O Brasil da Soja
Abrindo Fronteiras, semeando cidades.
Soja. S.f Planta arbustiva da família das leguminosas – nome cientifico: Glycine Max
(L.)Merril-domesticada pelos chineses na Ásia Central há cerca de 5 mil anos. Alcança
até 1,50 metros de altura. As folhas são um verde carregado e as flores brancas, róseas
ou violáceas com diâmetro de 3 a 8 milímetros quando abertas. No verão produz
vagens de 2 á 7 centímetro de comprimento contendo grãos redondos ou ovóides com
até meio centímetro de diâmetro e peso de 0,2 a 0,4 gramas. Muito rico em proteínas e
com bom conteúdo de gordura, o grão de soja é um dos mais importantes alimentos da
humanidade. Espalhou-se pela Ásia há 3mil anos, tornando-se uma das bases da
culinária de países do oriente, sobretudo a china e o Japão introduzida no ocidente nos
últimos 300 anos, disseminou-se no século XX principalmente na América, onde se viu o
primeiro como adubo orgânico, crescendo depois como fonte de óleo comestível, ração
animal e matéria prima de industria de alimentos, cosméticos, medicamentos e tintas.
Em torno dela organizou-se uma complexa teia de atividades econômicas denominadas
agribusiness que envolve todos os continentes, Ao lado do arroz, do milho e do trigo, é
uma das principais lavouras do planeta, com produção anual superior a 100 milhões de
toneladas, no final do seculo20, os maiores produtores são Os Estados unidos, o Brasil
e a china e a Argentina
Uma saga Brasileira.
Este livro com que a Ceval Alimentos comemora seus 25 anos de atividades é, antes de
mais nada uma contribuição á historia recente do país, na medida em que reconstitui e
narra a saga da abertura das novas fronteiras agrícolas do Brasil através deste grão
milagroso que é a soja. Um projeto que ocupou, durante quase dois anos, mais de
centena de profissionais.
O fotógrafo Fernando Bueno e sua equipe, responsáveis pelas fotos que embelezam e
completam este livro, documentaram a paisagem brasileira onde a soja está presente
em mais de 200 rolos de filme. Percorreram, do Rio Grande do Sul ao Maranhão,
registrando a soja nos seus variados estágios de crescimento e a civilização que se
formou no rastro dos pioneiros.
O jornalista Geraldo Hasse, um especialista nas questões rurais, experimentado
homem de imprensa, com passagem pelos grandes veículos de comunicação do país,
realizou igualmente seu périplo em busca da trajetória da soja no Brasil. Ele e sua
equipe entrevistaram mais de 150 pessoas (a quem nominamos e agradecemos ao
final deste volume), entre técnicos, ex-ministros, políticos, empresários, cientistas,
produtores e aventureiros que contracenaram na aventura que foi a implantação da
soja. Dezenas de instituições foram ouvidas e o resultado é uma obra de referência
fundamental, uma verdadeira radiografia da questão da soja no país; suas origens, sua
revolução, seus personagens e sua gigantesca importância no desenvolvimento
econômico, social, rural e urbano da nação brasileira.
A Revolução da Soja
Este ensaio sobre o fenômeno da expansão da soja em território brasileiro neste
século e, particularmente, nas últimas décadas foi a melhor forma de encontrada pela
Ceval Alimentos S.A pára festeja os seus 25 anos de existência. As duas histórias- a da
Ceval e a da soja no Brasil - meio que se confundem. A tal ponto que, se fosse preciso
apresentar uma prova concreta do poder da soja, bastaria apela para o exemplo da
Ceval.
Constituída em 4 de janeiro de 1972, ela ainda engatinhava quando aconteceu o
histórico boom dos preços da soja mercado internacional, em meados de 1973. Criada
pelo grupo Hering para aproveitar incentivos fiscais oferecidos pelo governo do Estado
de Santa Catarina, a Ceval só entrou em operação regular em outubro daquele ano.
Em pouco tempo, porém, extrapolou suas origens, tornando obsoleta sua
denominação original- Cereais do Vale-, referência ao vale do Itajaí, onde nasceu e tem
sede, no município de Gaspar.
Não é por causa da extraordinária expansão da Ceval que acreditamos ser importante
fixar a memória da ascensão da leguminosa chinesa entre os brasileiros. Pensamos que
é preciso refletir sobre como tudo aconteceu em tão pouco tempo. Freqüentemente
olhando para trás que se descobre como ir para frente. Muitas das personagens
centrais dessa epopéia moderna ainda estão vivas, em plena atividade. A soja foi o
estopim, o agente, o símbolo de uma revolução. Em cerca de 30 anos, ela fez algo
equivalente ao que fizeram o café e a cana, nos seus devidos tempos.
Se a cana lembra os tempos colônias e o café recorda a transição do império para a
república, a soja tem a cara do Brasil surgido depois da Segunda Guerra Mundial.
Um Brasil que trocou a letargia litorânea pela aventura da ocupação do Centro-Oeste
onde, no espaço de uma geração, vimos nascer centenas de cidades cujo dinamismo
brota nitidamente das atividades agrícolas. Para o bem e para o mal, o pivô dessa
história é a soja -uma lavoura moderna, engatada para valer na vida urbana.
Com a soja, o Brasil conheceu a bolsa de Chicago e desenvolveu o que hoje chamamos
de agribussines. Inicialmente um desafio agrícola- era preciso encontrar uma cultura
de verão capaz de servir de muleta para o deslanche do trigo-, a soja desencadeou
uma série de mudanças nas áreas rural e urbana.
Estimulou a migração de agricultores modernos para novas fronteiras agrícolas,
abrindo estradas e semeando cidades.
Viabilizou a utilização dos cerrados mediante o desenvolvimento de uma nova
tecnologia de correção de solos.
Interiorizou a agroindústria de óleos, de rações e de carnes frigorificadas.
Sustentou o deslanche da avicultura e da suinocultura.
Enriqueceu a alimentação dos brasileiros.
Modernizou o sistema de transporte de safras.
Implantou em praticamente todo o território brasileiro o modelo americano da
agricultura mecanizada, contribuindo para intensificar a transferência de populações
rurais para os centros urbanos.
Inseriu i Brasil no mercado inter nacional de commodities agrícolas, gerando divisas
indispensáveis ao desenvolvimento da economia.
Foi, por fim, o vetor de uma revolução nos costumes. A presença da soja na vida
moderna começa com a margarina no café da manhã, passa pelo óleo de soja usada na
cozinha, está no hambúrguer, na salsicha, nos matinais, nos pães especiais, nos
achocolatados.
A soja é uma amiga invisível. A Ceval, por exemplo, tem 600 produtos diferentes. Na
maioria deles a soja está presente direta ou indiretamente. Com ela é possível fazer
uma infinidade de produtos-e não só no setor alimentício.
Enfim, a soja ajudou a construir um país mais moderno, mais consciente do próprio
potencial. Sua ascensão foi o fruto de uma intensa articulação de interesses. Em torno
dela armou-se na economia brasileira uma convergência histórica sem precedentes.
Em resumo, sob inspiração norte-americana, participaram desses empreendimentos
sócio-econômico os seguintes atores:
Fabricantes de óleos vegetais e de rações animais;
Indústrias de máquinas e implementos agrícolas;
Fabricas de adubos e de agroquímicos;
Criadores de aves, suínos e bovinos;
Ramos tradicional e moderno da indústria alimentícia;
Exportadores de commodities;
Técnicos especializados em melhoramento genético e cuidados fitossanitários
Governantes conscientes das necessidades de gerar receita cambial para
honrar compromissos internacionais do Brasil.
Consumidores em cuja vida a soja aparece não só como um alimento nutritivo
e saudável, mas como uma matéria-prima extraordinária
Como participante dessa comunidade de interesses organizada em torno da soja, a
Ceval orgulha-se de poder oferecer a todos este documento, que registra- digamos
assim- o flagrante possível, neste momento, sobre os primeiros tempos da grande
aventura da “Vaga vegetal” chinesa nos trópicos brasileiros.
Ivo Hering
Presidente do Conselho de administração da Ceval Alimentos
Vilmar de Oliveira Schürmann
Diretor Geral
Antes da Roça, a Escola
A história oficial da agricultura brasileira, repetida por agrônomos em artigos e livro
técnicos, costuma dizer que o pioneiro da soja entre nós foi Gustavo D’Utra, professor
da Escola Agrícola da Bahia. Agrônomo pioneiro também na descrição da fumagina, a
“primeira” doença das laranjeiras nacionais, D’Ultra teve na realidade a primazia da
notícia, mas não do plantio, feito em 1882 por um sitiante baiano. Não se sabe sequer
como a leguminosa oriental chegou á Bahia. Atribui-se a D’utra o primeiro trabalho
técnico escrito no Brasil sobre a Glycine Max “Nova Cultura Experimental de
Soja”publicado em 1889 em boletim do Instituto Agronômico de Campinas ( IAC)- do
qual D’utra seria o diretor no período 1898-1906.
Fundado em 1887, o IAC incorporou desde o começo a soja ás suas coleções vegetais.
Já em 1889 esse instituto tocado por cientistas europeus ou PR brasileiros formados na
Europa distribuía semente de soja a fazendeiros curiosos. Em 1899, possuía três
canteiros com soja, o suficiente para doar a agricultores 28 quilos da variedade
amarela e 18 quilos da preta.
A segunda data de referência da introdução da soja no Brasil é 1900. Nesse ano a
leguminosa chinesa foi experimentada no Liceu Rio- Grandense de Agronomia, de
Pelotas, e cultivada em Dom Pedrito, Pinheiro Machado e Venâncio Ai8res, de acordo
com relatos encontrados na Revista Agrícola do Rio Grande do Sul pelo historiado por
Carlos Reverbel, que anotou muitos elogios á planta usada como forrageira. O
depoimento de maior peso era o do agrônomo francês Guilherme Minssen, que
pesquisava e lecionava n Liceu. ““ Em artigos publicados em 1901 na mesma Revista
Agrícola, editada em Pelotas, ele escreveu que a cultura da soja tinha” toda a
probabilidade de p0rosperar neste estado”
Na bagagem dos japoneses
Histórias tão esparsas e fragmentadas sugerem que pode haver outros registros
escritos sobre a planta que antes de ir á roça freqüentou a escola agrícola brasileira do
fim do século 19. Sabe-se, PR exemplo, que em 1908 os primeiros imigrantes
japoneses trouxeram na bagagem sementes de soja que passaram a ser cultivadas em
hortas domésticas no interior paulista. As pequenas quantidades produzidas
destinavam-se á fabricação caseira de Tofu, Misso e Shoyo. A partir da primeira década
do século 20, os estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo revezaram-se na
produção de registros sobre o cultivo da soja. Aparece assim, em 1914, o nome do
agrônomo norte-americano E.C.Craig como o introdutor da soja em experimentos
realizados na Escola Superior de Agronomia Veterinária de Porto Alegre. Depois, por
volta de 1920, a soja já estava sendo difundida por uma estação experimental em
Santa Rosa, na região da extinta civilização guarani controlada pelos Jesuítas.
As experiências contavam com a adesão de imigrantes europeus, sempre dispostos a
testar na prática a compatibilidade entre sementes e solos. Umas das alternativas foi o
uso da Soja como substituta do café. Os grãos eram torrados e moídos, dando uma
bebida de consumo caseiro.
O grande avanço deu-se em 1923, quando chegou a Santa Rosa o pastor NorteAmericano Albert Lehenbauer. Ele trouxe sementes da soja amarela comum e abriu os
olhos dos colonos para o poder alimentício do grão, logo incluído na ração dos porcos,
que passaram a engordar muito mais rápido do que se alimentados apenas com
abóbora, mandioca, milho e restos de cozinhas. A soja era servida aos animais em
forma de lavagem após fervura.
REFLEXO AMERICANO
A descoberta do valor protéico da soja pelos colonos gaúchos coincide com o notável
incremento do seu cultivo nos campos norte-americanos a partir dos anos 20. Também
como reflexo do grande esforço de pesquisa realizado nos Estados Unidos, onde a soja
entrou presumivelmente no início do século 19, a experimentação adquiriu certa
consistência e continuidade em alguns pontos do Brasil. Destaque para o cultivo
científico na estação experimental do Ministério da Agricultura em São Simão, na
região do rio Mogi Guaçu, no nordeste paulista. Essas experiências foram conduzidas
na década de 20 por Henrique Lobbe com sementes norte-americanas, também
distribuídas, aparentemente, a outros centros de experimentação, ensino e pesquisa
agrícola, como os de Lavras e Viçosa, no Estado de Minas, Piracicaba, em São Paulo;
Rio de Janeiro; Pelotas e Veronópolis, no Rio Grande do Sul.
A partir do intercâmbio estabelecido por Lobbe e outros técnicos com os
pesquisadores americanos, surgia entre os brasileiros a preocupação em selecionar
variedades aptas a produzir um grão mais rico como alimento humano e ração animal.
Até então, a maioria dos técnicos ainda encarava a soja com Forragem. O pessoal da
IAC recomendava a soja como adubo verde, ao lado do feijão - de- porco, da mucuna
preta e da crotalária. Nesse aspecto, destacou-se no interior de São Paulo o trabalho
do agrônomo Neme Abdo Neme ( Síria, 1908-Campinas, 1973), do IAC, cujo esforço se
articula com a atividade nas fazendas de café, especialmente naquelas onde era mais
forte a presença de japoneses- no nordeste paulista, sobretudo na região de Orlândia,
São Joaquim da Barra e Ituverava; e no oeste, na região de Lins e Araçatuba.Outro
grande incentivador do cultivo da soja foi Czeslaw M. Biezanko ( Polônia, 1895Pelotas,1986), polonês que lecionou química e botânica em cidades do Sul e ocupou a
cadeira de entomologia na Escola de Agronomia Eliseu Maciel( o antigo Liceu RioGrandense), de Pelotas.
Condecorado pelo governo brasileiro em 1963 com a ordem do Cruzeiro do Sul como
introdutor da soja no Rio Grande do Sul, Biezanko disseminou o grão no início da
década de 30 junto a colonos poloneses estabelecidos no vale do rio Uruguai, no
noroeste gaúcho. Ele trouxe dois quilos de sementes do jardim de plantas medicinais
de Vilno, na Polônia. Fundador de uma escola rural em Guarani das Missões, onde
morou por três anos, o professor ensinou a população local a fazer leite, margarina,
farinha e pão de soja.
Segundo Biezanko contou ao jornal Cotrifatos, de Santo Ângelo (RS), por volta de 1934
a soja teve uma arrancada comercial no norte gaúcho á chegada de alguns agricultores
de origem japonesa. Também estabelecidos no vale do Uruguai, eles se
comprometeram a produzir dois mil sacos de soja para Frederico Ortmann, dono de
um armazém em Giruá que detectara a existência de mercado consumidor do grão.
Ortmann não era uma andorinha fazendo verão no berço da soja. A procura vinha de
firmas atacadistas de Porto Alegre que mantinham filiais na zona colonial gaúcha e
provavelmente atendiam a uma freguesia bastante heterogênea, constituída por:
Agricultores interessados nas sementes;
Suinocultores dispostos a fazer ração
Estrangeiros habituados ao consumo caseiro
Fábricas incipientes de óleos vegetais
Exportadores com contatos na Europa e na Ásia,
Assim, em plena década de 30, os representantes das casas comerciais Florestas,
Grits e Germano Dockhorn, entre outros, começaram a intermediar negócios
envolvendo a soja, ainda praticamente desconhecida como alimento humano. No Rio
Grande do Sul, como no Brasil inteiro, o povo usava banha de porco na cozinha. Os
mais sofisticados consumiam gordura de coco. Os mais pobres apelavam para o sebo
bovino. Óleo vegetal só entrava na dieta humana por recomendação médica.
A incipiente organização de um mercado para a soja tem a ver com a instalação em
São Paulo de firmas estrangeiras, como a Anderson Clayton e a Sandra, que vieram
fazer concorrência à pioneira Matarazzo, desde 1904 fabricantes do óleo de algodão
Sol levante. Inicialmente concentrado no algodão, no amendoim, na mamona e no
girassol, o interesse da indústria demorou a focalizar a soja como fonte de matériaprima para a produção dos “óleos graxos”. Foi a partir da década de 40, de fato, que a
soja passou de forrageira para oleaginosa nos Estados Unidos- e também no Brasil. Até
então, salvo nas hortas paulistas dos imigrantes japoneses ou nas roças gaúchas dos
colonos europeus- onde já se tinha noção do seu valor como alimento humano ou
suíno-, a soja continuava sendo um grão exótico que os agricultores em geral só
cultivariam se solicitados.
No final da década de 40, a Swift, de capitais ingleses, fez no interior paulista um
esforço de fomento que se prolongou de 1945 a 1948, ano em que a produção de soja
alcançou 25 mil sacas (1.500 toneladas) no estado de São Paulo. O objetivo da Swift
era manter em funcionamento em Campinas a refinaria onde se enlatava o óleo
Patroa, sustentado desde 1940 por uma esmagadora de caroço de algodão instalada
em São José do Rio Preto.
PÃO INTEGRAL
O trabalho isolado da Swift não prosperou no interior paulista, mas a soja se tornou
mais conhecida por um trabalho de divulgação em jornal. O agrônomo José Calil,
funcionário da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, escrevia na Folha da
manhã artigos elogiando iniciativas como fabrico de pão integral com farinha de soja
pela Panificadora Falkenburg e o Instituto Adventista de Ensino. Assim o grão chinês
iniciou na década de 40 uma rota culinária alternativa reforçada aqui e ali pela adesão
de verdadeiros militantes da sojicultura.
Uma das melhores histórias sobre o fascínio da soja foi protagonizada pela atriz
Patrícia Galvão, a “Pagu”. Ela voltou de uma viagem á China tão entusiasmada com a
“vaca vegetal” que trouxe sementes para o ministro da Agricultura, o paulista
Fernando Costa. Agrônomo, ele sabia que a leguminosa chinesa já era conhecida por
técnicas e agricultores brasileiros, mas aproveitou o gesto da artista como propaganda
para fortalecer a nova cultura. Enquanto “Pagu” se tornava uma espécie de madrinha
nacional da soja, as sementes por Lea trazidas chegavam aos canteiros de todas as
estações experimentais do país.
È dessa época o folheto técnico em que a mesma Secretaria da Agricultura da Calil e
Neme, ao final de algumas instruções técnicas elementares de cultivo, apresentou
Cinco razões que aconselham plantio da soja:
1- Planta de inestimável valor industrial, encontrando franca aceitação no mercado de
São Paulo.
2- Leguminosa que, como todos os vegetais dessa família possui a faculdade de
melhorar os solos em que é cultivada.
3- A mais rica fonte de proteínas encontrada na natureza, sendo de extraordinário
valor forragem para os animais.
4- De incomparável riqueza nutritiva, recomendada na alimentação dos trabalhadores,
sob a forma de grão ou farinha.
5- Cultura que não sobrecarrega os trabalhos normais do agricultor, pois encontra sua
melhor época de plantio nos meses de novembro e dezembro.
O PAPEL DA GUERRA
O comerciante Frederico Ortmann consta na historia como responsável pela primeira
exportação de soja brasileira. Foi em 1938, quando três mil sacos de soja foram
embarcados em Porto Alegre para a Alemanha. Outros exportadores também
realizaram transações nos anos seguintes, mais a produção ainda era pequena.
No ano de 1941, marcante para os gaúchos por causa da grande enchente em todos os
rios que banham Porto Alegre, a soja apareceu pela primeira vez nas estatísticas
agrícolas do estado com área cultivada de 640 hectares e produção de 450 toneladas.
O bloqueio das exportações para a Europa em 1942, em virtude de guerra, deixou os
atacadistas gaúchos com apenas um canal de vendas- um canal muito frágil, aberto
por pequenas fábricas de óleo instaladas precariamente no interior. Elas funcionavam
principalmente na época da safra e esmagavam qualquer vegetal contendo gordura.
Com o encalhe, o Frederico Ortmann deslocou-se para Porto Alegre em busca de uma
saída. Encontrou- a numa fabriqueta de óleos estabelecida na margem direita do rio
Gravataí, no município de Canoas. Até prova em contrário, aí começou para valer a
industrialização da soja no Rio Grande do Sul. Nessa época, já existia a Sociedade
Anônima Moinhos Rio Grandenses (Samrig), mas ela só beneficiava o trigo.
Fundada em fevereiro de 1929 por capitais argentinos (Bunge Y Born), também
proprietários da Sanbra, a Samrig começou comprando dois moinhos em Porto Alegre
e outros cinco no interior (Pelotas, Guaporé, Passo Fundo, Cruz Alta e Uruguaiana). A
soja era então um dos “outros” produtos agrícolas comprados pela empresa junto aos
colonos do interior. Carlos Goidanich, que entrou em 1931 na Samrig, da qual seria o
presidente de 1977 a 1983, fez o primeiro negócio de exportação de soja m grão em
1945. Acondicionado em sacos, o produto ia em navios de até 10 mil toneladas, a
capacidade máxima no cais de Porto Alegre. Foi a partir desse negócio que a Samrig
começou a encarar a possibilidade de, além de trigo, moer também soja em larga
escala.
O grupo Bunge y Born era apenas uma dos estrangeiros situados na intermediação de
produtos agrícolas no Brasil. E dos menores. Durante a Segunda Guerra Mundial (193945), já operavam no país todos os gigantescos “grain trades” do mundo: André
lausanne (Refinações de Milho Brasil), Cargill, Continental, cook, Louis Dreyfuss e
Nidera. Isso sem falar de outros gigantes mais especializados como a Anderson Clayton
e a Nestlé. Entre os comprados, vendidos ou incorporados nessa fase pioneira da
industrialização brasileira, praticamente todos continuaram presentes no palco onde
havia também espaço para os (pequenos) empresários nativos.
INDÚSTRIA NATIVA
Não dá para ser definitivo nessas histórias porque os protagonistas centrais ou
morreram ou esqueceram os detalhes. A maioria sabe por ouvi dizer. Uns afirmam que
tal indústria estabelecida á beira do Gravataí, em Canoas, chamava-se Indubras.
Produzia óleo de amendoim e de girassol (e de linhaça também). Alguns anos mais
tarde essa fábrica fará uma boa ponta na história como refinaria Brasileira de Óleo e
Graxas, sob controle da família de Ildo Meneghetti, engenheiro civil com notável
presença política no Rio Grande do Sul.
Um dos pioneiros da indústria de óleo no Rio Grande do Sul foi, com certeza, Lourival
Lopes dos Santos, nascido em Pelotas em 1882. Despachante dos exportadores locais
junto ás repartições públicas, Lourival aproveitava as horas vagas para fazer óleo de
rícino, tintura de iodo e outras fórmulas químicas, que botava para vender nas
farmácias da cidade. Em meados da década de 30, começou a produzir um óleo de
amendoim vendido em garrafas em confeitarias da cidade. Apesar do nome estranhoIpogéia-, o óleo era bem aceito como alternativa á banha de porco, tanto que abriu o
caminho a Lourival como especialista em extração de óleos vegetais.
Em 1939, ele foi convidado para trabalhar como químico da Sociedade Refinadora de
Óleos Vegetais (Sorol), fundado por seu sobrinho Manoel Motta em sociedade com
Francisco Azevedo, representante do óleo de linhaça Tigre, de São Paulo. Deixando de
lado o Amendoim, a Sorol fez muito dinheiro fabricando óleo de linhaça. Foi tal o
sucesso que, em 1941, surgiu na cidade uma fábrica concorrente chamada Companhia
Nacional de Óleo de Linhaça, criada pelo engenheiro italiano Eraldo Giacobi,
contratado alguns anos antes de instalar a rede de bondes elétricos de Pelotas. No
final da década, a Sorol abriu o capital, arranjou financiamento e iniciou a montagem
de uma nova fábrica, agora apta a processa a soja. Somente nos primeiros anos da
década de 50 seria lançado o óleo de soja Sorol, em lata amarela, com detalhes em
preto e marrom. Se não o primeiro, um dos primeiros óleos de soja do Brasil.
Outro pioneiro da indústria dos óleos vegetais foi Alcides Merlin, nascido em
Farroupilha em 1915. Filho de descendentes de italianos que plantavam milho na serra
gaúcha e depois abriram um armazém na cidade, ele descobriu seu caminho depois de
ler no Correio do Povo uma reportagem sobre o sucesso da fabricação de óleo de
linhaça, Pelotas. O jornal falava especialmente que o negócio da linhaça estava dando
muito dinheiro para uns italianos que tinha vindo trabalhar na instalação das linhas de
bonde da cidade.
Alcides decidiu juntar dinheiro para fazer a linhaça. Farroupilha era uma cidade onde
as indústria Renner, de Porto Alegre, comprava linho para fazer tecido.O óleo de
linhaça era utilizado para fazer tintas. Entre o sonho e a realidade se passaram poucos
anos. Finalmente, em 1943, ele conseguiu abrir a sua empresa: Fábrica Merlin de Óleos
Vegetais. Começou nos fundos do armazém da família com dois operários- Ângelo
Chiele e Giulio Rufatto.
Para começar seu empreendimento, Merlin adquiriu uma velha prensa hidráulica
manual encostada na indústria de alimentos Corsetti, da vizinha Caxias do Sul. De
tanto insistir, comprou a prensa por 3 contos e 500,a prestação- o preço de um carro
velho. Ganhou experiência e algum dinheiro: no mesmo ano foi a Santa Cruz do Sul
para comprar uma prensa maior, também hidráulica, mas motorizada. Ele e seus dois
empregados produziam 300 quilos de óleo por dia.
Lá pelo fim de 1943, Merlin interrompeu a fabricação de óleo de linhaça para ganhar
mais dinheiro. È que, com o afundamento de navios brasileiros “por torpedeiros
alemães”, interrompeu-se temporariamente o tráfego marítimo na costa do Brasil. Em
conseqüência, começou a faltar no interior gaúcho o óleo de algodão fabricado em
São Paulo. Além do Sol Levante da Matarazzo, os hospitais consumiam o Salada
“completamente inodoro”, produzido desde 1930 pela Sandra” para os paladares
finos” e “para as mesas distintas”- ou seja, para os que não podiam comprar o caro
azeite de Olivia importado. Merlin entrou nesse vazio produzindo óleo de amendoim,
que os colonos alemães da vizinha Feliz faziam desde o século passado, de forma
rudimentar, usando cunhas para prensar o grão previamente moído, dentro de um
buraco feito no tronco deitado de uma árvore. Para tirar o cheiro de gordura, Merlin
adicionava alho e louro, de acordo com receita de uma vizinha.
Finda a guerra, a circulação de navios voltou ao normal e Alcides Merlin retomou a
produção exclusiva de óleos de linhaça. Com ótimos resultados, pois em 1948 ele
adquiriu uma prensa inglesa de ação contínua. Como não conseguiu instalá-la em
Farroupilha por insuficiência de energia elétrica, comprou em Porto Alegre, na Avenida
Amazonas, um terreno de 2.200 metros quadrados onde instalou a empresa, logo
transformada em Merlin S.A. Sua entrada na onda da soja aconteceria só alguns anos
depois, na década de 50, quando a lavoura e a indústria brasileiras assumiam uma face
mais moderna, sob a influência de novas tecnologias estrangeiras.
O Impulso Estrangeiro
Em 1950, desembarcou em Porto Alegre, Deh Chen Chang, um chinês de verdade, que
fugiram da revolução comunista de Mao Tse Ting. Ele tinha trabalhado como diretor
industrial da China Vegetable Oil Corporation, uma das maiores fábricas de óleo
vegetal do mundo, e desde 1949 estava em São Francisco, na Califórnia, tentando
implantar uma firma de importação e exportação de óleos vegetais em sociedade
como o amigo Long Sem Wong, também exilado.
Chang foi direto à Samrig e procurou o gerente, Gustavo Openheimer, a quem
apresentou uma carta de recomendação assinada por gente da Bunge y Born de Nova
York, Na Samrig, não havia lugar para um especialista em soja, mas Openheimer o
encaminhou ao vereador porto-alegranse Ildo Maneghetti, um dos mais promissores
políticos do Rio Grande do Sul (seria governador por duas vezes).
Se havia no estado uma empresa interessada em empregar alguém com experiência
em óleos vegetais, só podia ser a Refinaria Brasileira de Óleos e Graxas, que caíra sob o
controle da Companhia de Indústrias Gerais, Obras e Terras pertencentes à família
Meneghetti. O contato valeu.
Adquirida como desdobramento de outro negócio, a pequena refinaria de óleo de
linhaça – situada à margem do rio Gravataí, no município de Canos, nas vizinhanças de
Porto Alegre – estava meio parada, precisando mesmo de mão-de-obra especializada.
Meneghetti e Chang fecharam negócio, constituindo uma empresa lembrada apenas
pelo nome Indubras (Indústria Brasileira de Soja). Nessa sociedade, mais tarde
denominada Industrial e Comercial Brasileira S.A (Incobrasa), Meneghetti ficou com
50%, enquanto a metade restante era dividida em percentuais diferentes entre Chang
e alguns amigos que chegariam meses depois: Sheun Ming Ling, Charles Tse, S.P.
Wang, C.C Chang, K.C. Hsieh e T.C. Yang.
Ajuda Comunista
Para tirar a pequena indústria da paradeira em que se encontrava, bastou aos chineses
empregar uma nova tecnologia de extração de óleo. Em lugar da prensagem usada até
então pela Óleos e Graxas, foi adotado o método do solvente químico, desenvolvido
nos anos 30 e já empregado na adiantada indústrias aleaginosa da China. O
rendimento passou de 12% para 17%, ganho de qualidade que se deve atribuir, sem
duvida, à providencial ajuda da revolução comunista chinesa.
A Indrusbras/Incrobras deu a partida em 1951, lançando o óleo de soja Santa Rosa,
embalado inicialmente em latas quadradas, com o desenho de uma rosa copiado do
rótulo de uísque americano Four Rose. As donas de casa pouco ligaram para o novo
produto, ainda assim lucrativos: nos primeiros tempos, praticamente a produção foi
vendida como matéria-prima para a fábrica de tintas Sherwin Williams, em São Paulo
A único problema da fábrica, na realidade, era a dificuldade em adquirir o grão, super
valorizado da Europa e do Japão. Em 1951, o preço médio da exportação brasileira
(então exclusivamente gaúcha) de soja furou pela primeira vez a barreira dos US$ 100
por tonelada de grão. O aumento da procura logo fez Chang ver que seria arriscado
demais continuar dependendo dos representantes das casas atacadistas de Porto
Alegre baseados em cidades do interior. Era preciso ter gente de absoluta confiança
nas zonas de produções. Por isso ele mandou os sócios Sheun Ming Ling e Charles Tse
para Santa Rosa, o berço da soja. Deu certo, mas não por muito tempo. Também
experiente na indústria chinesa de óleos vegetais, Ling e Tse logo perceberam que,
além de garantir o negócio da Incobrasa, poderiam eles próprios ganhar dinheiro com
uma fábrica local. Já havia em Santa Rosa uma pequena indústria de óleo de linhaça
instalada por Henrique Engel. Depois de algum tempo em atividade, Engel entrou em
dificuldade e se retirou da cidade, deixando a fabriqueta aos cuidados de um cunhado
de sobrenome Leuzin, Segundo Ming Ling, o negócio foi oferecido à Incobrasa, que não
se interessou. Então ele e Tse ficaram com a fábrica, transformada, em 1995, na
Indústria Gaúcha de Óleos Vegetais (igol), embrião da Olvebra, a segunda grande
indústria brasileira de soja (formalizada em 1971), responsável pelo óleo de soja
Violeta.
Pool de Exportadores
A disputa por matéria-prima era tão intensa, naquele princípio da década de 50, que
os exportadores brasileiros, para atender às encomendas do Japão, precisaram se
organizar em pool, Aldayr Heberle (Três Passos, 1935), que se tornaria conhecido na
década de 70 da corretagem de soja de Porto Alegre, lembra que esse pool não durou
muito tempo, pois perdeu o cliente devido ao apodrecimento, no navio, de uma carga
de soja.
Chegado a Santa Rosa na mesma época que Ling e Tse, Heberle pegou o início da onda
da soja no interior gaúcho. Estudante secundarista de curso noturno, arranjou
emprego de dia na firma atacadista Germano Dockhorn, que operava anos depois, em
1955, tomou o rumo de Porto Alegre, a fim de trabalhar na filia da Pampa S.A., firma
atacadista fundada por seu tio Ivo Weiler, na casa de quem morou em Santa Rosa. Sua
função era arranjar mercado para a soja, no Brasil ou no exterior. Apesar de
desconhecida do grande público, a leguminosa chinesa, desde o princípio,
desencadeou uma certa concorrência no mercado gaúcho de gorduras para a cozinha,
Pouco depois do pioneiro Santa Rosa, saiu o óleo da Sorol, a indústria pelotense
experiente na produção de óleo de linhaça. A Merlin só iria mexer com soja pela
primeira vez em 1954, quando passou a adicionar 10% a 15% desse óleo de linhaça,
cada vez mais escasso. Com o aumento do número de prensas, a empresa chegou em
1957 ao lançamento do óleo de soja Merlin, embalado em latas de cores vermelhas e
branca. A propaganda, voltada para os adeptor da macrobiótica, destacava o fato de o
novo óleo ser “produzido pelo método natural de prensagem”. Depois de adotar o
método do solvente químico, em 1971, a Merlin acabou tirando seu óleo do mercado
em 1984. Ao invés de brigar no mercado interno com uma concorrência cada vez mais
afiada e com as tabelas de preços do governo, tornara-se mais interessante para a
empresa operar no negócio internacional do óleo bruto e farelo. A Incobrasa seria
comprada em 1982 por Renato Ribeiro, genro de Alcides Merlins, que já havia entrado
no ramo, anos antes, quando adquiria a fábrica de óleo Taquarussu, no município
gaúcho de Frederico Wesrphalen
“ZÉ SOJINHA”
Enquanto era alavancada por europeus e chineses no Rio Grande do Sul, no estado de
São Paulo a soja tornava-se objeto de uma parceria entre a pesquisa agronômica e o
fomento industrial, envolvendo de um lado o Instituto Agronômico de Campinas e, de
outro lado, as indústrias processadoras de óleos de algodão e de amendoim. Sob a
liderança de Anderson Clayton, que doou Cr$ 100 mil ao fundo de pesquisa do IAC, foi
instituída em 1951 a Campanha da Soja, através de qual os agrônomos da Secretaria
da Agricultura deveriam orientar os produtores no cultivo da soja, com garantia de
compra da produção oferecida pelo antigo – fundado em 1934 – Sindicado da Indústria
de Azeites e Óleos do Estado de São Paulo, ao qual também estava filiadas outras
fábricas, como as nacionais J.B Duarte e Mogiana e as brasileiro-argentinas MinetLongo e Sandra.
O cérebro da campanha era ninguém menos do que Zé Sojinha, apelido do agrônomo
José Gomes da Silva (Ribeirão Preto, 1925-Campinas, 1996), continuador das pesquisas
do pioneiro Neme Abdo no IAC. Magro, pequeno e de cabeça grande, também
conhecido na infância por Pinduca (alusão a uma figura de quadrinho muito popular no
Brasil), José Gomes da Silva formou-se em agronomia em 1946 em Piracicaba e voltou
do mestrado nos Estados Unidos completamente apaixonado pela cultura da soja. No
interior norte-americano, onde estudou por dois anos (1947-48), ele conheceu de
perto a integração entre os organismos de pesquisa, os agricultores e as indústrias de
óleos vegetais. Assim que assumiu seu posto no IAC, começou a trabalhar para
implantar esse modelo no interior paulista. Depois de arranjar o patrocinador, iniciou a
montagem de uma equipe de pesquisas. O primeiro contratado foi o agrônomo de
origem japonesa Shiro Miyasaka, recém-formado em Piracicaba, com especialização
em genética.
Impressionado com o rápido crescimento da produção gaúcha – em 1951, um total de
60.807 toneladas, das quais 30.675 exportadas para a europa e o Japão -, Zé Sojinha
viajou ao Rio Grande do Sul. Um dos seus acompanhantes foi Edson Leite de Moraes,
diretor da Companhia Mogiana de Óleos Vegetais, fundada em 1952 em Orlândia,
onde a IAC fomentava a soja como adubo verde em cafezais e algodoais. O objetivo de
Zé Sojinha era conhecer de perto a experiência gaúcha e, se possível, estabelecer
algum tipo de intercâmbio.
Maneco Vargas (1917-1997), secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul, também
formado em Piracicaba, mostrou pouco entusiasmo, É compreensível que o filho de
Getúlio Vargas não tivesse muita boa-vontade com os visitantes paulistas. Além de
estar na época muito envolvido com um pioneiro plano de combate à erosão na zona
rural, o secretário gaúcho sabia que a falta de recursos e as dificuldades de
comunicação tornavam praticamente inviável o intercâmbio técnico entre grãos
públicos tão distantes. Depois, era preciso atentar para as especificidades de cada
estado. Em São Paulo já havia uma boa produção de amendoim e algodão para suprir
as necessidades da indústria de óleos vegetais. No Rio Grande do Sul, faltava uma
eficiente fonte de gordura vegetal. O potencial da soja em solo gaúcho foi reconhecido
pelos franceses que no início da década de 50 estiveram em Porto Alegre orientando a
construção de silos da Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa). Numa época
em que todos os produtos agrícolas eram guardados em sacos, os armazéns da Cesa na
capital gaúcha foram os primeiros com aptidão para receber grãos a granel (a primeira
exportação de soja a granel – para a Alemanha – só seria realizada no início da década
de 60). Zé Sojinha só não voltou de mãos vazias porque aproveitou a viagem para
conhecer – e encomendar – trilhadeiras fabricadas no interior do Rio Grande do Sul.
GEADA NOS CAFEZAIS
A geada de 1955 no Paraná deu grande impulso à nova lavoura. Aos cafeicultores,
obrigados a ficar pelo menos um ano sem colher, foi recomendado o cultivo de arroz,
feijão, milho e outras coisas nas entrelinhas dos cafeeiros queimados. Entre as “outras
coisas” destacava-se a soja. O Instituto Agronômico de Campinas, que já vinha se
empenhando na difusão da soja na região cafeeira de Ourinhos (município situado na
divisa com o Paraná), designou o agrônomo José Drummond Gonçalves para ajudar o
Instituto Brasileiro do Café na salvação dos cafeicultores. Foi um sucesso.
A área cultivada da soja do Paraná, que não passara de 43 hectares em 1954, subiu
para 1.922 hectares em 1955. Embora pequena – sobretudo quando comparada aos
71.598 hectares plantadas naquele ano no Rio Grande do Sul -, essa arrancada da soja
no Paraná foi muito gratificante para os técnicos paulistas porque se aproximou da
área platanda em Santa Catarina (2.679 hectares) e superou a de São Paulo (1.722
hectares), onde a bendita leguminosa não deslanchava comercialmente, de jeito
nenhum. O sucesso que faltava no campo sobrava nos gabinetes. Em meados daquele
ano, graças ao prestígio de José Gomes da Silva junto ao governador Jânio Quadros,
pobre campanha original do IAC foi transformada num empreendimento mais bem
estruturado – o Serviço de Expansão da Soja.
Recomendada principalmente como adubo verde, visando à proteção e recuperação
dos solos, a soja ajudou na formação da renda dos cafeicultores paranaenses,
imediatamente procurados pelos compradores das indústrias de óleos. Eram os
mesmos de sempre – Anderson Clayton, J.B Duarte, Matarazzo, Minet-Longo,
Mogiana, Sandra, Swift -, mas os números impressionavam. A Swift, que refinava óleo
de algodão em Campinas, declarava precisar de 100 mil toneladas de grãos por ano,
Não admira que o Paraná tenha adotado a nova lavoura.
O PESO DA INDÚSTRIA
O que mais pesou no deslanche da soja foi de fato a atividade da indústria, sobretudo
a de origem estrangeira. Desde fins de 1953, aparecia com freqüência no gabinete da
Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, o pessoal da Samrig,
até então identificada exclusivamente com o trigo.
Por meio da aproximação com a estrutura da Secretaria, a empresa da curso a uma
nova estratégia de abordagem dos agricultores, escolhidos como elo fundamental de
uma cadeia de negócios de dupla face: de um lado, eles eram vistos como tais –
produtores de matéria-prima para a indústria de alimentos; de outro, começavam a
ser encarados também como consumidores de máquinas agrícolas, sementes e
adubos. Ninguém abria o jogo, mas tudo era parte de um novo esquema internacional
montado em Nova York, onde o grupo Bunge y Born tinha uma sólida base de
operações. Em Porto Alegre, os funcionários da Samrig pleiteavam a liberação de uma
licença especial para a importação de equipamentos industriais. Para todos os efeitos,
seria para o trigo. Era para “o” feijão-soja.
A Secretaria, naturalmente, tinha a máxima boa-vontade. Era nítido que a Samrig
representava o progresso, especialmente aos olhos de Antonio Mafuz, chefe de
gabinete do secretário Maneco Vargas. Repórter do Diário de Notícias e narrador de
futebol da Rádio Farroupilhas, Mafuz fora colocado no cargo por um acordo entre o
presidente Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand, dono da rede nacional de jornais e
emissoras de rádio. Ele viu tanto futuro no negócio da soja que, ao deixar a Secretaria,
em 1954, tinha na Samrig um dos primeiros clientes de sua agência, inicialmente
chamada Sotel e mais tarde denominado MPM Propaganda. O negócio da soja estava
mudando de figura. De pequeno passava a ser grande
As máquinas que tanto mobilizavam os funcionários da Samrig eram parte de um
projeto apresentado em 1955, quando chegaram a Porto Alegre, vindo de Buenos
Aires, prontos e acabado, os desenhos de uma grande fábrica de óleo de soja. Os
equipamentos viriam da Alemanha. O lugar escolhido foi Esteio, perto de Canoas.
Iniciada a obra, a Samrig tomou a iniciativa de fundar em Porto Alegre, em 1956, o
Instituto Rio-Grandense de Fomento à Soja, ao qual se filiaram também a Sorol, a
Merlin, a Igol e a Incobrasa. Mantido com as colaborações proporcionais à capacidade
de processamento industrial, o instituto propunha-se, simplesmente, a distribuir
sementes e orientação técnica aos agricultores, por intermédio da Secretaria da
Agricultura. Foi ele o embrião do Sindicato da Indústria que chegou a ter 42 associados
(era 14 em 1996).
PLANTANDO NOTÍCIAS
Umas das tarefas atribuídas pela Samrig ao publicitário Antonio Mafuz foram à
produção de folhetos promocionais. Esse material era distribuído aos agricultores por
funcionários do próprio Instisoja e pelos técnicos da Secretaria da Agricultura,
Anúncios eram veiculados em emissoras de rádio e também no Correio do Povo, em
cuja página de assuntos rurais não era incomum encontrar matérias assinadas por um
técnico chamado Paulo Annes Gonçalves. O 1º de Abril de 1955 terminava assim: “A
soja será breve uma grande cultura rio Grandense. Figurará a par com três grandes
culturas: milhos, arroz e trigo”. Como noções de plantio, ele falava em cultivo em
fileiras como no milho e no algodão, distância entre sementes de 2.5 centímetros e de
53 centímetros entre fileiras. As recomendações era fruto de experiência comprovadas
no interior do Estado de Lowa, nos Estados Unidos.
A propaganda não era só para o homem do campo, mas também para a mulher rural,
Orientada pela Samrig, e encarada como uma espécie de missão pela Secretaria da
Agricultura no primeiro mandato do governador Ildo Meneghetti (1955-58), a
campanha da soja alcançou até mesmo as regiões de pecuária, como Caçapava do Sul.
Nas propriedades rurais mais modernas – familiarizadas, por exemplo, com o uso de
novíssimas ceifadeiras automotrizes empregado na colheita do trigo -, as mães de
família eram instruídas a trocar o leite de vaca pelo de soja...
Naturalmente, a tentativa de mudança de hábito alimentar não foi levada em
consideração pela maioria absoluta dos gaúchos, acostumados ao leite bovino e à
manteiga de origem animal. Na culinária, em verdade, a única concessão dos pampas
seria substituir (de leve) a escassa banha de porco pelo óleo de soja – e olhe lá, Em São
Paulo, a campana em favor da soja como alimento contou com a adesão de indústrias
como a Nestlé e de professores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
especialmente José Eduardo Dutra de Oliveira, nutrólogo de renome internacional.
Politicamente, a soja alcançou um novo status em 1958, quando, pela primeira vez, foi
colocada no Plano Nacional de Abastecimento.
MANTEIGA X MARGARINA
A fábrica de óleo as Samrig foi inaugurada em 1958, com capacidade para moer 130
mil toneladas de soja por ano (em 1996 a capacidade instalada da indústria de óleos
do Rio Grande do Sul era de 10 milhões de toneladas). Fora superdimensionada.
Naquele ano, segundo dados oficiais, a produção total do estado chegou a 112.154
toneladas – no Brasil, 130.890 toneladas.
O óleo de soja Primor, com lata verde e amarela, foi lançado com anúncio colorido no
Correio do Povo. Da mesma fornada saíram os sabões em pedra Gaúcha e Invicta e o
sabão Alba. Pouco tempo depois veio a margarina. O pessoal da MPM achava que
devia lançá-la com o nome usado na Argentina – Vitina -, mas a Samrig preferiu
apostar em Primor.
O novo produto foi recebida de cara torcida pelos produtores de manteiga. Eles
chegaram a espalhar uma antiga história oriunda da região das Missões segundo a qual
a soja enfraquecia o esqueleto de quem a consumisse... A história tinha um fundi de
verdade. Na década de 30, quando a soja foi introduzida na ração suína, os porcos
engordavam tanto que chegavam a sofrer fraturas nos membros. O problema foi
rapidamente resolvido, na época, com suplementação alimentar rica em cálcio.
A indústria de laticínios, preocupada com o avanço da soja, não precisaria ter usado
expediente tão baixo para sustar a população. A maioria dos consumidores rejeitava
naturalmente a margarina, por causa do cheiro característico, que também empregava
o óleo de soja. A Samrig colocou um exército de demons-tradoras nos supermercados
que começavam a avançar no varejo. A briga entrou pela década de 60
adentro,quando, para conseguir espaço na cozinha gaúcha, a Samrig chegou a
patrocinar a seção de culinária do diário Zero Hora. Alheios ao marketing emergente
nas multinacionais, os redatores não se preocupavam sequer em adaptar as receitas,
que continuavam prescrevendo o uso de manteiga... O avanço da soja sobre os
campos, estradas, cozinhas e mesas do Rio Grande, afinal de contas, só se consolidaria
por meio de uma vigorosa campanha governamental de plantio... de trigo.
Os esforços da fábrica de Esteio no fomento agrícola, na renovação culinária e na
exportação de grãos são considerados fundamentais para a implantação da lavoura de
soja no Rio Grande do Sul, A partir da propaganda feite pela Samrig, especialmente nos
anos 60, a sojicultura firmou-se como uma cultura de penso. Ainda assim, com todo
seu crescimento agrícola, industrial e comercial, a década de 60 configurava um
período intermediário entre o amadorismo dos anos 50 e o profissionalismo que se
impôs nos anos 70. É típica dessa época de aprendizado a história do primeiro
embarque de soja a granel no cais de Porto Alegre, por volta de 1962.
De cara o embarque não foi autorizado pelas autoridades sanitárias. Para atender às
exigências da sanidade, o exportador forrou o porão do navio com tábuas de pinho.
Deu certo. Algum tempo depois, quando a forração de madeira tinha se tornado uma
solução de rotina, o Instituto Nacional de Pinho embargou o negócio, alegando que
aquilo era uma exportação fraudulenta e ilegal de pinho. O jeito foi forrar o navio com
esteiras de palha, dessas de praia. Por essas e outras, Aldayr Heberle, o primeiro “soy
trader” brasileiro, planejou escrever um livro intitulado Os Gigolôs da Soja, em que
promete contar “os podres” do ramo. Para Heberle residente em Campo Grande, MS,
os exportadores brasileiros são “heróis” obrigado a engolir humilhações de algumas
poucos burocratas que, situados em pontos estratégicos, “criavam dificuldades para
render facilidades”
Os primeiros tempos da expansão da soja estão resumidos na tabela abaixo.
Ano
Brasil
R.G. do Sul
S. Catarina
Paraná
S. Paulo
1950
34.429
33.739
690
1955
106.884
99.353
4.069
58
2.538
1960
205.744
188.500
3.761
7.364
3.087
1965
523.176
463.153
5.123
44.111
8.862
1970*
1.598,540
976.807
52.998
368.006
90.086
* Mais de 9.817 toneladas em Goiás, 8.905 no Mato grosso, 1.806 em Minas Gerais e
25 Toneladas na Bahia (Fonte: IBGE)
A ALAVANCA DO TRIGO
Em Julho de 1967, o gaúcho Nesto Jost (Candelária, 1927) adentrou o gabinete do
ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto, carregando na mão um punhado de uns
grãozinhos amarelos. Antes que este lhe perguntasse, Jost foi logo dizendo:
- É isto que os gaúchos estão platando...
Presidente do Banco do Brasil, cargo na época mais importante do que o de ministro
da Agricultura, Jost fez uma pausa para valorizar o projeto que desejava apresentar
-... Para dar ao Brasil a auto-suficiência em trigo.
Delfim deu uma olhada rápida nos grãos e ficou esperando que o político gaúcho fosse
ao ponto. Sabia que aquilo não era trigo. Jost falava de soja.
O plantio de mais de 600 mil hectares, no ano de 1966, começava a transformar a soja
numa cultura de razoável importância no território brasileiro. No mercado
internacional a exportação daquele grãozinho já rendia US$ 15 milhões de dólares por
ano ao Brasil. Ao lado do suco de laranja, dos têxteis e dos calçados, a soja ajudava a
alavanquem das exportações brasileiras. Tinha, por isso, porta abertas no Ministério
da fazenda, que oferecia incentivos e benefícios fiscais a quem aderisse ao “modelo
exportador”
- A soja – explicou Jost – pode ser plantada na mesma terra do trigo, com o mesmo
maquinário. Só precisamos dar crédito para o agricultor plantar direitinho, como
manda o figurino...
O figurino era americano e a equação, idem: com duas safras por ano na mesma terra,
os agricultores poderiam reduzir em 15% a 20% os custos de produção. Aí, quem sabe,
a triticultura brasileira poderia sair do impasse histórico em que se encontrava havia
tanto tempo. Ou, então, alavancar a soja.
MISSÃO CÍVICA
Há quase dois séculos, embalado pela convicção bíblica de que um país de verdade
precisa produzir seu próprio pão, o Brasil assumiu como uma espécie de missão cívica
a busca da auto-suficiência em trigo, Cultivado em pequenas áreas no Brasil colonial, o
cereal concentrou-se, sobretudo no Rio Grande do Sul, onde encontrou um clima
similar ao europeu.
No início do século 19, graças ao esforço de colonos recém-trazidos da ilha de Açores,
a triticultura nacional ensaiou uma arrancada nos arredores de Porto Alegre, Sonho
fugaz. Vem dessa época a sujeição do trigo nacional à “ferrugem”, causada por fungos
que proliferam em ambientes úmidos. A lembrança desses tempos pioneiros ficou
gravada no nome do bairro porto-alegrense da Azenha, assim chamado porque ali,
aproveitando as águas do arroio Dilúvio, afluente do rio Guaíba, funcionavam vários
moinhos de roda, também chamados de azenhas.
Segundo a história, as pesquisas para controlar a “ferragem” foram iniciadas em 1918.
Já então era bom negócio importar trigo. A pioneira a Sociedade Anônima Moinhos
Rio-Grandenses (Samrig) teve origem num armazém de importação e exportação
estabelecida em 1876 na cidade portuária de Rio Grande pelo português Albino Cunha.
Ele fazia tantos negócios com farinha que, em 1894, entrou de sócio num moinho do
qual, alguns anos depois, se tornaria o único dono. Comprou depois o Moinho
Pelotense, na vizinha Pelotas. Em 1920, finalmente, instalou na capital do estado o
Moinho Porto Alegre, com capacidade para moer 100 toneladas diárias de trigo, que
ele importava da Argentina. Formou assim a rede que mais tarde, em 1929, passaria ao
controle de capitais argentinos.
VÍCIO DA IMPORTAÇÃO
Hábito, antigo, a importação de trigo tornou-se uma espécie de vício dos grandes
moinhos brasileiros, protegidos por dispositivos legais que chegaram a inviabilizar a
operação dos “moinhos coloniais” das zonas de imigração do Sul. Além de dar
preferência ao trigo estrangeiro – argumentando que ele possuía melhor qualidade do
que o nacional, freqüentemente avariado pela “ferrugem”-. Desde tenra idade a
indústria moageira nacional beneficou-se de injunções existente nas relações do Brasil
com seus maiores parceiros, como a Argentina e os Estados Unidos.
Enquanto a importação de trigo argentino foi muitas vezes o fruto de conveniência da
política de venda do café brasileiro, o produto norte-americano entrou no Brasil
porque, poucos anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos
haviam acumulado estoques monumentais do cereal. Se não o vendessem a preços
baixos, e com prazo de 40 anos para pagamento, os americanos provavelmente teriam
de deixar seu trigo apodrecer, ou o queimariam, como fez o Brasil com o café na
depressão dos anos 30.
O trigo americano barato deu origem ao subsídio oficial ao consumo, criando para o
governo brasileiro uma dor de cabeça permanente: a “conta-trigo” dos balanços de
pagamentos. O agrônomo Ady Raul da Silva (Rio de Janeiro, 1917), formado em Viçosa,
lembra-se: em 1938, quando iniciou sua vida profissional, contrato pelo Ministério da
Agricultura para fomentar a cultura do trigo, a compra do cereal respondia por cerca
de 10% das importações nacionais. Era uma conta naturalmente pesada para um país
que também importava petróleo, máquinas e diversas matérias-primas industriais.
CÍRCULO DO FUNGO
Depois de passar dois anos (1944/46) pesquisando variedades de trigo resistentes à
“ferrugem” na Minesotta University, onde conheceu o biólogo Norman Borlaug –
Prêmio Nobel da Paz de 1970 pelas conquistas genéticas da Revolução Verde
financiada pela Fundação Rockefeller -, Silva, baseado em 1949 em pelotas, concluiu
que a “ferrugem” era o principal, mas não o único problema sanitário do trigo,
também atacado por outras pragas. Na realidade, o clima úmido provocava a
proliferação de fungos em várias culturas, como as de feijão, aveia, arroz e linho.
Inicou-se então um trabalho em duas frentes. O primeiro foi à busca de sementes
resistentes às doenças. O melhoramento genético teve alento nas mãos de Iwar
Beckmann, sueco que desenvolveu em Bagé a variedade de trigo Frontana, e de
Benedito Paiva, agrônomo que criou em Júlio de Castilhos variedades de trigo
adaptadas aos campos nativos do Rio Grande do Sul. O segundo trabalho, foi a
aplicação experimental de fungicidas que deram à indústria química brasileira o
impulso inicial para seu grande crescimento nas décadas seguintes.
Entretanto, a descoberta mais importante nesse período, no final na década de 50, não
foi genética nem química, mas geográfica. “Concluí que era preciso expandir a zona de
produção tritícola, saindo da região tradicional, restrita ao Rio Grande do Sul”, lembra
Silva. Plantado em regiões menos úmidas, quem sabe o trigo não escaparia do círculo
vicioso das doenças fúngicas? Todos os técnicos envolvidos com o trigo, inclusive os
membros de uma missão da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e
a Alimentação) então presente no Brasil, acharam que essa diversificação seria
inviável. Mesmo assim, iniciou-se um projeto da adaptação de sementes ao norte do
Paraná.
A diversificação geográfica da triticultura só avançou mesmo a partir de 1964, quando
Silva assumiu a direção de pesquisa do Ministério da Agricultura. Para sustentar a
experiência, ele criou duas subcomissões de pesquisa de trigo – uma voltada para a
região Sul (já operando formalmente no Instituto Agronômico do Sul-IAS, com tese em
Pelotas). Outra região situada acima do Trópico de Capricórnio, que passa sobre
Londrina, no norte do Paraná. Deu certo, ainda que tenha demorado: hoje o Paraná é
o maior produtor nacional de trigo, quem também se estabeleceu, em menor escala,
no sul e no oeste de São Paulo, no Sul do Mato Grosso do Sul e, por fim, nos cerrados
do Brasil Central, onde a irrigação vingou tecnicamente, embora seja economicamente
inviável diante do preço do trigo importado.
PACOTE TECNOLÓGICO
Em algumas dessas regiões “novas”, o trigo entrou junto com a soja, repetindo aquele
projeto “vendido” por Nestor Jost ao ministro Delfim Netto em meados de 1967.
Chamado de Operação Tatu porque implicava em sulcar profundamente a terra,
conforme a nova receita assinada por Norman Borlaug e testada com êxito na estação
experimental do Ministério da Agricultura em Cruz Alta, o projeto era na realidade um
thriller do primeiro pacote de tecnologia agrícola do mundo capitalista. Prescrevia o
uso de calcário para corrigir a acidez dos solos e de adubos químicos para nutrir as
plantas – nascidas, por sua vez, de sementes híbridas selecionadas após rigorosas
pesquisas genéticas. Tudo trabalhado com modernas máquinas de preparo do solo,
plantio e colheita, Já na primeira metade da década de 50 os agricultores mais
adiantados do Sul e do Sudeste tiveram acesso a esse “pacote tecnológico”, subsidiado
pelos Estados Unidos e facilitado pelo Banco do Brasil. Nasceu assim, em pleno
governo de Getúlio Vargas (1951-54), o mais consistente esforço para atender às
necessidades brasileiras de trigo, e simultaneamente, aos interesses das indústrias
americana.
Seduzidos pela propaganda, estancieiros de gado admitiram tratores e arados em seus
campos nunca lavrados, ceifadeiras automotrizes de marcas famosas como John
Deere, International oumassey Harris chegavam encaixotados ao interior gaúcho. O
mesmo acontecia em São Paulo. Muitas indústrias européias como a Ford inglesa e a
alemã Hanomag entraram na onda, exportando também seus tratores. Entre 1950 e
1960, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísca (IBGE), a frota
nacional de tratores subiu de 8.372 para 61.345 unidades. A importação
indiscriminada colocou em território brasileiro 156 marcas diferentes de tratores. No
Sul ainda há quem recorde: vieram máquinas esplendias, mas algumas colheitadeiras
originárias da Europa era verdadeiros quebra-cabeças que nunca chegaram a
funcionar. O modelo americano da agricultura empresarial obrigou o Brasil a criar
alguns mecanismos de difusão dos novos conhecimentos disponíveis. Foi nesse
contexto que nasceu o Instituto Privado de Fomento à Soja, No Rio Grande do Sul. Na
mesma onda criaram-se as associações estaduais de crédito e assistência técnica que,
por sua vez, deram origem aos clubes 4S – verdadeiros grupos de trabalho organizados
em torno dos jovens nas comunidades rurais. A extensão rural (dos conhecimentos
desenvolvidos em laboratórios e campos experimentais) abriu grande campo de
trabalho para agrônomos e técnicos formados em escola agrícolas de nível médio.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-61), a triticultura gaúcha
bateu recordes de área plantada no Rio Grande do Sul. Em média, plantou-se um
milhão de hectares por ano (no mesmo período, a média de plantio de soja girou em
torno de 100 mil hectares por ano). A criação de novas variedades de trigo como a
Fontana gerou um entusiasmo sem precedentes. Entretanto, a produção de mais de 1
Milão de toneladas de trigo, em 1956, com uma produtividade recorde de 958kg/há,
não teve continuidade. Nos dois anos seguintes, o rendimento caiu para a faixa de 10
sacos de 60 quilos por hectare. O trigo, sensível à umidade do inverno sulino,
continuava extremamente vulnerável aos fungos da “ferrugem”. Sozinho, ele era
incapaz de garantir o sustento dos produtores. A estrutura montada em torno do trigo,
porém, serviria como base de sustentação dos deslanche da economia agrícola gaúcha
a partir da segunda metade da década de 60, Um dos sinais dos tempos, em várias
cidades do Rio Grande do Sul, eram as comissões municipais do trigo, formadas por
três membros – um do Banco do Brasil, um da prefeitura e outro da exatoria estadual.
TRIGO-PAPEL
Apesar da boa organização burocrática da triticultura, ainda não tinha ficado claro,
tecnicamente, que faltava uma cultura de verão que casasse com o trigo, cultivado no
inverno. A opção mais plausível era o milho, rústico, resistente ao clima, mas sujeito a
problemas de mercado. Quando obtinha uma boa safra, o produtor de milho levava na
cabeça com a queda de preço. Teoricamente, sabia-se que uma leguminosa seria
eficiente na fixação no solo de nitrogênio a ser aproveitado pelo trigo, mas... feijão
comum? Não. Lavoura cheia de altos e baixos, o feijão era muito vulnerável ao clima e
também não dava segurança ao produtor. Em resumo, no início da década de 60 já se
falava bastante de um certo feijão-soja, mas apenas uma minoria o conhecia.
Para compensar a falta de uma boa alternativa agrícola e comercial, muitos
triticultores optaram por ganhar dinheiro com uma nova modalidade de cultura: o
trigo-papel, nascido no terreno das facilidades de crédito do Banco do Brasil. Arranjo
entre produtores e moinhos para pegar o dinheiro do subsídio oficial ao trigo
importado, a jogada do trigo-papel virou escândalo espinhoso para o recém-iniciado
governo tampão do vice-presidente João Gourlart (1961-64). Pois medrara no seu
estado natal, governado por Leonel Brizola, seu cunhado e correligionário.
Denunciada pela Federação das Cooperativas Tritícolas do Sul (Fecotrigo), fundada
alguns anos antes, a maracutaia era rendosa não só para os agricultores, mas também
para os moinhos, pois se baseava numa regra simples: para cada saca de trigo
produzido internamente, permitia-se importar três sacas de trigo estrangeiro. Quando
as autoridades se dera conta, o Rio Grande do Sul estava “produzindo” milhares de
toneladas de trigo – era recordes só no papel. As estáticas, pelo menos, fora corrigidas.
Para resolver o imbroglio, o primeiro-ministro Tancredo Neves, do PSD, sugeriu uma
solução à mineira: que o “abacaxi” fosse descascado por um gaúcho sem vínculos com
o PTB, o partido do presidente e do governador. Tarefa para Nestor Jost.
A PODEROSA CTRIN
Pessedista, Jost estava feliz na Câmara e relutara em aceitar o cargo de diretor do
Banco do Brasil oferecido pelo presidente Goulart. A perda salarial era grande, de
quatro por um, Acabou aceitando ao se dar conta de que uma diretoria do BB poderia
dar muito mais evidência e penetração do que um mandato legislativo, mesmo num
sistema parlamentarista de governo, como o adotado às pressas em 1961, após a
renúncia do presidente Jânio Quadros.
Filho de agricultor, Jost sabia lidar com produtores rurais. Ele tinha sido delegado de
polícia em Canguçu e prefeito em São Lourenço do Sul, duas pequenas cidades da
região de Pelotas, onde havia se tornado sócio de Lauro Ribeiro em lavouras de arroz.
No caso do trigo-papel, ele adotou uma solução olímpica: amparando por uma portaria
ministerial, criou, em 30 de novembro de 1962, a Comissão de Compra do Trigo
Nacional (CTRIN), formada inicialmente por Pedro Otto da Silveira, Dinard Goyheneix
Gigante, José Joaquim Pires de Carvalho Albuquerque e Antonio Carlos Silveira Abbott,
todos da agência central do BB em Porto Alegre.
A CTRIN ficou famosa não por ter colocado uma pá de cal sobre o escândalo de trigopapel (que acabou sem culpados nem punidos), mas por ter assumido na prática a
direção de política nacional do trigo, incluindo as importações, que não época
lideravam a pauta de compras internacionais do Brasil.
Único órgão de dimensão nacional do BB com sede fora de Brasília, a CTRIN foi ágil,
enxuta e poderosa. Nunca teve mais de uma centena de funcionários para manipular
um orçamento anual que à época de sua extinção, no início do governo de Fernando
Collor de Mello (1990-92), era de US$ 1,5 bilhão, 12% dos quais destinados às
importações. O restante, isto é, a maior parte, era empregado no subsídio ao consumo
do cereal, no financiamento da triticultura e em atividades afins, como a controle de
estoques, a administração de armazéns e as operações de transporte. Em quase 30
anos de existência teve apenas três chefes: Antonio Carlos Abbott, Humberto Garófalo
e Lino Fensterseifer. Foi uma máquina a serviço do trigo e também da soja; seu
primeiro grande teste de campo foi justamente a Operação Tatu, em 1967.
Embora tenha sido atingido apenas a metade da meta prevista – plantio de 20 mil
hectares de soja por 2 mil agricultores, à média de 10 hectares cada um -, a Operação
Tatu deu certo como efeito-demonstração, naquele ano, uma seca reduziu 30% o
rendimento das lavouras do norte gaúcho, menos nos 10 mil hectares que haviam
seguido as regras do projeto, orientando pelos técnicos da Secretaria da Agricultura e
da Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural (Ascar), embrião da Emater gaúcha.
Entre os produtores, atribuiu-se o sucesso especialmente ao uso do calcário, mitificado
como um novo maná. Uma demanda extraordinária levou o Banco do Brasil a financiar
a exploração de minas de calcário em Pantano Grande. No coração do Rio Grande do
Sul, e oferecer crédito farto para correção de solos. O plantio de trigo/soja virou moda
em pouco tempo. Um dos seus mais entusiastas propagandistas foi o agrônomo
mineiro Allyson Paulinelli, ministro da Agricultura do governo do general Ernesto
Geisel (1974-1979). Orador inflamado, ele não perdia oportunidade de elogiar a
“dobradinha”, que rendeu até uma canção sertaneja, gravada em 1974 por Jacó e
Jacozinho. A letra de Moacyr dos Santos fala da Ascensão de um ex-tratorista ao
patronato rural.
Trigo e Soja
Eu já fui um bom empregado
Honrado no meu querido sertão
Trabalhei de tratorista
Fui orgulho do patrão
Um dia Deus me ajudou
Comprei um pedaço de chão
Negócio bom do momento
Agora é esse meu amigo
Tiro trigo e planto soja
Tiro soja e planto trigo
Quem sabe preparar a terra
Não erra, é lucro que não tem fim
Já destoquei minha mata
E arei todo o capim
To plantando e to colhendo
A coisa virou para mim
Negócio bom do momento (...)
Eu tenho todos os maquinários
Calcário, jogo muitas toneladas
Depois ponho um bom adubo
Pra ficar bem reforçada
Depois passo o herbicida
A terra está preparada
Negócio bom do momento (...)
Eu sou um homem muito franco
No banco, eu entro de botinão
Vem o gerente sorrindo
E pega na minha mão
Foi o trigo e foi a soja
Que me fez virar patrão...
Como certas músicas de ocasião, feitas de encomenda, o casamento do trigo com a
soja deu certo, mas não por muito tempo. Na safra 1967/68, os dois ocuparam quase a
mesma área no Brasil: o trigo, 845 mil hectares; a soja, 721 mil. Em 1968/69, o trigo
ocupou 1.3 milhão de hectares e a soja, 906 mil. A “dobradinha” foi crescendo ano a
ano. Até que em 1972, com 2.3 milhões de hectares o trigo esborrachou-se no chão
com um rendimento médio de apenas cinco sacas por hectare. Com 2.2 milhões de
hectares, a soja seguiu sozinha. Enquanto ela conquistava novas terras nos cerrados do
Brasil Central, o trigo ficava para trás. Triste como um tango.
Desentendimentos, fofocas e divergências de interesses contribuíram para a
separação. No final da década de 60, Ady Raul da Silva ganhou um prêmio do Moinho
Fluminense com monografia “Uma Política de Trigo para o Brasil”. Nela, o veterano
pesquisador brasileiro argumentava que, apesar de certas limitações e desvantagens, a
triticultura tinha condições de abastecer o país, desde que se estimulasse a produção e
deixasse de subsidiar o consumo, prática que favorece a triticultura de outros países e
prejudica o consumo nacional de outras farinhas, como a de milho, a de mandioca e
até a de soja.
O extravio dos originais manteve o trabalho inédito, não obstante uma ordem de
publicação expendida pelo ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne lima. Somente
em 1971 um resumo foi publicado na Revista A Granja, de Porto Alegre.
PAPÉIS TROCADOS
A polêmica sobre a auto-suficiência do trigo teve um novo capítulo no início da década
de 70, quando o economista americano Peter Knight, PhD pela Stanford University,
defendeu a tese – publicada em 1973 na revista de economia da Universidade de São
Paulo – de que o Brasil não devia ser esforçado para produzir trigo, já que podia
importá-lo gastando metade do dinheiro aplicado na busca da auto-suficiência.
Contestada por Ady Raul da Silva com o argumento de que os investimentos na
triticultura do Brasil são muito menores do que os gastos com o subsídio ao consumo,
a tese de Knight não chegou a ser acatada pelo governo, que continuou apostando ora
no trigo nacional, ora no importado, de acordo com as conveniências (cambiais,
diplomáticas, políticas) de cada momento.
Os produtores, por sua vez, continuaram fazendo do trigo um espelho (cada vez mais
opaco) da soja. Em 1976, por exemplo, a produção brasileira de trigo chegou a 3
milhões de toneladas, enquanto a de soja passava de 11 milhões. Em 1987, recorde de
6 milhões de toneladas no trigo e de 17.1 milhões de toneladas na soja. Em 1995, a
produção de trigo encolheu para 1,5 milhões de toneladas, enquanto a de soja chegou
ao máximo: 25,9 milhões de toneladas.
Alternando safras boas e ruins, a dobradinha trigo-soja ainda permanece em cartaz,
pelo menos nos estados do Sul, Recentemente, técnicos que trabalham com a difusão
do plantio direto (no-tillage) no Rio Grande do Sul concluíram que o casamento trigosoja, para funcionar melhor, precisa de uma rotação mais intensa com outras culturas,
em especial o milho, e de uma maior integração com a pecuária. Mas o avanço da
economia agrícola brasileira está invertendo os papéis da dupla. Trinta anos depois da
Operação Tatu, agora é o trigo que promete servir de escora para as dificuldades da
sojicultura gaúcha, que perdeu terreno para a competitiva soja argentina.
O Braço Cooperativista
Quando o Brasil alcançou a maior colheita de trigo em quase dois séculos de luta
consciente pela auto-suficiência no abastecimento – 1.062.580 toneladas, em 1956 -,
os agricultores de Bagé, ao invés de festejar o recorde, promoveram uma
manifestação de protesto contra a que classificaram como “o abandono da triticultura
pelo governo”
Situação absurda. O estímulo governamental havia levado muitos fazendeiros
tradicionais a abrir suas terras à aventura de trigos, introduzido na campanha gaúcha
por imigrantes alemães da colônia de Aceguá, com sementes importadas da Argentina
ou desenvolvida em campos experimentais mantidos pelo governo na própria região
fronteiriça. Por sinal, duas variedades gaúchas, a Bagé e a Frontana, davam bons
resultados e ainda não haviam sido atacadas pela “ferrugem”, a maior praga dos trigais
gaúchos.
Frustrados com a falta de comprador para a colheita tão abundante – não era isso,
afinal, o que se queria desde a chegada dos colonos açorianos a Porto Alegre, no início
do século 18? -, os produtores colocaram umas sacas de trigo dentro de um carro
fúnebre e formaram um cortejo que percorreu a rua Sete de Setembro, no centro da
cidade, a capital do gado do Rio Grande do Sul, Demonstravam assim seu
inconformismo com a falta de consistência da política agrícola do governo, que
abandonara a campanha d
Para asa auto-suficiência, cedendo às pressões para ignorar o trigo norte-americano,
ofertado a preço vil no mercado internacional. O “enterro do trigo nacional” em Bagé
virou um marco da história da triticultura e do cooperativismo no Brasil.
PECADO ORIGINAL
Pouco tempo depois daquela patética manifestação de protesto, a Associação
Bageense de Triticultores liderou o esforço que levou um grupo de 11 novíssimos
cooperativas a fundar em outubro de 1958 em Santa Maria e Federação das
Cooperativas Tritícolas do Rio Grande do Sul (fecotrigo), cabeça do que chegou a ser o
movimento associativo mais organizado da agricultura do Brasil.
Marca indelével no passado do cooperativismo sulino, o T do trigo permanece visível
até hoje na razão social de dezenas de cooperativas “tritícolas” criadas nos anos 50 e
60 com incentivo oficial. Entretanto, o pecado original do cooperativismo – nascer no
regaço oficial, d dos dirigentes rurais gaúchos. Ao contrário, parece tê-los estimulado a
manter em relação às autoridades um repertório de atitudes mais ou menos
previsíveis: cobrança permanente, apoio tácito, reivindicação assídua, expectativa
insatisfeita, aquiescência relutante, descontentamento, queixas, críticas, cobrança.
Para as bases formadas por imigrantes de origem européia, naturalmente
dependentes de boa-vontade do governo, organizar-se em cooperativas era a melhor
forma de enfrentar as dificuldades geradas pelo isolamento nas colônias. Mas nem
mesmo no começo a Fecotrigo viveu exclusivamente de reivindicações próprias de
cooperativas tritícolas. Ao arrebanhar também produtores sem terras reunidos em
movimentos civis ou cooperativas mistas, ela assumiu desde o início a dimensão
política de uma partido agrário com um discurso técnico moderno e uma bandeira
social progressista. O cooperativismo era “a terceira opção”, nem capitalista, nem
comunista.
Por seus interesses e origens, a Fecotrigo manteve desde o princípio uma grande
proximidade com o Banco do Brasil, o grande agente de fomento da triticultura, da
lavoura geral e do agribusiness nacional. Teve por isso condições (morais, inclusive) de
denunciar o escândalo do trigo-papel, liquidado dentro do próprio banco estatal por
um mecanismo burocrático que acabou sendo fundamental para a organização da
economia agrícola gaúcha.
À SOMBRA DO BB
Amparadas pelo esquema oficial de estímulo à triticultura, as cooperativas cresceram à
sombra da Comissão de Compra do Trigo Nacional (CTRIN), operada pelo Banco do
Brasil, mas só se tornaram realmente fortes com a expansão da soja, na segunda
metade da década de 60. Por ironia da história, foi lutando pela auto-suficiência na
produção do trigo que elas ajudaram a construir o novo modelo exportador fixado pela
cultura da soja. Nesse trabalho, foram muito além do roteiro estabelecido pelas
autoridades para a modernização das atividades econômicas no campo.
Ao fortalecer seus departamentos técnicos, elas assumiram conscientemente o papel
de braço auxiliar da política econômica do governo, colocando à disposição dos
produtores as facilidades de créditos, as novas técnicas agrícolas e os novos insumos
do pacote tecnológico criado pelos americanos. As cooperativas tiveram papel decisivo
na montagem da rede de armazenagem da produção agrícola. Foram importantes
também na logística do escoamento das safras. Além disso, contribuíram com o
governo em projetos da colonização e na expansão da fronteira agrícola.
Fruto de um acordo de cúpulas, a aliança governo-cooperativas funcionou como uma
avenida de mão dupla cujo tráfego, graças à soja, se adensou, por coincidência,
durante os governos militares. O casamento desmanchou-se no início da década de
80, quando os alicerces do edifício cooperativista fora abalados pelo colapso do
modelo econômico e a crise do regime militar.
Poderoso edifício. No afã de ter parte do dinheiro que circulava entre seu universo de
insumos, supermercado, empresas de transportes e indústrias de óleos, adubos e
rações. Aproveitando todos os incentivos e facilidades oferecidos pelo governo
durante o milagre econômico. Geraram conglomerados que disputavam um lugar ao
sol entre empresas nacionais e estrangeiras, Apenas a Central Sul, braço industrial das
cooperativas gaúchas, foi em seu melhor momento, em 1981, a segunda maior
empresa do Rio Grande do Sul, só suplantada pela Varig e à frente dos grupos Gerdau
e Ipiranga. Isso sem contar com os complexos formados por cooperativas em suas
regiões de origem, no Sul e em outras regiões brasileiras aonde o braço cooperativista
chegou com força da soja.
VÍTIMAS DO GIGANTIMOS
Até hoje o edifício do cooperativismo carece de consertos. Em particular, ainda estão
abertas as rachaduras surgidas na hora da verdade, em 1982. Alguns dirigentes de
cooperativas foram afastados de seus cargos, acusados de inépcia financeira ou, até
mesmo, de falcatruas administrativas, ainda que sem culpa fomarlizada na justiça.
Outros foram simplesmente colocados à margem do processo.
Desse grupo de condenados ao limbo do cooperativismo fazem parte atualmente os
dois maiores dirigentes cooperativistas gaúchos identificados com o ciclo da soja.
Rubem Ilgenfritz da Silva (Ijuí, 1941), ex-presidente da Cooperativa Regional Tritícola
Serrana (Cotrijuí), e Ari Dionísio Dalmolin (lagoa Vermelha, 1942), ex-presidente da
Fecotrigo, tornaram-se vítimas do gigantismo pelo qual tanto se empenharam.
Agrônomo formado em 1963, Ilgenfritz começou a trabalhar no departamento técnico
da Cotrijuí em 1964, Dirigiu a durante 24 anos, em dois períodos (1966/85 e 1990/95),
ocupando, no intervalo, dois cargos públicos: secretário geral do Ministério da
Agricultura no período 1985/86 (gestão do gaúcho Pedro Simon) e, em seguida,
presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Técnico
preocupado com as questões sócio-políticas ligadas ao desenvolvimento rural,
Ilgenfritz foi a cara da Cotrijuí no momento em que esta cooperativa, ao assumir
grande empreendimentos, chegou a simbolizar a audácia dos agricultores gaúchos. O
vínculo com o governo estabeleceu-se no final da década de 60, quando a Cotrijuí
assumiu a operação do terminal de trigo e soja do porto de Rio Grande, abrindo o
caminho à reativação da navegação fluvial no Rio Grande do Sul. Apesar de atrelada ao
governo, a Cotrijuí preocupou-se em ser competitiva e inovadora da lavoura ao porto,
numa época em que a maioria das cooperativas se limitava a entregar a soja ensacada
aos compradores das indústrias de óleos.
Quando o governo sugeriu a adoção do modelo americano - armazéns pequenos
providos de secadores dentro das propriedades rurais -, Cotrijuí apostou na construção
de grandes armazéns graneleiros com capacidade de captar a produção regional. Esse
modelo foi adotado por outras cooperativas em todo o Brasil, inclusive no Mato
Grosso do Sul, onde a Cotrijuí estabeleceu uma ponta-de-lança na década de 70
EDUCAÇÃO DE BASE
Tanto pela obrigação legal de se comunicar com as bases quanto pela necessidade
empresarial de atuar eficientemente, a Cotrijuí foi pioneira também na criação de um
sistema de informações fundamental para o dinamismo alcançado pelas cooperativas.
No início da década de 70 tornara-se claro que o crescimento empresarial das
cooperativas afastaria naturalmente dos associados, isolados nas colônias. A direção
da Cotrijuí autorizou então a montagem de um novo método de trabalho para manter
os associados a par das atividades da cooperativas e, particularmente, dos altos e
baixos do mercado. A informação seria a arma de defesa contra a ação dos
intermediários que batiam à porta dos colonos com ofertas de compra de soja.
A nova tarefa foi confiada a Rui Polidoro Pinto (Ijuí, 1941), diretor da escola técnica
local e estudante de direito em Santo Ângelo. “Acho que fui o primeiro profissional do
cooperativismo com o cargo de educador de base anotado em carteira”, lembra Pinto,
presidente da Fecotrigo desde 1989. Contratado em 1972, sua função era abrir e
manter um canal de comunicação eficiente entre a direção da cooperativa e dos
produtores, para tanto organizados em núcleos de base nas zonas rurais.
Ao dar maior consistência e vivacidade à organização cooperativa, o novo modelo foi
adotado em seguida por outras instituições do ramo, tendo prosperado
principalmente no Paraná, onde o binômio soja-trigo, entre 197- e 1985, deu origem a
18 cooperativas, entre elas a Coamo, de Campo Mourão, a maior cooperativa brasileira
nos anos 90.
O papel da vanguarda da Cotrijuí implantando nas bases do cooperativismo um
modelo “cubano” confunde-se a partir de 1972 com a verticalização empresarial à
moda americana adotada pelo Fecotrigo sob a gestão do novo presidente, Ari
Dalmolin, entusiasta da experiência dos produtores de Indiana, nos Estados Unidos.
TRABALHO DE CÚPULA
Filho de sitiantes, Dalmolin viu um pé de soja pela primeira vez em 1963, quando, ao
deixar o serviço militar em Passo Fundo, empregou-se no escritório da Granja Arco-Íris,
pertencente a dois chineses responsáveis pela importação dos Estados Unidos das
primeiras sementes de soja precoce plantadas no estado. No natal de 1964, “tirou a
sorte grande” na Loteria Federal. Com o prêmio, comprou uma casa, uma camioneta
Rural Willys e duas fazendas. Uma delas permaneceu arrendada aos chineses da ArcoÍris. Na outra dalmolin passou a plantar trigo em sociedade com o irmão Argentino.
Em 1968, “por puro acaso”, como conseqüência de um conflito político entre dois
grupos, Dalmolin foi eleito vice-presidente da Cooperativa Tritícola de Passo Fundo
(Coopasso), no papel de tertius. Em 1970, presidente, dedicou-se à melhoria da sua
estrutura de armazenagem e à importação direta de fertilizantes, para escapar dos
grupos privados que dominavam esse setor. A convite dos fornecedores passou um
mês nos Estados Unidos. Voltou convencido de que as cooperativas brasileiras deviam
seguir o modelo de Indiana, assumindo o maior número possível de atividades antes e
depois das colheitas – o que incluía a produção de insumos, o beneficiamento da
produção, o transporte, a exportação e o fornecimento de bens de consumo aos
associados. Foi com essa plataforma que Dalmolin, ganhou em 1972 a eleição para a
presidência da Fecotrigo, desde 1960 comandada por Edgar Almeida Perez,
pertencente ao “grupo histórico” do cooperativismo tritícola
Com o boom dos preços da soja em 1973, o cooperativismo cresceu naturalmente.
Para agigantar-se, recebeu um providencial empurrão oficial. Em 1974, o governo
limitou a exportação de um milhão de toneladas, destinando uma cota de 100 mil
toneladas aos exportadores tradicionais e 900 mil toneladas a cooperativas. Para dar
conta da tarefa, a Fecotrigo organizou um pool de escoamento da soja, trabalho feito
na prática pela Cotrijuí, que montou uma trading, a Cotriexport, entregue inicialmente
à direção do experiente corretor Aldayr Heberle. Em 1975, toda soja exportada pelo
Rio Grande do Sul, coisa de dois milhões de toneladas, saiu pelo porto de Rio Grande,
onde a Cotrijuí construíra a boca de saída de um modelo integrado de transporte,
usando rodovia, ferrovia e hidrovia. Na hidrovia de apenas 300 quilômetros chegou a
mover um comboio de 12 barcaças levando 13 mil toneladas. Um transbordado,
montado sobre um barco, dispensava a passagem por armazém portuário.
COM A BOLA TODA
Apesar dessa convergência operacional, a Cotrijuí e Fecotrigo desenvolveram sistemas
paralelos de informações aos associados. Já no fim de 1973, foi montado em Porto
Alegre, na sede da Fecotrigo, um birô de informações para todas as cooperativas
filiadas acompanharem as cotações da soja. A entidade recebia as informações via
telex e as repassava via rádio para o interior. Um boletim era emitido na abertura da
bolsa de Chicago, ás 11:30 da manhã. Mais dois boletins saíam no meio das operações.
E havia mais um no final. A Cotrijuí, por sua vez. Trava de aprofundar o seu próprio
canal de informações, no que também era seguida por outras cooperativas.
Junto com essa notável expansão, nasceu a imprensa cooperativista. Ela começou em
Carazinho em 1974, quando foi criado o semanário O Interior, pioneiro de uma rede
que chegou a reunir 22 jornais de cooperativas nos estados do Sul. Um dos órgãoschaves desse esforço informativo foi a revista Agricultura & Cooperativismo, tocada
por membros da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal), fundada em
1974. Publicada de 1976 a 1981, a A&C inovou na linguagem ao assumir os pontos de
vista dos agricultores. Essa linguagem nasceu numa “reunião de pauta” de jornalistas –
presentes o repórter André Pereira, a fotógrafa Jacqueline Joner, o editor Ayrton
Kanitz e Elmar Bones da Costa, um dos gurus da Coojornal -, mas sem dúvida refletia o
espírito de “educação de base” difundido pela Cotrijuí. Concluiu-se que a única forma
de transformar a revista num veículo autêntico dos anseios dos agricultores
cooperativados era assimilar sua linguagem nos textos e colocar sua imagem crua, sem
enfeites, nas fotos. Até então, para aparecer em jornais, os colonos vestiam a melhor
roupa e posavam para as fotos, lembra o reporte André Pereira (Porto Alegre, 1952),
um dos renovadores da linguagem da imprensa agrícola. Ele ganhou um prêmio
nacional de jornalismo por uma matéria sobre como lidar com “os venenos agrícolas” –
assim os agricultores se referiam aos produtos químicos rotineiramente chamados de
“defensivos” ou “agrotóxicos”.
A imprensa agrocooperativista, voltada principalmente para a informação técnica e a
conscientização política dos produtores, formou uma geração de jornalistas e leitores
que alguns anos depois tentaria uma “revisão crítica do ciclo da soja”. O primeiro lance
foi no princípio da década de 80, quando um grupo de quatro fotógrafos de Porto
Alegre – Jacqueline Joner, Genaro Joner, Eneida Serrano e Luiz Abreu – produziu o livro
Santa Soja, com retratos da vida de sitiantes que haviam embarcado na ilusão da
prosperidade fácil. Em seguida, uma série de reportagens publicada n’O Interior
recebeu o Prêmio Badesul de Jornalismo, resultando em 1984 no livro Dez Anos da
Soja, que expressou uma visão bastante pessimista do “ciclo da soja “ (1973/82). O
último lance dessa polêmica foi outro livro, De santa a Pecadora, publicado em 1988.
Nele o agrônomo Luiz Pedro Bonetti (Itaqui, 1945), estimulado por outro jornalista,
Silmar Muler (Restinga Seca,
1951), especialista em commodities agrícolas, afirma que seria injusto transformar em
bode expiatório uma planta com tantos séculos de serviços prestados à humanidade. O
debate não foi adiante, mesmo porque a maior parte da imprensa cooperativa estava
desaparecendo em meio à crise que envolvia o cooperativismo. Um dos raros
remanescentes é O Interior, eu desde 1981 circula como porta-voz da Fecotrigo.
CHARTER PARA CHICAGO
É indiscutível que sem o aval do governo as cooperativas não teriam alçado vôo tão
alto. Pelo menos no governo do general Ernesto Geisel (1974-79), elas chegaram a ser
vistas como uma alternativa ao poder das multinacionais no comércio mundial de
commodities agrícolas. Coincidência ou não, foi nos Estados Unidos que os dirigentes
cooperativistas brasileiros foram buscar inspiração para crescer.
Um dos marcos da ascensão foi o vôo charter de uma centena de produtores gaúchos
no segundo semestre de 1974, Formalmente, a viagem de 23 dias organizada pela
Cotrijuí teve como pretexto uma visita à bolsa de Chicago e a lavouras e instalações
agroindústrias pertencentes aos agricultores americanos, mas no fundo os líderes do
cooperativismo queriam produzir tanto quanto os americanos, ou até mais.
Outro grande momento do êxito do cooperativismo sulino foi a compra pela Fecotrigo,
em 1976, de um prédio de 18 andares na Rua Andrade neves, na “boca” mais central
de Porto Alegre. Era um pouco mais do que ostentação. “Nós éramos um estado
dentro de uns estados”, lembrou Euclides Casagrande, vice-presidente da Cotrijuí, em
entrevista dada em 1995 ao jornal Zero Hora.
No auge, por volta de 1981/82, o complexo liderado pela Fecotrigo chegou a reunir
187 entidades, com 300 mil associados, 21 mil funcionários e capacidade de processar
por ano 1,1 milhão de toneladas de soja, 5 milhões de toneladas de arroz e um milhão
de toneladas de calcário. Em seus armazéns podiam-se estocar 6,7 milhões de
toneladas. A transportadora da Feccorigo era tão poderosa que certa vez comprou 80
carretas graneleiras numa única tacada.
Para operar mais á vontade, a Fecotrigo criou um braço econômico denominado
Centralsul, cujo faturamento chegou a US$ 350 milhões em 1982 e ensaiava pular para
US$ 600 milhões no ano seguinte, com a entrada em operação de uma fábrica de
fertilizantes e outra de agroquímicos. Segundo Dalmolin, comandante-em-chefe
dessas operações que incluíam arriscadas transações cambiais, “o cooperativismo
recebia uma verdadeira artilharia dos concorrentes do comércio e da indústria que
acusavam o sistema de gigantismo”.
CRISE DE 1982
O gigante foi derrubado em plena crise de 1982, que marcou o colapso definitivo do
modelo de crescimento conhecido como “milagre brasileiro”. Num quadro de escassez
de soja no mercado interno, a Centralsul aproveitou a autorização oficial para
transportar soja argentina – para transformar em óleo e farelo exportáveis – e ficou
com um estoque de 17 milhões de toneladas de grãos de soja, já contada a safra
daquele ano, fora 5 milhões de toneladas de arroz. A queda dos preços lhe foi fatal. De
abril a agosto a soja caiu 25% e o arroz 30%, Uma dívida de US$ 220 milhões não pôde
ser coberta porque, em agosto daquele ano, o crédito externo ao Brasil foi cortado por
ordem do Fundo Monetário Internacional.
Na tentativa de salvar a Centralsul e as cooperativas participantes do pool exportador,
Dalmolin diz ter conseguido montar no âmbito do Banco Nacional de Crédito
Cooperativo (BNCC) um pacote financeiro de US$ 170 milhões, com prazo de cinco a
oito anos, a juros internacionais. Seus companheiros de diretoria não lhe deram
ouvidos. De tanto viver em Brasília, Dalmolin foi surpreendido em Porto Alegre por um
movimento de oposição dentro do sistema cooperativo.
Evidentemente, o jogo político-partidário influiu no desfecho da crise da FecotrigoCentralsul. Embora não fosse filiado ao partido da situação, Dalmolin desfrutava de tal
acesso aos poderosos que era visto como homem do governo. Ele tinha o que muitos
ministros ou governadores nomeados pelo governo militar não tinham: votos nas
bases, como é de natureza democrática do cooperativismo. Quando o ministro
Antonio Delfim Netto impôs um confisco de 30% sobre as exportações de soja, em
1979, a Fecotrigo conseguiu derrubar a medida em poucas horas – com passeatas em
várias cidades do interior. Fritado aos poucos, Dalmolin atribui a crise a pressões
exercidas pelas indústrias concorrentes e a interesses político-partidários de “uma
determinada pessoa”. Refere-se a Jarbas Pires Machado”, líder cooperativista
vinculada ao PMDB, o partido vitorioso nas eleições de 15 de novembro de 1982 (no
Rio Grande do Sul, o eleito foi Pedro Simon). Tecnicamente “impedido” de operar com
o Banco do Brasil por causa de uma irregularidade em um financiamento para lavouras
das quais era sócio no Mato Grosso do Sul, em meados da década de 70, Dalmolin
renunciou à presidência da Centralsul e da Fecotrigo no dia 18 de novembro de 1982.
“Não foi falta de capacidade, problema administrativo, roubo como andaram dizendo.
Foram vários fatores nocivos que se juntaram naquele ano”, afirma Dalmolin. Um
deles, certamente, foi vaidade de quem se identificou demais com o governo. O ex
ministro Antonio Delfim Netto , que convenceu com os dirigentes cooperativistas
naquela época, acha que a expansão do sistema abriu espaço para a atuação de “um
pessoal despreparado” para a administração empresarial e o jogo do mercado
internacional. Além disso, acredita Delfim, no meio deles “havia alguns espertalhões”.
PERDA DE CREDIBILIDADE
A dívida da Centralsul comprometeu todo o movimento cooperativista, que refluiu
para cuidar de desavenças políticas e dificuldades financeiras. Muitas cooperativas
fora flagradas pelos associados e pela fiscalização com problemas administrativos e
financeiros. O desfecho foi enxugamento, com a venda de instalações para pagar
contas. A Fecotrigo, por exemplo, vendeu seu prédio-sede. Escapou quase intacta sua
estrutura de armazenagem.
Com a moda da reengenharia, em 1966 os dirigentes cooperativistas gaúchos
tentavam salvar a liquidação de um patrimônio líquido em mais de R$ 500 milhões
(contra uma dívida estimada em R$ 105 milhões). Ainda assim, os teóricos do
cooperativismo acreditam que a grande perda não foi material, mas de imagem.
Perdeu-se a credibilidade. A crise Fecotrigo/Centralsul foi parte de uma época de
dissipação, no fim do regime militar, mas não se restringiu ao cooperativismo do Sul.
Na década de 90, em conseqüência de uma dívida de U$ 400 milhões, faliu a poderosa
cooperativa de Cotia, responsável pela introdução da soja (e do café) no cerrado do
noroeste de Minas na década de 70. Segundo os especialistas no assunto, uma das
causas de tantos problemas é que toda cooperativa é obrigada a manter duas
estruturas, uma para competir no mercado consumidor e outra para manter relações
paternalistas com os sócios, determinadas pelos estatutos e impostas pela necessidade
de suprir a ausência do Estado rural.
Hoje, enxugada, a Fecotrigo tem uma direção cautelosa, quase ressabiada. O
presidente Rui Polidoro Pinto não é conviva de Brasília e continua fiel às origens. Nos
dias úteis fica em Porto Alegre. Nos fins de semana vai Ijuí, onde mantém a família e a
lavoura de 80 hectares. Para aumentar seu poder de barganha, a Fecotrigo tenta uma
fusão institucional com a tradicional Fearroz, que se manteve com os pés no chão em
plena euforia da soja.
Há também um movimento em torno da recuperação da Centralsul, que ficou com
duas fábricas de insumos (Defer) e uma corretora. O atual presidente Mario Bertani,
um dos líderes do protesto rural em 1995 conhecido por “caminhonaço”, é
assessorado nessa empreitada por Jarbas Pires Machado, que trabalha como consultor
econômico e mantém o prestígio político num estado governado pelo PMDB. Em vista
da crise do cooperativismo e devido ao ressurgimento do neoliberalismo, é consenso
que as cooperativas têm de sobreviver do próprio desempenho no mercado,
mantendo-se à distância dos governos, para não correr o risco de serem usadas, como
aconteceu nos anos áureos da soja.
LIÇÕES DA SOJA
Com base nessa estratégia, algumas cooperativas gaúchas ensaiam a montagem de um
novo ciclo agroindustrial. A idéia é erguer indústrias de porte médio, de alcance
regional, e distribuir entre os municípios fornecedores de matéria-prima os impostos
gerados pelas industrializações. Cita-se como exemplo dos novos tempos a
Cooperjacuí, que reúne cooperativas de Sarandi, Tapera, Não-Me-Toque e Ibirubá.
Deverá industrializar frangos, suínos e peixes. Inspirados na integração praticada por
indústrias privadas como a Frangosul, os produtores são treinados dentro de um
programa de qualidade mínima. “Não queremos cometer os mesmos erros da
Centralsul”, diz Darci Pedro Hartmann, presidente da Cooperjacuí.
Isso não significa que os dirigentes cooperativistas não queiram mais saber daquele
que, apesar de tudo, ainda é o principal produto das cooperativas gaúchas de
produção agrícola. Em 1995 elas receberam 7.6 milhões de toneladas de soja, 29,4%
do mercado nacional. Industrializaram 1,8 milhões de toneladas. Suas exportações de
derivados de soja somaram US$ 316,5 milhões. A novidade é que as poucas
cooperativas gaúchas em boa situação já não dependem tanto da soja.
Em 1982 os grãos significam 65% dos negócios da Cotrel, de Erechim; em 1996
representavam apenas 17%. Na realidade, a Cotrel fugiu da soja, desfazendo-se de um
projeto de assentamento em Guarantã do norte, MT, para onde levara 500 associados.
Disposta a reduzir custos e aumentar a eficiência para enfrentar a concorrência no
Mercosul, a cooperativa está terceirizando serviços antes executados diretamente. A
renda média dos seus associados é de R$ 10 mil por ano. Outra em boa situação é a
Cooperativa Agroindustrial e Alegrete (Caal), que se manteve concentrada no arroz:
tem sete engenhos, 12 armazéns, 37 silos, três unidades industriais e dois
supermercados informatizados.
Ligados ou não a cooperativas, os agricultores sofreram muitas mudanças ao passar da
agricultura de subsistência para a agricultura empresarial. Rubem Ilgenfritz da Silva
acha que a revolução da soja no Brasil coincidiu com os primeiros movimentos do
processo hoje conhecido como “globalização da economia”. Na lavoura, três décadas
depois da arrancada, o agricultor brasileiro não deve nada aos americanos. No
cerrado, produz mais e melhor. A desvantagem começa quando o produto sai do
campo. Falta competitividade justamente onde a Cotrijuí tanto inovou: no sistema de
transporte. A conclusão de Ilgenfritz é óbvia. “O custo Brasil minou o poder da soja”.
A FEBRE DE CHICAGO
No dia 11 de outubro de 1974, uma caravana de mais de cem pessoas desembarcou de
um vôo fretado em Porto Alegre. Exaustos, mas felizes, voltaram todos para suas
cidades, no Rio Grande do Sul, com muitas histórias para contar sobre o tour de 23 dias
no interior dos Estados Unidos. O ponto alto dessa verdadeira viagem de estudos foi a
visita á bolsa de cereais de Chicago, a meca do agribusiness internacional.
Promovida pela Cotrijuí, a excursão foi montada para tirar o complexo de inferioridade
dos agricultores brasileiros recém-iniciados no plantio da soja, a “moeda verde”
espalhada no mundo pelo capitalismo, alguns dirigentes cooperativistas dizem até hoje
que a maioria dos membros da caravana nunca tinha saído de suas cidades no norte
do Rio Grande do Sul. Exagero: organizada por uma agência de turismo, com guias e
tradutores, a viagem rendeu uma lista de passageiros bastante representativa do
poder econômico do interior gaúcho. Se havia jecas na comitiva, não eram tantos
assim.
Segundo o Cotrijornal, da viagem participaram 54 agricultores, oitos agrônomos, um
veterinário, dois técnicos agrícolas seis dirigentes cooperativos, dois prefeitos, quatro
vereadores, quatro advogados, nove jornalistas, dois professores, dois médicos, seis
dirigentes sindicais rurais, um engenheiro civil, um funcionário público, três bancários,
três funcionário de cooperativas, cinco revendedores de produtor agrícolas, um padre
e três senhoras que acompanharam seus respectivos esposos.
Além da bolsa de Chicago, eles visitaram dezenas de organizações entre granjas,
fazendas, fábricas de rações, aviários, pocilgas, fábricas de grande porte como a
International Harverster, John Deere e cooperativas e universidades. Em suma, uma
viagem profissional.
“DEU PARA COTEJAR”
O que mais impressionou os viajantes não foi o alarido da bolsa de Chicago, nem a
mecanização das fazendas, mas o planejamento, o profissionalismo e a diversificação
de atividades dentro de cada propriedade rural. “no que se refere especificamente à
agricultura – plantio de soja e milho, que foi possível cotejar -, nossas lavouras
equiparam-se em igualdade de condições com as que observamos nas regiões central
e do sul”, disse o Cotrijornal de novembro de 1974 numa matéria intitulada “120
Agricultores Curiosos Numa Terra Estranha”. E concluiu: “A grande vantagem dos
americanos sobre os nossos produtores rurais é verificada na criação de animais de
todas as espécies comerciáveis. A elevada tecnologia aplicada na criação e engorde
pelo sistema de confinamento total lhes dá uma vantagem muito grande.”
Os visitantes também observaram o estilo de vida dos fazendeiros nortes-americanos.
Durante os cerca de 15 dias em que a caravana da Cotrijuí percorreu a Bacia Central
(Illinois, Minesotta e Ohio), não foi vista uma horta e nem mesmo a criação de
pequenos animais, para consumo familiar. “O fazendeiro norte-americano planta e cria
a larga escada, para negócios, como também compra tudo o que necessita para o seu
consumo”, registrou o jornal da cooperativa de Ijuí.
No ano seguinte, outra excursão organizada pela Cotrisa, de Santo Ângelo, deu mais
um passo no processo de desmistificação da longínqua e poderosa bolsa cujas
cotações, desde a explosão dos preços de meados de 1973, tornaram-se assíduas nas
emissoras de rádio e nos jornais do interior gaúcho.
Até então, a maioria dos brasileiros ainda tratava a soja como um simples feijão – o
feijão-soja. Subsistia a polêmica semântica sobre o gênero: era “o” ou “a” soja?
Típica dessa confusão fora a reportagem publicada em agosto de 1973 pela revista
mensal Exame. Tendo na capa a figura de Carlos Santiago Antich Herrera (Argentina,
1923), presidente da Sandra, o texto de seis páginas assinado por Guilherme Velloso
começava com a soja corretamente no feminino, mas no fim a tratava como
masculino.
Os brasileiros ainda não estavam familiarizados com o poder da soja, mas já sabiam
que era algo mais do que um simples feijão, já que dava leite, margarina, óleo e um
farelo altamente nutritivo para frangos, suínos e bois. Agora a toda hora ela aparecia.
Alguns meses ante, em plena colheita das safras de verão, haviam sido inauguradas em
Ponta Grossa três indústrias de processamento de soja, formando “o maior complexo
agroindustrial da América latina”. Uma das fábricas era da Cargill, outra dos Irmãos
Pereira e a última da Sandra, a maior compradora de produtos agrícolas do Brasil. Em
1972, ela havia participado com 25% das compras de soja e de 20% das exportações de
óleos comestíveis, ganhando tanto dinheiro que virou capa da Exame.
“FORA DE SÉRIE”
Ex-gerente da pioneira Samrig em Esteio no período 1961/65, Carlos Antich teve a
sorte de estar na presidência da Sandra quando os preços da soja ganharam aquela
altura “fora de série”, como os qualificou. Em 1971, a soja tivera uma cotação média
de US$ 112 por tonelada. Em 1972, havia chegado a US$ 125. Em 1973, de abril a
junho, foi de US$ 150 a quase US$ 600.
Fora de sério, o boom foi provocado por uma complexa combinação de fatos. Uma
enchente no rio Mississippi, no ano anterior, quebrou a safra norte-americana,
tornando mais aguada a falta de proteína no mercado internacional, já
substancialmente da anchoveta no Peru. Houve também queda na produção de grãos
em todo o mundo, inclusive na China e na União Soviética.
A alta talvez não se tornasse tão grande se já no final de 1972 a União Soviética não
tivesse enviado um comprador a Nova York. Em plenas festas natalinas, ele contatou
os principais exportadores, fez encomendas e desencadeou uma corrida por estoques,
despertando a atenção do governo americano. No início de 1973, o presidente Richard
Nixon pôs lenha na fogueira ao embargar parte das vendas para os soviéticos.
Realmente, não havia soja para todos – consumidores habituais e novos compradores -
, mas nada justificava um quintuplicarão dos preços. A especulação correu solta. O ano
era mesmo de altas, prová-lo-ia a Organizações dos Países Produtores de Petróleo, em
setembro.
O maior beneficiário da alta da soja foi o Brasil, que apareceu no mercado como um
autêntico insider, favorecido pela época da colheita, na entressafra norte-americana.
Naquele ano, a safra brasileira passou de 5 milhões de toneladas. Foram exportadas
3,5 milhões de toneladas de grãos, farelo e óleo. Aldayr Heberle, o corretor pioneiro
de Porto Alegre, intermediou o equivalente a 80% da soja exportada, Em junho, no
último contrato antes da baixa, ele embarcou soja em grão a US$ 575 tonelada e farelo
a US$ 600. No final do ano, a receita cambial do Brasil chegou a US$ 945 milhões, com
que a soja subiu de 7,22% para 15,25% das exportações brasileiras, Por dez anos, até
1983, ela representaria pelo menos 10% das vendas externas do Brasil. Maior do que a
soja, só o rei do café.
Quem mais sofreu foram os japoneses. Em setembro daquele mesmo ano, dispostos a
entender o que se passava, eles convidaram quatro brasileiros para falar do futuro do
Brasil.Aldayr heberle foi um deles. A previsão era que em poucos anos o Brasil seria o
segundo maior produtor, atrás dos Estados Unidos, à frente da China. Foi o que
aconteceu, ainda na década de 70.
REIS E MENDIGOS
Graças à febre nos preços, o ano de 1973 acabou se tornando quase como um marco
zero da história da soja no Brasil. Em São Paulo, onde Carlos Antich recebeu o prêmio
“Melhores e Maiores de Exame” outorgado à Sandra, a imprensa deu o título de rei da
soja ao banqueiro e empreiteiro de obras públicas Olacyr de Moraes (Itápolis, 1931).
Um rei por acaso: ele tinha iniciado um cultivo de terra recém-compradas no Mato
Grosso do Sul e ganhou um dinheirão inesperado.
Por essas e outras história, a soja virou um produto agrícola popular, capaz de
despertar o interesse dos habitantes urbanos pelo desafio rural. Ninguém entendia
muito bem o que estava acontecendo, mas muitos acreditaram que a agricultura
estava virando uma espécie de jogo de ganhos certos – e com financiamento
subsidiado. Os produtores, e ate o governo, pareciam acreditar que o boom da soja
seria eterno. Nessa crença embarcaram também muitos neófitos oriundos da cidade.
Jarbas Pires Machado (São Sepé, 1948), presidente da Fecotrigo na virada dos anos 80,
lembra que o cultivo da soja colocou na roça um sem-número de profissionais recémsaídos de atividades urbanas. Eram os “granjeiros”, profissionais da agricultura.
Com a farta disponibilidade de financiamentos subsidiados, muitos aventureiros
entraram no plantio da soja sem conhecer a planta ou as manhas do trabalho rural. O
dinheiro fácil dava para comprar máquinas, carros e caminhões. O resultado das
colheitas bancava a compra de eletrodomésticos e a construção de casa nova. Com216
sacas de soja se comprava um fusco zero, lembra um dirigente rural. Os colonos
arrancaram árvores de erva-mate para plantar soja. Nas cooperativas chegou-se a
pensar em vender a soja-semente para aproveitar os preços excepcionais.
Umas das conseqüências dessa febre foi a valorização das terras. Muito capital urbano
desviou-se para a compra de glebas em áreas pioneiras. Muita terra foi adquirida com
recursos do crédito rural. Em sua demanda por grandes extensões, a soja estimulou a
ida de agricultores do Sul para o Brasil Central. A expansão da fronteira agrícola era de
interesse político, pois gerava prosperidade, impostos, renda, emprego e alívio às
tensões sociais no grande centro, inchados pelo êxodo rural e pelos movimentos
migratórios internos.
Não estranha que, a começar pela própria história do re da soja, a nova cultura tenha
criado nova histórias de enriquecimento e pobreza. Palacetes e favelas. Numa visão
pessimista dessa aventura povoada por sonhos de grandeza e terríveis frustrações,
chegou-se a dizer que a monocultura da soja decretou o fim da agricultura de
subsistência e desencadeou o fenômeno dos sem-terras. De acordo com outra visão,
mais otimista, concluiu-se que a ascensão da soja no mundo ocidental, no século 20,
consagrou a penetração do capitalismo na agricultura
MODELO EXPORTADOR
Capitalista ao extremo, a soja foi a precursora foi neoliberalismo na agricultura e
pioneira da globalização posta em marcha na década de 80. Com seu poder, ela deu
uma sobrevida ao “milagre brasileiro”, baqueado em setembro de 1973 pelo embargo
do petróleo pelo cartel árabe. Por sua vocação exportadora, tornou-se a menina dos
olhos dos gestores do modelo econômico brasileiro sob os governos militares.
Paradoxo puro, a soja foi uma das estrelas de um intento capitalista dirigido pelo
Estado. O economista Paulo Yokota, diretor de crédito rural do Banco Central nos
primeiros anos da década de 70, recorda a criação “corredores de exportação” (com
saída dos portos de Rio Grande, Paranaguá, Santos e Vitória) como parte de um
sistema dinâmico voltado para o intercâmbio com o exterior. Os recursos iniciais para
os corredores saíram da Organização Internacional Café (OIC). As peças-chave desse
sistema eram equipamentos de armazenagem e transporte: silos, moega, esteiras, e
vagões graneleiros – que não existiam enquanto a exportação brasileira era dominada
pelo café, vendido em sacas.
O intervencionismo oficial no mercado de soja foi inaugurado na década de 60 pelo
governo do Rio Grande do Sul ao estabelecer cotas para as indústrias. Em 1973, para
“garantir o abastecimento interno”, o Banco do Brasil guardou no porto de Rio Grande
100 mil toneladas de farelo de soja. O produto apodreceu e cheiro mal. O governo
mandou jogar numa fazenda em Passo Fundo.
A partir de 1974, tornou-se rotineira a prática da intervenção no mercado. Toda vez
que a soja subia, restringia-se a venda externa. Mediante imposto, confisco cambial ou
contingenciamento das exportações. O governo retirava da soja um pouco do que
empenhava no crédito rural. O objetivo principal, porém, era garantir o abastecimento
interno e impedir que a alta dos preços influísse na taxa da inflação.
Transformado no grande alvo das críticas dos produtores, o ministro Delfim Netto
argumentava que o governo procurava praticar com a soja “uma política de repartição
de benefícios”. Os agricultores contra-atacavam dizendo que, com as suas
intervenções tópicas no mercado, o governo havia instituído uma espécie de Sojabrás
informal.
Originou-se daí uma das grandes ironias da história da soja. É costume dizer que, por
viver exclusivamente de sua própria força mercadológica, a leguminosa chinesa
progrediu no Brasil, sem necessidade de um organismo oficial semelhante aos grandes
institutos públicos criados no passado para gerir produtos tradicionais como o café, o
açúcar, o pinho, a erva-mate e o cacau. Na realidade, se não houve um instituto
nacional da soja., é porque as coisas eram feitas diretamente pelo Banco do Brasil.
Além de oferecer incentivos fiscais aos exportadores, o governo criou poderosos
mecanismos de modernização do comércio internacional, chegando a implantar
empresas especializadas como a Interbrás (subsidiária da Petrobrás) e a Cobec
(pertencente ao Banco do Brasil), que ajudaram no esforço para colocar no mundo a
soja brasileira e outros produtos made in Brazil.
INDUÇÃO ESTATAL
Por tudo isso, embora seja efetivamente um marco do capitalismo no campo, o
sucesso da soja na economia brasileiro tem muito a ver a participação estatal na
indução dos investimentos providos. Um dos exemplos mais marcantes desse processo
ocorreu no estado de Minas Gerais, durante o governo Rondon Pacheco (1971-74),
quando os mineiros atraíram para seu território, além de uma fábrica de carros Fiat,
uma parceria agrícola com diversas multinacionais japonesas interessadas na produção
de soja e café. Inicialmente rejeitada pelo Instituto Brasileiro do Café, a agroparceria
nipo-brasileira evoluiu com empréstimos do Banco de Desenvolvimento de Minas
Gerais, atraiu para o cerrado mineiro centenas de associados da Cooperativa Agrícola
de Cotia e desembocou na criação de programas especiais como o Polocentro a te uma
agência de desenvolvimento – a Campo – que em 1996 se mantinha viva em pleno
processo de desestatização da economia. Hoje a região de Paracatu e São Gotardo se
orgulha de produzir não apenas soja de boa qualidade, mas os melhores cafés finos do
Brasil.
A ascensão da soja coincidiu também com a resolução de um grave problema
brasileiro no início da década de 70 – a falta de informações, arma fundamental na
guerra do mercado. O Brasil havia adotado o telex em 1971 e a TV em cores em 1972,
mas ainda não sabia explorar o potencial das telecomunicações. Até então, em seus
esforços para fazer contato com os importadores, os empresários nacionais
precisavam recorrer a expedientes como o usado pelo experiente corretor gaúcho,
Aldayr Heberle. Até 1971, quando tinha pressa em se comunicar com os compradores
de soja, ele fretava um avião em Porto Alegre e mandava alguém a Rio Grande com um
texto a ser transmitido via Western. Única forma segura de estabelecer vínculo com o
mercado internacional, essa saída tornou-se dispensável com a adoção do telex. Um
dos primeiros aparelhos instalados em Porto Alegre foi o do escritório de Heberle, o
primeiro cliente particular da agência Reuteur no Rio Grande do Sul e um dos
primeiros brasileiros a conhecer a bolsa de Chicago – ele esteve lá em 1969, quatro
anos antes do boom. Em 1970, mediante um contrato de apenas 500 toneladas
firmado com a Sumitono Trading Co., Heberle restabeleceu o fornecimento ao
mercado japonês, interrompido na década de 50 por uma carga de soja podre. Em
1971 começou a trocar informações com a americana ADM, o mais poderoso grupo
industrial de soja e milho do mundo. Em 1974 ajudou o jornalista Silmar Muller a criar
em Porto Alegre o boletim Safras e Mercados, embrião de uma agência de
informações, onde, em 1996, trabalhavam mais de 50 pessoas. Em 1975, mudou-se
para o mato Grosso, onde graças ao cultivo da soja, se tornou fazendeiro
TEORIA DA FARTURA
Foi sob o governo do general Ernesto Geisel que a soja viveu os seus anos de maior
brilho, tomando o lugar do café como carro-chefe das exportações e assumindo um
papel central na montagem do moderno complexo agroindustrial brasileiro. O avanço
no mercado internacional foi tão grande que em 1977 a Comunidade Econômica
Européia abriu um processo contra o Brasil, acusado formalmente de subsidiar as
exportações de derivados de soja mediante a oferta de juros favorecidos. Foi esse o
primeiro ataque contra o esquema brasileiro de incentivo às exportações, enfim
desmontado na década de 80 com diversas medidas, entre elas substancial mudança
no crédito rural.
Em março de 1979, pouco antes de encerrar o seu mandato, Geisel fez um discurso
nacionalista em Palmeira das Missões, onde fora assistir ao início simbólico da colheita
da soja. Depois de lembrar que 30 anos antes vira toda aquela região praticamente
tomada por capim barba-de-bode e um gado de péssima qualidade, ele elogiou a
“extraordinária transformação” ali produzida e concluiu: “O Brasil só será grande
economicamente, e depois socialmente, e mesmo politicamente, no dia em que sua
produção rural, na agricultura e na pecuária, tiver a expressão que realmente deveria
ter.
Recordes freqüentes nas colheitas de soja e de outros produtos agrícolas ainda não
permitiram que a produção rural brasileira tenha a expressão sugerida pelo general
Geisel. De acordo com a versão pessimista da história, a modernização agrícola
experimentada pelo país nas últimas décadas foi insatisfatória e injusta. Primeiro
porque ao privilegiar a soja, ela enfraqueceu algumas lavouras básicas (arroz, feijão,
mandioca), essenciais para a alimentação dos brasileiros. Segundo porque a prioridade
à exportação estaria privando a população da riqueza nutricional da soja. Em 1984,
Luiz Carlos dos Santos e Wilson Leite do Canto, dois pesquisadores do Instituto de
tecnologia de Alimentos (Ital), de Campinas, concluíram que com a metade da
produção nacional de soja daria para suprir toda a deficiência protéica dos brasileiros.
Segundo o estudo, a soja seria melhor do que alternativas teóricas, como a exploração
dos recursos marinhos, para suprir as carências da população do planeta.
Segundo a versão otimista da história, o cultivo da soja produziu um surto de
crescimento em outras lavouras, com destaque para o milho; acelerou a expansão da
agroindústria; modernizou o comércio e os serviços; fortaleceu, enfim, o agribusiness,
caboclo, chegando ao ponto de até modificar para melhor os hábitos alimentares do
Brasil.
A CONQUISTA DOS OESTES
Quando for escrita a história das migrações internas no Brasil pós-guerra, será preciso
dedicar pelo menos um capítulo aos agricultores que, em busca de terras virgens e
baratas se deslocaram inicialmente do Rio Grande do Sul e depois de Santa Catarina e
do Paraná para os estados do Centro-Oeste, do Norte e do Nordeste do Brasil. No
princípio usaram armas rudimentares como o machado, o fogo e o arado. Depois
empregaram o trator, o avião pulverizador e a informática para levar adiante uma
espécie de guerra de conquista que aumentou consideravelmente o território agrícola
brasileiro.
Segundo o Censo Agropecuário do Brasil, a área de lavouras cresceu de 19 milhões de
hectares em 1950 para o máximo de 55 milhões em 1989. O maior crescimento
individual foi o da soja. Nenhuma planta, nem mesmo o café, avançou tão
rapidamente no Brasil. Foi como uma explosão. Ela chegou ao primeiro milhão de
hectares em 1970 e, apenas 15 anos depois, já cobria 10 milhões de hectares. Em
1989, bateu recorde de área, com mais de 12 milhões de hectares.
EXPANSÃO DA FRONTEIRA
As migrações internas já mereceram diversos estudos a partir da década de 40, mas os
antropólogos e sociólogos que se ocuparam do assunto preocuparam-se
principalmente em estudar os fenômenos migratórios de zonas rurais para centros
urbanos, particularmente no Nordeste e no Sudeste do Brasil. Fora alguns estudos
sobre o Paraná, os deslocamentos do Sul praticamente não mereceram registros
superficiais. Nessas regiões nos últimos 50 anos nasceram novas cidades sob o impulso
de uma agricultura itinerante que, graças principalmente à soja, consolidou e até
ampliou as fronteiras do Brasil.
Um dos melhores relatos sobre essa aventura migratória foi feito em 1995 pelo
repórter Carlos Wagner. Escrita originalmente para o diário Zero Hora, de Porto Alegre,
uma série de reportagens sobre os agricultores sulistas rendeu o livro O Brasil de
Bombachas, editado pela L&PM com patrocínio da fábrica de tratores e colheitadeira
da New Holland. Segundo o próprio Wagner, que conhece profundamente os
bastidores da migração dos gaúchos, não há números oficiais sobre a massa que
deixou os pagos para implantar lavouras em outros estados. “Eu acredito que sejam
mais de três milhões os agricultores gaúchos e descendentes que mora fora do Rio
Grande do Sul, diz ele, lembrando que a mesma estimativa foi feita pelo Partido
Democrático Trabalhista (PDT) no planejamento das campanhas presidenciais de
Leonel Brizola em 1989 e 1994.
Embora desde o fim dos anos 40 o Rio Grande do Sul exporte empreendedores rurais,
a onda migratória engrossou mesmo nos anos 70, a partir de quando os descendentes
de colonos europeus, sem chance de sobrevivência em minifúndios super explorados,
vendiam suas glebas e partiam de caminhão com a mudança em busca de terras
amplas e férteis dos estados “de cima”. Nem todos saíram vitoriosos nessa guerra, mas
a maioria conquistou o que queria: posse de um pedaço de terra, em muitos casos fora
do Brasil. “A soja gerou sobras com que muitos agricultores foram comprar terra no
Uruguai, na Argentina, no Paraguai e na Bolívia”, lembra Carlos Wagner, ele próprio
um exemplo de migração profissional: era estudante universitário quando ingressou
no jornalismo como motorista da revista Agricultura & cooperativismo de brasileiros
fora do Brasil encontra-se no Paraguai. Estima-se que ali estejam estabelecidos 400 mil
“brasiguaios”.
A FORÇA DO MACHADO
O primeiro oeste dos sojicultores foi a zona missioneira do próprio Rio Grande do Sul.
Ali, no território da antiga civilização indígena comandada pelos jesuítas, os
Colonos europeus fizeram da soja um acessório do sítio que produzia "de tudo um
pouco". Inicialmente experimentada como bebida à moda do café - pó torrado
Diluído em água quente -, a soja fortaleceu a suinocultura, que cresceu
extraordinariamente, dando origem (ao lado do frango, baseado no milho) a um
robusto elo agroindustrial da cadeia alimentar do brasileiro moderno. "Quem
percorresse as colônias do Alto Uruguai nos fins da década de 40 veria imensos tachos
no fogo, com os grãos fervendo num caldo para servir de alimento aos porcos",
descreveu José Antonio Pinheiro Machado no livro sobre os 50 anos da SLC, fábrica de
colheita deitas e Tratores com sede em Horizontina.
Quando o fim da madeira fez os primeiros gaúchos atravessarem o rio Uruguai em
busca das matas de Santa Catarina, ainda na década de 40, a principal ferramenta
Agrícola - o machado - logo cedeu lugar à enxada e ao arado puxado por animal. Amiga
do porco, soja ia bem à roça, mas ainda não havia mostrado seu potencial, que
Só apareceu de fato quando lhe foram oferecidas grandes extensões de terras
cultivadas por meios mecânicos. Até que as máquinas aparecessem para lhe rebocar a
fama, a soja foi um mero apêndice de outras atividades mais importantes como a
suinocultura e o plantio de feijão, milho e trigo.
Estreito, o oeste de Santa Catarina logo foi devorado pelos agricultores vindos do Sul.
Transposto o rio Iguaçu, os gaúchos acharam as florestas de pinheiros no sudoeste
Paranaense. Junto com os pinherais típicos de regiões temperadas, encontraram a
vegetação luxuriante da floresta atlântica, com fortunas em madeiras de lei. Foi uma
festa. Em 20 anos tudo acabou. No lugar da mata, espalharam-se lavouras e ergueramse cidades ligadas por estradas precárias onde ninguém escapava da sina da conquista
de todos. Os oestes: a poeira dos dias secos e a lama dos dias de chuva.
Nessa devastadora subida, onde não faltaram conflitos mortais pela posse de terras
sem dono ou de titulação duvidosa, os sulinos encontraram-se no noroeste
paranaense com os paulistas e mineiros que haviam derrubado a mata subtropical
para cultivar café. A monocultura cafeeira fez proliferar uma praga terrível - o
nematóide dos cafeeiros -que abriu boa parte do território paranaense ao avanço da
soja e de outras lavouras temporárias, inclusive o trigo. De Jacarezinho a Cascavel, uma
meia-lia de novas cidades rendeu-se à
Civilização da soja.
DO OUTRO LADO DO RIO
Depois de penetrar no Paraná nos anos 60, a soja invadiu o antigo Brasil Central, atual
Centro-Oeste. Essa aventura extraordinária ocorreu a partir dos anos 70,quando machado na mão, apetite voraz por florestas - os sulistas avançaram sobre o Mato
Grosso, então único, e terminaram de ocupar sua região sul, hoje centralizada por
Dourados; semearam trigo e soja no chapadão de Ponta Porã; subiram mais e
começaram a fundar cidades Mato Grosso acima; junto com paulistas e paranaenses
Entraram pelo sul de Goiás, onde deram novo alento à terras cansadas pela
monocultura do algodão; subindo pelo Triângulo Mineiro penetraram ainda no sertão
do noroeste de Minas. Nos anos 80 descobriram o oeste da Bahia e nos 90 já estavam
no sul do Maranhão e no Piauí. Quase na mesma batida chegaram a Rondônia e ao
Acre. Deles também é parte do Tocantins.
As últimas informações sobre o deslocamento da fronteira agrícola brasileira davam
conta da chegada da Gleycine Max ao cerrado virgem de Roraima, onde, em 1996, era
de se chegar a 3 mil hectares. O secretário da Agricultura de Roraima, o gaúcho Erni
Moraes, agrônomo da Embrapa, convidou o consultor agronômico Floriano Isolan,
ex-secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul, para pilotar um projeto de
assentamento totalizando 40 mil hectares. A destinação de 1 mil hectares para cada
proprietário não deixa dúvidas de que a colonização agrícola é tarefa para
empreendedores medianamente capitalizados. E com coragem suficiente para
enfrentar os riscos da colonização de uma região sem infra-estrutura de transporte,
energia e armazenagem - aliás, a primeira área brasileira de soja em baixa latitude no
Hemisfério Norte.
SUBSISTÊNCIA FAMILIAR
Até os anos 50, o agricultor brasileiro em geral não usava máquinas, apesar de
conhecê-las por anúncios de almanaques e revistas agrícolas. Só os mais adiantados e
capitalizados tinham trator, também usado nas lavouras comerciais de São Paulo e do
Paraná, voltadas para o plantio de café, cana e algodão. Em 1950, segundo o Censo
Agropecuário, havia apenas 8.372 tratores em mais de dois milhões de
estabelecimentos agrícolas do Brasil. A maioria dos produtores vivia na terra e dela
tirava o sustento familiar. A regra da vida rural era produzir de tudo para garantir a
subsistência. Roça, criação, horta e pomar abasteciam a mesa, a despensa, a tulha e o
paiol. O que excedia às necessidades familiares enchia carros de boi com que se
apurava o dinheiro necessário para adquirir certas mercadorias só existentes na cidade
- sal, café, roupa, fósforo, querosene, máquinas e ferramentas.
Predominante nas colônias criadas pelos europeus no Sul e no Sudeste do Brasil, a
agricultura de subsistência repetiu até os anos 50 um padrão histórico iniciado na
Europa, no fim da era feudal/inicio do capitalismo, cerca de 200 anos atrás. Ainda que
certos institutos de pesquisa como o Agronômico de Campinas e algumas escolas de
agronomia (Pelotas, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Piracicaba, Viçosa) mantivessem
intercâmbio com a vanguarda técnica da Europa e dos Estados Unidos, as novidades
sobre sementes, sistemas de plantio e maquinismos agrícolas ficavam restritas a um
grupo muito pequeno de fazendeiros. O agricultor médio não tinha acesso a tais
informações. A maioria nem imaginava a existência da ciência agrícola, naturalmente
encastelada em feudos tecnocráticos.
O saber agronômico vazou não por iniciativa dos técnicos que o manipulavam, nem
pela demanda dos produtores, mas principalmente em virtude dos interesses
econômicos da indústria de máquinas e insumos para a lavoura. A extensão foi o
mecanismo formal inventado para levar as novas técnicas aos que viviam da
exploração dos campos. Quem liderou esse processo de difusão de conhecimentos
foram os norte-americanos. Desde os anos 20 eles ensaiavam a pregação de conceito
que seriam martelados com insistência em todo o mundo após a segunda guerra
mundial. As novas lições diziam que:
1)
Agricultura se faz com máquinas.
2)
Agricultura depende da genética.
3)
Agricultura precisa de fertilizantes.
4)
Agricultura não pode passar sem defensivos químicos.
5)
A Razão de ser da agricultura não é a sobrevivência da pequena
propriedade ou da família patriarcal, mas o mercado.
DUALIDADE TECNOLÓGICA
A revolução agrícola comandada pelos americanos foi levada a todos os cantos do
planeta por meio de um trabalho de comunicação e propaganda liderado pelo grupo
Rockefeller. Esse esforço chamado Revolução Verde rendeu ao cientista Norman
Borlaug o Prêmio Nobel da Paz de 1970 pelos ganhos de produtividade com novas
variedades de cereais. A ponta-de-lança desse trabalho, no Rio Grande do Sul, foi o
pacote tecnológico que incluía o uso de sementes, fertilizantes e máquinas, exigindo
terras muitos mais extensas do que os acanhados sítios dos imigrantes europeus.
Com o advento dessa agricultura mais moderna, praticada basicamente nos estados do
Sul e do Sudeste, começaram a conviver pelo menos duas idades tecnológicas: a
tradicional, voltada para a subsistência da propriedade familiar; e a capitalista, que
buscava o lucro mediante o emprego intensivo do pacote oferecido pelos americanos
com financiamentos de longo prazo e juros subsidiados. Num estudo sobre o assunto,
Telmo Rudi Frantz, da Universidade de Ijuí, chegou a classificar os agricultores das
regiões modernas em dois grupos: os empresários capitalistas e os camponeses. Com
sabe nessa classificação, Argemiro Jacob Brum, autor de um consistente estudo sobre
as mudanças na economia agrícola gaúcha (Modernização da Agricultura – Trigo e
Soja, Editora Vozes), dá uma pincelada sobre as origens dos agricultores capitalistas,
responsáveis pela transformação da lavoura num negócio: “Os empresários,
geralmente denominados de granjeiros, constituíram-se a partir dos anos cinqüenta,
graças aos incentivos governamentais à produção de trigo, e aumentaram
significativamente seu número no final dos anos sessenta e na década de 70 com a
expansão da soja. Operam geralmente áreas superiores a 100 hectares, sendo que em
muitos casos as granjas atingem mais de 1.000 hectares ou um mesmo produtor é
proprietário de varias granjas em locais diferentes. Nelas é generalizado o uso de
máquinas e equipamentos mecânicos, de adubos químicos e defensivos industriais. A
mão-de-obra é predominantemente assalariada. A totalidade da produção destina-se
ao mercado e o objetivo é o lucro”.
Em contrapartida, os camponeses ou colonos ocupam áreas menores, abaixo de 100
hectares, utilizam mão-de-obra familiar e objetivam simplesmente a reprodução das
próprias condições de vida. Como decorrência da evolução de uns e outros,
finalmente, Brum identifica um terceiro grupo emergente, constituído de parceiros,
sem-terras, assalariados, bóias-frias e posseiros – um contingente que, situado meio à
margem do progresso agrícola, não pára de crescer desde a década de 60. Uma das
conseqüências mais notórias desse crescimento é a intensificação, nos anos 90 , da
demanda pela “reforma agrária”, tocada pelo governo federal mais como uma
obrigação social do que como parte de uma política fundiária ou agrícola.
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 14 de outubro de 1996, o
presidente Fernando Henrique Cardoso esclareceu que, “como político, não poderia
ignorar” a existência de graves problemas sociais por trás do crescimento do
Movimento dos Sem-Terras (MST), organização política com núcleos ativos em todo o
Brasil. O movimento dos “sem-terras”, que começou na década de 50 com a ocupação
de terras ociosas no Rio Grande do Sul, adquiriu feições urbanas em suas atividades do
Centro-Sul, transformando a reforma agrária na principal bandeira de luta dos
excluídos da evolução econômica brasileira.
MARCHA PARA O OESTE
A busca de terras novas nos últimos 50 anos, em grande número de estados, foi
decorrência natural do esquema de operação da agricultura em bases capitalistas.
Restrita a poucos produtos, a modernização rural do Brasil coincidiu com a abertura de
estradas e a construção de novas cidades, a começar por Brasília, símbolo da “marcha
para o oeste” do Brasil.
Toda essa aventura de décadas, que consumiu duas ou três gerações, continua tendo a
soja como vetor. Entretido num intenso processo de urbanização, o Brasil fez vista
grossa e uma sucessão de crimes ambientais cujas marcas foram no desaparecimento
de matas, na erosão dos solos e na contaminação dos cursos d’água por agrotóxicos.
No cerrado a vegetação foi arrancada por correntes de ferro puxados por parelhas de
tratores de esteira. Nas regiões de floresta densa, como no oeste e norte do Paraná, a
velocidade da devastação aumentou na media em que o machado e o traçado foram
substituídos pela motosserra.
A documentação fotográfica sobre esses fatos é uma denúncia ecológica silenciosa
quase sem resultados, já que o Brasil não possui um projeto alternativo ao método
tradicional – derrubada, fogo e cultivo – de exploração dos recursos naturais. Na
verdade, a “marcha para o oeste” foi (e nunca deixou de sê-lo) uma aventura
incentivada oficialmente. O sul do Mato Grosso foi loteado nos anos 40 sob estímulos
de Getúlio Vargas. A colonização do norte do Paraná foi incentivada pela política de
renovação da cafeicultura. O avanço sobre o cerrado e a ocupação da Amazônia foram
projetos oficiais dos governos militares na década de 70. O agrônomo paulista,
produtor rural e líder cooperativista Roberto Rodrigues chega a dizer que há “um
determinismo histórico” na forma como os brasileiros se deslocam em busca de novas
terras. Grande produtor de cana-de-açúcar em Guariba, o próprio Rodrigues não
resistiu ao apelo colonizador: na década de 90, juntou-se a uma leva de agricultores de
Guaíra e Orlândia que aderiram à aventura da soja no sul do Maranhão.
A despeito do fracasso de muitos desses esforços, no final do século 20 os plantadores
de soja mantinham acesa nos umbrais da Amazônia a chama da agricultura itinerante,
reciclada pela recessão dos anos 80 e já incorporando novas técnicas (como o plantio
direto) impostas pela globalização da economia.
SEMEANDO CIDADES
Para milhões de brasileiros, nas últimas décadas, não houve outra saída senão essa
estrada que levava às novas fronteiras agrícolas. As oportunidades urbanas eram tão
raras, antes da arrancada industrial dos anos 50, que centenas de jovens gaúchos
recém-liberados do serviço militar deram graças a Deus ao embarcar no trem que em
1949 atravessou o interior do Rio Grade do Sul recolhendo candidatos a soldados da
Policia Militar do Estado de São Paulo. A maioria dos jovens que abraçaram a nova
profissão tinha experiência na vida campeira. A oferta de emprego nunca mais se
repetiu. A migração rural tornou-se uma imposição dos tempos modernos. A aquisição
terras baratas, uma rara oportunidade de crescimento. O plantio de soja, a chance de
fazer fortuna.
Abrindo fronteiras e semeando cidades, a soja liderou a implantação de uma nova
civilização nas terras de um interior antes inabitado. O sertão foi ocupado por um novo
padrão de comportamento. Essas grandes viajem do brasileiro para o interior do
território nacional ainda continua e tem como vértices as rodovias que percorrem o
país no sentido norte-sul. O serviço de ônibus entre “cidades velhas” do norte gaúcho
e “novas cidades” do centrão do Brasil é um dos sinais da vitalidade desse movimento
espontâneo. O repórter Carlos Wagner anotou que de cidades gaúchas para cidades
“do Norte” operam regularmente 17 linhas de ônibus. Todas começaram
informalmente e se estabeleceram à margem do controle oficial. Hoje são linhas
regulares, com assentos vendidos em guichês de estações rodoviárias. Fora daí,
evidentemente, há excursões organizadas e viagens avulsas. Alguns migrantes de
deslocam de caminhão, veículo muito estimado pelos sulistas de origem rural. Outros
vão de automóvel. E há quem o faça de avião.
MEMÓRIAS FAMILIARES
Nos estados do Sul, particularmente, não há família que não tenha uma história sobre
um parente que emigrou em busca do sucesso na agricultura. Registradas em cartas
para a família que ficou no pago, em reportagens escritas para jornal ou em memórias
organizadas em folhetos ou livros, essas histórias da conquista do faroeste brasileiro
são a matéria-prima de um país que se amolda aos poucos e também aos poucos é
descoberto pelos brasileiros urbanos.
Num esforço para sentir o pulso desses Brasil distante das capitais, o repórter José
Cassado foi em outubro de 1996 ao interior baiano enviado pelo diário O Estado de S.
Paulo. Na reportagem intitulada “A conquista dos Gerais”, ele resumiu: “Mimoso do
Oeste, na Bahia, descobre a vocação agrícola e vira epicentro de negócios na divisa
com estado de Goiás e Tocantins; renda per capita chega a R$ 7 mil, quase o dobro da
média nacional.”
Exatamente cinco anos antes andou por lá outro repórter, Claudio Cerri, da revista
Globo Rural. Sua linguagem lembra os densos relatos de Euclides da Cunha em Os
sertões. Parágrafo final de uma reportagem sobre a “ilha de fartura” da região de
Barreiras (da qual Mimoso do Oeste era bairro) publicada em outro de 1991: “A soja
não preencheu de humanidade esse vazio, E Barreiras ainda exala a intemporalidade
anárquica das fronteiras onde apogeu e decadência se entrelaçam, à espera de um
futuro incógnito. Mas a crise caleidoscópica do país empurra o oeste baiano para um
desfecho: a busca de uma harmonia cujo esboço pode estar na diversificação agrícola e
na irrigação que traz o homem de volta à terra. E instigante imaginar que alguma coisa
de novo poderá nascer aqui, das mãos desses bisnetos de camponeses, deslocados
para uma geografia rasa, que parece interrogar o Brasil acerca de seu futuro e de sua
identidade”.
ERA UMA VEZ...
Evidentemente, há milhares de história que merecem ser contadas. Era uma vez, por
exemplo, uma família chamada Maggi... O pioneiro André Maggi chegou a
Rondonópolis em 1984. Num cafundó distante fundou a Fazenda
Sapezal, que
cresceu a ponto de na década de 90 se tornar município. Enquanto isso, seu filho
Blairo Maggi prosperou tanto que passou a ser chamado de rei da soja...
Em 1976, os gaúchos Arno Seemann e Vivaldino Zamboni chegaram ao sul do Mato
Grosso atraído pelo baixo preço da terra. Plantaram soja e, um ano depois Seemann
foi ao Sul buscar a mulher Aldeza, gaúcha de Pelotas, e o filho André, nascido em 1975
em São Luís Gonzago. Radicado em Campo Grande, tornou-se produtor de sementes e
comerciante, Zamboni opera hoje no eixo Cuiabá-Tangará da Serra...
A fábrica gaúcha de colheitadeiras SLC, com sede em Horizontina, deu o salto em 1979,
quando comprou 14 mil hectares em Cristalina, a 80 quilômetros de Brasília. Começou
com o trigo irrigado e terminou na soja, com sucesso. De Goiás avançou a oeste para
abrir em 1984 uma nova frente em Chapadão dos Gaúchos, MT, e pouco depois saltou
para Balsas, onde maranhense de soja...
O professor Norbertor Schneider abandonou as aulas de contabilidade em Ijuí e foi
para o Mato Grosso tentar a agricultura. Hoje é produtor de sementes em Cuiabá...
Edmundo Miguel Simizack saiu de Santo Augusto e montou um comércio de máquinas
e implementos em Dourados...
O corretor Aldayr Heberle chegou em 1975 a Rondonópolis. Dez anos depois,
estabelecido como fazendeiro, tornou-se secretário da Indústria e do Comércio do
mato Grosso do Sul...
GARGALO DO TRANSPORTE
Meio século depois do início do processo migratório dos sojicultores gaúchos, a
moderna aventura agrícola brasileira tornou-se numa encruzilhada. As dificuldades
não se apresentam só na lavoura, mas em todo o circuito pós-colheita, sobretudo no
escoamento das safras para os centro consumidores. O problema dos transportes no
Centro-Oeste tornou-se tão agudo que os próprios empreendedores rurais começaram
a construção da infra-estrutura necessária para manter essa agricultura pioneira em
locais onde ainda é muito tênue a presença governamental. Um dos casos que mais
chamam a atenção é o da hidrovia do rio Madeira, incluída no Plano de Metas
organizado no segundo semestre de 1996 pelo governo federal. Orçada em US$ 284
milhões, a modernização dessa hidrovia, sobretudo no trecho entre Porto velho e
Itacoatiara, é obra típica do Estado, mas foi iniciada por André Maggi, chefe da família
mencionada anteriormente. Em 1996 ele recebeu financiamento do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social para a compra de embarcações.
Elo fundamental de uma malha multimodal de transporte (rodovia, hidrovia e ferrovia)
que tende a incorporar definitivamente ao universo agrícola brasileiro uma área de 50
milhões de hectares apenas “arranhada” pelos sojicultores, a hidrovia do Madeira
promete assegurar para a soja mato-grossense um trajeto mais barato até o porto de
Rotterdam, na Holanda. Hoje, de Porto Velho a Manaus (1.500 quilômetros), já
funciona um “ro-ro caboclo” tipicamente brasileiro: embarcados em balsas, os
próprios caminhões graneleiros funciona como um contêineres. Mesmo improvisada, é
uma saída capaz de competir com os custos do embarque no porto de Santos.
O incremento do transporte hidroviário pode fazer de Manaus um porto de embarque
de soja, gerando algo inimaginável em 1972, quando do lançamentos “projetos de
impacto” do economista piauiense João Paulo dos Reis Velloso, ministro do
Planejamento do governo Médici (1969-73): a transformação do rio Amazonas num
corredor de exportação
Sem o ufanismo de outros momentos, a retomada dos investimentos oficiais em infraestrutura tenta integrar ao chamado Brasil civilizado um grande número de núcleos
rurais e urbanos produtivos, mas isolados pelo alargamento da fronteira agrícola.
Nesse novo enfoque das mazelas do Brasil continental, torna-se outra vez sensato
pensar em investir em trens e trilhos. É o caso da Ferronorte, outra “obra pública
tocada por particular”. Também conhecida como ferrovia da soja, ligando o noroeste
paulista a Cuiabá, ela chegou à metade por iniciativa do agricultor-banqueiroempreiteiro Olacyr de Moraes. Em 1996 foi praticamente “incorporada” pelo governo
federal depois que o velho rei da soja acusou dificuldades na gestão do próprio
império.
A volta do trem à ordem do dia, em plena temporada de caça às bruxas da estatização,
é um sinal claro de que a racionalidade começa a se impor-se no mundo novo criado
pelos agricultores no cerrado e na Amazônia. Mesmo acuada pelo debate sobre a
privatização de empresas estatais, em 1996 a Companhia Vale do Rio doce ganhou a
concorrência para esticar a ferrovia do Corredor Centro-Leste (Minas-Espírito Santos)
até o extremo confim do noroeste de Minas Gerais. Onde a soja já está presente há
muito tempo.
O EIXO DO AGRIBUSINESS
“Estão plantando soja até em cemitério!”
Quando a notícia correu, em 1974, foi um escândalo- como se todos os agricultores do
Sul, tomados pela febre da soja, tivessem perdido o respeito pelos mortos. Na
realidade, era simplesmente o molho da história tomando o lugar do prato principal.
O repórter Hélio Teixeira, então correspondente da revista Veja em Curitiba, lembra
que naquele momento se tornara comum o plantio de soja na beira das rodovias no
interior. Em Palotina, no oeste do Paraná, o fotógrafo Irmo Celso Vitor descobriu um
pequeno
cemitério
rural
“invadido”
por
uma
lavoura.
Fruto não tanto da ganância de um empresário agrícola, como se pensou, mas talvez
da pressa ou do cansaço de um tratorista sonolento, daqueles que varavam as
madrugadas trabalhando, a imagem das cruzes “sepultadas” pela folhagem ficou como
um dos principais flagrantes da febre da soja, o formidável fenômeno rural que se
impôs no cotidiano dos cidadões urbanos no início da década de 70 e teve seu réquiem
em setembro de 1982, quando o calote nos credores internacionais marcou o fim do
“milagre econômico brasileiro”, ao qual a soja emprestara tanta força.
O PAPEL DO GOVERNO
Santa milagrosa para uns, ilusão diabólica para outros, a soja virou assunto obrigatório
durante o estrondoso boom dos preços da bolsa de Chicago em meados de 1973. Por
alguns meses não se falou de outra coisa. Depois que os preços baixaram, o grãozinho
chinês apareceu ainda nas manchetes ao provocar filas quilométricas de caminhões
nos portos de Paranaguá ou Rio Grande; ao bater recordes de exportação; e até por
falta de óleo vegetal nas prateleiras dos supermercados. Com o plantio entre os
túmulos de Palotina, todos podiam comprovar que a soja – vedete da lavoura ao
porto, passando pela mesa dos consumidores – entrava definitivamente ao rol das
grandes culturas agrícolas do Brasil.
A explosão da sojicultura foi pivô de cinco ocorrências simultâneas: a mecanização das
lavouras, o êxodo rural, a expansão da fronteira agrícola, a urbanização acelerada e o
avanço das exportações. Devido ao intenso emprego de máquinas, a soja liberou mãode-obra do campo e contribuiu para engrossar o movimento migratório rural-urbano
que já se intensificara nos anos 50, com a arrancada industrial. Ao mesmo tempo em
que se tornou um símbolo da modernização agrícola, despertando vocações rurais em
empresários urbanos, a nova lavoura aguçou a tragédia sócio-econômica dos semterras. Essa dualidade paradoxal mantém no ar uma pergunta nunca respondida: a soja
teria sido capaz de ir para a frente sem ajuda oficial?
Embora a literatura técnica sobre a soja seja bastante copiosa, ainda não houve tempo
suficiente para avaliar todos os desdobramentos – rurais, urbanos, internos e externos
– dessa grande aventura. Ex-diretor do CNPSo, de Londrina, o agrônomo Emídio Rizzo
Bonato, hoje no Centro Nacional de Pesquisa de Trigo, de Passo Fundo, enumerou os
fatores que, na sua opinião, fizeram da soja o eixo principal da modernização da
agricultura brasileira:
O emprego da tecnologia americana;
A busca da auto-suficiência na produção de trigo;
A existência de um mercado internacional para proteínas e óleos
vegetais;
A infra-estrutura cooperativista;
O apoio técnico de instituições de pesquisa como o Instituto Agronômico
de Campinas e a Embrapa.
FARTURA DE CRÉDITO
É verdade que a soja enraizou-se espontaneamente no interior gaúcho, e talvez a
longo prazo conquistasse sozinha outras regiões, mas sua rápida ascensão como uma
cultura comercial só se viabilizou graças ao apoio governamental. Menina dos olhos do
“milagre econômico”, ela contou com especial proteção do presidente Ernesto Geisel
(1974-1979), que tinha mais que razões de Estado e de governo para olhar para a
Glycine max com carinho: se irmão Henrique, primeiro presidente da Fecotrigo, era
agricultor em Sarandi, RS.
Com a experiência de quem, como diretor da Copercotiam esteve na crista da onda da
soja, o dirigente cooperativista Américo Utumi (São Paulo, 1933), superintendente da
Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), não hesita em apontar o crédito rural
oficial como aventuras agrícolas do século 20, em território sul-americano. Nos anos
áureos, na década de 70, a oferta anual de recursos públicos subsidiados para a
agricultura montava cerca de US$ 15 bilhões. “A principal colheita era o financiamento
do governo”, concluiu a repórter paranaense Teresa Furtado, num balanço do ciclo da
soja publicado pelo Jornal da Tarde, de São Paulo, em março de 1984.
Na realidade, 70% di dito crédito rural servia para financiar as indústrias situadas a
jusante e a montante da atividade agrícola, beneficiária dos 30% restantes. Ou, seja, a
soja teve um papel modernizado porque faz parte de um esquema internacional que
engloba os insumos e as máquinas agrícolas, o beneficiamento industrial e o mercado
consumidor. Entretanto, a integração econômica propiciada pela maior commodity da
história da agricultura não acorreria no Brasil sem o lastro oferecido pelas autoridades
empenhadas em materializar o sonho do Brasil Potência. Balizada por um slogan
poderoso – “Plante que o governo garante”-, a economia da soja, subsidiada no campo
e na cidade, sustentou por muitos anos a migração de sulistas para o centro do Brasil,
a ponto de desenvolver ali uma nova civilização de feição urbana e base rural, e
também gerou recursos para a montagem de uma forte infra-estrutura agroindustrial.
Na subida, abrindo fronteiras e semeando cidades, os agricultores a cavalo na soja
puseram sucessivos surtos de modernização em todos os setores da economia, do
primário do terciário. Foi durante o ciclo febril da soja (1070/82), que deslanchou no
Brasil a produção de óleos vegetais, adubos, sementes, produtos químicos, máquinas e
implementos, rações, frangos e suínos. Também se desenvolveram inúmeros serviços
nas áreas de armazenagem e transportes. Um ágil comércio se organizou em torno da
produção agrícola em cidades tradicionais ou recém-fundadas. Restaurantes de beira
de estrada, agências bancárias, lojas, oficinas, transportadoras, postos de combustível
e diversos outros negócios brotaram como parte da cadeia agroindustrial responsável
por 40% do Produto Interno Bruto brasileiro. Garota-propaganda do agribusiness, a
soja girava sozinha, em 1996, um complexo que, segundo cálculo da Associação
Brasileira do Agribusiness (ABAG), alcançada US$ 7,5 bilhões – mais de 1% do PIB,
estimado oficialmente em mais de US$ 600 bilhões.
INDÚSTRIA DE ÓLEOS
De todos os negócios urbanos montados em torno da soja, o mais visível é a industria
de óleos, situada exatamente no meio do caminho entre a lavoura e o mercado
consumidor. Como já se viu nos dois primeiros capítulos deste livro, desde o princípio a
montagem de fábricas esmagadoras de soja despertou o interesse de capitais privados.
Só as primeiras foram montadas na raça. A maioria contou com financiamentos e
incentivos oficiais, oferecidos simultaneamente à abertura do crédito rural ao plantio
da dobradinha trigo-soja, nos últimos anos da década de 60.
O governo federal bancou a implantação da indústria de óleos a partir de 1967,
quando o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDR) promoveu a
primeira reunião de dirigentes de fábricas existentes nos três estados do Sul.
Coordenada pelo engenheiro químico Vilmar de Oliveira Schürmann (Florianópolis,
1942), a reunião tinha um objetivo claro: organizar o apetite industrial de empresários
fascinados pela soja. Ex-técnico da fábrica da Samrig em Esteio, onde trabalhou nos
três primeiros anos de sua carreira, Schüemann percorreu o interior sulino para um
mapeamento da situação. Sem contar as pioneiras Incobrasa, Sorol, Merlin, Igol e
Samring, em atividade desde os anos 50, ele encontrou uma dezena de indústrias
montadas por diversos voluntários da industrialização.
O maior número de fábricas ficava no interior gaúcho. Uma das primeiras foi montada
em 1962, em Giruá, por Sadi Pilau, Elso Pilau e Abel Londero. Chegava a moer mil sacas
de soja por dia. No mesmo ano começou a operar em Alegrete a Rizóleo, voltada
principalmente para o arroz (a Rizóleo faz parte da história da soja porque mais tarde
seus equipamentos, importados da Alemanha, foram transferidos para Eldorado do
Sul, a serviço da Olvebra). Em Passo Fundo, o panificador Alexandre Busato montou
uma fábrica que não foi além da década de 70. Em Guarani das Missões foram
instaladas duas fabriquetas, uma da família Giovelli e outra dos Varpechovski (esta,
mais tarde, incorporaria a indústria dos Pilau). Foi importante para a industrialização
da soja a adesão entusiasta de várias cooperativas que montaram unidades de
esmagamento em cidades como Passo Fundo, Ijuí, Santo Ângelo e Carazinho.
Em Santa Catarina, eram duas as processadoras de soja: a Gener, em São Miguel
d’Oeste, montada por Geraldo Hepner, de Joinville; e a Industrial Mafrense de Óleos e
fibras, em Mafra. No Paraná, havia uma em Pato Branco, outra em Planalto e a última
em Ponta Grossa, dirigida por Frederico Busato, que tinha o hábito de distribuir
sementes de soja no interior (essa fábrica, denominada Incopa, opera hoje em
Aracária).
MÉTODO DA “CUTUCA”
Com mão-de-obra fornecida basicamente pela Samrig e a Sandra, a maioria destas
pequenas fábricas pioneiras “brigava” pela matéria-prima, esmagada em prensas
Masiero ou Piratininga, tão rudimentares que exigem o uso de espetos para
desprender a borra formada no fundo dos recipientes – esse método era conhecido
por “cutuca”. O processo de industrialização dos grãos de soja consistia nas seguintes
operações: secagem, armazenagem, quebra cozimento, prensagem, laminação,
destilação do óleo e tostagem do farelo. O processo contínuo só seria introduzido nos
anos 70, dispensando a prensagem, usada hoje somente para manipular matériasprimas com alto índice de óleo como o amendoim, o girassol ou a palma.
Nos cinco anos (1967-72) em que esteve a serviço do BRDE, Schürmann aprovou
projetos novos e orientou no reaparelhamento das unidades mais antigas. “Era uma
fase ainda muito incipiente, de aprendizado para todos”, lembra ele. Nesse período de
transição do amadorismo para o profissionalismo nos negócios da soja, mereceu
grande destaque, em 1971, a abertura do capital da Olvebra, criada sob a liderança dos
chineses que haviam prosperado com o beneficiamento da soja em Santa Rosa. Apesar
desse ensaio de concentração industrial – de uma só vez a Olvebra incorporou a Igol, a
Sorol e a Rizóleo -, tanto no interior gaúcho como em outros estados continuou a
proliferação de novas fábricas de óleos vegetais, abertas por cooperativas,
empresários nativos e grupos estrangeiros.
A motivação fundamental dessa escala agroindustrial não era uma grande
disponibilidade de matéria-prima ou de mão-de-obra, mas a fartura de financiamentos
oficiais e incentivos fiscais à exportação oferecidos ao meio empresarial a partir do
final da década de 60. Chave do plano de expansão econômica formulado por Octávio
Gouveia de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos, o primeiro ministro do
Planejamento do Brasil, o slogan “Exportar é a Solução” foi a senha para uma grande
transformação no comportamento empresarial brasileiro.
A mudança ocorreu até mesmo em regiões onde a matéria-prima era escassa. No
estado de São Paulo, onde a indústria de óleos vegetais se tornaria importante fonte
de lucros para empresas antigas como Matarazzo, Sandram J.B. Duarte e Anderson
Clayton, o beneficiamento da soja avançou nos espaços abertos anteriormente por
fábricas de óleo de algodão, arroz, amendoim, girassol e mamona fundada em cidades
como Ourinhos, Bauru, Paraguaçu, Paulista Bariri e Osvaldo Cruz. O mesmo processo
de adaptação ocorreria em unidades de óleos vegetais instaladas em alguns municípios
paranaenses como Maringá e Londrina. Fundada em 1963, a Cooperativa dos
Agricultores de Orlândia (Carol) começou comprando uma pequena indústria de soja
montada na vizinha São Joaquim da Barra pelo imigrante japonês Kum Yashibara. No
princípio da década de 70, ela já competia pelo grão, na região nordeste de São Paulo,
com a Comove (nascida do algodão) e a Brejeiro (nascida do arroz), ambas também
instaladas em Orlândia.
BOOM CATARINENSE
Embora indiretamente, faz parte da história da soja o agressivo programa de
incentivos fiscais à industrialização no estado de Santa Catarina. Baseado na devolução
de 10% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), esse programa
capitalizou e fez crescer alguns dos maiores grupos econômicos catarinenses nos
setores alimentício, têxtil, metal-mecânico e de cerâmica. Entre eles, destacam-se
nomes e marcas associados direta ou indiretamente à expansão da soja e da
agroindústria no território brasileiro. Quem mais se beneficiou desse sistema foi a
Cereais do Vale Ltda (Ceval), montada em 1972 em Gaspar, no vale do rio Itajaí-Açu,
com os incentivos fiscais a que tinha direito o grupo Hering. Dirigida desde o início por
Vilmar Shürmann, que abandonou sua carreira no BRDE, a Ceval quase naufragou no
primeiro ano de operação. Deslanchou a partir da safra 1973/74, quando esqueceu os
cereais que lhe deram o nome e se concentrou na soja.
A modesta arrancada de Ceval coincide com o início da era dos grandes investimentos
feitos por grupos privados nacionais e estrangeiros em pontos estratégicos do
território nacional, já acompanhando a arrancada dos agricultores sulinos rumo ao
centro do Brasil. Na chamada fase moderna da soja, iniciada em 1973, Ponta Grossa
firma-se como o maior centro processador de soja do hemisfério sul, graças às
unidades industriais montadas na cidade pela Cargill, Sanbra e Irmãos Pereira (hoje
Coinbra). Ainda na década de 70, a implantação de novas fábricas ou a conversão para
a soja de antigas processadoras de outros óleos vegetais estabeleceram o domínio do
mercado para um seleto grupo de multinacionais representado pelo Bunge y Born
(Sanbra/Samring), Anderson Clayton e Cargill, seguido pela “chinesa” Olvebra e por
diversas cooperativas, que em determinado momento chegaram a ter nas mãos perto
de 50% da força da soja.
Se muitos empreendedores montaram indústrias de óleos para aproveitar
financiamentos subsidiados e incentivos fiscais à exportação, houve também casos em
que a prioridade foi o mercado interno. Os exemplos mais notórios são os da Sadia e
Perdigão, que montaram unidades de processamento de soja, em meados da década
de 70, para atender às próprias necessidades de ração para suas granjas integradas de
frango suíno. Rápido e intenso, esse processo de verticalização fez da Sadia o maior
fabricante nacional de rações, seguida pela Ceval, que efetuou a verticalização no
sentido contrário – da soja para as carnes.
DINAMISMO NO CENTRO-OESTE
O fortalecimento desses grupos catarinenses modificou sensivelmente o panorama da
industrialização da soja em território brasileiro. À medida que desapareciam do
cenário muitas das “fabriquetas” pioneiras, incorporadas pelas “fabriconas” – em 15
anos a Ceval absorveu nove refinadoras de óleos de soja -, na década de 80 dezenas de
noves nomes incorporaram à história da industrialização da soja. No Paraná, entre
outros, Giombelli, Olvepar, Cotriguaçu, Coamo, Cocamar. Em Minas, os grupos Algar e
Rezende. Olmar em São Paulo. Em Goiás, o Comigo e a Caramuru. Zahran no Mato
Grosso. Olvebasa na Bahia. No Rio Grande do Sul a Farol, Avipal/Granóleo, Bertol e o
grupo de Renato Ribeiro, que começou comprando a Taquarussu em Frederico
Westphanlen e mais tarde incorporou a Incobrasa, maior exportadora gaúcha de óleo
na década de 90. Dos 50 maiores (por receita) grupos gaúchos listados em 1991 pela
revista Amanhã, de Porto Alegre, cinco deviam, se não sua origem, pelo menos sua
prosperidade à soja: Incobrasa, Olvebra, Samrig, Cotrijuí e Bertol.
A expansão agroindustrial foi especialmente intensa no Centro-Oeste, onde a soja fez
mais pela integração nacional do que os programas oficiais propriamente ditos.
Fenômeno recente e pouco estudado, a nova dinâmica econômica dessa região é
associada à marcante presença da soja no cerrado. A primeira planta industrial se soja
no território do Brasil Central foi instalada em 1983 em Rio Verde pela Cooperativa
Mista dos Produtores Rurais do sudeste Goiano (Comigo). Depois, em poucos anos,
estabeleceram-se em Uberlândia, Rondonópolis, Cuiabá e Barreiras os novos pólos
geoeconômicos da soja. Um estudo realizado em 1992 pelas economistas Ana Célia
Castro e Maria da Graça Fonseca, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostrou
que a produção de soja na região Centro-Oeste passou de 12,59% do total nacional em
1980 para 43,76% em 1991. Em conseqüência no início da década de 90, a participação
da agroindústria da soja na arrecadação estadual era de 27% em Goiás, 33% no Mato
Grosso do Sul e 55% no Mato Grosso. A combinação soja+carnes representava nesses
três estados, respectivamente, 85%, 90% e 91% do volume de ICMS.
No Mato Grosso Do Sul, a presença da soja é menos preponderante em virtude da
tradição pecuária. Mesmo assim, segundo um estudo do professor Aldonei Lopes
apresentado em 1996 como tese de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de
Porto Alegre, o recente desenvolvimento econômico desse estado não teria ocorrido
sem a forte penetração da soja nas terras da região a partir de 1970.
NOVO PARADIGMA
Determinada prioritariamente pela disposição de economizar nos custos dos
transportes, a proliferação de indústrias (de óleo, farelo, sementes, rações e carnes) no
Centro-Oeste dificilmente teria ocorrido, no grau que ocorreu, sem o arsenal de
incentivos oficiais que contemplou a indústria e também a lavoura. Em seu estudo,
Ana Célia Castro e Maria da Graça Fonseca concluíram que a expansão do Centro-oeste
“dependeu fortemente da intervenção governamental na comercialização dos
produtos”. Em meados da década de 80, por exemplo, o governo federal comprou
cerca de metade das safras regionais de arroz, milho e soja.
Amparados por diversas formas de proteção oficial – doação de terrenos, obras de
infra-estrutura, financiamentos subsidiados, incentivos fiscais, preços mínimos
estimulantes -, empresários rurais e urbanos encontraram no Centro-Oeste
excepcionais vantagens comparativas: terras baratas, estabilidade climática
rendimento agrícola acima da média nacional e uma soja de maior qualidade e menos
umidade. Em resumo, graças a esse extraordinário conjunto de fatores, o cerrado
estabeleceu um novo paradigma para a economia da soja no Brasil e no mundo.
Na entrada da década de 90, a queda dos preços agrícolas, o fim dos subsídios e a
necessidade de reduzir custos colocaram fora de operação dezenas de unidades
esmagadoras ou refinadoras de soja. Ainda assim, pelo menos 100 plantas industriais
continuavam em atividade principalmente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.
Menos de 20 anos depois do boom da soja, estava tudo fora de lugar. Se na década de
70 a indústria de óleos era dominada pela Sanbra, Olvebra, Cargill e Anderson Clayton,
na década de 90 a liderança no setor havia se transferido para os grupos catarinenses
Ceval, Sadia e Perdigão, acompanhados ainda pela multinacional americana Cargill e a
francesa Coinbra, que ocupou parte do espaço deixado pela Anderson Clayton. Na
estimativa de técnicos e empresários o ramo, a tendência para o final do século era a
continuação do processo de concentração industrial – como ocorreu na Europa e nos
Estados Unidos, onde quatro grandes grupos dominam os negócios com soja.
REVOLUÇÃO NOS TRANSPORTES
Inicialmente exportada apenas em grão – a exportação de farelo foi iniciada e 1963 e a
de óleo, em 1971 -, a soja tornou tão visível do estrangulamento do transporte de
cargas que ajudou a desencadear uma série de mudanças no panorama viário nacional,
onde as rodovias eram poucas e as rodovias pobres e lerdas. O primeiro sinal da crise
apareceu no porto-cidade de Rio Grande, logo na arrancada das exportações, no início
da década de 70. O congestionamento foi resolvido rapidamente pelo ministro dos
transportes, o gaúcho Mario David Andreazza (um coronel do Exército que sonhou ser
presidente da República), que mandou construir um ramal ferroviário novo para o
“superporto”, na realidade iniciado em um terminal para o desembarque que o trigo e
o embarque de soja, operado pela Cotrijuí. Em seguida, com a criação do programa
dos “corredores de exportação”, foram sendo melhoradas as condições de acesso e
embarque aos portos do estado Sul, especialmente o de Paranaguá. O Banco do Brasil,
pai do crédito rural, financiava também as obras de infra-estrutura.
Um dos grandes momentos dessa revolução de bastidores foi a reabilitação da
moribunda hidrovia dos rios Jacuí-Taquari-Guaíba-Lagoa dos Patos. Apenas 300
quilômetros, quase nada perto da hidrovia norte-americana do Mississippi, com seus
5.5 mil quilômetros. Mas que orgulho! Era uma beleza quando passava diante de Porto
Alegre, rumo ao porto de Rio Grande, o comboio de chatas da empresa de navegação
Lageado, pertencente à Contrijuí. Quem mais usou a hidrovia foram a Olvebra, a Farol
e a Granóleo. A empresa de navegação Aliança (controlada pela Adubos Trevos)
chegou a ter 15 barcos em operação. O porto de Estrela, cidade natal do gerenal
Ernesto Geisel, atingiu o auge em 1987, quando embarcou 1,3 milhão de toneladas de
mercadorias, principalmente farelo de soja. Hoje a exportação de Estrela representa
pouco mais de 100 mil toneladas de farelo por ano.
A hidrovia que mais movimenta soja no Brasil, na década de 90, é a Tietê-Paraná, com
300 mil toneladas anuais. Por US$ 30 a tonelada, uma empresa especializada, a
Comercial Quintela, coloca a soja do sul de Goiás, no porto de Santos. Embarcadas
num terminal hidroviário em São Simão (GO), as cargas vão de barco até o interior
paulista, onde são transferidas pra caminhões vou vagões ferroviários.
EFEITOS DA GREVE
Em praticamente todos os estados brasileiros a soja deixou algum benefício, No
Espírito Santo, uma greve dos portuários de Capuaba, na baía de Vitória, em 1990
formou os exportadores de farelo de soja a buscar outra saída para a necessidade de
cumprir contratos de venda para o Japão. Encontraram-na a poucas milhas dali, no
porto de Tubarão, operado pela Companhia da Vale Rio Doce, líder mundial da
exportação de minério de ferro.
Lavadas com jatos d’água, as esteiras contínuas de embarque de minério prestaram-se
satisfatoriamente ao farelo. Não demorou muito tempo, a Vale fez contratos de
comodato com os exportadores, que instalaram silos dentro do terminal de Tubarão.
Hoje há esteiras e píer exclusivos para o despacho, de soja para a Ásia. O negócio é
interessante para todos, pois cargas mistas barateiam os fretes de soja e de minério de
ferro.
O litoral do Espírito Santo sempre foi pensando como saída do Corredor de
Transportes Centro-Leste, desenhado na década de 70, mas a criação de um terminal
de grãos no porto de Tubarão significa um inesperado refinamento para um simples
cais minero-siderúrgico. O que prova que até o litoral repercute a revolução agrícola
realizada pela soja do cerrado do Brasil Central.
Na realidade, vários portos brasileiros foram modernizados para atender à vocação
exportadora da soja. Depois do pioneiro terminal de embarque de grãos construído
pelo Rio Grande, no início da década de 70, foram feitos investimentos oficiais e
privados que viabilizaram outras saídas como os portos de São Francisco do Sul, SC;
Santos, SP, Salvados, BA; Suape, em Recife, PE; e Ponta da Madeira, em São Luís, MA.
JAMANTAS GRANELEIRAS
Dentro do território brasileiro, coube ao caminhoneiro levar a soja nas costas. A
indústria de caminhões mudou de tamanho com o melhoramento das estradas. A
Rondon, de Caxias do Sul, deu um salto quando adaptou uma carroceria ao transporte
a granel. Iniciada em 1953 com a fabricação de carretas para o transporte, essa
empresa viveu por quase 20 anos de freios, terceiros eixos (trucks) e carrocerias
convencionais para carga seca. Já em 1969 fabricou seus primeiros semi-reboques,
para acoplar aos cavalos-mecânicos, formando os equipamentos de transporte
batizados na época de “jamantas”. Em 1971, entre 630 carretas vendidas, apenas 30
eram para carga a granel. Em 1973, o índice de carretas graneleiras subiu para 10%.
Em 1974, fruto do boom da soja, a produção de carrocerias atingiu 1.400 unidades e a
participação do granel passou a crescer sem parar, até alcançar a proporção de 95%
em 1995.
No seu processo de expansão, a Rondon liquidou alguns competidores como a paulista
Golive (que parou na década de 80) e a gaúcha Rodoviária (comprada pela própria
Rondon em 1977), mas não se livrou da concorrência. Em Caxias do, Sul um exfuncionário da Rodoviária, Angelo Guerra, usou seu sobrenome para batizar uma nova
fábrica de carrocerias. Em Curitiba, estabeleceu-se o Krone, Em São Paulo, cresceram a
Facchini e a FNV – todas equipadas para atender à granelização do mercado de cargas
agrícolas
INDÚSTRIA DE MÁQUINAS
A reboque da evolução produzida pela soja, cresceu também extraordinariamente a
indústria brasileira de máquinas e implementos agrícolas, fortemente concentrada no
interior do Rio Grande do Sul, onde as fábricas de implementos agrícolas têm origem e
história semelhantes. Assim: um imigrante com talento metalúrgico atendia às
necessidades dos seus vizinhos agricultores e progredia prestando serviços
satisfatórios e confiáveis. Muitas cidades começaram assim, em torno de uma forja.
Mas até o advento da soja, essa indústria praticamente não passou do estágio de
ferraria. Nem tampouco recebeu qualquer apoio direto do governo.
Não foi mera coincidência que boa parte da indústria brasileira de máquinas e
implementos agrícolas se estabeleceu no norte gaúcho- no mesmo lugar em que se
enraizou a soja. Os colonos imigrantes mantiveram praticamente intacta até 1950 a
cultura agrícola agrícola européia, que permitia manter uma família com a exploração
de uma gleba de 25 hectares. À soja, coube um papel especial: abrir caminho à
mecanização. Se, por um lado, cresceu dando substância à suinocultura e à avicultura –
e permitindo até que, junto a elas, se erguesse uma poderosa indústria de rações-, a
soja, por sua natureza agregadora, empurrou para a frente a indústria de máquinas e
implementos.
Quando o Brasil liberou a compra de tratores e colheitadeiras estrangeiros, no governo
do general Eurico Gaspar Dutra (1946/51), a falta de critério e disciplina inundou o
Brasil com uma enorme variedade de máquinas de praticante todos os países do
mundo. Aos artesãos do ferro no interior sobrou a estimulante tarefa de manter em
funcionamento uma frota de 156 marcas diferentes de tratores e implementos.
Adaptações forçadas pelas circunstâncias acabaram contribuindo para gerar
verdadeiros protótipos de máquinas caipiras. Foi graças a elas que as ferrarias do
passado evoluíram para fábricas, especialmente a partir da década de 50, quando
houve no Brasil, no governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-61), o primeiro
grande esforço oficial para implantar aqui uma indústria de máquinas, do automóvel
ao avião, passando pelo trator e o navio.
A PROGRESSISTA CARAZINHO
Gerente de marketing da fábrica de colheitadeiras SLC, de Horizontina, Gilberto Zago
(Bento Gonçalves, 1949) chegou a Carazinho em 1961 com o pai, na euforia do trigo.
As máquinas importadas geravam problemas operacionais complexos. Zago começou
trabalhando como comprador de peças da Comercial ABC (queria dizer Acessórios,
Borrachas e Conexões, o que englobava peças para todos os fins). Treinando no
comércio de peças importadas da Avenida Farrapos, de Porto Alegre, aonde ia de
ônibus fazer compras, adquiriu tal experiência que em 1970 foi contratado para
organizar a seção de peças da Agroavião, empresa de serviços (importadora de
máquinas, aviação, agrícola) que cresceu no espaço aberto pela falta de assistência
técnica.
Criada por Ivo Laureano Sehn, a Agroavião chegou a importar de uma só vez 300
colheitadeiras Clayson, da Bélgica, e chegou perto de se transformar em fábrica. Seu
sonho acabou quando a Clayson belga foi adquirida pela New Holland, dos Estados
Unidos, que se instalou em Curitiba em 1973.
Em Carazinho, havia uma tradição de marcenaria e metalurgia sustentada por fábricas
como o Marecq (máquinas para processamento de madeira), a metalúrgica Fritz
(implementos agrícolas), a Egan (semeadeiras) e a Max. E havia algumas empresas
crescendo no norte gaúcho, cada uma associada a um produto. Em Santo Ângelo, as
fábricas de plantadeiras Campeã e Sem Rival, e ainda a Metalúrgica Rodowski. Em Ijuí,
a Imasa, fundada em 1922 por Arthur Fuchs (-1968), autor de mais de 70 inventos
patenteados. Em Não-Me-Toque, a Stara e a Yan. Kepler Weber, especializado em silos
e armazéns, desde 1922, em Panambi. De Antoni, fábricas de trilhadeiras em Caxias do
Sul, onde em 1965 a Agrale começou a produzir tratores, com ferramental comprado
da Agrisa e tecnologia da Hatz alemã. E havia as belas histórias de fabricantes de
colhedoras, chamadas de colheitadeiras no Rio Grande do Sul.
O AGRIMENSOR LOGEMANN
A soja se associa intimamente à história de duas indústrias de máquinas para colheita.
A mais antiga delas é a SLA, cujas origens se confundem com a trajetória pessoal de
Frederico Jorge Logemann (1892-1951), alemão de Bremen que na década de 10 do
século 20 veio trabalhar como agrimensor no interior do Brasil. Mais precisamente na
construção de estrada de ferro Santo Ângelo-Giruá, no noroeste do Rio Grande do Sul.
Casado com Nelly Dahne, filha do seu padrão, com quem teve um único filho, Jorge
Dahne Logemann (1922-1987), engenheiro civil formado em 1947 em Porto Alegre,
Frederico fundou sua própria companhia de colonização no noroeste gaúcho, quando
ali era tudo mato.
No final da segunda guerra, em sociedade com Balduíno Shneider, Logemann criou em
Horizontina, então distrito de Santa Rosa, um beneficiamento de madeira acionado
por uma máquina a vapor. O negócio logo evoluiu para oficina de consertos e reformas
de tratores, máquinas a vapor e trilhadeiras. Já em 1947 a oficina fez sua primeira
trilhadeira. Em 1950, com Jorge Logemann no comando, a SLC fabricou uma trilhadeira
estacionária polivalente (para trigo, milho e soja). Era uma imitação da trilhadeira
Tigre, de Faxinal do Soturno, cuja fábrica, fundada em 1921, subsiste hoje nas mãos de
Wilson Bozetto, neto do fundador Ângelo Bozetto.
Feitas totalmente de madeira, de acordo com uma tecnologia assentada no início da
Revolução Industrial, as trilhadeiras eram um equipamento precioso nos sítios. Podiam
processar, na época, até 200 sacos por dia. Quem possuísse uma, tinha nas mãos um
excelente instrumento de prestação de serviços.
A aventura da fabricação das automotrizes começou em 1965 quando Arnoldo
Shneider reformou e colocou em funcionamento na Fazenda Pioneira uma velha ceifae-trilha norte-americana John Deere fabricada em 1955. Assim nasceu a SL 65A,
primeira máquina automotriz de colheita feita no Brasil. O motor de seis cilindros a
gasolina foi tirado de um caminhão Chevrolet Brasil. Em 1979, pó US$ 7 milhões, a SLC
cedeu 20% do capital à John Deere, maior fábrica de máquinas agrícolas do planeta.
Com tecnologia da Hanomag alemã (recém-comprada pela John Deere), ela aprimorou
sua colheitadeira, transformando-a numa máquina mais versátil. Com o dinheiro,
Eduardo Logemann, neto do pioneiro, foi comprar terras para plantar soja no CentroOeste do Brasil.
O MARCENEIRO STREICH
Em Santa Rosa, durante a Segunda Guerra Mundial, os moços que não queriam ficar na
roça tinham duas grandes opções de trabalho urbano: ser aprendiz do marceneiro
Daniel Krebs ou servente do torneio-mecânico Herbert Kubick. Depois de aprender
com Krebs, Felipe Streich (Santa Rosa, 1919) iniciou em 1953 sua própria fábrica de
moinhos de trigo ao lado de cinco sócios: o mecânico Henrique Arns Arendt Sobrinho e
os marceneiros Otto Laembeck, Henrique Gelbhardt, Ewald Kuhn e Almino
Hoffmeister. Depois de cinco meses o mecânico Arns saiu e foi substituído na
sociedade por Antenor Grisotti, contador.
As Máquinas Agrícolas Ideal faziam polidores de trigo, peneiras e moinhos. A
experiência nesse terreno serviu para atender a encomendas das pioneiras indústrias
de óleo de soja, principalmente as montadas por cooperativas. Para fazer trilhadeiras,
tomou como modelo a velha Tigre de Faxinal do Soturno. “Na década de 50, o sitiante
que conseguisse trilhar 100 sacas de soja era considerado um herói”, lembra Streich.
Quando a trilhadeira deu sinal de não servir mais, a Ideal pensou em colhedora
automotriz. “Era muito difícil”, diz Strich, lembrando que não havia fornecedores aptos
nem mão-de-obra disponível. Para iniciar a fabricação de colhedoras, a Ideal foi buscar
torneiros experimentados em Carazinho e Cachoeira Sul, a capital do arroz irrigado,
onde desde 1908 operava a fábrica de locomóveis Mernak. Em Santa Rosa mesmo,
Felipe Streich contratou Fernando Krause (Santa Rosa, 1931), treinado desde os 14
anos em ferraria e um dos responsáveis pela montagem da primeira automotriz da
SLC.
A colhedora da Ideal foi montada em cima do diferencial de um trator Fendt de
fabricação brasileira, cujo ferramental seria mais tarde comprado pela Agrale, que
avançava no segmento de máquinas agrícolas. Para disputar mercado com a SLC, a
Ideal fez um acordo tecnológico com a Faar alemã (tratores Deutz). Na virada de 1979
para 1980, logo depois da união SLC-John Deere, fez um acordo com a International e,
por recomendação do BRDE, recebeu um aporte de capital do grupo financeiro lochpe.
Na década de 80, com a falência da International nos Estados Unidos, tudo ficou nas
mãos do Iochpe, que também assumiu o controle da Massey-Ferguson, com fábrica de
tratores em São Paulo e de implementos agrícola em Canoas, RS. Em 1996, a maxion
(ex-Ideal + Massey) foi comprada pela Agro americana. Apesar da intensa
modernização técnica, a indústria brasileira de máquinas de colheita vende muito
menos hoje do que em meados da década de 80, quando chegou a vender mais de 6
mil unidades por ano. O mesmo acontece com a indústria de tratores, que alcançou o
auge na década de 70, com picos de vendas de mais de 60 mil unidades por ano. Os
vendedores de máquinas, como o calejado Gilberto Zago, da SLC, falam desses tempos,
nem tão remotos, como “os anos áureos da soja...”
UMA AVENTURA TROPICAL
“No fundo devemos quase tudo ao trabalho desses rapazes, técnicos e cientistas
agrícolas”, confessou à revista Veja maio de 1988 o empresário Olacyr de Moraes, “o
rei da soja” no Brasil. Por incrível que pareça, essa foi a primeira vez que um
representante da iniciativa privada reconheceu publicamente o mérito do pessoal da
pesquisa genética na expansão da cultura da soja em território brasileiro. Banqueiro e
empreiteiro de obras públicas, Olacyr sabe que não teria alcançado sucesso se não
contasse com ajuda técnica no cultivo de variedades adaptadas ao clima de Ponta
Porã, no Mato Grosso do Sul, onde começou a explorar terras virgens no início da
década de 70. Para manter seu reinado, que durou cerca de 20 anos, o “rei da soja”
cercou-se de técnicos de ascendência japonesa liderados por Tuneo Sediyama (Itápolis,
1943), Ph.D. em genética pela Universidade Federal de Viçosa, um dos principais
núcleos de estudo da soja no Brasil.
O que Sediyama e outros agrônomos viveram ao longo das últimas décadas em
território brasileiro foi uma das mais extraordinárias aventuras científicas da história
da humanidade. Enquanto algumas variedades vegetais (ou mesmo animais) levaram
séculos, milênios até, para se adaptar a novas regiões, a soja sofreu em pouco tempo
um processo de “tropicalização” sem precedentes. O grão inicialmente cultivado no
clima temperado do Sul do Brasil adaptou-se de forma espantosa às terras quentes no
Brasil Central, do Nordeste e da Amazônia. Nesse avanço, ofereceu ainda notáveis
ganhos de produtividade e de qualidade.
LEGIÃO MULTINACIONAL
A bem da verdade, a tropicalização da soja foi um empreendimento conjunto de
brasileiros, orientais, europeus e norte-americanos. A lista da legião de melhoristas da
soja no Brasil começa no final do século 19 com Gustavo D’Utra; prossegue na primeira
década do século 20 com Guilherme Craig; continua na década de 20 com Henrique
Lobbe; na década de 30 recebe o um impulso de Vzeslaw Biezanko e, nos anos 50 que
ela arranca com José Gomes da Silva, cresce com a adesão de Leonard F. Williams e de
Hipólito Mascarenhas; brilha com Shiro Miyasaka e Geraldo Guimarães; passa adiante
com Jamil Feres, João Rui Jardim Freire e Francisco de Jesus Vernetti; na década de 60,
rende tributo a Edhard harteing e curva-se diante de Romeu Kiihl; e triunfa nos anos
70 com Emidio Rizzo Bonato, Manoel Miranda, Francisco Terasawa, Johanna
Dobereiner, Flavio Moscardi. Tuneo Sediyama... Na realidade, para ser completa, a
lista precisaria conter centenas de nomes. Apenas o atual time da soja no Brasil – do
qual fazem parte alguns dos pesquisadores arrolados acima, ainda em atividade –
congrega perto de 100 pesquisadores.
Bem menos vasto é o rol de entidades que trabalharam pela propagação da soja no
Brasil. Dele fazem parte o Instituto Agronômico de Campinas; as faculdades de
agronomia de Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Curitiba, Piracicaba, Rio de Janeiro,
Lavras e Viçosa; o Ipagro, a Empasc, o Iapar, a Epamig e a Emgopa; a fundação de
pesquisa da Fecotrigo, vários centros da Embrapa e dezenas de estações experimentais
oficiais e/ou campos particulares de melhoramento espalhados pelo Brasil – sem
contar instituições situadas nos Estados Unidos que colaboraram mais estreitamente
com os técnicos brasileiros.
Como não se trata de fazer um inventário, mas de estabelecer as principais referências
técnicas relativas á soja, é conveniente lembrar as fabulosas qualidades naturais da
“vaca integral” chinesa. Falando a propósito da surpreendente adaptabilidade revelada
pela Glycine max no Brasil, o agrônomo Eduardo Antonio Bulisani (Jundiaí, 1945),
diretor adjunto do IAC, pontua “Não sei se houve uma tropicalização ou se,
simplesmente, o deslocamento para o Brasil Central revelou um potencial genético até
então apenas desconhecido na soja”.
METAMORFOSE
A adaptação da soja no Brasil baseou-se no melhorar genético extremamente
diversificado. Aqui se plantaram sementes originárias do Japão. Da Europa e dos
Estados Unidos. A maior parte das variedades comerciais introduzidas no Brasil veio
dos Estados Unidos, cujos técnicos coletaram material diretamente na China e outros
pontos da Ásia, fato registrado no prefixo PI (Planta Introduzida) que se encontra na
nomenclatura básica da soja norte-americana. Em sua fantástica metamorfose
ocidental, a Glycine max cresceu em números de cultivares, linhagens e variedades,
recebendo por isso uma quantidade enorme de nomes pelos quais se tornou
conhecida dos técnicos, comerciantes de sementes e agricultores. Enquanto nos
Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, muitas variedades foram
batizadas com o sobrenome de comandantes militares (Lee, Davis, etc.), no Brasil
criou-se o costume de homenagear o lugar onde a semente revelou sua importância.
Hoje no Brasil a soja possui centenas de “marcas”.
Parece fora de dúvida que a primeira variedade de soja conhecida no Brasil foi a
amarela ou Comum. Num trabalho intitulado “A Soja no Brasil”, que escreveu na
década de 50 em parceria com Neme Abdo Neme e que não chegou a ser publicado
em forma de livro, José Gomes da Silva anotou que a variedade Amarela ou Comum,
muito cultivada pelos colonos gaúchos, chegou a ser conhecida por “Rio Grande” em
São Paulo na arrancada da Campanha da Soja, no início da década de 1950, quando a
variedade mais difundida entre os agricultores paulistas era a Abura, “coletada há
cercas de 10 anos, por técnicos do Instituo Agronômico, entre lavradores japoneses do
município de Campinas”. Na realidade, a Abura foi doada ao IAC em meados da década
de 30 pelo Consulado do Japão em São Paulo.
Tanto a Amarela/Comum como a Abura eram consideradas boas produtoras de óleo
para a época – com teores, respectivamente, de 18,3% e 19,37% -, mas apresentavam
alguns “defeitos”, escreveram Gomes da Silva e Neme: acamavam com facilidade,
“soltavam” as sementes (característica das vagens conhecida tecnicamente por
deiscência) e eram suscetíveis a nematóides. Parecida com a Abura, mas melhor do
que ela, segundo os dois pesquisadores do IAC, era a 455, de porte ereto e menos
propícia a jogar longe os grãos. Outras variedades coletadas na colônia japonesa do
interior paulista fora as asiáticas Otootan e a Chosen, citadas como “boas forrageiras”,
capazes de produzir em torno de 10 toneladas de massa verde por hectare, segundo
ensaios de 1952/53.
Em seu trabalho, baseado em dados do começo da década de 50, Gomes Silva e Neme
admitem que, mesmo depois de realizar ensaios com cerca de 400 variedades de
procedência norte-americana, o pessoal do IAC ainda não tinha encontrado a soja
“ideal para as nossas condições”. O que se buscava selecionar para o cultivo em solo
paulista eram principalmente plantar mais altas/eretas e resistentes à deiscência ao
ataque de nematóides, que se mostrassem mais produtivas por área; e, finalmente,
que apresentassem bons índices em dois aspectos essenciais – massa verde e teor de
óleo.
Desse esforço objetivo de melhoramento genético foram surgindo nomes que
merecem registro como marcos da pré-história da soja no Brasil. A nomeclatura das
sementes testadas na década de 50 em diversos campos experimentais “cita” locais
como Avaré, Araçatuba, Aliança, Morro Agudo, Pereira Barreto, Paraná – quase todas,
variedades selecionadas em municípios paulistas onde estava presente o imigrante
japonês. Dessas variedades pioneiras, consideradas “rústicas”, a mais importante para
o pessoal do IAC foi a Mogiana, coletada em 1947 na região de Ribeirão Preto. Não fez
grande carreira. No Sul, em 1960, os técnicos gaúchos batizaram a variedade Pioneira
(seleção de cruzamento Biloxi x Chosen). Também não foi longe, mas a grande
aventura da transformação genética da soja no Brasil estava começando.
LIDERANÇA TÉCNICA
Em todos os casos de sucesso das sementes desenvolvidas para as condições
brasileiras, a pesquisa realizada no Brasil contou com a retaguarda de cientistas de
outros países, especialmente dos Estados Unidos. Henrique Lobbe, que na década de
20 testou cinco variedades asiáticas (recebidas de um agrônomo japonês que as trouxe
da Manchúria) e 59 variedades norte-americanas (adquiridas pessoalmente em
viagem aos Estados Unidos) na estação experimental do Ministério da Agricultura em
São Simão, SP, manteve correspondência com o agrônomo William Morse, responsável
pelo deslanche da lavoura de soja nos Estados Unidos. Num artigo publicado em 19 de
fevereiro de 1928 em O Estado de S. Paulo, Lobbe afirma ter selecionado três
mutações espontâneas, denominadas Jomichel, Julieta e Joalo, de ciclo vegetativo
muito precoce (90 dias). Diz ainda ter obtido por cruzamento outra variedade, a Artofi,
“muito produtiva, de tamanho grande e coloração original”.
Depois, nas décadas de 30 e 40, outros técnicos nativos ou estrangeiros contribuíram
para difundir a soja no Brasil. Os mais notórios foram o polonês Czeslaw Biezanko, no
Rio Grande do Sul, e o sírio naturalizado brasileiro Neme Abdo Neme, no estado de São
Paulo. De modo geral, entretanto, é praticamente unânime entre os técnicos que o
nome chave na história da soja no Brasil é o de José Gomes da Silva.
Evidentemente beneficiado pelo trabalho de observação, pesquisa e seleção dos
técnicos mais antigos do Agrônomo de Campinas e de outras instituições, Gomes da
Silva deu o pulo do gato quando, recém-formado em agronomia em 1946 em
Piracicaba, passou dois anos fazendo mestrado em Iowa, nos Estados Unidos, de onde
voltou no final de 1948, disposto a promover aqui a exemplar integração norteamericana entre lavoura, pesquisa, indústria e governo.
No final da década de 40 já se sabia em São Paulo e no Rio Grande do Sul que a simples
garantia de compra de uma indústria, por mais estimulante que fosse não era
suficiente para manter os agricultores no cultivo regular da soja. O esforço da inglesa
Swift para fomentar a produção de soja no interior paulista, entre 1945 e 1948, deu
bons resultados, mas não foi à frente, talvez por falta de uma liderança técnica que
promovesse a necessária articulação entre todas as pontas do processo produtivo,
especialmente entre a lavoura e a pesquisa. Foi esse papel de Gomes da Silva. Com sua
dedicação – tão grande que lhe rendeu o apelido de Zé Sojinha – ele mostrou que, ao
apontar caminhos e buscar novas saídas, o pesquisador científico possui também uma
missão política.
Contratado como pesquisador do IAC, José Gomes da Silva pegou na unha o esforço da
indústria de óleos por uma matéria-prima mais rendosa e segura que algodão,
amendoim, mamona e girassol. Embora articulado com a indústria, visava
principalmente ao consumidor. Na convivência de que a leguminosa chinesa estava
predestinada a ter grande futuro no Brasil. Falava com freqüência na “mística da soja”.
- Desde o início eu pensei na soja como alternativa protéica para sanar a deficiência
nutricional das populações pobres do Brasil, especialmente do Nordeste – disse ele em
janeiro de 1996, alguns dias antes de morrer.
Dono da fazenda Baguaçu, em Pirassununga, onde desenvolveu principalmente o
plantio regular da cana-de-açúcar, Zé Sojinha cultivava idéias que lhe valeram a
imagem de “comunista”. Para isso contribuiu seu engajamento na luta pela
democratização da posse da terra. No início da década de 60 ele fundou em Campinas,
junto com Carlos Lorena, também agrônomo, a Associação Brasileira de Reforma
Agrária, que ficou na história como um dos primeiros focos de resistência ideológico à
ditadura militar implantada em 1964.
Não há como negar que a Glycine max tripudiou cruelmente sobre o idealismo
socialista de Zé Sojinha. Ele acreditava sinceramente que a soja poderia fortalecer a
renda das pequenas propriedades e servir como instrumento de redistribuição
fundiária. Na realidade, deu-se o inverso: cultivada e larga escala, como monocultura,
a planta contribuiu especialmente para reduzir o número de minifúndios e ampliar a
concentração fundiária no Brasil.
SANTA ROSA
No IAC, tudo dava certo. Em pouco tempo o esforço de Zé Sojinha transformou-se na
Campanha da Soja, empreendimento oficial financiado pela iniciativa privada. As
despesas de Seção de Leguminosas do IAC passaram a ser parcialmente custeadas por
fábricas de óleos vegetais que inauguraram em São Paulo o modelo de financiamento
de pesquisa empregado alguns anos mais tarde pelo Instituto Privado de Fomento à
Soja (Instisoja), criado no Rio Grande do Sul por iniciativa da Sociedade Anônima
Moinhos Rio-Grandenses (Samrig). Na primeira metade da década de 50, a Anderson
Clayton financiou a permanência por uma temporada em Campinas do agrônomo
Leonard F. Williams, responsável pela linhagem L-326, mais tarde “nacionalizada” com
o nome de Santa Rosa, a primeira grande variedade comercial brasileira.
O nome nacional foi colocado pelo técnico agrícola Juarez Pinto Gutterres (Viamão,
1932), responsável por ensaios realizados a partir de 1958 no município gaúcho de
Santa Rosa, para onde fora enviado pela Secretaria da Agricultura como agente
fitossanitário. Lançado em 1966 na I Festa Nacional da Soja, em Santa Rosa, foi essa a
primeira semente obtida no Brasil como resultado do cruzamento de linhagens norteamericanas (D49-772 x La41-1219). Por longo período foi mais cultivada em toda a
região meridional brasileira, do Rio Grande do Sul até São Paulo. Na mesma época fez
carreira uma meia-irmã dela, a Industrial (Mogiana x La41-1219), também saída das
mãos de Gutterres.
“A Santa Rosa estava ‘perdida’ na estação experimental de Júlio Castilhos quando eu
resolvi fazer uns ensaios para ajudar os colonos que só tinham a Amarela para
plantar”, lembra Gutterres, formado em 1953 na Escola Técnica Agrícola de Viamão,
pequena cidade dos arredores de Porto Alegre. Durante seus primeiros anos como
funcionário da Secretaria da Agricultura, ele havia tralhado precisamente na chamada
“estação experimental da serra”, no município de Júlio de Castilhos. Em Santa Rosa,
onde acabou realizando a maior parte de sua carreira – a partir de 1961 como
pesquisadores do Ipagro, encorporado graças a um convênio com o Instisoja -,
Gutterres criou duas variedades de soja, a Sulina (seleção da variedade Hamptom) e a
Missões (seleção de uma variedade rústica da zona colonial gaúcha), mas se
notabilizou pelo aprimoramento da Santa Rosa. Essa variedade ajudou o IAC a ganhar
fama como o maior centro de referência técnico da soja no Brasil até que a Embrapa
assumisse o comando da pesquisa agropecuária no país, na segunda metade da
década de 70.
NA REGIÃO MOGIANA
O mais importante auxiliar de Zé Sojinha nos primeiros anos no IAC foi Shiro Miyasaka
(Japão, 1924). Caçula de uma família de cinco irmãos originária de Hokkaido, ele veio
para o Brasil em 1932. O pai foi meeiro de lavoura de café no oeste paulista antes de
se tornar olericultor em Arujá, perto da capital. Aos 14 anos, em 1938, Shiro mudou-se
para São Paulo, onde arranjou emprego como entregador de chá. Depois, trabalhando
de dia numa fábrica de fogões e estudando à noite, concluiu o curso secundário.
Reprovado no vestibular da Escola Politécnica de São Paulo, aos 24 anos conquistou
uma vaga no curso de agronomia em Piracicaba. Formou-se em 1951, justamente
quando a soja, em grande evolução nos Estados Unidos, começava a prosperar do
Hemisfério Sul. Na faculdade, não recebeu senão aulas teóricas sobre planta que,
como imigrante, conhecia de quintal e de mesa.
Entre um convite para se tornar assistente do professor de genética em Piracicaba e
outro para trabalhar como pesquisador em Campinas, Shiro Miyasaka preferiu o
contrato com o Agronômico, onde, há em 1952, foi incumbido por José Gomes da Silva
de iniciar um ensaio de hibridação com mais de 50 variedades de soja. Foi em suas
mãos que começou o primeiro grande esforço nacional para selecionar variedades
aptas à mecanização e que respondessem positivamente o interesse da indústria por
óleo.
“A soja existente no estado de São Paulo era baixinha, de talo grosso, toda de
variedades inadequadas para a colheita mecanizada”, lembra Shiro. Havia um
agravante: quando se tornavam maduras, as vagens se abriam, lançando fora as
sementes. Tanto que a principal recomendação técnica na época, quanto à colheita da
soja, era que as vagens fossem apanhadas quatro ou cinco semanas antes da
maturação definitiva. Esse problema só foi resolvido depois de 1954, quando saiu
comercialmente nos Estados Unidos à variedade Lee, produto de cruzamentos (CNS x
S-100) iniciados na década de 49 no Mississippi pelo pesquisador norte-americano
Edgard Hartwig (1923-1996). Era uma variedade de soja não-deiscente, isto é, as
vagens, quando maduras, não se abriam para lançar longe os grãos.
Fruto do acaso, como costuma acontecer com as grandes descobertas, da Lee foi
fundamental para a intensificação da colheita mecânica da soja no Brasil, ainda estava
por estabelecer a tecnologia de grandes lavouras. As trilhadeiras estacionárias ou
automotrizes eram usadas por uma minoria. A colheita era muito complicada, já que
envolvia operações manuais como a bateção das vagens e a secagem dos grãos
colhidos ainda verdes.
Imcubindo de fazer a Campanha da Soja na chamada região mogiana, especialmente
nos municípios de Orlândia, São Joaquim da Barra, Itupeva, Miguelópolis e Guaíra,
Shiro Miyasaka encontrou excelentes parceiros de campo como os irmãos Hirofume e
Massamori Kage de Guaíra, Takaiuki Maeda em Itupeva e vários membros da família
Junqueira, em Orlândia. Nessa última cidade fora fundada em 1952 a Companhia
Mogiana de Óleos Vegetais (Comove), inicialmente voltada para o algodão, depois
para o arroz e, por último, para a soja.
Havia muita gente interessada e disposta a ajudar nas pesquisas. Em Jaguariúna, perto
de Campinas, a Campanha da Soja contou com o respaldo dos japoneses que
cultivaram arroz para fabricar saquê na Fazenda Monte d’Este. Igualmente abertos
eram agricultores holandeses da Holanda, também em Jaguariúna. Eles ajudaram o
pessoal do IAC a testar máquinas de colheita importadas da Europa. Em Matão, junto a
Araraquara, estabelecera-se um núcleo de pesquisa amparado pela Fundação
Rockefeller, que nessa época financiava a Revolução Verde comandada pelo
geneticista Norman Borlaug, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1970 pelos
melhoramentos obtidos principalmente com o trigo. A base de Matão daba ênfase
especial ao emprego de calcário de adubos fosfatados.
VANGUARDA CAMPINAS-PELOTAS
Fora de São Paulo, o mais consiste trabalho de pesquisa era realizado no Rio Grande
do Sul, onde já havia uma base de informações apuradas em meia dúzia de estações
experimentais – umas do estado, outras da União. Desde 1948, por exemplo, a
Secretaria da Agricultura matinha em Veronópolis, na chamada estação experimental
das colônias (de imigrantes), alguns ensaios de comportamento de variedades sob
diferentes espaçamentos e volumes de adubação.
Em 1951, o agrônomo Francisco de Jesus Vernetti (Pelotas, 1925) foi colocado à frente
das pesquisas com soja no Instituto Agronômico do Sul(IAS), órgão do Ministério da
Agricultura sediado em Pelotas, município com tradição vanguardista equivalente à do
paulista Campinas na área agrícola.
No início, Vernetti se preparou em testar variedades que pudessem ser cultivadas em
consórcio com o milho nas roças dos produtores minifundiários do noroeste gaúcho e
do oeste catarinense. Em seus ensaios, experimentava material genético disponível em
centros de pesquisa existentes no Brasil, principalmente Campinas, Júlio de Castilhos e
Veranópolis. Também testava sementes recebidas diretamente dos Estados Unidos,
onde fez mestrado (em Purdue). A partir de 1957, começou a freqüentar reuniões
técnicas sobre soja, promovidas pela Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul
em convênio com o Instisoja. No final da década de 50, já tinha iniciado a formação da
equipe que mais tarde faria funcionar a rede de pesquisa federal na região Sul, com
campos experimentais de Pelotas, Passo Fundo, Caçador (depois Chapecó), Ponta
Grossa e Maringá.
SANTA MARIA
A década de 50, cheia de inovações para os brasileiros, ainda não havia acabado
quando o pessoal do IAC começou a fazer ensaios sob baixas temperaturas na estação
experimental de Pindamonhangaba, no vale do Paraíba, região tradicionalmente
produtora de arroz irrigado em várzeas de aluvião. Testada pelo agrônomo Geraldo
Guimarães (Conchas, 1924) no inverno de 1958, uma variedade forrageira coletada em
Minas Gerais, de origem desconhecida, revelou comportamento absolutamente
diferente: crescia normalmente naqueles dias curtos, fugindo do padrão da soja,
planta que vegeta em dias longos e floresce quando detecta que a noite começa a se
tornar mais longa do que o dia. “Variedade pouco sensível ao fotoperíodo”, registrou
friamente Miyasaka, sem imaginar que aquela planta taluda, de sementes pretas,
abriria a caminho o caminho à tropicalização da soja. Bem que Shiro Miyasaka tentou
lhe dar um nome significativo: Karutoby, alimento ver, em tupi-guarani. O nome que
ficou foi outro, já usado anteriormente em Minas: Santa Maria. Pesquisas realizadas
mais tarde não chegaram a uma conclusão sobre suas origens. No máximo, descobriuse semelhança com sementes de procedência filipina introduzidas nos Estados Unidos.
A partir do comportamento da Karutoby-Santa Maria, os melhores confirmavam que
era mesmo possível selecionar sementes adaptáveis a quaisquer latitudes. Então,
aproveitando a rede de pesquisa montada informalmente no país, intensificaram-se
entre os técnicos os testes de novas variedades. Começou assim a preparação para o
futuro avanço sobre o cerrado inculto dos estados Centro-Oeste. Já havia a intuição de
que a leguminosa poderia dar certo no cerrado, mas ninguém vislumbrara ainda a
explosão que viria nos anos seguintes. Pelo contrário, o solo dos cerrados, rico em
alumínio, tinha fama de ser tóxico demais para as plantas.
Na verdade, tateava-se no escuro. A própria história da Karutoby-Santa Maria parecia
uma brincadeira da natureza com os técnicos, que atiravam num alvo e acertavam em
outro. Shiro Miyasaka reconheceu que um dos abjetivos do experimento de
Pindamonhangaba era testar a produção de uma forragem de inverno para o rebalho
de gado leiteiro do vale do Paraíba... Naquele momento, em São Paulo, a soja era
muito falada e pouco plantada. A rigor, apenas no Rio Grande do Sul ela podia ser
considerada uma lavoura comercial, graças à exportação e à demanda da indústria de
óleo.
A REBOQUE DOS PRODUTORES
O agrônomo Jamil Feres (Bagé, 1930), que dirigiu a estação experimental de
Veranópolis de 1961 a 1971, estabelece o ano de 1963 como “o verdadeiro marco” da
evolução da pesquisa da soja no estado do Rio Grande do Sul. Segundo ele, além do
trabalho do Instisoja, pesou naquele instante a decisão do governo federal de destinar
recursos para o plantio de trigo. Entretanto, Feres recorda que, pelo menos em seu
estado, os pesquisadores tinham então pouco respaldo das instituições onde
trabalhavam. “Tudo dependia essencialmente do esforço de cada um”, diz ele.
Contratado em 1964 para trabalhar e Passo Fundo, Emídio Rizzo Bonato (Marau,
1942), formado em agronomia em Pelotas, lembra que nessa época, no Rio Grande do
Sul, os pesquisadores andavam a reboque dos produtores, que lhes cobravam
resultados. Abertos, à mecanização das lavouras, os sojicultores era naturalmente
receptivos às inovações técnicas.
Foi demanda do campo que, em meados da década de 60, forçou a implantação de um
programa federal de melhoramento por hibridação. O foco principal das pesquisas,
coordenadas pelo Ipeas (novo nome do velho IAS), era maior rendimento das
colheitas, mas se buscavam também novas informações sobre adubação,
espaçamento, controle das chamadas ervas daninhas e combate as pragas e doenças.
Ao lado de Bonato, nas estações experimentas do Sul, já trabalhavam uma numerosa
equipe que apresentaria os primeiros resultados concretos no final da década de 60,
quando foi lançada a cultivar Campos Gerais (Arksoy x Ogden), de ciclo curto (108
dias), indicada par a rotação com o trigo no Paraná. Em 1971, como o resultado do
mesmo trabalho, saiu uma cultivar para Santa Catarina, a IA-3 Delta (Ogden x CNS), de
ciclo longo (155 dias). Em 1972, as duas primeiras para o Rio Grande do Sul, IAS-1
(Jackson x D49-2491) e ias-2 [Hill x (Roanoke x Ogden)].
RAINHA DO CERRADO
A Universidade Federal de Viçosa entrou no jogo em 1963, quando montou um projeto
de pesquisa de adaptação da soja ao cerrado, com base num acordo tecnológico com a
Purdue University, dos Estados Unidos. Situada numa região pouco propícia à
agricultura mecanizada, perto de Belo Horizonte, a UFV arranjou com agricultores do
Triângulo Mineiro uma área de 100 hectares no municipio de Capinópolis. Ali
implantou um centro de experimentação, pesquisa e extensão, com resultados
práticos já em 1969, ano do lançamento da Mineira e da Viçoja. Ambas são irmãs (por
parte da variedade Improved Polican, introduzida no Brasil em 1951 por José Gomes
da Silva) e provêm de sementes selecionadas de cruzamentos feitos nos Estados
Unidos. A Mineira é parente da Santa Rosa, divisória de águas no Brasil. A Viçosa
aparenta-se com a Lee, considerada uma espécie de marco divisório da história
mundial da soja.
Ampliada depois com variedades identificadas com o prefixo UFV, a genealogia mineira
da soja produziu dezenas de sementes próprias para o Centro-Oeste. Foi de Viçosa que
saíram a maior parte das sementes usadas pelo “rei da soja” Olacyr de Moraes na
Fazenda Itamarati, no Mato Grosso do Sul. A maior estrela originária de Minas, porém,
foi a Cristalina, testada em solo próximo de Brasília. Lançada comercialmente em 1981
tem a marca de seu criador, o agrônomo paranaense Francisco Terasawa (Ponta
Grossa, 1939).
Formado em Curitiba em 1963, Terasawa trabalhou no departamento de pesquisa
agropecuária do Ministério da Agricultura, em Londrina, até 1972, quando, ao trocar o
serviço público pela iniciativa privada, fundou a FT Pesquisas e Sementes. Nesse ano
comprou em Douradina, MS, sementes resultantes da primeira multiplicação da
variedade UFV-1. Semeou-as em seu sítio em Londrina e selecionou seis plantas que
destacaram no conjunto. Denominou-as M-2, M-3, M-4, M-5, M-6 e M-7, promovendo
a seguir cruzamentos com variedades norte-americanas. Da cruza da M-4 com a Davis
nasceu enfim a FT-Cristalinam testada na Fazenda Vareda, aberta em 1972 em
Cristalina pelo fazendeiro paulista Luiz Souza Lima (Mococa, 1915), um dos pioneiros
da soja no cerrado goiano. Da mesma época e de linhagens semelhantes são as
variedades Tropical e Doko, esta uma homenagem a Toshi Doko, presidente da
Federação das Entidades Empresariais do Japão, entusiasta no plantio da soja no
noroeste de Minas Gerais. Lançada pela Embrapa, as duas são frutos de cruzamentos
(Hill x PI 240664, de origem filipina) iniciados na década de 60 em Campinas e
concluídos em Londrina.
POLARIZAÇÃO TÉCNICA
Essas semanas híbridas próprias para o cerrado brasileiro estabeleceram novos
parâmetros de rendimento agrícola. Técnicos que trabalhavam para o IAC no cerrado
do nordeste paulista contam que, no início da década de 60, por exemplo, quando a
variedade mais cultivada em Orlândia era a americana Pelican (que entrou em São
Paulo em 1951 pelas mãos de José Gomes da Silva), dava-se como “popudo” um
produtor de sementes que afirmava colher “70 sacas por alquiere”, isto é, cerca de
1.800 quilos por hectare (o rendimento nacional médio foi de 1.100 Kb/há em 1962).
Em seguida, no início da década de 70, quando a variedade Santa Rosa “voltou”
triunfante ao solo paulista, o patamar dos campos de sementes da Alta Mogiana
mudou significativamente, tanto que passou a considerar-se “atrasado” quem não
conseguisse pelo menos “80 sacas por alqueire”, cerca de 2.000 kg/há (em 1972 o
rendimento nacional médio foi de 1.690 kg/ha). Com as variedades híbridas modernas
adequadas ao cerrado, os campos de melhoramento de sementes dobraram o
rendimento. Hoje, enquanto a média brasileira chegou a 2.221 kg/há na safra 1994/95,
as lavouras do Centro-Oeste brasileiro produzem rotineiramente médias próximas a
2.500 kg/ha.
Com o sucesso dos mineiros no cerrado, definiram-se três frentes de melhoramento da
Glycine max no Brasil: a de Viçosa, a de Campinas e a dos pesquisadores do Ministério
da Agricultura, distribuídos principalmente no eixo Londrina-Maringá-Ponta GrossaCuritiba-Caçador-Joaçaba-Passo Fundo-Cruz Alta-Pelotas. Ainda que a maioria dos
agrônomos fosse umbuída do espírito aberto que move os cientistas, havia uma
dificuldade para o intercâmbio de dados: a estrutura burocrática de órgãos públicos
situados em regiões distintas, uns subordinados à União e outros a estados, cada um
com sua história particular e interesses específicos. Além disso, reinavam “climas”
diferentes entre as instituições e suas respectivas regiões. Por aí se compreende o
papel de “tertius”desempenhado por Viçosa. Além de distante geograficamente, o
pessoal mineiro entrou tardiamente num jogo paralisado pelo IAC em Campinas e os
Ipeas em Pelotas.
Como “capitais do interior” dos estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul,
Campinas e Pelotas possuíram afinidades culturais, mas entre paulistas e gaúchos
pairava a sombra de desavenças políticas nascidas em 1930, quando Getúlio Vargas
comandou o golpe que destituiu o presidente Washignton Luís. De alguma forma, tais
rivalidades ajudavam a manter certa distância entre instituições que, no fundo, tinham
o mesmo objetivo: enriquecer a agricultura do Brasil.
SEM FRONTEIRAS
Em 1965, quando se tornou o chefe da Seção de Leguminosas do IAC, Shiro Miyasaka
arranjou um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE)
para intensificar as pesquisas do cultivo da soja no Brasil. Foi um contrato duradouro e
frutífero. O BNDE começou ali um esforço que levaria a fazer diversos investimentos
na agricultura e na agroindústria, nas décadas de 70 e 80. Shiro Miyasaka revelou-se
um bom executivo de pesquisa, tanto que na década de 70 foi para o Rio de Janeiro
assessorar a direção do BNDE (que havia criado uma agência de financiamento
batizado com o nome de Finep) no desenvolvimento de projetos agropecuários e de
produção de fertilizantes no Centro-Oeste.
Quanto à soja, o pioneiro financiamento do BNDE fez o IAC dar um salto. Miyasaka
mandou construir estufas novas, comprou dias camionetas e reforçou a equipe técnica
com a contratação de uma nova safra de agrônomos. Entre os escolhidos estava
Romeu Afonso de Souza Kiihl (Caconde, 1942), filho de um alfaiate, recém-formado em
piracicaba com o patrocínio da Associação Cacondense Pró-Bolsa de Estudo.
Imcumbido logo de cara de uma grave missão – aprofundar os estudos sobre
variedades “pouco sensíveis ao fotoperíodo” – Kiihl foi colocado em contato com
Geraldo Guimarães , o agrônomo que trabalhara com variedade Santa Maria na
estação experimental de Pindamonhangaba. Não havia mais grandes ensaios com soja
por ali, até mesmo porque a estação fora criada em 1952 pela Secretaria de Obras para
ajustar nos estudos sobre o caprichoso regime das águas do rio Paraíba. Outra tarefa
foi viajar ao Sul para coletar sementes. Ali, Kiihl conheceu Juarez Gutterres, melhorista
da variedade Santa Rosa. Na mesma época, em 1966, conheceu Edgard Hartwing, o
descobrir da Lee, aquela que não abria a vagem. Tudo parecia convergir para o
cerrado.
Em viajem ao núcleo de pesquisa de Matão como consultor da Fundação Rockefeller,
Hartwing dispôs-se a acolher Kiihl como mestrando em Leland, no Mississippi. No final
de 1996, depois de passar no exame de seleção da primeira turma de dez bolsistas
brasileiros de agronomia financiados pelo governo americano em sua “aliança para o
progresso” dos países da América Latina, lá se foi Kiihl estudar com o mais importante
melhorista de soja surgido nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.
“Foi um privilégio”, afirma Kiihl, que ficou dois anos lá. A bolsa era de apenas US$ 150
por mês.
Casado e sem filhos, Hartwing “adotou” Kiihl, a quem ajudava sobretudo nos sábados
pela manhã, fora do expediente administrativo normal. Orientou o brasileiro
especialmente na pesquisa de cruzamentos que ajudariam o Brasil a encontrar
variedades adptáveis e várias latitudes, do paralelo 30 (Rio Grande do Sul) ao paralelo
4 (Maranhão).
Curador do banco de germoplasma do sul dos Estados Unidos, baseado na Delta
Branch Experimental Station, em Stoneville, no Mississippi, Hartwing ajudou também
outros brasileiros. Seu “protecionismo” ai Brasil não era bem visto por agricultores que
financiavam as pesquisas. Otavio Tisselli Filho (Campinas, 1948), diretor do IAC, cujo
trabalho de mestrado levou adiante os estudos de Romeu Kiihl – foi Tisselli quem
denominou “período juvenil longo” o que Kiihl chamava de “florescimento tardio em
dias curtos” -, lembra que muitos agricultores americanos questionavam
objetivamente a presença de tantos agrônomos brasileiros nos Estados Unidos.
Achavam que a ajuda dos cientistas ianques poderia ajudar a estabelecer futuros
concorrentes com outros países. Hartwing ligava para as pressões e abria suas
anotações aos brasileiros. Convicto de que a ciência não tinha fronteiras, acreditava na
expansão da soja para modernizar a agricultura no mundo.
HISTORINHAS DO SERTÃO
Quando voltou dos Estados Unidos em 1968, Romeu Kiihl incorporou-se novamente ao
IAC, onde continuou o trabalho de seleção de variedades “para todo o Brasil”.
Espontâneo ou institucionalizado, o intercâmbio dos técnicos brasileiros, no Brasil e
nos Estados Unidos, levou a criação, em agosto de 1971, da Comissão Nacional da Soja
do Ministério da Agricultura, da qual Francisco de Jesus Vernetti foi o coordenador por
vários anos. Dessa comissão, responsável pelo lançamento das variedades da série BRdas mais antigas, a BR-1 e a BR-4 continuam sendo recomendadas até hoje -,
participavam os pesquisadores do Ipeas, técnicos de secretarias estaduais da
Agricultura (incluindo-se o IAC) e também professores de faculdade de agronomia.
Isso, sem contar o pessoal americano de uma missão técnica voltada para o
treinamento e a capitação dos brasileiros. Sediada em Porto Alegre, junto ao Ipagro,
onde tinha como interlocutor oficial o microbiologista do solo João Rui Jardim Freire
(Rio de Janeiro, 1920), a missão era chefiada por Roger Benson, especialista em
fertilidade dos solos; os demais eram Gleen Davis (plantas daninhas), Harry C. Minor
(fitotecnia), S.G. Turnipseed (insetos) e Paul S. Lehman.
A multiplicação das sementes era feita em lavouras de produtores-modelo sempre
dispostos a colaborar com a vanguarda técnica. Romeu Kiihl, bússula sempre
apontando para o Centro-Oeste/Norte-Nordeste do Brasil, conta uma histórinha típica
dessa coalizão entre pesquisadores e produtores:
– Em 1972 pedi ao Massamori Kage que plantasse uma linha de sementes IAC-73/2736
ao lado de sua lavoura de soja na Fazenda Vera Cruz, em Guaíra, no cerrado de São
Paulo. Ele plantou – ao lado da variedade Hardee. Era um experimento banal, mas deu
resultado. Tempos depois ele me enviou um pé de soja que se destacara dos outros.
Era uma mutação mais alta. Pois bem, esse pé de soja é o pai de algumas variedades
boas para o Norte/Nordeste do Brasil: BR-10 Teresina, BR-11 Carajás, BR-33 Seridó...
Emidio Bonato, outro sócio miliante do clube da soja, afirma que sem essa integração
as pesquisa com a lavoura não teria sido possível adptar em tão pouco tempo
variedades do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Hoje há tantas variedades
disponíveis – por região, com variações de ciclo vegetativo (curto, médio ou longo) e
resistência a doenças – que os pesquisadores acham graça do tempo em que os
agricultores não contavam com muita coisa além da Santa Rosa. E cada variedade tem
sua historinha particular, com os pais, local de casamento e padrinho. Veja-se o perfil
sucinto de uma variedade testada nos anos agrícola 1973/74, no sertão do Cariri, no
município de Sapé, na Paraíba, por um técnico da Sanbra, a pedido de Romeu Kiihl,
que lhe deu sementes de IAC-73/2736. Experimento banal: os grãos foram plantados
ao lao de uma lavoura da variedade Bragg. No meio daquele bloco despretensioso veio
uma planta-destaque. Kiihl recruzou as sementes dessa planta por três vezes com a
Bragg. Depois mais uma com a Bragg e outra com Santa Rosa. Resultado: BR-27 Cariri,
uma das cultivadas no Maranhão.
LONDRINA, CAPITAL TÉCNICA
A pesquisa da soja já tinha alcançado indiscutível grau de maturidade quando, em
1973, foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A nova
instituição demorou a sair do papel, pois desencadeou uma luta política nos bastidores
dos órgãos científicos comandados pelo Departamento Nacional de Pesquisa
Agropecuária, do Ministério da Agricultura. Boa parte dp impasse adveio da criação no
mesmo momento, com recursos do Instituto Brasileiro do Café (IBC), do Instituto
Agronômico do Paraná (Iapar), com sede em Londrina, onde, como desdobramento
dos Ipeas, já funcionava o Ipeame, originário da subcomissão técnica meridional do
trigo, criada na década de 60. Em Campinas, o IAC ficou longe da disputa. Pelotas,
Passo Fundo, Cruz Alta, Ponta Grossa não chegava a se declarar condidatas mas, no
fundo, todas queriam ser a capital técnica da soja. Mais do que distante, a escola de
Viçosa ficou neutra na história. Naquele exato momento, o agrônomo mineiro Allyson
Paulinelli (Bambuí, 1936), formado na faculdade rival de Lavras, foi escolhido o
ministro da Agricultura do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Na virada de 1973 para 1974, recém-contratado pelo Iapar, José Tadashi Yorinori
(Londrina, 1943)embarcou no norte do Paraná numa velha camioneta rumo ao centro
de Minas. Missão: buscar em Viçosa sementes para iniciar a coleção de soja do Iapar.
Estava tudo combinado, mas à última hora foi avisado de que a direção da escola
decidira não colaborar. De mãos vazias, na volta para Londrina Yorinori passou em
Campinas, reuniu o material genético necessário no Instituto Agronômico e, de
quebra, ganhou a adesão de Romeu Kiihl, que decidiu se transferir para o Iapar. Por
causa da incerteza e das mudanças, que se arrastavam em meio a um processo de
barganhas regionais, houve entre 1973 e 1975 um hiato na pesquisa agrícola brasileira.
O impasse acabou em 1976, quando, enfim, Londrina foi confirmada como sede do
Centro Nacional de Pesquisa de Soja. Instalado inicialmente na sede do Iapar (que
abdicou da pesquisa da soja, concentrando-se em outras culturas, especialmente o
trigo), o CNPSo passou a coordenaro trabalho desenvolvido em várias regiões por
diversos órgãos públicos federais, estaduais e privados. O primeiro chefe foi o gaúcho
Francisco de Jesus Vernetti, substituído por outro gaúcho, Emidio Bonato, que ficou
dez anos no cargo. Os dois continuaram trabalhando com a soja em bases regionais da
Embrapa: Vernetti em Pelotas, Bonato em Passo Fundo.
Os resumos informativos do CNPSo, em quatro volumes, publicados em 1977, foram
um primeiro esforço de organizar o acervo de pesquisa existente em torno da Glycine
max. Em paralelo, o IAC promoveu uma maratona nacional para produzir o livro A Soja
no Brasil, coordenado por Shiro Miyasaka e Julio Cesar Medina. Com mais de mil
páginas, publicado em 1981 sob patrocínio da Fundação Cargill, condensa
praticamente tudo o que a ciência brasileira sabia sobre a soja até a entrada na década
de 80. Escrita por centenas de mãos, essa grande obra cumpriu um papel curativo,
ajudando a apaziguar os conflitos regionalistas surgidos na década de 70. As
dissidências remanescentes foram enterradas nos anos seguintes pela própria carreira
brilhante da soja.
Mesmo depois de podada pelo processo de desmontagem da máquina estatal
desencadeado a partir do fugaz governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), a
Embrapa manipula recursos equivalentes a 1% do produto Interno Bruto do Brasil e
lidera os esforços para criar um novo modelo de pesquisa em parceria com iniciativa
privada. O exemplo mais promissor nesse campo é a fundação MT, criada no início da
década de 90 em Rondonópolis, a “capital da soja” no Brasil Central. Vinculada à
Associação dos Produtores de Sementes do Mato Grosso, da qual faz parte Blairo
Maggi (o novo “rei da soja”), a Fundação MT tem como diretor técnico Dario Miniru
Hiromoto (Marília, 1963), da nova safra de agrônomos do CNPSo.
PRÊMIO NOBEL
Hoje, 20 anos depois do início da operação efetiva da Embrapa, pode-se dizer que
geneticamente já não tem mais utilidade, a não ser como curiosidade histórica e
reserva eventual de germoplasma, a soja que deu a arrancada na moderna aventura
agrícola brasileira. Cruzadas e recruzadas, as variedades primitivas transmutaram-se
em grãos especializadíssimos, com maior produtividade e diferentes respostas a
especificidades regionais, climáticas, edáficas e biológicas.
Segundo Tuneo Sediyama, em palestra dada para agricultores e técnicos e setembro
de 1996 em Capiópolis, a produtividade da soja no Brasil Central tende a aumentar nos
próximos anos da faixa de 2.200 kg/há para mais de 3.000 kg/há. Pesquisam-se agora
sobretudo variedades mais resistentes, já que a partir dos anos 90 a soja precisa se
livrar da terrível herança – doenças e pragas – deixada pela monocultura. Nos últimos
seis anos seis novas doenças ou pragas espalharam-se pelas lavouras de soja do Brasil.
As piores são o cancro da haste (que causou prejuízos de US$ 500 milhões aos
agricultores brasileiros no período 1989/96, segundo estimativas do CNPSo) e o
nematóide de cisto (prejuízos de US$ 150 milhões, idem). O estado mais castigado foi
o Rio Grande do Sul. Entretanto, nem só da genética vive as pesquisas em torno da
soja.
Além de ter ela própria evoluído, a soja provocou mudanças profundas no
comportamento dos pesquisadores e até em as visão da ciência, cada vez menos
segmentada e mais aberta a uma visão da ciência, cada vez menos segmentada e mais
aberta a uma visão global. Por ter arrancado com a máxima tecnologia disponível, a
soja abriu caminho para o melhoramento de outras culturas, especialmente o trigo, o
milho e o feijão. E se por um lado desfez a lenda da inaptidão agrícola dos cerrados,
por outro ajudou a dar nova dimensão à bioquímica dos solos.
Já no início das atividades do grupo de Zé Sojinha no Instituto Agronômico, por volta
de 1950, havia técnicos que pesquisavam o uso de inoculastes na cultura da soja. As
descobertas em torno da fixação de nitrogênio por microorganismos do solo fizeram
da tcheca Johanna Döbereiner, contratada pela Embrapa de Seropédica, no estado do
Rio de Janeiro, uma das maiores estrelas da pesquisa agropecuária do brasil. Fala-se
em mais de US$ 1 bilhão quando se procura avaliar a economia de fertilizantes trazida
pela seleção de risórios feita pela equipe de Döbereiner para a cultura da soja (e da
cana-de-açúcar).
Independentemente do fato de ter contribuído para a redução dos custos de produção
da soja, esse trabalho é tão importante para a ciência em geral que em 1996
Döbereiner foi indicada por cientistas do Brasil e deu outros países para receber o
Prêmio Nobel da de Química. Seu trabalho silencioso deu novo status à pesquisa sobre
aspectos não vinculados aos chamados insumos modernos (sementes, adubos,
defensivo agrícolas e máquinas), naturalmente privilegiados pela influência norteamericana sobre a agropecuária brasileira.
Por exemplo: graças ao emprego do baculovírus no combate à lagarta da soja, de
acordo com a técnica desenvolvida a partir de 1983em Londrina pelo agrônomo
paulista Flavio Moscardi (Lucélia, 1949), cresceu no Brasil o uso do manejo biológico de
pragas. O baculovírus é usado em cerca de 10% da área da lavoura brasileira de soja. O
uso de métodos naturais de controle de pragas e doenças não se identificou apenas
como forma de baratear os custos de produção da soja, mas como forma de baratear
os custos de produção da soja, mas como uma reação ao abuso na utilização de
produtos químicos na lavoura. Também fruto de trabalho técnico realizado no CNPSo
pela pesquisadora Beatriz Correa Ferreira (Encruzilhada do Sul, 1949), a inovação mais
recente nesse terreno é o uso da vespinha no combate ao percevejo da soja
A APOSENTADORIA DO ARADO
Ao mesmo tempo em que intensificou o uso do arsenal tecnológico da agricultura
moderna – adubos, agroquímicos, sementes selecionadas, máquinas e diversos
sistemas de manejo -, a soja desencadeou uma virada para o emprego de novos
métodos, hoje identificados como parte da agricultura dita sustentável. Ao romper os
limites da pequena propriedade e ocupar lavouras mais amplas, a sojicultura levou ao
máximo a utilização dos instrumentos agrícolas de preparo e cultivo do solo. Provocou
o aperfeiçoamento do arado, gerando grades, subsoladores e escarificadores. Houve
um momento, na década de 70, em que a lavoura-modelo era aquela onde, antes do
plantio, o solo fica absolutamente exposto, sem vegetação ou torrões. O uso
predatório do solo por essa agricultura de vanguarda gerou uma onda crítica que
progrediu apesar de navegar contra os interesses imediatos da indústria de máquinas
e implementos. Essência no exngurgamento dos solos gelados dos países europeus, de
onde foi importado pelo Brasil no século 19 como o símbolo da agricultura moderna, o
arado começa a ser dispensado como um instrumento nefasto, responsável pela
depreciação do principal patrimônio do produtor – a terra. As perdas de solo
verificadas em virtude do sistema convencional de preparo da terra abriram caminho
para inovações que levaram ao outro extremo - o desenvolvimento da técnica do
plantio direto. Se antes a recomendação era para resolver ao máximo a terra, agora é
o contrário: quanto menos mexer, melhor.
O plantio direto (no-tillage) foi desenvolvido nos Estados norte-americanos da Carolina
do Norte, Mississippi e Ohio nos anos 60. No Brasil iniciou-se em 1972 com o técnico
Milton Ramos em Ponta Grossa, registraram-se experiências pioneiras do agricultor
Nonô Pereira. Nesse mesmo ano o produtor Herbet Bartz importou máquina de
plantio direto dos Estados Unidos para sua fazenda em Rolândia, onde a multinacional
Zeneca (ex-Imperial Chemical Undustries/ICI) montou uma experiência-piloto para
testar o uso de herbicidas (dessecantes vegetais, segundo a nova terminologia
química) no controle de invasoras (ex-plantas daninhas).
A mudança foi lenta nos anos 70 e 80, mas a mecanização intensa se reduziu à medida
que ficaram claras as perdas de solos medidas pelos técnicos. No ano agrícola 1976/77,
em latossolo roxo distrófico com 7% de declive, no Rio Grande do Sul, constatou-se
que lavoura de soja cultivada pelo sistema de plantio convencional no verão – quando
há chuvas torrenciais – teve perda de 9,9 toneladas de terra por hectare, contra 2,7
t/he em lavoura de soja formada sobre a palha de trigo, também pelo sistema
convencional. Quando o trigo foi cultivado pelo sistema convencional e a soja pelo
método de cultivo reduzido, a perda caiu para 1,24 t/he. Com plantio direto a perda
caiu para 0,10 t/he. Ou seja, a erosão chega a praticamente zero com o plantio direto,
que se impôs inicialmente como forma de defesa patrimonial e não como sistema de
produção.
Com base em diversos testes, o agrônomo Arcangelo Mondardo, do Iapar, pode
escrever em A Soja no Brasil (Campinas, 1981): “Segundo o ponto de vista do controle
de erosão e preservação do solo, deve-se optar por sistemas de preparo que induzam
às seguintes condições:
a) Incorporação dos resíduos culturais, ou sua permanência na superfície do solo;
b) Redução das operações de preparo ao mínimo necessário para dar condições
ao plantio e à germinação das sementes;
c) Preservação da estrutura e agregados do solo, evitando preparos com solo
muito úmido ou seco;
d) Uniformização da área.”
ADEUS A MONOCULTURA
Na década de 90, agrônomos e produtores começaram a superar rapidamente as
defesas contra o sistema de plantio direto. “Não podemos mais perder solos”,
sintetiza o gaúcho José Ruedell (Santo Cristo, 1950), agrônomo da Fundação de
Pesquisa e produtividade da Fecotrigo. Em Cruz Alta, onde vem conseguindo
colocar em prática as idéias pregadas por José Lutzenberger, o líder ambiental mais
conhecido no Brasil. Em algumas regiões do norte do Rio Grande do Sul, com terras
arenosas em declive, as enxurradas de verão chegaram a carregar recém-cultivada,
além de sementes e adubos. Segundo Ruedell, a produção de apenas quatro
toneladas de cobertura morta reduz a praticamente zero a erosão. Além disso, a
manutenção de uma camada de cobertura vegetal diminui a evaporação de água,
contribuindo para manter no solo uma reserva de umidade útil para o
desenvolvimento das plantações.
As descobertas sobre o plantio direto têm não apenas fundo ecológico, mas base
econômica. Além de reduzir em 40% o uso de sementes, esse sistema abate em
40% o número de horas trabalhadas com trator. Segundo a Fundação ABC, de
Ponta Grossa, em 10 anos o plantio direto conseguiu uma redução de 28% no custo
fixo da produção de soja. Entretanto, por implicar numa redução de uso de adubos,
o receituário técnico oficial ainda não incorporou totalmente as recomendações do
plantio direto.
Já presente em 30% das lavouras gaúchas e em fase de introdução no cerrado, o
plantio é o alvo de diversas pesquisas conduzidas por técnicos aliados e produtores
e fabricantes de implementos agrícolas. Em 1978 a Embrapa criou um setor de
mecanização visando desenvolver semeadeiras próprias para o plantio direto em
parceria com agricultores e indústrias de máquinas. Até então, antes do cultivo da
soja em campos de trigo, era prática comum a queima da palhada. “O pessoal
chegava a fazer sete gradeações para acabar com os torrões e completar o preparo
do solo para o plantio”, lembra José Denardin, Do Centro Nacional de Pesquisa de
Trigo, de Passo Fundo. Para coibir essa prática, os técnicos da Emater gaúcha
conseguiram que o Banco do Brasil retardasse a concessão de financiamentos aos
agricultores adeptos das queimadas. A campanha “Quem queima, se queima” foi
um marco da conscientização em torno da conservação do solo no norte do Rio
Grande do Sul.
O maquinário antes usado no preparo do solo foi adaptado para funcionar na
semeadura direta. Fábricas que trabalhavam com implementos de preparo do solo
perderam terreno ou se converteram em fábricas de semeadeiras. O plantio direto
assumiu ares indiscutivelmente vitoriosos em meados da década de 90. Ainda
assim, os técnicos se preocupam porque, se reduziu a erosão, a nova técnica de
plantio intensificou o uso de herbicidas.
Verdadeiros substitutos do arado, os dessecantes vegetais registraram uma
explosão de consumo. O Roundup, fabricado pela Monsanto, que vendia 65 mil
litros em 1993, passou de 1 milhão de litros em 1996. Em 20 anos, seu preço caiu
de US$ 25 para US$ 6 o litro. O maior controle ambiental impôs uma evolução
técnica que transformou esses agrotóxicos em substância biodegradáveis, com
menores riscos para a saúde humana e o equilíbrio ambiental. De qualquer forma,
reduzir o uso de agroquímicos continua sendo um alvo dos técnicos,
crescentemente sensíveis ao uso de métodos operacionais. O uso de calcário, por
exemplo, pode ser substituído pela produção de matéria orgânica, fruto da
integração de diversas culturas, inclusive a pecuária. “Sojicultor isolado não existe
mais”, afirma José Ruedell. Convencido de que, junto com o plantio convencional,
vai desaparecer também o maior mal trazido pela lavoura da soja: a monocultura.
“ALIMENTO DE POBRE”
A esse elenco de inovações tecnológicas deve-se somar o progresso feito na área
alimentícia. Na década de 90 começaram a cair as barreiras colocadas nas décadas
anteriores contra o uso da soja na alimentação dos brasileiros, que desenvolveram
o preconceito segundo o qual a leguminosa chinesa nunca seria mais do que
merenda insossa para escolares pobre ou suplemento para trabalhadores
subnutridos (Ital), de Campinas, nascido do IAC na década de 60, esmerou-se no
esforço para viabilizar subprodutos do grão. Teve sucesso técnico, mas comercia
não. Hoje, uma das vanguardas da pesquisa da soja está na Universidade Federal
de Viçosa, que tenta levar ao extremo o modelo de pesquisa financiada
diretamente pela indústria, Subsidiado pela Nestlé, o professor Maurílio Moreira
(1952) anunciou em meados da década de 90 ter chegado a uma variedade de soja
“sem sabor”, isto é, isenta do gosto provocado pela oxidação do ácido linolênico.
A difusão dessa loja especialíssima aguarda o desfecho do debate no congresso
brasileiro sobre a legislação de patentes tecnológicas. De qualquer forma, como as
conquistas genéticas obtidas em determinada área não têm o mesmo efeito em
outras regiões, cada centro de pesquisa precisa percorrer o mesmo caminho do
pesquisador pioneiro para chegar aos mesmos resultados – os quais serão válidos
apenas numa localidade ou região. Em Pelotas, por exemplo, o veterano Francisco
de Jesus Vernetti está procurando adaptar para a realidade do sul gaúcho as
descobertas de Maurílio Moreira, válidas para o contexto mineiro. Em Londrina,
Mercedes Carrão-Panizzi, José Marcos Mandarino e José Renato Bordignon forma
o núcleo encarregado pela direção da Embrapa de aprofundar a pesquisa sobre a
soja como alimento remédio. A tendência é aproximar-se da corrente
ultramoderna de pesquisadores que em outros países investiga o poder medicinal
da soja. A rica composição química da Glycine max a coloca como instrumento
fundamental na prevenção de alguns males contemporâneos como o câncer de
mama, a hipertensão arterial e o excesso de colesterol no sangue. Por isso, entre
outras coisas, é praticamente inimaginável o horizonte da investigação sobre a
soja.
UM SÍMBOLO DE SAÚDE
“È realmente a soja o alimento mais completo que a natureza deu ao homem”
(Afrânio do Amaral, médico, consultor da Organização Mundial da Saúde)
No segundo semestre de 1996 a soja voltou a Esteio como uma das estrelas da
maior festa gaúcha, a Exposição Internacional de Animais e Máquinas Agrícolas
(Expointer). Enquanto os peões demonstravam as qualidades de milhares de
animais e os fazendeiros conheciam novas máquinas e mil outras maneiras de levar
à frente as atividades rurais, a Glycine max brilhava nos bastidores, como lhe é
próprio: foi a protagonista central de um curso de culinária ministrado no estande
do Ministério da Agricultura. A equipe do Centro Nacional de Pesquisa da Soja, de
Londrina, que vem dando cursos semelhantes em exposições agropecuárias pelo
Brasil afora, ficou satisfeita com o resultado do trabalho em Esteio. Em sete dias,
eles ensinaram 80 pessoas a utilizar s soja na preparação de pães, biscoitos,
molhos e outras receitas próprias para o paladar humano.
O PARADOXO EM ESTEIO
Voltas que o mundo dá para chegar ao mesmo lugar: menos de 40 anos atrás, quase
nesse mesmo ponto onde agora se realiza a concorrida Expointer, a população de
Esteio e os viajantes da BR-116 torciam o nariz para o cheiro enjoativo emitido pela
primeira grande indústria de soja a operar no Brasil. A rejeição popular aos primeiros
derivados da soja (óleo e margarina) era tão grande que a fábrica, pertencente ao
grupo argentino Bunge y Born, colocou nas ruas um pequeno exército de
demonstradoras, com a missão de difundir receitas e vencer a barreira criada pela
ignorância.
Hoje, cem fábricas depois, somente um grande paradoxo poderia fazer com que o
Ministério da Agricultura voltasse ás origens com uma campanha artesanal para
promover uma matéria-prima em forma de óleo, margarina, gordura hidrogenada e
outros ingredientes, como a proteína texturizada e a lecitina.
O paradoxo adquiriu de um verdadeiro tabu alimentar. Ainda hoje um sem-número de
perguntas sem respostas atazana a paciência de autoridades, técnicos e empresário
incapazes de explicar por que o brasileiro se comporta de maneira tão ambígua em
relação à soja. À medida que abriu a cozinha aos produtos de industrialização da soja –
uma matéria-prima indiscutivelmente vitoriosa na alimentação nacional -, ele se
fechou ao consumo do grão em suas formas naturais. Estabeleceu-se assim um belo
desafio a vários ramos da ciência moderna, da agronomia à engenharia de alimentos,
passando pela medicina e a propaganda. Como lidar com um fenômeno que se
confunde até mesmo com a rejeição que se atingiu os imigrantes japoneses,
extremamente discriminados antes de conquistar o respeito dos brasileiros por suas
disciplinas e dedicação ao trabalho?
DIETA FORÇADA
Tanto em Londrina quanto em outros centros da Embrapa, como o de Tecnologia
Alimentar, em Seropédica, RJ, e até mesmo em outros locais onde se estuda o poder
nutricional da soja, os técnicos voltam sem querer à pregação dos anos 50, quando se
tentou colocá-lá à força, por meio de discursos e artigos, na dieta nacional. Naquele
tempo foi uma espécie de moda cívica recomendar soja.
O entusiasmo dos especialistas em alimentação nasceu da descoberta da rica
composição química do grão de soja. Em média, ele tem 40% de proteínas, 35% de
carboidratos, 20% de óleo e 5% de mineiras como ferro, zinco, manganês, potássio,
cobre, fósforo e cálcio. Possui praticamente todas as vitaminas, menos a A e a C. Em
quantidade, estima-se que a soja forneça três vezes mais proteína que os ovos, doze
vezes mais que o leite e duas vezes mais que a carne o feijão.
Além desses números extraordinários, contribuíram para a mitificação do poder
alimentício da soja duas histórias espalhadas pela literatura do pós-guerra. A primeira
dizia que o Japão invadiu a Manchúria na década de 30 para se apossar de estoques de
soja e de terras para o cultivo de leguminosa chinesa. A segunda afirmava que o líder
alemão Adolf Hitler só iniciou a guerra de 1939 depois de prover grandes estoques do
grão (coincidentemente, a primeira exportação de soja brasileira foi feita para a
Alemanha em 1938).
Talvez influenciado por essas narrativas, o sociólogo Gilberto Freyre, deputado
constituinte em 1946, chegou a pensar em alguma forma compulsória de consumo de
soja para combater a desnutrição das populações pobre no Brasil. A idéia não vingou.
Em 1955, a Organização das Nações Unidas para a agricultura e a Alimentação (FAO)
indicou o precioso grão chinês como a base alimentar dos povos da América Latina e
da África. Uma mesa-redonda realizada em 1956 na Secretaria da Agricultura de São
Paulo emitiu um documento que terminava assim: “Conclui-se pela necessidade de ser
incentivado o uso da soja na alimentação do brasileiro, inclusive através do
enriquecimento da farinha de trigo”.
PARA PORCOS E POBRES
Embora mais voltada para a difusão do cultivo visando ao abastecimento da indústria
de óleos vegetais, a Campanha da Soja criada em 1951 pelo agrônomo José Gomes da
Silva no Instituto Agronômico de Campinas visou também ensinar o povo a consumir a
leguminosa. Tanto que se articulou com a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
onde se destacaria, nesse sentido, o trabalho do médico, especialista em nutrição
humana, José Eduardo Dutra de Oliveira (São Paulo, 1927). Preocupado com o grave
quadro de desnutrição na zona rural da região mogiana, Dutra de Oliveira pesquisou
diversas maneiras de introduzir a soja em 68 municípios da região de Ribeirão Preto,
inclusive na primeira festa da soja em São Joaquim da Barra, que foi a pioneira no
Brasil”, lembra Dutra. A quem argumentasse que a soja não tinha gosto, ele citava o
exemplo do feijão, leguminosa extremamente popular no Brasil e em alguns países da
América Latina. “Quem dá gosto ao feijão é o tempero”, dizia, convencido de que era
tudo uma questão de tempo.
Ao invés de ajudar, a repetição de mensagens patrióticas sobre a riqueza alimentícia
da soja parece ter contribuído para reforçar a prevenção despertada pelo cheiro
característico dos primeiros óleos e margarinas. As tentativas de impor a “feijoada de
soja”, a oferta de papas nauseabundas e outros piedosos esforços serviram para
fortalecer a idéia popular de que, com seu “cheiro de sabão” ou seu “gosto de mato”,
o grão oriental poderia ser uma excelente comida para porcos, mas jamais serviria
como alimento humano, nem mesmo para os pobre.
ALIMENTO E REMÉDIO
Nos cursos, folhetos e demonstrações que faz em nome da Embrapa para técnicos em
alimentação e o público em geral, o bioquímico industrial José Marcos Gontijo
Mandarino (Belo Horizonte, 1959), do CNPSo, costuma bater na velha tecla: o Brasil
está desperdiçando a possibilidade de alimentar melhor sua população. Para
Mandarino, a soja foi introduzida de forma negligente em muitas campanhas de
alimentação infantil. A distribuição de leite ou sopas mal feitas, por funcionários
públicos mal treinados, usando ingredientes de má qualidade ou mal armazenados,
deu ao produto uma imagem que não corresponde às possibilidades culinárias e
medicinais da Glycine max , uma planta nutracêutica (capaz de servir como alimento o
remédio). Grãos quebrados, ardidos ou machucados resultam sempre em produto
ácido ou azedo. A má fama é, portanto, justificada, pois ninguém, muito menos as
crianças, gosta de comer coisa ruim.
A contradição continua de pé, mas já há algumas exceções. A mais notória é o leite ou
extrato de soja, aceito como substituto do leite de vaca na dieta de crianças ou adultos
com intolerância à lactose (açúcar do leite animal). Sabe-se que na dieta dos lactentes
(dez zero a seis meses) o leite de soja suplementado com metionina, vitaminas e
minerais equivale ao leite da vaca.
Ainda existem dificuldades no preparo do leite vegetal, em virtude de falta de
conhecimento sobre determinadas propriedades físico-químicas da soja. Por isso a
Embrapa retomou como propriedade deste final do século a campanha agora chamada
“Soja da Mesa”. A equipe de Londrina é pequena: dois bioquímicos (um deles, o
mineiro Mandarino), uma agrônoma, uma tecnóloga e uma cozinheira; mas a missão é
nobre: desfazer a má imagem da soja e firmá-la como ingrediente central na
alimentação popular.
REFRIGERANTE NUTRITIVO
A primeira vez que se tentou industrializar o leite de soja no Brasil foi em 1959,
quando uma indústria de laticínios de Mococa cedeu suas instalações ao IAC para um
teste de produção de leite em pó. Foi essa uma das primeiras tarefas da nutricionista
Lígia Pereira (Rio Claro, 1930), recém-contratada para ajudar na Campanha da Soja. O
teste deu certo, mas o pó não prosperou por insuficiência de mercado. Apenas
curiosos, praticamente, demonstravam interesse pelo produto.
Em 1967, mesma indústria mocoquense lançou o Solein, um composto de leite de vaca
e leite de soja (30%) embalado em tetrapak. Nessa experiência a fábrica foi orientada
tecnicamente por Roberto Hermínio Moretti (São Roque, 1940), agrônomo contratado
em 1961 para trabalhar na seção de tecnologia de alimentos do IAC, embrião do
Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), criado no final da década de 60. Para extrair
o leite, Moretti usou o método chinês de moagem a frio com água e posterior
aquecimento em autoclave. O Solein também não prosperou.
Em 1969, enquanto o Ital começava em Campinas as pesquisas sobre o
aproveitamento da soja como alimento humano, Moretti mudou-se para o Rio de
Janeiro. Contratado pela Coca-Cola, interessada em desenvolver bebidas nutritivas
para os países do Terceiro Mundo, montou num bairro da zona norte da cidade uma
planta-piloto de beneficiamento de soja. Os grãos eram macerados por três horas a
60ºC e depois moídos. Obtido por centrifugação, o leite era em seguida aromatizado
com sabor chocolate ou caramelo, enriquecido com nove vitaminas, esterilizado a
121ºC, embalado em garrafas de 200 ml com o nome Saci e vendido a Cr$ 0,5º (o
mesmo valor da Coca) na zona norte do Rio de Janeiro.
Durante dois anos o refrigerante vendeu o equivalente a 8% do consumo de Coca-Cola
naquela zona carioca e abriu espaço para o desenvolvimento de outros produtos. Um
deles foi o Samsom, produzido a partir da caseína do leite bovino e lançado em
Paramaribo, no Suriname. Outro foi o Taí, um refrigerante com proteína de soro de
queijo e gás carbônico, mais tarde introduzido no México com o nome de Samsom.
INGREDIENTE SECUNDÁRIO
Apesar de contar com o apoio de nutricionistas – inclusive do professor Dutra de
Oliveira, a quem era enviadas amostras para testes de avaliação na Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto -, a idéia das bebibas nutritivas da Coca-Cola também não
prosperou no Brasil. Sem acesso ao consumidor pelo caminho normal da venda no
varejo, restou à Coca a alternativa oficial. No final da história, a empresa desativou seu
equipamento de produção de leite de soja e passou a fornecer um pó chamado Saci
para as campanhas de merenda escolar iniciadas na década de 70. Para se abastecer, a
Coca se tornou compradora de proteína isolada em pó, produto fabricado desde 1970
pela Samrig em esteio.
Elaborado a partir do farelo (subproduto da extração do óleo) – do qual saem também
a farinha desengordurada (com 50% de proteína) e o concentrado (com 70% de
proteína) -, o isolado (90% de proteína) é um marco da inserção da soja como
ingrediente secundário na indústria da alimentação. Ele foi lançado comercialmente
nos Estados Unidos em 1966, na forma de proteína vegetal texturizada (PVT). No
Brasil, entrou em 1975, quando algumas fábricas importaram equipamentos para
produzi-la.
Começou aí, em meados da década de 70, a brilhante carreira da soja como passageira
de dezenas de fórmulas alimentícias. Quem lhe deu o passaporte foi o próprio governo
federal, em reunião solene do Conselho de Desenvolvimento Econômico, em 1976,
quando o presidente Ernesto Geisel (1974/79) acatou exposição de motivos de quatro
ministros (Agricultura, Fazenda, Saúde e Indústria e Comércio) defendendo a adição de
5% da farinha da soja à farinha de trigo. Depois, por decreto de 1978, foi autorizada a
adição de proteína de soja em produtos cárneos. Até 3,5% do peso dos produtos, é
desnecessária a menção no rótulo. Se constar na embalagem, a adição pode ir até
22%. Por coincid~encia, é mais ou menos essa (em torno de 21%) a proporção do
farelo de soja nas rações para animais, em que o ingrediente principal (na proporção
de 65%) é o milho.
Hoje, em suas várias formulações, a proteína da soja está presente em todos os
produtos da panificação industrial, nos embutidos e enlatados, em doces e salgados,
nos hambúrgueres e nas sopas prontas, nos achocolatados e nos matinais, nos molhos
e nas maioneses, nas coberturas e nos recheios, nos iogurtes e nos congelados. Sem
falar das rações.
O sucesso dos derivados protéicos da soja vem de suas 15 diferentes propriedades
funcionais: solubilidade, controle de viscosidade, geleificação, coesão e adesão,
elasticidade, emulsificação, absorção de água, adsorção de óleos e gorduras, adsorção
e ligação de flavorizantes, espumabilidade, formação de filmes, formação de fibras e
controle de cor. Substituta de amidos e químicos usados antigamente, é a proteína de
soja que dá estabilidade e durabilidade aos embutidos e outros alimentos
industrializados. Sua mais surpreendente habilidade é que ela “pega” qualquer sabor
que se queira adicionar aos alimentos. Um paradoxo num grão discriminado
exatamente por ferir o olfato e o paladar humanos.
BARREIRA DO SABOR
O organismo público que mais investiu no desenvolvimento de produtos à base de soja
foi o Ital. Já no início da década de 70, quando a engenharia de alimentos engatinhava
no Brasil, seus técnicos criaram um equipamento para produzir o “extrato calóricoprotéico” (leite de soja), testado pela primeira vez em 1975 numa escola de MonteMor, pequena cidade próxima de Campinas. Entre 500 crianças de 6 a 14 anos a quem
foi servido em sete sabores diferentes (chocolate, baunilha, groselha, banana,
morango, coco e abacaxi), o leite chamado Vital, enriquecido com vitaminas e
minerais, obteve um índice de aprovação de 72%. Em 1977 o Ital apresentou o Vital
pasteurizado, de menor custo. Com base nele chegou a ser lançado em Campinas o
leite Sojal. Apesar de ser mais barato do que o leite de vaca, não prosperou.
Manteve-se a escrita: sem demanda comercial, os produtos da ital só receberam
encomendas oficiais. No governo de Paulo Egydio Martins (1975-78), foi servido a
gestantes atentidas pela Secretaria da Sáude o Gestal, um produto à base de proteína
de soja. Apesar dos bons resultados como alternativa alimentícia – tanto que deu
grande notoriedade à nutricionista Lígia Pereira, uma das pioneiras do Ital -, a
experiência do Gestal não foi à frente. Em seu currículo consta que chegou a ser
testado no Chile.
Depois de voltar em 1973 para Campinas, onde passou a selecionar na Faculdade de
Enegenharia de Alimentos, o engenheiro Roberto Hermínio Moretti só mexeu
novamente com soja em 1977, quando foi procurado pela esposa do governador
Garcia Neto, do Mato Grosso. Ela precisava de uma máquina grande para atender às
necessidades de um grupo de senhoras rotarianas de Cuiabá que vinham produzindo
leite de soja em casa, em liquidificadores, para ajudar na alimentação dos pobres da
cidade. Moretti, que ia com frequência ao Mato Grosso como consultor do frigorífico
montado ainda em 1977 no conjunto habitacional Grande Terceiro, de Cuiabá.
Produzia 100 litros por hora com o mesmo processo desenvolvido antes para a Coca. O
protótipo foi feito pela Indústria Campineira de Máquinas Agrícolas 9ICMA), que
chegou a montar, em sociedade com Moretti, uma empresa chamada Indústria
Campineira de Máquinas Alimentícias (ICMAL). Não foi adiante.
A mesma máquina, agora com capacidade para produzir 200 l/h, foi desenvolvida em
1979 por Moretti nas instalações da Righetto, uma indústria de aparelhos de ginásticas
de Campinas. Seus componentes essenciais eram: para o aquecimento da soja, uma
cuba de pia; como centrífuga, o cesto de uma máquina de lavar roupas Brastemp; no
trecho final, ficavam os acessórios de pasteurização do leite, adição de sabores e
embalagem em sacos plásticos. Com um quilo de soja se faziam oito litros de soja.
VACA MECÂNICA
O primeiro desses equipamentos foi instalado numa cadeia desativada de Campinas.
Na inauguração, o prefeito Francisco Amaral deu-lhe o apelido de “vaca mecãnica”. Foi
um sucesso tão grande que a “vaca” chegou a ganhar, naquele ano, o prêmio dado
pelo governador paulista Paulo Maluf ao “maior invento brasileiro”. A Partir daquele
momento, a vaca de Moretti fez uma notável carreira pública. O próprio Maluf deu
uma de presente para o então ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Fidel Castro
comprou três para usar em Cuba, onde, segundo consta, a robusta vaca campineira
teria sido aperfeiçoada. O ministro Angelo Amauri Stabile, da Agricultura, doou vacas a
vários municípios do Nordeste do Brasil.
Esse esforço de popularização foi prejudicado pela franqueza do presidente João
Batista Fiqueiredo (1980-85). Ele experimentou a leite em Brasília e o qualificou como
“horrível” durante uma cerimônia inesquecível. Moretti estava lá e lembra. A vaca foi
instalada às pressas numa unidade da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Duas
horas antes da inauguração, foi colocada em operação com o motor girando ao
contrário. O pessoal da LBA não tinha treinamento operacional. Entre os industriais da
soja, ficou suspeita de que tudo tivesse sido arado pela indústria de laticínios para
“denegrir” a imagem do pretenso concorrente.
Apesar da inesperada reação de Figueiredo, a nova vaca mecânica fez carreira. Em
1980, em Campinas,ela deu origem a uma indústria chamada Vanguarda mecânica,
liderada por Moretti, que entrou com 50% do capital. O restante foi dividido em parte
iguais entre os dois ex-estudantes que ajudaram, os engenheiros Sergio Romeiro e
José Roque Lopes Barioni, registrados como co-autores do invento. Moretti afastou-se
da sociedade logo no começo, mas a indústria prosperou, chegando a ter 30
empregados e a expor numa feira industrial na Índia.
Por um preço equivalente ao de um Fusca, vendeu dezenas de máquinas para
prefeituras de diversos lugares do Brasil. Um dos locais de maior sucesso foi na cidade
paulista de matão, onde a distribuição de leite de soja contribuiu para reduzir o índice
de mortalidade infantil e serviu de exemplo para a formação de um consórcio (de
produção de leite de soja) reunindo oito municípios vizinhos. A experiência rendeu um
livro (Os meninos de Matão), escrito pelo jornalista Gê Marques e publicado em 1984
pela editora Max Limonad, São Paulo.
GOTAS NO OCEANO
Com pequenas, vaca mecânica passaram a ser fabricadas em outras cidades brasileiras.
Sua principal base técnica é um esrudo norte-americano do final dos anos 60 segundo
o qual o odor e o sabor característicos da soja vêm de enzimas que podem ser
intavidas pelo calor (fervura, cozimento ou torrefação). Daí resultaram diversos
métodos de extração do leite, variando-se a temperatura e o tempo de cozimento. As
enzimas ficam inativas e partir de cerca de 80ºC. O excesso de temperatura,
entretanto, pode endurecer as proteínas e eliminar as vitaminas. É preciso ainda
outros cuidados, como o de conbater a carga microbiana que acompanha todo
alimento. Vem daí o uso da pasteurização.
Apesar de todas essas cautelas, a vanguarda campineira das vacas mecãnicas entrou
em dificuldades e foi desativada depois de se tornar ré de processos juduciais por
intoxicação alimentas de escolares. Entretanto, dezenas de vacas da marca Vanguarda
continuam na pioneira São Joaquim da Barra, onde a prefeitura distribui diariamente
mil saquinhos de leite e dois mil pãezinhos à base de soja.
Quando o Ital estava ainda no início de suas pesquisas, chegou a Campinas em 1972,
para trabalhar nas novas instalações da indústria de ordenhadeiras mecânicas
Westphalia, o engenheiro mecânico Vilmar Bautista Urrutia (Bagé, 1925). Formado em
Porto Alegre no tempo em que praticamente todas as enzimas da soja eram
conhecidas pelo nome genético de sojina.
Especialista em ordenharia mecânicas – na década de 60 criou em Porto Alegre uma
com marca Guacho -, Urrutia trabalhou em Campinas sem jamais se envolver com os
engenheiros do ital ou da Unicamp.
Ao se aposentarm, em 1980 voltou a mexer com um velho projeto que o perseguia
desde o tempo de estudante: uma máquina produtora de leite de soja para bezerros
machos, desmamados pela pecuária intensiva.
Patenteada em 1981 como “tanque automático para maceração de soja”, a vaca
mecãnica de Urrutia, originalmente voltada para a alimentação animal, tornou-se apta
a extrair leite de soja para consumo humano em meados da década de 80, quando o
inventor lhe aplicou algumas adaptações. Seu maior diferencial em relação às outras
vacas é um descascador que retira o revestimento de celulose do grão de soja antes do
processamento convencional.
Premiada pela Federação das Indústrias do Paraná e pela Sociedade Nacional de
Agricultura, a vaca de Urrutia é fabricada em Londrina pelaa Ordepar, pequena
indústria pertencente ao seu filho, Cleverland Brito Urrutia (Porto Alegre, 1948).
Cleverland chegou a exportá-la para o Zaire e o Peru, mas o seu principal mercado
ainda são as prefeituras municipais que continuam empenhadas em programas de
alimentação infantil. Apenas no Paraná, os ténicos do CNPSo calculam que 70
prefeituras mantêm programas de distribuição de leite de soja extraído por vacas
mecânicas. Em Rolândia, onde se faz um trabalho citado como exemplar, uma vaca da
Ordepar produz mil litros de leite por dia. Com os resíduos fabricam-se pães vendidos
na cidade por meninos de rua. Gotas d’água no oceno de car~encia alimentares da
população brasileira.
O TABU DE PÉ
Em plena década de 90, o tabu ainda não foi quebrado. O chamado complexo
industrial da soja, em suas cem unidades de esmagamento espalhadas principalmente
pelos estados do Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, os dois Mato Grosso,
Santa Catarina, Minas Gerais e Bahia, processa pelo menos 20 milhões de toneladas de
grãos por ano. A grosso modo, o Brasil exporta dois terços do farelo de soja que
produz e um terço do óleo. De uma forma ou de outra, segundo dados da Associação
Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), entram na cadeia nacional de
consumo pelo menos 5,3 milhões de toneladas de farelo (fonte de proteínas) e 2,5
milhões de toneladas de óleo (fonte de calorias) – matérias-primas manipuladas por
gigantescos conglomerados industriais que se moveimentam da lavoura à exportação
e operam com grande apetite no atacado e no varejo, dentro do país.
Ainda assim, salvo em momento exepcionais, como nos laçamentos de óleos ou
margarinas – na década de 80, a atriz Sônia Braga (de “Gabriela Cravo e Canela”)
chegou a fazer campanha na tv por uma marca de forno e fogão -, a soja não brilha
como estrela nas mesas, tal qual acontece com as carnes ou os macarrões.
Coadjuvante da indústria de alimetos, é sempre um complemento que pode estar os
molhos ou nos temperos. O próprio leite de soja também nunca é absoluto: ou
aparece misturado ao leite de vaca (como nos casos do dietético Bónus produzido
desde 1986 pela Nestlé ou do misto Hobba lançado em 1989 em Porto Alegre por uma
parceria entre olvebra e indústria de laticínios Corlac) ou precisa incorporar sabores
especiais para ser ingerido (como acontece com o SayMilke lançado pela Olvebra na
década de 80 com base em tecnologia desenvolvida na Calômbia).
O grande problema dos leites em pó é o custo. Para produzi-los é necessário adicinar
água ao grão para separar o leite. Em seguida, é preciso retirar a água para reduzi-lo a
pó. “Com tal custo industrial, comom competir com o leite de vaca?”, pergunta o
professor Moretti, da Unicamp. Para ele, o leite de soja está fadado a ser sempre um
alimento de fabricação artesanal, para consumo doméstico ou de pequenas
cominidades. As indústrias de leite de soja o encaram ainda como “produto do futuro”.
EM BUSCA DA SAÚDE
Um dos osbtáculos ao consumo natural de soja no Brasil é que aqui, por razões de
mercado e interesse industrialm deu-se ênfase absoluta á produção de grãos ricos em
óleo. No passado, em todos os centros de experimentação e pesquisa, e sobretudo em
Campinas, foi praticamente marginal o esforço para selecionar variedades com baixos
teores de componentes desagráveis ao olfato ocidental.
A pesquisa de variedades mais palatáveis ao paladar humano se tornou realmente
importante na década de 80, quando a Universidade Federal de Viçosa iniciou um
programa que depois obteve financiamento da oficial Finep e subsídios da
multinacional alimentícia Nestlé. No CNPSo, em Londrina, a Embrapa ataca os velhos
problemas de sabor da soja por duas vias – a culinária e a agronômica. A visitantes do
centro, é costume oferecer os produtos preparados pela sua cozinha experimental,
que aceita convites para demonstrações e cursos como ocoreu em Esteio-96.
Com mestrado na Universidade da Flórida, a agrônoma Mercedes Concórdia CarrãoPanizzi (Passo Fundo, 1953) estuda variedades de soja compatíveis com os objetivos do
programa da Embrapa denominada Soja na Mesa. Até agora concluiu que a BR-36,
cultivada no Nordeste, é a melhor nesse aspecto porque tem baixo teor de
isoflavonóide, responsável pela adstringência da soja. A própria pesquisadora admite,
entretanto, que ainda é preciso algum tempo e muito trabalho até se chegar àquela
soha graúda (grãos com mais de 20 gramas), com mais açúcar e mais amido, muito
usada para fazer tofu, misso e edamami, um tira-gosto popular no Japão, onde o
consumo direto da soja vegetal (assim chamada porque se colhe ainda é verde) é
estimado em 800 mil toneladas por ano. Nos Estados Unidos já estão cultivando essa
soja para exportar. No Brasil, somadas todas as formas de consumo direto, calcula-se
que o total não represene sequer 1% da produção brasileira.
SABEDORIA ORIENTAL
Boa parte desse consumo é garantido pela colônia de origem japonesa (mais de um
milhão de pessoas, principalmente no estado de São Paulo) e por crescentes levas de
consumidores dos chamados produtos naturais. Ambas as correntes têm em comum a
preocupação com a saúde, o bem-estar e a aparência física. Em outras palavras, parece
que, via soja, o Ocidente tenta absorver alguma coisa da milenar sabedoria oriental.
Entre as mulheres ocidentais dissemina-se hoje a suspeita de que a ausência de
celulite na maioria das japonesas pode estar associda ao consumo regular de derivados
da soja. Um dos mais conhecidos é a lecitina, vendida em cápsulas em lojas de
produtos naturais. Subproduto da refinação do óleo de soja, com aparência
semelhante à do mel de abelha, a lecitina é rica em fósforo e tem um papel importante
no metabolismo das células animais. Ajuda a dispersar os depósitos de materiais
graxos e de colesterol no roganismo e previne a arteriosclerose.
O uso muito recente da soja na alimentação humana ocidental está provocando um
surto de pesquisas sobre as propriedades físico-químicas da Glycine max. Faz quase 30
anos que se descobriu que a lipoxigenase, responsável pelo cheiro rançoso da soja,
pode ser inativada pelo calor. A charada das enzimas começa a ser desfeita. Um dos
objetivos centrais das atuais investigações científicas procura desvendar o mistério dos
chamados fatores antinutricionais da soja.
FATORES ANTINUTRICIONAIS
O mais importante fator antinutricional da soja é o inibidor da tripsina Kunitz, enzima
secretada pelo pâncreas e que atua sobre as ligações peptídicas durante a digestão. Se
a tripsina é inibifda, as proteínas não são abosrvidas. A consequência mais conhecida,
além da ingestão, é a hipertrofia do pâncreas. Vem daí, aliás, a crença popular de que a
soja faria mal à saúde.
A descoberta de que as enximas podem ser inativadas pelo calor foi muito importante,
mas recentemente a pesquisa mudou de sinal, ao se descobrir que o inibidor de
tripsina pode ser importante na prevenção de algumas formas de câncer. Ann
Kennedy, da Escola de Medicina da Filadélfia, fez testes com ratos e chegou à
conclusão de que a enzima pancreática atua como um quimiopreventivo. É um achado
tão significativo que ela foi autorizada a tirar a prova em seres humanos. É prematura
qualquer conclusão, mas ninguém esquece que uma enzima inibidora da protease faz
parte do promissor coquetel de medicamentos aplicado em 1996 aos doentes de Aids.
Outros problema da soja são as saponinas, presentes também na uva, no timbó e na
popular buchinha. Elas dão amargor à soja. Acredita-se que sejam capazes de romper o
tecido das hemácias, responsáveis pelo transporte do oxigênio na corrente sanguínea.
Sua função está sendo melhor investigada, embora se acredite que tenham pouco
efeito sobre os seres humanos.
O terceiro fator antinutricional da soja são os isoflavonóides, antigamente conhecidos
por hormonóides e hoje chamados de fito-estrógenos porque sua fórmula química é
igual ao estrógeno, usado no tratamento de câncer de próstata, mama e útero. Foi
baseado nesse fator que, há alguns anos, um médico-veterinário gaúcho ganhou
notoriedade ao afirmar que a soja emascula as mulheres e efemina os homens. Os
principais isoflavonóides da soja são a daidizina, a genistina, a daidizeína e a genisteína
– os dois últimos com ação anticancerígena comprovada em seres humanos. Eles
reduzem a perda de cálcio das muheres após a menopausa, o que ajuda na prevenção
à osteoporose. O CNPSo está começando a trabalhar com o misso e o tofu, dois
fermentados, porque neles os isoflavonóides genisteína e dadizeína aparecem mais. O
mesmo acontece no leite preparado à moda oriental e na farinha integral.
PODER MEDICINAL
Reconhecidas intuitivamente pelos usuários orientais, algumas dessas qualidades são
de domínio médico desde meados do século 20. Nesse aspecto vale a pena lembrar o
trabalho do médico Afrânio do Amaral, (Belém, 1895-São Paulo,1983), que fez carreira
no serviço público brasileiro e chegou a dirigir o Instituto Butantan, em São Paulo, na
década de 30. Especialista em saúde pública, ele escreveu artigos memoráveis sobre a
importãncia da soja no combate a infecções, nas dietas de emagrecimento, na
normalização do funcionamento intestinal, na prevenção da gota e na redução da
tensão arterial. Consumidor de soja em casa, Amaral era tão brilhante que Gomes da
Silva o convidou para escrever o capítulo sobre nutrição de A Soja no Brasil, livro
preparado na década de 50 e que acabou não sendo publicado.
Há, claro, pesquisas mais recentes. Em março de 1984, depois de estudar os hábitos
alimentares de 88 velhos com mais de 100 anos da província de Hubei, médico
chineses concluíram que somente a soja poderia responder por tamanha saúde. A
leguminosa, disseram eles, contém elementos essenciais para a longevidade humana.
Seu elevado teor protéico faz dela um auxiliar na terapia de processos infecciosos,
atuando como preventivo do câncer. O baixo teor de sódio ajuda a baixar a pressão
arterial. O alto teor de potássio é bom para o regime de emagrecimento. Fibras
ajudam no trabalho intestinal. O pouco açucar a torna recomendável para diabéticos.
Nunca a medicina foi tão longe quanto agora. Trabalhos científicos apresentados em
setembro de 1996 no segundo simpósio internacional de estudos sobre a soja e saúde,
em Bruxelas, provoram pela primeira vez que os descendentes de imigrantes
japoneses que assimilaram os hábitos alimentares americanos estão contraindo
doenças crônicas (como câncer de mama) de baixo registro no Japão. Atribui-se o
problema à redução da soja na alimentação dos nisseis dos Estados Unidos.
Certamente não é por mera coincidência que os chefes de famílias japonesas
estabelecidas no Brasil continuam recomendando aos seus descedentes o consumo de
tofu e misso. Ambos, dizem os mais velhos, são uma garantia de saúde.
LICÕES DE UMA REVOLUÇÃO
Quando Glycine max pisou pela primeira vez em solo brasileiro, (supõe-se que) em
1882, o Brasil tinha a população da Argentina de hoje e sua economia repousava sobre
atividades primárias, para não dizer primitivas – muita cana, bastante café, um pouco
de algodão, alguma pecuária e um resto de ouro.
E assim foi durante décadas, a soja ficando restrita às hortas dos imigrantes no interior
paulista a ás roças dos colonos europeus da zona missioneira do Rio Grande do Sul. Os
asiáticos a comiam. Os europeus a davam aos porcos. Nas escolas agrícolas, os
professores não lhe poupavam elogios. Economicamente, era pouco mais do que zero.
Desde o princípio a leguminosa chinesa rolou sobretudo nas mãos dos estrangeiros
que viviam entre nós. Em 1928, quando o brasil embarcou, em Porto Alegre, a primeira
carga de grãos de soja – provisão para uma Alemanha pronta para a guerra -, delineouse uma vocação para o mercado externo. A aptidão como matéria-prima agroindustrial
só seria explorada um pouco mais tarde, nos anos 40, quando algumas fábricas
começaram a admitir a hipótese de adicionar óleo de soja aos “óleos graxos” de
origem vegetal produzidos principalmente no estado de São Paulo para atender aos
chamados “paladares exigentes” ou a quem tinha problemas de saúde por causa das
gorduras usadas no Brasil, principalmente banha de porco.
A primeira lata de óleo de soja produzido no Brasil, no princípio da década de 50, teve
o nome Santa Rosa, em homenagem à cidadezinha gaúcha onde a vaca vegetal chinesa
obteve a melhor acolhida. E assim começou a se cumprir um sólido destino. O
grãozinho oriental ajudou o Brasil a acordar de um sonho litorâneo de 400 anos e o fez
sair em marcha para o oeste e para o norte.
Inicialmente a cavalo no trigo, depois pelas suas próprias forças, o que a soja fez de
mais significativo foi ocupar produtivamente o cerrado, fincando em solo do Brasil
Central as raízes de uma nova civilização.
Estado da Soja, capital Chicago.
A corrida da soja espalhou pelo Brasil milhares de colonos de origem européia-gaúcha
que saíram do Sul atrás de terra barata e receberam do governo formidável estímulo
para a expansão da fronteira agrícola. Abrir estradas, implantar lavouras e fundar
cidades tornou-se espécie de missão sagrada dos sulistas adeptos entusiastas da
agricultura mecanizada.
O ciclo da soja foi tão rápido e já em 1982, por ocasião fim do “milagre econômico”
brasileiro, houve quem dissesse que não tinha sido bom. No Sul, onde se estabeleceu
um debate sério, concluiu-se que ela foi boa para poucos e ruim para muitos. Como
uma espécie de menina dos olhos das autoridades econômicas do regime militar
vigente no período 1964/1985, a soja tornou-se um ente diferenciado no meio agrícola
brasileiro. Apesar de embalada por uma certa mística de redentora dos famintos –
para o que muito contribuiu o empenho de técnicos como José Gomes da Silva na
difusão do poder nutricional da soja -, ela marcou o fim do romantismo na exploração
da terra. A agricultura colonial de subsistência morreu nas garras da mecanização
imposta pela lavoura sojeira.
A soja deu um novo corpo à agricultura brasileira, fortaleceu e diversificou a
agroindústria, sustentou a ampliação da suinocultura e da avicultura, motivou a
modernização da infre-estrutura de transporte e modificou hábitos alimentares.
A soja alimentou a esperança de milhões de pequenos agricultores e depois, com
cueldade até, mostrou que na terra é preciso ser profissional para ter competividade.
Sob o império da soja, o arado, símbolo da agricultura, atingiu o ápice e entrou em
decadência. A revolução da soja impôs as técnicas de semeadura direta nos campos
enquanto nas cidades deu asas a um fenômeno internacional conhecido por
agribusiness.
Em resumo, a soja propiciou uma dupla modernização do Brasil. Primeiro, fez este país
voltar-se para dentro de si mesmo, iniciando (sem o menor respeito ambiental, é bom
lembrar) a exploração de grandes regiões do interior, especialmente nos cerrados do
Centro-Oeste. Por outros lado, a soja obrigou o Brasil a se organizar melhor para
operar eficientemente no mercado internacional. Nesse duplo movimento, um para
dentro, outro para fora, yin e yang, o rico grãozinho nativo da Manchúria mudou o
curso da agricultura brasileira.
SÍNTESE CRONOLÓGICA DA HISTÓRIA DA SOJA NO BRASIL
1882 – Registro do primeiro plano Bahia.
1889 – primeiro artigo técnico do Instituto Agronomico de Campinas, SP.
1900 – Plantios experimentais no Rio Grande do Sul.
1908 – Cultivo doméstico por imigrantes japoneses no interior paulista.
1914 – E.C. Craig ensina soja em Porto Alegre.
1921 – Pastor Albert Lehenbauer distribui sementes a colonos de Santa Rosa.
1923 – Henrique Lobbe inicia teste de variedades americanas em S. Simão, SP.
1930 – Czeslaw Bienzanko ensina o cultivo e o uso culinário no noroeste gaúcho.
1934 – Atriz Patricia Galvão traz sementes da China para o ministro Fernando Costa.
1935 – Neme Abdo Neme inicia experimentos no Agronômo de Campinas.
1938 – Frederico Ortmann faz a primeira exportação do Rio Grande do Sul para a
Alemanha.
1941 – A soja entra na estatística agrícola gaúcha.
1945 – A soja entra na estatística agrícola paulista
1948 – Swift incentiva o plantio no interior paulista para adicionar ao óleo vegetal
Patroa, de algodão.
1950 – José Gomes da Silva inicia a Campanha da Soja no estado de São Paulo,
introduzindo novas variedades americanas.
1951 – Francisco de Jesus Vernetti começa a pesquisar soja no Ipeas, em Pelotas, RS;
Incobrasa inaugura fábrica em Gravataí, RS, e lança óleo Santa Rosa, com tecnologia
trazida por chineses fugitivos da revolução de Mao Tse Tung.
1952 – Sorol produz óleo de soja em Pelotas.
1955 – Chineses fundam Igol em Santa Rosa; soja é plantada para recuperar cafezais
geados no Paraná.
1957 – Merlin lança óleo em lata em Porto Alegre.
1958 – Samrig inaugura fárica em Esteio, RS, e lança óleo e margarina Primor, Shiro
Miyasaka descobre no vale do Paraíba variedade de soja pouco sensível ao
fotoperíodo; fundação da Federação das Cooperativas Triticolas do Sul (Fecotrigo).
1962 – Sadi Pilau monta fábrica em Giruá, RS.
1963 – Universidade Federal de Viçosa, MG, começa a estudar variedades para o
cerrado.
1966 – É lançada na I Festa Nacional da Soja a primeira grande variedade brasileira, a
Santa Rosa, fruto de cruzamento de linhagens americanas.
1967 – Banco do Brasil financia no interior gaúcho a Operação Tatu, marco inicial da
dobradinha trigo-soja; I Festa da Soja em São Joaquim da Barra, SP.
1968 – Romeu Kiihl volta dos Estados Unidos após estudar a capacidade da soja de se
adaptar a diversas latitudes.
1969 – Lançamento das variedades Mineira e Viçoja pela UFV.
1970 – A soja começa a ser cultivada no Mato Grosso (do Sul) e penetra no cerrado de
Goiás.
1971 – Olvebra começa a operar após a fusão de quatro fábricas gaúchas; constituída a
Comissão Nacional de Pesquisa da Soja no Ministério da Agricultura, responsável pelo
lançamento das variedades de sementes BR.
1972 – Ceval começa a operar em Gaspar, SC.
1973 – Inauguração de fábricas da Anderson Clayton, Cargill e irmãos Pereira em Ponta
Grossa, PR.
1974 – Colonos gaúchos fretam jato para conhecer a bolsa de Chcago.
1976 – Começa a operar o Centro Nacional de Pesquisa da Soja, da Emprapa, em
Londrina, PR.
1977 – Grupo Sadia, maior consumidor nacional de farelo, entra no processamento de
soja com fábrica em Toledo, PR; Perdigão monta fábrica em Videia, SC.
1980 – Soja estende fronteira agrícola ao cerrado da Bahia.
1981 – Lançamento da variedade da variedadeFT-Cristalina, própria para o cerrado.
1982 – “Escândalo da Centralsul” expõe a crise de sobrevivência das cooperativas
agrícolas do Sul; fundo monetário internacional corta o crédito internacional do Brasil.
1985 – Início do Processo de transferência de indústrias esmagadoras de soja para o
Centro-Oeste.
1990 – Penetração da soja no Maranhão e Piauí.
1994 – Recorde nacional de produção, com mais de 25 milhões de toneladas.
1995 – A capacidade instalada da indústria de processamento de soja atinge 116 mil
toneladas por dia; o negócio da soja representa US$ 7,5 bilhões – mais de 1% do
Produto Interno Bruto do Brasil.
1996 – O governo federal assume investimentos em ferrovias e hidrovias para
consolidar as fronteiras agrícolas do Centro-oeste.
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O Brasil Da Soja - Abrindo Fronteiras, Semeando Cidades