcia Cristina Leal Cypriano. Apoio social e religião: uma forma de enfrentamento dos problemas de saúde.
Pós- Graduação em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 2001.
129
religiosidade, a vida em família, seriam atenuados não somente no aspecto medicinal, como
também no religioso.
O que nos chama a atenção é que mesmo com avanços nos serviços médicoshospitalares, com uma maior acessibilidade e veiculação de informações nesse sentido, a
busca por práticas mágico-curativas não entrou em declínio, ao contrário houve um aumento
de opções para os populares que recorrem a essa alternativa. Os cultos neopentencostais, a
renovação carismática católica, seja no próprio espaço religioso, pelo rádio, televisão ou
internet ampliaram as possibilidades de cura dos populares, que muitas vezes não precisam se
deslocarem de seus lares, a bênção chega até eles, é só escolher a mídia. Nesse sentido, a
mídia televisiva apresenta várias alternativas:
(...) a partir dos últimos dez anos, a televisão religiosa tem adquirido mais
notoriedade, visto o impulso que a Igreja católica veio a ter com o
investimento maciço da TV Século XXI, a TV Canção Nova, a Rede Vida de
Televisão, e outros canais católicos, além da expansão da programação das
teletransmissoras neopentecostais.234
De certa forma, a facilidade com que a mídia se apresenta ao público em geral, seria
a responsável pela redução na procura pelas práticas de cura proclamadas pelo Mensageiro do
Anjo São Gabriel. Quiçá também não necessitando se trajar de acordo com as normas
impostas por Seu Martinho, as mulheres tenham optado em recorrer as curas ofertadas nas
novenas, celebrações e cultos através da mídia televisa e radiofônica. As curas oferecidas nos
programas religiosos através da mídia televisiva e radiofônica podem se apresentar como uma
alternativa perante as práticas curativas realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel, contudo é
válido ressaltar que não significou o abandono dos devotos, pois estes continuam presentes, se
deslocando ou até residindo em Riachão dos Milagres.
Na festa de aniversário da missão que acontece todos os anos no dia 30 de outubro,
ainda se percebe um bom número de devotos que vão à igreja, comemorar com Seu Martinho
o seu dom curativo, intermediado pelo Anjo Gabriel. Nos dois últimos anos, 2009 e 2010,
após a celebração, ele distribuiu como “lembrança” aos devotos um calendário, com fotos e
mensagens de sua missão religiosa:
234
DÁVILA, Brenda Maribel Carranza. Op. Cit.p.189.
130
Fotografia 24: Calendário distribuído na festa dos 43 anos de missão em 30/10/2010.
O calendário distribuído por Seu Martinho aos devotos presentes à sua festa de 43
anos de missão, indica uma preocupação em divulgar as práticas religiosas ocorridas na
comunidade. Apesar de “ter facilidade de comunicação”, ele não se adaptou aos novos meios
de divulgação e comunicação como a internet, com sites, blogs, etc. Procurou uma forma
simples, acessível aos devotos e com grande poder de divulgação, afinal os calendários
geralmente ficam pendurados nas paredes das casas nos cômodos mais visitados, como a sala
e a cozinha, despertando a curiosidade e o interesse de quem o vê.
A “lembrança” se constitui de elementos que despertam a atenção do receptor para
as práticas religiosas de Seu Martinho. Vislumbramos uma comunicação direta dele com o
devoto na bênção ofertada no topo do calendário, passando uma visão de proteção para a
residência que a possuir. Apresentando-se como o Anjo Gabriel, na tradição católica, como “o
patrono dos sacerdotes” e “o protetor de todos os servos e servas de Deus”235, com a bênção
ofertada no calendário, os devotos se apropriam da representação de Seu Martinho enquanto
padre ou servo com caráter extraordinário, diferente.
O endereço e o número do celular expostos garantem a difusão do espaço sagrado
para os interessados. As fotografias de Seu Martinho, da Igreja do Anjo Gabriel tendem a
235
Ver expressões na Ladainha dos Santos Anjos.
131
demonstrar a sua imagem, enquanto mensageiro do anjo, e a igreja, espaço sagrado para
realização das práticas religiosas, reforçando “o ir e vir entre imagens e imaginários”236
A oração impressa no calendário mostra uma invocação dos devotos ao anjo, com
súplicas que sugerem “desprezar o mundo”, numa referência ao cumprimento das abstinências
próprias de sua missão religiosa, “vencer o demônio” e “ dominar as minhas más inclinações
até o fim da minha vida”, apregoando “ condutas e atitudes que devem ser assimiladas por
todos os devotos”237 e ao mesmo tempo contribuindo para a legitimação de sua representação
enquanto homem religioso, casto, contrito, cumpridor de rigorosos códigos morais.
O culto ao Anjo São Gabriel, o costume dos devotos em recorrer às práticas curativas
intermediadas por Seu Martinho ainda constitui uma ação recorrente na comunidade do
Riachão dos Milagres. Pode ter reduzido a quantidade de populares, ou a periodicidade com
que esses recorrem a essas práticas porém, não ocorreu a indiferença por parte dos devotos.
Esses continuam recorrendo à intervenção do Anjo, possivelmente conciliando com outras
alternativas curativas oferecidas pela mídia ou ainda pelos serviços médicos-hospitalares.
236
237
BRITO,Gilmário Moreira.Op. Cit, 2009. p 191.
Ibid.. p 95.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da história local tem ganhado importância e ampliado as discussões das
questões relacionadas ao cotidiano das pessoas e as vivências de seus antepassados. A
história “da gente comum, vista a partir de baixo”238, tem revelado minúcias sobre o cotidiano
e os valores das camadas consideradas subalternizadas na sociedade e, em especial, sobre a
cultura e a religiosidade populares brasileira. Nessa perspectiva, os estudos voltados para o
Recôncavo Sul, merecem uma atenção cuidadosa devido à riqueza de elementos existentes na
história do povo da região que tem se mostrado de extrema relevância para a construção/
reconstrução da cultura religiosa local e regional, uma vez que possui elementos constitutivos
da história e da identidade religiosa brasileira, bem como peculiaridades da região.
Buscamos compreender as vivências dos populares que recorriam/recorrem às
práticas de cura operadas pelo Mensageiro do Anjo São Gabriel há cerca de quatro décadas,
percebendo a dimensão das crenças e dos cultos aos anjos, santos e santas diversos que levam
os populares às peregrinações, promessas e busca de milagres, nos santuários mais famosos
e/ou nos lugares menos conhecidos. Então, estudar esse universo de curas é também refletir
sobre as influências religiosas, sociais e políticas que revestem o cotidiano dessas pessoas.
As memórias sobre as curas narradas nesse trabalho possibilitaram a percepção sobre
as vivências dos devotos que se dirigiam à Igreja do Anjo São Gabriel, demonstrando o dia a
dia, as crenças, as dificuldades frente aos serviços públicos de saúde e a fé nos intercessores
entre o ser humano e o divino, seja nos santos e anjos reconhecidos pela Igreja Católica ou no
reconhecimento de um dom ou missão religiosa, como é o caso de Seu Martinho. É essa fé
que muitas vezes, alivia as mazelas cotidianas, sustentando a esperança de dias melhores para
esses fiéis.
Percebemos, através das narrativas e dos momentos experimentados na Igreja do
Anjo São Gabriel, a devoção intensa daqueles que ali buscam as práticas religiosas,
retornando todos os anos no dia 30 de outubro, dia do recebimento da missão por Seu
Martinho demonstrando agradecimentos pela graça alcançada, característica típica do
catolicismo popular. Os devotos desse modo, agradecem, louvam, participam da celebração
do aniversário da missão e levam para suas casas vasilhames com água benta, reacendendo o
compromisso de fé naquele espaço considerado sagrado.
238
HOBSBAWM, E. Sobre História: Ensaios. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo, 1998.p.216.
133
Verificamos que a água, elemento imprescindível na realização das curas, apresentase com uma simbologia marcante na comunidade. É através dela que os devotos se sentem
agraciados e curados pelo anjo que confiou Seu Martins como mensageiro. A água representa
o elo entre o anjo e os devotos, o elemento que benzido com o dom curativo de Seu Martins, é
capaz de curar as mais variadas doenças.
Destacamos também a análise sobre o imaginário popular acerca dos “milagres”
realizados na Igreja do Anjo São Gabriel, mostrando a conservação das devoções populares,
como também um processo de transformação e reinvenção, mostrando que no Recôncavo Sul
essas práticas religiosas de devoção e culto aos santos sempre fizeram parte do cotidiano de
muitas pessoas, recorrendo às práticas mágico-religiosas para cura de males do corpo e da
alma, de maneira individual ou coletiva.
Analisamos ainda a relação e a representação religiosa e política de Seu Martinho na
comunidade local e na região, visto que, mais do que simplesmente expressão de uma dada
religiosidade se percebe uma relação de saberes e poderes. Verificamos ainda a relação da
Igreja Católica com o catolicismo popular vivenciado na Igreja do Anjo São Gabriel que,
diante da dimensão tomada pela missão de Seu Martinho se posicionou, encaminhando
Martinho para atuar como líder leigo da comunidade. Em contrapartida, ele obtinha a
tolerância da Igreja.
Na análise dos depoimentos e das fotografias, identificamos uma redução da
procura pelas práticas de cura realizadas na Igreja do Anjo São Gabriel. No conjunto dessas
narrativas, percebemos diversos motivos para tal: teologia de cura e prosperidade nas
denominações neopetencostais, a atuação da Renovação Carismática Católica, celebrações de
curas através da televisão e do rádio, modificações na forma de vestir de Martinho. Mesmo
com um número menor de devotos, a crença na missão do Mensageiro do Anjo São Gabriel
continua viva e se mantém com intensidade, atraindo fiéis de vários municípios que
ressignificam as práticas religiosas populares.
Ao final deste estudo esperamos contribuir com as discussões da História Regional e
Local, ampliando a análise sobre a história dos populares do Recôncavo Sul, envolvendo suas
crenças e práticas religiosas.
134
FONTES
ORAIS

Depoimento de Dona Celina Francisca de Souza, 60 anos, aposentada, residente em
Nossa Senhora Aparecida, zona rural de Varzedo-Ba. Entrevista realizada em
10/03/2010. Duração: 19min40s.

Depoimento de Dona Janete Souza, aposentada, residente no município de Santo
Antonio
de
Jesus-Ba.
Entrevistas
realizadas
em
10/03/2010
Duração:42min34s/13min41s.

Depoimento de Dona Maria Aurelina dos Santos, aposentada, residente em Nossa
Senhora Aparecida, zona rural de Varzedo-Ba. Entrevista realizada em 10/03/2010.
Duração: 16min17s.

Depoimento de Dona Tereza Jesus dos Santos, 54 anos, agente de serviços gerais de
uma creche, residente no município de D. Macedo Costa. Entrevista realizada em
25.03.2010. Duração: 15min13s.

Depoimento de Dona Estelita Santos Souza, 52 anos, auxiliar de serviços gerais da
biblioteca municipal de Dom Macedo Costa, onde reside. Entrevista realizada em
24/03/ 2010.Duração: 9min26s.

Depoimento de Padre Nelson Franca, pároco da Igreja Matriz de Santo Antonio, no
município de Santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba, desde
1978. Entrevista realizada em 25/03 /2010. Duração: 41min17s.

Depoimento de Seu Antonio Barreto Mota, ex-prefeito do município de Dom Macedo
Costa. Entrevista realizada em 22/03/2010. Duração: 23min08s.

Depoimento de José Raimundo Galvão, ex-padre da Paróquia do São Benedito, no
município de santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba,
residente no município de Aracaju- Se. Entrevista realizada em 23/04/2010. Duração:
39min14s.
135

Depoimento de Seu Antonio Carlos de Souza Santos, conhecido como Antonio do
Sindicato do Sindicato, residente na área rural de D. Vital do município de Dom
Macedo Costa-Ba. Entrevista realizada em 23/03/2010. Duração: 17mim17s.

Depoimento de Seu Martins Góis Silva, 75 anos, aposentado, residente na
Comunidade do Riachão dos Milagres, área rural do município de Dom Macedo
Costa-Ba. Entrevista realizada em 27/02/2010.Duração: 1h08min21s.

Depoimento de Florisce Fagundes dos Santos, 35 anos, professora, residente na
Comunidade do Riachão dos Milagres, área rural do município de Dom Macedo
Costa-Ba. Entrevista realizada em 25/03/2010.Duração: 09min28s.

Depoimento do Padre Edésio Ribeiro, atual padre da Paróquia do São Benedito, no
município de santo Antonio de Jesus, pertencente à Diocese de Amargosa-Ba.
Entrevista realizada em 26/02/2010. Duração:31min52s.

Depoimento do bispo Dom João Nilton dos Santos Souza, 67 anos, responsável pela
Diocese de Amargosa. Entrevista realizada em 17/09/2010. Duração: 27min 13 s/
12min44s.

Depoimento de Manoel da Lapa Silva Santos, 45 anos, sobrinho de Seu Martins Góis
da Silva, residente em Santo Antonio de Jesus-Ba Entrevista em 24/01/2011. Duração
55min14s.
ICONOGRÁFICAS

Fotografias do arquivo pessoal de Seu Martins Góis da Silva.

Fotografias de Wilma Santos de Santana Souza, realizadas em 04/09/2009,
31/10/2009.

Fotografias do arquivo pessoal de Dona Janete Souza.

Gravação em DVD da festa dos 42 anos de missão, realizada por Wilma
Santos de Santana Souza em 30/10/2009.
136
IMPRESSAS

Livro da Vida Dom Macedo 2006– Acervo da Biblioteca de D. Macedo.

Livreto “Salve o Mensageiro do Anjo São Gabriel”.

Livreto “Os Milagres do Anjo São Gabriel”.
137
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