À beira do poço do Bem Viver (Jo 4,1-42) Em tempos de crescimento de fundamentalismo e intolerância, de aumento de casos de homofobia e de xenofobia, o texto do encontro entre a Samaritana e Jesus se constitui numa boa oportunidade de conversa. Não existe Bem Viver sem respeito às diferenças. Mais do que isso, para que o Bem Viver aconteça, faz-se necessário ir ao encontro, mergulhar na outra pessoa e na outra cultura. A sociedade atual é cada vez mais plural e isso é possibilidade de enriquecimento. Sentemos à beira do poço para uma conversa em torno desse assunto. Nossa tendência em ler o texto a partir de uma perspectiva unicamente cristocêntrica nos faz esquecer aspectos importantes: o encontro se dá na terra da mulher, a Samaria. O estrangeiro e diferente na história é Jesus. É ele que, exausto, no calor do meio-dia, sente fome e sede (Jo 4,6). Ele sequer tem um balde e, por causa da profundidade do poço (Jo 4,11), necessita da ajuda da mulher: Dá-me de beber (Jo 4,7). A arrogância e prepotência de correntes de um judaísmo excludente são colocadas em cheque: todo mundo precisa de ajuda! A rivalidade entre pessoas judias e samaritanas era antiga. Remanescentes de um processo de colonização promovido pela dominação assíria, que trazia pessoas de outras regiões e as misturava com os habitantes locais, os samaritanos conseguiram, inclusive, preservar maior pluralidade de cultos (2Rs 17,24-41). Mas tal miscigenação gerou reações de desprezo e rivalidades entre aquelas pessoas que se consideram “legítimos filhos de Israel” e aquelas que são “misturadas” (Esd 4,1-5).9 Alguns séculos depois, os samaritanos construíram para si um templo no Monte Garizim, o mesmo citado pela Samaritana (Jo 4,20). Alguns judeus, liderados por João Hircano, destruíram o templo samaritano, alegando que o único lugar de adoração era Jerusalém. O livro do Eclesiástico (Sirácida) 10 se refere aos samaritanos como um “povo estúpido que mora em Siquém, que nem sequer é nação” (Eclo 50,25-26). Lideranças judaicas, quando quiseram acusar Jesus, fizeram uso de seu preconceito: Não dizíamos com razão que és samaritano e que tens um demônio? (Jo 8,48). Não é assim que ainda pensam muitos cristãos, católicos e evangélicos, ao se referirem, por exemplo, a pessoas adeptas aos cultos de matriz africana? Não é também essa postura da grande mídia (dominada por pessoas que se dizem cristãs), quando fala dos muçulmanos, automaticamente rotulados de terroristas? E quantas vezes católicos e evangélicos continuam se tratando dessa forma! Qual tem sido a postura de boa parte das instituições e das pessoas em relação à convivência homoafetiva? Com certeza, não se constrói o Bem Viver com tanta discriminação e preconceito. O fato de Jesus passar pela Samaria já diz muito. Muitos judeus faziam outro caminho para não por os pés na terra desta gente. A iniciativa de entrar em espaço estrangeiro, de se tornar estrangeiro, mostra uma tentativa de abertura, de superação do preconceito: desejo de aprender com o diferente. Nota-se esta postura tanto em Jesus como na Samaritana, cujo nome, infelizmente não nos foi preservado. De qualquer forma, ela matou a sede de Jesus. Ambos tinham desejos de matar também outras sedes. O texto poderia ter nos contado que, antes de seguirem conversa, a mulher lhe ofereceu água fresca e reconfortante. Agora refeito, Jesus pode seguir no diálogo, tenso em vários momentos. Mas é tentativa de acerto, de compreensão recíproca, de acolhida do diferente. 9 Cf. NEUENFELDT, Elaine. Encontros de diálogo entre a Samaritana e Jesus. In: SCHINELO, Edmilson (org). Bíblia e educação popular: encontros de solidariedade e diálogo. São Leopoldo: CEBI, 2005, p. 38. 10 O livro não existe na Bíblia Hebraica, mas somente na versão grega, conhecida como Septuaginta (LXX). É apócrifo na linguagem protestante ou deuterocanônico na linguagem católica. O diálogo seguiu por vários caminhos, quase sempre truncados: conversa em torno da diferença entre judeus e samaritanos (Jo 4,9.22) sobre a água e a história do poço (Jo 4,715), sobre os maridos da Samaritana (Jo 4,16-18), sobre as diferenças religiosas. É a Samaritana que indaga: Nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vocês dizem que em Jerusalém está o lugar onde se deve adorar (Jo 4,20). Nota-se na resposta de Jesus o quanto é difícil se libertar de preconceitos religiosos, de coisas que se escutam desde a infância: Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus (Jo 4,22). As portas não se fecham, porém. Tanto Jesus como a mulher estão dispostos a escutar, atitude de verdadeiros adoradores em espírito e verdade (Jo 4,23). Jesus consegue se deixar conhecer, assume diante dela que se sente chamado a uma missão especial (Jo 4,26). Ela confia, deixa seu cântaro e vai anunciar (Jo 4,28-29). E o que faz as pessoas da cidade acreditarem é a palavra e o testemunho da Samaritana (Jo 4,39). À beira do poço, tomando uma água fresca, podemos nos perguntar: Quando os europeus aqui chegaram, nossos povos indígenas já não tinham a água, o poço e o balde? O que podemos aprender de sua história e de espiritualidade? Em nossos contatos com o diferente, ainda estamos falando apenas em tolerância? Ou temos a disposição de “deixar o balde” de nossas certezas intocáveis e beber do Divino que se encontra e se revela nos outros cultos e outras religiões? Para quem vive no Cerrado, conhecido como “berço das águas”, o que podemos fazer de concreto para enfrentar a imposição monoteísta da religião do capital que deseja controlar todas as águas?