Universidade Estadual de Feira de Santana
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
RICARDO GEORGE SOUZA SANTANA
Lourenço de Brito Correa: o sujeito mais perverso e escandaloso.
Conflitos e suspeitas de motim no segundo vice-reinado do Conde de Óbidos.
(Bahia 1663-1667)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Feira de
Santana, como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em História. Área de concentração: História
Social.
Orientadora: Profª Dra. Márcia Maria Barreiros
Feira de Santana
2012
2
Introdução
O historiador espanhol Jaume Vicens Vives preocupou-se com as estruturas do poder na
Europa do século XVII, para ele o chamado poder absoluto verificado nas monarquias deste período
foi antes de tudo: “uma realidad de mando, uma realidad vivida cotidianamente por quienes habian
de governar y queines deseaban o no deseaban se gobernados de tal guisa”.1
Os aspectos que engendram esta realidad de mando, forjadas pelos sujeitos do século XVII,
devem ser compreendidos a partir dos valores, sentimentos e visões de mundo que estes
partilhavam. Quando vasculhamos as experiências individuais e coletivas vivenciadas podemos ter
acesso a alguns aspectos da cultura política vivenciada, especialmente se o nosso enfoque for a
capitania da Bahia, sede do governo colonial e abrigo de oficiais régios com funções que lhes
credenciavam prestígio social.
Paixão, desejo, misericórdia, ganância, suspeita, medo, vingança são sentimentos que
atravessaram a história e atribuíram significados diversos aos comportamentos e condutas de
algumas pessoas ou grupos. Na Bahia do século XVII, a união destes sentimentos tão distintos deu
uma tonalidade particular à conjuntura que se delineava, principalmente após a Restauração
Brigantina.2 Neste momento, a realidade cotidiana de governantes e governados não poderia mais
ser enquadrada em uma única cultura política e sim, em culturas políticas.
Nas palavras de Sohiet, Bicalho e Gouvêa:
[...] As culturas políticas constituem fator de agregação social, contribuindo de modo
decisivo na constituição de uma visão comum de mundo, de uma leitura compartilhada do
passado e do futuro. Formam desse modo ‘um patrimônio indiviso’, composto por
vocabulários, símbolos e gestos, por todo um arsenal de ferramentas que possam exprimir
valores, ideias e desejos políticos de um dado conjunto social.3
Podemos ter acesso à cultura política de uma época a partir dos discursos produzidos por
homens e mulheres que experimentaram e disputaram uma determinada configuração de poder e
1
VIVES, Jaume Vicens. “Estructura Administrativa Estatal en los siglos XVI Y XVII.” In: MARTÍN, Jesús Izquierdo.;
LEÓN, Pablo Sánchez. (coord.) Clásicos de historia social de España: una selección crítica. Rioja: Fundación
Instituto Historia Social, 2000. p. 102.
2
Esta expressão se refere ao processo deflagrado em Portugal, em primeiro dezembro de 1640. Tinha por objetivo
restaurar o reino de Portugal à uma dinastia de sangue luso. Desde 1580, a Casa da Áustria representada pelos Filipes de
Habsbourg, hegemonizavam o controle da Península Ibérica e unificaram as coroas de Portugal e Castela durante 60
anos. Em 1640, o oitavo Duque de Bragança, apoiado em seu casamento com D. Luisa de Gusmão, uma espanhola
descendente dos Reis de Portugal por via paterna, articulou o processo de rebelião contra a Espanha e foi aclamado Rei
de Portugal com o título de Rei D. João IV, conhecido como “o Restaurador”. A consolidação da independência da
Espanha e demarcação territorial só foi possível após 28 anos de guerra entre Portugueses e Espanhóis que só findou em
1668. Para mais detalhes sobre a Restauração Brigantina e seus reflexos na Europa e no Ultramar, ver: FRANÇA,
Eduardo D’Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997 e GODINHO, Vitorino
Magalhães. Ensaios Sobre a História de Portugal. vol. II. Lisboa: Livraria Sá Costa Editora, 1968, p.257-291.
3
SOHIET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Culturas políticas: ensaios de
história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p.13
3
deixaram vestígios das posições políticas que tomaram ao longo das suas carreiras. Partindo destes
aspectos, a pesquisa histórica tenta alcançar as motivações dos sujeitos levando-se em conta a
coerência de seus comportamentos individuais e suas relações com o coletivo.
Ao estudar a função política das elites na sociedade colonial mineradora do século XVIII,
Vera Alice Cardoso Silva entendeu que as relações sociais vivenciadas na Colônia foram
respaldadas a partir da manutenção de certos privilégios, associados a ritos e símbolos de
reconhecimento de superioridade que orientavam a articulação das sociabilidades. Este modelo,
baseado em relações pessoais, referenciava a identidade dos indivíduos de acordo com sua
ascendência familiar e caracteriza o que a autora chamou de sociedade tradicional.4
A elite política que compunha a sociedade colonial diferenciava-se das outras camadas da
população por ser formada pelos [...]indivíduos ocupantes das posições que asseguram o exercício
efetivo do poder político de regulação compulsória e de fiscalização com poder de sanção.5 Faziam
parte deste seleto grupo de homens da Colônia aqueles que tinham experiência com as armas e com
as letras.
Na prática, esta diferenciação apresentava-se no convívio social a partir de diversas
manifestações de comportamentos que conferiam hierarquias e exigiam atitudes de submissão para
com os que ocupavam funções de certa relevância política, sendo comum a possibilidade de união
de pessoas desta mesma elite em torno de interesses congruentes, [...]sob a forma da relação
calculista que vincula parceiros interessados na obtenção de objetivos comuns, aí incluído o de
combater ou neutralizar adversários políticos.6
Neste sentido, o objetivo desta dissertação é analisar a trajetória política de dois homens que
se encontraram no palco das Américas durante o século XVII e neste espaço foram adversários. De
formas diversas, um nobre de Portugal e um fidalgo da Bahia vivenciaram a cultura política do
Brasil colonial e cumpriram atividades de grande importância para o serviço régio neste lugar.
Lourenço de Brito Correa e o Conde de Óbidos conheciam os meandros do poder do Reino e do
Ultramar, porém, eles exerceram posições hierarquicamente desiguais na sede do governo do Brasil
e por causa de desentendimentos políticos com Óbidos, Lourenço foi neutralizado e morreu numa
cadeia em Lisboa.
4
SILVA, Vera Alice Cardoso. “Aspectos da função política das elites na sociedade colonial brasileira. O 'parentesco
espiritual' como elemento de coesão social.” In: Revista Varia Historia, UFMG,n.31, janeiro/2004, p. 100.
5
Idem p.101.
6
Idem.
4
O nosso enfoque está no vice-reinado do Conde de Óbidos e sua experiência na Bahia
(1663-1667), contudo, não foi possível fixar este estudo em um recorte cronológico rígido, muito
menos foi possível uma delimitação espacial específica para nossa abordagem, a mobilidade de
funcionários régios pelas partes do globo era uma demanda corriqueira e necessária para a
consolidação das dinastias Ibéricas, por isso foi preciso acompanhar o itinerário de serviços que
Óbidos executou na Europa, América e Ásia, bem como analisar o seu modo de governar nestes
diferentes locais para assim entender a inserção política de D. Vasco Mascarenhas antes e depois da
Restauração de 1640.
Também seria difícil explicar com clareza os motivos das rusgas entre o Conde vice-rei e
Lourenço de Brito Correa entre os anos de 1663 a 1667 sem antes analisar o histórico de serviços
prestados por Lourenço nas guerras contra os holandeses e as atividades administrativas que
exerceu na Bahia desde o período Filipino. Sua descendência familiar e influência política na cidade
de Salvador em 1663 são resultado de uma carreira recheada de disputas políticas e que foram
relembradas no governo do Conde de Óbidos, especialmente porque nesta época o velho Lourenço
exercia bastante influência não só entre os juízes do Tribunal da Relação como também entre os
militares e eclesiásticos que residiam na Bahia.
Lourenço de Brito Correa e outras autoridades de destaque na cidade de Salvador
manifestavam resistência e estranhamento à gestão de D. Vasco Mascarenhas por via de
consecutivas epístolas enviadas às autoridades reinóis. O vice-rei, por sua vez, tentava silenciar seus
principais adversários afastando-os da Colônia e justificando suspeita de conjuração. O desenrolar
desta trama produziu um conjunto de comunicações entre as autoridades do Reino e da Bahia e pela
riqueza de informações podem dar uma visão mais pormenorizada sobre o momento político e as
disputas que vivia a esta Capitania durante o período em tela.
O primeiro capítulo é um esforço de investigação mais detalhado acerca da trajetória política
de Lourenço de Brito Correa, partindo de alguns aspectos da sua descendência e pertencimento à
elite da Bahia do século XVII, tentaremos mapear o itinerário de sua educação e as ideias que
compartilhava no seu tempo, para isso o trabalho de genealogia do Frei Santa Maria Jaboatão foi de
fundamental importância, seja como fonte documental essencial para qualquer historiador
interessado no método prosopográfico, seja como referencial de pesquisa sobre a formação da
sociedade da Bahia colonial. Dados pessoais e as representações de Lourenço de Brito Correa foram
acessados em seu depoimento ao Tribunal do Santo Ofício por ocasião da segunda visitação à
Bahia.
5
Baseando-me nos estudos de Anita Nowinsky sobre o clima de perseguição aos cristãosnovos na Bahia, pude compreender com mais lucidez a denúncia feita por Lourenço especialmente
as acusações de blasfêmia e comportamento sexual sodomita promovidos por alguns judeus
proprietários de engenhos no recôncavo da Bahia. Notamos sua aversão aos marranos, mas também
constatamos informações sobre sua idade, a patente de Capitão, filiação, local de residência e
posição política que este fidalgo ocupava na cidade de Salvador em 1619.
Luiz Henrique Dias Tavares e Francisco Adolfo de Varnhagen foram autores fundamentais
para o desenvolvimento deste capítulo, a partir deles pude ter acesso à desenvoltura de Lourenço de
Brito Correa como militar, outros cronistas do século XVII também registram sua patente de
Capitão dos Aventureiros e seu protagonismo nas guerras que a dinastia Filipina perpetrou para
expulsar os holandeses da Bahia e de Pernambuco, Lourenço esteve entre os combatentes mais
aguerridos na empreitada que expulsou os invasores da cidade de Salvador, seja em 1625, seja nos
anos seguintes a 1630.
O trabalho de Wolfgang Lenk também auxiliou com informações sobre algumas desavenças
registradas entre Lourenço de Brito Correa e o Governador Diogo Luis de Oliveira, Afonso Costa
indicou que o capitão Lourenço passou uma temporada na Europa a regozijar dos benefícios
adquiridos pelo monarca em recompensa dos serviços que prestou nas suas batalhas na Bahia,
contudo, seus conhecimentos militares não foram dispensados, o biógrafo afirmou que Lourenço
voltou ao Brasil em 1637, como tripulante de uma das armadas de socorro enviadas pelo Rei Felipe
IV e continuou a auxiliar ao Conde da Torre na peleja de Pernambuco.
A leitura das Cartas do Conde da Torre exerceu um papel fundamental nesta investigação, o
manuseio das mesmas me deu oportunidade de conhecer com mais profundidade o protagonismo
militar de Lourenço no período das tentativas de reconquistar o nordeste. Percebe-se que Lourenço
demonstrou o acúmulo de experiência militar e conhecimento do clima tropical para aconselhar ao
seu superior como proceder ao enfrentamento dos batavos em Pernambuco de forma eficaz.
O Conde da Torre não conseguiu expulsar os holandeses do nordeste, na Europa, a Casa da
Áustria amargava as consecutivas revoltas dos moradores de Portugal, especialmente da elite
lusitana descontente com aumentos na cobrança de impostos para custear a guerra com os Países
Baixos e perdas consecutivas nas conquistas ultramarinas. A situação na Bahia também estava
preocupante dado o desgaste que a figura do monarca espanhol vinha sofrendo devido a mais
taxações que recaíam sobre os fazendeiros e senhores de engenho desta parte do Império, além das
consecutivas investidas das tropas de Nassau na capitania na Bahia, seja assediando o litoral e
6
apreendendo o conteúdo das embarcações, seja penetrando o recôncavo e queimando engenhos e
canaviais.
O Marquês de Montalvão foi o primeiro Vice Rei do Brasil7, enviado com ordens expressas
do Rei Felipe IV e seu Valido para expulsar os holandeses de Pernambuco e reconquistar o
Nordeste. A sua chegada acontece e maio de 1640, no fim deste mesmo ano percebe-se o final do
período de hegemonia espanhola na península Ibérica e restauração do trono português à uma
dinastia lusa e independente da casa da Áustria. Sérgio Buarque de Hollanda explicou como se deu
a recepção do Duque de Bragança na América e os posicionamentos que os mandatários providos
no Brasil por outorga Filipina – o Marques de Montalvão e Salvador Correa de Sá – apresentaram
frente à nova situação política e tais argumentos serão também estudados neste capítulo.
Para além de apresentarmos a fidelidade que o Marquês de Montalvão demonstrou na Bahia
ao tomar conhecimento dos resultados do dia primeiro de dezembro de 1640 e a posterior coroação
de D. João IV como rei de Portugal, a participação de Lourenço de Brito Correa entre os anos de
1641 e 1642 será discutida partir da trama que este se envolveu para retirar o primeiro Vice Rei do
seu posto e sua posterior entrada na governança do Brasil.
Apesar de separados pelo Oceano Atlântico, Lourenço e Óbidos estavam unidos em um
ponto comum após 1640: ambos estavam satisfeitos com a Restauração Brigantina e de diferentes
maneiras contribuíram com seus serviços aos monarcas que sucederam o rei D. João IV. A
deposição do Marquês de Montalvão e o envio do primeiro Governador Geral do Brasil nomeado
pelos Bragança foi o início de uma mudança radical na vida de Lourenço. Ele foi acusado de
corrupção enquanto esteve no governo provisório do Brasil, teve ordens para ser conduzido ao
Reino e lá ficou respondendo residência.
Mesmo após consecutivos pedidos de vista em seu processo e súplicas de perdão, Lourenço
permanece preso na cadeia do Limoeiro mais de sete anos, em uma carta escrita para o Conselho
Ultramarino ele relembrou a astúcia que teve ao interceptar as comunicações enviadas pelo
comando castelhano em um barco de Sevilha e que provavam sua inocência e a infidelidade de
7
Vice Rei era o mais importante título que um funcionário das monarquias Ibéricas poderia receber, constituía-se na
representação direta dos Reis de Espanha e Portugal no mundo colonial ultramarino. A tradição deste título tem raízes
espanholas, o primeiro a recebê-lo foi o genovês Cristóvão Colombo pelas mãos da monarquia católica de Aragão e
Castela, o primeiro Vice-reinado da Índia foi dado a D. Francisco de Almeida (1505-1509) pelas mãos do Rei Manoel I,
de Portugal, o Rei Felipe III, de Espanha, nomeou a D. Jorge Mascarenhas, o Marquês de Montalvão, como primeiro
Vice Rei do Estado do Brasil, exerceu este cargo no ano de 1640 até 1641 e foi deposto. A função de Vice Rei deixou de
existir no reinado de D. João VI, em 1808. Ver: AZEVEDO, Antonio do Carlos Amaral. Dicionário de nomes, termos
e conceitos históricos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 453. Raphael Bluteau nos diz que o Vice Rei era
“o governador de hum Reyno, que manda com suprema autoridade, em nome, & em lugar do Rey”, ver: BLUTEAU, D.
Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. 8. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1728, p.
472.
7
outros membros da família de Montalvão para com D. João IV, também explicava que as suspeitas
de que ele teria roubado a fazenda real enquanto esteve no governo provisório nunca foram
comprovadas e por isso pedia a restituição dos seus ofícios.
No tempo em que esteve preso em Lisboa, Lourenço sofreu perdas consideráveis em seu
patrimônio, neste período a distância da atenção de D. João IV trouxe-lhe desgraça: seus bens foram
confiscados na Bahia, seus gados e escravos leiloados e, como se não bastasse, Lourenço foi
enviado de volta à Bahia na condição de degredado, por acusações formuladas por um familiar do
Santo Ofício.
A ordem de degredo de volta para o Brasil foi proveitosa para a carreira de Lourenço, notase sua presença na Bahia na década de 1650 e neste período ele alcançou novamente a graça régia,
especialmente com o advento da Regente D. Luísa de Gusmão. Pelo favor da Rainha Mãe, ele
voltou à cena política e foi reintegrado à Provedoria Mor da Fazenda Real do Brasil. Para saber
como Lourenço de Brito Correa conseguiu alcançar outras mercês régias e reconstruir seu
patrimônio dilapidado nos anos em reclusão no Reino, foi necessário estabelecer um estudo mais
aprofundado sobre as práticas de escrita e de leitura no século XVII e de como estas habilidades
eram por ele acionadas de diferentes maneiras para pleitear a graça régia.
Antônio Manuel Hespanha, Maria de Fátima Gouvêa, Mafalda Soares da Cunha e Nuno
Gonçalo Monteiro são exemplo de historiadores portugueses que na atualidade tem dado
contribuições importantes para a compreensão das monarquias Ibéricas sob o olhar da política e a
partir dos usos e costumes próprios das sociedades de Antigo Regime. Tais usos e costumes foram
trabalhados em suas abordagens e reúnem um ponto de convergência: estes autores evidenciam a
relevância das interpretações de Marcel Mauss quanto às possibilidades do favor benevolente dos
reis para com os seus súditos. Apoiado pelas contribuições dos historiadores acima mencionados
apresenta-se alguns aspectos do funcionamento deste sistema de concessão de privilégios que a
historiografia tem chamado de “economia do dom” ou “economia de mercê”, bem como os
contornos particulares que esta característica da monarquia Brigantina ganhou na Bahia.
Para concluir o desenho da trajetória de Lourenço de Brito Correa, não poderia deixar de
fazer uma análise mais pormenorizada sobre outra forma de manifestação da mercê régia e como
esta era amplamente pleiteada pelos habitantes da Bahia que sabiam ler e escrever. Para além de
ofícios, serventias e outras posições administrativas outorgadas pelo Rei, a mercê também poderia
se manifestar na concessão de grandes extensões de terras.
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O monarca era senhor supremo do Brasil, não somente dos seus habitantes, mas também dos
rios e riquezas minerais descobertas ou que porventura haveria de se descobrir. Por não poder
explorá-las apenas com os recursos do erário, o Rei disponibilizava Cartas de doação, sesmaria,
forais e outros documentos que concediam ao interessado um pedaço de chão em forma de graça
régia.
Os trabalhos de Kátia Mattoso, Ciro Flamarion Cardoso, Erivaldo Fagundes Neves e
Felisbello Freire foram essenciais para conhecer alguns aspectos do sistema de concessão de terras
engendrado na Bahia Colonial. O fidalgo Lourenço de Brito Correa era herdeiro de grandes
propriedades adquiridas pelos seus antepassados, verificamos que ele continuou a ampliar o seu
patrimônio fundiário e pleiteou alguns lugares na região do recôncavo da Bahia e às margens do Rio
Paraguaçu. Analisaremos seu interesse por sesmarias e seu pedido de fundar uma vila às suas
expensas nestas férteis paragens, obtendo a jurisdição civil e criminal.
Em 1663, Lourenço estava à beira dos setenta anos de idade e apresentava-se como bem
sucedido homem de negócios, Cavaleiro da Ordem de Cristo, confrade maior da Irmandade da
Misericórdia da Bahia, Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil por graça da Rainha Regente e
Chanceler da Relação da Bahia, ou seja, Lourenço fazia parte do seleto grupo de homens que
decidiam os rumos da cidade de Salvador e que outrora estavam submissos à D. Luísa de Gusmão.
Todavia, os ecos do “golpe de Alcântara” e ascensão de D. Afonso VI no trono de Portugal fazia-se
ouvir na América. Com o advento deste novo soberano, a vida de Lourenço passou por mais uma
mudança, desta vez definitiva.
O segundo capítulo vai tratar da experiência política de D. Vasco Mascarenhas e para
conhecer com mais profundidade a vida deste homem foi necessário recorrer a outro universo de
informação e, consequentemente, uma nova experiência de pesquisa. Trata-se de um nobre oriundo
de uma família vinculada às dinastias Ibéricas e herdeiro das honras adquiridas por seu pai. O
instrumental da genealogia e da heráldica foram acessados para conhecer os títulos e privilégios
adquiridos por este membro da família Mascarenhas, também foi preciso recorrer a cronistas da
Restauração de Portugal que registraram seu protagonismo político e serviços que prestou para os
Bragança até o final da sua vida.
A pesquisa deu acesso às experiências de governança que D. Vasco Mascarenhas teve na
Europa, América e Índia. Esteve em posição de comandante nas trincheiras montadas em Flandres e
mostrou-se um habilidoso combatente nos Terços de Infantaria espanhóis. A primeira atividade
deste nobre na América está associada a um pedido particular, feito pelo Governador Geral Diogo
Luis de Oliveira. Necessitado de militares habilidosos e conhecedores do modo de combate batavo,
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o Governador Geral amargava perdas no exército e pouco tempo disponível para inspecionar as
tropas e guarnições espalhadas pelo Brasil e via na figura de D. Vasco Mascarenhas um auxiliar
eficaz.
Uma das primeiras constatações que D. Vasco Mascarenhas teve ao se deparar com a luta
para reconquista do Nordeste sitiado pelos holandeses era a necessidade de adaptar os
conhecimentos adquiridos em Flandres à realidade do clima e da topografia do Brasil. Aprender e
ensinar foram atividades que estiveram sempre presentes neste período em que serviu como auxiliar
do Governador, o posto que ocupava permitia-lhe visitar as vilas e cidades do Brasil, verificar as
condições das fortalezas existentes, inventariar o aparelho bélico da Colônia, bem como fazer um
levantamento quantitativo e qualitativo do efetivo militar que estava presente no Brasil nesta
ocasião.
A volta de D. Vasco Mascarenhas para Madri no ano de 1636 coincide com seu primeiro
matrimônio e com a outorga do título de Conde de Óbidos, esta titulação nobiliárquica demonstra
que apesar de ter origem portuguesa, Óbidos manteve fortes vínculos com a dinastia Filipina. O Rei
Felipe IV e seu valido continuaram a solicitar os serviços militares de Óbidos e devido à
experiência acumulada na América, vemos que o Brasil estava mais uma vez no seu itinerário de
serviços. Ele foi um dos generais que acompanhou o Conde da Torre em uma nova armada de
socorro organizada para expulsar os holandeses do Brasil, nesta segunda passagem pela Bahia,
assumiu o posto de General de Artilharia, cargo bastante apropriado para um nobre com sua
carreira, pois era conhecedor do armamento e efetivo militar presente no Brasil.
A relação estabelecida entre o Conde de Óbidos e o Conde da Torre, seu superior
hierárquico, foi objeto de atenção neste capítulo. Notamos que em um primeiro momento o Conde
da Torre elogiava os serviços de Óbidos e chegou a entregar-lhe o governo do Brasil enquanto
estava na guerra, todavia, em março de 1640, o relacionamento entre estes dois generais não mais
existia.
A documentação arrolada aponta que o Conde de Óbidos não presenciou o fim do governo
do Conde da Torre, nem a chegada do Marquês de Montalvão em maio de 1640. Ele evadiu-se do
seu posto sem dar satisfação alguma ao seu superior e retornou à Lisboa em março deste ano
motivado por “pretensões particulares.” Tais pretensões guardam bastante proximidade com os
ventos de Restauração, Óbidos estava inserido na teia de relações engendradas pelos nobres de
Portugal interessados em coroar o oitavo Duque de Bragança e restabelecer o reinado de monarcas
de sangue luso, após sessenta anos de hegemonia da casa da Áustria.
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A fidelidade do Conde de Óbidos ao projeto político de D. João IV é vista desde os
primeiros momentos da aclamação e nos anos que seguem este reinado, contudo, não se pode perder
de vista outro aspecto que vinculava Óbidos com a casa Brigantina: D. Vasco Mascarenhas era
parente do Rei por via materna e tal proximidade foi reconhecida em cartas escritas pelos Reis de
Portugal que o chamavam de “conde parente” e “muy amado sobrinho”.
As atividades deste nobre dentro da estrutura política que se delineava em Portugal e suas
conquistas foram notadas a partir das funções que exerceu durante o período Brigantino. Em 1640
o Conde de Óbidos fazia parte do seleto grupo de militares e experientes combatentes do Reino e do
Ultramar que compunham o Conselho de Guerra, sínodo estratégico para a condução da resistência
portuguesa contra os ataques espanhóis e manutenção das conquistas portuguesas espalhadas pelo
globo.
Dando prosseguimento a investigação da trajetória política de Óbidos e cargos de governo
que exerceu fora de Portugal, também abordarei a primeira e curta oportunidade que ele teve de
ostentar o título de Vice Rei da Índia. Os problemas que enfrentou naquela praça estão diretamente
ligados ao seu desacordo com a elite local, apresentarei neste capítulo os motivos que levaram a sua
expulsão da cidade de Goa e usurpação do cargo tomando por base os relatos de historiadores do
Oriente Português e uma bibliografia interessada nas revoltas que se iniciaram em 1640 e
estouraram no ultramar português até 1680. Ser expulso da Índia serviu de lição para D. Vasco
Mascarenhas e a partir deste episódio seu estilo de tratamento para com adversários políticos foi
mais incisivo, como veremos no terceiro capítulo.
Óbidos foi retirado das funções que cumpria na Índia em 1653 e chegou ao Reino neste
mesmo ano. Encontrou um Portugal abalado pela morte de D. Teodósio, três anos depois, ele
acompanhou a cerimônia de exéquias de D. João IV em 1656. O clima de instabilidade no Reino só
pôde ser superado com a Regência da Rainha D. Luísa de Gusmão, Óbidos acompanhou todo este
período e viu as medidas que a Rainha tomou para não perder os territórios conquistados pelo seu
marido e preocupações que demonstrava para com a educação do seu filho D. Afonso, segundo na
cadeia sucessória.
Ao aprofundar os estudos realizados sobre a ascensão de D. Afonso VI pude alcançar as
relações que o Conde de Óbidos tinha com aqueles que apostavam na maioridade do Infante e suas
condições de assumir o reino. Um estudo detalhado das conexões existentes entre o Conde de
Óbidos, o Rei D. Afonso VI e o Conde de Castelo Melhor, titulado Escrivão da Puridade, serão
objeto de atenção ao fim deste segundo capítulo.
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Duas décadas após a Restauração Brigantina, algumas práticas do período Filipino foram
novamente introduzidas com o advento de D. Afonso VI: o primeiro exemplo desta alteração foi o
reaparecimento da tradição do “valimiento” ou “privança” e os grandes poderes que o Conde de
Castelo Melhor obteve como “Escrivão da Puridade”, o segundo exemplo encontra-se na nomeação
do Conde de Óbidos como segundo Vice Rei do Brasil, cargo extraordinário, repleto de desafios e
com uma forte carga simbólica naquele tempo.
O terceiro e último capítulo desta dissertação abordará alguns aspectos políticos do segundo
vice-reinado do Brasil (1663-1667). O enfoque de análise será a relação conflituosa estabelecida
entre alguns funcionários da administração portuguesa instalados na Bahia e o Conde de Óbidos.
Acompanharemos o desenrolar de manifestações de oposição ao modo de governo do vice-rei, seja
por via de consecutivas missivas criticando suas ações perante o Conselho Ultramarino, seja por via
de uma articulação em que o fidalgo Lourenço de Brito Correa era suspeito de liderar.
Após uma breve comparação entre as trajetórias de Lourenço e Óbidos e os serviços que
ambos prestaram até o ano de 1663, entraremos novamente na discussão sobre o reaparecimento do
título de vice-rei do Brasil com auxílio dos estudos sobre “Vice Reinados de Príncipes no Portugal
dos Filipes” feitos por Fernando Bouza Alvares. Tal esforço foi necessário para melhor aprofundar o
conteúdo simbólico desta titulação, especialmente no reinado de D. Afonso VI e explicar os
desafios que estavam por traz da vinda de um vice-rei para a América.
A recepção do segundo vice-rei entre as autoridades da Bahia e a situação da administração
colonial revela um terreno de disputa e guardam estreitas relações com a conjuntura política
vivenciada em Portugal após a saída de D. Luísa de Gusmão da Regência. O projeto político de D.
Afonso VI e seu Valido era estabelecer uma verdadeira reforma no fazer administrativo da Colônia
do Brasil e esta tarefa estava delegada ao Conde de Óbidos, ele representava a pessoa de “El Rei” e
em seu nome efetuou mudanças radicais que trouxeram desagrado à elite da Bahia e conflitos
posteriores.
Entre repressão do crescimento de quilombos nas partes do recôncavo, reformas na
estrutura dos prédios públicos de Salvador, alterações no cunho, valor e forma de distribuição da
moeda entre as Capitanias do Brasil, a gestão de Óbidos é caracterizada pelo seu interesse em por
fim a conflitos de jurisdição e normatizar as práticas administrativas do Brasil colonial. Ele
produziu um Regimento e mandou que todos os seus subordinados aplicassem em suas Capitanias,
os detalhes deste conjunto de normas e a tentativa de Óbidos centralizar as decisões do Brasil serão
estudados neste capítulo.
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O Conde Vice Rei tratou de garantir a sua governabilidade e tentou adquirir do Rei todas as
preeminências que o Marquês de Montalvão e outros Governadores Gerais do Brasil tiveram, em
contrapartida, o Conselho Ultramarino demarcava posição e lançava consecutivos pareceres ao Rei
e ao Conde de Castelo Melhor informando as pretensões descabidas que Óbidos tentava adquirir,
em especial o interesse de interferir no tradicional sistema de concessão da graça régia.
Assim como Óbidos formulou um conjunto de normas para serem cumpridas, ele também
deveria seguir as regras que limitava o poder de seu vargo. Um estudo detalhado do seu Regimento
e as alegações que Óbidos fez para concessão dos mesmos direitos que tiveram seus antecessores
elucida como o resgate do vice-reinado do Brasil entrava em rota de colisão com as tradições de
governo Brigantino, principalmente quando enfocamos nossa análise nos pareceres emitidos pelo
Conselho Ultramarino deste período. Se a justiça de Portugal obstruía as pretensões de Óbidos, a
justiça do Brasil também fazia a sua parte.
O Regimento dado ao Conde vice-rei garantia que ele estava autorizado a prover pessoas
em cargos militares, políticos e jurídicos em vacância no Brasil, até que chegasse confirmação régia
acerca do titular proprietário do posto ou pessoa indicada por ele para assumir a função. Saliente-se
que tais serventias régias eram oriundas de mercês remuneratórias e para recebê-las era necessário
um amplo sistema de averiguação dos papéis que legitimavam o proprietário e grande parte destas
inspeções eram feitas na Bahia pelos funcionários régios erradicados neste local.
Contudo, o vice-rei interferia na lógica de provimento dos cargos vagos quando nomeava
pessoas de seu círculo social em detrimento de outras, estas atitudes motivaram sérios
constrangimentos para com alguns magistrados da Relação da Bahia que não temiam escrever ao
Rei e ao Conselho Ultramarino queixas sobre o comportamento político pouco respeitoso do
segundo vice-rei: ele quebrava o protocolo de conduta que rezava seu Regimento, ameaçava seus
inimigos de prisão, dentre outros expedientes rigorosos.
Membros da Relação da Bahia e o Secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco
denunciaram as ameaças que vinham sofrendo por criticar as pretensões de Óbidos, as justificativas
dos opositores demonstram o contexto histórico em que o segundo vice-reinado do Brasil se inseria
e as impossibilidades de se outorgar os mesmos privilégios que teve o Marquês de Montalvão no
período Filipino.
A pesquisa possibilitou-me investigar as denúncias de que Óbidos usava violentos
expedientes para neutralizar seus inimigos na Bahia, sua trajetória política demonstra que ele teve
alguns desentendimentos com autoridades ultramarinas subordinadas ao seu comando as quais
13
deveria demonstrar apreço e afabilidade. Se o temperamento político de Óbidos demonstrou-se
pouco eficaz em sua primeira experiência como vice-rei da Índia, na América suas atitudes tomaram
outro contorno e serão objeto de estudo deste capítulo.
Os motivos para a prisão e envio de Lourenço de Brito Correa, seu filho e outros três
Capitães de Infantaria para a prisão do Limoeiro serão apresentados ao final desta dissertação,
entraremos no universo vocabular daqueles que experimentaram o século XVII para conhecer o
significado de expressões que não mais se utilizam no vocabulário hodierno, mas faziam grande
sentido no século XVII tais como: ranchos, bandorias, capitulações e pasquins. Estes vocábulos
remetem a uma situação política tensa pois a habilidade da escrita adicionada a contatos políticos
engendrados por autoridades da Bahia poderiam novamente destruir a imagem do conde de Óbidos
como vice-rei e expulsá-lo do cargo.
Apesar de ter expulsado seus principais opositores do Brasil e continuar governando, Óbidos
teve que enfrentar outros desafios, os dois últimos anos de sua gestão é marcado pela passagem de
um cometa, fenômenos extraordinários e uma epidemia de bexiga que assolou a cidade de Salvador
e o recôncavo. A riqueza deste período e o protagonismo de Lourenço de Brito Correa e do Conde
de Óbidos serão analisados nas páginas seguintes e este esforço pretende fornecer mais subsídios
para compreender a cultura política engendrada na Bahia Seiscentista e as disputas deste tempo.
Fontes
Para atingir os objetivos deste trabalho foi necessário recorrer a um corpo documental
diverso e heterogêneo, traçar a trajetória de Lourenço de Brito Correa e a teia de relações que ele
constituiu na cidade de Salvador só foi possível após uma criteriosa análise da obra do Frei Antonio
Santa Maria Jaboatão, seu Catálogo Genealógico das principais Famílias que procedem de
Albuquerques e Cavalcantis em Pernambuco e Caramurus na Bahia é uma referência para o estudo
da sociedade colonial em formação e foi a partir deste documento que pude obter informações
essenciais sobre a vida e a descendência deste fidalgo nascido na Bahia.
A denúncia feita por Lourenço por ocasião da Visitação do Santo Ofício na cidade de
Salvador da baia de Todos os Santos, do Estado do Brasil, em 1619, foi uma meio de obter
comprovação das informações dadas por Jaboatão como também alcançar alguns aspectos preciosos
acerca da mentalidade deste homem da Bahia Seiscentista, assuntos de fé e moral sexual são
levantados nesta denúncia e problematizados nesta dissertação. Os documentos manuscritos
custodiados na Santa Casa de Misericórdia da Bahia também foram acessados e receberam um
14
tratamento específico, neles encontramos outras informações sobre Lourenço como doações feitas à
irmandade e sua posição de destaque na hierarquia desta confraria.
Obras como História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito (1688-1759); Nova
Lusitânia ou História da Guerra Brazílica, de Francisco de Brito Freyre ( 1675); o Castrioto
Lusitano ou História da guerra entre Brasil e a Hollanda durante os annos de 1624 a 1654, de
Raphael de Jesus e a História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita, foram trabalhos
produzidos no século XVII que forneceram informações fundamentais para conhecer o
protagonismo de Lourenço de Brito Correa durante as guerras de reconquista do Nordeste do Brasil,
nestas obras encontrei registros de suas patentes militares e o roteiro de batalhas que travou, mas
também percebi as relações políticas que este fidalgo construiu após o período de “guerra viva”
contra a Holanda, seja na Bahia, seja no Reino.
Frei Vicente do Salvador, Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, Fracisco Adolfo de
Varnhagen e Robert Southey são outros estudiosos que também registraram a presença de Lourenço
de Brito Correa na Bahia e deram especial atenção à sua integração na Junta de Governo entre os
anos de 1641 e 1642. O trabalho de Afonso Costa publicado na Revista do Instituto Histórico
Geográfico do Brasil merece um destaque entre as fontes consultadas, este autor foi um dos
primeiros a dedicar atenção especial à vida de Lourenço de Brito Correa e sua trajetória política.
No trabalho intitulado “Baianos de antanho (biografias)”, Costa também recorreu ao
trabalho de genealogia feito por Jaboatão para elucidar a vinculação de Lourenço à família
Caramuru, o autor enriqueceu seu estudo recorrendo a outros fundos documentais e apresentou a
integração política de Lourenço no Brasil à luz de informações acessadas na Bahia e em Portugal.
Contudo, este trabalho deve ser lido à luz do seu tempo, Afonso Costa apresentou uma visão
negativa e bastante parcial acerca de Lourenço e da sua carreira como funcionário régio. Apesar de
ter sido generoso ao ilustrar detalhes da presença e protagonismo deste fidalgo no Brasil e no Reino,
o autor omitiu a origem de algumas das informações sobre Lourenço e não fez referencia a outros
aspectos da sua vida que tivemos acesso no decorrer da pesquisa.
Por fim, o trabalho de Felisbello Freire deve ser ressaltado, a partir dele tive mais
informações sobre o fazendeiro Lourenço de Brito Correa e das terras que acumulou na Bahia por
via da mercê régia, também pude conhecer um pouco mais do universo jurídico da época e o
interesse que Lourenço tinha pelas partes do recôncavo da Bahia banhadas pelo Rio Paraguaçu.
Para alcançar a vida e a carreira política de D. Vasco Mascarenhas no Reino e no Ultramar
foi preciso recorrer ao mesmo instrumental da genealogia, contudo, deparei-me com um corpo
15
documental maior e mais detalhado que só foi possível compreender depois de conversas com
especialistas e historiadores do século XVII. As obras do Padre Antonio Carvalho da Costa (1712),
de Antonio Caetano de Sousa (1742-1745) e Felgueiras Gayo (1941) são trabalhos respeitados e que
fundamentaram a pesquisa sobre a origem dos Mascarenhas, especialmente o protagonismo do
Conde de Óbidos nesta família.
Os trabalhos sobre a História de Portugal no pós-Restauração também evidenciaram a
participação do Conde de Óbidos em cargos de comando dentro e fora do Reino: D. José Barbosa
(1727); João de Barros (1781) e Francisco Maria Bordalo (1862) são autores que registraram os
serviços prestados pelo Conde de Óbidos na Europa, na Ásia e na América ao longo do século
XVII, especialmente os cargos de comando que ocupou nestas ocasiões. Outros trabalhos sobre a
História de Portugal salientam a vinculação de Óbidos com a Casa Real Brigantina a exemplo do
Conde da Ericeira e das Cartas do primeiro Conde da Torre, nestes trabalhos percebe-se o jogo
político em que Óbidos estava envolvido e suas vinculações políticas em diferentes ocasiões.
Para concluir esta apresentação geral das fontes arroladas nesta pesquisa, faz-se necessário
mencionar os documentos digitalizados do Arquivo Histórico Ultramarino, constantes no catálogo
Luísa da Fonseca e dispostos nos CD-ROM do Projeto Resgate. Os documentos respeitantes às
capitanias do Rio de Janeiro, Paraíba, Pernambuco e Bahia foram consultados e estas fontes
subsidiaram o terceiro capítulo desta dissertação, para isso foi necessário conhecer aspectos da
escrita e da leitura no século XVII a partir do instrumental da paleografia e da diplomática, também
utilizei a coleção de Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o trabalho
de Marcos Carneiro de Mendonça intitulado “Raízes da Formação Administrativa do Brasil” para
fundamentar as discussões sobre o modo de governo do Conde de Óbidos no Brasil e a legislação
que respaldava sua conduta, bem como conhecer mais detalhes dos seus desentendimentos com a
elite erradicada na Bahia.
16
CAPÍTULO I
1- Lourenço de Brito Correa: um herdeiro do Caramuru
[...]Aos sete dias do mês de fevereiro de 1619 annos, em a Cidade de Salvador da Bahya de
Todos os Santos, nas moradas do Inquisidor Marcos Teixeira, em audiencia da tarde,
perante elle apareceu, sendo chamado, Lourenço de Brito Correa, christão velho, solteiro,
de ydade de vinte e oito annos, pouco mais ou menos, natural desta cidade, filho de
Sebastião de Brito Correa e sua molher Maria de Figueiredo, já defunctos, todos christãos
velhos.8
O presente capítulo é dedicado à trajetória política de Lourenço de Brito Correa, um homem
nascido em Salvador e bisneto da índia Paraguaçu e Diogo Alvares, o Caramuru. Não foi tarefa
fácil conhecer a vida deste homem e seguir os passos que ele percorreu no Brasil e em Portugal,
apesar do seu nome constar em muitas fontes do século XVII, a documentação encontrava-se
dispersa em muitos fundos arquivísticos e boa parte dela sem transcrição paleográfica adequada.
O prazeroso trabalho de leitura das fontes e diálogo constante com uma historiografia
interessada nos conflitos que permeavam o universo político da Bahia do século XVII possibilitoume aprofundar alguns detalhes do cotidiano compartilhado por este proprietário de terras e escravos
da Bahia que, por desavenças políticas, cruzou o Atlântico algumas vezes e viu a cidade de Lisboa
pelas grades da prisão do Limoeiro. Foi nesta cadeia o lugar onde Lourenço morreu, no ano de
1665, já septuagenário e apenas com seu filho mais velho a velar seu cadáver.
Lourenço de Brito Correa foi objeto de alguns estudos da historiografia baiana, Pedro
Calmon e Afonso Costa foram os primeiros a apresentar uma investigação consistente sobre a sua
origem familiar e atividades políticas que exerceu na Bahia Seiscentista, tais autores tornaram-se
fundamentais para levar à cabo esta pesquisa, eles ilustram o contexto político da época e indicam
fontes e bibliografias que permitiu-me desenhar o itinerário que Lourenço percorreu e atividades
que exerceu ao longo da sua carreira na Bahia.
A teia de relações em que este fidalgo9 estava envolvido permitiu também perceber os
posicionamentos que ele manifestou em diferentes conjunturas políticas, bem como as posses
acumuladas e cargos de comando que exerceu ao longo da sua vida. Assim, consegui reunir
subsídios suficientes para vislumbrar o contexto político vivenciado na cidade de Salvador, na
década de 1660 e localizar a participação deste homem num suposto motim por ele liderado com
8
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Portugal (PT) – Torre do Tombo (TT) - Tribunal do Santo Ofício (TSO)
– Inquisição de Lisboa (IL) / 038/0784. "LIVRO [2.º?] DAS DENUNCIAÇÕES QUE SE FIZERAM NA VISITAÇÃO
DO SANTO OFÍCIO NA CIDADE DO SALVADOR DA BAÍA DE TODOS OS SANTOS, DO ESTADO DO
BRASIL". disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2318687
9
Filho, & de Algo, palavra castelhana, que em Portuguez significa alguma cousa. Ao homem cavalheiro deuse este
nome, para se dar a entender, que seus pays tem herdado Algo, ou alguma cousa, de que se póde prezar, como nobreza
de sangue, ou rendas, & fazenda considerável, porque Algo também significa cousa de valor. Ver: op. cit. BLUTEAU,
D. Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. 4. 1728. p.107.
17
vistas a expulsar o segundo Vice Rei do Brasil do seu cargo.
A transcrição que consta na epígrafe deste capítulo é o trecho de um documento produzido
pelo Santo Ofício da Inquisição quando da sua segunda passagem pelo Brasil, este registro
evidencia informações sobre os dados pessoais deste homem. Em 1619, Lourenço dizia ter [...]
ydade de 28 anos, pouco mais ou menos, portanto, é provável que ele tenha nascido por volta de
1590, na cidade de Salvador. O trecho também destaca que ele pertencia a uma família importante e
seus descendentes eram auxiliares do projeto de conquista e colonização do território da Bahia,
iniciado pelo Reino de Portugal desde o século XVI.
Antes de aprofundar mais sobre esta denúncia, é preciso ressaltar que o fidalgo Lourenço
teve o privilégio de nascer numa família proprietária de terras, cargos administrativos e militares:
Sebastião de Brito Correa10, seu pai, ajudou a construir o Forte de Santo Antônio, atesta esta
informação uma carta patente que lhe deu o posto de Capitão, escrita em 27 de maio de 1598.
Sebastião casou com uma das mulheres mais cobiçadas da Capitania da Bahia, seu nome era Maria
de Figueiredo Mascarenhas, neta de Catarina e Diogo Álvares, o Caramuru.11
É provável que Lourenço de Brito Correa tenha sido batizado na ermida que a sua bisavó
mandou construir em louvor a Nossa Senhora da Graça, posteriormente doada ao Mosteiro de São
Bento da Bahia. A mãe de Lourenço morreu no dia 14 de janeiro de 1602 e Sebastião de Brito
Correa faleceu em 19 de fevereiro de 1608.
Apesar de ter ficado órfão aos dez anos, o menino Lourenço foi acolhido por suas irmãs
mais velhas, Apolônia de Siqueira de Brito e Felipa de Brito. Era o primeiro varão que nasceu
naquela família e por isso herdeiro legítimo das mercês régias e propriedades adquiridas por seu pai
e sua mãe, Lourenço tinha mais dois irmãos caçulas: Joana Correa, que com ele adquiriu muitas
terras na Bahia e João de Brito Correa, seu parceiro de batalhas e negócios, todos nascidos em
Salvador.12
O Frei Santa Maria de Jaboatão mencionou uma compra feita no ano de 1603 de [...]
fazendas de cana ligadas ao engenho do Conde, pagas por Sebastião de Brito Correa.13 A
transmissão destes domínios fora dada em benefício de seu primeiro filho, Lourenço de Brito
10
CALMON, Pedro. Introdução ao Catálogo genealógico de famílias ilustres da Bahia, por Frei Santa Maria
Jaboatão, Bahia: EGBA, 1985, p.235.
11
Para mais detalhes sobre as diferentes abordagens acerca da primeira família do Brasil e os pormenores da vida de
Catarina Paraguaçu e Diogo Alvares ver: PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. “A visão Indígena e Portuguesa da
descoberta do Brasil: a formação da 1ª família brasileira.” In: Revista da Fundação Pedro Calmon. Salvador: Centro
de Memória da Bahia. Volume 5,2000. p.79-96.
12
Os detalhes da genealogia de Lourenço de Brito Correa, bem como alguns detalhes da sua trajetória política foram
tratados em um texto apresentado em 1952 por Afonso Costa por ocasião do 2º Congresso de História da Bahia. Com
base em suas informações temos conhecido mais detalhes da biografia deste baiano. Ver: COSTA, Afonso. “Baianos de
Antanho (Biografias).” In: RIHGB, vol. I, 1955, p.303-310.
13
Op. Cit. CALMON, Pedro. 1985, p. 235. Ver também: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro (DHBNRJ), v. 62, p.291.
18
Correa, saliente-se que a região do “engenho do Conde” situava-se no fértil recôncavo da Bahia14,
local de terra massapê e banhado pelo Rio Paraguaçú. Sua família era uma antiga proprietária de
terras e escravos neste pólo estratégico de produção da cana-de-açúcar e seus subprodutos,
cultivados em imensas propriedades e vendidos ao mercado europeu.
Estas fazendas de cana registradas por Jaboatão não foram as únicas posses que Lourenço de
Brito Correa legou de seus antepassados, a mais emblemática propriedade deste fidalgo encontra-se
registrada em um documento custodiado pelo Mosteiro de São Bento da Bahia. O manuscrito atesta
o traslado da carta de sesmaria, concedida por mercê régia a Diogo Álvares, [...] avô de Lourenço
de Brito Correa, de terras circunvizinhas à ermida da Senhora da Graça, que deixou este ao
convento com a dita ermida.15 a data referenciada por Jaboatão foi 20 de dezembro de 1636.
O próprio Lourenço de Brito Correa declarava-se:
[...] fidalgo da casa de sua majestade, que é verdade que por esta doação entre vivos, pela
devoção que tenho a virgem Nossa Senhora da Graça, como meus mais bisavós e avós e
pais tiveram sempre à dita Senhora, onde está enterrada minha bisavó na mesma capela a
qual dôo (...) conforme as cartas de sesmaria que meu avô o Senhor Diogo Alvares e minha
16
bisavó Catarina Alvares houveram de sesmaria dos governadores.
Afonso Costa apresentou uma data anterior a que Jaboatão fez referência, afirmando que
Lourenço de Brito Correa doou tais terras aos beneditinos e registrou-as em cartório no dia 08 de
setembro de 1628, veremos outras propriedades acumuladas por este fidalgo oportunamente. 17
A infância de Lourenço na cidade da Bahia foi como a dos demais meninos ricos de sua
época, inserir os primogênitos nos estudos formais era um cuidado que os pais tinham para com
seus sucessores, afinal, eram eles os próximos a administrar e ampliar o patrimônio construído ao
longo das gerações e manter as honrarias e privilégios recebidos por mercê régia aos seus
descendentes.
O Colégio da Companhia de Jesus na Bahia, seguia as normas do Colégio de Évora e tinha
como inspiração o método da Ratio et Instituto Studiorum - manual pedagógico jesuíta, escrito em
finais do século XVI e fundamentado na teologia escolástica tardia de inspiração tomista principal referência no ensino europeu.18
Entre rosários e novenas, este bisneto do Caramuru aprendeu com os padres jesuítas a ler e a
escrever as primeiras palavras, conheceu Latim, Gramática e Retórica, essenciais para o
desempenho nos cargos administrativos que ocupou quando mais velho. Uma das áreas que
14
Recôncavos eram as enseadas que se formavam ao fundo da Baía de Todos os Santos, abrangendo as terras
circunvizinhas a estes locais como mangues, baixios, serras e tabuleiros, sobre o assunto verificar: MATTOSO, Kátia
M. de Queiroz. Bahia: A cidade de Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: Secretaria
Municipal de Educação e Cultura, 1978, p.10.
15
Op. Cit. CALMON, Pedro.Catálogo Genealógico. 1985, p. 235.
16
Op. Cit. COSTA, Afonso. Baianos de Antanho (Biografias), p 303.
17
Idem p. 304.
18
CALÓGERAS, J.P., Os Jesuítas e o ensino, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1911, p.11.
19
Lourenço demonstrava interesse era a matemática, isto se comprova pela sua afinidade com
números ao exercer a Provedoria Mor da Fazenda Real do Estado do Brasil, em 1663.
Além de cálculos, também aprendeu as técnicas de memorização e repetição, estratégias de
aprendizagem utilizadas pelos padres jesuítas residentes em Salvador e responsáveis pela educação
dos jovens daquela época, assim, é provável que Lourenço tenha recitado os poemas de Camões,
lido hagiografias e romances de cavalaria escritos pelos autores lusófonos e castelhanos de sua
época.19
Não podemos esquecer que a educação na Bahia do século XVII estava impregnada pelas
diretrizes do Concílio de Trento,20 o menino Lourenço foi educado dentro de um clima de
perseguição direta contra os judeus, chamados de cristãos-novos, bem como a mouros e ciganos,
hereges e bruxas que partilhavam a mesma cidade tão heterogênea (e heterodoxa) como era a
Salvador do século XVII. Como cristão velho e seguidor da política tridentina, ele conhecia com
detalhes os dogmas de fé e as tradições litúrgicas da Igreja Católica contidas no Catecismo, cujo
teor havia sido traduzido para a língua brasílica em 1618, pelo padre Antônio de Araújo.21
Uma das ações mais conhecidas que a Igreja Católica deflagrou após o Concílio de Trento
para coibir o crescimento de hereges e outros inimigos da fé, foi a instituição do Tribunal da Santa
Inquisição. Por isso, retomarei a análise da denúncia feita por Lourenço de Brito Correa ao
Inquisidor D. Marcos Teixeira, a partir dela podemos ter uma noção mais precisa do quanto a
formação religiosa de Lourenço influenciou em suas posições quando adulto.
Ele estava atento às práticas heterodoxas que alguns moradores de Salvador apresentavam e
manifestou desconfiança para com o comportamento dos descendentes de nação infecta”22 que com
ele disputavam a vida política e econômica na cidade de Salvador e recôncavo da Bahia. Em 1619,
encontramos Lourenço de Brito Correa aos vinte e oito anos de idade ostentando a patente de
capitão, herdada do pai. Dizia ele que estava em companhia do seu irmão caçula, João de Brito
Correa e juntos apreciavam uma movimentação que ocorria nas proximidades de sua casa, situada
na rua de Nossa Senhora da Ajuda.
Os moradores daquela freguesia estavam [...] vestindo huas figuras dos doze apóstolos para
19
Mais aspectos da educação religiosa promovida no período colonial em: VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o
que se lê: língua, instrução e literatura. In: NOVAIS, Fernando A. (dir.) História da vida privada no Brasil. Cotidiano
e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.332-385. Abordarei outros
aspectos do pensamento científico produzido no Brasil Seiscentista ao final do terceiro capítulo.
20
REYCEND. João Baptista. O Sacrossanto e Ecumênico Concilio de Trento. Em latim e português: dedicada e
consagrada aos excelentíssimos e reverendíssimos senhores Bispos da Igreja Lusitana. Tomo I, Lisboa, Officina
Patriarchal de Francisco Luis Ameno, 1781.
21
ARAÚJO, Pe. Antônio de. Catecismo na Língua Brazílica. Reprodução fac-similar da 1ª edição, Rio de Janeiro:
PUC-RJ, 1952.
22
A sociedade colonial baseava-se, assim como na Europa, em critérios raciais e sociais para diferenciar os indivíduos e
enquadrá-los na complexa hierarquia que estavam submetidos. As chamadas nações "infectas" eram os mouros, turcos,
árabes, negros, judeus, e seus descendentes não católicos ou de origem não católica. Ver: NOVINSKY, Anita. Cristãosnovos na Bahia, São Paulo: Perspectiva, 1972.
20
o cenáculo de quinta feira de Endoenças23, tal atividade fazia parte das celebrações que ocorriam
durante a Semana Santa, esta expressão de fé e devoção católica foi entendida por Flexor como um
verdadeiro espetáculo teatral a céu aberto, encenado nas ruas da cidade da Bahia, em grande pompa
barroca.24
O apelo sensorial das imagens de vulto foi mais um artifício litúrgico forjado pelo
catolicismo ibérico e transplantado para a América, este recurso era utilizado especialmente durante
as celebrações que antecediam a Páscoa e tinha o objetivo de remontar o clima dramático vivido por
Jesus Cristo antes de ser crucificado. O evento era obrigatório para todo cristão presente na
freguesia e o cortejo era realizado à noite, acompanhado por tochas e fumaça de incenso.
Podia-se ouvir ladainhas entoadas por mulheres ajoelhadas e batendo no peito como
manifestação de arrependimento, as imagens de Jesus, de Maria e dos apóstolos eram talhadas em
madeira com grande expressividade e vestidas de roxo, cor predominante no tempo litúrgico da
quaresma, o espetáculo de cheiros, cores e sons estimulava a fé e a veneração dos moradores.25
A decoração prévia das imagens de vulto eram ocasiões de confraternização para os vizinhos
da Igreja da Ajuda26, os moradores se reuniam para vestir as imagens de vulto, decorar os andores e
retocar as alfaias, todavia, nem tudo era descontração naquele dia: quatro cristãos-novos que
também se faziam presentes na ocasião, proferiram palavras pouco adequadas para o momento e
foram ouvidas pelo cristão-velho [...] capitão e morador nesta cidade27 Lourenço de Brito Correa.
Ele lembrou o nome dos tais cristãos-novos que, em plena quinta feira santa de 1618, [...]
estavão zombando cõ as ditas figuras dos apóstolos, que eram de vulto.28 De acordo com seu
depoimento, os zombeteiros eram [...] da nasção e pessoas conhecidas estantes nesta Cidade.29
O fidalgo nascido na Bahia guardava detalhes daquele dia, afirmou que o cristão novo
Duarte Alvares Ribeiro, [...] olhando para a figura de São Pedro, disse: [...] olhai as barbas deste,
como beberia no tempo que andava na barca.30
Talvez os quatro cristãos-novos não tivessem percebido que, dentro da mesma Igreja, o
23
op. cit. ANTT, PT-TT-TSO-IL/038/0784. p. 243.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Procissões na Bahia : teatro barroco a céu aberto . In: Barroco: Actas do II Congresso
Internacional. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras. Departamento de Ciências e Técnicas do
Patrimônio, 2003.
25
Sobre as procissões realizadas na Bahia durante o período Colonial ver: CAMPOS, João da Silva. Procissões
tradicionais da Bahia. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, Conselho Estadual de Cultura, 2ª ed. 2001. Agradeço
a professora Ione Celeste de Jesus Sousa pela indicação deste trabalho.
26
“Igreja de Nossa senhora da Ajuda com quatro braças e um palmo de frente correndo ao rumo noroeste a sudeste, a
casa de sacristia tem frente para a rua, por detrás do mesmo tempo sita a freguesia de S. Salvador.” Ver: FREIRE,
Felisbello. História Territorial do Brasil, Vol.1 (Bahia, Sergipe e Espírito santo). Rio de janeiro: Typographia do
Jornal do Commercio. 1906, p. 441.
27
op. cit. ANTT, PT-TT-TSO-IL / 038/0784, p. 243
28
idem, p. 243. O nome dos cristãos-novos denunciados por Lourenço eram: Duarte Alvres Ribeiro, Duarte Fernandes,
André Lopes de Carvalho e Luis Alvres.
29
idem, p. 243
30
Idem, p. 244
24
21
jovem Lourenço e seu irmão estavam a ouvir, escandalizados, tais palavras serem pronunciadas por
um conhecido descendente de nação hebraica e morador daquele local. Insinuar que o primeiro
Papa era adepto de bebida quando ainda exercia a profissão de pescador, foi interpretado como
blasfêmia pelo cristão velho Lourenço de Brito Correa, ele foi criado em uma doutrina rigorosa e
dava muita atenção a determinadas expressões ditas em público, principalmente quando o conteúdo
das palavras ofendia a Deus ou a Igreja e eram pronunciadas por judeus, era seu dever, enquanto
cristão velho, resguardar a ortodoxia da fé católica.
Lourenço também citou outras testemunhas que presenciaram este episódio e poderiam
confirmar sua versão diante do Inquisidor. Quando perguntado se os homens que zombavam das
imagens estavam em seu juízo perfeito, o Capitão Lourenço disse que [...] lhe parecia que não por
falta de juízo, mas por falta de zelo e de boa christandade zombavam os homens da nasção das
sobreditas figuras e imagens e ele testemunha se escandalizara muito disso.31
Lourenço também afirmou que outro cristão velho, chamado Hieronimo Ferreira, armador
de Igrejas e morador em Salvador, também ouviu a zombaria proferida, contudo, nenhum dos
presentes naquela ocasião reprimiu de imediato os impropérios, justificando que [...] em semelhante
gente não se estranhava tais desaforamentos.32 A denúncia feita ao Inquisidor D. Marcos Teixeira
prossegue tratando da vida privada e do comportamento sexual de outros homens de posse que
habitavam os casarões da cidade de Salvador.
Novamente o alvo da acusação de Lourenço tinha origem israelita, era [...] meio xpão novo
por parte de seu pay, casado e morador nesta Bahya e senhor de quatro Engenhos, 33 chamava-se
Pero Garcia e, conforme o depoimento, um rico negociante. Lourenço denunciava que Pero Garcia
[...] comettera pecado nefando de sodomia cõ um mullato por nome Joseph que creara em sua casa
e nella o tinha ainda hoje”34, afirmou ainda que este cristão novo havia cometido [...] o mesmo
peccado nefando35 com [...] hum moço chamado Gaspar, natural de Viana, sobrinho de hú João
Alvares, ambos seus creados.36
Devemos destacar que todos as testemunhas arroladas por Lourenço de Brito Correa eram
cristãos-velhos como ele, residentes em Salvador e antigos empregados do descendente de judeu,
Pero Garcia.Diante destas duas denúncias, podemos concluir que Lourenço era mais um homem do
século XVII que tinha restrições quanto a presença de judeus e seus descendentes no Brasil e
31
idem, p. 245
idem, p. 246
33
Idem. Pero Garcia era natural da Ilha de São Miguel e meio cristão novo pela parte do seu pai.
34
idem
35
Sobre práticas sexuais na Colônia e a perseguição Inquisitorial contra as heterodoxias existentes no Brasil ver:
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brazílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In: NOVAIS,
Fernando A. (dir.) História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p.222-273.
36
op. cit. ANTT, PT-TT-TSO-IL / 038/0784, p. 247
32
22
demonstrava preocupação quanto ao aumento das posses deste grupo de pessoas na Bahia.
Não cabe aqui analisar os detalhes da apuração feita pelo visitador do Santo Ofício, nem o
destino dos citados nesta denúncia, contudo, note-se, contudo, que todos os homens arrolados neste
processo eram homens da “nasção” com reconhecido patrimônio financeiro, por isso competidores
do disputado comércio do açúcar na Bahia Seiscentista.
Caso a denúncia fosse julgada procedente pelo Inquisidor D. Marcos Teixeira, os
denunciados seriam presos e teriam os seus bens confiscados, os familiares destes seguidores da
Torá também sofriam os constrangimentos e violências típicas deste clima de desconfiança e
denuncismo que vigorou na Bahia durante todo o século XVII. A vida privada dos cristãos-novos
moradores da cidade de Salvador foi devassada pela passagem do Santo Ofício até o início da
década de 1620, muitos dos que residiam na Bahia tiveram seus bens sequestrados, também foi
numeroso o contingente de pessoas acusadas de sodomia e bruxaria expulsas da cidade de Salvador
e embarcadas à força para os cárceres secretos da Inquisição de Lisboa para serem julgadas pelo
Santo Ofício.37
2- Lourenço de Brito Correa e sua desenvoltura nas guerras de defesa de Salvador.
Todo este clima de perseguição a cristãos-novos erradicados na Bahia apontam uma conexão
direta com as invasões holandesas à Cidade de Salvador, nos anos que seguiram a década de 1620.
Muitos proprietários de engenhos de cana no Brasil eram, secretamente, seguidores do judaísmo e
eles driblavam o aperto fiscal para garantir a estabilidade dos seus lucros investindo dinheiro em
bancas da Antuérpia, Flandres e Amsterdã. Estas cidades não só recebiam dividendos dos cristãosnovos do Brasil como acolhiam refugiados da opressão antissemita que grassava na Europa
Seiscentista e tornaram-se foco de oposição política e militar contra a Espanha, principalmente após
o acordo das Províncias Unidas, assinado em Ultrecht (1579).
Em Amsterdã existia sinagoga, mesquita, além de outros templos erguidos pelas
denominações cristãs protestantes, a liberdade de culto era respeitada nas cidades neerlandesas que
resistiram à hegemonia Filipina e a força deste exército aumentou quando a Inglaterra e a França
entraram na disputa pelo mercado da América.
Foi com investimento dos senhores de engenho e negociantes judeus erradicados no Brasil e
na África, mas também com o auxílio dos mercadores protestantes espalhados pela Europa, que o
exército batavo enfrentou a dinastia católica dos Habsburgos. O Rei espanhol estava decidido em
isolar os cristãos-novos da vida política e tinha total apoio do Sumo Pontífice; por acolher judeus e
37
Sobre a punição aplicada e a metodologia da perseguição e apreensão dos bens dos cristãos-novos de Portugal e do
Brasil, conferir o livro de PIERONI, Geraldo. Banidos: A Inquisição e a lista de Cristãos-novos condenados a viver
no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2003.
23
pessoas contrárias à Igreja Católica, todos os holandeses eram considerados hereges pela Inquisição,
negociar com tais pessoas tornava-se agressão direta a Deus, ao Papa e ao Rei da Espanha.
Mesmo amaldiçoados pelo Bispo de Roma e combatidos pelo numeroso exército da Casa da
Áustria, a República das Províncias Unidas enfrentou a concorrência econômica e ideológica
formando a West Indisch Compagne (WIC), em 1621. Para além de ser uma organização comercial
que entrou na disputa do mercado internacional de cana-de-açúcar, escravos e especiarias, este
agrupamento tornou-se um dos mais bem aparelhados exércitos nos Seiscentos.
Luis Henrique Dias Tavares apontou dois momentos distintos para explicar a relação do
Brasil com a Holanda. Até 1580, os portos de Lisboa recebiam navios neerlandeses abarrotados de
pólvora, tecidos e armas, em contrapartida, os holandeses compravam sal, cortiça, azeite, bacalhau,
mas também o marfim da África e o açúcar do Recôncavo da Bahia.38
O autor ressaltou que a partir da União Ibérica (1580-1640), as relações comerciais com
Portugal estiveram submetidas às ordens de Madri e o comércio com a Holanda foi interrompido. A
dinastia Filipina era incentivada pela Igreja Católica para continuar a conquista da América, fazendo
isto, a benção do Papa estava condicionada ao cumprimento de acordos, um deles era o
compromisso dos Habsburgos em coibir o crescimento da heterodoxia no Brasil, por isso os
sacerdotes e pessoas associadas ao Santo Ofício eram os responsáveis pela fiscalização dos
costumes e referendavam a perseguição dos muitos cristãos-novos erradicados na Bahia.
Este clima de instabilidade interrompeu o fluxo de dinheiro enviado por estes negociantes do
Brasil para os Países Baixos, esta situação se torna mais aguda quando o Rei Filipe II proíbe a
entrada de embarcações holandesas nos portos da Península Ibérica, América, África e Ásia,
excluindo assim a Holanda do comércio internacional.
O Conselho dos XIX, colegiado diretivo da WIC, escolheu o nordeste do Brasil para iniciar
as investidas, ali se encontrava as maiores fazendas de cana-de-açúcar, além de ser o principal
centro administrativo, político e econômico da América Portuguesa Seiscentista. Para termos uma
noção mais detalhada da importância da cidade de Salvador no século XVII, Luis Henrique Dias
Tavares informa que a Bahia abrigava [...] trinta e seis engenhos de açúcar, cerca de dois mil
proprietários e lavradores de cana e mandioca, quatro mil escravos africanos e seis mil índios
cativos.39
O ano de 1624 foi marcado pela primeira e bem sucedida invasão à Cidade de Salvador,
perpetrada pelo exército holandês. A empreitada tinha o objetivo de sitiar o centro administrativo e
político da América e a partir daí dominar progressivamente as terras do Brasil. Nesta ocasião,
Lourenço de Brito Correa contava trinta e quatro anos de idade e deixou de lado seus negócios para
38
39
TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia, São Paulo: UNESP/ Salvador, Ba: EDUFBA, 2001, p.133.
idem. p. 134.
24
pegar em armas e ajudar a reconquistar a cidade que nasceu.
Vimos anteriormente a formação intelectual de Lourenço, saliente-se então outros
conhecimentos que ele adquiriu ao longo da sua trajetória, não bastava ter desenvoltura nas letras
em uma época de invasões estrangeiras e ameaça iminente de perder o domínio do espaço Colonial.
Como outros homens ricos da Bahia Seiscentista, Lourenço andava à cavalo para percorrer suas
fazendas, sabia atirar e estava sempre portando alguma arma, também conhecia algumas estratégias
de combate, próprias para o Brasil: por ser filho de militar, Lourenço era habilidoso nas as táticas de
guerra forjadas por brasílicos, africanos e europeus que combatiam nas mesmas tropas durante
décadas de convívio, a trajetória deste fidalgo e sua participação nos conflitos ocorridos em
Salvador entre os anos de 1624 e 1625, justificam o tratamento de capitão que recebeu nos anos
posteriores.
Na madrugada de 9 de maio de 1624, as embarcações de Holanda podiam ser vistas pelos
fortes que resguardavam a Baía de Todos os Santos, eram vinte e quatro navios de grande porte
trazendo[...] quinhentos canhões, mil e seiscentos marinheiros e mil e setecentos soldados
holandeses, ingleses, irlandeses, escoceses, galeses, poloneses.40
Enquanto o Comandante Piet Heyn ordenava que seus soldados subissem as íngremes
ladeiras que davam acesso a Salvador, os poucos defensores se abrigavam nos Baluartes que
defendiam as entradas e respondiam com flechas, bacamartes e lanças. A resistência era necessária
para que os moradores recolhessem seus pertences mais valiosos e abandonassem as casas para
salvar as suas vidas, apesar de armados e prontos para resistir, todos se evadiram de suas vivendas
para preparar a resistência com mais cuidado.41
Lourenço foi testado e elogiado pelos comandantes desta época e sua desenvoltura pode ser
constatada a partir da leitura das crônicas do século XVII, nelas podemos perceber o protagonismo
deste fidalgo em ocasiões que ficaram marcadas na memória dos habitantes da Bahia por muitos
anos.42
A armada de socorro enviada pela Espanha para restaurar a cidade de Salvador teve o
40
idem
Idem, ver também: LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração da Bahia
(1624-1654). Tese de Doutorado. UNICAMP, 2009, p 24.
42
É mencionado como Capitão dos Aventureiros em: SALVADOR, Vicente do. Historia do Brazil. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1889, p. 100;142. Outras informações sobre a participação de Lourenço de Brito Correa nas
guerras de reconquista da cidade de Salvador como um dos seis comandantes de companhias de soldados, liderados
pelo Bispo D. Marcos Teixeira, são vistas em: RIHGB. Tomo V, 1843, p.507. Ver também o seu protagonismo e as
comendas recebidas pelo Rei Felipe IV após a reconquista da Cidade de Salvador em FREYRE, Francisco de Brito.
Nova Lusitania: história da guerra brasílica. Lisboa: Oficina de Joam Galram, 1675, p. 460. Sobre as contendas
existentes entre Lourenço de Britro Correa e o governador Diogo Luis de Oliveira, em 1631, por conta de provimento
de cargos militares, ver: op. cit. LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração da
Bahia (1624-1654).2009, p 226. Pedro Calmon informa que : [...] Há na Biblioteca da Ajuda (Lisboa) queixa de
Lourenço de Brito Correa de “vexações, opressões públicas, injustiças e roubos que Diogo Luis de Oliveira,
governador do Brasil, cometeu naquele Estado. Ver: op. cit: CALMON, Pedro. História do Brasil, Vol 2, 1971. p 259.
41
25
comando de D. Fradique de Toledo e compunha vinte e oito navios espanhóis e sete portugueses,
eles recuperaram Salvador em maio de 1625. Após a expulsão dos holandeses, o Rei da Espanha
ofereceu condecorações aos que auxiliaram no livramento da cidade da Bahia, Pedro da Silva,
Governador em exercício, recebeu o título de Conde de São Lourenço; o comandante Conde de
Banholo recebeu uma comenda extraordinária na Itália, por fim, foram agraciados com
condecorações de comendadores Luiz Barbalho Bezerra, D. Fernando de Londonha, Heitor de La
Cache, Pedro Cadena de Vilhassanti e Lourenço de Brito Correa.43
Uma informação importante sobre o destino que teve Lourenço, após a primeira invasão dos
Holandeses à cidade de Salvador, pode ser constatada nas palavras de Afonso Costa:
[...] segundo se infere de provisão ao seu respeito expedida, Lourenço estivera algum
tempo em Portugal, ufano de vitórias, manutenido dos recursos financeiros que o
abasteciam, e de lá, em 1637, se embarcou para a Bahia, numa caravela de socorro, com
infantaria e munição, onde, tanto que chegou (no Brasil), agregando-se ao exército de
Pernambuco, alojado em Sergipe, se retirou com ele para a Bahia de Todos os Santos. 44
A WIC manteve a estratégia de assediar o nordeste do Brasil, em 1630 os batavos já tinham
o controle da capitania de Pernambuco e tal façanha era comemorada nos Países Baixos, em 1631,
um segundo reforço foi enviado por Madri para auxiliar as tropas do Brasil, desta vez o comandante
era o general D. Antonio Oquendo, mesmo assim a persistência dos holandeses continuava às custas
da vida de pessoas e muitos mantimentos.
A terceira armada de socorro enviada ao Brasil chegou em 1635, sob o comando de D. Lope
de Hoces, estava aparelhada com dois galeões espanhóis e quatro portugueses que resguardavam
vinte e dois navios mercantes abarrotados de soldados e mantimentos necessários para a
continuidade da peleja no Nordeste do Brasil.45 Em uma carta escrita pelo Governador Pedro da
Silva, a 12 de junho de 1638, nota-se a participação de Lourenço no custeio da guerra contra os
holandeses que atacaram Salvador, nesta comunicação, o mandatário do Brasil ressaltava o cuidado
que Pedro Cadena de Vilhassanti teve para com os mantimentos da guerra e dos empréstimos que
fizeram o Bispo D. Pedro da Silva Sampaio e Lourenço de Brito Correa para a Restauração de
Pernambuco. 46
Ao perceber o perigo de uma segunda invasão da cidade de Salvador pelo exército
43
SILVA, Ignácio Accioli de Cerqueira e. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Tomo I, Bahia:
Typographia do Correio Mercantil de Precourt, 1835, p. 100.
44
op.COSTA, Afonso. Baianos de Antanho (Biografias), RIHGB, 1955, p.306. Este trecho é a única referencia que
encontrei, até o momento, que menciona a passagem de Lourenço de Brito Correa pela Europa e seu retorno para o
Brasil como um dos tripulantes da Armada de socorro liderada pelo Conde da Torre, todavia, Afonso Costa não deixou
informações sobre a tal provisão expedida, nem indicou a data da mesma. Pedro Calmon atesta sua presença na Bahia
em 1638 e seu protagonismo na defesa da cidade sitiada pelas tropas de Mauricio de Nassau, ver: op. cit. CALMON,
Pedro. História do Brasil, Vol.2 (sec XVI-XVII). p. 617; 619.
45
Op.cit. LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração da Bahia (1624-1654).
2009, p 124;
46
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), fundo Luiza da Fonseca (LF), CX: (inexistente), Doc: 811. Ver também: AHU,
LF, Cx.7, Doc. 799, 12/06/1638
26
neerlandês, o Duque de Olivares aconselhou que o Rei reunisse mais esforços para a quarta
mobilização de navios e soldados em socorro daqueles que enfrentavam as tropas batavas instaladas
no Brasil, desde 1624. O militar D. Fernando Mascarenhas, o Conde da Torre, foi o homem
destacado para comandar esta missão.
Os documentos que informam detalhes do planejamento desta grande ofensiva, os recursos
utilizados, os militares envolvidos e os conflitos oriundos deste período podem ser encontrados nas
“Cartas do 1º Conde da Torre”,47 a transcrição das comunicações enviadas e recebidas por D.
Fernando Mascarenhas e por outros militares que fizeram parte da armada de Socorro do Brasil
entre os anos de 1637 a 1640 são meios possíveis para desenhar, com mais nitidez o protagonismo
de Lourenço de Brito Correa e do Conde de Óbidos nesta ocasião.
A Câmara da Bahia esperava a quarta armada de socorro prometida pela Espanha e resistiam
às privações daqueles dias, os fazendeiros forneciam mantimentos para os combatentes que
enfrentavam o exército de Maurício de Nassau e amargavam consecutivas perdas na produção de
cana. O Conde da Torre era um nobre de reconhecida experiência militar na Corte de Madri,
membro do Conselho de Estado do Rei Felipe IV e estava incumbido de organizar o exército que
iria expulsar os holandeses do Brasil, carregava consigo o título de Capitão General da Armada do
Occeano48 e, quando saiu de Castela, avisava ao Rei que o Conde de Óbidos o acompanhava,
cumprindo a função de General de Artilharia naquela armada de socorro.
Os investimentos em armas, soldados, mantimentos e embarcações para retomar o controle
do Nordeste do Brasil foram ameaçados pelos consecutivos problemas que o Conde da Torre
enfrentou antes da viagem, durante o trajeto transatlântico e ao chegar à cidade de Salvador,
acompanhemos.49
Após sair da Península Ibérica e atravessar boa parte do Oceano, o Conde da Torre ordenou
que a armada aportasse nas ilhas de Cabo Verde, já era dia 16 de outubro de 1638 e ali
desembarcaram mil soldados doentes, some-se a este contingente outros tantos que permaneceram
naquele local para se curar e terminaram adquirindo varíola, epidemia que grassava aquelas ilhas.
Quando o reforço de navios espanhóis aportou em Cabo Verde, no dia 5 de novembro de
1638, constatou-se a baixa de 475 homens e mais 1214 militares doentes. Embarcações espanholas
e portuguesas, comandadas pelo português D. Fernando Mascarenhas, Conde da Torre, saíram da
África no dia 29 de novembro de 1638 em direção ao Nordeste do Brasil, abarrotada de tripulantes
enfermos. A armada de socorro chegou à Bahia no dia 19 de janeiro de 1639, depois de navegar
47
MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 4 vols. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
48
Op. cit. MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 2001. p. 67.
49
[...] Forão ao todo dez mil os que embarcaram nessa frota formidável, 33 navios de guerra (25 portugueses e oito
espanhóis) – tendo como capitães generais da cavalaria D. Francisco de Moura e da artilharia o Conde de Óbidos [...]
Ver: op. cit. CALMON, Pedro. História do Brasil, Vol.2, 1971, p. 621.
27
contra o vento e ter parte da frota dispersa pelo Oceano Atlântico.
Ao chegar à Salvador, o Conde da Torre tentava reorganizar os planos para enfrentar
Maurício de Nassau, além do efetivo militar enfraquecido pelas doenças, ele amargava a ausência
de condições necessárias para o sustento dos soldados que chegavam famintos e doentes à cidade,
não demorou muito para que as autoridades da Bahia reclamassem dos sete mil homens que
desembarcaram em uma Salvador sem estrutura para manter e abrigar tantos milicos, além do receio
destes trazerem a doença adquirida na viagem.
Ainda que Óbidos tenha passado pela América, a pedido do Governador Geral Diogo Luis
de Oliveira; em 1639 estava assumindo a função de General de Artilharia, posto de comando e
auxiliar direto do Conde da Torre.
O Conde da Torre ficou em Salvador por volta de dez meses e saiu rumo a Recife no dia 21
de novembro de 1639, neste intervalo de tempo reuniu as condições necessárias para enfrentar o
exército de Maurício de Nassau que sitiava a Capitania de Pernambuco, um mês depois da partida
de D. Fernando Mascarenhas da Bahia, o capitão Lourenço de Brito Correa mostrou-se conselheiro
experiente no que dizia respeito às batalhas.
Em um parecer emitido por ele, no dia 20 de dezembro de 1639, percebemos sua habilidade
e conhecimentos de combate ao expor suas sugestões de como abordar o exército batavo. Como
membro da junta auxiliar do Conde da Torre, o fidalgo acreditava que antes de invadir o Recife era
necessário que as tropas de Espanha cercassem todos os acessos para que
[...] se possa impedir ao enemigo os socorros de holanda que aly lhe vem, e daly
senhorearmos a campanha e atacaremos as praças que puder ser para que o enemigo não
tenha fora delas nem campanha , nem pelo mar, socorro50
O fator clima era um detalhe que não poderia deixar de ser levado em conta, Lourenço de
Brito Correa sabia que a natureza poderia ser grande inimiga, por isso ele instruía que [...] mais
brevemente esperamos que o inverno não de lugar as armadas poderem estar sobre o Recife,
devemos aproveitarmos do verão para ganharmos o que despois não será possível.51 Vemos que o
capitão Lourenço enfoca a urgência de se aproveitar as condições propícias para garantir a
reconquista definitiva da Capitania de Pernambuco, tendo em vista as consecutivas perdas que
aqueles soldados vinham sofrendo por não respeitarem os ditames do clima tropical.
Utilizando o verão como aliado no combate, ele destacava a economia de tempo e de
víveres, Lourenço prevenia o Conde da Torre:
[...] porque isto he muyto longe de Espanha e não nos devemos prometer com tanta
brevidade novos socorros, o que isto he o que lhe paresse e que gastar o tempo e
mantimentos no que he quasi nada será impossibilitar todo remédio desta guerra.52
50
Op. cit. MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 2001. p. 321-322
Idem
52
idem
51
28
Apesar de seus conselhos, a campanha liderada pelo Conde da Torre foi um fiasco, todavia,
em janeiro de 1640, aos cinquenta anos de idade, Lourenço de Brito Correa assumia o posto de
Provedor Mor da Fazenda do Brasil, era dono de terras e escravos e homem influente entre os
militares instalados na cidade de Salvador. Tais características são resultado de sua ascendência
familiar e funções que ele cumpriu em tempos difíceis de conflito com os holandeses, mas que lhe
rendeu lucros materiais e políticos após a guerra.
Ser um varão da família do patriarca Caramuru, poderoso latifundiário e experiente
combatente foram atributos fundamentais que credenciaram a entrada de Brito como uma das três
autoridades que governaram o Brasil, em Junta Provisória, em 1641, acompanhemos os detalhes
desta trama a seguir.
3- Lourenço de Brito Correa e a Restauração na Bahia.
No século XVII, a praia de Itapoan abrigava um pequeno povoado onde viviam pescadores
e armadores de baleias, submetidos neste período ao senhor da Casa da Torre, Francisco Dias de
Ávila (1576-1650).53 Só o olhar mais atento – daqueles que se preocupam em identificar
monumentos históricos e as marcas que a experiência humana deixou gravada nas ruas da cidade de
Salvador – consegue localizar, bem próximo à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de
Itapoan, a exposição de grandes ossos de cetáceos, que vinham para estas partes mais quentes do
Oceano Atlântico parir suas crias nos verões do século XVII.
A pesca da baleia era um negócio lucrativo e alvo de disputas acirradas entre os homens de
grosso cabedal da Colônia interessados no monopólio do comércio da pesca e beneficiamento deste
produto.54 A ruas da Velha São Salvador eram iluminadas às custas das várias pipas de óleo de
baleia, além de frutos do mar, vinha também de Itapoan, carne de boi, couro curtido, mandioca e
seus subprodutos como o beiju, a farinha, a carimã ou puba, além de frutas, verduras e hortaliças
cultivadas pelos moradores desta pequena povoação vizinha a cidade de Salvador.55
Referi-me à antiga vila de Itapoan por ser este o lócus que dá início a uma série de
acontecimentos que podem explicar o contexto político do Brasil colonial e suas relações com o
momento que se descortinava no Império Ultramarino Português. Foi naquelas praias que o jesuíta
Francisco Vilhena56 desembarcou discretamente, no ano de 1641. Era homem de confiança do novo
53
Ver: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia d'Ávila: da conquista dos sertões à
independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
54
O trabalho de Camila Baptista Dias é essencial para a compreensão da economia baleeira no Brasil Colonial,
especialmente no Rio de Janeiro, ver: DIAS, Camila Baptista. A pesca da baleia no Brasil Colonial: Contratos, e
contratadores do Rio de janeiro no século XVII. Dissertação (mestrado). UFF, 2010. Mais detalhes da pesca da baleia
no período colonial, ver: CASTELLUCCI JR, Wellington. “Pescadores e baleeiros: a atividade da pesca da baleia nas
últimas décadas dos oitocentos. Itaparica, 1860-1888.” In: Revista Afro Ásia, n.33, 2005. p. 133-168.
55
op.cit. TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia, 2001, p.139
56
O jesúíta Francisco Vilhena é um personagem importante para a compreensão do jogo político que se delineava na
29
soberano de Portugal D. João IV, o Restaurador; o emissário conduzia ordens secretas, escritas pelo
próprio Rei, que o instruía como proceder a Restauração Brigantina na principal conquista
portuguesa no Atlântico Sul, o Brasil.57
Depois de 60 anos de domínio Espanhol na Península Ibérica e, por conseguinte, nas
conquistas ultramarinas, uma dinastia de sangue lusitano consegue ter de volta a soberania de
Portugal, após anos de guerra civil e manobras políticas. O Duque de Bragança, auxiliado por sua
esposa espanhola, foi aclamado Rei D. João IV em primeiro de dezembro de 1640, inaugurando
uma nova fase de reconstrução de um país fragilizado pelas contendas e com suas conquistas
ultramarinas seriamente ameaças por outras nações como a França, Inglaterra e Holanda. 58
O próprio D. João IV dizia que o Brasil era [...] uma vaca de leite59, por dar sustento seguro
à metrópole e ser entreposto comercial fundamental para que o comércio transatlântico de açúcar e
escravos continuasse lucrativo. Mas este objetivo só seria efetivamente realizado se a Restauração
fosse reconhecida em todas as partes onde a Coroa Portuguesa havia fincado seus pés e que em
todos estes locais os súditos e funcionários da administração estivessem submissos ao novo
soberano.60
A Provedoria Mor da Fazenda Real do Brasil foi uma das primeiras Instituições erigidas em
1549 e exerceu um papel fundamental na administração do Brasil após o advento de D. João IV, sua
principal atribuição era coordenar, supervisionar e fiscalizar as Provedorias da Fazenda existentes
nas Capitanias. No início do seu funcionamento, tinha um expediente composto pelo Provedor Mor,
Contador Geral, Escrivão da Provedoria Mor, Tesoureiro Geral, Meirinho, Porteiro e Patrão da
Ribeira.61
Bahia, após a Restauração Brigantina. Segundo o cronista inglês Robert Southey, ele [...] trouxera de Portugal muitas
cartas do rei com a direção em branco, para distribuir segundo a sua discrição pelos homens de mais influência e
caracter no Brasil. Ver: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Tomo III, Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1862, p. 6.
57
MENEZES, D. Luiz de (Conde da Ericeria). História de Portugal Restaurado em que se dá notícia das mais
gloriosas acções assim políticas, como militares, que obrarão os Portugueses na Restauração de Portugal, desde o
ano de 1662 até o ano de 1668, 2ª Parte, Tomo IV, Lisboa: Oficina Ignácio Nogueira Filho, 1759. Esta é a principal
obra da historiografia portuguesa que tratou da Restauração Brigantina, até fins do século XVII, apesar de ser alvo de
críticas contundentes quanto à questões nacionalista que influenciaram esta narrativa, ela nos oportuniza conhecer o
contexto político que Portugal experimentou com o advento de D. João IV e a sucessão dos Reis e Rainhas de Portugal,
bem como o reflexo destas mudanças dentro e fora da Europa. Os detalhes que explicam o fim da hegemonia espanhola
e advento da dinastia Brigantina, em 1640, serão discutidos no capítulo a seguir.
58
O contexto político que possibilitou o advento da Restauração da Coroa Portuguesa foi estudado por: SCHAUB, Jean
Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640). Lisboa: Livros Horizonte, 2001. Também verificar um
estudo sobre aspectos da cultura política que envolveram a Restauração Brigantina publicado por ÁLVAREZ, Fernando
Bouza. Portugal no Tempo dos Filipes. Política, Cultura e Representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos,
2000.
59
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo,
Companhia das Letras, 2000. p. 247.
60
Para mais informações sobre o Ultramar no tempo dos Filipes e as particularidades da administração castelhana, ver:
VALLADARES, Rafael. “El Brasil y las Indias españolas durante la sublevación de Portugal (1640-1668).” In:
Cuadernos de Historia Moderna, XIV, 1993, p. 151-172. Ver também: SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Do Brasil
Filipino ao Brasil de 1640. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968.
61
Para maiores informações, ver o Regimento do Provedor Morda Fazenda Real do Brasil em:
30
Na vacância de Governador Geral ou Vice Rei do Brasil, o Provedor Mor da Fazenda era
membro nato da Junta Governativa que o substituía ou sucedia, por isso o Provedor não poderia se
ausentar da capital por muito tempo dada as consecutivas demandas que necessitavam do seu
parecer. A função da provedoria Mor da Fazenda não tinha fins apenas tributários ou fazendários,
nela se encontrava a espinha dorsal da administração da Colônia, seja em seu funcionamento básico,
seja no suporte militar.
Eram funções da Provedoria Mor da Fazenda: arrecadar impostos, armazenar e comprar
armas e munições, construir obras públicas e navios, organizar e financiar expedições de
apreamento indígena e quilombola, dar manutenção à balança pública, organizar o cunho da moeda
e abastecimento alimentar das Capitanias.
Por fim, a presença de Lourenço de Brito Correa na função de Provedor da Fazenda em
1640 ressalta-se pelo seu alcance na administração os portos, controle das embarcações que
entravam e saiam da Baia de Todos os Santos e do conteúdo que elas transportavam (inclusive as
cartas), além disso, Lourenço era conhecido por todos os funcionários régios erradicados na Bahia
pois a ele cabia o pagamento dos civis e militares que serviam no Brasil. Geralmente as monarquias
nomeavam neste oficio a membros de famílias da Bahia, visto que este posto foi herdado pelo filho
mais velho de Lourenço de Brito Correa após a sua morte.62
O Duque de Bragança foi anunciado novo Rei de Portugal em dezembro de 1640, a notícia
chega ao Brasil entre os meses de fevereiro e março de 1641, simultaneamente, a Corte de Madri
envia ordens expressas para que a rebelião de nobres portugueses fosse contida, tanto em Lisboa
como no Ultramar, contudo, não obteve sucesso.63
Os primeiros homens a demonstrar fidelidade ao Rei D. João IV são mencionados nas Cartas
ao Conselho Ultramarino, este era um sinal de como a adesão aos novos Reis e manifestações de
reconhecimento da sua soberania era importante naquele tempo, seja por dar provas públicas de
fidelidade e reconhecimento à Coroa Brigantina, seja para assinalar no espaço colonial a nova
conjuntura política que o Reino atravessava, exigindo dos seus súditos a devida fidelidade e
subserviência. O aspecto simbólico que a Restauração adquiriu entre os moradores da Bahia pode
ser visto em vários dias de festejos que ocorrerão na cidade de Salvador nos primeiros meses de
1641.64
O historiador Sérgio Buarque de Holanda colabora com mais informações sobre a recepção
da Restauração entre as lideranças militares instaladas no Estado do Brasil:
http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=98&id_obra=63&pagina=533
62
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro/Conselho Federal de Cultura, 1972. P. 362-365.
63
Os detalhes desta trama foi estudado por VALLADARES, Rafael. La Rebelión de Portugal. 1640-1680. Valladolid:
Junta de Castilla y Leon – Consejeria de Educación y Cultura, 1998.
64
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil Colonial, São Paulo: Editora 34, 2000, p. 82.
31
[...] Quanto a Salvador Correa de Sá, ligado à Espanha ainda mais que o primeiro [o
Marques de Montalvão], pois era filho de mãe espanhola e casado com mulher espanhola,
teve uma reação à notícia da aclamação de D. João IV um tanto inesperada. [...] hesitou e
afinal, consultando a maioria, seguiu o exemplo de Montalvão. 65
D. Jorge de Mascarenhas, o Marques de Montalvão, era um homem influente na política
Ibérica, fora destacado para estas partes do Atlântico ainda no Reinado de Filipe IV de Espanha,
portanto, antes da Restauração. Recebeu o primeiro título de Vice Rei do Brasil concedido pelas
mãos do Rei da Espanha e tinha ordens para comandar a guerra e expulsar definitivamente as tropas
de Maurício de Nassau instaladas em Pernambuco, veio substituir principalmente para substituir o
Conde da Torre.66
Montalvão inicia o período dos Vice-Reis no Brasil, esta atribuição tão extraordinária fora
resultado de um histórico de sucesso militar colecionado ao longo da sua trajetória, este nobre
apresentou estreitos laços de fidelidade e serviços, tanto com os Habsburgos como com os
Bragança, percebe-se que ele soube tirar proveito do trânsito que tinha nas Cortes de Madri e de
Lisboa para manter-se próximo das dinastias Ibéricas, sempre prestou serviços militares e em cargos
de alta patente, fortificando assim os laços de relação direta com os Reis, sejam eles quais fossem. 67
Percebemos que tanto os documentos, como os historiadores que se debruçaram sobre o
estudo da adesão do Brasil à Restauração Brigantina apontam para a fidelidade do Marquês à D.
João IV, ele seguiu um protocolo interessante: primeiro Montalvão impediu a entrada de qualquer
embarcação na Bahia de Todos os Santos sem a sua expressa autorização, até que se apurassem os
sentimentos dos moradores da Bahia quanto à nova conjuntura política.
Depois, sabendo que uma guarnição de 600 infantes espanhóis estava na Bahia e
precavendo-se do perigo de rebelião, ordenou que o Terço de Infantaria comandado por seu filho,
D. Fernando Mascarenhas,68 montasse guarda na Praça do Colégio dos Padres da Companhia de
65
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. (org.) História da civilização brasileira. Tomo I: A época Colonial, vol. I, Rio de
Janeiro: Bertrand, 1997, p. 188-189.
66
D. Fernando Mascarenhas, o Conde da Torre, recebeu este título por carta de 26 de julho de 1638, outorgada por
Felipe IV, foi “Comendador da Torre, de Fonte Arcada e de Rosamaninhal, na Ordem de Cristo, Senhor do Morgado da
Gocharia, Governador e Capitão Geral de Ceuta e Tanger, Presidente do Senado da Câmara de Lisboa e Reformador
das Fronteiras”, não confundir com o filho do Marquês de Montalvão, seu homônimo. Para maiores detalhes, ver:
CAMPO BELLO, Henrique Leite Pereira de Paiva de Faria Távora e Cernache Conde de. Governadores Gerais e Vice
Reis do Brasil. Edição oficial e comemorativa. Delegação Executiva às Comemorações centenárias de Portugal. Porto:
1640, p.63. Ver também as informações de sua descendência na obra genealógica de GAYO, Felgueiras. Nobiliário de
Famílias de Portugal. Braga: Oficinas Gráficas Pax, 1941. § 224. n. 24.
67
Sobre o protagonismo do Marquês de Montalvão, no Ultramar Portugues ver: GOUVÊA, Maria de Fátima Silva.
“Poder político e administração na formação do complexo atlântico português: 1645-1808.” In: FRAGOSO, João Luís
Ribeiro,; BICALHO, Maria Fernanda Baptista.; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. (orgs.). O Antigo Regime nos
trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 285316.
68
D. Fernando Mascarenhas era filho de D. Jorge Mascarenhas, o Marquês de Montalvão, sua mãe chamava-se Dona
Francisca de Vilhena. Ele manteve-se fiel, junto com seu pai, ao partido dos Bragança enquanto esteve na Bahia ao
contrário dos seus irmãos e da Marquesa de Montalvão, que optaram em continuar leais aos Filipes de Espanha,
Segundo Felgueiras Gayo, D. Fernando Mascarenhas, quinto filho do Marquês de Montalvão, foi Marechal do Reino
em 1639, Senhor e Conde de Serem, nomeado em 1643 e também Senhor da Vila de Albergaria. Ver: GAYO,
32
Jesus e que os soldados do Mestre de Campo Joanes Mendes de Vasconcelos, seu amigo pessoal,
estivessem atentos a qualquer ordem.
O Conde da Ericeira informou que D. Jorge Mascarenhas utilizou esta cautelosa
metodologia para sondar os ânimos dos principais da Bahia e encontrando neles confiança, reuniu a
todos e mandou que cada um referisse em público sua adesão ao novo Rei de Portugal, desta forma,
percebemos o valor das declarações públicas na sociedade colonial: ao afirmar a adesão ao novo
Rei de Portugal, os fidalgos de grosso patrimônio e influência política da Bahia declaravam estar
dispostos a servir com obediência ao novo comando político do Reino. O cronista ressaltou que a
guarnição castelhana que estava em Salvador foi desarmada sem violência e a cidade continuou em
festa durante muitos dias comemorando o fim da hegemonia Espanhola.69
Para avalizar a fidelidade do Estado do Brasil à nova Coroa, o Marquês de Montalvão e
primeiro Vice Rei do Brasil enviou o seu filho D. Fernando Mascarenhas, juntamente com o Padre
Antônio Vieira para Lisboa; eles levavam cartas informando sobre a aclamação de D. João IV na
América, o escrito atestava a lealdade do patriarca da família Montalvão à dinastia restaurada e
dirimia quaisquer dúvidas quanto à adesão do Brasil ao partido do oitavo Duque de Bragança.
Contudo, nem o Marquês de Montalvão, nem seu filho, pareciam suspeitar que, do outro lado do
Oceano, o vigor da harmonia entre sua família e a Casa Real entronada estivesse ameaçada. Alguns
filhos de Montalvão estavam desgostosos com a mudança política e haviam debandado para o lado
espanhol.70
No Porto de Peniche, a notícia de que D. Pedro Mascarenhas e D. Jerônimo Mascarenhas –
filhos do Marquês de Montalvão que residiam em Portugal – haviam fugido para Madri, já corria a
cidade e o povo esperava furioso a chegada de mais um suposto traidor, quando a caravela aportou,
D. Fernando Mascarenhas deu-se conta do perigo que corria. A turba enfurecida queria eliminá-lo e
o excesso foi tanto que se o Conde de Autoguia não acudisse o fidalgo, escondendo-o em sua
morada, o recém-chegado do Brasil certamente teria morrido pois conseguiu se livrar da população
revoltada, ainda que xingado e ferido por uma cutilada na cabeça.71
Aqui cabe um breve parêntese para assinalar a participação do Padre Antônio Vieira nesta
ocasião, Pedro Calmon relembrou que o jovem jesuíta havia adquirido a afeição do Marquês de
Montalvão, a sua eloquência e aproximação com o vice-rei foi um dos elementos fundamentais para
que ele fosse em comitiva atestar perante o Rei a fidelidade do comandante do Brasil, ressalte-se
que depois desta viagem o Padre Antônio Vieira passou algum tempo em Portugal e paulatinamente
ingressou na vida da Corte Brigantina e nos meandros do poder, tornou-se confessor de D, João IV
Felgueiras. Nobiliário de Famílias de Portugal. Braga: Oficinas Gráficas Pax, 1941. § 295. n. 24.
69
Op. Cit. MENEZES, D. Luiz de (Conde da Ericeria). História de Portugal Restaurado, p. 57
70
Idem, parte I, livro III, p.134-136
71
Idem pg. 66.
33
e conselheiro da Rainha D. Luísa de Gusmão.72
Para além da má recepção que teve ao chegar ao Reino, D. Fernando Mascarenhas tomou
conhecimento que a Marquesa de Montalvão, sua mãe, estava detida no Castelo de Arroyollos. O
motivo desse escândalo se encontrava na suspeita de que a senhora havia seguido o exemplo dos
filhos e também estivesse prevaricando contra D. João IV. Contudo, o Rei teve a prova da fidelidade
do primeiro vice-rei do Brasil aos Bragança e esperava que o jesuíta Francisco Vilhena cumprisse à
risca as ordens que lhe foram dadas.
Anteriormente, mencionei a cuidadosa chegada do irmão Vilhena na praia de Itapoan, em
1641, levando consigo as missivas secretas que orientavam detalhadamente como e em que
circunstância ela deveria ser aberta, lida e aplicada. Os postos de desembarque indicados para
qualquer navio que atravessasse o Atlântico rumo a Bahia era no porto da antiga Vila do Pereira ou
no porto situado à beira da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, locais de águas calmas e
apropriados como ancoradouro, porém repleto de comerciantes e de outras pessoas influentes que
certamente dariam notícia rápidas às autoridades locais sobre a chegada de um reinol à Bahia,
portanto, não era apropriado descer na movimentada Salvador, o desembarque de Vilhena em
Itapoan tinha a intenção de ser discreto e sigiloso.73
O Conde da Ericeira narra desta forma a chegada do jesuíta:
[...] [Francisco Vilhena] sahio em terra e deo a ordem a caravela que se fizesse ao mar;
chegou a cidade e entrou no seu Colégio sem fazer rumor; e tendo notícias do sossego que
o Estado do Brasil obedecia a El Rey, executou com grande imprudência a ordem que
levava sua.74
Vemos, no relato, que Vilhena preferiu seguir por terra até o Colégio dos Jesuítas. Pela sua
condição, o clérigo certamente não caminhou os quilômetros que separavam a vila de Itapoan da
Cidade de Salvador, certamente preferiu cavalgar, anonimamente, em cima do lombo de uma mula,
meio de transporte de pessoas e mercadorias amplamente utilizado para cruzar o sertão baiano
durante todo o XVII e que passava por Itapoan em seu itinerário. No caminho, o emissário real
arquitetava meticulosamente o que fazer com tão importante tarefa.
Mas porque tanto segredo? Porque um desembarque às escondidas e tão discreto? Qual o
conteúdo misterioso das ordens do Rei e que deram nova forma ao jogo político de 1641?
Em tempos de Restauração Brigantina, todo cuidado era pouco quando o assunto era
lealdade e fidelidade ao novo Rei, principalmente em se tratando do Brasil e dos altos oficiais que o
administravam, dentre os quais, muitos mantinham vínculos de fidelidade com a Coroa espanhola.
72
Op, cit. CALMON, Pedro. História do Brasil, vol2 (sec XVI-XVII), 1971. p. 628.
Felisbello Freire afirmou que [...] dous caminhos comunicavam esta praça [Salvador] com a praia: um da banda do
Norte para a fonte , então chamada do Pereira e do desembocadouro da gente dos navios; ou ao Sul, para Nossa
Senhora da Conceição e para desembocadouro das mercadorias. op. Cit. FREIRE, Felisbello. História Territorial, p.
59.
74
Idem p. 161.
73
34
O Marquês de Montalvão foi o primeiro Vice Rei do Brasil, nomeado por D. Filipe IV de Espanha e
sua família mantinha laços evidentes com a Coroa Castelhana, apesar deste vínculo, o professor
Sérgio Buarque de Hollanda sintetizou a atitude do Marquês de Montalvão ao tomar conhecimento
que uma nova cabeça havia sido coroada em Portugal:
[...] A notícia recebida por Montalvão é a da restauração de um reino e da deposição de
um reinado. A reação da autoridade é simples: rei morto, rei posto, viva o Rei! É isso
exatamente o que lhe ditam os seus interesses imediatos. 75
Era no misterioso manuscrito resguardado pelo jesuíta Francisco Vilhena que se encontrava
o interesse do monarca: caso o Marquês de Montalvão ainda não houvesse aclamado D. João IV
como Rei de Portugal, ou se houvesse alguma suspeita de que este fidalgo assumisse o partido de
Castela, o irmão Vilhena deveria instituir uma Junta Governativa, composta pelo Provedor Mor da
Fazenda, do Mestre de Campo mais velho e pelo Bispo do Brasil e após isso, declarar deposto o
Vice Rei em exercício.
Ora, o emissário teve ciência da lealdade do Marques de Montalvão e da solene aclamação
Brigantina na Bahia por ele liderada, mesmo assim, Vilhena convocou os possíveis novos
governadores e lhes mostrou a Carta Régia, contrariando a metodologia ordenada pelo Rei e, como
se não bastasse, referendou a posse de uma junta governativa que pela primeira vez derrubou um
Vice Rei do Brasil.76
A sala de reuniões do Colégio dos Padres Jesuítas foi onde se deu a posse deste governo
provisório, eram eles: Lourenço de Brito Correa, Provedor-mor da Fazenda Real, Luiz Barbalho
Bezerra, Mestre de Campo mais velho do Terço de Infantaria e o Bispo do Brasil, D. Pedro da Silva
Sampaio;77 saliente-se que estes homens estavam cientes da fidelidade manifestada por D. Jorge
Mascarenhas ao Duque de Bragança, todavia eles seguiram as instruções de Vilhena e assumiram o
governo do Brasil e após isto, trataram de justificar a substituição.78
Depois de empossar os substitutos do vice-rei, o irmão Vilhena se encarregou de entregar a
Carta Régia que destituía D. Jorge Mascarenhas do cargo. Ele aceitou, resignado, esta posição
estranha e se retirou da residência do Governador para o seu domicílio particular. Como a situação
política não era propícia ao Marquês e as notícias do Brasil demoravam para chegar ao Reino, o
triunvirato baiano iniciou o processo de recolhimento de provas contra Montalvão e também operou
75
Op. Cit. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. (org.) História da civilização brasileira. p. 198.
A possível vinculação do Marquês de Montalvão com os opositores à elevação de D. João IV foi estudada por
CURTO, Diogo Ramada. “A Restauração de 1640: nomes e pessoas.” In: Península. Revista de Estudos Ibéricos. n. 0,
Porto: Instituto de Estudos Ibéricos/Faculdade de Letras do Porto, 2003. p. 333.
77
Para mais detalhes ver: JESUS, Raphael de. Castrioto Lusitano ou Historia da guerra entre o Brasil e a Hollanda,
durante os annos de 1624 a 1654, terminada pela Gloriosa Restauração de Pernambuco e das capitanias
confiantes obra em que se descrevem os heroicos feitos do ilustre João Fernandes Vieira, e dos valerosos capitães
que com elle conquistarão a independencia nacional. Pariz: J. P. Aullaud, 1844, p. 187-190.
78
Ver também as informações dadas sobre a participação de Lourenço nesta Junta Governativa em VARNHAGEN,
Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil, Tomo I, Rio de Janeiro: Livraria Clássica, p.590.
76
35
algumas reformas que julgavam necessárias.79
Devassaram os documentos pessoais do primeiro Vice Rei em busca de possíveis
aproximações com Espanha, em contrapartida, Montalvão tratava de se defender das acusações
contra ele levantadas e, para não ser preso, tentou se refugiar no Colégio dos Jesuítas. Malgrado, o
Colégio não era território neutro, nem garantia imunidade para este nobre, especialmente naquele
contexto político em que um jesuíta sacramentara sua depoisição. A Junta mandou prender D. Jorge
de Mascarenhas e mais dois militares de renome, apenas por serem seus amigos, eram eles o Mestre
de Campo Joane Mendes de Vasconcelos e o Sargento Mor Diogo Gomes de Figueiredo.
Prender e soltar pessoas nesta época eram estratégias amplamente utilizadas para garantir a
governabilidade, como veremos na ocasião do Vice Reinado do Conde de Óbidos. Por enquanto,
cabe dizer que em 1641 o primeiro ato da Junta Governativa composta por Bispo, Barbalho e Brito
foi libertar da prisão duas pessoas importantes da sociedade baiana e ligadas ao novo triunvirato,
elas haviam sido presas pelo anterior vice-rei por acusação de um assassinato à luz do dia.
As provas que a Junta Governativa tinha para poder justificar a deposição de Montalvão
foram as cartas escritas pelos filhos de D. Jorge Mascarenhas, interceptadas por Lourenço de Brito
Correa em uma embarcação de Sevilha que aportou na Baía de Todos os Santos, o conteúdo da
epístola estimulava a adesão de D. Jorge Mascarenhas ao governo de Espanha, também foi
apreendida uma carta pessoal do Rei Felipe IV orientando que D. Jorge Mascarenhas conservasse a
Colônia em obediência à Castela.80
Lourenço de Brito Correa e os demais integrantes da Junta Governativa estavam cientes da
fidelidade do vice-rei do Brasil à D. João IV, mesmo assim, assumiram o governo e seguiram as
ordens régias trazidas pelo Jesuíta Francisco de Vilhena em 1641. Os motivos que levaram o jesuíta
a fazer tal manobra política e a consequente deposição do Marquês de Montalvão foram estudados
com detalhes pelo historiador Pablo Magalhães. De acordo com sua pesquisa, a historiografia do
século XIX apresentou uma versão equivocada acerca da deposição do primeiro Vice Rei do Brasil,
ligando-a a uma possível conspiração jesuítica liderada pelo Bispo da Bahia, D. Pedro da Silva
Sampaio, contudo, o historiador afirma que não conseguiu encontrar documentação comprobatória
79
Luiz Henrique Dias Tavares constatou que os motivos que levaram Vilhena a operar a deposição do Marques de
Montalvão continuam sem explicação convincente: op. Cit. TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia, 2001,
p.146. Fernando Bouza Alvares compreendeu que tanto a esposa de Montalvão quanto dois filhos seus permaneceram
fiéis à Castela. Jerônimo Mascarenhas, por exemplo, tornou-se um dos principais expoentes do grupo de fidalgos
portugueses que então permaneceu na Espanha. Tornou-se Bispo de Segóvia e faleceu em 1672. Quanto a D. Pedro
Mascarenhas, passou para o Reino de Castela assumindo o título de 2º Marques de Montalvão. Ver: ÁLVAREZ,
Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes. Lisboa: Cosmos, 2000, capítulo X.
80
Op. cit LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: exército, fiscalidade e administração da Bahia (1624-1654).
2009, p 156.
36
que ateste esta conjura, ainda que perceba a participação fundamental da Companhia de Jesus neste
episódio.81
4 - Depois do governo, o emprazamento
A Junta Governativa composta por Bispo, Barbalho e Brito administrou o Estado do Brasil
do dia 16 de abril de 1641 até 26 de agosto de 1642. É válido salientar que os novos mandatários
assinavam suas cartas como [...] Governadores deste Estado do Brazil com poderes de VizoRey e
capitão geral.82 Não nos cabe aqui avaliar os pormenores da gestão deste triunvirato, importa dizer
que, de acordo com Robert Southey, os três governadores promoveram o diálogo com os
holandeses instalados em Pernambuco, o fim da hegemonia Espanhola na Península Ibérica
possibilitou uma nova relação de Portugal com os Países Baixos e a Junta Governativa tratou de
estabelecer esta comunicação:
[...] os três governadores, que depois da deposição do viso-rei havião sido investidos do
poder na Bahia, mandarão ao Recife Pedro Correa da Gama e o Jesuíta Vilhena, a
combinar o modo de estabelecer relações pacíficas entre as duas partes, até que pelos
respectivos governos se arranjassem as couzas definitivamente na Europa,83
A Junta de Governo comandou o Brasil durante 16 meses e 10 dias, foi Antonio Telles da
Silva (1642-1647) quem substituiu os três governadores e também ficou ao seu cargo a apuração
dos acontecimentos que resultaram na deposição de D. Jorge Mascarenhas, o Marquês de
Montalvão.84 Saliente-se que a prisão e envio de Luiz Barbalho Bezerra e Lourenço de Brito Correa
para Portugal não está associado à deposição do Marquês de Montalvão e sim aos motivos que a
devassa acima mencionada revela. Mais uma vez, o historiador Pablo Magalhães auxilia a
compreensão, sua pesquisa aponta que o motivo principal para justificar a viagem de Brito para
Portugal foi a acusação de descaminho na folha de pagamento do Estado do Brasil, efetuado pelos
governadores substitutos:
Os três governadores acharam por bem que cada um deveria retirar o vencimento que
competia anualmente ao cargo de Governador Geral, ou seja, 1:500 cruzados. Ao invés de
dividir o valor por três, cada um retirou integralmente o montante total, somando 4:500
cruzados. O total retirado pelos governadores causou um deficit de 9:000 cruzados na
Fazenda Real, ou seja, 1/3 do total da folha anual para a Bahia.85
81
MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. “Equus Rusus” A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia
(1624-1654). Tese de Doutorado. UFBA. 2010. p. 206-210. Neste trabalho encontramos detalhes das ações que a Junta
Governativa perpetrou para estabelecer as primeiras relações com os neerlandeses de Pernambuco, já iniciada por
Montalvão e Nassau desde os primeiros meses de 1641.
82
AHU, LF, Cx8, Doc. 941, 05/11/1641: Provisão dos governadores do Brasil (três) dando ao Capitão Duarte Correa
Vasqueanes o Governo do Rio de Janeiro, em substituição de Salvador Correa de Sá.
83
SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Tomo III, Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1862, p. 6.
84
Afonso Ruy constatou “posturas tiranas” durante a gestão do Bispo, Barbalho e Brito, [...] anular resoluções, derrogar
posturas e cancelar imposições fiscais que importavam em reduzir a renda pública, eram práticas deste triunvirato e
consideradas tiranas pelo historiador. Ver: RUY, Affonso. História política e administrativa da cidade de Salvador.
Salvador: Tipografia Beneditina, 1949. p.120.
85
Op. cit. MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. “Equus Rusus” A Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na
Bahia (1624-1654). 2010. p.208.
37
No dia 22 de dezembro de 1642, o processo contra Lourenço de Brito Correa estava
instalado, temos acesso às [...] perguntas que se devem fazer na devassa contra Lourenço de Brito
Correa e Luis Barbalho Bezerra86 e o resultado desta investigação foi o emprazamento87 dos exgovernadores.
Se o destino de Luiz Barbalho Bezerra foi o perdão, o caminho de Lourenço de Brito Correa
foi a cadeia: conhecemos a consulta que o Conselho Ultramarino fez em relação a Lourenço e seu
pedido de perdão régio, sete anos depois de ter sido preso e embarcado para responder inquérito
administrativo em Lisboa. Em 19 de novembro de 1649, após consecutivos pedidos de vistas ao Rei
sobre o seu caso, o Conselho lançou um parecer fazendo um breve histórico da vida do suplicante e
sua especial condição de fidalgo:
[...] foy hu dos governadores do Estado do Brazil; em qual alega, que depois de ter servido
a Vossa Magestade anno e meio lhe mandou Vossa Magestade levantar omenagem, e que
88
viesse logo emprazado a este Reino, donde foy preso e o esteve seis anos por esta causa.
Os motivos que comprovaram a inocência de Lourenço de Brito Correa foram encontrados
nos documentos apreendidos pela Junta Governativa, após a deposição do Vice Rei do Brasil. Tais
epístolas foram interceptadas pelo próprio Lourenço em uma [...] fragatta que El Rey de Castella
mandou com cartas ao Marques de Montalvão, que elle rendeo89. Oportunamente, veremos que a
astúcia de averiguar o conteúdo das cartas que levava o já mencionado navio de bandeira espanhola
apreendido na Bahia de Todos os Santos foi utilizada como argumento para obter benefícios
financeiros no final da sua estadia na cadeia do Limoeiro, em Portugal.
Os papéis referentes a Lourenço de Brito Correa detalham que todo o seu procedimento
quando fora um dos governadores do Brasil foi investigado criteriosamente, pois [...] processandose
devassas90 e rizidencias91, assim na Bahia como nesta Corte, foi sentenciado solto e livre, e julgado
86
AHU, LF, Cx9, Doc 1021. Neste documento encontramos mais detalhes sobre os outros aspectos da Junta Governativa
que estavam sendo objeto de apuração pelo Governador do Brasil que os sucedeu. Ver também, na mesma caixa, o
documento 1022 que lista as pessoas indicadas para testemunhar neste caso. Robert Southey nos diz que [...]Barbalho e
Brito foram por conseguinte prezos para o Reino; o primeiro foi perdoado, imputando-se-lhe a falta de juízo os erros, o
segundo jazeu muitos annos na enxovia comum de Lisboa, e o bispo escapou com pena mais leve, tendo apenas de
repor os emolumentos recebidos durante a sua administração. Ver: op. cit. SOUTHEY, Robert. História do Brasil.
Tomo III, 1862, p. 28.
87
Segundo Raphael Bluteau, “emprazar”, significava [...] citar alguém para que em certo dia appareça diante do juiz ou
emprazar é mandar huma justiça superior a outra inferior, para que va diante della dar a razão da queyxa, que della
fez & isto vem a responder, ou assemelhar-se a uma citação que se manda fazer aquella justiça, pondo-lhe termo certo
para emprazar alguém. Op. Cit. Raphael Bluteau. Vocabulario Portuguez e Latino. V.3, p. 68. O emprazamento de
algumas autoridades do Brasil consistia, em alguns casos, na viagem para o Reino até que a fosse concluída toda a
investigação.
88
AHU, LF, Cx. 11, Doc.1355, 19/11/1649.
89
idem
90
Devassas foram atos jurídicos, amplamente aplicados pela Administração Ultramarina e que na Bahia ganhou
contornos especiais. Em termos específicos é a inquirição de um crime, apurado a partir do relato de testemunhas acerca
de algum caso criminal, que tomava dimensões públicas. Op. Cit. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e
Latino v.3, p.180
91
Em termos administrativos, residência significava um criterioso processo de investigação da probidade administrativa
dos funcionários da Coroa, destacados no Brasil. Para isso era nomeado um Juiz de Fora, Corregedor ou Ouvidor que,
38
que havia servido bem a Vossa Magestade.92
Na Bahia, [...] por se achar que recebera dinheiro que o povo fintara para o sustento dos
soldados, sendo pelo contrário, e pertencente a fazenda real93, os bens de Lourenço de Brito Correa
foram sequestrados por um Alvará do Rei, ordenando que o Conselho da Fazenda executasse na
Bahia as suas posses enquanto estava prisioneiro em Lisboa.
Os autos apontam que foram confiscados [...] três mil cruzados que recebeo a conta de seu
ordenado de Governador (como se lhe fez).94 Com esta medida, as rendas ordinárias de Lourenço de
Brito Correa ficaram bloqueadas, causando prejuízo tanto para pagar as despesas de sua família na
Bahia, tanto para custear os honorários de seu livramento no Reino. Para além de ter o seu salário
suspenso, o patrimônio de Lourenço de Brito Correa também foi liquidado, a Fazenda do Brasil
tratou de vender [...] todos seus escravos, e gados em leilão a diversas pessoas, com perda mui
considerável.95
Lourenço de Brito Correa conheceu a outra face da cidade de Lisboa e passou [...] mais de
sete anos (1642 a 1649) trancafiado na Cadeia do Limoeiro, não consegui encontrar nenhum
documento que referencia a situação em que Lourenço se encontrava em Lisboa durante este espaço
de tempo.
Em 1649, o fidalgo da Bahia reclamava [...] os quintos das fazendas que tinha direito pela
prisão da fragata Espanhola que prendera em Salvador, [...] por particular mercê que Vossa
Magestade fez aos Governadores do Estado do Brazil por alvará de 21 de dezembro de 1613.96
Confiando no pagamento deste débito, ele emprestou a quantia sem mesmo tê-la recebido [...] para
ajuda do sustento dos soldados, que naquela época penavam com a ausência de víveres e reaver
esta despesa se tornava imprescindível para o seu livramento e custeio de sua vida.
Esta consulta do Conselho Ultramarino informa com clareza a condição jurídica em que
Lourenço de Brito Correa se encontrava em Portugal, no ano de 1649 e a notícia do seu regresso
para a América: [...] E hora esta degredado para o Brazil por dous annos, pela acusação que lhe fez
Gaspar Sinel, que vai cumprir nesta frota97.
durante um mês perguntava, aos Oficias da Correição e outras testemunhas da cidade de de vilas circunvizinhas no raio
de seis léguas, se o ex-funcionário havia se beneficiado do seu poder para conseguir privilégios como: [...] recebimento
de peytas, dádivas ou empréstimos, [...]se teve cuidado de saber dos malfeytores, se os prendeo ou deyxou, dentre
outras apurações de ordem administrativa que qualificaria ou reprovaria sua gestão. Op. Cit. BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario Portuguez e Latino, v.7, p. 281.
92
op. Cit. AHU, LF, Cx. 11, Doc.1355
93
Idem
94
idem
95
idem
96
idem
97
Idem. Gaspar Sinel era um familiar do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, conforme atesta a Diligencia de
Habilitação de Gaspar Sinel em PT/TT/TSO-CG/A/008-001/10086: Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,
Habilitações, Gaspar, mç. 2, doc. 73. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2329018 Acessado em
13/09/2011, às 15:37.
39
Lourenço de Brito Correa foi degredado do Reino e atravessou o Atlântico para cumprir uma
pena de dois anos no Brasil. Sua primeira viagem compulsória, da Bahia para o Reino, foi por
indícios de improbidade administrativa, contudo, em 1649, Lourenço refaz o caminho de volta para
a América por uma acusação formulada por um membro da Inquisição de Lisboa.
Não conhecemos ainda os argumentos levantados por Gaspar Sinel para justificar o degredo
de Lourenço de volta para a Bahia, o que sabemos é que Gaspar fora um conhecido familiar do
Tribunal do Santo Ofício e que suas acusações foram suficientes para fazer Lourenço cruzar o
Atlântico na condição de degredado por dois anos de volta ao Brasil, uma viajem que parece ter
sido proveitosa para o bisneto do Caramuru, analisaremos este aspecto com mais cuidado a seguir.
Afonso Costa levanta a possibilidade de Lourenço de Brito Correa ter subornado algumas
pessoas para conseguir regressar à Bahia,98 aparentemente, esta suposição não parece coadunar com
o que diz os autos do processo em tela, principalmente se levarmos em conta a delicada situação
financeira que este sujeito apresentava antes de voltar à América:
[...] esta muito carregado de dívidas que fez em mais de sette annos que esteve prezo, e o
que tinha no Brazil Vossa Magestade mandou vender, e cobrar o dinheiro para a sua real
fazenda sem ele Lourenço de Brito ser devedor de couza algua, antes a fazenda real lhe
deve99.
Apesar de contar sua miséria, o fidalgo baiano Lourenço de Brito Correa relembrava sua
condição de credor da Fazenda, o suplicante [...] pede a Vossa Magestade humildemente lhe faça
mercê visto o que allega100. Resumindo sua petição, Lourenço de Brito Correa solicitava que o
pagamento dos ordenados de cada ano que serviu como Governador do Brasil fosse pago na Bahia,
[...] indo na folha ordinária como he costume e que da mesma maneira se lhe paguem os quintos
das fazendas e da fragata de Sevilha na forma do alvará de Vossa Magestade referido.101
A palavra final do Conselho Ultramarino sobre este caso só foi dada no dia 13 de janeiro de
1650, quando Lourenço tinha 60 anos de idade, pouco mais ou menos. Os juízes Jorge de Castilho,
João Delgado e Diogo Lobo Pereira trataram dos seus pedidos: sobre a quantia de três mil cruzados,
que alegava ter direito por serviços prestados como um dos três Governadores, os magistrados
assim entenderam:
[...] Os governadores do Brasil tem de ordenado a cada anno, três mil cruzados, e a este
respeito parece que a mesma quantia se deve repartir pelos três que servirão de que hu foi
Lourenço de Brito Correa, a que cabem mil cruzados por hum anno e o mais que se manter
98
op. Cit. COSTA, Afonso. Baianos de Antanho (Biografias), p 304.
op. Cit. AHU, LF, Cx. 11, Doc.1355. Apesar de Lourenço de Brito Correa manifestar em seu discurso a pobreza e
privações que vivia enquanto esteve preso no Reino, vemos em outros documentos que a sua situação financeira não era
tão periclitante como narrava, ele continuou a receber os benefícios que o Hábito da Ordem de Cristo e comendas da
Ordem de Santiago lhe conferia, em um Alvará, escrito em 10 de julho de 1646, ele recebeu a promessa de 60$000 réis
de pensão nos bens da Ordem com o Hábito de Cristo, em 16 de março de 1647 recebeu outra pensão, por meio de um
Alvará com a quantia de 10$000 réis na Comenda de Santiago de Bedoido. Ver: Série: ANTT. Ordens Militares,
Registro Geral de Mercês e Ordens, livro 2, folhas 183 e 263.
100
op. Cit. AHU, L F, Cx. 11, Doc.1355
101
idem
99
40
nos mezes que mais serviu que forão quatro ou cinco e se deve liquidar. 102
Vale salientar que os Conselheiros não fizeram referência, neste documento, sobre os
direitos dos quintos das fazendas da fragata de Sevilha, apreendidas por Lourenço de Brito Correa,
conforme o pedido que fez na carta de 1649.
Ainda não sabemos se Lourenço de Brito Correa conseguiu reaver as dívidas que a Fazenda
Real tinha com a sua pessoa, também não conhecemos o resultado das outras petições que ele fazia,
apesar desta limitação, a trajetória deste fidalgo da Bahia – preso em Portugal, quebrado em suas
finanças e mandado de volta à América – precisa ser mais bem compreendida.
Para isso, seguiremos a sua carreira ao longo da década de 1650 e 1660 a fim de
percebermos que, apesar de expulso do Reino, Lourenço de Brito Correa continuou a exercer papel
protagonista na Bahia Colonial, em companhia de outros indivíduos que coadunavam com as suas
pretensões políticas.
A paisagem monótona do Oceano Atlântico era uma constante para os olhos dos viajantes
que iam e vinham do Reino com as mais diversas finalidades. A tranquilidade do percurso era
quebrada quando se avistava corsários ou embarcações inimigas que pilhavam as mercadorias,
aprisionavam ou matavam os resistentes.
Quando não era por motivos humanos, a natureza também se encarregava de animar a
viagem transatlântica brindando os navegantes com temporais que viravam embarcações, ventos
repentinos desviavam a frota do seu curso, levando-as a locais distantes e hostis, nevoeiros, bancos
de areia e pedregulhos exigiam extrema atenção dos condutores e súplica perene a Nossa Senhora
do Desterro, padroeira dos degredados tripulantes.
Oração e jejum eram atividades religiosas em alto mar que quebrava a rotina dos meses de
uma viagem marítima que atravessava o Trópico de Câncer e a linha do Equador, em direção ao
hemisfério Sul.
Os cronistas da época rememoravam as novenas e tríduos comemorativos aos santos da
devoção portuguesa feitas durante a viagem, fazia-se procissões com o Santíssimo Sacramento ao
redor do convés e o tradicional apego à virgem Maria eternizava-se na declamação do Ofício de
Nossa Senhora e das 150 ave-marias do rosário.103 Dentre as orações mais significativas que estes
católicos viajantes repetiam, a Salve Regina era a que encerrava a declamação das loas à virgem
Maria, esta antiga oração católica adquire um sentido especial para o estudo em tela.
Sérgio Buarque de Hollanda fez um estudo acerca das diferentes representações que teve o
Brasil no quadro da mentalidade europeia durante os séculos posteriores à chegada dos portugueses.
102
idem
BRITO, Bernardo Gomes de. História Trágico Marítima (1688-1759). Barcelos: Companhia Editora do Minho,
1942. Nesta obra temos mais detalhes da vida em alto mar, devoções, epidemias e folguedos durante as viagens
oceânicas protagonizadas por Portugal durante os séculos XVII e XVIII.
103
41
A ideia de um Brasil edênico, fonte de fartura e felicidade, um Paraíso Terrestre poupado pelas
águas do dilúvio, tornou-se, com a efetiva conquista e colonização de suas terras e habitantes, um
local onde se constatou a presença do diabo em suas diferentes formas e, consequentemente,
percebia-se que o pecado não havia poupado o Pindorama, repleto de gentio bravo e comedores de
gente ou de epidemias consecutivas. Sérgio Buarque citou uma epístola de Paulo, na qual o apóstolo
relembrava a comunidade de Roma que, por culpa do pecado original de Adão e Eva, a humanidade
[...] geme e padece até hoje (Rm 8:22).104
Na Salve Rainha, declamada nesta época em Latim, as palavras de Paulo são repetidas, a
humanidade privada da graça Divina por causa do pecado original estava gementes et flentes in
lacrimarum vale105. O Vale de Lágrimas era concebido na mentalidade da época como o mundo
material, uma antítese do Paraíso, pois estava repleto de doenças, perigos e morte, neste espaço
estava degredada toda a descendência de Eva: exsules Filii Hevae.106
O Brasil, concebido pelos homens e mulheres dos Seiscentos como o Éden bíblico, vai
tomando feições de um grande Vale de Lágrimas, especialmente na visão de algumas pessoas que
do Reino foram degredadas para a América Portuguesa, a aventura da viagem pelo Oceano tornouse um verdadeiro rito de passagem, conforme entendeu Laura de Mello e Souza, ao analisar o
sentido de Brasil–Purgatório, compartilhado por aqueles que cruzaram o Atlântico durante o século
XVII.107
Todavia, dentre os muitos viajantes portugueses que vieram cumprir pena de degredo no
Brasil estava Lourenço de Brito Correa, um curioso degredado, pois, como sabemos, havia nascido
na América, foi preso e enviado para o Reino em 1642 por motivos administrativos e, em 1649, sua
punição foi voltar degredado para o Brasil por acusações recebidas em Portugal.
Certamente, Lourenço de Brito Correa não encarava a terra de seus pais e avós como um
local hostil, seu Vale de Lágrimas havia sido no Reino, lá esteve preso por muitos anos longe dos
seus parentes e aliados. Regressar ao Brasil era uma possibilidade de reaver o que perdeu no tempo
que estava detido no Limoeiro e voltar à cena político-administrativa da Colônia.
Em Salvador ele tinha um nome a zelar bem como um poderoso respaldo familiar que o
colocava em uma situação política privilegiada, ele voltava à cidade após anos de reclusão no Reino
e tinha sua imagem de veterano de guerra e ex-governador do Brasil ainda permanente na memória
dos moradores da Bahia de então.
Alguns aspectos da trajetória de Lourenço foram detalhados nas páginas anteriores, cabe
104
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos do descobrimento e colonização do
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.187.
105
“gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas”
106
“degredados filhos de Eva”
107
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: demonologia e colonização, século XVI-XVII. Rio de Janeiro:
Companhia das letras, 2000, p. 89-100.
42
aqui lembrar que este sujeito viveu em um discreto ostracismo neste retorno à Bahia, pelo menos
nos primeiros anos da década de 1650, talvez o fidalgo não quisesse chamar atenção para o seu
passado de ligações perigosas e denuncia de um familiar do Santo Ofício da Inquisição e tratou de
refazer a sua vida em Salvador.108
5- A graça e a desgraça cruzam o Atlântico, entre letras e leituras.
Hábitos de ordens militares, ofícios régios, postos de alta patente militar, mercês régias.
Todas estas palavras representavam no conteúdo vocabular de Portugal Seiscentista formas de
benefícios advindos dos monarcas que resultavam em acúmulo de riqueza e mobilidade social, por
isso, tais privilégios eram perseguidos por algumas pessoas, especialmente as que tinham acesso à
leitura e à escrita. As petições e consultas sobre mercês régias constituem-se em um manancial rico
de informações e tais documentos ilustram a cultura epistolar produzida no período colonial, época
em que as comunicações entre Brasil e Portugal tornaram-se mais constantes e sistemáticas, apesar
de contingências sempre presentes.
A leitura e a escrita no século XVII era habilidade pouco comum para a maioria da
população que habitava a Bahia e seu Recôncavo, vimos que o Colégio dos Jesuítas era a única
instituição que lecionava aos jovens de famílias abastadas as primeiras letras e aprofundava o
conhecimento das gerações de fidalgos nascidos na Bahia, educados pela Igreja Católica. O acesso à
educação era proibido para os filhos de judeus, negros ou mulatos mal nascidos, ainda que alguns
destes conseguissem, com muita dificuldade, entrar para os estudos formais.109
Assim como um bom cristão deveria saber de cor o credo, a ave-maria, o padre nosso e
outras rezas que davam acesso à graça de Deus, ler e escrever eram habilidades que os homens da
Bahia tentavam se esmerar, era por esta via que se alcançava a graça régia e as muitas benesses que
O Rei podia outorgar.
Mas isto só se fazia possível se a epístola seguisse alguns padrões, jargões, formas de
tratamento e desempenho de escrita própria deste tempo. Analisando a cultura epistolar do Antigo
Regime, percebemos que a solicitação de benesses régias por via escrita era entendida, pelos
indivíduos que vivenciavam o contexto Ultramarino, como graça, um favor excepcional, quase
milagroso, que a realeza dispunha para expressar sua gratidão à fidelidade ou coragem dos seus
108
Op. Cit. COSTA, Afonso. Baianos de Antanho (Biografias), p 307.
AHU, LF, Cx.28, Doc. 3420, Nesta carta, o governador Matias da Cunha escreve ao Rei, em 9 de agosto de 1687,
sobre a necessidade de recolher no Colégio dos Jesuítas a D. Diogo, potentado negro que foi mandado de Angola, para
ser doutrinado na forma que se lhe havia ordenado. Em 1689, os moços pardos da Bahia pedem ao Rei, [...] sem
embargo do seu nascimento e da sua cor os possa admitir estudar no Colégio dos Jesuítas. Ver: AHU, LF. Cx. (?) Docs.
3517-3519. Catarina Madeira Santos, analisando aspectos da política em Angola no século XVIII, estudou a cultura
escrita apreendida pelos africanos e a formação de uma linguagem epistolar burocrática nos domínios de Angola e
Benguela. Ver: SANTOS, Catarina Madeira. “Escrever o poder: Os autos de Vassalagem e a vulgarização da escrita
entre as elites africanas”. In: Ndembu Revista de História da USP, n. 155, 2º vol. 2006, p. 81-95.
109
43
vassalos.110
A Graça Régia é, no entender de Antonio Manuel Hespanha, [...] o domínio de afirmação da
vontade, pela qual se criam, espontânea e arbitrariamente, situações novas, a saber, se transmitem
bens ou se outorgam estados.111 Por via da graça, o Rei tinha o arbítrio de estabelecer mudanças
profundas no estado social dos súditos, nos seus bens e nas vantagens que adquiria a posteridade do
agraciado como um milagre divino, onde Deus cura uma doença ou livra da morte àquele que o
suplica pela oração fervorosa. No caso de Portugal, o Rei certamente não era Deus, mas a ele cabia
algumas prerrogativas que mais ninguém poderia usufruir, pois dependia da sua tão pleiteada mercê.
O soberano poderia legitimar filhos bastardos, nomear negros do Brasil em postos de alta
patente militar por reconhecimento de sua bravura nas guerras, emancipar filhos, perdoar e soltar
criminosos presos, conceder ou retirar bens e recursos daqueles que são alvo da graça ou da
desgraça régia.
Ao Rei eram atribuídos poderes excepcionais reconhecidos e pactuados socialmente,
conforme entendeu Norbert Elias;112 a benevolência do monarca manifestava-se em forma de
mercê, prerrogativa utilizada politicamente e com vistas estratégicas de controle e ordenamento
social, cujo motor de concessão e negação de favores encontrava-se na figura régia.113
No Antigo Regime Português, o monarca era o referencial da ordem e da paz social, a ele
cabia ministrar a justiça, no sentido tomista de atribuir a cada um o seu, fosse castigo, fosse prêmio.
O iuris naturalis romano também corroborava com a ideia de centralidade do poder e da justiça nas
mãos do soberano.114 Raphael Bluetau entende justiça por uma das quatro virtudes cardinais;
consiste em dar a cada um o seu, prêmio & honra ao bom, pena & castigo ao mal.115
Com esta prerrogativa, a realeza mediava conflitos e outorgava benesses, esta benevolência
110
Fernando Bouza Álvarez tem se tornado uma referencia entre os estudiosos da cultura epistolar desenvolvida pelas
monarquias Ibéricas modernas, os pressupostos teórico-metodológicos utilizados para a compreensão dos vários saberes
que envolviam a cultura escrita são tratados em ÁLVAREZ, Fernando Bouza. “Corre manuscrito: la circulación de
manuscritos em España y em Portugal durante los siglos XVI y XVII.” In: ALVAREZ, Fernando Bouza. Corre
Manuscrito: uma historia cultural del siglo de oro. Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 27-75.
111
Segundo Hespanha, na chamada economia da Graça incluía idéias “de liberalidade, de amizade, de caridade ou de
magnanimidade.” A graça era entendida, no Antigo Regime, mais como uma disposição da benevolência do Rei que a
necessidade de demonstrar o cumprimento do seu dever, porém, os agraciados estabeleciam, assim, uma relação de
gratidão com a realeza e prestação de serviços mútuos, que poderia durar muitas gerações. HESPANHA, Antonio
Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime.” In: Revista Tempo. Vol11, n.21, Niterói: UFF. 2006. p
138.
112
ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Jorge Zahar, 2001. P. 186.
113
Para um maior aprofundamento sobre a chamada “economia de mercês” em diálogo com os conceitos de “nobreza da
terra”, compartilhados na América Portuguesa, ver: BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Conquista, mercês e poder
local: a nobreza da terra na América Portuguesa e a cultura política do Antigo Regime.” In: Almanack Braziliense.
São Paulo: n. 2, nov. 2005. p. 21-34.
114
Sobre os critérios de mobilidade social que regimentavam as sociedades de Antigo Regime, bem como as ideias
aristotélico-tomistas que estabeleciam a ordem natural da sociedade lusófona seiscentista, ver: op. cit. HESPANHA,
Antonio Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime.”In: Revista Tempo. Vol11, n.21, Niterói: UFF.
2006, p. 121-143.
115
BLUTEAU, Raphael, v.4, p230-232.
44
baseava-se em costumes medievais de gratidão e justiça, a mercê servia de retribuição aos serviços
relevantes que os súditos comprovadamente houveram feito como demonstração de sua fidelidade e
dignidade.
Por julgar-se merecedor da recompensa régia o suplicante apresentava inúmeras folhas que
detalhavam os cargos e ofícios que houvera ocupado também por outorga do Rei, bem como
detalhes de suas especialidades e provas de fidelidade à Coroa, dando assim mais subsídios para que
a graça régia se manifestasse de forma ainda mais graciosa que a benesse anterior.116
A lembrança detalhada dos serviços prestados fazia parte da lógica do Antigo Regime e
reforçava o caráter corporativo da monarquia portuguesa, seja combatendo contra os castelhanos no
Reino ou pelejando contra os holandeses no Nordeste, estes serviços e partes que qualificavam a
concessão da mercê real eram registrados no Brasil sob a forma de Cartas Patentes, Alvarás, Ordens
Régias e outros documentos que comprovavam a memória dos funcionários régios estabelecidos na
Bahia.117
Fossem eles militares ou oficiais da administração, o detalhamento das tarefas que
cumpriram, bem como risco que correram, ferimentos, mutilações, mortes, espólio de guerra e
outras lembranças de relevantes atividades cumpridas na época da Restauração e nas guerras contra
o inimigo holandês eram informações úteis e estrategicamente empregadas nos discursos epistolares
daqueles que tentavam convencer ao doador da graça, o Rei, sobre os motivos para que o
favorecimento real fosse alcançado.118
Logo, era de grande interesse da elite da Bahia preservar a memória destes tempos difíceis,
tendo em vista o [...] desejo de fazer valer junto às autoridades régias os serviços, materiais e
espirituais, por todos prestados à restauração.119 Assim, a guerra, o nome, os companheiros, as
feridas adquiridas no corpo e na alma, os lucros e prejuízos destes tempos, eram lembranças
sistematicamente guardadas na memória dos fidalgos residentes na Bahia, mas também registrada
pela ponta da pena que escrevia os documentos administrativos da Colônia e do Ultramar. Estes
escritos, ainda preservados, abrem possibilidades de pesquisa renovadas sobre práticas de escrita e
representações da mercê régia no contexto político-administrativo da Bahia seiscentista.
116
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (16411789). Lisboa: Estar. 2001, p. 237-282.
117
Luiz Felipe de Alencastro chamou de “o novo pacto político entre a Corte e os guerreiros ultramarinos” as múltiplas
concessões de patentes militares, postos de justiça e fazenda concedidos por mercê régia após a Restauração. Ver: op.
cit. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo,
Companhia das Letras, 2000. p. 302-307.
118
Marília Nogueira dos Santos entendeu a importância que as comunicações escritas tinham na Administração
Ultramarina, afirmando que [...] governar por escrito deixava de ser exceção e passava a ser regra. Ver: SANTOS,
Marília Nogueira dos. “O império na ponta da pena: cartas e regimentos dos governadores-gerais do Brasil.” In:
Revista Tempo, Niterói: UFF, v. 14, n. 27, 2009. p. 101-117.
119
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. 2a. ed., Rio de Janeiro,
Topbooks, 1997, p. 34.
45
O debate em torno das performances epistolares elaboradas pelos suplicantes da mercê régia
merece a contribuição de Roger Chartier, especialmente no que tange as práticas de escrita e de
leitura no período Moderno, seus estudos apontam para algumas particularidades materiais, que se
estruturam e se inscrevem nos textos produzidos pelos homens e mulheres do passado. Estas
características são notadas a partir da utilização de vários recursos, sejam eles visuais ou físicos,
que orientam a organização da leitura e da escrita dos documentos e dão sentido ao texto produzido.
O autor também indica que a prática da escrita e da leitura está associada a gestos, espaços e
hábitos que, conjuntamente, determinam as diferentes formas que os textos podem ser lidos e
apropriados por [...] leitores que não dispõe dos mesmos instrumentos intelectuais e que não
mantém a mesma relação com o escrito.120
Portanto, analisar os manuscritos administrativos e as performances textuais formuladas por
letrados da Bahia Seiscentista, interessados em adquirir a graça régia, permite alcançar a [...]
maneira em que uma comunidade – qualquer que seja sua escala – vive e analisa sua relação com
o mundo, com outras comunidades e consigo mesma.121
A partir da escrita, a concessão de postos na administração do Ultramar deixou de ser
privilégio exclusivo da aristocracia reinol, pois [...] antigos soldados ou pessoas de origem social
não-nobre podiam receber igualmente cargos e ofícios nas conquistas como forma de remuneração
de seus préstimos ao rei.122
A concessão ou negação de mercês régias são percebidas ao longo de todo o Antigo Regime,
em Portugal, no Brasil, na África e na Índia. Vale salientar que o soberano não tinha nenhuma
obrigação em liberar a sua mercê por pagamento destes préstimos, por isto, o favor régio adquiriu
em alguns casos um sentido sobrenatural, uma ajuda extraordinária que concedia ao agraciado
algumas bonificações que podiam transformar a sua vida. O acesso ao disputado mercado da graça
régia que vigorou no século XVII era restrito e os que souberam valer-se deste trânsito salientaram
suas prerrogativas fidalgas [...] para descrever o quase - direito dos clientes (máxime, os vassalos
do rei que lhe tivessem prestado serviços) às mercês.123
As várias instâncias decisórias existentes no complexo ultramarino português do século
XVII foram utilizadas como mais um veículo de acesso à concessão de mercês régias. Leitura e
escrita faziam parte da lógica de outorga da graça, visto que a Mesa de Consciência e Ordens,
Tribunal da Relação da Bahia e de Goa, Desembargo do Paço, Casa de Suplicação e Conselho
Ultramarino, foram sínodos que trataram largamente de petições de mercês régias formuladas por
120
CHARTIER, Roger. A ordem dos Livros. Leitores, autores, bibliotecas na Europa entre os século XVI e XVIII.
Barcelona: Gedisa, 1994, p. 25.
121
Idem p.21.
122
FRAGOSO, João. “A nobreza da república: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro
(séculos XVI-XVII).” In: Topoi Revista de História. Rio de Janeiro, vol1, 2000, p.69
123
Op. Cit. HESPANHA, Antonio Manuel. 2006, p 139.
46
lusófonos espalhados pelo globo no século XVII, o manancial de informações resguardados nestas
missivas revelam diferentes estratégias utilizadas por mulheres e homens no intuito de alcançar o
favor dos Reis em conjunturas políticas que necessitavam de performances de escrita diferenciadas
e adaptadas à realidade.
Na Bahia Seiscentista, a economia da graça124 pode ser entendida como um fator de
mobilidade social que possibilitou o acúmulo de bens e propriedades e a consequente formação de
fortunas de muitos fidalgos nascidos neste local. Ressaltamos anteriormente, que em 1640 o posto
de Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil,ocupado por Lourenço de Brito Correa, foi adquirido
por mercê régia em retribuição aos seus relevantes serviços nas guerras das décadas de 1620 e 1630.
Seus companheiros de governo – o Mestre de Campo mais velho, Luiz Barbalho Bezerra e o Bispo
D. Pedro da Silva – também já haviam adquirido anteriores benefícios da dinastia Filipina
destronada e continuaram a ser alvo da graça de D. João IV, após a Restauração.
Era suplicando um favor, uma mercê, que algumas pessoas da elite da Bahia conseguiam a
legitimação e ampliação de pedaços de terra, direito de fundar povoações e ter a jurisdição civil e
criminal de tais domínios. O perdão régio por crimes diversos também era uma benesse bastante
comum a que recorria os moradores de Salvador encalacrados com a justiça criminal, só esta graça
extraordinária poderia extinguir a condição vil e difamatória do condenado. Em contrapartida,
Antonio Manuel Hespanha alerta:
[...] A graça não representa, então, uma irrupção absolutamente arbitrária da vontade no
domínio dos equilíbrios sociais. Ao revés, a graça realiza também, à sua maneira, a ordem.
A mobilidade social que desencadeia é apenas aparente. No fundo, a nova posição
125
atribuída ao agraciado já lhe era devida, ainda que não juridicamente.
A liberação da graça necessitava de certos limites, fundamentados no costume, que eram
respeitados pela realeza com vistas a preservar a ordem e a manutenção das tradições que
legitimavam a outorga da graça régia no século XVII. Por exemplo, o Rei não poderia conceder um
título de nobreza a pessoas que estivessem num lugar social incompatível com tal título, na
mentalidade da época, o sentido de nobreza caminhava independente da vontade do Rei, pois, a
graça régia apenas declarava nobreza àqueles que eram hierarquicamente superiores na ordem
124
Economia da Graça, do dom, de mercês ou de privilégios são termos cunhados por Antonio Manuel Hespanha, com
base nos seus estudos de Marcel Mauss no clássico “Ensaio sobre a Dádiva”, a partir de Mauss ele pretende explicar a
lógica de funcionamento da sociedade portuguesa do século XVII através do Dom, que seria: [...] acto de natureza
gratuita, o dom faz parte da sociedade de Antigo Regime, de um universo normativo precioso e minucioso que lhe
retirava toda a espontaneidade e o transformava em unidade de uma cadeia infinita de actos beneficiais que
constituíam as principais fontes de estruturação das relações políticas. E, correspondente as categorias desta
‘economia do dom’, estavam a base de múltiplas praticas informais de poder e na formulação de mecanismos próprios
e específicos a este universo político singular, como, por exemplo as relações clientelares, constituíam as principais
fontes das relações políticas. Ver: HESPANHA, Antonio Manuel. “A economia do Dom. Amizades e Clientela na ação
política.” In: MATTOSO, José (org.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1992. p.
382.
125
HESPANHA, Antonio Manuel. “A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime.” In: Revista Tempo. Vol11,
n.21 UFF, Niterói, 2006. p 141
47
natural existente, ou por serem descendentes de pessoas que já eram nobres, ou por terem se
destacado dentre os outros súditos em alguma atividade memorável relevância.
Portanto, o destaque nas batalhas e o ilibado serviço à realeza devidamente registrado
constituíam-se como possibilidade mais acessível de se alcançar algum privilégio para aqueles que
não tinham o sangue fidalgo e por isso estavam naturalmente afastados da graça.
Percebemos então que, apesar de o Rei ser a única instância no Antigo Regime que concedia
títulos de nobreza e fidalguia, esta concessão seguia a tradicionais critérios de linhagem,
apresentados pelos pleiteantes e analisados criteriosamente pelos órgãos consultivos mais
apropriados do reino. Fazendo isto, o Rei acomodava interesses políticos diversos e estabelecia
relações mais consistentes com pessoas, que longe de terem ascendência nobre, eram importantes
personalidades e parceiros estratégicos no comércio ultramarino.
Especialmente a partir de 1640, a economia de mercês fora instrumento fundamental para a
consolidação do projeto político dos Reis da Casa de Bragança. No Brasil, o perfil de controle
estratégico da administração colonial efetuado pelos soberanos e regentes desta família real pode
ser caracterizado pela concessão de privilégios e dons, com poderes de transformar radicalmente a
vida dos agraciados e interferir diretamente nas decisões políticas tomadas pelos funcionários
erradicados na Colônia. Todos estes benefícios originam-se da relação feudal de [...] auxilium e
consilium,126 que durante séculos manteve em convivência, agraciados leais e benevolentes
doadores da graça.
Este pano de fundo envolve uma ampla cadeia de interesses, tácitos ou declarados e revela
algumas estratégias utilizadas por D. João IV para garantir a continuidade do processo de conquista
e colonização das terras do Brasil, em meio a um reino convulsionado pelas guerras que seguiram
contra a Espanha e assédio de potências inimigas às praças ultramarinas.
D. João IV cuidou em estabelecer ligações duradouras com algumas pessoas da Bahia que se
destacaram, seja nas guerras de reconquista de Salvador e Pernambuco, seja com demonstrações de
fidelidade à Coroa de Portugal doando mantimentos e prestando auxílios aos governantes enviados
do Reino. A fidelidade reconhecida em forma de mercê estabelecia uma relação de troca entre o Rei
e seus agraciados e esta dependência podia durar muitas gerações.
Após a Restauração, a tradição de conceder ou negar mercês régias aos pleiteantes da Bahia
continuou em ampla atividade no século XVII.127 Mais uma vez, Lourenço de Brito Correa torna-se
um exemplo interessante para compreender como a aproximação ou afastamento da graça régia
126
FRANCO JR. Hilário. A Idade Média: Nascimento do ocidente. 5ed. SP:Brasiliense, 1994, p.76.
Nos documentos avulsos da Capitania da Bahia, fundo arquivístico Luiza da Fonseca, tramitaram, entre a Capitania
da Bahia e o Conselho Ultramarino durante o século XVII, 128 processos que envolviam concessão e negação de
mercês régias, some-se a este quantitativo, 10 documentos que não informam a data correta da epístola, sendo que a
década de 1660 marca o período de maior demanda desse assunto, contabilizando 35 ocorrências.
127
48
refletiu diretamente no seu patrimônio de fidalgo.
A sua trajetória política é exemplo de como um funcionário da administração da colônia
poderia, por seu comportamento, cair em desgraça, caso estivesse afastado das mercês régias, seja
pela morte do soberano e surgimento de uma nova conjuntura política, seja por problemas locais
que eventualmente questionasse o merecimento de alguns serventuários.
Apesar de ter sido protagonista nas guerras de reconquista da cidade de Salvador nas
décadas de 1620 e 1630, a participação de Lourenço na deposição do Marquês de Montalvão, aliado
tanto dos Habsburgos quanto dos Bragança, foi o estopim que deflagrou uma devassa em sua vida e
declínio dos seus privilégios a partir de 1642.
O leilão dos seus bens e escravos em pagamento de um suposto desvio de dinheiro, que
nunca se provou, seu embarque compulsório para o Reino e os anos que ficou preso na cadeia do
Limoeiro evidencia como Lourenço de Brito Correa – herdeiro de uma tradicional família de
Salvador, portador do Hábito da Ordem de Cristo, ex- Capitão do Terço dos Aventureiros e
Provedor-mor da Fazenda Real do Brasil – não foi poupado das duras punições e consequências
danosas no seu patrimônio.
Enquanto esteve preso no Reino, Lourenço permanecia afastado da graça visto que os
consecutivos pedidos de perdão régio eram inúteis, a ausência da mercê provocou assim a desgraça
dos bens deste bisneto do Caramuru. 128
Porém, apesar de quebrado em suas finanças e desembarcado na Bahia sob a condição de
degredado da Inquisição, a graça régia mais uma vez cruzou o Atlântico e tocou Lourenço de Brito
Correa. A guinada que deu em sua vida, na década de 1650, foi fruto dos consecutivos favores que
só foram possíveis por causa da nova conjuntura política que se delineava na Corte de Lisboa, após
as exéquias do Rei D. João IV e a assunção da Rainha Regente, D. Luísa de Gusmão ao Trono de
Portugal.
6- As graças da Rainha Regente
Apesar de D. Luísa de Gusmão ser espanhola, ela tinha parentesco com os Reis portugueses,
esta mulher foi essencial para o sucesso da Restauração Brigantina e a consequente coroação do seu
marido, o Rei D. João IV. D. Luísa lhe deu três filhos varões, o mais velho e herdeiro legítimo, D.
Teodósio, morreu muito novo, seus irmãos, D. Afonso e D. Pedro, ainda não tinham idade suficiente
para assumir a Coroa de Portugal, por isso coube a esta mulher a Regência de Portugal no período
de 1656 a 1661.
A Rainha Mãe também seguiu a esteira do seu antecessor e concedeu mercês régias a muitos
128
AHU, LF, Cx11, Doc 1355, Lisboa, 19 de novembro de 1649.
49
pleiteantes do Brasil, é importante salientar que a concessão da graça demonstrava a importância
política que a realeza tinha nos processo de mobilidade social advindos desta prerrogativa, por isto,
a graça era uma fonte inesgotável de benefícios régios, mas também um paradigma de legitimação
social destes benefícios, pois tinha a outorga inconteste da realeza e servia para propagandear
positivamente a benevolência do monarca.
A Regente concedeu uma mercê providencial a Lourenço de Brito Correa, deu-lhe a
restituição do seu posto de Provedor Mor da Fazenda Real, cargo que ele não servia durante muito
tempo, contudo, no Brasil era urgente a assistência de funcionários com experiência suficiente para
dar suporte ao Governador Geral Francisco Barreto de Menezes (1657-1663). Pelas suas qualidades
e merecimentos, mas também por uma antiga amizade com o dito Governador, o veterano de guerra
Lourenço de Brito Correa é aventado pelas autoridades do Brasil e da Corte como opção viável para
cargos de maior complexidade na administração colonial, vejamos a seguir.
Em 16 de março de 1657, o então Governador da Capitania do Rio de Janeiro, D. Luis de
Almeida (1652-1657), pedia substituto para seu posto, pois já o exercia a cinco anos, dois a mais
que o previsto. O fidalgo reclamava que já estava [...] recebendo grande prejuízo, mayormente não
havendo occasião preciza que necessite de sua assitencia.129 O Governador do Rio, ansioso para ter
sucessor e voltar ao Reino, aventou a possibilidade de nomear Thomé Correa de Alvarenga 130,
fidalgo da Casa Real que durante nove anos servia no cargo de Alcaide Mor daquela cidade, como
Capitão Mor do Rio de Janeiro, era ele um homem [...] respeitável e tão bemquisto que a mais de
sete [anos] que serve o Procurador da Misericórdia.131
De acordo com este documento, percebemos que, apesar de todas as qualidades que
concorriam para que o Alcaide Mor do Rio de Janeiro assumisse interinamente a Capitania, a
decisão tomada pela Rainha Regente para substituir temporariamente o ex-governador foi outra, D.
Luíza de Gusmão preferiu dar o provimento de Capitão Mor a Lourenço de Brito Correa, experiente
funcionário da administração colonial que durante anos vinha prestando serviços à dinastia
Brigantina.
Apesar de ter sido degredado em 1649 do Reino para a Bahia, por causa das acusações que
levou em Portugal, Lourenço de Brito Correa parece ter sido perdoado e estava livre dos olhos da
Inquisição; em 1657 percebemos que o fidalgo era encarado como uma pessoa da Bahia que
resguardava em seu histórico de serviços prestados algumas qualidades que superavam a anterior
condição de degredado, uma nódoa difícil de ser apagada quando se analisava o histórico de
129
AHU, LF, RJ. Cx. 5, Doc. 741-742, 16 de março de 1657.
Tomé Correa de Alvarenga foi Governador da Capitania do Rio de Janeiro por duas vezes, primeiro assumiu
interinamente o Governo da Capitania no dia 12 de abril de 1657, até que Salvador Correa de Sá e Benavides chagasse,
em outubro de 1659. Foi Governador do Rio de Janeiro pela segunda vez, também interinamente, no ano 1660.
131
idem
130
50
qualquer fidalgo da época.132
O infante D. Afonso VI, por meio da Rainha Regente, fazia saber por meio de sua provisão
as qualidades que concorriam na pessoa de Lourenço para que assumisse o cargo de Capitão Mor do
Rio de Janeiro. A provisão lembrava a trajetória de serviços que prestou à Coroa Brigantina, seja em
tempos de guerra contra Holanda, seja na Restauração, tendo sempre demonstrado fidelidade à
Coroa. A carta afirma que alguns serviços e partes133 destacavam Lourenço de Brito Correa dentre
os outros fidalgos do Brasil.
Em 27 de março de 1657, o secretário menor Rodrigues Tinoco escreveu e a Rainha Regente
assinou uma provisão que dava o cargo de Capitão Mor do Rio de Janeiro a Lourenço de Brito
Correa. Percebemos assim que o ex-degredado tinha novamente a atenção e reconhecimento da
Coroa Portuguesa que, neste documento, a Regente exaltava as suas qualidades afirmando que Brito
era: [...] fidalgo da minha Casa por haver muitos anos que serve a esta Coroa, sempre com bom
procedimento e ultimamente haver servido de um dos três governadores do Brasil.134
A Rainha demonstrava confiança na fidelidade de Lourenço de Brito Correa e, conforme a
boa impressão que fazia em sua pessoa, lhe concedeu a mercê [...] do cargo de capitão mor da
capitania do Rio de janeiro para que o sirva enquanto lhe não manda o sucessor135. Vemos que exGovernador do Brasil não havia caído no esquecimento da casa Brigantina pois a Rainha Regente
concedeu-lhe uma graça especial, porém, em julho deste mesmo ano, Lourenço de Brito Correa
pedia ao Conselho Ultramarino prerrogativas mais ousadas.
Numa consulta feita pelos juízes do Conselho Ultramarino em 9 de julho de 1657,
encontramos mais detalhes sobre a reinserção de Lourenço de Brito Correa na vida política do
Brasil Colonial, de acordo com uma missiva anterior, emitida no dia 3 de julho de 1655,
percebemos a reintegração de Lourenço no posto de Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil, por
um tempo de três anos, por mercê da realeza portuguesa.136
Nesta mesma epístola, percebe-se que a Rainha Regente demonstrava apreço ao fidalgo e
devido a aquisição de graças anteriores, Lourenço de Brito Correa suplicou o Hábito da Ordem de
Avis ou de Santiago, [...] para casamento de hua sobrinha sua,137 pedido muito comum feito pelos
132
Para mais detalhes das atividades que Lourenço de Brito Correa exerceu durante a Regencia de D. Luisa de Gusmão e
mercês que solicitou neste período ver: KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da Honra: a remuneração dos serviços
da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares. (Bahia e Pernambuco 1641-1683). Dissertação de Mestrado.
Niterói: UFF. 2010, p, 75-77; 163.
133
Op. Cit. AHU, LF, RJ. Cx. 5, Doc.742
134
AHU, LF, RJ, Cx. 3, Doc. 303, 27 de março de 1657. Sobre o Governo de Lourenço de Brito Correa no Rio de
Janeiro ver: DHBNRJ, Volume 33, p. 275.
135
Idem.
136
AHU, LF, Cx.14, Doc. 1680, 09 de julho de 1657. Passados os três anos Lourenço foi reconduzido ao posto em
substituição do Desembargador Bento Rabelo, por carta escrita no dia 09 de abril de 1659, ver: AHU, LF, Cx.15, Doc.
1739, 15 de junho de 1659.
137
idem
51
homens de reconhecido destaque na Bahia que buscavam atrair noivos para unirem-se com as
donzelas de sua família, o dote constituía-se numa oportunidade para o consorte se integrar às
Ordens Militares e a união de famílias pelo vínculo do matrimônio foi mais uma estratégia utilizada
pela elite colonial para ampliar e consolidar o patrimônio dos privilegiados donos de escravos e
terras da Bahia Seiscentista.138
Vemos nestes dois documentos de 1657 que Lourenço fora nomeado governador da Paraíba
e renunciou139, ele esperava que a realeza o provesse em um posto de Capitão de [...] Angolla,
Pernambuco ou ao menos do Rio de Janeiro140.
Por pretender ser melhorado no posto de Provedor Mor da Fazenda do Brasil, [...] que está
em menos predicamentos, dos que já servio, e renunciou141, Lourenço de Brito Correa admitia sua
disponibilidade em assumir postos mais importantes, assegurando a Rainha que [...] não
desmerecerá por hir servir a hua praça tão apetecida dos inimigos de Europa142
O Conselho Ultramarino julgou procedente a nomeação de Lourenço de Brito como Capitão
Mor do Rio de Janeiro e ainda ressaltava que o prazo temporário deste governo aliviaria a fazenda
real [...] das ajudas de custo e de outras mercês que costumão pedir os que vão providos deste
Reino.143
A trajetória política de Lourenço de Brito Correa comprova que também fidalgos da Colônia
eram punidos com viagem compulsória na forma de emprazamento ou prisão e envio para o Reino
por motivos que envolviam conduta política e probidade administrativa no exercício de seus cargos.
As viagens de Lourenço estavam associadas a motivos políticos: a primeira vez foi para
cumprir uma sentença expressa de emprazamento, saindo da Bahia para Lisboa, a segunda vez foi
como degredado no Reino e sentença para cumpri-la no Brasil. Tantas viagens não foram suficientes
para destruir a sua imagem pública, nem diminuir a sua influência política no espaço colonial apesar
de tantos anos afastado da Bahia.
Ao contrário, a ascensão da Rainha Regente lhe foi proveitosa e foi neste período que
Lourenço de Brito Correa conseguiu melhorias e progressões em seus rendimentos, lembrando as
prerrogativas conquistadas nas guerras pregressas e qualidades da sua ascendência fidalga.
138
Fernanda Olival é uma estudiosa das Ordens militares e religiosas existentes em Portugal durante o Antigo Regime,
sua obra basilar nos instrumentaliza para a compreensão de como a economia de mercê também manipulava a
concessão de hábitos nestas ordens e as múltiplas estratégias utilizadas para a participação em tais confrarias. Salientese que Lourenço de Brito Correa era cavaleiro professo da Ordem de Cristo e nesta ocasião pedia hábitos de ordens
militares menos importantes como dote de casamento, ver: OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado
Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa, Estar, 2001.
139
A solicitação do Alvará de nomeação para Governador da Paraíba, com a remuneração do cargo que levou Lourenço
de Brito Correa encontra-se em AHU, LF, PB, Cx.1, Doc. 27. Posterior a 16 de abril de 1641.
140
Op. Cit. AHU, LF, BA, Cx.14, Doc. 1680, 09 de julho de 1657.
141
idem
142
idem
143
idem
52
É notória nesta época a sua influência, por exemplo, na Santa Casa de Misericórdia da
Bahia, instituição que exigia [...] limpeza de sangue e antecedentes ilibados aos seus dignitários.
Esta instituição foi beneficiária de uma doação de terras, feita por Lourenço de Brito Correa, ainda
em 1656, provando assim o vigor econômico que este fidalgo baiano apresentava nos finais desta
década.144
Exaltar a genealogia, bem como os serviços prestados à Coroa Brigantina como prova de
fidelidade e competência na administração colonial era uma característica marcante na performance
epistolar de Lourenço de Brito Correa, ele fazia questão de evidenciar o seu histórico de conquistas
e omitia os períodos controversos de prisão e degredo por que passou.
7- A Bahia e seu recôncavo: ocupação e disputa na água doce e na água salgada.
Se a água era uma das forças motrizes dos engenhos da Bahia Seiscentista, esta substância
também fazia parte do cotidiano dos moradores da cidade de Salvador, entre muitas fontes e lagoas,
era comum aos habitantes adquirir um barco ou canoa pois a cidade era entrecortada por rios e
possibilitava a conexão com os Engenhos próximos ao porto, os barcos também uniam o centro
administrativo do Brasil à Ilha de Itaparica e, consequentemente, aproximava as autoridades
coloniais com os senhores de engenhos e fazendeiros do recôncavo, além de viabilizar o acesso dos
padres às freguesias existentes.
Pelos rios ou pelo mar as pessoas se locomoviam e escoavam a produção da Bahia ao longo
de todo o século XVII.145 Em 1663, as terras do recôncavo eram locais estratégicos para a
manutenção da cidade de Salvador. Os engenhos de cana-de-açúcar, situados nestas localidades
dispunham de madeira que queimava nas fornalhas, dia e noite e durante séculos para a produção do
açúcar e seus derivados.146
É na Serra do Sincorá que encontramos a nascente do Rio Paraguaçu, seu roteiro tem o
percurso de 520 km e atravessa grande parte da paisagem baiana até desaguar na Baía de Todos os
Santos.147 A importância do Paraguaçu no período Colonial era tamanha que ele foi utilizado como
referencial demarcatório dos sertões da Bahia, durante o século XVI e boa parte do XVII, este rio é
alimentado por outros que cortam as terras do recôncavo quais sejam: Sergi, Jequiriçá, Açú, Subaé,
144
Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia (ASCM), Estante A, n. 41, Livro 2º do Tombo: Escrituras,
aforamentos e testamentos. 1652-1685, p. 78
145
Um recente trabalho sobre a mobilidade de pessoas e escoamento da produção do período colonial encontra-se em
NEVES, Erivaldo Fagundes; MIGUEL, Antonieta. Caminhos do sertão: ocupação territorial, sistema viário e
intercâmbios coloniais dos sertões da Bahia, Salvador: Arcádia, 2007.
146
O cultivo da cana-de-açúcar foi rentável no recôncavo devido à quantidade de argila existente em sua pedologia, o
que se denomina “solo massapé”, essencial para o crescimento de cana de açúcar e outros produtos que posteriormente
foram cultivados. Ver: BARICKMAN, Bart J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no
recôncavo. 1780 – 1860, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 36-37.
147
Anais do Arquivo Público do Estado da Bahia, vol. 32, 1919, p.335-337.
53
São Paulo, Guaí, Jaguaripe, Jacuípe, Paramirim e Batatã.
As fontes nos informam que no século XVII, a população situada nesta região não se
resumia apenas a proprietários de minifúndios, ou grupos de famílias latifundiárias, servidas pela
massa escrava dócil. Se a lavoura da cana-de-açúcar atraia engenhos e escravos suficientes para
manter a produção, era fora dos domínios da Casa Grande e da Senzala, nas matas ainda intocadas
que circundavam as freguesias do Recôncavo e nos caminhos que lhes dava acesso que se
encontrava um grande contingente de africanos, fugitivos do chicote e da opressão do sistema
escravista.
Estavam eles reunidos em quilombos e mocambos e deram muito trabalho às autoridades
régias e aos proprietários de terra da Bahia durante todo o século XVII. A sobrevivência e utilização
dos recursos naturais de uma parte do Recôncavo ainda não ocupada por portugueses tornou-se
refúgio para escravos fugitivos, eles se adaptaram ao clima, à geografia e à vegetação do recôncavo,
muito semelhante ao das florestas tropicais do Golfo da Guiné, da qual veio grande parte destes
homens e mulheres. 148
Também indígenas resistentes e aguerridos compunham outra parte do contingente de
pessoas que se encontravam à margem do projeto de conquista e colonização e que ameaçavam a
produção de cana-de-açúcar no recôncavo da Bahia. Paiaiás e kiriris são largamente mencionados
pelos fazendeiros por queimarem engenhos e plantações inteiras, roubar criações, matar o gado,
deglutir os viajantes, dentre outros inconvenientes enfrentados pelas autoridades da Câmara de
Salvador.149
Para concluir este breve desenho da população indesejada que habitava as terras do
recôncavo baiano no século XVII, temos que mencionar outras pessoas que estavam longe dos
centros urbanos e davam trabalho às autoridades de Salvador.
De acordo com os documentos, delinquentes fugidos do litoral continuavam seus delitos no
interior, armavam emboscadas e roubavam mantimentos, armas e outros gêneros que eram
transportados por terra, traziam insegurança aos viajantes e mercadores que passavam pelas
margens do rio Paraguaçu.
148
Em 1699, o coronel Antônio da Sylva Pimentel, destacado na freguesia de Santo Amaro de Pitanga pedia mercê pelos
serviços que prestou à Coroa, por ordem do poderoso senhor da casa da Torre, Francisco Dias de Ávila. Sua tarefa, bem
sucedida, foi percorrer 140 léguas durante mais de um ano e meio, acompanhado por [...] tres mulatos e quatro negros
vasculhando os sertões da Bahia a procura de [...] gegês rebelados e outros índios que nestas paragens fizeram um
“Arrayal”. Destaca-se a peleja que teve no sítio do “Pajahu”, assinalando a morte de muitos seres humanos [...] por se
não quererem reduzir a paz, de bônus o coronel trouxe com ele 424 pessoas, dentre homens e mulheres. Ver: AHU, LF,
BA, Cx. 33, Doc. 4224, 22/07/1699
149
Os oficiais da câmara da Bahia também apresentavam graves queixas à realeza sobre os ataques do gentio nas
povoações de “Maragogipe, Cachoeira, Jaguaripe, Boipeba, Camamu e Cairú”, os oficias pediam exaustivamente ajuda
à Corte para cobrir as despesas de envio de destacamentos que garantissem a segurança nestes locais. A urgência do
socorro a estas localidades se fazia tão notória, que o procurador do Estado do Brasil pedia, em 1669, que o Rei desse
ordens expressas ao Governador Geral para continuar a guerra ao gentio bravo que ainda disputavam os domínios do
sertão baiano com os colonizadores. Ver: AHU, LF, Cx. 20, Doc. 2332-2333. 16/11/1669.
54
A Câmara da Bahia passou todo o século XVII a pedir providências para a Coroa no sentido
de enviar socorro e defesa das propriedades do recôncavo ameaçadas por índios, quilombolas e
assaltantes, acoutados nas desertas estradas que davam acesso às fazendas e povoados. Vários são
os registros de roubo de caravanas, assédio dos transeuntes e extravio de documentos, as queixas
eram apresentadas pelos sesmeiros da Bahia aflitos com o escoamento de sua produção e segurança
dos seus patrimônios seriamente comprometidos pela ação de assaltantes, desimpedidos pela
ausência de lei. 150
Garantir o fluxo seguro de mercadorias e acesso da administração colonial nas partes do
recôncavo era uma tarefa que despontava aos olhos dos homens de grosso cabedal na Bahia do
século XVII, seja por ser conveniente à Coroa uma maior fiscalização dos negócios deste local, seja
por causa das inúmeras queixas que as autoridades ultramarinas recebiam de fazendeiros locais,
denunciando roubos, mortes e prejuízo de seus investimentos, provocados pela ausência de
justiça.151
Lourenço de Brito Correa manifestou interesse nas terras situadas [...] junto a barra do Rio
Perugasu,152 ao norte da cidade de Salvador, alegava que, nesta região, a presença da Coroa
Portuguesa era invisível devido a ausência de povoações adequadas. Para Lourenço de Brito, as
terras que avançavam 50 léguas do norte de Salvador até o Recôncavo, eram conhecidas por serem
desabitadas e perigosas, segundo ele: [...] succede de ordinário muytas mortes, roubos, e insultos,
por ser tudo hermo e não haver povoação algua em toda aquella distancia.153
Vimos que a falta de povoação adequada não significava um recôncavo inóspito, ao
contrário, o espaço ainda intocado pelo processo de conquista e colonização serviu de abrigo para
muitos que não se adaptavam às ordens impostas pela administração da Colônia. O que o capitão
Lourenço parece ressaltar é que a ausência de casas, igrejas e prédios públicos legitimados pela
Coroa e pelas autoridades da Bahia ocasionava prejuízos para os moradores daqueles lugares, pois
150
Num documento de 1651, Antônio de Couros Carneiro dá notícias da situação de “injustiças, roubos e insolências”
que havia na Bahia do seu tempo. Ver: AHU, LF, Cx.12, Doc. 1395: [...] Consulta do Conselho Ultramarino sôbre o que
escreve da Bahia Antônio de Couros Carneiro acêrca das injustiças, roubos e insolências que ali houve, ‘chegando o
excesso a tanto que não ficou donzela nem casada que ou por fôrça ou por ameaças não fossem contrangidas ou
violentadas suas honras,’ chegando o apêrto a tanto que se dizia naquela praça, publicamente, que melhor seria
experimentar o jugo dos holandeses que não o que até agora sofrem, 08/03/1651. Esta nostalgia do tempo flamengo
será vista novamente nos tempos de independência do Brasil. Ver: op.cit. Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio – o
imaginário da restauração pernambucana. 1997, pg. 382-383.
151
Antônio de Couros Carneiro era um importante proprietário de terras e escravos na região do recôncavo da Bahia. Em
1665 este fidalgo demonstrava revolta com o descaso que os governantes do Brasil tratavam a situação de perigo e dano
da sua propriedade, atacada sistematicamente pelo gentio bravo, na região de Camarugibe. Ver: AHU, LF, Cx18, Doc.
2112-2113, 15/07/1665. Para mais detalhes sobre a ocupação das terras do recôncavo da Bahia, que margeiam o Rio
Paraguaçu, ver a dissertação de BARROSO, Juliana Brainer. Colonização e resistência no Paraguaçu – Bahia. 15301678. Dissertação (Mestrado em História), UFBA, Salvador, 2008.
152
AHU, LF, Cx.17, Doc. 1921: [...] Consulta do Conselho Ultramarino sobre Lourenço de Brito Correa, que desse
licença para fazer uma vila à suas custas, nas terras do recôncavo, para a parte de Sergipe do Conde e Peruaçu,
comprando com seu dinheiro, para que possa gosa o senhorio do cível e crime como os outros donatários, 21/02/1663
153
idem
55
estavam completamente afastados da justiça e da segurança e vulneráveis a todo tipo de ameaça.
Durante boa parte do século XVII, percebemos que o recôncavo da Bahia tornou-se
valhacouto apropriado para os que estavam em conflito com a lei, a mão da justiça não alcançava os
criminosos muito bem escondidos nestas paragens.
Para justificar seu interesse por terras, Lourenço afirmava que os ministros da justiça não
podiam chegar às bandas do Rio Perugasu e assim [...] não podem accodir a remediar estes males e
delictos.154 A investigação criminal e cível [...] para as partes de Seregipe do Conde, Cachoeira,
Perugasu e outras freguesias155 estava comprometida no século XVII, além da distancia que estes
locais tinham em relação a Salvador, o caminho era cheio de perigos e armadilhas, fossem elas
naturais ou construídas por salteadores, espalhados pelas rotas que davam acesso ao sertão da
Bahia.
Ao constatar a situação, o fidalgo Lourenço de Brito Correa pede à D. Afonso VI, Rei de
Portugal, mais uma mercê régia dentre as tantas que já havia recebido das mãos dos reis
Brigantinos. Queria ele financiar a fundação de [...] hua Villa (...) nas terras do Recôncavo da
Bahia,156 especifica que esta mercê poderia ser dada em [...] capitania, para a parte de Seregipe do
Conde, Perugasu ou onde melhor lhe parecer.157
O pedido destas terras oportuniza um estudo mais profundo acerca das possibilidades
jurídicas que dispunha o sistema administrativo português, tais possibilidades permitiam a aquisição
definitiva das terras da Bahia, especialmente por alguns grupos familiares. O uso proveitoso do
pedaço de chão, dado como favor régio, foi vetor de consolidação e ampliação do patrimônio
fundiário de muitas ilustres famílias baianas, ao longo de todo o século XVII.
Neste quadro normativo, a concessão de terras era também compreendida como uma mercê
régia que se materializava em centenas de folhas manuscritas que legitimava a graça adquirida em
forma de chão, quais sejam: cartas de sesmaria, forais ou cartas de doação. Estes eram os principais
documentos legitimadores da propriedade fundiária no período colonial, só havendo mudanças
radicais neste modelo no ano de 1850, por conta da Lei de Terras n.610, de 18 de setembro.
Todas as cabeças coroadas após a Restauração Brigantina perpetuaram a tradição de
conceder ou negar mercês régias em forma de terra a pessoas da Bahia e esta prática perdurou
durante todo o século XVII.158
Seguindo esta tradição, Lourenço suplicou a mercê de uma capitania em local distante da
154
idem
idem
156
idem
157
idem
158
Nos documentos avulsos da Capitania da Bahia e no fundo arquivístico Luiza da Fonseca tramitaram, entre a
Capitania da Bahia e o Reino, durante o século XVII, 128 autos que envolviam concessão e negação de mercês régias,
somem-se a este quantitativo 10 documentos que não informam a data correta da epístola, sendo que a década de 60
marca o período de maior demanda acerca desse assunto, contabilizando 35 ocorrências.
155
56
cidade de Salvador, mas à beira de rios navegáveis e com condição profícua para agricultura e
aglomeração de pessoas em uma Vila que seria construída às suas custas em troca de alguns
privilégios.
Capitania, nesta época, era uma propriedade hierarquicamente maior que as outras
concessões de terras disponibilizadas pela Coroa, o sistema de Capitanias hereditárias, apesar de ter
sido substituído pela centralização administrativa dos governos gerais e vice-reinados, continuou a
fazer parte do universo jurídico que ordenava a distribuição e uso do solo da Colônia do Brasil.
O território da Bahia é resultado das Capitanias da Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Itaparica e
Tamarandiva e Paraguaçu (Peruaçu, Perugasu).159 Os capitães donatários tinham suas orientações
criteriosamente elencadas nas Cartas de Foral, nestes documentos, percebemos mais detalhes sobre
o uso da propriedade e do pagamento dos tributos tradicionalmente cobrados especialmente para
com a extração de pau Brasil ou lavras de ouro e pedras preciosas que porventura houvessem nas
terras concedidas.
As cartas de doação são mais generosas em termos de informação, registram e ordenam todo
o sistema de capitanias hereditárias: identificava o donatário, ascendência e descendência do
agraciado, títulos recebidos e serviços prestados à Coroa, bem como outros méritos que obteve ao
longo da carreira, fazendo-o digno diante do Soberano que concedia a Capitania.
O documento também apresentava os limites territoriais da outorga, sendo que no Brasil,
composto por 635 léguas de litoral, apenas 10 léguas poderiam ser dadas aos Capitães donatários,
ficando o restante de seus domínios disponível a pessoas interessadas em sesmarias, para posterior
propriedade.
A carta de doação também atribuía o título de Capitão e Governador ao proprietário,
conferindo-lhe poderes de construir vilas e povoações, nomear juízes, oficiais e ouvidores,
arrecadar os tributos ordinários, além de ser administrador da justiça, tendo, no caso de hereges,
sodomitas, falsários e traidores, a prerrogativa de condenar sem apelação nem agravo.
Se as capitanias eram doadas aos capitães donatários com a permissão de ter jurisdição civil
e criminal, a vasta extensão do território possibilitava aos mesmos conceder sesmarias, disponível a
pessoas interessadas em uma parte de terra da Capitania, com vista no seu desenvolvimento. A
Carta de Sesmaria era o documento que ordenava juridicamente o uso e a distribuição do solo de
uma capitania e tornou-se parâmetro básico para o entendimento da história agrária do Brasil
durante o período colonial.
As cláusulas deste documento submetiam os sesmeiros a alguns limites e orientações para o
159
O trabalho do professor Erivaldo Fagundes Neves revela mais detalhes dos critérios de distribuição de terras e
problematiza a formação da estrutura fundiária da Bahia colonial. NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeiros e
proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro-mercantil no alto sertão da Bahia (1750-185). Tese (Doutorado
em História). UFPE, Pernambuco, 2003, p.105.
57
uso da terra, contudo, a ausência da fiscalização tornava a Carta de Sesmaria mais um documento
comprobatório de propriedade, que um manual de instruções atenciosamente seguido pelos
contemplados.
O principal objetivo para se conceder uma sesma de terra era o lucro. O candidato à
sesmeiro deveria ter em mente que esta concessão estava condicionada ao cumprimento de um
conjunto de atividades e em um determinado espaço de tempo. Derrubar árvores e aproveitá-las
para a construção da casa sede, curral e outros apriscos, além de vender as inúmeras espécies de
madeira de lei existentes na Mata Atlântica, úteis no Brasil e no Reino, foram as primeiras
atividades de uma sesmaria do recôncavo no século XVII e primeira fonte de renda do possível
proprietário.
A depender do local e da qualidade do solo, o sesmeiro começava a plantação ou punha
gado pastando no local, aliado a isso, construía benfeitorias como casa de farinha, moendas d´água,
dentre outros empreendimentos que rendessem dividendos à produção da terra sesmada.
Construções de defesa da propriedade contra invasores hostis também estava na ordem do dia do
sesmeiro instalado no recôncavo da Bahia Seiscentista.
O resultado da labuta diária era a maior garantia deste trabalhador da terra, tinha ele a
esperança na posse definitiva da sesmaria e sua consequente ampliação, mas tudo isso dependia da
graça régia que confirmava ou negava a posse daquele pedaço de terra.
Um terreno dado em sesmaria que não apresentasse lucro ou estivesse abandonado pelo
trabalhador, era sequestrado pela Coroa e transformado em terra devoluta, as terras e suas
benfeitorias ficavam disponíveis aos muitos interessados em investir nestas léguas desocupadas ou
abandonadas.
E não foram poucas as sesmarias que acabaram em decadência, os motivos de alguns não
obterem sucesso no desenvolvimento da sesmaria podem ser explicados, seja pela péssima
qualidade do solo de alguns locais, ausência de rios ou nascentes e difíceis condições
pluviométricas ou por causa do assédio constante de índios hostis e quilombolas, que atacavam
sistematicamente as propriedades, queimando os empreendimentos, destruindo a lavoura, roubando
e matando a criação.
A sesmaria doada tinha caráter provisório e só era outorgada definitivamente ao trabalhador
que cumprisse suas obrigações e desenvolvesse as potencialidades da terra que estava sob sua
tutela, no prazo definido e com o pagamento dos tributos em dia. Com a posse garantida, o sesmeiro
virava dono e tinha o direito de declarar a terra em testamento, isto garantia a herança dos seus
domínios aos descendentes, bem como abria a possibilidade de ampliação dos limites
primordialmente acordados na concessão da sesmaria.
No universo jurídico da época, o uso profícuo da sesmaria e a consequente apropriação,
58
confirmava a posse do terreno sesmado em uma propriedade alodial ou enfiteuse. A terra alodial era
uma propriedade imóvel, livre de encargos, vínculos e ônus que davam status de alodialidade a
terra, pois o proprietário era isento de foros, pensões, hipotecas e outras despesas.160
Já emphyteosis, como registrou Raphael Bluteau, significava a concessão definitiva da terra
produtiva, ao enfiteuta. A enfiteuse era então caracterizada pela impossibilidade do proprietário se
desfazer da terra, pois estava obrigado a cultivar e melhorar estes domínios, sendo possível passá-lo
à suas gerações.161
Vemos então, que tanto o alódio quanto a enfiteuse dava pleno gozo aos proprietários
definitivos destes bens imóveis, na Bahia estes instrumentos jurídicos legitimadores foram
acionados por Antonio Guedes de Brito, Antonio de Brito Correa, Lourenço de Brito Correa,
Lourenço de Brito Figueiredo e tantos outros homens que, ao longo do século XVII, consolidaram o
imponente patrimônio dos descendentes do Caramuru.
8- Uma capitania em forma de mercê: Lourenço de Brito Correa e seu interesse nas terras do
Recôncavo.
Depois de termos analisado o contexto jurídico e simbólico que envolvia a concessão de
terras na Bahia Colonial, temos mais instrumentos para compreender o motivo que levou Lourenço
de Brito Correa a pedir um amplo espaço de terra em forma de Capitania, para que nela custeasse a
construção de uma Vila.
Lourenço demonstrava interesse pelas terras do Recôncavo, todavia, desde em 1660 a graça
régia em forma de grandes propriedades era outorgada pelas mãos de D. Luísa de Gusmão ao
fidalgo Lourenço, no dia 23 de fevereiro de 1660 a Rainha concedeu carta de Sesmaria para
algumas pessoas de destaque na cidade de Salvador, eram eles: Lourenço de Brito Correa e sua irmã
Jona Correa de Brito, o Capitão Antonio Lopes Soeiro e o Padre Matheus de Mendonça, cada um
recebeu [...] doze legoas em quadra sobre as lagoas do Sul e do Norte acima, e partes de Garanhém
e do lado dos campos do Inhamú, com todos os seus logradouros, entradas e sahidas, serventias,
mattos, lenhas, agoas e pastos.
Em novembro de 1660 Lourenço recebeu outra Carta de Foral contendo [...] duas legoas de
terra de comprido e duas de largo, compradas de Christovão da Rocha e mais duas legoas em
quadra que de novo se lhe dá.162
160
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana.; BRIGNOLI, Héctor Pérez. História Económica de América Latina.
Sistemas agrários y historia colonial. Tomo 1. Barcelos: Crítica, 1984, p. 111.
161
Op. cit. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino, Volume III, 1728, p. 63
162
Esta mercê foi dada no dia 07 de novembro de 1660, [...] no rio de São Francisco, onde se chama Jasseoba,
começando em uns montes à beira do rio rumo direito rio acima as duas legoas de terra que comprou a Christovão da
Rocha e outro tanto de largo até o monte Obutura Caconha, das quaes esta de posse pacifica desde o anno de 1634;
bem como mais duas legoas d´onde acabam as primeiras rumo direito pelo rio acima, e outras duas legoas perto do
59
Na linguagem jurídica da época, uma vila era entendida por um conjunto de edifícios
públicos e moradias que mantinham vínculos com os seus patrocinadores e com as autoridades de
Salvador. Uma Igreja conveniente ao número de fiéis, uma casa de Câmara e Cadeia para tratar de
assuntos civis e criminais e a ereção de um Pelourinho eram construções necessárias a qualquer
povoação adequada, seja no reino, seja na colônia.
Mas, os gastos que tinha o donatário163 não era apenas na construção de imóveis públicos,
ele deveria também, em um prazo estabelecido, assentar certo número de vizinhos, que viveriam nas
casas construídas também às suas expensas, a construção obrigatória de moradias possibilitava a
erradicação de famílias naquele espaço, bem como gerava sociabilidades das mais diversas
modalidades, mediadas pela Igreja, pelo Capitão e pelos seus oficiais destacados.
Lourenço de Brito justifica assim o seu pedido:
[...] por causa da grande distancia, que há a Cidade da Bahia, aos lugares do
Recôncavo della, que são mais de 50 légoas [...] por ser tudo hermo e ser povoação
algua [...] se não podem averiguar muitos dos ditos crimes e fica sem castigo [...]
passam os julgadores, que vão devassar alguns dos casos referidos muyto
detrimento, em razão de não haver quem lhes venda, e acuda para o necessário
para o seu sustento e da gente que levão consigo, nem de pousadas, e o mais de que
necessitão; o que se pode evitar, havendo villas e povoações por aquelas partes, em
que haja vendeiros, e justiças ordinárias e se aposentem os caminhantes e os
ministros de VM.164
O primeiro parecerista desta petição foi o Procurador da Fazenda Real, ele seguiu a
tendência da época em dar provimento a pedidos de terras, formulados por fidalgos abastados da
colônia, dizia que tal petição seria [...] um grande serviço a VMgde. pelas utilidades, que a ele
resulltão, mas há de ser com termo e limite de seis légoas de distancia ao redor. Na opinião do
procurador, era
[...] de utilidade de sua Real Fazenda, que nas terras do Brazil haja muytas por que
com estas será mayor a cultura e mayores os interesses dos fructos, e por estas
rasões costuma VMgde. dar licenças as pessoas de merecimentos e cabedais que as
possam fazer; e VMgde. deve defferir ao ditto Lourenço de Brito, na forma que se
pede, sem prejuízo de terceiro.165
Vemos então que, apesar de demonstrar interesse em empreendimentos como o que
sertão para ficar em quadra, com todos os seus logradouros, entradas e sahidas, serventias, mattos, lenhas, agoas,
pastos. As do foral. Op. Cit. FREIRE, Felisbello. História territorial do Brasil, p. 36. Ver também a confirmação
destas posses em Anais do APEB, Volume 17, Salvador: 1929: [...] Alvará pelo qual se confere e dá de novo a Lourenço
de Brito Correa e o Capitão e Sargento Maior Lourenço de Brito Figueiredo, seu filho, as terras declaradas. Ver
também uma Portaria escrita pelo Conde de Óbidos que lhe ordenava apresentar os documentos para uma sesmaria que
pretendia de Sua Magestade, em 26 de junho de 1664: [...] no coração dos mattos marinhos entre os rios Syrigiassu e
Tarery de Seregipe do Conde que terá a largura em partes de uma legoa e de rumo direito pelos rios acima, duas.
DHBRJ, volumes 6, p. 162 e 167.
163
Esta expressão é observada numa petição, também de capitania, feita pelo sobrinho de Lourenço e um dos patriarca
das da Casa da Ponte, Antonio Guedes de Brito. Ver: AHU, LF, Cx. 24, Doc. 2875. [...]Consulta do Conselho
Ultramarino sôbre Antônio Guedes de Brito, natural e morador na Bahia, que pede licença para levantar vila e ser
senhorio, com o título de alcaide-mor para si e seus descendentes,13/01/1679.
164
op. cit. AHU, LF, Cx.17, Doc. 1921, p. 2.
165
idem
60
propunha Lourenço de Brito, o procurador da fazenda ressaltou os limites que esta concessão
deveria ter, demarcando seu termo e limite em seis léguas, aproximadamente 19.800 hectares,
conforme o cálculo de Célia Freire de A. Fonseca.166
Estipular os limites das terras concedidas evitava problemas com os proprietários que
adquiriram mercês anteriores nestes locais e iriam dividi-lo com Lourenço, contudo, a pouca
precisão dos referenciais de domínio territorial gerava crises e contendas por limites e domínios de
jurisdição entre os donos de terra do Recôncavo.
Já o procurador da Coroa foi mais cauteloso, apesar de não achar inconveniente a concessão
da mercê que pedia Lourenço de Brito. No que tocava a pretensão de querer construir uma vila, o
funcionário real disse [...] ser de grande utilidade a esta coroa povoarense as terras do Brazil, e
augmento da fazenda real, porém,
[...] no toccante a jurisdição, que se pede se deve declarar que a terá somente nas terras,
que forem suas próprias, não se excedendo aos que já tiverem donos: porque pretendendo
ter também nesta jurisdição, devião ser ouvidos primeiro os Officiaes da camara da Bahia,
e os mesmos donnos das terras. 167
O precavido procurador da Coroa evidenciou em seu parecer a complexidade que o sistema
de mercês apresentava neste período. Seu ponto de vista pode nos dar mais detalhes sobre os
parâmetros de jurisdição utilizados na época, o Procurador salientava que a autoridade como capitão
e a tutela do criminal e do civil, requeridos por Lourenço de Brito, não poderia superar a potestade
de outras pessoas, que antes dele ocupava a vizinhança dos domínios pretendidos nas margens do
Paraguaçu. Porém, o funcionário da Coroa não descartou esta possibilidade, orientando que se
consultasse previamente a Câmara de Salvador e aqueles que antes de Lourenço erradicaram-se ali,
para um possível acordo.
Ainda não foi possível encontrar documento que comprove a aquisição destas terras por
Lourenço de Brito Correa, sua influência política na Câmara de Salvador e entre os tradicionais
proprietários da maioria das terras do Recôncavo são indícios de uma possível conquista das
petições e jurisdições referidas.
Outro indicativo da liberação desta mercê foi o parecer do Conselho Ultramarino, que
referendava todos os argumentos apresentados pelos procuradores:
[...] Ao conselho parece, que respeitando VMgde. os merecimentos e serviços de
Lourenço de Brito Correa e as grandes utilidades, que resultam a fazenda de VMgde
em se darem as terras do Brazil em Capitanias, demais de ser bem publico, para se
evitarem os danos, que co declaração que a Villa que levantar de sua custa, será o
termo della de seis legoas de distancia ao redor, na forma que declara o Procurador
da Coroa, e fazenda de VMgde apontão. Lisboa, a 21 de fevereiro de 663. 168
166
FONSECA, Célia Freire de A.“Sesmarias no Brasil.” In: SERRÃO, Joel (dir.), Dicionário de História de Portugal.
Porto: Figueirinhas, 1984, v.5, p.545-546.
167
op. Cit. AHU, LF, Cx.17, Doc. 1921. p. 2.
168
idem
61
Os documentos apresentados até o momento levam a crer que Brito obteve sucesso em sua
petição, porém, um detalhe não pode ser esquecido na análise deste manuscrito a que temos nos
debruçado. Neste parecer, existe uma discreta ressalva, escrita em forma de cláusula, à parte
esquerda do documento, nela se registrou o maior impedimento para que a graça do Rei D. Afonso
VI se fizesse mais uma vez presente na vida de Lourenço de Brito:
[...] Remetasse a cópia desta Consulta ao Conde de Óbidos, que vai por Vice
Rei ao Estado do Brasil; para que informando-lhe da pertenção de Lourenço
de Brito; me envieis se convem parecer do que achar ou inconvenientes que
se lhe offerecerem quando os haja.169
Vemos que o Conde de Óbidos já estava de malas prontas para chegar à Bahia e seu
desembarque aconteceu neste mesmo ano, sabemos que Óbidos e Lourenço de Brito Correa já
haviam se encontrado na Bahia, fosse nos tempos do governo de Diogo Luis de Oliveira, fosse
quando Óbidos substituiu o Conde da Torre. Contudo, a visão negativa que o Conde teve de
Lourenço só se fez mais notória a partir de 1664, ano em que o embate entre eles deu os primeiros
sinais e estes conflitos serão analisados com mais cuidado no terceiro capítulo.
Para encerrar este estudo da trajetória política de Lourenço de Brito Correa, uma observação
formulada por Afonso Costa parece sintetizar como este fidalgo da Bahia fora encarado durante
algum tempo pela historiografia, para o autor, Lourenço era um surrão de retribuições oficiais pois
acumulou muitas tenças, hábitos e empregos. Afonso Costa continua a discorrer sobre o bisneto do
Caramuru:
[...] como um surrão de ambições não tem costuras ao fundo que o guarneçam com
segurança, nunca se enchendo delas, o provedor mor, ainda mancomunado com o dito
Mestre de Campo [Luiz Barbalho Bezerra] e já agora também com o irritadiço Bispo D.
Pedro da Silva, começou de engendrar e praticar fosquinhas aos Mascarenhas, seja a
Fernando Mascarenhas (Conde da Torre), a Vasco Mascarenhas (Conde de Óbidos) e a
Jorge Mascarenhas (Marquês de Montalvão), sucessivamente no governo geral do Estado,
e assim tomando em oposição.170
Percebe-se a partir deste trecho que a historiografia ressaltou as contendas de Lourenço com
os homens que do Reino vinham administrar o Brasil, mas também as muitas benesses régias que
ele adquiriu das Coroas Ibéricas, quando Afonso Costa qualifica o Provedor Mor da Fazenda Real
do Brasil como um surrão de retribuições oficiais ressaltava a coleção de privilégios que Lourenço
de Brito Correa obteve ao longo da sua carreira, especialmente durante a gestão de D. Luísa de
Gusmão na Regência do Reino.
169
170
idem
Op. Cit. COSTA, Afonso. Baianos de Antanho (Biografias), p 304.
62
Capítulo II
1- Seguindo os passos de D. Vasco Mascarenhas
Mascarenhas era o nome dado no século XII a uma localidade de Portugal, situada na região
da província da Beira. O primeiro monarca a se intitular Rei de Portugal e Algarves, D. Sancho I
(1154-1211),171 concedeu a Estevão Rodrigues o título de Senhor daquele lugar e a varonia da Casa
dos Mascarenhas. Como naquele tempo era comum aos primogênitos das famílias adotarem o local
de nascimento em seus apelidos, o primeiro a introduzir Mascarenhas ao sobrenome foi Lourenço
Esteves Mascarenhas, filho e herdeiro das mesmas terras e títulos.172
Esta família remonta, portanto, o tempo em que os homens do Reino de Portugal, agraciados
com terras e honras por via de mercê régia, davam em troca de tais favores a sua própria vida nos
momentos de guerra e se uniam ao exército cristão para expulsar os mouros, que permaneceram na
Península Ibérica boa parte do século XI e XII. O patriarca dos Mascarenhas foi um dos cavaleiros
que expulsou os muçulmanos erradicados na região das vilas de Elvas e Torres Novas, o que lhe
rendeu benefícios régios em 1206.173
Para além da origem medieval, percebemos que a linhagem dos Mascarenhas se dispersou
entre as outras famílias que compunham a corte palaciana Ibérica; em Portugal esta Casa foi uma
tradicional auxiliar das Coroas que regeram aquela Península e em todas estas ocasiões os
descendentes dos Mascarenhas ocuparam posições de destaque. Não queremos fazer um inventário
mais pormenorizado sobre o desenvolvimento desta família dentro do complexo sistema
nobiliárquico português, vale salientar que os Marqueses de Gouvêa (que tem a primogenitura dos
Mascarenhas), os Marqueses da Fronteira, os Condes de Óbidos174, Condes de Santa Cruz, Condes
da Torre, de Coculim e de Sandomil, são todos pertencentes à mesma árvore genealógica dos
171
GIORDANI, Mario Curtis. História do mundo feudal: acontecimentos políticos. Petrópolis: Vozes. 1984. p. 445.
SOUSA, Antonio Caetano de. Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal, que contém a
origem, e antiguidade de suas famílias: os Estados, e os Nomes dos que actualmente vivem, suas Arvores de
Costado, as alianças das Casas, e os Escudos de Armas, que lhes competem, até o ano de 1754. Lisboa: Régia
Officina Sylviana e da Academia Real, segunda impressão. 1755. p. 125-135.
173
Idem. p. 126.
174
[...] Dez legoas ao Sudeste da Cidade de Leyria, cinco ao Sul da Villa de Torres Vedras, dois ao mar Oceano & huma
das Caldas para o Sul, em lugar alto tem seu assento a muyto nobre; & leal Villa de Óbidos, cujo nome se derivou de
três palavras italianas; ob id os, por causa da boca ou foz de um braço do mar, que antigamente chegava a esta Villa &
ainda hoje junto dela se achão algumas pedras furadas, aonde se prendião os barcos. He banhado de três rios, sobre
que atravessão em pontes; o primeiro vem das Caldas & lhe chamão rio do Cabo; o segundo o rio do Meyo, o terceiro
o Real os quaes se metem na lagoa, fertilizando suas varzeas de pão, vinho, & de gostosas frutas de toda a casta. Foy
fundada pelo Túrdulos & Celtas 808 anos antes da vinda de Cristo. Entrou em domínio dos árabes & a conquistou
pelos anos de 1148. Ver: COSTA, Padre Antonio Carvalho da. Corografia Portuguesa, e descripçam topográfica do
famoso reyno de Portugal,com as noticias das fundações das Cidades, Villa e lugares que conthem: Varoens
ilustres, Genealogia das famílias nobres, fundações de Conventos, Catalogo dos Bispos, antiguidades, maravilhas
da natureza, edifícios & outras curiosas observações. Offerecido a Sereníssima Senhora D. Marianna de Áustria,
Rainha de Portugal .Tomo Terceiro. Segunda edição, Braga: Topografia Domingos Gonçalves Gouvêa. 1712, p. 61.
172
63
Mascarenhas.175
Coletar os vestígios deixados nas fontes da época que registram o protagonismo de D. Vasco
Mascarenhas foi uma tarefa trabalhosa, para cumprir este objetivo segui as orientações deixadas por
Diogo Ramada Curto, o autor auxilia o trabalho do pesquisador interessado nas trajetórias políticas
do século XVII:
[...] em torno de cada nome e de cada pessoa será sempre possível desenhar, por círculos
concêntricos, vários sentimentos de pertença: à família, linhagem, casa ou clientela
(apesar de esta última nem sempre se afigurar muito nítida); ou a uma carreira –
sobretudo ao serviço do rei, mas que muitas vezes se confunde com uma sucessão familiar
em determinado cargo –, sendo que é muitas vezes ténue a separação entre os cargos
ocupados e os títulos e comendas recebidas.176
Não temos dados que comprovam a data de nascimento de Vasco Mascarenhas177,
provavelmente tenha nascido no início do século XVII. Se analisarmos com mais cuidado a
vinculação deste nobre com os membros da casa real dos Bragança, teremos mais instrumentos para
entender os laços que manteve com o Rei D. João IV; as contribuições da Heráldica apresentam
uma breve descrição do brasão do Conde de Óbidos,178 vejamos:
[...] As armas desta casa são tres faixas de ouro em campo vermelho, a que ajuntarão as
reaes, por descenderem de D. Diniz, filho do Duque de Bragança, e assim esquartelarão o
escudo, no primeiro os reaes e no outro os dos Mascarenhas acima. 179
Outra graça régia advinda dos Bragança foi outorgada pelo Infante D. Duarte, irmão mais
novo do Rei D. João IV, Óbidos assumiu uma função de destaque em 1648 na Ordem de Cristo,
conforme transcreveu D. Antonio Caetano de Souza: [...] ouve por bem de nomear por tenente do
comendador Mor de Cristo a D. Vasco Mascarenhas, Conde de Óbidos, do meu Conselho de
Guerra e meu muito amado sobrinho.180
175
Op.cit.; SOUSA, Antonio Caetano de. Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal, 1755, p. 127
CURTO, Diogo Ramada. “A Restauração de 1640: nomes e pessoas.” In: Península. Revista de Estudos Ibéricos.
n. 0, Porto: Instituto de Estudos Ibéricos/Faculdade de Letras do Porto, 2003. p. 336.
177
Vasco Mascarenhas era filho de D. Fernando Martins Mascarenhas, Comendador de Mertola e Alcaide Mor de Monte
Mor o novo. A vinculação de Óbidos com a Casa real Bragantina advêm da sua mãe, D. Maria Madalena de Lancastro,
filha segunda de D. Diniz de Lancastro, portanto avô materno de Óbidos. D. Diniz era Comendador Mor do Mestrado e
Ordem de Cristo e Alcaide mor de Óbidos, casou-se com D. Isabel Henriques, ambos fundadores e padroeiros do
Convento de Óbidos, desta forma, Vasco Mascarenhas era [...] neto de D. Diniz de Lancastro, Conde de Lemos em
Castella e bisneto de D. Fernando, segundo do nome, Duque de Bragança, e de sua mulher D. Isabel de Lancastro. ver:
MARIA, Frei Joseph de Jesus. Espelho dos Penitentes e Chronica de Santa Maria de Arabida em que se
manifestam a vida de muitos santos varoens de abalizadas virtudes e outros que pela verdade da fé sacrificarão
as vidas destribuidas por todos os dias do anno. Offerecido a sempre augusta magestade de El Rey D. João V
Nosso Senhor. Lisboa: Officina Joseph Antonio da Sylva, 1737, p.358.
178
[...] Óbidos, Villa na provincia da Estremadura; desta Villa foi feito Conde D. Vasco Mascarenhas, de que tirou a
carta a 22 de Dezembro de 1636, que está na Chancellaria do dito anno, liv. 27, pag.210; depois quando passou por
Vice-Rey do Estado do Brasil, El Rey D. Affonso VI lhe fez mercê, entre outras, de Conde de Óbidos de juro para todos
os seus sucessores na forma da Ley mental, de que se lhe passou carta a 14 de Abril do anno de 1663, que está na sua
Chancellaria, liv. 27, pag.211. ver: op. cit. SOUSA, Antonio Caetano de. Memórias históricas e genealógicas dos
grandes de Portugal. 1755. p. 427.
179
op. cit. SOUSA, Antonio Caetano de. Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal, 1755. p. 435.
180
SOUSA, Antonio Caetano de. História Genealógica da Casa Real Portuguesa desde sua origem até o presente,
com as famílias ilustres, que procedem dos Reys e dos Sereníssimos Duques de Bragança, justificada com
instrumentos e escritores de inviolável fé e offerecida a El Rey D. João V. Tomo IX. Lisboa: Régia Officina Sylviana
176
64
A vinculação de D. Vasco Mascarenhas com a Coroa Castelhana é constatada a partir do
título de primeiro Conde de Óbidos, concedido pelo Rei Felipe III, durante a União Ibérica. Tal
benesse deve ser entendida a partir da sua primeira união matrimonial, estabelecida com Jeronima
Maria de La Cueva e Benavides, filha de D. Luís de La Cueva e Benavides e de D. Elvira de
Mendonça, Dama da Rainha D. Isabel de Bourbon. Seu primeiro matrimônio ocorreu durante a
União Ibérica e foi pelas mãos dos Habsburgos que este membro do tronco dos Mascarenhas
recebeu o título de primeira nobreza com que ficou conhecido no Reino e no Ultramar.181
Não teve filhos com a sua primeira mulher, defunta ainda jovem, a viuvez do Conde de
Óbidos só foi substituída por um novo matrimônio contraído com sua sobrinha, Joana Francisca de
Vilhena e com ela teve seu herdeiro de títulos, D. Fernão Martins Mascarenhas. O patrimônio
familiar do primeiro Conde de Óbidos atravessou o tempo dos Filipes e continuou com os
Bragança, esta constatação pode ser comprovada a partir das honras e mercês recebidas,
especialmente após a Restauração.
As várias atividades políticas, militares e administrativas que Óbidos exerceu podem ser
percebidas ao longo do século XVII: pertenceu aos Condes de Óbidos a Alcaidaria-mor das vilas de
Óbidos e Selir Porto (1638), D. Vasco Mascarenhas foi Conselheiro de Guerra em1640, recebeu o
também o título de Governador e Capitão Geral do Algarve, Vice Rei da Índia (1652-1653), Vice
Rei do Brasil (1663-1667), Governador das Armas da Província do Alentejo, Conselheiro de Estado
de D. Afonso VI (1662), Comendador da preceptoria e comenda de N. S. da Lourinhã (1655);
Sellamede; Idanha, a Velha e São Salvador de Barbaes (1666). Também foi Comendador da Ordem
de Cristo (1659), em São Lourenço de Taveiro e da Ordem de Santiago em Hortalagoa (1665).182
2- Estágio probatório nas praças ultramarinas: o Brasil e seus desafios.
Façamos então um mapeamento da trajetória de D. Vasco Mascarenhas enfocando nos
registros documentais que comprovam a sua presença em terras americanas, a Carta patente de Vice
Rei que recebeu de D. Afonso VI, em 1663, atestava que ele servia às Coroas Ibéricas desde
e da Academia Real, 1742. P. 91.
181
Mafalda Soares da Cunha apontou que durante o período Filipino a casa da Áustria incentivava a união de casais
espanhóis com portugueses no intuito de formar uma nobreza comum, com relação ao casamento do Conde de Óbidos
na Espanha ela afirma: [...] El monarca fue liberal, respondiendo positivamente al pedido de la futura suegra para que
el fuese prorrogado em dos vidas más la alcaidaria-mayor y las encomiendas que tênia, y hasta la merced de 10.000
reales de renda em Portugal sobre bienes vacantes de la Corona. El Rey asintió, dotando de inmediato la encomienda
de São Mamede de Vila Marim (Algarve), contra la entrega de uma de menor valor que el hidalgo poseía. Y, com todo,
llegó además El titulo de conde de Óbidos. Ver: CUNHA, Mafalda Soares da. “Titulos Portugueses e matrimônios
mixtos en la Monarquia Católica.” In: CASALILLA, Bartolomé Yun (dir.). Las redes del Império : elites sociales em
la articulación de la Monarquia Hispánica, 1492-1714. Marcial Pons Historia, Universidad Pablo de Olavide, 2009,
p.226.
182
Op. cit. SOUSA, Antonio Caetano de. História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo IX, 1742. P. 100.
65
1619183, todavia, enfocaremos na sua passagem em tempos de invasão holandesa no Brasil.
Ressalte-se pois que até dezembro de 1636 ele não ostentava o título de Conde, todavia era um
soldado de família nobre experimentado nas armas. O Brasil fez parte do roteiro de experiências
que D. Vasco Mascarenhas teve em sua juventude fora do Reino, constatamos a sua presença na
Bahia em fins do governo de Diogo Luis de Oliveira (1626-1635). Num capítulo de carta régia, de
09 de maio de 1635, a Coroa informava às autoridades da Bahia que ele [...] se parte logo daqui
para se embarcar e servir seu cargo de Mestre de Campo se lhe passe logo ahi sua patente com os
ditos ordinários.184
Seu envio para o Brasil foi resultado de um pedido de ajuda feito por Diogo Luis de
Oliveira, Governador Geral do Brasil que sofria com constantes confrontos para expulsar os
holandeses e ausência de militares aptos ao combate.
Depois de expulsar os invasores de Salvador em 1625, a ameaça de uma nova ocupação
continuava iminente, as constantes incursões batavas enfraqueciam a produção de açúcar no
nordeste do Brasil e a Bahia era o local escolhido da ofensiva, eles queriam desmantelar os
Engenhos do Recôncavo e tomar o controle da Capital da Colônia.
Para superar as grandes limitações, especialmente a carência de militares hábeis e
experimentados, o Governador Geral do Brasil escrevia um requerimento à Coroa para que lhe
enviasse [...] pessoas práticas e de qualidades e experiência que o ajudem a servir.185 No escrito, o
Governador demonstrava especial interesse por um militar que naquela época liderava uma
Companhia de soldados da Coroa Espanhola em Flandres, ressaltava o Governador que em D.
Vasco Mascarenhas [...] concorria todas as partes e calidades referidas de que ele Diogo Luis é
testemunha de vista.186
A presença de um militar de destaque nas guerras contra os Países Baixos não podia deixar
de constar na lista de pessoas de calidade enviadas para auxiliar o dito Governador Geral do Brasil
183
A Carta patente de vice-rei do Brasil outorgada ao Conde de Óbidos em 08 de fevereiro de 1663, assim registrou: [...]
que tendo eu respeito dos serviços que o Conde de Óbidos meu muito amado sobrinho, do meu conselho de Estado tem
feito a esta [ilegivel] desde o ano seiscentos e desanove ate o prezente no Estado do Brasil. Ver BNRJ, Seção de
Manuscritos 1,2,5. Agradeço aos estudantes Ana Paula Magalhães, Caroline Garcia Mendes e João Henrique de Castro
– UFV, pela transcrição do documento.
184
AHU,LF, cx5, doc. 567, 09/05/1635. Pedro Calmon confirma a relação amistosa existente entre o Governador Geral
Diogo Luis de Oliveira e D. Vasco Mascarenhas e indica que este esteve no Brasil em 1626, salientando que [...] Por
Mestre de Campo da gente de guerra trouxera D. Vasco Mascarenhas, seu companheiro de lutas em Flandres, e a quem
deu posse em Olinda, em 11 de novembro de 1626. op. cit. CALMON, Pedro. História do Brasil, Vol 2, (sec XVIXVII). 1971. p. 529. […] Diogo Luis de Oliveira a que muito denota a Fama, e celebrão as Histórias foy escolhido, e
elleito por El Rey Felipe IV, e o Conde Duque seu Valido para Governador e Capitão General deste Estado de que
tomou posse em 27 de janeiro de 1627 por patente de 26 de Fevereiro de 1625 com 100:000 rz de soldo por mês [...] o
qual fez preito e juramento, e homenagem nas mãos de El Rey na Villa de Madrid [...] sendo prezentes por testemunhas
o Marques de Castelo Rodrigo, João Gomes de Sá e D. Vasco Mascarenhas e tomou juramento na Chancelaria de
Lisboa em 13 de Agosto de 1626. Este e outros indícios da aproximação de D. Vasco Mascarenhas com Diogo Luis de
Oliveira estão registrados em Anais BNRJ, Volume 22, 1900, p. 138:
185
AHU, LF, cx.34, doc. 4382, (SLND).
186
idem
66
a combater as ameaças estrangeiras que assolavam a América Portuguesa.
Vasco Mascarenhas foi indicado não apenas por ter relações de amizade com Diogo Luís de
Oliveira e outrora ter sido seu companheiro de armas, mas também porque o serviço militar que
prestou na Europa o fazia conhecedor do modo de combate dos holandeses, das artimanhas de
guerra daquele povo e o tipo de munição, armamento e táticas de defesa que utilizavam. Assim, o
Governador elogiava seu ex-companheiro de armas, informando que ele servia com muita
pontualidade e satisfação e por esses motivos justificava sua indicação.
Como um administrador do seu tempo, Diogo Luis de Oliveira também se ocupou em
sugerir os melhoramentos financeiros e a forma como o pagamento do soldo de D. Vasco
Mascarenhas entraria nas contas da Fazenda Real do Brasil: [...] se lhe faça mercê de ocupar no
ofício de Sargento Mor do Brasil da mesma maneira e com o mesmo ordenado
[...]acrescentandolhe em o título de Mestre de Campo por ser calidade diferente de todas os demais
que servirão [...]. Fazendo isto, o Governador apresentava a despesa que o envio deste militar ao
Brasil geraria, bem como ressaltava os melhoramentos que esta vinda para o Brasil traria à sua
carreira. 187
Mestre de Campo era o posto que D. Vasco Mascarenhas ocupava em Flandres, ele não
poderia passar para o Brasil exercendo uma função inferior a esta, caso isto ocorresse seria ele
“degradado”, ou seja, rebaixado em suas funções militares. Mas não foi esse o seu destino, o
Governador Geral sugeria que este Mascarenhas fosse provido na Bahia com a função de Capitão
Mor do Mar, cargo mais importante e com maiores rendimentos que o anterior, a tarefa que iria
cumprir estava definida nesta mesma carta, vejamos:
[...] visitar as capitanias e fortalezas mandando alistar a gente e vendo se tem armas e se
sabem manejar e ver onde é necessario fortificar e reparar algumas couzas cahidas e que
se há artilharia e se esta em seus postos e se tem os petrechos necessarios para se servir
dela e que nos almazens aja polvora e monições onde faltarem todas estas couzas se avise
188
ao Governador.
Vemos assim que a primeira temporada de D. Vasco Mascarenhas no Brasil foi marcada por
viagens de reconhecimento e inspeção técnica, tinha ele a missão de reunir as informações sobre o
efetivo militar, bem como inventariar o arsenal existente nas Capitanias, tal atribuição se fazia
urgente tendo em vista as constantes ameaças de inimigos, fossem eles invasores holandeses, índios
rebeldes ou escravos aquilombados. Diogo Luís de Oliveira reclamava das várias atribuições que
tinha enquanto Governador Geral e tantas demandas o impedia de tomar o devido cuidado com as
coisas da guerra, por isto ele conferiu esta missão especial a um especialista nas armas.
Correr as estradas do sertão que levava aos Engenhos e fazendas de gado, navegar nos rios
187
188
idem
idem
67
que margeavam fortalezas e as praias da costa do Brasil, se tornou uma boa oportunidade para D.
Vasco Mascarenhas conhecer as belezas naturais que ouvira falar na Europa, também pôde perceber
as carências do efetivo militar do Brasil e estabelecer relações com a população que habitava estas
partes da América.
Um trabalho difícil, porém necessário como primeira experiência, pois era exímio
conhecedor das operações militares mais utilizadas na época, sabia como armazenar mantimentos
bélicos com segurança, tinha noções de construção de fortalezas e reparos de sua estrutura física.
Seu trabalho era relatar ao Governador Geral as potencialidades e fragilidades que cada Capitania
apresentava em relação às ameaças cotidianas.
Além de ter aumentado o repertório de habilidades e traquejo militar, D. Vasco Mascarenhas
também teve a oportunidade de conhecer com mais profundidade o funcionamento da administração
da Colônia Portuguesa nas Américas e o comportamento dos seus funcionários ante as atribuições
que lhes eram devidas, observou ainda alguns detalhes do jogo político local e práticas dos
membros da elite da Bahia. Foi neste período que se deu o primeiro contato deste nobre do Reino
com alguns fidalgos de Salvador que nesta época uniram-se contra a invasão holandesa, dentre os
quais está Lourenço de Brito Correa.
D. Vasco Mascarenhas embarcou de volta para a Espanha e lá recebeu o título de Conde de
Óbidos pelas mãos de Filipe IV, a 22 de dezembro de 1636. D. Vasco Mascarenhas encontrava-se
em Madri e era um dos homens de confiança do Conde Duque de Olivares no aconselhamento dos
assuntos concernentes à defesa do Brasil. Esta constatação sustenta-se nas narrativas de Francisco
de Brito Freyre quando se referiu à situação da guerra em Pernambuco e os responsáveis pelas
companhias de soldados existentes no Brasil no ano de 1638:
[...] A guarnição que era própria da praça, constava de mil e quinhentos soldados, nos
dois Terços dos Mestres de Campo D. Fernando de Lodueña e D. Vasco Mascarenhas,
Conde de Óbidos, que por se achar em Espanha, governava seu Sargento Mor João de
Araújo.189
Apesar de ser Mestre de Campo de um Terço de Infantaria no Brasil, o Conde de Óbidos
estava na Espanha e só voltou à Bahia pela segunda vez em 1639, embarcou como um dos
tripulantes da armada de socorro enviada por Castela para expulsar os holandeses sitiados em
Pernambuco. Para completar o mapa das atribuições que ele desenvolveu durante os dois anos que
antecederam a Restauração Brigantina, não podemos deixar de mencionar a primeira experiência de
governador interino que teve o Conde de Óbidos.190
189
FREYRE, Francisco de Brito. Nova Lusiania, História da Guerra Brasílica a puríssima alma e saudosa memória
do sereníssimo Príncipe Dom Theodósio, Príncipe de Portugal e Príncipe do Brasil. Década Primeira. Lisboa:
Officina de Joam Galram. 1675. P. 444-443.
190
MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 4 vols. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 67. Ver também: SILVA, Ignacio
68
3- O Conde de Óbidos, substituto do Governador Geral do Brasil.
O Rei Felipe IV, seguindo os conselhos do seu Valido,191 enviou a quarta armada de socorro
ao Brasil, capitaneada pelo Conde da Torre (1639-1640).192 Óbidos era o Capitão General de
Artilharia e foi testemunha dos poucos recursos que a campanha apresentava quando saiu da
Península Ibérica em direção à África, em 7 de setembro de 1638.
Os detalhes desta empreitada foram estudados por muitos historiadores dentre os quais Eval
Cabral de Mello se destaca pelo cuidado que teve ao destacar os consecutivos auxílios enviados
pelas coroas Ibéricas com vistas a expulsar os batavos do Atlântico Sul. A armada do Conde da
Torre iniciou a viagem desfalcada, parte dos navios espanhóis ainda reuniam os mantimentos para a
jornada e o Conde de Óbidos sabia da baixa qualidade daqueles soldados, dado que os tripulantes
fardados eram camponeses alistados à força ou delinquentes obrigados a pegar em armas para
comutar suas penas servindo na América.193
Ao longo da viajem a tripulação contraiu varíola e, durante os dez meses que esteve em
Salvador, o Conde da Torre assumiu o Governo Geral do Brasil, cuidou dos doentes e preparou-se
para guerrear. Para auxiliá-lo na supervisão das tropas ele contava com experientes combatentes que
trouxe do Reino como o já mencionado Conde de Óbidos, D. Francisco de Moura e D. Rodrigo
Lobo.194
As atividades que D. Vasco Mascarenhas desenvolveu no Brasil entre os anos de 1639 e
1640 podem ser sistematizadas em dois momentos distintos, o primeiro demonstra-se em uma carta
escrita pelo Conde da Torre na qual as qualidades de Óbidos, sua integração com a Coroa
Castelhana e a passagem prévia que tinha pelo Brasil foram pontos favoráveis que constavam ao
seu respeito:
[...] Em outras cartas dou conhecimento a Vossa Magestade da grande falta de gente com
que cheguey a esta terra e como para a prevenir resolvi na junta das pessoas, com que
Vossa Magestade me mandou aconselhar, (…) e como o Conde de Óbidos tem
conhecimento tam antigo e tam geral aceitação destes moradores, pareceo com que sua
presença se faria com melhor sucesso, asi o vay o tempo mostrando. E porque ele aceitou
hir a esta ocazião, vencendo com o zelo de servir a Vossa Magestade o particular trabalho
Accioli de Cerqueira da. Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Tomo I, Bahia: Tipografia do
Correio Mercanil Precourt. 1835, p 101-112
191
Sobre o período do favoritismo régio do Conde Duque de Olivares, ver os trabalhos de : ELLIOTT, J. H. El CondeDuque de Olivares. El Político en una Época de Decadencia. Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1998; ELLIOTT, J. H;
BROCKLIS, Laurence. “El Mundo de los Validos.” In: ESCUDERO, José Antonio (Coord.). Los Validos. Madrid:
Editorial Dykinson, 2004.
192
Op. cit. CAMPO BELLO, Conde D. Henrique de. Governadores Gerais e Vice Reis do Brasil. Porto: Edição oficial
e comemorativa. 1940, p. 63.
193
MELLO, Eval Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e açúcar no nordeste (1630-1654). São Paulo: Editora 34,
2007. p.25-33. Ver também, LENK, Wolfgan. “Aspectos da defesa da Bahia durante as guerras holandesas.” In:
Mneme. Revista de Humanindes. UFRN. Caicó: v.9, n.24, set/out 2008. Disponível em:
www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais
194
Sobre o auxílio de Óbidos para com os enfermos desta armada, ver: op. cit. MIRANDA, Susana Münch. SALVADO,
João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 4 vols. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 142-147
69
e descomodo de tam diferentes caminhos e logares, entendo devia representalo asi a Vossa
Magestade para que fosse servido mandar lho agradecer, conhecendo que pera toda
ocasião he de grande fruito no serviço de Vossa Magestade o parecer e zelo com que o
Conde de Óbidos asiste e serve. Bahia, 10 de março de 1639. 195
Percebemos assim que até o mês de março de 1639 existia uma integração entre estes dois
Condes enviados do Reino, porém eles tinham atribuições diferentes. O Conde da Torre era o
Governador Geral do Brasil e via em Óbidos um nobre com boa aceitação entre os moradores da
Bahia e com experiência militar suficiente para auxiliá-lo na condução da guerra, prova disto é que
depois de recomposto o efetivo militar na Bahia, D. Fernando Mascarenhas foi para Pernambuco
enfrentar exército neerlandês instalado no Recife e para não deixar o Brasil sem Governador Geral,
Óbidos ficou incumbido de assumir esta função, durante o período de 21 de outubro de 1639 a 26
de maio de 1640.196
Apesar de não encontrarmos congruência com as datas apontadas para a volta de D. Vasco
Mascarenhas para Portugal, até os meses finais de 1639 o Conde de Óbidos parece ter fornecido o
apoio necessário para a continuidade da guerra.197
Um segundo momento do protagonismo de Óbidos enquanto auxiliar do Conde da Torre
caracteriza-se por contendas influenciadas pelo seu vínculo com a casa Brigantina e com os ventos
de Restauração que sopravam no Reino. Se em março de 1639 Óbidos foi elogiado pelo seu
superior, em 26 de novembro deste mesmo ano as impressões de D. Fernando Mascarenhas ao seu
respeito mudaram radicalmente: em uma carta escrita em alto mar, dentro do seu gabinete [...] do
Galeão São Domingos, aos 18º e meio da parte Sul do Atlântico, o Conde da Torre registrou as suas
insatisfações ao Duque de Olivares, queixava-se sobre o comportamento dos generais subordinados
ao seu comando e destacava as decepções que teve com o Conde de Óbidos e com D. Francisco de
Moura.
Suas impressões apresentam outro olhar sobre o perfil dos homens que vieram para auxiliálo no governo e que naquele momento atrapalhavam sua gestão:
[...] porque D. Fracisco de Moura, que o Senhor Conde Duque me deu por companheiro,
não tem talento nem ação de homem mais que só aquella aparencia, que com alguma
industria se enganão com elle a primeira vista, como eu tambem me enganei [...].198
D. Vasco Mascarenhas também foi alvo das críticas do Conde da Torre:
195
Op.cit. MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 4 vols. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 355-356.
196
Pedro Calmon nos diz que Óbidos [...] ficara no governo durante a ausência do conde [da Torre], a partir de 21 de
outubro de 1639, o mestre de campo D. vasco Mascarenhas, o Conde de Óbidos. Ver: CALMON, Pedro. História do
Brasil. vol 2 (XVI-XVII), 1971. p.628.
197
BARBOSA, Maria do Socorro.; ACIOLI, Vera Lucia Costa.; ASSIS, Virginia Maria Amoedo de. Fontes
Repatriadas. Anotações de História Colonial, referencias para pesquisa, índice do Catalogo da Capitania de
Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPe, 2006, p. 111. A data do termino do governo interino do Conde de
Óbidos será discutida a seguir, visto que uma cartas do Conde da Torre aponta outra data para sua partida.
198
Op. cit. MIRANDA, Susana Münch. SALVADO, João Paulo (orgs.) Cartas do 1.º Conde da Torre, 4 vols. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. p. 427.
70
[...]E o senhor Conde de Óbidos juro a Vossa Excelencia, asi Deos me honre, que em todos
estes apertos e no traim de Campanha, com ser general de artilharia, não o vi nunca nem
me ajudou em nada [...] Em fim Senhor, estes dois cavalheiros mais me serviram de
embaraço que de ajudadores, e muito desejarão ambos que esta jornada se não fizesse,
porque tão tímidos dois homens eu não os vi.199
Percebe-se então, que em novembro de 1639 as esperanças do Conde da Torre em ter Óbidos
nas frentes de batalha foram frustradas, sua desenvoltura como General de Artilharia não estava
dando resultados, outro trecho desta missiva ilustra outra nuance da crítica do Conde da Torre para
com a atitude pouco combativa de D. Vasco Mascarenhas:
[...] O (Conde) de Óbidos em nenhuma forma ouvera de hir a campanha ainda que Sua
Megestade o obrigara, e na Bahia fica com tanto medo que era a cousa principal porque
com elle queria deixar meu filho, e não tem nenhuma razão em seus temores porque, posto
que se assentou lhe ficassem oitocentos soldados, ficão lhe mais de mil a fora as
companhias da ordenança que he gente soldadesca [...] 200
Apesar de estar resguardado por muitos soldados que defendiam a cidade de Salvador e
assumindo o Governo interino do Brasil, o Conde de Óbidos é descrito nesta carta como um
comandante relapso, medroso e dado a outros interesses, por notar a pouca ajuda dos seus
subordinados enquanto guerreava em Pernambuco, D. Fernando Mascarenhas informava ao Valido
que não tinha [...] mais ajuda e favor que o do ceo porque o Conde de Óbidos não se ocupava mais
que com seus prefumes e agoas cheirosas, D. Francisco de Moura com suas irmãs e parentes e D.
Rodrigo Lobo com seu amancebamento [...].201
Uma última informação desta Carta aponta que todo o conjunto de críticas formuladas pelo
Conde da Torre contra a pessoa de Óbidos tem um conteúdo político fundamental e explica a
relação conflituosa destes dois nobres no quadro geral de disputas políticas que se delineava na
Península Ibérica.
Não podemos perder de vista que no ano de 1639 as articulações para a restauração do
Reino de Portugal à uma dinastia lusa já estavam em curso, tanto o Conde de Óbidos como o Conde
da Torre representavam famílias da alta nobreza Ibérica, ambos ostentavam o título de Conde e
eram cavaleiros professos de Ordens Militares, contudo, o trecho a seguir indica que o motivo das
desavenças estava na vinculação de Óbidos com a Casa Brigantina:
[...] De todo o referido pode Vossa Excelencia dar conta [...] para que, sendo servido se
mande informar a Bahia de Todos os Santos, pois já estou fora dela, e não lhe pareça a
Vossa Excelencia que falo com pouca confiança, pois deixo nella o Senhor Conde de
Óbidos que se encontra mui sentido da instrucção que lhe deixei, como Vossa Excelencia lá
o verá, demais de ser irmão de padre frei Diniz, digo isto pelo de Seita. 202
As tais instruções que tanto incomodavam o Conde de Óbidos versavam sobre como ele
199
200
201
202
Idem
idem
idem
idem
71
deveria proceder no Governo interino do Brasil durante a ausência do Conde da Torre e apontava
algumas limitações sobre o trabalho que Óbidos vinha desenvolvendo. Contrariando alguns estudos,
as Cartas do Conde da Torre atestam que desde março de 1639 D. Vasco Mascarenhas não se
encontrava na Bahia, acompanhemos.
Quatro meses depois de informar ao Conde Duque de Olivares dos percalços encontrados e
a falta de apoio dos generais subordinados ao seu comando no Brasil, D. Fernando Mascarenhas
emitiu outra comunicação ao Valido de D. Filipe IV, esta missiva não tinha o objetivo de apresentar
mais uma queixa contra Óbidos e sim comunicar à Corte de Madri que ele havia saído do Brasil e
retornado para o Reino sem ter lhe dado satisfação alguma, vejamos o conteúdo deste bilhete,
escrito em castelhano, no dia 25 de março de 1640:
[...] Excelentíssimo Senhor,
En las ultimas embarcaciones que salieron deste puerto he dado cuenta a Su Megestad y a
Vuestra Excelencia de todo lo que se há ofrecido em el servicio real; y por aver sabido que
em una carabella se fue ocultamente el Conde de Obidos, doi cuenta a Su Magestad para
que tenga entendido que há sido sin orden ni outra notisia mia ni aver tenido tiempo de
acordarle al Conde las ordenes de Su Magestad y las causas que pudriam obrigarle a no
salirse deste Estado sin tenerlas, y a Vuestra Excelencia doi la misma cuenta para que sepa
que por la mia no corre la resolucion desta jornada.203
Neste mesmo dia, o Conde da Torre enviou outra carta à Madri endereçada ao Duque de Vila
Hermosa, informava que o Conde de Óbidos havia se evadido ocultamente do Brasil à sua revelia,
nesta missiva, D. Fernando Mascarenhas apresentou os motivos que estavam por trás do abandono
do posto que Óbidos ocupava na América:
[...] O que tenho alcançado he que vay (o Conde de Óbidos) a queixar se a Sua Magestade
de mim por dizer que eu o tratava mal em sua ausencia; tão bem isto cousa incerta(…)
Caso he, meu tio e Senhor, que este cavalheiro não pode ser meu amigo porque he irmão de
D. Diniz de Alencastre com quem tive tam apertadas e tam rotas quebras.204
No dia seguinte, o Conde da Torre expediu outra comunicação à D. Francisco de Moura, este
comandante tinha uma companhia de soldados em Montesserrate e mantinha aproximações com
Óbidos, por isso o Governador lançou mão da sua autoridade para pedir esclarecimentos. Após
informar do [...] bastimento de des mil alqueires de farinha aos soldados que estavam resguardando
a cidade de Salvador na península de Itapagipe, ele convocava o general D. Francisco de Moura
para ir ter com ele em Salvador: [...] E por aqui vera Vossa Senhoria quanto he do serviço de Sua
Majestade vir se Vossa Senhoria para a cidade e juntarmo nos muitas vezes e praticarmos as
matérias do serviço real.205
Nesta carta, o Conde da Torre questionava os motivos da evasão de Óbidos do Brasil e
ressaltava a amizade que ele mantinha com D. Francisco de Moura, pois foi o último militar que
203
204
205
Idem, p. 449.
Idem. P 450.
Idem, p. 444
72
esteve em contato com Óbidos antes de sua jornada secreta de volta para o Reino, o Governador
Geral do Brasil salientava que eles viviam
[...] das portas a dentro alguns dias em Nossa Senhora da Graça e estando actualmente em
Monteserrate agora com Vossa Senhoria todo tempo que há que Vossa Senhoria la asiste,
de crer he que em resolução tão grande devia comonicalo a Vossa Senhoria ou pello menos
alcançar a Vossa Senhoria esta noticia.206
O Conde da Torre queria saber o motivo que levou Óbidos a sair do Brasil e sondar se D.
Francisco Moura compactuou com esta decisão, era sua obrigação comunicar ao Governador do
Brasil as circunstâncias que envolviam o retorno de Óbidos para Portugal, principalmente porque
eles conviviam portas a dentro e ambos tinham funções de comando na guerra contra os
holandeses.
Neste mesmo dia, a resposta de D. Francisco de Moura chegou às mãos do Conde da Torre,
a carta informava que ele também não fora comunicado da partida do Conde de Óbidos e por isso
não poderia dar informações seguras sobre aquela viagem: [...] E finalmente, Senhor, quanto
congeituro e entendo da jornada deste fidalgo se limita a particularidades e conveniencias futuras
de suas pertensõis.207 As conveniências e pretensões que tinha o Conde de Óbidos ao deixar o
Brasil, no limiar da Restauração Brigantina, serão abordadas a seguir.
4- O Conde de Óbidos em 1640: responsabilidades em meio à Restauração Brigantina.
D. João IV foi o décimo nono Rei de Portugal e devolveu o Trono a uma dinastia de sangue
lusitano, após sessenta anos de domínio dos Reis Filipes de Habsburgo. Não podemos deixar de
mencionar que o oitavo duque de Bragança teve uma ajuda importante na articulação das relações
que propiciaram a sua coroação, no inverno de 1640: trata-se da mãe dos seus herdeiros, a Rainha
D. Luísa Francisca de Gusmão, castelhana de nascimento, casada em 12 de janeiro de 1633 com D.
João IV.208
A historiografia espanhola ocupou-se em analisar a versão oficial da Restauração Brigantina
escrita pelo Conde da Ericeira, na obra História de Portugal Restaurado. Na opinião de Rafael
Valladares Ramirez, a Feliz Acclamação do Duque de Bragança foi eternizada nesta narrativa em
meio a mitos e construções ufanistas que visavam valorizar uma certa versão portuguesa para o fim
da União Ibérica.
Na opinião de Rafael Valladares, a assunção de D. João IV ao trono de Portugal não passou
de um golpe de Estado arquitetado por alguns membros da nobreza portuguesa descontentes com as
taxações fiscais e perda de privilégios que se acentuaram com o reinado de Felipe IV e do valimento
206
idem
idem
208
BARBOSA, D. José. Catálogo Chronologico, Histórico, Genealógico, e Crítico das Rainhas de Portugal e seus
filhos. Lisboa: Officina Joseph Antonio da Sylva , 1727. P.423.ss.
207
73
do Conde Duque de Olivares; o autor acredita que a participação de D. João foi importante, mas não
pode ser interpretada como o motor exclusivo dos levantes em torno da Restauração:
[...] Que la persona de D. João de Bragança [...] era imprescindible para la conjura, está
fuera de duda. Primero, porque uno de los pretextos para dar el Golpe era la necesidad de
restaurar la dinastia legítima de “reyes naturales” que pedia Portugal. Segundo, porque la
alternativa a uma restauración monarquica seria la república, régimen difícil de legitimar
allí donde carecia de tradición y que habria sido poco presentable dentro y fuera de
Portugal. Si de ella se habló entre los conjurados fue solo para advertir al reticente D.
João hasta dónde estaban dispuestos a llegar, com o sin él. Tercero, porque la riqueza
patrimonial de los Bragança, la más imponente del reino, era una fuente preciosa de
recursos que seria preciso mobilizar. Y cuarto, porque dentro de una sociedad rigidamente
corporativista y jerarquizada la ausencia de una cabeza sólida al frente de ella habria
abierto una lucha por el poder capaz de arruinar los objetivos de la conjura. 209
O Conde de Óbidos evadiu-se do Brasil em março de 1640 sem comunicar ao seu superior
direto, vimos as críticas que o Conde da Torre fizera à Corte de Madrid em relação ao ocorrido e as
suspeitas que tinha para explicar o abandono de posto do General de Artilharia do Brasil: Óbidos
era parente de D. Diniz de Lencastre e, segundo a informação de D. Francisco de Moura, tinha
pretensões particulares para sair do Brasil. A vinculação de D. Vasco Mascarenhas com a casa real
Brigantina foi o fator decisivo que explicou a jornada de retorno de Óbidos para Portugal, em 25 de
Março de 1640.
Além de ser vinculado ao grupo de famílias de Portugal que legitimavam o reinado do
oitavo Duque de Bragança, percebemos de Óbidos esteve intimamente ligado a este reinado, ele
auxiliou o Rei D. João IV nos anos que seguiram a Restauração. Não pretendemos aprofundar as
atividades que Óbidos exerceu dentro do território de Portugal após 1640, nosso foco de
investigação são as atividades que ele protagonizou nas praças ultramarinas ao longo da sua carreira
e assim reunir subsídios para analisar o seu estilo de governo como segundo vice-rei do Brasil,
última atividade de governo que exerceu. Contudo, é importante salientar que D. João IV concedeu
a D. Vasco Mascarenhas o título de Conde Sobrinho, no dia 08 de outubro de1640.210
Dois anos após a Restauração, em 14 de julho de 1642, foi reconstituído o Conselho
Ultramarino e promulgado seu Regimento, este sínodo só entrou em funcionamento em 1643 e
seguiu o modelo do antigo Conselho das Índias e Conquistas Ultramarinas (1604), criado no
período Filipino e extinto em 1614.
D. João IV reergueu este corpo consultivo escolhendo os mais distintos nobres do Reino,
entre eles estavam militares de capa e espada e fidalgos letrados que ocuparam funções de governo
no Ultramar ou no Reino e, portanto, eram experientes administradores e hábeis conselheiros;
209
VALLADARES, Rafael. "Sobre Reyes de Invierno. El Diciembre Portugués y Los Cuarenta Fidalgos (O Algunos
Menos, Con Otros Más)." In: PEDRALBES. Revista d’Historia Moderna. Universitat de Barcelona,n. 15, 1995.p.
114.
210
Agraceço ao Professor Francisco Cosentino pela indicação deste documento que atesta a nomeação de Óbidos como
Conde Parente: ANTT. Chancelaria de D. João IV, livro 19, folha 231 v.
74
acompanhemos a seguir algumas particularidades deste sínodo, cuja jurisdição era exclusiva para
assuntos da alçada Colonial.
Todos os documentos referentes a questões que ultrapassavam a autoridade dos
Governadores Gerais e vice-reis do Ultramar Português eram remetidos à Lisboa e ali se
transformavam em consultas ao Conselho Ultramarino, antes de chegar ao parecer final da Realeza.
Devido ao grande volume de papéis que chegavam das Colônias, a pauta de despachos variava de
acordo com os dias da semana: segundas e quartas o expediente dos Conselheiros tratava da Índia e
dos seus negócios, quintas e sextas o cuidava-se das demandas do Brasil e aos sábados a Guiné,
Cabo Verde e outras partes do Império Ultramarino entravam em discussão.
A importância estratégica do Conselho Ultramarino e os registros deixados nos pareceres
dos seus titulares resguardam informações valiosas sobre o funcionamento da administração
colonial, posicionamentos e conflitos de interesses existentes entre os Conselheiros e o perfil
político dos auxiliares de D. João IV nas Colônias.211 Outros institutos como o Desembargo do
Paço, a Mesa da Consciência e Ordens e a Casa da Suplicação foram preservados após a
Restauração e a função destes órgãos gerou alguns conflitos de jurisdição, ao longo do século XVII.
Temos acesso ao translado de uma consulta feita pelo Conselho Ultramarino, em 15 de
dezembro de 1644, sobre algumas pessoas capazes de substituir o Governador Geral do Brasil,
Antonio Telles da Silva (1642-1647). Percebemos que mesmo servindo em Portugal, após os anos
de experiência no Brasil, o nome de D. Vasco Mascarenhas continua a ser cotado entre os
Conselheiros como possível Governador destas partes.
Em 1644, este tribunal era composto por duas figuras que tiveram passagem pelo Brasil e
apresentaram posições diferenciadas sobre envio do Conde de Óbidos para substituir um
Governador Geral, eram eles: Salvador Correa de Sá, relator da consulta em tela e o Marquês de
Montalvão, primeiro presidente do Conselho Ultramarino.
Conforme o Regimento, os conselheiros iniciavam a sessão apresentando os pareceres sobre
os papéis que haviam sido distribuídos previamente pelo Presidente. O relator da matéria era o
primeiro a opinar, seguido dos outros, por ordem de antiguidade e por último, o voto do Presidente
do Conselho era registrado pelo Secretário:
[...] Pareceu a Salvador Correa de Saa nomear a V. VMgde. para este cargo por outros três
annos, em primeiro lugar D. João de Mascarenhas, por ser fidalgo de boas partes, e muyto
afabel, e que será bem aceito naquelle Governo. Em segundo lugar a D. João de Sousa. E
terceiro ao Conde de Val de Reis, e que não vota em soldados, por lhe parecer serem
necessários neste Reino e não se necessita hoje no Estado do Brasil, senão de pessoa
afábel, e que trate também do serviço de VM, que são as partes, que concorrem nas
211
Sobre mais informações sobre o funcionamento do Conselho Ultramarino ver MYRUP, Erik Lars. “Governar a
distância: o Brasil na composição do Conselho Ultramarino, 1642-1833.” In: SCHWARTZ, Stuart.; MYRUP, Erik Lars.
O Brasil no Império marítimo português. Bauru/SP: EDUSC, 2009, p.263-298.
75
pessoas asima nomeadas.212
Apesar de ser o relator deste processo, Salvador Correa de Sá foi o único conselheiro que
omitiu o nome de D. Vasco Mascarenhas como possível ocupante do cargo de Governador Geral do
Brasil, todos os outros Conselheiros seguiram votando no Conde de Óbidos como um nobre de
reconhecida carreira militar, passagem prévia pelo Brasil e apto à este provimento.
Após a emissão dos pareceres dos demais conselheiros, o Marquês de Montalvão, presidente
do sínodo, foi quem por último emitiu opinião sobre esta consulta. O primeiro vice-rei do Brasil,
expulso do cargo em 1641, levantava o nome de três nobres do Reino em condições de substituir
Antonio Telles da Silva no governo do Brasil, entre as características dos seus indicados, a aceitação
das autoridades do Brasil era o motivo mais forte que orientava a sua predileção:
[...] Ao Marques Presidente parece que pelo que ouvio no Brasil, acerca de como nelle era
amado o Conde de Óbidos e pelas cartas que ha tido, desde que assiste neste Conselho,
que será muyto aceito no ditto Estado, o mesmo Conde, se V.Mgde. mandar por
Governador delle. Em segundo lugar se nomea a D. João de Sousa, por ser fidalgo de
muytas partes, e pelo bem que tem servido a V.Mgde. despois de sua felice acclamação. E
em terceiro lugar D. João Mascarenhas, por também concorrerem nelle as mesmas partes,
e parecer razão, que V. Mgde. mande lançar mão delle, para ao adiante o ocupar em
mayores postos [...]213
Todos os conselheiros apontaram o Conde de Óbidos como opção para governar o Brasil,
todavia, apenas o relator não o mencionou e ainda formulou uma opinião que, diante das
justificativas dos seus outros colegas de Conselho, parece desfavorável à sua nomeação: na visão do
ex- Governador do Rio de Janeiro, afabilidade e trato político pareciam ser as características mais
necessárias ao Governante que fosse enviado ao Brasil.
Ressaltar que não vota em soldados parece refletir a preocupação de Correa de Sá em
manter D. Vasco Mascarenhas no Reino e ocupado nos serviços de Conselheiro de Guerra de D.
João IV, atribuição mais apropriada à sua formação de soldado e não em postos administrativos no
Ultramar.
Nesta Consulta de 1644, vemos o Conselho Ultramarino ciente de sua jurisdição:
[...] E cõ a sumissão devida, pareceo representar a VMgde. que as cousas mais importantes
ao governo de seus Reynos, e Senhorios he a elleição e escolha de semelhantes lugares, e
que nestes sempre VMgde. e os senhores Reys seus antecessores costumão fazer estas
nomeações ouvindo seus Conselhos e que havendo VMgde. de mandar seguir esta ordem
por seu serviço deve em primeiro lugar mandar, que por este Conselho se lhe facão estas
consultas pois a elle comete todas as cousas pertinentes a guerra, fazenda e justiça e o
mais governo das Conquistas Ultramarinas.214
Especialmente após a Restauração, as instâncias consultivas de Portugal representaram um
papel cada vez mais importante, especialmente na administração do Reino e das conquistas
ultramarinas, Edgar Prestage entendeu que o Conselho de Estado criado no período dos Bragança
212
AHU, LF, BA. Cx.16, Doc1814
idem
214
idem
213
76
[...] era o mais alto corpo consultivo dos negócios públicos [...] gozava de certos poderes de
iniciativa, embora sujeito a aprovação do Rei.215
Pedro Cardim amplia nossos horizontes, afirmando que os Conselhos eram instâncias que
representavam a figura do Rei, como seu apêndice, pois [...] era o órgão onde assistem os maiores
homens do reino, e isso foi de grande reputação nos anos de Restauração.216
A elevação da dinastia de Bragança ao trono de Portugal promoveu algumas mudanças na
lógica de funcionamento do Reino e das suas conquistas, alguns aspectos do modelo administrativo,
jurídico e militar promovido por Castela foi adaptado e adequado às necessidades de Portugal e do
ultramar, o corpo jurídico espanhol continuou existindo, pois D. João IV e seus sucessores não
aboliram o Código Filipino, contudo, algumas alterações se tornaram mais agudas.
Na estrutura militar, reformas importantes foram efetuadas em 11 de dezembro de 1640 com
a criação do Conselho de Guerra217, este foi um dos primeiros conselhos erigidos por D. João IV
após sua coroação e imprescindível nos vinte e oito anos de conflito que se seguiram para a
reconquista e defesa de territórios lusos, outrora dominados pelos Habsburgos.
O Conselho de Guerra ocupou era composto por dez conselheiros de alta nobreza e militares
de comprovada experiência, nomeados diretamente pelo Rei. Entre os primeiros selecionados deste
corpo consultivo se encontrava D. Vasco Mascarenhas, o Conde de Óbidos. Os Conselheiros de
Guerra eram homens experimentados nas batalhas da Europa e do Ultramar, submetidos a um
complexo sistema de precedências e cerimonial rigoroso que normatizava o funcionamento daquela
instância.
Conforme a especialidade deste conselho, cabia aos seus membros a emissão de pareceres
em assuntos de defesa, instrução aos Generais espalhados pelo mundo Ultramarino, bem como a
criteriosa nomeação de Oficiais e Ministros da Guerra. Os membros tinham vasto histórico militar
anterior à Restauração e por isso conheciam as demandas do Reino e das conquistas e as
características do efetivo disperso no amplo território, desta forma, percebe-se que os Conselheiros
de Guerra tiveram prerrogativa de nomear pessoas em todas as funções militares superiores, quais
sejam Capitão Geral, Governador das Armas e Capitães-mores. Além disso, ainda deliberavam
sobre o contingente dos exércitos, recrutamento militar, fabricação de embarcações e a fortificação
215
PRESTAGE, Edgar. O Conselho de Estado. D. João IV e D. Luísa de Gusmão, Lisboa: 1919, p. 19
CARDIM, Pedro. “A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da segunda metade dos Seiscentos.” In:
Revista Tempo, Vol. 7 N° 13. Niterói: UFF, julho de 2002, pp. 13- 56, p. 27.
217
O Conselho de Guerra foi criado logo após a Restauração, este sínodo era composto por conselheiros, um assessor,
um promotor de justiça, um secretário, porteiro e contínuo. Seus trabalhos enfocavam a conservação das fortalezas e
fornecimento do material de guerra, cabia-lhes também o provimento de postos militares, organização tática e
estratégica das expedições das tropas e tribunal militar. Ver: op. cit. BARBOSA,Maria do Socorro.; ACIOLI, Vera Lucia
Costa.; ASSIS, Virginia Maria Amoedo de. Fontes Repatriadas. Anotações de História Colonial, referências para
pesquisa, índice do Catalogo da Capitania de Pernambuco. 2006, p. 35.
216
77
de espaços estratégicos ocupados pela Coroa Portuguesa.218
O panorama de reformas administrativas efetuadas a partir de 1640, influenciou o estilo de
escolha dos vice-reis da Índia e dos Governadores Gerais e vice-reis do Estado do Brasil,219 por ser
matéria de alta política, estas decisões eram exclusividade do Conselho de Estado.
De acordo com estudos contemporâneos, a decisão do nome de possíveis Governadores e
vice-rei do Brasil e da Índia não passava pelo crivo do Conselho Ultramarino, ainda que emitissem
pareceres favoráveis ou contrários sobre os candidatos mais indicados para o governo das
conquistas. Estes conselheiros se encarregavam apenas das nomeações de Governadores de
Capitanias, portanto, apesar de tentar influenciar na escolha dos altos mandatários das conquistas, o
Conselho Ultramarino não conseguiu tal prerrogativa.220
Após este breve levantamento de algumas a reformas administrativas implementadas por D.
João IV, notamos a intensa atividade de Óbidos na década de 1640, ele era um quadro político
importante para o desenvolvimento e consolidação da monarquia portuguesa recém restaurada.
Diante de outros nobres de Portugal que concorriam para o Governo Geral do Brasil nesta década,
Vasco Mascarenhas se destacava em 1644 por ser um comandante preparado e com passagem
prévia pela América, as outras pessoas que estavam concorrendo com Óbidos para substituir
Antonio Telles da Silva também eram homens de grande reconhecimento social e haviam servido
nas fronteiras de Portugal ou tiveram passagem pelo Brasil.
Mesmo indicado pela maioria do Conselho Ultramarino, o nome do Conde de Óbidos não
foi aprovado por D. João IV para substituir o Governador Geral do Brasil, ressalte-se que nenhuma
das pessoas elencadas nesta consulta obteve provimento para o Governo do Brasil, a função foi
ocupada por Antonio Telles de Menezes, segundo Conde de Vila Pouca de Aguiar (1647-1650).
Contudo, o Conde de Óbidos continuou exercendo cargos de comando na defesa do Reino durante
218
Outras informações sobre as pessoas providas no ultramar português no período de ascensão de D. João IV, ver:
SILVA. Luiz augusto Rabelo da. História de Portugal nos séculos XVII e XVIII. Tomo IV. Lisboa: 1969, p. 189-193.
Sobre a constituição dos Conselhos de Guerra e uma análise historiográfica mais detalhada, ver: COSTA, Fernando
Dores. “O Conselho de Guerra como lugar de poder: a delimitação da sua autoridade.” In: Análise Social, abr. 2009,
n.191, p.379-414.
219
O Brasil foi elevado a “Principado” por carta régia de 26 de outubro de 1645 e passou a ser reconhecido de uma
forma diferenciada diante outras conquistas portuguesas. Maria de Fátima Gouvea entendeu que: [...] No caso do Brasil
em particular, destaca-se o fato de que essa alteração se inseria em um processo de gradativa concessão de títulos à
“conquista”americana, delineando-se uma trajetória político-administrativa capaz de explicitar uma dada estratégia
de governo. Estratégia essa informada por uma economia política de privilégios, vale repetir, tecendo vínculos, e
sentimentos capazes de relacionar indivíduos em ambas as margens do Atlantico. Ver: GOUVÊA, Maria de Fátima.
“Poder político e administração na formação do complexo atlantico portugues (1645-1808). In: Op. Cit. O Antigo
Regime nos Trópicos, 2001. p.294
220
MONTEIRO, Nuno Gonçalo.; CUNHA, Mafalda Soares da.; CARDIM, Pedro. OPTIMA PARS. As Elites do
Antigo Regime no Espaço Ibero-Americano, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. A conclusão dos autores
desta obra coaduna com o documento que temos tratado, encontramos o parecer definitivo do Rei sobre a pretensão que
o Conselho Ultramarino tinha em consultar Governadores Gerais e Vice Reis para as Colônias Ultramarinas: [...] Não
toca ao Conselho consultar este posto. Lisboa 16 de dezembro de 1644. Ver: op. cit.: AHU, LF, BA. Cx.16, Doc. 1814:
Consulta do Conselho Ultramarino sobre se consultarem pessoas para o Governo do Brasil.
78
os anos que seguiram a década de 1640;221 na década de 1650, constatamos a sua primeira viagem
rumo ao Oceano Índico, Óbidos foi incumbido de assumir a mais alta função de governo outorgada
a um nobre português no Oriente Português.222
5- As experiências malsucedidas de um vice-reinado na Índia.
[...] D. Vasco Mascarenhas, Conde de Óbidos (27º Vice Rei), nomeado em 19 de janeiro de
1652, partiu de Lisboa em 25 de março, chegou a Goa no dia 3 de setembro do mesmo anno.
Tomou posse do governo a seis. Socorreu o Ceylão e as fortalezas do Camará cercadas pelos
holandeses.223
A historiografia contemporânea ocupou-se em estudar alguns aspectos da experiência de
governo do Conde de Óbidos na Índia, partiremos de alguns estudos realizados no Brasil e em
Portugal a fim de sistematizar os detalhes da sua governança, em meio a disputas políticas próprias
daquele espaço.224
O envio de D. Vasco Mascarenhas com o título de vice-rei da Índia pode ser compreendido a
partir da ótica da reprodução hierárquica da sociedade e das possibilidades de mobilidade social que
orientavam as categorias nobiliárquicas existentes em Portugal Seiscentista, especialmente se o foco
da nossa atenção for o período posterior a Restauração Brigantina.
Os critérios de recrutamento e caracterização social dos nobres de Portugal indicados para
exercer atividades de governo e concelhio no Estado da Índia foram estudados por Mafalda Soares
da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro. Tomando por base esta análise, reuniremos mais subsídios
para compreender o conjunto de atributos que Óbidos apresentava ao assumir seu primeiro vicereinado no Oriente em 1652.225
221
O Conde da Ericeria deu notícias sobre uma das tarefas que D. Vasco Mascarenhas operou após a Restauração: [...] O
Conde de Óbidos havia servido no Brasil e em Flandres com muito bom procedimento, e esperava-se de seu juizo e
afabilidade do seu trato que exercitasse com grande acerto a ocupação que El Rey lhe entregara – fora nomeado
Governador das Armas na Província de Alentejo.Ver: ERICERIA, D. Luiz de Menezes Conde da. História de Portugal
Restaurado,Parte I, Tomo I, Lisboa: Officina Domingos Rodrigues, 1759, p. 368. Quando esteve a governar o Alentejo,
D. Vasco Mascarenhas foi expulso do posto e preso, ver: Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção pombalina, Cod. 46,
sem título, folha 285. Agradeço a Renato de Souza Alves pela indicação desta referencia.
222
Sobre a trajetória e perfil político dos Governadores e Vice Reis do Estado do Brasil no século XVII, verificar:
COSENTINO, Francisco Carlos. Perfil social e importância política dos Governadores Gerais do Estado do Brasil.
(1640-1705). In: ANAIS DO II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA COLONIAL. Mneme – Revista
de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008. Ver também: COSENTINO, Francisco Carlos.
Governadores gerais do estado do Brasil (séculos XVI – XVII): ofício, regimento, governação e trajetórias. São
Paulo: Annablume, 2009.
223
BORDALO, Francisco Maria. Ensaio sobre a estatística das possessões na África Ocidental e Oriental na Ásia
Ocidental na China e na Oceania começados a escrever de ordem no governo de Sua Magestade, por Joaquim
Lopes de Lima e continuados por Francisco Maria Bordalo. Segunda série, Livro V – O estado da Índia, 1ª parte,
Lisboa: Imprensa Nacional, 1862, p. 118
224
MALDONADO, Maria Herminia. Relação das Naos e Armadas da Índia com os sucessos dellas que se puderam
saber, para noticia e instrucção dos curiosos e amantes da História da Índia. Coimbra: Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, 1985, p.181.
225
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Trajetórias sociais e governo das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e
governadores-gerais do Brasil e da Índia nos século XVII e XVIII.” In: FRAGOSO, João.; BICALHO, Maria
79
De acordo com os autores, Óbidos paresentava perfil adequado para administrar estas
partes, além de ser o primogênito da sua família, outro aspecto importante que lhe credenciou o
cargo de governo na Índia foi a sua vinculação com os Duques de Bragança. Percebemos, desde a
descrição das armas dos Condes de Óbidos, que D. Vasco Mascarenhas se encontrava em condições
privilegiadas na Corte de D. João IV. Mesmo exercendo atividades militares para a Coroa
Castelhana durante o período da União Ibérica, ele continuava próximo da dinastia Brigantina, pois
era do tronco dos Mascarenhas, família que apresentava um antigo histórico de fidelidade e serviço
às Coroas de Portugal.
Óbidos foi um nobre de reconhecido valor e respeito tanto em Madri como em Lisboa e
levou consigo um título de nobreza e um brasão de armas que atestava sua primogenitura entre os
Condes de Óbidos. Todos estes atributos determinavam-lhe vários privilégios e mercês régias
concedidas pelos soberanos de Portugal e, ao longo do século XVII, também outros homens que
viviam nas praças ultramarinas disputavam a atenção dos Reis e solicitavam melhoramento dos seus
patrimônios e estabelecimento de vínculos de fidelidade com os monarcas.226
O título de vice-rei, além de carregar um conteúdo simbólico de diferenciação social, se
tornou mais um atributo de grandeza que o Rei D. João IV utilizou para manter a sua
governabilidade, após o fim da hegemonia espanhola. Se no Brasil a concessão deste título
extraordinário só aconteceu em 1640, na Índia, o vice-reinado foi instituído e mantido pelas coroas
Ibéricas desde o século XVI.
O primeiro a receber o título de “Almirante e Vice Rei das Índias”, concedido pelos Reis
Católicos de Aragão e Castela, foi o navegador genovês Cristóvão Colombo, no século XVI o
português D. Francisco de Almeida foi beneficiado com o primeiro título de vice-rei do Estado da
Índia, outorgado em 1505.
Diogo Ramada Curto resumiu assim o modus operandi para a nomeação de portugueses para
ocupar os cargos administrativos do Reino e do Ultramar:
[...] Com efeito, a necessidade de o príncipe virtuoso saber escolher os seus conselheiros; a
legitimidade de nomeação dos melhores por suas acções e merecimento, baseada no
confronto das carreiras, na distribuição de mercês e no vocabulário da justiça distributiva;
a ordenação dos nomes e das histórias de vida, segundo um critério genealógico; o
controlo judicial por residência e o inquérito judicial por audição e confronto de
testemunhas, ou seja, a inquisitio, a referência e descrição dos sistemas políticos baseada
na qualificação de personagens influentes e na detecção das suas ligações – todos estes
são aspectos que fazem parte da referida lógica da nomeação.227
A outorga do título de vice-rei foi uma prática comum às monarquias Ibéricas, porém, esta
Fernanda.; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos: A dinamica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). RJ: Civilização Brasileira, 2001, p.249-284.
226
CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Vice-reis, governadores e conselheiros de governo do
Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento e caracterização social.” In: Penélope. Fazer e desfazer a história. 15,
1995. Pg. 91-120.
227
Op. cit. CURTO, Diogo Ramada. “A Restauração de 1640: nomes e pessoas.” 2003. p. 324.
80
benesse extraordinária deveria seguir critérios rigorosos, dentre os quais, muitos fidalgos da
primeira nobreza de Portugal se enquadravam, porém poucos conseguiam alcançar. Para ser vice-rei
da Índia, algumas características eram imprescindíveis; de acordo com João de Barros, o candidato
deveria ser: [...] homem limpo de sangue, natural e não estrangeiro, prudente, cavaleiro, bem
acostumado, e que se tenha dele experiência em casos semelhantes de mandar gente na guerra.228
Tomado por base o estudo anterior realizado sobre a descendência de D. Vasco Mascarenhas
e sua experiência no Ultramar, percebemos que ele tinha as condições genealógicas e políticas
necessárias para assumir um posto de governo no Oriente, contudo, antes de prover os possíveis
governantes da Índia, a Coroa, em consonância com o corpo consultivo apropriado no Reino,
considerava dois aspectos básicos:
A vinculação de cada fidalgo com as diversas facções nobiliárquicas que compunham a
corte portuguesa e os contatos políticos ou negócios que tais famílias mantinham no Oriente deviam
ser levados em conta no momento da indicação de um vice-rei da Índia. Um longo processo de
investigação das atividades militares ou políticas que o indicado havia exercido no Oriente era
efetuado pelos auxiliares do Rei, com vistas a garantir o nome de um nobre apto a cumprir tal
função, também os contatos prévios ou negócios que o possível agraciado mantinha com a elite
portuguesa de Goa embasavam a decisão régia na concessão ou negação do título de vice-rei da
Índia.
Um segundo fator a ser levado em conta, decorre do respaldo político que o indicado deveria
ter no Reino, para assumir um vice-reinado no Oriente. Mesmo não tendo capacidade de prover o
cargo de Governador Geral e vice-rei da Índia, percebe-se que o Conselho Ultramarino emitia
pareceres favoráveis ou contrários e suas opiniões pesavam politicamente na decisão final do Rei,
era neste momento que os principais homens de Portugal, distribuídos nos Tribunais do Reino
entravam em cena e privilegiavam o interessado que mantivesse maior integração com seus
interesses. Os Conselheiros ressaltavam em suas performances de escrita a visibilidade dos seus
apadrinhados, formulavam argumentos favoráveis para certas pessoas e assim promoviam um
reconhecimento diferenciado de alguns perante a Monarquia.
Em resumo: o sucesso ou o fracasso da gestão de um governante na Índia dependia do seu
respaldo político entre as autoridades do Reino; da integração com os membros das elites das
Colônias e de uma carreira militar e administrativa reconhecida socialmente pelos os homens do seu
tempo.229 Analisando a segunda metade do século XVII, percebemos que o perfil social dos vicereis da Índia portuguesa apresentava uma similaridade: os agraciados com este título eram
228
BARROS, João de. Terceira década da Ásia. Dos feytos que os portugueses fizeram no descobrimento &
conquista dos mares & terras do Oriente. Lisboa: Livraria Sam Carlos. Parte II, Livro IX, Capítulo I. 1781. p.341.
229
Op.cit. CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Vice-reis, governadores e conselheiros de
governo do Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento e caracterização social.” p.93.
81
portugueses de nascimento, ou seja, primogênitos nascidos em famílias de primeira nobreza e [...]
presuntivos senhores de Casa desde o berço, apesar de algumas exceções.230
Nuno Gonçalo Monteiro e Mafalda Soares da Cunha ressaltaram que durante este período, a
Monarquia Brigantina flexibilizou a exigência de presença anterior na Índia como condição para
outorgar o título de vice-rei aos nobres portugueses e era neste ponto a principal fragilidade política
do Conde de Óbidos ao chegar em Goa.
Apesar de ter sido nomeado pelo Rei de Portugal e ter ordens expressas de governar aquela
praça, a temporada de Óbidos foi curta. Ele não tinha passagem pelo Oriente em sua carreira e por
isso chegou à Índia com trânsito político limitado entre as autoridades locais, mesmo utilizando
seus dotes militares no comando das tropas que defendiam o Ceilão, Óbidos encontrou resistência
da elite Goense. Francisco Maria Bordalo dá mais informações destes meses turbulentos em que o
Conde de Óbidos ostentou o título de vice-rei da Índia;
[...] Não obstante possuir optimas qualidades,[O Conde de Óbidos] foi deposto no dia 22
de outubro de 1653, preso e enviado para o reino, em resultado de uma sedição de que era
principal caudilho D. Braz de Castro. Este assumiu a si o governo, até que foi preso e
231
alguns de seus sequazes em 1655.
Uma narrativa mais detalhada dos movimentos feitos pelos moradores de Goa para derrubar
o Conde de Óbidos do vice-reino da Índia foi apresentada pelo Conde da Ericeira, nela percebemos
o delicado terreno de disputas que o fidalgo vivenciou no Oriente Português. Ele fora enviado para
substituir o Conde de Aveiras, por ocasião da sua morte, contudo, [...] dentro de poucos dias se
começarão a alterar os ânimos da mayor parte dos Três Estados daquela cidade [...].232
Os articuladores desta sedição eram figuras de destaque na cidade: [...] Nicolau de Moura de
Brito, natural da Índia e Antônio Barreto Pereira, que havia ido por Almirante no ano
antecedente,233 estes dois obtiveram o apoio fundamental de D. Bráz de Castro,234 fidalgo morador
na cidade de Goa que assumiu a liderança do motim e, posteriormente ao golpe, tomou para si o
governo da Índia até que o Rei enviasse pessoa mais benquista.
230
idem. p.98.
Op. cit. BORDALO, Francisco Maria. Ensaio sobre a estatística das possessões na África Ocidental e Oriental na
Ásia Ocidental na China e na Oceania começados a escrever de ordem no governo de Sua Magestade, por
Joaquim Lopes de Lima e continuados por Francisco Maria Bordalo. Segunda série, Livro V – O estado da Índia,
1ª parte, Lisboa: Imprensa Nacional, 1862, p. 118.
232
Op. cit. ERICERIA, D. Luiz de Menezes Conde da. História de Portugal Restaurado, Parte I, Tomo II, 1751, p.
402-408.
233
idem
234
[...] Nasceo em Lisboa, e teve por progenitores D. Rodrigo de Castro e D. Ana de Eça, filha de Luis de Brito, pagem
do Cardeal D. Henrique e de D. Ignes de Castro. Depois de ter obrado ações dignas de memória as eclypsou
injuriosamente quando em o anno de 1652, atendendo mais aos impulsos da ambição, que a nobreza de seu nascimento
aceitou o Governo da Índia, que o levou a uma sublevação popular, mandando prender ao Conde de Óbidos, D. Vasco
Mascarenhas, eleito Vice Rei do Estado pela Magestade do Rei D. João IV. Ver: MACHADO, Diogo Barbosa.
Bibliotheca Lusitana, histórica crítica, chronologica na qual se comprehende a noticia dos authores portugueses,
e das obras, qu compuserão desde o tempo deproclamação da Ley da Graça até o tempo prezente. Offerecida a
augusta magestade de D. João V. Tomo I, Lisboa: Officina Antonio Isidoro da Fonseca, 1741, p. 300
231
82
Após reunir força suficiente, os amotinados prenderam o Conde de Óbidos no Colégio dos
Reis e o vice-reinado deste Mascarenhas na Índia encerrou-se quando ele foi embarcado para
Lisboa. A passividade de Óbidos diante da usurpação do seu cargo foi detalhada pelo Conde da
Ericeira:
[...] E o Conde que não havia dado causa a tão indigna sublevação, que querer curar com
remédios tratando os achaques que pediam medicamentos rigorosos, se sujeitou sem
resistência a prisão, parecendolhe que fazia a acção mais útil a saúde pública em sofrer o
235
opróbrio que em contradizelo.
O clima político de desacordo que gerou este conflito na Índia foi inserido no estudo feito
por Luciano Figueiredo ao tratar das alterações políticas oriundas da Restauração. O autor destacou
a saída do Conde de Óbidos do vice-reinado da Índia entre os episódios de insurreições e
instabilidade política que estouravam na América, África e Ásia, a partir do ano de 1640 até finais
de 1680. Notemos que as estratégias de governabilidade a que D. João IV lançou mão, para superar
os desajustes e tensões políticas entre a elite goense, apresentaram certa condescendência para com
a contenção das revoltas coloniais:
[...] a quase simultaneidade das contestações, em bases tão semelhantes no período,
ofereceu uma oportunidade preciosa ao governo metropolitano de refinar suas ações no
governo colonial em épocas de crise. Não apenas os colonos foram capazes de
instrumentalizar as fragilidades que eram próprias da relação metrópole - colônia, como
empregou cautela e prudência como exigiam tais inquietações, em vista do assédio dos
inimigos, das ameaças dos colonos e das dificuldade em mobilizar formas de repressão
imediata.”236
O autor também indica que a origem do conflito político estabelecido entre o Conde de
Óbidos e a elite de Goa estava nos critérios de legitimidade, tão importantes naquele período e que
deveriam ser atenciosamente comprovados. Mesmo acompanhado de uma frota especial e ordens
expressas da Coroa pra exercer o vice-reinado da Índia, a elite local percebia a nomeação do Conde
de Óbidos como uma intervenção direta da Rainha D. Luísa de Gusmão sem a devida provisão do
Rei D. João IV.237
Apesar de sua desenvoltura no comando militar e respaldo político no Reino, D. Vasco
Mascarenhas não foi habilidoso para conter a revolta das autoridades descontentes com a sua
pessoa, por isso, não demorou um ano e o Conde de Óbidos foi usurpado do cargo de vice-rei da
Índia. Nuno Gonçalo Monteiro e Mafalda Soares da Cunha apresentam o mesmo entendimento
quanto a este episódio, o posicionamento político de D. Vasco Mascarenhas é utilizado pelos
autores como um exemplo típico dos governantes que o Rei D. João IV enviava para o Oriente: [...]
235
Op. cit. ERICERIA, D. Luiz de Menezes Conde da. História de Portugal Restaurado, p.403.
FIGUEIREDO. Luciano Raposo de Almeida. “O Império em apuros; notas para o estudo das alterações ultramarinas
e das práticas no Império Colonial Português. Séculos XVII e XVIII.” In: FURTADO, Júnia. Diálogos Oceânicos:
Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte:
UFMG, 2001. P. 228.
237
idem, p. 122
236
83
o perfil dos Vice Reis desde meados dos Seiscentos é dado, sem dúvida, pelo deposto primeiro
Conde de Óbidos (1652-1653), cujos opositores consideravam ser ‘mais um favorito da corte do
que um competente administrador.’ 238
O administrador destacado para o Ultramar que não soubesse mediar conflitos ou não
compreendesse os pormenores do funcionamento da lida colonial, poderia ter sérios problemas com
os outros homens poderosos, não bastava ter linhagem nobre e ampla experiência militar, a ausência
de delicadeza e deferências necessárias às elites da Colônia, a improbidade administrativa dos
mandatários e a insatisfação dos negociantes de grosso patrimônio eram demandas que chegavam
ao conhecimento da realeza, graças aos muitos manuscritos produzidos pelas autoridades do
ultramar em crítica a vice-reis e Governadores Gerais destacados nas conquistas.
A expulsão do Conde de Óbidos da Índia comprova que, quando as reclamações dos fidalgos
das Colônias não faziam efeito, a ação dos mesmos contra os excessos dos mandatários enviados do
Reino falava por si.239
Apesar de termos percebido certa condescendência de D. João IV diante da usurpação do
vice-reinado de Óbidos na Índia, esta malfadada experiência deixou marcas profundas na
personalidade política deste nobre, ele não conseguiu cumprir a tarefa que lhe fora incumbido, não
foi enérgico na defesa do seu posto, não impôs às autoridades de Goa a titulação e qualidades
nobiliárquicas que trazia do Reino.
O Conde da Ericeira explicou que Óbidos não resistiu à sua deposição para evitar maiores
danos a ordem pública, porém, parece que seus atributos de fidalgo de primeira nobreza não tinham
muito peso dentro do jogo político instalado na Índia desta época, assim como o Marquês de
Montalvão no Brasil de 1640, o Conde Óbidos vice-rei da Índia foi deposto do cargo, preso e
enviado para Lisboa e substituído por uma articulação de poderosos locais, em 1653.
O motivo da expulsão destes dois vice-reis, apesar de separados pelo tempo e pelo espaço,
ressalta a pressão política que os homens da elite colonial exerciam neste período de pósRestauração e as múltiplas possibilidades que as autoridades locais lançavam mão para demonstrar
resistência aos estilos de administração dos governantes enviados do Reino. A notícia de que
Óbidos fora enxotado da Índia se espalhou pelo Reino e chegou ao Brasil, contudo, a sua volta para
Lisboa em 1653 demarca outros desafios, apesar de não ter conseguido sucesso nesta boa
238
Op.cit. CUNHA, Mafalda Soares da; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Vice-reis, governadores e conselheiros de
governo do Estado da Índia (1505-1834). Recrutamento e caracterização social.” p.105. apud: SUBRAHMANYAM,
Sanjay. O Império Asiático Portugues 1500-1700: Uma história política e econômica. Tradução Paulo Jorge Souza
Pinto. Lisboa: Difel, 1995, p. 237.
239
Sobre mais aspectos dos Governadores e Vice Reis do Ultramar ver: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Trajetórias
sociais e governo das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos
século XVII e XVIII.” In: FRAGOSO, João.; BICALHO, Maria Fernanda.; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.) O
Antigo Regime nos Trópicos: A dinamica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). RJ: Civilização Brasileira,
2001, p.249-284.
84
oportunidade de demonstrar seu valor como vice-rei, o Conde de Óbidos continuou a participar da
disputa de poder que se delineava em Portugal.
6- O Conde de Óbidos e o partido do Príncipe inepto.
D. Vasco Mascarenhas volta à Portugal em 1653, em maio deste mesmo ano D. Teodósio
morreu, aos 19 anos de idade, após muitas tentativas de curá-lo de uma misteriosa enfermidade.240
As celebrações das exéquias do Rei D. João IV aconteceram em novembro de 1656 e estas duas
perdas que acossaram a Casa de Bragança modificou a transição do trono e estabeleceu um cenário
de fragilidade dentro do Reino: além de se preocupar com a continuidade da guerra travada com a
Espanha e garantir os territórios conquistados pelo seu marido, a viúva do Rei, D. Luísa de Gusmão,
recebeu a tutela dos seus filhos menores, D. Afonso e D. Pedro e a Regência do Reino e das suas
conquistas até a maioridade do secundogênito, jurado herdeiro legítimo do trono de Portugal.
No Palácio, os dois Infantes demonstravam comportamentos diferenciados: o caçula, D.
Pedro, tinha oito anos quando o Rei D. João IV morreu e ainda não entendia a trama política em que
estava inserido, todavia, seu irmão mais velho e próximo Rei de Portugal, D. Afonso, será motivo
de um estudo mais criterioso a seguir, pois é a partir dele que iremos perceber a inserção do Conde
de Óbidos na configuração política que se desenhava no Reino.
D. Afonso nasceu em Lisboa após a Restauração, no dia 21 de agosto de 1643; foi batizado
pelo seu irmão mais velho, D. Teodósio, em 13 de setembro de 1643 e jurado Príncipe sucessor de
Portugal no dia 22 de outubro de 1653, começou a reinar aos 13 anos, sob a tutela da Rainha Mãe,
no dia 6 de novembro de 1656, até que chegasse sua maioridade. 241
Os cronistas desta época são unânimes ao ressaltar as limitações do segundo filho do
Restaurador, aos quatro anos de idade D. Afonso foi acometido por uma febre que lhe deixou
sequelas profundas, muitas foram as descrições que a doença da infância causou no príncipe, em
todas elas percebemos que a parte direita do seu corpo estava totalmente comprometida: [...] não via
daquelle olho, não ouvia da mesma parte, e com muito pesar movia a mão e o pé direito.242
Padre Antonio Vieira, confessor da Rainha, foi um dos propagadores das debilidades do
Infante D. Afonso, ele oferece riqueza de detalhes quanto à aparência do herdeiro do trono em um
dos seus Sermões: [...] Era manco de um pé, era aleijado de um braço, e naquela parte da cabeça
padecia do mesmo defeito porque a força do mal, de que escapou quase milagrosamente, como
240
D. Teodósio nasceu em Vila Viçosa, no dia 08 de fevereiro de 1634, foi jurado príncipe de Portugal em 28 de janeiro
de 1641, morreu em 15 de maio de 1653. Ver: op. cit.: BARBOSA, D. José. Catálogo Chronologico, Histórico,
Genealógico, e Crítico das Rainhas de Portugal e seus filhos. Lisboa: 1727. P.424.
241
SOUSA, Camillo Aureliano da Silva e. Anti-Catastrophe. História verdadeira da vida e dos successos Del Rey D.
Affonso sexto de Portugal e Algarves. Escripta em lingoa hespanhola por um oficial das tropas de Portugal e na
sua desgraça. Traduzida em portugues, 1791. Porto: Typographia da rua Formosa, 1845.p. 100.
242
BRANCO, Camillo Castello. Vida d´El-Rey D. Affonso VI, escripta no anno de1684. Porto/Braga: Livraria
Internacional. 1684.p. 30.
85
diziam os médicos, o partiu ao meio.243
O desenho político que se configurou após a morte de D. João IV e as providências tomadas
pela Rainha Regente para reorganizar a estrutura da Corte de Portugal foi estudado por Vinicius
Orlando de Carvalho Dantas ao pesquisar o resgate do Valimento régio durante o reinado de D.
Afonso VI. O historiador estudou as ações perpetradas pela Rainha Mãe e pelos seus conselheiros
no sentido de difundir a incapacidade física e mental do futuro Rei de Portugal, cujo
comportamento e companhias pouco adequadas comprometiam sua imagem como monarca.
A Rainha Regente tentava reunir provas para atestar a fragilidade metal e impotência
reprodutora do seu segundo filho, para isso ela mandou chamar
[...] Antonio da Matta, e o cirurgião Francisco Nunes, pessoas que mereciam a confiança
da rainha; e conferindo aquella matéria com as considerações da arte, declararam ambos
por um papel que el-rei era mentecapto e impotente.244
D. Luísa seguia a Regência preocupada com D. Afonso, não só com sua saúde como
também com suas amizades. O maior motivo de sua resistência eram as relações pouco
recomendadas que o jovem Afonso mantinha com Antonio de Conti Vintimiglia, seu amigo pessoal
e protagonista de muitos escândalos. 245
Para além de propagar a debilidade de D. Afonso, a Rainha Mãe tinha vistas em permanecer
no poder, até a maioridade do caçula D. Pedro (que na sua compreensão tinha mais condições de
assumir o Reino). Todavia, outros nobres da Corte vislumbravam no infante em vias de completar a
maioridade, uma oportunidade para tirar proveito das condições deste ser o futuro Rei de Portugal. ‘
As crônicas da época apontam para uma estreita ligação existente entre o Conde de Óbidos e
o Infante D. Afonso.246 Em 07 de abril de 1660, o herdeiro do trono de Portugal foi mudado de
quarto pela Rainha Mãe e encontramos o Conde de Óbidos como um dos cinco fidalgos que
serviam ao príncipe em sua nova câmara no Palácio, outro episódio que marca a intimidade de D.
Vasco Mascarenhas com o Príncipe deu-se quando ele salvou a vida do Infante, em uma cilada que
243
Sermões do Padre Antonio Vieira, Tomo XII, Lisboa, 1856, pg 49.
Após a ascensão de D. Afonso VI ao trono, os papéis que atestavam sua debilidade foram encontrados, por isto [...]
foi chamado ao Paço Francisco Nunes, aonde o matou as pancadas o Marques de Fontes e Antonio da Matta, sabendo
do caso, nunca mais saiu á rua. Ver: BRANCO, Camillo Castello. Vida d´El-Rey D. Affonso VI escripta no anno de
1684. Porto/Braga: Livraria Internacional, 1684. P.24.
245
Idem. P.24. Um estudo historiográfico mais pormenorizado das visões dicotômicas construídas na figura de D.Afonso
VI foi feito por Angela Barreto Xaviel e Pedro Cardim, os autores recorreram a estudos e narrativas de autores do
século XVII, XVIII, XIX e XX e elucidaram como as idéias de imbecilidade e impotência sexual imputadas pelo padre
Antonio Vieira e pelos partidários de D. Luisa de Gusmão à este Rei foi uma manobra política forjada com as palavras e
com a tinta dos seus opositores que viam em D. Pedro I um Rei mais apropriado em condições de gerar um herdeiro
para o Trono de Portugal. Ver: XAVIER, Ângela Barreto.; CARDIM, Pedro. Afonso VI. Lisboa: Circulo de Leitores,
2006. p.9-27.
246
Pedro Cardim, ao estudar a estrutura da casa Real Brigantina e seus órgãos de governo dividiu em dois os ofícios
domésticos do Palácio: os maiores e os menores, dentre os maiores Óbidos era “gentil homem da Câmara”, de acordo
coma análise de Cardim, câmara eram os aposentos do Rei ou do Príncipe, um lugar de intimidade no qual pessoas
selecionadas tinham acesso, os camaristas [...] eram os que frequentemente praticam com os Reis e príncipes, [eram]
cofres de suas payxoens, moderadores de seus afetos. Ver: CARDIM. Pedro. “A Casa Real e os órgãos de Governo no
Portugal da segunda metade de seiscentos”. In: Tempo. Departamento de História UFF. Niteroi: n.13, p.24-25
244
86
quase o matou.247
A fidelidade demonstrada por Óbidos se fez notável nos anos que seguiram a década de
1660, a maioridade do herdeiro do trono já era evidente, ainda que a Rainha Regente demonstrasse
profundo receio em dar a coroa de Portugal a uma figura controversa. Não queremos aqui
aprofundar os motivos que levaram a D. Luísa de Gusmão degredar Antonio de Conti Vintimiglia e
outras estratégias que lançou mão para tentar manter o infante D. Afonso sob controle.
Com esta medida, a Rainha extirpava de Portugal o indesejado mentor intelectual e
companheiro de boemias do Infante, que certamente seria seu favorito quando assumisse o trono.
Antonio de Conti foi degredado do Reino, mas o direito de governar Portugal ainda era garantido ao
filho legítimo do Rei, segundo na cadeia sucessória e com idade suficiente para dirigir o Reino
restaurado por seu pai.248
A partir do degredo de Antonio de Conti, os nobres mais próximos a D. Afonso perceberam
o perigo que a metodologia de silenciamento de opositores utilizada pela Rainha poderia causar a
outros fidalgos partidários da entronização do Príncipe. Saliente-se que a aposta em legitimar a
maioridade de D. Afonso e suas condições de assumir o reino de Portugal era fruto de
descontentamentos anteriores, alguns nobres de grande influência política no Reino desde a época
da Restauração estranhavam certas medidas da Rainha Regente:
[...] conjurou-se com o Conde de Authoguia e com Sebastião Cesar, contra a rainha à
saúde d´el-rei: ambos estes eram queixosos, o primeiro por lhe tirar a mesma rainha o
governo das armas do Alentejo e o segundo pela longa prisão em que esteve por traidor
infame.
O líder da dita conjuração era D. Luiz de Vasconcelos e Sousa, portador do título de terceiro
Conde de Castelo Melhor e articulador da entronização do Infante. Os movimentos de imposição da
maioridade de D. Afonso VI, em 1662, foi chamado de Golpe de Alcântara pela historiografia de
Portugal e podem ser sistematizados em duas fases: a primeira é a viagem que D. Afonso fez em
companhia do Conde de Autoguia e do Conde de Castelo Melhor, até a Quinta de Alcântara,
propriedade da Coroa distante de Lisboa alguns quilômetros. Afastar o futuro Rei da cidade de
Lisboa e instalá-lo em uma propriedade da Coroa distante de Lisboa era uma tentativa de isolar
politicamente a Rainha e reforçar a maioridade de D. Afonso, legítimo Rei de Portugal.
O Conde de Autoguia usou da sua influência para convencer os outros nobres da Corte
247
[...] D’ estes excessos resultou que apeando-se El-rei por cima do Convento do Rato, já noite, ordenou o monteiro
mor e ao Conde de Óbidos, que fossem esperar à Cotovia; e indo só com João de Conti, já perto do coche que o vinha
buscar, investiu com três homens que vinham com outro de nação francesa, chamado David Godefroi: fugiu João de
Conti, e El-rei caiu em um valado, onde no chão lhe deram uma estocada: gritou que era El-rei; fugiram os homens e
levaram a espada que era d’el-rei; acudiu o monteiro mor e o Conde de Óbidos, recolhendo-se El-rei ao Paço, e
chamados os cirurgiões, depois de curado, se deu conta a Rainha que com grande sobressalto veio ver El-rei ao seu
quarto.op. cit. BRANCO, Camillo Castello. Vida d´El-Rey D. Affonso VI escripta no anno de 1684. Porto/Braga:
Livraria Internacional, 1684. P.30
248
Op. Cit. MENEZES, D. Luiz de (Conde da Ericeria). História de Portugal Restaurado. Parte II, Livro VII, p. 3
87
quanto a importância de registrar presença em Alcântara e demonstrar fidelidade ao Infante em
condições de governar o Reino; ao saber deste movimento, a Rainha Mãe ordenou que o Tenente de
Mestre de Campo Manuel Pacheco de Melo convocasse todos os nobres do Reino até o Palácio de
Lisboa, contudo, a reação da Rainha não surtiu efeito: o Mestre de Campo foi detido pelo Conde de
Sarzedas e enviado a Alcântara para se juntar aos que apoiavam a maioridade do Infante. 249
A segunda fase do golpe caracterizou-se pela solene reunião de nobres em Alcântara que
legitimou a aliança e apoio à maioridade de D. Afonso VI. Embora D. Luisa de Gusmão tivesse
consigo muitos nobres portugueses que demonstravam resistência em dar o trono de Portugal ao
controverso D. Afonso, ela se viu obrigada a declarar seu filho como Rei de Portugal e passou-lhe
os selos reais em uma cerimônia discreta, diante da maioria dos nobres que estavam do lado de D.
Afonso VI e convencidos das condições que o monarca legítimo tinha para assumir o Reino.
Para sensibilizar a causa de D. Afonso entre os varões das ilustres famílias de Portugal, foi
necessária uma criteriosa articulação política costurada pelos que eram próximos ao infante, dentre
o quais, o Conde de Óbidos assumiu um papel especial: tinha aproximação com o astuto terceiro
Conde de Castelo Melhor e trânsito político favorável entre os nobres da Corte que naquele
momento assumiam altos cargos no Reino e outrora foram seus companheiros de guerra no alémmar.250
Após o juramento sobre os Evangelhos, conduzido pela Igreja Católica e diante da Corte
Portuguesa e da Rainha Mãe, o sexto Afonso eleva-se ao trono de Portugal. O novo Rei nomeou o
grande articulador político de sua ascensão, o terceiro Conde de Castelo Melhor, como Escrivão da
Puridade dando-lhe poderes extraordinários com seu favoritismo.251
D. Afonso VI tratou de afastar todos aqueles que demonstravam desconfiança para com sua
pessoa ou aos seus aproximados políticos e constituiu um novo Conselho de Estado. De acordo com
o Conde da Ericeira, D. João IV demorou alguns anos para constituir completamente o seu
Conselho, contudo, D. Afonso VI, em apenas uma noite, nomeou homens de sua confiança como
Conselheiros de Estado, eram eles: o Conde de Óbidos; D. Thomaz de Noronha; O Conde dos
Arcos; o Conde de Val de Reis, o Marques de Niza e o terceiro Conde de Castelo Melhor.252
Notemos que mais uma vez o sujeito chave deste capítulo encontra-se em uma posição
privilegiada na década de 1660. Óbidos ocupou nesta ocasião uma função almejada por qualquer
nobre português do século XVII, graças à sua vinculação com o Conde de Castelo Melhor e com o
249
Op.cit. BRANCO, Camillo Castello. Vida d´El-Rey D. Affonso VI escripta no anno de 1684. Porto/Braga: Livraria
Internacional, 1684. P.35
250
MELLO. D. Francisco Manuel de. Epanaphoras de varia história portuguesa a El Rey Nosso Senhor D. Affonso
VI em cinco relações de successos pertencentes a este Reino. Que conthém negócios públicos, políticos, trágicos,
amorosos, bélicos, trinfantes. Lisboa: Offcina de Henriques Vallente de Oliveira. Impressor Del Rey. 1660.
251
Op. cit. BRANCO, Camillo Castello. Vida d´El-Rey D. Affonso VI escripta no anno de 1684, p. 93.
252
Op. Cit. MENEZES, D. Luiz de (Conde da Ericeria). História de Portugal Restaurado. Vol IV, p.73
88
Rei D. Afonso VI, ele era Conselheiro de Estado e especialista em assuntos de guerra no Reino e no
Ultramar e pode ser por esta qualidade que os serviços de Óbidos se fizeram mais uma vez
necessários na América.
Óbidos foi destacado para mais uma vez cruzar o Atlântico e aportar na Bahia.
Acompanhemos a seguir o modo de governar de D. Vasco Mascarenhas no Brasil, durante a
segunda oportunidade que teve para ostentar o título de vice-rei e terceira passagem pelo Brasil,
assim reuniremos mais instrumentos para compreender a amplitude dos seus poderes e o apoio que
tinha das autoridades reinóis em contraste com as oposições e críticas que enfrentou enquanto
esteve na Bahia na década de 1660.
7- O Conde, o Rei e seu Valido
Respaldado politicamente pelo Rei D. Afonso VI e pelo seu favorito, o Conde de Óbidos
passou para o Brasil, com o título de segundo vice-rei e Governador Geral de Mar e Terra do Estado
do Brasil, sucedendo Francisco Barreto (1657-1663).
A política de favoritismo ou valimento fora executada por muitos dos Reis europeus do
século XVII e ganhou diferentes nomenclaturas nos estados monárquicos. Na França de Luiz XIV,
existia o cardeal Richelieu, era ele quem resguardava o esplendor do Rei Sol e operava a sua
governabilidade executando a política do ministeriat Francês; na Inglaterra, o Duque de Bukinghan
era o favorito do Rei Carlos I; o Conde Duque de Olivares era o valido do Rei espanhol Felipe IV; o
padre Antonio Vieira era um dos favoritos do Rei D. João IV e compôs a “Junta Noturna” da Rainha
Regente, D. Luisa de Gusmão. Por fim, o grande articulador da coroação do Rei D. Afonso VI, o
terceiro Conde de Castelo Melhor, reinaugurou o período do valimento régio no período dos
Bragança.253
Com D. Afonso VI entronado, D. Luiz de Vasconcelos e Souza, Conde de Castelo Melhor,
tornou-se a figura de principal destaque em todo o Reino, não somente por causa nas suas vitórias
nas batalhas de Ameixial e Montes Claros, mas também porque era o Valido do Rei, atribuição
deveras importante e perigosa, pois o Valido tinha o amor e o ódio caminhando lado a lado em sua
vida política.
O motivo destes sentimentos tão díspares encontra-se na interferência constrangedora que a
política de favoritismo régio executava no sistema polissinodal, mantido pelas dinastias Ibéricas
desde antes da ascensão Brigantina. No tempo dos Filipes, os poderes do monarca estava distribuído
253
Sobre a política de Valimento ou favoritismo régio empregado pelas sociedades do Antigo Regime, esta dissertação
ocupa-se especificamente com privilégio do 3º Conde de Castelo Melhor: DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O
Conde de Castelo Melhor: Valimento e Razões de Estado no Portugal seiscentista (1640-1667). Dissertação de
mestrado. UFF, RJ, 2009. Sobre os Validos e a tradição do valimento na Europa, ver: THOMPSON, I. A. A. “El
contexto institucional de la aparición del ministro-favorito.” In: ELLIOTT, John & BROCKLISS, Laurence. El mundo
de los validos. Madrid: Taurus, 1999.
89
em vários Conselhos, Tribunais e outras instâncias consultivas que respaldavam as decisões régias,
em áreas especificas do governo e esta tradição foi mantida por D. João IV.254
Desta forma, quando um Soberano elegia um súdito como seu principal representante
político e jurídico, o raio de ação e decisão dos Conselhos ficava limitado à vontade do Valido, seus
poderes extraordinários geravam dissenso entre Conselheiros e representantes deste sistema
administrativo, composto por múltiplos sínodos.
O controle do Valido era tamanho que ele tinha a prerrogativa de interferir diretamente na
economia de mercês e formar sua própria rede clientelar, colocando homens de sua confiança no
exercício das funções mais importantes no Reino e no Ultramar. A centralização do processo
decisório e monopólio dos mecanismos de distribuição de mercês régias submetidos às decisões do
Valido, fez despertar a atenção de alguns fidalgos desgostosos com tal merecimento e ocasionou
sérios conflitos, dentro e fora do Reino.
Acompanhemos, a seguir um trecho do Regimento que levou o Conde de Castelo Melhor
como Escrivão da Puridade do Rei D. Afonso VI e os poderes extraordinários que lhes foram
conferidos:
[...] Todos os Regimentos, Ordens, e Cartas que se houverem de dar, e escrever aos Vice
Reis, e Governadores das Províncias e Praças Ultramarinas, para o bom governo dellas,
na paz, ou na guerra, assim no que tocas a meus Vassalos, como aos estrangeiros, mandar
Exércitos, ou Armadas, assim para os mares do Reino, como de fora: e finalmente tudo que
pertencer ao Estado de coroa, se expedirá por sua ordem o officio. Correrão por sua mão
todos os Provimentos de Vice-Reis, e governadores, assim das Províncias e Praças do reino
como do Ultramar, Generaes das Armadas. Almirantes, e todos os oficiaes grandes de Paz
e guerra, pelos quaes com superioridade se administra o governo público, como são os
Presidentes dos Tribunaes, Conselheiros, Secretários e Escrivães delles, desembargadores
e Ministros da camara desta Cidade, e quaesquer outros de igual poder e jurisdicção,
criações de Títulos, nomeações de Bispados, e Prelazias, Officiaes da casa Real, lugares do
Santo Offício, Reitor, Cadeiras e despachos semelhantes da Universidade de Coimbra, e
qualquer dependência das outras sobreditas [...] tomará os preitos e homenagens, que se
me fizerem, de qualquer Governo, Fortaleza ou Capitania, assim do Reino como
Ultramarinos[...]255
Ângela Barreto Xavier afirma que o resgate da política de valimento foi mais uma forma de
burlar o modelo polissinodal da Monarquia Portuguesa no intuito de garantir a governabilidade de
D. Afonso VI. Esta monarquia, anteriormente respaldada pelas decisões provenientes de um amplo
sistema de consultas aos Tribunais e Conselhos adequados, tornou-se, com resgate do favoritismo
régio, um [...] modelo autocrático, centrado num pequeno núcleo que envolvia o rei, agora com
254
DANTAS, Vinicius Orlando de Carvalho. O Conde de Castelo Melhor: valimento e razões de Estado no Portugal
seiscentista (1640-1667), p.1. Um estudo recente sobre as guerras de Restauração no período de D. Afonso foi realizada
por COSTA, Fernando D. A Guerra da Restauração. (1641-1668), Lisboa: Livros Horizonte 2004. Ver também a obra de
Fernando Palha sobre as razões do final do Valimento régio e reinado de D. Afonso VI em: PALHA, Fernando. O
Conde de Castelo Melhor no exílio. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883, p. 3-14.
255
Ver o Regimento do Escrivão da Puridade em : SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronologica da
legislação portuguesa. (1657-1674). Lisboa: Imprenssa de J.J.A. Silva, 1856. p 38-84
90
poderes que esvaziavam os corpos tradicionais da sociedade política.256
D. Afonso VI, valeu-se da noção de razão de estado para nomear o seu privado e assim
manter a sua figura longe dos desgastes, Castelo Melhor estava assim encarregado de conduzir o
governo de Portugal, ora enfrentando os antigos partidários da Rainha Regente, ora mediando
conflitos ente as várias instâncias políticas que compunham o Reino e suas conquistas. No século
XVII, a chamada Razão de Estado se tornou argumento para todas as medidas extraordinárias
tomadas pelas monarquias ibéricas, Carvalho Dantas fez um inventário minucioso acerca da
historiografia que trabalha com esta temática e seus estudos balizam esta abordagem.
O autor identificou a origem desta noção em antigos conceitos de necessitas ou ratio status,
advindas das tradições jurídicas romanas.257 Portanto, não se pode pensar a política experimentada
no Antigo Regime de acordo com parâmetros contemporâneos, nesta época, o político estava
envolvido numa cadeia de hierarquias e códigos de conduta, respaldados em conceitos morais que
organizavam o mundo e de acordo com os ditames da Igreja e da natureza das coisas.
Por isso, o Rei D. Afonso VI era a cabeça do Reino e como uma figura legitimada
socialmente, podia agir com verdadeira razão de estado, mesmo que sua demência fosse difundida
publicamente, tinha ele um Valido que conduzia o Reino com a sua permissão e garantia a sua
legitimidade como sucessor do trono de Portugal, lugar que lhe era de direito.
Contudo, a vontade do Valido estava disfarçada de vontade do Rei e a partir da leitura do
Regimento do Escrivão da Puridade percebe-se que os privilégios adquiridos pelo favoritismo régio
provocaram crítica de nobres que também disputavam as mercês régias e demonstravam
estranhamento diante das mudanças que o terceiro Conde de Castelo Melhor estava operando no
governo de Portugal e das conquistas.
O envio de D. Vasco Mascarenhas para o Brasil precisa ser compreendido a partir desta
situação política vivenciada no Reino. Óbidos foi eleito presidente do Senado da Câmara de Lisboa
quando os primeiros movimentos de transição do trono foram arquitetados, também foi auxiliar do
terceiro Conde de Castelo Melhor no convencimento dos outros fidalgos da Corte para adesão ao
reinado de D. Afonso VI e, sendo nomeado pelo novo soberano para compor o seu Conselho de
Estado, Óbidos se juntava ao seleto grupo de autoridades do Reino que já haviam passado pelo
Brasil assumindo funções de governo, como o Conde Autoguia e o Marquês de Niza.
O vice-reinado de D. Vasco Mascarenhas no Brasil (1663-1667) coincide, pois, com o
período de valimento do terceiro Conde de Castelo Melhor, foi no reinado de D. Afonso VI que se
resgatou estas duas características marcantes do governo Filipino e foi durante este espaço de tempo
256
Idem, apud: XAVIER, Angela Barreto. “El Rei aonde pode, & não aonde quer” Razões da política no Portugal
seiscentista. Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 147
257
idem
91
que a administração do Brasil sofreu mudanças sensíveis, especialmente no que tangia a outorga e
negação de mercês e ofícios régios, gerando um conjunto de queixas e protestos dos fidalgos
destacados na Bahia.
Os poderes extraordinários que o Valido do Rei acumulava parecem servir de inspiração a D.
Vasco Mascarenhas, muitas das suas práticas motivaram críticas das autoridades da Bahia, as
limitações físicas e mentais do Rei D. Afonso VI eram conhecidas pelas autoridades destacadas em
Salvador, especialmente por via do Padre Antônio Vieira, os fidalgos de Salvador também sabiam
que Óbidos esteve entre os nobres da Corte que ajudaram o Príncipe a assumir o trono, durante
Golpe que expulsou D. Luísa de Gusmão do comando político do Reino e a exilou em um convento
de Carmelitas.
Vejamos, por fim, um trecho da Carta patente de vice-rei que D. Vasco Mascarenhas recebeu
de D. Afonso VI:
[...] lhe dou todo poder e alçada sobre todos os Generaes, Mestres de Campo, Capitaens
das ditas Fortalezas e pessoas que nellas estiverem; e que foram nas ditas Armadas &
Capitaens das que la andarem & e forem aquelle Estado & sobre todos os fidalgos e
quaesquer qualidade, estado e condiçam que sejam da qual em todos os casos[...] 258
Portanto, não podemos perder de vista que o envio de D. Vasco Mascarenhas como vice-rei
do Estado do Brasil significava uma ação direta do Rei e do Conde de Castelo Melhor para
controlar uma praça tão importante para o Reino e repleta de pessoas da elite local que mantinham
vínculos com a Rainha Mãe destituída. A figura de Óbidos demarcava politicamente a ação de
Afonso VI e do seu Escrivão da Puridade na América, seja porque ele já havia passado por estas
partes em finais da década de 1630, seja porque seu estilo de Governo parecia o mais apropriado
para conduzir uma Colônia importante como o Brasil.259
258
Op.cit. BNRJ, Seção de Manuscritos, Patente que se passou para o vice-rei Conde de Óbidos.
Outras interpretações sobre o reinado de D. Afonso VI e o período de valimento régio, especialmente após a
ascensão de D. Pedro I, pode ser encontrado em: LACERDA, Fernando Correa de. Catastrophe de Portugal na
deposição Del Rei D. Affonso sexto, e subrogação do Principe D. Pedro o único, justificada nas calamidades
publicas. Escripta para justificação dos Portugues por Leandro Dórea Carceres e Faria. Lisboa: 1669
259
92
CAPÍTULO III
1- O segundo vice-rei do Brasil
[...] Quarta-feira, 28 de junho de 1662, se declarou a eleição do Conde de Óbidos e deuse-lhe o tal governo com este título contendo-se ele no tempo que a rainha régia só com o
de governador como tivera todos os seus antecessores naquela conquista. Parece que lhe
satisfizeram o ser lançado da Índia onde estava cendo Vice Rei. Antes de entrar el Rei no
governo o favorecia muito (por ser gentil homem na Câmara) na pretensão. Agora lho
despachou com mais vantagens.260
O trecho acima assinala a decisão tomada pelo Conselho de Estado de D. Afonso VI ao
nomear o Conde de Óbidos no cargo de segundo vice-rei do Brasil. Todo esforço reunido no
capítulo anterior teve o objetivo de mapear a trajetória política de D. Vasco Mascarenhas e as
circunstancias que motivaram a sua inserção no quadro de Governadores e vice-reis que
administraram a colônia no século XVII.
O Conde de Óbidos foi um funcionário régio de reconhecida experiência, as atividades que
cumpriu e as dificuldades políticas que enfrentou em Goa, demonstram que o seu modo de governar
nem sempre era bem aceito pelos poderosos do Ultramar subalternos ao seu comando. Apesar de ter
sido lançado da Índia, a Casa Real Brigantina continuou utilizando os seus serviços de
administrador e o com advento do Rei D. Afonso VI e do terceiro Conde de Castelo Melhor seus
préstimos novamente foram solicitados.
Neste capítulo, aborda-se com mais profundidade o conflito existente entre o Conde vice-rei
e Lourenço de Brito Correa. As origens desta contenda e seus desdobramentos serão analisados com
base nas fontes disponíveis, especialmente as Consultas do Conselho Ultramarino e
correspondências enviadas e recebidas pelo Conde de Óbidos, recorre-se também à pesquisas que se
ocuparam em estudar alguns dos envolvidos neste suposto “motim” que resultou na prisão e envio
de Lourenço rumo à Lisboa, acompanhado por seu filho, Lourenço de Brito Figueiredo, e por outros
homens de reconhecida importância na cidade de Salvador.
Já sabemos que Óbidos e Lourenço eram homens de destaque e reconhecimento entre a
população da Bahia Seiscentista, ambos pertenciam a Ordens Militares e serviram em postos de
comando na América desde o período Filipino. Deve-se levar em conta que em 1663, o Conde de
Óbidos tinha 60 anos de idade, pouco mais ou menos e Lourenço já estava na casa dos 70 anos.
Na época em que D. Vasco Mascarenhas esteve no Brasil pela primeira vez ainda não
ostentava o título de Conde, viera para a capitania da Bahia a fim de cumprir atividades de comando
militar no governo de Diogo Luís de Oliveira e, no ano seguinte, voltou ao Reino para receber a
primogenitura e o brasão de suas armas pelas mãos da dinastia Habsburgo.
Vimos também que D. Vasco Mascarenhas passou pelo Brasil, pela segunda vez, no ano de
260
Op. cit. CALMON, Pedro, História do Brasil. Vol.3 (sec XVII-XVIII), 1971. p739.
93
1639; neste período ele lutou nas frentes de batalha lideradas pelo Conde da Torre com vistas a
expulsar os holandeses do Nordeste do Brasil, todavia, sabemos da sua partida para Lisboa, em
1640, sem avisar ao Conde da Torre e deixando de lado suas funções de General de Artilharia para
ajuntar-se ao partido do Duque de Bragança.
Todavia, o ano de 1663 foi decisivo na carreira política do Conde de Óbidos, seu
reconhecimento entre os nobres da Corte de Lisboa é reflexo das suas opções políticas, ele foi um
dos nobres de Portugal que apostaram no reconhecimento da maioridade de D. Afonso VI e nos
poderes do Conde de Castelo Melhor no Valimento Régio, mantendo-se unido ao comando político
do Reino até a substituição do monarca. Óbidos compunha o Conselho de Estado e o Conselho de
Guerra do Reino de Portugal, além de ser comendador de tradicionais ordens militares que o
distinguia entre outros homens do Reino.
No primeiro capítulo, tivemos a oportunidade de apresentar a trajetória de Lourenço de Brito
Correa, uma figura influente na principal conquista portuguesa das Américas e que acompanhou as
passagens do Conde de Óbidos pelo Brasil. Em 1663, a posição política que este fidalgo da Bahia
ocupava reunia em seu entorno funcionários da administração colonial com grande peso político
como os magistrados da Relação, religiosos do Mosteiro de São Bento e capitães de Infantaria
instalados na cidade de Salvador.
Lourenço de Brito Correa estava encarregado das finanças da Coroa e cabia a ele o controle
dos gastos, provisão do abastecimento e administração do tesouro do Estado do Brasil, além de ser
um rico fazendeiro do Recôncavo da Bahia oriundo da família Caramuru, ele ostentava sua
passagem na governança provisória do Brasil após ter participado da trama que usurpou o primeiro
vice-rei do Brasil do cargo que ocupava.
O Conde de Óbidos, por sua vez, representava a figura do Rei D. Afonso VI na América e
tinha do Conde de Castelo Melhor todas as licenças para governar o Brasil com poderes de vice-rei
e Governador Geral. Apesar de estar subalterno às ordens Óbidos, Lourenço de Brito Correa era um
antigo serventuário da Coroa Portuguesa dentro do espaço colonial e tinha em suas mãos um cargo
estratégico que o obrigava a fiscalizar as ações administrativas do vice-rei em exercício.
Da mesma forma que o Conde de Óbidos estava ciente que poderia ser expulso novamente
do seu cargo de vice-rei, caso não tivesse cuidado em conter seus opositores ou demonstrasse pouca
afabilidade e diálogo com as autoridades constituídas, Lourenço de Brito Correa também sabia que
as suas ações como Provedor Mor da Fazenda Real deveriam ser voltadas para coibir descaminhos e
concorrer para a boa administração da Colônia, portanto, Lourenço conhecia os limites do cargo que
ocupava e ressaltava em suas cartas o zelo que sempre manifestou para com as finanças da Coroa,
assim ele legitimava os seus argumentos contra o modo como o vice-rei do Brasil vinha conduzindo
seu governo e o Conselho Ultramarino fazia coro às suas críticas.
94
Deve-se levar em consideração que a governabilidade do Conde de Óbidos no Brasil
dependia da constituição de laços afetivos e relações políticas amistosas no espaço colonial, não só
com Lourenço de Brito Correa, mas também com outros fidalgos que ocupavam funções na Relação
da Bahia, Senado da Câmara de Vereadores e na Santa Casa de Misericórdia da Bahia, também era
necessário dar a atenção devida para todo o clero erradicado no Brasil e comandantes militares
dispostos nos muitos Terços de Infantaria existentes.
Não podemos perder de vista que o Conde de Óbidos e Lourenço de Brito Correa
manifestavam vinculações políticas opostas dentro do jogo de interesses que se disputava em
Portugal entre os anos que seguiram a ascensão de D. Afonso VI ao trono de Portugal, esta oposição
parece ter influenciado diretamente nos conflitos engendrados por estes sujeitos dentro do espaço
colonial. Como foi ressaltado no primeiro capítulo, Lourenço demonstrava aproximação com a
Rainha Mãe e fora agraciado muitas vezes durante a Regência, especialmente nos primeiros anos da
década de 1660, época que pedidos de mercê em forma de terras, hábitos e cargos foram feitos por
Lourenço e outorgados pela Regente.
Vimos assim que Conde de Óbidos estava em uma direção política oposta à anterior Rainha
Regente, foi um dos articuladores do golpe que auxiliou a elevação de D. Afonso VI e do terceiro
Conde de Castelo Melhor no comando político de Portugal em 1662, esta estreita relação com o
monarca e seu Valido podem auxiliar na compreensão do modo de governar deste segundo vice-rei
do Brasil, em contraste com as críticas formuladas pelas autoridades da Bahia e do Conselho
Ultramarino diante de suas pretensões.
Fernando Bouza Álvares estudou os “Vice reinados de Príncipes no Portugal dos Filipes”, e
importância estratégica deste instituto político acionado no período da União Ibérica para superar os
momentos em que a soberania e a governabilidade das conquistas ficavam fragilizadas.261 Passados
mais de vinte anos que este cargo não era outorgado, um segundo vice-rei é novamente nomeado
para governar a América.
Revigorar o vice-reinado no Brasil era uma medida administrativa tomada de acordo com a
conjuntura política que a Colônia atravessava, normas confusas e profusas ocasionavam constantes
conflitos de jurisdição, especialmente num Brasil dividido em dois centros de poder: Salvador e Rio
de Janeiro. Redefinir os espaços de ação dos governadores das Capitanias e reduzir o alcance dos
seus poderes não foi tarefa fácil para aquele que no Brasil tinha a maior titulação, depois do Rei.
261
O autor ressaltou como o chamado “virreinado de sangre” foi instrumento de incorporação de Portugal à monarquia
Hispânica, especialmente após as insatisfações oriundas das Cortes de Tomar (1581). Ver: ALVAREZ, Fernando Bouza.
“A ‘saudade’ dos reinos e a ‘semelhança do rei’. Os vice reinados de príncipes no Portugal dos Filipes”.In: Portugal no
tempo dos Filipes. Política, Cultura, representações (1580-1668). Cosmo, Lisboa: 2000, p.109-126. Saliente-se
também que a importância política do Vice Rei refletia-se em custos com a criadagem e parentela que acompanhava o
titular do cargo, além de outras prerrogativas extraordinárias. Ao fazer recair o Vice reinado do Brasil em um nobre a
quem chamava de “mui amado sobrinho”, o Rei D. Afonso VI coloca o Conde de Óbidos no topo das relações políticas
e administrativas do Brasil dando-lhe o mesmo Regimento que levou o primeiro Vice Rei, Marquês de Montalvão.
95
Muito menos agradáveis foram as mudanças radicais a que tiveram que se submeter os funcionários
de carreira administrativa instalados durante décadas na Bahia e acostumados com as tradições que
ajudaram a forjar dentro do espaço colonial.262
Para além de iniciar um período de reestruturação da administração da Colônia e
centralização do poder na figura do vice-rei, não podemos perder de vista que o Conde de Óbidos
cuidou em averiguar os fidalgos da Bahia que foram agraciados pela anterior Rainha Regente e que
na Bahia estavam a ocupar cargos estratégicos, este era um indício de vinculação política oposta D.
Afonso VI e contrária aos seus partidários.
A notória ligação de Lourenço de Brito Correa com a Rainha D. Luísa de Gusmão e seu
histórico de conflitos com outros Governadores Gerais e vice-reis do Brasil vistos no primeiro
capítulo são elementos importantes para compreender as contendas vivenciadas na Bahia a partir do
advento do segundo vice-rei do Brasil e serão discutidas a seguir.
2- Desafios de um vice-rei que já foi usurpado
A relação política de Lourenço de Brito Correa e o antecessor do Conde de Óbidos, o
Governador Francisco Barreto, parece ter sido cooperativa entre 30 de junho de 1657 a 23 de junho
de 1663, os dois fidalgos serviram no Brasil durante todo o período de Regência de D. Luísa de
Gusmão. No plano fiscal e econômico, Barreto e Brito enfrentaram jesuítas proprietários melhores
Engenhos de cana-de-açúcar e maiores fazendas de gado da Capitania da Bahia e, apesar de
acumular muito lucro, não pagavam os dízimos à Fazenda Real durante muitos anos.263
A Provedoria mor da Fazenda Real do Brasil também amargava a redução da produção do
açúcar no recôncavo devido a concorrência da WIC e suplicavam ao monarca a emissão de recursos
para conservar os Engenhos de cana existentes.264 No plano administrativo, Francisco Barreto
também enfrentou problemas com André Vidal de Negreiros, este Governador da Capitania de
Pernambuco foi severamente punido por sua insubordinação265 e tal atitude foi rememorada pelo
Conde de Óbidos, anos depois, para justificar a prisão e embarque dos seus opositores para o Reino.
262
Alguns aspectos sobre os conflitos de jurisdição no espaço colonial e a variedade de leis que coexistiam foram
estudadas por WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José C. de M. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1994, p. 299-312.
263
Ver: AHU, LF, BA, Cx. 16, Doc,1797, 02/06/1661.
264
Existiam no Recôncavo da Bahia muitos Engenhos que estavam “desfabricados” na época que Lourenço era
Provedor Mor da Fazenda. Em 1662, ele citou: quatro Engenhos reais de água no Rio Jaguaripe, 2 Engenhos Reais de
água e dois trapiches na Ilha de Taparica, um Engenho Real em Peravivia, um Engenho em Cachoeira e outro em
Capanema, ambos às margens do Paraguassú, cinco trapiches em Serezipe do Conde, duas moendas e um Engenho em
Paramirim, um Engenho Real de água em Passé e um trapiche na Ilha de Maré, dois trapiches em Matoim e Praia
Grande, dois Engenhos reais em Cotegipe. Os Engenhos que se construíram no seu tempo foram: uma moendinha em
Taparica, um trapiche em Peruasu, duas moendinhas “em o Matto”, duas moendas e um trapiche em Serezipe do Conde,
duas moendas “em os Mattos” e mais duas moendas “nos Mattos de Garagai e Peramirim. Ver: AHU, LF, BA Cx. 16,
Doc. 1862-1863. 23/05/1662.
265
AHU, LF, BA, Cx. 15, Doc. 1735, 17/02/1659.
96
A substituição de Francisco Barreto por um vice-rei demarca o final da divisão do Brasil em
duas zonas de poder. Durante a vigência das repartições Norte e Sul, com sede na Bahia e no Rio de
Janeiro, respectivamente, foram produzidos regimentos específicos para organizar os cargos e
serventias em cada uma dos centros administrativos. De acordo com Graça Salgado, somente o
cargo de ouvidor da Repartição Sul recebeu regimentos em 1619, 1626 e 1630 com mudanças
pouco sensíveis de um para o outro. A autora também ressaltou centralização do poder
administrativo na pessoa do Conde vice-rei e retorno da sede de governo à Bahia, todas estas
mudanças implicaram na extinção dos regimentos da Repartição Sul e, consequentemente, dos
serviços que se prestavam nestas partes.266
Vemos assim que o Brasil encontrado pelo segundo vice-rei estava repleto de desafios e a
sua presença parecia ser vista com otimismo, pelo menos nas palavras dos moradores da Bahia: [...]
Em os vinte e seis dias do mês de junho do presente ano de 1663, estavam reunidos no templo da Sé
os [...] Juízes, Vereador e Procurador da Câmara, Juiz do Povo e Místeres, Ministros e Officiaes de
Guerra, Fazenda e Justiça, Mestres de campo e mais Ministros da Relação, Provedor Mor da
Fazenda e mais povo desta cidade. 267
O motivo da reunião de pessoas importantes na catedral da Sé era para referendar o ato de
posse de D. Vasco Mascarenhas, substituto de Francisco Barreto, no Governo Geral do Brasil. O
Rei D. Afonso VI outorgou ao [...] Exmo. Conde de Óbidos, seu camarista, do seu Conselho de
Estado, o cargo de [...] Vice Rey Capitam Geral de Mar e Terra de todo o Estado do Brasil. 268
Bernardo Vieira Ravasco269, irmão do padre Antonio Vieira, foi quem homologou a posse.
[...] Umildes e prostados aos pées de de V. Mgd. Rendemos a VM as grassas da mercê que
fes a este estado en nos mandar governar pello Conde de Obidos de cuja christandade,
juízo, limpeza e benevolência esperamos obre no serviço de VM e beneficio destes vassalos,
com grandes asertos pois os breves dias de seu governo nolo a seguram, guarde Deos VM
para sempre nos emparar e fazer mercês, em Camera da Bahia aos 23 de agosto de
270
1663.
O trecho acima foi escrito dois meses depois de iniciado o segundo vice-reinado no Brasil,
três Vereadores e o Procurador da Bahia agradeciam ao Rei D. Afonso VI pelo envio de um novo
governante. São quatro os pontos destacados pelos fidalgos da Bahia satisfeitos com a chegada de
266
SALGADO, Graça (coord). Fiscais e Meirinhos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 254-258.
Op.cit. SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira da. Memórias históricas e políticas da Província da Bahia. Tomo II,
1835, p. 121.
268
idem
269
Bernardo Vieira Ravasco é uma figura essencial para a compreensão do funcionamento da administração ultramarina
no Brasil pelo seu estratégico posto de Secretário Geral do Estado do Brasil, maiores detalhes sobre este Sujeito e as
suas relações com o motim que supostamente derrubaria o Conde de Óbidos foi estudado por PUNTONI, Pedro.
“BERNARDO VIEIRA RAVASCO, SECRETÁRIO DO ESTADO DO BRASIL: PODER E ELITES NA BAHIA DO
SÉCULO XVII.” In: Novos Estudos. CEBRAP. N.° 68, 2004, pp. 107-126.
270
AHU, LF, BA. Cx.17, Doc.1947.
267
97
D. Vasco Mascarenhas: ser cristão velho e ter as partes genealógicas congruentes aos critérios de
limpeza de sangue constituíam-se pré-requisitos básicos para que a gestão do vice-rei fosse bem
aceita; juízo e benevolência eram outros atributos decisivos para o sucesso da governança de um
mandatário enviado do Reino e este conjunto de comportamentos e atributos faziam parte dos
acertos esperados pela elite de Salvador.
Apesar de ser uma declaração pública de afeto e confiança no trabalho recentemente
iniciado por Óbidos, a Câmara da Bahia tinha o costume de emitir várias cartas para as instâncias
Ultramarinas no intuito de agradecer à realeza o envio de governadores para as terras do Brasil.
Haviam feito isso também na ocasião da chegada de Francisco Barreto,271 talvez para demonstrar
tacitamente à realeza que, mesmo agradecendo, a elite local estava em constante vigilância no
trabalho que estava sendo desenvolvido pelos administradores enviados do Reino e, por outro lado,
buscavam uma aproximação com o recém-nomeado, fazendo um elogio público à sua pessoa e
dando visibilidade positiva ao seu governo na Metrópole.
Conforme analisamos no segundo capítulo, vice-rei seria a única titulação que o Conde de
Óbidos poderia receber fora de Portugal, pois já havia recebido este título na Índia e, ainda que
tivesse sido usurpado do cargo, ele não poderia exercer funções com menos importância política,
sabemos também que a vinda de D. Vasco Mascarenhas com esta mercê extraordinária foi uma ação
estratégica do Rei e seu Valido para manter o Brasil sob controle a partir de um comandante
conhecido pela população local e fiel ao reinado em vigor.
Foi durante as festas juninas a posse de Óbidos e ele administrou a Colônia até as
celebrações de Santo Antônio de 1667.272 A nomeação de Óbidos ocorre semanas após a ascensão
de D. Afonso no trono Português e se levarmos em conta a sua ligação com o comando político do
Reino teremos mais subsídios pra compreender o papel que ele exerceu na administração da
Colônia e os desafios que encontrou neste período.
Para percebermos a amplitude dos poderes de Óbidos enquanto esteve no vice-reinado do
Brasil é preciso analisar alguns registros deixados por ele e por outras autoridades da Bahia, em
contraste com as comunicações enviadas e recebidas pelo Conselho Ultramarino, corpo consultivo
que estranhava sistematicamente o modo de governar de Óbidos e suas pretensões.
Uma breve noção dos desafios que o Conde vice-rei encontrou ao chegar na América pode
ser alcançada no trecho de uma carta escrita pelo mesmo ao Governador do Rio de Janeiro, no dia
23 de outubro de 1663, o vice-rei descrevia assim as suas impressões sobre aquela capitania:
[...]achei as coisas deste Estado tão demasiadamente confusas e a jurisdição deste governo
tão sem limite e despedaçada; que para se tornar a unir e restituir o governo a aquelle ser
271
AHU, LF, BA. Cx.14, Doc. 1690.
SILVA, Ignácio Accioli de Cerqueira e. Memórias históricas e políticas da província da Bahia. Tomo I, Bahia:
Typographia do Correio Mercantil de Precourt, 1835, p. 112.
272
98
em que se deve conservar e que el Rei, meu Senhor, quer que o Brasil tenha.273
Pedro Calmon afirma que a nomeação do Conde de Óbidos como vice-rei tinha o objetivo
de estabelecer uma [...] definitiva unificação administrativa.274 Óbidos efetuou reforço nas
estruturas dos prédios públicos e na residência dos Governadores e vice-reis, para isso pediu por
portaria de 20 de agosto de 1663 um empréstimo à Provedoria Mor da Fazenda de dois mil
cruzados, oriundos do dinheiro do cunho da moeda e acautelou o pagamento em seu fiador,
informava também que o Provedor Mor deveria disponibilizar recursos financeiros a ele sempre que
fosse solicitado.275
Outra característica do governo de Óbidos pode ser verificada no interesse que ele
manifestou em coibir o crescimento de quilombos e mocambos espalhados pelo sertão. 276 Numa
Portaria de 17 de setembro de 1663, o vice-rei orientava a forma como o Capitão do Campo
Francisco Rodrigues, o guia Manoel Dias, alguns soldados e 16 índios deveriam se comportar na
empreitada organizada para desbaratar uns mocambos que se tinha notícia. Óbidos ordenava que os
homens acima mencionados fossem acolhidos durante a jornada pelos
[...] capitães mores e das freguezias, e quaesquer das pessoas ou fazendas ou curraes por
donde forem, lhe dem o mantimento necessario, de que cobrarão recibo, para com elle se
lhes pagar do que resultar dos prisioneiros.277
O destino dos escravos que porventura fossem apreendidos também estava previsto nesta
portaria, Francisco Rodrigues tinha ordens do Conde de Óbidos para conduzir à cadeia da Bahia
todos os
[...] negros, negras e criação que prisionar (sem poder dar aos seus donos nenhuma em
parte alguma; nem a descaminhar pena de ser castigado com todo rigor) para ali se
satisfazerem as despesas, e se restituirem com mais segurança todas as peças a seus
senhores.278.
Outra providencia que Óbidos tomou ao chegar ao Brasil foi escrever um Regimento 279 que
se destaca pela riqueza de detalhes, o conteúdo das cláusulas versava sobre questões militares e
administrativas e deveria ser seguido atenciosamente pelos Capitães Mores e Governadores de
Capitanias da Colônia.
273
DHBNRJ, Volume V, p. 465.
Op. cit. CALMON, Pedro, História do Brasil. Vol.3 (sec XVII-XVIII), 1971. p.739
275
DHBNRJ, Volume VI, p. 116
276
Ver portaria que o Conde de Óbidos passou a Simão Fernandes Madeira, Capítão do Campo, para ir aos mocambos
de Tabayana e Seregipe Del Rei em DHBNRJ, Volume VI, p. 122
277
DHBNRJ, Volume VI, p. 118
278
idem
279
Pedro Calmon afirmou que o Regimento dado pelo Conde de Óbidos foi “o primeiro código ou esboço de
constituição dos poderes regionais, dando-lhes uniformidade, método e hierarquia.” ver. CALMON, Pedro. História do
Brasil. (sec. XVII e XVIII) Riquezas e vicissitudes) Vol.3. 1971, p.736. Cosentino entendeu que a elaboração de
normas pelos Governadores Gerais e Vice Reis do Brasil permitiu [...] a construção de uma memória, dedicadas ao
exercício de governo, com todas as suas implicações, inclusive a elaboração da documentação escrita que norteava e
delimitava os direitos e deveres, como eram os regimentos dos governadores gerais. Ver: COSENTINO, Francisco
Carlos Cardoso. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimentos, governação e
trajetórias. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Fapemig, 2009. p. 207.
274
99
A responsabilidade que Óbidos tinha ao receber o vice-reinado estava em alinhar os
procedimentos dos administradores subalternos ao seu comando, promovendo uma normatização
dos fazeres e evitando conflitos. Resumidamente, o Regimento dado pelo segundo vice-rei do Brasil
tinha o objetivo de corrigir os
[...] inconvenientes que resultão dos capitães mores das Capitanias deste Estado, não
terem regimento que sigão; e para se evitar este prejuízo, e poderem proceder nas
obrigações que lhes tocão, sem se occasionarem as duvidas que os Provedores da Fazenda
Real, Ouvidores das Capitanias costumão ter, nem as queixas que os moradores
280
ordinariamente fazem de suas ações.
Podemos entender este Regimento como um conjunto de providências à serem tomadas
pelos administradores das Capitanias do Brasil e organização dos seus procedimentos, fora escrito
pelo Secretário do Estado do Brasil, Bernardo Vieira Ravasco e dava orientações quanto a defesa
dos territórios e matérias de jurisdição.
O primeiro interesse normativo encontra-se em garantir a segurança das capitanias contra
invasores estrangeiros, uma cláusula específica ordenava que todos os Capitães Mores visitassem
periodicamente as fortalezas e armazéns de mantimentos bélicos de suas Capitanias, na presença do
Provedor Mor e do Escrivão da Fazenda, para que, inventariada todas as peças de artilharia, fosse
dado conta do que precisava de concerto. Justificava o Conde: [...] porque ainda que de prezente há
paz com os holandeses, sempre convém estar a dita capitania com prevenção necessária a qualquer
intento ou invasão de outros inimigos desta Coroa281.
A norma também previa que os administradores das Capitanias alistassem todos os homens
da sua jurisdição que tivessem condições de pegar em armas para adestrá-los, pelo menos uma vez
no ano e manter o efetivo militar reserva em condições de guerrear caso fosse necessário; a cláusula
incentivava que os varões portassem armas por [...] saberem usar dellas, sendo que os mais
habilidosos deveriam ser informados ao vice-rei.
O segundo aspecto das orientações dadas por Óbidos diz respeito a uma tentativa de
padronizar o fazer administrativo dentro das Capitanias, revogando os costumes anteriores e
submetendo todos os Capitães a um único referencial de poder, Óbidos orientava que os seus
subordinados fossem moderados nas condenações que lhes eram cabíveis sentenciar, ressaltava que
a autoridade dos Governadores era reconhecida exclusivamente no âmbito das Capitanias que
administravam e todos eles estavam submissos às suas ordens. Uma prova desta prevenção foi vetar
intromissões de opinião nos trabalhos do Capitão Mor, do Provedor da Fazenda Real do Brasil, dos
Ouvidores da Justiça e do Senado da Câmara da Bahia e se houvesse algum dissenso a última
280
A transcrição deste regimento encontra-se em LISBOA, Balthazar da Silva. ANAES DO RIO DE JANEIRO,
contendo a descoberta e conquista deste país, a fundação da cidade com a historia civil e eclesiástica, até a
chegada de El Rey D. João IV; além de notícias topográficas, zoológicas e botânicas. Tomo 4, Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1835. P. 222.
281
idem.
100
palavra era do vice-rei.
Também estava previsto um ordenamento criterioso para a provisão de pessoas em postos
militares, de justiça e de fazenda que se achassem vagos, Óbidos ordenava aos Capitães Mores que
dessem pronta notícia das vacâncias e dos homens que foram providos como substitutos para não
comprometer o andamento dos trabalhos de administração das Capitanias, o sexto capítulo
ordenava:
[...] E para que o curso das causas, ou negócios que dele dependerem se não suspendão,
passara em virtude deste capitulo Provisão a pessoa benemérita, e suficiente que o sirva
por tempo de dois meses se for a Capitania das do norte ou desta até o Espírito Santo
inclusivo; e de seis se for das do Espirito Santo para o Sul para que continue enquanto eu
não provejo. Será o Capitão Mor obrigado a ter particular cuidado nesta matéria, para
que de nenhum modo sirvão com seu provimento mais que naquelle interino preciso, que he
necessário para me chegar o aviso e ir a Provisão282
Para finalizar esta análise do Regimento feito pelo Conde de Óbidos, deve-se ressaltar que
ele teve o cuidado de revogar e extinguir quaisquer ordens ou estilos que em contrario se tenha
observado na dita Capitania até o prezente, e só este regimento terá effeito e vigor.283
Alinhar os procedimentos dos administradores das capitanias não foi a única estratégia de
governar por escrito utilizada por Óbidos, ao longo da sua governança ele baixou outros
Regimentos, a saber: o regimento das moedas284 que regulamentava valor, modo de circulação e
cunho para todo o Estado do Brasil; o regimento do secretário de Estado Bernardo Vieira
Ravasco285 e o regimento para a cobrança do “donativo do dote da Senhora Rainha de Grã
Bretanha, e pax de Hollanda.”286
3- O Conde de Óbidos e o delicado terreno da mercê régia na Bahia
Vimos anteriormente que na Bahia Seiscentista, a economia de mercês foi estratégia de
acumulação de riqueza e mobilidade social, não apenas para fidalgos como também para militares
de origem não nobre que demonstraram bravura durante as guerras contra os holandeses ou contra
os índios rebeldes e comunidades quilombolas que ameaçavam os projetos de conquista e
282
idem
Idem. Apesar de ter o cuidado em estabelecer um Regimento criterioso, os Capítães Mores continuavam a reclamar
dos conflitos de jurisdição, foi o que aconteceu na Capitania da Paraíba, o capitão, o provedor da fazenda e os juízes
ordinários daquela parte do Brasil entravam em constantes desentendimentos quanto a amplitude de suas ações. Para
mais detalhes ver: DHBNRJ. Vol. 8. Rio de Janeiro, Augusto Porto & Cia, 1928. p. 170-172.
284
DHBNRJ. Vol. 5. Rio de Janeiro, Augusto Porto & Cia, 1928.. Sobre tais reformulações ver a legislação para o novo
cunho da moeda do Brasil em: http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=101&id_obra=63&pagina=278
285
DHBNRJ. Vol. 5. Rio de Janeiro, Augusto Porto & Cia, 1928. p. 415.
286
Apesar de já existir a cobrança do dote desde o tempo de Francisco Barreto, o regimento dado por Óbidos ordenava
que se inventariassem os bens dos moradores da Bahia e capitanias anexas, tudo isto para ter um melhor controle da
arrecadação dos 80.000 cruzados anuais que cabia ao Brasil como pagamento. Óbidos nomeou [...] pessoas a cuja
inteligência, zelo, e talento se possa fiar o bom effeito dele, para fazer tal cobrança, entre os homens de sua confiança
estava o [...] Capitão Antonio Lopes de Ulhôa, Provedor-mor da Fazenda Real deste Estado, Sargento-maior Balthazar
dos Reis Barrenho, Vereador mais velho da Camara desta Cidade, Sargento-maior Ruy de Carvalho Pinheiro, Escrivão
da mesma Camara, e João Peixoto Viegas. DHBNRJ. Vol. 5. Rio de Janeiro, Augusto Porto & Cia, 1928. p. 381.
283
101
colonização do Brasil.
Estes homens alcançaram do Rei a posse de terras, cargos militares e administrativos e
contratos comerciais que lhes rendiam receita e prestígio social, o acúmulo destes bens em forma de
mercês remuneratórias tornou-se uma propriedade passível de herança, arrendamento ou venda. Os
proprietários dos cargos administrativos e militares tinham o direito de renunciá-los em benefício de
um filho, ou como dote de casamento ao esposo de sua filha, ou arrendá-los em troca de uma
porcentagem do ordenado.
As consultas ao Conselho Ultramarino, cartas do Senado da Câmara da Bahia, devassas de
diversas autoridades do Tribunal da Relação da Bahia e comunicações enviadas e recebidas no
período do vice-reinado de D. Vasco Mascarenhas, demonstravam o valor que as autoridades
portuguesas instaladas no Brasil davam aos ofícios régios recebidos por mercê, abrindo assim
possibilidades de investigar como os funcionários da administração colonial encaravam as
pretensões que tinha o vice-rei do Brasil ao interferir na outorga de cargos e ofícios para alcançar
governabilidade e conveniências políticas.
O provimento de ofícios administrativos e militares nas possessões ultramarinas era uma
exclusividade do Rei de Portugal, no Brasil, porém, a nomeação de pessoas em cargos vacantes, à
revelia do monarca, foi uma prática corriqueira entre os Governadores Gerais e vice-rei,
principalmente em períodos de guerra e em necessidades extraordinárias que não permitiam deixar
determinadas serventias sem ocupação durante muito tempo.
Antes de aprofundar sobre as querelas existentes na Bahia em torno da outorga e negação de
cargos e ofícios régios, torna-se importante apresentar uma petição, escrita pelo Conde de Óbidos
em 19 de agosto de 1663 a qual dava notícias ao Rei de Portugal sobre a situação do pagamento da
parte que cabia ao Brasil para o dote de casamento da Rainha da Grã Bretanha, D. Catarina de
Bragança e a indenização estabelecida para manter a paz com a Holanda.
Letícia dos Santos Ferreira apresenta um estudo detalhado acerca das taxações que todos os
moradores do Brasil estavam submetidos e a cobrança de tributos proporcional às posses de cada
pessoa. As ações do Conde de Óbidos para a arrecadação eficaz do dote da Sereníssima Rainha da
Inglaterra e Pax de Holanda é mais um exemplo de como a sua presença no Brasil teve o objetivo
de organizar e garantir o envio destes recursos para o Reino, ainda que ele mesmo reclamasse da
situação de miséria que os moradores da Bahia vinham padecendo, graças à redução do preço do
açúcar do Recôncavo e declínio da produção no Brasil.287
Mas esta carta revela outros interesses, o vice-rei do Brasil relembrava as prerrogativas que
a Coroa Portuguesa lhe devia por [...] mercê particular que VMgde. faz a todos os Vice Reis da
287
FERREIRA, Leticia dos Santos. Amor, sacrifício e lealdade. O donativo para o casamento de Catarina de
Bragança e para a Paz de Holanda (Bahia, 1661-1725). Dissertação de Mestrado. UFF, 2010, p. 101.
102
Índia de 12 fidalguias e 12 hábitos para repartirem naquele Estado pelos sogeitos mais
benemeritos e ele não os levou quando foy governar.288
Óbidos não teve oportunidade de usufruir destes direitos pois, como se sabe, ele fora
usurpado do seu cargo meses após chegar em Goa, sua intenção em reivindicar tais benesses era
para que pudesse dispor destes hábitos e fidalguias e distribuí-los entre os homens do Brasil que
mantivessem mais aproximação política com a sua pessoa e ao mesmo tempo garantir que tais
beneficiados continuassem com o pagamento dos impostos que cabiam à Bahia, queria ele:
[...] poder premiar os sogeitos que melhor procederão assim no serviço do donativo com os
mais que tem feito a VMgde. enquanto duraram as guerras daquele Estado, dispendendo a
Fazenda em tantas armadas malogradas na Restauração de Pernambuco e perdendo os
filhos em quantas occasioens se pellejou com os olandeses. 289
Óbidos fez questão de ressaltar que esta preeminência já havia sido dada ao Governador
Antonio Telles da Silva, primeiro Governador Geral do Brasil nomeado por D. João IV, contudo,
este não divulgou o Alvará que recebera e por isso tal costume não se fez aplicar no Brasil:
[...] além de seu merecimento ser digno desta honra, e os VReys da Índia terem aquella
preheminencia, há exemplo de a ter no Brasil Antonio Telles da Sylva, a quem VMgde. fez
por mercê por Alvará feyto por mão de Francisco de Lucena, de poderes para fazer
fidalgos, dar comendas e hábitos, e por respeitos particulares a teve em silencio. [...] Que
nesta matéria propõe ele Vice Rey por que são aly muytos os beneméritos de VMgde. os
honrar e quase todos incapazes de passarem a esta Corte a requerer a satisfação de seus
serviços.290
Esta tentativa de convencer a realeza do seu direito de disponibilizar gratificações à pessoas
do Brasil, de acordo com os mesmos merecimentos que tiveram de seus antecessores, foi objeto de
uma consulta dos membros do Conselho Ultramarino, realizada em 10 de junho de 1664.
Os conselheiros ressaltavam as condições financeiras que Portugal passava e a
impossibilidade de criar mais este gasto, seja pela falta de recursos para o pagamento dos hábitos e
foros pretendidos, seja pela confusão que tal prerrogativa causaria entre os outros homens da Bahia
que também eram merecedores de tais benefícios e ficariam excluídos das premiações do Conde
vice-rei.
Na opinião dos juízes do Conselho Ultramarino, conceder doze fidalguias e doze hábitos ao
Conde de Óbidos era uma regalia291 exclusiva dos vice-reis da Índia e
[...] cousa impraticavel e de muy prejudicial exemplo no tempo prezente, e estado do Reino
e do Brazil que havendo VMgde. de remunerar aqueles vassalos beneméritos pelo muyto
que de suas fazendas dispenderão de perdas de vidas naquelas guerras são muytos os que
288
AHU, LF, BA, Cx. 19, Doc. 2023, 10/06/1664.
idem
290
idem
291
No vocabulário da época esta palavra significava [...] hum sinal exterior, demonstrativo da authoridade, &
Magestade Real. As Regalias essenciais são fazer leys, investir Magistrados, eleger Ministros dignos, & beneméritos,
bater moeda, por tributos, & a seus tempos publicar guerra, & fazer pazes. Também existiam as Regalias acidentais
que não diminuíam a soberania nem aumentavam o poder supremo, mas variava de monarquia para monarquia, são
tipos de regalias acidentais: [...] as Regalias accidentaes dos Emperadores eram trazer coroa, & sceptro, vestir púrpura,
& que lhes fallassem de joelhos. Ver: op. cit. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Volume 7, p 193.
289
103
merecem prêmios e concedendose ao Conde o que pede servira (dandose ainda aos
beneméritos) de justas queixas, nos que ficarem por premiar. 292
A partir deste documento, percebe-se que o Conde de Óbidos enfrentava contínua obstrução
entre os magistrados que compunham o corpo consultivo da alçada Ultramarina, os Conselheiros
pediam que o Rei advertisse o vice-rei ante as pretensões que ele apresentava, Óbidos justificava
este pedido valendo-se das precedências que os outros Governadores e vice-rei do Brasil tiveram
antes da sua chegada. Todavia, o Conselho Ultramarino expõe seu parecer e indefere a petição do
Conde, explicando que em 1664 a situação política era outra:
[...] e o exemplo e Antonio Teles, que o Conde Vice Rey aponta (se he que levou aquela
faculdade) foy em outro tempo e no principio do reinado de SMgde. que está em glória, por
então convir assim não só pela ocasião mas pela guerra profinqua de Pernambuco, com
que entende o Conselho que não he lugar de se deferir ao que o Conde pede. 293
Percebe-se pois, que o Conselho Ultramarino demonstrava resistência ao ressurgimento do
vice-reinado do Brasil, especialmente se analisarmos um conjunto de comunicações produzidas pelo
Conselho Ultramarino, pela Câmara da Bahia e pelo Conde de Óbidos nos anos de 1663 e 1664.
Nelas, podemos ter uma noção mais precisa de como o vice-rei do Brasil encarava o seu cargo a
ponto de não dar cumprimento a uma Ordem Régia, acompanhemos:
Em 09 de dezembro de 1662, D. Afonso VI mandava que o Conde de Óbidos extinguisse os
dois Terços de Infantaria que assistiam na cidade de Salvador. Os oficiais da Câmara da Bahia
escreveram ao Rei agradecendo tal medida, pois era a fazenda da cidade quem pagava os soldos de
sustento dos Tenentes e Mestres de Campo General, seus ajudantes, capelães e furriéis. Contudo,
eles diziam que a ordem não foi cumprida pelo vice-rei. 294 As justificativas que o Conde de Óbidos
deu para não ter reformado aqueles postos encontra-se em uma carta, escrita no dia 20 de agosto de
1663.295
Óbidos dizia que não seria conveniente extinguir tais postos porque [...] não He justo que se
escusem seus exercícios, quanto mais naquela praça, em que a disciplina militar os faz mais
precisos,296 além disso, listou dois militares que na sua opinião eram “inexcusáveis” ao serviço
régio e seriam prejudicados se ele efetuasse as reformas ordenadas pelo Rei.
O Conde de Óbidos justificava que existia diferença em sua condição, ele era vice-rei e
aquela situação de governo era mais para acrescentar sua autoridade que para diminuir as
prerrogativas que tiveram seus antecessores, por isso ele não achava conveniente a extinção destes
postos dado seu título e prejuízos que esta medida causaria aos militares que ele fez questão de
292
Op.cit. AHU, LF, BA, Cx. 19, Doc. 2023, 10/06/1664.
idem
294
AHU, LF, BA, Cx. 17, doc. 1997. 06/02/1664.
295
AHU, LF, BA, Cx. 17, doc. 1998. 20/08/1663.
296
idem
293
104
mencionar.297
Mais uma vez, os conselheiros Jeronimo de Mello e Castro, Feliciano Dourado e o Conde
dos Arcos manifestam no parecer do Conselho Ultramarino o desconforto que as atitudes do Conde
de Óbidos em seu vice-reinado no Brasil traziam para aquele Tribunal, os juízes diziam que D.
Afonso VI devia repreender o Conde de Óbidos por não ter dado inteiro cumprimento às ordens
régias e aos pedidos da Câmara da Bahia.
Os conselheiros afirmavam que por consecutivas vezes o Conde vice-rei tentava [...]
sustentar a sua oppinião contra as rezoluções de VMgde. em dano daquelles vassalos.298 Ainda
faziam questão de afirmar que a ordem de extinguir tais ofícios militares era uma forma de liberar a
Câmara de um custo que só se fazia necessário no tempo da guerra viva contra Holanda e que,
naquele tempo, o dispêndio com o pagamento das indenizações estabelecidas em Haia e que cabiam
ao Brasil, bem como o dote do casamento da Rainha da Gran Bretanha oneravam muito os
habitantes da cidade de Salvador.
Os conselheiros reclamavam:
[...] He de muito para reparar que o Conde VRey o encontra por respeitos particulares, em
prejuízo de todo um Estado com o fundamento de que convem conservar nos postos os
sogeitos que os ocupam a respeito da diferença em que esta aquelle governo, porque a
gradeza de VMgde. quis usar com elle dandolhe o titulo de VRey não foi para fazer o que
lhe parecesse , se não o que VMgde. lhe mandar. 299
E continuaram emitindo argumentos que afirmavam o quanto as pretensões de Óbidos
extrapolavam os costumes: [...] E quanto He mayor a honra que o Príncipe faz ao vassalo, tanto
mayor obrigação lhe corre de dar inteiro comprimento aos mandatos do Príncipe, porque as
Monarchias so se conservão com a obediencia e respeito.300
O parecer final desta querela encontra-se registrado neste mesmo documento em forma de
discreta cláusula, à esquerda do documento, o estudo da estrutura das comunicações administrativas
produzidas pelas dinastias Ibéricas explica que este era o local adequado para registro dos pareceres
régios enquanto a consulta estava tramitando.301
O Rei D. Afonso VI emitiu sua decisão sobre a reforma dos dois Terços de Infantaria que ele
havia ordenado, no dia 15 de dezembro de 1663. Em breves palavras o monarca estabeleceu um
consenso entre as pretensões do vice-rei e as reclamações da Câmara da Bahia e do Conselho
Ultramarino:
297
Idem. Eram eles: Pedro Gomes, com trinta e oito anos e dois meses de serviço e Antonio de Brito de Castro, com
trinta e dois anos e vinte e seis dias de serviços prestados nos Terços que iriam ser extintos.
298
AHU, LF, Cx. 17, doc. 1973. 23/11/1663
299
idem
300
idem
301
Para mais detalhes sobre a escrita administrativa no século XVII, ver : CADARSO, Pedro Luis Lourenzo. La
correspondência administrativa en el Estado Absoluto Castellano (ss XVI-XVII) In: SAEZ, Carlos.; GÓMEZ, Antonio
Castillo (Ed.). Actas del VI Congreso Internacional de Historia de la Cultura Escrita. La correspondência em la
historia: modelos y prácticas de escritura epistolar. Vol I, 2002, p. 121-144.
105
[...]Pella rezolução que fui servido tomar de se prover aquelles que vão com titulo e
authoridade de Vice Rey não pode ter lugar contudo a reformação que estava ordenada. E
El Rey hei por bem que se reforme só um dos mestres de campo general; o mais moderno; e
do mesmo modo hu dos ajudantes; E os furriéis. Isto se escreva ao Conde de Óbidos com
todo bom modo; mas ordenandolhe que o execute sem réplica. Lisboa, 15 de dezembro de
1663.302
Este trecho acima transcrito possibilita problematizar o quão importante era o título de vicerei do Brasil, especialmente para D. Afonso VI, conforme se pode notar nesta resolução. O monarca
não só reconheceu a autoridade que o Conde de Óbidos ostentava no Brasil, como também levou
em conta os posicionamentos contrários emitidos pelo Conselho Ultramarino. Fazendo isto, o Rei
acomodava interesses divergentes e mantinha a governabilidade do seu representante direto, pois,
apesar de voltar atrás em sua decisão de reformar dois Terços de Infantaria e fazer a reforma em
apenas um, D. Afonso ordenava que os conselheiros emitissem sua resolução ao vice-rei do Brasil
“com todo bom modo”.
Vimos que o vice-rei escreveu diretrizes aos seus subordinados, em contrapartida, ele
também deveria seguir um criterioso conjunto de regras e procedimentos que guiava as suas ações
no maior posto de comando militar e político existente no Brasil Seiscentista, seu Regimento foi o
mesmo dado ao Governador Diogo de Mendonça Furtado em 1621 e apesar deste ter sido escrito no
período Filipino, esta norma foi utilizada após a Restauração Brigantina só havendo mudanças em
seu conteúdo no ano de 1678.303
Este Regimento previa que os casos que extrapolavam a alçada dos governadores e vice-rei
do Brasil eram tratados pelo Conselho Ultramarino, esta Instituição tratava das demandas das
conquistas, em especial daquelas que versavam as denúncias de abuso de poder das autoridades que
administravam os domínios do Ultramar.
Embora o Conde de Óbidos não tenha conseguido parecer favorável para premiar com
títulos de fidalguia e hábitos a pelo menos vinte e quatro pessoas de importância estratégica no
Brasil, ele lançou mão de suas atribuições como vice-rei para interferir na provisão das serventias
militares, judiciais e civis que estivessem vagas.
Dois trechos do Regimento dado a D. Vasco Mascarenhas, em 1663, explicitam as regras de
provimento em postos militares e civis vacantes no Brasil:
[...] encarregareis das serventias dos ditos officios a criados meus (se os ouver) que
tenham partes para os servirem e em falta deles a outras pessoas que tenham as mesmas
302
Op.cit. AHU, LF, Cx. 17, doc. 1973. 23/11/1663
MENDES, Caroline Garcia.; CASTRO, João Henrique Ferreira de. “O Brasil no Império Ultramarino Português e o
estudo das trajetórias dos Governadores-Gerais e Vice-Reis do Brasil entre 1647-1750.” In: Anais do II Colóquio do
LAHES: Micro-História e os caminhos da História Social. Juiz de Fora: UFJF, 2008, p.11. Segundo os estudos do
historiador Francisco Cosentino, o Regimento dado ao Conde de Óbidos foi uma cópia do mesmo que foi dado a D.
Diogo de Mendonça Furtado, em 1621. Tal Regimento continuou sendo a base para os Governadores que o sucedeu e só
foi substituído pelo modelo de Roque da Costa Barreto, em 1678. Para mais informações, ver: op. cit. COSENTINO,
Francisco Carlos Cardoso. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI e XVII): ofício, regimentos,
governação e trajetórias. 2009, p. 180-188.
303
106
parte, histo athe se prezentarem pessoas que tenhão provizões minhas para haverem de
servir os taes officios.304
O capítulo 41 fornece mais detalhes do raio de ação que tinham os governantes do Brasil
para nomear pessoas em cargos e ofícios régios, a norma previa que os Governadores Gerais e vicereis poderiam
[...] prover as serventias dos offícios mayores, asy por morte, como por qualquer outra via,
que seja, e da mesma maneyra, todos os outros [cargos] de justiça, guerra e fazenda de
todo o Estado, enquanto eu não mandar outra couza em contrário [...] e me avizareis logo,
particularmente, dizendo o cargo que vagou, e por quem, se deixou filhos, e em quem
aproveste.305
Vemos então que, em caso de morte, doença ou aposentadoria de servidores da justiça,
guerra e fazenda, cabia aos Governadores Gerais e vice-rei do Brasil prover os substitutos mediante
informação posterior à Coroa e atenção aos critérios previstos no Regimento. Em uma carta escrita
na Bahia, no dia 18 de agosto de 1663, encontram-se as justificativas apresentadas pelo Conde de
Óbidos para prover os postos militares e ofícios políticos do Brasil alegando seguir as mesmas
prerrogativas que tiveram seus antecessores: [...] me pareceu representar a VMgde. com a
submissam que convem se conserve a este governo a preheminecia que vinha de prover os postos
militares sem outra confirmação de VMgde.306
Citando o primeiro vice-rei Marquês de Montalvão e o Governador Geral Francisco Barreto,
Óbidos apontava que o cargo que ocupava no Brasil conferia-lhe os poderes de prover pessoas em
ofícios políticos vagos sem a aprovação imediata do soberano de Portugal. Na contra mão deste
desejo, funcionários da administração do Brasil e autoridades do Conselho Ultramarino
apresentavam consecutivas queixas ao Rei diante das medidas de Óbidos que interferiam na lógica
de funcionamento da economia de mercês na Bahia e iam de encontro aos interesses da elite
local.307
Algumas autoridades residentes na Bahia também manifestaram descontentamento em suas
cartas e denunciaram ao Conselho Ultramarino as atitudes do vice-rei que desrespeitavam os
protocolos do Regimento que ele devia seguir, principalmente quando tentava interferir na lógica de
concessão e negação das mercês remuneratórias no Brasil.
Em primeiro de setembro de 1663, o Rei de Portugal informava ao Conde de Óbidos que as
autoridades do Brasil e de Angola estavam se queixando dos abusos de poder dos Governadores
304
AHU, LF, Cx.12, Doc. 1444: Cópia de Capítulos do Regimento do Governador do Brasil. Lisboa, 13/10/1651. (grifo
do documento). Neste documento encontramos extratos do Regimento dado a Diogo Furtado de Mendonça em 1621,
especialmente no que tange os limites para o provimento de cargos e ofícios régios no Brasil.
305
Idem (grifo do documento). Os Regimentos dos Governadores Gerais e Vice Reis do Brasil foram estudados por
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB/Conselho
Federal de Cultura, 1972.
306
AHU, LF, BA Cx.17, Doc. 1976, 18/08/1663.
307
AHU, LF, BA Cx.19, Doc. 2208-2210,19/07/1667
107
Gerais enviados às conquistas , por
[...] não darem cumprimento as provisões que lhes presentava algumas pessoas providas
por VMgde. em serventias de ofícios por terem ocupado nellas seus criados, e VMgde. lho
haver mandado estranhar, me encomendava muyto e ordenava que enquanto aqui servisse
aVMgde. Desse inteiro cumprimento a todas as provisões e ordens de VMgde para que não
houvesse queixa das partes.308
Quatro meses depois, D. Vasco Mascarenhas justificava os [...] postos e serventias dos
ofícios que pretende prover, sem dar conta a Sua Majestade e afirmava no seu discurso a sua
condição de vice-rei do Brasil. Relembrava ao soberano que [...] as faculdades de minha patente
trouxe firmada pela real mão de Vossa Majestade cópia sem mudança de huma virgula da que se
deu ao Marquês de Montalvão.309
O último parágrafo desta carta deixa registrada as intenções do Conde vice-rei e avisava as
autoridades do Reino que ele continuaria levando a cabo as prerrogativas dos seus antecessores e
faria valer o seu título de vice-rei do Brasil:
[...] Sendo por estes e outros semelhantes os provimentos que o Conselho Ultramarino faz
neste Estado ou por falta de noticias verdadeiras, ou por eficácia de favores particulares
bem se deixa inferir quam justo He, que os VReys deste Estado conservem a jurisdiçam dos
provimentos militares e serventias de ofícios políticos não só pelo que tocca a authoridade
e posse do posto que ocupam, mas pela importância dos acertos do serviço de VMgde. e faz
este o meio mais conveniente de não haver os vassalos de VMgde. pretendo evitar no meu
Governo, cujas ações esperam sejam sempre muy como della as obrigações com que nacy e
as do serviço de VMgde. que são as que mais prefiro a tudo. Bahia, 29 de Janeiro de
1661.310
O Conselho Ultramarino mostrou-se mais uma vez escandalizado com esta carta do vice-rei
e sua pretensão em prover cargos políticos e militares no Brasil sem obedecer aos protocolos
costumeiros, declaravam que os pedidos de Óbidos ofendiam todas as instâncias consultivas do
Reino e solicitavam que o Rei o repreendesse asperamente, pois tentava intrometer-se na jurisdição
alheia.
Para justificar a impossibilidade jurídica das pretensões do segundo vice-rei do Brasil, o
Conselho Ultramarino afirmava que no tempo do Marquês de Montalvão, Bahia e Pernambuco
estavam em guerra viva com as tropas do Conde Maurício de Nassau e que, [...] o capítulo 42 do
provimento dos cargos de guerra é só nos casos acidentais da mesma guerra e que acabada ela se
extingam os mesmos cargos.311
Querer prover pessoas em cargos militares e políticos no Brasil era uma pretensão que
ampliava extraordinariamente os poderes de decisão de Óbidos e uma regalia que só os monarcas de
Portugal tinham. Os conselheiros demonstravam em suas missivas os poderes que o vice-rei
pretendia ter e os prejuízos que as mesmas precedências que tiveram seus antecessores trariam ao
308
AHU, LF,BA Cx. 17, Doc. 1989, 29/01/1664
idem
310
idem
311
AHU, LF, BA, Cx. 17, Doc. 1996, 05/02/1664
309
108
erário e ao tradicional costume de consultas da dinastia Brigantina.
4- Um clima tenso e uma nova ameaça de ser expulso do vice-reinado
O Conde de Óbidos pretendia arbitrar sobre a economia de mercês no espaço colonial,
apesar de consecutivos pedidos dos conselheiros para que o Rei coibisse tais pretensões do vice-rei,
o comando do Reino parecia fazer ouvidos moucos para com os avisos que o Conde de Óbidos, o
rigor das queixas formuladas pelos Conselheiros do Ultramar registram que ele queria ser [...]
Senhor absoluto do Brasil e independente de SMgde. e suas reaes ordens que deveria respeitar
mais, que querendo usurpar por este modo a regalia de VMgde., que he ponto em que muyto se
deve reparar para selhe mandar estranhar.312
A intenção do Conde de Óbidos ao requerer os mesmos poderes que teve o primeiro vice-rei
do Brasil estava em sua tentativa de incluir pessoas de sua confiança nos cargos estratégicos em
detrimento de outras e assim levar a cabo a gradual centralização do poder de prover pessoas em
ofícios e serventias do Brasil sem dar satisfação ao monarca. Para cumprir este fim, Óbidos lançava
mão de justificativas que descredenciavam os homens indicados pelos proprietários dos ofícios e
colocava no posto vago aqueles que melhor atendessem suas conveniências políticas.
Um exemplo desta atitude e de como Óbidos estava insatisfeito com a maneira que os cargos
militares e políticos da Bahia vinham sendo providos encontra-se nesta mesma carta, o vice-rei
relembra como se deu o provimento do Guarda Mor da Relação da Bahia, o proprietário deste cargo
era defunto e deixou viúva e filhos que se encontravam na Bahia em busca de arrendar o posto até
que um dos herdeiros tivesse condições de assumir.
Após as tradicionais consultas e pareceres das autoridades da Relação da Bahia para suprir a
vacância, um homem chamado Gaspar Dias de Araújo foi indicado pelos magistrados para ocupar o
posto, contudo, Óbidos denunciou à realeza o pouco cuidado com que os juízes da Relação tinham
na averiguação prévia das pessoas indicadas para assumir ofícios e serventias em vacância, o vicerei avisava que não ia permitir tal provimento: [...] sendo a pessoa do tal Gaspar Dias christão
novo de todos os quatro costados de baixa sorte; quebrado nos negócios e incapaz por todos os
respeitos de o exercer.313
Apontando a descendência israelita do ocupante do posto de Guarda Mor da Relação, o
Conde de Óbidos tentava convencer o Rei que o seu interesse em prover tais serventias no Brasil
era uma forma de prevenir o serviço régio de tais equívocos e conservar a jurisdição que os seus
antecessores tiveram: [...] justo he que os Vice Reis deste Estado conservem a jurisdiçam dos
provimentos militares e serventias de ofícios políticos não so pelo que toca a autoridade e posse do
312
313
AHU, LF, BA, Cx. 18, Doc. 2070, 28/01/1665
Op. cit . AHU, LF, BA Cx. 17, Doc. 1996, 05/02/1664
109
posto que ocupam, mas pela importancia dos acertos do serviço de VMgde.314
Sem dar importância à indicação do proprietário do posto, nem aos referendos dos
Desembargadores da Relação, Óbidos deu a João Garcia este ofício, por ser [...] homem nobre,
cunhado do Alcaide Mor desta cidade a quem provi pelo achar servido o mesmo e ser informado de
sua qualidade e pobreza.315
Os Conselheiros também mencionaram uma antiga pendência que o Conde de Óbidos teve
com D. Gabriel Garcês e por isso ele não o proveu em uma Companhia de soldados no Rio de
Janeiro, mais uma vez o nomeado neste posto era [...] um criado seu chamado João Vieira, sem
mais serviços que havido o acompanhado a Índia e agora ao Brasil.316
Vemos assim que o Conde vice-rei não estava isolado e mantinha laços políticos com outras
pessoas, chamadas nas fontes de seus “criados” e tentava inseri-las nos postos em vacância, à
revelia do Rei e das instâncias consultivas hodiernas. Tais pessoas possivelmente passaram para o
Brasil por ocasião da chegada do Conde de Óbidos, estava entre as prerrogativas do cargo que os
familiares dos vice-reis e Governadores Gerais do Brasil fossem acompanhados de sua família e
serviçais, todavia, até o momento não tive acesso à lista de tais pessoas que chegaram com D. Vasco
Mascarenhas em 1663.
Outra interferência no provimento de oficio e serventias se deu com o filho do proprietário
do ofício de Escrivão da Alfândega de Pernambuco, ele tinha direito de indicar alguém capaz para
cumprir esta função, todavia, não pôde usufruir desta mercê porque o Conde de Óbidos colocou um
criado seu no dito posto.317
Outro que teve seu cargo tomado por causa dos abusos de Óbidos foi Sebastião Duarte, ele
estava a servir no ofício de Meirinho da Cidade de Salvador por provisão régia, enquanto durasse o
impedimento do proprietário do referido cargo. Todavia, Sebastião foi retirado do seu posto por
ordem do Conde de Óbidos logo nos primeiros meses de sua chegada à Bahia e no seu lugar ele
proveu [...] um criado seu muito authorizado chamado Antonio Antunes, bem conhecido nesta
Corte.318
Para garantir sua governabilidade e ter auxiliares fiéis no exercício de cargos e serventias, o
vice-rei do Brasil pretendia dispô-los à pessoas do seu círculo social e dava tais provimentos sem
prestar as devidas satisfações ao Rei nem ao Conselho Ultramarino, esta quebra de protocolo não
era adequada no contexto político vivenciado no Brasil, especialmente porque, de acordo com a
interpretação do Conselho Ultramarino, no tempo do vice-reinado do Conde de Óbidos a guerra
314
idem
idem
316
Op. cit. AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2070, 28/01/1665
317
idem
318
idem
315
110
contra a Holanda estava extinta e por isso as preeminências extraordinárias que os Governadores
Gerais e vice-reis tinham nestes tempos só valiam exclusivamente para aquele período.
O Conselho Ultramarino arremata nesta Consulta a precaução que o Rei D. Afonso VI
deveria ter para com as ações do Conde de Óbidos no Brasil, prover postos e serventias sem dar
conta ao Rei era uma manobra para colocar os seus aproximados políticos em lugares estratégicos
da governança, especialmente quando estes se encontravam em vacância.
Negar cargos, diminuir vencimentos e perseguir opositores, foram medidas tomadas pelo
segundo vice-rei e mal recebidas pela elite, principalmente se enfocarmos nossa análise nas
apelações feitas por outros homens que assumiram funções de grande importância política da Bahia
e estavam descontentes com as práticas de D. Vasco de Mascarenhas, acompanhemos.
O Secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco ocupava um cargo importante dentro do
funcionamento da administração do Estado do Brasil, por ele passava todos os documentos notariais
e despachos dos Governos e resguardava nesta função além da hereditariedade do cargo, o arquivo
da memória dos governantes do Brasil. Pedro Puntoni estudou a trajetória da família Ravasco entre
as mais destacadas da Bahia e os desacordos que Bernardo teve com Óbidos ao levantar os motivos
da primeira prisão do Secretário.319
A versão de Bernardo Ravasco torna-se esclarecedora, nela verificamos o raio de ação do
Conde de Óbidos e a sua influência dentro da Relação da Bahia. A desconfiança de que as
comunicações enviadas em recebidas entre a Secretaria de Estado e as instências Ultramarinas
estavam sendo sistematicamente interceptadas foi constata e o Secretário acusava o vice-rei [...] do
crime de as abrir, e violar o segredo que o Sagrado nome de VMgde. segura a seus vassallos, ou
para a comunicação do serviço real, ou para o remédio de suas queixas particulares, 320 nesta
missiva, o Secretário elucidou a metodologia de silenciamento de opositores que vinha sendo
implementada pelo vice-rei desde 1665, entre os quais ele era um dos perseguidos.
Bernardo explica as causas da sua prisão na cadeia pública de Salvador, após o vice-rei
tomar conhecimento do conteúdo dos escritos que ele produziu criticando seu estilo de governar e
tentou enviar ao Conde de Castelo Melhor:
[..,.] primeiro: diser eu naquele papel que se VMgde. fosse servido lhe apontasse os
descaminhos que aqui padece sua Real Fazenda e os meios de remédios o faria mor, dando
VMgde. se mostrasse os livros dos recebimentos que eu pedisse. Segundo: representar a
VMgde. duas cartas, que na Relação que VMgde. mandara ao Brasil para remédio das
violencias dos Governadores era um instrumento do arbítrio do poder do Conde 321
Por fim, é importante salientar a influência que o Conde de Óbidos mantinha no Tribunal da
319
PUNTONI, Pedro.“Bernardo Vieira Ravasco, secretário do Estado do Brasil: poder e elites na Bahia do século XVII.”
In: Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n.68, p.107-126.
320
AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2208-2210, 19/07/1667.
321
idem
111
Relação da Bahia, segundo o Regimento da Relação, ele tinha a função de Regedor daquele sínodo
e por isso dirigia as reuniões e discussão das as pautas. Contudo, Bernardo Vieira Ravasco
denunciava que Óbidos utilizava a Relação da Bahia como mais um instrumento de garantia de sua
governabilidade, pois os ministros daquele Tribunal nunca entrariam em rota de colisão com o vicerei [...] por ser sempre nella mayor o numero dos ministros que confirmão o voto ao seu semblante;
ou porque temem a desgraça dos que nam o adulam vendo huns perseguidos, e outros
molestados.322
Jorge Seco de Macedo, Desembargador da Relação da Bahia, estava entre os magistrados
que não temiam as perseguições do Conde de Óbidos e pela situação que descreveu, o clima em
Salvador parecia tenso. Jorge era um antigo serventuário da Coroa, dizia que desde o dia 4 de
agosto de 1663 ele havia passado precatório para que todos os Governadores do Brasil e de Angola
cumprissem as ordens recebidas do Rei e não interferissem nas provisões que algumas pessoas
apresentavam, pois eram ordens legítimas da realeza.
Dizendo ter servido nas quatro partes do mundo: [...] onze annos na Índia, onze annos na
Casa de Suplicação e nove neste Estado, fundando a Relação,323o Desembargador rememorava
seus serviços anteriores, ao mesmo tempo em que ressaltava a sua experiência nas coisas de justiça
e jurisdição. Ele avisava que o Conde de Óbidos fazia sucessivos provimentos indevidos a pessoas
de seu círculo social e negava as mercês régias àqueles que tinham direito.
Ao afirmar que este estilo não cabia ao vice-rei do Brasil, Jorge Seco de Macedo valia-se
dos anos que esteve em cargos de justiça: [...] Eu servi onze anos na Índia com três Vice Reis e um
Governador sempre vy as patentes e provisões dos Vice Reis324 e por isso mesmo conhecia os
limites que os governantes do Brasil tinham para nomear os cargos em vacância.
Vimos que o descontentamento com a gestão de D. Vasco de Mascarenhas era corroborado
não só pelo Chanceler da Relação da Bahia e clérigo do Hábito de São Pedro Jorge Seco de
Macedo. O Cabido da Sé da Bahia escrevia que o referido Jorge e o Licenciado Domingos Vieira de
Lima haviam sido advertidos pelo Bispo da Bahia em 1664, para que [...] evitassem maiores ruínas
desta republica eclesiástica e secular. O motivo da reprimenda eram as notórias demonstrações de
[...] sedição e conspiração que contra o Governador desta praça indignamente se dispunham e por
não dar ouvidos ao que prevenia o Bispo, o Conde de Óbidos os perseguiu, mandando prender e
desterrar para Angola a Jorge Seco de Macedo, que nesta carta dizia se encontrar refugiado no
Convento do Carmo, e a Domingos Vieira de Lima, que em prisão domiciliar aguardava livrar-se
322
idem
AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2036, 04/08/1664
324
idem
323
112
das suas culpas.325
Um dos opositores de Óbidos que mais detalhou o histórico de contendas que vinha
ocorrendo entre a elite da Bahia e o segundo vice-rei foi o Desembargador Extravagante, Manuel de
Almeida Peixoto. Em 6 de junho de 1664, ele apresentou sua queixa às instâncias Ultramarinas,
também por causa das ameaças que vinha sofrendo pelo Conde vice-rei.
Os consecutivos desentendimentos entre eles durante as sessões da Relação, especialmente
quando o assunto era o pagamento em atraso dos ordenados de Manuel elucidam esta rusga,
ameaçando de que iria recorrer ao Desembargador dos Agravos pela negação dos seus direitos, a
discussão com o vice-rei deu-se durante uma sessão da Relação:
[...] E o Conde me disse com grande paixão que podia agravar já desde logo per que muito
bem me conheciam neste Reino, a que lhe respondi que por real zeloso dos serviços de
VMgde., muyto inteiro e limpo era o conhecimento.326
A briga foi além da reunião ordinária da Relação e ganhou a rua, Manuel afirmava que
Óbidos o ameaçou publicamente: [...] que me mandaria em um navio para esse Reino como fizera a
outro no Algarve e daria parte a VMgde. dos decervissos que a VMgde. viera fazer neste estado e o
mais que lhe pareceo, a que lhe dei como resposta me faria grande mercê.327
Manuel parecia não temer a ameaça de prisão e envio compulsório a que Óbidos era adepto
desde a sua governança no Algarve, como se pode constatar no seu depoimento, o Desembargador
continuou a relatar outra discussão, desta vez Manuel foi a obrigado a ler o parágrafo 45 do
Regimento de Regedor da Relação da Bahia a que o Conde vice-rei deveria seguir: [...] para que
soubesse de como avia de tratar os Desembargadores, E não descompolos publicamente sem mais
cauza que sua paixão e apetites.328
Nem o pregador da Sé foi poupado de represálias por ter proferido palavras contra o vice-rei
do Brasil, Manuel de Almeida Peixoto relatou o desrespeito que Óbidos demonstrou ao impedir o
cura da Sé de subir a púlpito e o prender de forma afrontosa: ordenou que soldados e cabos armados
levassem o Padre à cadeia e tal ação do vice-rei teve o consentimento do Desembargador Thomé da
Costa Homem e do Procurador e Juiz da Coroa João Vanvessem, ambos apoiadores de sua gestão.
Para além de tratar um religioso como se fosse criminoso condenado, a imagem de um
membro da Igreja não foi preservada, o reverendo foi levado preso [...] com a maior afronta e
vitupério pelo meio da cidade e ladeira da Misericórdia, para ser visto dos ebreus e povo, sendo o
caminho legítimo, direto e mais escuso o das portas da cidade do Carmo.329
325
AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2101, 08/08/1665
AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2037, 06/07/1664
327
idem
328
AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2110, 25/09/1665. Para mais detalhes, ver a Carta Régia de 12 de setembro de 1652 que
dispõe
sobre
o
Regimento
da
Relação
da
Bahia:
http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=100&id_obra=63&pagina=352
329
idem
326
113
Manuel de Almeida Peixoto queria sair do Brasil, não via mais serventia em sua
permanência no serviço régio, o Conde de Óbidos estava de todas as formas obstruindo a sua vida,
seja confiscando seus rendimentos, seja espalhando o boato de que ele era [...] doudo e temerário.
Desde o dia 06 de agosto de 1665 este Desembargador estava homiziado no Convento do Carmo,
sem puder ir à Relação para votar e com seus salários retidos. O abandono de sua casa e refúgio
num convento justificava-se por ver a sua vida em risco:
[...] onde se mandou atirar a espingarda hua noite ao recolherme. E por não tomar fogo
escapar, segundo o avizo que se me deu, para me recolher de dia e fechar as portas antes
das Ave Marias, por andarem muitos homens as mais das noites na Rua, e canto de minha
caza com arcos, frechas, espingardas e vacamartes para me matar, assi fora, como
chegado a minhas janellas.330
Por fim, o Desembargador Manuel de Almeida Peixoto rememorou o custo que o zelo
administrativo que sempre demonstrou ao longo da sua carreira de prestação de serviços régios em
Portugal traziam à sua liberdade e à sua vida econômica:
[...] por experiência Senhor se sabem e reconhecem minhas acções e serviços sempre fui
molestado, estive nas enxovias do Limoeiro 16 meses por defender a jurisdição de VMgde.
e sua Real Fazenda, fui privado da Correição de Leiria sem ser ouvido nem convencido,
por cobrar as décimas e fazer cavallos para a guerra, obedecendo a VMgde. e não ao
apetite do Secretario do Estado Pedro Vieira da Silva.331
Outro documento aponta que logo no primeiro ano de sua gestão, o segundo vice-rei do
Brasil negou a Álvaro de Azevedo o disputado posto de Mestre de Campo do Terço Velho da Bahia.
Em sua carta dirigida a D. Afonso VI, Álvaro relembrava que após a negação deste cargo, ele
mesmo foi à presença do Soberano de Portugal e retornou à Bahia com ordens régias que
ratificavam sua provisão no cargo. Porém, segundo seu relato, feito no ano de 1666, denunciava que
Óbidos o [...] descompôs em uma rua pública, diante do General da frota Jorge Furtado de
Mendonça, dizendo que eu fui me queixar a Vossa Majestade e o mais que sua paixão lhe ditou.332
O Conde de Óbidos era adepto das práticas de silenciamento das pessoas que manifestavam
oposição ao seu modo de governar, ele enviava seus desafetos para locais distantes e assim os
mantinha longe o tempo suficiente para não causar problemas. Este foi o destino de Álvaro de
Azevedo: em 31 de julho de 1666 o militar escrevia para o Rei dentro de uma prisão na fortaleza do
Morro de São Paulo, local distante doze léguas da cidade de Salvador.
Álvaro foi um antigo comerciante de Pau Brasil, também era proprietário de terras da Bahia
e no tempo do Conde de Óbidos assumia uma função militar de alta patente, por isso, lamentava os
vexames que passava: [...] além da pouca estimação que de mim fez (o Conde), me vituperou em
tudo que quis e finalmente me mandou preso e desterrado para o Morro sem saber o porquê nem
330
idem
idem
332
AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2161, 27/11/1666
331
114
me dar culpas.333,
5- Expulsos do Vale de Lágrimas
Faltando dois anos para o encerramento da gestão, a governança do Conde de Óbidos
seguia, apesar das consecutivas críticas formuladas pelo Conselho Ultramarino em relação aos seus
abusos e consecutivas missivas escritas pelos homens letrados da Bahia, aflitos com suas vidas em
risco e seus cargos e funções adquiridas por mercês régias sendo vilipendiados pelas conveniências
políticas do governante do Brasil.
A quantidade de fidalgos da Bahia descontentes com tal situação aumentava e o vice-rei
desconfiava que alguns homens poderosos da Bahia estavam articulando um motim para expulsá-lo
do posto. Em 29 de julho de 1665, cinco pessoas de destaque da cidade de Salvador da Bahia foram
pegas de surpresa com ordem de prisão e embarque imediato para Portugal na frota que os
aguardava pronta para partir. Eram três capitães de infantaria: Antonio de Queiroz Cerqueira, Paulo
de Azevedo Coutinho, Francisco Teles de Meneses e o Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil,
Lourenço de Brito Correa, acompanhado do seu filho, Lourenço de Brito de Figueiredo.334
Dada a amplitude de fontes que explicam os motivos para a prisão e envio compulsório para
Lisboa de cada um dos citados, não podemos aprofundar a trajetória política de todos os suspeitos
de integrar esta conjuração para retirar o Conde de Óbidos do cargo, nosso enfoque está na
participação de Lourenço de Brito Correa como protagonista desta trama e os desdobramentos que
sua oposição política ao vice-rei do Brasil ocasionou em sua vida.
Expulsar alguém do local de onde vive para outras partes do Reino, por um tempo
determinado ou perpetuamente, era uma medida punitiva corriqueira no Antigo Regime. Todavia,
para ser executada, deveria seguir alguns protocolos jurídicos, conforme ensinava o Conselho
Ultramarino ao emitir parecer sobre a prisão e embarque de Lourenço de Brito Correa, do seu filho
e das outras autoridades militares da Bahia, ordenado por Óbidos: [...] conforme a regra do direito,
sem culpa formada, não se condena a ninguém e deve esta preceder primeiro para chegar aos
termos da prisão.335
A justificativa que deu o vice-rei do Brasil para ter enviado tais pessoas foi registrada numa
carta, escrita em 6 de agosto de 1665,336 o documento informava que Lourenço de Brito Correia
seria a principal liderança de um suposto motim que maquinavam contra ele, pois, além de
Lourenço ter histórico de contendas com os governantes enviados da metrópole, também
apresentava consecutivas queixas por escrito ao Conselho Ultramarino sobre questões delicadas
333
AHU, LF, BA Cx.19, Doc. 2145, 31/07/1666
Idem p. 4
335
AHU, LF, BA Cx.19, Doc. 2142, 23/07/1666
336
AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2100, 06/08/1665
334
115
envolvendo a gestão de D. Vasco Mascarenhas.
Óbidos suspeitava ainda que alguns clérigos, militares e outros políticos da Câmara de
Vereadores e da Relação da Bahia estavam envolvidos nesta conjuração para retirá-lo do cargo, pois
estas pessoas estavam criticando sistematicamente sua gestão por via de escritos e boatos, formando
a opinião dos moradores da Bahia contra o seu modo de governar.
No segundo capítulo, tivemos a oportunidade de analisar com mais cuidado a trajetória
política de D. Vasco Mascarenhas e as suas experiências no Ultramar Português. Sua passagem
anterior no Brasil tornou sua pessoa conhecida e respeitada entre as autoridades, todavia, foi em
1652 que o ele recebeu a primeira tarefa de administrar uma praça Ultramarina na condição de vicerei e foi mal recebido pelos fidalgos de Goa, meses após a sua chegada, foi expulso da Índia. Esta
breve experiência como vice-rei no Oriente Português serviu-lhe de lição.
Ostentar títulos nobiliárquicos e adquirir vasta experiência militar anterior não garantiu o
sucesso de D. Vasco Mascarenhas como administrador na Índia, ele não levou em conta que
qualquer descuido no trato com as autoridades locais poderia lhe custar muito caro, de acordo com
os registros da época, esta malsucedida experiência sempre era ressaltada nas cartas escritas pelo
Conde de Óbidos, mas também lembrada por aqueles que estavam sob o seu comando como forma
de apontar os erros e excessos que ele era acostumado a cometer.337
O documento que atesta os pormenores das suspeitas de uma trama engendrada pela elite de
Salvador para retirar Óbidos do seu cargo de vice-rei, encontra-se em uma carta de aviso, escrita no
dia 29 de julho de 1665, mesmo dia da prisão e embarque compulsório de Lourenço de Brito Correa
para o Reino. O longo caminho que percorreu esta missiva é prova de como Óbidos conhecia a
morosidade da tramitação judiciária do Reino e tais contingências eram necessárias para que, depois
de expulsar da Bahia os homens anteriormente mencionados, o Conde vice-rei pudesse mantê-los o
maior tempo possível afastados da Colônia e descobrir outras pessoas de Salvador que concorreram
nesta suposta conjuração.
Fugido do embarque compulsório, o Desembargador da Relação Manuel de Almeida
Peixoto, queixava-se que desde 06 de agosto de 1665, estava [...] retirado pelos mosteiros vivendo
de suas esmolas, desamparado de minha casa, filha, família, para que o Conde de Óbidos não
executasse seu ódio, e fervor em mim, fulminando-me fantásticas culpas.
Entre queixas de [...] absolutos poderes de que usa, e jacta contra as leis divinas, naturaes e
humanas, o vice-reinado de Óbidos no Brasil era criticado pelo magistrado, ele continua sua
denúncia avisando que as suas sistemáticas tentativas de recorrer à justiça ultramarina estava
337
Óbidos relembra mais uma vez a sua deposição do Vice Reinado de Goa em uma carta escrita ao Governador de
Pernambuco, Francisco de Brito Freire. Ver: DHBNRJ. Vol. 9. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia, 1928. Microfilmes,
p. 133-137.
116
obstruída pelas ações de Óbidos: o sigilo das comunicações enviadas e recebidas entre o Brasil e o
Reino esta obstruído pois Óbidos interceptava as comunicações, violava e lia seu conteúdo. 338 Por
fim, a queixa registrou a já mencionada tentativa de assassinato que Manuel de Almeida Peixoto
sofreu, em 18 de abril de 1663, por conta de agravos com o Conde de Óbidos e seus aproximados.
Todo este panorama denota a situação perigosa na Bahia para aqueles que demonstrassem
oposição ao vice-rei, pois [...] se não teme a Deus, nem observa justiça pelos ministros ostentarem
mais lacaios do Conde.339 O Conde de Óbidos assistia a mesma cena que fora surpreendido em
Goa. Dizia ele que os sobreditos suspeitos [...] procuravam por todos os meios persuadir os animos
do povo e dos soldados a um geral ódio contra minhas ações[...].340 O principal inimigo do
segundo vice-rei do Brasil foi, sem dúvida, o velho Lourenço de Brito Correa. Aqui cabe um
parêntese para entender melhor os motivos de tanto ressentimento contra o fidalgo da Bahia.
A primeira acusação formulada contra o Provedor Mor da Fazenda estava baseada em seu
histórico de críticas contra os governantes enviados do reino, especialmente contra o Marquês de
Montalvão. O Conde de Óbidos lembrava-se da trama que elevou Lourenço à uma das três
autoridades que assumiram a Junta de Governo do Brasil, após seguir as ordens do jesuíta Francisco
Vilhena. Já conhecemos as circunstâncias que motivaram as viagens que Lourenço de Brito Correa
fez, enfocaremos agora na última viagem da sua vida, rumo a Lisboa, mais uma vez por motivos
políticos.
Ciente do histórico de cartas que Lourenço escrevia para os Reis de Portugal criticando os
governantes enviados do Reino, a sua participação política era vista com preocupação, Óbidos
resumia os feitos nocivos do Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil e relembrava a D. Afonso VI
e ao Valido a sua participação da deposição do Marquês de Montalvão:
[...] [Lourenço de Brito Correa] com as presunções de ter sido um dos três governadores
que sucederam o Marquês de Montalvão, haver tido com ele indecentíssimos
procedimentos que são notórios e voltar indo preso a esta Corte, sem castigo algum para
este Estado.341
O segundo vice-rei do Brasil rememorou a primeira viagem compulsória que Lourenço de
Brito Correa fez em 1642 e ainda afirmou que o fidalgo da Bahia não teve nenhum castigo, pois
apesar de ficar mais de sete anos no Reino, ele voltou ao Brasil e alcançou da Rainha o perdão dos
erros do passado e graças diversas. Para melhor fundamentar o histórico de insubordinações de
Lourenço, Óbidos elencou outras autoridades que já passaram pela governança do Brasil e foram
alvos da sua crítica:
[...] E com a soberba de haver capitulado aos Condes da Torre e Castel Melhor (tendo
recebido de ambos o favor de o haverem authorizado com sua meza), murmurado do de
338
AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2180, 08/08/1666
idem
340
Op. cit AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2100, 06/08/1665
341
idem
339
117
Authoguia e escrito capitulado e posto paschins a Francisco Barreto, sem com ele usar
demonstração alguma. 342
Ao citar alguns nobres do partido de D. Afonso VI que também foram alvejados pelas duras
palavras de Lourenço, Óbidos elencava os documentos que ele era capaz de produzir para destruir a
imagem dos administradores enviados do Reino dentro do espaço Colonial, seu interesse era reunir
argumentos para reforçar as suspeitas que tinha ao afirmar que Lourenço de Brito Correa era o
principal articulador de uma armadilha para expulsá-lo do cargo de vice-rei do Brasil. De acordo
com seu relato, Óbidos reclamava que Lourenço seguia o mesmo dictame de ataques, desta vez à
sua pessoa e avisava às autoridades do Reino que todos aqueles excessos praticados pelo fidalgo da
Bahia não era novidade e aconteciam por falta de punição exemplar, tais atitudes extrapolavam os
limites da sua [...] natural brandura e benevolência. 343.
Capitular e escrever paschins foram recursos de escrita que alguns homens da Bahia
recorreram para mobilizar a população (ou parte dela) em torno de questões de ordem política,
econômica ou religiosa, era pela letra que os governantes enviados do Reino aumentavam as fintas,
dízimos e impostos acumulados pela Fazenda do Brasil, em contrapartida, era também pela via
escrita que os moradores e negociantes do Brasil criticavam o mal uso dos impostos recolhidos, a
corrupção dos funcionários régios e os abusos de poder dos governadores e vice-rei do Brasil.
Lourenço substituiu o primeiro vice-rei do Brasil e de acordo com as palavras de Óbidos em
1665, ele tentava repetir a mesma façanha, pois, [...] todo o intento de Lourenço de Brito Correa foi
sempre a intenção de querer governar este Estado.344 Óbidos temia que [...] assim na noticia do
mao procedimento de qualquer governador poderia suceder-lhe enquanto Vossa Magestade
mandava outro ou Vossa Magestade o honrava com o mesmo posto.345
Vemos então um Conde de Óbidos escaldado pela falta de traquejo político que teve no
Oriente e na América percebia a mesma cena se repetir, Lourenço de Brito Correa era um influente
homem de negócios e funcionário régio a muitos anos, tinha trânsito político entre as instâncias
mais importantes da Colônia e ainda era chamado de Capitão pelos poderosos de Salvador e do
Recôncavo da Bahia que lembravam do destaque que teve nas batalhas, em tempos de invasão
holandesa.
Portanto, em se tratando de Brasil e seu governo, Lourenço era um especialista, tinha
experiência na administração fazendária e passagem prévia em posto de governador interino, caso o
Conde de Óbidos fosse expulso do seu cargo, ele certamente estaria entre os possíveis substitutos.
342
idem
idem
344
idem
345
idem
343
118
6- Lourenço de Brito Correa em rota de colisão com o vice-rei do Brasil
Lourenço era agraciado por mercês remuneratórias desde o advento de D. João IV,
percebemos que ele estava em constante contato com as autoridades do Reino dada a posição
política que ocupava na colônia, a função de Provedor Mor da Fazenda Real do Brasil e a entrada
na Chancelaria da Relação da Bahia são atividades de grande relevância que podem explicar o
clima de disputa que se envolveu entre os anos de 1664 e 1665.
Como um habilidoso escrevente, ele tinha condições suficientes para desgastar, por via da
justiça, a imagem do segundo vice-rei do Brasil. Para isso era preciso escrever consecutivas
missivas às instâncias do Reino, apontando equívocos do governante e evidenciando os excessos
cometidos nesta função, esta tática levantava suspeitas para com a eficácia do administrador do
Brasil e poderia mobilizar os fidalgos insatisfeitos da Colônia para retirar o vice-rei do seu posto.
Seguindo a tradição administrativa da Casa de Bragança, antes da queixa chegar ao
conhecimento da realeza, o Conselho Ultramarino se ocupava em apurá-las para dirimir quaisquer
dúvidas e após isso apresentar ao soberano a síntese dos seus pareceres para posterior decisão régia.
Se analisarmos as consultas deste Tribunal sobre as contendas existentes entre o Conde de Óbidos e
Lourenço de Brito Correa, constataremos que este sínodo não coadunava com as pretensões nem
com o estilo de governo apresentado pelo segundo vice-rei do Brasil, especialmente no que dizia
respeito a sua tentativa de interferir na lógica das mercês remuneratórias e ao trato pouco adequado
que demonstrava para com alguns poderosos da Bahia.
Devemos neste momento ressaltar o silêncio de Lourenço de Brito Correa e ausência de
qualquer fonte que ateste sua participação nesta trama. Esta sem dúvida foi a maior limitação que
encontrei no transcorrer desta pesquisa, pois até o momento não localizei na documentação arrolada
nenhum papel escrito pelo próprio Lourenço que registre sua participação no motim, nem outro
documento que ateste a versão deste Provedor da Fazenda fez em sua viagem derradeira à Portugal.
As linhas a seguir apresentam a versão do Conde de Óbidos sobre o suposto motim engendrado por
autoridades da Bahia, bem como as impressões deixadas pelo Conselho Ultramarino e por outras
autoridades de Salvador envolvidas neste episódio.
Contrastando a versão apresentada pelo Conde de Óbidos com outros documentos arrolados
que também dão notícias do comportamento de Lourenço de Brito Correa nesta ocasião, reuniremos
subsídios para elucidar algumas incongruências informadas por Pedro Calmon ao estudar este
episódio decisivo para a carreira do Conde de Óbidos e assim estabelecer outros olhares para
entender esta trama.
O segundo vice-rei do Brasil fundamentou suas suspeitas de estar sendo vítima de um motim
baseando-se em escritos que, supostamente, saíam do gabinete de Lourenço e eram remetidos para
outras autoridades da Bahia, o conteúdo atacava a pessoa de Óbidos: [...] buscou [Lourenço de Brito
119
Correa] ultimamente esta de conspirar contra minha pessoa, capitulando-me e enviando até esta
Corte e a alguns ministros vários papéis contra meu procedimento.346
O Conde de Óbidos pesa nas tintas ao evidenciar o histórico de contendas que Lourenço de
Brito Correa havia se envolvido no passado e se mostrava desacatado pelas denúncias e queixas
formadas por ele.
De acordo com Óbidos, o Provedor Mor da Fazenda se [...] jactava que era mais bem ouvido
que os governadores deste Estado e se tomasse alguma revolução comigo e me viesse a succeder.
Desgastar a imagem do mandatário do Brasil por via de comunicações sistemáticas aos
governadores das Capitanias elencando os desmandos, desvios e autoritarismos dos governantes
superiores era uma estratégia utilizada pelos fidalgos da Bahia desde o século XVI, contudo a
particularidade deste caso está na antecipação do Conde.
Apenas por suspeitar de estar sendo vítima de uma trama que o expulsaria novamente do seu
cargo de vice-rei, Óbidos embarcou subitamente os principais opositores do Brasil, rumo a Lisboa,
para que pudesse governar com tranquilidade e sem escritos inoportunos que evidenciavam suas
fragilidades.
Óbidos não podia assistir a distribuição de paschins falando mal do seu governo sem tomar
as providências cabíveis, suspeitava que os fidalgos da Bahia se reunião em ranchos e bandorias
para tramar contra ele e estes possíveis sediciosos liderados por Lourenço de Brito Correa
espalhavam críticas à sua pessoa por entre os homens da Bahia Colonial, de acordo com a denúncia
de Óbidos [...] este era o seu intento: e nas disposições dele o ajudarão firmando papéis,
escrevendo aos Ministros e influindo todo este povo, pública e secretamente.347
É sempre apropriado conhecer o conteúdo do vocabulário utilizado pelos homens que
viveram no século XVII para termos uma noção mais precisa das suspeitas que tinha Óbidos em
relação às manobras de Lourenço de Brito Correa, especialmente se levarmos em conta a sua
habilidade de escrever e o significado das palavras capitular e capitulação348 para aqueles que
viviam no Brasil Seiscentista. Capitular era um recurso de escrita que tinha o objetivo formar
artigos com determinados temas e expô-los em público, capitulação eram as condições com que
determinadas pessoas estabeleciam um pacto e registravam por escrito o acordo das partes, por
exemplo, a trégua de uma guerra ou os termos de rendição entre sitiados e sitiadores eram lavrados
em capítulos. No Brasil, os fidalgos tinham direito de formular capítulos de acusação contra os
excessos dos seus comandantes, apontando em tais papéis os detalhes dos erros cometidos e o mal
que tais desmandos causava aos moradores da Colônia, comprometendo-se em comprovar a
346
Op. cit. AHU, LF, BA Cx. 18, Doc. 2100, 06/08/1665
idem
348
Op. cit. BLUTEAU, Vol.2, p.128.
347
120
veracidade de suas informações perante a lei.
A palavra bando349 dava a ideia de partido, parcialidade. As pessoas que manifestavam
interesses congruentes reuniam-se em bandos com o objetivo de debater os pontos principais de
suas posições, esta palavra coaduna com o sentido que o termo racho era utilizado pelos lusófonos
do século XVII, apesar de ser uma palavra de origem castelhana, cujo significado é pousada ou
hospedaria, o termo foi muito utilizado pelos militares ibéricos para nomear toda companhia de
camaradas, soldados e marinheiros, que se reunião em algum local reservado do quartel ou do
navio, nestes lugares os rancheados350 se tratavam familiarmente e mantinham interesses e
intenções confluentes. Por fim, a palavra paschim ou pasquim era um [...] dito picante posto em
papel e publicamente exposto.351
Todo este repertório de escritos, muitas vezes anônimos, podia comprometer a gestão de um
governante, dentro e fora do Ultramar. Entre suspeitas de reuniões privadas promovidas por
Lourenço com outros poderosos da Bahia e comunicações que circulavam entre os fidalgos de
Salvador atacando duramente a gestão do Conde de Óbidos, vemos que o clima político da Bahia
Seiscentista estava tenso.
Sabendo que muitos homens inclinavam-se às ideias promovidas supostamente por
Lourenço de Brito Correa e narrando os movimentos de seus opositores, D. Vasco Mascarenhas deu
prosseguimento a sua denúncia nomeando os participantes dos [...] ranchos e bandorias352 que
articulavam a sua retirada.
Lourenço não estava sozinho e tinha aliados influentes na Colônia que faziam coro às suas
críticas, seus companheiros eram fidalgos agraciados por D. João IV e pela Rainha Regente e
possuíam propriedades de terras e escravos na Bahia, além de religiosos, funcionários da
administração colonial e comandantes militares, outras pessoas foram citadas pelo vice-rei do Brasil
como participantes deste suposto motim liderado por Lourenço.
As culpas formuladas pelo Conde de Óbidos contra seus opositores são encontradas num
auto de culpas, escrito no dia 30 de outubro do ano de 1665 pelo escrivão da [...] Ouvidoria geral
do crime e da auditoria da gente de guerra situada na cidade de Salvador.353 Ele certificava o que o
Desembargador da Relação Bernardim Macedo Velho ouvira [...] no ano de cristo de 1665 aos 5
dias do mês de agosto, nas casas onde vive o Vice Rei do Brasil,354 analisaremos em um momento
oportuno que o Desembargador Macedo Velho vituperou os protocolos de justiça ao lavrar este auto
de denúncias dentro da residência do vice-rei e tal atitude foi vista com estranhamento pelo
349
Idem BLUTEAU, p. 31; 104.
Idem, BLUTEAU, Vol. 7, p. 105
351
Idem, BLUTEAU, Vol. 6, p.296.
352
Op. cit. AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2144, 30/10/1665.
353
idem
354
idem
350
121
Conselho Ultramarino pois era prova de que um oficial da justiça na Bahia poderia estar sendo
manipulado pelos interesses de Óbidos, passemos para as denúncias pronunciadas por Óbidos:
[...] ele dito Conde Vice Rey governando este estado com a moderação e justiça que
convinha o serviço de Vossa Magestade e bem de seus vassalos evitando por todas as vias
com seu procedimento as queixas que do contrário costumão resultar, procurando com
todo o desvelo manter em paz e quietação os moradores355
O zelo administrativo que o segundo vice-rei do Brasil evidenciava nas palavras acima
transcritas objetivou ressaltar que alguns homens de destaque da Bahia ameaçavam a paz e a
quietude da sua administração, Lourenço de Brito Correa foi o principal alvo da denúncia pois
estava a [...] tratar por todas as vias de amotinar os soldados deste presidio e aos moradores desta
cidade para que depusessem do governo ele dito Conde Vice Rei e o dito Lourenço de Brito Correa
se introduzir Governador.356
O Conde vice-rei aprofundava o conteúdo das suspeitas, afirmou que Lourenço lançava mão
de [...] ranchos, lianças, e amizades com varias pessoas,357 dentre elas, o já mencionado
Desembargador Manuel de Almeida Peixoto, acusado de ser auxiliar direto dos planos para expulsálo do Brasil, pois também estava [...] reprovando publica e secretamente as acções dele Conde Vice
Rei e divulgando assim por sua parte como por outras. 358
Óbidos fez registrar nesta carta as calúnias que estava sendo vítima, corria-se pela Bahia a
notícia de que ele [...]havia tomado contra sua vontade de muitas pessoas de valor e quantias de
consideração como era uma baixela de prata, hum anel de hum diamante de preço, roupas de muito
custo e outras varias couzas.359 Contudo, Óbidos sabia que o maior motivo para as desavenças e
discordâncias dos fidalgos da Bahia para com sua gestão era por causa da sua pretensão em prover
cargos vacantes, originários de mercês remuneratórias:
[...] e publicando que os postos que se provião todos eles se davão a quem os comprava ao
dito Vice Rei, não admitindo por este respeito os provimentos que o Conselho Ultramarino
fazia para que sendo tudo provido por ele Conde Vice Rei tivesse grandes avanços que os
pretendentes lhe davão aos quais somente provião nos postos e ofícios e que outrossim
vindo a este Estado provera os oficios em criados seus não permitindo que os servissem as
pessoas nomeadas pelos proprietários.360
Aflito com a situação de desacordo com certas autoridades da Bahia, o Conde vice-rei
explicava que por mais louváveis que fossem suas ações, seus opositores o caluniavam ao afirmar
que sua pretensão em prover cargos e ofícios vagos no Brasil era para atender suas conveniências
políticas e não para cumprir o melhor serviço régio.
Por ser um fidalgo influente na Bahia, Lourenço de Brito Correa foi acusado de ser o
355
idem
idem
357
idem
358
idem
359
idem
360
idem
356
122
principal formulador das opiniões negativas sobre o modo de governar do segundo vice-rei do
Brasil e expunha suas ideias a [...] zelosos e discretos.361
O Conde de Óbidos explicava que Manuel de Almeida Peixoto também estava ressentido
por causa do seu estilo do administrar a outorga de cargos e ofícios no Brasil, o vice-rei negou a ele
o [...] ofício de Provedor da Fazenda que pretendia ser seu, não constando carta de seu provimento
mais que só de Desembargador extravagante.362
Antônio de Queiroz Cerqueira foi retirado do seu posto de Capitão em um Terço de
Infantaria, instalado na Ilha de Taparica, Óbidos justificava que Antonio tinha histórico de muitas
queixas, incluindo denúncias de [...] roubos e excessos que ali se obrava sem embargo de lhe
fazerem ofertas de grandes quantias de dinheiro para que o dito Capitão assistisse na dita Ilha.363
Paulo de Azevedo Coutinho foi expulso da Bahia e citado nesta denúncia formulada pelo
Conde de Óbidos, o motivo do desentendimento foi que por sua ordem o militar esteve [...] preso
muito tempo pela queixa que os oficiais da camara lhe haviam feito dos excessos e ameassas com
que o dito capitão se houve com os ditos oficiaes em vereaçam.364
Francisco Teles de Menezes também foi preso e embarcado compulsoriamente no mesmo
navio por suas ligações com Lourenço de Brito Figueiredo, filho do Provedor Mor da Fazenda, a
acusação é que eles [...] se haviam ajuntado para divulgarem por si e seus amigos muitas infamias
dele dito Conde.365
A origem das suspeitas de motim foram elucidadas nesta mesma carta, uma [...] inquietação
que os soldados deste presídio haviam feito366 deflagrou uma situação de insegurança no apoio dos
militares da Bahia para com a gestão de D. Vasco Mascarenhas, desconfiando que também os
soldados estavam cientes das críticas de Lourenço de Brito Correa contra seu governo e ouvindo
falar que os mesmos já estavam [...]apelidando-o por seu Governador. 367
O vice-rei via-se cada vez mais envolvido numa trama de usurpação e tudo indicava que o
Provedor Mor da Fazenda estava por traz daquela armação, pois, ao invés de aplacar os ânimos dos
soldados revoltados e comunicar de imediato a Óbidos sobre os possíveis descontentamentos,
361
idem
idem
363
idem
364
Idem. O Conde de Óbidos explicou os motivos do desentendimento que o Capitão Paulo de Azevedo Coutinho teve
com os oficiais da Câmara por meio de uma Portaria enviada no dia 22 de outubro de 1664 ao ouvidor Geral do Crime e
auditor da gente de guerra do Brasil, Cristóvão de Burgos, o Vice Rei afirmava que [...] não lhe tocando procurar o
sustento da Infantaria dos Terços deste presídio, se resolveu a dar à Camara desta Cidade a petição que com esta se
remete, e ater com alguns oficiaies dela demasiado desabrimento sobre o mesmo intento da petição, Constando estar a
Infantaria paga do que lhe devia satisfazer em meu tempo, e havendo precedido a revolução que há poucos dias houve
na mesma Infantaria [...] o doutor Christóvão de Burgos [...] tire logo informação jurídica, das palavras que o dito
capitão teve , com o oficial ou oficiaes daquele senado e juntada a mesma petição me dê conta para resolver. Ver:
DHBNRJ, Vol 6, p. 198.
365
idem
366
idem
367
idem
362
123
Lourenço de Brito Correa manteve-se distante e omisso a estas manifestações, não debelou a fúria
dos militares, nem apareceu à casa do vice-rei para lhe prestar solidariedade.
No auto de culpas que estamos analisando, o Conde de Óbidos faz registrar outras suspeitas
que recaíam sobre Lourenço de Brito Correa, baseando-se em um [...] papel contra ele dito Vice Rei
no qual lhe impunhão vários crimes e culpas tão indignas de sua pessoa e postos grandes que
ocupava.368 O Provedor Mor da Fazenda estava utilizando seus dotes de escrita para convencer
outros aliados acerca das suas limitações como governante, por isso Lourenço estava [...] andando
por si e seus sequazes assinando e obrigando assinar a várias pessoas mal afectas e inimigas dele
Vice Rei.369
Óbidos afirmava que Lourenço se vangloriava de suas experiências de governo e que na
Bahia
[...] ninguém é maior fidalgo que ele, e tudo assim obrava, o dizia, para persuadir que nos
merecimentos e qualidades se igualava muito aqueles que tais postos costumam ocupar.
[...] e ultimamente era tanta a devassidão e excessos dos sobreditos que andavam insitando
os moradores e soldados contra a pessoa dele dito Vice Rey dizendolhes que procurassem
por governador a ele Lourenço de Brito Correa porquanto o Vice Rey não era para o
governo e não somente isto que dito tinham, dezião e publicavam dele dito Vice Rey mais
ainda muitas outras cousas afim de conseguir o intento que somente se encaminhava ao
governo em que se queria introduzir. 370
O histórico de desacordos com o primeiro vice-rei do Brasil e a suspeita de que ele estava
liderando uma conjura para usurpar o segundo, credenciava Lourenço como [...] cabeça de
rancho,371 ou seja, líder da conjuração. De acordo com a denúncia de Óbidos, o comportamento
insubordinado de Lourenço ia adquirindo mais adeptos e alcançava [...] a maior parte do povo e
Infantaria,372 afirmava ainda que as acusações que faziam contra ele [...] animava a todos os que
ligeiramente se deixavam persuadir a qualquer novidade.373
O Conde de Óbidos deixava transparecer nas suas palavras que esta [...] atrevida
deliberação tinha o mesmo conteúdo político da malsucedida experiência que ele teve em Goa, ele
reclamava ao Rei D. Afonso VI que a conspiração que armaram contra sua pessoa, em 1653, [...]
não só não foi castigada, mas voltaram-se os cúmplices habilitados a ocupar os governos das
praças daquele Estado.374
Os fidalgos de Salvador e do Recôncavo sabiam que Óbidos havia sido expulso da Índia e
estava governando o Brasil por causa de sua aproximação com o Afonso VI e com o seu Valido, o
segundo vice-rei tomou medidas drásticas para conter o que supunha se tratar de um motim e para
368
idem
idem
370
idem
371
idem
372
idem
373
idem
374
idem
369
124
garantir sua permanência no poder, afastou compulsoriamente do centro administrativo do Estado
do Brasil seus principais opositores.
Óbidos entendeu os supostos escritos que criticavam negativamente sua gestão como
capitulações e exigia de D. Afonso VI uma punição exemplar, todos os indícios levavam a crer que
o Provedor Mor da Fazenda e seu sequito pretendiam repetir contra ele o sucesso da Índia.
Contudo, Óbidos não esperou o parecer do Reino e agiu com poderes de vice-rei, lançou mão do
fator surpresa para impedir a fuga dos seus principais opositores e os pegou desprevenidos para
afastá-los da capital da Colônia sem resistência e com pouco alarde:
[...] Este navio ficou acabando de carregar parte das fazendas da Nao Populo, que não
coube na capitania e outra nao que vai dividida. E pela brevidade de ir achar a frota em
Pernambuco não pode levar as culpas dos presos que enviei a Vossa Magestade como
consta da certidão inclusa.375
Após apresentar o conteúdo de suas suspeitas nesta carta de aviso, o Conde de Óbidos tratou
de assegurar que as provas da [...] inocencia do procedimentos de que me arguem, como atroz a
maldade com que huns e outros conspirão376 seria enviada ao monarca posteriormente devido as
contingencias do mar.
A tramitação que esta missiva teve merece um destaque, apesar do manuscrito informar
suposições e indícios de que certas pessoas tramavam destituir o segundo vice-rei do Brasil, ele não
dava provas cabais do envolvimento dos denunciados e nem apontava as testemunhas que poderiam
comprovar a versão de Óbidos, o vice-rei prometia enviar, na próxima embarcação que sairia da
Bahia rumo a Lisboa, a devassa completa que demonstrava a culpa de cada um dos seus desafetos e
os motivos que orientaram esta atitude.
7- Lourenço morre no cárcere
Chegando a Lisboa, os suspeitos foram conduzidos para a cadeia do Limoeiro enquanto os
papéis que informavam sobre as culpas foram enviados para o Desembargo do Paço e não para o
Conselho Ultramarino, fazendo isto, Óbidos sabia que seu dever de justificar a prisão e envio de
pessoas tão importantes da Bahia deveria ser feito com cuidado, como um bom conhecedor dos
conflitos de jurisdição existentes no Reino, ele mandou os autos para um corpo consultivo
inadequado e que não tinha alçada para com os assuntos da América Portuguesa.377
O Conselho Ultramarino mais uma vez relembra ao Rei que [...] pertence a este Conselho
privativamente todas as matérias da justiça, fazenda e guerra das conquistas e que as ações do
375
idem
idem
377
Um estudo mais aprofundado sobre os conflitos de jurisdição entre o Conselho Ultramarino, o Desembargo do Paço
e Conselho da Fazenda foi feito por CARDIM, Pedro. “ ‘Administração’ e ‘governo’: uma reflexão sobre o vocabulário
do Antigo Regime”. In: Modos de Governar: Idéias e práticas no Império Português (séculos XVI-XIX). São Paulo:
Alameda, 2007, p. 45-69.
376
125
segundo vice-rei do Brasil estava extrapolando os limites de poder que tinha, pois [...] lhes são
presentes as ordens, e regimentos de Vossa Majestade, a que devia dar inteiro cumprimento e não
quebrantálas, como fez, em não enviar a devassa, de que tinha dado conta.378
Valendo-se desta contingência, o segundo vice-rei do Brasil ganhava tempo para apurar
novas denúncias e recolher as provas necessárias contra seus oponentes que, em finais de 1665,
encontravam-se na cadeia do Limoeiro e aguardavam saber os motivos porque foram presos e
embarcados compulsoriamente.379
Não podemos perder de vista que o Desembargo do Paço era uma instância aliada ao
governo de D. Afonso VI e, consequentemente, tinha ministros próximos à Óbidos, tal afirmação
pode ser comprovada se analisarmos o que o Rei pensava sobre este sínodo: [...] a Mesa do
Desembargo do Paço [...] é o Tribunal mais unido à minha pessoa, e assim o que com maior deve
procurar o acerto do meu governo.380
O penúltimo parágrafo desta carta, escrita em 1665, arremata as conclusões que o segundo
vice-rei do Brasil tirou sobre o envolvimento de Lourenço de Brito Correa no suposto motim:
[...] E sendo Lourenço de Brito Correa o motor original de tudo e o sujeito mais perverso e
escandaloso, que entre todos os que somos vassalos de Vossa Majestade considero, e tão
prejudicial o exemplo com que se faz absoluto, e não querer pagar finta ou contribuição
alguma para o Serviço de Vossa Magestade.381
Óbidos afirmava que Lourenço de Brito Correa se negava a pagar impostos ou contribuições
régias previstas alegando isenção por pertencer a Ordens Militares, por isso os fidalgos da Bahia
estavam imitando a inadimplência e tais atitudes aumentavam a tensão entre estes dois homens,
apesar de ser o vice-rei do Brasil, D. Vasco Mascarenhas parecia temer o desacordo que aquela
movimentação suspeita poderia acarretar à sua governabilidade: [...] não faltam no Brasil sogeitos
de ânimo inquieto e prontos para semelhantes revoluções.382
Lourenço era execrado pelas palavras de Óbidos: [...] não terá o Brasil sossego nem os
generais que a ele vierem acerto algum no serviço de Vossa Majestade se a ele voltar Lourenço de
Brito, o que não será crível depois que forem apresentadas a Vossa Majestade as culpas.383 Mais
uma vez o Conde deixa escapar suas intenções, ele sabia que o velho Provedor Mor da Fazenda
378
AHU, LF, BA Cx.19, Doc. 2142, 23/07/1666
O Conselho Ultramarino mandou repreender o Vice Rei do Brasil por ter enviado ao Desembargo do Paço a devassa
contra as pessoas que ele mandou presas ao Reino, por conspirarem contra ele e se ordenar aoi mesmo Tribunal a
remessa daquela devassa ao Conselho Ultramarino. Desta forma, os presos continuavam detidos e com os autos do seu
processo propositadamente desviados para uma instância inadequada. Ver: Op. cit. AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2142,
23/07/1666.
380
Ver: Carta do Rei D. Afosno VI sobre o Desembargo do Paço e seus ministros. 22/08/1662. Rei. Livro X
daSuplicação, disponível em http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=101&id_obra=63&pagina=234#
381
Op. cit. AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2144, 30/10/1665.
382
Idem. De fato, desde a Provisão Régia de 16 de abril de 1663, declarava os [...] Commendadores e Cavalleiros das
Ordens Militares, no Brasil, isentos de pagar os donativos parra sustento da Infantaria do mesmo Estado. Ver:
http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/~ius/verlivro.php?id_parte=101&id_obra=63&pagina=263
383
idem
379
126
Real do Brasil já era septuagenário em 1665 e fazê-lo cruzar o Atlântico àquela altura da vida seria
uma punição deveras cruel:
[...] porque enquanto viver há de perturbar esta república e censurar os mais qualificados
merecimentos pela aversão natural que o seu ânimo tem a todos os que não são como ele,
pois só os seus semelhantes são os que costumão aprovar o que elle escrevia contra a
mesma verdade.384
A partir da terceira folha deste longo documento, encontra-se os pareceres dos magistrados
do Conselho Ultramarino que trataram deste caso e as percepções que deixaram sobre as alegações
do Conde de Óbidos.
Saliente-se que o conselheiro relator, Feliciano Dourado, só escreve a súmula desta consulta
em 27 de outubro de 1665 e depois de examinar cuidadosamente os argumentos do vice-rei ele
apresentou tecnicamente o seu posicionamento, relembrando um antigo costume do processo penal
Filipino para explicar a falta de consistência das desconfianças apresentadas pelo Conde de Óbidos
para ter prendido e embarcado para o Reino seus opositores, pois [...] conforme as regras de
direyto, sem culpa formada não se condena a ninguém e deve preceder esta primeiro para chegar
aos termos da prisam.385
Feliciano Dourado mencionou a fragilidade da denúncia feita por Óbidos e o tempo
demasiado longo que esta consulta estava sem análise apropriada, acarretando prejuízo aos fidalgos
expulsos da Bahia:
[...] como não vem devassa com culpas que obrigue, nem consta na dita carta de avizo
mais que suspeitas de uma conjuração nascida dos capítulos que dis mandava Lourenço de
Brito Correa a Vossa Majestade e a vários ministros, não he isto bastante para prender e
mandar ao Reino este homens.386
O magistrado não encontrou delito algum nas acusações formuladas contra aqueles que
supostamente estavam escrevendo capítulos sobre a gestão do segundo vice-rei do Brasil, na
opinião do juiz, [...] dar capítulos contra os poderosos era um recurso por onde se faz saber aos
Reis e Príncipes e a seus ministros os procedimentos daqueles contra quem se dão.387
Feliciano Dourado aproveitou a oportunidade para explicar os leitores do seu parecer a
metodologia legalmente admitida para se prosseguir os expedientes da capitulação. Não bastava
escrever críticas e acusações contundentes contra os governadores do Brasil e espalhá-las entre
outros homens da elite, os capitulares deveriam deixar certa quantia em dinheiro como [...] caução
depositada para pena de sua malícia ou temeridade se os não provarem, além do direyto que fica
reservado contra eles como de ordinário acontece em casos semelhantes.388
O relator desta consulta ressaltava que era inadmissível [...] privar os homens do povo e
384
idem
idem
386
idem
387
idem
388
idem
385
127
quaisquer particulares deste recurso de poder capitular na forma que fica apontado,389 era um
dever dos fidalgos da Bahia resguardar o bem comum e manter o Rei informado dos procedimentos
que os Governadores e vice-rei do Brasil manifestavam, por isso o silenciamento de Lourenço de
Brito Correa tinha o objetivo principal de afastá-lo da Colônia por ser o principal suspeito de
articular um motim e ao mesmo tempo intimidar outras pessoas da Bahia que ousassem escrever
papéis criticando o estilo de governar do Conde vice-rei do Brasil.
As suspeitas de Óbidos foram interpretadas pelo conselheiro apenas como [...] humas
influências e casos, contingentes para o futuro, que não são provas verificadas.390 Diante de todos
estes argumentos, Feliciano Dourado aconselhava que seria mais acertado [...] mandar soltar estes
presos e polos em sua liberdade pois não consta de culpas que os obrigou ao serem que he o que
precisamente deveria preceder.391
O parecer de Feliciano Dourado deu provimento favorável aos que foram expulsos da Bahia
por ordem do Conde de Óbidos, contudo ele fez registrar como esta atitude estava fora dos padrões
jurídicos daquela época: [...] em casos de fragante se dentro de oito dias se não averigua a culpa,
manda a lei que seja o preso em sua liberdade, quanto mais vindos do Brasil que he parte tão
remota e donde não pode vir tão facilmente esta averiguação 392, os expulsos pelo vice-rei ficaram
presos e impossibilitados de apresentar suas versões, também não tinham acesso à devassa que
elencava suas supostas culpas e todo este conjunto de equívocos privava Lourenço de Brito Correa
e os outros expulsos da Bahia do direito de poder acessar as garantias que a lei lhes dava.
O magistrado entendeu que Óbidos poderia ter prendido os homens suspeitos de motim em
uma cadeia na Bahia até que se reunissem todas as provas que davam consistência à dita suspeita,
como conhecedor nas prerrogativas de nobres com alta patente, Feliciano Dourado prestou
deferência a D. Vasco Mascarenhas, afirmando que em sua pessoa concorriam [...] calidades e
requisitos que pedem se atenda em parte ao que ele escreve, sobre este caso deve Vossa majestade
por razão de estado, mandar que a soltura dos ditos presos seja com obrigação de não saírem desta
Corte.393 Dourado aconselhava a liberação imediata dos homens expulsos da Bahia e que se
encontravam presos no Limoeiro, com a condição destes não saírem da cidade de Lisboa até que o
processo fosse concluído.
Outro juiz do conselho Ultramarino, Miguel Zuzart Azevedo, manteve o mesmo parecer do
relator, todavia, este magistrado entendeu que o Conde de Óbidos utilizou o expediente da prisão e
envio de seus opositores por acreditar que tinha motivos suficientes para tal ação, por isso o
389
idem
idem
391
idem
392
idem
393
idem
390
128
conselheiro acreditava ser mais prudente manter os fidalgos da Bahia presos no Limoeiro até que
chegassem os papéis das culpas e só após o conhecimento do conteúdo das mesmas, eles estariam
livres para cuidar das suas defesas e livramentos.
Já os juízes João Falcão de Souza e Francisco Malheiro ressaltaram a falta de legitimidade
daquelas denúncias e flagrante parcialidade de um membro da Relação da Bahia na apuração deste
caso, toda a denúncia feita pelo Conde de Óbidos contra os cinco homens que expulsou da Bahia foi
lavrada dentro da residência do Conde de Óbidos e não em um edifício público e esta atitude
comprometia seriamente a lisura do processo em tela:
[...] nesta consulta consta que ser procurado pela queixa que fez o Conde Vice Rei em sua
própria casa o que o direito dá pouco credito e resiste, porque os autos para serem
legítimos e verdadeiros fora de toda suspeita hão de ser processados nos logares
destinados pela justiça, e não em casa do mesmo que se queixa.394
Em Portugal, os expulsos da Bahia e prisioneiros no Limoeiro tentavam acelerar a
tramitação daquele processo e solicitavam que o Rei desse vistas aos seus pedidos de soltura, foi o
que fez o Capitão Paulo de Azevedo Coutinho numa carta escrita a 6 de julho de 1666, um ano
depois daquela passagem incômoda e repentina para Portugal, o Conselho Ultramarino emitiu um
parecer favorável ao militar e aos outros envolvidos:
[...] visto pela devassa não haver testemunha, que condene os presos, he haverem
delinquido no crime de sediciosos, nem de haverem amotinado, nem conjurado para
alguma facção, contra a pessoa do Conde Vice Rei, os deve soltar, e restituir aos seus
postos, como antes, e que se vão para suas casas, sem outra pena alguma: porque pelos
autos da devassa a não merecem” 395
O parecer final do Conselho Ultramarino sobre esta suposta conjuração liderada por
Lourenço de Brito Correa encerra este trabalho e nos oportuniza estabelecer alguns
questionamentos sobre o modo de governar do Conde de Óbidos no Brasil. Em primeiro lugar, vale
salientar que o parecer abaixo foi emitido pelo Conselho Ultramarino no dia 09 de outubro de 1666,
após receber finalmente os autos das culpas que estavam em posse do Desembargo do Paço. Este
foi o parecer emitido pelo Conselho Ultramarino:
[...] pareceu dizer a Vossa Majestade, que no auto, que o dito Conde mandou processar
para se tirar a dita devassa, se trata somente de motim, e conjuração, que Lourenço de
Brito Correa, e os mais, que no auto se contem, tratavam fazer contra a pessoa do dito
Conde Vice Rei, e de capítulos, e papéis, que contra ele faziam, para madarem a Vossa
Majestade, e também de palavras escandalosas, e injuriosas que assim os presos, como o
Desembargador Manuel de Almeida Peixoto, diziam publicamente contra sua pessoa, com
menos respeito do que se lhe devia. E considerada uma, e outra cousa, não se acha em toda
a devassa testemunha alguma, que diga, que visse, ou soubesse, que o dito Lourenço de
Brito Correa, e os mais conhecidos no auto, fizessem motim ou conjuração contra a pessoa
do dito Conde; nem falassem, persuadissem, ou inquietassem pessoa alguma da gente da
terra, nem dos soldados pagos para esse efeito, que é a forma com que os sediciosos, e
amotinadores fazem semelhantes ações, em prejuízo do serviço de Vossa Majestade. 396
394
idem
AHU, LF, BA Cx. 19, Doc. 2143, 25/06/1666
396
AHU, LF,BA Cx. 19, Doc. 2155, 09/10/1666.
395
129
Neste mesmo parecer, encontra-se o destino final do velho Lourenço de Brito Correa em
1666, depois de ter passado pelo menos um ano e meio prisioneiro, o fidalgo da Bahia morreu
dentro da prisão do Limoeiro ao lado do seu filho. O Conselho Ultramarino fez questão de ressaltar
as consecutivas quebras de protocolos jurídicos e violência cometida pelo Conde por ter expulsado
do Brasil pessoas de destaque, apenas por leve suspeita de um motim nunca comprovado:
[...] E querendo o Conde Viso Rey intentar acção contra elles, pelas palavras que falarão
temerariamente, o poderia fazer na forma da ley; mas não pelo modo com que o fes. E
quando fora destes termos, os prezos tivessem alguã culpa, enquanto as palavras.
Reprezenta o Conselho a Vossa Magestade, que parece a tem bem purgado no discômodo
da viagem a este Reyno, e modo com que o Conde Viso Rey os remetteo, e com desamparo
de suas casas, e haver mais de hum anno, que estão prezos, sendo muyto para considerar
morrer na prizão Lourenço de Brito Correa, pessoa tam benemérita no serviço de VMgde. ,
e que contra elle nunca por este Conselho houve queixa, nos cargos que tinha servido.397
Aproximando-se das considerações finais desta dissertação, é preciso ressaltar que D. Vasco
Mascarenhas e Lourenço de Brito Correa construíram suas carreiras entre o primeiro quarto do
século XVII e o último quarto deste mesmo século. Por isso, definir um recorte cronológico fixo
que baliza este trabalho foi uma tarefa difícil que só pôde ser superada quando percebi que as
trajetórias destes homens tinham algumas convergências possíveis de serem analisadas: eles
serviram em cargos militares durante a dinastia Filipina, acompanharam os movimentos de
Restauração do Trono de Portugal e fim da União Ibérica e continuaram a servir aos soberanos da
casa de Bragança até o final de suas vidas.
Após 1640, este homens ostentavam em seus históricos os muitos serviços prestados às
monarquias e as várias retribuições que obtiveram da graça régia, Lourenço e Óbidos estavam
inseridos na trama da economia de mercê e com o advento do Rei D. Afonso VI e as reformas
políticas implementadas pelo Conde de Óbidos em seu vice-reinado, a outorga da graça régia sofreu
uma interferência notória e que foi mal vista por alguns homens de destaque na Bahia.
Pedro Calmon chamou de “rebelião obscura” os acontecimentos que se deram na cidade de
Salvador no dia 29 de maio de 1666, por ocasião das exéquias da Rainha D. Luisa de Gusmão, o
historiador compreendeu que os já mencionados opositores do Conde vice-rei estavam tramando
uma conjuração para retirá-lo do cargo, contudo, esta informação não parece ser verdadeira, visto
que deste julho de 1665 as manobras políticas de silenciamento dos opositores de Óbidos já estava
em plena execução e, em 1666, Lourenço de Brito Correa já era defunto.
O autor
tem razão ao afirmar que a origem dos motivos dos desentendimentos e
perseguições perpetradas pelo Conde vice-rei contra os seus desafetos estava na vinculação política
que eles apresentavam com a Rainha Regente, uma prova da veracidade desta afirmação é que, após
o fim do reinado de D. Afonso VI e ascensão de D. Pedro I ao Trono, todos os expulsos da Bahia
397
idem
130
pelo Conde de Óbidos foram restituídos aos seus postos e indenizados pelas perdas que tiveram
durante o encarceramento, mas este é um assunto para próximos estudos.
Os meses finais do ano de 1665 demarcam acontecimentos que definiram todo o restante da
gestão de Óbidos no Brasil. Se neste ano o vice-rei se livrou dos seus principais opositores
políticos, embarcando-os Lisboa e perseguindo os outros que na Bahia encontravam-se refugiados
pelos conventos, ele também teve que enfrentar outros problemas que não podiam ser contidos por
vias políticas.
Sebastião da Rocha Pita se ocupou em sua História da América Portuguesa daquela que
considerou a pior calamidade vivida pelos moradores do Brasil, desde o descobrimento. É a partir
de suas palavras que podemos acompanhar os dois últimos anos da gestão do Conde de Óbidos e
assim expor outras inquietações a que este trabalho motivou.
[...] um horroroso cometa, que por muitas noites tenebrosas ateado em vapores densos
ardeu com infausta luz sobre nossa América, e lhe anunciou o danno que havia de sentir,
porque ainda que os meteoros se formam de incendios casuaes, em que ardem os átomos
que subindo da terra chegam condensados à esphera as cinzas em que se dissolvem são
poderosas assim a infeccionar os ares para infundirem achaques como a descompor os
ânimos para obrarem fatalidades; tendo-se observado que as maiores ruínas nas
repúblicas e nos viventes trouxeram sempre deante destes signaes.398
O matemático, filósofo e astrólogo jesuíta de nome Valentim Stansel veio para o Colégio da
Bahia na mesma época que o Conde de Óbidos chegou ao Brasil, em 1663. Esteve a ensinar
teologia moral e matemática e aqui se ocupava em aprofundar os seus estudos sobre o clima e a
natureza dos Trópicos, além de continuar suas investigações, acompanhando os movimentos dos
astros no Hemisfério Sul. Ele era um dos mais respeitados astrólogos da Companhia de Jesus e teve
seus trabalhos publicados na Europa, seus estudos foram utilizados por Isaac Newton e a sua
história pode nos dar mais detalhes sobre o pensamento científico do Brasil no período colonial.
Não é cabe aqui aprofundar os pormenores da trajetória de mais este homem que fez o nome
da Bahia ser conhecido pelos astrólogos e cientistas do Velho Mundo, todavia não seria possível
encerrar esta dissertação sem mencionar que no ano de 1665, o jesuíta escreveu o seu “Legado
Uranico do Novo ao Velho Mundo”.399
Apesar do padre Stansel não ver o mencionado fenômeno celeste como um aviso de Deus
para redenção das almas ou prenúncio do apocalipse, na sua concepção, todas as alterações
posteriores às passagens de cometas pelo orbe eram consequências naturais e não tinham
necessariamente relação com a vontade divina, nota-se também que a passagem de cometas era
398
PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa, livro 6, 1730. p.180.
Mais detalhes sobre o padre Valentim Stansel e suas posições sobre os cometas por ele observador e catalogados
entre os anos de 1664,1665, 1668 e 1689, bem como o reflexo de suas idéias na Europa a partir do Legado Uranico foi
feito por CAMENIETZKI, Carlos Ziller. “O cometa, o pregador e o cientista: Antonio Vieira e Valentim Stansel
observam o céu da Bahia no século XVII.” In: Revista da Sociedade Brasileira de História das Ciencias, Número 14,
1995, p.37-52.
399
131
entendida pelo astrólogo jesuíta como sinais de ruínas aos governos e aos súditos, acompanhemos:
[...] costuma ser apresentado como segundo argumento [em favor da natureza celeste dos
cometas], embora não menos eficaz, os influxos e feitos dos cometas. [...] constatamos que
após o aparecimento de cometas diversas vicissitudes tem lugar no mundo. Por exemplo:
fomes, pestes, doenças; e mais o que passamos para nosso dano: guerra, morte de príncipe
e de reis, secas terremotos, etc, não quero alongar os exemplos, os livros estão cheios
deles. Logo, os cometas são de natureza celeste.400
Tanto Rocha Pita como Valentim Stensel assinalaram a passagem de um cometa entre os
dias 16 de dezembro de 1664 e 5 de janeiro de 1665, os resultados deste movimento no céu podem
ser percebidas a partir das palavras de Rocha Pita:
[...] outro accidente extraordinário experimentou n’aquelle próprio tempo a Bahia, jamais
visto n’ella. Crescendo por três vezes em três alternados dias o mar, com tal profusão de
águas que atropelou os limites que lhe pos a natureza, dilatando as ondas muito além das
praias e deixando-as cobertas de innumeravel pescado miúdo, que os moradores da cidade
e dos arrabaldes colhiam, mais atentos ao apetite que ao prodígio, ufanos de lhe trazer o
mar voluntária e prodigamente tão valioso tributo, sem considerarem que quando saem da
ordem natural os corpos elementares, padecem os humanos, e causam não só mudanças na
saúde e ruínas nas fabricas materiaes, mas nos Impérios. Todos estes avizos ou correios
precederam ao terrível contágio das bexigas – de que daremos lastimosa notícia.401
Foi durante o governo de Óbidos e após a passagem do cometa que a cidade de Salvador
vivenciou uma das muitas epidemias que assolaram os moradores da Bahia e seu recôncavo no
século XVII. A bexiga era uma doença perigosa e de acordo com o cronista o Nordeste foi vítima de
maior contágio, todos estavam doentes e não tinham condições de trabalhar, os irmãos da
Misericórdia tentavam conseguir remédio e acolhimento para as crianças e velhos doentes, prover
os funerais dos mais pobres e carregar os caixões dos confrades que não resistiam à doença. O
espaço da Igreja para se enterrar os mortos já não estava disponível e as pessoas começaram a ser
enterras no chão, se na cidade a peste da bixa foi rigorosa, no recôncavo foi destruidora.
Tanto escravos, índios, senhores e engenho e fazendeiros de gado foram contagiados,
consequentemente, a produção de alimentos para a capital caiu vertiginosamente por não ter quem
plantasse nem colhesse. O Conde vice-rei teve um papel positivo no socorro das pessoas
aterrorizadas pela epidemia: [...] o Vice Rei com incessante cuidado, assistência e despesa visitava
aos enfermos e mandava aos pobres tudo o que lhes era necessário, devendo esta caridade ao seu
ânimo e ao seu sangue (ambos esclarecidos) e pôde remediar muita parte desta ruína. 402
400
idem
Op. cit. PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa, livro 6, 1730. p. 180
402
idem
401
132
Considerações finais
Os atributos de honra e privilégio eram as bases para se outorgar e receber mercês
remuneratórias no Reino de Portugal Seiscentista, alcançar tais benefícios tornou-se símbolo de
distinção hierárquica e social, prestar serviços à Coroa e manter tais serventias ao longo dos anos
resultava em “acrescentamento” social para as famílias e suas “casas”.403
Nuno Monteiro entendeu que a casa é [...] como um conjunto coerente de bens simbólicos e
materiais a cuja reprodução alargada estavam obrigados todos os que nela nasciam ou dela
dependiam.”404 Ao estudar a prestação de serviços de nobres de Portugal às dinastias Ibéricas, o
autor expõe que [...] la forma de ennoblecimiento más frecuente era casi exclusivamente el servicio
a la monarquía. De ahí el peso fundamental de la ideología de los servicios en la doctrina
nobiliaria portuguesa405
O serviço fiel à realeza propiciava, em contra partida, a remuneração por serviços prestados
por via da Graça, por isso a liberalidade e a
benevolência do monarca garantia o contato
permanente entre a Coroa, seus diversos sínodos e os súditos espalhados no Reino e no Ultramar,
desta forma, [...] boa parte da interação e da coesão que estes dois pólos mantinham entre si
assentariam nos elos da economia de mercê.406
Para Fernanda Olival, a economia de mercê sustentava-se em dois exemplos de
Liberalidade:407 a graça, que dependia da benevolência e vontade do Rei, por isso tinha a intenção
de premiar e a Justiça, que relacionava-se mais como um pagamento pela prestação de serviços à
monarquia, seja em bens, seja em “acrescentamentos”. Como ressaltou Olival, a ideia de justiça
correspondia, ao longo de quase todo o Antigo Regime, ao principio de [...] dar a cada hum o que
he seu fosse castigo, fosse benesse. O monarca assumia o papel de juiz, cabia-lhe avaliar não só as
culpas, mas também os bons serviços, e devia fazê-lo com equidade. A justiça distributiva era um
dos alicerces fundamentais da ordem estabelecida e através dela garantiam-se os privilégios que
403
Segundo Bluteau, Casa. Geração. Família. [...] Illustre, & antiga casa. In: BLUTEAU. D. Raphael . Vocabulario
Portuguez e Latino. Vol. II, p. 174
404
MONTEIRO, Nuno. O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Patrimônio da Aristocracia em Portugal (17501832). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. p. 95.
405
MONTEIRO, Nuno G. “Nobleza y Élites en el Portugal Moderno en el Contexto de la Península Ibérica (siglos XVII
y XVIII).” In: MESA, Enrique S.; CARO, Juan J. B. & BARRADO, José Miguel D. (edit). Las élites en la Época
Moderna: la Monarquía Española. Tomo I: Nuevas Perspectivas. Servicio de Publicaciones: Universidad de Córdoba,
2009. p. 144.
406
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal. Lisboa:
Ed. Estar, 2000. p. 31.
407
Gesto de dar conforme regalia dos reis, ver: OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Lisboa:
Ed. Estar, 2001. p. 15. [...] He uma virtude moral, que se sabe dispender as riquezas em bom uso,”.ver op. cit.
BLUTEAU, D. Raphael. p. 110. Bluteau também entende que a Mercê régia não tinha caráter remuneratório pois partia
da bondade do monarca [...] porque elles são os que com sua liberalidade, piedade, e misericórdia fazem mercê aos
povos. Ver op. cit. BLUTEAU, D. Raphael. p.431-432.
133
definiam as diferentes hierarquias do Reino.408
Neste trabalho, pude compreender que liberalidade era uma virtude esperada pelos súditos e
característica essencial da monarquia Brigantina. Caso o Rei não seguisse a tradição de premiar aos
bons e castigar os maus, um sentimento de críticas às ações da coroa se instalava entre os súditos do
Reino e do Ultramar. Mais uma vez, as conclusões de Marcel Mauss 409 tornam-se importantes para
compreender a dádiva, visto que a atitude de dar insere-se num conjunto de obrigações que deviam
ser cumpridas tanto pelo Rei como pelos seus súditos: pedir, dar, receber e manifestar
agradecimento num verdadeiro círculo vicioso410 fazia parte do itinerário da economia política de
privilégios ou a economia de mercê, discutida neste trabalho e presente nas relações engendradas no
espaço colonial.
Vimos também que a mercê remuneratória era um bem passível de alienação, a posse da
graça régia por via da Justiça podia ser reclamada no Tribunal Ultramarino ou na Relação da Bahia,
pois era fruto de um investimento,411 ou seja, a mercê perdia seu caráter de premiação e passava a
ser um assunto da alçada jurídica e, consequentemente, implicava em alterações sociais na vida do
portador caso houvesse alguma interferência na continuidade da outorga da graça.412
Podemos ter uma noção sobre o sentido de “justiça” a partir das palavras do Rei D. Afonso
VI, dias após a sua assunção no Trono. Em 11 de outubro de 1662 ele baixava um Decreto em razão
dos maus procedimentos que os cônegos de Évora demonstravam ao se revoltarem contra o
Governador do Arcebispado do Porto: [...] Sendo a justiça o firmamento do Trono do Rei e na sua
falta o que destrói os Imperios, devo fundar nela o meu governo para que se consigam as
felicidades que meus Povos podem desejar.413
Após explicitar a sua intenção em ministrar justiça, o Rei apresentou neste decreto a forma
com que gostaria que esta fosse executada, por isso solicitava que o Regedor da Casa de Suplicação
mantivesse atenção quanto ao cumprimento da lei, orientando que [...] há de ter muito especial
vigilância em seus procedimentos para premiar os bons, como merecem, por este serviço, que é o
mais que se pode fazer, como também se não há de dissimular com os maus remessos, em coisa de
tanta importância.414
408
Op. cit OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal.
2000. p. 20.
409
MAUSS, Marcel. Sociologie et Antropologie. Paris: PUF, 1973. p. 143-279. apud: OLIVAL, Fernanda. As Ordens
Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal. 2000. p. 18.
410
Idem.
411
Um estudo mais detalhado sobre as mercês remuneratórias é visto em: RAU, Virginia. Estudos sobre a História
Económica e Social do Antigo Regime. Lisboa: Editorial Presença, 1984. p. 29-35.
412
Op.cit. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal.
2000. p. 23-24.
413
Decreto de 11 de Outubro de 1662, Livro X da Supplicação, fol 107, disponível em:
<http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=101&id_obra=63&pagina=226>
414
idem
134
A prisão, embarque compulsório e posterior morte na cadeia do Limoeiro foi um roteiro fatal
para Lourenço de Brito Correa, ao lado do seu filho mais velho, o bisneto do Caramuru acabou seus
dias de vida sem conhecer os reais motivos de ter sido afastado dos seus parentes e propriedades. O
seu histórico de contendas com os Governadores Gerais e vice-rei que o antecedeu foram utilizados
pelo Conde de Óbidos para justificar sua precaução pois, de acordo com as suspeitas, Lourenço
mais uma vez protagonizava uma armação para derrubar um Mascarenhas no Brasil.
Sem papéis que comprovasse culpas, nem testemunhas suficientes que atestassem a versão
do Conde de Óbidos, as acusações foram interpretadas pelo Conselho Ultramarino apenas como
uma leve suspeita de conjura e as ações rigorosas que o vice-rei tomou para conter o que chamou de
motim foram prejudiciais aos envolvidos e motivo de escândalo para os conselheiros do Ultramar
ante o excesso e abuso de poder demonstrado, os suspeitos poderiam ficar presos na cidade de
Salvador e apenas embarcarem depois que a devassa completa de suas culpas fossem produzidas,
conforme as regras do direito.
Afastar os inimigos mais inconvenientes e perseguir outros opositores que não puderam ser
expulsos da Bahia foi um expediente que o Conde vice-rei lançou mão para continuar no seu cargo
até 1667, sem ter que se preocupar com funcionários régios descontentes com seu modo de
governar. O Conde de Óbidos parece ter total apoio do Rei e do seu Valido, visto que, apesar de
consecutivas cartas do Conselho Ultramarino precavendo D. Afonso VI dos acontecimentos que se
desenrolavam na cidade de Salvador desde 1663, a Coroa continuava legitimando o vice-reinado de
Óbidos e fazendo vistas grossas para com as reclamações que chegavam à sua mesa.
Mesmo com a substituição de D. Afonso VI e exclusão do Conde de Castelo Melhor da cena
política do Reino em 1668, D. Vasco Mascarenhas continuou a assumir cargos domésticos maiores
que serviam diretamente aos reis da Corte Brigantina, morreu em 04 de julho de 1678 ostentando o
título de Estribeiro Mor da Rainha Maria Francisca Isabel de Sabóia e seu descendente recebeu sua
herança de nobreza.415
Lourenço de Brito Figueiredo retornou ao Brasil após a morte do pai e foi recompensado
pelas agruras de ter sido preso e embarcado por motivos políticos, com o advento de D. Pedro I ele
recebeu a Provedoria Mor da Fazenda Real do Brasil por herança.
Prender e embarcar os mais problemáticos para uma cadeia do outro lado do Atlântico e
executar manobras para que a tramitação do processo de julgamento dos seus desafetos fosse ainda
mais demorada foi uma das muitas práticas que o segundo vice-rei do Brasil lançou mão para
415
Estribeiro Mor, de acordo com Bluteau: [...] He officio, cuja ordem estão os cavallos, os coches, & liteiras da Casa
Real, & a gente que serve neste ministério. Acompanha El Rey, calça-lhe as esporas, ajudao a se por a cavalgalo , &
appearse, quando El Rey sahe em cavall, vai atraz delle, & se sahe em coche, vai no estribo direito, Preside ao
Estribeiro Pequeno, ao sevadeiro, & mais ministros da Estribaria, & prove os moços della. Op. cit. BLUTEAU,
Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. vol III, p. 343.
135
garantir a sua governabilidade. A sua tarefa como vice-rei não poderia mais uma vez ser ameaçada
por uma suspeita de que os fidalgos da Bahia, liderados por um antigo agitador, armavam uma
conjuração para retirá-lo do seu posto.
Entre escritos que nunca foram vistos, a que o Conde chamou de capítulos e pasquins, e
suspeitas de que o velho capitão Lourenço de Brito Correa estava reunindo-se em ranchos e
bandorias com alguns militares descontentes, Desembargadores da Relação opositores e religiosos
da Sé da Bahia, encerramos este trabalho abrindo novas possibilidades de pesquisa.
A primeira delas consiste em aprofundar os estudos das consecutivas cartas de
estranhamento enviadas pelo Conselho Ultramarino durante o vice-reinado do Conde de Óbidos no
Brasil, se neste estudo sobre a capitania da Bahia vimos numerosos casos de postos e ofícios
negados após o advento das reformas de Óbidos, veremos que nas demais Capitanias o
descontentamento para com a redução dos poderes dos oficiais régios e interferência nas mercês
remuneratórias foi motivo de outras críticas que precisam ser aprofundadas.
Por outro lado, faz-se necessário também problematizar as revoltas existentes nas praças
ultramarinas, já estudadas por Luciano Raposo Figueiredo, mas que nesta experiência vivenciada na
Bahia tomou rumos interessantes se levarmos em conta que desta vez o vice-rei do Brasil não
esperou para ver o resultado das suas suspeitas de motim e lançou mão do seu poder para prender e
embarcar seu maior inimigo e continuar a implementar as reformas que pretendia.
Estes e outros problemas certamente serão levantados na pesquisa que pretendo levar a cabo,
após ter atingido os objetivos do presente trabalho, o próximo passo será entender mais detalhes
sobre os diferentes modos de governar dos Governadores e vice-reis enviados de Portugal, em
contraste com as rusgas e tensões promovidas pela elite administrativa erradicada Brasil Colonial,
especialmente no século XVII.
136
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Cx. 19, Doc. 2023, 10/06/1664; Doc. 2142, 23/07/1666; Doc. 2143, 25/06/1666; Doc. 2144,
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