Celso Antonio Pacheco Fiorillo * Regina Célia Martinez
Organizadores
OS 20 ANOS DA INTERNET NO BRASIL, SEUS REFLEXOS NO MEIO
AMBIENTE DIGITAL E SUA TUTELA JURÍDICA NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO.
2015
SUMÁRIO
Nota dos organizadores...................................................................................................4
Capítulo 1. Tutela Constitucional da Internet no Brasil em face do meio ambiente
digital...........................................................................................................5
Celso Antonio Pacheco Fiorillo
Greice Patrícia Fuller
Capítulo 2. Ambiente digital e afirmação de direitos republicanos.........................27
Caio Sperandéo de Macedo
Capítulo 3. Brasil 20 anos. Navegando e registrando no meio ambiente digitalcultural da web.........................................................................................45
Regina Célia Martinez
Capítulo 4.Direito e Tecnologia: reflexões sobre os 20 anos da Internet no Brasil.66
Augusto Tavares Rosa Marcacini
Capítulo 5. Internet e Tributação: aspectos relevantes.............................................84
Marcelo Guerra Martins
Capítulo 6. Mapeando a vigilância corporativa na internet Brasileira: privacidade
e transparência no Google e Facebook................................................114
Vitor Blotta
2
Capítulo 7. Direitos Autorais e novas formas de autoria.........................................125
Guilherme Carboni
Capítulo 8. O Direito Fundamental ao acesso à internet pelos usuários com
deficiência: marco civil da internet.......................................................148
Flávia Piva Almeida Leite
Capítulo 9. Liberdade de expressão e direitos autorais: o que o caso das biografias
não autorizadas e das fanfictions podem nos ensinar sobre o desenho
dos direitos autorais...............................................................................173
Maria Edelvacy Pinto Marinho
3
NOTA DOS ORGANIZADORES
É com imensa satisfação que entregamos à comunidade acadêmica do Direito,
o nosso livro intitulado Os 20 anos da internet no Brasil, seus reflexos no meio
ambiente digital e sua tutela jurídica na sociedade da informação.
Sentimo-nos honrados em receber a distinção por parte dos autores, que
trabalharam de forma intensa e dedicada.
O trabalho visa uma reflexão sobre o momento histórico-jurídico que
vivenciamos. A obra consiste na reunião de estudos elaborados por professores
notáveis, experientes e de Projeção nacional e internacional, que participaram
como expositores do Simpósio de mesmo título da Ordem dos Advogados do Brasil
– Seção São Paulo em 28 de setembro do corrente ano e escreveram com o
objetivo de fomentar a reflexão sobre a temática.
São Paulo, novembro de 2015.
4
CAPÍTULO 1.
TUTELA CONSTITUCIONAL DA INTERNET NO BRASIL EM FACE
DO MEIO AMBIENTE DIGITAL
Celso Antonio Pacheco Fiorillo
Greice Patrícia Fuller
1.
Breves considerações sobre internet, sociedade da informação e meio
ambiente digital

É o primeiro professor Livre- Docente em Direito Ambiental do Brasil(pela PUC/SP).Doutor e Mestre
em Direito das Relações Sociais (pela PUC/SP).Coordenador , professor, pesquisador e orientador do
Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da FMU/São Paulo bem como
Coordenador da Linha de Pesquisa Tutela Jurídica do Meio Ambiente do Programa de Mestrado em
Saúde Ambiental da FMU. Elaborador,Coordenador e Professor do Curso de Especialização em Direito
Ambiental Empresarial da FMU. Professor Visitante/Pesquisador da Facoltà di Giurisprudenza della
Seconda Università Degli Studi di Napoli-ITALIA e professor convidado visitante da Escola Superior de
Tecnologia do Instituto Politécnico de Tomar-PORTUGAL.Membro do Conselho Editorial da Revista
Veredas Qualis A2 e Parecerista da Revista de Direito da Cidade Qualis A1-UERJ e da Revista Quaestio
Iuris Qualis A2 UERJ.Assessor científico da FAPESP, parecerista ad hoc do Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal,professor efetivo da Escola de Magistratura do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região e professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados-Enfam .. Membro consultor da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB .
Representante da OAB/SP no Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa dos Interesses Difusos - FID
da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania - SP e do Fundo Estadual para Prevenção e Remediação
de Áreas Contaminadas - FEPRAC . Elaborador, coordenador e professor do Curso de Pós
Graduação/Extensão em Direito Ambiental da Escola Paulista da Magistratura-EPM. Professor do MBA
Direito Empresarial /FUNDACE vinculada à USP. Membro Titular da cadeira 43 da Academia Paulista
de Direito. Coordenador Científico do periódico Direito Ambiental Contemporâneo/Ed.Saraiva e membro
convidado do Conselho Editorial da Revista Aranzadi de Derecho Ambiental (ESPANHA). Integrante do
Comitato Scientifico do periódico Materiali e Studi di Diritto Pubblico da Seconda Università Degli Studi
Di Napoli bem como do Comitê Científico do Instituto Internacional de Estudos e Pesquisas sobre os
Bens Comuns, com sede em Paris/FRANÇA(Institut International d?Etudes et de Recherches sur les
Biens Communs) e Roma/ITALIA(Istituto Internazionale di Ricerca sui Beni Comuni).Membro da UCN,
the International Union for Conservation of Nature.

Pós-Doutoranda em Direito Ambiental pela Universidad de Navarra (Espanha) com bolsa concedida
pela CAPES, Doutora e Mestre em Direito das Relações Sociais, subárea de Direito Ambiental pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora do Curso de Mestrado do Programa
Sociedade da Informação das Faculdades Metropolitanas Unidas da Faculdade de Direito (FMU).
Professora dos Cursos de Graduação das Faculdades de Direito e Economia e Pós-Graduação Lato Sensu
de Direitos Difusos e Coletivos da (PUC/SP). Professora convidada da Escola Paulista da Magistratura de
São Paulo. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Direito Ambiental Criminal da Comissão Permanente
do Meio Ambiente OAB/SP. Avaliadora externa da Revista Brasileira do meio ambiente digital e
Sociedade da Informação,do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi) e da
Revista Quaestio Iuris Qualis A2 (ISSN 1516-0351)
5
Partindo-se do conceito de internet, observa-se que o mesmo assim foi
denominado quando iniciou-se o uso da tecnologia ARPAnet (Advanced Research
Projects Agency) por universidades e laboratórios (BLUM, 2002, p. 30) , fato esse que
teve sua extrema expansão em 1973 com a criação do Protocolo de Controle da
Transmissão/Protocolo Internet (TCP/IP) por Vinton Cerf. Claro é que não se pode
olvidar que com o evento da Guerra Fria, as duas grandes potências que a perpetravam,
a saber, Estados Unidos da América e a extinta União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) já encabeçavam grandes investimentos em alta tecnologia com o fim
de permitir a comunicação entre máquicas conectadas a uma determinada rede de suas
forças armadas, mesmo no caso de perda de funcionalidade de algum ponto causada por
algum impacto de míssil inimigo (PAESANI, 2014, p. 10).
Vê-se sobre o assunto que nos anos 1990 a internet começou a estender seu
alcance à população, notadamente com o desenvolvimento da World Wide Web (www
ou web), que possibilita a utilização de uma interface gráfica ou a criação de sites mais
sofisticados . Com o intuito de facilitar o trânsito na internet houve o surgimento dos
chamados navegadores ou browsers, provedores de acesso e portais de serviços online.
(FIORILLO, 2015, Marco Civil..., p. 15).
A partir do século XXI houve o aparecimento das redes sociais (v.g. Facebook,
Twitter) e do serviço de sites de compras coletivas, cujo objetivo foi estabelecer a
intermediação entre consumidores e empresas, gerando-se com isso, uma profunda
modificação nos modos de expressão, criação e vida das pessoas (artigo 216 da Carta
Magna de 1988).
Nesse sentido, o uso da internet deve ser compreendido como “forma, processo
ou veículo destinado a realizar a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação” (FIORILLO, 2015, Marco Civil...,p. 16). Portanto, ao se falar nessas
vertentes de manifestação e ao entendê-las como formas de criar, fazer e viver, resta
claro que o tema em questão deve ser subsumido à tutela jurídica do meio ambiente
cultural (artigos 215 a 216 da Constituição Federal) dentro do processo civilizatório da
cultura de convergência (meio ambiente digital).
Segundo o Dicionário de Comunicação de Rabaça e Barbosa, dentro da área
informática, internet consiste em uma rede de computadores de alcance mundial,
formada por inúmeras e diferentes máquinas interconectadas em todo o mundo, que
entre si trocam informações, seja através de arquivos de textos, sons e imagens
6
digitalizadas, software, e-mail etc. Interessante é que o conceito acima se dilata
estabelecendo que para além de uma rede de computadores, fala-se agora em uma rede
de pessoas ( RABAÇA; BARBOSA, 2001, p. 395)
Seguindo-se o artigo 5º da Constituição Federal que assenta o princípio da
legalidade, o chamado “Marco Civil da Internet” (Lei 12965/2014) trouxe o conceito de
internet informando:
“Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
“I- internet: os sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos,
estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de
possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes;
II- terminal: o computador ou qualquer dispositivo que se conecte à internet
(...)”
A função da rede formada pela internet é estabelecer conexão em todo o mundo
entre pessoas que trocam informações entre si.
Daí falar-se em sociedade da
informação e analisar a internet como informação.
Nas palavras de Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2015, Marco Civil...., p. 16),
encontra-se em complementação com a ideia acima trazida:
“Assim, entendido constitucionalmente como forma, processo ou veículo destinado a
realizar a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, o uso da
internet no Brasil em face da presente lei deverá ser interpretado estruturalmente e
preliminarmente em face dos princípios, garantias, direitos e deveres fixados pela
Constituição Federal Brasileira em proveito dos brasileiros e estrangeiros residentes no
País, ou seja, ser interpretado não só a partir dos princípios fundamentais de nossa
Constituição indicados nos artigos 1º a 4º, como também em face do que estabelecem os
direitos e as garantias fundamentais (artigos 5º a 17) bem como as regras superiores que
definem as relações normativas no plano da comunicação social (artigos 220 a 224 da
CF)”
Portanto, vale salientar que a comunicação de dados entre computadores ou
outros dispositivos como v.g. smartphone corresponde a interação e troca de
informações na forma de arquivos consubstanciando-se no conteúdo da internet. Por
isso é que o meio ambiente digital se encontra vinculado no âmbito do meio ambiente
cultural.
7
Sob essa ordem de ideias, o conceito de sociedade da informação1 (FIORILLO,
2015, Princípios..., p.123) aparece no cenário desta revolução tecnológica acionada no
final do século XIX pós segunda guerra mundial, gerando a alteração das estruturas
sociais, notadamente em face da área comunicacional e propiciando o amplo acesso à
informação2 (CASTELLS, p. 108)
Trata-se de uma sociedade, na qual os instrumentos de comunicação,
especialmente a internet gera uma rede de globalização cultural, ideológica, econômica,
social, originando novos modelos organizacionais, assim como, novos mercados
socioeconômicos.
Sobre o assunto, Garcia Marques e Lourenço Martins estabelecem que:
“A sociedade da informação assenta sobre o uso óptimo das novas tecnologias da
informação e da comunicação, em respeito pelos princípios democráticos, da igualdade
e da solidariedade, visando o reforço da economia e da prestação de serviços públicos e,
a final, a melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos” (2000, p.23)
No que tange ao conceito de meio ambiente, mister se faz entender que o meio
ambiente compreende sob o viés didático, vários aspectos 3 (FIORILLO, 2014, p. 61) a
saber: a) meio ambiente natural; b) meio ambiente do trabalho; c) meio ambiente
artificial e d) meio ambiente cultural. Contudo, fala-se no século XXI no chamado meio
ambiente digital.
1
Segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo é possível asseverar que “O século XXI caracteriza-se pelo
que se define como ‘sociedade da informação’, em que as tecnologias da comunicação fornecem a base
material para a integração global e favorecem o intercâmbio cada vez mais veloz de informações entre
indivíduos, corporações e instituições. Apesar das contradições e desigualdades que se fazem presentes
nesse contexto, a sociedade da informação caracteriza nova forma de produção de relações sociais,
baseada na flexibilidade e no incentivo á capacidade criacional.”
2
CASTELLS afirma que o paradigma da tecnologia da informação está fundado em cinco características,
quais sejam: 1. A informação é a sua matéria prima; 2. Penetrabilidade dos efeitos da nova tecnologia (as
atividades humanas são afetadas pela tecnologia; 3. Predomínio da lógica das redes (a rede pode ser
implementada materialmente em todos os tipos de processos e organizações); 4. Flexibilidade (a rede
possui alta capacidade de reconfiguração); 5. Convergência de tecnologias específicas (a tendência
natural é de integração de todo o sistema). In: Sociedade em Rede, p 108.
Disponível
em
https://doc-0k-a0appsviewer.googleusercontent.com/viewer/secure/pdf/3nb9bdfcv3e2h2k1cmql0ee9cvc5lole/2mk9btf1cc8
hiboa34gi46tupbo5dog4/1435328700000/drive/*/ACFrOgAUUgXttSLICF5dovlamwpEAaw_VWVX5w
xnm3nrZLSpzjiLg8Eb8xmVjJNCts0ddDP6pwm64qeGeKmikHsYXb5eTwg_t2jr_dIG3w9Iouu0ED32dAxMys85TQ=?print=true>. Acesso
em 30.09.2015.
3
Claro é que se deve compreender que a classificação acima mencionada tem como objetivo principal,
nas palavras do CelsoAntonio Pacheco Fiorillo (2014, p. 61) facilitar a identificação da atividade
degradante e do bem imediatamente violado
8
Para iniciar-se a análise sobre o meio ambiente digital, convém considerar-se a
análise pontual sobre o meio ambiente cultural, pois nele encontra-se a sua gênese
conceitual.
Sobre o assunto Celso Antonio Pachecho Fiorillo assevera com exatidão que:
“ o meio ambiente cultural manifesta-se em nosso país em face de um cultura que passa
por diversos veículos reveladores de
novo processo civilizatório adaptado
necessariamente à sociedade da informação, a saber, de nova forma de viver relacionada
a uma cultura de convergência em que as emissoras de rádio, televisão, o cinema os
videogames, a internet, as comunicações por meio de ligações de telefones fixos e
celulares etc moldam uma ‘nova vida’ reveladora da nova faceta do meio ambiente
cultural: a saber: o meio ambiente digital (2015, Princípios ..., p. 143)
Segundo o artigo 216 da Carta Política brasileira o patrimônio cultual assim é
constituído:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico” (grifo nosso).
Sob o contexto acima estabelecido pela Constituição Federal Brasileira torna-se
claro o entendimento de que os meios de comunicação compreendem o patrimônio
cultural do país, ainda que em ambiente digital, posto que foram criados para o
atendimento das necessidades humanas.
Por esta razão é que sobre o assunto se afirma:
“O meio ambiente cultural por via de consequência se revela no século XXI em nosso
país exatamente em face de uma cultura que passa por diversos veículos reveladores de
um novo processo civilizatório adaptado necessariamente à sociedade da informação, a
saber, de uma nova forma de se viver relacionada a uma cultura de convergência em que
as emissoras de rádio, televisão, o cinema, os videogames, a Internet, as comunicações,
através de ligações de telefones fixos e celulares, etc. moldam uma “nova vida”
reveladora de uma nova faceta do meio ambiente cultural, a saber: o meio ambiente
digital”. (FIORILLO, 2013, p. 13)
9
Após a digressão sobre os conceitos acima estabelecidos, convém seguir a
análise sobre o âmbito protetivo constitucional em face do meio ambiente digital.
2.
A Constituição Federal e seu arcabouço normativo - principiológico:
instrumento de tutela da internet no Direito Ambiental Brasileiro
2.1. Noções introdutórias
A Constituição Federal Brasileira impõe, em linha simultânea e correlata, em seu
artigo 225, o dever de proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado pela
coletividade e pelo Poder Público para as presentes e futuras gerações, consolidando-se
o princípio do desenvolvimento sustentável, assim como o direito ao mesmo a que
todos os brasileiros residentes são portadores :
“ Art. 225. Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”.
A ideia de meio ambiente digital como realidade ditada pelo século XXI surgiu
com o desiderato proposto para interpretar os artigos 220 a 224 da Constituição Federal
em face dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal sob as bases principiológicas
fundamentais insculpidas nos artigos 1º, 3º a 5º de nossa Carta Magna. Sob o assunto
assevera:
“ (...) O meio ambiente digital, por via de consequência, fixa no âmbito de nosso
direito positivo os deveres, direitos, obrigações e regime de responsabilidades inerentes
`a manifestação de pensamento, criação, expressão e informação realizados pela pessoa
humana com a ajuda de computadores (art. 220 da Constituição Federal) dentro do
pleno exercício dos direitos culturais assegurados a brasileiros e estrangeiros residentes
no País (arts. 215 e 5º da CF) orientado pelos princípios fundamentais da Constituição
Federal (arts. 1º a 4º da CF). Trata-se indiscutivelmente no século XXI de um dos mais
importantes aspectos do direito ambiente brasileiro destinado às presentes e futuras
gerações (art. 225 da CF), verdadeiro objetivos fundamental a ser garantido pela tutela
jurídica de nosso meio ambiente cultural (art. 3º da CF) principalmente em face do
‘abismo digital’ que ainda vivemos no Brasil” (FIORILLO, 2014, Disponível em
http://www.saraivajur.com.br/menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=1
120)
Para além das ideias acima aludidas, é importante notar que se a internet trata de
informações possibilitando comunicações de dados entre terminais através de redes
diferentes, ou seja, conexão em todo o mundo entre pessoas que trocam informações
10
entre si, é possível entender-se que o uso da rede de comunicação se faz para realizar o
que se chama de oferta como base de relações negociais que estabelece produtos e
serviços.
Portanto, o uso da internet encontra-se associado às relações econômicas
organizadas constitucionalmente na forma dos artigos 1º, inciso IV e 170 e seguintes da
Constituição Federal, recebendo tutela protetiva segundo os artigos 5º, inciso XXXII,
170, inciso V e 48 de suas Disposições Transitórias.
Resta ainda estabelecer que o uso da internet por ser meio de comunicação social
eletrônica (artigo 222, §3º da Constituição Federal) além da necessária observância dos
artigos acima traduzidos, merece observar o disposto no artigo 221 da Constituição
Federal, respeitando valores éticos e sociais da pessoa e da família brasileira e
impulsionando à cultura no país.
Portanto, conclui-se que a Constituição Federal não pode ser olvidada em sua
hierarquia e em seu arcabouço normativo, pois é Direito, documento sedimentado e
impregnado de função prospectiva, diretiva e vinculante à atividade do operador do
Direito (FULLER, 2011, O meio ambiente hospitalar..., p. 281).
2.2.
O “Marco Civil da Internet” (Lei 12965/2014) em face da Constituição
Federal Brasileira de 1988: a tutela protetiva da internet em sua origem
principiólogico-normativa
2.2.1. Análise propedêutica
Preliminarmente, faz-se oportuno mencionar que parte do conteúdo estabelecido
no chamado Marco Civil da Internet (Lei 12965/2014) encontra-se plenamente definido
no plano constitucional e em face do Código de Defesa do Consumidor, salvo alguns
pontos merecedores de consideração e fixadores de alguns conceitos próprios da
sociedade da informação.
Indaga-se: será que o “marco civil da internet” trouxe ou até mesmo concretizou
a denominada “ciberdemocracia” que na visão de Pierre Lévy (2002, p. 11) apresenta
seu fundamento basilar na “governança mundial, transparência do Estado, cultura da
diversidade e ética da inteligência colectiva” ? E, complementando a ideia acima: será
que realmente foi o ponto inicial à tutela protetiva da internet?
11
Nesse sentido e para bem compreender a visão crítico-jurídica sobre o tema,
imprescindível será a análise de, ao menos, as disposições gerais (artigos 1º a 6º), bem
como dos artigos 7º, 8º, 18 e 19 da Lei 12965/2014.
Partindo-se dos novos conceitos trazidos pela Lei 12965/2014 que não existiam
no plano normativo e que serão incluídos nas relações jurídicas pautadas sobre meio
ambiente digital, observa-se a introdução do vocábulo “internet” (como analisado
acima) que traduz a ideia de rede de computadores formada por máquinas que têm
como característica principal a interconexão em todo o mundo, bem como a
determinação sobre os fundamentos, objetivos, direitos, garantias e responsabilidade do
provedor de serviços.
Pois bem.
Iniciando o desenvolvimento das respostas às indagações acima trazidas, a
análise a seguir será pautada na diretriz de que o uso da internet e o chamado “Marco
Civil da Internet” necessariamente devem passar pelo crivo interpretativo da
Constituição Federal, visto que é “norma jurídica fundamental à organização do Estado
e proclamadora de direitos fundamentais do cidadão numa sociedade em que há
confluência de ideologias” (FULLER, 2011, O meio ambiente hospitalar..., p. 282).
2.2.2. Análise sistemático-normativa do “Marco Civil da Internet” em face
da Constituição Federal Brasileira
Traçados todos os pressupostos e bases acima dispostos em outros tópicos,
inicia-se a análise do “Marco Civil da Internet” a partir de seu artigo 1º. O presente
dispositivo dita que a lei determinará os princípios, garantias direitos e deveres para o
uso da internet no Brasil, entendendo-se assim que o diploma legal tem como objetivo o
estabelecimento de parâmetros jurídicos referentes ao uso do sistema constituído “do
conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e
irrestrito com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre computadores
ou quaisquer outros dispositivos que se conectem a internet” (através de diferentes
redes4), conforme preconizado o artigo 5º, incisos I e II da lei em comento.
4
O vocábulo “rede” sob a ótica da informática e telecomunicações é um “ sistema de computadores que
se comunicam entre si, através de meios físicos, como por exemplo, cabo coaxial, links de rádio ou fibra
ótica, ou através de conexões lógicas” (RABAÇA, 2001, p. 627).
12
Portanto, deixa claro que o tema encontra-se “adstrito ao meio ambiente digital
no âmbito do meio ambiente cultural matéria inserida na sociedade da informação”
(FIORILLO, 2015, Marco Civil..., p. 14)
Discorrendo em continuidade sobre o artigo 2º da Lei 12965/2014 observa-se
que o legislador estabeleceu como fundamentos do uso da internet:
a)
Liberdade de expressão56;
5
Sobre o tema liberdade de expressão, faz-se mister a análise do acórdão ( STF- Repercussão geral no
Recurso Extraordinário com Agravo. Rel. Min. Luiz Fux, j. 04.07.2015):
GOOGLE – REDES SOCIAIS – SITES DE RELACIONAMENTO – PUBLICAÇÃO DE
MENSAGENS NA INTERNET – CONTEÚDO OFENSIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO
PROVEDOR – DANOS MORAIS – INDENIZAÇÃO – COLISÃO ENTRE LIBERDADE DE
EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO vs. DIREITO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE, À HONRA E
À IMAGEM. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO PLENÁRIO VIRTUAL DESTA
CORTE.
(...)
Não há como prosperar a preliminar alegada pela recorrente, pois o prestador de serviço de um site de
relacionamento que permite a publicação de mensagens na internet, sem que haja um efetivo controle,
ainda que mínimo, ou dispositivos de segurança para evitar que conteúdos agressivos sejam veiculados,
sem ao menos possibilitar a identificação do responsável pela publicação, deve responsabilizar se pelos
riscos inerentes a tal empreendimento. Observe-se que a responsabilidade neste caso é apurada de forma
objetiva, tendo em vista a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
(...)
Não há como prosperar a alegação de que pelo fato da recorrente não ser a autora do conteúdo publicado
ela não é responsável por eventuais danos causados. O serviço prestado pela recorrente exige a elaboração
de mecanismos aptos a impedir a publicação de conteúdos passíveis de ofender a imagem de pessoas,
evitando-se que o site de relacionamento configure um meio sem limites para a manifestação de
comentários ofensivos, sem que se observem regras mínimas.
O fato do conteúdo ora discutido ter sido elaborado por terceiros não exclui a responsabilidade da
recorrente em fiscalizar o conteúdo do que é publicado e se os usuários estão observandos [sic] as
políticas elaboradas pelo próprio site.
Preliminarmente alega a recorrente a sua ilegitimidade passiva quanto ao pedido de indenização feito pela
recorrida, alegando que a página considerada ofensiva não foi criada pela recorrente e o conteúdo ali
inserido é de responsabilidade do criador do perfil ou da comunidade, não podendo responder pela
pretensão indenizatória.
Não há como prosperar a preliminar alegada pela recorrente, pois o prestador de serviço de um site de
relacionamento que permite a publicação de mensagens na internet, sem que haja um efetivo controle,
ainda que mínimo, ou dispositivos de segurança para evitar que conteúdos agressivos sejam veiculados,
sem ao menos possibilitar a identificação do responsável pela publicação, deve responsabilizar se pelos
riscos inerentes a tal empreendimento. Observe-se que a responsabilidade neste caso é apurada de forma
objetiva, tendo em vista a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
(...)
Não há como prosperar a alegação de que pelo fato da recorrente não ser a autora do conteúdo publicado
ela não é responsável por eventuais danos causados. O serviço prestado pela recorrente exige a elaboração
de mecanismos aptos a impedir a publicação de conteúdos passíveis de ofender a imagem de pessoas,
evitando-se que o site de relacionamento configure um meio sem limites para a manifestação de
comentários ofensivos, sem que se observem regras mínimas.
O fato do conteúdo ora discutido ter sido elaborado por terceiros não exclui a responsabilidade da
recorrente em fiscalizar o conteúdo do que é publicado e se os usuários estão observandos [sic] as
políticas elaboradas pelo próprio site.
Alega o Agravante que a decisão impugnada pelo Recurso Extraordinário resulta em censura prévia, por
determinar que o sítio hospedeiro fiscalize as informações circuladas na rede, o que seria vedado pelos
artigos 5º, IV, IX, XIV, XXXIII e 220, § 1º, § 2º, § 6º, da Constituição da República.
13
b) Reconhecimento da escala mundial da rede;
c) Os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da
cidadania em meios digitais;
d) A pluralidade e a diversidade;
e) A abertura e a colaboração
f) A livre-iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor;
g) A finalidade social da rede.
Interessante observar sob a ótica de uma interpretação crítico normativoconstitucional que o artigo em questão não trouxe nenhuma novidade em termos de
deveres e direitos já não anteriormente apontados na Carta Magna de 1988
Vale à pena frisar que bastaria que o legislador estabelecesse que os fundamentos
do uso da internet são todos aqueles estabelecidos nos artigos 1º, 3º, 4º, 5º, 6º, 170, 215
e 216, 220 a 224 da Constituição Federal e impusesse em apenas um dispositivo que
será aplicado o Código de Defesa do Consumidor às relações jurídicas derivadas de seu
uso.
Contudo, assim não o fez, concluindo-se que o dispositivo em comento ratifica o
conteúdo jurídico dos princípios estruturados constitucionalmente, notadamente o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Senão vejamos.
Quando o legislador afirma que um dos fundamentos do uso da internet é a
liberdade de expressão (artigo 2º, caput da Lei 12965/2014) apenas ratifica as
determinações inscritas nos artigos 220 a 224 da Carta Magna, assim como no artigo 5º,
Restariam vulnerados, segundo argumenta o Recorrente, a liberdade de expressão e o direito à
informação. Assim também, o princípio da reserva de jurisdição do Poder Judiciário, que seria o “único
com capacidade para efetuar juízo de valor sobre conteúdos revestidos de subjetividade”.
Insta definir, à míngua de regulamentação legal da matéria, se a incidência direta dos princípios
constitucionais gera, para a empresa hospedeira de sítios na rede mundial de computadores, o dever de
fiscalizar o conteúdo publicado nos seus domínios eletrônicos e de retirar do ar as informações reputadas
ofensivas, sem necessidade de intervenção do Judiciário.
Considero que a matéria possui Repercussão Geral, apta a atingir inúmeros casos submetidos à apreciação
do Poder Judiciário”
6
Vide art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral da ONU
em 1948 que determina: “ Todos têm direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de expressar opiniões sem interferência e de buscar, receber e transmitir informações e ideias
por quaisquer meios e sem limitações de fronteiras”. O direito à liberdade de expressão também recebe
tratamento no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
14
incisos IV, V, VI, IX, X, XIII e XIV da Constituição Federal, observados os limites
impostos dos artigos 1º a 4º e 170 e seguintes do diploma constitucional7.
Outro dado a ser analisado é que quando o dispositivo assevera como
fundamento do uso da internet o reconhecimento da escala mundial (artigo 2º, I da Lei
12.965/2014) trata o tema de forma tautológica, visto que o próprio conceito de internet
já encerrra um sistema de comunicação estruturado em escala mundial para uso público
e irrestrito com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por
meio de diferentes redes, como já analisado em linhas anteriores.
O legislador também não necessitava dizer que são fundamentos os direitos
humanos, o desenvolvimento da personalidade e especialmente o exercício da cidadania
(artigo 2º, inciso II da Lei 12.965/2014).
O uso da internet deve respeitar os direitos humanos e o desenvolvimento da
personalidade, pois se trata de um instrumento tendente à melhoria do desenvolvimento
social e cultural do homem (artigo 3º da Constituição Federal), sendo uma via através
da qual se articula o sentimento de “pertenecimento” do homem à comunidade,
gerando-se assim, o fenômeno de inclusão digital e fortalecendo-se a democracia
7
Sobre o assunto referente aos limites da liberdade de expressão (inclusive e especialmente no meio
ambiente digita), vide acórdão da lavra do Ministro Celso de Mello, ADPF 187, j. 15.06.2011:
“ VIII. A liberdade de manifestação do pensamento: um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos
Tenho sempre enfatizado, nesta Corte, Senhor Presidente, que nada se revela mais nocivo e mais perigoso
do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive, com apoio
nesse direito fundamental, expor idéias ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois,
nesse tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente
livre, essencialmente livre. Torna-se extremamente importante reconhecer, desde logo, que, sob a égide
da vigente Constituição da República, intensificou-se, em face de seu inquestionável sentido de
fundamentalidade, a liberdade de manifestação do pensamento. Ninguém desconhece que, no contexto de
uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento.
Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade
extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade
de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento. (...) Estas são expressivas prerrogativas
constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e
necessário à prática do regime democrático(...) É certo que o direito à livre expressão do pensamento
não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. Daí a
advertência do Juiz Oliver Wendell Holmes, Jr., proferida em voto memorável, em 1919, no julgamento
do caso Schenck v. United States (249 U.S. 47, 52), quando, ao pronunciar-se sobre o caráter relativo da
liberdade de expressão, tal como protegida pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da
América, acentuou que “A mais rígida proteção da liberdade de palavra não protegeria um homem que
falsamente gritasse fogo num teatro e, assim, causasse pânico”, concluindo, com absoluta exatidão, que “a
questão em cada caso é saber se as palavras foram usadas em tais circunstâncias e são de tal natureza que
envolvem perigo evidente e atual (‘clear and present danger’) de se produzirem os males gravíssimos que
o Congresso tem o direito de prevenir. É uma questão de proximidade e grau” (grifei). É por tal razão
que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela
cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. Cabe relembrar, neste ponto, a própria
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo Art. 13, § 5º,
exclui, do âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento, “toda propaganda a favor da
guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à
discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência (...)”
15
digital. Tais ideias encontram-se perfeitamente assentadas na Constituição Federal a
começar de seu Preâmbulo que estabelece a instituição do Estado Democrático de
Direito Brasileiro e cujo conceito será analisado em momento oportuno.
No que tange ao conceito de desenvolvimento da personalidade, explica-se com
base em Schwabe que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCF) ao
trabalhar com este conceito, vislumbra diferentes modos de desenvolvimento do titular
do direito, sobretudo a autodeterminação, a autoconservação e a autoexposição,
diferentemente do que é trabalhado na teoria do núcleo da personalidade em que se
vislumbra diversas configurações do direito geral da personalidade (FIORILLO, 2015,
Marco Civil..., p. 29)
Trazendo à colação esta ideia em face do ordenamento jurídico-constitucional,
observa-se que a proteção jurídica da personalidade encontra inteiro respaldo nos
artigos 5º, incisos IV; VI; VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XXVII, XXVIII, XXIX.
Em relação à cidadania (digital) como fundamento do uso da internet convém
mencionar que para além de ser considerada como um dos fundamentos do Estado
Democrático brasileiro previsto no art. 1º, inciso II da Constituição Federal, também se
encontra prevista nos artigos 4º e 19 da Declaração de Estocolmo de 1972, art. 10 da
Declaração Rio de 1992, sendo um direito originário do século XVII com a Revolução
Inglesa.
É claro que a cidadania estabelecida pela própria Constituição Federal articula
um conceito que vai além daquele que preconiza restritivamente que ser cidadão é estar
no gozo de seus direitos políticos, tendo, portanto, capacidade eleitoral ativa e passiva.
Ser cidadão transcende o conceito acima, pois seu conteúdo encontra a base no
princípio da isonomia. Portanto, o princípio da cidadania tem como núcleo pétreo
conceitual a chamada igual dignidade social, podendo ser assim explicada:
(CANOTILHO; MOREIRA, 1993 p,126) :
“Este princípio tem como base constitucional a igual dignidade social de todos
os cidadãos (nº1) – que não é mais do que um corolário da igual dignidade humana de
todas as pessoas (cf. Art. 1º) −, cujo sentido imediato consiste na proclamação da
idêntica ‘validade cívica’ de todos os cidadãos, independentemente da sua inserção
econômica, social, cultural e política, vedando-se, desta feita, formas de tratamento ou
de consideração social discriminatórias. A partir desse quadro, o conceito constitucional
de cidadão compreende a noção de ser “ toda pessoa humana no gozo pleno de seus
direitos constitucionais”. (grifo nosso).
Portanto, pode-se dizer que cidadania é essencialmente consciência de ter
direitos e deveres e exercício da democracia, dentre eles, o direito ao uso da internet e
16
como já dito acima, encontra seu núcleo basilar na Constituição Federal expressamente
no artigo 1º, inciso III).
Enfrentando o fundamento da livre-iniciativa e livre concorrência e defesa do
consumidor previstos no artigo 2º, inciso V da Lei 12965/2014, vê-se novamente que o
legislador infraconstitucional ditou norma espelhada na Constituição, a saber: artigos 1º,
inciso IV, 6º e 170 todos da Constituição Federal)
Todos os princípios acima tem no princípio da dignidade da pessoa humana 8 seu
princípio soberano e cogente.
Segundo Greice Patrícia Fuller ( 2011, O meio ambiente hospitalar..., p. 62).a
dignidade da pessoa humana, “embora reconhecida como conceito a priori teve sua
existência reconhecida e formalizada pela Constituição Federal de 1988 como o valormatriz dos fundamentos da República Federativa do Brasil”.
Assim, continua a autora a informar que a dignidade da pessoa humana se
caracteriza como “um valor fundamental de toda ordem sistêmica refletida no conjunto
ideológico presente na citada Carta Magna, assim entendendo a ordem jurídica, políticoadministrativa, tributária, econômico-financeira, cultural e social”.
Nos termos da Constituição Federal de 1988 é inconcebível desconsiderar este
valor fundamental que, como já dito, é apontado por Celso Antonio Pacheco Fiorillo (
2012, p. 34.) como um verdadeiro piso vital mínimo:
“Destarte, cabe reiterar que o princípio fundamental da República Federativa do
Brasil que consagra a dignidade da pessoa humana deve não só ser estabelecido como
´piso´ determinante de toda e qualquer política de desenvolvimento, como,
necessariamente, projetar-se sobre o modo como devam ser assegurados todos os
demais direitos na sociedade previstos na Constituição Federal.
Daí duas conclusões importantíssimas, como reflexo no direito constitucional brasileiro
em vigor: 1) a pessoa humana passa a ser a verdadeira razão de ser de todo o sistema de
direito positivo em nosso país e evidentemente do direito ambiental brasileiro; 2) a
importância da pessoa humana se reafirma, no plano constitucional sua dignidade como
mais importante fundamento da República Federativa do Brasil, constituída que foi em
Estado Democrático de Direito, a saber, uma vida com dignidade reclama desde logo a
satisfação dos valores mínimos fundamentais descritos no âmbito de nossa Carta Magna
no art. 6.º (direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à
previdência social, à proteção à maternidade, à proteção à infância, assim como a
assistência aos desamparados), verdadeiro piso vital mínimo a ser assegurado pelo
Estado Democrático de Direito”
8
O artigo de entrada da Lei Fundamental da República Federal Alemã estabelece o princípio da
dignidade da pessoa humana como incondicional e indisponível: “( ...) a inviolabilidade da dignidade do
homem e a obrigação de todo o poder estatal, de respeitá-la e protege-la”(HESSE, 1998, p. 109)
17
Desta forma a dignidade da pessoa humana além de constituir núcleo intangível
e fundamental dos direitos constitucionalmente elencados apresenta-se como limite à
atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e da coletividade, assim como
diretriz à construção de políticas empreendedoras dos direitos fundamentais, dentre eles,
aqui citamos o direito ao acesso informacional9 e cultural tecnológico.
Ao final, o legislador afirma que um dos fundamentos do uso da internet é a
finalidade social que deve possuir, o que já se encontra definido no Preâmbulo da
Constituição Federal, bem como nos artigos 1º, 3º do mesmo diploma legal.
E, tal ideia é basilar, pois deve-se observar que o destinatário do Direito é a
pessoa humana10.
Ora, o Direito existe para e pelo homem e não ao contrário.
Assim, o Direito deve servir ao homem, assim como todas as suas construções
tecnológicas (fenômeno da internet), pois ser pessoa “é ser sujeito e não objeto, e nesse
sentido, imperioso se faz o combate às agressões que o homem vem cometendo contra
seu próprio ser – o ser humano e sua integridade biopsicossocial” (FULLER, 2011, O
saneamento ambiental..., p.52-53)
Sobre o assunto Lucas Verdú (1984, p. 116) afirma que:
“La diferencia del positivismo legalista de los interpretes de la constitución weimariana
no han de concebirse los derechos humanos, ajustándose y moviéndose dependiendo de
las leyes, sino justamente al revés: son las leyes las que deben ajustarse y moverse a los
derechos humanos (…)”
A noção de finalidade social da rede, já anteriormente consagrada
constitucionalmente, especialmente no artigo 3º, encontra-se atrelada a de cidadania,
posto que como analisado acima, “é apresentado com novas dimensões que incluem os
direitos de solidariedade (tais como os direitos difusos, que traduzem uma forma
coletiva de cidadania) para a garantia dos direitos fundamentais (FIORILLO; CONTE,
2012, p. 16-17) assim como a de democracia.
9
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura o direito à informação é
fundamental: “A importância do direito à informação ou do direito a saber é um tema cada vez mais
constante no discurso dos especialistas em desenvolvimento da sociedade civil, dos acadêmicos, da mídia
e até dos governos.
10
Greice Patrícia Fuller contempla a ideia de que o desdobramento da mídia deve ter como função
primeira estar a serviço do homem e não ao revés, baseando-se nosso pensamento em Kant, que funda
seu pensamento na questão de ser o homem um fim e não um meio. Assim, a sociedade da informação,
como tal, deve ter seu espaço virtual regulado sob a ótica do princípio dignidade da pessoa humana e da
lógica dos imperativos do art. 170 da CF. O direito criminal difuso, a dignidade da pessoa humana e a
mídia na Sociedade da Informação. In: Anais do VII Congresso Brasileiro da Sociedade da Informação,
São Paulo, vol. 7, nov./2014.
18
Nesse sentido e adicionando-se a ideia sobre democracia constitucional que se
adapta perfeitamente às ideias transcritas acima, verifica-se que:
“O regime democrático constitui-se em um processo, mas também não se pode
olvidar que seja um governo do povo, pelo povo e para o povo, o que quer dizer que o
Estado deve imprimir árduos e constantes esforços para o atingimento dos direitos
fundamentais referentes à cultura e informação daquele, com o fim de não ser gerada a
exclusão social. Portanto, ao se dizer, especialmente, governo para o povo, quer-se
afirmar que este deve conduzir o homem à liberação não apenas de imposições
autoritárias, mas, sobretudo, objetiva garantir ao máximo, através de prestações
positivas do Estado, a segurança, o bem-estar, a igualdade, enfim, a própria dignidade
de sua existência(...)” (FULLER, 2011, O saneamento ambiental...,p. 320)
Por isso, dizer-se que o Direito Ambiental se encontra relacionado com o
princípio acima aludido da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da
Constituição Federal) e, portanto, cristalina está a ideia de que o uso da internet deve
restar vinculado ao seu conteúdo estatuído no art. 5º, caput e especialmente no art. 6º da
Constituição Federal. Assim, justamente por ser possuidor desta finalidade social é que
participa como elemento integrante do que se chama inclusão digital.
Para além da citada ideia acima transcrita, qualquer instrumento jurídico ou
tecnológico deve estar atrelado aos ditames presentes no preâmbulo da Constituição
Federal, que de modo inquestionável afirma que o Estado Democrático brasileiro deve
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna .
Importante frisar no tocante a ideia acima mencionada, a clara e efetiva força
normativa do Preâmbulo que segundo Valter Claudius Rothemburg11 (1999, p. 19) com
11
No mesmo sentido, afirmando o caráter normativo ao preâmbulo, encontram-se os seguintes
doutrinadores: BIDART CAMPOS, G. Derecho constitucional. Buenos Aires: Ediar, 1968. t. 1, p. 134;
NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro. Comentários à Constituição Federal. Porto Alegre: Livr. do
Advogado, 1997. p. 134. Pinto Ferreira ainda relaciona: Burdeau, Schmitt, Roger Pinto, dentre outros.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1989, v. 1, p. 4).
Entretanto, há quem considere ser o preâmbulo apenas um elemento de interpretação e integração dos
dispositivos constitucionais que lhe seguem, funcionando, assim, como uma fonte interpretativa. Nesse
sentido de ausência de caráter normativo do preâmbulo e, consequente impossibilidade de ser paradigma
comparativo para declaração de inconstitucionalidade, manifestam-se: MORAES, Alexandre de;
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra, 1991. p. 45;
EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Tratado de derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1993, t. 1, p.
76, bem como, MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 1986. p.
20; BASTOS, Celso; GANDRA, Ives. Apud: MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, cit., p. 2021
19
base nas lições de Jorge Miranda, deve possuir força jurídica de quaisquer outros
espaços normativos.
Logo, depreende-se que, por si só, bastaria o Preâmbulo para que se pudesse
afirmar que o regime Democrático de Direito só se concretizará, a partir do efetivo
exercício dos direitos fundamentais (inclusive do acesso à internet) visto que encerra em
sua redação que este regime deve assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
constitucionais (FULLER, 2011, O saneamento ambiental..., p. 319)
Se o preâmbulo assim estabelece e tem força normativa constitucional não
haveria a necessidade de reescrever o objetivo social do uso da internet, salvo como um
“lembrete” ao estudioso sobre os preceptivos didáticos estabelecidos na Carta Política
brasileira.
Seguindo para o art. 3º da Lei 12965/2014, verifica-se que o legislador
infraconstitucional estabeleceu a base principiológica em matéria de internet.
Pois bem.
Aqui novamente, em vários de seus dispositivos, houve a repetição de
fundamentos descritos na Constituição Federal a saber: I. “garantia da liberdade de
expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição
Federal”; II. “proteção da privacidade”: já se encontra detidamente assegurada no artigo
5º, inciso V da Constituição Federal; III. “proteção dos dados pessoais” : encontra-se
devidamente tutelado no artigo 5º, incisos X e XII. No que tange aos demais incisos IV
a VIII, os mesmos são específicos e vinculados ao uso da internet, mas devem ser
sempre interpretados segundo a Constituição Federal.
Em relação ao artigo 4º da Lei 12965/2014 cabe destacar que o mesmo ratificou
o artigo 3º da Constituição Federal e fomentou a denominada inclusão digital que deve
ser observada em face do piso vital mínimo (artigos 5º e 6º da Constituição Federal), é
dizer, do princípio da dignidade da pessoa humana.
O artigo 5º da Lei 12965/2014 trouxe conceitos relevantes para o uso da internet,
ao contrário dos artigos que o precederam, por serem transcrições de dispositivos já
existentes na ótica constitucional.
O artigo 6º da Lei 12965/2014 estabelece disposição que deve ser analisada
atentamente, pois enuncia que na interpretação do citado diploma legal deverão ser
levados em conta “seus usos e costumes particulares”. Indaga-se: e se os mesmos forem
20
atentatórios à dignidade da pessoa humana? E se determinada matéria 12 veiculada
colidir com a lógica vinculada ao mencionado princípio? Respondendo às indagações,
verifica-se que toda e qualquer atividade praticada na República Federativa do Brasil e
que atente à dignidade da pessoa humana deve ser expurgada do sistema.
Assim, conclui-se que os artigos até então mencionados e analisados, apenas
ratificam princípios, garantias e direitos já estabelecidos constitucionalmente. Sobre o
assunto, Celso Antonio Pacheco Fiorillo afirma:
“ Os fundamentos (art. 2º), princípios (art. 3º) e objetivos (art. 4º) previstos na
presente lei e já comentados anteriormente apenas timidamente ratificam direitos e
garantias constitucionais previamente disciplinados, sendo certo que a ‘natureza’ da
internet e mesmo seus ‘usos e costumes particulares’ somente teriam algo de importante
no sentido de estabelecer novos paramentos na interpretação da norma se de acordo e
ainda se autorizados pela Constituição Federal” (2015, Marco civil..., p. 49)
O artigo 7º da Lei 12965/2014 traz o rol dos direitos e garantias dos “usuários”,
entendendo-se que o acesso é considerado essencial ao exercício da cidadania. Já foram
expostas algumas observações sobre essa questão em momento anterior, contudo,
convém apenas sublinhar o entendimento de que o cidadão é aquela pessoa que se
encontra plenamente no gozo de seus direitos constitucionais e não apenas no gozo de
seus direitos políticos.
Com efeito, tal ideia é importante justamente para salientar que o usuário é
pessoa humana que usa a internet, tanto para servir-se dela como para “veicular
produtos e serviços destinados tanto ao seu fornecimento como ao seu consumo e em
face de uma cultura dominante” (FIORILLO, 2015, Marco Civil..., p. 56).
Portanto, fala-se em usuário fornecedor, pois desenvolve atividade referente a
produtos ou prestação de serviços (art. 3º da Lei 8078/90) e usuário consumidor, porque
adquire ou utiliza produto ou serviço (art, 3º, parágrafos 1º e 2º da Lei 8078/90)
(FIORILLO, 2015, Marco civil..., p. 57-58)
Sobre o assunto, importante é a lição trazida por Newton de Lucca que indica o
surgimento de uma “nova espécie de consumidor (...) – a do consumidor internauta –e,
com ela, a necessidade de proteção normativa, já tão evidente no plano da economia
tradicional” (2008, p. 27)
12
Como v.g. compra de “likes”, seguidores, especialmente para fundos partidários ou ainda compra de
comentários em blogs. Matéria disponível em http://i4b.com.br/2011/03/16/tudo_sobre_
o_like_do_facebook/#sthash.QVmLhvQf.dpuf . Acesso em 23/09/2015
21
Em sendo assim, é inegável que o uso da internet se sujeita às relações jurídicas
de consumo13, sendo o usuário da internet no Brasil o cidadão que no plano individual e
metaindividual tem assegurado os direitos e garantias estruturados na Constituição
Federal.
Portanto, o artigo 7º, inciso XIII da Lei 12965/2014 ratifica a aplicação das
relações de consumo14 no uso da internet. Em face desse entendimento, conclui-se que a
regra da responsabilidade solidária e objetiva do fornecedor deve ser aplicada, conforme
assegura o artigo 6º da Lei 8078/90, aplicável ao “Marco Civil da Internet”, conforme
preleciona seu artigo 7º, inciso XIII.
13
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. BLOGS. RELAÇÃO DE CONSUMO.
INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE
CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE
PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO
MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE
CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS
PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP.
SUFICIÊNCIA. 1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumo daí advindas à
Lei nº 8.078/90. 2. O fato do serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não
desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração” contido no art. 3º, § 2º, do
CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. 3. A
fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário
não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do
art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 4. O dano moral
decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco
inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade
objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02. 5. Ao ser comunicado de que determinado texto
ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar
imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão
praticada. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente
sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar
cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e
determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências
que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a
individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo . 7.
O montante arbitrado a título de danos morais somente comporta revisão pelo STJ nas hipóteses em que
for claramente irrisório ou exorbitante. Precedentes. 8. Recurso especial a que se nega provimento. (grifos
nossos) (STJ, REsp 1192208, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 02/08/2012)
14
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DANO MORAL. INTERNET.
SITE DE RELACIONAMENTOS. NÃO EXCLUSÃO REPRESSIVAMENTE DE PERFIL COM
CONTEÚDO OFENSIVO. 1.- Tendo o Acórdão recorrido afirmado que o provedor não retirou o perfil
de conteúdo ofensivo em tempo hábil, depreende-se que o recurso especial assentado em premissa fática
contrária esbarra na Súmula 07/STJ; 2.- A inércia do provedor que, após notificado pelo usuário, não
promove a remoção da sua página de rede social com conteúdo ofensivo, enseja responsabilização civil.
Precedentes. 3.- Em casos como o dos autos, o valor fixado a título indenização por danos morais morais
(R$ 12.000,00) não denota excesso capaz de justificar a intervenção retificadora desta Corte Superior. 4.Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no AREsp 479351/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, j.
24/04/2014)
22
Ocorre que a Lei 12965/2014 em seus artigos 18 e 19 preleciona:
“Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por
danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o
provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por
danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica,
não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro
do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente,
ressalvadas as disposições legais em contrário.”
Depreende-se dos mencionados dispositivos que a responsabilidade do provedor
apenas existe na hipótese de não cumprimento da decisão judicial, objetivando
resguardar a liberdade de expressão e a censura, o que gera cristalina situação
antinômica em face da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e da
própria Lei 12965/2014 (como já examinado acima) em seu artigo 7º que impõe a
aplicação das relações de consumo ao uso da internet.
Como já exposto acima, o provedor de serviços é fornecedor subsumindo-se
perfeitamente ao art. 3º do Código de Defesa Consumidor e se ele presta serviço
remunerado direta ou indiretamente (como, por exemplo, através de publicidade) ao
usuário, esse é considerado como consumidor .
Portanto, impõe-se a aplicação do Código de Defesa Consumidor15, havendo
responsabilidade objetiva do fornecedor sem a imposição prevista nos artigos 17 e 18 da
15
GOOGLE – REDES SOCIAIS – SITES DE RELACIONAMENTO – PUBLICAÇÃO DE
MENSAGENS NA INTERNET – CONTEÚDO OFENSIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO
PROVEDOR –DANOS MORAIS – INDENIZAÇÃO – COLISÃO ENTRELIBERDADE DE
EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO vs. DIREITO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE, À HONRA E
À IMAGEM.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO PLENÁRIO VIRTUAL DESTA CORTE.
Seguem alguns trechos do voto do Relator Ministro Luiz Fux:
“Não há como prosperar a preliminar alegada pela recorrente, pois o prestador de serviço de um site de
relacionamento que permite a publicação de mensagens na internet, sem que haja um efetivo controle,
ainda que mínimo, ou dispositivos de segurança para evitar que conteúdos agressivos sejam veiculados,
sem ao menos possibilitar a identificação do responsável pela publicação, deve responsabilizar-se pelos
riscos inerentes a tal empreendimento. Observe-se que a responsabilidade neste caso é apurada de forma
objetiva, tendo em vista a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
(...)
Não há como prosperar a alegação de que pelo fato da recorrente não ser a autora do conteúdo publicado
ela não é responsável por eventuais danos causados. O serviço prestado pela recorrente exige a elaboração
de mecanismos aptos a impedir a publicação de conteúdos passíveis de ofender a imagem de pessoas,
evitando-se que o site de relacionamento configure um meio sem limites para a manifestação de
comentários ofensivos, sem que se observem regras mínimas.
O fato do conteúdo ora discutido ter sido elaborado por terceiros não exclui a responsabilidade da
recorrente em fiscalizar o conteúdo do que é publicado e se os usuários estão observando [sic] as políticas
elaboradas pelo próprio site.
Alega o Agravante que a decisão impugnada pelo Recurso Extraordinário resulta em censura prévia, por
determinar que o sítio hospedeiro fiscalize as informações circuladas na rede, o que seria vedado pelos
artigos 5º, IV, IX, XIV, XXXIII e 220, § 1º, §2º, § 6º, da Constituição da República.
23
Lei 12965/2014 que infelizmente só analisa a responsabilidade do provedor em caso de
desobediência à ordem judicial ofendendo frontalmente preceitos de ordem
constitucional.
Assim, os citados dispositivos (artigos 18 e 19) da Lei 12965/2014 apontam
regras autofágicas, posto que contrariam preceptivo normativo imposto pelo sistema no
qual está inserido, ou seja, a Lei 12965/2014.
Importante ainda salientar que o artigo 19 trata de um retrocesso
inconstitucional, subvertendo os princípios da dignidade da pessoa humana e do direito
à liberdade da vida privada, intimidade, imagem e honra, fato esse que,
indubitavelmente, trará o esvaziamento de princípios conquistados pelos consumidores
e acúmulo de ações ao Poder Judiciário. Para além disso, clara é a carga de
desigualdade de tratamento existente entre os provedores de aplicações de internet e os
demais (FIORILLO, FULLER, LIMA, 2015, p.16).
Os artigos 18 e 19 merecem análise crítica profunda dada a natureza teratológica
de seus conteúdos, já que desmerecem toda a interpretação sistemática e mesmo a
própria redação existente em artigos iniciais (especialmente artigos 3º e 4º ), na
Constituição Federal e no CDC (artigos 6º, incisos VIII e 14 do CDC) (FIORILLO;
FULLER; LIMA, 2015, p. 17)
Nesse diapasão, Celso Antonio Pacheco Fiorillo observa que:
“A seção III merece ser analisada em seu todo por causar absoluta estranheza em face
de sua inclusão com propósitos TOTALMENTE dissociados dos princípios e garantias
constitucionais, dos fundamentos, princípios e objetivos, bem como dos direitos e
garantias dos usuários previstos na Lei 12.965/2014” ( 2015, Marco Civil.., p. 115)
Assim, visando conciliar a antinomia existente no caso em tela, privilegia-se a
interpretação sistemática e teleológica, valorando-se o ordenamento jurídico
constitucional e ainda aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor, notadamente
em face do seu artigo 6º que se traduz em norma de ordem pública e cogente.
Restariam vulnerados, segundo argumenta o Recorrente, a liberdade de expressão e o direito à
informação. Assim também, o princípio da reserva de jurisdição do Poder Judiciário, que seria o “único
com capacidade para efetuar juízo de valor sobre conteúdos revestidos de subjetividade”. Insta definir, à
míngua de regulamentação legal da matéria, se a incidência direta dos princípios constitucionais gera,
para a empresa hospedeira de sítios na rede mundial de computadores, o dever de fiscalizar o conteúdo
publicado nos seus domínios eletrônicos e de retirar do ar as informações reputadas ofensivas, sem
necessidade de intervenção do Judiciário.
Considero que a matéria possui Repercussão Geral, apta a atingir inúmeros casos submetidos à apreciação
do Poder Judiciário” (STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 660.861. Rel. Min.
Luiz Fux. J. 22/03/2012)
24
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25
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VERDÚ, Lucas. Estimativa y política constitucionales . Madrid: Editorial 1984.
26
CAPÍTULO 2.
AMBIENTE
DIGITAL
REPUBLICANOS
E
AFIRMAÇÃO
DE
DIREITOS
Caio Sperandéo de Macedo
Introdução
O princípio republicano encontra-se albergado com destaque na Constituição
Federal de 1988, pois além de qualificar nosso regime político quanto à forma de
governo, irradia
seus efeitos axiológicos para
diversos outros dispositivos
constitucionais que conferem direitos e deveres aos cidadãos, com destaque nesta
análise para os ligados à disponibilização pela administração pública de informações
relacionadas a registros administrativos e atos de governo; e também o direito dos
cidadãos em receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de
interesse coletivo ou geral.
Ou seja, o acesso a registros administrativos e demais informações relativas à
atuação do governo e aplicação de recursos do patrimônio público devem permanecer
disponíveis e acessáveis ao escrutínio dos cidadãos, a fim de que tome consciência das
ações e decisões envidadas pelo Estado, fiscalize a aplicação de recursos públicos e
participe no aperfeiçoamento do seu funcionamento na condição de cidadão, em prol da
sociedade.
Estas formas de participação do cidadão na administração pública, que
chamaremos de direitos republicanos, ganharam novo relevo nos últimos anos não
somente em virtude do desenvolvimento cívico da sociedade, mas, sobretudo, em
decorrência da inserção das novas tecnologias da comunicação e da informação na
infraestrutura dos órgãos e funcionamento da administração pública.
Estas tecnologias ínsitas à sociedade da informação, que comportam facilidade
de acesso e armazenagem de informações, conjugada com velocidade em tempo real e

Doutor em Filosofia do Direito, Mestre em Direito Constitucional e Graduado em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Professor do Programa de Mestrado em Direito da
Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU/SP –
São Paulo e Advogado ([email protected] e [email protected]).
27
propagação da comunicação de forma ampla e difusa (que inegavelmente influenciam
as demais relações sociais e culturais entre as pessoas) dinamizam as possiblidades de
exercício de direitos do cidadão no Estado.
No tocante à condução da pesquisa, a metodologia científica adotada se
concentra na revisão de bibliografia especializada sobre o tema e demais fontes
referidas ao longo do texto abordando a influência que o ambiente eletrônico está a
acarretar no funcionamento do Estado, ao mediar divulgação e o acesso a informações
de interesse público e permitir maior controle social sobre a administração pública.
Cabe esclarecer que tendo como ponto de partida nosso texto constitucional
republicano, optou-se por analisar a essência da “res publica” dentro de uma
perspectiva sociológica, assim, não serão abordados os pormenores da legislação
infraconstitucional. Em uma dimensão de direitos fundamentais, enaltecer o conteúdo
valorativo do princípio republicano para exercício de determinados direitos ligados à
participação do cidadão no Estado, no contexto da Sociedade da Informação,
potencializados pela amplitude e acesso ao fluxo de informações que trafega na via
digital.
Ao final, reconhecer que estamos perante uma realidade cultural em
transformação neste início de século XXI, que a Internet e o ambiente digital impõem
uma reconfiguração do papel do Estado para implantar administração pública
democrática para o cidadão e eficiente na prestação de serviços públicos; que respeite a
publicidade dos atos oficiais, que valorize a transparência da sua gestão e que cobre
responsabilidade em todos os níveis de governo.
1. Direitos republicanos enquanto direitos fundamentais
Conforme pontua Nicola Matteucci (MATTEUCI, 1998: p. 1107/1109) os
registos históricos atribuem predominantemente a Cícero a definição conceitual do
significado de “res publica” no período romano ao acentuar como elementos distintivos
da República: (i) o interesse comum e, principalmente, (ii) a conformidade com um
ordenamento jurídico destinado a tutelar e garantir direitos, pelo qual uma comunidade
afirma a sua justiça. Assim, a noção de “res publica” teve sua gênese ligada à
preservação do bem comum ou em outras palavras ao interesse público, na concepção
defendida por Celso Antônio Bandeira de Mello(BANDEIRA DE MELLO, 2008,
p.96/99), sendo certo que o termo “republicano” nos atuais Estados modernos
28
permanece ligado ao sistema de Governo e a uma legitimação popular do poder que é
exercido pelos sucessivos representantes eleitos democraticamente.
José Afonso da Silva (DA SILVA, 2008, P. 34), em seus comentários à
Constituição de 1988 esclarece que o termo República significa mais que forma de
governo contraposta à monarquia; embora se refira a uma forma de governo, “é
especialmente, designativo de uma coletividade política com características da res
pública, no seu sentido originário de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o
povo(...)”.
Em sua visão do tema, Darcy Azambuja(AZAMBUJA, 1985, p. 209) adota a
conceituação de Rui Barbosa para República, que seria a forma de governo em que além
de “existirem os três poderes constitucionais, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário,
os dois primeiros derivem, realmente de eleição popular”.
Tem a acrescentar Enrique Ricardo Levandowski(LEVANDOWSKI, 2005, p.,
195) que a ideia moderna de república ao menos a partir da “Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão”, aprovada pela Assembleia Francesa de 1789, está
indelevelmente associada ao conceito de que os cidadãos são titulares de direitos em
face do Estado, notadamente direito à vida, à liberdade, à propriedade e à participação
política.
Referido autor, em referência à Constituição Federal de 1988, esclarece que em
uma república além de direitos os cidadãos também têm obrigações, inobstante os textos
constitucionais atuais não fazerem menção à contrapartida comunitária. Portanto,
aludida political obligation persiste e decorre da lógica de que se os cidadãos possuem
direitos em face do Estado, também assumem obrigações cívicas:
“(...) forçoso é concluir que o princípio republicano, enquanto complexo
axiológico-normativo situado no ápice de nossa hierarquia constitucional,
deve ser expandido em sua extensão máxima afastando nesse processo
todos os princípios, regras e atos que lhe sejam contrários. Convém
lembrar, todavia, que a força imperativa desse princípio será tanto maior
quanto mais elevado for o grau de maturidade cívica dos cidadãos e
quanto mais consciente estejam de que são titulares não só de direitos mas
também de deveres em face da coletividade”.
Foi nesta linha de entendimento (concedendo direitos e também deveres) que a
Constituição Federal de 1988 encampou o princípio republicano e outros que lhe são
complementares e que fazem parte do núcleo que lhe garante identidade e por isso
também espraiam seus efeitos para todo o texto constitucional, como, por exemplo, o
29
princípio federativo, o democrático, o da separação dos poderes, o da soberania popular
etc.
Assim, pode-se o dizer que princípio republicano funciona como vetor
axiológico, no sentido atribuído por Robert Alexy(ALEXY, 2014, p. 145), para
legitimar as modalidades objetivas previstas para o cidadão participar no Estado (e.g.
arts. 5º, XXXIII, 29, 31,§3º, 37,§3º, 74§2º, C.F), e para balizar o funcionamento da
administração pública e a conduta de seus servidores (art. 37, C.F), ao possibilitar a
responsabilização dos agentes públicos que desrespeitarem estes valores do Estado.
A esse último aspecto em jurisprudência selecionada por Luís Roberto
Barroso(BARROSO,
2003, p. 7) resta reconhecido que: “a responsabilidade dos
governantes tipifica-se como uma das pedras angulares essenciais à configuração
mesma da ideia republicana”. (RTJ 162/462-464).
Dentro do contexto de direitos e deveres do cidadão para com o Estado, bem
como de responsabilização dos governantes pelos seus atos e decisões em nome da
administração pública, Luiz Carlos Bresser Pereira(PEREIRA, 1997, p. 162) desenvolve
a teoria de que direitos republicanos estão entre os direitos fundamentais de 3ª
dimensão, por se caracterizarem como direitos metaindividuais ou difusos(art. 81,
§único, CDC). Porém, prefere nominar como direitos republicanos para esclarecer que
se refere a “direitos que cada cidadão tem de que os bens públicos – os bens que são de
todos e para todos permaneça públicos, não sejam capturados por indivíduos ou grupos
de interesse”.
Por esse enfoque, os direitos republicanos permanecem lastreados na concepção
original de ‘res publica’ e engloba tudo o que é público, que seja de interesse de todos e
para todos e que deve ser dotado de publicidade com intuito de garantir a transparência
e o exercício destes direitos. Assim, o engajamento com os negócios públicos é
compreendido como exercício de liberdade positiva no Estado, manifestação de
cidadania ativa, consoante esclarece Marcus André Melo(MELO, 2004, p.364). O
Autor referido (PEREIRA, 1997, p.165) explica seu ponto de vista:
“Enquanto consubstanciação do bem comum ou do interesse público, a
res publica assume caráter valorativo. Os cidadãos serão tanto mais
cidadão quanto menos forem meros espectadores e maior for seu
compromisso com o bem comum ou com o interesse público”.
30
Entrementes, consoante o rol dos direitos fundamentais de primeira, segunda e
terceira dimensão calcados respectivamente na tríade: liberdade, igualdade e
fraternidade, Paulo Bonavides(BONAVIDES, 2005, p.570) esclarece que o processo de
globalização econômica e sociocultural em que estamos imersos faz surgir na agenda
política os direitos fundamentais de 4ª(quarta) dimensão, como a última fase de
institucionalização do Estado social.
Nesta 4ª(quarta) dimensão fundamental estaria o direito à democracia, o direito
à informação e o direito ao pluralismo de ideias e concepções, ressalvando Paulo
Bonavides que tais valores só podem ascender caso a informação e o pluralismo seja
efetivo e funcionem como auxiliares da Democracia.
Paulo Bonavides enfatiza que a concretização desta última dimensão de direitos
em uma democracia contemporânea recai sobre os cidadãos melhor informados sobre os
negócios e funcionamento do Estado e cônscios de seus direitos de participação a fim de
fiscalizar e concretizar conquistas históricas enunciadas pelas dimensões de direitos.
Assim, a par das considerações complementares quanto à atribuição de os
direitos fundamentais dos cidadãos de receber informações e colaborar com e no Estado
ser classificado como de 3ª (ligado aos direitos difusos) ou de 4ª dimensão(ligado à
democracia e à informação), fato é que nos últimos anos as sociedades democráticas
tem encampado movimento em prol da cidadania para resgatar a essência da “res
publica”, ou seja, o exercício de aludidos direitos republicanos de ter conhecimento e
ser partícipe nas decisões do Estado, bem como fiscalizar a aplicação de recursos
públicos.
Mormente no contexto da sociedade da informação e por corolário da inserção
das novas tecnologias da comunicação no meio ambiente cultural do século XXI, vez
que o acesso e a disponibilidade de dados que trafegam nas vias digitais(Internet, redes
sociais; telefones celulares em rede; sites/sítios eletrônicos; e-mails/correio eletrônico
etc), aliada a velocidade do fluxo de informação veiculada pelas mídias permitiu criar
novas relações sociais no espaço digital para os cidadãos debaterem ideias, trocar
opiniões, experiências e aderir ou não em torno de projetos individuais, coletivos ou
institucional, consoante esclarece Celso Antonio Pacheco Fiorillo(FIORILLO, 2015,
p.124).
Diante de uma realidade social e cultural em transformação, inegável reconhecer
que a sociedade está a exigir e a tecnologia disponível comporta uma reconfiguração da
administração pública para dar cobro aos seus compromissos republicanos os quais
31
exemplificamos em: (i) dar publicidade no exercício de funções administrativas,
digitalizar e disponibilizar pela Internet todas as informações públicas e de interesse
público “lato sensu”; dar transparência à condução aos projetos e executá-los com
competência e probidade, notadamente quanto à oferta de serviços públicos de
qualidade; (ii) estabelecer canais de comunicação institucionais efetivos e diretos com a
sociedade, voltados para participar e acompanhar a aplicação e gestão de recursos e de
prestação de contas e; (iii) garantir eficácia (jurídica e social) aos dispositivos
constitucionais atinentes ao tema.
A Constituição Federal de 1988 além de consagrar a forma republicana de
Governo acolhe basicamente 2(duas) formas de colaboração dos cidadãos na
conformação do Estado: (i) a participação na administração pública direta e indireta; e
(ii) a participação direta no processo político, nas hipóteses previstas (“e.g”. art. 14, I, II
e III, C.F.).
Ao que nos toca, a análise se concentra na possibilidade de participação
funcional (republicana) do cidadão na administração pública através do livre acesso a
registros administrativos e informações sobre atos de governo, art. 37, §3º, inciso II,
combinado com art. 5, XXXIII, o qual assegura a todos o direito de receber dos órgãos
públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, que
devem ser prestadas na forma da Lei nº12.527/2011.
Entende-se que o amplo acesso às informações de interesse particular, geral e de
interesse público relacionado a registros administrativos e dados sobre atos de governo
fortalecem o engajamento cívico para colaborar com a administração pública e se
revelam fundamentais para e aperfeiçoamento dos mecanismos de funcionamento do
regime democrático e do Estado.
Notadamente porque guardam relação de dependência com o regime republicano
calcado na preservação do interesse público e na possibilidade de fiscalização
complementar e direta pelos cidadãos com relação aos recursos aplicados por todas as
esferas da administração pública (federal, estadual e municipal), não obstante os
normais mecanismos de controle interno e externo, como a Controladoria Geral da
União(CGU) e os Tribunais de Contas, que se mostram insuficientes.
Entrementes, vale observar que temos ampla previsão constitucional compilada
por José Afonso da Silva(DA SILVA, 2003, p. 104) com relação às modalidades
objetivas do cidadão participar no aperfeiçoamento da administração pública.
Confiremos:
32
“Artigo 10. É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores
nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais
ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação.
Artigo 29. A lei orgânica dos Municípios tem que observar, entre os seus
preceitos, cooperação das associações representativas no planejamento
municipal.
Artigo 31, 3°. As contas dos municípios ficarão, durante 60 (sessenta)
dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exames e
apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da
lei.
Artigo 37, 3° (EC-19/98). A lei disciplinará as formas de participação do
usuário na administração pública direta e indireta, regulando
especialmente:
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços em geral,
asseguradas a manutenção de serviço de atendimento ao usuário e a
avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;
II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações
sobre atos de governo, observado o disposto no artigo 5°, X e XXXIII;
III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou
abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.”
Artigo 74, 2° - Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato
é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidade ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
Artigo 194, “parágrafo único” - Compete ao Poder Público, nos termos da
lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
(...)
VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante
gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos
empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Artigo 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hieraquizada e constituem um sistema único, organizado
de acordo com as seguintes diretrizes:
(...)
III – participação da comunidade.
Artigo 202, 6°- A lei complementar a que se refere o 4° deste artigo
estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias
das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção
dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus
interesses sejam objetos de discussão e deliberação.
Artigo 204. As ações governamentais na área de assistência social serão
(...) organizadas com base nas seguintes diretrizes:
(...)
II – participação da população, por meio de organizações representativas,
na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”.
33
Em que pese previsão Constitucional dos dispositivos, fato é que a grande
maioria é ignorada e até a pouco tempo se revelavam anódinos em decorrência da
deficiente divulgação pública e da burocracia ao seu exercício, pois o cidadão em geral
desconhece estes direitos participativos no Estado, o que inviabiliza sua atuação.
Ou seja, este aparato republicano voltado para a participação virtuosa do cidadão
na
administração
pública,
no
sentido
de
ter
conhecimento
prático
das
informações(cognoscibilidade) e auxiliar na fiscalização e boa aplicação de recursos
públicos permanecia inerte na letra do texto Constitucional pela inoperância do Governo
em promovê-los e divulga-los (talvez com a exceção do usuário, na condição de
consumidor, em reclamar da prestação de serviços públicos deficientes, art. 37,§3º, I).
Na análise de Paulo Modesto(MODESTO, 2005, p.7), confirmando nosso
descompasso quanto ao tema:
“Vários desses mecanismos procedimentais encontram fundamento
constitucional direto (CF, v.g., arts. Art. 5o, XXXIII, XXXXIV, “a”,
LXIX, LXX, 8, LXXI, LXXII, LXXIII, LXXVII; 10; 37, 3o.; 58, II; 74,
§2o; 132; 216, §1o.). Outros entram arrimo em regulação
infraconstitucional, como os constantes da recente Lei de Normas Gerais
de Processo Administrativo (Lei 9784/99, v.g., art.s. 31 a 34).
Mas, indistintamente, esses instrumentos são pouco utilizados e
conhecidos, a demonstrar que a questão é sobretudo cultural, vinculada ao
nosso passado colonial e a nossas práticas de exploração egoística das
vantagens produzidas pela coletividade, antes de ser um problema de
lacuna normativa”.
Além do problema histórico, existem também as barreiras burocráticas que
dificultam o exercício destes direitos de participação em nosso país, pois qualquer
cidadão tem conhecimento das dificuldades quanto ao acesso dos usuários aos registros
administrativos e a informações sobre atos de Governo, mesmo com a recente
promulgação da Lei nº12.527, de 18 de Novembro de 2011(Lei de Acesso à
Informação), voltada para dar transparência aos atos da administração pública e que está
à frente de nossos costumes públicos e administrativos.
Setores da administração pública construídos pelo Estado Democrático de
Direito para coibir abusos e voltados para a defesa do erário e do cumprimento da lei,
ou seja, Tribunal de Contas1, Ministério Público e Magistratura 2 se mostram
1
Conforme reportagem de Sergio Roxo, publicada em 16/05/2013, sob o título “Maioria dos tribunais de
contas descumpre Lei de Acesso”. (...). Levantamento realizado em sites dos tribunais das 27 unidades da
Federação mostra que 16 não informam o salário de cada funcionário, como foi estabelecido pela
regulamentação da Lei de Acesso à Informação, aplicada aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Além da falta de informação sobre os salários, alguns órgãos também não respeitam outras determinações
34
recalcitrantes em prestar informações internas conforme previsto na Lei de Acesso à
Informação, no que lhes toca organicamente.
Não devemos nos olvidar que os poderes políticos que integram a Administração
pública, respectivamente, Poder Executivo3 e Legislativo4, também adotam o arcaico
expediente de dificultar ou ocultar o acesso às informações de interesse geral para
conhecimento público e acabam sendo tolerantes uns com os outros.
Além dos casos jornalísticos exemplificados (em que informações requeridas
foram negadas com base na Lei de Acesso à informação), fato é que embora os
comandos constitucionais e legislação correlata estejam previstos o desconhecimento e
a deficiente divulgação/disponibilização das informações por parte do Estado, e por
consequência, a dificuldade de acesso destes dados pelos cidadãos impediam a efetiva
participação funcional da sociedade civil para auxiliar na fiscalização da administração
pública a fim de coibir os abusos e descaminhos praticados por seus agentes.
3. Reflexos do ambiente digital na promoção dos direitos republicanos
da Lei de Acesso, como a publicação de uma ferramenta para que o usuário possa pedir informações.
Dados de despesas e licitações, em muitos casos, também estão desatualizados. (...) A Lei de Acesso à
Informação estabelece que esse tipo de dado deve ser disponibilizado em tempo real. (...) Os tribunais de
Ceará, Pará, Paraná, Rondônia e Santa Catarina cumprem o modelo de transparência adotado pela
União”. Conforme: http://oglobo.globo.com/pais/maioria-dos-tribunais-de-contas-descumpre-lei-deacesso-8404774#ixzz2bCokhNXd, visitado em 06/08/2013.
2
Reportagem de Jornal O Globo, publicado em 20/07/12:” RIO - O presidente da OAB do Rio de Janeiro
(OAB-RJ), Wadih Damous, fez duras críticas nesta sexta-feira sobre a liminar do desembargador Sérgio
Schwaitzer, da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal no Rio, que impede que o Tribunal de Justiça
divulgue os nomes dos magistrados e seus respectivos salários.(...). Em nota divulgada à imprensa,
Damous destacou que a “Lei está à frente de nossos costumes públicos e administrativos, sobretudo de
instâncias do Poder Judiciário, que sempre achou que não deve prestar contas à sociedade”.- É lamentável
que servidores públicos, em particular os magistrados, tenham o temor de tornar públicos os seus
vencimentos”.(...). .http://oglobo.globo.com/pais/lei-de-acesso-informacao-pode-virar-letra-morta-paraoab-rj, visitado em 6/08/2013.
3
Citado pelo Jornalista Ricardo Setti, referente a matéria de 30/06/2013, de Carlos Brickmann: “Tudo
para Inglês Ver”. (...) Transparência? O jornal O Globo, com base na Lei de Acesso à Informação, pediu
o extrato dos gastos da servidora federal Rosemary Noronha, que se dizia amiga de Lula, denunciada pelo
Ministério Público por tráfico de influência, corrupção passiva e falsidade ideológica. O Governo se
negou a dar a informação. Motivo: poderia colocar em risco “a segurança do presidente e do vicepresidente da República e respectivos cônjuges e filhos”. Conforme: veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti),
visitado em 6/08/2013.
4
Sob o título “Mais de 468 atos secretos são descobertos no Senado”. Uma lista de 468 atos secretos
surgiu na noite desta quarta-feira (12) no Senado. Foram emitidos há cerca de dez anos para nomeações,
demissões e gratificações.(...). A lista a que o "Jornal da Globo" teve acesso com exclusividade mostra a
documentação para nomear e dispensar funcionários dos gabinetes, da gráfica e do serviço de
processamento de dados do Senado. Entre 1998 e 1999, quando o falecido senador Antônio Carlos
Magalhães era o presidente do Senado, os atos secretos foram incluídos em boletins suplementares, e só
agora disponibilizados na rede de computadores do Senado, depois que a comissão de sindicância iria
terminar o trabalho com os atos secretos anteriores.(...). Conforme reportagem de 13/08/2009, do Jornal O
Globo.
35
Importante frisar que além do acesso ao patrimônio público lato sensu (e. g.:
acesso ao patrimônio cultural e ambiental, aos serviços e bens públicos, a informações
de interesse individual ou coletivo ou geral etc), os chamados direitos republicanos se
assentam na transparência e na responsabilização (accountability) dos agentes, na
possibilidade do cidadão ter amplo acesso a registros administrativos e informações
sobre atos de governo e colaborar diretamente no controle e aperfeiçoamento dos atos
administração pública.
Na mesma linha de raciocínio, J.J. Gomes Canotilho(CANOTILHO, 2002,
p.510) faz alusão ao “direito ao arquivo aberto” da Constituição Portuguesa de 1976(art.
268, 1º e 2º) a qual consagra a ideia de democracia administrativa para esclarecer que
esse conceito não se resume a um direito de acesso aos arquivos e registro públicos para
defesa de direitos individuais, mas também o direito de saber o que se passa no âmbito
dos esquemas politico-burocráticos.
Referido jurista português assevera que a amplitude comunicativa do “direito ao
arquivo aberto” entre Estado e cidadãos deve ser ampla, pois:
“O direito ao arquivo aberto deve hoje conceber-se não apenas como o
direito a obter informações por parte dos cidadãos, mas também como
direito a uma comunicação aberta entre as autoridades e os cidadãos. A
comunicação aberta implicará, entre outras coisas, o dever de a
administração fornecer activamente informações,(ex.: colocar os dados
informativos na Internet, criar sites adequados, ofertas on-line). A isso
acresce o chamado dever de informação informada ou finalística que
pode incluir informações indispensáveis para alicerçar o direito de acesso
aos tribunais(informação sobre a composição dos fármacos, sore a
compatibilidade ambiental dos produtos”. (Cf. Ac. TC 254/99, de 4-5).
Partindo da premissa de que a administração deve fornecer ativamente
informações, corroborado com a utilização da Internet e a popularização das redes pelas
instituições governamentais (embora grande parte da sociedade brasileira ainda sofra
com a exclusão digital5), inaugura-se um novo período de cidadania por que a
tecnologia cibernética contribui de forma decisiva para democratizar o acesso a
informações e dados de interesse geral ou público privilegiando a comunicação aberta
entre administração e administrados que a sociedade pretende lograr, conforme
diretrizes delineadas pelo art. 3º, da Lei nº 12.527/2011, respectivamente:
5
KNIGHT, Peter T. A internet no Brasil – Origens, Estratégia, Desenvolvimento e Governança.
Authorhouse, 2014, p. 139: “A televisão continua a ser o meio de comunicação predominante no Brasil:
97% das casas tinham um aparelho de TV a cor em 2012, enquanto apenas 40% tinham um computador
com acesso à Internet”.
36
(i)
(ii)
observância do princípio da publicidade pela administração pública;
divulgação de informações de interesse público independentemente de
solicitações;
(iii)
utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da
informação;
(iv)
fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração
pública;
(v)
desenvolvimento do controle social da administração pública.
Assim, estes comandos normativos voltados para o desenvolvimento
institucional e para o cidadão colaborar com a administração pública ganharam nova
relevância com as novas tecnologias da comunicação(NTC) ínsitas à sociedade da
informação. Atualmente todo órgão da administração pública direta e indireta ligada aos
3(três) poderes têm obrigação legal(art. 8º da Lei nº12.527/2011) de possuir sítios
eletrônicos próprios (site) e canais de interlocução digital direto (Ouvidorias; SAC´s;
Protocolos de Serviço; Denúncias) com a sociedade civil a fim de dar transparência a
sua atuação.
A tecnologia disponível nestes últimos anos aliada a um ordenamento
constitucional (“e.g”:Art. 37, C.F) e infraconstitucional (“e.g”: Lei nº12.527/2011, Lei
nº12.965/14 etc.) consentâneo com o mister permitem que a sociedade exija avanços
institucionais do Estado quanto à transparência e responsabilização (accountability) dos
órgãos da administração pública direta e indireta e de seus agentes.
As mudanças atribuídas ao ambiente digital são perceptíveis no cotidano pelo
cidadão: na comunicação social ou profissional remota e instantânea; no acesso a
informações diversas através de buscas na Internet; na virtualização do Judiciário, com
leilões, petições e verificação de processos eletrônicos junto aos Tribunais; no acesso a
sites e serviços de parte dos órgãos públicos; na utilização de assinaturas digitais;
faturas eletrônicas e comércio eletrônico em geral etc.
Portanto, a exigência de avanços institucionais quanto à publicidade de seus atos
e a transparência de atuação do Estado e seus agentes, são demandas naturais dos
cidadãos nas democracias em desenvolvimento no início do Século XXI. Mais que isso,
o ambiente cibernético está a legitimar um processo crescente de sentimento de
empoderamento do cidadão quanto ao seu “direito de saber” sobre o que se passa no
37
âmbito da administração e ter acesso (comunicação aberta) as informações relacionadas
à atuação do Estado, bem como quanto aos mecanismos de aplicação e controle dos
recursos do patrimônio público.
A publicidade dos atos oficiais e a transparência da administração pública ao
prestar informações aos cidadãos quanto aplicação e manejo dos recursos financeiros
não visam outra coisa senão possibilitar o sentido de pertença do Estado a “res
publica”; reprimir condutas arraigadas à nossa histórica concepção política
patrimonialista; combater instituições burocráticas oriundas em Estado de origem
autoritário; exigir liberdade de acesso à informação e de informação de atos de governo
para conhecimento da sociedade.
Norberto Bobbio(BOBBIO, 2000, p. 102) confirma o fundamental papel da
disponibilização das informações com relação aos atos públicos para que sociedade
possa exercer controle sobre os detentores do poder:
“Entende-se que a maior ou menor relevância da opinião pública como
opinião relativa aos atos públicos, isto é, aos atos próprios do poder
público que é por excelência o poder exercido pelos supremos órgãos
decisórios do Estado, da “res publica”, depende da maior ou menor
oferta ao público, entendida esta exatamente como visibilidade,
cognoscibilidade, acessibilidade e, portanto, controlabilidade dos atos de
quem detém o supremo poder”.
Portanto, exsurge como notável contribuição da sociedade da informação e das
tecnologias que lhe são ínsitas que nos últimos anos possamos ter (em tese) acesso a
todas as informações da administração pública direta e indireta, de interesse individual
ou geral disponível e publicadas para o escrutínio e verificação da sociedade civil tanto
para permitir controle da boa aplicação dos recursos como para discutir as prioridades
dos administradores na utilização dos recursos e exigir melhores serviços em prol da
sociedade.
Não nos olvidando de ressaltar que além do acesso às informações com relação
aos negócios do Estado disponibilizados através do ambiente digital, em termos fáticos
o exercício de direitos republicanos para fiscalizar atos da administração pública
decorre da conscientização política da sociedade para defender a coisa pública.
4. Cúpula da Sociedade da Informação 2003/GENEBRA/TUNIS/2005 e o Governo
Eletrônico
38
Faz-se necessário referendar as conclusões e recomendações recentes da Cúpula
da Sociedade da Informação6 realizadas respectivamente em Genebra/2003 e
Tunis/2005, que se referem às aplicações das TIC(Tecnologias de Informação e
Comunicação) em benefício de todos os aspectos da vida e também concernente ao
acesso à informação pelos cidadãos e da transparência no setor público, reverenciando
os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e defendendo a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Entre os destaques deste importante Documento internacional restaram
consignados diversas linhas de ação globais e setoriais voltadas para o desenvolvimento
socioeconômico da sociedade da informação (contemporânea) e para a melhoria de
desempenho dos Governos, sendo que as pautas dependem diretamente do incremento e
acesso às novas tecnologias da informação, conforme seu conteúdo autoexplicativo:
“- (página 41): a participação efetiva dos governos e de todas as partes
interessadas como vital para o desenvolvimento da Sociedade da
Informação, exigindo cooperação e parcerias entre todos eles;
- (página 44): o acesso à informação e ao conhecimento das TIC
permitem que as pessoas, em qualquer lugar do mundo, acessem
informação e conhecimento quase instantaneamente. Indivíduos,
organizações e comunidades deveriam se beneficiar do acesso ao
conhecimento e à informação;
- (página 44): Os governos são encorajados a fornecer acesso adequado à
informação pública oficial por meio de vários recursos de comunicação,
especialmente a Internet. Encoraja-se a adoção de legislação sobre o
acesso à informação e preservação de dados, especialmente na área das
novas tecnologias.
- (página 51): Os governos precisam formular estratégias nacionais, que
incluam estratégias de governo eletrônico, para tornar a administração
pública mais transparente, eficiente e democrática”.
Além das recomendações acima à utilização das novas tecnologias da
comunicação para o amplo acesso dos cidadãos a informação em geral e para atos
envidados pela administração pública, referido documento internacional pugna ainda
6
Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação [livro eletrônico]: Genebra 2003 e
Túnis 2005/International Telecommunication Union;[traduzido por Marcelo Amorim Guimarães]. São
Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2014.1,42 Mb ; PDF. Título original: World Summit on the
Information Society, Geneva 2003-Tunis 2005, ISBN 978-85-60062-88-1; 1. Cúpula Mundial sobre a
Sociedade da Informação; 2. Documentos oficiais 3. Internet - Política e governo 4. Sociedade da
informação
I.
International
Telecommunication
Union.
14-12110;
CDD-303.4833
http://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernosCGIbr_DocumentosCMSI.pdf, visitado em 14/09/2015.
39
pelo desenvolvimento de um “Governo eletrônico” voltado para dar maior eficiência e
transparência na gestão do setor público:
“(página 52) implementar estratégias de governo eletrônico com foco em
aplicações voltadas para a inovação e promoção da transparência na
administração pública e nos processos democráticos, melhorando a
eficiência e fortalecendo as relações com os cidadãos;
(página 52) desenvolver iniciativas e serviços nacionais de governo
eletrônico em todos os níveis, adaptados às necessidades dos cidadãos e
das empresas, para alcançar uma alocação mais eficiente de recursos e
bens públicos;
(página 52) apoiar iniciativas de cooperação internacional no campo de
governo eletrônico, a fim de reforçar a transparência, responsabilidade e
eficiência em todos os níveis do governo”.
Como se depreende, o Documento elaborado pela Cúpula Mundial da Sociedade
da Informação reconhece amplamente os benefícios em curso e as possibilidades de
desenvolvimento socioeconômico e institucional do Estado a serem exploradas com
auxílio das novas tecnologias da comunicação disponíveis, especialmente para os países
em desenvolvimento.
Consoante
esclarece
Manuel
Castells(CASTELLS,
1999,
p.412),
o
informacionalismo é a base material da atual sociedade onde a geração de riquezas e o
exercício do poder passaram a depender da capacidade tecnológica dos indivíduos,
sendo a tecnologia da informação o elemento mediador, a ferramenta indispensável para
a implantação efetiva dos processos de reestruturação socioeconômica, nisso incluído o
Estado.
E por que, na complementação do Gustavo Cardoso(CARDOSO, 1999, p. 116),
a tecnologia atualmente existente permite flexibilidade já que a rede digital pode ser
implantada em todos os tipos de processo e organizações produtivas, e as instituições
podem ser reconfiguradas e modificadas física e funcionalmente com a utilização das
tecnologias da informação. Ademais, a infraestrutura eletrônica além de conferir ganhos
de eficiência graças a dispositivos alimentados por cabos de fibra ótica e conexões de
alta velocidade sem fio (“wi-fi”), pode ser usada estrategicamente para atacar os
problemas institucionais que impedem o desenvolvimento do Brasil(KNIGHT, 2014, p.
138).
Neste aspecto, é missão do Estado brasileiro aperfeiçoar seus esforços neste
início do século XXI para implantar uma administração pública democrática e eficiente
40
na prestação de serviços essenciais com a utilização das tecnologias disponíveis para
respeitar a publicidade dos atos oficiais, dar a transparência na gestão da coisa pública e
cobrar responsabilidade em todos os níveis de governo.
Desenvolver, outrossim, relação de reciprocidade com os cidadãos, notadamente
através da implementação de serviços acessíveis em todos os níveis da administração
pública por meio dos mecanismos digitais compatíveis e alimentados por softwares
adequados, consoante alerta Carlos Alberto Afonso(AFONSO, 2002, p. 169)7, a fim de
melhorar a eficiência do gasto público e aproximar o cidadão do Estado, para que
colabore no seu desenvolvimento.
Em nossa Constituição Federal de 1988 o princípio republicano e, por corolário,
o direito do cidadão em ter acesso à informação da administração pública e de colaborar
com e no Estado são amplamente reconhecidos e independem de ser classificados como
de 3ª terceira (ligado aos direitos difusos) ou de 4ª dimensão (ligado à democracia e à
informação) e se revelam como condição “sine qua non” para legitimar o Estado
democrático de direito.
A exigência de avanços institucionais quanto à publicidade de seus atos e a
transparência de atuação do Estado e seus agentes são demandas naturais da sociedade
para a afirmação de direitos republicanos nas democracias do início do Século XXI
inseridas na Sociedade da Informação.
Nos últimos anos verificou-se em nosso país avanços quanto à disponibilização
de informações e serviços pela administração pública especialmente em decorrência da
utilização das novas tecnologias digitais(Internet) e da obrigatoriedade das instituições
governamentais em publicar informações e dados de interesse geral em seus sítios
eletrônicos.
7
AFONSO, A. Carlos. Internet no Brasil – alguns dos desafios a enfrentar. Revista Informática
Pública, Vol-IV: 169-184, 2002. “Uma característica de praticamente todos os sítios Web do governo
federal é que não seguem as recomendações da WAI. Deste modo, é impossível para um programa leitor
de páginas para cegos, por exemplo, consultar um sítio Web de informação e serviços do governo,
incluindo os dos Ministérios da Educação e da Saúde (o que simboliza a total desconsideração por este
assunto). Essa negligência vai além – a maioria dos sítios Web do governo federal funciona
adequadamente somente com navegadores fornecidos pela Microsoft para o sistema operacional
Windows, da mesma Microsoft.(...). Esta atitude, derivada em parte da ignorância de quem decide e em
parte de interesses que envolvem a compra de softwares proprietários caros (e portanto envolvem o
interesse de perpetuar a necessidade desses softwares), choca-se frontalmente com uma política pública
baseada em tecnologias abertas de software, e especialmente com as estratégias de uso de software aberto
em telecentros, escolas públicas e no
serviço
público
em geral”.
Conforme:
http://www.ip.pbh.gov.br/ANO4_N2_PDF/ip0402afonso.pdf, visitado em 21/09/2015.
41
O ambiente cibernético está a produzir o sentimento de empoderamento do
cidadão quanto ao “direito de saber” sobre o que se passa no âmbito da administração e
de ter acesso a informações relacionadas à atuação do Estado, bem como aos
mecanismos de aplicação e controle dos recursos do patrimônio público.
Na sociedade da informação deste início do século XXI, os recursos públicos
devem priorizar a utilização das novas tecnologias da comunicação disponíveis com
ênfase para a implantação de uma administração pública democrática e eficiente na
prestação de serviços públicos aos cidadãos; que respeite a publicidade dos atos oficiais,
que dê transparência a sua gestão e que cobre responsabilidade em todos os níveis de
governo; elementos indispensáveis para conformar uma “res publica”.
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42
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43
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http://www.ip.pbh.gov.br/ANO4_N2_PDF/ip0402afonso.pdf., Acesso em 21Out. 2015.
44
CAPÍTULO 3.
BRASIL 20 ANOS. NAVEGANDO E REGISTRANDO NO MEIO
AMBIENTE DIGITAL-CULTURAL DA WEB
Regina Célia Martinez*
Introdução
O Brasil, República Federativa do Brasil, Estado Democrático de Direito ao
longo destes vinte anos tem história de transformações para registrar em decorrência da
sociedade da informação.
Sociedade da informação que com o acesso à internet e todos os aparatos
tecnológicos se faz presente, transforma vidas, cotidianos e costumes proporcionando
desafios em relação as diferenças de modos de ser, fazer e viver.
O presente estudo tem por objetivo analisar a importância da sociedade da
informação, especialmente da web, com a tecnologia que dia-a-dia se atualiza e avança
produzindo novos equipamentos e recursos. Diante dessa rápida mutação vem uma
parte dos indivíduos tentando acompanhar tais mudanças e buscando as informações e
adequações necessárias a este movimento desenvolvimentista, alguns até ficam doentes
dentro deste processo.
Há que se salientar que, encontrar rapidamente a íntegra de legislação, notícias,
histórico, artigos com conexão em tempo real com o outras pessoas são benefícios que
a tecnologia também fornece.
Ocorre que nem tudo é evolução e o meio ambiente digital-cultural da web
também no resultado, inclusive de acesso, apresenta problemas, com questionamentos e
verdadeiros desafios pela inclusão plena digital-cultural.
Inclusão esta, que não
representa apenas o acesso, digitar e o obter dados mas sim, a busca e o entendimento
absoluto do que todo o sistema representa. Eis o recorte laboratorial para que o Direito
*
Professora do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação das Faculdades
Metropolitanas Unidas – Grupo Laureate. Advogada, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e Jornalista. Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq Meio
Ambiente Cultural e a Defesa Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana no mundo virtual. VicePresidente da Associação Paulista de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais. Membro da
Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da OABSP. Secretária Geral da
Comissão Permanente do Meio Ambiente da OABSP. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da
OABSP.
Avaliadora
de
diversas
revistas
jurídicas.
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4723202A1 [email protected]
45
acompanhe e dê suporte a este processo dentro do que lhe compete, salientando que a
análise plena demanda pesquisa multidisciplinar.
1.Brasil e a tecnologia da informação.
Em que pese a grandeza do Brasil representada em 8.515.767,049 km2 com
5570 municípios, em conformidade com dados do IBGE,1 os aparatos tecnológicos
adentraram aos poucos na área pública e privada proporcionando para uma boa parte da
população um acesso mais rápido à informação.
A esta era alguns denominam de Sociedade da Informação e outros, sociedade
informacional, sociedade informatizada e até Revolução Informacional.
Segundo Manuel Castells, explica que por tecnologia da informação deve-se
incluir “ todo o conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica,
computação(software e hardware), telecomunicações/radiofusão e optoeletrônica. Além
disso, diferentemente de alguns analistas, também incluo nos domínios da tecnologia da
informação a engenharia genética e seu crescente conjunto de desenvolvimento e
aplicações.”2
Cumpre salientar que neste trabalho estamos refletindo sobre a web(world wide
web), ou seja, www. Web termo em inglês, significa teia ou rede e com a internet a web
passou a designar a rede que conecta computadores por todo mundo. Assim, web
significa um sistema de informações ligadas através de hipermídia entendendo-se como
tal, hiperligações em forma de texto, vídeo, som e outras animações digitais, que
permitem ao usuário acessar uma infinidade de conteúdos através da internet. Para
efetivação deste acesso é imprescindível ligação à internet e um navegador( browser)
onde são visualizados os conteúdos disponíveis. Exemplos de navegadores: Google,
Chrome, Mozilla Firefox, Internet Explorer dentre outros.
Ocorre que, não bastasse a primeira temos a web 2.0, sendo assim denominada
na medida que, representa a segunda geração da World Wide Web, reforçando o
conceito de troca de informações e colaborações dos internautas com sites e serviços
1
BRASIL.
IBGE.
Área
territorial
brasileira
http://ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/default_territ_area.shtm acesso em 15 de setembro de
2015.
2
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. 5.ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2001, v.I., p. 67.
46
virtuais, com uma sociedade tão dinâmica que praticamente boa parte dela vive de “
cliques” constantes em “vocabulário próprio e específico à ciência”, sofisticando assim,
nosso vocabulário, portanto, meio ambiente digital-cultural.3
Em que pese tantas mudanças e avanços, paradoxalmente, os médicos tem
alertado para o número crescente de doenças trazidas com tantos acessos que por serem
constantes, viciam à ponto de se traduzir em grande mal. 4
3
Neste particular podemos citar a título de exemplo um glossário da web 2.0 elaborado pela Folha de São
Paulo:
AdSense: Um plano de publicidade do Google que ajuda criadores de sites, entre os quais blogs, a ganhar
dinheiro com seu trabalho. Tornou-se a mais importante fonte de receita para as empresas Web 2.0. Ao
lado dos resultados de busca, o Google oferece anúncios relevantes para o conteúdo de um site, gerando
receita
para
o
site
a
cada
vez
que
o
anúncio
for
clicado.
Ajax: Um pacote amplo de tecnologias usado a fim de criar aplicativos interativos para a web. A
Microsoft foi uma das primeiras empresas a explorar a tecnologia, mas a adoção da técnica pelo Google,
para serviços como mapas on-line, mais recente e entusiástica, é que fez do Ajax (abreviação de
"JavaScript e XML assíncrono") uma das ferramentas mais quentes entre os criadores de sites e serviços
na
web
Blogs: De baixo custo para publicação na web disponível para milhões de usuários, os blogs estão entre
as primeiras ferramentas de Web 2.0 a serem usadas amplamente
Mash-ups: Serviços criados pela combinação de dois diferentes aplicativos para a internet. Por exemplo,
misturar um site de mapas on-line com um serviço de anúncios de imóveis para apresentar um recurso
unificado
de
localização
de
casas
que
estão
à
venda
RSS: Abreviação de "really simple syndication" [distribuição realmente simples], é uma maneira de
distribuir informação por meio da internet que se tornou uma poderosa combinação de tecnologias "pull"
--com as quais o usuário da web solicita as informações que deseja-- e tecnologias "push" --com as quais
informações são enviadas a um usuário automaticamente. O visitante de um site que funcione com RSS
pode solicitar que as atualizações lhe sejam enviadas (processo conhecido como "assinando um feed"). O
presidente do conselho da Microsoft, Bill Gates, classificou o sistema RSS como uma tecnologia
essencial 18 meses atrás, e determinou que fosse incluída no software produzido por seu grupo
Tagging [rotulação]: Uma versão Web 2.0 das listas de sites preferidos, oferecendo aos usuários uma
maneira de vincular palavras-chaves a palavras ou imagens que consideram interessantes na internet,
ajudando a categorizá-las e a facilitar sua obtenção por outros usuários. O efeito colaborativo de muitos
milhares de usuários é um dos pontos centrais de sites como o del.icio.us e o flickr.com. O uso on-line de
tagging é classificado também como "folksonomy", já que cria uma distribuição classificada, ou
taxonomia,
de
conteúdo
na
web,
reforçando
sua
utilidade
Wikis: Páginas comunitárias na internet que podem ser alteradas por todos os usuários que têm direitos
de acesso. Usadas na internet pública, essas páginas comunitárias geraram fenômenos como a Wikipedia,
que é uma enciclopédia on-line escrita por leitores. Usadas em empresas, as wikis estão se tornando uma
maneira fácil de trocar idéias para um grupo de trabalhadores envolvido em um projeto.
Entenda o que é a web 2.0. http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u20173.shtml acesso
em 02 de outubro de 2015.
4
As
novas
doenças
provocadas
pelo
uso
da
internet.
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/10/conheca-doencas-provocadas-internet.html acesso em
05 de outubro de 2015.
Nomophobia ou “no-mobile phobia”,que significa ansiedade que surge por não ter acesso a um
dispositivo móvel.
Síndrome do toque fantasma que ocorre quando o cérebro faz com que pense que o celular está vibrando
no bolso ou bolsa.
Náusea digital(cybersickness) ou seja, desorientação e vertigem que algumas pessoas sentem quando
interagem com determinados ambientes digitais.
Depressão de Facebook ou seja, depressão causada por interações sociais ou a falta de interação no
Facebook.
Transtorno de dependência da internet ou seja, se resume na vontade constante e não saudável de acessar
à internet e é resultado do uso excessivo e irracional da internet interferindo assim, na vida do indivíduo;
47
Dentre o rol de doenças destacamos o vício de jogos on line, que resulta numa
dependência não saudável de acessar os jogos multiplayer on line. Assim, “ de acordo
com um estudo de 2010 financiado pelo governo da Coréia do Sul, cerca de 18% da
população com idades entre 9 e 39 anos sofrem de dependência de jogos on line. O país
inclusive promulgou uma lei chamada de “Lei Cinderela”, que corta o acesso a games
on line entre a meia-noite e às 6 da manhã para usuários com menos de 16 anos em
todo o país.”
E no Brasil onde tantas pessoas vivem no computador inclusive, com jogos,
talvez em breve, poderemos implementar tais medidas.
Por oportuno, também, destacamos o efeito Google, na medida que o cérebro
passa a ser mais preguiçoso porque sabe que com um clique localiza a informação sem
necessidade de memorizar dados. Aqui, além da mudança social a mudança cultural se
faz presente na medida, que praticamente a forma de viver para algumas pessoas, não
pode ser sem o acesso a web.
Por outro, lado, nunca tivemos tanta informação e tantas formas de acesso
traduzindo uma revolução tecnológica.
Sobre a revolução tecnológica Roberto Senise Lisboa destaca: “ desde o século
XVIII até os nossos dias, dentre as inúmeras revoluções socioeconômicas, uma se
tornou incontestavelmente um ‘divisor de águas’ na vida privada, enquanto que uma
outra já vem sendo amplamente divulgada, em face da introdução das novas
tecnologias. São elas: a Revolução Industrial e a Revolução Informacional.” 5
A chamada Revolução Informacional impactou e ainda impacta o meio ambiente
social digital-cultural.
Neste particular, cumpre salientar que “com vistas ao Brasil, podemos já aqui
chamar a atenção ao fato de que as grandes disparidades sociais evidenciaram ser
amplamente impermeáveis a transformações, mesmo em governos democráticos. Por
Vício de jogos on line é uma necessidade não saudável de acessar jogos multiplayer on line.
Cibercondria, ou hipocondria digital ou seja, tendência de acreditar que você tem doenças sobre as quais
leu on line.
Efeito Google também chamada “ The Gooble Effect” é considerada atualmente como uma tendência de
doença na medida que, o cérebro humano passa a reter menos informação porque ele sabe que as
respostas estão ao alcance de alguns cliques, ficando portanto, preguiçosos.
5
LISBOA, Roberto Senise. O consumidor na sociedade da informação. In: PAESANI, Liliana Minardi(
Coord.) O direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007, p. 114
48
isso, é previsível que bem mais da metade da população nunca possua um computador.”
6
Com as profundas transformações no âmbito internacional o conhecimento e a
informação
passaram a ter papéis centrais influenciando sobremaneira o Brasil,
considerando-se as tecnologias de informação e comunicação seu elemento propulsor
levando a investimentos no setor de Tecnologia da Informação e Comunicação, tendo
como base a microeletrônica, as telecomunicações e a informática.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, destaca “a internet, uma das mais poderosas
ferramentas desta sociedade, é caracterizada como um espaço aberto e sem fronteiras e
atualmente demonstra seu potencial positivo entre processos sociais e intervenções
tecnológicas que, de modo interligado, estimulam a mudança de determinados padrões
de desenvolvimento.”7
As mudanças na sociedade como um todo foram e são profundas.
Na área pública houve não só investimentos tecnológicos “per si”, mas também
a preocupação em orientar a comunicação governamental de todos os órgãos do Poder
Executivo na Internet criando um modelo de plataforma digital com o objetivo de
facilitar a comunicação governamental entre o Estado e a opinião pública e oferecer um
serviço de maneira transparente e eficiente.
Incentivos foram apresentados e colocados em prática objetivando a aquisição
de computadores e celulares para a população em geral trazendo atualmente números
6
GERMAN, Christiano. O caminho do Brasil rumo à era da informação. São Paulo: Fundação Konrad
Adenauer, 2000, p. 9
7
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco . Curso de Direito Ambiental brasileiro. 13ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p.85.
49
extraordinários que retratam o acesso diferenciado da informação nos nossos dias,
embora, como já mencionado, não atinjam aa integralidade da população.8
Neste particular, temos que destacar: “ a maioria da população, ao ser privada do
acesso à comunicação mediada por computador, está sendo simplesmente impedida de
se comunicar pelo meio mais ágil, completo e abrangente. O apartheid digital arrebenta
uma liberdade formal básica do universo liberal-democrático. Passam a existir dois
tipos de cidadão, aquele que pode acessar instantaneamente o que os outros falam, com
eles podendo interagir, e aqueles que estão privados da velocidade de comunicação.” 9
Ocorre que, a transformação se dá pelo acesso a informação e pelo uso da
tecnologia, com acentuadas mudanças culturais proporcionadas pela inclusão digital que
alteram formas de ser e viver, abrindo questionamentos e confrontos.
O presente é comparado ao passado tendo o olhar do registro, mas efetivamente,
não consegue prever o que virá nos enfrentamentos culturais pela dinâmica das
diferenças que cada vez mais se tornam evidentes.
2. Meio ambiente digital-cultural. Conceito e informação.
O meio ambiente digital-cultural compreende o conjunto de condições, leis,
influências e interações que envolvem a manifestação do pensamento, criação,
expressão, informação, registrando e avaliando presente e passado em um clique.
8
Número de usuários de internet e de pessoas com celular cresceu mais de 100% no Brasil. “Segundo a
publicação, entre 2005 e 2011, a população de 10 anos ou mais de idade cresceu 9,7%, enquanto o
número de pessoas nessa faixa etária que utilizam a internet aumentou 143,8% e o das que tinham
telefone móvel celular, para uso pessoal, cresceu 107,2%.
Em 2011, 77,7 milhões de pessoas com 10 anos ou mais de idade (46,5% do total) haviam acessado a
internet nos três meses anteriores à coleta da PNAD. O acesso à internet continuava sendo maior entre os
jovens, especialmente nos grupos etários de 15 a 17 anos (74,1%) e de 18 ou 19 anos de idade (71,8%).
Foi identificado ainda que os percentuais de internautas aumentaram em todas as classes de rendimento
mensal domiciliar per capita, especialmente nas mais baixas: no grupo sem rendimento e com até ¼ (um
quarto ) de salário mínimo, o percentual de pessoas que acessaram a internet aumentou de 3,8% em 2005
para 21,4% em 2011; no grupo de mais de ¼ (um quarto) até metade do salário mínimo, ele foi de 7,8%
para 30%, no grupo de ½ (meio) a um salário, o aumento foi de 15,8% para 39,5%.
Em todos os anos pesquisados, o percentual de internautas foi maior na classe de rendimento de três a
cinco salários mínimos, ultrapassando, inclusive, a classe de cinco ou mais salários mínimos.
9
SILVEIRA. Sérgio Amadeu da. Exclusão digital: a miséria na era da informação. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abrano, 2001, p. 30 ( Coleção Brasil Urgente).
50
Especificamente “duas vertentes são analisadas com fundamento na definição
constitucional de meio ambiente.
A primeira está ligada à utilização dos recursos naturais existentes e sua
modificação e aproveitamento pelo homem, enquadrando-se na definição do art. 225,
parágrafo 1º, I, III e VII da CF; e art. 3º, I da Lei 6.938/81, uma vez que a evolução
tecnológica traz a possibilidade de realização cada vez mais veloz da comunicação e
transmissão de dados, e com isso da informação, pela utilização da transmissão de
ondas eletromagnéticas, pois “(...) através das ondas eletromagnéticas a pessoa
humana encontra uma nova possibilidade de repartir, partilhar e trocar
informações” Com isso, faz-se a análise da transmissão pela tecnologia digital ou
analógica.
A segunda vertente, também fundada na norma constitucional, está diretamente
ligada à questão tecnológica, ou do resultado dos avanços tecnológicos possibilitados
pela transmissão de informações e dados, permitindo a transmissão com alta velocidade
e definição, fundamental para a evolução da transmissão e acúmulo de dados e avanço
da internet como seu instrumento, além de outras formas com televisão, rádio e outros
meios de comunicação. Com base na transmissão pelas ondas eletromagnéticas (ligado
ao meio ambiente natural), possibilitou-se estabelecer uma nova forma de meio
ambiente, o cultural, que encontra definição nos artigos 216 e 220 da CF, integrado a
previsão da Lei 6.938/81.” 10
A tutela jurídica do meio ambiente digital-cultural encontra-se disciplinada em
diversos artigos da Magna Carta, ou seja, especificamente, art. 215, 216, 220 a 224 e
225.
O artigo 215 da Constituição Federal assegura que o Estado garantirá a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
O legislador constitucional preocupado com o tema acrescenta que o Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, a lei disporá sobre a
fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos
étnicos nacionais e ainda destaca a necessidade do Plano Nacional de Cultura.
10
SILVA, Daisy Rafaela da. PEREIRA, Elizabeth Novaes. Meio ambiente digital: plano nacional de
banda larga e o direto à informação com qualidade. http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/meioambiente-digital-plano-nacional-de-banda-larga-e-o-direto-%C3%A0-informa%C3%A7%C3%A3o-comqualidade Acesso em 15 de outubro de 2015.
51
A Constituição determina que a lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de
duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e a integração das
ações do poder público que conduzem à:
I.
defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II.
produção, promoção e difusão de bens culturais;
III.
formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas
múltiplas dimensões;
IV.
democratização do acesso aos bens de cultura;
V.
valorização da diversidade étnica e regional.
No meio ambiente digital-cultural da web conseguimos visualizar o
cumprimento da legislação ou não, o registro do passado e as condições do presente e os
níveis e condições de preservação.
O meio ambiente digital-cultural da web registra, documenta e acompanha a
excelência ou não deste processo.
Em conformidade com o art. 216 da Constituição Federal,
constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
I.
as formas de expressão;
II.
os modos de criar, fazer e viver;
III.
as criações científicas, artísticas e tecnológicas
IV.
as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V.
os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
José Afonso da Silva, destaca que “ aí se manifesta a mais aberta liberdade
cultural, sem censura, sem limites: uma vivência plena dos valores do espírito humano
52
em sua projeção criativa, em sua produção de objetos que revelem o sentidos dessas
projeções da vida do ser humano.”10
O legislador constitucional atento à questão fez inserir na Magna Carta no
parágrafo 1º do art. 216 que “ O Poder Público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.” Todavia, com certeza não imaginou que em 2015 o
acesso a esses dados iam ser tão fáceis praticamente em um clique, mas que a efetivação
plena destes direitos iam estar tão aquém da concretização real esperada.
Como registro de nossa época, importante assistir a reportagem “Descaso,
burocracia e falta de verba deixam patrimônio histórico em ruínas” exibida no Programa
Fantástico da Rede Globo de Televisão.12
Em um clique ou em uma sequência deles observamos que, em que pese a
legislação vigente, não conseguimos preservar eficientemente bens de natureza material
e imaterial, tombados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
O desaparecimento da história pela destruição das edificações estão registradas
pelo descaso, burocracia, falta de dinheiro, ausência de consciência, responsabilidade e
sensibilidade do sentido da perda.
Exemplos de obras preservadas são abaladas pelo exemplos de obras não
preservadas, destruídas, abandonadas.
Como nas frases singelas dos pais na criação dos filhos “o que está dando certo
não faz mais do que obrigação” na mesma medida, o que efetivamente está sendo
preservado não faz mais do que obrigação. Neste caso, estamos cumprindo a legislação
e o compromisso que temos para que as futuras gerações também usufruam do prazer de
vislumbrar o belo ou o registro do passado.
Não se compara visualizarmos uma fortaleza antiga com sua história e
visualizarmos uma fortaleza erguida com os recursos de uma cenografia. Há
necessidade da informação porque a riqueza está no passado e no que simbolizou
10
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2009. P. 255
Construções centenárias estão abandonadas, invadidas e prestes a cair. Fantástico revela o descaso com a
memória do país.http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/11/descaso-burocracia-e-falta-de-verbadeixam-patrimonio-historico-em-ruinas.html Acesso em 09 de novembro de 2015.
12
53
determinado bem e não apenas, o que conseguimos tornar passado, mas que
efetivamente não tem história.
Mesmo que tenhamos as fotos e documentos de um determinado bem, quando
ele deixa de existir, ao criar uma cópia não temos a mesma história e representação.
Importante dar o valor devido ao original bem como, o valor respectivo à cópia e
divulgar a sociedade discernindo um do outro, bem como sua importância.
No Estado Democrático de Direito as ações preservacionistas podem abarcar os
mais diversos conceitos todavia, a escolha deve combinar anseio público com os anseios
dos diversos atores da sociedade.
A Constituição Federal em seu artigo 220, deixa claro que “a manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição observado o disposto nesta Constituição.”
Assim, a informação deve estar aberta para num clique termos acesso para registro,
reflexão e estudo.
Celso Antonio Pacheco Fiorillo esclarece que “ ao estabelecer como dever do
Poder Público, com a colaboração da comunidade, preservar o patrimônio cultural, a
Constituição Federal ratifica a natureza jurídica de bem difuso, porquanto este pertence
a todos. Um domínio preenchido pelos elementos de fruição(uso e gozo do bem objeto
do direito) sem comprometimento de sua integridade, para que outros titulares, inclusive
os de gerações vindouras, possam também exercer com plenitude o mesmo direito.” 13
As ações do Poder Público precisam ser efetivadas plenamente, como
mencionado na reportagem sobre o PAC Cidades Históricas, por exemplo.
No caso do PAC(Programa de Aceleração do Crescimento) 14 Cidades Históricas,
temos a “ação que tem por objetivo preservar o patrimônio brasileiro, valorizar a
cultura nacional e promover o desenvolvimento econômico e social com
sustentabilidade e qualidade de vida para os cidadãos em 44 (quarenta e quatro) cidades
13
Fiorillo, op.cit.,pg.384.
“O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), iniciado em 2007, é uma inciativa do governo
federal coordenada pelo Ministério do Planejamento que promoveu a retomada do planejamento e
execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país. Em 2011, o
PAC entrou na sua segunda fase, com o mesmo pensamento estratégico, aprimorado pelos anos de
experiência da fase anterior, mais recursos e mais parcerias com estados e municípios.” BRASIL.
Ministério do Planejamento. http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac Acesso em 08 de novembro de 2015.
14
54
brasileiras com investimento num total de R$ 1,3 bilhão na recuperação das cidades
históricas.”15
O resultado preservacionista é registrado
total ou parcialmente e esta
informação é fundamental para formação do discernimento do cidadão. No caso da
Memória Ferroviária no Brasil temos um registro parcial na medida que , muitos bens
foram perdidos e sucateados.
A preservação, restauração e conservação de bens culturais de significância são
acompanhadas inclusive por órgãos nacionais e internacionais. No âmbito internacional
destacamos o importante papel desenvolvido pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura, tendo inclusive em vigor o Programa da UNESCO
no Brasil 2013 com vigência até 2015. 16
Por oportuno, na apresentação do Programa se destaca o resultado do trabalho
que vem sendo desenvolvido: “(...)A resposta da Representação da UNESCO mostrouse satisfatória. Em relação ao portfólio de projetos, em 2011 foram executados por meio
de recursos extra orçamentários aproximadamente R$ 84 milhões de reais, ao passo que
a execução de recursos de programa regular ficou em cerca de US$ 409,8 mil dólares.
Já no ano de 2012, a execução de recursos extra orçamentários praticamente se
manteve, atingindo a marca de R$ 84,5 milhões; no mesmo período, a execução de
recursos do programa regular apresentou declínio totalizando $ 65,3 mil dólares, o que
pode ser atribuído à reorientação estratégica e orçamentária pela qual a Organização
passou.
A característica do portfólio de projetos também se alterou neste período. Apesar
da redução do volume médio de recursos destinados a cada projeto, ampliou-se o
número de parceiros com os quais a UNESCO passou a trabalhar, incluindo não apenas
projetos com o governo federal, mas também parcerias com estados e municípios.
Alterou-se o escopo da atuação da UNESCO, agora mais voltado para a produção de
subsídios (diagnósticos e indicadores para monitoramento e avaliação, por exemplo)
visando à formulação e qualificação das políticas públicas em suas cinco áreas de
atuação. A relação com o setor privado também foi fortalecida e os bons resultados têm
gerado novas aproximações com parceiros privados, interessados, sobretudo, na
15
BRASIL. PAC Cidades Históricas. http://www.pac.gov.br/comunidade-cidada/pac-cidades-historicas
Acesso em 7 de novembro de 2015.
16
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. UNESCO.
http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/international-instruments-clt/#c1052695 acesso em 05 de
novembro de 2015.
55
capacidade da Organização em agregar valor às ações de responsabilidade social
corporativa já desenvolvidas por esses parceiros. Os resultados obtidos neste período
trazem grande satisfação para a UNESCO e podem ser acessados por meio do SISTER
(System of Information on Strategies, Tasks and the Evaluation of Results).” 17
Complementa destacando alguns exemplos bem-sucedidos de ação intersetorial,
e da lista destacamos a publicação da Lei brasileira de Acesso à Informação que foi
construída, segundo o programa, a partir de subsídios e de estudos internacionais
elaborados pela UNESCO, objetivando avançar na transparência governamental e no
controle social, além de garantir aos cidadãos brasileiros o direito à memória.
A Lei de Acesso à Informação, Lei 12527 de 18.11.2011 em seu artigo 3º dispõe
“ Os procedimentos previstos nesta lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de
acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios
básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I.
observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como
exceção;
II.
divulgação de informações de interesse público, independentemente de
solicitações;
III.
utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da
informação;
IV.
fomento
ao
desenvolvimento
da
cultura
de
transparência
na
administração pública;
V.
desenvolvimento do controle social da administração pública.
O legislador complementa no art. 5º: “ É dever do Estado garantir o direito de
acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de
forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.
A lei citada dispõe sobre procedimentos a serem observados pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no
inciso XXXIII do art. 5º, inciso II do §3º do artigo 37 e no §2º do art. 216 da
Constituição Federal, subordinando-se ao regime os órgãos públicos integrantes da
administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas,
17
Programa da UNESCO no Brasil 2013. http://unesdoc.unesco.org/images/0022/002242/224265por.pdf
Acesso em 07 de novembro de 2015
56
e Judiciário e do Ministério Público, incluindo também, as autarquias, as fundações
públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades
controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Ter o acesso à informação é um grande passo no processo preservacionista
todavia, não é per si suficiente no que se refere ao patrimônio cultural.
3. Problemática atual do meio ambiente digital-cultural
Observamos que em que pese a legislação vigente e os órgãos atuantes, parte do
meio ambiente cultural tem sido demolido, descaracterizado, mutilado, abandonado,
destruído estando uma vasta lista com danos tão marcantes, considerados
como
irreversíveis.
Ocorre que a marca da história de um povo e que representa sua identidade
cultural é o patrimônio cultural e uma vez, comprometido as origens estão implicadas.
Ensina Funari, “As línguas
românicas usam termos derivados do latim
patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma
herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que
nos faz pensar”, enquanto o inflês adotou heritage, na origem restrito “ aquilo que foi
ou pode ser herdado” mas que, pelo mesmo processo de generalização que afectou as
línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado
como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas
expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo ( em latim, “levar a pensar”,
presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal(em alemão, denken
significa “pensar”) e aos antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos
subjectivos e afectivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há,
também, uma definição mais econômica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas
línguas românticas ( cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos
pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma
“propriedade”.” 18
Logo, observamos porque os países desenvolvidos procuram incessantemente
preservar e conservar o patrimônio que efetivamente elegeram como importante.
18
FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da destruição e conservação do Patrimônio Cultural no Brasil.
Trabalhos de Antropologia e Etnologia. Porto. 2001. http://www.ufjf.br/maea/files/2009/10/texto1.pdf
Acesso em 07 de novembro de 2015.
57
No Brasil temos alguns exemplos de preservação todavia, boa parte dos bens
tombados ou considerados como referência a identidade cultural estão em processo de
destruição.
A consciência histórica deve estar vinculada ao povo que também deve mostrar
interesse no movimento preservacionista.
Esclarece Arantes que “o patrimônio brasileiro preservado oficialmente mostra
um país distante e estrangeiro, apenas acessível por um lado, não fosse o fato de que os
grupos sociais o reelaboram de maneira simbólica.”19
Com a web detectamos não só a informação da legislação mas também, o
patrimônio a ser protegido ou registramos o patrimônio perdido com sua própria
deterioração, que pelo descaso, avança.
A engenharia da máquina não conseguiu atrelar informação a preservação
eficiente, apenas busca tal patamar. Ocorre que, o cidadão é parte essencial deste
processo e motivador do resultado. Se não há conhecimento, vontade e até mesmo
tempo hábil para agir não teremos ações eficazes em prol da preservação, restauração e
conservação do patrimônio cultural.
Devemos saber onde estamos e para onde vamos guardando e protegendo o que
“importa” ou seja, os bens materiais e imateriais, que efetivamente tem sentido para o
indivíduo, grupo, comunidade e sociedade. As autoridades e estudiosos podem
contribuir neste “mister” colaborando no esclarecimento e orientação da população.
Os órgãos públicos tem importante e fundamental papel quando integrado com
a comunidade. Exemplificando temos a difusão da Memória Ferroviária que atualmente
conta com o apoio de diversos órgãos e entidades, bem como dos cidadãos que quando
do sucateamento ferroviário guardaram algumas peças para a posteridade.
Em conformidade com a lei 11483 de 31 de maio de 2007 é atribuição do
IPHAN ( Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a “ responsabilidade de
preservar e difundir a Memória Ferroviária, constituída pelo patrimônio artístico,
cultural e histórico do setor ferroviário. Desde então, o Instituto avalia, dentre todo o
espólio oriundo da extinta Rede Ferroviária Federal AS( RFFSA), quais são os bens
detentores de valor histórico, artístico e cultural.
O Patrimônio Ferroviário Brasileiro engloba bens imóveis e móveis, incluindo
locomotivas, vagões, carros de passageiros e outros equipamentos, como guindastes,
19
ARANTES, Antonio Augusto. A Preservação do Patrimônio como Prática Social. Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da UNICAMP. 1990.
58
por exemplo, além de mobiliários, bens integrados como relógios, sinos, telégrafos e
acervos documentais. Estes bens formam uma lista extensa e os dados do inventário
realizado na extinta RFFSA apontam para mais de 52 mil bens imóveis, entre terrenos e
edificações, e mais de 15 mil itens de bens móveis classificados como históricos pelo
Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário (Preserfe) desenvolvido
pelo Ministério dos Transportes, instituição responsável pela gestão da RFFSA.
Os bens estão vinculados a convênios assinados pela RFFSA e, de
acordo com o Decreto no. 6.018, de 22 de janeiro de 2007, foram automaticamente
transferidos ao Iphan, para avaliação, somando dois milhões de itens de bens móveis,
além de um incalculável acervo documental. Agrega-se a esses bens o patrimônio
imaterial representado pelos costumes, tradições e outras influências trazidas pela ferrovia e
que estão incorporadas no cotidiano de grande parte da população que - direta ou
indiretamente - conviveu com a presença da ferrovia.”20
Com a sociedade da informação toda estrutura do Estado e da sociedade pode ser
avaliada, observada e se bem utilizada pode ter resultados administrativos-normativos
efetivos.
Importante observar que em uma chamada para colecionadores de peças de
ferrovia, ou ainda automóveis antigos para uma mostra, em pouco tempo recebemos
colaboradores.
Assim, um movimento em prol da preservação de um patrimônio também pode
rapidamente ter resultados positivos, na medida que a mobilização via internet
comunica, num momento escolhido, praticamente muitos com muitos podendo chegar a
uma escala global.21
20
BRASIL. Patrimônio Ferroviário. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/127 Acesso em 7 de
novembro de 2015.
21
Castells comenta “ a internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a
comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global. Assim como a difusão
da máquina impressora no Ocidente criou o que Machuhan chamou de a ‘Galáxia de Gutenberg’,
ingressamos agora num novo mundo de comunicação: a Galáxia da Internet. O uso da internet como
sistema de comunicação e forma de organização explodiu nos último anos do segundo milênio. No final
de 1995, o primeiro ano de uso disseminado do world wide web, havia cerca de 16 milhões de usuários
de redes de comunicação por computador no mundo. No início de 2001, eles eram mais de 400 milhões;
previsões confiáveis apontam que haverá cerca de 1 bilhão de usuários em 2005, e é possível que
estejamos nos aproximando da marca dos dois bilhões por volta de 2010, mesmo levando em conta uma
desaceleração da difusão da internet quando ela penetrar no mundo da pobreza e do atraso tecnológico. A
influência das redes baseadas na internet vai além do número de seus usuários: diz respeito também a
qualidade do uso. Atividades econômicas, sociais, políticas e culturais essenciais por todo o planeta estão
sendo estruturadas pela internet e em torno dela, como outras redes de computadores.” CASTELLS,
Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 8.
59
No Município de São Paulo “ com o objetivo de unir forças em defesa dos
bairros residenciais e visando a impedir a expansão do comércio e a degradação das
áreas sob proteção ambiental e cultural, a AME JARDINS apoia o movimento
independente AME SEU BAIRRO.
De acordo com Roberto Lima, morador e um dos articuladores, Ame Seu Bairro
é um movimento sem vinculação nem pretensões políticas. “Não somos um grupo de
oposição a governos. A razão de nossa existência é aproximar moradores e Poder
Público em torno da valorização dos bairros”. Quanto ao Projeto de Lei de
Zoneamento, Lima explica que “o movimento conta com apoios técnico, urbanístico,
jurídico e de assessoria política, por meio dos quais pretendemos propor aos vereadores
e ao Poder Executivo aprimoramentos que vão ao encontro das próprias ideias que
inspiram o Projeto de Lei em debate”.22
Oportuno exemplificar
também, como a sociedade da informação tem
possibilitado linguagens com utilização de
palavras de diversos idiomas que tem
alterado profundamente nossa cultura e idioma, que em tese, pelo art. 13 da
Constituição Federal tem como oficial a língua portuguesa.
Assim, termos como sale, link, free, lyfe, copy, web, dentre outros tem sido
utilizados constantemente, praticamente levando a integração destes termos em nosso
idioma, que historicamente teve também teve influências externas como: verbetes
africanos, termos tupis e o próprio e original português.
Com tantas mudanças o Brasil implementou o Plano Nacional de Cultura
também chamado PNC, pela Lei 12343 de 2 dezembro de 2010, “que tem por finalidade
o planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo (até 2020)
voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural brasileira. Diversidade que se
expressa em práticas, serviços e bens artísticos e culturais determinantes para o
exercício da cidadania, a expressão simbólica e o desenvolvimento socioeconômico do
País.
Os objetivos do PNC são o fortalecimento institucional e definição de políticas
públicas que assegurem o direito constitucional à cultura; a proteção e promoção do
patrimônio e da diversidade étnica, artística e cultural; a ampliação do acesso à
produção e fruição da cultura em todo o território; a inserção da cultura em modelos
sustentáveis de desenvolvimento socioeconômico e o estabelecimento de um sistema
22
AME
SEU
BAIRRO:
Mais
um
movimento
em
defesa
http://blog.amejardins.com.br/2015/10/ame-seu-bairro-mais-um-movimento-em.html
das
ZERs.
60
público e participativo de gestão, acompanhamento e avaliação das políticas
culturais.”23
A referida lei prevê cinquenta e três metas para a área da cultura até 2020
estabelecidas com a participação da sociedade e de gestores públicos e em
conformidade com o art. 1º é regido pelos seguintes princípios:
I - liberdade de expressão, criação e fruição;
II - diversidade cultural;
III - respeito aos direitos humanos;
IV - direito de todos à arte e à cultura;
V - direito à informação, à comunicação e à crítica cultural;
VI - direito à memória e às tradições;
VII - responsabilidade socioambiental;
VIII - valorização da cultura como vetor do desenvolvimento sustentável;
IX - democratização das instâncias de formulação das políticas culturais;
X - responsabilidade dos agentes públicos pela implementação das políticas
culturais;
XI - colaboração entre agentes públicos e privados para o desenvolvimento da
economia da cultura;
XII - participação e controle social na formulação e acompanhamento das
políticas culturais.
Em que pese a legislação vigente e os trabalhos desenvolvidos a sociedade da
informação traz à baila as diferenças culturais e que passam a ter destaque com a
tecnologia.
Há necessidade de um processo educacional efetivo para identificar esses termos
e valorizá-los, se conveniente para permitir a construção de valores sociais,
conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do
meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua
sustentabilidade.
Considerações finais.
61
Ao longo dos vinte anos navegando e registrando no meio ambiente digitalcultural observamos a transformação do cotidiano das pessoas algumas mais
conscientes que outras.
Dentro deste processo identificamos o trabalho constante para se manter
conectado e procurando
entender a transformação
bem como, seus recursos
tecnológicos.
Os atores sociais estão participando deste movimento de inclusão tecnológica e
pela legislação vigente, procurando identificar a importância de tal sistema.
O meio ambiente digital-cultural a cada dia ganha novas dimensões e desafios na
medida que, através do clique do computador são percebidas as diferenças para quem
observa. O Estado através de seus agentes tem por obrigação identificar e zelar pela
construção consciente e responsável deste processo.
Identificar o que importa, ensinar o que é necessário, integrar as informações de
destaque e construtivas para o Estado são desafios a serem vencidos.
A preservação, conservação e manutenção dos bens tombados cumpre a
legislação vigente e respeita as presentes e futuras gerações que desejam usufruir de
um benefício de uma cidade com passado.
O valor deve estar adstrito a todos os bens que efetivamente tem significado e
para tal a participação da população é fundamental na medida que passa a ter
consciência e do compromisso preservacionista.
O mundo acadêmico como observador deste processo pode colaborar e muito
com medidas sociais que valorizem, integrem e estruture a preservação, conservação e
manutenção de bens culturais.
O olhar interno com a participação de jornalistas, políticos, profissionais liberais
dentre outros é fundamental para o entendimento do processo e o olhar internacional
igualmente é salutar, na medida que compara resultados positivos de outros Estados e
traz modelos que podem ser adotados.
Os desafios que estão centrados na rapidez do processo e nas diferenças culturais
podem perfeitamente ser sanadas se acompanhadas as referidas transformações.
O investimento neste setor deve ser científico, constante e próprio para atender os
interesses da sociedade em sua essência e para isso, há necessidade de tempo de
observação, pesquisa, identificação, valoração, conscientização e responsabilidade.
O equilíbrio das diferenças do meio ambiente cultural-digital devem acontecer
incessantemente criando valores e destacando que são estes que devem ser protegidos,
62
com movimentos preservacionistas que sintam o passado, não querendo perde-lo e que
os divulgue fazendo a diferença no presente e especialmente no futuro, com as gerações
que nos avaliarão do Oiapoque ao Chuí.
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AME
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um
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63
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estão
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invadidas
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prestes
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novembro de 2015
65
CAPÍTULO 4
DIREITO E TECNOLOGIA: REFLEXÕES SOBRE OS 20 ANOS DE
INTERNET NO BRASIL
AUGUSTO TAVARES ROSA MARCACINI*
1. Da imprensa à substituição do papel
Já se tornou lugar comum dizer, em termos comparativos, que as mudanças que
a Internet proporcionou à sociedade de seu tempo só são comparáveis, historicamente,
com as consequências trazidas pela invenção da imprensa, no Séc. XV, por Gutenberg.
Antes da imprensa, a divulgação do conhecimento só se fazia possível por meio de
escritos reproduzidos à mão, um a um, pelos copistas. Evidentemente, isso fazia das
obras bens escassos e caros1. A imprensa permitiu a reprodução de obras em escala,
multiplicando a produção de livros.
Segundo aponta a doutrina, um dos motores que impulsionaram o Praxismo, a
partir do Séc. XVI foi a invenção da imprensa; a capacidade de produzir livros
demandava o aumento do número de leitores, sendo esse um dos fatores para o
abandono do uso do latim, em favor da língua nacional, de modo que os escritores
poderiam ser lidos por um maior número de pessoas.2
A imprensa de tipos móveis, portanto, revolucionou a forma de transmissão da
informação ao nascimento da Idade Moderna.
Assistimos, em nosso tempo, a uma segunda grande revolução da informação,
só comparável historicamente àquela propiciada pela invenção da imprensa. Nesta fase
atual, promove-se a substituição do papel por meios eletrônicos, que agregaram a
capacidade de produzir, copiar e distribuir a informação a custos baixíssimos,
*
Advogado em São Paulo. Mestre, Doutor e Livre-docente em Direito Processual pela Faculdade de
Direito da USP. Professor do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Informação e de Direito
Processual Civil do UniFMU. Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-SP. Foi
Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP.
[email protected]
1
2
COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português, p. 274-275 e p. 280.
PRATA, Edson. História do Processo Civil e sua projeção no Direito moderno, p. 124.
66
transmitindo-a em velocidades incomparáveis às de qualquer meio de transporte. A
informação se tornou ubíqua, bastando que esteja armazenada em algum computador
conectado à Internet.
Esse processo de substituição do papel, contudo, é um tanto menos recente e
iniciou-se antes dos computadores, já com o domínio da eletricidade, que possibilitou
invenções como o telégrafo e o telefone; e, com a descoberta das ondas
eletromagnéticas, seguiram-se o rádio e a televisão. O uso do telefone como meio de
comunicação interpessoal já superou o uso das cartas, e a mais recente expansão da
telefonia móvel está interconectando as pessoas de um modo que seria impensável há
poucas décadas atrás, a ponto de se poder afirmar que “a comunicação sem fio difundiuse mais rapidamente do que qualquer outra tecnologia de comunicação ao longo da
história”.3
Por outro lado, o noticiário transmitido por rádio e, depois, pela televisão,
avançou sobre o nicho em que jornais impressos se apresentavam como meio exclusivo
de propagação das notícias.
A chegada dos computadores ampliou de modo surpreendente a capacidade de
substituir o papel, fenômeno facilmente observável. A forma escrita recuperou prestígio
na comunicação interpessoal, mas o correio, agora, é eletrônico, dispensando o papel;
pouco tempo depois do início da chamada fase comercial da Internet, iniciada em 1995,
toda a grande imprensa já se encontrava presente na rede mundial de computadores,
oferecendo versões digitais, online, de seus textos, imagens e sons. Os jornais do mundo
todo entraram dentro de nossos lares, ambientes de trabalho, ou até em nossos bolsos,
com o uso de equipamentos móveis de comunicação de dados.
Importa assinalar que, quando o que se objetiva é a disseminação da informação
ou a comunicação informal entre pessoas, a substituição do papel pôde avançar sem
maiores dificuldades. Pessoas já conhecidas entre si, que conversam ao telefone, não
têm quaisquer dúvidas quanto à identidade de seu interlocutor ou quanto ao que estejam
escutando; e, na troca de mensagens informais pelo correio eletrônico, essa não costuma
ser uma preocupação na maior parte dos casos. E a informação que uma agência de
notícias oferece por meios eletrônicos não é melhor nem pior, nem mais certa ou mais
3
CASTELLS, Manuel et. al, Mobile Communication and Society: a Global Perspective, p. 7 (em
nossa tradução). No original: “Wireless communication has diffused faster than any other communication
technology in history”.
67
duvidosa, do que aquela que a mesma entidade já oferecia por meio dos jornais
impressos.
E nesses aspectos o computador trouxe praticamente apenas vantagens, dada a
sua capacidade de, conectado à Internet, enviar e receber instantaneamente a informação
a custos ínfimos, se comparados com o emprego do papel para tarefa análoga. A
transmissão de notícias também ganhou a possibilidade de ser mais densa, por textos
escritos publicados na Internet, praticamente sem limites de espaço, em comparação às
formas mais dinâmicas e superficiais de noticiário proporcionado pelo rádio e pela TV.
2.A imprevisibilidade da Internet nos anos anteriores
É interessante notar como a Internet parece ter sido algo completamente
imprevisível apenas alguns poucos anos antes de sua disseminação em nossa sociedade.
Se passarmos os olhos sobre as previsões futuristas e a ficção científica que lhe
antecede, deparamo-nos com cenas que mostram a humanidade neste início de século
XXI viajando em naves intergaláticas na conquista do espaço, ou trafegando em
veículos voadores por cidades de arquitetura arrojada, equipamentos bélicos
poderosíssimos, ou avanço em biotecnologia que nem de longe foram alcançados.
Citem-se como exemplos a saudosa animação infantil “Os Jetsons”, do estúdio HannaBarbera, produzida nos anos de 1962 e 1963, ou a sinistra distopia “Blade runner – o
caçador de andróides”, de Ridley Scott, filmado em 1982, ou ainda o lúdico “De volta
para o futuro – 2”, de Robert Zemecki, produção de 1989: nessas obras todas, não
obstante o elevado grau de desenvolvimento tecnológico que a humanidade teria
atingido ao tempo em que se passam as narrativas (em “Blade Runner”, estão no ano
2019, em “De volta para o futuro 2” as personagens viajam para este nosso ano de
2015, enquanto a família Jetsons vive em algum tempo “futuro” não precisamente
datado), não se vê nada que se assemelhe ao que é a Internet, em seus aspectos
participativos, anárquicos, descentralizados, nem computadores móveis que tenham um
poder de processamento que, poucas décadas atrás, era alcançado somente por
caríssimos supercomputadores.
Um supercomputador dos anos 70, como o Cray-1A, lançado em 1977, pouco
menos de 20 anos antes do nascimento da Internet comercial, custava 8,9 milhões de
dólares, pesava 5,5 toneladas e tinha poder de processamento de 160 MFLOPS, 24 o
24
MFLOP é a sigla de Megaflop, ou um milhão de operações de ponto flutuante por segundo, um
dos parâmetros utilizados para medir o poder de processamento de computadores..
68
suficiente para que fosse o computador mais rápido do mundo durante todo o final da
década de 70 e início da década de 80. Ao tempo do surgimento da Internet comercial,
um microcomputador com processador Intel Pentium 200, lançado em 1996, já
alcançava a marca de 200 MFLOPS. Hoje, o poder do supercomputador que reinou
absoluto ao final dos anos 70 equivale ao de um Raspberry Pi – quase um brinquedo –
cujo projeto é livre e foi desenvolvido com o objetivo de proporcionar equipamentos
acessíveis para que crianças aprendam programação de computadores: esse pequeno
computador custa menos de 50 dólares e alcança os 154 MFLOPS.
Um smartphone mediano que adolescentes levam no bolso e usam intensamente
para frequentar redes sociais, dotado com quatro processadores internos que funcionam
a mais de 1GHz de frequência, tem cerca de cinco vezes o poder de processamento do
Cray-1A.
Não se vê fatos como esses “previstos” na ficção científica de poucas décadas
atrás.
Por outro lado, o videofone, aparelho de intercomunicação que combina voz e
imagem, é uma tecnologia constantemente vista nas ficções, embora sua previsibilidade
poderia ser tida como resultado da visível evolução das comunicações. Se já se
conseguia transmitir imagens pela televisão desde os anos 50, não seria difícil combinar
sua tecnologia com a do telefone. Embora a Internet possa ser considerada um
sofisticado canal de comunicação, mais uma vez a ficção científica anterior falhou em
não exibir nada que se assemelhe a ela, com a capacidade de interação, de troca de
arquivos, de armazenamento e transmissão de imensas quantidades de dados, a permitir
que todos façam contato com todos, numa estrutura em rede, e desempenhem todo o
tipo de atividade, trabalho, estudo, pesquisa ou lazer.
Impressiona, pois, como um conjunto de tecnologias que revolucionou o mundo
não se apresentou nem nas mais imaginativas obras da ficção cientifica de poucos anos
antes.
3. O Direito e a tecnologia, antes da Internet
Breve retrospecto das relações do Direito e da Tecnologia
A história da humanidade se confunde com a própria história da tecnologia. A
tecnologia disponível em dado momento histórico definiu as relações humanas, a
69
produção, o trabalho e o poder político, econômico ou militar de sua época. O fogo, a
Revolução Agrícola, a escrita e todas as demais invenções e descobertas que se
seguiram marcaram um salto qualitativo no modo de vida da espécie humana e
influíram decisivamente na dinâmica das relações sociais.
É chover no molhado afirmar que o crescimento tecnológico, que no princípio
da aventura humana era lento e gradual, tornou-se cada vez mais intenso e acelerado a
partir da Revolução Industrial, e mais ainda nas últimas décadas do segundo milênio,
quando adentramos a moderna Sociedade da Informação, ou a era que pode ser chamada
de Sociedade em Rede, contexto mais recente que despontou ao redor da última virada
de século.
E tudo isso se deve ao impressionante desenvolvimento das Tecnologias de
Comunicação e Informação, ou, numa simples palavra, da Informática. Os
computadores ocupam, sem sombra de dúvida, um papel de destaque nas sociedades
modernas, mostrando-se onipresentes como nenhuma outra tecnologia antes
desenvolvida.
O Direito frente às inovações da Informática, na era pré-Internet
Se a fértil imaginação da ficção científica não logrou prever a utilidade ou o
impacto que o desenvolvimento computacional poderia trazer à sociedade, menos ainda
o Direito foi capaz de antever que novos tipos de fatos jurídicos surgiriam nos anos
vindouros, ou que tipo de uso nós profissionais do Direito daríamos aos computadores.
Pode-se dizer que os primeiros interesses despertados pelos profissionais da área
jurídica, nos primórdios da computação, eram voltados para um campo que até hoje
pode ser considerado um terreno pantanoso e, talvez, indesejado. Uma vez que o
computador se mostrou uma potente ferramenta para a resolução de problemas
científicos ou técnicos, houve, inicialmente, uma grande expectativa de que ele pudesse
ser utilizado para resolver, ou ao menos auxiliar a resolver, também os problemas
jurídicos. Ensinar o computador a lidar com a lógica formal, de modo que pudesse
auxiliar no processo mental de análise e decisão de casos concretos, ou para que atuasse
como apoio para estudos legislativos ou jurisprudenciais, pareceu ser, durante suas
primeiras décadas, a principal utilidade para as ciências jurídicas daquele produto até
então enigmático. Se tal máquina maravilhosa solucionava tão bem complexos cálculos
físicos, astronômicos ou balísticos, e o fazia em tempo tão irrisório, a decretar sua
70
superioridade sobre o limitado cérebro humano, parecia tentador ocupá-la, também,
para a solução de dilemas jurídicos.
Muito se falou, então, de “cibernética jurídica”, “juscibernética”, “jurimetria”,
produzindo-se a partir daí um intenso namoro especialmente entre os filósofos do
Direito e as tecnologias informacionais. O computador foi, então, apontado como
instrumento para se tentar dar previsibilidade às decisões judiciais ou para a
estruturação de alguma forma de estudo “lógico” do Direito.
Mais recentemente, estudos avançados em torno da chamada inteligência
artificial propugnam pela utilização do computador como um auxiliar na construção do
Direito ou na sua interpretação e aplicação a casos concretos.
O problema dessa abordagem é que, como o próprio nome bem define esse tipo
de tarefa executada pelos computadores, trata-se de uma inteligência artificial, isto é,
construída a partir da programação que foi desenvolvida por algum humano! Uma vez
que o Direito lida não apenas com fatos exatos e matemáticos, estes normalmente
imunes à subjetividade dos programadores de computador, mas com os fatos erráticos
da vida em sociedade e com variadas opções de cunho valorativo ou interpretativo,
eventual tentativa de “ensinar-lhe” algo próximo de uma “lógica jurídica” pode
significar apenas a transferência, ao computador, dos valores e opções de cunho
político, filosófico, ideológico e jurídico de quem o programou para assim
artificialmente “raciocinar”.
Um computador apenas processa números e no cumprimento dessa função é
insuperavelmente rápido e preciso. Operações matemáticas, por exemplo, que lidam
com números gigantescos, capazes de produzir resultados com algumas milhares de
casas decimais, são realizadas pelo computador (inclua-se nesse conceito os mais
modernos celulares ou smartphones) em ínfimas frações de segundo.
Toda informação com que lida um computador, seja ela textual, gráfica, sonora
ou cinética, é armazenada e processada internamente pela máquina sob a forma de
representações numéricas. Os dados inseridos no computador são convertidos em
números e assim armazenados. Mais especificamente, ele representa esses números em
notação binária, usando apenas dois algarismos, o “0” e o “1” (e não os dez que,
convencionalmente, são utilizados, de “0” a “9”, com o que estamos todos tão
familiarizados). O bit, expressão usualmente empregada na terminologia informática,
significa essa menor unidade de informação, que pode representar o “0” ou o “1”
71
(internamente aos circuitos eletrônicos, isso é obtido por uma espécie de “interruptor”,
que pode ou estar ligado ou desligado).
Esse, aliás, é o sentido da palavra digital. Deriva do uso de números.
Porém,
não
obstante
o
impressionante
poder
de
processamento
e
armazenamento de dados que os computadores têm, e que aumenta freneticamente ano
após ano, qualquer tarefa que exija um juízo de valor outro que não diretamente
decorrente da exata Matemática, ou que não seja objetivamente representado por
números, pressupõe a utilização de informações e critérios previamente inseridos no
sistema informático por um certo alguém, isto é, por aquele sujeito que o programou
para a execução de uma determinada tarefa. Esse é o papel desempenhado pelo
software. Um computador, por si, nada sabe. Não conhece os fatos do mundo, nem tem
habilidades inatas. Seu “conhecimento” foi todo programado por alguém.
Corre-se, pois, o risco de substituir a subjetividade do intérprete do Direito pela
subjetividade do programador do software de inteligência artificial, ou daquele que
ditou os critérios da programação, ou que proporcionou os dados a partir dos quais o
computador fará suas “avaliações”. Portanto, não se pode deixar de apontar uma certa
ingenuidade nessas proposições todas, como se o computador fosse algo neutro, imune
às maldades do mundo, ou moralmente superior a qualquer forma de pensamento
humano; ou como se ele fosse dotado de uma vontade própria e autônoma, puramente
lógica e racional, despregada da vontade e dos valores daquele que o programou.
O computador pode, sem sombra dúvida, colaborar para tarefas organizacionais
várias e, consequentemente, também para a pesquisa jurídica, como tem sido
vastamente usado em mecanismos de busca legislativa ou jurisprudencial. Mas as
escolhas prioritárias que eventualmente faça, ao ordenar os resultados de uma pesquisa
e exibi-los ao pesquisador, não são fruto de critérios seus, “neutros”, puramente
“lógicos”, mas sim os do seu Senhor, o analista ou programador que desenvolveu o
respectivo sistema e nele inseriu o universo de dados sobre os quais recai a pesquisa.
Quando um mecanismo informático de cadastro, classificação e busca (pense-se, por
exemplo, no buscador Google) localiza a informação por ele armazenada e a estratifica,
com o objetivo de, o mais possível, apresentar em primeiro lugar a informação que
pareça ser a mais próxima da intenção do consulente, ele o faz a partir de critérios
definidos e programados por um humano, expressos em um algoritmo por ele
desenvolvido.
72
Enquanto fonte e instrumento de pesquisa, a serem utilizados com cautela e
senso crítico por um estudioso que minimamente compreenda os meandros do
funcionamento de sistemas informáticos, buscadores assim têm, inegavelmente, imensa
utilidade para o estudo do Direito, ao propiciar acesso a um volume de informações
impossível de catalogar ou consultar, senão pelo uso da moderna tecnologia. É o que
ocorre quando o computador serve como apoio à pesquisa jurídica, propiciando a busca
em bases de dados legislativas e jurisprudenciais. A partir da localização de textos de
potencial interesse, contudo, qualquer outra valoração que deles se faça é e deve ser
essencialmente uma tarefa humana; se se propõe fazê-la pelo computador, parece claro
que toda escolha qualitativa por ele apresentada será resultante da programação que a
máquina recebeu de alguém.
Portanto, submeter ou vincular a essa “lógica”, de modo imperativo, quem não
criou o sistema e nem sequer compreende o seu funcionamento, como se tal “lógica”
fosse fruto de uma razão superior e inquestionável, que o computador evidentemente
não possui por si, será apenas uma forma disfarçada de totalitarismo, em que a vontade
do autocrata vem travestida de contornos hi-tech a lhe atribuir uma certa aura de
modernidade.
Com o passar do tempo, porém, a partir do desenvolvimento dos computadores
pessoais, que foram se tornando progressivamente mais baratos ano a ano, e
especialmente após estabelecida essa onipresença da Internet, as relações entre Direito e
Informática avançaram para outros rumos, talvez inimagináveis nos primórdios da
computação moderna, que havia sido iniciada de modo centralizado e apoiado em
equipamentos caros e inacessíveis à quase totalidade da população.
A partir especialmente do final dos anos 70 e início da década de 80, com o
surgimento do computador pessoal, e dos anos 90, com a popularização da Internet, o
impacto social da Informática mostrou contornos antes imprevistos (e, como já
dissemos, nem a ficção científica anterior ousou sugerir as façanhas que a computação
moderna proporcionou neste início do Séc. XXI) e isso iria repercutir também nas suas
relações com o Direito.
O computador tornou-se, então, um instrumento de estabelecimento e
intermediação das relações humanas. É nesse campo fértil que novas formas de
relacionamento – e consequentemente de conflito – surgem a cada dia, a esperar que
sejam reguladas pelo Direito. Assim, as contemporâneas relações entre o Direito e a
Tecnologia devem ser vistas principalmente como o resultado do uso do computador
73
como ferramenta de comunicação e, também, de documentação (com especial destaque
para a documentação da própria comunicação), a produzir novos fatos e relações
jurídicas, ou novas maneiras de registrá-los.
A compreensão de como o computador executa tais tarefas, portanto, passou a
ser relevante para o estudo do Direito, tornando-se igualmente um conhecimento cada
vez mais essencial aos seus operadores e, sem exagero, para a vida em sociedade.
Compreender alguns meandros da Informática pode ser considerado, neste Século XXI,
algo tão essencial para o cidadão quanto o é ser alfabetizado.
Informática Jurídica e o Direito da Informática
A aproximação entre Informática e Direito resultou inicialmente naquilo que se
costuma chamar de Informática Jurídica, isto é, o uso da Tecnologia da Informação
para auxilio no desempenho de tarefas relacionadas com o Direito. Desde logo, o
gerenciamento de bases de dados foi um tipo de aplicação que impressionou o
profissional do Direito, pela capacidade de armazenamento, busca e recuperação de
informações. Um programa de computador integrado a uma base de dados se constitui
em poderosa ferramenta para organização de fichas e cadastros variados, para a gestão
de diversas tarefas, servindo especificamente para as áreas jurídicas como meio de
recuperação de informações contidas nas fontes do Direito, a legislação e a
jurisprudência.4 E, claro, programas de uso geral para escritório, editores de texto,
agendas, ou planilhas de cálculo facilitaram o desempenho de tarefas do cotidiano
profissional do operador do Direito.
Por outro lado, diversas situações envolvendo produtos ou serviços tecnológicos
necessitaram de regulação pelo Direito, merecendo destaque inicial os direitos de
propriedade intelectual sobre hardware e software, assim como contratos diversos,
como os de compra, venda, uso, manutenção e desenvolvimento de sistemas
informáticos. Nestes casos, é o Direito que se aplica à Informática, regulando aspectos
da vida que estão relacionados com a tecnologia.
Assim, a expressão “contrato informático” aparece originalmente no vocabulário
jurídico para designar o contrato cujo objeto é um bem de natureza informática:
4
BIELSA, Rafael A., “Método de análisis para una aplicación en informática jurídica
documental”, p. 50.
74
É o objeto o elemento que mais contribui para a qualificação de um contrato
como contrato informático; qualifica-se, de fato, como contrato informático
qualquer acordo contratual em que o bem transferido ou o objeto de fruição
seja um bem informático, independentemente da natureza das partes
contraentes.5
Nestes últimos vinte anos, as relações entre Direito e Informática tomam um
curso mais uma vez inimaginável para as previsões anteriores: com o progressivo
aumento do uso do computador para as mais diferentes tarefas e especialmente como
fruto da onipresença da Internet, as relações humanas passaram a ser intermediadas pelo
computador; com isso, sistemas informáticos passaram a ser coadjuvantes de
incontáveis fatos sociais. Essa forte expansão tecnológica construiu aquilo que vem
sendo chamado de “sociedade em rede”, produzindo consequências de cunho social,
político, econômico e, portanto, jurídico:
Uma vez que a Internet está se tornando um meio essencial de comunicação e
organização em todas as esferas de atividade, é óbvio que também os
movimentos sociais e o processo político a usam, e o farão cada vez mais, como
um instrumento privilegiado para atuar, informar, recrutar, organizar, dominar
e contradominar. O ciberespaço torna-se um terreno disputado. No entanto,
será puramente instrumental o papel da Internet na expressão de protestos
sociais e conflitos políticos? Ou ocorre no ciberespaço uma transformação das
regras do jogo político-social que acaba por afetar o próprio jogo – isto é, as
formas e objetivos dos movimentos e dos atores políticos?6
Esta profusão de novas situações, aparentemente sem uma clara regulação pelo
Direito, fez brotar o entendimento de que teria nascido um novo ramo das ciências
jurídicas, ao qual foram atribuídos nomes como Direito da Informática, Direito das
Novas Tecnologias, ou Direito Eletrônico, Direito Digital, ou até mesmo Direito
Virtual, expressão esta que soa muito mal aos ouvidos e à correta utilização das
palavras.
5
SALVATORE, Paola Di. I contratti informatici, p. 23 (em nossa tradução). No original: “È
l'oggetto l'elemento che maggiormente contribuisce alla qualificazione di un contratto come contratto
informatico; si qualifica, infatti, come contratto informatico qualunque accordo contrattuale in cui il
bene trasferito o oggetto di godimento sia un bene informatico, a prescindere dal volto delle parti
contraenti”.
6
CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet, p. 114.
75
Mas o que seria o Direito da Informática? Poderia ser considerado um novo
ramo do Direito?
Dada a intensidade com que computadores adentraram todo o tipo de relação
humana, fica difícil conceber que temas tão diversos como, por exemplo, tributação de
bens ou serviços informáticos, teletrabalho, contratação civil ou empresarial por meio
eletrônico, fraudes bancárias ou outras fraudes cibernéticas análogas, propriedade
intelectual sobre software, a admissibilidade e valoração de provas eletrônicas, ou a
aplicação de tecnologia da informação aos processos judiciais possam ser colocados na
mesma vala comum. Que princípios gerais seriam uniformemente aplicados a essas
situações tão diversas? Teriam as normas que regulam essas situações os mesmos
escopos? Atenderiam aos mesmos valores? Seriam interpretadas segundo os mesmos
critérios? Parece claro que não!
Na verdade, por mais que a tecnologia tenha revolucionado o modo de vida em
nossa sociedade atual, isso não é suficiente para a produção de um novo ramo do
Direito, exclusivo a regular as situações da vida em que algum apetrecho informático
seja utilizado. O avanço tecnológico propiciou fatos novos, ou modos variantes, talvez
com alguns detalhes próprios, de se realizar fatos e atos já antes conhecidos, regulados e
amplamente praticados. A natureza das relações jurídicas daí resultantes não parece ser
diversa das que já conhecíamos. Ora, se um crime é cometido com o uso da tecnologia
da informação, os princípios e regras gerais que o intérprete do Direito haverá de
utilizar são aqueles mesmos que orientam a ciência penal. Se o que se analisa é a
incidência ou não de tributos sobre algum bem ou serviço informático, do mesmo modo
será nos princípios e normas do Direito Tributário que o exegeta irá encontrar
fundamentos para a solução do dilema. Se falamos em teletrabalho, é na esfera
trabalhista que serão localizadas premissas teóricas a orientar nosso raciocínio; ao
Direito Processual incumbe lidar com as provas por meio eletrônico e o uso de
computadores no próprio processo. E assim por diante.
Mesmo que sejam necessárias leis novas para regular esses novos fatos da vida,
o que, aliás, é de se esperar para muitas dessas novas situações, já que o Direito não é
estático, isso não é suficiente para produzir um novo ramo do Direito. Tomando mais
uma vez a esfera penal como exemplo, ao tipificar novos crimes, mesmo quando
praticados por computador, é o Direito Penal que deverá fornecer um corpo central de
valores a orientar o legislador; o mesmo se pode dizer de todos esses fatos inéditos
trazidos pelas novas tecnologias! Novas leis, portanto, apenas normatizarão situações
76
novas, para as quais as regras atuais não se mostrem suficientes, o que, aliás, é algo
bastante corriqueiro no universo jurídico. Mas não há evidências de que, neste caso, a
tecnologia produzirá um novo ramo jurídico, dotado de princípios, objeto e método
próprios.
Não se mostra totalmente inadequado, porém, falar-se em Direito da Informática
para designar, não um novo ramo do Direito, mas sim uma abordagem interdisciplinar
voltada ao estudo acadêmico e prático dessas novas situações da vida, trazidas com o
avanço tecnológico, e dos correspondentes princípios e normas a elas aplicáveis,
mantendo-se, no entanto, a afetação de cada um desses fatos ao ramo do Direito que os
abarca, em razão da sua pertinência temática. Semelhante é a posição de Martins Castro:
Um segundo elemento que poderia justificar a atribuição de independência a
um determinado ramo do Direito seria a sua autonomia científica e acadêmica.
Uma área do Direito que se justifique ser ensinada separadamente das outras
mostra indícios de independência.
Sob esse prisma, o Direito da Informática possui indubitável e crescente
autonomia, sendo cada vez mais comum o surgimento de disciplinas em nível de
graduação e pós-graduação nas mais importantes faculdades de direito do
mundo que se dediquem exclusivamente ao ensino da matéria.7
Mesmo assim, poderíamos especular o que seria dessa nova disciplina jurídica
com o passar dos anos e a assimilação da tecnologia pela população em geral, ou pelos
professores e alunos de Direito em particular. Em grande medida, a necessidade de tal
estudo interdisciplinar – que é o que consideramos ser o chamado Direito da
Informática – decorre da novidade verificada no campo dos fatos, normalmente
incompreendida pela ampla maioria dos profissionais e estudiosos que estão em
atividade, eis que foram colhidos no meio de suas vidas por uma rápida e avassaladora
expansão dos computadores. E, diga-se, nenhuma outra tecnologia avançou tão
rapidamente sobre a vida em sociedade, nem foi tão abrangente, a adentrar praticamente
todas as formas de relacionamento humano. Mas, com o passar dos anos, o que haveria
de diferente, ou de especial, a ser autonomamente ensinado a uma geração que desde a
tenra idade cresceu utilizando computadores?
À medida em que o computador deixe de ser esse ente misterioso, como ainda o
é para boa parte dos operadores e estudiosos do Direito, parece natural que documentos
7
CASTRO, Luiz Fernando Martins. Direito da Informática e do Ciberespaço, Revista de Direito
das Novas Tecnologias, nº 1, pp. 14-15.
77
eletrônicos passem a ser regularmente estudados como parte da prova documental;
contratação por computador, com o estudo dos contratos; crimes por computador, entre
os crimes contra o patrimônio, a vida, a administração pública, etc., conforme o bem
jurídico atingido; e assim por diante. Quando os que estiverem ensinando e aprendendo
pertencerem a uma geração para a qual o computador já deixou de ser novidade,
possivelmente nada restará a merecer um estudo destacado, em disciplina autônoma.
Destarte, mostra-se frágil a tentativa de construção de um Direito da Informática
como um ramo autônomo do Direito. Em conclusão, o chamado Direito da Informática
pode ser definido como um estudo interdisciplinar das relações entre a Informática e
todos os ramos do Direito, voltado para a compreensão e enquadramento normativo
dos novos fatos trazidos pela expansão da tecnologia e pela formação de uma
sociedade em rede. Tal estudo tem por escopo identificar a adequação dos atuais
conceitos e normas a esses novos fatos, ou, se for o caso, propor a elaboração de novas
normas e redefinir conceitos. Quando a tecnologia da informação deixar de ser uma
estranha novidade aos olhos das futuras gerações, duvida-se da necessidade de tal
estudo em separado: as questões que vierem a surgir serão simplesmente tratadas dentro
das suas respectivas áreas.
4. Os primeiros anos da Internet
A Internet desenvolveu-se a partir de redes militares e acadêmicas, cuja história
já deve ser bem conhecida por todos. Seu uso comercial, em nosso país, deu-se, ainda
timidamente, a partir de 1995, de modo que, nessa perspectiva, podemos falar, como no
título deste estudo, nos 20 anos da Internet no Brasil.
Tive, pela primeira vez, acesso a um computador no ano de 1987, quando
cursava o último ano da Faculdade de Direito e exercia a função de Diretor do
“Departamento Jurídico XI de Agosto”. Naquele ano, a Universidade de São Paulo
cedeu um computador pessoal ao Departamento Jurídico, em que trabalhava e atuava
como Diretor, e que, certamente, deve ter sido o primeiro órgão prestador de assistência
jurídica gratuita a ser informatizado.
Do ponto de vista da evolução da Informática, os anos 80 parecem ambientados
no século XIX. O computador era algo completamente estranho ao meio jurídico de
então. A instalação de um computador no Departamento Jurídico - até pela paradoxal
ligação entre alta tecnologia e pobreza - fez com que verdadeiras romarias ocorressem
78
em direção à sua sede. Alunos, professores, advogados-orientadores, antigos estagiários
do Departamento, todos que ficassem sabendo do fato vinham para venerar a estranha
máquina.
Se, em 1987, o computador era um ser misterioso, a Internet, poucos anos
depois, parecia ser um mundo misterioso, a excitar a imaginação, trazendo a visão de
outras dimensões ou de mundos paralelos. Muito se falava, à época, que a Internet
podia ser regulada pelo “direito tradicional”, que todo um novo corpo legislativo seria
necessário para reger as novas relações criadas pela rede.
Mais uma vez, a realidade atual desmente as primeiras previsões.
As tentativas de legislar “sobre a Internet” resultaram em projetos de lei
ambiciosos que terminaram aprovados como textos legislativos bem mais concisos e
singelos.
Em verdade, não sendo a Internet um outro universo paralelo, mas tão somente
um sofisticado canal de comunicação que é parte desse nosso mesmo mundo e dessa
mesma sociedade, as leis anteriores mostram-se compatíveis com boa parte das “novas”
situações que a Internet trouxe à luz. Um acordo de vontades continua a ser um
contrato, tenha sido negociado e fechado com ou sem o uso de redes de computadores;
fraudes continuam a ser o ilícito que são, sejam praticadas “ao vivo” diante da vítima,
seja por canais eletrônicos. A essência desses fenômenos jurídicos, em grande medida,
não se altera.
5. Internet, Direito e Sociedade na atualidade
Nestes últimos 20 anos, a forte expansão das tecnologias da informação e
especialmente da Internet deu novas dimensões ao velho sonho de uma sociedade mais
igualitária, em que a população detivesse maior parcela de poder. É possível dizer que
caminhamos nesse sentido, apoiados nas tecnologias da informação? Ou, no fundo,
nada teria sido mudado, os centros de poder continuariam os mesmos, e tudo não passa
de uma ilusão de mais liberdade e igualdade.
É fato que é muito maior o poder de disseminação da informação pelos grandes
portais da Internet, muitos dos quais ligados aos tradicionais veículos de comunicação,
ou aos governos, do que aquele que indivíduos isoladamente teriam, para fazerem-se
ouvir pelo grande público.
79
Sem dúvida, grandes centros de poder que existem em nossa sociedade,
governos, grupos econômicos, imprensa, também se beneficiaram da tecnologia para
expandir suas possibilidades de atuação, e normalmente o fazem com muito maior
poder de fogo do que o do cidadão comum. Se este tem acesso a um computador
pessoal e a um simples link doméstico, e se vale de ferramentas simples - normalmente
gratuitas - de publicação e de gestão de conteúdo na Internet, os tradicionais centros de
poder certamente utilizam meios muitas vezes mais potentes, rápidos... e caros.
Mas talvez resida exatamente aí o grande poder equalizador da rede e das novas
tecnologias. Não se trata de afirmar que com um computador de um mil reais ou um
celular vendido a preço subsidiado pela operadora de telefonia o paisano possa obter o
mesmo poder de influência que os governos. No entanto, o fosso diminuiu, e diminuiu
muito. E a união em rede desses muitos cidadãos nunca foi tão capaz de "fazer a força",
como já dizia o velho ditado popular.
A importância que a Internet trouxe em prol de relações sociais mais equânimes
e uma razoável pulverização de poder não pode, pois, ser desconsiderada.
Democracia, igualdade e liberdade são valores que precisam ser constantemente
defendidos e isso exige esforço e participação. Noutras palavras, a tecnologia não vai
trazer a felicidade geral sobre uma bandeja (ou por fibras óticas...) até a porta das casas.
E parece também muito claro que quem detém fatias de poder político ou econômico
sempre usufruirá de maiores meios de se impor sobre os seus semelhantes. Nenhum
regime de governo já inventado eliminou essas diferenças de nível de poder entre os
humanos. E a democracia, como já se disse, é apenas o menos pior deles...
Mesmo assim, sem esperar que a tecnologia venha a ser por si só uma solução
redentora para os problemas da humanidade, é paradoxalmente possível enxergar que
ela trouxe, sim, novas variáveis na distribuição de poder. Não há como duvidar que o
cidadão comum tem, hoje, muito mais poder do que há vinte ou trinta anos em
comparação com os seus "concorrentes": os centros de poder político e econômico.
Há um século, destruir algumas poucas máquinas de impressão de jornais, ou
impedir o acesso ao papel, era o suficiente para neutralizar vozes opositoras. Em um
mundo em que a informação só podia ser disseminada em razoável escala por jornais
impressos, deter caras e escassas rotativas garantia o monopólio do poder de informar.
Hoje, as comunicações são maximizadas pela facilidade com que qualquer do
povo é capaz de criar um blog, ou arregimentar seguidores em redes sociais. É claro que
não é fácil para um um blog pessoal conseguir o mesmo alcance de um grande portal de
80
notícias, público ou privado. Mas, se anos atrás a voz de um cidadão comum e isolado
era um mísero nada, hoje o hiato entre o poder dele e o dos demais veículos foi
significativamente diminuído. E a tecnologia é a mola propulsora desse novo poder
popular.
Além das muitas formas de expressão política permitidas pela rede, um outro
incrível exemplo de incremento do poder popular proporcionado pelos computadores é
o modelo de desenvolvimento de software livre em comunidades unidas pela Internet.
Em uma época em que uma das principais mercadorias que geram poder e riqueza é o
programa de computador, para não falar de seu significado estratégico como
instrumento de controle, a sociedade está produzindo esses bens autonomamente e
distribuindo-os de graça, juntamente com o conhecimento suficiente para seu
desenvolvimento
subsequente
(o
próprio
código-fonte).
Movimento
pouco
compreendido pelo cidadão comum, pelas especificidades que o tema encerra, trata-se
do maior trabalho colaborativo da história da humanidade, que produz um
compartilhamento público de conhecimentos técnicos e estratégicos igualmente sem
precedentes.
A revolução que a Internet trouxe ao ambiente de trabalho é igualmente
impactante, não apenas em seus aspectos econômicos, relacionados à produção, mas
também em aspectos humanos. Especialmente em grandes centros urbanos, em que o
caótico tráfego de veículos consome parte das vidas dos seus habitantes, as
possibilidade de teletrabalho ou de home-office estabeleceram um outro cenário para o
trabalhador, seja ele assalariado ou autônomo.
Neste último aspecto, a experiência que os profissionais do Direito têm travado
com a informatização processual e a dos escritórios de advocacia é, igualmente, algo
inimaginável para os bacharéis dos anos 90 ou das décadas anteriores. A atual rapidez e
facilidade de acesso aos autos processuais, ou para o envio de petições, era algo
impensado em uma realidade em que autos eram costurados e descosturados a cada
nova petição que se fizesse juntar. E especialmente a superação de grandes distâncias,
em um país de dimensões continentais como o Brasil, dá uma outra dimensão na
superação de entraves territoriais ao acesso à justiça.
Por último, mas não menos importante, a Internet deu um novo fôlego ao livro
eletrônico. Nestes casos em que a informação é também um produto, uma mercadoria,
os modelos de negócio em tempos pré-Internet não pareciam capazes de decolar. As
tecnologias DRM (Digital Rights Management, ou Gerenciamento Digital de Direitos),
81
para proteção dos direitos autorais, eram de tal sorte restritivas que tornavam o livro
digital um produto muito menos desejável do que o livro em papel. Via de regra, os
produtos eram registrados com códigos que os vinculavam a especificações de hardware
de um determinado computador. O problema é que tais mecanismos não só impediam o
uso do produto em outro computador do mesmo usuário, como ainda causarvam
problemas quando da substituição ou manutenção daquela máquina em que os livros ou
revistas foram instalados. Se fosse necessário substituir o disco rígido, por exemplo,
isso invalidava o produto instalado... Um livro em papel oferecia ao leitor maiores
possibilidades de uso e longevidade no tempo.
Com a expansão da Internet e da computação móvel, vista nestes anos mais
recentes, foi possível a criação de um novo modelo de negócio para o mercado editorial,
de modo que os livros eletrônicos adquiridos pelo consumidor fiquem armazenados na
“nuvem” - isto é, em um computador de grande porte da empresa vendedora – e
baixados para equipamentos móveis quando desejado. O modelo é revolucionário, pois
as obras adquiridas não ficam inexoravelmente vinculadas às máquinas do usuário; não
importa que seus aparelhos quebrem ou sejam substituídos em razão da constante
obsolescência, os livros licitamente adquiridos permanecem no “patrimônio” do leitor, e
podem ser a qualquer tempo lidos em aparelhos mais novos. A Internet forneceu, pois,
meios para o estabelecimento de um novo modelo de negócios em matéria editorial,
que, segundo nos parece, é imbatível em termos mercadológicos.
E o que nos esperam os próximos 20 anos? Serão tão imprevisíveis como foram
as últimas duas décadas? Ou o potencial da rede em produzir surpresas já teria se
esgotado?
Bibliografia
BIELSA, Rafael. Método de análisis para una aplicación en informática jurídica
documental. Informática y Derecho. Buenos Aires: Depalma, v. 1, pp. 45-86,
1991.
CASTELLS, Manuel; FERNANDEZ-ARDÈVOL, Mireia; QIU, Jack Linchuan; SEY,
Araba. Mobile Communication and Society: a Global Perspective. Cambridge:
The MIT Press, 2004.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
CASTRO, Luiz Fernando Martins. Direito da Informática e do Ciberespaço. Revista de
Direito das Novas Tecnologias. São Paulo: IOB/IBDI, nº 1, pp. 7-20, JanJul/2006.
82
COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. Coimbra: Almedina,
2002.
CRAY-1. Wikipedia, disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Cray-1>.
HISTORY
OF
SUPERCOMPUTING.
Wikipedia,
<https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_supercomputing>.
disponível
em
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Direito e Tecnologia. São Paulo: Estúdio
Editores, 2014.
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Processo e Tecnologia: garantias processuais,
efetividade e a informatização processual. Kindle edition (ebook), 2013.
PRATA, Edson. História do Processo Civil e sua projeção no Direito moderno. Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
SALVATORE, Paola Di. I contratti informatici. Napoli: Edizioni Simone, 2000.
THE CRAY-1 SUPERCOMPUTER. Computer History Museum, disponível em
<http://www.computerhistory.org/revolution/supercomputers/10/7>.
CAPÍTULO 5.
83
INTERNET E TRIBUTAÇÃO: ASPECTOS RELEVANTES
Marcelo Guerra Martins
1. Introdução
Da mesma maneira que a descoberta do fogo ou a invenção da roda
proporcionaram considerável elevação na qualidade de vida dos seres humanos, a
disseminação da internet, a conhecida rede mundial de computadores, descortinou um
novo patamar em termos de comunicação entre pessoas ao redor do mundo.
Foi a internet que possibilitou que muitos, ou melhor, que bilhões passassem a
poder falar com outros tantos bilhões, de modo praticamente instantâneo, a baixíssimo
custo e, o mais instigante, sem que governos ou mesmo autoridades censoras pudessem
controlar de modo efetivo o conteúdo das ideias que pela rede circulam em quantidade
cada vez maior.
Ainda que a inclusão digital ainda não tenha chegado para uma parcela
significativamente considerável da população mundial, é incontroverso que foi na nossa
geração que o fenômeno da internet eclodiu, permitindo-nos não somente assistir, mas,
sobretudo, participar dessa verdadeira revolução no modus operandi da comunicação
em massa.
Não será estranho se daqui a algumas décadas a internet for citada como uma
mudança de paradigma em termos de valores, crenças e modo de organização social,
igualmente falamos hoje de eventos e invenções pretéritas que também representaram o
alvorecer de novas eras, tais como a Revolução Francesa, a máquina a vapor, o motor à
combustão e a descoberta da eletricidade.
Além das simples trocas de mensagens, ideias, imagens e vídeos, a internet
permite a circulação de quantidade considerável de riqueza, seja por meio do comércio
eletrônico (onde as compras de bens e serviços são não presenciais, pois têm origem em
terminais de computadores), seja pela operação da própria estrutura da rede onde os
chamados provedores conectam eletronicamente o usuário comum às info-estradas, o
que permite, por exemplo, que alguém do Gabão adquira ações na bolsa de Nova

Juiz federal, titular da 17ª Vara de São Paulo. Convocado como juiz auxiliar e instrutor do Supremo
Tribunal Federal, no gabinete do Ministro Ricardo Lewandowski, entre 2009 e 2012. Mestre e Doutor
pela Universidade de São Paulo. Professor do programa de mestrado em direito (strictu sensu) das
Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU (São Paulo).
84
Iorque, ou, noutro giro, encomende uma peça de roupa de um pequeno comerciante
chinês.
E, havendo tantos fatos de índole econômica em jogo, seria esperável que a
atenção das autoridades fiscais se voltasse para as operações desenvolvidas sob o manto
da internet. Não se trata de mero capricho, pois, uma vez que os fatos manifestados se
insiram na competência tributária de um dos entes federativos, a cobrança do tributo se
impõe, não sendo admitido, como é bem sabido, juízos de oportunidade e conveniência
nesse campo.
O problema é que, em muitos casos, não há clareza se determinado fato ou
situação efetivamente é passível de ser atingida pela tributação. Nem sempre o encaixe
da hipótese de incidência legalmente descrita ao evento supostamente tributável é isento
de dúvidas e controvérsias, o que, no mais das vezes, causa perplexidade e insegurança
no contribuinte.
Ainda que alguns tópicos relativos ao tema em foco encontrem-se relativamente
assentados na jurisprudência, há outros que ainda claudicam em meio ao natural choque
de interesses de contribuintes e entes tributantes, o que justifica e torna oportuno
analisar o atual estado de coisas (ou entendimentos) a respeito da tributação no âmbito
da internet.
É o que passamos a elaborar, ficando advertido que não pretendemos esgotar o
tema proposto, muito rico, instigante e quase ilimitado per se. Assim, críticas e
contribuições são sempre bem vindas.
2. A internet como importante pilar da sociedade da informação
A história da comunicação humana, na narração de LIMBERGER (2006, p.
57/58), passa por quatro fases principais: 1ª) comunicação oral dos povos primitivos; 2ª)
a escrita (ou alfabeto), que permitiu a transmissão do conhecimento entre gerações; 3ª) a
imprensa, que facilitou a difusão da informação a um grande número de pessoas e 4ª) os
meios de comunicação em massa, como o rádio, o cinema, a televisão e os
computadores.
O atual estágio reflete uma inegável revolução digital (ou cibernética) que,
conforme assinala BARRETO JÚNIOR
(2007, p. 62), induz a dissolução das
“fronteiras entre telecomunicações, meios de comunicação de massa e informática”.
Nesse contexto, na visão de CASTELLS (2003, p. 8), a internet se mostra como “um
85
meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com
muitos, num momento escolhido, em escala global”.
Dessa maneira, a estrutura de redes interligadas e não hierarquizadas que
compõem a internet possibilitou o surgimento de um ambiente virtual de enorme
liberdade na criação e circulação das mais variadas ideias, conteúdos e propósitos, o que
inclusive já contribuiu para a derrubada de governos (v.g. a denominada Primavera
Árabe).
Não obstante o uso nocivo da rede (v.g. cometimento de extorsões, fraudes,
difusão de racismo, pornografia infantil e outros crimes), é certo que as autoridades
governamentais nunca estiveram tão passíveis de serem observadas e criticadas como
hoje em dia. O mesmo vale para outros atores sociais de relevo, tais como as empresas
de grande porte de âmbito nacional e internacional.
Nesse cenário, é certo que a internet veio consolidar a chamada Sociedade ou
Era da Informação, ou seja, um período histórico em que a criação, o processamento, o
armazenamento, a difusão de informações e conhecimento, cada vez mais, passam a
protagonizar os arranjos socioeconômicos dos diversos povos.
Não que os bens materiais tenham perdido importância no mundo atual, mas é
fato que os segredos industriais, as patentes, as técnicas de processamento e produção,
os resultados de pesquisas, etc., isso é, o conhecimento como um todo, possui valor
econômico que provavelmente suplanta a soma dos bens materiais produzidos pelos
diversos segmentos sociais.
Tanto é assim que, segundo FORGIONI (2015, p. 313), “a propriedade
intelectual é o maior produto de exportação dos Estados Unidos”.
Nota-se que a internet não apenas democratizou a circulação de ideias,
informações e conhecimento, mas permitiu que o fenômeno passasse a ocorrer a
velocidades nunca antes vistas pelos seres humanos. A própria telefonia tradicional,
onde um canal direto se abre entre os participantes de uma conversa, vem sendo
substituída por outros meios que utilizam a internet como suporte, não sendo raros
mecanismos (ou programas) que permitem a transmissão de voz e de imagens entre
interlocutores em tempo real, com alta qualidade e a custos baixíssimos se comparados
aos sistemas convencionais (v.g. Skype, Whatsup e outros).
86
No âmbito da internet, a comunicação entre os bilhões de usuários acontece
porque os computadores, para navegarem pelo ciberespaço, utilizam uma linguagem
comum, em suma, os chamados TCP-IP ou Transmission Control Protocol – Internet
Protocol. Os diversos dados trafegam pelas infovias por meio de “pacotes” que seguem
sempre o caminho, por assim dizer, menos congestionado em dado momento. Conforme
explica OLIVEIRA (2004, p. 47):
“Os dados não são transmitidos de modo contínuo, unidirecional e em
conjunto, mas, ao contrário, são fracionados em “pacotes” e enviados
sem um caminho físico predefinido, para que os mecanismos de
ordenamento do fluxo de dados definam qual o melhor caminho possível
para que os dados cheguem ao seu endereço lógico de destino”.
Todavia, o computador de um usuário não se conecta diretamente com o de
outro. Na verdade, em termos estruturais, a internet não é uma rede única, mas, ao
contrário, trata-se de milhares de redes interligadas e não hierarquizadas que se
estendem por todos os continentes.
Para que alguém tenha acesso à internet é preciso utilizar os serviços de um
provedor de acesso. Trata-se da uma entidade, geralmente uma pessoa jurídica, que
detém os equipamentos necessários para rotear (ou seja, dar a rota correta) os dados em
tráfego. É o provedor de acesso que fornece ao usuário um endereço (temporário) na
rede, o que permite sejam os “pacotes” devidamente entregues aos destinatários. Com
efeito, segundo OLIVEIRA (2004, p. 79):
“A função primordial do provedor de acesso, desta maneira, é fornecer ao
usuário um endereço eletrônico, dentre aqueles que possui disponível,
possibilitando sua integração momentânea à rede mundial. Ressalte-se
que não é o provedor que realiza o ato de integração, mas sim quem
disponibiliza os meios necessários para que isto ocorra, ou seja, quem
promove o ambiente de rede para que o usuário nela se integre” (79).
Há também os denominados provedores de aplicações ou de conteúdo que
prestam vários outros serviços aos usuários desde que conectados à rede, tais como:
correio eletrônico, hospedagem de sites, espaço virtual para a guarda de arquivos,
fornecimento de notícias e informações gerais, etc.
Em suma, nos termos do art. 5º, VII, da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014
(conhecida como Marco Civil da Internet), aplicações são “o conjunto de
87
funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à
internet”. Nada impede, aliás, é até comum, que um provedor de acesso também seja de
aplicações.
Finalmente, tanto os provedores de acesso quanto os de aplicações se utilizam
dos serviços dos chamados backbones, que, segundo OLIVEIRA (2003, p. 29/30) são
“estruturas extremamente grandes, que suportam altos volumes de informações de
notável velocidade e que são interligados com outros backbones nacionais (...) O
principal backbone existente no país é o da Embratel”.
No entanto, ainda mais quando estiverem em cena questões tributárias, é
indispensável separar a atividade desenvolvida (acesso, aplicações, backbones), ainda
que uma mesma empresa exerça mais de um tipo. A seguir passamos a tratar das
principais controvérsias nesse campo.
Não se deve esquecer que em 1988, quando promulgada a atual Constituição
Federal, a internet ainda não havia desenvolvido sua feição comercial (ou popular). Sua
utilização limitava-se a grupos restritos, principalmente em universidades e centros de
pesquisa.
Dessa maneira, ao declinar as competências tributárias de cada ente federativo,
não tinha o constituinte originário como considerar as características próprias que
envolvem as operações desenvolvidas no âmbito da internet, o que, não raras vezes,
gera dúvida e controvérsia acerca de eventual incidência tributária ou não. Passamos,
desse modo, a analisar casuisticamente as principais controvérsias a respeito do tema.
3. Provimento de acesso ou de conexão à internet
Uma das primeiras dúvidas surgidas na seara da tributação na internet foi
identificar qual tributo deveria incidir sobre a atividade de provimento de acesso à
internet: se o ICMS, de competência dos Estados (art. 155, II, da CF/88), ou se o ISS, da
égide dos Municípios (art. 156, III, da CF/88) ou, eventualmente, nenhum tributo.
Como sabido, a matriz constitucional do ICMS prevê sua incidência sobre
operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as
prestações se iniciem no exterior.
88
No caso, a controvérsia se fixou no que tange à tributação sobre os serviços de
comunicação. Nessa linha, os fiscos estaduais passaram a entender que os provedores de
acesso à internet prestavam esse tipo de serviço ao usuário. E, caso assim ocorresse,
ficaria automaticamente excluída a incidência do ISS, por força do disposto no art. 156,
III da Constituição de 1988, in verbis:
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(...)
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II,
definidos em lei complementar”.
Ocorre que, em termos práticos, geralmente o ICMS é um imposto
significativamente mais oneroso do que o ISS, o que estimulou vários provedores de
acesso a buscarem as vias judiciais, onde descortinaram argumentos no sentido de que
seus préstimos não configuravam serviços de comunicação em termos estritamente
jurídicos.
Com efeito, tendo em vista que a Constituição de 1988 não definiu
expressamente o que se deve entender por prestação de serviço para fins tributários,
presume-se que constituinte originário encampou o conceito jurídico vigorante à época
da promulgação do Texto, o que deve ser reverenciado pelo legislador que vier a tratar
da incidência tributária dessa materialidade.
Em 1988, quando da promulgação da Constituição, o conceito de prestação de
serviço já se apresentava como atualmente é compreendida, ou seja, segundo COSTA
(2009, p. 392), como uma “prestação de utilidade de qualquer natureza a terceiro,
efetuada em caráter oneroso, sob regime de direito privado, e que não configure relação
de emprego”.
Logo, a prestação de serviço se revelava (e ainda se revela) como uma obrigação
de fazer sob a forma de, mediante pagamento (modo oneroso), produzir uma utilidade
ou comodidade personalizada a alguém.
Não se trata, portanto, de numa obrigação de dar. Nesse diapasão, segundo
PAULSEN e MELO (2012, p. 331): “A obrigação de ‘fazer’ concernente à prestação de
uma utilidade ou comodidade a terceiro, de modo personalizado e incindível,
configurando-se de modo negativo à obrigação ‘de dar’ (entrega de coisas móveis ou
imóveis a terceiros”.
89
É essencial que o legislador tributário se atenha ao conceito em foco,
nitidamente de direito privado, sob pena de ofensa ao art. 110 do Código Tributário
Nacional, que estatui não ser possível ao legislador tributário modificar conceitos ou
formas de direito privado quando utilizados expressa ou implicitamente, pela
Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do
Distrito Federal ou dos Municípios.
A respeito dos serviços de comunicação, para fins de incidência do ICMS, nos
moldes do art. 2º, III da Lei Complementar 87/1996, estes englobam: “prestações
onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a
emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de
comunicação de qualquer natureza”.
Percebe-se que a LC 87 limitou-se a prever a necessidade de o respectivo serviço
ser prestado a título oneroso (o que resulta na necessidade da presença de um tomador,
um prestador e um preço) e, ainda, os vários meios em que a comunicação pode se
manifestar. Não indicou, aliás, nem seria bom que tivesse feito, quais requisitos,
circunstancias ou atividades englobam o ato ou o processo de comunicar, tarefa que foi
plenamente engendrada pela doutrina.
Nesses termos, como bem anota CARVALHO (2002, p. 58), o processo
comunicacional requer a presença de cinco elementos: emissor, canal, mensagem,
código e receptor. Segundo suas palavras:
“(1) emissor: é a fonte da mensagem, aquele que comporta as
informações a serem transmitidas; (2) canal: é o suporte físico necessário
à transmissão da mensagem sendo o meio pelo qual os sinais são
transmitidos (é o ar para o caso da comunicação verbal, mas pode
apresentar-se em formas diversas, como faixas de frequências de rádio,
luzes, sistemas mecânicos ou eletrônicos etc.); (3) mensagem é a
informação transmitida; (4) código ou repertório: é o conjunto de signos
e regras de combinações próprias a um sistema de sinais, conhecido e
utilizado por um grupo de indivíduos ou, em outras palavras, é o quadro
de regras de formação (morfologia) e de transformação (sintaxe) de
signos; (5) receptor: a pessoa que recebe a mensagem, o destinatário da
informação”.
Logo, haverá serviço de comunicação tributável pelo ICMS apenas quando
alguém, de modo oneroso, atuar como intermediário (canal) entre o emissor e o receptor
no transporte de mensagem constituída por código. Não é o que faz o provedor de
90
acesso à internet que, segundo BIFANO (2004, p. 245), apenas “agrega utilidades ao
serviço já existente, dele dependendo para cumprir suas finalidades”.
É de se concordar inteiramente com a citada autora (idem, p. 245) quando afirma
que “Morto, e de nenhuma valia, é o serviço de acesso à Internet, se não puder ele
utilizar o sistema de transporte de sinais já existente, seja telefonia, cabo, tv ou outros”.
Nos termos da Norma 004/19951, aprovada pela Portaria 148, de 31 de maio de
1995, do Ministério das Comunicações, ao conectar o usuário à internet, é possível
concluir que o provedor realiza um serviço de valor adicionado e não um serviço de
comunicação. Segundo definição constante do item 3, alínea “b” da Norma 004:
“b) Serviço de Valor Adicionado: serviço que acrescenta a uma rede
preexistente de um serviço de telecomunicações, meios ou recursos que
criam novas utilidades específicas, ou novas atividades produtivas,
relacionadas com o acesso, armazenamento , movimentação e
recuperação de informações”.
E, nos termos da alínea “c” subsequente:
“Serviço de Conexão à Internet (SCI): nome genérico que designa
Serviço de Valor Adicionado, que possibilita o acesso à Internet a
Usuários e Provedores de Serviços de Informações”.
De maneira a afastar qualquer dúvida a esse respeito, o art. 61 e seu § 1º, da Lei
9.472, de 16 de julho de 1997, encampou as definições trazidas pela Norma 004/1995
no sentido de considerar o provedor de acesso como prestador de um serviço de valor
adicionado e não de comunicação, in verbis:
“Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um
serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se
confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento,
apresentação, movimentação ou recuperação de informações.
§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de
telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço
de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres
inerentes a essa condição”.
Ainda que, em certa medida, o provedor de acesso facilite a interação entre os
diversos usuários da rede (v.g., por meio da troca de mensagens escritas, sonoras ou de
1
Na ocasião, a Portaria 148 teve como base a Lei 4.117 (Código Brasileiro de Telecomunicações) e a sua
regulamentação (Decreto 52.026, de 20 de maio de 1963, alterado pelo Decreto 97.057, de 10 de
novembro de 1988).
91
imagens), segundo pontua HARADA (2006, p. 131), “quem presta o serviço de
comunicação é a concessionária de serviços de telecomunicações, já tributada pelo
ICMS. O provedor é tomador de serviços prestados pelas concessionárias”.
Esse entendimento veio sendo defendido por parte significativa da doutrina
desde os idos de 1999, com destaque para CHIESA (1999, p. 14 e seg.); TAVARES
(2001, p. 395/427); ABREU e PRADO (2001, p. 16 e seg.); OLIVEIRA (2001, p. 135);
MELO (2003, p. 88); OLIVEIRA (2004, p. 80); BIFANO (2004, p. 245); CORAZZA
(2005, p. 113 e seg.) e PEIXOTO (2006, p. 57/75).
Finalmente, o Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula 334, publicada
em 14/02/2007, pacificou que: “O ICMS não incide no serviço dos provedores de
acesso à Internet”.
O Ministro Franciulli Neto, relator do voto vencedor do recurso espacial
456.650, um dos julgados que ensejaram a criação da mencionada Súmula 334, ainda
destacou o que “o serviço prestado pelo provedor de acesso à Internet não se caracteriza
como serviço de telecomunicação, porque não necessita de autorização, permissão ou
concessão da União, conforme determina o artigo 21, XI, da Constituição Federal”.
Superada a questão do ICMS, seria cabível, então, que a atividade do provedor
de acesso à internet sofresse incidência do ISS, com esteio no art. 156, III, da
Constituição de 1988?
A resposta também é negativa, uma vez que para um serviço ser gravado por
este imposto municipal é de rigor sua previsão em lista constante de lei complementar.
Atualmente, os serviços tributáveis encontram-se listados pela Lei Complementar 116,
de 31 de julho de 2003. Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, a lista é
taxativa e não meramente exemplificativa, com destaque para a decisão do recurso
extraordinário 361.829.
Portanto, são numerus clausus os serviços passíveis de incidência do ISS. Nesse
sentido são os autorizados magistérios de COÊLHO (2000, p 522) e CARRAZZA
(2013, p. 5/25). Aliás, além de estar elencado na lista da LC 116, é preciso que a
atividade elencada possa ser enquadrada como verdadeiro serviço, segundo visto acima.
Assim, por exemplo, embora a locação de bens móveis conste da lista, a Súmula
Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal determina que “É inconstitucional a
incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS sobre operações
de locação de bens móveis”.
92
De qualquer forma, fato é que não há na lista de serviços da LC 116 item ou
subitem que se encaixe na atividade de provimento de acesso ou conexão à internet, o
que, por conseguinte, obriga concluir pela não tributação a título de ISS nesses casos. É
o que, dentre outros, afirmam BIFANO (2004, p. 251) e OLIVEIRA (2004, p. 245 e
seg.). A jurisprudência também vem seguindo essa diretriz.
Com efeito, conforme decidiu a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos
autos do AGARESP 642560: “Não incide ISS sobre o serviço de provedor de acesso à
internet, por ausência de previsão legal” (DJ 06/04/2015, Rel. Min. Herman Benjamin).
Amparando-se justamente em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, o
mesmo entendimento foi adotado pela 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de
Justiça de São Paulo (autos da apelação 9000409-34.2006.8.26.0090). Não obstante o
caso referir-se aos exercícios de 1998, 1999 e 2001 (quanto ainda vigorava a lista de
serviços do Decreto-lei 468/68), asseverou o relator que:
“não havendo previsão dos serviços de valor adicionado de provedor de
acesso à internet, na lista de serviços anexa ao Decreto-lei 406/68 com
suas alterações posteriores, o mesmo se diga em relação à lei
complementar 116/03, ainda que admitida uma interpretação
compreensiva, há como reconhecer a legalidade da tributação pelo ISS”.
O tema não deve ser decidido pelo Supremo Tribunal Federal, pois foi tido como
de índole infraconstitucional no julgamento da repercussão geral do recurso
extraordinário 583.327 (Rel. Min. Ayres Britto).
A realidade mostra que a maioria das empresas que atuam como provedores de
acesso também desempenham as funções de provedores de aplicações (ou de conteúdo),
sendo comum que o usuário contrate conjuntamente (em “pacote”) os vários tipos de
serviços e funcionalidades oferecidas.
Todavia, é certo que na parcela relativa aos préstimos de serviços de conexão do
usuário à internet, não há sujeição nem ao ICMS (por não se tratar de serviço de
comunicação) nem ao ISS (em face da atividade não contar expressamente da lista da
LC 116).
Evidentemente, os provedores de acesso, no desempenho da respectiva atividade
econômica, encontram-se submetidos aos tributos que normalmente gravam toda e
qualquer exploração empresarial, tais como: IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa
93
Jurídica), IRRF (Imposto de Renda Retido na Fonte), IOF (Imposto Sobre Operações
Financeiras), IPTU (Imposto Sobre a Propriedade Urbana), diversas contribuições
sociais (CSSL, PIS, COFINS, etc.).
4. Provimento de aplicações ou de conteúdo
As atividades relacionadas aos provedores de aplicação (ou de conteúdo) podem
ser bastante diversificadas. Englobam, segundo o art. 5º, VII, da Lei 12.965/2014 “o
conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal
conectado à internet”.
Desde logo é possível afirmar não haver incidência do ICMS, visto não entrar
em cena, em termos jurídicos, o serviço de comunicação, analogamente ao que ocorre
com as atividades de provimento de acesso, segundo acima visto. Com efeito, os
provedores, tanto os de acesso quanto os de conteúdo, servem-se das redes de
telecomunicações, embora não pratiquem atos de comunicação.
A análise a seguir se debruçará, portanto, sobre a possível incidência do ISS
sobre as variadas funcionalidades que englobam o provimento de conteúdo.
4.1. Hospedagem de sites (web hosting)
A hospedagem de sites (ou web hosting) implica no ato do provedor de
aplicações disponibilizar em seus equipamentos de hardware2, geralmente a título
oneroso, espaço para alocação e funcionamento de arquivos e programas eletrônicos
enviados pelo contratante, com o objetivo de operação de um ou mais sites compostos
de informações ou funcionalidades que, por sua vez, podem ser acessadas e utilizadas
por terceiros via internet (v.g. clientes do usuário).
Nessa toada, o provedor limita-se a manter em ordem (intactos, funcionais e
acessíveis por terceiros) os arquivos e programas eletrônicos recebidos do contratante,
que pode modificá-los, retirá-los ou substituí-los quando melhor lhe aprouver, o que
2
Dependendo do tamanho e da complexidade das operações do usuário (v.g. instituições financeiras,
operadoras de cartões de crédito, grandes lojas varejistas, órgãos públicos, etc.) pode ser necessário
utilizar o que se chama de “servidores dedicados”, isso é, equipamentos de hardware exclusivos e não
compartilhados com outros usuários.
94
retira a possibilidade de o provedor interferir nos conteúdos e ou funcionalidades dos
arquivos que compõem determinado site.
A única hipótese de interferência do provedor é por meio de ordem judicial,
segundo a previsão do art. 19 da Lei 12.965/2014, in verbis:
“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a
censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado
como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.
Em conclusão, dadas as peculiaridades envolvidas, a atividade de web hosting
não se encaixa em quaisquer dos sub itens da lista da LC 116/2003, o que afasta a
incidência do ISS em casos que tais, conforme entendem BIFANO (2004, p. 266) e
também CARRAZZA (2013, p. 22).
Evidentemente, a hospedagem de sites não pode ser equiparada aos serviços de
hospedagem de pessoas em hotéis, flats ou pensões (sub item 9.01 da lista) ou mesmo
de armazenagem e guarda de mercadorias ou de bens corpóreos (sub item 11.04).
Em complemento, ainda que o provedor, no desempenho de suas operações,
utilize-se de programas de computador e, periodicamente, necessite instalar, configurar
ou realizar a manutenção desses programas, nem por isso estaria configurada a hipótese
do item 1.07 da lista (“Suporte técnico em informática, inclusive instalação,
configuração e manutenção de programas de computação e bancos de dados”), uma vez
que esses atos, quando ocorrerem, se materializam dentro do escopo da atividade meio
do provedor e não da respectiva atividade fim.
Seria algo como um “auto serviço”, insusceptível de tributação. Como bem
esclarece CARRAZZA (2013, p. 21), “um serviço de manutenção de programa de
computação, para tipificar o fato imponível do ISS, só pode ser produzido para outrem,
jamais em favor da própria pessoa que o presta”.
Esse entendimento foi adotado pela m 14ª Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da apelação 0045488-67.2010.8.26.0053,
julgada em 28/05/2015. Além das atividades de web hosting, várias outras
desenvolvidas pelos provedores de aplicações foram tidas por não tributáveis pelo ISS,
95
conforme o trecho abaixo transcrito, da lavra do relator Desembargador João Alberto
Pezarini:
“A relação de serviços dos aludidos itens não inclui, como se percebe,
serviços de conectividade, webservices, fornecimento de endereços
eletrônicos para correspondência, SMTP autenticado, servidor dedicado,
apontamento de hosting, atualização de conteúdo fornecido pelo
cliente/usuário, hospedagem de base de dados, caixa postal MX2,
disponibilização de catálogo eletrônico, certificado SLL, reservas de
domínio na internet, tampouco serviços de segurança”.
4.2 – Disponibilização de espaço virtual para arquivos pessoais
Trata-se de um tipo de hosting ou hospedagem, porém de modo menos
complexo, uma vez que, nessa funcionalidade, os arquivos, programas ou base de dados
de titularidade do usuário não são acessíveis por terceiros.
O objetivo do usuário é, em síntese, apenas guardar com segurança seus
arquivos para poder acessá-los e, eventualmente, modificá-los de qualquer terminal de
computador (ou mesmo smart phone) conectado à internet.
Na mesma linha do que ocorre com a hospedagem de sites, não se concebe aqui
a incidência do ISS, visto tal atividade não se encontrar elencada na lista da LC
116/2003, além de não poder ser enquadrada por analogia com serviços de hospedagem
de pessoas em hotéis, flats ou pensões (sub item 9.01 da lista) ou mesmo de
armazenagem e guarda de mercadorias ou de bens corpóreos (sub item 11.04).
Esse entendimento também transparece no julgamento da já citada apelação
0045488-67.2010.8.26.0053 decidida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
4.3 - Endereços eletrônicos para correspondência (e-mail) e autenticação de SMTP
Possivelmente, uma das primeiras e mais relevantes funcionalidades prestadas
aos usuários dos provedores de conteúdo é o fornecimento de endereços eletrônicos para
correspondência. É bem sabido que a correspondência eletrônica, dada sua extrema
funcionalidade, cada vez mais substitui o modo tradicional das cartas por papel.
O SMTP (Simple Mail Transfer Protocol) se constitui no protocolo padrão para
a troca de e-mails. Assim, com o objetivo de autenticar a autoria da mensagem, evitando
que alguém mal intencionado se faça passar por outra pessoa, geralmente o provedor de
96
conteúdo, ao fornecer o endereço eletrônico de e-mail, faz englobar a funcionalidade da
autenticação, por meio da exigência de preenchimento de campos específicos para a
entrada na caixa postal do usuário, tais como login e senha.
Considerando que essa funcionalidade não consta expressamente da lista da LC
116/2003, não há que se falar aqui em incidência do ISS, como, aliás, também
reconheceu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na já mencionada apelação
0045488-67.2010.8.26.0053.
4.4 – Troca instantâneas de mensagens: escritas, sonoras ou por imagens
São bastante conhecidas as funcionalidades para a troca de mensagens
instantâneas entre usuários da internet, sejam escritas (os bate-papos ou chats), sonoras
(transmissão da voz ou outros sons) ou mesmo por imagens (vídeos).
Essa troca de mensagens ocorre entre terminais de computadores ou smart
phones conectados à rede, utilizados por duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, por
meio da utilização dos protocolos próprios de internet (TCP-IP, etc.).
Portanto, não há incidência de ICMS, visto não se tratar de serviço de
comunicação para fins do art. 155, II, da Constituição (nos termos já esclarecidos
quando discorremos a respeito do provedor de acesso), ainda que, em termos práticos, a
interação dos usuários assemelhe-se a uma chamada telefônica comum (v.g. os casos de
aplicativos como Skype ou Whatsup).
Igualmente, não há espaço para a incidência do ISS, na medida em que essas
atividades específicas não estão elencadas na lista da LC 116/2003.
Há ainda o caso do “serviço de telefonia via internet” que se utiliza da
tecnologia VoIP (Voice over Internet Protocol). Nessa hipótese, há utilização da rede
ordinária de telecomunicações, o que possibilita aos usuários realizarem chamadas de
um aparelho de telefone tradicional a outros da mesma espécie (sejam fixos ou
celulares).
Em alguma parte do processo, ocorre a conversão do sinal telefônico originado
pelo emissor da mensagem em arquivos eletrônicos que são transportados por pacotes
pela internet, com base nos TCP-IP, com a reconversão em sinal telefônico antes da
chegada ao aparelho do destinatário. Desse modo, há sensível redução de custos,
97
principalmente para ligações a grande distância ou internacionais, uma vez que a rede
telefônica tradicional é utilizada apenas localmente.
No caso, o uso da rede telefônica, ainda que parcial, implica no préstimo de um
verdadeiro serviço de comunicação, ensejando a incidência do ICMS, na dicção do art.
155, II, da CF/88. Porém, segundo advertem DIZ e GONÇALVES (2008, p. 209),
“haverá tributação do referido imposto apenas no tráfego de comunicação na rede
convencional, sem recair sobre o prestador de serviço VoIP, mas sim ao prestador de
serviços de telecomunicações, da própria rede convencional”.
É óbvio que a companhia telefônica, na qualidade de responsável pelo
recolhimento do ICMS, incluirá o valor desse imposto no preço que cobrar pelos
serviços prestados aos provedores ou empresas exploradoras de VoIP que, por sua vez,
repassarão ao usuário final o valor dispendido. Mesmo assim, ao que tudo indica, os
custos das chamadas telefônicas intermediadas pelo VoIP costumam ser menores do que
aquelas ultimadas integralmente sob a sistemática tradicional.
Em adendo, a utilização do sistema VoIP também não dá guarida à incidência do
ISS, ante à falta de previsão na LC 116/2003.
4.5 – Divulgação de notícias e informações em geral
É bastante comum que os websites (ou portais) dos provedores de conteúdo
apresentem aos usuários um leque de notícias de cunho jornalístico diversificado, além
de informações de utilidade pública, tais como previsão do tempo, trânsito em ruas,
avenidas e estradas, situação de portos, aeroportos, etc.
Sobre o fornecimento dessas funcionalidades aos usuários também não incide
ISS ante a falta de previsão específica na lista da LC 116/2003. É também a opinião de
BIFANO (2004, p. 257).
Não se concebe, por exemplo, qualquer acoplamento ao item “10.07 –
Agenciamento de notícias” da lista. É que a agência de notícias, em suma, é
uma empresa que tem por escopo difundir informações e notícias a partir das fontes para
os veículos de comunicação. Assim, as agências não fornecem o material diretamente ao
público, mas sim a jornais, televisões, rádios, web sites, etc.
98
Dessa maneira, o ISS incide apenas quando, de modo oneroso, a agência repassa
notícias aos meios de comunicação social, mas não quando um website divulga em sua
página o conteúdo antes recebido pela agência.
Ademais, ao menos em relação ao material jornalístico, não se pode esquecer que a
Constituição de 1988, no art. 150, IV, “d”, prevê não ser possível a instituição de
impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. O fato
de o jornal receber um formato eletrônico ou virtual não modifica a imunidade
determinada pelo constituinte originário, dado o escopo ou finalidade que o preceito
visa atingir. Nessa linha também caminha o pensamento de PEIXOTO (2006, p. 66).
Aqui, segundo Marco Aurélio Ventura Peixoto3, “O jornal, pelo simples fato de ser
publicado na Internet, não deixa por isso de permanecer jornal, não cabendo ao
aplicador do Direito Tributário restringir a interpretação a ponto de entender como
cabível a incidência de impostos”.
4.6 – Exibição de propaganda (banners)
Trata-se da exibição, para terceiros, de anúncios publicitários em geral
(conhecidos como banners) em sites da internet. No caso, a presença de terceiros é
fundamental, pois a propaganda “feita em site do próprio detentor do bem ou produto
veiculado não tem qualquer relevância para fins jurídicos-tributários de vez que
ninguém presta serviços a si mesmo” (BIFANO, 2004, p. 66).
Numa primeira e talvez apressada acepção, poderia ser admitida a incidência do
ISS, com fulcro no item 17.06 da lista “Propaganda e publicidade, inclusive promoção
de vendas, planejamento de campanhas ou sistemas de publicidade, elaboração de
desenhos, textos e demais materiais publicitários”. Contudo, não é essa a melhor
interpretação, ao menos à luz da LC 116/2003.
É que a descrição acima não contém o termo veiculação ou outro equivalente,
conforme ocorria no passado, na vigência da Lei Complementar 56/1987 (item 86).
Portanto, não há incidência de ISS sobre a veiculação de banners ou anúncios
publicitários em sites da internet.
3
Ob. cit., p. 66.
99
Aliás, no caso, sequer há qualquer serviço sendo prestado, pois, segundo explica
ÁVILA (2010, p. 160), “a atividade contratada é exclusivamente a de ceder espaço
virtual, não abrangendo qualquer outro esforço pessoal criador de uma utilidade em
benefício de terceiro, como é essencial para a existência de uma prestação de serviço”.
De fato, na linha da já referida Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal
Federal, ceder espaço, seja físico ou virtual, é uma nítida obrigação de dar, que não
pode ser equiparada à prestação de um serviço que se revela, em essência, como uma
obrigação de fazer.
4.7 – Disponibilização de material de entretenimento (filmes, seriados, novelas, vídeoclips, músicas, documentários, etc.)
Outra funcionalidade que surgiu nos últimos anos, graças principalmente à
notável ampliação da capacidade de transmissão de dados das redes (as chamadas
bandas largas), é a disponibilização de material de entretenimento em geral, tais como
filmes seriados, novelas, vídeo clips, músicas, documentários, etc.
Como é sabido, nesses casos o material chega ao consumidor por meio da
internet, não havendo a necessidade de uma mídia física como ocorria até algum tempo
atrás onde os filmes e materiais equivalentes encontravam-se gravados em DVDs ou
mesmo nas jurássicas fitas de VHS.
O pagamento pode ocorrer para cada demanda isolada do usuário ou por “pacote
fechado”, cuja tarifa que dá direito ao consumo ilimitado durante certo período. Pode
ainda a relação contratual estabelecer o pagamento de forma mista, ou seja, para alguns
conteúdos consumo ilimitado e para outros mediante demanda específica.
Não se deve confundir a disponibilização em sites de material entretenimento
com a atividade desenvolvida pelas TVs a cabo ou por assinatura, que também
geralmente fornecem o mesmo tipo de material, mas com incidência do ICMS, segundo
apontam precedentes do Superior Tribunal de Justiça, com destaque para o recurso
especial 1132695 (2ª Turma) e o agravo em recurso especial 1304822 (1ª Turma).
Fato é que até o presente momento (outubro de 2015), as atividades de
disponibilização de filmes ou material de entretenimento não sofrem tributação pelo ISS
100
(muito menos pelo ICMS, pois não há circulação de mercadoria nem a presença de
serviço de comunicação). Todavia, essa situação pode ser modificada brevemente.
É que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar 366/2013
que estende a cobrança do ISS a setores que ainda não são tributados. Segundo o art. 3º
do texto ainda em fase de votação:
“Art. 3º A lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 2003,
passa a vigorar com as seguintes alterações:
[…]
1.03 – Processamento, armazenamento ou hospedagem de dados, textos,
imagens, vídeos, páginas eletrônicas, aplicativos, sistemas de
informação, entre outros formatos, ou congêneres.
1.04 – Elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos
eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em
que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e
congêneres.
[…]
1.09 – Disponibilização de aplicativos em página eletrônica.
1.10 – Disponibilização de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto
em páginas eletrônicas, exceto no caso de jornais, livros e periódicos”.
Nota-se que, em princípio, a atividade de disponibilização de material de
entretenimento encaixa-se na previsão do item 1.10, ou seja “Disponibilização de
conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto em páginas eletrônicas, exceto no caso de
jornais, livros e periódicos”.
Poder-se-ia questionar se o item 1.10 também não abarcaria a divulgação de
anúncios publicitários (banners), na medida em que, em síntese, se revelam como
conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto acessíveis em páginas eletrônicas.
Nota-se também que o projeto abrange outras atividades até então não tributadas
pelo ISS, tais como web hosting (item 1.03).
Contudo, tratando-se de um projeto em tramitação, é preciso aguardar a votação
final dos parlamentares e, ainda, eventuais vetos ao texto que possam ser engendrados
pela Presidência da República.
5. Comércio eletrônico
101
Vista a tributação incidente sobre as principais funcionalidades ofertadas pelos
provedores de internet, passamos a abordar as possíveis incidências tributárias
decorrentes do comércio eletrônico, cuja origem são os contratos celebrados através da
internet ou rede equivalente. Fato é que o comércio eletrônico (ou e-commerce) tem tido
participação cada vez mais expressiva na economia nacional.
Assim, de meros 0,54 bilhão de reais em 2001, o e-commerce faturou mais de 13
bilhões em 2010, segundo apontam OLIVEIRA e MIGUEL (2011, p. 65), um aumento
de mais de 20 vezes em menos de 10 anos. Em 2011, conforme noticia CHIESA (2013,
p. 43), o faturamento foi ainda maior, tendo saltado para 18,7 bilhões de reais.
Segundo pondera CEZAROTI (2005, p. 29), a principal característica do
comércio eletrônico “é o transporte das mensagens entre fornecedor e consumidor por
meio de elétrons, isto é, as mensagens trocadas entre o fornecedor e o consumidor para
o fornecimento de mercadorias e serviços são carregadas por elétrons”.
Costuma-se dividir o comércio eletrônico em direto e indireto. Neste último, a
rede de computadores, seja a internet ou mesmo outra assemelhada, funciona apenas
como meio para a celebração do contrato e não para a sua execução propriamente dita.
É o que ocorre, por exemplo, quando alguém, por meio de um site ou catálogo de
compras on line, realiza a compra de um bem material qualquer a ser entregue no
endereço físico do consumidor.
Noutra ponta, esclarece LANARI (2005, p.80) que o comércio eletrônico direto
“é aquele em que envolve a transação de bens e serviços que são promovidos,
adquiridos e entregues por meios eletrônicos ou digitais – vale dizer, em formato
intangível”. São os casos, por exemplo, da aquisição de programas de computador e
suas atualizações periódicas, aplicativos diversos, filmes, seriados, novelas, músicas,
jogos eletrônicos, etc., todos entregues via download.
Em suma, no comércio eletrônico direto há a duplicação e a transferência, via
internet, dos diversos arquivos eletrônicos alocados no hardware do fornecedor para o
equipamento do consumidor.
5.1 – Comércio eletrônico indireto
Conforme visto, no comércio eletrônico indireto a rede de computadores serve
apenas como meio de aproximação das partes para a celebração do contrato, havendo a
posterior entrega daquilo que foi adquirido num determinado endereço indicado pelo
adquirente do bem.
102
Nesse campo, a doutrina, com destaque para LANARI (2005, p. 80),
CEZAROTI (2005, p. 30 e seg.) e BIFANO (2004, p. 208 e seg.) vislumbra dois
modelos principais: business to business (B2B) e business to consumer (B2C).
O primeiro caso (B2B) revela a aquisição de mercadorias por um comerciante
qualquer que, posteriormente, as revenderá ao consumidor final. O segundo caso (B2C)
representa uma aquisição ultimada pelo próprio consumidor.
Em quaisquer das hipóteses, a tributação será aquela que normalmente grava a
circulação de mercadorias, bens e ou serviços em geral. Tratando-se de um bem físico
(v.g. smart phones, máquinas fotográficas, filmes em DVD, utensílios domésticos, etc.)
haverá incidência do ICMS e do IPI.
Noutro giro, quando o objeto do contrato for a prestação de um serviço qualquer
(v.g. pintura de parede, instalação ou manutenção de máquinas e equipamentos, etc.),
entrará em cena o ISS. Nessas ocasiões, portanto, a tributação será a mesma
independentemente de as partes terem contratado via internet, por telefone, por fax, ou
mesmo pessoalmente.
5.2 – Comércio eletrônico indireto: programas de computador gravados em mídia
física
Cabe aqui um adendo quanto aos programas para computadores (softwares)5
gravados em mídia física (geralmente CDs ou DVDs). Ainda que tais programas sejam
bens intangíveis ou incorpóreos, eis que não apreensíveis pelos sentidos humanos, o
fato de encontrarem-se fixados a uma mídia física faz aparecer o chamado corpus
mechanicum.
Nesse cenário, no passado surgiu controvérsia acerca da possibilidade de
incidência do ICMS sobre a comercialização de tais programas, visto poderem ser
enquadrados no conceito de mercadoria dada a presença do citado corpus mechanicum.
Trata-se do denominado “software de prateleira”, a ser utilizado do modo e com as
características pré-existentes, nada podendo o consumidor fazer para modificar as
características inseridas pelo fabricante no programa.
Por outro lado, havia situações que não se encaixavam na hipótese acima,
principalmente quando o software era especialmente desenvolvido para um consumidor
5
Segundo GALVÃO, ÂNGELO e FUTIDA (2009, p. 206): “Trata-se o software como um conjunto de
linguagens necessárias a estabelecer a comunicação entre o usuário e a máquina com o objetivo de
permitir o seu funcionamento e passar a executar as funções a que se destina”.
103
único, geralmente uma empresa com necessidades peculiares, entrando em cena,
destarte, o chamado “software por encomenda”.
Aqui, o que haveria de incidir? ICMS (visto a presença da mídia física onde o
programa é inserido) ou ISS (dada confecção do programa segundo as orientações
específicas do consumidor)?
O Supremo Tribunal dirimiu a controvérsia em 11/11/1998, no julgamento do
recurso extraordinário 176.626 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), no sentido de
considerar a incidência do ICMS sobre o “software de prateleira” e do ISS sobre
“software por encomenda”. A ementa, por bastante elucidativa, merece transcrição:
“(...) II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos
impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a
mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para
tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem
constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o
recurso extraordinário.
III. Programa de computador ("software"): tratamento tributário:
distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem
incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de
uso de programas de computador" " matéria exclusiva da lide ",
efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa
impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a
subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de
cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série
e comercializados no varejo - como a do chamado "software de
prateleira" (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum
da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no
comércio”.
5.3 – Comércio eletrônico direto: downloads de arquivos
No comércio eletrônico direto, tanto o contrato quanto sua execução são
operacionalizadas pela internet. Sendo todas as etapas ultimadas de modo eletrônico,
não há, portanto, corpus mechanicum nem tradição (a entrega da coisa).
O que há, em suma, são downloads de arquivos eletrônicos. Mediante
autorização do titular dos arquivos, há a realização de uma ou mais cópias dos
respectivos conteúdos para fins de alocação em equipamento do adquirente, com
intermediação da internet (ou rede análoga).
O contrato celebrado entre as partes é que regulará a extensão da referida
autorização que, em termos jurídicos, conforme BIFANO (2004, p. 220), se mostra
como uma cessão ou licença de uso. Assim, além de eventual limitação temporal da
104
licença, pode haver previsão para a instalação dos programas ou arquivos “baixados”
em mais de uma máquina, a permissão para a retransmissão do conteúdo a terceiros, etc.
O conteúdo dos arquivos “baixados” por download pode ser bastante variado,
como, por exemplo, programas de computador, material de entretenimento (filmes,
novelas, seriados, músicas), catálogos fotográficos, jogos eletrônicos, simuladores de
realidade, curso de línguas e afins, etc.
Não havendo um corpus mechanicum afasta-se, de plano, a incidência do ICMS
que pressupõe a presença de um bem corpóreo em trânsito. Todavia, seria admissível a
incidência do ISS? Com relação aos softwares, a resposta deve considerar o teor do item
1.05 da lista de serviços da LC 116/2003 (“licenciamento ou cessão dos direitos de uso
de programas de computador”).
Entendemos que o ISS pode incidir apenas para os casos de “software por
encomenda”, isso é, aquele confeccionado segundo indicações e necessidades do
contratante, e não para o “software de prateleira”, uma vez que nessa última hipótese
não há serviço (obrigação de fazer) prestado ao adquirente, eis que todas as
funcionalidades possíveis do programa já vêm de fábrica 6. Foi esse, aliás, o raciocínio
que o Supremo Tribunal Federal adotou no já aludido recurso extraordinário 176.626.
Afinal de contas, a tributação pelo ISS não requer apenas que determinada
situação esteja elencada na lista anexa à LC 116/2003, mas é de rigor que exista algum
tipo de atividade que represente uma obrigação de fazer, sob pena de restar desvirtuado
o conceito elementar de serviço, ao arrepio do art. 110 do Código Tributário Nacional e
do próprio princípio da segurança jurídica.
Foi esse o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, em
27/10/2011, no julgamento do agravo em recurso especial 201101013977 (Rel. Min.
Humberto Martins), cuja ementa é a seguinte:
“TRIBUTÁRIO.
FORNECIMENTO
DE
PROGRAMAS
DE
COMPUTADOR (SOFTWARE). CONTRATO DE CESSÃO DE USO.
PRESTAÇÃO
DE
SERVIÇOS
PERSONALIZADOS. ISS. INCIDÊNCIA.
SÚMULA
83/STJ.
TERRITORIALIDADE. SÚMULA 283/STF.
1. Discute-se nos autos a incidência do ISS sobre a obtenção, junto a
empresas estrangeiras, de licença não exclusiva, pessoal, intransferível e
não sublicenciável de uso de programa de computador para planejamento
de redes de telecomunicações celulares.
6
É a opinião de Flávio Galvão, Alessandra Santoro Ângelo e Solange Futida (ibidem, p. 223).
105
2. Uma vez destacado pelo acórdão recorrido tratar-se de programa
desenvolvido de forma personalizada, aplica-se a jurisprudência desta
Corte no sentido de que os programas de computador desenvolvidos para
clientes, de forma personalizada, geram incidência de tributo do ISS.
3. No quesito da territorialidade, a recorrente não impugnou o
fundamento de que o ISS não incidiria sobre a elaboração do programa,
serviço proveniente do exterior, mas, sim, sobre a cessão de seu direito
de uso, que ocorreria em território brasileiro, o que faz incidir, na
espécie, o enunciado 283 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
Agravo regimental improvido”.
Na mesma linha vem se posicionando o Tribunal de Justiça de São Paulo, com
destaque para a apelação 0024924-90.2008.8.26.0000. No caso, o desembargador João
Alberto Pezarini, relator designado, destacou que:
“Não incide ISS sobre receitas advindas de cessão de direito de uso de
programas de computador, porquanto, a despeito da inclusão de “serviço”
com esse nome na lista anexa à Lei Complementar 116/03 (subitem
1.05), cuida-se de obrigação de dar, não de fazer”.
Contudo, para o caso de contrato que preveja atualizações periódicas de
“software de prateleira”, a 15ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, em
25/09/2014, na apelação 0006496-32.2013.8.26.0053, entendeu pela incidência do ISS,
sob o fundamento de tratar-se da contratação de SaaS (Software as a Service). Em seu
voto, o desembargador Fortes Muniz destacou o seguinte:
“2) Em casos de atualização do programa, o modelo SaaS prevê uma
relação continuada entre cliente e fornecedor, que disponibiliza
constantes atualizações do software mediante o pagamento de
mensalidade, diferentemente do que ocorre com os “softwares de
prateleira”, em que cada atualização é paga separadamente, quando não
sendo necessário adquirir novamente o programa. O contrato traz tais
disposições em sua cláusula 1.2.3 e ss, a fls. 40.
3) Outra característica desse modelo de negócio é a remuneração de
acordo com o número de pedidos captados (tratando-se no caso de
plataforma para e-commerce), estabelecendo uma relação de dependência
entre as empresas, baseada na otimização do software pela contratada de
modo a efetivar cada vez mais vendas para a empresa contratante.
Verifica-se tal característica no anexo II preços e condições de
pagamentos, a fls. 52.
Assim, em que pese não se tratar de software personalizado,
desenvolvido individualmente para cada cliente, também não se
caracteriza como “software de prateleira”, de natureza jurídica de
obrigação de dar. Assim, da análise da essência do contrato firmado entre
a empresa impetrante e suas clientes, fica patente tratar-se de prestação
106
de serviço, tributável pelo ISS, inclusive o licenciamento e a cessão de
uso do software”.
Quanto ao chamado material de entretenimento, tais como filmes, novelas,
seriados, músicas, jogos eletrônicos, etc., entendemos que não há incidência do ISS.
Tais elementos, da mesma maneira que os “softwares de prateleira”, nada mais são do
que arquivos eletrônicos pré-fabricados, cuja utilização, temporária ou não, são também
objeto de cessão de uso, o que revela uma obrigação de dar e não de fazer.
Nesse tópico, GERMANO (2012, p. 445) esclarece que “tal prestação não
envolve um fazer específico para o cliente, mas apenas uma obrigação de entregar um
bem incorpóreo, no caso, a música ou o vídeo escolhido. Trata-se, assim, de hipótese
que não pode ser alcançada pelo ISS”.
5.3 – Comércio eletrônico direto: e-learning, assistência técnica remota e consultoria
Outras funcionalidades que podem ser adquiridas por meio do comércio
eletrônico direto são os cursos à distância (e-learning), a assistência técnica remota e os
serviços de consultoria.
No que se refere ao ensino à distância (e-learning), a eventual incidência do ISS
dependerá de como o material do respectivo curso encontra-se estruturado. Caso trate-se
de um sistema que imponha ao aluno uma participação exclusivamente passiva, isso é,
que não permita qualquer tipo de interação com os professores ou, ainda, não preveja
obrigações como o envio de relatórios ou questionários periódicos para fim de
avaliações, não há incidência tributária.
Nesses casos, não existe o préstimo de um serviço propriamente dito, mas
apenas a cessão de uso do material (arquivos eletrônicos), na mesma linha do que ocorre
em relação aos “softwares de prateleira” baixados por download.
Noutro giro, havendo a participação ativa do aluno, com a possibilidade de
interação com os professores, seja on line ou por outro método, no sentido de esclarecer
dúvidas ou mesmo submeter-se a avaliações ou provas, ou ainda quando houver a
previsão de fornecimento de certificado final que requeira algum tipo de avaliação de
desempenho, a incidência é certa. Trata-se, em verdade, do previsto no item 8.02 da
lista anexa à LC 116.
As atividades de assistência técnica remota em informática (v.g., manutenção ou
atualização personalizada de programas de computador, instruções para operações de
107
equipamentos de hardware, etc.) são tributáveis pelo ISS, considerando a expressa
previsão do item 1.06 da lista da LC 116/2003.
O mesmo vale para os serviços de consultoria prestados à distância, seja em
relação a assuntos de informática (item 1.07 da lista) seja em termos gerais (item 17.01
da lista). Nessas hipóteses, da mesma forma que nas acima indicadas, há o
fornecimento, de modo oneroso, de comodidades ou utilidades personalizadas em
benefício de alguém (o contratante), seja pessoa física ou jurídica.
6. Conclusões
A internet revolucionou a maneira dos seres humanos se comunicarem, eis que
permite a transmissão de informações, ideias e conhecimento em quantidades cada vez
maiores a custos reduzidos, sendo muito difícil a governos autoritários censurarem ou
“filtrarem” integralmente os conteúdos que considerem indesejáveis .
Dentre as questões tributárias mais relevantes que permeiam a internet
destacam-se as atividades desenvolvidas pelos provedores (de acesso e de aplicações ou
conteúdo) e o comércio eletrônico.
O provedor de acesso à internet exerce serviço de valor adicionado e não de
comunicação, o que afasta dessa a incidência do ICMS. Nesse sentido, a Súmula 334 do
Superior Tribunal de Justiça. E, dada a ausência de previsão expressa na lista de
serviços da LC 116, essa atividade também não se sujeita ao ISS.
Diversas atividades desempenhas pelos provedores de aplicações, tais como web
hosting, fornecimento de espaço virtual para arquivos pessoais, endereço eletrônico para
correspondência, notícias e informações, material de entretenimento, etc., também não
se sujeitam ao ICMS (ante a ausência de serviço de comunicação) nem ao ISS (por
ausência de previsão na lista da LC 116/2003).
O Projeto de Lei Complementar 366/2013, neste momento (outubro de 2015) em
trâmite no Congresso Nacional, pretende modificar a lista de serviços da LC 116, de
maneira a inserir, como tributáveis pelo ISS, as atividades web hosting, disponibilização
de material de entretenimento e a divulgação de anúncios publicitários ou banners.
No comércio eletrônico indireto, em havendo circulação de bens físicos, há
incidência de ICMS e IPI, inclusive em relação aos chamados “softwares de prateleira”.
108
Por outro lado, os “softwares por encomenda” sujeitam-se ao ISS, segundo
jurisprudência pacificada.
No comércio eletrônico direto, considerando que tanto o contrato quanto sua
execução ocorre de modo virtual (ausência de corpus mechanicum), nunca há incidência
de ICMS ou IPI.
A execução dos contratos se efetiva por meio de downloads de arquivos
eletrônicos de conteúdo variado, objeto de cessão de uso (v.g. programas de computador
e posteriores atualizações, jogos eletrônicos, simuladores de realidade, material de
entretenimento como filmes, seriados, novelas, músicas, etc.).
Tratando-se de material pronto e acabado, cuja confecção não visou ao
atendimento das necessidades específicas de usuários determinados, não se cogita da
incidência do ISS, dada a ausência de prestação de serviço.
Noutra ponta, ocorrendo o préstimo oneroso de comodidades ou utilidades
personalizadas em benefício do contratante, seja pessoa física ou jurídica, haverá
tributação pelo ISS, desde que o serviço conste na lista da LC 116. São os casos, por
exemplo, do e-learning individualizado, da assistência técnica remota em informática e
dos serviços de consultoria.
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CAPÍTULO 6.
MAPEANDO A VIGILÂNCIA CORPORATIVA NA
BRASILEIRA: PRIVACIDADE E TRANSPARÊNCIA
INTERNET
NO
GOOGLE E FACEBOOK
113
Vitor Blotta
Introdução
Este capítulo resume os resultados da pesquisa “Mapeando a Vigilância
Corporativa na Internet Brasileira: privacidade e transparência no Google e Facebook”,
realizada entre 2013 e 2015 pela Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa
e Pós-Graduação (ANDHEP), com apoio da World Web Foundation. A pesquisa
procurou analisar os termos de uso e as políticas de privacidade do Google e Facebook
no Brasil, com base em padrões nacionais e internacionais de proteção da privacidade
na internet. Além disso, mapeou os casos judiciais cíveis sofridos pelas empresas desde
seu funcionamento até 2014 no país, e entrevistou profissionais e especialistas no
assunto.
Além dos descompassos das políticas de privacidade com a legislação nacional e
internacional sobre o tema, os dados destacam uma crescente judicialização dos
conflitos entre privacidade, direitos de imagem e liberdade de informação nas relações
entre essas empresas e seus usuários desde sua criação, com aumento significativo de
ações judiciais após a aprovação do Marco Civil da Internet. Independentemente dos
resultados dessas disputas jurídicas, o crescimento do descontentamento com esses
serviços indica que os direitos da privacidade não são tão desvalorizados pelos usuários
da internet como se poderia pensar, e que o uso das informações privadas pelas
empresas tem sido vistos cada vez mais como abusivos pelos usuários.
Diante desse cenário, além de se propor uma maior adaptação a legislações
internacionais e nacionais, ao considerar as inter-relações da privacidade com a
transparência, passa a ser justificável demandar uma publicização mais qualificada dos
termos de uso desses serviços de comunicação digital e suas políticas de privacidade,
como forma de compensar sua opacidade em relação aos usuários e possivelmente
contornar essa escalada de conflitos. Cada vez mais o licenciamento consensuado e

Escola de Comunicações e Artes da USP. Núcleo de Estudos da Violência da USP
114
claro dos direitos de privacidade e liberdade de informação envolvidos nesses contratos
se tornam essenciais para a manutenção da qualidade dos serviços de comunicação
digital.
Privacidade em tempos de antagonismos entre direitos e liberdades
A inserção crescente da internet no cotidiano do Brasil transformou-a num dos
espaços mais visíveis de uma radicalização das tensões entre público e privado que vem
ocorrendo nas sociedades ocidentais. Nesse cenário, passa a haver uma relação de
antagonismo, ou de exclusão mútua entre direitos e liberdades (Mouffe, 2014). Em
nosso caso, entre aquilo que deveria ser de livre conhecimento de todos e circular nos
espaços públicos - a liberdade de informação -, e aqueles espaços, criações, elementos e
bens pessoais e íntimos que não deveriam ser de interesse ou acesso de ninguém, a não
ser do próprio indivíduo - a privacidade e a vida privada.
A pesquisa aqui resumida utilizou-se de concepções ao mesmo tempo plurais e
pragmáticas de privacidade e vigilância, seguindo leituras contemporâneas nos campos
da sociologia, da teoria política, da comunicação e do direito (Solove, 2008;
Nissenbaum, 2010; Dawes, 2011; Leonardi, 2012; Karanicolas, 2014). Isso significa
que consideramos a privacidade como um conjunto relativo e não hierarquizado de
valores e bens ligados à vida privada e à personalidade como um todo, mas cujos
sentidos e limites mais específicos dependem de contextos e casos concretos, ainda que
sujeitos a tensões permanentes entre interesses públicos e privados. Mesmo com essa
abertura conceitual, buscamos fazer as delimitações necessárias às interpretações sobre
privacidade na internet e as políticas de privacidade do Google e Facebook, além da
análise dos processos judiciais envolvendo as duas empresas.
Para definir outro conceito importante da pesquisa, entendemos que praticam
atos de vigilância corporativa (corporate surveillance) na internet aquelas empresas ou
instituições privadas que detém, utilizam, invadem ou transmitem, de forma não
consentida ou conhecida informações privadas dos seus usuários. Esses atos podem
ocorrer por violações de correspondência e invasões feitas por indivíduos ou pequenos
grupos, até sistemas mais sofisticados de controle e administração de informações
pessoais e correspondência de usuários, muitos dos quais pretendem um uso legítimo
dessas informações. Mas mesmo com sua variedade, esses atos parecem todos resultar
de oposições entre interesses de liberdade de informação e privacidade.
115
Situações de “troca” necessária entre direitos (rights trade-off) são também
comuns nos canais privados de internet. Há diversas situações contratuais de políticas
de uso de serviços de internet nas quais o usuário precisa “optar” por um direito em
detrimento de outros. Para se ter acesso a um canal gratuito, ou mesmo pago de
informação na rede - liberdade de informação na internet -, é necessário dispor de
informações pessoais e abdicar do direito de não ter sua correspondência acessada parar
quaisquer fins, caso não queira - privacidade. O mesmo ocorre nas tensões entre
privacidade e segurança, levando a situações de “tudo ou nada” (Solove, 2007).
É o preço que se paga para um serviço de qualidade e gratuito, o que ninguém
também quer abdicar, dizem representantes das empresas. Alguns usuários confirmam,
mas não há pesquisas que atestam que eles não prefeririam pagar alguma quantia para
não ter suas informações utilizadas, ou não ser expostos a propagandas comerciais. Isso
porque não existe esta opção no mercado mais “popular” da comunicação na internet,
que é composto pelas contas de e-mails, sites de busca e outros serviços informação e
entretenimento e redes sociais, e cuja fonte de manutenção e capital básica é a
publicidade comercial.
Aliás, pesquisa na área da comunicação e psicologia (Baek, 2014) indicou que a
opinião de usuários sobre privacidade na internet só pode ser captada mais precisamente
por meio de relatos em grupos focais, e não por surveys, dado que as pessoas não estão
acostumadas a refletir a respeito daquilo que é comprometido no uso de ferramentas do
espaço digital, especialmente usuários comuns. Isso se demonstra pelo fato de que
aqueles que são muito preocupados com sua privacidade no cotidiano estranhamente
assumem, ou estão dispostos a assumir na internet, comportamentos que colocam sua
privacidade em risco.
É inegável que o uso de ferramentas de comunicação online se tornou extensão
fundamental da liberdade de informação, de expressão e da própria privacidade no
mundo contemporâneo, sem o que esses direitos não podem mais ser satisfatoriamente
exercidos. Mas quando não há alternativas em canais públicos, os contratos firmados
entre os usuários e as empresas privadas de informação na internet se tornam contratos
de adesão, nos quais as cláusulas não estão em negociação. Mesmo com algumas
opções sobre qual nível de publicidade o usuário quer dar às suas mensagens, ou se
aceita os termos gerais, ou não se utiliza a ferramenta.
Além disso, o grau de publicização e disponibilidade das informações dos
usuários às empresas que prestam esses serviços nunca está em jogo, nem mesmo a
116
licença que os usuários são obrigados a conceder em relação ao conteúdo que
produzem, já que, afinal, são os detentores dos direitos autorais sobre essas
informações. Sem essa licença as plataformas não poderiam reproduzir, manipular ou
comercializar esses dados sem a sua autorização, em cada uso singular.
Ainda que esse tipo de contrato não seja ilegal - e há outros exemplos de
contrato de adesão nas relações de trabalho, consumo e serviços -, caso ele não se
adeque à legislação ou desrespeite direito fundamental, suas cláusulas podem ser
consideradas nulas pela justiça, bem como aquelas em que o contraente abdica de
direito fundamental. Para contornar essa disparidade entre os indivíduos e empresas no
direito do trabalho e do consumidor, os primeiros são considerados as partes mais
fracas, e por isso recebem proteção jurídica. Então o que dizer no caso do consumo de
serviços de informação na internet? É justo que para acessar de modo gratuito essa
dimensão fundamental do direito à informação, garantida pelos canais corporativos de
comunicação e acesso à informação na internet, os usuários devam necessariamente
abdicar de sua privacidade e se expor à publicidade comercial?
Desigualdades estruturais e democratização do acesso à internet no Brasil
Outra situação de vulnerabilidade de direitos de informação na internet que,
apesar de não ser foco desta pesquisa, vale registrar, é a questão da inclusão digital. Os
níveis nacionais e as desigualdades regionais de acesso à rede ainda são marcantes
quando comparadas com países da Europa e América do Norte. No entanto, com o
barateamento da tecnologia, o aumento do acesso à rede mundial por meio da telefonia
móvel e o Plano Nacional da Banda Larga, o crescimento do acesso à internet no
território brasileiro tem sido exponencial.
Os informes logo ficam desatualizados. Em estudo publicado no início de 2014
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), ligado à Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República, 49% dos domicílios brasileiros tinham acesso
à banda larga, sendo 52% a percentagem de acesso na Região Sudeste, 43% na região
Sul, 41% na Região Centro-Oeste, 29% na Região Nordeste e 21% na Região Norte.
Já dados de setembro de 2014 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
(Pnad) do IBGE mostram que mais da metade dos brasileiros têm acesso à internet em
suas residências. Na nova avaliação, as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste superam a
média nacional, com respectivamente 58%, 55% e 54%. Note-se, no entanto, que as
117
regiões Norte e Nordeste, com respectivamente 39% e 38% de acesso demonstram
crescimento mais expressivo do que as do Sudeste e Sul neste curto período.
A internet móvel também é um dos serviços que mais aumentou nos últimos
tempos. De acordo com a mesma pesquisa do Pnad, entre 2012 e 2013 houve
crescimento de 6% neste acesso, atingindo 51% dos domicílios acessam à internet por
telefone celular, o que significa 34,6 milhões de domicílios atendidos.
Obviamente, não se pode esquecer que essa democratização do acesso não
significa uma democratização de provedores e empresas de internet ou de
telecomunicações e informática. Estudos como a Economia política da internet, de
César Bolaño et. al. (2003), demonstram que são cada vez mais concentrados os
mercados de provimento de conexão, com a American Online nos EUA e a Universo
Online no Brasil, as empresas de software e hardware, como a Apple e a Microsoft e as
plataformas de comunicação social e interpessoal na internet, nas quais têm grande
destaque o Google e o Facebook. Ambas têm crescido por meio da compra de outros
serviços, como o Whatsapp pelo Facebook e o Youtube pelo Google, e a diversificação
de seus produtos, buscando se tornar plataformas de convergência de redes sociais e de
acesso e compartilhamento de informação (Solomon, 2014).
O Brasil é o quinto país no mundo com mais usuários de internet, e um dos
países nos quais as pessoas mais usam redes sociais no mundo, sendo só não maior
proporcionalmente do que a percentagem de acesso nos Estados Unidos (99% contra
99,7%). Ainda assim, o número de acessos a essas redes por mês no Brasil é maior do
que nos EUA (30,6 contra 30,3). A plataforma de busca do Google tem no Brasil 82%
dos acessos a buscadores, enquanto que o Facebook tem 89 milhões de usuários
mensais, o que representa em torno de 80% dos usuários de internet no país.
Mundialmente, no entanto, o Google perde para o Facebook em número de acessos
únicos (836,7 X 782,8 milhões por dia), com o Youtube (também do Google) em
terceiro lugar (721,9 milhões)
Não existe privacidade na internet? processos judiciais e consentimento não
informado
No meio desse panorama, como fica então a questão do controle das
informações pessoais? Daniel Solove (2008) indica que esta é a liberdade fundamental
atrelada à privacidade, a de se controlar o fluxo de informações privadas para espaços
públicos. Quais dados são ou não usados, consentidamente ou não, pelos serviços de
118
comunicação online? O que são, afinal, essas tais “políticas de privacidade”? Afinal,
quase nenhum usuário comum desses serviços lê suas políticas e os “termos de uso”,
mas as aceitamos mesmo assim.
As constatações de que muito poucos lêem os contratos, de que os sites não têm
como saber com certeza se os usuários de fato o fazem, e até mesmo de que a leitura de
todos os termos consumiria um tempo exorbitante levantam várias questões, algumas
das quais procuramos responder na pesquisa em relação Brasil. A primeira delas é se há
uma relativização da privacidade no espaço digital, e se sim, quais são suas
características e possíveis impactos sobre essa liberdade moderna no mundo
contemporâneo. O que ficou claro é que fazer esta pergunta está longe de dizer que
ninguém mais se importa com sua privacidade, ou que não existe privacidade no
ciberespaço.
Pelo contrário. Foram identificados na pesquisa altos e crescentes números de
processos judiciais cíveis sofridos pelo Google e o Facebook no Brasil, especialmente
após a aprovação do Marco Civil da Internet. A grande maioria é de autoria de pessoa
física e referente à indenização por dano moral, direito de imagem e obrigação de retirar
informação. Isso torna claro que há muitas pessoas que se sentem lesadas em sua
privacidade por serviços de empresas de internet no Brasil. Para se ter uma ideia, no
Estado de São Paulo, onde há o maior número de processos do país, esta é sua evolução
até o final de 2014:
Processos judiciais cíveis 1a instância registrados dos sites dos Tribunais de Justiça do
Estado de São Paulo, segundo o TJSP.
Procs cíveis
TJSP
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
total
Google
5
31
30
50
49
90
86
87
160
588
7
76
234
310
617
Facebook
O crescimento do número de processos do Facebook é realmente
impressionante, pois passa o número total do Google, apesar de ter a metade do tempo
como réu em processos ligados à privacidade, imagem e direito à informação.
Foi feito também um levantamento do número de todos os processos cíveis da
primeira instância sofridos pelas duas empresas no Brasil, segundo os sites dos
119
Tribunais de Justiça de 26 Estados. Com uma média do número de processos por região,
temos a seguinte situação até 20131:
Ainda que esses números possam ser reflexo da inserção e crescimento dessas
empresas no mercado nacional, e elas de fato se popularizaram nos mesmos anos em
que passaram a ser processadas (Google desde 2006 e Facebook desde 2011), ou
mesmo desse fenômeno social mais amplo de antagonismo entre as liberdades públicas
e privadas mencionado acima, esses casos de violação da privacidade por canais digitais
nos obrigou a enfrentar a indagação sobre se as políticas de privacidade do Google e o
Facebook estão adequadas aos marcos normativos nacionais e internacionais sobre
privacidade.
Ao relacionar as políticas de privacidade dessas empresas com normas
internacionais, constitucionais e agora especiais que vigoram no Brasil, como a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Charter for Human Rights and
1
Agradeço a Altay Souza pelo estabelecimento das médias por região e pela montagem dos gráficos aqui
presentes.
120
Principles for the Internet, promovido pelo Fórum pela Governança da Internet das
Nações Unidas, e sobretudo o Marco Civil da Internet, que colocou o Brasil ao posto de
primeiro país do mundo a aprovar uma consolidação específica de normas sobre
internet, começa a ficar claro que há sim, apesar das melhoras nos termos e sua
publicidade, situações de violação de determinações internacionais e locais sobre
privacidade nesses contratos, como licenças irrecuperáveis, transmitidas a “parceiros
confiáveis”, a violação do princípio da privacidade como padrão e a não retirada de
conteúdos após a saída do usuário.
Nessa perspectiva mais jurídica e normativa da pesquisa, perguntamos também
qual é a natureza da autonomia da vontade que se dá no momento da “assinatura” desses
contratos com canais de comunicação na internet. Essa pergunta é fundamental para
podermos distinguir se se tratam de consentimentos informados ou não informados, o
que, se não vicia juridicamente a manifestação da vontade, comprova a ausência de um
de seus elementos fundamentais: o conhecimento das cláusulas contratuais, sem o qual a
relação contratual pode mesmo acabar em violações de direitos e ações judiciais.
Relativização ou extensão da privacidade na internet? transparência e novos direitos
Nossa proposta central para amenizar essas tensões entre liberdade de
informação e privacidade - e alguma coisa já tem sido feita gradativamente nesse
sentido por empresas como Google e Facebook - é compensar a relativização da
privacidade e o desconhecimento dos termos dos contratos com iniciativas de
transparência e comunicação das políticas de uso e privacidade, seja por meio de
tutoriais com formatos atraentes, avisos regulares, informes de mudanças, ou mesmo
participação dos usuários na discussão, e porque não, nas decisões pontuais e estruturais
sobre as políticas de privacidade e termos de uso.
Esse tipo de trabalho poderá não só diminuir as tensões e ações judiciais entre
usuários e as plataformas, mas também melhorar as relações de confiança e entre eles, e
consequentemente, a própria rentabilidade das empresas. Nesse momento, a publicidade
no sentido de transparência contratual, ou de publicização adequada das informações
relativas às políticas de privacidade e termos de uso, poderá ser, ao final, um outro
insumo para essas empresas de internet, além da publicidade comercial.
Ao mesmo tempo, novas legislações sobre internet, privacidade e proteção de
dados resultantes de movimentos anti-vigilância e ações judiciais contra experiências de
violação de direitos no ciberespaço, têm dado condições para o surgimento de novos
direitos, ou antes, novas expressões dos direitos que compõem a privacidade na internet:
121
a possibilidade de remoção de conteúdos em caso de violação da imagem ou honra a
partir do direito de ser esquecido, como extensão do direito de ser deixado em paz; o
anonimato na internet, que é reconhecido pela ONU como uma das conquistas da
privacidade e da liberdade de informação na internet, mas que ainda sofre grande
ameaças, como no caso do polêmico aplicativo Secret. Isso significa que a cultura da
vigilância conseguiu tornar o anonimato uma “escusa para se cometer delitos sem ser
identificado”, mesmo que na internet seja sempre possível rastrear responsáveis em caso
de investigação criminal com autorização judicial, como na quebra de sigilo bancário.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que consolida essas novas dimensões
dos direitos da privacidade, também se associa a outros institutos jurídicos importantes,
como o direito do consumidor, que obriga os serviços a apresentar informações claras e
compreensíveis sobre seus produtos, e considera o consumidor - neste caso o
consumidor informacional - a parte a ser protegida em processos judiciais.
Também são importantes nesse sentido alguns remédios constitucionais, como o
habeas data, que é o direito de se obter de órgãos públicos informações sobre a sua
pessoa, que poderia ser aplicado de maneira análoga com empresas de internet. O
direito à informação é invocado em algumas ações analisadas na pesquisa, bem como se
pode propor a promoção de ações coletivas na área, uma vez que muitos consumidores
podem ser lesados de uma vez, ou por diversas ações semelhantes. Nesses casos, caberia
ao Ministério Público Federal representar a sociedade, como já o fez em Termo de
Ajustamento de Conduta com o Google em 2008, para o auxílio da empresa no
fornecimento de dados sobre suspeitos de pedofilia na internet.
Num mundo de ultra publicidade, tanto comercial quanto de exposição da
privacidade, mas também de imposição de vontades privadas sobre interesses públicos,
colocamos em risco dimensões fundamentais da formação de nossas personalidades.
Enquanto reclamamos dos graves problemas de transparência das instituições
públicas, esquecemos de nos atentar também para como estão sendo publicizadas nossas
informações pessoais e comunicações virtuais em canais privados de comunicação na
internet. Por isso há movimentos sociais e institucionais, no Brasil e em outros países,
para a aprovação de leis de proteções de dados não somente em relação ao Estado, mas
também das empresas que os detém.
Quanto mais a sociedade toma consciência de problemas como a vigilância
privada ou corporativa na internet, menos será necessário apelar para a via da
desconfiança e do litígio com essas empresas, e mais se poderá trabalhar no campo da
122
prevenção de conflitos, com maior equilíbrio e conciliação de interesses entre
privacidade e liberdade de informação, de indivíduos, grupos ou empresas de
comunicação. Este parece ser o melhor caminho, ou ao menos um que evite que esse
antagonismo entre liberdades e direitos tão fundamentais e complementares da
democracia de massa, não prejudicando ambas na administração desses crescentes
conflitos de comunicação.
Bibliografia
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SOLOMON, S. New Buying Strategy as Facebook and Google Transform Into Web
Conglomerates. Dealbook. New York Times. August 5th, 2014. Disponível em:
http://dealbook.nytimes.com/2014/08/05/new-strategy-as-tech-giants-transform-intoconglomerates/?_php=true&_type=blogs&_r=0 (ultimo acesso em 21/10/2014)
123
CAPÍTULO 7.
DIREITOS AUTORAIS E NOVAS FORMAS DE AUTORIA
124
Guilherme Carboni
Introdução
A informatização da produção, a expansão do uso das novas tecnologias da
informação e a característica imaterial do trabalho na sociedade pós-industrial permitem
uma reavaliação dos entendimentos a respeito da valoração e apropriação do
conhecimento enquanto mercadoria, bem como do papel dos direitos de propriedade
intelectual nesses processos.
No caso de bens culturais e da informação, tais fenômenos também propiciam o
aparecimento de novas formas de autoria. Dentre elas, merecem destaque, a autoria
baseada em processos interativos de criação, a meta-autoria e a autoria colaborativa,
especialmente por terem em comum, o fato de o processo criativo (ou a sua
organização) não se encontrar centralizado em apenas um indivíduo ou entidade.
A possibilidade de participação ativa do usuário no processo de criação de obras
em meios digitais coloca em xeque o seu tradicional papel de mero receptor de
informações, abrindo espaço para novas formas de autoria baseadas na interatividade,
envolvendo diversos indivíduos.
Além disso, alguns artistas têm se dedicado ao desenvolvimento de sistemas
computacionais que permitem a criação de obras intelectuais, de forma independente e
autônoma de seu criador ou do usuário. Esses “meta-artistas” vêm expandindo o
espectro da criação artística ao investigarem novas formas de interação entre humanos e
inteligência artificial.
As novas tecnologias da informação também vêm promovendo a intersubjetividade e a criação colaborativa, por meio da interconexão de indivíduos em
redes.
Entretanto, as atuais formas de titularidade de direitos autorais não dão conta de
regular essas novas possibilidades da criação intelectual. A seguir, examinaremos o
contexto em que essas novas formas de autoria ocorrem – o que envolve,
necessariamente, uma reflexão a respeito do atual papel econômico dos direitos de

Mestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor pela Escola de
Comunicações e Artes (ECA) da USP. Advogado de Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Endereço:
Alameda dos Jatobás, 35, Terras do Madeira, Carapicuíba, SP, e-mail: [email protected]
125
propriedade intelectual e a importância social do conhecimento –, para podermos refletir
a respeito de possíveis caminhos jurídicos visando a regular tais situações.
2. Contexto das Novas Formas de Autoria: Trabalho Imaterial, Valoração de
Conhecimentos e Direitos de Propriedade Intelectual
Em nosso atual estágio de produção capitalista – que pode ser denominado de
pós-industrial ou informacional –, a admissão do conhecimento como a principal força
produtiva provocou uma mudança nas categorias econômicas do trabalho, valor e
capital.
Na economia pós-industrial, todo trabalho, seja na produção industrial ou no setor
de serviços, contém um componente de saber, com uma importância crescente, e que
não é composto de conhecimentos específicos e formais, adquiridos em escolas. A
informatização revalorizou formas de saber que não são substituíveis ou formalizáveis:
trata-se do saber da experiência, do discernimento, da capacidade de coordenação, de
auto-organização e de comunicação, ou seja, de formas de “saber vivo”, que pertencem
à cultura do cotidiano (GORZ, 2005).
O modo como os trabalhadores incorporam esse saber não é mais predeterminado,
pois exige o investimento de si mesmo naquilo que, na linguagem empresarial, é
chamado de “motivação”. A qualidade da produção depende desse comprometimento.
Dessa forma, toda produção, cada vez mais, se assemelha a uma prestação de serviços
(GORZ, 2005).
Além disso, o trabalho deixa de ser mensurável em unidades de tempo. Os fatores
que, agora, determinam a criação de valor são o “componente comportamental” e a
“motivação”, não mais o tempo de trabalho despendido. Assim, os trabalhadores
tornam-se verdadeiras empresas que, mesmo no interior das corporações, devem
responder pela rentabilidade de seu trabalho (GORZ, 2005)1.
Nesse contexto, o trabalho simples é substituído por um trabalho complexo. O
trabalho de produção material, mensurável em unidades de produtos por unidades de
1
A esse respeito, Gorz (2005, p. 17) remete a um excerto de uma comunicação de Norbert Bensel, diretor
de recursos humanos da Daimler-Chrysler, nos seguintes termos: “Os colaboradores da empresa fazem
parte do seu capital (...). Sua motivação, sua competência, sua capacidade de inovação e sua preocupação
com os desejos da clientela constituem a matéria primeira dos serviços inovadores (...). Seu
comportamento, sua aptidão social e emocional têm um peso crescente na avaliação de seu trabalho (...).
Este não mais será calculado pelo número de horas de presença, mas sobre a base dos objetivos atingidos
e da qualidade dos resultados. Eles são empreendedores”.
126
tempo, é substituído por um outro, denominado trabalho imaterial, ao qual os padrões
clássicos de medida não mais podem se aplicar (GORZ, 2005).
No trabalho imaterial, o computador aparece como a ferramenta universal, pela
qual todos os saberes e todas as atividades podem, em princípio, ser partilhados e por
onde deve passar toda e qualquer atividade de trabalho (GORZ, 2005).
A importância do trabalho imaterial está na sua possibilidade de transformação de
outras formas de trabalho e da sociedade como um todo, o que não significa que não
haja mais uma classe operária industrial trabalhando em máquinas ou trabalhadores
agrícolas cultivando o solo (HARDT; NEGRI, 2005). A diferença está no fato de que o
trabalho do operário, no capitalismo pós-industrial, implica sempre, em diversos níveis,
na capacidade de escolher entre diversas alternativas e, portanto, na responsabilidade de
certas decisões (LAZZARATO; NEGRI, 2001). Portanto, o trabalho imaterial torna-se a
forma hegemônica do trabalho na sociedade pós-industrial, remetendo o trabalho
material à periferia do processo de produção, ainda que permaneça indispensável, ou
mesmo, dominante do ponto de vista qualitativo. Mas, o centro da criação de valor, é o
trabalho imaterial (GORZ, 2005).
Por outro lado, a mudança do modo de desenvolvimento industrial para o
informacional trouxe novas formas históricas de interação, controle e transformação
social (CASTELLS, 1999). As novas tecnologias da informação não são simplesmente
ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Dessa forma,
criadores e usuários podem tornar-se a mesma coisa. E, mais do que isso: parece haver
uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de
símbolos (a cultura) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças
produtivas). É por essa razão que se pode dizer que, pela primeira vez na história, a
mente humana é uma força direta de produção e não apenas um elemento decisivo no
sistema produtivo (CASTELLS, 1999)2.
2
Vale, aqui, mencionar as palavras de Almeida (P., 2007, p. 35) a respeito da associação da cultura a
produtos industriais: “Na atual economia, bens e serviços são valorados e valorizados cada vez mais pelo
seu conteúdo intangível e simbólico – estético, étnico, religioso ou político. É interessante observar como
isso diz respeito até mesmo às tradicionais commodities, agora impregnadas e envolvidas em cultura. Não
é apenas a indústria de confecções que se transforma em indústria da moda, mas é também o café, por
exemplo, que se valoriza em função do seu “selo” verde ou social, ou ainda em razão do seu terroir e de
sua denominação de origem. O valor de troca se descola do trabalho direto incorporado à mercadoria. O
valor de uso não pode mais ser relacionado à utilidade em sentido estrito, pois o consumo é cada vez mais
associado à necessidade de diferenciação social, a imperativos psicológicos superiores e, no limite, à
singularização de desejos, muitas vezes supérfluos ou fúteis, mas sempre de forte conteúdo cultural”.
127
As novas tecnologias da informação vêm ocasionando uma ruptura na história das
técnicas, pois elas se apóiam em uma dissociação entre a máquina (o hardware) e seu
programa (o software). Tal fato modifica a relação homem-máquina, uma vez que o
computador não tem mais função nem valor-utilidade em si. Sua função e utilidade
advêm apenas da maneira como é aplicado e do uso que dele se faz (CORSANI, 2003).
Assim, as novas tecnologias não podem ser consideradas como mercadorias como as
outras, mas, nas palavras de Corsani (2003, p. 25 e 26), como “um sistema integrado de
suportes ou de meios criado com a finalidade de servir, no consumo, à realização de um
conjunto indeterminado de atividades”.
De acordo com Matos (2007), uma das características do capitalismo pósindustrial é justamente o desaparecimento do “tempo livre”, incluindo aquele dedicado
ao pensamento. Segundo a autora, seria esse o “novo espírito do capitalismo”, que induz
a uma mudança na organização da vida social e que inclui a desindustrialização, a
economia de serviços, a informação e o “controle remoto”. Nesse contexto, diz Matos
(2007), a tecnologia telemática e digital, juntamente com todo o setor da eletrônica,
constituem a base da chamada “sociedade do conhecimento”, cujo fundamento é a
difusão de tecnologias cognitivas, que incluem a inteligência artificial, os bancos de
dados e, até mesmo, a generalização da burocracia empresarial. Dessa forma, todas as
esferas de atividade passam a ser consideradas “modos de gestão”, que servem de
sustentação ao poder empresarial (MATOS, 2007), a ponto de se dizer que há uma
tendência do trabalho imaterial para o obscurecimento da distinção entre horários de
trabalho e de não trabalhar, estendendo o dia de trabalho até ocupar toda a vida, bem
como para a sua flexibilização e mobilidade (HARDT; NEGRI, 2005).
No capitalismo informacional, a fonte de produtividade encontra-se nas
tecnologias de geração de conhecimentos, de processamento de informação e de
comunicação de símbolos. Na verdade, conhecimento e informação são elementos
cruciais em todos os modos de desenvolvimento, já que o processo produtivo sempre se
baseia em algum grau de conhecimento e no processamento da informação. Entretanto,
o que seria específico no capitalismo informacional, é, como diz Castells (1999), a ação
de “conhecimentos sobre os próprios conhecimentos”, como principal fonte de
produtividade, num círculo virtuoso de interação entre as fontes de conhecimentos
tecnológicos e a aplicação da tecnologia para melhorar a geração de conhecimentos e o
processamento da informação.
128
A novidade, assim, não consiste tanto na idéia de conhecimento como força
produtiva, como algo a ser aplicado na indústria, mas no fato de que o conhecimento
tornou-se, agora, ao mesmo tempo, um recurso e um produto, desincorporado de
qualquer recurso e de qualquer produto (CORSANI, 2003). Esse é o sentido da
produção de “conhecimentos por conhecimentos”. Tais conhecimentos não são apenas
tecnológicos, mas científicos, técnicos, artísticos, ideológicos, pois são produzidos em
locais exteriores à fábrica. Dessa forma, é o espaço da própria vida (antes separado do
espaço de trabalho) que se torna o laboratório do capitalismo pós-industrial (CORSANI,
2003). A vida se torna, assim, “o capital mais precioso”, apagando a fronteira entre o
que ocorre dentro e fora do âmbito do trabalho (GORZ, 2005).
Isso significa que o trabalho imaterial é “biopolítico”, na medida em que se
orienta para a criação de formas de vida social 3. Em última análise, o trabalho imaterial
é responsável pela produção de novas subjetividades na sociedade (HARDT; NEGRI,
2005), já que o modo de realizar as tarefas não pode ser predeterminado. O que é
prescrito é a subjetividade, isto é, o que somente o trabalhador pode produzir ao “se
dar” à sua tarefa. Dessa forma, o trabalhador da sociedade pós-industrial desenvolve o
processo produtivo com base no saber adquirido do cotidiano e na sua bagagem cultural
advinda dos jogos, esportes, atividades musicais, etc (GORZ, 2005). Esse é o sentido
“biopolítico” do trabalho imaterial.
Como usuários das novas tecnologias, somos todos inovadores potenciais. Com a
infinita variedade de interpretações possíveis, as novas tecnologias favorecem a intersubjetividade e o trabalho cooperativo, que se ampliam graças à interconexão das redes.
São elas que dão forma à potência criativa da cooperação social (CORSANI, 2003).
Os elementos constitutivos da nova subjetividade apresentam-se sob dois
aspectos: (a) a independência da atividade produtiva com relação à organização
capitalista de produção; e (b) o processo de constituição de uma subjetividade autônoma
na forma do que pode ser chamado de “intelectualidade de massa” (LAZZARATO;
NEGRI, 2001).
3
A palavra “biopolítica” foi tornada pública pela primeira vez por Michel Foucault em sua conferência de
1974 no Rio de Janeiro. Esse termo designa a forma de exercício do poder soberano nos Estados
modernos, surgido no final do século XVIII, cujo alvo não era mais o território, mas a gestão calculada de
um determinado grupo populacional. Trata-se do conjunto de tecnologias e políticas institucionais
voltadas para o controle específico de todos os aspectos da vida e do corpo, desde o controle da natalidade
e a higiene corporal à vacinação contra epidemias e infecções. (Cf. Revista Cult, nº 134, Ano 12, abril de
2009, p. 44).
129
O primeiro aspecto diz respeito ao fato de que, nas fábricas do capitalismo pósindustrial, os sujeitos produtivos se constituem primeiro e de modo independente da
atividade empreendedora capitalista, que a eles se adapta, ao invés de ser a sua fonte e
organização. De acordo com Negri e Lazzarato (2001, p. 31), “o empreendimento
capitalista vê as suas características constitutivas tornarem-se puramente formais”,
exercendo ele, hoje, sua função de controle e vigilância “do externo do processo
produtivo, porque o conteúdo do processo pertence sempre mais a outro modo de
produção, à cooperação social do trabalho imaterial”. Assim, dizem eles que “é o
trabalho que, cada vez mais, define o capitalista, e não o contrário”, pois “o
empreendedor, hoje, deve ocupar-se mais de reunir os elementos políticos necessários
para a exploração da empresa do que das condições produtivas do processo de trabalho”
(LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 31).
O conceito de “intelectualidade de massa” advém do General Intellect, abordado
por Marx. Como explica Corsani (2003), a performance das novas tecnologias depende
da inteligência, da criatividade e da capacidade de invenção do trabalho vivo, que se
apresenta como trabalho imediatamente cooperativo. A diferença entre a cooperação no
capitalismo industrial e no pós-industrial é que, no primeiro, “a cooperação é passiva,
estática, garantida pelo encadeamento seqüencial e aditivo das tarefas elementares e das
funções”. Já no universo pós-industrial, a cooperação é mais horizontal e dinâmica,
demandando um trabalho polivalente (VELTZ apud CORSANI, 2003).
O trabalho imaterial se funda, assim, no comum, na construção direta de
relacionamentos (HARDT; NEGRI, 2005), independentemente de uma organização “de
fora” da interação entre os participantes do processo produtivo, como em formas
anteriores de trabalho. Além disso, o trabalho imaterial se constitui em formas
imediatamente coletivas e não existe, senão sob a forma de rede (LAZZARATO;
NEGRI, 2001). Portanto, é o poder cooperativo da força de trabalho que confere ao
trabalho imaterial a possibilidade de produzir seu próprio valor.
Há uma diferença fundamental entre a relação trabalho-valor no capitalismo
industrial e no capitalismo informacional. A relação trabalho-valor baseada na
quantidade de tempo de trabalho foi formulada por Marx na era do capitalismo
industrial. De acordo com essa lei, o valor é expresso em unidades mensuráveis e
homogêneas de tempo e trabalho (HARDT; NEGRI, 2005). O fato é que a unidade
temporal de trabalho, como medida básica de valor, já não faz sentido no âmbito do
trabalho imaterial. Hoje, observa-se que o aumento da produção pode nascer da
130
expressão de atividades intelectuais, da inovação científica e, sobretudo, da estreita
aplicação da ciência e da tecnologia à elaboração das atividades de transformação da
matéria (LAZZARATO; NEGRI, 2001). Como a valoração do trabalho não pode mais
repousar sobre um tempo objetivo da reprodução padronizada de mercadorias, ela
repousa, hoje, sobre o tempo subjetivo (e intersubjetivo) da criação. Em outras palavras:
o processo de produção não coincide mais com o processo de valoração (CORSANI,
2003). É por essa razão que, no capitalismo pós-industrial, não importa mais o tempo da
produção, mas a “coordenação do processo de produção”, ou ainda, o valor de uso da
força de trabalho e a forma de atividade de cada sujeito produtivo (LAZZARATO;
NEGRI, 2001).
Nesse contexto, é importante ressaltar que o conhecimento não é uma mercadoria
como as outras. Enquanto o conhecimento esteve submetido à lei da repetição – que é
aquela da produção de mercadorias por mercadorias –, sua especificidade ficava
escondida atrás das mercadorias que o incorporavam. Com a sua desincorporação do
suporte material, o conhecimento desequilibra as teorias do valor, tanto a marxista
quanto a neoclássica. Em virtude dessa desincorporação, o conhecimento pode ser
reproduzido, trocado, bem como utilizado separadamente do capital e do trabalho
(RULLANI apud CORSANI, 2003).
As características que fazem do conhecimento uma mercadoria diferente das
demais são as seguintes: (a) sua produção escapa à lei dos rendimentos decrescentes; e
(b) o conhecimento não é escasso. Podemos dizer que a utilização de um conhecimento
é uma atividade criadora, pois, como “conhecimento em ação”, ele evolui com o uso
subjetivo que dele se faz. Além disso, o conhecimento não comporta perda ou sacrifício
com a troca, que se torna, então, apenas uma metáfora. Quem fornece conhecimento não
fica dele privado. Ao contrário: o conhecimento só tem valor se for trocado, isto é,
quando se difunde. E o custo de reprodução de um conhecimento é muito baixo ou nulo,
assim como o seu custo marginal de produção é decrescente, em razão da
cumulatividade dos conhecimentos. Com todas essas características específicas, a
valoração do conhecimento não funciona segundo as mesmas leis que fundamentam a
valoração das mercadorias (CORSANI, 2003).
Quando os conhecimentos se integram à explicação do fenômeno econômico, as
categorias da economia política (como troca, valor, propriedade, produção, trabalho,
consumo, etc.) entram em crise. Para Lazzarato (2003), não se pode utilizar a
131
transmissão de mercadorias para explicar a comunicação dos conhecimentos, pois a
troca de mercadorias implica necessariamente a alienação e o despojamento daquele que
participa do trabalho ou da troca de mercadorias. Os conhecimentos não dependem de
um esforço físico, mas de uma energia afetiva da memória. Assim, para que alguém que
produz conhecimentos pudesse deles se despojar, seria preciso supor que essa pessoa
não pudesse se lembrar do conhecimento que produziu. Para tanto, Lazzarato se vale do
pensamento de Tarde (apud LAZZARATO, 2003, p. 70 e 71), para quem a ação de
“aprender de outrem um novo conhecimento” não tem como condição necessária
“esquecer de um outro que já se tem ou dele se despojar em favor de outrem”, como
acontece com a troca de mercadorias. Assim, a memória, como meio de produção de
conhecimentos, tem como princípio de funcionamento o fato de ser “anti” ou “não”
econômica.
Tarde (apud LAZZARATO, 2003) examina profundamente o processo de criação
de conhecimentos com base na memória. Para ele, o mais importante é entender que o
trabalho cognitivo (para utilizar uma definição redutiva da atividade da memória) não
seria um trabalho do espírito como a tradição idealista o entende. Isso permite
importantes reflexões no âmbito dos direitos de propriedade intelectual e, mais
especificamente, do direito de autor. Diz Tarde (apud LAZZARATO, 2003) que, para
produzir conhecimentos, a memória necessita de instrumentos externos de natureza
diversa (como a linguagem, conceitos, livros, máquinas, etc.). Tarde (apud
LAZZARATO, 2003), então, indaga se, para descrever esse processo de “externalização
da memória”, seria possível utilizar a relação sujeito/objeto, que é própria das teorias
tradicionais do trabalho e que tem como característica descrever a produção como uma
“objetivação”, ou ainda, como uma “alienação” ou “reificação” do sujeito naquilo que
ele produz. E ele responde negativamente, argumentando que a memória tem justamente
a particularidade de poder se exteriorizar sem “se alienar”. Aquilo que se exterioriza em
uma escritura, por exemplo, não se perde da memória.
Portanto, a transmissão do conhecimento em nada empobrece aquele que o possui.
Ao contrário, sua difusão contribui para aumentar o valor do próprio conhecimento,
pois, de acordo com Tarde (apud LAZZARATO, 2003), as idéias são possuídas de um
modo diverso das riquezas que se fabricam. É por essa razão que se pode dizer que,
diferentemente das mercadorias, os conhecimentos não precisam ser propriedade
exclusiva de alguém para que sejam produzidos e trocados. Apenas a troca de bens
materiais pressupõe, para a satisfação de desejos, o “consumo destrutivo” dos produtos
132
trocados. No caso dos bens imateriais, o consumo não é destrutivo, mas criador de
outros conhecimentos. Dessa forma, consumo e produção coincidem na criação de
conhecimentos.
Para um melhor entendimento da diferença entre “produtos materiais” e “produtos
imateriais”, sob o ponto de vista econômico, Tarde (apud LAZZARATO, 2003) sugere
o exame da produção de livros, enquanto paradigma da produção de conhecimentos.
Segundo Tarde (apud LAZZARATO, 2003), no livro, encontramos o conhecimento e a
riqueza, ou ainda, o que ele chama de “valor-venal” e “valor-verdade”, que estão, ao
mesmo tempo, misturados e distintos. Para ele, “colocar os livros entre as riquezas é
confundir o que está ligado à inteligência com o que está ligado à necessidade ou à
vontade”. Portanto, o valor de um livro é ambíguo, pelo fato de possuir um “valorvenal” – na medida em que é tangível, apropriável, cambiável, consumível – e um
“valor verdade” – que é intangível, inapropriável, não-cambiável, inconsumível. O
conhecimento seria, assim, um bem coletivo e indivisível. Somente os bens materiais
implicariam, necessariamente, a apropriação individual e exclusiva, pois, como são
produtos “divisíveis”, eles são “bens rivais”, isto é, só podem ser de alguém ou de
outrem, razão pela qual as tentativas de colocá-los em comum fracassam diante da
natureza do seu objeto.
Tarde (apud LAZZARATO, 2003) conclui, dizendo que a dupla natureza do livro
nos mostra a atuação de duas lógicas diferentes que, no correr do “progresso” de uma
civilização, tendem a se opor como duas realidades contraditórias, que exigem
diferentes modos de regulação e de direitos de propriedade. Entretanto, diz ele, essa
diferença pode ser anulada pelo monopólio conferido pelos direitos de propriedade
intelectual. Apesar de os conhecimentos poderem ser redutíveis a mercadorias e
apropriados por direitos de propriedade intelectual, há sempre uma diferença ontológica
entre a apropriação das mercadorias e a apropriação dos conhecimentos. E, de acordo
com Lazzarato (2003), essa fronteira vai se ampliando, na medida em que a cooperação
e os públicos que participam de sua produção também se ampliam.
Portanto, haveria que se pensar em direitos intelectuais, que levassem em conta
essas especificidades do conhecimento, especialmente o fato de ele ser intangível,
inapropriável, não-cambiável e inconsumível. E, mais do que isso, também de a relação
econômica, hoje, ser definida mais pelo acesso a um serviço do que, propriamente, pela
alienação de propriedades (LAZZARATO, 2003). Segundo Rifkin (2001), propriedade
e mercado foram sinônimos durante toda a Idade Moderna. No entanto, Rifkin (2001)
133
explica que os mercados estão cedendo lugar às redes, assim como a noção de
propriedade está sendo rapidamente substituída pela de acesso, o que não significa que a
propriedade irá desaparecer; ela continuará a existir, mas com uma probabilidade bem
menor de ser trocada em mercados. Ao invés de trocarem mercadorias, os fornecedores
agora fazem leasing, alugam ou cobram uma taxa pela admissão, pela assinatura ou pela
associação. Rifkin (2001, p. 3 e 4) conclui que “a troca de bens entre vendedores e
compradores – o aspecto mais importante do sistema de mercado moderno – dá lugar ao
acesso a curto prazo entre servidores e clientes que operam em rede”.
A teoria marxista da acumulação e da exploração é baseada na separação entre os
meios de produção e a força de trabalho. Uma vez operada tal separação, o processo de
trabalho coincide com o processo de valoração de bens (LAZZARATO, 2003).
Entretanto, em uma economia de “produção de conhecimentos por conhecimentos”, tal
separação deixa de existir, na medida em que a memória – como vimos – não se aliena
da mesma maneira que o trabalho. Portanto, o processo de trabalho não mais coincide
com o processo de valoração de bens. Nas palavras de Lazzarato (2003, p. 79 e 80):
“produção e valorização estão mais ou menos separadas, segundo os setores de
produção”. O exemplo trazido por esse autor para explicar tal separação é o do software
livre, no qual a valoração capitalista se faz sobre a venda de serviços de um produto
fabricado de forma cooperativa e livre. No software livre, os meios de produção (que
são os computadores pessoais e a Internet) não correspondem completamente à
definição marxista de “meios de produção”, nem aos direitos de propriedade que
garantem as condições de exploração do capitalismo industrial. Assim, o fato de ser
proprietário desses meios de produção (que são os computadores pessoais) e de se poder
cooperar na produção do software por meio de redes, afeta o planejamento da
racionalidade instrumental e da própria invenção, comandada pelo capitalismo.
Lazzarato (2003) indaga, então, sobre como se poderia “capturar” a produção de
invenções que “fogem por todos os lados”, mesmo no interior do trabalho assalariado,
pois, antes de tudo, foge do próprio cérebro dos homens. A análise das relações de
trabalho por meio dos contratos, segundo o autor, não capta o essencial dessa discussão.
Por outro lado, a moeda procura desesperadamente conhecimentos, para se valorizar.
Segundo Lazzarato (2003), a moeda, evidentemente, continua a se valorizar por meio do
trabalho. Mas, o problema é que a taxa de rentabilidade da atividade produtiva tende a
zero, enquanto a taxa de lucro da produção de conhecimentos depende, segundo ele, de
“sobressaltos intermitentes” do poder de invenção do capital humano.
134
Dessa forma, Lazzarato (2003) conclui que a moeda não mais representa a
potência do trabalho apenas pelo fato de pagar um salário, constatando-se, assim, seus
limites, diante da produção de conhecimentos e, em uma extensão ainda maior, da
impossibilidade (ou da crise) da submissão real do conhecimento ao capital.
Para renovar as práticas de submissão do conhecimento ao capital, a moeda pode
capturar as produções independentes, quando de sua circulação, com novas formas de
enclosure, que se manifestam por meio de novos direitos de propriedade intelectual, a
fim de tornar menos dramática a cisão entre produção e valorização (LAZZARATO,
2003). Entretanto, é preciso nos atentar para o fato de que tal cisão já se consumou, o
que vem trazendo importantes conseqüências no âmbito dos direitos de propriedade
intelectual.
Feitas essas observações a respeito do trabalho imaterial, da valoração de
conhecimentos e da função dos direitos de propriedade intelectual nesses processos,
passaremos a verificar de que maneira a informatização da produção e a imaterialidade
do trabalho, fundada na cooperação, transformam os processos de criação de obras
protegidas por direitos autorais, fazendo surgir novas formas de autoria.
3.
Processos Interativos de Criação
O trabalho imaterial, tendo por base as novas tecnologias da informação,
transforma a natureza das relações entre produção e recepção de informações e bens
culturais (WEISSBERG, 2003), ao permitir que o usuário participe ativamente do
processo de criação. Isso representa um passo além da idéia de que toda obra de arte
carrega um grau mínimo de abertura, já que pressupõe que um determinado leitor irá
interpretá-la subjetivamente no próprio ato de fruição4.
Com isso, as obras intelectuais em meios digitais podem levar a uma diluição da
autoria. Um dos aspectos desse conceito, diz respeito à possibilidade de confusão dos
tradicionais papéis de autor e leitor/usuário, que aumenta à medida que se eleva o grau
de interatividade de uma obra5.
Há diversas maneiras de o leitor/usuário intervir em uma obra em meios digitais.
Evidentemente, a mera navegação interativa não pode ser erigida ao grau de co-autoria.
Quanto ao re-arranjo da organização física de um texto, Weissberg (2003) entende que
isso apenas gera produções semânticas, se o dispositivo de re-arranjo se torna, ele
4
5
A esse respeito, ver ECO, 2005.
A esse respeito, ver CARBONI, 2003a, especialmente as p. 168-180.
135
mesmo, um componente essencial da obra. Entretanto, para esse autor, tal processo não
geraria uma co-autoria. Por essa razão, ele adota a palavra leitactura, para definir uma
zona intermediária entre a produção e a recepção de informações e bens culturais.
Na obra que permite uma boa dose de interatividade, faz-se necessário verificar se
o autor da obra primígena ainda aparece no resultado final da obra, após a interação. Ou
ainda, se a obra final mantém os traços da autoria ou se a interatividade com o usuário
ocorreu de forma tão absoluta que a autoria inicial acabou se diluindo de modo a não
mais deixar vestígios de sua existência. Como as obras digitais permitem diversos graus
de interatividade, devemos também analisar até que ponto um maior grau de
interatividade corresponderia a um menor grau de autoria e vice-versa (CARBONI,
2003a).
Para Weissberg (2003), na era da cibercultura, a figura do sujeito individual
assume uma importância tão marcante quanto na era da imprensa ou na obra
audiovisual. Isso porque o incremento informacional nas redes e o adensamento dos
vínculos possíveis tornariam estratégico o momento da síntese pessoal, ainda que tal
síntese se dê no âmbito de uma malha que associa programas e coletivos humanos.
Segundo Weissberg (2003), o alargamento dos créditos, especialmente em obras
audiovisuais e na multimídia, testemunha a permanência e, até mesmo, a acentuação da
preocupação com a nomeação do autor na sociedade informacional. Dessa forma,
Weissberg (2003) entende que organização coletiva e preocupação individual não se
opõem. Ao contrário, reforçam-se e condicionam-se mutuamente.
Tal posição reforça o nosso entendimento de que o direito de paternidade constitui
o núcleo essencial do direito moral de autor 6. Apesar da caracterização desse direito
como personalíssimo, há um evidente interesse da coletividade na identificação do
criador de uma obra – seja ela protegida ou não por direitos autorais, é importante
6
Já tivemos a oportunidade de nos manifestar contrariamente à exclusão do artigo 185 do Código Penal
pela Lei no 10.695/03, que dispunha:
“Art. 185. Atribuir falsamente a alguém, mediante o uso de nome, pseudônimo ou sinal por ele adotado
para designar seus trabalhos, a autoria de obra literária, científica ou artística:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa”.
A nosso ver, “se há um direito moral de autor que necessariamente deve ser preservado, inclusive com a
manutenção do tipo penal específico para incriminar a respectiva violação, é o direito de o autor ser
reconhecido como o criador de uma determinada obra. A preservação desse direito não mais tem como
fundamento apenas o interesse individual do autor, mas de toda a coletividade, de forma a garantir às
pessoas a correta informação acerca da procedência das obras intelectuais disponibilizadas. Dessa forma,
não vemos razão para a Lei 10.695/03 ter suprimido o artigo 185 do Código Penal. Na verdade, a criação
de uma tipificação criminal com pena específica para a falsa atribuição de autoria, na redação anterior do
Código Penal, justificava-se pelo valor relevante que esse direito moral de autor representa para a nossa
sociedade”. (CARBONI, 2003b, p. 1).
136
ressaltar –, pois isso traz maior segurança e transparência quanto à sua procedência,
além de contribuir para a formação de um espaço público democrático, salvo se o autor
optou por manter-se no anonimato, o que lhe é permitido pelo artigo 5º, inciso VIII,
letra “b”, da Lei 9.610/98.
4.
Meta-Autoria
A crescente intermediação de atividades humanas pelas novas tecnologias também
vem acontecendo no campo das artes, como é o caso do programa de computador
denominado AARON, desenvolvido em 1968, em San Diego, Califórnia, pelo então
pintor abstracionista britânico, Harold Cohen. Examinemos esse caso de forma mais
aprofundada.
O programa AARON é capaz de executar pinturas com total autonomia, cabendo
ao usuário, apenas e tão somente, decidir sobre o seu tempo de duração. Dessa forma, as
pinturas são feitas espontaneamente pelo programa AARON, por meio de uma mão
protética, sem que se recorra a uma base de dados previamente criada por seu
idealizador e sem qualquer interferência humana. Em outras palavras, o programa
dispensa seu idealizador, criando seus próprios desenhos e pinturas, como se fosse um
aluno que aprendeu bem sua lição (SILVA, 2008). De certa forma, AARON comportase como um animal com relação ao meio ambiente: o programa reage a um ambiente
artificialmente criado por meio de simulações por Cohen.
Inicialmente, o programa AARON produzia imagens rudimentares. Porém, com o
passar do tempo, as imagens foram ganhando cor e se sofisticando. As imagens criadas
por AARON não se repetem e a capacidade de criá-las, bem como o tempo despendido,
vêm aumentando continuamente. Hoje, é possível criar imagens com AARON a partir
de qualquer parte do planeta, por meio da Internet, pois Cohen desenvolveu parceria
com o cientista Raymond Kurzweil, que é pioneiro em sistemas de inteligência
artificial7.
Com esse desempenho, o programa AARON consegue desafiar nosso
entendimento, pois, ao produzir arte em larga escala, causa-nos um incrível efeito
psicológico decorrente do fato de as imagens produzidas serem autênticas, o que é uma
prerrogativa essencial da arte tradicional. Embora as pinturas venham de um
7
Disponível em <http://www.kurzweilcyberart.com/>.
137
computador, elas impressionam o público e o convidam a uma profunda reflexão
estética, pois se trata de uma celebração performática híbrida entre homem e máquina
(SILVA, 2008).
O programa AARON é um sistema de inteligência artificial 8 e não de computação
gráfica. Também não tem qualquer relação com a representação da imagem, como a
fotografia. De fato, enquanto na fotografia analógica, o orifício de uma câmera escura
captura raios refletidos nos objetos de forma invertida e os registra em uma superfície
sensível, na inteligência artificial os algoritmos calculam o que fazer a partir de um
determinado problema. Os cálculos são, assim, elaborados, apresentando novas
possibilidades de respostas que, no caso do AARON, aparecem por meio de novas
imagens.
Dessa forma, enquanto a computação gráfica está preocupada em impressionar a
retina, o programa AARON se preocupa com a psicologia da percepção humana e com
o que se passa na cabeça do artista (SILVA, 2008). De acordo com McCorduck (1990,
p. xi e xii), “as imagens criadas pelo programa de computador de Cohen, chamado
AARON, são as marcas não só do que é visto, porém, mais importante que isso, do que
é conhecido. Elas não são apenas imagens fotográficas, superfícies que atingem o olho;
elas são imagens que incorporam algo do conhecimento que seu criador tem sobre os
objetos; menos óbvio, mas igualmente essencial, as imagens de AARON também
incorporam um tipo diverso de conhecimento: de como fazer representações plausíveis
de tais objetos”. Nas conversas de Cohen com McCorduck, ele dizia que considerava
“uma obra de arte como um sistema gerador de significados e não um comunicador de
significados” (McCORDUCK, 1990, p. xiv). E é isso que o programa AARON
realmente é: um sistema capaz de gerar significados inusitados, que nos reporta ao que
se passa na cabeça de seu criador (SILVA, 2008).
Para que o sistema AARON possa produzir as pinturas, ele precisa tomar decisões
a partir do que já conhece. Portanto, Cohen alimentou o programa com as características
essenciais das imagens. Por exemplo: a figura humana é constituída de cabeça, tronco e
membros, duas pernas, dois braços à direita e à esquerda, ombros direito e esquerdo e,
assim, sucessivamente. Dentro desse padrão, são criadas as imagens a partir de regras
lógicas. No entanto, a complexidade vem do movimento, pois, a cada rotação de um
8
Whitby (2004, p. 19) define inteligência artificial da seguinte forma: “Inteligência Artificial (IA) é o
estudo do comportamento inteligente (em homens, animais e máquinas) e a tentativa de encontrar formas
pelas quais esse comportamento possa ser transformado em qualquer tipo de artefato por meio da
engenharia”.
138
membro, por exemplo, a seqüência do processamento será diferente e, como resultado
dessas pequenas alterações no posicionamento, será gerada uma nova imagem. É por
essa razão que o programa AARON é autônomo. Ele pode fazer as suas próprias
escolhas a partir do seu conhecimento básico, programado por Cohen (SILVA, 2008).
As pinturas realizadas por AARON são dotadas de originalidade, pois têm a sua
aura preservada pelo fato de serem únicas e de não se repetirem, exteriorizando, assim,
a personalidade de Cohen. Além disso, o programa tem seu próprio estilo de pintura,
que não deixa de nos remeter ao estilo de seu criador.
McCorduck (1990) chama essa situação de “meta-autoria”. Nela, o meta-autor
cria um sistema ou processo gerador de significados e não uma obra específica. Lévy
(1999) utiliza a expressão “engenheiro de mundos” para fazer referência ao artista do
século XXI. Diz Lévy (1999, p. 145): “O engenheiro de mundos surge, então, como o
grande artista do século XXI. Ele provê as virtualidades, arquiteta os espaços de
comunicação, organiza os equipamentos coletivos da cognição e da memória, estrutura
a interação sensório-motora com o universo dos dados”.
Na media art, um novo elemento se interpõe entre o artista e o público, como diz
Barbosa (1996, p. 110): “a obra deixa assim de se apresentar como imediata em relação
ao criador. Este fornece a idéia geradora (ou o algoritmo de criação) ao computador, o
qual, mediante uma cadeia de tratamentos operacionais e semióticos, a desenvolve e
executa, fornecendo finalmente a obra (ou os múltiplos da obra) à fruição do leitor.
Sucede então que a relação artística, que era uma relação comunicativa directa entre um
autor e um receptor, apenas mediada pela obra, passa a ser uma relação comunicativa
indireta onde o mecanismo cibernético se interpõe, interceptando o circuito emissorreceptor”.
Portanto, se, antes, a fruição de uma obra qualquer era intermediada por uma
máquina fechada (com base no seguinte esquema: emissor/autor → máquina fechada →
receptor/fruidor), hoje, essa relação é intermediada por uma máquina aberta, que cria
obras por meio de tratamentos operacionais e semióticos sobre idéias fornecidas pelo
emissor/autor (no esquema: emissor/autor → idéia → máquina aberta, ativa → obra →
receptor/fruidor).
É evidente que a constante transformação dos meios de comunicação traz consigo
a necessidade de novos paradigmas para a criação intelectual. Nessa dinâmica, aparece
uma nova forma de expressão criativa: o design de mídia como linguagem artística.
Seguindo essa tendência, alguns autores, escritores e artistas, além de criar novos
139
conteúdos, também têm atuado como designers de sistemas de mídia, abandonando suas
tradicionais funções de produtores individuais de textos, imagens e sons. Esses “metaartistas” vêm alargando o espectro criativo, reinventando formas de interação entre seres
humanos e sistemas de inteligência artificial e investigando processos de co-autoria.
Isso indica que o autor ou artista que aparece na era digital pode vir a tornar-se um
programador, um designer, ou ainda, um arquiteto de sistemas e processos de mídia
(MATUCK, 2007).
Essa nova concepção do fenômeno da criação artística afeta a noção de autoria.
De acordo como Lévy (1999, p. 153), “a figura do autor emerge de uma ecologia das
mídias e de uma configuração econômica, jurídica e social bem particular. Não é,
portanto, surpreendente que possa passar para segundo plano quando o sistema das
comunicações e das relações sociais se transformar, desestabilizando o terreno cultural
que viu crescer sua importância. Mas talvez nada disso seja tão grave, visto que a
proeminência do autor não condiciona nem o alastramento da cultura nem a criatividade
artística”.
No caso de AARON, Cohen assume a autoria do programa, mas não das imagens
por ele produzidas. Entretanto, o programa não seria capaz de criar uma estética própria,
independente do esquema estabelecido por Cohen. A concepção do artista humano está
implícita na imagem que AARON produz: o estilo, as cores, o desenho. Enfim, toda
imagem obedece a padrões previstos na programação escrita por Cohen (SILVA, 2008).
Então, cabe questionar se ele não poderia ser considerado co-autor das imagens, pois,
apesar de atuar com autonomia, o programa AARON cria sobre regras e estilos por ele
determinados previamente.
Surge, então, o problema envolvendo a titularidade dos direitos autorais sobre as
imagens criadas por AARON. De acordo com os tratados internacionais e a legislação
que rege a matéria, idéias abstratas e estilos artísticos não são protegidos por direitos
autorais; apenas a expressão das idéias e estilos é que poderiam ser objeto da proteção
autoral.
Dessa forma, apesar de Cohen ser detentor dos direitos autorais sobre o programa
AARON, não seria ele titular dos direitos autorais sobre as imagens geradas, apesar de
AARON, no processo de criação, obedecer a padrões e regras pré-definidas por Cohen.
Se considerarmos que, na arte conceitual, a ênfase recai sobre a idéia e não sobre
o produto final e se nos atentarmos para o fato de que, por mais autônomo que seja um
programa voltado para a criação de arte, ele se embasará em estilos fornecidos por um
140
ser humano, cabe indagar até que ponto o meta-artista que criou o programa também
não deveria ser considerado um co-autor do produto final. Essa questão ganha
relevância se considerarmos os diferentes graus de recombinações aleatórias
proporcionados pelo programa. Assim, faria certo sentido considerar o criador de um
programa que oferece poucas possibilidades de recombinações aleatórias (todas elas
“fechadas”) como um “quase” co-autor do produto gerado pelo sistema. Nessa mesma
linha de raciocínio, criadores de sistemas com amplas possibilidades de recombinação
aleatória seriam “menos autores” dos produtos finais, por terem controles mais
reduzidos sobre o processo de criação.
O direito autoral ainda não oferece respostas seguras a tais questões. Hoje,
considera-se que a obra criada por um sistema ou programa de computador não é
passível de proteção por direitos autorais. Isso porque, somente são protegidas as obras
criadas diretamente por seres humanos. Como as obras produzidas por sistemas
computacionais, inteligência artificial e programas de computador não são passíveis de
proteção por direitos autorais, elas poderiam ser utilizadas livremente por qualquer
pessoa.
Porém, com a crescente participação de sistemas computacionais autônomos em
processos de criação intelectual e artística, temos que nos preparar para discutir a
questão da titularidade de direitos autorais nas diferentes situações envolvendo metaautoria.
5.
Criação Colaborativa
O trabalho imaterial é imediatamente colaborativo, uma vez que as novas
tecnologias favorecem a inter-subjetividade e a colaboração por meio de redes,
independentemente de uma organização externa. Tal fenômeno propicia mudanças
significativas nas estruturas individualistas ou corporativas voltadas para a produção e
difusão de obras intelectuais (ALMEIDA, G., 2007). Nesse sentido, é notável o
surgimento de um novo modelo produtivo, batizado por Benkler (2002) de “commonsbased peer production”, fundado em mecanismos de participação colaborativa.
A ampliação do alcance da população a ferramentas criativas, em decorrência do
seu barateamento, aliada à crescente utilização da Internet para a distribuição de
conteúdo, tornam ultrapassadas as estruturas hierárquicas de difusão de informações de
“um para muitos” (“one-to-many”), fazendo surgir novos modelos, nos quais, a origem
141
das informações passa a ser descentralizada (“many-to-many”). Sites como o Youtube
(que permite o compartilhamento de vídeos criados por seus usuários), Flickr (portal
para hospedagem e exibição de fotos produzidas por seus usuários), dentre outros, são
exemplos significativos dessa mudança. Evidentemente, esse processo não ocorre pela
simples substituição de um modelo pelo outro. Como nos processos evolutivos, tais
modelos coexistem (ALMEIDA, G., 2007).
Todos esses fatos favorecem a ampliação das possibilidades da participação
colaborativa no processo criativo. Destaque-se, ainda, o surgimento de uma miríade de
movimentos e grupos, chamados “coletivos”, que são formados por diversas pessoas
com o objetivo de produzir colaborativamente a partir da contribuição intelectual de
cada um de seus membros.
De acordo com Almeida (G., 2007, p. 37 e 38), “muitos dos coletivos formados
são apenas virtualmente estruturados, levantando como bandeira a livre utilização de
obras intelectuais de terceiros para a criação e recombinação de novas obras a partir de
outras já preexistentes. Vários não possuem sequer identidade visual, estruturação
jurídica e muito menos noções ou preocupações com conceitos, definições ou
mecanismos legais de proteção ao direito de autor. Ainda, há coletivos que preferem
renunciar aos aspectos morais e patrimoniais da proteção autoral, optando por tentar
enquadrar suas criações no âmbito do domínio público, a despeito da ausência de
expressa previsão legal autorizadora. Buscam produzir novas obras pela criação e
recriação de obras intelectuais e têm como fundamento a liberdade total na utilização de
suas criações como forma de garantir a circulação e acesso a tais obras por parte da
sociedade”.
Dessa forma, diz ele, “a possibilidade real de produção descentralizada
demonstrada pelos diversos coletivos de criação colaborativa levanta novas questões
relacionadas ao conceito de autoria e aos conceitos de proteção autoral estabelecidos
pelas legislações vigentes, gerando discussões sobre quem pode ser considerado autor
de uma obra intelectual criada e recriada a partir de diversas outras obras e por um
número muitas vezes não identificado de colaboradores. De forma semelhante, também
passa a ser objeto de questionamento em que medida a regulamentação atual sobre
direitos autorais (originalmente pensada a partir da ótica do produtor individual ou da
empresa exploradora do mercado autoral) atende de forma eficaz e justa a essas novas
formas de produção e distribuição” (ALMEIDA, G., 2007, p. 37 e 38).
142
No relatório elaborado, sob nossa coordenação, pelo Instituto de Direito do
Comércio Internacional e Desenvolvimento (IDCID) e apresentado ao Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e à Secretaria de Assuntos
Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ) sob o título “Direitos Autorais e
Internet: Propostas Legislativas para Fomentar o Desenvolvimento e o Acesso ao
Conhecimento”9, tivemos a oportunidade de destacar alguns desafios a serem
enfrentados pelo sistema de direitos autorais, no que diz respeito às obras colaborativas.
A seguir, faremos algumas considerações a respeito desses desafios, com base no citado
relatório.
A nossa legislação autoral prevê dois institutos jurídicos que contemplam a
criação pluri-individual: (a) a co-autoria; e (b) a obra coletiva. Por obra em co-autoria,
entende-se aquela que é criada em comum por dois ou mais autores ou mais pessoas 10.
Já a obra coletiva corresponde àquela criada por iniciativa, organização e
responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca
e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se
fundem numa criação autônoma11.
O marco legal existente não contempla, de forma adequada, as novas formas de
produção colaborativa. Em primeiro lugar, porque existe uma lacuna quanto a essa
forma de organização do trabalho criativo. O modelo jurídico de co-autoria pressupõe o
equilíbrio hierárquico entre os indivíduos criadores – os co-autores. A eles é dada a
prerrogativa de exercerem de comum acordo os direitos relativos à criação, ressalvada a
possibilidade de convenção – necessariamente contratual – em sentido contrário. A Lei
9.610/98 prevê mecanismos de solução de conflitos (como a possibilidade de decisão
por maioria, no caso de divergência entre co-autores de obra indivisível quanto à sua
exploração comercial), os quais, no entanto, mostram-se insuficientes no que diz
respeito à atuação conjunta de um grande número de indivíduos.
Por sua vez, para que se configure uma obra coletiva, é preciso haver uma pessoa
atuando, de forma centralizada, como organizadora da obra – por ela respondendo, e
dela sendo o titular patrimonial. Em outras palavras: na obra coletiva, constrói-se
juridicamente uma clara hierarquização entre o “organizador” (que exercita um papel de
coordenação e resulta como titular de direitos patrimoniais sobre a obra final) e os
9
Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Resumo_GuilhermeCarboni_Rev90.htm>.
10
Cf. artigo 5º, inciso VIII, letra “a”, da Lei 9.610/98.
11
Cf. artigo 5º, inciso VIII, letra “h”, da Lei 9.610/98.
em
143
autores (aos quais é resguardada a proteção sobre suas criações individuais e dada a
possibilidade de explorar comercialmente suas criações, salvo disposição contratual
limitadora). Um dos possíveis elementos característicos da obra colaborativa consiste
justamente na coletivização da figura do “organizador”. A possibilidade de que qualquer
indivíduo participante ajude a definir os rumos, de maneira significativa – ou seja, a
erosão da figura do organizador, em detrimento de uma organização também coletiva –,
não encontra guarida em nosso marco regulatório atual. Essa ausência normativa
ocasiona incertezas relativas à exploração – comercial ou não – de obras produzidas sob
esse novo modelo organizacional.
Outra questão importante diz respeito a uma adequada regulamentação do
conceito de domínio público, para que os diversos autores da obra colaborativa possam
ter a opção de, se assim o desejarem, renunciar a seus direitos autorais. Pela lei
brasileira, apenas encontram-se em domínio público, as obras cujo prazo de proteção ao
direito patrimonial tenha expirado12; aquelas de autores falecidos que não tenham
deixado sucessores13; e as de autor desconhecido (neste caso, ressalvada a proteção
legal, ainda não plenamente regulada, aos conhecimentos étnicos e tradicionais) 14. Não
há impedimentos legais, internacionais ou nacionais, para que se insira na legislação
nacional, previsão específica, permitindo aos autores dedicar suas obras ao domínio
público. Embora essa possibilidade possa ser deduzida de outros textos legais, a
possibilidade de interpretações contrárias atrapalha, pela incerteza gerada, a efetivação
de tais mecanismos. Assim, a inserção de expressa previsão legal nesse sentido poderia
ajudar a consolidar a ampliação da esfera de obras em domínio público, incluindo as
obras colaborativas, ajudando na consecução dos objetivos propostos pela Agenda para
o Desenvolvimento, proposta por Brasil e Argentina no âmbito da Organização Mundial
da Propriedade Intelectual (OMPI)15.
Outro potencial impasse decorre da lógica intrínseca dos direitos morais de autor.
Pelo regramento atual, aos autores é dado um grande poder discricionário relativo à
publicação, modificação e exploração da obra por parte de terceiros. Assim, é
resguardada aos criadores, a possibilidade de se oporem a determinadas alterações ou
12
Cf. artigo 45, caput, da Lei 9.610/98.
Cf. artigo 45, inciso I, da Lei 9.610/98.
14
Cf. artigo 45, inciso II, da Lei 9.610/98.
15
O artigo 16 da proposta dispõe o seguinte:
“16. Considerar a preservação do domínio público dentro dos processos normativos da OMPI e
aprofundar análises sobre as implicações e benefícios de um domínio público rico e acessível”.
(Documento
OMPI
A/43/13,
disponível
em
<http://www.wipo.int/edocs/mdocs/govbody/en/a_43/a_43_13_rev.doc>).
13
144
formas de exploração, por critérios exclusivamente pessoais. Essas possibilidades, se
exercidas no âmbito de projetos criativos contendo dezenas, quiçá centenas ou milhares
de pessoas, pode gerar empecilhos que colocam em xeque as próprias vantagens
competitivas dessas novas modalidades produtivas e a real aplicabilidade da norma
jurídica em situações de criação colaborativa.
Para tanto, há que se repensar o embasamento legal e filosófico dos direitos
morais, para que os diversos autores no âmbito da obra colaborativa possam, não apenas
permitir a alteração de suas parcelas criativas, mas também, quando assim o desejarem,
que seus nomes sejam desvinculados da obra, em prol de um nome ou marca “coletiva”.
Esse parâmetro legislativo, a nosso ver, contemplaria a necessidade de
reconhecimento da autoria, associando indivíduos, programas e coletivos humanos.
Considerações Finais
A crescente utilização de novas tecnologias da informação no âmbito de um
trabalho que se torna, cada vez mais, imaterial, faz com que tenhamos que reavaliar a
função dos direitos de propriedade intelectual, como instrumento de apropriação de
informações e conhecimentos.
No caso do direito de autor, essa reavaliação também passa pelo seu componente
de natureza moral, que se vê abalado pelas novas formas de autoria propiciadas pelas
tecnologias da informação. O desafio que se apresenta é o de buscar uma forma de
regulamentação dos direitos morais de autor que, ao mesmo tempo, preserve o direito de
paternidade e permita ao autor determinadas flexibilidades, especialmente no âmbito
das novas formas de autoria.
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das modalidades de produção colaborativa de conteúdo. In: Direitos Autorais e Internet:
Propostas Legislativas para Fomentar o Desenvolvimento e o Acesso ao Conhecimento,
apresentado pelo Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento
(IDCID) ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e à
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ) em dezembro de
2007, no âmbito do Projeto BRA/07/004 – Democratização de Informações no Processo
145
de Elaboração Normativa – “Projeto Pensando o Direito” (coordenado por Guilherme
Carboni), p. 33. O artigo contendo o resumo desse relatório está disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Resumo_GuilhermeCarboni_Rev
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CAPÍTULO 8.
O DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À INTERNET PELOS
USUÁRIOS COM DEFICIÊNCIA: MARCO CIVIL DA INTERNET
Flávia Piva Almeida Leite

Doutora em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica – PUC – São Paulo/SP, Mestre
em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru /SP, Pós graduada em Gerente
de Cidades pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP – São Paulo – SP. Membro da Comissão
147
Introdução
A Humanidade sempre conviveu com a existência de pessoas com limitações de
toda a natureza, nem sempre as tratando de forma adequada. A preocupação da
sociedade para com as pessoas que ostentam alguma forma deficiência não vem de hoje.
Mas, sem dúvida, não deixa de ser relativamente recente a melhor conscientização
social e jurídica do problema que enfrentam essas pessoas.
Após a II Grande Guerra Mundial, começa haver uma conscientização da
sociedade, principalmente, com relação às pessoas com deficiência, ocasionando uma
mudança de postura. Tanto que, a Organização das Nações Unidas (ONU) esboça uma
sensibilização e uma conscientização positiva para a reabilitação não apenas de
militares, mas também, para as vítimas civis que retornavam doentes ou mutiladas dos
conflitos da guerra.
Com essa atitude, a questão da inclusão das minorias étnicas, culturais, de
gênero toma relevo e passa a ser reconhecida em documentos nacionais e internacionais.
Esse novo paradigma social traz como princípios a celebração da valorização da
diversidade humana, solidariedade humanitária, igual importância a esses grupos
vulneráveis e cidadania com qualidade de vida.
Dentro dessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova
fisionomia ao Estado brasileiro, vez que não somente o consagrou democrático, mas
também, ressaltou o seu caráter essencialmente social, ao fundá-lo em valores como a
dignidade humana e a cidadania, que repercutem sobre o ordenamento como um todo e
ao mesmo tempo serve de norte para toda e qualquer iniciativa privada e pública.
Ademais, o Brasil, na busca pela implementação dos direitos das pessoas com
deficiência, e no nosso trabalho, o direito à acessibilidade, não só ao meio físico, mas
também aos meios de comunicação e novas tecnologias, assina no dia 30 de março de
2007, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da OAB/SP. Avaliadora do CONPEDI.
Professora do Mestrado de Direito da Sociedade da Informação da FMU, advogada e palestrante .
148
Facultativo, promulgados pela Organização das Nações Unidas. Sua eficácia foi
reconhecida em âmbito nacional com a edição do Decreto-legislativo 18608.
Também para concretizar os direitos das pessoas com deficiência, é aprovado
aqui no Brasil a Lei nº 13.146, de 02 de julho de 2015 que Institui a Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que em seu
Título III, assegura o direito à acessibilidade aos meios de informação e comunicação,
inclusive de sistemas e tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços.
Combinando com as supra citadas disposições constitucionais e legais, e demais
normas de acessibilidade em vigor no Brasil, o advento da Lei nº 12.965 de 2014
(Marco Civil da Internet), vai ao encontro do direito ao acesso a internet para todos seus
usuários estabelecendo direitos, garantias, direitos e deveres para o uso da internet por
todos, garantindo a acessibilidade aos meios de comunicação e as novas tecnologias da
informática.
Porém, para que haja uma sociedade verdadeiramente democrática, isto é, aquela
que concretize o direito de todos e não apenas da maioria, temos que concretizar com
eficiência a tal almejada inclusão social. Não é uma tarefa fácil entender o seu real
significado, pois um de seus princípios, segundo preceitua SASSAKI (1999, p.50) é a
rejeição zero, também conhecida como exclusão zero. Isto quer dizer que, ou se adere
totalmente aos seus princípios, ou não se fala em inclusão.
Portanto, é imprescindível analisar, ainda que de forma sucinta, os obstáculos
enfrentados pela pessoa com deficiência ao longo dos tempos, de forma a compreender
o significado da inclusão social, pois a sociedade, em todas as suas culturas, atravessou
diversas fases no que se refere às práticas sociais. Passou da exclusão social das pessoas
com deficiência, depois desenvolveu o atendimento especializado segregado dentro de
instituições, levando a prática da integração social e, recentemente, na luta pela sua
inclusão social. Inclusão essa que deverá contemplar o direito ao acesso a internet pelas
pessoas com deficiência.
1. Retrato da pessoa com deficiência ao longo dos tempos: da exclusão à inclusão
social
Uma das formas de exclusão enfrentada pelas pessoas com deficiência foi sua
supressão completa da comunidade, através do seu banimento ou de sua eliminação.
149
Na Idade Antiga, época em que tinha como objetivo principal a conquista
territorial, homens fisicamente perfeitos eram necessários para fazer parte de seus
exércitos. Em Atenas, era prática os homens exortarem seus corpos nus e, o ato de
exibir-se simbolizava com freqüência um povo autoconfiante e totalmente à vontade.
Tanto que, para Péricles, a “cidade, em grego – polis, significava o espaço onde as
pessoas alcançavam a mais alta expressão da unidade. Era muito mais, portanto, que um
simples ponto no mapa”. (SENNETT, 2008. pp., 44-45).
Se as crianças apresentassem alguma deformidade eram eliminadas ou
recolhidas em suas casas como se tivessem uma doença contagiosa. Inúmeras leis
autorizaram que as crianças imperfeitas não tivessem direito algum, nem direito de
permanecerem vivas. Para o povo espartano, as crianças pertenciam ao Estado, e suas
vidas eram decididas pelo conselho de anciãos da cidade. Se nascessem com
deformidade ou fracas eram atiradas do Monte Taigeto, pois a falta de robustez não
poderia ser transmitida a outras gerações.
Essa insistência em mostrar, exibir e revelar marcou a forma mais completa de
exclusão, a mais antiética e inaceitável sob qualquer ponto de vista.
Essa concepção foi tão profunda que, não só influenciou a sociedade, como
também, influenciou na construção das cidades da Antiguidade.
Segundo relata SENNETT (2008, p. 94), em sua obra o “A carne e a pedra”,
ginásios foram construídos nessa época para que os jovens aprendessem a se comportar
desnudos. O ginásio modelava o corpo dos rapazes na última etapa da adolescência,
pois um rapaz forte, obviamente, tornava-se um bom guerreiro. Nesse mesmo local, os
moços também se adestravam no uso das palavras; uma voz educada garantia sua
participação nos negócios públicos. Enfim, o ginásio era o local onde jovens perfeitos e
belos aprendiam a usar o corpo de forma que pudessem desejar e serem desejados de
maneira honrosa. Mais adiante, o mesmo autor, retrata que os Atenienses idolatravam
tanto o corpo que fizeram uma analogia direta entre ele e suas construções: “não que
eles erguessem prédios no formato humano com cabeças ou dedos, mais do que isso,
valiam-se do seu entendimento fisiológico para criar formas urbanas”. “É evidente que
o projeto arquitetônico baseava-se na ação aprendida no ginásio, segundo a qual o corpo
de um rapaz poderia ser modelado de modo artístico, a fisiologia equipando sua
matéria-prima”. (SENNETT, 2008. p. 95).
Assim, a influência do corpo humano belo e perfeito tornou-se evidente na
forma urbana dessa época.
150
Em Roma, a imagem obsessiva do corpo ideal também teve seu lugar e tempo
na exclusão das pessoas com deficiência na sociedade, bem como na construção do
espaço urbano. “O imperador precisava que seu poder fosse evidenciado em
monumentos e obras públicas. O governo não existia sem a pedra.” (SENNETT,
2008, p. 93). Os romanos partiram do imaginário que utilizou o arquiteto Vitrúvio2,
planejaram cidades com base nas regras da correspondência bilateral e privilegiando
a percepção visual linear. Assim, seus espaços da cidade eram organizados de forma
clara e precisa. A simetria do corpo foi utilizada nas construções de suas cidades.
“Sua crença fundamenta-se na escala do corpo humano, com base na qual o arquiteto
devia modelar o prédio a ser construído. E mais, a geometria humana seria um
indício de como a cidade deveria ser”. (SENNETT, 2008. p.113).
Essa corrente que utiliza a escala humana ideal como medida de referência num
projeto arquitetônico, é seguida como norma até hoje. Daí, ambientes construídos pelo
ser humano e para o ser humano que tem por dogma refletir a regularidade idealizada
desse corpo.
Diante dessa imagem idealizada, as pessoas com deficiência foram excluídas
dessas sociedades, de seus ambientes e, conseqüentemente de suas cidades, que foram
sendo construídas e projetadas sem considerá-las.
Na Idade Média, com o advento e o fortalecimento do Cristianismo, um grande
impulso foi dado às diversas formas de assistência aos necessitados. Durante esse
período, bispos e alguns senhores feudais, responsáveis pela vida e bem-estar de seus
súditos, sentiram-se obrigados a cuidar dos deficientes físicos e mentais, bem como dos
menos afortunados.
Mesmo com esses avanços, quando um homem fosse declarado leproso3 era
2
Marcus Vitruvius Pollio, ou Vitrúvio, segundo anota Silvana Serafino Cambiaghi, em sua obra Desenho
Universal – métodos e técnicas para arquitetos e engenheiro, p. 39, viveu no século I a C. O engenheiro
romano apresenta em sua obra De Architectura, um modelo ideal para o ser humano, segundo
determinado raciocínio matemático e baseando-se, em parte, na divina proporção. Na descrição feita pelo
arquiteto, as diferentes partes do corpo formam um conjunto harmonioso de proporções. A arquitetura
deveria seguir a mesma concepção, isto é, considerar a proporcionalidade entre as partes para completar o
todo harmoniosamente. Os seus padrões serviram de fonte inspiradora a diversos textos sobre construção
e arquitetura.
3
Segundo nos relata Otto Marques, em sua obra Epopéia Ignorada: na Idade Média quando um homem
era declarado “leproso” (a lepra, hoje mundialmente conhecida como hanseníase, sempre causou muitas
mutilações e outros tipos de deficiência), tinha apenas um destino: “banimento da sociedade e do
convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim a sociedade armava-se de certas cautelas,
sendo uma delas o estabelecimento de uma comissão responsável pelo reconhecimento do mal. Nessa
comissão estavam obrigatoriamente incluídos um médico e um hanseniano. Se o resultado do exame do
doente suspeito de “lepra” fosse positivo, rezava-se uma missa de Réquiem sobre o doente, o que
151
imediatamente banido da sociedade e do convívio social. Essa forma de exclusão
consistiu na construção de espaços fechados e isolados dentro dessa mesma
comunidade. As pessoas com deficiência ou eram excluídas do convívio social, ou
ficavam reunidas em instituições com caráter de tratamento ou acolhimento
institucional, pois os problemas específicos das pessoas com deficiência ainda não eram
nem entendidos nem atendidos com propriedade. “Aqui impera a idéia de separar o
diferente, colocá-lo em um espaço próprio, de tal modo que a sociedade se sinta
protegida do contato com essas categorias de pessoas, geralmente consideradas
indesejadas.” (BARTALOTTI, 2006. p. 14).
Com o Renascimento inicia-se uma época em que a humanidade fica mais
esclarecida. Nesse novo movimento, muito renovador, surgem os primeiros direitos dos
homens postos à margem da sociedade. Ocorrem passos decisivos na medicina,
estabelece-se uma nova filosofia humanista, que passa a ser mais voltada para o homem.
Esse novo modo de ser tentará alterar a vida das pessoas com deficiência; porém, a
exclusão se estenderá e perdurará, com o advento da Revolução Industrial. Nessa época,
o homem assume uma concepção de “máquina”, fadado a um modelo de racionalização
e de produtividade. Aqueles que não apresentassem uma melhor performance exigida
pelo sistema eram tidos como uma “máquina-defeituosa”, sendo plenamente
descartáveis e esquecidos em instituições projetadas para que essas pessoas vivessem,
sendo cuidadas de maneira especial.
No fim do século XIX, outra concepção surge para confirmar a idéia do homem
forte e perfeito, desta vez, na área científica. Cientistas começaram a interpretar as
teorias de Darwin sobre a evolução e seleção natural para seus próprios fins, e passam a
idealizar o aprimoramento das raças com estudos de métodos eugênicos, propondo tipos
de criaturas sadias e belas. Para esse pensamento, as pessoas com deficiência viriam a
enfraquecer a raça e a comprometer a competitividade do povo. As pessoas eram
correspondia a um sepultamento simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho o
sacerdote, acompanhado de um acólito que tocava uma matraca, dava orientações básicas ao doente,
repassando as proibições que iriam marcar sua vida futura. Era-lhe proibido: entrar em igrejas, mercados,
moinhos, padarias ou qualquer lugar público; lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte
(devia saciar sua sede usando uma caneca de sua propriedade exclusiva); sair às ruas sem as vestes
identificadoras do leproso e sem calçados; tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um
bastão); tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos cobertas); tocar ou ter
relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa; comer ou beber na companhia de
qualquer pessoa que não fosse leprosa. Com alguma sorte e com o apoio de sua família o doente poderia
conseguir um lugar num “lazareto” ou “leprosário”. Caso contrário passaria a vida toda espalhando o
terror da doença, mendigando por comida e por bebida“. Cf. obra Epopeia ignorada. Pessoas com
deficiência nas sociedades contemporâneas. Parte I. Capítulo Nono. Idade Média. CD Epopéia
Ignorada. Cotia: Editora Faster, 2009.
152
apartadas do convívio social e confinadas em instituições que só admitiam pessoas de
um único sexo eou a sua esterilização.
As dificuldades passadas pelas pessoas com deficiência pelos muitos séculos da
História do Homem jamais deixaram de existir. Essa verdade sempre foi válida em
todos os quadrantes da Terra, em qualquer época, sendo válida também para todos os
períodos da História do Brasil. Na verdade, a pessoa com deficiência no Brasil foi
considerada por vários séculos dentro da categoria mais ampla dos miseráveis, talvez o
mais pobre dos pobres. Quando essas pessoas nasciam de famílias mais abastadas,
certamente, passavam o resto de seus dias escondidos em suas grandes mansões,
fazendas ou em casas de campo de suas famílias, ficando totalmente excluídos do
convívio social, permanecendo como um peso para suas respectivas famílias. (SILVA,
2009).
A partir do século XX, a sociedade em geral passa a esboçar uma sensibilização
e uma conscientização positiva em relação às pessoas com deficiência. Pode-se dizer
que essa alteração se deu por vários fatores: uma filosofia social mais voltada para a
valorização do homem, do engajamento de muitos setores da sociedade movidas pelo
bem-estar comum, em conseqüência dos evidentes progressos das ciências e suas
aplicações práticas, em todos os campos, mas, especialmente, pelas ações destruidoras
ocasionados pelas Grandes Guerras Mundiais. 4
Quando do final da Segunda Guerra Mundial, o problema dos soldados vítimas
de deficiências causadas pela guerra atrai a atenção, não só da sociedade, mas também
da Organização das Nações Unidas, que juntamente com outras organizações de caráter
internacionais
5
Fundo de Emergência das Nações Unidades para as Crianças –
4
Nesse mesmo sentido, esclarece Luiz, que “um importante divisor de águas para o estudo da proteção
das pessoas portadoras de deficiência foi a ocorrência das duas grandes guerras mundiais, que fez
aumentar, desgraçadamente, o número de pessoas portadoras de deficiência de locomoção e de audição”
(ARAUJO, Luiz Alberto David A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 2a. ed.
Brasília: CORDE, 1997. p. 15).
5
Segundo anota Otto Marques da Silva, em sua obra Epopeia Ignorada, as responsabilidades das
Organizações Internacionais foram sendo gradativamente definidas, estando envolvidas no
desenvolvimento de programas de assistência técnica ou de financiamento de projetos localizados nos
países em desenvolvimento. Esses projetos cobriam os mais variados aspectos da educação e da
reabilitação de pessoas com deficiência, por meio de especialistas em campo, bolsas de estudos para
profissionais e publicações consideradas relevantes. A Unidade de Reabilitação de Pessoas com
Deficiência na ONU, com sede em Nova York, ficou encarregada ficou encarregada de variados aspectos
de Planejamento, Administração, Legislação, Aspectos Sociais, Aspectos Psicológicos e Próteses.
A Organização Internacional do Trabalho, sediada em Genebra, cobria todos os aspectos de vida de
trabalho das pessoas com deficiência. A Organização das Nações Unidas para Refugiados e a
153
UNICEF, a Organização Internacional do Trabalho – OIT, a Organização Mundial de
Saúde- OMS, a Organização das Nações Unidas para Refugiados e a Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – UNESCO), criam grandes
programas assistenciais com ênfase especial para dar soluções aos inúmeros e sérios
problemas sociais causados pelos elevados contingentes de população vítimas das
atividades da guerra. O problema da deficiência ocasionado pelos males da guerra era
tão significativo que demandou a concentração de esforços em programas de
reabilitação dessas pessoas.
Começa a haver uma conscientização no sentido de compreender que as pessoas
com deficiência necessitavam não só dos cuidados que as instituições especiais
pudessem lhes prover, mas também de atenção pessoal, carinho, de relacionamento
familiar, enfim, de um ambiente que possibilitasse alguma participação na vida
comunitária, como qualquer outra pessoa.
Com esse tipo de raciocínio dominante, a Assembléia Geral da ONU manteve
muitos esforços para dar cobertura aos problemas sociais que enfrentavam as pessoas
com deficiências, tanto que a partir dos anos 50, juntamente com o Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas, passou a aprovar resoluções sobre prevenção e
reabilitação.
No ano de 1955, a Organização Mundial do Trabalho lança a recomendação n°
99 sobre a Reabilitação de Pessoas Portadoras de Deficiência. No ano de 1971, a
Assembléia Geral da ONU aprova a resolução n° 2856, Declaração dos Direitos do
Retardo Mental, que afirma que as pessoas com deficiência mental têm os mesmos
direitos dos demais seres humanos. Em 1975, a Assembléia Geral da ONU aprova a
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, com sede em Paris, tem
como competência técnica desenvolvimento atividades de assistência técnica em educação especial para
pessoas com deficiência. A OMS, com sede em Genebra, tem a responsabilidade de promover a saúde,
em sentido amplo, às pessoas com deficiência. E o Fundo de Emergência das Nações Unidades para as
Crianças – UNICEF, sediado em Nova York nas instalações da ONU, somente prestava assistência de
natureza financeira a projetos que tinham a aprovação técnica da relevante Agência das Nações Unidas,
ou seja, da Organização Mundial de Saúde, da UNESCO, da Organização das Nações Unidas para
Refugiados e da própria Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes do Bureau de Assuntos Sociais
da ONU. Cf. Epopeia ignorada. Século XX. Responsabilidades das Organizações Internacionais. Parte I.
Capítulo Décimo segundo. CD Epopéia Ignorada, Cotia: Editora Faster, 2009.
154
resolução n° 3447 relacionada à Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência 6,
afirmando que às pessoas com deficiência têm o direito inerente ao respeito à sua
dignidade, aos mesmos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais que as
demais pessoas, aliada ao “direito de terem tratamentos médicos, psicológico e
funcional, à reabilitação, aos serviços de colocação e a outros serviços que lhes
possibilitarão desenvolver suas capacidades e habilidades ao máximo e acelerarão o
processo de sua integração ou reintegração social,”o que implica antes de tudo, no
direito de desfrutar de uma vida decente, normal e plena.
No ano de 1981 foi proclamado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, pela
Resolução n° 31123, o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência com o tema
“Participação e Igualdade”, com ênfase na prevenção, reabilitação e equiparação de
oportunidades. O propósito dessa declaração universalmente conhecida era dar
condições para a implementação das Resoluções anteriores, através da conscientização
do mundo todo quanto à problemática das pessoas com deficiências. (SILVA, 2009).
Neste contexto, surge o processo de integração social com intuito de derrubar a
prática da exclusão social a que foram submetidas às pessoas com deficiência por vários
séculos, começando a inserí-las nos sistemas sociais gerais como a educação, o trabalho,
a família e o lazer.
Essa nova prática pouco exigia da sociedade em termos de modificação de
atitudes, de objetos, de práticas sociais e de espaços físicos, afinal, a pessoa com
deficiência é que teria que se transformar, se modificar e se adequar às exigências da
sociedade. Esperava-se que, após a reabilitação, a pessoa com deficiência reabilitada
estava apta a assumir o seu lugar na sociedade.
Era um processo de mão única, em que a sociedade ficava de braços cruzados,
aceitava receber as pessoas com deficiência, mas essas tinham que se amoldar aos
serviços especiais, ficando separadas em classe especial, acompanhando os
procedimentos tradicionais, contornando os obstáculos existentes no meio físico,
lidando com a discriminação da sociedade e desempenhando com autonomia, mas não
necessariamente independência os papeis de aluno, trabalhador, pai, consumidor etc..
(SASSAKI, 1999. p. 35).
6
A Declaração definiu o termo “pessoas deficientes” como qualquer pessoa incapaz de assegurar por si
mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência
de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais.
155
Esse modelo mostrou que essa prática social era insuficiente para acabar com a
discriminação, como também pouco eficiente para propiciar a verdadeira participação
das pessoas com deficiência em igualdade de oportunidades no âmbito social.
A Assembléia Geral da ONU, nos anos subseqüentes, caminhou gradativamente
para uma desejável conscientização quanto à garantia não apenas dos direitos, mas
também dos meios para que as pessoas com deficiência tivessem condições de acesso à
sociedade de forma plena e em igualdade de condições.
No ano de 1993, a Assembléia Geral da ONU adotou o documento “Normas
sobre a Equiparação de Oportunidades para as Pessoas com deficiência” (Resolução
4470). Em todas as definições trazidas por essa norma está implícito o princípio da
igualdade de direitos. No seu parágrafo 24 definiu o termo equiparação de
oportunidades como o processo através do qual os diversos sistemas da sociedade e do
ambiente, tais como serviços, atividades, informações e documentação, são tornados
disponíveis para todos, particularmente para pessoas com deficiência. Essas
recomendações se destacaram das demais resoluções da ONU na área da deficiência e
tiveram uma importância significativa na história normativa de seus direitos, tanto que
serviram de parâmetro para práticas de políticas e leis de muitos países. No Brasil, o
Decreto n° 3.29899, que regulamentou a Lei n° 7.85389 definiu a Política de
Integração Nacional da Pessoa Portadora de Deficiência com base nessas normas
adotadas pela ONU.
Na tentativa de avançar no processo de construção de uma sociedade que
respeite a diversidade, tem-se início o movimento de inclusão social, cujo objetivo é a
construção de uma sociedade para todas as pessoas; não cabe somente as pessoas com
deficiência se integrarem à sociedade, mas, é preciso que a sociedade também se
transforme para acolher todos os seus cidadãos.
Conforme ensina SASSAKI (1999, p.17), a inclusão se inspira sob novos
princípios, quais sejam: celebração de diferenças, direito de pertencer, valorização da
diversidade humana, solidariedade humanitária, igual importância das minorias e
cidadania com qualidade de vida.
A inclusão social pode ser conceituada como um processo pelo qual a sociedade
se adapta para poder incluir as pessoas com deficiência e, simultaneamente, estas se
preparam para assumir seus papeis na sociedade (SASSAKI, 1999. p.41).
Conseqüentemente, a inclusão social é um processo de mão dupla, ou seja, tanto a
pessoa com deficiência como a sociedade precisam se modificar.
156
É um processo que demandará a construção de um novo tipo de sociedade
através de transformações, pequenas e grandes, na mentalidade de todas as pessoas, e
especificamente, após o advento da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência
nos ambientes físicos das cidades, conforme adiante será abordado.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 não destoou dessa evolução que já se
vinha operando no mundo todo. Consagrou em diversas passagens à proteção da pessoa
com deficiência, no sentido de assegurar à sua inclusão social. São reforçadas as regras
que asseguram a dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III), cidadania (artigo 1°, I) e a
igualdade (artigo 5°), seguida por diversas leis protetivas que visam reconhecer a
inclusão dessas pessoas na sociedade.
Assim, apesar das inúmeras disposições constitucionais e legais que asseguram a
inclusão das pessoas com deficiência, muitas dificuldades e barreiras ainda existem,
impossibilitando, mesmo agora, a plena acessibilidade, e consequentemente a utiliação
dos espaços de forma plena, segura e com autonomia e, em nosso estudo, a
acessibilidade às comunicações e tecnologias.
Mas o que se entende por acessibilidade?
2. Conceito de Acessibilidade
O nosso ordenamento jurídico, preocupado com o número de pessoas com
deficiência, à época 10% da população brasileira, tratou de reconhecer o processo de
exclusão que vivia esse grupo, entendendo ser necessário garantir formas de proteção
especial.
A mais caracterizadora dessas proteções é a acessibilidade às pessoas com
deficiência, assegurada, não de forma genérica, mas, expressamente no artigo 227,
parágrafo segundo, que determina que os edifícios de uso público e os veículos de
transporte coletivo serão acessíveis. Por essa norma, todos os imóveis de uso público e
transporte coletivo deveriam ser adaptados a partir de 05 de outubro de 1988. O
constituinte foi mais insistente, ao determinar no artigo 244 que as adaptações deveriam
atingir os bens existentes quando da promulgação da Constituição, deixando mais uma
vez materializada essa garantia.
157
A atual NBR7 90502004 que veio substituir a NBR 9050858,
ambas
da
Associação Brasileira de Normas Técnicas, ampliou o termo definindo a acessibilidade
como a “possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para a
utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento
urbano e elementos”. Acessível é definido como “espaço, edificação, mobiliário,
equipamento urbano ou elemento que possa ser alcançado, acionado, utilizado e
vivenciado por qualquer pessoa, inclusive aquelas com mobilidade reduzida”,
implicando tanto a acessibilidade física como a de comunicação.
Cabe esclarecer que, as normas técnicas, embora sejam de uso voluntário,
passam a ter força de lei, quando mencionadas explicitamente no corpo legislativo. É o
que ocorreu com as normas técnicas de acessibilidade da Associação Brasileira de
Normas Técnicas que passaram a integrar à Lei n° 10.0982000 e o Decreto n° 5.29604.
7
Cabe esclarecer que não iremos colocar em Anexo as Normas Técnicas mencionadas ao longo desse
trabalho, pois desde de 2004, por força de um Termo de Ajustamento de Conduta do Ministério Público
Federal, as normas produzidas pelo Comitê Brasileiro de Acessibilidade passam a ser disponibilizadas
gratuitamente no site da CORDE, possibilitando, além de sua rápida divulgação, bem como sua consulta
por qualquer interessado quando se fizer necessário. As Normas Técnicas estão disponibilizadas no
endereço eletrônico: http:www.mj.gov.brsedhctCORDEdpdh cordenormasABNT.asp.
Quando nos referirmos a alguma definição ou mesmo citação dessas normas técnicas transcreveremos no
texto para facilitar sua compreensão e entendimento.
8
As normas técnicas servem para regular a qualidade e características dos bens e serviços na vida
cotidiana, sendo, em geral, de uso opcional, servindo também para que a sociedade estabeleça e cobre os
requisitos mínimos, de acordo com critérios técnicos. No contexto da acessibilidade, tais normas surgem
no momento em que vários organismos internacionais (Organização das Nações Unidas, Rehabilitation
Internacional, Organização Internacional do Trabalho, dentre outras entidades) sentiram a necessidade de
estabelecer critérios para orientar os planejadores do ambiente, visando à eliminação das barreiras nos
edifícios de uso público e nas vias urbanas.
As normas técnicas internacionais de âmbito global são de competência da ISO (Internacional Standards
Organization), ligados à Organização das Nações Unidades. No Brasil, o organismo legalmente
constituído para cuidar das normas técnicas é a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas),
afiliada à ISO e atuante de 1940. O Comitê Brasileiro de Acessibilidade – CB 40 começou a atuar no ano
de 2000 e seus antecedentes remontam ao trabalho desenvolvido por órgãos da Administração Pública do
Estado e do Município de São Paulo, voltados para aplicações do desenho universal, incluindo, portanto,
também as pessoas com deficiência. A sede do CB 40 fica em São Paulo, nas dependências de sua
mantenedora, a Associação Brasileira de Acidentes de Medicina de Tráfego – Abramet. Os trabalhos em
curso de normalização da acessibilidade foram divididos em duas comissões de estudo: a de edificações e
meio e a de transportes. Nelas estão sendo aprimoradas normas importantes de acessibilidade e que já
gozam de plena aceitação no meio profissional. Dentre estas, sobressai-se a norma brasileira NBR
905085, voltada para edificações, mobiliário e equipamentos urbanos. Conforme Gildo Magalhães dos
Santos Filho. Comitê brasileiro de acessibilidade – CB 40. In: Município acessível ao cidadão. São
Paulo, Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM, 2001.
E, no ano de 1993, a ABNT instaurou uma comissão estudos a fim de atualizar e ampliar o alcance da
NBR 9050. Posteriormente, uma nova revisão foi executada, e no ano de 2004 é publicada a NBR
90502004.
A NBR 90502004 é uma norma extensa que define aspectos relacionados à acessibilidade ao meio
urbano. Estabelece critérios e parâmetros técnicos a serem observados quando do projeto, construção,
instalação e adaptação de edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos às condições de
acessibilidade, indicando especificações que visam proporcionar à maior quantidade de pessoas,
independente da idade, estatura ou limitação de mobilidade ou percepção, a utilização de maneira
autônoma e segura do ambiente.
158
Para dar eficácia a esses dispositivos constitucionais, o legislador ordinário
elaborou diversas leis protetivas às pessoas com deficiência 9, sendo a mais específica a
Lei n° 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Que em seu artigo 2, inciso I, define a
acessibilidade como sendo a possibilidade e condição de alcance para utilização com
segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das
edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação por pessoa com
deficiência ou mobilidade reduzida.
O termo acessibilidade indica a condição de livre acesso, de possibilidade. Falar
em acessibilidade em termos gerais, segundo José Antonio Lanchotti é “compreender a
possibilidade de acesso, da aproximação, da utilização, do manuseio de qualquer objeto,
local, ou condição e, tudo isso, deve ser oferecido com facilidade, não exigindo do
usuário um esforço excessivo”. (LANCHOTI, 2005, p. 28).
O Decreto n. 5.29604 levou o Poder Executivo – Presidente da Republica, a
alterar o conceito de acessibilidade definido no artigo 2, inciso I da Lei 10.09800, visto
anteriormente. No artigo 8, inciso I, desse Decreto, a acessibilidade foi considerada
como “condição para utilização com segurança e autonomia, total ou assistida, dos
espaços...”. (grifo nosso).
Todavia, GUIMARÃES (2010) assevera que a “acessibilidade assistida”
equivale à falta de acessibilidade, pois esse termo é contrário “às noções de
independência, autodeterminação, espontaneidade e autonomia que são básicas para o
uso ambiental bem sucedido por todas as pessoas”. Mais adiante, o mesmo autor diz que
a acessibilidade assistida se constitui como barreiras arquitetônicas para as pessoas
com deficiência que se vêem impossibilitadas de utilizarem dos recursos ambientais
previstos para sua acessibilidade. (grifo nosso).
No mesmo sentido, ao comentar a alteração do conceito legal introduzido pelo
Decreto 5.29694, RIBEIRO (2007, p. 35) diz que a noção de autonomia é elemento de
extrema importância para a garantia da liberdade, igualdade e dignidade das pessoas
9
Lei n° 7.853/89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social,
sobre a CORDE, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina
a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. A acessibilidade foi novamente
tratada pela lei n° 10.048/00 que assegura tratamento prioritário às pessoas com deficiência, idosos, às
gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo.
Lei nº 10.436/2002 que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), para garantir acesso à
comunicação e informação dos surdos na educação, trabalho e demais serviços públicos;
A Lei nº 11.126/2005, que assegura à pessoa com deficiência visual usuária de cão guia o direito de
ingressar e permanecer com o animal nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso
coletivo.
159
com deficiência. Afirma ainda que, dentro de uma concepção sistemática que
caracteriza nosso ordenamento jurídico, qualquer texto normativo não deve ser
interpretado em pedaços e, sim, no seu todo, e para a interpretação do direito à
autonomia devem ser levadas em consideração, dentre outros diplomas legais, as
diretrizes estabelecidas na Lei n° 7.85389. Na aplicação e interpretação dessa lei, devese observar prioritariamente, os valores básicos da igualdade de tratamento e
oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa, do bem-estar (arts. 1°
e 2°), o que está reforçado pelas disposições do Decreto n° 3.29899, que definem como
princípios da Política Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência, em
consonância com o Programa Nacional de Direitos Humanos, dentre outros, o
desenvolvimento de ação conjunta do Estado e da sociedade civil para a inclusão (art.
5°).
Embora as palavras autonomia e independência sejam sinônimas segundo os
dicionários convencionais, tais palavras têm significados diferentes dentro do enfoque
trazido pelo movimento inclusivista.
“Autonomia”, segundo SASSAKI (1999, pp. 76-77), diz respeito ao domínio do
ambiente físico e social, sem tirar a dignidade da pessoa que a está exercendo. Tem
como denominador comum o controle maior ou menor da pessoa portadora de
deficiência sobre o ambiente em que se locomove. Mais adiante, o mesmo autor
esclarece que “independência” se refere à capacidade da pessoa portadora de deficiência
em decidir se precisa depender mais ou menos de outrem, certamente, também,
relacionada à sua própria identidade, à compreensão exata de sua dimensão, com o
mundo que a cerca e autodeterminação com prontidão e decisão daquilo que ela pode
desenvolver em termos de realização, que lhe facilitem a independência e a autonomia.
Sempre atentas sobre a intensidade maior ou menor, conforme o seu estado físico, mas
mais atentos ainda para o que, nesse estado físico dependente, ela possa conseguir ou
eliminar.
Será que podemos falar em liberdade e principalmente, em igualdade, se um
usuário da internet não consegue acessar a web diariamente, em busca de acesso a
informação, entretenimento, trabalho, educação, comercio, entre outras atividades
devido a falta de tecnologia ou ferramentas que possibilitem o acesso amplo e irrestrito
à informação digital?
160
As pessoas que necessitam do auxílio de outras para alcançar seus objetivos não
vivenciam a essência do conceito da acessibilidade universal em nenhum momento.
(GUIMARÃES, 2010).
Só há que se falar em inclusão das pessoas com deficiência se houver
acessibilidade com autonomia e independência.
O objetivo da acessibilidade é proporcionar à todas as pessoas, e, principalmente
às pessoas com deficiência, um ganho de autonomia e mobilidade, para que possam
usufruir dos espaços com mais segurança, confiança e comodidade. (PRADO, 2006. p.
11).
Com o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
seu Protocolo Facultativo passam a ser o primeiro Tratado Internacional a ingressar na
nossa ordem jurídica interna com status de equivalência constitucional, por ter sido
aprovado nos exatos termos da regra imposta pelo § 3° do artigo 5° da Constituição
Federal. A finalidade dessa Convenção não foi apenas a de instituir novos direitos
humanos e liberdades fundamentais para as pessoas com deficiência, mas em garantir
que essas pessoas possam vir a desfrutá-los em igualdade de condições com todos os
demais direitos, sem discriminação. E para que isso ocorra, reforça a ideia de que as
barreiras, e em nosso estudo, as barreiras físicas, impedirão a possibilidade dessas
pessoas de usufruírem de seus direitos em condições de igualdade.
Cabe esclarecer que a principal contribuição desta Convenção é a positivação da
mudança de paradigma da visão da deficiência no mundo, que passa do modelo médico,
no qual a deficiência é tratada como um problema de saúde, para o modelo social dos
direitos humanos, no qual a deficiência é resultante de uma equação que tem duas
variáveis, quais sejam as limitações funcionais do corpo humano e, no caso do nosso
trabalho, das barreiras tecnológicas ou nas comunicações.
Todos os direitos garantidos pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, a partir desse novo paradigma positivado, têm o intuito de emancipar todas
as pessoas com deficiência, oportunizando o pleno e efetivo exercício e gozo de seus
direitos e garantias fundamentais.
Tanto que, em seu preâmbulo, registra que deficiência é um conceito em
evolução e que ela resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras
ambientais que impedem sua plena e efetiva participação na sociedade, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas. Portanto, ao ter reconhecido que a deficiência é
um conceito em evolução, constatou-se que essas pessoas têm capacidades e que, se elas
161
tiverem informações e comunicações acessíveis, terão oportunidades que nunca antes
puderam vivenciar.
Para que a pessoa com deficiência exerça de forma efetiva o direito à
acessibilidade, a Convenção determinou também em seu artigo 9°, que os Estados
estarão obrigados a tomar medidas apropriadas para assegurar a sua efetivação, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à
informação e comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público
ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural.10
Como bem delineada desse dispositivo, a pessoa com deficiência, para ter
garantida a autonomia e qualidade devida, necessita de recursos que aumentem,
mantenham ou melhorem suas capacidades funcionais, tais recursos podem também vir
através de serviços e/ou produtos denominados tecnologias assistidas ou ajudas
10
1 A fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente
de todos os aspectos da vida, os Estados Partes tomarão as medidas apropriadas para assegurar às pessoas
com deficiência o acesso, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao
transporte, à informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da informação e
comunicação, bem como a outros serviços e instalações abertos ao público ou de uso público, tanto na
zona urbana como na rural. Essas medidas, que incluirão a identificação e a eliminação de obstáculos e
barreiras à acessibilidade, serão aplicadas, entre outros, a:
a) Edifícios, rodovias, meios de transporte e outras instalações internas e externas, inclusive escolas,
residências, instalações médicas e local de trabalho;
b) Informações, comunicações e outros serviços, inclusive serviços eletrônicos e serviços de emergência.
2.Os Estados Partes também tomarão medidas apropriadas para:
a) Desenvolver, promulgar e monitorar a implementação de normas e diretrizes mínimas para a
acessibilidade das instalações e dos serviços abertos ao público ou de uso público;
b) Assegurar que as entidades privadas que oferecem instalações e serviços abertos ao público ou de uso
público levem em consideração todos os aspectos relativos à acessibilidade para pessoas com deficiência;
c) Proporcionar, a todos os atores envolvidos, formação em relação às questões de acessibilidade com as
quais as pessoas com deficiência se confrontam;
d) Dotar os edifícios e outras instalações abertas ao público ou de uso público de sinalização em braille e
em formatos de fácil leitura e compreensão;
e) Oferecer formas de assistência humana ou animal e serviços de mediadores, incluindo guias, ledores e
intérpretes profissionais da língua de sinais, para facilitar o acesso aos edifícios e outras instalações
abertas ao público ou de uso público;
f) Promover outras formas apropriadas de assistência e apoio a pessoas com deficiência, a fim de
assegurar a essas pessoas o acesso a informações;
g) Promover o acesso de pessoas com deficiência a novos sistemas e tecnologias da informação e
comunicação, inclusive à Internet;
h) Promover, desde a fase inicial, a concepção, o desenvolvimento, a produção e a disseminação de
sistemas e tecnologias de informação e comunicação, a fim de que esses sistemas e tecnologias se tornem
acessíveis a custo mínimo.
[1] Disponível em : httpp://www.mj.gov.br/sedh/ct/dorde/dpdh/corde/comite at.asp
162
técnicas. Claro que essa acessibilidade melhorará a acessibilidade arquitetônica,
urbanística, de transporte, e no nosso estudo, a de comunicação e digital dessas pessoas.
Dentro desse contexto, o Comitê de Ajudas Técnicas (CAT) junto ao Ministério da
Justiça, aprovou em 2007, o seguinte conceito:
Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica
interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias,
práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à
atividade e participação de pessoas com deficiência, incapacidades ou
mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de
vida e inclusão social.11
Para BERSH (2013) o objetivo maior da tecnologia assistiva ou TA é
proporcionar à pessoa com deficiência maior independência, qualidade de vida e
inclusão social, através da ampliação de sua comunicação, mobilidade, controle de seu
ambiente, habilidades de seu aprendizado e trabalho.
Assim, a Convenção, ao reconhecer o modelo social como o mais novo
paradigma para conceituar as pessoas com deficiência, embasa também a consolidação
da acessibilidade tanto como princípio, quanto como um direito. E como princípiodireito obriga os Estados à sua implementação como garantia fundamental,
extremamente relevante para a concretização dos direitos humanos das pessoas com
deficiência. 12
Considerando a acessibilidade como condição de livre acesso, de aproximação,
de utilização, do manuseio de qualquer objeto, local, ou condição, é seu objetivo
proporcionar a todas as pessoas, e, principalmente às pessoas com deficiência, um
ganho de autonomia e mobilidade, para que possam usufruir dos espaços com mais
segurança, confiança e comodidade. E para que isso ocorra, a Convenção determina que
todos os ambientes, como princípio e regra ao mesmo tempo, eliminem as barreiras
existentes, especialmente as que forem criadas pelo próprio ser humano e que novos
espaços sejam desenhados livres de barreiras, para não obstaculizar o pleno gozo e
exercício dos direitos das pessoas com deficiência. Portanto, acessibilidade na web é a
possibilidade e a condição de alcance, percepção, entendimento e interação para a
utilização, a participação e a contribuição, em igualdade de oportunidades, com
11
Disponível em : httpp://www.mj.gov.br/sedh/ct/dorde/dpdh/corde/comite at.asp
Especificamente o disposto no preâmbulo da Convenção, alínea “v”. Bem como o artigo 3°, “f”, que
define a acessibilidade como um dos princípios gerais a reger a Convenção. E no artigo 9°, trata da
acessibilidade como um direito, inclusive obrigando os Estados a tomarem medidas apropriadas para
assegurá-lo.
12
163
segurança e autonomia, em sítios e serviços disponíveis na web, por qualquer indivíduo,
independentemente de sua capacidade motora, visual, auditiva, intelectual, cultural ou
social, a qualquer momento, em qualquer local e em qualquer ambiente físico ou
computacional e a partir de qualquer dispositivo de acesso.
Por ser um processo de transformação do ambiente e desenvolver-se a partir do
reconhecimento social de que a deficiência é resultante do desajuste entre as
características físicas das pessoas e as condições onde elas atuam, a acessibilidade passa
a ser retomada como um tema de grande importância para o planejamento urbano.
A acessibilidade se constituiu num direito instrumental, afinal, sem acesso aos
equipamentos urbanos, às escolas, aos postos de saúde, aos transportes públicos, as
informações e comunicações as pessoas com deficiência não podem exercer,
plenamente, a sua cidadania. Não há o exercício da inclusão social sem acessibilidade.
A presença da acessibilidade no meio urbano, bem como nas edificações, nos
transportes, na informação e comunicação, inclusive aos sistemas e tecnologias da
informação e comunicação e nas suas mútuas interações é uma exigência constitucional.
Surge, atualmente, de acordo com a Convenção sobre o Direito das Pessoas com
Deficiência, como um direito forte, o que impacta na concepção contemporânea dos
direitos humanos e impõe sua releitura, sob essa nova perspectiva.
A acessibilidade dentro desse novo contexto constitucional surge como um
direito fundamental. No entanto, ainda há necessidade de leis que implementem tal
direito. A efetivação ainda não se concretizou, o que se verifica facilmente pela falta de
acesso à internet, pela existência de barreiras na informação e comunicação que
impedem que as pessoas com deficiência possam usufruir de forma plena e autônoma
dos sistemas e tecnologias da informação e comunicação.
Indo ao encontro desse direito fundamental ao acesso, é aprovada a Lei nº
13.146, de 6 de julho de 2015 que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Que em seu Título III, assegura a
acessibilidade, dispondo em seu artigo 55 que: “a concepção e a implantação de projetos
que tratem do meio físico, de transporte, de informação e comunicação, inclusive de
sistemas e tecnologias da informação e comunicação, e de outros serviços,
equipamentos e instalações abertos ao público, de uso público ou privado de uso
coletivo, tanto na zona urbana como na rural, devem atender aos princípios do desenho
universal, tendo como referência as normas de acessibilidade.”
164
Percebemos que leis não faltam para assegurar às pessoas com deficiência o
direito fundamental ao acesso, todavia ainda não concretizado. Mas poderá se efetivar.
E esse é o objetivo pretendido também pela Lei nº 12.965 de 2014 (Marco Civil da
Internet).
3.
Acessibilidade na internet: Lei no. 12965/2014
A Agenda de Túnis da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, realizada
em 2005, atribuiu à UNESCO um papel de liderança na implementação de ações para
promover o acesso à informação e ao conhecimento. Nesse contexto, um resultado
esperado é a inclusão digital e social de pessoas com deficiência, por meio da ampliação
do acesso à informação em formato digital para a promoção de uma cidadania mais
informada, educada e ativa. (DEFOURNY, 2007).
Já que vivemos cada vez mais interligados pela internet, muitas vezes buscando
trabalho, entretenimento, educação, comércio etc, a grande maioria dos sites não levam
em consideração uma parcela importante dessa população. Segundo dados do IBGE
(Instituto de Geografia e Estatística), através do Censo Demográfico realizado em 2010,
verificamos que a população atual de pessoas com deficiências é de 45.623.910
cidadãos, o que correspondente a 23,9% da população brasileira atual e, de acordo com
o mesmo órgão, cerca de 25 milhões de deficientes, apenas cerca de 10 mil ou mais têm
acesso ao computador e à internet, o que é um número bem reduzido, mas que, se forem
criadas e oportunizadas melhores condições de acesso, esse número poderá aumentar
consideravelmente.
A Lei nº 12.965/2014 – Lei do Marco Civil, que se apresenta como uma grande
moldura de direitos e liberdades individuais dos usuários da internet no contexto
brasileiro. O referido texto começou a ser elaborado em 2009, pelo Ministério da
Justiça em colaboração com o Centro de Tecnologia com sugestões da sociedade civil e
especialistas, tendo como origem o Projeto de Lei nº 2.126/2011, convertido em lei em
23 de abril de 2014. O texto entrou em vigor em 23 de junho de 2014, respeitando o
prazo de 60 dias de vacatio legis, conforme previsto no artigo 32 da Lei do Marco Civil.
Cabe ressaltar que o Marco Civil da Internet é considerado uma Carta de
Princípios, pois, já em seu Capítulo I, encontra-se o que a lei denomina fundamentos,
princípios e objetivos do Marco Civil. Assim, em seu artigo 2º definiu os fundamentos
165
da disciplina do uso da internet: o reconhecimento da escala mundial da rede; os
direitos humanos e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a
diversidade; a abertura e a colaboração; a livre iniciativa, a livre-concorrência e a defesa
do consumidor.
Por sua vez, a Lei elencou em seu artigo 3º os princípios norteadores do Marco
Civil. E entre os objetivos que deverão ser permanentemente buscados trouxe no seu
artigo 4º a promoção do direito de acesso à internet a todos; de acesso à informação, ao
conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; da
inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso;
da adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade
e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados. E completa em seu artigo 7º,
XII, que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e aos usuários são
assegurados acessibilidade, consideradas as suas características físico-motoras,
perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais, nos termos da lei.
Percebe-se que muitos desses conteúdos vão ao encontro de preceitos já
plasmados na Constituição Federal e nas leis infraconstitucionais que asseguram o
direito ao acesso.
Assim, a nova Lei trouxe um importante rol de princípios capazes de proteger
usuários, empreendedores e a própria característica de abertura da internet. Nesse
sentido discorre STRECK (2014) que a internet é um museu de grandes novidades, em
que o pamprincipiologismo é a menina dos olhos, pois afinal, princípios são normas.
Mais adiante, assevera o mesmo autor, que “a nova lei insere-se num contexto
contemporâneo em que os princípios jurídicos, as cláusulas abertas e os conceitos
indeterminados são utilizados com o objetivo de possibilitar maior liberdade de
conformação do direito pelo intérprete no caso concreto.” (STRECK, 2014, p. 333).
Mas como mencionamos anteriormente, é necessário que haja tecnologia
assistiva adequada e adaptada as suas necessidades especiais, principalmente os
deficientes visuais e auditivos, caso contrário, ficarão gravemente limitados quanto a
quantidade e a qualidade de informações que podem acessar a internet, o que impediria
que eles utilizassem de forma plena e autônoma as potencialidades deste meio de
comunicação. Dentre as categorias de tecnologia assistiva, BERSH (2013) aponta
recursos de acessibilidade ao computador como conjunto de hardware e software
especialmente idealizado para tornar o computador acessível a pessoas com privações
sensoriais (visuais e auditivas), intelectuais e motoras. Nestes dispositivos inclui os de
166
entrada (mouses, teclados e acionadores diferenciados) e de saída (sons, imagens,
informações táteis). Traz como exemplos desses dispositivos de entrada os teclados
modificados, os teclados virtuais com varredura, mouses especiais e acionadores
diversos, software de reconhecimento de voz, dispositivos apontadores que valorizam
movimento de cabeça, movimento de olhos, ondas cerebrais (pensamento), órteses e
ponteiras para digitação, entre outros. E como exemplos de dispositivos de saídas
softwares leitores de tela, software para ajustes de cores e tamanhos das informações
(efeito lupa), os softwares leitores de texto impresso (OCR), impressoras braile e linha
braile, impressão em relevo, entre outros.
Alguns órgãos internacionais coordenam e elaboração a padronização das regras
de acessibilidade. O World Wide Web Consortium (W3C) é um consórcio internacional
em que organizações filiadas, uma equipe em tempo integral e o público trabalham
juntos para desenvolver padrões para a web. O W3C já publicou mais de cem padrões,
como HTML, CSS, RDF, SVG e muitos outros. Todos os padrões desenvolvidos pelo
W3C são gratuitos e abertos, visando garantir a evolução da web e o crescimento de
interfaces interoperáveis. O W3C Brasil iniciou suas atividades em 2008 por iniciativa
do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e do Núcleo de Informação e
Coordenação do Ponto BR (NIC.br). O W3C Brasil acompanha as discussões de
alcance mundial sobre o desenvolvimento dos padrões, com uma atenção especial a
temas como: Open Web Platform, dados abertos e acessibilidade na web além de contar
com o Grupo de Trabalho de Acessibilidade na Web do W3C Brasil (GT Acessibilidade
na Web), criado em março de 2012, o grupo se reúne periodicamente para planejar
ações a serem realizadas no Brasil. Em 2013, o grupo contava com mais de sessenta
pessoas, entre elas representantes do governo federal, estadual e municipal de diversos
estados, membros de instituições para pessoas com deficiência, acadêmicos e
representantes da sociedade civil.
Assim, para que a acessibilidade na web seja alcançada, a W3C-WAI identifica
sete componentes:
1) Conteúdo é a informação contida numa página ou aplicação web,
incluindo:
– a informação natural, tal como texto, imagem e áudio;
– o código ou marcação, que define a estrutura, a forma de apresentação,
etc.
2) Navegadores são os tocadores de conteúdo multimídia e outros agentes
do usuário.
3) Tecnologia assistiva é aquela usada por pessoas com deficiência e
mobilidade
167
reduzida, como é o caso dos programas leitores de tela, dos ampliadores
de tela, dos teclados alternativos, entre outros.
4) O conhecimento do usuário, sua experiência e, em alguns casos, suas
estratégias adaptativas para a utilização da web.
5) Desenvolvedores, designers, codificadores, autores, entre outros,
incluindo pessoas com deficiência que são desenvolvedores e usuários
que contribuem com conteúdo.
6) Ferramentas de autoria (authoring tools): softwares usados para criar
sítios web.
7) Ferramentas de avaliação: avaliadores de acessibilidade, validadores
25
de HTML, validadores de CSS, entre outros.
Esses componentes são essenciais e básicos para que os desenvolvedores e
páginas possibilitem o acesso amplo e irrestrito à informação digital para as pessoas
com deficiência, atendendo os requisitos prescritos no Marco Civil brasileiro da
Internet.
Como mencionamos anteriormente a acessibilidade, notadamente ao meio digital
foi amplamente regulado no âmbito constitucional e nas leis infraconstitucionais, daí a
necessidade de fazer uma leitura integrada dos artigos 25 a 27 da Lei do Marco Civil da
Internet. Vejamos:
Art. 27. As iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de
promoção da internet como ferramenta social devem:
I - promover a inclusão digital;
II - buscar reduzir as desigualdades, sobretudo entre as diferentes regiões
do País, no acesso às tecnologias da informação e comunicação e no seu
uso; e
III - fomentar a produção e circulação de conteúdo nacional.
Art. 28. O Estado deve, periodicamente, formular e fomentar estudos,
bem como fixar metas, estratégias, planos e cronogramas, referentes ao
uso e desenvolvimento da internet no País.
Art. 29. O usuário terá a opção de livre escolha na utilização de
programa de computador em seu terminal para exercício do controle
parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos
menores, desde que respeitados os princípios desta Lei e da Lei no 8.069,
de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
Parágrafo único. Cabe ao poder público, em conjunto com os provedores
de conexão e de aplicações de internet e a sociedade civil, promover a
educação e fornecer informações sobre o uso dos programas de
computador previstos no caput, bem como para a definição de boas
práticas para a inclusão digital de crianças e adolescentes.
168
COSTA FILHO (2014, pp. 604, 605) assevera que havendo descumprimento
dessas obrigações, caberá à luz do artigo 30 da supracitada lei, e das demais dispostas
em nosso ordenamento jurídico, a defesa desses interesses individuais e/ou coletivos em
juízo, no caso de atingir toda a coletividade das pessoas com deficiência, a possibilidade
de atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública através de ações civis
públicas ou mandados de segurança coletivos, sem prejuízos de outros instrumentos
extrajudiciais a disposição desses órgãos.
Dentro desse contexto, constatamos que o direito fundamental ao acesso à
pessoa com deficiência, não só ao meio físico, ao transporte, mas, notadamente na
informação e comunicação está amplamente assegurado em nosso ordenamento
jurídico.
Conclusão
É notório que a Humanidade sempre conviveu com a existência de pessoas com
deficiência, e assim, a sua sobrevivência em todo mundo e em todas as épocas nunca
deixou de ser uma luta, muitas vezes, totalmente ignorada pela sociedade e pelos
governos como um todo.
Avançando no processo de construção de uma sociedade que respeite a
diversidade, aprova-se com força de norma constitucional, a Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo cuja finalidade dessa
Convenção não foi apenas a de instituir novos direitos humanos e liberdades
fundamentais para as pessoas com deficiência, mas em garantir que essas pessoas
possam vir a desfrutá-los em igualdade de condições com todos os demais direitos, sem
discriminação. Indo ao encontro desse direito fundamental ao acesso, é aprovada a Lei
nº 13.146, de 6 de julho de 2015 que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). E para que isso ocorra, reforça a ideia
de que as inúmeras barreiras, principalmente as de comunicação e tecnológicas
impedirão a possibilidade dessas pessoas de usufruírem de seus direitos, notadamente
da internet em condições de igualdade.
169
Portanto, a principal contribuição desta Convenção é a positivação da mudança
de paradigma da visão da deficiência no mundo, que passa do modelo médico, no qual a
deficiência é tratada como um problema de saúde, para o modelo social dos direitos
humanos, no qual a deficiência é resultante de uma equação que tem duas variáveis,
quais sejam as limitações funcionais do corpo humano e as diversas barreiras impostas
pelo ambiente ao individuo e, em nosso estudo, as barreiras impostas na comunicação e
tecnologias.
O direito à acessibilidade é, portanto, uma exigência constitucional que surge,
atualmente, como um direito fundamental, notadamente para a pessoa com deficiência
ou mobilidade reduzida possa desfrutar das mesmas oportunidades, a saber: educação,
trabalho, habitação, lazer, cultura e as novas tecnologias da informação e comunicação.
Esse direito fundamental à pessoa com deficiência foi amplamente assegurado
em nosso ordenamento jurídico. Todavia, para que essas pessoas possam realizar de
modo pleno e irrestrito esse direito fundamental e compartilhar os aspectos positivos
das novas tecnologias, sobretudo no campo das comunicações, é essencial que lhes
assegure a capacidade de utilizar da internet, onde as facilidade, a rapidez e a supressão
de barreiras geográficas tornam possível o acesso aos mais diversos canais
ponteciadores de conhecimento, mas também de convívio e lazer.
Com a era das novas tecnologias da informação e da comunicação, é aprovada
no âmbito local a Lei do Marco Civil da Internet que vem para garantir acessibilidade
de modo amplo e irrestrito a todos os usuários da internet.
Constatamos que não faltam em nosso ordenamento jurídico leis que assegurem
o direito ao acesso. Todavia, somente a normatividade desses direitos não é o bastante
para garantir a implementação de ações para efetivar a acessibilidade de modo real e
palpável às pessoas com deficiência, notadamente para acessar o mundo virtual da
internet. A informação está na internet, mas ainda não está acessível para todos.
Acessibilidade é um processo em construção!
Referências Bibliográficas
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ARAUJO, Luiz Alberto David. (Coord.). Defesa dos direitos das pessoas portadoras de
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construído como avaliadores da cidade acessível: o caso de Ribeirão Preto. Tese de
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SENNETT, Richard. A carne e a pedra. Tradução Marco Aarão Reis. Rio de Janeiro:
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SILVA, Otto Marques. Declarações de direitos e sua importância. Parte I. Capítulo
Décimo Terceiro. CD Epopeia Ignorada, Cotia: Editora Faster, 2009.
171
STRECK, Lenio Luiz. Apontamentos hermenêuticos e o marco civil da internet. In:
LEITE, Salomão George; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet. São Paulo: Atlas,
2014.
__________________. Verdade e consenso. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
CAPÍTULO 9.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIREITOS AUTORAIS: O QUE O
CASO DAS BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS E DAS FANFICTIONS
172
PODEM NOS ENSINAR SOBRE O DESENHO DOS DIREITOS
AUTORAIS
Maria Edelvacy Pinto Marinho*
Introdução
A liberdade de expressão é um instrumento indispensável contra intolerância.
Discutir seu conteúdo envolve o exame não só de um direito individual, mas coletivo.
O presente capítulo tem por objetivo examinar como a liberdade de expressão
tem sido redefinida a partir de dois casos: a ação direta de inconstitucionalidade sobre a
necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias, ADI 4815 e a
legalidade das fanfictions à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
A relação entre fanfictions e biografias não autorizadas explorada nesse capítulo
se refere à liberdade de expressão na área dos direitos do autor. A quem pertence um
personagem? Deve haver diferenças de tratamento entre o personagem real ou fictício?
Quem estaria autorizado a contar a nossa história? O biografado ou seus herdeiros
teriam direitos em determinar como suas histórias serão contadas?
Ao tecer considerações sobre a decisão referente a ADI 4815, busca-se
evidenciar um questionamento indireto que pode ser lido nas entrelinhas da decisão do
Supremo e que também se observa no caso das fanfictions, qual seria o desenho da
liberdade de expressão e dos direitos autorais na sociedade informacional.
Para atender a esse objetivo, primeiro serão apresentados os elementos
relevantes para a compressão dos casos, em seguida será identificado qual seria o
conteúdo da liberdade de expressão que serviu de fundamento para a redação desse
trabalho. Finalizada a parte conceitual, o problema do artigo será analisado a partir de
dois pontos: a relação entre direitos do autor e a liberdade de expressão e a proteção
oferecida pela lei a personagens reais e fictícios.
1.
Apresentação dos casos
Neste tópico serão brevemente descritos os conceitos, contextos e direitos
relacionados às biografias não autorizadas e as fanfictions.
173
1.1.
As biografias não autorizadas
A biografia impressa é um gênero literário de não ficção no qual um terceiro a
partir de relatos de pessoas que conhecem ou conheciam a pessoa biografada descreve
eventos da vida do biografado. 1 Difere da autobiografia pelo fato de que nesta quem
narra os eventos é o próprio biografado que utiliza da sua própria memória para o
desenvolvimento da narrativa biográfica. Trata-se de sua versão para os eventos,
expressa o modo como os vivenciou. 2 Na biografia os fatos são reconstruídos a partir
de diferentes fontes: relatos de pessoas que estiveram presentes nos eventos narrados,
documentos, contexto histórico. 3
No dia 10 de junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal decidiu sobre
interpretação conforme a constituição dos artigos 20 e 21 do código civil de 2002 na
Ação Direita de inconstitucionalidade 4815 4. O artigo 20 prevê que “ salvo autorizadas
(...) a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa
fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. O artigo 21
reconhece que a “vida privada da pessoa natural é inviolável”. Tais artigos em conjunto
com os direitos protegidos constitucionalmente como a intimidade, privacidade e à
honra serviram como fundamento para se exigir uma autorização prévia do retratado
para a publicação de biografias no Brasil.
O tema foi objeto de discussão nos tribunais em outras ocasiões, como o caso da
biografia do jogador Garrincha, do cantor Roberto Carlos e do cantor Noel Rosa. A ADI
foi proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) com o objetivo
que o Supremo declarasse a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos
artigos 20 e 21 do Código Civil “para que, mediante interpretação conforme à
Constituição, (fosse) afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do
consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como
coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou
veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais”.
1
BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 19, p 1- 14, 1997.
2
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína. Usos
e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 182-191
3
DE ALMEIDA, Francisco Alves. A biografia e o ofício do historiador. In Dimensões, vol. 32, 2014, p.
292-313, p. 300-305.
4
BRASIL, STF. Plenário. ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015.
174
O tema foi objeto de audiência pública e de intensos debates na mídia. Um grupo
de artistas criou o grupo Procure Saber no qual defendia na manutenção da autorização
como forma de proteger os familiares que não optaram pela vida artística. A maioria das
manifestações relatadas na audiência pública, contudo, foram em favor da não
obrigatoriedade de autorização prévia para a publicação de biografias.
A Ministra Carmem Lúcia foi a relatora da ADI 4815. Em seu voto, a Ministra
refutou o argumento de que a autorização seria necessária para se evitar a violação a
intimidade e privacidade do biografado a partir de 4 contra-argumentos: “ qualquer
censura prévia é vedada pelo sistema”, “biografia autorizada é uma possibilidade que
não exaure a possibilidade de conhecimento das pessoas, comunidades, costumes,
histórias”, “ a biografia autorizada não está proibida”, e por fim “privacidade de quem
sai à rua não pode ser considerada de igual quadrante da intimidade daquele que se
mantém guardado em seu secreto quarto” 5. Por unanimidade, o STF declarou que a
anuência prévia para publicação de biografias constituiria uma censura privada não
admitida pela Constituição Federal.
1.2.
Fanfiction
A fanfiction é obra de ficção criada a partir de uma produção original por fãs que
desejam apresentar uma nova versão, dar continuidade a história original ou apresentar
a conhecida história a partir da perspectiva de um personagem secundário. Na maioria
dos casos, a versão é compartilhada via internet sem fins lucrativos. Esse tipo de obra
tem ganhado espaço, migrando por vezes do ciberespaço para livros e filmes, como foi
o famoso caso do livro 50 tons de cinza, que seria uma fanfiction do livro crepúsculo.
A fanfiction, apesar de não ser uma novidade, tem adquirido maior relevância
nas últimas décadas em razão da cultura do compartilhamento potencializada pela
internet. O custo da troca é baixíssimo, quase nulo. No Brasil, há diversos sites que
servem como plataforma para a divulgação de fanfictions. O site Nyah!fanfiction traz a
seguinte apresentação:
“As histórias postadas no site são criações originais ou ficções
criadas por fãs — fanfiction — de animes, seriados, filmes,
livros e muito mais. Este site foi criado com o intuito de
divulgar as séries originais, reunir seus fãs e proporcionar
5
BRASIL, STF. ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015. Voto da Ministra Carmem
Lucia p. 100-101.
175
momentos de lazer através da leitura, assim como incentivar as
pessoas a trabalharem seu lado criativo escrevendo suas próprias
histórias.”6
Nessa apresentação, fica evidente que o site funciona como um espaço de troca,
em que se viabiliza o encontro de pessoas a partir de um interesse em uma obra em
particular. Há inclusive uma seção que ajuda os autores de fanfiction com o uso da
língua portuguesa, como meio de melhorar a qualidade da escrita daqueles que desejam
desenvolver tais obras. A cultura de colaboração também fica clara com a possibilidade
de se criar fanfics em conjunto e de se postar comentários às obras publicadas no site.
Essa forma de exercitar a criatividade encontra, entretanto, um obstáculo nos direitos
autorais, conforme se demonstrará nos tópicos seguintes7.
2.
O conteúdo da liberdade de expressão na sociedade informacional
Há diversas abordagens para o tratamento do tema liberdade de expressão. Para
os objetivos deste artigo, a perspectiva adotada toma como referência a liberdade de
expressão na sociedade da informação. As características da sociedade informacional
foram descritas e analisadas na trilogia a era da informação redigida por Manuel
Castells26. O autor aponta as modificações de ordem econômica, social e cultural
trazidas pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação. A
informação se torna uma das principais matérias primas da nova era, há o
desenvolvimento da lógica de produção em redes, maior flexibilidade das organizações
e uma profunda modificação na forma como nos comunicamos.
A partir da relevância do papel que a informação desempenha em nossa
sociedade, a liberdade de expressão passa a garantir a promoção de uma cultura
democrática, no qual a liberdade para criar e participar do processo de construção
6
Nyah!fanfiction disponível em https://fanfiction.com.br/
Criticas à limitação da liberdade de expressão via copyright podem ser lidas nos trabalhos: SUNDER,
Madhavi, IP3. Stanford Law Review, Vol. 59, 2006; University of California, Davis Legal Studies
Research Paper No. 82. Disponível em: SSRN: http://ssrn.com/abstract=897753; MCKAY, Patrick,
Culture of the Future: Adapting Copyright Law to Accommodate Fan-Made Derivative Works in the
Twenty-First Century (December 1, 2011). Regent University Law Review, Vol. 24, p. 117, 2011.
Disponível em: SSRN: http://ssrn.com/abstract=1728150
26
A trilogia é composta dos livros Sociedade em Rede (vol 1), o poder da identidade, (vol. 2) e fim de
milênio (vol. 3)
7
176
cultural integra o processo de formação do indivíduo. 8 A democracia, nesse caso, não
teria sentido de governança, mas de participação na elaboração e recepção dos
conteúdos. Essa forma de conceber a liberdade de expressão se adapta a realidade que
vivenciamos e não reproduz as necessidades e justificativas para o desenho da liberdade
de expressão do século XX.
Nesse período, a comunicação era realizada de maneira assimétrica e
unidirecional. Essas características são observáveis em virtude dos principais
instrumentos utilizados para repassar informações: o rádio e a televisão. Um pequeno
grupo controla a informação repassada pois poucos têm acesso a sua estrutura. Sem a
participação direta do consumidor, se decide o que, o como e o quando a informação
será difundida. Jack Balkin concorda que essas razões justificam a regulamentação
desse tipo de comunicação. O referido autor identifica importantes diferenças entre o
conteúdo produzido e difundido nos séculos XX e XXI9.
No século XX, a informação era repassada predominantemente de maneira
unidirecional, de poucos para muitos sem a possibilidade dos muitos colaborarem para a
construção dessa informação. Os muitos são apenas vistos como consumidores. Com a
internet, a forma pela qual nos comunicamos foi alterada. A interatividade foi
acentuada. Não há mais o controle dos poucos sobre o que se pode publicar pelos
muitos, quando tal controle poderia ser desempenhado por um editor, pela rádio ou rede
de televisão por estes deterem o domínio dos instrumentos de difusão. Atualmente, a
possibilidade de se divulgar a um custo baixíssimo vídeos, livros e músicas por meio da
internet fez com que passemos do papel de apenas consumidores para também
produtores de conteúdo. 10
O conteúdo da liberdade de expressão não se restringe a opiniões políticas.
Como se trata de um meio para construção de nossa própria identidade, os temas não
são necessariamente públicos, e em grande parte das vezes, o que se observa na internet
é o interesse de se publicar temas de interesses individuais, desde um diário da vida do
autor até grupos de discussão sobre o que aconteceu no último capítulo da novela.
8
Essa função da liberdade de expressão é desenvolvida por Jack Balkin, para quem : .“the point of free
expression is to promote a democratic culture, a culture in which ordinary individuals are free to create,
innovate, and participate in the processes of meaning-making that in turn constitute them as individuals”.
BALKIN, Jack M., "How Rights Change: Freedom of Speech in the Digital Era" (2004). Faculty
Scholarship Series. Paper 242. http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/242
9
BALKIN, Jack M., "How Rights Change: Freedom of Speech in the Digital Era" (2004). Faculty
Scholarship Series. Paper 242. http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/242
10
BALKIN, Jack M., "How Rights Change: Freedom of Speech in the Digital Era" (2004). Faculty
Scholarship Series. Paper 242. http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/242
177
Há duas dimensões que também devem ser consideradas na liberdade de
expressão na era digital: a natureza interativa pela qual a informação é criada e
distribuída e o caráter apropriativo pelo qual se reconhece que o aquilo que produzimos
de algum modo foi fundamentado em recursos culturais já existentes. 11
Os limites daquilo que pode ou não ser apropriável é elemento da definição do
objeto protegido pelos direitos de propriedade intelectual, tema seguinte desse capítulo.
3.
A relação entre os direitos do autor e liberdade de expressão.
O direito autoral é uma modalidade de propriedade intelectual pela qual se
concede direitos exclusivos ao autor ou seu titular na exploração de sua obra por um
prazo limitado de tempo. No Brasil, a exclusividade da obra tem a duração de 70 anos
após a morte do autor.12 Protegem-se tanto os direitos patrimoniais quanto morais do
autor.13 O rol dos direitos morais do autor se encontra definido no artigo 24 da lei 9.610,
dentre eles, o direito de ter seu nome indicado como autor da obra, de modificar a obra,
antes ou depois de utilizada. Tais direitos são considerados pela lei como inalienáveis e
irrenunciáveis.14 O artigo 29 da referida lei, ao tratar dos direitos patrimoniais do autor,
inclui nessa lista a necessidade “de autorização prévia e expressa do autor a utilização
da obra”.
O fundamento para a existência dos direitos de autor reside na capacidade de
promover o equilíbrio entre proteção e acesso às obras. O objetivo da proteção seria
estimular o autor a continuar produzindo, e por consequência, garantindo-se aos demais
o acesso a sua obra. Essa justificativa econômica foi utilizada pela Suprema Corte
americana no caso Harper & Row, Publishers, Inc. v. Nation Enterprises em que
defendeu que o copyright seria um instrumento da liberdade de expressão.
15
Seria
instrumento e não limite, pois, segundo a Corte, o copyright não protege fatos e ideias,
11
BALKIN, Jack M , Digital Speech and democratic culture: a theory of freedom of expression for
information society. New York University Law Review. Vol. 79 n. 1, 2004 . p. 4 ( versão digital
http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/telecom/digitalspeechanddemocraticculture.pdf ) “Freedom of
speech is interactive and appropriative. It is interactive because speech is about speakers and listeners,
who in turn become speakers themselves” (...)Freedom of speech is appropriative because it draws on
existing cultural resources; it builds on cultural materials that lay to hand. Dissenters draw on what they
dislike in order to criticize it; artists borrow from previous examples and build on artistic conventions;
even casual conversation draws on common topics and expressions.”
12
BRASIL, Lei 9.610/98,. Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados
de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
13
BRASIL, Lei 9.610/98, art. 22.
14
BRASIL, Lei 9.610/98, art. 27
15
EUA, Harper & Row v. Nation Enterprises, 471 U.S. 539, 1985.
178
apenas as expressões utilizadas por um autor para descrevê-las. A lei brasileira também
exclui expressamente a proteção as ideias16 do rol do objeto de proteção dos direitos
autorais. O que a lei protege é a expressão utilizada para exteriorizar a ideia.
O espaço para a criação é limitado pelos direitos de propriedade intelectual na
medida em que não se permite a modificação de obras protegidas nem mesmo para uso
próprio.17Adquire-se a obra, mas seu uso fica restrito às condições impostas pelo autor.
Em alguns casos, utiliza-se até de tecnologias que impedem que a obra adquirida seja
lida em outras plataformas. Até mesmo o uso que não implique em modificação tem
sido afetado pelos direitos de propriedade intelectual. As limitações ao uso da obra têm
sido evidenciadas pelas possibilidades trazidas pelo ambiente digital e pela falta da
adaptação dos instrumentos do direito autoral de modo a reequilibrar proteção e acesso,
fundamento de sua existência.
O conteúdo da liberdade de expressão pode ser extraído a partir de diversos
dispositivos constitucionais18. Canotilho defende que a liberdade de expressão “é um
direito multifuncional, que se desdobra num cluster de direitos comunicativos
fundamentais (Kommunikationsgrudrechte) que dele decorrem naturalmente (..)”19 Para
a finalidade desse artigo destacam-se o artigo 5º inciso IX que dispõe: “é livre a
expressão
da
atividade
intelectual,
artística,
científica
e
de
comunicação,
independentemente de censura ou licença” e os artigos 206, inciso II e 220 que
asseguram a liberdade de expressão das atividades intelectuais, cientificas e de
informação respectivamente.
No Brasil, a liberdade de expressão descrita em diversos momentos na
Constituição retrata o interesse do constituinte em assegurar que os episódios de censura
vivenciados durante a ditadura militar não se repetissem na vigência da constituição de
1988.
Nos casos analisados nesse artigo, o peso dado a liberdade de expressão varia
em função do direito contraposto. Enquanto nas biografias não autorizadas se protege a
16
BRASIL, Lei 9.610/98, art. 8, I.
LEMLEY, Mark; VOLOKH, Eugene. Freedom of speach and injuctions in intelectual property cases.
Duke
Law
Journal,
1998,
vol.
48,
n.
2.
Também
disponível
em:
http://www2.law.ucla.edu/volokh/copyinj.htm#IIA
18
Dentre eles destacam-se, o direito a livre manifestação de pensamento, liberdade de consciência e
crença e direito de resposta. Dispostos no artigo º incisos IV, VI e V.
19
CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jonatas M. Constituição e código civil brasileiro: âmbito de
proteção de biografias não autorizadas. In: JÚNIOR, Antônio P. Gaio; SANTOS, Márcio Gil Tostes dos.
Constituição Brasileira de 1988. Reflexões em comemoração ao seu 25º aniversário. Curitiba: Juruá,
2014, p. 132
17
179
liberdade de expressão para atender os interesses da coletividade, no caso das
fanfictions se restringe a liberdade de expressão dos demais em favor dos direitos de
propriedade dos autores.
Nas biografias não autorizadas se privilegia a liberdade de expressão em
detrimento ao direito à privacidade. A proteção nesse caso não diz respeito ao direito
individual. A liberdade de expressão serve ao direito da coletividade de ser informada
sobre personagens públicos e deve ser preservada mesmo que, por via indireta,
familiares ou pessoas que conviveram com personagens notórios também seja de
alguma forma retratados. O Supremo Tribunal Federal entendeu na ADI 4815 que a
exigência de autorização para a publicação de biografias constituiria uma censura prévia
não compatível com o direito à liberdade de expressão garantido na constituição
brasileira.
27
O STF foi ao encontro do que já se tem afirmado quanto aos aspectos
individual e coletivo que constituem do direito à liberdade de expressão. 20
O direito do autor não diferencia gêneros literários, não havendo distinções
quanto à biografia não autorizada. Não se trata de obra derivada, a despeito de retratar
um personagem real que não autorizou que sua trajetória fosse contada e publicada. A
forma como o autor expressou os eventos e descreveu o personagem real torna essa
narração original e apropriável.
A lei de direitos autorais no artigo (LDA) 5º VIII, g, define obra derivada como
“ a que constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra
originária.” O fato da obra se basear na história de um personagem público não retira
dela a originalidade na forma como os eventos são narrados e o personagem é descrito.
O direito do autor protege inclusive os direitos patrimoniais e morais resultantes da obra
ao autor, não concedendo ao personagem público que deu origem a obra direitos sobre
os rendimentos obtidos a partir da comercialização da obra.
Caso se considere, a fanfiction como obra derivada, ela só poderia ser divulgada,
caso houvesse anuência do titular dos direitos autorais da obra original. Ao se
considerar a fanfiction como uma obra nova, esta deveria apresentar características que
27
Sobre o tema ver o parecer elaborado por Gustavo Tepedino apresentado pelos autores na ADI 4815 e
para análise dos elementos constitucionais e técnica de ponderação ver o artigo elaborado por Roberto
Dias. Liberdade de expressão: biografias não autorizadas. Revista Direito, Estado e Sociedade, n.41,
2012, p.204-224.
20
“The idea of a democratic culture captures the inherent duality of freedom of speech: Although
freedom of speech is deeply individual, it is at the same time deeply collective because it is deeply
cultural.” BALKIN, Jack M , Digital Speech and democratic culture: a theory of freedom of expression
for information society. New York University Law Review. Vol. 79 n. 1, 2004 . p. 4 ( versão digital
http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/telecom/digitalspeechanddemocraticculture.pdf
180
permitissem distinção das demais obras, elementos que a tornasse única. José Oliveira
Ascensão defende que “haverá ainda obra, apesar da utilização de elementos
precedentes, desde que haja um espaço de criação individual.” 21
Um caso interessante sobre os limites do que seria obra nova ou derivada foi um
livro cujo o objetivo era recontar a história do E o vento Levou a partir da perspectiva de
uma nova personagem criada pela autora Alice Randall: meia-irmã negra da Scarlett
o’Hara. A obra foi intitulada the wind done gone. A detentora dos direitos autorais da
obra E o vento levou questionou judicialmente a infração aos direitos autorais da obra,
alegando que a obra The wind done gone representava uma modificação não autorizada
do livro original.
22
A autora, Alice Randall, se defendeu afirmando que sua obra era
uma crítica ao livro E o vento levou, principalmente a forma como os escravos eram
retratados na história. O tribunal entendeu que, nesse caso, apesar da obra The wind
done gone ter fins lucrativos, ela poderia ser considerada como um fair use. Na decisão
se reconheceu que a proibição da publicação da obra poderia configurar uma censura
prévia em desacordo com a Primeira Emenda que trata sobre liberdade de expressão na
Constituição americana.23
Esse caso, contudo, não tem sido utilizado como regra no tratamento de
fanfictions. Não há ainda consenso nos tribunais e na doutrina quanto a possibilidade de
fanfictions ser considerada um fair use, ou obra comparada a paródia, ou represente de
fato uma infração ao direito do autor.
Ao se comparar os dois casos, se constata que a liberdade de expressão tem sido
tratada de maneira distinta. Nos casos das biografias não autorizadas, se preserva a
liberdade de expressão em benefício de a coletividade conhecer sua história, mas no
caso da fanfiction limita-se a liberdade de expressão artística em favor do direito de
propriedade do titular da obra. Em uma cultura que se desenvolve cada vez mais de
modo colaborativo, a ausência de uma expressa declaração legal de que a fanfiction
representaria uma limitação autorizada aos direitos do autor, pode vir a tornar os direitos
autorais um obstáculo e não mais um incentivo à produção de obras.
21
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 32
United States Court of Appeals,Eleventh Circuit . Sundtrust v. Houghton Mifflin Co, 268 F, 3d ,1165,
2001.
23
“Moreover, under the present state of the record, it appears that a viable fair use defense is available.
Thus, the issuance of the injunction was at odds with the shared principles of the First Amendment and
the copyright law, acting as a prior restraint on speech because the public had not had access to Randall's
ideas or viewpoint in the form of expression that she chose”. United States Court of Appeals,Eleventh
Circuit . Sundtrust v. Houghton Mifflin Co, 268 F, 3d ,1165, 2001.
22
181
4.
A proteção legal a autores e personagens nas fanfictions e nas biografias
não autorizadas
Na biografia não autorizada o “ personagem” normalmente é uma personalidade
notória que possui o condão de gerar um interesse do público em descobrir o ser
humano por trás da imagem pela qual ele foi conhecido, ou descobrir as razões ou
efeitos de determinadas decisões. Esse tipo de obra pode apresentar um interesse
histórico em razão do papel do biografado ou atiçar a curiosidade sobre a vida de
“celebridades” de pouco interesse histórico ou cultural.
Em seu volto, a Ministra Carmem Lucia afirma que “a leitura do direito há de se
fazer no sentido não pode ser de ordem a impedir o que a cidadania saiba de sua história
pelo interesse particular de quem fez história.” 24Em caso de abuso por parte do autor da
obra, as pessoas afetadas poderão acessar o judiciário para serem indenizadas.
Não se extingue assim o direito à inviolabilidade da intimidade
ou da vida privada. Respeita-se, no direito, o que prevalece no
caso posto em juízo, sem juízo prévio de censura nem
possibilidade de se afirmar – de menos no direito brasileiro – a
censura prévia ou a posteriori, de natureza legislativa, política,
administrativa ou judicial, deixando-se em relevo e resguardo o
que a Constituição fixou como inerente à dignidade humana e a
ser solucionado em casos nos quais se patenteie desobediência
aos princípios fundamentais do sistema.25
A censura deixa de ser prévia e tratada como regra e passa ser objeto de exame
do judiciário em um momento posterior à elaboração da obra.
No caso da fanfiction, o personagem é criação de um autor. A matéria-prima é o
personagem de uma obra já criada. Uma vez criado e publicado, sua história passa a ser
objeto da obra de outros autores. Seria como se o autor da fanfiction criasse uma
dimensão paralela onde desenvolvesse a continuidade de uma história ou a modificação
desta. As infinitas possibilidades de troca propiciadas pela internet permitiram a
divulgação e acesso de espaços onde fãs de um determinado filme, livro, história em
quadrinho apresentam sua versão sobre eventos ocorridos na versão original, ou se
apropriam do personagem para criar outras histórias.
24
BRASIL, STF. ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015. Voto da Ministra Carmem
Lucia p.102
25
BRASIL, STF. ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015. Voto da Ministra Carmem
Lucia p.109
182
Temos aqui então uma primeira diferença que pode ser explorada: no caso das
biografias não autorizadas o personagem é real. Na fanfiction, o personagem é fictício e
objeto da criação de um outro autor.
Aqueles que são contrários a permissão legal da publicação de biografias não
autorizadas questionam se seria justo o autor lucrar com a história de outra pessoa. O
autor, caso tudo que fosse narrado na biografia de fato tivesse ocorrido, estaria
descrevendo relatando a vida de um personagem que não lhe pertencia com o objetivo
de auferir lucro. Essa crítica pode ser lida no comentário do jornalista Renato Ferreira
sobre o tema:
“O verdadeiro autor e dono das informações contidas
numa biografia é o biografado e não o biógrafo, portanto, não se
trata de censura e, sim do direito de resguardar ou não a sua
própria história.” E continua “Ora, se uma pessoa pode ser
considerada "pública" pela sua história como artista, ator,
cantor, escritor ou atleta, qual o direito que qualquer pessoa,
jornalista ou não, tem em publicar fatos sobre a sua vida e ainda
ganhar dinheiro com isso? “26
No caso da fan fiction, os autores contrários a prática questionam algo
semelhante. O autor de Game of Thrones, George R. R. Martin, se manifestou sobre o
fato
“Meus personagens são meus filhos, tenho dito por aí. Eu
não quero as pessoas brincando com eles, obrigado. Mesmo as
pessoas que dizem que amam meus filhos. Tenho certeza de que
é verdade, eu não duvido da sinceridade do afeto, mas ainda
assim …[…] Ninguém pode abusar das pessoas de Westeros,
exceto eu. […]Isto não tem nada a ver com dinheiro ou direitos
autorais ou a lei. É uma reação instintiva de nível emocional. E é
tudo sobre o amor. Em ambos os lados.”
Essas opiniões levam a diversas perguntas: A quem pertence o personagem? Se
a história pertence ao autor original ( no caso das fanfictions) ou ao biografado haveria
um direito exclusivo em determinar como essa história deverá ser contada? Qual seria o
espaço para a liberdade de expressão nos direitos autorais?
No caso das biografias, o Supremo Tribunal Federal considerou que a
necessidade de autorização constituiria censura privada e que nosso ordenamento
jurídico já teria mecanismos para punir os abusos que por ventura viessem a ocorrer. A
26
Renato Ferreira, do blog jogo aberto, em novembro de 2013.disponível
http://renatojogoaberto.blogspot.com.br/2013/11/biografia-nao-autorizada-direitos.html
em:
183
Ministra Carmem Lucia, optou em seu voto pelo direito à informação por meio da
liberdade de expressão: Segundo a Ministra “... a biografia autorizada é uma
possibilidade que não exaure a possibilidade de conhecimento das pessoas,
comunidades, costumes, histórias. E entre a história de todos e a narrativa de um, optase pelo interesse de todos.”27
Percebe-se aqui que a liberdade de expressão foi valorada em razão do direito à
informação dos demais, da possibilidade de melhor compreendermos nossa história.
Nesse caso uma história “real” não precisaria de autorização para ser contada. A
personalidade pública, seria um personagem sem direitos autorais patrimoniais ou
morais sobre sua própria história. Apenas ao redigir sua própria biografia, passaria a ser
considerada autora e gozaria da proteção legal.
Enquanto que nas fanfictions, se interpretarmos essa produção como uma obra
derivada, qualquer modificação precisaria da autorização do autor. Haveria ofensa aos
direitos morais do autor, segundo o artigo 24 incisos IV e V. 28 Nesse caso, ao
personagem fictício seria garantido indiretamente, via seu autor, uma maior proteção do
que aquela assegurada aos personagens reais. A “censura” poderia ser considerada legal
pois estaria motivada pelo exercício dos direitos de exclusividade concedidos pela
propriedade intelectual ao seu autor.
À primeira vista, há uma diferença entre as proteções desses dois tipos de obra: o
contraponto utilizado para o exame do conteúdo da liberdade de expressão.
Nas biografias, ao lado da liberdade de expressão está o direito de todos de
conhecer outras versões sobre eventos históricos e personagens reais relevantes para a
construção seja ela política, econômica, social ou cultural de um povo. Trata-se de um
dado histórico. Para proteger essa possibilidade de conhecer e discutir nossa história
mitigamos em casos concretos o direito à intimidade de personalidades públicas e de
suas famílias. O que se protege é o acesso à informação.
Nas fanfictions, contudo, qual seria o interesse da coletividade no caso?
Assegurar a todos o direito de escrever sobre o que desejar? Até que ponto se apropriar
dos personagens e da história criada por outrem poderia configurar um exercício da
liberdade de expressão? Estamos falando apenas dos casos em que o autor da fanfiction
27
BRASIL, STF. ADI 4815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/06/2015. Voto da Ministra Carmem
Lucia p. 100
28
BRASIL, Lei 9.610/98
184
auferiria lucro ou a proibição valeria mesmo para casos em que não houvesse esse
interesse?
Há duas opções nesse caso. Ao se considerar a fanfiction como infração ao
direito autoral, entende-se que o direito de propriedade do autor deva ter preferência à
liberdade individual de expressão artística e preferência ao acesso da coletividade a esse
material transformado. Por essa solução, minimiza-se a importância das novas formas
de produção intelectual através de plataformas colaborativas e enfatiza-se o interesse
econômico como incentivo fundamental para o desenvolvimento de obras.
A segunda opção é tratar a fanfiction como uma transformação autorizada da
obra pela lei e definir quais seriam as condições que levariam esse uso a ser considerado
como justo.
A comparação entre esses dois tipos de obras com conteúdo, objetivos e modo
de produção distintos buscou evidenciar que o rol dos direitos concedidos aos titulares
de direitos autorais precisa ser rediscutido, principalmente quanto aos limites sobre o
uso da obra protegida. As plataformas nas quais os conteúdos são divulgados em muito
foram alteradas e o direito precisa se adaptar a forma de difusão de conteúdos digitais.
Deve-se também discutir o acesso a determinadas obras por motivos
educacionais. Há projetos de lei que tentam limitar a cópia a 25% da obra29, outros,
como Projeto de lei 3133/2012- aumenta o rol do uso não autorizado. O projeto de lei
do Senado n. 465 aborda a concessão de licenças compulsória em direitos autorais e o
projeto de lei da Câmara n. 42 de 2014 expressamente garante a possibilidade de se
publicar biografias sem a necessidade de autorização do biografado. Os projetos em
discussão no congresso indicam uma tentativa de adaptação da lei às necessidades da
sociedade informacional, mas o debate precisa ser aprofundado tendo como referência
os objetivos pretendidos com a propriedade intelectual.
Conclusão
Os direitos de propriedade intelectual são relevantes para nossa sociedade, mas é
imprescindível o debate da sociedade sobre a capacidade dos instrumentos criados nos
séculos XIX e XX ainda estarem adaptados a nossa realidade, e principalmente se os
objetivos para os quais esses direitos foram criados ainda podem ser alcançados por
esses mecanismos. O equilíbrio justo entre proteção ao autor e acesso da sociedade à
29
BRASIL, Projeto de lei n. 34/2015 de autoria do senado Valdir Raupp.
185
obra não é uma linha fixa, mas uma linha que se redefine em função da forma como o
conteúdo é elaborado, do meio no qual é divulgado e da necessidade de acesso à
informação pela sociedade. Se por um lado, a decisão do Supremo Tribunal Federal
referente à ADI 4815 confirmou a importância da proteção da liberdade de expressão
em sociedades democráticas, por outro, o caso das fanfictions demonstrou que ainda há
um longo caminho para se discutir as limitações aos direitos do autor em favor da
liberdade de expressão artística.
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BALKIN, Jack M , Digital Speech and democratic culture: a theory of freedom of
expression for information society. New York University Law Review. Vol. 79 n. 1,
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http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/telecom/digitalspeechanddemocraticculture.pdf
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Studies Research Paper No. 82.
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SSRN: http://ssrn.com/abstract=897753
187
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Celso Antonio Pacheco Fiorillo * Regina Célia Martinez