DESENVOLVIMENTO REGIONAL, CAPITAL SOCIAL E DEMOCRACIA LOCAL Marcello Baquero Dejalma Cremonese (Organizadores) Ijuí, junho de 2008. Sumário Sumário .....................................................................................................................................2 Introdução .................................................................................................................................5 Qualidade democrática e potencial de desenvolvimento regional no Rio Grande do Sul Marcello Baquero .....................................................................................................................12 Capital Social e Desenvolvimento no Rio Grande do Sul Hemerson Luiz Pase e Everton Santos .......................................................................................................................................30 Democracia Participativa e Conselhos de Desenvolvimento Rodrigo Stumpf González ...49 Variações negativas do capital social no RS: um estudo do município de Ijuí Dejalma Cremonese ................................................................................................................................75 Capital político, Orçamento Participativo estadual e educação, no contexto do município de Salvador das Missões/RS Cênio Back Weyh...................................................................106 Conselhos distritais e a gestão do desenvolvimento local: relações de poder e participação na gestão pública Sérgio Luís Allebrandt.......... Erro! Indicador não definido. Políticas Sociais como Instrumentos de Inclusão, Expansão da Cidadania e Desenvolvimento Edemar Rotta ............................................................................................154 Capital social, diversidade cultural e juventude Karin Elinor Sauer e Sílvio Marcus de Souza Correa...........................................................................................................................183 Aprendizados de convivência: capital social e cultura da paz Lúcio Jorge Hammes ......198 Educação para a sustentabilidade – um ensaio Ivete Manetzeder Keil e Rute Baquero...222 Orelha Uma das principais características da democracia brasileira contemporânea diz respeito ao paradoxo que se estabelece e que mostra, por um lado, a consolidação da democracia formal e procedimental e, por outro lado, a presença ainda marcante de graves desigualdades sociais. Nesse cenário, os cidadãos têm mostrado predisposições para se envolver em atividades políticas de caráter não convencional, na medida em que sua crença nas instituições formais de mediação política, não tem conseguido avançar na institucionalização da justiça social. Essas novas modalidades de engajamento político emanam da solidariedade comunitária, da confiança recíproca, emfim de uma nova forma de conceber a política à margem das instituições formais, sem que isto signifique uma defesa ou um desejo de abolir os canais formais de relação entre Estado e sociedade. Trata-se, portanto, de pensar em formas alternativas de proporcionar espaços para que os cidadãos externem suas demandas de forma autônoma e responsável. Já existe alguma evidencia empírica que mostra que tais iniciativas têm impactado positivamente na promoção de uma democracia orientada para o social, principalmente no que se refere ao desenvolvimento comunitário e regional. Nesta perspectiva, a tese principal deste livro é de que o progresso da democracia também depende de um envolvimento ativo dos cidadãos na arena política. Atualmente há um consenso de que a comunidade precisa trabalhar para alcançar seus objetivos não somente via o governo central, mas também via governos locais, organizações voluntárias bem como organizações coletivas ou organizações da sociedade civil. Mas para alcançar este objetivo é imprescindível produzir dispositivos que capacitem as pessoas para um maior envolvimento na ação coletiva. Nessa direção, os autores deste livro compartilham o ponto de vista que enfatiza a necessidade de empoderar o cidadão em nível local para produzir mais democracia e desenvolvimento regional via capital social. CONTRACAPA A despeito de alguns esforços no sentido de aliviar a pobreza e desigualdade crônica que caracteriza a sociedade brasileira, grande parte das políticas sociais têm errado na sua implementação consagrando a exclusão social e gerando obstáculos para o potencial de desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, torna-se urgente, embora com prudência, produzir mecanismos que gerem mudanças que incidam na promoção da democracia, não somente na sua dimensão formal, mas sobretudo na dimensão social. Nessa direção, é 4 necessário investir em iniciativas que potencializem a capacidade associativa dos cidadãos. Tal empreendimento pode se dar por meio do capital social, do empoderamento e do desenvolvimento regional. Para materializar tais iniciativas será necessário produzir novas ferramentas de promoção cidadã e, consequentemente, de uma democracia com qualidade social. Embora este objetivo seja de caráter macro-sistemico, acreditamos que também pode se iniciar em nível local. Encontrar os caminhos que levem e esse objetivo, que é mais complexo do que parece a primeira vista, é o objetivo deste livro. Introdução Um dos temas que tem assumido centralidade nas discussões sobre desenvolvimento regional se refere ao papel que dispositivos de construção de identidades coletivas têm nesse processo. Desse modo, constata-se que dimensões tais como economia solidária, humanização da economia, o papel protagônico da sociedade civil, o papel das organizações nãogovernamentais, dos movimentos sociais, do empoderamento e o capital social têm proliferado na literatura acadêmica em busca de uma melhor compreensão de elementos informais que, complementando mecanismos formais de desenvolvimento regional, auxiliam na promoção da igualdade e eqüidade social. Essas dimensões, na sua maioria, assinalam a necessidade de um maior protagonismo dos atores societários na delimitação e aplicação de políticas públicas que beneficiem a coletividade. Partem do pressuposto de que é imperativo promover a cooperação e a confiança para materializar em resultados concretos a ação coletiva. O princípio que estabelece que formas de cooperação informal contribuem para a saúde econômica e política de uma comunidade está razoavelmente solidificado teórica e empiricamente. Análises comparativas (KLIKSBERG, 2000) sugerem que a cooperação é um elemento chave no desempenho econômico e político. Um dos principais defensores do desenvolvimento econômico e político via Capital Social, Putnam (2005), argumenta que isto ocorre porque: 1) o progresso econômico e a prosperidade exigem cooperação; 2) um aspecto essencial do comportamento econômico cooperativo é o capital social; e 3) o capital social, por sua vez, é tributário do engajamento cívico. Embora o conceito de capital social possa ter conseqüências negativas ou positivas no desenvolvimento regional, dependendo do contexto examinado, são os aspectos positivos que estimulam o uso desse termo, pois se presume que a promoção do progresso social e econômico é mais viável em cenários onde prevaleçam predisposições de colaboração coletiva. Capital social como categoria ressurgiu após o fordismo e keynesianismo terem perdido parte de sua popularidade explicativa do desenvolvimento econômico. 6 Do ponto de vista do desenvolvimento local, o capital social tem aumentado sua influência no que diz respeito aos capitais físico e financeiro. A busca por sociedades com mais qualidade democrática sinalizou a necessidade de promover não só a cooperação interna, mas também a colaboração externa. O desenvolvimento de redes com base na confiança recíproca tornou-se imperativo. A forma como o capital social incide no desenvolvimento regional pode ser derivada do trabalho de James Coleman (1990), para quem, ao contrário do capital humano e financeiro, o capital social beneficia não o indivíduo, mas a coletividade. Do ponto de vista do desenvolvimento local regional, que é o tema deste livro, é o estoque de capital social ao nível agregado, num determinado contexto regional, que é mais importante. Postula-se que a existência de redes de relações sociais, podem, de fato, formatar os caminhos do desenvolvimento regional. Para evitar determinismos culturais ou históricos, os autores deste volume tentam identificar as condições locais que propiciam o surgimento de aspectos positivos relacionados ao desenvolvimento regional. Isso não implica negligenciar o papel que valores e a evolução do cenário estudado têm no progresso social de uma região, mas incorpora, a essas reflexões, o contexto político contemporâneo como indutor de recursos positivos para o desenvolvimento local. Vista sob esta ótica, o capital social no contexto político contemporâneo pode auxiliar no desenvolvimento de construção de identidades coletivas orientadas para o social e comunitário, proporcionando a materialização de bens coletivos essenciais para o desenvolvimento econômico. É óbvio que a relação entre capital social e desenvolvimento regional é muito mais complexa do que aqui descrito, pois pode, inclusive, na sua dimensão negativa, criar culturas políticas despolitizadas, destruindo as bases de cooperação coletiva. No entanto, acreditamos que o capital social merece ser promovido pela sua influência como fator mediador entre a política e o mercado. Foi com base nessas considerações que este livro foi estruturado. Partindo de diferentes perspectivas teórico-metodológicas, os autores abordam o tema de desenvolvimento regional, capital social, cultura política e sustentabilidade como fatores cruciais e estratégicos para uma melhor qualidade de vida e sua governança, que inicia na vida local. 7 O primeiro capítulo, “Qualidade democrática e potencial de desenvolvimento regional no Rio Grande do Sul” de autoria do professor Marcello Baquero, examina a forma como os cidadãos constroem suas representações a respeito da política num contexto de descentralização que, se pressupõe, atribui muitas responsabilidades não só aos municípios, mas também aos cidadãos. A combinação desses elementos, governança local e maior protagonismo cidadão produziria, segundo Baquero, uma cultura política mais participativa e crítica. No entanto, tal expectativa não encontra amparo nos resultados do seu estudo. De maneira geral, Baquero constata a existência de predisposições negativas dos gaúchos em relação à política e às instituições políticas, caracterizando o que se denomina de desafeto político. Ao mesmo tempo, o estudo constatou estoques latentes de capital social que poderiam, se catalisados por governos responsáveis, se transformar em subsídios para uma melhor qualidade democrática. O segundo capítulo, “Capital social e desenvolvimento no Rio Grande do Sul”, de Hemerson Luiz Pase e Everton Santos, analisa a relação existente entre capital social e desenvolvimento a partir do estudo de duas regiões do Rio Grande do Sul. O COREDE Nordeste e o COREDE Vale dos Sinos. A hipótese central dos autores afirma que o capital social impulsiona o desenvolvimento, cuja determinação ocorre proporcionalmente ao empoderamento (empowerment), enquanto capacidade de decidir e deliberar da sociedade. A metodologia utilizada recolhe os resultados de pesquisa do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE de 2007 e do projeto de pesquisa “Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste”, aplicada em 2004. Ambos os trabalhos se constituem em surveys aplicados nos respectivos COREDES, totalizando cerca de 1200 questionários, com erro amostral 4% e confiança de 95%. O professor Rodrigo Stumpf González no terceiro capítulo, intitulado “Democracia participativa e conselhos de desenvolvimento”, faz uma análise da trajetória de diferentes conselhos de desenvolvimento, comparando-os. No Rio Grande do Sul, examina a experiência dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES) e do Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social (CODES), e em nível nacional, analisa o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Para isso, inicialmente é discutido, com base em Max Weber, o uso de conselhos como forma colegiada de exercício do poder e, em seguida, apresenta um breve histórico do uso de conselhos como mecanismo democrático ou de partilha do poder no último século. A análise das diferentes experiências 8 permite verificar as limitações que os conselhos sofrem como mecanismo democrático de suporte ao desenvolvimento, partindo de sua composição e passando pelo tratamento dado pelas respectivas esferas de governo às discussões e às decisões dos conselhos, que acabam servindo mais como instrumento legitimador do que como canal democrático. No quarto capítulo, intitulado “Variações negativas do capital social no RS: um estudo do município de Ijuí”, o professor Dejalma Cremonese trata, inicialmente, da evolução do conceito capital social sob o viés da Ciência Política: a partir da obra A democracia da América de Tocqueville, passando pelos estudos de Hanifan até os estudos de Robert Putnam. Em um segundo momento, o autor apresenta uma breve descrição do município de Ijuí, localizado no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, para, no final, tratar da variação negativa dos níveis de capital social no referido município. Os resultados apresentados no referido capítulo se originaram do estudo comparativo entre os resultados do survey aplicado em Ijuí no ano de 2005 e um survey aplicado no ano de 1968. Além dos dados quantitativos, a pesquisa apresenta alguns depoimentos de lideranças locais, bem como a análise de bancos de dados dos Institutos de Estatísticas do PNUD, IBGE, FAMURS e FEE, que indicam mudanças negativas nos níveis de participação político-social e no capital social de Ijuí, nas últimas décadas. No quinto capítulo, o professor Cênio Back Weyh apresenta o resultado de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em nível de doutorado, entre os anos 2001 e 2005, com a tese: Educar pela Participação. No campo teórico, os referenciais utilizados situam-se na perspectiva da construção de uma sociedade democrática popular e participativa. Didaticamente dividido em seis subtítulos, o autor busca trazer à discussão as diferentes espécies de capital, com o interesse específico na categoria capital político, conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e pelo pesquisador canadense Daniel Schugurensky. Capital político não pode constituir-se em recurso exclusivo de líderes e partidos, o que não contemplaria os interessados em desenvolver uma educação emancipatória de caráter participativa. Em sua crítica, Schugurensky deixa claro que o conceito de capital político de Bourdieu se aproxima do desenvolvido pela ciência política acadêmica. Trata-se de reconceitualizar esta categoria concebendo-a como capacidade de influenciar as decisões políticas. O autor objetiva inserir a temática do Orçamento Participativo nas pesquisas realizadas no campo da educação como mediação políticopedagógica empoderadora, tendo como referência a categoria capital político. 9 No sexto capítulo “Conselhos distritais e a gestão do desenvolvimento local: relações de poder e participação na gestão pública”, o professor Sérgio Allebrandt discute a atuação dos conselhos distritais e suas relações com a gestão pública local, baseado na experiência de Ijuí/RS. É feita uma análise dos conselhos enquanto espaço de poder, denominado no artigo de poder de cidadania interativa, atuando integradamente com o poder político local, o poder social local e o poder econômico local. A seguir, o autor passa a analisar mais detidamente o caso de Ijuí, fazendo a retomada da trajetória dos conselhos distritais no município, que passam pela institucionalização e prática efetiva, pelo abandono da experiência por imposição de governo local, e pela tentativa de reativação e busca das razões para sua não concretização. Sérgio Allebrandt conclui o artigo abordando a permanência da síndrome da descontinuidade administrativa, a relativização da autonomia dos espaços da sociedade civil quando institucionalizados pelo Estado, a necessidade de aplicação de um programa permanente de educação com vistas a dinamizar a atuação dos conselhos e a necessidade de viabilizar autonomia, tanto administrativa quanto financeira, dos conselhos. O sétimo capítulo, intitulado “Políticas sociais como instrumentos de inclusão, expansão da cidadania e desenvolvimento”, de autoria do professor Edemar Rotta, procura demonstrar como, na fase atual de desenvolvimento do capitalismo, as políticas sociais constituem-se como instrumentos fundamentais no processo de inclusão, expansão da cidadania e desenvolvimento. Para evidenciar esta assertiva, o autor demonstra que as políticas sociais nascem no embate entre os trabalhadores e a burguesia, no contexto de afirmação do capitalismo. Na seqüência, retrata as principais abordagens teóricas que se desenvolvem no estudo das políticas sociais. Para finalizar se faz um estudo específico da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, demonstrando a trajetória de constituição das políticas sociais e a importância que as mesmas assumem, especialmente a partir da década de 1990, como instrumentos de inclusão, expansão da cidadania e desenvolvimento. O capítulo oitavo, de Karin Elinor Sauer e Sílvio Marcus de Souza Correa, intitulado “Capital social, diversidade cultural e juventude”, trata de lançar algumas pistas, formuladas com base empírica em dados de entrevistas com jovens, que permitam uma reflexão sobre alguns preceitos da teoria do capital social, dando especial ênfase à confiança interpessoal, à participação política dos jovens e à relação entre capital social e diversidade cultural, discutindo a validade da afirmação de Putnam de que a diversidade cultural engendrada pela imigração pode minar o capital social e constituir-se em desafio para a solidariedade nas 10 sociedades ocidentais. Os autores concluem o artigo sugerindo que o que talvez deva ser questionado pelos teóricos do capital social não seja a diversidade cultural em si, mas sim a eficácia dos processos de inclusão social e cultural dos imigrantes nas sociedades democráticas. O capítulo nono, intitulado “Aprendizados de convivência: capital social e cultura da paz”, de Lúcio Jorge Hammes, é resultado de pesquisas desenvolvidas junto a três organizações que trabalham com jovens, em vista do protagonismo juvenil, na metodologia de grupos. Aprofunda e amplia os estudos sobre aprendizados de convivência e a formação de capital social, destacando a cultura da paz como um dos resultados do capital social desenvolvido junto à juventude. Os resultados do estudo indicam que as relações de confiança, as redes e a cidadania contribuem para a formação de uma sociedade solidária, capaz de resolver seus conflitos pelos princípios de não-violência e paz. Isso permite afirmar que melhorando os índices de capital social, com destaque para as relações, diminui a violência e melhoram as condições para a formação da cultura da paz. O capítulo final, de Ivete Keil e Rute Baquero, “Educação para a sustentabilidade – um ensaio”, problematiza alternativas de sustentabilidade que têm sido propostas para fazer frente aos desafios do mundo contemporâneo, enfocando concepções e práticas educativas a qual elas se vinculam. Num segundo momento, o artigo trabalha com um conceito ampliado de sustentabilidade, abarcando diferentes dimensões da vida em sociedade - econômica, cultural, ética, política - postulando a necessidade de uma educação voltada para outras formas de ser e estar no mundo, capaz de construir formas de subjetividade que exaltem a vida. Este livro, contou com o apoio de várias pessoas e instituições: Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) , que apoiou a pesquisa comparativa no Cone Sul; e Núcleo de Pesquisas sobre a América Latina (NUPESAL), que proporcionou o espaço para discutir os temas deste volume. Contamos, também, com a colaboração de várias pessoas nas diferentes etapas de organização do livro. As alunas de Doutorado Patrícia Cunha, Bianca Linhares e Rosana Soares, a aluna de Mestrado Simone Viscarra e os bolsistas de iniciação científica do NUPESAL, Úrsula Sander Stüker, Rafael Sabini Scherer, Ana Paula Diedrich, Luiza Almeida Bezerra, Bruno Mello Souza, todos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 11 Marcello Baquero e Dejalma Cremonese Qualidade democrática e potencial de desenvolvimento regional no Rio Grande do Sul Marcello Baquero• O caminho para a institucionalização de uma melhor qualidade de vida, como resultado de processos de descentralização, promovido pela Constituição de 1988 no Brasil, tem-se mostrado mais difícil do que se imaginava. A prevalência de elevados índices de pobreza e desigualdade social não só no âmbito nacional, mas sobretudo em âmbito local, levanta algumas dúvidas quanto à eficácia de tal processo de transferência de responsabilidades sem recursos adequados do nível federal para o municipal. Ao mesmo tempo, gera indagações a respeito da qualidade da democracia num contexto local e a perspectiva de um enfraquecimento da governança democrática. Refletindo sobre este tema, de acordo com Soares (2004:1): A evolução dos indicadores sociais no Brasil nos últimos dez anos apresenta duas fortes características. A primeira delas é que antigos problemas sociais não só não foram resolvidos como recrudesceram. Permaneceram e até mesmo aumentaram as distintas desigualdades regionais, urbano-rurais e de renda. Ao mesmo tempo, surgiram e se agravaram, numa velocidade espantosa, novos problemas sociais típicos de um processo excludente em direção a uma “modernização” a todo custo, sobretudo aqueles relacionados à precarização do trabalho e ao desemprego. Nesse cenário, torna-se relevante fazer um balanço sobre como os cidadãos têm sido impactados nas suas atitudes, crenças e comportamentos por esse processo de descentralização e suas percepções a respeito da qualidade da democracia, confiança nas instituições políticas e potencial de construção de capital social, bem como constituição de uma cultura política participativa solidária. Tendo em vista esse objetivo, o presente trabalho está estruturado em três partes: (1) o conceito de qualidade democrática no contexto contemporâneo; (2) o tipo de cultura política existente no Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Ijuí, Sananduva e Vale do Rio dos Sinos), com base em dados de pesquisa empírica, e, (3) perspectivas de desenvolvimento regional. • Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre América Latina e Editor da Revista Debates. 13 O debate contemporâneo sobre democracia Segundo alguns estudos (SORJ, 2007), a visão de que o mundo democrático se assentava num tripé composto pela classe social, que organizava a estrutura social; os sindicatos, que formatavam os interesses dos trabalhadores; e os partidos, que articulavam as utopias sociais estaria obsoleto. Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, abriu-se o campo para argumentos em favor da hegemonia e inevitabilidade do paradigma neoliberal como ideologia universalista. Alguns autores se referiam a este processo como o fim da história (FUKUYAMA, 1989). Tal situação, segundo esta linha de pensamento, diluiu o papel das classes sociais, limitou severamente a importância dos sindicatos e fragilizou ainda mais os partidos políticos na sua capacidade de mediação política. Em seu lugar, institucionalizou-se a idéia de que estaria em andamento, e de forma irreversível, a democratização liberal global, no que se convencionou chamar de terceira onda da democracia (HUNTINGTON, 2000). Tal processo ocorre por meio da democratização de valores e expectativas geradas pelos sistemas de comunicação, pois a consolidação do individualismo e da sociedade de consumo, o enfraquecimento das hierarquias sociais, o fortalecimento da sociedade civil e a disseminação do discurso sobre direitos humanos têm promovido um senso de interdependência e humanidade comum a todos. Mas, apesar dessa retórica e dos inegáveis avanços técnicos e tecnológicos, principalmente nas sociedades materialmente não-resolvidas, como é o caso do Brasil, o aumento da desigualdade social, política e econômica, continua a desafiar não só os gestores públicos, mas a comunidade acadêmica, na apresentação de soluções viáveis. A ênfase nos procedimentos políticos formais, que inicia na década 1970, apontandoos como insubstituíveis para o fortalecimento democrático tem-se mostrado insuficiente. Este debate ressaltava, num primeiro momento, a transição do autoritarismo para a democracia, destacando fatores tais como agência política, mudança de coalizões, construção de pactos e estratégias das lideranças elitistas. Na medida em que as transições avançavam, a agenda política se voltou para fatores econômicos e para o papel da sociedade civil. Nessa direção, os aspectos centrais analisados diziam respeito à relação entre democracia e reformas econômicas e políticas e ao papel da sociedade civil no processo de democratização. 14 Dentro deste debate, um fato se mantém vigente, ou seja, a debilidade do Estado democrático contemporâneo em estabelecer o princípio da igualdade perante a lei, dentro daquilo que Przeworski (1991:14) defendia, de que a democracia avançava na medida em que se processava uma transição de poder monopolizado por um grupo para um conjunto de regras. A poliarquia contemporânea no Brasil mostra que isto está longe de acontecer. Nos últimos anos, tem-se constatado uma ampliação da corrupção e do senso de impunidade que afeta tanto os gestores públicos quanto a população. Práticas políticas tradicionais continuam a ser a regra e não a exceção. A democracia contemporânea no país parece fazer florescerem novas modalidades de uma velha prática de corrupção que compromete os avanços sociais. Não por acaso, o Instituto Internacional de Estudos Anticorrupção (INEA, 2005) coloca o Brasil como sendo, a partir de 2005, o detentor de uma corrupção generalizada, situando o país em primeiro lugar nessa categoria. Tal situação gera as bases para que a democracia por procedimentos se legitime, sem que isso signifique abdicar de reformas econômicas que são deletérias para a maioria da população. O quadro atual é constituído por forças sociais que refletem a distribuição tradicional de poder, onde as elites continuam na parte superior da pirâmide. Isto não significa desconhecer a necessidade de uma democracia formal. Nenhum sistema político pode operar sem regras e normas de funcionamento. A questão que se levanta é se esses procedimentos são suficientes na promoção da igualdade social. Acredito que a evidência empírica mostra que estamos longe de instituir uma democracia com orientações sociais profundas e transformadoras, mesmo naqueles contextos onde o crescimento econômico tem-se elevado significativamente, mostrando que, se o crescimento não é distributivo, ele meramente reforça padrões tradicionais de concentração de poder. Nesse cenário, as políticas públicas sociais assumem um caráter assistencialista que não capacita as pessoas para ocupar postos de trabalho que precisam de uma melhor qualificação, nem promovem a geração de empregos estáveis e permanentes. O que se observa na sociedade brasileira contemporânea e, por conseqüência, em diferentes níveis de governo (municipal e estadual), é uma organização política societária insuficiente e uma representação política conjugada com uma frágil constituição da cidadania. Nesse sentido, se não pode haver representação sem cidadania, como os cidadãos brasileiros constituem sua representação política? Além do fato de que o conceito de representação é relativamente ambíguo (delegação aberta ou um mandato-contrato político), a cultura política brasileira não distingue estes dois 15 princípios. Na verdade, se espera que o representante cumpra simetricamente as duas funções. Nessas circunstâncias, o representante não cumpre efetivamente nem uma nem outra, produzindo um problema de governabilidade que a reengenharia institucional não resolve. Desse modo, o campo de preocupação com a instabilidade política e com a crise da legitimidade do regime se desloca da dimensão institucional para o enfoque da cultura política como fator explicativo da crise política e constituição da cidadania. O enfoque da Cultura Política sugere que os procedimentos formais, entre os quais o processo eleitoral, não geram necessariamente uma democracia com qualidade. Da mesma forma, argumenta que o crescimento de uma cultura política democrática é necessário para o fortalecimento democrático (ALMOND e VERBA, 1963; NORRIS, 1999, BAQUERO, 2007). Decorrente dessa perspectiva, análises contemporâneas a respeito da consolidação democrática têm recorrido a pesquisas de percepção que centram suas análises nas crenças, atitudes e valores sobre governança (INGLEHART, 1997). Tal enfoque não analisa somente a distribuição do poder ou incorporação nas suas esferas dos excluídos, mas busca gerar um poder distinto, desde baixo, em múltiplos cenários e dimensões. A partir dessa concepção de governabilidade, a democracia visa regular o conflito, incorporar a diversidade e o dissenso, legitimar a visão “dos outros” e servir de marco normativo para as relações na vida cotidiana. A coerência das instituições é necessária, mas não suficiente para lograr esses propósitos. A política não se limita à função de “bom governo”, tampouco se reduz ao jogo das elites no interior do sistema político; refere-se, de modo central, às relações entre “a gente” e “da gente” com o sistema político (MENÉNDEZ, 2003). Esses elementos possibilitaram que experiências de democracia participativa fossem implementadas pontualmente no Brasil, e se desenvolveram experiências participativas nas quais o cidadão é visto como ator decisivo no processo de tomada de decisões do governo. Essas iniciativas visavam combinar instituições e práticas do regime de democracia representativa com os de democracia direta ou participativa. No âmago da concepção de uma democracia que enfatiza o ser humano e seu papel no processo político, a questão da cidadania na sua dimensão contemporânea, contempla os direitos civis, sociais e políticos, mas esquece os fatores não-convencionais que constrangem o desenvolvimento pleno dos direitos das pessoas. Por exemplo, um contexto onde o mercado assume saliência como regulador das relações sociais, produz uma desproteção social da 16 maioria da população, criando uma dimensão oculta onde as pessoas se autolimitam na suas expectativas, a despeito da existência de direitos formais. Isto ocorre em virtude do pressuposto que considera os cidadãos autônomos e capazes de fazer prevalecer suas demandas, o que não condiz com a realidade. Finalmente, é necessário levar em conta que a participação autônoma e espontânea das pessoas no campo político deriva de experiências associativas ou de capital social. Nessas circunstâncias, as dimensões formais de um regime democrático nem sempre são acompanhadas por um desenvolvimento paralelo da dimensão cidadã e tampouco se constitui numa garantia de inclusão e proteção sociais. Para que essa situação se materialize de forma efetiva, é preciso que os cidadãos desenvolvam dispositivos e iniciativas de mobilização e participação à margem dos canais formais e convencionais de mediação política (partidos políticos), sem que isto signifique defender a substituição de procedimentos legais de intermediação política, estabelecendo a justiça social. A este respeito, Boron (2000) sugere que a justiça social se plasma quando os direitos materiais básicos das pessoas são garantidos (o direito à moradia, à saúde, à educação, à cultura, ao transporte, ao trabalho, à seguridade e ao meio ambiente). Segundo o autor, uma ordem política democrática se consolida ao longo do tempo, quando se institucionaliza um nível efetivo de igualdade social. Hoje, mais do que nunca, verificam-se limites institucionais dos regimes em vigor, os quais produzem tendências para o aumento das desigualdades e da exclusão social e a distribuição desigual do acesso a direitos e liberdades entre os diferentes setores da população. O tema da igualdade política no contexto brasileiro tem constatado a prevalência de amplos setores da população que ficam excluídos da rede de proteção social que emana do Estado e cujo resultado não é a igualdade, mas sim a desigualdade política. Desigualdade política no contexto poliárquico inclui, por exemplo, a discriminação legal e constrangimentos dos direitos dos cidadãos (embora exista a igualdade em termos formais, o uso político para se envolver na política está estratificado com base no gênero, renda ou educação). As desigualdades sistemáticas na participação política incidem negativamente nas classes populares e desorganizadas, criando um círculo vicioso que reforça as desigualdades sociais e políticas. Não por acaso, os mais desiguais participam menos na política, produzindo 17 um sentimento simultâneo de hostilidade em relação à política e resignação. Tal situação tem implicações normativas sérias, pois compromete o desenvolvimento democrático por meio da manutenção de uma cultura política alienada e apática. Sair dessa situação implica na promoção do envolvimento político que possibilite o desenvolvimento do pensamento crítico e a elevação da consciência intelectual e moral das massas. Torna-se imperativo, no contexto atual da democracia brasileira, desenvolver um projeto pedagógico que valorize e promova o saber popular, por meio de um projeto emancipatório, com base no fortalecimento do protagonismo popular. Nessa direção, principalmente em nível local, as práticas de gestão democrática que têm produzido políticas públicas eficientes na promoção do bem-estar dos cidadãos estão relacionados: (a) ao desenvolvimento de mentalidades coletivas; (b) à diminuição de práticas clientelistas tradicionais; (c) à captura das esferas públicas por meio da institucionalização de modalidades de participação política autônomas e não manipuladas; (d) à promoção da confiança recíproca via capital social; e (e) ao estabelecimento de relações políticas e econômicas de caráter horizontal. Em âmbito sistêmico, entretanto, a sociedade brasileira continua a evidenciar uma cultura conservadora que inibe o fortalecimento das classes populares. Essa situação produz massas, mas não cidadãos críticos, mantendo um hiato histórico de distanciamento entre Estado e sociedade. Nessa perspectiva, esforços de democratização têm sido iniciados em nível local, objetivando sanar problemas históricos de natureza material social. Democracia e governo local Da mesma forma que em nível sistemático, a democracia em âmbito local requer representantes eleitos pelo voto popular que sejam passíveis de ser em fiscalizados na sua atuação política pelos cidadãos e, ainda, que sejam responsáveis, responsivos e representativos. O grau de democracia existente no nível local pode ser determinado pela capacidade cidadã de fiscalizar os gestores públicos. Tal fiscalização pressupõe uma igualdade política entre as pessoas. Essa igualdade, em muitos casos é mediada pelo município como entidade política e administrativa autônoma. Além disso, essa mediação cresce como resultado da descentralização política institucional que se inicia em 1988 e que visava fortalecer a esfera 18 local de governo, atribuindo aos municípios novas responsabilidades de políticas públicas que no passado eram responsabilidade do governo federal. Essas iniciativas de descentralização do poder e “fortalecimento dos municípios” pressupunham que os municípios seriam capazes de ampliar os direitos dos cidadãos, mesmo reconhecendo a existência de fatores macroeconômicos e políticos que limitam tal esforço. A despeito desses obstáculos, os municípios têm autonomia para rejeitar políticas urbanas, também para agir diretamente no campo da educação, da saúde, dos transportes, da segurança e da moradia. Por meio dessas iniciativas mais próximas do cidadão, em âmbito local, poderse-ia promover um papel mais protagônico dos cidadãos na política, constituindo-se, desse modo, em “laboratórios pedagógicos” de virtudes cívicas. Já existe alguma evidência a respeito da eficiência com que os municípios brasileiros têm enfrentado os problemas da pobreza e da miséria, por meio de políticas redistributivas. No entanto, persistem lacunas de compreensão a respeito de como as predisposições atitudinais incidem na construção da cultura política em nível local. A dimensão empírica da Cultura Política Um dos principais mecanismos que fortalecem a construção democrática de uma sociedade em diferentes níveis (local, nacional) diz respeito à existência de uma cultura política cívica, na qual a maioria dos cidadãos valoriza os princípios democráticos. A ausência de uma base de apoio à política institucional, se pressupõe, comprometeria a qualidade da democracia. Nesse sentido, pesquisas e estudos recentes na linha da cultura política têm orientado suas análises em compreender as atitudes dos cidadãos em relação ao governo e os elevados índices de ceticismo em relação às instituições políticas e os representantes eleitos (BAQUERO, 1992). Estudos recentes têm buscado compreender as atitudes dos cidadãos em relação ao governo e os elevados níveis de ceticismo em relação à política democrática (BAQUERO e PRÁ, 2007). Partes significativas desses estudos têm levado em conta o impacto de mudanças sócio-demográficas da geração passada (INGLEHART, 1990). Algumas pesquisas nessa área têm expandido nossa compreensão das atitudes em relação ao governo incorporando os efeitos de arranjos institucionais (SUNDE, 2007). Um componente importante destas explicações tem sido a ligação entre as avaliações dos eleitores a respeito das instituições e se o eleitor “ganha” ou “perde”. Nessa direção, tornou-se pertinente avaliar como os gaúchos 19 percebem o funcionamento da democracia. Para aferir com maior detalhe eventuais diferenças atitudinais, esta variável foi cruzada com variáveis demográficas. Os dados estão no Quadro 1 Quadro 1- Avaliação da democracia (%): Sexo Escolaridade Renda Classe social Masculino Feminino Fundamental incompleto Fundamental completo Médio incompleto Médio completo Superior incompleto Superior ou mais Até 1 sm 1 a 5 sm 6 a 10 sm 11 a 20 sm Mais de 20 sm Baixa Média baixa Média Média alta Alta Porto Alegre Funcionamento da democracia Satisfeito 18 19,4 20,1 Vale dos Sinos Funcionamento da democracia Satisfeito 12,5 7,3 9,2 Ijuí Funcionamento da democracia Satisfeito 13 15,6 16 Sananduva Funcionamento da democracia Satisfeito 20,5 15,2 17,6 15,6 11,1 10,7 19 18,4 11,8 11,1 24 16,8 9,8 7,4 16 20 6,7 12,8 20 20 11,1 22,2 18,8 17,2 19,3 16,7 18,5 100 12,7 8,5 11 13,3 40 12,8 15 30,8 20 17,7 19,1 8 0 17 17,5 20,3 23,1 18,9 8,5 18,1 66,7 Porto Alegre: n= 510; Vale dos Sinos: n= 600; Ijuí: n= 400; Sananduva: n= 606. Os dados do Quadro 1 sugerem que as variáveis demográficas incidem minimamente no grau de satisfação dos gaúchos com o funcionamento da democracia. De maneira geral, os homens parecem estar mais satisfeitos do que as mulheres, a não ser no caso de Ijuí, onde as mulheres responderam estar mais satisfeitas com o funcionamento da democracia do que os homens. No caso da variável escolaridade, a tendência é de que quanto maior o nível de escolaridade, maior a satisfação com o funcionamento da democracia, menos no caso do Vale do Rio dos Sinos, onde aqueles com maior escolaridade se mostram mais céticos do que nas outras cidades. Tal situação pode ser explicada pela ausência de oportunidades para recursos humanos mais qualificados nesta região, pela sua proximidade com a capital gaúcha. As diferenças são um pouco mais acentuadas quando a renda é introduzida na análise. De forma geral, os porto- 20 alegrenses se mostram satisfeitos com o funcionamento da democracia em comparação com as outras cidades, independentemente da renda. As variações ocorrem com Sananduva, onde as camadas que ganham até 5 salários mínimos se mostram mais otimistas do que as que têm renda maior. Situação semelhante se observa em relação à classe social, onde se verifica uma distribuição crescente entre satisfação com a democracia e classe social. Deve-se notar, entretanto, que, enquanto esse crescendo em Porto Alegre é mais eqüitativo, no caso de Sananduva a satisfação é mais acentuada na classe alta. Deriva-se dessas informações, em primeiro lugar, que, do ponto de vista mais global, o percentual de satisfação com o funcionamento da democracia, levando-se em conta as variáveis demográficas (sexo, escolaridade, renda e classe social), é relativamente baixo (abaixo dos 50% em todas as variáveis). É claro que a simples indicação de insatisfação com o desempenho democrático não implica uma ausência de apoio pela democracia lato sensu. Mas pode ser indicativo de um certo pessimismo em relação ao desempenho concreto dos gestores públicos, das instituições políticas e dos mecanismos de governança, os quais são responsáveis pela geração de desafeto político. Desafeto político é geralmente desmembrado em dois tipos: (1) desengajamento político, o qual ocorre quando os cidadãos não se mostram predispostos ou motivados a participar em quaisquer atividades de natureza política, e (2) desafeto institucional, o qual se materializa quando os cidadãos não acreditam que as instituições políticas consigam responder adequadamente às demandas mínimas de caráter material da cidadania. Em tal situação, é de se esperar que o ceticismo em relação à classe política seja significativo, comprometendo a possibilidade de construir um sistema de crenças que valorize os princípios democráticos e respeite os gestores públicos, a despeito de eventuais crises de natureza econômica ou política. Isto se daria em virtude da inexistência de uma base normativa de apoio à democracia. Nesta perspectiva, um ponto a ser examinado é como os gaúchos avaliam a classe política (Quadro 2) e como eles percebem a aplicação de recursos públicos oriundos de tributos (Quadro 3). 21 Quadro 2- Ceticismo Político (%) Sexo Escolaridade Renda Classe social Masculino Feminino Fundamental incompleto Fundamental completo Médio incompleto Médio completo Superior incompleto Superior ou mais Até 1 sm 1 a 5 sm 6 a 10 sm 11 a 20 sm Mais de 20 sm Baixa Média baixa Média Média alta Alta Porto Alegre Políticos são corruptos Concorda 75 79,4 86,3 Vale dos Sinos Políticos são corruptos Concorda 85,4 91,9 88,1 Ijuí Políticos corruptos Concorda 74,8 81,5 80,7 91,2 86,3 79,3 84,2 79,6 89,7 77,7 92 79,6 69,5 92,3 88,3 71,4 74,4 84,6 77,8 58,9 81,3 79,7 69,8 44,4 84,9 78,4 71,2 53,9 79 94,3 88,1 88,4 93,8 40 66,7 87,5 74 64,2 20 86,4 88,1 81,3 76 100 são Sananduva Políticos são corruptos Concorda 80,9 87,7 84,1 85,1 86,4 84,4 66,6 Porto Alegre: n= 510; Vale dos Sinos: n= 600; Ijuí: n= 400; Sananduva: n= 606. *Concorda e concorda um pouco somados. A erosão do apoio a princípios democráticos pode se dar com base, entre outros fatores, pela avaliação que os cidadãos fazem da classe política. Quando os gestores políticos são vistos como detentores de virtudes cívicas e republicanas, tal percepção pode ampliar a institucionalização da legitimidade do regime democrático e aumentar a qualidade da democracia. No entanto, quando a opinião dos cidadãos é preponderantemente negativa da classe política, além de ser histórico-excludente, a legitimidade e a credibilidade da esfera política podem estar comprometidas, mesmo com a institucionalização de procedimentos formais. Os dados do Quadro 2 são emblemáticos e contundentes a respeito de como os gaúchos vêem os gestores públicos. De maneira geral, da mesma forma que em relação ao funcionamento de democracia (Quadro 1), os gaúchos têm uma péssima visão dos políticos. Independentemente das variáveis demográficas, a maioria da população entrevistada nas cidades pesquisadas responde que a maior parte dos políticos poderia ser caracterizada 22 como corrupta. É evidente que, o que é relevante nesses dados, é o impacto que uma avaliação maciça a esse respeito tem na construção democrática e na sua qualidade. Dificilmente a democracia se consolidará em sua dimensão maximalista se a maioria dos cidadãos rejeita os seus representantes eleitos. Com base nesses dados, o quadro 3 mostra que os gaúchos não vêem no Estado um gestor eficiente em relação à sua eficiência e eficácia da aplicação dos recursos públicos, ou seja, quanto aos tributos, a despeito de algumas oscilações nas variáveis escolaridade e renda, a percepção generalizada é de que o Estado não é competente no quesito aplicação dos impostos em áreas sociais. Não é surpresa, a partir desses dados, constatar um processo crescente de pessimismo e incerteza sobre o futuro, apesar de estabilidade econômica. Pesquisas têm mostrado que existem preocupações significativas a respeito do aumento do desemprego, o aumento das desigualdades e da violência e a deterioração da qualidade de vida e do meio ambiente (LATINOBARÔMETRO, 2005). O contexto contemporâneo da política no país não é, sem dúvida, o mundo do progresso social, da estabilidade societária e da paz social que os profetas do fim da história vaticinaram. No entanto, tal incerteza, que se traduz em ceticismo em relação ao desempenho dos gestores públicos, ficou evidente quando indagamos os gaúchos a respeito de como eles percebem a aplicação dos recursos públicos decorrentes dos impostos (Quadro 3). 23 Quadro 3- Avaliação do Desempenho Governamental (%) Sexo Escolaridade Renda Classe social Masculino Feminino Fundamental incompleto Fundamental completo Médio incompleto Médio completo Superior incompleto Superior ou mais Até 1 sm 1 a 5 sm 6 a 10 sm 11 a 20 sm Mais de 20 sm Baixa Média baixa Média Média alta Alta Porto Alegre Estado é eficiente na aplicação dos recursos Concorda 14,9 11,2 22,7 Vale dos Sinos Estado é eficiente na aplicação dos recursos Concorda 13,3 11,6 10,4 Ijuí Estado é eficiente na aplicação dos recursos Concorda 14,6 8,8 13,5 Sananduva Estado é eficiente na aplicação dos recursos Concorda 14,7 16,6 17 6,3 19,8 28,6 12,1 18 16,9 7,9 12 11,2 10,5 3,6 15,7 5 5 7,7 14,3 4,4 5,3 0 15,6 12,8 12,7 20,5 3,7 0 16,4 12,8 10,9 12,5 0 15,8 7,7 20 17,7 12,2 28 0 15,8 7,2 13,5 0 17,3 5,1 17,3 33,3 Porto Alegre: n= 510; Vale dos Sinos: n= 600; Ijuí: n= 400; Sananduva: n= 606. Quando a maioria dos cidadãos não demonstra apreço e proximidade com as dimensões que compõem a base normativa da democracia, a possibilidade é a emergência ou manutenção de visões críticas e pessimistas em relação não só à política como um todo e aos gestores públicos, mas também em relação ao papel que o cidadão se atribui na área política. Tal dimensão é denominada de eficácia interna em oposição à eficácia externa. A eficácia é de interesse porque pode desempenhar papel importante na formatação de uma ampla gama de atitudes e comportamentos. A eficácia interna representa o senso de “ser capaz de agir efetivamente na arena política”, e eficácia externa se refere à confiança política, apoio ao sistema e participação eleitoral. A este respeito, Carole Pateman argumenta que a participação democrática tem um “papel educativo no trabalho”. Para a autora, esses resultados incluem o aumento da autoconfiança dos indivíduos e a aquisição de habilidades que os cidadãos necessitam para 24 participar. Esses dois elementos se referem à eficácia interna. Outras teorias sugerem que a participação política pode simplesmente gerar uma aceitação passiva do regime particularmente num contexto eleitoral padronizado onde os eleitores escolhem entre partidos e candidatos. A participação eleitoral pode, desse modo, promover sentimentos de legitimidade do sistema e responsividade governamental, afetando a eficácia externa, mas não a interna. De que forma a presença de desigualdade política produz alterações nas percepções e comportamentos dos cidadãos num contexto de democracia formal? No contexto atual de hegemonia do paradigma que privilegia o mercado como catalisador das relações sociais, prevalecem novas segmentações na sociedade, tais como: desemprego, estrutural e de longo prazo, mudanças demográficas, descrença na política, declínio da credibilidade dos partidos, descentralização do processo nacional de tomada de decisões, e a marketização da sociedade em termos de oferta e demanda. Nessas circunstâncias, estão surgindo novas formas de participação e diálogo, novos atores políticos e o fortalecimento da política com base em assuntos pontuais. No âmago desse debate está a questão que busca avaliar se essas novas formas e qualidade dessa participação democrática de alguma maneira contradizem, ou talvez complementam o modelo institucional prevalecente. Talvez uma pergunta anterior seria saber se a natureza fragmentada da sociedade civil e o sistema político-administrativo requerem novas formas de democracia? Exemplos recentes incluem teledemocracia e |novos diálogos entre governo e cidadãos, descentralização e várias formas de governança. A evidência, no entanto, de mudanças reais decorrentes de novas formas de ingerência política não está solidificada. Não se pode negar que os partidos políticos na sociedade brasileira ainda têm papel chave na transformação das preferências individuais em decisões coletivas. Porém, embora a estrutura partidária pareça relativamente estável, em nível local os partidos políticos atuam de maneira diferente do que em nível nacional. A mudança real, no entanto, parece estar no conteúdo da política ao invés das formas institucionais. Em primeiro lugar, a política não parece ter o mesmo significado na vida das pessoas como antes, e, em segundo lugar, os objetivos e rotinas da política também têm se alterado. Partidos e instituições políticas já não são respeitados, e o que é importante, confiados, se é que alguma vez o foram. Nesse contexto, talvez possamos conceber o declínio da política partidária de forma alternativa, ou seja, no sentido de que a tecnologia central e o papel dos profissionais políticos dificultam o acompanhamento pelos cidadãos. Desse modo, houve uma tecnologização da 25 vida política transformando-se em algo técnico e, paradoxalmente, num gerenciamento de assuntos a-políticos. A política em nível nacional está se tornando cada vez mais profissional e técnica. Comparado com períodos anteriores, os cidadãos presentemente parecem ter uma compreensão deficitária da esfera político-administrativa, mesmo no contexto local. Para sanar essa deficiência se sugere que o capital social agiria como parte alternativa de participação popular mais protagônica e, conseqüentemente, mais eficiente. A percepção da dicotomia entre o sistema de tomada de decisões coletivas e o processo mais individualizado de tomada de decisões sociais em pequenas unidades pode se tornar secundário, quando governos locais descentralizam mais tarefas para os comitês de bairro e associações locais e quando assuntos individuais são resolvidos por aqueles envolvidos ad-hoc, não somente pela unidade de um mandato eleitoral, possibilitando uma governabilidade que se construa da base da sociedade. Um elemento que tem sido apontado como essencial para melhorar a qualidade democrática em âmbito local se refere ao potencial das pessoas se envolverem em associações informais de construção de capital social. Os dados desta indagação estão no quadro 4. Quadro 4- Potencial de Associativismo e Capital Social (%) V ale San dos andu-va orto Sinos 1. O/a sr/a participa de Não algum grupo ou organização? 8 2 (489) 44 (262) n= 599) Quais os principais motivos para sua não participação? a) Falta interesse = 252) 3 34 de 4 (148) (83) (n= 431) ( n= 509) n= 398) 6 5 5 (148) ( ( n= 395) n= 259) 5 4 2 (205) 5 (107) (n = 246) 3 (130) 6 (260) (n 3 ( 64 (161) n= 465) Falta 4 (429) = 599) ( b) uí 8 (n 6 de 3 (293) tempo Ij Alegre ( 2. P (n= 397) ( n= 260) 26 3. comunidade Se um não projeto lhe da Sim beneficia diretamente, mas pode beneficiar outras pessoas do seu bairro, o/a sr/a contribuiria para este projeto? 9 7 (572) 95 9 9 (566) (n= 3 (468) 5 (377) ( 596) (n= 502) (n= 397) n= 592) Porto Alegre: n= 510; Vale dos Sinos: n= 600; Ijuí: n= 400; Sananduva: n= 606. Em primeiro lugar, interessou avaliar o grau de associativismo nas cidades pesquisadas. Os resultados a respeito do tamanho da cidade parece influenciar as predisposições para participar em alguma associação. Tanto em Ijuí quanto em Sananduva, se constata que mais ou menos 50% dos entrevistados responderam participar de alguma associação, enquanto que em Porto Alegre e no Vale dos Sinos, a situação se inverte, ou seja, mais de 80% dos entrevistados não participam de nenhum tipo de associação. Esses resultados sugerem que contextos mais urbanizados, de fato constrangem o potencial associativo, provavelmente porque se pressupõe que são as instituições formais que devem desempenhar tal tarefa(partidos políticos). No que diz respeito às razões dadas pelos entrevistados gaúchos do porque não participam as duas principais razões apontadas foram: falta de tempo (média 60%) e falta de interesse, principalmente em Ijuí e Porto Alegre, enquanto que Vale dos Sinos e Sananduva tiveram percentuais iguais (34%). O que cabe destacar destes indicadores é o que se referem à potencialidade de construção de capital social. Quando indagamos aos gaúchos se participariam de projetos que os beneficiassem, a maioria deles (93%, na média) se mostraram predispostos a participar dessas iniciativas. Em síntese, os dados do quadro 4 revelam existir uma base latente de constituição de capital social, o que não se materializa em virtude de constrangimentos de ordem material e física. Nessas circunstâncias, se estabelece um ciclo vicioso entre pobreza, exclusão social, desorganização política e apatia as quais precisam ser atacadas por meio de políticas públicas totalizantes e inclusivas, as quais necessitam estar presentes o Estado, o mercado e a sociedade. Somente pela integração orgânica entre essas instancias será possível gerar culturas políticas participativas e com orientações para fortalecer o desenvolvimento sustentável, principalmente em contextos locais. Considerações Finais 27 Se nas últimas décadas democracia e desigualdade caminharam juntas no Brasil, o principal desafio para os cientistas sociais no presente é produzir mecanismos e dispositivos que impeçam tal paralelismo, pois a desigualdade é a principal ameaça não só para a consolidação democrática, mas sobretudo para o desenvolvimento social. Está claro que imputar à democracia a responsabilidade pelas deficiências sociais seria conveniente e deslocaria a atenção da principal razão dos dilemas democráticos e que diz respeito ao tipo de modelo econômico implementado no país que é compatível com a existência da desigualdade e da pobreza. Esse modelo tem como pressuposto que a democracia e a modernização política são problemas secundários em relação à prioridade que se deve dar à estabilização econômica. Tal pressuposto gera exclusão dos cidadãos do processo político produzindo déficits deletérios na representação política. Daí por que a reforma das instituições precisa vir acompanhada de políticas de estímulo ao envolvimento político dos cidadãos por meio de mecanismos que complementem os dispositivos formais de mediação política. Isto significa que os objetivos sociais necessitam ser prioritários e centrais nas políticas públicas. O desenvolvimento social necessita de uma base política social de longo prazo que garanta a inclusão, diminua as desigualdades sociais e produza eqüidade. Tal esforço implica em ter que mudar a prática política contemporânea que desloque a ênfase da dimensão meramente econômica para a área social. Falar em democracia orientada para o social significa incorporar na pauta de discussões não só o tema do desenvolvimento econômico, tradicionalmente considerado um problema técnico, mas incorporar temas tais como a coesão social, qualidade democrática, cultura política e integração para gerar um círculo virtuoso que produza estabilidade econômica e social, desenvolvimento, inclusão e democracia orientada para o social. Nessas circunstâncias, uma cultura política participativa passaria a exigir mais da política do que a democracia. Igualmente, parece existir, atualmente um consenso a respeito de que uma sociedade necessita de um conjunto mínimo de valores comuns. Isso não significa que todos os grupos sociais tenham que aceitar todos os valores societários para promoção de coesão social. No entanto, é preciso que grupos que perseguem objetivos diferentes ou opostos concordem, pelo menos, em relação a alguns valores comuns ou, ao menos, um conjunto mínimo de princípios que governem suas vidas. Paradoxalmente, no contexto atual, parece haver uma perda generalizada desses princípios, inclusive, afetando negativamente os jovens que não dispõem de pontos de referência para a construção de identidades coletivas sólidas. Tal situação é propícia para o 28 surgimento de sub-culturas que agem de acordo com sua própria ética em detrimento de uma base ética mínima de valores compartilhados e que promovam o bem comum. Nesse cenário, a construção de uma cultura política se torna inviável. Os dados aqui examinados em diferentes sub-culturas no contexto gaúcho sugerem que estamos longe de solidificar uma base normativa de apoio aos princípios democráticos que se traduzam em um controle social mais eficiente das instituições políticas e dos gestores públicos. Cabe destacar também que os dados não são totalmente negativos, pois sugerem existir um depósito latente de predisposições políticas que poderiam ser ativadas pelo estabelecimento de uma melhor comunicação e diálogo entre atores sociais e políticos partícipes do contrato social, a saber: Estado, sociedade e mercado. Referências Bibliográficas ALMOND, Gabriel A. and VERBA, Sidney. The civic culture: Political Attitudes and Democracy in Five Nations. Princeton: Princeton University Press. 1963 BAQUERO, M.. Democracia e desigualdades na América Latina: novas perspectivas. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2007 BAQUERO, M.; PRÁ, J.. A democracia brasileira e a cultura política no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2007 BAQUERO, Marcello e PRÁ, Jussara. Cultura Política e cidadania no Brasil: Uma análise Longitudinal. In: Revista Estudos Leopoldenses. V. 28, n 129/130, setembro/ dezembro 1992. BÓRON, A. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In: GENTILI, Pablo. 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Bonn: IZA, University of Bonn. 2007. Capital Social e Desenvolvimento no Rio Grande do Sul Hemerson Luiz Pase1 Everton Santos2 Introdução A identificação e o diagnóstico dos problemas do Brasil, em particular, e dos países em desenvolvimento, em geral, é lugar comum na literatura das ciências sociais. Problemas como pobreza, concentração de riqueza, exploração do trabalho, entre outros, receberam um tratamento especial por boa parte da intelectualidade latino-americana que procurava explicar nossa situação de subdesenvolvimento, fosse através da “lei das vantagens comparativas”, como a concepção clássica de Paul Samuelson, que ressaltava as vantagens que teríamos na especialização como produtores primários em relação aos países industrializados, como forma de superarmos nosso atraso, ou mesmo através da crítica da Cepal a este autor, que demonstrava que, ao contrário do que Samuelson defendia, o nosso subdesenvolvimento em relação aos chamados centros desenvolvidos estava ligado exatamente à falta de dinamismo de nossas estruturas produtivas, baseado num punhado de produtos primários, com pouco desenvolvimento industrial e tecnológico que insistíamos em produzir (MANTEGA, 1990)3, Assim, a saída estava na industrialização e não na especialização em produtos primários. O lugar comum deste tipo de explicação sobre as mazelas brasileiras recaía sempre em ilações exógenas e macro-analíticas dos dilemas nacionais. As possibilidades do desenvolvimento ligavam-se à superação de certos obstáculos estruturais do sistema capitalista internacional. Não desconsiderando a importância desta bibliografia para a compreensão do processo histórico brasileiro, pretendemos, neste capítulo, inflexionar por uma episteme que explique o Brasil e particularmente o Rio Grande do Sul, dando acento aos problemas de ordem endógena em detrimento das exógenas. Em outras palavras, explicar o Brasil pelo Brasil. 1 O autor é pesquisador da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária - Fepagro e Professor da Universidade de Caxias do Sul. Graduado em Filosofia, Mestre em Desenvolvimento Rural e Doutor em Ciência Política pela UFRGS. E-mail: [email protected]. 2 O autor é pesquisador e professor no Centro Universitário FEEVALE, onde coordena o Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional e o Mestrado Profissional em Inclusão Social e Acessibilidade. É também professor na Universidade Luterana do Brasil, no Programa de Pós-Graduação em Odontologia. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela UFRGS. E-mail: [email protected]. 3 No interior da Cepal, encontramos importantes intelectuais brasileiros, entre eles Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares e Fernando Henrique Cardoso, que desenvolveram a chamada “teoria da dependência”. 31 Interessa-nos, assim, sublinhar as tarefas que nos cabe realizar para o desenvolvimento, independentemente, num primeiro momento, das questões estruturais da sociedade internacionalizada onde estamos inseridos e de que somos parte. Assim, o desenvolvimento aqui entendido constitui-se na ampliação das capacidades humanas da população de um país ou região nas suas múltiplas dimensões, isto é, ampliação da longevidade das pessoas, de sua saúde, de seus níveis de instrução e da participação na vida em comunidade (SEN, 2000). A realidade brasileira, e gaúcha particularmente, carece de várias destas dimensões, pois a democracia que construímos até o momento, muito embora tenha vencido etapas importantes, não foi suficiente para impulsionar um processo de desenvolvimento consistente, principalmente para os setores mais pobres da população. Se observarmos os últimos vinte anos da agenda política brasileira desde a transição democrática iniciada com as eleições indiretas em 1985, veremos um longo painel. Nele, a construção democrática e as possibilidades do desenvolvimento constituem-se num caminho tortuoso que podemos resumir em três grandes desafios. O primeiro foi o desafio “político”, onde transitamos de um regime autoritário para um regime democrático no governo Sarney; o segundo foi o “econômico”, a estabilidade monetária com Fernando Henrique Cardoso; o terceiro desafio foi o “social”, com a reorganização dos programas sociais e a diminuição das desigualdades sociais no governo Lula nos últimos anos.4 Olhando estes desafios dentro do mesmo processo histórico, perceberemos que a construção da democracia e do próprio desenvolvimento conseqüentemente constitui-se em tarefa complexa e lenta. Todavia, hoje, muito mais do que na década de oitenta, a agenda social não somente se impõe como encontra condições mais adequadas (políticas e econômicas) para ser conduzida. A bibliografia especializada que segue uma perspectiva endógena (PUTNAM, 2000) tem enfatizado que as possibilidades do desenvolvimento estariam mais relacionadas ao volume de capital social existente em uma determinada sociedade, ou seja, com laços de solidariedade, confiança interpessoal e sistemas de participação social, do que com fatores exógenos, como aludimos anteriormente. Que estas características cívicas contribuem para o processo de desenvolvimento, ou seja, daquela ampliação das capacidades humanas de que nos fala Sen (2000), quer seja através da comunicação, coordenação, troca ou ajuda mútua para a construção de bens e serviços que beneficiem amplas parcelas da população. 4 Muito embora nas últimas décadas a desigualdade social na América Latina tenha sido uma constante observando-se longitudinalmente, nos últimos anos há uma leve , inflexão de acordo com os últimos dados do IBGE, na diminuição dos percentuais de pobreza no Brasil. , 32 Destarte, neste capítulo, procuraremos analisar a relação existente entre capital social e desenvolvimento a partir do estudo de duas regiões do Rio Grande do Sul: o COREDE Nordeste e o COREDE Vale do Rio dos Sinos. Nossa hipótese central afirma que o capital social impulsiona o desenvolvimento, cuja determinação ocorre proporcionalmente ao empoderamento (empowerment), enquanto capacidade de decidir e deliberar da sociedade. A metodologia utilizada recolhe os resultados de pesquisa do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP VALE DOS SINOS e do projeto de pesquisa “Capital social e desenvolvimento regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste”. Ambos foram surveys aplicados nos respectivos COREDES totalizando cerca de 1200 questionários. Trabalhamos com erro amostral de 4% e confiança de 95%. Além disso, foram observadas informações obtidas através de entrevistas realizadas com associados da Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária – CRESOL, com sede em Sananduva, no COREDE Nordeste. Importante destacar que o sistema de crédito CRESOL foi criado por lideranças de Movimentos Sociais do Campo, principalmente do sindicalismo rural e da agricultura familiar vinculados ao Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), financiado pelo governo Federal. Queremos confirmar como a interação entre o Estado e a sociedade pode fomentar e impulsionar o aprimoramento do capital social. A confiança, a solidariedade e a reciprocidade serão indicadores de existência de capital social, que será considerado variável independente em relação ao desenvolvimento socioeconômico, medido pelo Índice de Desenvolvimento Sócio-Econômico – IDESE. O empoderamento é variável interveniente, pois configura-se como o elo de ligação entre o capital social e o desenvolvimento. Na primeira parte, abordaremos o capital social, definindo sua matriz histórica e teórica. Na segunda parte, discutiremos o desenvolvimento e o empoderamento enquanto conceitos inter-relacionados. Na terceira parte, analisaremos em que medida esta elaboração teórica possui aplicabilidade empírica a partir da análise dos dados referentes aos dois COREDES. Capital Social O capital social é um conceito que considera as características culturais, de existência de confiança, reciprocidade e solidariedade na sociedade civil, vitais para o aperfeiçoamento 33 da democracia, das comunidades, das pessoas e, inclusive, da sociedade política, o Estado (PUTNAM & GOSS, 2002). Precursor a utilizar o conceito de capital social, o filósofo francês Pierre Bourdieu estendeu-o para além dos limites tradicionalmente econômicos, aplicando-o a dimensões nãomateriais e simbólicas, embora possibilitadoras de acesso a recursos econômicos. “O capital social é constituído pelo conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento” (BOURDIEU, 1980, p. 2). James Coleman entende o capital social como a possibilidade de facilitar a ação de diferentes tipos de atores sociais. Assim como outras formas de capital, o capital social é produtivo, possibilitando a realização de certos objetivos que seriam inalcançáveis se ele não existisse (...). Por exemplo, um grupo cujos membros demonstrem confiabilidade e que depositem ampla confiança uns nos outros é capaz de realizar muito mais do que outro grupo que careça de confiabilidade e confiança (...). Numa comunidade rural (...) onde um agricultor ajuda o outro a enfardar o seu feno e onde os implementos agrícolas são reciprocamente emprestados, o capital social permite a cada agricultor realizar o seu trabalho com menos capital físico sob a forma de utensílios e equipamento. (COLEMAN, 1990, p. 302, 304 e 307, apud PUTNAM, 2000, p. 177). Robert Putnam (2000) insere o capital social como categoria heurística para explicar os problemas da ação coletiva, cuja solução supera a proposição dos seguidores da teoria dos jogos e do individualismo metodológico. Para eles, a ação coletiva é resolvida através de um cálculo racional onde os participantes tomam suas decisões, com base numa análise em termos de custo e benefício, cujos resultados normalmente são sub-ótimos, ou seja, produzem resultados medianos para todos. Isto ocorre em razão de que os participantes desconfiam uns dos outros, materializando este sentimento em suas decisões. A desconfiança pode ser abrandada quando ocorrem várias rodadas de jogos com regras claras respeitadas; no entanto, nada garante sua superação pela confiança (PUTNAM, 2000). Para Putnam (2000), a teoria dos jogos explica, em grande medida, a ação coletiva; no entanto, vários processos sociais possuem a lógica da confiança, onde o ator decide crendo, confiando no outro. Nestes casos a decisão do indivíduo não visa, necessariamente, um benefício individual imediato, e sim o benefício da comunidade, cuja fonte é a confiança de 34 que, mesmo no futuro, o outro/outros indivíduos farão o mesmo. Esta lógica baseia-se numa rede social que possui regras e normas claras com sanções proibitivas para os desertores. O processo social que produz como resultado o bem comum ou o bem de uma coletividade, baseado na confiança, reciprocidade e solidariedade, é definido pelo autor como capital social. No caso italiano, o capital social possibilitou o engajamento cívico e a participação social e política, o que, por sua vez, construiu instituições democráticas e um sistema de governo democrático, bem como impulsionou o desenvolvimento econômico. Este engajamento cívico desenvolve-se a partir da participação em associações horizontais, de grupos de iguais, tais como clubes de futebol, associações de moradores, confrarias, corais, etc. Nestes espaços, os cidadãos identificam-se e socializam um sentimento de cumplicidade e confiança neles próprios e nas regras que criam. O capital social contribui para aumentar a eficiência da sociedade e facilitar ações coordenadas. Nos seus escritos sobre os Estados Unidos da América, Putnam (2000) desenvolve a tese de que a mudança de hábitos, ocorrida nas últimas décadas, fez diminuir o estoque de capital social da sociedade americana. A pujante vida associativa que será fundamental para o sucesso do capitalismo norte-americano estaria em declínio na primeira metade do século XIX. Para o autor, a apatia dos norte-americanos em relação à democracia, materializada pelos elevados índices de não-comparecimento às urnas, ocorre em razão do declínio das redes de engajamento cívico que marcaram sua história. Para Putnam (2000), a diferença da natureza associativa tem razões culturais. A superioridade econômica dos Estados Unidos, em relação ao restante da América, comprova esta tese. A tradição horizontal comunitária britânica foi herdada pelos norte-americanos, ao passo que a América Latina recebeu como dote a verticalidade ibérica. Max Weber já destacava o papel da ética protestante na estruturação de redes horizontais de colaboração, diferentes das culturas de tradição católica, que são verticalizadas. Soares (1993) também afirma que a influência da tradição religiosa é um dos elementos importantes para explicar as diferenças de desenvolvimento social e econômico entre os EUA e o restante da América. As normas de reciprocidade generalizada alimentam um sentimento de confiança, pois são categorias centrais para o conceito de capital social, que influencia no desempenho político e econômico. Tais normas implicam a crença, dos membros da comunidade, de que o comportamento altruísta presente, que contribui para o bem-estar, será retribuído no futuro. Estas redes de engajamento cívico robustecem as normas de reciprocidade, cuja influência 35 produz sanções para aqueles que não retribuem, tornando-se eficazes na medida em que a informação sobre a confiabilidade é comunicada através das redes. Putnam (2000), ao lado de Coleman, procura demonstrar as condições sob as quais as instituições públicas conseguem mobilizar os recursos sociais para alcançar um grau elevado de bem-estar coletivo. Ao longo da história (...) as normas e os sistemas de participação cívica promoveram o crescimento econômico, em vez de inibi-lo. Tal efeito continua até hoje. Nas duas décadas transcorridas desde a criação dos governos regionais, as regiões cívicas cresceram mais rápido do que as regiões onde há menos associações e mais hierarquia (...). A teoria formulada neste capítulo ajuda a explicar que o capital social, corporificado em sistemas horizontais de participação cívica, favorece o desempenho do governo e da economia, e não o oposto: sociedade forte, economia forte; sociedade forte, Estado forte (PUTNAM, 2000, p. 186). A partir de suas pesquisas sobre os EUA, Putnam (2000) sofrerá muitas críticas, oriundas principalmente de teóricos ligados ao neo-institucionalismo. A principal delas afirma seu determinismo histórico e cultural (EVANS, 1996) que, no afã de comprovar esta afirmação, cai noutra normatividade, que é a da afirmação do determinismo institucionalista. O debate central parece estar localizado na identificação do princípio último (como diriam os filósofos pré-socráticos) criador, ou gerador: o que é mais importante: capital social ou instituições? É possível que nenhuma das formulações seja completamente verdadeira, é possível que as duas situações possam conviver e, ainda, é provável que a determinação dependa do contexto social que se está analisando (BAQUERO, 2003). Para Baquero, a existência de confiança não só cria um ambiente de credibilidade e, conseqüentemente, de legitimidade, como fortalece o contrato social (...). A credibilidade de um sistema político e seu eficiente desempenho, portanto, depende do grau de confiança que as pessoas têm nas instituições (...). Sem confiança a democracia não sobrevive ( BAQUERO, 2003, p. 96, 97 e 100). O entusiasmo de teóricos e estadistas a respeito do conceito de capital social relacionase à sua potencialidade de estabelecer uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado. 36 Este conceito possibilita à ciência analisar possibilidades inovadoras de relação entre as pessoas e o “poder” enquanto tal. Desenvolvimento e Empoderamento O conceito de desenvolvimento surge no século XIX, inserido no ambiente social e intelectual da modernidade, gestada historicamente pelas revoluções Francesa e Industrial e pela constituição dos Estados nacionais, e situada intelectualmente nos princípios liberais, cujo conteúdo sinaliza a possibilidade de progresso humano e material ilimitado (PASE, 2001). Ocupa espaço relevante na literatura a partir do final da Segunda Guerra Mundial, cujos reflexos modificam por completo o cenário planetário. Até então o termo desenvolvimento é sinônimo de progresso, conceito que supõe determinismo histórico evolucionista no sentido de uma escalada do pior para o melhor, do atrasado para o moderno, do tradicional para o desenvolvido, do rural para o urbano. Nos anos 1970, o debate sobre desenvolvimento sustentável emerge no cenário internacional, animado principalmente pela Conferência das Nações Unidas para o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, que define a necessidade de associar o crescimento econômico à preservação do meio ambiente. Uma das premissas do desenvolvimento sustentável, naquele momento, foi o reconhecimento da inadequação econômica, social e ambiental do desenvolvimento em relação à manutenção do equilíbrio ambiental planetário nas sociedades contemporâneas. A satisfação das necessidades humanas, a qualidade de vida e do meio ambiente apresentaram-se como elementos interdependentes e, portanto, a pobreza surge como uma das principais causas da degradação da natureza. Seguramente o crescimento econômico é importante para o desenvolvimento. Contudo, a qualidade de vida, a sustentabilidade ambiental, a eqüidade e o respeito cultural da população passam por um conjunto de elementos que, embora reais e urgentes, ainda carecem de formulação precisa por parte da academia. Indicadores, como o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, formulado pela ONU, que mensura, além da pobreza, educação e esperança de vida, são importantes, porém ainda insuficientes. Um debate crescentemente importante é o que se refere à relação entre o desenvolvimento e a política, ou seja, a relação entre o processo de realização humana e a forma de os governos conduzirem este, articulando-se com a sociedade. Embora muitos 37 trabalhos tenham demonstrado a fragilidade da democracia para resolver os problemas dos mais pobres, ainda é consensual que é o regime que mais garante os direitos civis e políticos. Nessa perspectiva de análise, Amartya Sen afirma: (...) a relevância intrínseca dos direitos civis e políticos (nós acrescentaríamos direitos humanos), garantidos pela democracia autoriza a defender sua vigência sem que seja necessário demonstrar se esta forma de democracia fomenta ou não o crescimento econômico. Este posicionamento, não deixa de ser uma novidade se se leva em conta que por muito tempo a teoria democrática liberal vigente recomendava sacrificar alguns direitos políticos e civis, por considerá-los como obstáculos para o desenvolvimento (SEN, 1998, p. 597, apud BAQUERO, 2003, p. 83). Todavia, acreditamos que na democracia é possível empreender um processo de reconstrução de um contrato social, em bases distintas daquela dos clássicos, onde se produzam ações e possibilidades diferenciadas para grupos desiguais, com destaque para aqueles que mais necessitam. Sen é muito enfático ao afirmar que “o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente” (SEN, 2000. p. 10). Contemporaneamente, o conceito de desenvolvimento considera o crescimento econômico, porém incorpora dimensões que dizem respeito à liberdade de escolhas individuais e sociais e a participação efetiva na tomada de decisões a respeito da produção e distribuição das riquezas, bem como dos seus custos, principalmente culturais e ambientais. Outro conceito relacionado ao desenvolvimento é o de empowerment, de raízes teóricas na Reforma protestante, que se opõe frontalmente ao paternalismo, cuja tradução menos imprecisa para o português é “empoderamento”. No século XX, passa a ser utilizado nos Estados Unidos da América pelos “novos movimentos sociais” (direitos cívicos, negros, homossexuais, feministas, portadores de deficiência), que lutam por cidadania, contra a opressão e o pré-conceito (BAQUERO, R., 2005). Segundo Wallerstein e Bernstein (1994), o empoderamento pode ocorrer nos níveis individual, organizacional e comunitário. O individual diz respeito ao aumento da capacidade de os indivíduos influírem na sua vida. O organizacional significa contribuir com as decisões da organização (empresarial) para melhorar seu desempenho. O empoderamento comunitário capacita os “grupos sociais desfavorecidos para a articulação de seus interesses e participação 38 comunitária, visando conquista plena dos direitos de cidadania, defesa de direitos e influenciar ações do Estado.” (BAQUERO, R., 2005, p. 73). Uma tentativa de avançar qualitativamente no conceito de empoderamento encontra-se em Paulo Freire, cujo pensamento agrega a noção de conscientização enquanto um processo de conhecimento que se dá na relação dialética homem-mundo, num ato de ação-reflexão (FREIRE, 1979). Segundo Baquero (2005), a contribuição de Paulo Freire nos conduz a entender o empoderamento como processo e resultado, pode ser concebido como emergindo de um processo de ação social, no qual os indivíduos tomam posse de suas próprias vidas pela interação com outros indivíduos, gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo a construção da capacidade pessoal e social e possibilitando a transformação de relações sociais de poder (BAQUERO, R., 2005, p. 76). A inter-relação entre capital social e empoderamento pode contribuir para superar problemas como a situação de pobreza de pessoas e comunidades, transformando as relações de poder em favor daqueles que tinham pouca autoridade para que tenham controle sobre os recursos – físicos, humanos, intelectuais, financeiros e de seu próprio ser – e sobre a ideologia – crenças, valores e atitudes (BAQUERO, R., 2005). John Durston (2001) afirma que os grupos e comunidades que têm considerável reserva de capital social em suas variadas manifestações podem cumprir melhor e mais rapidamente com as condições de empoderamento. O acesso às redes que transcendem os círculos fechados da comunidade pobre e o capital social comunitário manifestado em diferentes formas de associativismo são elementos importantes para o empowerment das pessoas e das comunidades. A cultura importa Segundo a perspectiva que adotamos neste capítulo, a cultura política de uma sociedade influencia decisivamente o desenvolvimento social, econômico e político das regiões. A confiança, reciprocidade e solidariedade, embasadas em normas claras e na livre e vigorosa circulação de informações definem o capital social, cuja potencialidade de obter resultados e/ou bens tangíveis é inegável embora, muitas vezes, insuficiente (PUTNAM, 2000). 39 Aplicando esta perspectiva teórica ao caso do Rio Grande do Sul, Bandeira (2003) estabelece uma diferença regional no Estado muito semelhante ao que Putnam (2000) fez na Itália. Como uma primeira aproximação haveria uma diferença entre o “Norte colonial”, cuja matriz é de imigrantes europeus, com a existência de pouca escravidão e predomínio do minifúndio e, em contraste, nós teríamos no “Sul” uma matriz com o predomínio do latifúndio e o uso extensivo da mão-de-obra escrava. No que se refere à primeira região, Bandeira (2003) ressalta que estas zonas coloniais de imigração estão dotadas de mais capital social do que as da região Sul. Nas primeiras encontramos uma infinidade de associações recreativas, clubes sociais, sociedades de canto, de atiradores e artísticas, bem como uma intensa vida social colaborativa e cooperativa entre os primeiros colonos que aqui chegaram no século XIX. Nas áreas de colonização italiana, por exemplo, também se registra esta cooperação, um grupo fazia a colheita quando um colono estava doente, assim como a conservação da estrada era feita por todos, bem como os acordos para a construção do cemitério, a construção da capela por iniciativa dos pequenos proprietários rurais (DE BONI e COSTA, 1979 apud BANDEIRA, 2003). Assim, o nível de confiança inerente numa sociedade é considerado essencial para o fortalecimento do desenvolvimento das regiões. Coerentemente com esta assertiva teórica, são os COREDES em análise mais ao Norte, COREDE Nordeste e COREDE Vale do Rio dos Sinos os melhor posicionados do estado em termos de IDESE. A Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser (FEE) calcula o Índice de Desenvolvimento Sócio-Econômico – Idese, para o Rio Grande do Sul, municípios e COREDES. O Idese é um índice sintético, inspirado no IDH, que abrange um conjunto amplo de indicadores sociais e econômicos classificados em quatro blocos temáticos: Educação; Renda; Saneamento e Domicílios; e Saúde. O IDESE varia de zero a um e, assim como o IDH, permite que se classifique o estado, os municípios ou os COREDES em três níveis de desenvolvimento: baixo (índices até 0,499), médio (entre 0,500 e 0,799) ou alto (maiores ou iguais que 0,800). Muito embora sejam considerados de índices médios, os COREDES em análise ficam nas primeiras posições do estado. O COREDE Vale do Rio dos Sinos está no 3º lugar com 0,769 no ranking do Índice de Desenvolvimento Socioeconômico – IDESE, para o ano de 2003, acima do índice do próprio Rio Grande do Sul, que é de 0,754. O COREDE Nordeste também ocupa as primeiras classificações com o 5º lugar com um índice de 0,752, também próximo do índice do estado. Se compararmos estes índices com a outra ponta, com os 40 COREDES mais ao Sul, nós teremos o COREDE Campanha com 0,745, no 10º lugar e o COREDE Sul com 0,734, no 13º lugar. Pesquisas efetuadas na Região Sul (englobando os COREDES Sul e Campanha) mostram que os índices de capital social lá são baixos. A Tabela 1 indica que a região Sul possui baixos estoques de capital social na comparação com as demais.5 Tabela 1- Nível de Confiança Interpessoal COREDES e Região Sul (%) Se pode confiar COREDE Nordeste 19,2 COREDE Feevale 30,8 Região Sul 15,1 80,8 69,2 83,3 100 100 100 (Pode-se confiar na maior parte das pessoas) Não se pode confiar (É preciso muito cuidado ao tratar com outras pessoas) TOTAL Fonte: Projeto de Pesquisa “Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste”, pesquisa “Capital Social, Democracia, Desempenho Institucional e Desenvolvimento Sustentável no Vale do Rio dos Sinos”, do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE, e pesquisa “Desenvolvimento Regional, Cultura Política e Capital Social”, do Laboratório de Observação Social – LABORS/UFRGS. Total: 2679. Numa perspectiva de comparação espacial, a Tabela 1 aponta 80,8% no COREDE Nordeste e 69,2% no COREDE Vale do Rio dos Sinos e 83,3% na Região Sul, de pessoas que disseram que “não se pode confiar nas pessoas”. Na resposta “se pode confiar nas pessoas”, aparecem 19,2% para o COREDE Nordeste e 30,8% no Vale do Rio dos Sinos e em último lugar a Região Sul 15,1%. De uma forma geral, podemos verificar que estas duas regiões (Nordeste e Vale dos Sinos) estão mais dotadas de capital social e, conseqüentemente, de IDESEs melhores para os anos de 2003 e 2004. Contudo, no ano de 2004 o COREDE Nordeste cai para a 17a posição no IDESE, mesmo tendo capital social mais alto do que no Sul. Como explicar este fato? Devemos observar que no ano de 2004 o COREDE Nordeste passou por uma alteração significativa, 5 Muito embora a formulação da pergunta (para a Região Sul) não seja idêntica à nossa pesquisa, incorporamos este dado de Pesquisa do Laboratório de Observação Social – LABORS/UFRGS, por julgarmos que há uma semelhança que mais ajuda na compreensão do que prejudica, já que a teoria é indicativa de certos padrões que o dado corrobora. 41 perdendo o município de Vacaria que possui um IDESE alto e incorporando outros com IDESE mais baixo do COREDE Hortências. Essa é a razão da piora do IDESE do COREDE Nordeste, que cai da 5a posição (2003) para a 17a (2004). Já o COREDE Hortências melhorou de 17° (2003) para 7° (2004). Observamos que houve uma inversão em favor do COREDE Hortências. O COREDE Vale do Rio dos Sinos permaneceu inalterado tanto em termos geográficos, quanto sócio-econômicos na 3a posição no ranking do IDESE, bem como os COREDES Sul e Campanha, que ficaram relativamente nas mesmas posições. Em 2004, o Sul cresceu uma posição e a Campanha caiu uma, no IDESE, pois não houve alteração como no Nordeste. Ou seja, muito provavelmente, guardados os limites geográficos de 2003, o COREDE Nordeste teria aumentado seu IDESE, corroborando a tese de que o capital social influencia nos índices de desenvolvimento. Comparando o COREDE Vale do Rio dos Sinos e os COREDES Sul e Campanha para 2004, nós observamos que houve um crescimento de 0,004 no IDESE do Vale do Rio dos Sinos contra 0,002 dos COREDES ao Sul. O primeiro COREDE, dotado de maior volume de capital social, cresceu mais. Todavia, quando verticalizamos a análise no que se refere aos níveis de confiança interpessoal, em resposta dada à pergunta “Se precisasse viajar por um ou dois dias da semana, o/a sr/a poderia contar com vizinhos para cuidar da sua casa e/ou filhos?”, o COREDE Nordeste passa à frente do COREDE do Vale do Rio dos Sinos. Tabela 2- Nível de Confiança nos Vizinhos Sim Provavelmente Não Total COREDE Nordeste FQ (%) 458 76,0 76 12,6 69 11,4 603 100 COREDE Vale dos Sinos FQ (%) 422 71,3 55 9,3 115 19,4 592 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total:1195 Na Tabela 2, observamos que no Nordeste 76,0% das pessoas confiam em seus vizinhos e no Vale do Rio dos Sinos 71,3%. Entretanto, chama a atenção o fato de que 19,4% no COREDE Vale do Rio dos Sinos responderam que “Não confiam em seus vizinhos”, 42 contra 11,4% no COREDE Nordeste que responderam negativamente, o que demonstra ter o COREDE Nordeste um percentual de maior confiança em seus vizinhos do que no COREDE do Vale do Rio dos Sinos. Nesta mesma direção, a Tabela 3 vem reforçar os percentuais maiores de confiança interpessoal no COREDE Nordeste, quando perguntamos: “Em uma situação de emergência, como a doença de um familiar ou perda de emprego, o/a sr/a receberia ajuda de familiares, vizinhos ou colegas de trabalho?”. Tabela 3- Nível de confiança em Familiares, Vizinhos e Colegas de Trabalho De familiares De vizinhos De colegas de trabalho Total COREDE Nordeste FQ (%) 387 79,9 91 18,8 6 1,3 484 100 COREDE Vale dos Sinos FQ (%) 492 88,6 45 8,1 18 3,3 555 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total:1039. Como podemos observar, na Tabela 3 o “familismo”, na perspectiva posta por Fukuyama (1996) é mais forte no COREDE do Vale do Rio dos Sinos, com 88,6% de pessoas que responderam que receberiam ajuda de seus familiares, contra 79,9% do COREDE Nordeste. Coerentemente com este dado, no Nordeste, onde temos menos “familismo”, 20,1% das pessoas receberiam ajuda de seus vizinhos ou colegas de trabalho, contra 11,4% no Vale do Rio dos Sinos. Se o Nordeste é menos “familista” e confia mais em seus vizinhos, teoricamente esperávamos que houvesse mais confiança nas associações comunitárias, conseqüentemente, o que de fato acontece, pois a Tabela 4 vai exatamente nesta direção, demonstrando que 52,3% das pessoas que moram no COREDE Nordeste confiam muito nas associações comunitárias e 6,9% não confiam. Das pessoas que moram no COREDE Vale do Rio dos Sinos, apenas 41,6% disseram que confiam muito nas associações comunitárias (uma diferença, para menos, de mais de 10%) e 18,4% disseram não confiar. Ou seja, este último dado indica que o número de pessoas que não confiam nas associações comunitárias no COREDE Vale do Rio dos Sinos é mais do que o dobro do Nordeste. Tabela 4- Confiança nas Associações Comunitárias 43 Confia muito Confia pouco Não confia Total COREDE Nordeste FQ (%) 311 52,3 243 40,8 41 6,9 595 100 COREDE Vale dos Sinos FQ (%) 217 41,6 209 40,0 96 18,4 595 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total: 1190. Nas quatro tabelas analisadas na comparação entre os COREDES, observamos que, à exceção da primeira em que perguntamos no sentido genérico sobre a confiança interpessoal, o COREDE Nordeste se sobressai positivamente na dotação de capital social em relação ao COREDE do Vale do Rio dos Sinos em todas restantes. Evidencia-se maior solidariedade e colaboração entre os cidadãos do COREDE Nordeste. Na Tabela 5, observamos que mais da metade da população do COREDE Nordeste participa de algum grupo ou organização (56,3%), contra apenas 18,4% da região do Vale do Rio dos Sinos. Tabela 5- Participação em Grupos ou Organizações COREDE Nordeste FQ (%) 337 56,3 262 43,7 599 100 Sim Não Total COREDE Vale dos Sinos FQ (%) 110 18,4 489 81,6 599 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total: 1198. Quando procuramos medir os níveis de solidariedade entre as regiões, o COREDE Nordeste nos surpreende positivamente, pois, conforme a Tabela 6, 61,4% das pessoas responderam que nos últimos anos tentaram resolver algum problema local associadas a outras, enquanto praticamente a metade, 32,5% dos entrevistados no COREDE Vale do Rio dos Sinos, tentaram resolver algum problema com a ajuda da comunidade. Ou seja, verifica-se uma queda significativa. Tabela 6- Resolução de Problema Local com a Comunidade Sim Não COREDE Nordeste FQ (%) 366 61,4 230 38,6 COREDE FEEVALE FQ (%) 193 32,5 400 67,5 44 Total 596 100 593 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total: 1189. Observando a Tabela 7, vemos que os estoques de capital social são maiores no COREDE Nordeste, em comparação com o COREDE Vale do Rio dos Sinos. Neste último, a média de capital social é de 0,292 e no Nordeste é de 0,426. Aplicando-se o teste t no COREDE Nordeste, temos capital social médio significativamente maior do que no COREDE Vale do Rio dos Sinos (t=18,591;p=0,000). Tabela 7- Índice de Capital Social (ICS) COREDE Nordeste e Vale dos Sinos6 Alto Médio Baixo Total COREDE Nordeste FQ (%) 35 5,8 434 71,6 137 22,6 606 100 COREDE Vale dos Sinos FQ (%) 5 0,8 203 33,8 392 65,3 600 100 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste e Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE. Total: 1206. Com índices melhores de capital social no Nordeste, não é surpreendente que suas posições no ranking do IDESE tenham saltado da 7a posição no ano de 2000 para a 5a em 2003, ao passo que o COREDE Vale do Rio dos Sinos manteve-se na 3a posição durante estes três anos. Assim, o capital social pode estar funcionando como um rio caudaloso, como uma variável importante, aliada a outras, que incide sobre os índices de desenvolvimento da região. Neste sentido, analisando mais detidamente o COREDE do Vale do Rio dos Sinos, a partir dos índices de capital social, procuramos estabelecer uma relação entre capital social e 6 Este Índice de Capital Social (ICS) foi construído de forma idêntica para os dois COREDES a partir da seleção de 9 questões relativas ao capital social, são elas: “Em termos gerais, o senhor diria que se pode confiar nas pessoas ou não se pode confiar nas pessoas?” Sim (peso 2), Não (peso 0); “Gostaria de saber se o senhor confia muito (peso 2), pouco (peso 1) ou não confia (peso 0) na: igreja, família, vizinhos, associações comunitárias, sindicatos”; “O senhor costuma participar de: partidos políticos, reuniões políticas, comícios, associações comunitárias, associações religiosas, associações sindicais, conselhos populares, ONG’s, orçamento participativo, abaixo-assinados, manifestações ou protestos, greves, ocupação de terrenos ou prédios públicos, outros” Sim (peso 2), Não (peso 0); “Nos últimos anos, o senhor tentou resolver algum problema local do bairro/comunidade junto com outras pessoas?” Sim (peso 2), Não (peso 0); “Dentre os grupos que eu vou mencionar, quais deles existem no seu bairro: grupo político, grupo ou associação cultural, grupo educacional, grupo esportivo, grupo de jovens, ONG ou grupo cívico, grupo baseado na comunidade étnica, grupos de mulheres, outro” Sim (peso 2), Não (peso 0); “Atualmente o senhor participa de algum grupo ou organização?” Sim (peso 2), Não (peso 0); “Se precisasse viajar por um ou dois dias, o senhor poderia contar com vizinhos para cuidar da sua casa e/ou filhos?” Sim (peso 2), Provavelmente (peso 1), Não (peso 0); “Em uma situação de emergência como a doença de um familiar ou perda de emprego, o senhor receberia ajuda” familiares (peso 0), vizinhos (peso 2), colegas de trabalho (peso 2); “Se um projeto da : comunidade não lhe beneficia diretamente, mas pode beneficiar outras pessoas do seu bairro, o senhor contribui pra este projeto?” Sim (peso 2), Não (peso 0). 45 desenvolvimento. Conforme nossa hipótese central, cruzamos o ranking do IDESE dos municípios que compõem o COREDE com os Índices de Capital Social (ICS) da região. Verificamos que os três primeiros colocados em termos de IDESE, como Canoas (0,820), Esteio (0,819) e Campo Bom (0,813), apresentam igualmente ICS de 47,1%, 24,93% e 23,9%, respectivamente. Já os três últimos colocados em termos de IDESE, pontuam pouco ou nada em ICS: Portão (2,5), Nova Santa Rita (0,0), Nova Hartz (0,0) conforme Tabela 8 abaixo. 7 Tabela 8- Correlação IDESE e Índice de Capital Social COREDE Vale dos Sinos Cidade 1ª Canoas 2ª Esteio 3ª Campo Bom 12ª Portão 13ª Nova Hartz 14ª Nova Santa Rita IDESE 2004 0,820 0,819 0,813 0,678 0,632 0,613 Índice de Capital Social Alto 47,1% 24,9% 23,9% 2,5% 0,0% 0,0% Fonte: Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional/CPP FEEVALE e Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE). No COREDE Nordeste novamente encontramos esta relação. Verificamos que os três primeiros colocados em termos de IDESE, como Lagoa Vermelha (0,777), Tapejara (0,761) e Sananduva (0,757), apresentam igualmente ICS mais altos, 28,4%, 10,4% e 26,1%, respectivamente. Já os três últimos colocados em termos de IDESE, pontuam pouco ou nada em ICS: Tupanci do Sul 1,4%, Pinhal da Serra 4,7% e Santa Cecília 1,8%, conforme Tabela 9. Tabela 9- Correlação IDESE e Índice de Capital Social COREDE Nordeste Cidade 1ª Lagoa Vermelha 2ª Tapejara 3ª Sananduva 21ª Tupanci do Sul 22ª Pinhal da Serra 23ª Santa Cecília IDESE 2004 0,777 0,761 0,757 0,645 0,643 0,599 7 É importante ressaltar que os dados da pesquisa aplicados em cada cidade do COREDE Índice de Capital Social Alto 28,4% 10,4% 26,1% 1,4% 4,7% 1,8% vêm ao encontro do que nossa hipótese sugere. No entanto, para fins de generalização seriam necessárias futuras pesquisas que tenham amostras representativas das populações dessas cidades, pois nossa amostra não é estatisticamente representativa destas populações. Também é importante ressalvar que Nova Santa Rita e Nova Hartz entraram no sorteio da amostra, mas não foram escolhidas no sorteio aleatório da região para aplicação dos questionários. Todavia, a indicação do índice de Portão dá um indicador do comportamento destas cidades (Nova Santa Rita e Nova Hartz). 46 Fonte: Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE) e Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste. Neste capítulo, estamos procurando estabelecer as relações entre capital social e desenvolvimento, demonstrando o quanto o primeiro é benéfico para este último; no entanto, as sociedades que não tenham construído capital social devem ser condenadas ao desespero do determinismo histórico do atraso? Há na bibliografia especializada um argumento de que o capital social pode ser impulsionado ou construído a partir de ações institucionais, principalmente movidas pelo Estado (COLEMAN, 1990). Nesta perspectiva, a Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária (CRESOL) no COREDE Nordeste (Sananduva), que é formada exclusivamente por agricultores familiares e atua com microcrédito rural e /ou agropecuário vinculado ao Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), financiado pelo Governo Federal, constitui-se num bom exemplo de instituição fomentadora de capital social e, conseqüentemente, empowerment, pois capacita este grupo a articular seus interesses frente ao Estado. Um dos mecanismos utilizado pela CRESOL para a concessão do microcrédito é o “aval solidário”, que consiste na formação de grupos de tomadores, mínimo de 3, que assumem uma responsabilidade mútua, recíproca, pelos financiamentos recebidos. Algumas vezes essa reciprocidade avança para a combinação de investimentos em conjunto. Na Figura 1 apresentam-se os níveis de confiança generalizada dos participantes da cooperativa. Figura 1 - Relação entre confiança generalizada e participação na cooperativa de crédito 75,7 80 72,2 65,7 70 60 47 50 35,2 40 Confia 27,7 30 21,3 17,6 22,2 NS 20 6,4 2,9 5,5 10 0 Participa Não confia Não n= 584 NR NR 47 Fonte: Projeto de Pesquisa Capital Social e Desenvolvimento Regional: a importância do capital social no desenvolvimento territorial do COREDE Nordeste. Ela proporciona um espaço de aproximação e desenvolvimento da confiança mútua. A Figura 1 mostra que entre aqueles que participam da cooperativa 27,7 % confiam nas pessoas e 21,3 % não confiam, já entre aqueles que não participam da cooperativa 65,7 % confiam nas pessoas, mas 75,7% não confiam. Ou seja, a não-participação aumenta em 10% a desconfiança entre as pessoas, o que demonstra que os participantes da cooperativa possuem, ou estão sendo incentivados a desenvolver capital social. Esta informação revela que estes cidadãos não se associam apenas motivados pelo acesso ao crédito, mas também por confiarem efetivamente nos pares. Segundo o relato dos agricultores familiares, associados à CRESOL, o crédito repassado pela cooperativa é utilizado tanto como mecanismo para alavancar a produção agrícola, como também para resolver problemas inadiáveis, como tratamento de saúde, reforma da moradia ou aquisição de eletrodomésticos, ações que incidem diretamente na melhoria da qualidade de vida. Há relatos que afirmam que o microcrédito é a única fonte de renda das famílias em anos de frustração de safra. A pesquisa mostra que a aposta da cooperativa de crédito no capital social é um negócio seguro, pois, segundo os dirigentes, o índice de inadimplência fica abaixo de 1 %. Considerações Finais Procuramos neste capítulo demonstrar a relação existente entre o capital social e o desenvolvimento, cuja determinação ocorre proporcionalmente ao empoderamento (empowerment), enquanto capacidade de decidir e deliberar de uma sociedade. Os dados analisados referentes ao COREDE Nordeste e COREDE Vale do Rio dos Sinos demonstram que estes possuem não somente os maiores índices de IDESE do estado, como também os maiores escores de capital social. Estes dados ficam mais nítidos quando comparamos os IDESE destes COREDES com aqueles situados mais ao Sul do estado. Entretanto, a análise sobre o COREDE Nordeste ficou prejudicada devido à mudança de seus limites territoriais com o COREDE Hortências. Todavia, na comparação entre os COREDES do Vale do Rio dos Sinos, Sul e Campanha, o COREDE Vale do Rio dos Sinos ainda coloca-se à frente em capital social e IDESE. Quando particularizamos a análise, vemos que, no caso do COREDE Vale do Rio dos Sinos, os municípios da região com maior dotação de ICS correspondem exatamente àqueles 48 que também possuem os maiores IDESE, ao passo que aquelas cidades que possuíam ICS mais baixos, também ficaram com IDESE mais baixos. No COREDE Nordeste, aplicando-se o mesmo procedimento, chegamos às mesmas conclusões, os três primeiros municípios com ICS alto tem igualmente, em média, escores melhores de IDESE. Já os três últimos colocados nos ICS têm baixo IDESE. Chama a atenção o aspecto do “familismo” do COREDE Vale do Rio dos Sinos, quando 88,6% dos entrevistados disseram que, “se precisassem de ajuda, provavelmente receberiam ajuda de familiares”, em detrimento de vizinhos ou colegas de trabalho. Este dado vai ao encontro das hipóteses de Fukuyama (1996) e Putnam (2000), que argumentam sobre os efeitos do processo de urbanização e industrialização que enfraquecem os laços de solidariedade e tecido social, podendo a médio prazo enfraquecerem ainda mais os estoques de capital social. No caso dos agricultores familiares articulados nos seus sindicatos do COREDE Nordeste, mostramos como estes podem conseguir com intento significativo criar uma instituição de crédito para, de forma segmentada, “controlar” as parcas riquezas que conseguem produzir e, principalmente, controlar os recursos públicos repassados pelos governos. As ilustrações demonstram como é significativa a existência de capital social entre os associados da CRESOL que, por sua vez, utiliza o mesmo capital social para emprestar e controlar o retorno dos recursos. Isto contribui com a interpretação de que o capital social facilita o empoderamento que contribui com o desenvolvimento enquanto um processo de produção e distribuição de riquezas e eqüidade, qualidade de vida e sustentabilidade. Por fim, cabe ressaltar que, no Brasil, a emergência da sociedade organizada e dos movimentos sociais das últimas décadas está relacionada à existência e/ou desenvolvimento de relações de confiança e reciprocidade. O capital social, materializado nos movimentos sociais e organizações da sociedade, produz um inegável empoderamento, já que estes conseguem muito mais que visibilidade pública, incluindo aí a obtenção de políticas públicas segmentadas e diferenciadas. Todavia, não queremos com isso diminuir a importância da incidência dos governos que, através de políticas públicas, reformas, ajustes administrativos e investimentos, também colaboram para o desenvolvimento regional. A dotação de IDESE certamente não tem influência única do capital social, mas está relacionada também às ações e políticas federais, estaduais e municipais que incidem nestas regiões, cujo aprofundamento 49 deverá ser realizado em pesquisas posteriores. Assim, um sinergismo entre instituições e capital social não somente é algo possível como desejável para o desenvolvimento regional. Referências Bibliográficas BANDEIRA, Pedro Silveira. Algumas Hipóteses sobre as Causas das Diferenças Regionais quanto ao Capital Social no Rio Grande do Sul. In: CORREA, Silvio Marcus de Souza. Capital Social e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: Ed. Edunisc, p.15/59. 2003. BAQUERO, Marcello. Construindo uma outra sociedade no Brasil. 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Introduction to community empowerment, participation, educacion, end health. Health Educacion Quarterly: Special Issue. 1994. Democracia Participativa e Conselhos de Desenvolvimento Rodrigo Stumpf González1 No decorrer do século XX, a tradição que desenvolveu o estudo da economia nos séculos XVIII e XIX como economia política foi sendo substituída por uma concepção que trata os processos econômicos como variáveis que podem ser isoladas e incluídas em uma equação matemática. A teoria econômica monetarista certamente partilha desta nova concepção (MULBERG, 1995). Ao contrário de se discutir a influência da política no processo econômico, passou-se a construir a concepção oposta: a política como um algo análogo à economia, como proposto por autores como Anthony Downs (1999). Na última década, foi aos poucos resgatada a necessidade de avaliar o desenvolvimento por fatores não exclusivamente econômicos, com a construção de índices como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que leva em conta fatores como nível educacional e expectativa de vida da população. No entanto, ainda são predominantes as idéias de separação entre economia e política, muitas vezes sendo tratadas intervenções na economia como ingerências indevidas do processo político, defendendo-se a criação de instituições autônomas ao processo político, tais como os bancos centrais independentes. A aplicação continuada destes padrões teóricos pode até haver contribuído, em determinados contextos, para obter a estabilidade do valor da moeda ou o crescimento econômico. Porém, na maioria dos países da América Latina, inclusive o Brasil, o resultado foi acompanhado da manutenção ou aumento das diferenças sociais. Este resultado demonstra a necessidade de que as políticas de desenvolvimento sejam submetidas a um controle democrático. No entanto, a defesa da democratização destes processo decisórios esbarra nos déficits de representatividade das instituições. Como aponta Baquero (2000), os partidos políticos, como canais tradicionais de representação política, têm dificuldades em articular os interesses sociais nas sociedades 1 Doutor em Ciência Política pela UFRGS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. [email protected] 52 latino-americanas, gerando um distanciamento e uma avaliação negativa da população em relação às instituições políticas. Uma das alternativas é a criação de novos canais de participação, que reforcem a representação dos setores excluídos da população e possam contribuir para o bem-estar da população (BAQUERO, 2007). Um dos canais que vem sendo desenvolvido é o dos conselhos com representação popular, como é o caso dos conselhos de controle de políticas públicas, no Brasil (GONZÁLEZ, 2007). Os conselhos também têm sido utilizados como espaços de debate de políticas de desenvolvimento, com experiências de algumas décadas em alguns países, que têm servido de modelo para novas iniciativas ocorridas no Brasil. Neste contexto, este trabalho busca analisar a contribuição de formas alternativas de representação na discussão de políticas de desenvolvimento, enfocando a experiência recente no Brasil, no governo federal e no Rio Grande do Sul, de criação de conselhos de desenvolvimento. Inicialmente, serão apresentadas as diversas possibilidades na constituição de conselhos como órgãos colegiados de tomada de decisões. Em seguida, será feita uma retrospectiva da tradição brasileira no uso de conselhos. Por fim, é feita uma análise de duas experiências: a dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento - COREDES, no Rio Grande do Sul e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES, no Governo Federal brasileiro. Estrutura e funções dos conselhos Conforme observa Max Weber (1984), formas de exercício colegiado de caráter consultivo aos governantes existem há muito na história da humanidade. Por exemplo, na democracia ateniense já encontrava a Bulé como um conselho auxiliar da Assembléia da Cidade, a Ecclesia (GLOTZ, 1983). No entanto, variando a nomenclatura utilizada na atualidade, entre comitê,2 comissão,3 ou conselho,4 o moderno sentido de colegiado deliberativo tem outro desenvolvimento, relacionado à racionalização no uso do poder. 2 O termo comitê tem origem no francês comité, que é sinônimo de comissão. 53 A organização administrativa do Estado, com o processo de complexificação e racionalização das relações, passa a basear-se, fundamentalmente, em relações de dominação de cunho racional-legal (WEBER, 1984). A base do exercício do poder neste estágio de organização do Estado se associa ao surgimento de funcionários profissionais e permanentes - a burocracia, que supera o modelo de autoridade da organização do Estado patrimonialista. Esta é uma exigência do desenvolvimento do Estado-nação, com a implantação nacional da autoridade pública. Este processo faz parte da modernização, que resulta em modificações tanto na estrutura econômica como na organização social e na autoridade política (BENDIX, 1996). Um dos aspectos importantes é como se dá o processo de limitação do exercício da dominação. Segundo Weber (1984), a dominação pode ser reduzida ou limitada por determinados meios, tradicional ou racionalmente. Para ele, todo tipo de dominação pode ser despojado de seu caráter monocrático, vinculado a uma pessoa, por meio do principio da colegialidade, isto é, da divisão do exercício do poder entre diversos membros de um colegiado. Os comitês, comissões ou conselhos existentes nas administrações públicas modernas podem ser incluídos na categoria de formas colegiadas de dominação. Weber (1984) identifica vários sentidos para colegialidade: a) a investidura múltipla do mesmo cargo, como veto recíproco. Neste caso um grupo de pessoas é investido do cargo, mas deve tomar a decisão de forma unânime e com consulta mútua. Foi usada pelos romanos nos triunviratos. b) a formação colegiada da vontade. A tomada de uma decisão exige a participação de várias pessoas, seja pelo princípio da unanimidade ou pelo princípio majoritário. Esta segunda forma pode ser dividida em três tipos: 1) colegialidade da direção suprema, ou seja, da própria soberania; 2) colegialidade de cargos executivos; 3) colegialidade de cargos consultivos. 3 O termo comissão tem origem latina. Modernamente, significa a atribuição de um encargo delimitado, ou grupo de pessoas a quem é atribuído em específico, em relação a um coletivo. Por exemplo, Cargo em Comissão ou Comissão Parlamentar de Inquérito. 4 O termo latino concilium, tinha sentido de reunião ou assembléia. Segundo Avelar (1970), na Ibéria dominada pelos romanos, o concilium teria sido uma forma de município, que originou o termo português conselho, para definir a organização municipal. No idioma galego, o termo concello é usado nos dias de hoje para denominar o poder público municipal. Modernamente, pode significar um organismo coletivo de discussão ou ainda a opinião ou sugestão dada a outrem sobre um assunto. 54 Segundo Weber (1984), ainda que não fosse desconhecido dos antigos, a formação colegiada da vontade é o sentido moderno do termo. Para ele, a colegialidade tem um caráter fundamental na formação da autoridade pública moderna: Sólo la colegialidad ha llevado historicamente a su pleno desarrollo el concepto de 'magistratura' porque siempre estuvo unida a la separación entre la 'oficina' y el 'hogar' (de sus titulares), entre los empleados en un cargo de carácter público y los de carácter privado, entre los medios administrativos y el patrimônio privado. Por tanto, no es casualidad que la moderna historia de la administración occidental comience con el desarrollo de las magistraturas colegiadas de funcionários profesionales (Weber, 1984, p. 226). A partir destas distinções, Weber aponta pelo menos 13 formas diferentes de exercício da colegialidade, que se identificam com um ou outro dos tipos de formação colegiada da vontade. Segundo Weber (1984), existiram diversas formas de colegiados consultivos, cuja base no entanto era a tradição e que chegaram mesmo a exercer poder real sobre o soberano: Mientras el especialismo en los asuntos administrativos fue exclusivamente el resultado de un largo entrenamiento empírico, y las normas de gobierno no pertenecieron a un reglamento, sino que fueron partes integrantes de la tradición, el Consejo de los ancianos, com frecuente participación de los sacerdotes, de los 'antiguos estadistas' y de los honoratiores, fue de modo típico la forma adecuada asumida por las autoridades consultivas que, por constituir organizaciones permanentes frente a los soberanos cambiantes, llegaron a apoderarse del poder verdadero. Así ocurrió con el Senado romano y el Consejo veneciano, así con el Areópago ateniense hasta su derrocamiento a favor del dominio del 'demagogo' (Weber, 1984, p. 747748). No entanto, este tipo de colegiado é fundamentalmente diferente do novo tipo, surgido a partir da especialização técnica: Pero, como es natural, a pesar de los múltiples puntos de transición, hay que distinguir rigurosamente entre tales magistraturas competentes y las corporaciones surgidas en virtud de la especialización racional y del domínio del saber técnico a que aquí nos estamos refiriendo (Weber; 1984, p. 748). 55 Idealmente a burocracia deveria se constituir em um corpo politicamente neutro, a serviço da autoridade política monocrática. No entanto, esta é uma realidade difícil de ser alcançada. Conforme assinala Bendix (1996), o passado de cada país influi sobre a situação legal e política dos servidores públicos, dando atributos diferentes a esta neutralidade política Uma das formas que este autor identifica como limitadora desta neutralidade é o surgimento da representação de interesses organizados, que passam a interagir com esta burocracia, para influenciá-la. Mas também a própria burocracia busca este apoio, no sentido de ter respaldo social ou saber quais as possíveis restrições a suas decisões que podem surgir. Passa a haver um espaço de interação entre Estado e Sociedade, no qual os agentes do Estado ouvem o conselho ou negociam com representantes destas organizações, principalmente pela criação de comitês consultivos, entre outras formas. Estes ajudam o administrador a exercer um papel de intermediário de reivindicações, que eventualmente antes pertenceram ao legislativo (BENDIX, 1996, p. 166). Os colegiados, nesta perspectiva, funcionam como espaço de negociação entre interesses organizados e agentes do Estado, e contribuem para a intermediação, pelo Estado, dos conflitos de interesses. Deve-se distinguir, no entanto, nas formas de formação colegiada da vontade, se esta se dá em caráter decisório, como nos plenários das cortes judiciais, a exemplo do Supremo Tribunal Federal ou em caráter meramente consultivo, cabendo a uma autoridade a decisão sem o comprometimento com o caminho sugerido. É o caso do Conselho de Defesa Nacional, previsto na Constituição Federal, que opina mas não vincula a decisão a ser tomada pelo Presidente da República. Estas diferenças são relevantes para determinar o real impacto que a existência de um conselho pode ter, se passa a ser apenas mais um espaço de diálogo ou modifica no conteúdo o regime democrático, transformando a democracia representativa em democracia participativa (GONZÁLEZ, 2000). Este processo é influenciado pelas tradições políticas de cada país. Por isso é discutida a seguir a trajetória do uso de colegiados no Brasil. Conselhos no Brasil 56 Nos últimos dois séculos, houve uma sensível transformação da estrutura administrativa e de tomada de decisões do Estado brasileiro. Estruturando-se de forma independente a partir de 1822 manteve, porém, características predominantemente tradicionais e patrimonialistas no período imperial. A característica de inúmeros regimes monárquicos, com a existência de um Conselho particular do Monarca também se reproduzia no segundo reinado, com a existência do Conselho de Estado, que servia como organismo consultivo do Imperador no uso do Poder Moderador, com grande influência, conforme José Murillo de Carvalho (1988), sobre o modelo parlamentarista brasileiro. A República Velha, sob a influência do positivismo, provocou mudanças na velha estrutura. No entanto, foi a partir da Revolução de 30 que houve uma mudança mais profunda do perfil do Estado brasileiro, criando-se uma estrutura burocrática para fazer frente à necessidade de maior intervenção estatal para alavancar o processo de desenvolvimento com o surgimento, dentro desta estrutura, de organismos colegiados como suporte técnico das autoridades nas diversas áreas. Segundo Diniz (1981), este foi um processo contínuo entre 1930 e 1945, ainda que tenha sido desenvolvido em situações políticas diferentes, como foram o governo provisório, o governo constitucional de 1934 a 1937 e o Estado Novo, de 1937 a 1945. Esta também é a observação de Draibe (1985, p. 61), segundo a qual: De outro lado, a centralização política pós-30 se processa através da edificação de um aparelho burocrático-administrativo de intervenção, regulação e controle, que organiza em bases novas o 'interesse geral' e a dominação social. A necessidade de introduzir características técnicas na tomada de decisões levando também à criação de inúmeros organismos colegiados. Esta estruturação ocorreu não só nos organismos de controle da política econômica e de desenvolvimento, mas também no campo de intervenção de políticas sociais. Para este fim, é criado o Ministério da Educação e Saúde, no ano de 1930. A política de educação, provavelmente, teve maior sucesso no processo de unificação nacional, segundo observa Draibe (1985), em relação às áreas de saúde e previdência. Logo após a criação do Ministério, são criados junto a este o Conselho Nacional de Educação e o Conselho Consultivo do Ensino Comercial, ambos como organismos 57 consultivos do ministro. A centralização e o controle federal sobre a educação, no entanto, só viria a se consolidar com a aprovação da Lei de Diretrizes e Base da Educação em 1961 e a criação do Conselho Federal de Educação (DRAIBE, 1985). É interessante observar que a idéia de criação de organismos técnicos como espaço consultivo e de decisão, substitutivo de um sistema partidário e de um legislativo fracos, já se encontrava em discussão, conforme mostra Souza (1983), mesmo antes do Estado Novo, sendo alvo de polêmicas durante a Constituinte em 1934. Esta opinião era defendida pelo Clube Três de Outubro, reduto do tenentismo, de representação profissional, com um Conselho Federal que substituiria o Senado e Conselhos Técnicos como órgãos consultivos. Entre os elementos a serem defendidos na constituinte estaria: A criação de conselhos técnicos autônomos que tornem possíveis a continuidade e a perceptibilidade da ação governamental para solução dos problemas nacionais e regionais apesar da transitoriedade dos governos (Clube Três de Outubro apud Souza, 1983, p. 71). Segundo Juarez Távora: Esses Conselhos constituiriam uma espécie de freio às tendências exclusivamente políticas do Conselho Federal: constituiriam, por ocasião das deliberações de ordem administrativa, órgãos de consulta obrigatória (TÁVORA apud SOUZA, 1983, p. 72) Para Maria do Carmo Campello de Souza (1983), os conselhos técnicos, o mito da tecnocracia e a representação técnico-profissional seriam os elementos básicos do modelo corporativo defendido na época. No período subseqüente, em especial durante o Estado Novo, são criados inúmeros organismos colegiados, como podem ser destacados o Conselho Federal do Comércio Exterior (1934) o Conselho Técnico de Economia e Finanças(1937), o Conselho Nacional do Petróleo (1938), o Conselho Nacional de Saúde (1937), o Conselho Nacional de Serviço Social (1938), e o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (1944), além de inúmeras comissões e outros órgãos de caráter consultivo, normativo e deliberativo, que, em alguns casos, incluíam representação corporativa ou de interesses privados e, em outros, eram constituídos por representantes de distintos organismos estatais (DINIZ,1981; DRAIBE, 1985). O conjunto de forças políticas que sustenta o movimento revolucionário tornou o espaço da burocracia estatal um ponto privilegiado de negociação, permitindo-se uma 58 autonomia relativa do Estado. O suporte militar e o viés autoritário do período diminuem a importância do Congresso Nacional, nos momentos em que esteve funcionando. Segundo Diniz (1981), a centralização do poder é acompanhada de uma diversificação das instâncias decisórias, como o aumento da envergadura do aparato burocrático-estatal, permitindo não só a regulamentação e o controle da economia, mas o desenvolvimento de formas embrionárias de planejamento econômico. Segundo esta autora: A centralização política resultaria da combinação de uma série de mecanismos, entre os quais o sistema de interventorias, os institutos, as autarquias e os conselhos econômicos seriam os elementos básicos (DINIZ, 1981, p. 109). Outro aspecto importante, destacado por Diniz (1981), é que estes organismos passaram a exercer também uma função de expressão dos interesses da sociedade civil, principalmente a partir de 1937, com a supressão de outras formas de representação, tornando-se a principal via de acesso dos grupos privados aos centros de poder. A autonomia e a capacidade de tomar decisões destes órgãos variou muito, conforme mostra a análise de Martins (1976). Em situações como a discussão da criação da siderurgia nacional, o papel dos diversos conselhos envolvidos foi consultivo, servindo de espaço para a formação das posições, mas as negociações e decisões finais foram controladas diretamente por Getúlio Vargas. Já na questão do petróleo, ao menos durante o Estado Novo, um maior distanciamento do Presidente deu maior autonomia ao Conselho Nacional do Petróleo, ainda que a política somente tenha sido definida nos anos 50, em uma negociação que envolveu o Congresso, em especial uma disputa com a União Democrática Nacional (UDN). A autonomia das instâncias burocráticas pode variar muito dependendo dos recursos políticos que podem mobilizar, o que não depende necessariamente de seu enquadramento formal legal, conforme observa Gouvea (1994). Isto permite que elementos desta burocracia se coloquem, em determinados momentos, como defensores do "interesse público", de forma genérica e desconectada das pressões dos interesses econômicos representados. Esta autonomia também estaria ligada, a partir dos anos 30, a uma incapacidade destes interesses privados de criarem uma hegemonia, atuando o Estado diante de sua fragmentação como promotor do processo de desenvolvimento. Destaque-se que estudos como os de Draibe (1985), Gouvea (1994) e Martins (1976) concluem pela existência de um grau alto de autonomia dos organismos decisórios dentro do Estado, ao analisar estruturas relacionadas com a decisão de políticas relacionadas ao campo 59 de planejamento econômico, desenvolvimento industrial e ordem financeira. Neste caso não se trata apenas de autonomia do Estado, enquanto ente, frente às pressões da sociedade e das classes sociais, mas dos organismos decisórios mesmos, dentro da estrutura administrativa. Com o fim do Estado Novo, a definição de políticas e o funcionamento destes organismos foram modificados pelo processo de democratização e reorganização dos partidos políticos, que diminuíram o poder do Presidente. Por outro lado, a representação de interesses, seguindo o modelo corporativista e populista, permite a cooptação das representações de trabalhadores e empresários, colocando limites em suas discordâncias. O desenvolvimento da estrutura da administração pública brasileira continua após o Estado Novo, embora haja perda de poder do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Criam-se órgãos e admitem-se novos funcionários, embora não seguindo o critério meritocrático. Isto leva o Governo Kubitschek a adotar a estratégia de criação de núcleos de competência, com a criação de grupos de trabalho e grupos executivos, formados por funcionários trazidos de ilhas de competência, como o Banco do Brasil e o Itamaraty. Alguns se constituíram sob a forma de Conselhos (LAFER, 1970). Um outro aspecto destacado por Lafer (1970) foi a criação, no governo Kubitschek, de inúmeros fundos, vinculados à consecução de determinadas metas. Desta forma, conseguia-se maior agilidade, fugindo das dificuldades de discussão do orçamento federal como um todo. O sistema de negociação manteve a política de clientela, o que é demonstrado pelo enorme número de funcionários admitido fora do sistema meritocrático, mas paralelamente ao uso dos núcleos técnicos. Após o golpe militar de 64, segundo Vianna (1987), houve uma nova valorização do aspecto tecnocrático nos organismos de decisão, sob controle do governo. Embora a criação de organismos colegiados tenha ocorrido em praticamente todos os governos após a Revolução de 30, durante o regime militar de 64 houve novamente um certo avanço, como indica o quadro apresentado por Santos (1988), que mostra a criação de uma enorme quantidade de Conselhos nos governos Castello Branco, Costa e Silva, Médici e Geisel. 60 TABELA 1- CRIAÇÃO DE CONSELHOS E COMISSÕES NO GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO 1956-1984 Governo JK Jânio Jango Castello Branco Costa e Silva Médici Geisel Figueiredo até 3/84 Conselhos 2 2 7 6 6 5 6 Comissões e Comitês 1 3 4 4 3 12 Fonte: Santos, 1988, p. 135-136. O regime militar leva adiante a discussão da necessidade da reforma administrativa, que desde os anos 50 encontrava-se presa no Congresso Nacional, realizando a reforma em 1967 (LAFER, 1970). No mesmo tempo que são criados inúmeros organismos de coordenação e regulação econômica, há um processo de concentração do poder. Conforme observa Abranches (1978), eles não são novos na estrutura administrativa brasileira, mas há uma distinção de maior institucionalização e burocratização. Ainda que existissem agências semelhantes em governos anteriores, os representantes de instituições ou de interesses eram mais importantes que as agências. Neste caso, há uma burocracia mais estável e as agências tornam-se importantes. Por outro lado, a maior descentralização e agilidade obtida após a reforma de 1967, com a criação de muitas agências estatais autônomas, aliado a um alto grau de discricionariedade, leva a uma maior dificuldade de controle. Os colegiados, como espaços de consulta e negociação, nos períodos autoritários passaram a ter atuação mais restrita, uma vez que a tomada de decisões era geralmente controlada pela representação governamental ou seus superiores. A estrutura política baseada em um perspectiva tecnocrática que se desenvolveu durante o regime militar, contudo, teve dificuldades de se manter com o processo de democratização, uma vez que passam a ser necessárias novas formas de legitimação e conquista de apoio para os governos, tendo em vista o retorno à democracia e a realização de eleições periódicas. 61 Com a transição democrática surgem formas colegiadas de deliberação, no entanto, com formatos ou objetivos diferentes do existente no período militar. Neste contexto se coloca o aparecimento de novas estruturas de conselhos, principalmente após a Constituição de 1988 (GONZÁLEZ, 2000). Do ponto de vista da participação popular, ao lado de instrumentos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, incorporou-se o princípio da participação da sociedade no controle das ações governamentais, no campo da assistência social, prevendo o artigo 204, inciso II como diretriz: Art. 204 - As ações governamentais na área de assistência social serão realizadas com recursos da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizada com base nas seguintes diretrizes: I-… II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. A participação também foi prevista no capítulo referente à saúde e o art. 227 incorpora a aplicação do art. 204 à área da infância. Com a regulação destas áreas pelas respectivas leis federais (Lei Orgânica da Saúde; Lei Orgânica da Assistência Social; Estatuto da Criança e do Adolescente), foram criadas estruturas semelhantes, que prevêem conselhos em uma estrutura piramidal - nacional, estaduais e municipais. Ainda que com alguns problemas de funcionamento, surgiram nas últimas décadas alguns milhares de conselhos nestas áreas, existindo na maioria dos municípios do país (GONZÁLEZ, 2004). O mesmo modelo foi reproduzido posteriormente, ao menos em parte, em diversas outras áreas, como do Idoso e do Meio Ambiente. A proliferação de conselhos foi tal que inclusive hoje começa a se discutir a viabilidade de uma variedade tão grande de conselhos em pequenos municípios (GONZÁLEZ, 2004). O uso de conselhos como panacéia parece ter continuado, conforme indica Moroni (2006), de que no primeiro governo Lula foram criados 13 novos conselhos, além de reformuladas a composição ou as funções de outros 9. Se, por um lado, se verifica um elemento de continuidade na manutenção de grande quantidade de organismos colegiados, desde a República Nova até os dias de hoje, as motivações para sua criação variaram de acordo com o período. A representação corporativa, em substituição aos partidos políticos e ao Congresso, é o elemento marcante dos anos 30. Já 62 no Regime Militar, o apelo tecnocrático, do isolamento técnico das decisões em relação aos canais políticos, parece ser a maior motivação para o uso de conselhos. Já no período democrático pós-1988, a criação de conselhos, em um primeiro momento se fundamentou na ampliação da democracia e na abertura de novos canais de participação, com a proposição de conselhos que teriam caráter deliberativo. Ao longo das últimas duas décadas, no entanto, esta motivação tem passado a ser seguida por outros fundamentos. Por exemplo, no governo Fernando Henrique Cardoso foram criados conselhos em áreas como controle da merenda escolar e acompanhamento do programa bolsa-escola, cuja finalidade era mobilizar a população na tarefa de fiscalização do uso de recursos públicos na esfera local, sem interferir na definição da política. No caso dos Conselhos de Desenvolvimento, no entanto, não foi seguida a mesma trajetória de outras áreas em que se formaram ou reorganizaram conselhos na década de 90, com a criação de uma estrutura federal a ser obrigatoriamente reproduzida nas esferas estadual e municipal. As iniciativas de criação de conselhos de desenvolvimento se deram de forma autônoma e diferenciada no tempo, sem uma previsão de lei federal obrigatória. Por isso, se apresenta a seguir a trajetória do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), do Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social (CODES) e dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES), no Rio Grande do Sul. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (CDES) foi criado pela Medida Provisória 103, de 1º de janeiro de 2003, convertida na Lei 10683/03, entre as primeiras medidas tomadas pelo recém-empossado presidente Luís Inácio Lula da Silva. O conselho é composto por diversos ministros e por 90 cidadãos brasileiros, nomeados pelo presidente da República, para mandato de dois anos. Inicialmente, o Conselho contava com uma secretaria executiva composta por um secretário Especial do CDES, com status de Ministro, cargo que foi ocupado por Tarso Genro entre 2003 e princípio de 2004, quando passa para o Ministério da Educação. 63 Posteriormente, a Medida Provisória 259, de 21 de julho de 2005, convertida na Lei 11.204/05, passou a Secretaria Executiva do Conselho (CDES) para a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, onde permanece. Naquele momento foi feita uma reforma na estrutura dos ministérios, com a extinção da Secretaria de Coordenação Política. Jacques Wagner, que ocupava a Secretaria Executiva do CDES, passa a ser Ministro da recém-criada Secretaria de Relações Institucionais, acumulando a função com o CDES. (posteriormente foi substituído pelos outros ministros que se seguiram na pasta). Segundo a lei, cabe ao Conselho: assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes específicas, voltadas ao desenvolvimento econômico e social, produzindo indicações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento, e apreciar propostas de políticas públicas e de reformas estruturais e de desenvolvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo Presidente da República, com vistas na articulação das relações de governo com representantes da sociedade civil organizada e no concerto entre os diversos setores da sociedade nele representados (Lei Federal 10683/03). O CDES, portanto, um órgão consultivo, que serve de espaço para debate entre governo e sociedade. Ele segue em alguns aspectos o modelo de outros conselhos de desenvolvimento existentes em países onde os governos social-democratas criaram estruturas de negociação de caráter neocorporativo. No entanto, o CDES, em sua composição tem apenas alguns traços de neocorporativismo, com a presença de representantes do empresariado e de sindicatos. Porém, os membros são nomeados a título pessoal e não como representantes de áreas ou segmentos profissionais. Por outro lado, há uma presença marcante de representantes do empresariado, sendo o grupo com maior representação. Diferentes estudos feitos sobre o CDES não entram em acordo sobre qual o percentual que representaria o empresariado, provavelmente a diferentes critérios de classificação. Segundo Fleury (2003), a distribuição seria 41 empresários, 1 e 3 sindicalistas, 11 representantes de movimentos sociais, 10 personalidades, 3 representantes de entidades de classe, 2 religiosos, 2 representantes da cultura e 7 representantes das regiões Norte e Nordeste. 64 Segundo a análise de Kowarick (2003), a composição da representação da sociedade pode ser dividida nos seguintes segmentos: 45 da área empresarial, 18 da área social, 13 da do trabalho e 14 personalidades. Nesta análise, também é considerado o Estado de origem dos membros, sendo que 50% seriam oriundos do Estado de São Paulo. Embora nos anos seguintes tenham ocorrido mudanças nos nomes dos representantes, aparentemente este perfil mudou pouco. Conforme constata Moroni (2005), o CDES mantém um perfil de representação corporativa, como o predomínio dos segmentos capital e trabalho, dificultando o reconhecimento de outros segmentos da sociedade. Por outro lado, se constitui em um espaço para a apresentação de propostas do Governo Federal, buscando quebrar eventuais desconfianças provocadas pela vitória de um ex-operário para a Presidência. Neste sentido, sua função foi criar um canal de interlocução para o Governo apresentar seus planos e ouvir críticas, porém sem grande capacidade de influência sobre os resultados finais. Isto também pode ser caracterizado que, ao longo do tempo, o resultado das reuniões acabou se tornando menos propositivo. O Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social As origens do Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social remontam ao governo de Pedro Simon (PMDB), primeiro governador da oposição eleito no Rio Grande do Sul, em 1986. Na organização da estrutura do Governo do Estado, foi prevista a criação do Conselho Estadual de Promoção do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul,5 posteriormente renomeado Conselho de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (CD/RS).6 O Conselho era composto por membros do secretariado e por "representantes a serem indicados por entidades representativas de classe" e "investidores de reconhecida capacidade, nomeados pelo Governador do Estado".7 A nova Constituição Estadual, aprovada em 1989, faz referência ao planejamento do desenvolvimento estadual. No Título VI, da Ordem Econômica, o Capítulo II referente à 5 DECRETO Nº 32.515, DE 15 DE MARÇO DE 1987. Art. 8º - Ficam instituídos, diretamente vinculados ao Governador do Estado, e sob sua presidência, os seguintes órgãos colegiados: a) Conselho Estadual de Promoção do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul. 6 DECRETO Nº 32.595, DE 15 DE AGOSTO DE 1987 Art. 1º - O Conselho Estadual de Promoção do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, instituído através do artigo 8º do Decreto nº 32.515, de 15 de março de 1987, passa a denominar-se CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO DO RIO GRANDE DO SUL (CD/RS) e terá por objetivo básico promover a integração dos agentes da área econômica do Governo do Estado e da iniciativa privada, tanto em nível de representação de classe como pessoal. 7 Decreto 32.595/87, Art. 2º. 65 "Política de Desenvolvimento Estadual e Regional", nos Artigos 166 a 172. Neste sentido, o disposto nos artigos 167 e 168 diz o seguinte: Art. 167 - A definição das diretrizes globais, regionais e setoriais da política de desenvolvimento caberá a órgão específico, com a representação paritária do Governo do Estado e da Sociedade Civil, através dos trabalhadores rurais e urbanos, servidores públicos e empresários, dentre outros, todos eleitos em suas entidades representativas. Art. 168 - O sistema de planejamento será integrado pelo órgão previsto no artigo anterior e disporá de mecanismos que assegurem ao cidadão o acesso às informações sobre qualidade de vida, meio ambiente, condições de serviços e atividades econômicas e sociais, bem como a participação popular no processo decisório. Estes dispositivos serviram de justificativa para a criação dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES), mas permaneceram por longo tempo sem serem atendidos pela legislação estadual. Em 1997, durante o governo de Antônio Britto (PMDB) foi alterada a estrutura do CD/RS, ao ser substituída pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico (CODEC), pelo decreto 37.324, de 26 de março de 1997, que dispunha: Art. 1º - Fica instituído o Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico - CODEC, com a finalidade de propor estratégias e estabelecer diretrizes, políticas, programas e atividades voltados para a promoção da geração de emprego, produto e renda no Estado do Rio Grande do Sul. O novo conselho altera a composição anterior, retirando os representantes externos ao governo, tornando o colegiado um órgão composto exclusivamente por representantes governamentais, que poderia convidar representantes da sociedade para participar das reuniões sem direito a voto. Passados seis anos, foi criado, pela Lei 11.931 de 24 de junho de 2003, no governo de Germano Rigotto (PMDB), o Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul (CODES). Dispõe a lei: Art. 1º - Fica instituído o Conselho Estadual de Desenvolvimento Econômico e Social - CODES -, fórum permanente de debates, proposições e deliberações sobre políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico e social do Estado do Rio Grande do Sul. 66 A lei não faz referência ao CODEC, cujo decreto de criação aparentemente nunca foi revogado. Com a mudança de governo, no entanto, o órgão parece ter caído no esquecimento. A composição dos COREDES, regulamentada pelo Decreto 43.000/04 prevê a participação do Governador e mais sete representantes do Governo e nomina trinta e cinco entidades representantes da sociedade civil. A composição inclui entidades empresariais, sindicais, conselhos de regulação profissional e associações. Não é observada a paridade prevista no Constituição Estadual. Tendo desenvolvido reuniões e produzido documentos ao longo do ano de 2003 e 2004, o CODES parece ter se esvaziado e ficado no esquecimento no novo governo, de Yeda Crusius (PSDB), que tomou posse em 2007.8 Em relação ao CODES, a expectativa para o futuro é mais se continuará a existir do que propriamente que funções passará a ocupar. Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES) existentes no estado do Rio Grande do Sul são muito anteriores, tanto ao CDES como ao CODES, sendo sua formação iniciada em 1991 (Bandeira, 1999). Sua criação advém da regulação dos dispositivos da Constituição Estadual sobre o desenvolvimento regional, referidos anteriormente (González, 2007). Existem atualmente 24 COREDES, envolvendo em cada mais de uma dezenas de municípios.9 A regionalização, segundo a Constituição Estadual, também deveria se refletir no orçamento público, segundo o Art. 149, parágrafos 1º e 8º: Parágrafo 1º - A lei que aprovar o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas, quantificados física e financeiramente, dos programas da administração direta e indireta, de suas fundações, das empresas públicas e das empresas em que o Estado detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto. ... 8 Quase um ano após a mudança de governo, a página de divulgação do conselho continuava a apresentar o secretariado do governo anterior, com membros e atividades mais recentes da agenda de dezembro de 2004. In: http://www.codes.rs.gov.br/autoridades.htm, acessado em 6.12.2007. 9 O Estado do Rio Grande do Sul conta hoje com 496 municípios. Até 1998 eram 467. 67 Parágrafo 8º - Os orçamentos anuais e a lei de diretrizes orçamentárias, compatibilizados com o plano plurianual, deverão ser regionalizados e terão, entre suas finalidades, a de reduzir desigualdades sociais e regionais. Os Conselhos Regionais de Desenvolvimento começaram a ser organizados a partir de 1991, durante o Governo Alceu Collares (PDT), sendo sua criação formalizada pela lei 10.283, de 17 de outubro de 1994. Seu objetivo seria "a promoção do desenvolvimento regional harmônico e sustentável..." (Art. 2º da lei). A participação dos COREDES na definição do orçamento corresponde à execução o princípio constitucional a respeito da regionalização do orçamento e está prevista no Art. 3º: Art. 3º - Competem aos Conselhos Regionais de Desenvolvimento, dentre outras, as seguintes atribuições: ... IV - constituir-se em instância de regionalização do orçamento do Estado, conforme estabelece o art. 149, parágrafo 8º, da Constituição do Estado. Os COREDES são compostos por diversos tipos de instituições do setores empresarial, sindical, associativo e universitário, além da participação de prefeitos e deputados estaduais, conforme definido no decreto 35.764, de 28 de dezembro de 1994: Art. 4º - Caberá ao Poder Executivo estadual convocar a Assembléia de constituição de cada CRD, da qual participarão: I) os Prefeitos Municipais e Presidentes das Câmaras de Vereadores, como representantes dos poderes públicos da região; II) os Deputados Estaduais e Federais com domicílio eleitoral na região; III) um representante de cada instituição de ensino superior da região; e, IV) um delegado ou seu suplente, com o representante de cada segmento organizado da sociedade civil, eleito e devidamente credenciado, por Município. Parágrafo único - Entende-se por organizado aquele segmento representado por entidades, tais como associações, sindicatos e conselhos setoriais criados por Lei. Os COREDES são divididos entre uma Assembléia Geral, onde todos os representantes previstos na lei participariam e um conselho executivo, que tomaria as decisões cotidianas. 68 Além do diagnóstico das necessidades de cada região e do planejamento do desenvolvimento, os COREDES também têm a possibilidade de intervir na formulação do orçamento estadual. Inicialmente, esta competência se dava através da possibilidade de apresentar emendas ao orçamento. Em 25 de junho de 1998 foi aprovada a Lei 11.179, que instituiu a consulta popular. Esta lei atribuiu aos COREDES a responsabilidade para criar a lista de prioridades e organizar a votação pela população sobre prioridades regionais do orçamento estadual. Posteriormente, a lei 11451/00 alterou a lei 10283/94, prevendo a criação de Conselhos Municipais de Desenvolvimento - COMUDES - como organismo auxiliar dos COREDES, principalmente para a execução da consulta popular. Estas mudanças fazem parte da disputa política em torno das formas de consulta à população na elaboração do orçamento estadual ocorrida durante o Governo Olívio Dutra (PT), que implantou o Orçamento Participativo estadual, com resistência da oposição, majoritária na Assembléia Legislativa. Os COREDES acabaram sendo utilizados como arma neste conflito, que é descrito em González (2007). Os sucessivos governos tentaram obter a parceria dos COREDES na execução de mecanismos de definição de investimentos regionais do orçamento. Esta tarefa foi, ao longo do tempo, uma das principais atividades da maioria dos conselhos (Bandeira, 1999; González, 2007). No entanto, devido à crise orçamentária estadual, estes mecanismos têm sido pouco efetivos, pois a capacidade de investimento do governo estadual tem sido praticamente nula. Ainda que aponte a consolidação dos COREDES como um fator positivo, Siedenberg, Saad e Senger (2005) constatam que poucos conselhos têm um diagnóstico e um plano de desenvolvimento para a região, sendo que a maioria faria planejamento por inspiração, intuição, especulação, pela ausência de planos ou diagnósticos. Por outro lado, segundo Bandeira (2004), a ação dos conselhos reverte na criação de capital social, tanto nas relações horizontais como verticais, servindo como fator que pode alavancar o desenvolvimento. Conselhos, democracia e desenvolvimento O pressuposto apresentado ao início deste trabalho é de que a democracia é um componente fundamental do desenvolvimento econômico e social, para que ele possa ocorrer 69 de forma equilibrada, buscando eliminar as grandes diferenças de classe e regionais existentes. Uma das formas de enfrentar a questão, dado o déficit de representação dos partidos políticos e das instituições representativas tradicionais seria a criação de conselhos com representação de segmentos da sociedade, para influir sobre as ações governamentais. No entanto, no resultado da ação destes organismos, influi a concepção referente à composição e às funções destas instituições. O Brasil possui uma longa trajetória de uso de instituições colegiadas como canais de negociação ou tomada de decisões. Ao longo deste período, foram variadas as funções atribuídas e as concepções de conselho dominantes. A partir da Constituição de 1988, tornouse bastante presente uma concepção de conselhos como parte da institucionalidade de uma democracia participativa, em que os canais políticos de decisão e participação deixariam de ser um monopólio dos partidos políticos. Frente a este quadro, foram apresentadas três experiências de conselhos vinculados à discussão de projetos de desenvolvimento. Quanto à configuração destes conselhos, o CDES e o CODES podem ser enquadrados como formas de formação colegiada da vontade de caráter consultivo. Os COREDES mantêm uma situação híbrida, uma vez que possuem funções executivas em relação a suas respectivas regiões e caráter consultivo na relação com os poderes estaduais. Ainda assim, a dependência de recursos estaduais torna a função executiva dos COREDES bastante limitada. Esta situação torna limitadas as funções destes conselhos dentro do processo de formação de uma democracia participativa, uma vez que não tem capacidade decisória para tornar obrigatórias suas decisões, seja para os organismos estatais, seja na forma de produção de estatutos legais que sejam cogentes para outros atores sociais. No entanto, ao analisar a composição e a forma de preenchimento das vagas nos Conselhos, também pode se colocar em dúvida se tal poder seria desejável. Dos três casos, os COREDES são os que possuem a composição mais representativa, com a possibilidade de participação de amplos setores da sociedade, de uma forma relativamente aberta. Embora mantenha um vínculo com uma visão tradicional de representação de interesses, com vagas cativas para prefeitos e deputados estaduais, permite a participação de instituições sindicais, empresariais, associativas e educativas, em igualdade de condições na forma de assembléias. A presidência de diversos COREDES, assumida por 70 representantes de instituições universitárias regionais indica que é possível um diálogo em que o domínio do Conselho não seja transformado em embate político-partidário. No CODES as instituições foram nominadas pelo Decreto estadual, cabendo apenas às instituições escolherem o nome de seus representantes. Sua estrutura é de uma representação corporativa de interesses sociais. O Governador já é definido pela lei como Presidente. Mais restrita ainda é a composição do CDES, em que cabe ao Presidente da República indicar os nomes dos membros do Conselho e presidi-lo. Configura-se mais como um conselho de notáveis do que um conselho de representação corporativa, em que alguns membros podem assumir a defesa de seu segmento de origem, porém sem a legitimidade de ter sido indicado por ele. A definição dos membros, no caso do CODES e do CDES, também pode causar dificuldades de interlocução com a sociedade. No caso do CODES, os segmentos que supostamente representam a sociedade civil organizada, fora do âmbito das entidades empresariais, sindicais e profissionais, pode ser definido como de moderados, que se aproximam de posições políticas do governo, não constituindo ameaça de maiores críticas. No CDES, a crítica feita por representantes de organizações da sociedade civil, segundo Moroni (2005), é de que a representação está estruturada principalmente no eixo capital-trabalho, havendo dificuldade para compreender as posições de outros segmentos sociais, minoritários no conselho, que buscam apresentar posições que fogem a esta lógica. Em nenhum dos casos os conselhos possuem canais concretos de interlocução e responsividade perante a população. O tipo de mandato exercido ou é puramente representativo, defendendo o membro do conselho suas posições de acordo com sua consciência, ou é corporativo, reportando-se o representante a uma instituição intermediária que articula os interesses de algum grupo social. Para os governos, os Conselhos de Desenvolvimento funcionam como um termômetro de possíveis reações da população a medidas a serem propostas, antecipando críticas dentro de um microcosmo que reproduziria as principais opiniões existentes na sociedade. No entanto, não são tratados como canais concretos de negociação quando da implementação de políticas concretas. Podem ser citados casos de negociação de medidas fiscais, como foi a proposta de aumento de alíquotas de ICMS, no Rio Grande do Sul, e da renovação da validade da CPMF, ambas no final de 2007, em que as negociações foram 71 travadas diretamente com os legislativos, sem que a discussão nos Conselhos, mesmo que com o objetivo de obter apoio para pressionar o Legislativo, tenha sido utilizada. Embora o potencial da organização dos COREDES seja significativamente maior que das outras estruturas de conselhos, não se vislumbra, a curto prazo, um papel mais relevante destes organismos em uma intervenção no processo de desenvolvimento que democratize o acesso da população a recursos e provoque uma mudança mais profunda na realidade. Seu papel é positivo, como mais um espaço de interlocução entre governo e sociedade, tornando o Poder Público mais permeável às opiniões da sociedade no momento de tomar decisões. Porém não muda o local da tomada de decisões, que continua concentrado principalmente na mesa dos governadores e do Presidente e seus respectivos secretários e ministro da Fazenda. Para que esta realidade seja mudada, é preciso mudar o modelo de representação, criando instituições que não só representem e respondam ás necessidades do cidadão, mas que permitam sua intervenção sem a intermediação das corporações e grupos de interesse instituídos. Mas isto é outra história. Referências Bibliográficas ABRANCHES, Sergio H. The divided Leviathan: state and economic policy formation in authoritarian Brazil. PhD Thesis. Cornell University, 456 p. 1978. AVELLAR, Helio de Alcantara. História administrativa e econômica do Brasil. Rio de Janeiro, MEC, 363 p. 1970. BANDEIRA, Pedro. 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No século XX, Hanifan (1916) cita o conceito pela primeira vez e, a partir dos anos 60 e 70, o conceito entra em evidência, principalmente com os estudos de Robert Putnam. A segunda seção apresenta uma breve descrição do município de Ijuí, localizado no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (evolução histórica) para, na última seção, tratar da variação negativa dos níveis de capital social no referido município. Os resultados expostos na seção final do capítulo, que demonstram a variação negativa dos níveis de capital social, foram possíveis a partir do estudo comparativo entre os resultados do survey aplicado em Ijuí no ano de 2005 com um survey aplicado no ano de 1968 (estudo longitudinal). Além dos dados quantitativos, a pesquisa apresenta alguns depoimentos de lideranças locais, bem como a análise dos bancos de dados dos Institutos de Estatísticas do PNUD, IBGE, FAMURS e FEE, que comprovam mudanças negativas nos níveis de participação político-social e no capital social de Ijuí nas últimas décadas. Capital social: evolução do conceito Pode-se encontrar na obra A democracia na América (1962), de Alexis de Tocqueville, os primeiros fundamentos do significado do que seja capital social. No entanto, um dos primeiros teóricos a utilizar o termo “capital social” nos círculos acadêmicos foi a educadora progressista e reformista social norte-americana Lyda Judson Hanifan, em 1916.1 Mais tarde, Jacobs (1961), Bourdieu (1986), Coleman (1988, 1990), Putnam (1993, 1995), 1 A autora ressalta que, com o termo capital, “não se refere à propriedade de bens pessoais, se refere a fazer com que esses elementos tangíveis sejam parte da comunidade: a amizade, as relações sociais entre os indivíduos e famílias que formam uma unidade social”. 76 Woolcock e Narayan (2000), Portes e Landolf (1996), Woolcock (1998), Sen (2000) e Kliksberg (2001), entre outros, contribuíram para a popularização do termo.2 Com o objetivo de estudar o funcionamento do regime político e analisar a vida sóciopolítica dos norte-americanos, Tocqueville chegou a Nova Iorque, em 1831, com 25 anos de idade. Como síntese dos seus estudos práticos, escreveu a sua principal obra teórica intitulada A democracia na América (La démocratie en Amerique), cujo primeiro volume é impresso em 1835 e o segundo, em 1840. Munido de instrumentos empíricos, Tocqueville procurou construir teoricamente um “tipo ideal” de democracia. Na referida obra, Tocqueville inicia descrevendo os hábitos e os costumes, assim como a organização social e política dos americanos, para depois tratar da estrutura de dominação, de suas instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil.3 Outro tema que Tocqueville (1962) considera importante é o da associação política. Diz o autor que os Estados Unidos são o país do mundo onde mais se tirou partido da associação e se tem aplicado esse poderoso meio de ação à maior diversidade de objetos. Essa tradição associativa dos norte-americanos vem de berço, “desde o seu nascimento, aprende o habitante dos Estados Unidos que precisa apoiar-se sobre si mesmo para lutar contra os males e os embaraços da vida” (p.146). A associação objetiva obter a segurança pública, estimular o comércio, incrementar a indústria, desenvolver a moral e a religião. Nada há que a vontade humana se desespere de atingir pela simples ação do poder coletivo dos indivíduos. A associação é causa de união e progresso: “A associação enfeixa os esforços dos espíritos divergentes e os impele com vigor para uma única finalidade claramente indicada por ela” (p.147). A idéia principal de A democracia na América (1962) resume-se à importância que Tocqueville atribuiu à experiência prática dos americanos, aos seus hábitos, às suas opiniões, aos seus costumes, na manutenção das suas leis. Ou seja, os hábitos e os costumes dos americanos são a base da manutenção das leis: “A minha finalidade foi mostrar, pelo exemplo da América, que as leis e, sobretudo os costumes, podiam permitir a um povo democrático permanecer livre” (p.242). 2 Para a fundamentação teórica da primeira seção, foram analisadas, principalmente, as obras: A democracia na América de Alexis de Tocqueville (1962) e Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna de Robert Putnam (2002). Para tratar da origem, evolução e crítica ao capital social, recorreu-se a Ricotta (2003), Abu-el-Haj (1999), Bandeira (1999, 2003), Monasterio (2001, 2002) Baquero (2001, 2002, 2003A, 2003), Schmidt (2003) e Higgins (2005). 3 Conferir o artigo intitulado “Tocqueville: sobre a liberdade e a igualdade”, de Célia Galvão Quirino (2001), em que a autora comenta as principais idéias de A democracia na América (p.149-188). 77 O espírito público dos americanos sobressaía aos olhos de Tocqueville, além do apoio mútuo. Mais à frente, fica ainda mais explícito o caráter associativo da vida civil dos americanos: Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, estão constantemente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais tomam parte, como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito pequenas. Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir hotéis, edifícios, igrejas, distribuir livros, enviar missionários aos antípodas; assim também criam hospitais, prisões, escolas (TOCQUEVILLE, 1962, p.391-392). Foi esse espírito cívico, segundo o autor, que fez dos Estados Unidos uma verdadeira democracia participativa. Mais adiante, já no século XX, a educadora Lyda Hanifan (1916)observou e analisou o fenômeno de desvinculação social ocorrido nas escolas rurais de sua localidade de origem Virginia do Oeste -, que se manifestava pelo isolamento paulatino dos seus alunos e de suas famílias em relação à vida comunitária em decorrência da perda progressiva de diversas tradições cívicas. Hanifan enfatizou em seus escritos a importância de manter a participação e o engajamento da comunidade para sustentar a democracia e o desenvolvimento. No uso da noção de capital social, não fez referência ao uso habitual do termo capital, e sim o associou com conceitos como a solidariedade, as redes sociais, a vizinhança e o cooperativismo, todos os produtos intangíveis da vida comunitária que podem melhorar sua condição de vida. Assinalou que, na medida em que um indivíduo se relaciona com os outros, particularmente com seus vizinhos, vai acumulando capital social que pode satisfazer imediatamente suas necessidades sociais, o que permitirá que desenvolva seu potencial social para a melhoria substancial das condições de vida em toda a comunidade. Além do mais, tratou sobre os benefícios públicos e privados do capital social, enfatizando que a comunidade se beneficia com a cooperação de todos os membros, enquanto que os indivíduos descobrem, com suas relações com os vizinhos, as vantagens da solidariedade, da ajuda, de ser bem recebido. Os estudos de Hanifan sobre o capital social se anteciparam às idéias nucleares das interpretações posteriores deste conceito, porém, suas contribuições não atraíram a atenção de outros 78 estudiosos das Ciências Sociais e, por isso, o conceito desapareceu na primeira metade do século.4 Como vimos, Hanifan (1916) definiu capital social como os ativos intangíveis que contam para a maioria das pessoas na vivência diária, isto é, confiança, companheirismo, simpatia e relacionamento social entre os indivíduos e famílias, os quais compõem uma unidade social. A integração entre vizinhos favorece para que haja acumulação de capital social, que pode satisfazer imediatamente suas necessidades sociais e pode ter uma potencialidade suficiente para a melhora substancial das condições de vida em toda a comunidade.5 Após a elaboração inicial de Hanifan, o conceito de capital social desapareceu da literatura durante várias décadas, vindo a retornar ao debate no final da década de setenta em diversos campos científicos. Bem mais tarde, o conceito de capital social ressurge pela análise do sociólogo Pierre Bourdieu, no ano de 1986, que o definiu como “as redes permanentes que pertencem a um grupo e asseguram a seus membros um conjunto de recursos atuais e potenciais”.6 Mas foi com Coleman (1988), na Sociologia da Educação e Putnam (1993, 1996), na Ciência Política, que o conceito de capital social passou a ter maior expressão e importância. O capital social segundo Robert Putnam Robert Putnam entende o capital social como conseqüência de um processo cultural de longo prazo, ou seja, acredita na evolução histórica do sistema político e na existência de prérequisitos desenvolvimentistas que facilitam a implementação eficaz de políticas públicas. O autor cita, em seus estudos, enquanto exemplo, o Norte da Itália como a região mais desenvolvida daquela nação por razões de suas origens culturais herdadas da Idade Média. Putnam acredita que o capital social vem de longe, da história. Putnam, em Making democracy work: civic traditions in modern Italy (obra escrita em 1993), além de tratar do desempenho institucional (avaliação e explicação) e da origem da comunidade cívica, afirma que o capital social traz intrínsecas “características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da 4 Conferir Seminário de Mercocidades: Integração e Participação da Juventude das Mercocidades. Disponível em http://library.fes.de/pdf-files/bueros/argentinien/03559-port.pdf. Acesso em 13 de janeiro de 2007. 5 6 Conferir Hanifan In: Woolcock (2000). Para Bourdieu (1986), quanto maiores forem as relações sociais, econômicas e culturais de uma pessoa, maior será o seu capital social. 79 sociedade, facilitando as ações coordenadas” (p.177).7 Em outras palavras, o capital social é entendido como um dos elementos da organização social, tais como a confiança, as normas e as redes que estabelecem relações de reciprocidade, ativadas por uma confiança social que emerge das fontes, das normas de reciprocidade e das “redes de compromisso cidadão”. Putnam (2002), em sua pesquisa na Itália, entrevistou os conselheiros regionais, com o objetivo de examinar as origens do governo eficaz, quais instituições tiveram bom desempenho e quais não tiveram, na tentativa de explicar as diferenças de desempenho institucional e a relação entre desempenho e natureza da vida cívica (comunidade da vida cívica). O autor, apoiando-se na teoria tocquevilliana, argumenta que a comunidade cívica se caracteriza por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias e por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração (p.30-31). Segundo Putnam (2002), em certas regiões da Itália houve maior engajamento cívico, ao passo que em outras houve uma política verticalmente estruturada, uma vida social caracterizada pela fragmentação e pelo isolamento, e uma cultura dominada pela desconfiança. Diz Putnam que primeiro é preciso conhecer as diferenças básicas da vida cívica de uma comunidade para, posteriormente, perceber o êxito ou o fracasso das instituições. Putnam acredita que a relação entre o bom desempenho institucional e a comunidade cívica leva, inexoravelmente, ao desenvolvimento da região. Mas, para chegar a um nível satisfatório de engajamento cívico e de solidariedade social, é necessário que se perceba a herança histórico-cultural da região. O capital social só foi possível ser construído graças à herança histórica que a Itália teve. Existe virtude cívica em uma comunidade, segundo Putnam (2002), quando existe interesse pelas questões públicas e devoção às causas. Por outro lado, para caracterizar a falta de virtude cívica, Putnam apóia-se na teoria de Banfield de que uma das características da falta de virtude cívica é o familismo amoral, ou seja, “maximizar a vantagem material e imediata da família nuclear; supor que todos os outros agirão da mesma forma” (p.102). A característica fundamental da comunidade cívica é o seu espírito público, onde os interesses individuais estão submetidos aos interesses coletivos. Por isso, diz Putnam, “na comunidade cívica, a cidadania implica direitos e deveres iguais para todos” (p.102). Da mesma forma, depois de desenvolver pesquisas em vários países, Putnam (2002) chegou à conclusão de que as pessoas que se unem em associações têm maior consciência 7 As citações de Putnam foram extraídas da obra Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna (2002), tradução de Making democracy work: civic traditions in modern Italy (1993). 80 política, confiança social, participação política e “competência cívica subjetiva”, pois, conclui o autor: “tanto maior a participação em associações locais, maior a cultura cívica será; quanto maior a cultura cívica da região, mais eficaz será o seu governo” (p.112). Assim, o desempenho de um governo regional está, de algum modo, estritamente relacionado com o caráter cívico da vida social e política da região. Da mesma forma, o civismo tem a ver com igualdade e, também, com engajamento. Em síntese, a partir da experiência comprovada na Itália, Putnam (2002) chegou à conclusão de que existem regiões mais cívicas comparadas a outras, dependendo da maior ou menor cultura cívica. Configuram-se como regiões menos cívicas, geralmente, aquelas cujos cidadãos que as habitam pedem ajuda a políticos para obter licenças, empregos e assim por diante. O autor cita o Sul da Itália como exemplo de regiões menos cívicas, principalmente a Púglia e a Basilicata. Nessas regiões com menor grau de civismo, a política caracteriza-se por relações verticais de autoridade e dependência, tal como corporificadas no sistema clientelista (p.115). Da mesma forma, as relações políticas são mais autoritárias e a participação política se restringe à elite. Putnam constatou, nas suas pesquisas, que, quanto menor a participação cívica das pessoas, menor é o índice de instrução. Há uma relação aproximada entre o grau de instrução e o nível de civismo da região. Regiões menos cívicas estão mais sujeitas à corrupção (máfias). Nas regiões menos cívicas, predomina a desconfiança entre as pessoas e a vida pública organiza-se hierarquicamente. Parece ser uma conclusão lógica aquela a que Putnam chegou: quanto menor o capital social e a cultura cívica das pessoas, menor será o desenvolvimento econômico da região. A recíproca é igualmente verdadeira: quanto maior o acúmulo de capital social e maior a cultura cívica, maior será o desenvolvimento. Mais tarde, em 1995, Putnam escreveu o artigo Bowling alone: the collapse and revival of American community que, em 2000, tornou-se livro. Neste, Putnam fez um estudo do capital social no seu país de origem, os Estados Unidos da América. O autor comprovou o declínio da participação (cerca de 25%) dos americanos nas organizações políticas, religiosas, sociais, profissionais, culturais e desportivas nas últimas décadas. O declínio deu-se nos grupos e associações (equipes de futebol, grupos e comunidades), tendo aumentado nas atividades de lazer individual (assistir à televisão). A participação eleitoral caiu substancialmente, sobretudo a partir dos escândalos iniciados no governo de Nixon. Mas também caiu o envolvimento em atividades locais, nas associações de pais e mestres, nos clubes, nos sindicatos, na Cruz Vermelha, nas igrejas. Curiosamente, só aumentou a prática do boliche, mesmo assim fora dos clubes. O boliche é o esporte mais popular entre os norte- 81 americanos (80 milhões jogaram pelo menos uma vez em 1993), mas jogam cada vez mais sozinhos. Eis a razão do polêmico título do artigo de Putnam, Bowling alone ou Jogando boliche sozinho (CARVALHO, 2003). Por fim, é importante afirmar que, apesar da popularidade, o conceito de capital social não é unanimidade entre os cientistas sociais. Algumas críticas aparecem, dentre elas a relação imediata que Putnam faz ao aproximar o capital social com a comunidade cívica e a democracia e, outra, pelo caráter reducionista e determinista do conceito. Segundo Lüchmann (2003), o conceito de capital social não supera os padrões da democracia liberal, na medida em que, ao privilegiar as relações de confiança e reciprocidade, negligencia um caráter mais combativo, crítico e tensionador do associativismo civil, bem como o caráter participativo e efetivamente deliberativo desses atores sociais. Para a autora, o conceito de sociedade civil (espelhado nas práticas dos movimentos sociais) melhor corresponde ao modelo teórico da democracia deliberativa.8 Reis (2003) estende sua crítica ao conceito de capital social de Putnam, ao afirmar que, depois de toda a teorização do autor, o conceito continua vago. Diz Reis que Putnam tratou de comunidade cívica em quase todo o livro, mas só nas 18 páginas finais ele tratou especificamente de capital social, quando ele o aponta como o elemento facilitador da cooperação voluntária, decisiva para a instauração dos círculos virtuosos favorecedores do bom desempenho institucional – esta sim a variável dependente fundamental de todo o estudo.9 Como todo e qualquer conceito, o capital social apresenta diferentes dimensões e entendimentos entre os pesquisadores. Da mesma forma, o debate o tem levado a estar no centro das discussões das Ciências Sociais nas últimas décadas. Se, por um lado, o conceito tem suscitado severas críticas entre os cientistas, por outro, nos últimos anos, tem-se constatado uma convergência sobre a saliência dos aspectos positivos. 8 Para Lüchmann (2003), a democracia deliberativa constitui-se como um modelo ou um processo de deliberação política, caracterizado por um conjunto de pressupostos teórico-normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva. Segundo a autora, trata-se de um conceito que está fundamentalmente ancorado na idéia de que a legitimidade das decisões e ações políticas deriva da deliberação pública da coletividade de cidadãos livres e iguais. 9 “A construção teórica de Putnam sobre capital social está resumida nas duas dezenas de páginas do capítulo final do livro” (REIS, 2003). Outras críticas ainda são pertinentes: Portes e Landolf (1996) criticam os argumentos de Putnam por considerá-los sustentados por um raciocínio tautológico, quando explica que o fracasso ou o sucesso de uma comunidade identificam-se com a presença ou a ausência de capital social: “The very concept of citizenship is stunted here: If your is ‘civic’, it does civic things; if it is uncivic, ‘it does not’” [“o próprio conceito de cidadania está truncado aqui. ‘Se o seu é cívico’, ele faz coisas cívicas; se ele é ‘incívico’, ele ‘não faz coisas cívicas’” – N. R.] (apud COSTA, 2003). 82 Esta primeira seção discorreu sobre a evolução do conceito de capital social, a partir da análise de duas obras: A Democracia na América de Tocqueville e, Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna, de Robert Putnam. Na próxima seção, pretendese apresentar aspectos gerais do município de Ijuí, para, no final, tratar mais especificamente da variação negativa dos níveis de capital social no referido município. O município de Ijuí O município de Ijuí está localizado na Microrregião Geográfica de Ijuí, compondo, conjuntamente com outras microrregiões, a Mesorregião Geográfica do Noroeste RioGrandense.10 Em relação a arranjos administrativos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí integra o Conselho Regional de Desenvolvimento do Noroeste Colonial.11 Situado a uma distância de aproximadamente 400 km da capital Porto Alegre, o município de Ijuí limita-se, atualmente, ao Norte, com os municípios de Ajuricaba, Nova Ramada e Chiapetta; ao Sul, com Augusto Pestana e Boa Vista do Cadeado; a Leste, com Bozano e Ajuricaba; e a Oeste, com Catuípe e Coronel Barros. Segundo a Fundação de Economia e Estatística (FEE), o município tem um Produto Interno Bruto (PIB) per capita anual de, aproximadamente, R$ 9.800,00.12 Atualmente, a área total do município, segundo o IBGE, é de 689.1 km²; a área urbana conta com 31,7 km² (1990). A população residente de Ijuí, levantada em 2005, foi de 78.461 habitantes, sendo 38.083 homens (48,5%) e 40.378 mulheres (51,5%). Na zona rural, vivem apenas 11.064 pessoas, 14% da população; enquanto na zona urbana, 67.397 pessoas, 86% da população.13 Diferentemente de outras épocas, em que a economia do município era pautada pela indústria ou pela agricultura, hoje é o setor de serviços que responde pelo maior incremento 10 Cadernos Unijuí. Região: questões conceituais e a prática da regionalização do Rio Grande do Sul. Série Ciências Sociais n. 22. 11 A cidade de Ijuí também ficou conhecida como “Colméia do Trabalho”, título este escolhido através de um concurso promovido pelo Jornal Correio Serrano no ano de 1944: “O nome simbólico escolhido em 06/10 de 1944 para a nossa querida Ijuí foi ‘Colméia do Trabalho’, nome conservado até hoje, que bem sintetiza o labor constante e progressivo do povo de nossa terra” (Fonte: CORREIO SERRANO, 27 de outubro de 1944, p.5). No entanto, já encontramos registros deste codinome “Colméia do Trabalho” antes da referida data. 12 13 Dado referente ao ano de 2003. Dados apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005). Porém, nem sempre a população urbana foi maioria em Ijuí. Veremos logo à frente que, nas décadas de 60 e 70, houve simplesmente uma inversão entre a população rural e urbana. 83 da economia de Ijuí.14 A agricultura, nos últimos anos, tem uma participação de em torno de 12% do PIB do município; a indústria responde por 21% da economia; enquanto os serviços respondem por 61% e os impostos por 8% do PIB municipal. A Colônia de “Ijuhy” foi fundada oficialmente em 19 de outubro de 1890 por imigrantes russos que se instalaram na localidade.15 Porém, estudos indicam que, anterior a esses imigrantes, a região e, especificamente, o território de Ijuhy já era habitado por caboclos nativos e índios guaranis.16 Esteve à frente da criação da colônia o engenheiro José Manoel da Siqueira Couto, que, depois de demarcá-la, distribuiu vários lotes urbanos da sede colonial a 22 cidadãos. Mais de cem famílias foram assentadas nos lotes rurais. Passados 20 meses retirou-se o Dr. Couto, deixando encarregado da colônia o agrimensor Ernesto Mützel Filho.17 Em 6 de dezembro de 1898, foi nomeado para diretor o Dr. Augusto Pestana, que a dirigiu até a sua constituição em município, em 1912, pelo decreto nº 1.814, de 31 de janeiro, do Governo do Estado (COSTA, 1922, p.262).18 O decreto foi assinado pelo então Presidente do Estado, Dr. Carlos Barbosa Gonçalves. O interesse em ocupar essa região deveu-se a motivos estratégicos (defesa de fronteira) e também para baratear os custos dos gêneros alimentícios. A maioria dos 14 No início da década de 70, a agricultura ijuiense alcançou seu ápice. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) cadastrou, em 1969, segundo a condição legal das terras, 4.200 estabelecimentos agrícolas no município. A área cultivada era de 95.417 hectares, predominando as propriedades que se encontram na faixa dos 10 aos 100 hectares (cerca de 3.000). Em 1970, por exemplo, o setor agrícola respondia por 42% da receita do município, a indústria por 27%, o comércio por 19% e a pecuária por 12% (Fonte: Gabinete de Planejamento da Prefeitura – CORREIO SERRANO, 19 de outubro de 1970). 15 Ijuhy, na época, fazia parte do quinto distrito de Cruz Alta. O nome Ijuhy foi o nome dado pelos índios guaranis ao rio que perpassa o município. O seu significado varia conforme a grafia que se lhe dá. Escrevendo “Ihjui” entende-se “rio das rãs”, talvez o significado original; “Juhy” significaria “rio dos espinhos”; “Jujuhy”, “rio dos pintassilgos”; mas “Ijuhy”, a grafia que aparece em todos os documentos até a década de 1940, só pode significar “rio das águas divinas” ou “rio da abelha divina” (LAZZAROTTO, 2002, p.13). 16 Os estudos de Fischer (1987) comprovam essa afirmação: “É em geral posta em segundo plano a contribuição lusobrasileira na formação das etnias ijuienses. Muitos habitantes dessa raça (luso-brasileiros) estão presentes na região, mesmo antes da fundação da colônia...” (p.20). Os caboclos (ou “lavradores nacionais”) como também eram denominados, buscando relativa autonomia econômica e social, fixavam-se nas orlas da mata ou embrenhavam-se nela, onde faziam suas roças de subsistência e praticavam o extrativismo da erva-mate, que se constituía, então, na segunda riqueza econômica da Província, sendo a maior parte dela exportada para os países vizinhos pela via fluvial do rio Uruguai (BRUM, 1994, p.8). 17 No 32º aniversário da fundação da Colônia, assim se reportou o Jornal Correio Serrano: “A 32 anos atrás, Ijuhy era como se pode dizer uma verdadeira floresta, e hoje admirado por todos quantos o visitam. A então colônia Ijuhy foi iniciada no dia 19 de outubro do ano de 1890, formando a Comissão fundadora como chefe, o Dr. José Manoel da Siqueira Couto, e como auxiliares, o Sr. Guilherme Brusch, Tenente-Coronel Luiz Augusto de Azevedo e Alexandre Bastiani. Os primeiros comerciantes que nela se instalaram foram os Srs. Coronel Antônio Soares de Barros, atual intendente Municipal, Henrique Koph e Francisco Berenhauser, em janeiro de 1891...” (CORREIO SERRANO, 18 de outubro de 1922). 18 Sobre a passagem da emancipação política de Ijuí, assim foi registrado no Relatório Municipal de 1913: “No dia 11 de fevereiro de 1912 às 11 horas da manhã no Clube Ijuí, foi solenemente instalado o município de Ijuí, com a presença do General Firmino de Paula, sub-chefe de polícia, do Coronel Firmino de Paula Filho, intendente de Cruz Alta, do Sr. Augusto Gaurita, Juiz da Comarca, do Sr. Augusto Pestana, que na ocasião foi empossado como Intendente Provisório do novo município. Mais de 60 pessoas assinaram a ata de presença. O primeiro ato oficial foi assinado no dia seguinte, ou seja, dia 12 de fevereiro de 1912, cujo ato dividia o município em três distritos, que seriam hoje: Ijuí (Sede), 2. distrito (Augusto Pestana) e 3. distrito Ajuricaba” (Fonte: AI 1.2 Relatório Municipal de 1913, MADP). 84 habitantes de Ijuhy era descendente de imigrantes provenientes das “Colônias Velhas”, que se localizavam nos vales do Rio Jacuí e seus afluentes.19 No ano de 1898, a escassez de terras e, conseqüentemente, os altos preços dos lotes coloniais naquelas regiões originaram sérios problemas. A única solução visível parecia ser a migração das gerações mais jovens às regiões Norte e Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, cuja colonização começa com a fundação de Ijuhy entre os campos de Cruz Alta, Santo Ângelo, Tupanciretã e Palmeira das Missões, significando a ocupação das últimas áreas disponíveis no Rio Grande do Sul.20 Após a criação do município, o Dr. Pestana se afastou da administração municipal, vindo então Antônio Soares de Barros, o Coronel Dico, como já era chamado, nomeado Intendente do município. O Cel. Dico era, concomitantemente, chefe político, dirigindo o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) municipal.21 A colônia de Ijuhy abrigou, desde o início, uma expressiva diversidade étnica e cultural. Em meados de 1890, já se falavam dezenove idiomas na região, o que a tornava uma verdadeira “Babel”.22 Nos anos 30, o cenário multiétnico de Ijuhy consolidava-se. Um artigo do Jornal Correio Serrano descreve com detalhes este panorama: Indivíduos de todas as raças vivem em Ijuí, uma salada de nacionalidades [...]. Sem dúvida, um dos traços mais característicos do município de Ijuí é a variedade de tipos raciais que se encontram pelas estradas de rodagem e se cruzam pelas ruas de nossa pequenina urbe. Dir-se-ia que a nossa comuna é um resumo do mundo étnico; um crisol em que se fundem indivíduos das 19 Muitos eram descendentes de imigrantes das “Colônias Velhas”; outros, imigrantes que acabavam de chegar de suas terras natais, como os italianos que vieram da região Norte da Itália. 20 Segundo Roche (1969), em 1900 a população de Ijuí era de 7.600 habitantes. Depois de uma década (1910), o município já contava com uma população de 15.000 pessoas (p.127). 21 Os dois principais líderes políticos de Ijuí, Augusto Pestana e Antônio Soares de Barros (Cel. Dico), no período de 18901938, foram integrantes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e traziam características coronelistas na forma de domínio político: “Todos esses políticos eram ligados a uma estrutura coronelista de poder, sendo, seu principal líder, o Coronel Dico” (AMARAL, 2003, p.63). Tanto Pestana como Soares de Barros podem ser considerados coronéis “borgistas” ou “burocratas” pelo seu estilo de administração política e pela “submissão” e fidelidade hierárquica que mantinham frente aos coronéis regionais e ao próprio Presidente do Estado, como fica evidenciado na seguinte passagem descrita por Soares de Barros: “Nomeado por ata de ontem do Exmo. Presidente do Estado, Intendente Provisório deste município em sucessão do extraordinário administrador e benfeitor desta terra Dr. Pestana, esforçar-me-ei para corresponder a confiança republicana do governo, de V. Exª. e do abnegado Chefe Serrano Exmo. General Firmino de Paula a quem continuarei acatando como chefe e amigo” (Fonte: Pasta 1.2. Prefeitura Municipal n.111 Doc. 74 – MADP, 1923). 22 Argemiro Jacob Brum, em entrevista concedida em junho de 2004, afirma que Ijuí era considerada a “Babel” do Novo Mundo. Conferir, igualmente, o trabalho de Kohn (2003). Em 1903, a população da colônia de Ijuí era de 7.960 habitantes, sendo assim distribuídos: 4.450 brasileiros, 1.673 poloneses, 770 russos, 580 alemães, 520 italianos, 432 austríacos e, ainda em menor número, suecos, espanhóis, argentinos, franceses, holandeses, uruguaios, norte-americanos, sírios, libaneses, suíços e belgas (Fonte: AF 13122562 – Programa Nossas Coisas Nossa Gente, p.25, MADP, 1962). 85 mais variadas procedências para formar uma raça única que há de surgir dentro de poucas gerações.23 Na questão econômica, pode-se classificar a economia de Ijuí em quatro fases específicas: a primeira, diz respeito à economia de subsistência: a lavoura antiga (antes de 1890); a segunda, está relacionada à diversificação na agricultura (policulturas) e industrialização (1900-1949); a terceira, está ligada à modernização na agricultura (binômio trigo e soja) ou também chamada “agricultura capitalista” (1950-1979); e a última, ligada à prestação de serviços (de 1980 até nossos dias), juntamente com a continuidade do binômio trigo e soja e uma gradativa diversificação agrícola (leite, peixe, mel, etc). Variações negativas nos níveis de capital social de Ijuí Esta seção conclusiva analisa a variação negativa dos níveis de participação políticosocial e do capital social de Ijuí nas últimas décadas. Os resultados aqui expostos foram possíveis a partir do estudo comparativo entre os resultados do survey aplicado em Ijuí no ano de 2005 com o survey de 1968. Além dos dados quantitativos, a pesquisa apresenta alguns depoimentos de lideranças locais, bem como a análise dos bancos de dados dos Institutos de Estatísticas do PNUD, IBGE, FAMURS e FEE, que comprovam mudança nos níveis de participação político-social e no capital social de Ijuí, isto é, os resultados demonstram que a sociedade ijuiense tem passado por uma variação negativa do capital social nas últimas décadas. Como vimos, Putnam (2002) entende que os estoques de capital social, como confiança, normas e sistemas de participação, tendem a ser cumulativos e a reforçarem-se mutuamente. Os círculos virtuosos geram, conseqüentemente, elevados índices de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo. Eis as características que definem a comunidade cívica. Por outro lado, numa comunidade não-cívica imperam a deserção, a desconfiança, a omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e a estagnação, que intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante de círculos viciosos (p.186-187). Esta tese de Putnam pode ser aplicada no comportamento político local? É exatamente este o objetivo desta seção final. 23 CORREIO SERRANO, Ijuí, edição de 6 de setembro de 1933. 86 A sociabilidade do ijuiense Esta primeira subseção trata do declínio da participação social da população de Ijuí nas últimas décadas. Depoimentos de lideranças locais apontam para o declínio do caráter comunitário da sociedade ijuiense, além da massificação, competição, desemprego e individualismo que atingem a todos indistintamente, como conseqüência da supremacia do mercado. Este é o enfoque do depoimento do professor universitário Suimar Bressan: Ijuí perdeu seu perfil comunitário e transformou-se numa sociedade de massas. Vivemos também um momento de hegemonias do mercado (ou politização do mercado) no sentido de que as questões sociais e demandas individuais se resolvem segundo a iniciativa de cada um nesse espaço essencialmente competitivo. A reestruturação produtiva representou (e continua) uma destruição de empregos com reflexos bastante significativos no sindicalismo. Também se deve considerar a crise do cooperativismo, que foi um significativo espaço de discussão e mobilização sobre questões da agricultura regional, da modernização e da dependência. Em síntese, a mobilização intensa dos anos 50/60 até início dos anos 80 estava vinculada ao “espírito” da época: a luta pelas Reformas de Base e, posteriormente, a luta contra a ditadura. Talvez se deva considerar que neste novo tempo as formas de manifestações, mobilizações e organizações sejam outras.24 Da mesma forma, a participação na resolução dos problemas locais tem diminuído, igualmente, nas últimas décadas. Uma análise dos resultados da pesquisa de 1968, comparada aos resultados da pesquisa 2005, aponta para uma diminuição da tentativa de resolução dos problemas locais/bairro/comunidade junto com outras pessoas. Em 1968, 91,8% dos entrevistados responderam que tentaram resolver de alguma forma os problemas, contra apenas 32,8% em 2005. Uma diminuição de 59 pontos percentuais da participação na tentativa de resolver os problemas locais do bairro/comunidade junto com outras pessoas. Tabela 1- Participação na solução de problemas (1968-2005) (%) 24 BRESSAN, Suimar. Entrevista concedida no dia 13 de outubro de 2005. 87 Sim Não NS/NR Total N= 1968 91,8 6,3 1,9 367 2005 32,8 65,8 1,5 400 Fonte: Trindade (1968) e dados elaborados pelo autor a partir da Pesquisa: Desenvolvimento Sustentável e Capital Social - NIEM/ NUPESAL/ UNIJUÍ - 2005. Insegurança, insatisfação e frustração Verifica-se que a segurança pública é a área que encontra o maior percentual de desaprovação entre os ijuienses, apenas 24,8% acham o serviço “bom”, contra 73,3% que avaliam o serviço como “ruim” ou “péssimo”. Este percentual negativo acaba afetando a qualidade de vida dos ijuienses, pois, quando as pessoas não se sentem seguras, tendem a desconfiar mais umas das outras ou até mesmo deixam de ir a lugares que estavam acostumados a freqüentar. Isso porque o incremento da violência difusa pode estar associado à redução na qualidade de vida de uma determinada região ou município, podendo significar, igualmente, uma redução da variação do capital social. Outros estudos apontam, igualmente, para a mudança dos hábitos cotidianos das pessoas para reduzir o risco a que estariam submetidas. As pessoas limitam os locais onde transitam, deixam de ir a locais de que gostam, evitam usar meios de transporte coletivo, evitam sair de casa à noite, gastam altas somas de recursos na proteção de suas residências, passam a adquirir armas e, muitas vezes, a andar armadas.25 Dentro deste contexto, o resultado da pesquisa de 2005 demonstrou que, em Ijuí, a maioria dos entrevistados (50%) sente-se insegura ao andar nas ruas. 11% dos ijuienses já sofreram algum tipo de violência (assalto) nos últimos tempos e cerca de 66% dos entrevistados conhecem alguma pessoa que já sofreu alguma violência física. Perguntou-se, igualmente, quais os possíveis meios de evitar tais situações: a maioria dos entrevistados respondeu que devem sair em companhia de outra pessoa (72,8%), evitar sair depois que anoitece (62,8%), ou até mesmo pedir proteção da polícia (62,3%) mesmo que esta seja ineficiente. 25 Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança <http://www.unodc.org/pdf/brazil/pp_6_custos_sociais_pt.pps>. Acesso em abril de 2006. Pública. Disponível em 88 O bom nível da qualidade de vida também é uma manifestação de capital social de uma comunidade e pode ser comprovado a partir da satisfação, realização e segurança frente ao futuro. Porém, em Ijuí, os resultados demonstrados através da pesquisa são preocupantes. Mais de 30% da população afirma estar insatisfeita, 43,5% responderu estar insegura frente ao futuro e 31,8% respondeu estar frustrada. Uma sociedade onde impera o familismo amoral de Banfield Além dos aspectos já mostrados, que evidenciam a variação negativa do capital social em Ijuí nos últimos 30 anos, percebe-se que a sociedade ijuiense retrocedeu, igualmente, no aspecto associativo, na cooperação e na participação. A comunidade ijuiense não consegue mais aglutinar forças para resolver os problemas comuns. As instituições sociais e políticas (Poder Público e partidos), Universidade e Associação Comercial de Ijuí (ACI) não trabalham de forma integrada. As resoluções dos problemas dão-se de forma individualizada. A sociedade ijuiense parece estar vivendo o familismo amoral, aquela característica social descrita por Banfield como uma sociedade onde impera a ausência da virtude cívica, sendo o isolamento e a desconfiança em relação ao outro a característica fundamental. No familismo amoral, a pessoa parece estar unicamente interessada no seu próprio bem-estar e no de sua família, isto é, busca-se “maximizar a vantagem material e imediata da família nuclear; supor que todos os outros agirão da mesma forma”. Como explicita uma liderança local em entrevista oral: “Geralmente você não encontra parceiros e sim concorrentes [...]. Ijuí trabalha em grupos familiares fechados e, particularmente, tive muita dificuldade de entrar neste grupo quando cheguei aqui anos atrás”. Da mesma forma, as instituições que foram importantes referências de associativismo, cooperação e participação social nos anos 60, passam por sérias crises. Segundo o sindicalista Carlos Alberto Dahmer, esta crise está ligada à apropriação de algumas pessoas ou famílias que se perpetuam no poder sem nenhum tipo de alternância: Penso que possam estar atravessando um processo de crise de identidade, uma vez que a renovação pessoal nestas entidades se dá de maneira muito tímida. A meu ver a apropriação pessoal das entidades não dá a possibilidade de oxigenação necessária. Pois vejamos os exemplos: dirigentes na Cotrijuí, 89 na Ceriluz, na Unijuí, nos Sindicatos (transporte, rural patronal e empregados), CBI (via Prefeitura, é o mesmo grupo no comando há 20 anos). Ao mesmo tempo que não forma novas lideranças, aniquila qualquer movimento de reação a este processo. Pode-se jogar esta mesma avaliação para outros segmentos da sociedade, como ACI, Lions, Clubes Religiosos e de serviços.26 Êxodo rural crescente e dispersão urbana Os dados explicitados nesta tese indicam para um crescente êxodo rural que atingiu a Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, inclusive o município de Ijuí, nas últimas décadas. Uma das causas deste fenômeno foi o processo de modernização da agricultura (binômio trigo e soja), que priorizou a produção de larga escala em propriedades maiores, expulsando os pequenos agricultores de seus estabelecimentos. A passagem dos anos 60 para os 70 foi emblemática, pois, em menos de 20 anos, a população rural/urbana inverteu-se. Em 1960, 66% da população de Ijuí morava na área rural e 34% na urbana; nos anos 70, 61% passou a viver nas cidades, contra apenas 39% que permaneceu na área rural. Esta tendência agravou-se nos últimos anos, hoje apenas 14% da população vive na área rural contra 86% na cidade. Quadro 1- Evolução da população urbana/rural de Ijuí RS (1960-2005) Área Rural Urbana 1960 66% 39% 1970 34% 61% 2005 14% 86% Fonte: IBGE, 2005. Junto com o êxodo rural, a cidade de Ijuí cresceu de maneira desordenada, sem planejamento e organização, quando de imediato deparou-se com sérios problemas de habitação, saneamento básico, desemprego e violência. Os novos moradores viram, ao mesmo tempo, sucumbir suas origens interioranas e um maior sentimento de incerteza e dispersão urbana fez deles seres anônimos. Este problema é comentado por Jaeme Callai: 26 DAHMER, Carlos Alberto. Entrevista concedida no dia 22 de maio de 2005. 90 A sociedade ijuiense complexificou-se nos últimos 50 anos e acabou perdendo suas características camponesas como solidariedade, controle social e vizinhança. A experiência associativa esteve fundada nestes valores tradicionais (é marcante a influência da Igreja na animação de todas essas experiências). A base social foi se alterando por conta de um certo cosmopolitismo que reforça o individualismo; da presença de novos contingentes populacionais deslocados do campo, desenraizados, que produzem um Estado de anomia social (se fosse usar o termo).27 Da mesma forma, para Bernadete Azambuja, o problema do empobrecimento da população rural favoreceu a migração para as cidades. Além disso, estas populações ficaram reféns de políticos tradicionais com seus velhos vícios: O desmonte de parcelas da população que se fizeram economicamente no período da modernização fora da região. Ou então pelo fechamento de empresas tradicionais; a grande migração para a cidade de Ijuí de parcelas da população empobrecida, o que reitera os esquemas políticos tradicionais – clientelismo, assistencialismo.28 Manifestações da política convencional Esta segunda subseção analisa o declínio das manifestações da política convencional como participação em reuniões políticas, participação em partidos políticos, comícios. Apresenta, igualmente, o declínio da participação nas eleições municipais de Ijuí (19722004), bem como o baixo interesse por política entre os eleitores. Participação em reuniões partidárias, partidos políticos e comícios Constatou-se que a participação em reuniões junto aos partidos políticos declinou sensivelmente entre os eleitores ijuienses. Em 1968, 27,8% responderam que participavam em reuniões políticas contra 24,3% em 2005, um decréscimo de 3,5 pontos percentuais na 27 CALLAI, Jaeme. Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2005. 28 AZAMBUJA, Bernadete. Entrevista concedida no dia 14 de outubro de 2005. 91 participação nos últimos tempos. Considerando que, nos dias de hoje, o número de partidos políticos é bem maior comparado à época do bipartidarismo do regime militar e que estamos em um regime democrático, esperava-se uma maior participação em reuniões políticas, o que na realidade não acontece. Tabela 2- Participação em reuniões políticas (%) Total Sim/Já participou Não N= 1968 27,8 72 367 2005 24,3 75 400 Fonte: Trindade (1968) e dados elaborados pelo autor a partir da Pesquisa: Desenvolvimento Sustentável e Capital Social - NIEM/ NUPESAL/ UNIJUÍ - 2005. Da mesma forma, ocorreu uma diminuição na participação em partidos políticos. Em 1968, 20,5% responderam que participavam, contra 18,3% de 2005, uma diminuição de 2,2 pontos percentuais. Tabela 3- Participação em partidos políticos (%) Sim/Já participou Não Total N= 1968 20,5 79,4 367 2005 18,3 81,5 400 Fonte: Trindade (1968) e dados elaborados pelo autor a partir da Pesquisa: Desenvolvimento Sustentável e Capital Social - NIEM/ NUPESAL/ UNIJUÍ - 2005. A diminuição na participação em campanhas eleitorais (comícios) também se evidenciou a partir da comparação entre os dois surveys. Em 1968, 59,4% afirmaram que participavam ou já haviam participado contra 38,7% que responderam não ter participado. Já nos resultados da pesquisa de 2005, o percentual de participação baixou para 40,1% dos entrevistados que afirmaram participar ou já ter participado, enquanto que 59,5% não. O decréscimo na participação em comícios ficou em torno de 19 pontos percentuais, bem maiores, portanto, que a participação em reuniões políticas e partidos políticos. Tabela 4- Participação em comícios (%) 92 Total Sim/Já participou Não N= 1968 59,4 38,7 367 2005 40,1 59,5 400 Fonte: Trindade (1968) e dados elaborados pelo autor a partir da Pesquisa: Desenvolvimento Sustentável e Capital Social - NIEM/ NUPESAL/ UNIJUÍ - 2005. Participação eleitoral Considerando que a diminuição da participação dos votantes nos pleitos eleitorais seja uma manifestação de perda de espírito cívico de uma sociedade, constatou-se que em Ijuí os eleitores têm, aos poucos, afastado-se das urnas. Um levantamento de dados da participação eleitoral nas eleições municipais de 1972-2004 demonstra que, mesmo tendo aumentado o percentual dos votos válidos (excluindo os brancos e nulos), está ocorrendo uma diminuição sistemática do número de votantes em Ijuí. O comparecimento dos eleitores às urnas passou de 90% em 1972 para 86,1% em 2004 (eleições municipais) que, em tese, deveria causar maior mobilização junto ao eleitorado em comparação com as eleições para governador ou presidente. Contrariamente, as abstenções aumentaram no mesmo período, passando de 10% para 14%. O maior percentual de comparecimento às urnas foi, em 1988 e 1992, de 92,6% e 97,2%, respectivamente. Estes índices refletem o momento de entusiasmo do eleitorado logo após a abertura democrática e a elaboração da nova Constituição Federal. No entanto, aos poucos, o entusiasmo foi dando lugar ao descrédito e os índices de participação voltaram a cair novamente nas três últimas eleições municipais. Gráfico 1- Evolução da participação eleitoral em Ijuí (Municipais) (1972-2004) Fonte: Dados elaborados pelo autor a partir de Pesquisa no TRE-RS 93 Interesse por política convencional Os dados da pesquisa de Ijuí parecem se assemelhar ao comportamento de outras regiões ou até mesmo de países que têm uma tradição democrática e um melhor desenvolvimento econômico, ou seja, a motivação em acompanhar a política é pouco significativa. Segundo a comparação longitudinal entre as pesquisas aplicadas em Ijuí (19682005), percebe-se que o interesse por assuntos ligados à política tem diminuído nos últimos anos, demonstrando o declínio da virtude cívica dos ijuienses, isto é, a ausência de interesse por questões políticas pode ser um primeiro indicativo de ausência de capital social. Em 1968, 29,7% afirmavam interessar-se por assuntos ligados à política; 31% afirmaram interessar-se mais ou menos e 38,7% afirmaram não se interessar por política. Os resultados do survey 2005 demonstram um percentual menor: 26% responderam que se interessam por política; 36,5% se interessam mais ou menos e 37,3% afirmaram não se interessar. Considerando que a pesquisa de opinião de 1968 foi aplicada no período de radicalização do regime militar (fechamento do Congresso, perseguição e tortura), os dados de interesse pela política são considerados altos em relação aos dados da pesquisa de 2005, exatamente por vivermos um tempo de democracia em que, teoricamente, o interesse pela política deveria ser maior. Tabela 5- Interesse por política (%) Sim Mais ou Menos Não Total N= 1968 29,7 31 38,7 367 2005 26 36 37 400 Fonte: Trindade (1968) e dados elaborados pelo autor a partir da Pesquisa: Desenvolvimento Sustentável e Capital Social - NIEM/ NUPESAL/ UNIJUÍ - 2005. Mantêm-se as mazelas da cultura política tradicional Têm-se mantido no município alguns traços da cultura política convencional com a prática do clientelismo, paternalismo, patrimonialismo e personalismo.29 O personalismo pode ser comprovado na pouca alternância das lideranças políticas à frente da Prefeitura nos últimos 20 anos, por exemplo. Desde 1982, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), com as famílias Burmann e Heck, tem dominado a cena política local, com 29 Muitos políticos locais ainda vêem a esfera pública como privada. Recentemente cinco ex-vereadores e um ainda no exercício do mandato na Câmara de Ijuí terão de devolver o dinheiro usado de maneira indevida com diárias no ano de 1997. Somados os valores retirados indevidamente, mais a multa pela infração, a devolução chega a R$ 202.485,82. 94 raras exceções, como foi o caso da eleição municipal de 1996 na qual, exepcionalmente, o candidato trabalhista saiu derrotado pela aliança PP/PMDB, que elegeu Ortiz Iboti Schröer prefeito municipal. A fragilidade e a desunião dos partidos mais à esquerda no espectro político-ideológico, bem como a predominância de um só partido na cena política, afetam negativamente a cultura política local. Além disso, vive-se, no município, uma carência de novas lideranças políticas, sociais e comunitárias, e as que surgiram foram cooptadas por partidos tradicionais. A cooptação das lideranças locais por partidos tradicionais enfraqueceu o movimento comunitário e de bairros. Afirma o sindicalista João Frantz: Um exemplo: na década de 1960/70 os vereadores e sindicalistas Valdenor Flores da Fonseca, João Filipin e Euclides Veriato da Cunha abandonaram “subitamente” as fileiras dos movimentos sociais ou comunitários para integrar forças políticas comandadas pela elite econômica de Ijuí na época. Mais casos podem ter ocorrido, enfraquecendo as entidades, associações de trabalhadores que haviam confiado nos seus representantes. A direita se deu conta das proporções ou rumos das organizações comunitárias e passou a agir/ ou se impor (do seu jeito).30 Por fim, para Jaeme Callai, o período ditatorial também foi o responsável pela nulidade do surgimento de novas lideranças locais: O período ditatorial anulou (cassou) lideranças populares; inibiu a ação ou o surgimento de outras; freou a participação popular autônoma. Diria que foi instituída a prática política do populismo (de direita) com a cooptação política de lideranças emergentes, e a manipulação popular.31 Desconfiança interpessoal e nas instituições políticas Como foi explicitado na seção anterior, a confiança interpessoal e nas instituições apresenta indicadores reduzidos em Ijuí. O percentual de confiança entre os ijuienses é de apenas 27%, enquanto que 71,5% dos entrevistados responderam que não se pode confiar nas pessoas. Os resultados da pesquisa empírica apontam também para uma baixa confiança dos cidadãos ijuienses em relação às instituições políticas. Com 97,8% de pouca confiança e nãoconfiança, o Congresso Nacional é a instituição com os piores índices de confiança, seguido 30 FRANTZ, João. 15 de outubro de 2005. 31 CALLAI, Jaeme. 28 de outubro de 2005. 95 pelos Partidos Políticos com 94,8%, Assembléia Legislativa (94,6%), Câmara Municipal (93,8%), Governo Estadual (92,5%), Governo Federal (89%) e Governo Municipal (85,5%). Outras instituições sociais como os Meios de Comunicação Sociais (74,3%), Associações Comunitárias (70,3%), Judiciário (71,6%), Sindicatos (75,3%) e Polícia (78,5%), também apresentaram elevados índices de pouca confiança e não-confiança. Um alto índice de confiança existe apenas em duas instituições: na Família e na Igreja, com 90% e 60,8%, respectivamente. Estagnação do PIB e declínio no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) Esta última subseção pretende avaliar o desempenho do IDH da Região Noroeste Colonial, bem como do próprio município de Ijuí. Avaliando-se a evolução do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da Região Noroeste Colonial (RNC-RS), percebe-se que a mesma apresentou, entre os anos de 1970 e 1990, um dos piores desempenhos, comparada a outras regiões do Estado do Rio Grande do Sul. Segundo estudos de Oliveira (2001), a RNC-RS ocupou, em 1991, as antepenúltimas colocações nos indicadores de desenvolvimento humano e de incidência de pobreza, a penúltima colocação no índice de desigualdade de renda entre a população pobre e a quarta última posição no coeficiente de desigualdade de renda, devido aos seus componentes intra e intermunicipal. Além disso, a RNC-RS exibiu, no mesmo período, muitos municípios que se sobressaíram como os piores desempenhos no que se refere à incidência e ao grau de desigualdade de renda dos pobres. Dentre esses estavam Braga, Sede Nova, Redentora e Miraguaí. Conforme ainda o estudo de Oliveira (2001), nota-se que esses dois últimos municípios ocuparam as últimas e penúltimas colocações em relação aos indicadores de pobreza. Além da pobreza, os referidos municípios apresentam um dos piores resultados na desigualdade de renda entre suas populações.32 Segundo estudos de Stülp e Fochezatto (2004), praticamente 50% das regiões do Estado do Rio Grande do Sul estão em uma situação que pode ser definida como círculo vicioso da pobreza: baixo PIB per capita, baixo crescimento econômico e redução da população. A RNC-RS faz parte deste grupo de regiões. Como demonstra o gráfico abaixo, o desempenho econômico da RNC/RS nos últimos 10 anos tem sido negativo: passou de 3,55% na participação na economia do Estado para 2,63%. Gráfico 2- A participação econômica da RNC no PIB do RS 32 Em 1980, quando o RS tinha um PIB de US$ 17.880.648, a região participava com um percentual de 3,3%. Desta data em diante a participação percentual do PIB da região no PIB estadual declinou (salvo discreta evolução em 1992). Em 1994, quando o Estado estava com um PIB de US$ 41.814.871, a região participava com 2,8%. Isto mostra um relativo empobrecimento da região no período. Conferir o trabalho de Oliveira (2001) e Sperotto (2003). 96 Desempenho econômico histórico do RNC: % do RS (1984-2004) 4 3,55 3,5 2,73 3 2,5 2,37 2,73 2,25 2,43 2,63 2 1,5 1 0,5 0 1984 1989 1994 1999 2002 2003 2004 Fonte: Luis Roque Klering (Disponível em www.terragaucha.com.br) Inserido na mesma realidade geográfica e econômica, o município de Ijuí, no mesmo período, não fugiu à regra. Segundo os dados do PNUD, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Ijuí no setor de educação, longevidade e IDH geral municipal pouco evoluiram durante os anos de 70 a 90, mas o IDH renda declinou dos anos 80 a 90. O IDH educação e longevidade tiveram um baixo crescimento, mas, linear na amostragem de 1970, 1980 e 1991, o que não aconteceu com o IDH renda e IDH geral municipal. Ambos tiveram um crescimento substancial entre as décadas de 70 e 80; no entanto, este crescimento não se fez acompanhar entre os anos 80 até 1991, inclusive houve uma retração no IDH renda, caindo de 0,951 em 1980 para 0,926 em 1991. O IDH municipal de 1980 a 1991 foi positivo, mas, abaixo da década anterior. Estes dados podem ser reflexos da crise em que entra o setor primário no início dos anos 80, com o esgotamento da lavoura em grande escala (produção capitalista de monocultura de exportação) e o fim dos subsídios do governo que atingiu, além da agricultura, os setores a ela ligados, como a indústria de implementos agrícolas, comércio (lojas de insumos) e a própria Cotrijuí, que entrou em crise na mesma época. A nova metodologia do PNUD, a partir dos anos 90 até 2000, demonstra outros números, mas se mantém a mesma tendência de baixo crescimento do IDH nos diferentes segmentos. (Conferir Gráficos 10 e 11). Gráfico 3- IDH de Ijuí (1970-1991) 97 1 0,951 0,926 0,9 0,8 0,755 0,742 0,692 0,651 0,7 0,6 0,808 0,754 0,618 0,536 0,544 0,577 1970 0,5 1980 1991 0,4 0,3 0,2 0,1 0 Educação Renda Longevidade Geral Municipal Fonte: PNUD/Atlas de Desenvolvimento Humano (www.pnud.org.br)33 Gráfico 4- Evolução do IDH de Ijuí (1991-2000) 1 0,9 0,926 0,847 0,8 0,742 0,676 0,7 0,720,742 0,803 0,748 0,6 1991 0,5 2000 0,4 0,3 0,2 0,1 0 Educação Renda Longevidade Geral Municipal Fonte: PNUD/Atlas de Desenvolvimento Humano (www.pnud.org.br) Como demonstra o Gráfico 13, Ijuí tem declinado na evolução do PIB em relação aos demais municípios do Rio Grande do Sul nos últimos dez anos, passando da 22ª colocação para a 31ª em 2001, apresentando uma melhor colocação nos anos de 2002, 2003 e 2004. 33 O Gráfico 11 se refere à Metodologia Anterior e o Gráfico 12 à Metodologia Atual. Segundo o PNUD, existem diferenças metodológicas entre os dois lançamentos. O cálculo de IDH-E (educação), na metodologia anterior, era composto pela taxa de alfabetização e pela média de anos de estudo. No Novo Atlas a média de anos de estudo foi substituída pela taxa bruta de freqüência à escola nos três níveis de ensino, tornando mais semelhante ao IDH internacional. Já no IDH-R (renda) a fórmula de cálculo mudou. Antes, ela apresentava um forte redutor apenas para rendas que ultrapassavam ao valor médio mundial. No novo Atlas, seguindo a mudança realizada no IDH internacional em 1999, a fórmula de redução é mais suave e aplicada em todos os valores, a partir de uma função logarítmica. E por último, no IDH-L (longevidade) o indicador de esperança de vida ao nascer foi recalculado para todos os municípios brasileiros, porque foi implementada uma atualização nos cálculos de sobrevivência-padrão (Fonte: PNUD/Atlas de Desenvolvimento Humano. Disponível em <www.pnud.org.br> Acesso em maio de 2006). 98 Gráfico 5- Colocação do PIB de Ijuí em relação aos demais municípios do RS - Ordem Crescente. Evolução da posição de Ijuí (1994-2004) 35 31 30 26 30 26 27 22 25 Ijuí - colocação entre os municípios do RS 20 15 10 5 0 1994 1999 2001 2002 2003 2004 Fonte: Luis Roque Klering (Disponível em www.terragaucha.com.br) Por fim, apenas uma comparação da evolução do PIB entre o município de Ijuí e o município vizinho de Panambi entre os anos de 1996 e 2003. O PIB de Ijuí, com o passar dos anos, foi apresentando um crescimento inferior comparado com o PIB de Panambi. Gráfico 6- Evolução do PIB per capita de Ijuí e Panambi RS (1996-2003) Comparação PIB Per Capita R$ (1996-2003) 18.000 16.745 16.000 14.000 12.054 12.000 10.000 8.000 6.000 8.867 10.077 9.713 8.475 7.596 7.039 6.216 5.750 5.181 4.054 9.856 Ijuí 7.776 7.696 Panambi 4.285 4.000 2.000 0 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Fonte: Fundação de Economia e Estatística (FEE) Núcleo de Contabilidade Social Nesta seção final procurou-se responder à problemática central do estudo, que foi tratar das variáveis que mais influenciaram para o declínio dos níveis de participação políticosocial (capital social) em Ijuí nos últimos tempos. 99 Acredita-se que as hipóteses foram, igualmente, comprovadas, pois este estudo demonstrou que a incidência de práticas cada vez menos recorrentes de ações cooperativas, associativistas, participativas e comunitárias, acabaram causando variações negativas nos níveis de capital social de Ijuí. Também comprovou-se que a redução de práticas participativas, de confiança, causou maior fragmentação social, insegurança, clientelismo político e declínio do IDH. Da mesma forma, percebeu-se que a redução da participação cívica e do capital social de uma cidade ou região podem inibir o crescimento econômico e o desenvolvimento social, bem como aumentar a fragmentação social e reduzir o desempenho político e a estabilidade democrática de um país. Considerações finais Este capítulo apresentou, inicialmente, uma discussão sobre a evolução do conceito de capital social no campo da ciência política. Vimos, a partir de Tocqueville, Hanifan e Putnam, que a participação na vida organizacional cria capital social, instrumento capaz de possibilitar que a interação entre cidadãos seja constituída sobre a confiança, gerando maior desenvolvimento local e fortalecimento democrático. Isso significa dizer que as pessoas escolhem cooperar com seus vizinhos porque eles confiam que, depois, vão poder contar com a cooperação também. No que tange ao município de Ijuí propriamente dito, este trabalho procurou demonstrar que o município, nas últimas décadas, tem passado por um acentuado declínio da participação político-social, o que comprova a hipótese principal de que práticas cada vez menos recorrentes de ações cooperativas, associativistas, participativas e comunitárias podem estar associadas ao declínio do capital social de um município ou região. O comportamento político do ijuiense deixou de ser associativo, cooperativo e empreendedor, transformando-se num comportamento individualista, marcado pela desconfiança e pela indiferença, o que se reflete inclusive na estagnação econômica do município. O Movimento Comunitário de Base (MCB) já não existe e há sérias dificuldades para a manutenção e o incremento de instituições e de outros instrumentos de participação comunitária, como os conselhos municipais, sindicatos e cooperativas, além da própria Unijuí. 100 Depoimentos de lideranças políticas locais confirmam o declínio da sociabilidade da comunidade ijuiense. Impera o familismo amoral de Banfield, em que se procura maximizar a vantagem material e imediata da família nuclear e supor que todos os outros agirão da mesma forma. Ou seja, entre os três tipos de capital social desenvolvidos no trabalho (bonding, bridging e linking) a sociedade ijuiense pode ser considerada do tipo bonding, (relações para dentro – laços fortes), onde práticas de solidariedade dão-se apenas entre pessoas dos mesmos laços étnicos, ou grupos familiares fechados. O êxodo rural crescente das últimas décadas (provenientes da região) aprofundou os problemas da cidade: violência, desemprego, ausência de saneamento básico, déficit imobiliário, são os problemas mais evidentes do município estudado. Além disso, Ijuí tem perdido boa parte de seu capital humano qualificado, que busca, em outras regiões, as oportunidades de trabalho que o município não lhes tem dado. Em síntese, dados empíricos (surveys de 1968 e 2005), manifestações de lideranças locais, além da análise do desempenho econômico e de IDH (IBGE e FEE) e dados do Tribunal Regional Eleitoral (TER) comprovam as hipóteses gerais levantadas. Houve um declínio de manifestações cívicas com a diminuição da participação política convencional (reuniões partidárias, partidos políticos, comícios, eleições); altos índices de desconfiança (interpessoal, instituições políticas e insegurança); redução do associativismo e cooperação (individualismo, familismo amoral, baixa participação comunitária), além da estagnação econômica e da qualidade de vida. Estas são algumas manifestações do impacto negativo do capital social de Ijuí que este capítulo procurou evidenciar no decorrer de suas páginas. Referências ABU-EL-HAJ, Jawdat. “O debate em torno do capital social: uma revisão crítica”. In: BIB. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 47, 1999, p.65-79. AMARAL, Sandra Maria do. Elite política e relações de poder: o caso de Ijuí (1938-1945). Ijuí: Unijuí, 2003. BANCO MUNDIAL. Integrated Questionnaire for the Measurement of Social Capital (SCIQ). Questionário integrado para medir capital social (QI MCS), 2003. 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Este conceito tornou-se ferramenta importante para a apreensão do potencial político-pedagógico do processo do OP e explicitação das relações de poder que perpassam a experiência participativa vivenciada no Estado do Rio Grande do Sul, pesquisada no município de Salvador das Missões. Para realizar esta tarefa entendeu-se necessário: a) contextualizar a obra de Bourdieu; b) descrever como foi a recepção do pensamento de Bourdieu no campo educacional brasileiro; c) distinguir as diferentes espécies de capital; d) relacionar capital político e a aprendizagem emancipatória; e) distinguir as diversas espécies de capital político; f) identificar as contribuições de Pierre Bourdieu e de Daniel Schugurensky sobre capital político; g) citar os indicadores de capital político que emergem da pesquisa de campo – efeitos da prática de pesquisa. Contextualizando a obra de Bourdieu A efervescência dos movimentos sociais europeus e que se espalharam rapidamente pelo mundo todo, nas décadas de sessenta e setenta do século XX, despertaram os cientistas 1 – Dr. em Educação; docente e coordenador da Área de Ciências Humanas - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Santo Ângelo. [email protected] ou [email protected] 2 Depoimento do agroindustrial e vereador Silvino Schneider, p.203. 107 sociais para novas e emergentes temáticas. As ciências buscaram entender as mudanças de comportamento das gerações novas (jovens) e suas repercussões para as instituições e estruturas sociais. É nesse contexto que Bourdieu (1920 – 2002) mergulha e fica atento para fenômenos como a percepção social, a produção simbólica e as relações informais de poder, com o propósito de formular noções operatórias como o hábitus, reprodução, poder simbólico, capital, distinção, campo. Crítico contundente da sociedade capitalista, Bourdieu é visto por muitos como alguém que deu novos rumos ao estudo da sociologia desde os anos 60. Rompeu com a tradição marxista3, que em nome da “classe” faz desaparecer a questão do político, da ação dos agentes e a questão das relações entre as classificações que esse processo produz. Em seus diálogos com os clássicos destacam-se Max Weber e Karl Marx, especialmente em se tratando de temas como o poder, economia, direito e a estrutura e efeitos das antigas e novas formas de produção e reprodução do modo capitalista de produção. Para Weissheimer (2002), Bourdieu era conhecido como um dos intelectuais mais influentes da sua época, tanto pelo reconhecimento conquistado na comunidade acadêmica internacional como pelo seu empenho nas lutas sociais trabalhando pela criação do que chamava “uma esquerda da esquerda”. Defendia a mobilização dos intelectuais, bem como a possibilidade e necessidade do intelectual crítico. A democracia efetiva só existirá mediante um verdadeiro contra-poder. Seus conhecimentos científicos estavam a serviço do empenhamento político. As obras de Bourdieu abrangem os campos da cultura, política, educação, mídia e literatura. No entanto há uma questão que preocupa o sociólogo em toda obra: Como funciona a dominação dos dominantes sobre os dominados? Por que ela se reproduz e é vista muitas vezes como legítima e natural pelos dominados? A sua ligação à atividade política e apoio às classes trabalhadoras tornou-o intelectual de referência para a esquerda. Nos últimos anos de vida, Bourdieu dedicou-se principalmente a duas temáticas: a) meios de comunicação, que na interpretação de Weissheimer (2001) “estariam cada vez mais submetidos a uma lógica comercial inimiga da palavra, da verdade e dos significados reais da vida...” (p.1). Bourdieu (1998) acusa o meio televisivo como sendo uma das mediações propagadoras da degradação da virtude civil. 3 Cf. Bourdieu – Poder Simbólico. p.139. 108 A televisão contribui, sem dúvida, tanto quanto as propinas, para degradação da virtude civil. Ela chamou e promoveu ao primeiro plano da cena política e intelectual indivíduos vaidosos, preocupados em exibir-se e valorizar-se, em contradição total com o devotamento obscuro ao interesse coletivo que caracterizava o funcionário ou o militante (p.12); b) globalização4 e neoliberalismo, onde tem procurado consertar os vasos quebrados pelos economistas e diante dos novos ventos da globalização e união européia. De modo geral, o neoliberalismo faz voltar, sob as aparências de uma mensagem muito chique e muito moderna, as idéias mais arcaicas do patronato mais arcaico”. E mais: “Essa revolução conservadora de tipo novo tem como bandeira o progresso, a razão, a ciência, para justificar a restauração e tenta assim tachar de arcaísmo o pensamento e a ação progressista ( idem, p.49) De sua vasta obra publicada em várias línguas, no Brasil estão publicados 23 livros escritos pelo sociólogo. Destes, A Reprodução5 representou a entrada e a inscrição da obra de Bourdieu no campo educacional brasileiro. O texto marca profundamente as discussões sociológicas e educacionais do momento brasileiro onde acabou aprisionado na dicotomia em voga nos últimos anos da década de 70 e perpassando a década de 80:”reprodução x transformação”, discussão que na década de 90 seria transmutada para “reprodução x resistência”. Recepção da obra de Bourdieu no campo educacional brasileiro Numa tentativa de trazer a público as apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro, Gilson R. de M. Pereira, Denice B. Catani e Afrânio M. Catani (2001), realizaram uma pesquisa em 20 revistas especializadas em educação editadas entre 1971 e 19996. Trata-se de uma pesquisa de base de grande alcance na medida que abre perspectivas para futuros trabalhos nas áreas de sociologia da educação e de educação. Para 4 Cf. Bourdieu – Contrafogos. p.100 - O duplo sentido da “globalization”. Traduzido por Reynaldo Bairão, 1975 6 Os resultados da pesquisa estão publicados na ANPED – 2001. O objetivo desta investigação era analisar as formas de apropriação da obra de Bourdieu no campo educacional brasileiro. Nestes 20 periódicos localizaram 336 trabalhos (dentre os quais cinco resenhas) com referência à obra de Bourdieu. São 272 artigos de autores nacionais e 64 de autores estrangeiros. 5 109 os autores, “dentre os grandes pensadores contemporâneos, nenhum dedicou-se de maneira tão extensiva, exaustiva e sistemática à educação quanto o sociólogo e antropólogo francês Pierre Bourdieu”.(p.1). Na pesquisa são identificadas três categorias, de acordo com os tipos de apropriação que se evidenciaram na análise dos textos: 1) apropriação incidental7; 2) apropriação conceitual tópica8 e; 3) apropriação do modo de trabalho.9 Posteriormente, Neves de Azevedo10 (2003) publica artigo no qual rebate críticas dirigidas à obra do sociólogo francês. Embora os críticos reconhecessem que a obra de Bourdieu era necessária, entendiam-na insuficiente para encaminhar transformações sociais numa sociedade como a brasileira. Azevedo entende que tais críticas não se sustentam pois não se encontra na teoria de Bourdieu um sujeito social a-histórico. (...) existe é a luta constante entre os atores sociais para a ocupação dos espaços sociais. (...)Dessa maneira, discutir a distribuição de capitais, habitus, campo social e espaço social é debater sobre a luta dos atores sociais, que pode, tornar-se prática e teoricamente luta de classes (p.3). No Brasil, a partir da segunda metade da década de 70 e toda a década de 80, estabeleceu-se um debate educacional extremamente ideológico. Por um lado esse debate é resultante dos enfrentamentos e disputas produzidas pela ditadura militar e, por outro, já aponta a derrocada do próprio regime autoritário. Os movimentos sociais se articularam e avançam na retomada do debate político e pedagógico da vida nacional e das vivências dos cidadãos em sociedade. Neste contexto se faz a leitura da obra de Bourdieu, exigindo-lhe instrumentação para a transformação social pela educação. Daí resultam as controvérsias sobre a recepção da sociologia deste intelectual. A transformação seria um objetivo fundamental da sociologia de Bourdieu? Esta sociologia que parte da pergunta radical não poderia ser aplicada à realidade latino-americana, em especial a do Brasil? Em que 7 São rápidas referências ao autor, sendo freqüentes a presença do sociólogo nas referências bibliográficas e não aparecer mencionado no texto, geralmente ao livro A Reprodução. 8 Deixa entrever a utilização mas não sistemática, de citações e, eventualmente, de conceitos do autor. Nessa forma de apropriação os conceitos de Bordieu são mobilizados para reforçar argumentos e resultados obtidos e desenvolvidos num quadro teminológico que não necessariamente é o do autor. 9 Apropriações que” revelam a utilização sistemática de noções e conceitos do autor, onde há uma preocupação central com o modus operandi da teoria (construção do objeto, pensar relacional, análise reflexiva, objetivação do sujeito objetivante, etc)” (p. 5) 10 Neves de Azevedo IN Revista Espaço Acadêmico – Ano III, n° 24 – maio de 2003, no qual trabalha com os conceitos de Espaço Social, Campo Social, Habitus e Classe Social em Bourdieu. 110 condições foram feitas as leituras das contribuições de Bourdieu quanto à teoria da reprodução? O próprio momento político propiciou uma leitura superficial11 quando este defendia a necessidade de conhecer profundamente o que se quer transformar como pressuposto para a possibilidade da transformação. Assim, Bourdieu é reconhecido como um autor crítico, mas politicamente desmobilizador12. Entre os nomes que se envolveram no debate crítico que a sociologia de Bourdieu propiciou, em especial o livro: A Reprodução, destacam-se Dermeval Saviani (1982, 1983 e 1986), Guiomar Namo de Mello (1979, 1982), Luiz Antônio Cunha (1979, 1982), George Snyders (1977), Carlos Benedito Martins (1987 e 1989), Aparecida Joly Goveia (1976), Jacques Velloso (1985), José C. Garcia Durand (1982), Bento Prado Jr (1980), Creusa Capalbo (1974), Elba de Sá Barreto (1972, 1975), Letícia Bicalho Canêdo (1991), Sergío Miceli (1987, 1999), Renato Ortiz (1983) e Vincent Tetit (1982). Mais tarde, contribuem para esclarecer a teoria da reprodução Tomaz Tadeu da Silva (1990, 1992 e 1996), Louis Pinto (2000), Maria Alice Nogueira (1990, 1991 e 1998), Luiz Carlos de Freitas (1991), Magali Castro (1995), Afrânio Mendes Catani (1999). Esta listagem13 de nomes de intelectuais que participaram das discussões sobre a teoria da reprodução por si só dá uma idéia da importância no campo conceitual e riqueza metodológica da obra do sociólogo para o campo da sociologia e, em especial, para o campo da educação brasileira.. Diferentes espécies de capital A compreensão da sociologia crítica de Bourdieu passa por uma série de conceitoschave que orientam a ação teórico-prático e através dos quais movimenta-se em diferentes campos, entre os quais, o político, o cultural, o educacional, o jornalístico e literário. Sua obra destaca os conceitos14 de: Capital que pode ser social, cultural, econômico e político. Acredita que o capital cultural (diplomas, conhecimentos) e o capital social (rede de 11 Procurava-se extrair da sociologia de Bourdieu, especificamente da teoria da reprodução, aspectos revolucionários que contribuíssem para a transformação social via educação. 12 Cf. Pereira e Catani – As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro – p.7 13 Estraídas do artigo de Gilson R. de M. Pereira; Denice B. Catani e Afrânio M. Catani: “As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro” – 2001 – ANPED. 14 Bourdieu apud Cordovil, entrevista concedida à Globo, em París, em 01/01/01, obtido em http://www.globo.com/noticias/arquivo/mundo/20001229/4sgja5.htm 111 relações) são em inúmeras situações recursos mais úteis que o capital econômico; Campo ´pequenos mundos´, espaços de dominação e conflitos. É também um ‘ninho de cobras´, onde uns fazem mal aos outros. Cada campo possui uma certa autonomia e regras próprias e por isso um espaço de relações onde as pessoas agem em função de suas respectivas posições; Hábitus, um conjunto de normas e também um meio de ação, que permite criar e desenvolver estratégias que refletem determinada posição social. É a matriz através da qual vemos o mundo e agimos de acordo com esta visão; Violência simbólica, espécie de adestramento sutil das mentes. Consiste em fazer passar por naturais, no espírito das pessoas, representações dominantes. Papel desenvolvido pelas instituições ( igreja, escola, estado) e se apoia sobre efeitos de autoridade; Poder simbólico “um poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (2003, p.7 e 8). Trata-se de um poder de constituir o dado pela enunciação que se define numa relação determinada e necessita ser reconhecida pelos agentes na própria estrutura do campo em que se produz e reproduz a crença(p.14 e 15). Mesmo reconhecendo a importância de todos, para esta pesquisa focar-se-á a idéia de Capital (político). Bourdieu (1998) destaca quatro formas de capital. Capital social, conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns, mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (p.76). A noção de capital social surge para responder uma questão que se impôs: o que faz com que diferentes indivíduos com capital mais ou menos equivalente obtenham um rendimento muito desigual? A preocupação de Bourdieu era com a possibilidade de encontrar uma explicação plausível para a distribuição desigual do poder, em especial do poder político. Portanto, a noção de capital social ultrapassa os efeitos sociais que se reduzem a um agente determinado. O volume do capital social de um agente individual depende da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do capital. Esta rede de relações não é um dado natural nem social, mas “o produto do 112 trabalho de instauração e de manutenção que é necessário para produzir e reproduzir relações duráveis e úteis, aptas a proporcionar lucros materiais ou simbólicos” (p.6). Capital Econômico – um forma de capital material oriundo de propriedades que rendem e reproduzem diferenças sociais entre agentes individuais ou coletivos. O capital econômico é um dos fatores básicos que interferem na distribuição da riqueza de um povo. Esta noção tornou-se a mola mestra do sistema capitalista de produção e reprodução do capital. Capital cultural – Para Bourdieu (1998), esta noção nasce na necessidade de dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais. De que depende o sucesso escolar? A aptidão e o dom também são produtos de um investimento em tempo e em capital cultural. Por isso, os mais desapossados do capital cultural, social, econômico e político são também desclassificados da escola. O sucesso escolar está relacionado à capacidade de investimento em tempo e em capital cultural. “O rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família e que o rendimento econômico e social do certificado escolar depende do capital social – também herdado – que pode ser colocado a seu serviço” (p.74). O capital cultural se manifesta de três formas: 1) no estado incorporado (sob a forma de disposições duráveis do organismo); 2) no estado objetivado ( sob forma de bens culturais) e, 3) no estado institucionalizado (reconhecimento cultural instituído com garantias jurídicas capazes de certificar e emitir certificações que são aceitas). O capital institucionalizado possibilita “a conversibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar” (p.79). Bourdieu (1998) afirma que o capital político “é uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento (...) nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objecto – os próprios poderes que eles reconhecem”(p.187-8). Em outro texto15 [s.d.] o autor diz que “el capital político es entonces una especie de capital reputacional, un capital simbólico ligado a la manera de ser percebido”(p.20). O pesquisador canadense Daniel Schugurensky16 (2003) define o capital 15 “El campo político” – texto apresentado nas Grandes Conferências de Lyon, fevereiro de 1999. Schugurensky, em artigo intitulado: Aprendizagem para a cidadania e engajamento democrático: O capital político revisitado, [tradução Geraldo Korndörfer e Luis M. Sander], aponta limites da definição de capital político em Bourdieu. Entende que essa conceitualização do termo não possibilita reconhecer a existência de capital político além do círculo de políticos profissionais. “Ao restringir o capital político a políticos profissionais, essas concepções legitimam como ‘senso comum´uma divisão arbitrária entre um grupo seleto de atores políticos ativos e um grupo maciço de apoiadores passivos cujo único papel político é conceder ou retirar a confiança do primeiro grupo”(s.d. p.4). 16 113 político como “capacidade de influenciar decisões políticas” (p.4). A partir deste conceito, entende-se ser possível analisar o potencial político-pedagógico do OP Estadual. A decisão de incorporar a idéia de capital político partiu do déficit, da carência de outro conceito que possa dar conta de uma realidade que atravessa os campos da educação, da política e da cultura, tendo como foco o Orçamento Participativo Estadual – RS. A riqueza e densidade do conceito está em oferecer significativa contribuição para a compreensão de relações complexas que envolvem a estrutura, o funcionamento, a produção e a reprodução desse capital. Apesar das dificuldades que poderia representar a utilização de um conceito que surge em um contexto europeu, apostou-se que a idéia de capital político viria constituir-se em ferramenta mediadora para uma necessária leitura de realidade situada na América Latina. O capital político e o aprendizado emancipatório As interlocuções sobre o conceito de capital político tem como ponto de partida quatro textos. Destes, três são de autoria de Bourdieu: “A representação política”17. Representa a porta de entrada para a tentativa de apreender o objeto de estudo; “El campo político”18 e “A variante ‘soviética´ e o campo político”19. O quarto, “Aprendizagem para a cidadania e engajamento democrático: O capital político revisitado”, é de Daniel Schugurensky20 no qual apresenta resultados de pesquisa sobre a experiência do OP no município de Porto Alegre. Em sua análise do conceito capital político entende que a definição de Bourdieu revela ser uma concepção elitista, contemplando somente capital de lideranças. Por isso ensaia uma redefinição do conceito a fim de que pudesse abarcar também o capital político que existe em outros sujeitos que não são lideranças. Mesmo sendo utilizado para iluminar diferentes focos na análise dos fatos, entendeuse que o conceito de capital político produzido por Bourdieu e repensado por Schugurensky 17 Capítulo do livro O Poder Simbólico, traduzido em português (Portugal) e publicado também no Brasil, 6ª edição, 2003. Fala proferida nas Grandes Conferencias de Lyon, Université de Lyon 2, jueves 11 de febrero de 1999, publicado pela Plural Editores [s.d], [s.l]. 19 Trata-se de uma conferência proferida em Berlim Oriental em 25 de outubro de 1989 e publicado no livro do mesmo autor “Razões Práticas: Sobre a teoria da ação”- 5ª edição, Tradução de Mariza Corrêa - Campinas, SP : Papiros, 2004, p. 28-33. 20 Pesquisador do Ontario Institute for Studies in Education/University of Toronto, Canadá. O tradução de Geraldo Korndörfer e Luís M. Sander, Unisinos- São Leopoldo/RS, em 2003. 18 114 caracteriza-se como potencial explicitador na compreensão de processos políticos participativos como o OP Estadual. Ao estudar a influência das instituições sociais no processo de produção e reprodução do capital político, Bourdieu (2003) buscou romper com o silêncio acerca das condições que determinam as diferenças sociais, políticas e econômicas. Destaca que o campo político é também campo de forças e lutas que objetiva transformar o desenho da relação de forças. O que faz com que a vida política possa ser descrita na lógica da oferta e da procura é a desigual distribuição dos instrumentos de produção de uma representação do mundo social explicitamente formulada: o campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção (p.164). A obra de Bourdieu aponta para a importância estratégica dos espaços destinados aos mandatários e simples consumidores onde são geradas as decisões. Estar distante dos espaços de decisão significa distância do poder. Este debate encontra terreno favorável na cultura política latino-americana, marcada pela fragilidade das relações entre os mandatários e os consumidores dos produtos políticos. As condições objetivas carecem de poder fiscalizador pelo fato de não haver comprometimento legal e efetivo entre as partes. São relações ocasionais21 quando era de se esperar um profundo enlaçamento e engajamento comum. Os detentores de cargos, por dependerem dos consumidores dos produtos políticos e esses consumidores, por dependerem do empenho pelas causas que lhes são de interesse, apresentam os ingredientes necessários para realização de uma aliança que compromete as duas partes. No entanto, apesar da relação de cúmplices, o resultado da ação política não corresponde aos anseios dos representados. Disso emergem duas questões. A primeira representa um desafio para a democracia representativa. A delegação de um poder a alguém que o represente é uma ação eficaz para ambos no processo de capitalização política? A segunda diz respeito à aprendizagem pela participação. Como agente passivo no processo, 21 Períodos eleitorais. 115 sem a participação direta no locus central onde as decisões são tomadas, o representado potencializa-se para o controle da ação política do representante? O descrédito atribuído aos políticos profissionais denuncia uma relação de nãocompromisso entre representante e representado. Este distanciamento entre as partes poderá significar a falta de crédito, de reconhecimento do modelo de representação. Por outro lado, não deixa dúvida sobre o profundo fosso que impede a maioria da população de aproximarse do poder. A distribuição desigual dos instrumentos de produção de uma representação do mundo social impede sistematicamente que haja uma representação equilibrada do universo social na vida política. A disparidade de condições para concorrer na disputa pelos capitais explica a origem da concentração do capital político com seus desdobramentos danosos para os setores mais pobres das camadas populares. Bourdieu (2003) alerta que a concentração do capital político nas mãos de um pequeno grupo é tanto menos contrariada e portanto tanto mais provável, quanto mais desapossados de instrumentos materiais e culturais necessários à participação activa na política estão os simples aderentes – sobretudo, o tempo livre e o capital cultural (p.164) A intenção política se explicita e se constitui na relação com um estado do jogo político22 que acontece em determinado espaço social. Disso resulta que as possibilidades de constituição de capital político dependem da participação efetiva de um movimento que caminha na direção do poder, do conhecimento que emerge do fato de estar próximo ou junto dos espaços de decisão, da posição que ocupa na estrutura do processo e do grupo ao qual pertence. Assim, falar em público é um ato característico de alguém que está aí, que marca presença no movimento e reconhece a importância da participação como mediação construtora de poder num espaço social oportunizado nas assembléias do OP Estadual. Para alguém que nunca havia tido a oportunidade de expressar o que sente e pensa, tomar a palavra num microfone, falar e ser escutado, representa uma forma de sentir-se empoderado, fato comprovado na pesquisa de campo. Em todos os grupos focais foi ressaltado que pessoas usaram pela primeira vez na vida um microfone para dizer a sua palavra em público numa assembléia. “Quem está com o microfone sente-se empoderado”23 nos dizia uma liderança da agroindústria. Tomar o microfone é colocar-se em posição de destaque, ocupar um determinado espaço na estrutura social que compõe uma assembléia. De espectador ou 22 El juego político tiene por objeto (enejeu) el monopolio de la capacidad de hacer ver y hacer creer de outra forma” In El campo político, (p. 22). 23 Cf. Apêndice A – Resumo e perfil dos grupos focais – p. 18. 116 simples ouvinte, através da manifestação pública, é possível alguém tornar-se sujeito atuante e influenciar nas decisões que estão em jogo. Vários24 são os depoimentos que testemunham a importância de alguém poder falar e ser ouvido por outras pessoas. A pessoa que é ouvida sente-se sujeito, valorizada e cresce na auto-estima. Com a participação no processo do OP pessoas saíram do anonimato e sentiram que o poder está ao seu alcance. Por isso, estar na condição de poder dizer a sua palavra é muito mais que o simples pronunciar sons em forma de palavras. É sentir-se gente e ator com/do mundo. Para Freire (1999),“o homem e a mulher fazem a história a partir de uma dada circunstância concreta, de uma estrutura que já existe quando a gente chega ao mundo”(p.90). Portanto, na perspectiva freireana, o futuro não é um pré-dado. Este futuro é algo que vai acontecendo na medida em que mudamos o presente. Trata-se de uma aprendizagem fundamental de cidadania. Numa perspectiva político-pedagógica da construção do conhecimento, importa compreender a relação intrínseca entre linguagem e mundo social concreto. Situar falas de sujeitos participantes de pesquisa exige do pesquisador uma contextualização das palavras pronunciadas, que para Streck (2004) é pronunciar o mundo. Qual é o mundo de uma mulher, trabalhadora rural e dona de casa que vive no interior do município de Salvador das Missões? É uma mulher que toma conta da casa, dos filhos, das vacas de leite, que vai para a roça com o companheiro, que prepara as celebrações religiosas e festivas na vida comunitária nos finais de semana. A jornada dessa mulher está repleta de atividades repetitivas, que poucas pessoas gostam de fazer, pois não são visíveis e nem valorizadas na sociedade. Mesmo assim, ela ainda vai participar das assembléias do OP municipal e Estadual. Aí ela desperta para a necessidade de conquistar espaços no campo político que até hoje foram territórios masculinos. Na prática, o OP Estadual significou uma mediação empoderadora na constituição do capital político para a mulher agricultora. Com o acompanhamento da extensionista da EMATER25, organiza-se, na Linha Saraiva, um clube de mães, espaço social de trocas, conversas e de planejamento do futuro. A identidade desta mulher se constrói na concretude do caminhar no cotidiano. É ela que assume as possibilidades da história e do seu futuro. Na medida em que uma participante do grupo focal de mulheres agricultoras daquela comunidade diz que com o OP “aprendemos a fazer política”, ela está dizendo que foram rompidos limites estabelecidos no campo político. Este já não pode ser mais um campo restrito aos homens. Uma trabalhadora do campo, ao 24 25 Educar pela participação – Tese, p. 194 e 216. EMATER – Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural. 117 reconhecer que “precisamos estar no e em movimento”, denuncia o lugar marginal26 que era destinado historicamente às mulheres na tradição machista. No entanto, a própria denúncia também contém o anúncio de que as mulheres não aceitam mais serem confinadas somente ao espaço do lar – a casa. Elas anunciam que “nos compreendemos mais no que fazemos e fazíamos e que, apesar das atividades da casa, é possível participar mais das atividades políticas na comunidade e região”27. Apesar da falta de instrumentos materiais e culturais que afastaram as mulheres em geral da vida política, a participação nas assembléias do OP propiciou-lhes uma visão ampliada de suas possibilidades de atuação no campo da política. Para Bourdieu (2003),“a passagem do implícito ao explícito, da impressão subjetiva à expressão objectica, à manifestação pública num discurso ou num acto público constitui por si um acto de instituição e representa por isso uma forma de oficialização, de legitimação.”(p.165). O acesso ao campo político tem-se mostrado limitado e restrito pela carência de instrumentos materiais e culturais necessários à participação pois a fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável para uma classe de profanos determina-se na relação entre os interesses que exprimem esta classe e a capacidade de expressão desses interesses que a sua posição nas relações de produção cultural e, por este modo, política, lhe assegura (p.16) Ao denunciar que “o mercado da política é, sem dúvida, um dos menos livres que existem”(p.166), Bourdieu produziu uma explicação para os constrangimentos do mercado monopolizador que pesam, em especial, sobre os membros das classes dominadas desprovidos de competência social para a política. Estes, sem alternativas, fazem parte de um jogo do campo político onde a concorrência elimina os desapossados de capital social, econômico, cultural. Esta situação elimina a possibilidade de controle sobre os mecanismos políticos que constituem a máquina do poder. “A fides implícita, delegação global e total pela qual os desfavorecidos concedem em bloco ao partido da sua escolha uma espécie de crédito ilimitado, deixa caminho livre aos mecanismos que tendem a retirar-lhes a posse de qualquer controle sobre o aparelho” (p.167). Além da denúncia, Bourdieu também aponta para a possibilidade de superar a concentração do capital político. A descentralização desse processo só pode acontecer com a intervenção deliberada (improvável) a partir das propostas 26 27 Lugar marginal porque refere-se ao espaço exclusivo do lar – da casa. Cf. Apêndices A e B – Resumo e sistematização das falas nos grupos focais. 118 de partidos que se propõem a lutar contra a concentração do capital econômico. O Partido dos Trabalhadores como força política que defende a igualdade racial, de gênero, política e econômica construiu um programa de governo participativo que tinha como característica básica a desconstrução do centralismo da prática política tradicional. Do compromisso com a decentralização político-econômica emerge a proposta do Orçamento Participativo e que se constituiu no carro-chefe da administração estadual do governo do Rio Grande do Sul, liderada pelo PT (1999-2002). Na medida em que o “poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, um auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança” (p.188), a forma de concentração do poder político explicita a dificuldade em transformar-se em poder simbólico. Esta situação produz uma certa instabilidade e risco para o profissional político. A vulnerabilidade do homem político por depender da crença, da fidelidade daqueles que lhe delegaram poder caracteriza-se como uma profissão de alto risco. Por isso Bourdieu alerta que este capital supremamente lábil só pode ser conservado mediante o trabalho constante que é necessário não só para acumular o crédito como também para evitar o descrédito (...) E a atenção especial que os homens políticos devem dar a tudo o que contribui para produzir a representação da sua sinceridade ou do seu interesse explica-se se se imaginar que estas atitudes aparecem como a garantia última da representação do mundo social, a qual eles se esforçam por impor (189). Embora o endereço da discussão de Bourdieu sobre o capital político tenha sido o poder simbólico dos representantes políticos franceses e europeus, entendeu-se que o tema é pertinente ao OP Estadual, uma vez que neste processo foram criadas novas figuras de representação: o delegado e o conselheiro. São pessoas escolhidas, de forma direta, entre os participantes da própria assembléia. O seu papel é levar adiante e defender as propostas votadas em diferentes instâncias. Os escolhidos são de confiança dos participantes da assembléia, portanto, investidos do poder popular. Ao mesmo tempo tornaram-se os pontos de referência para a comunidade em geral e o Estado, através do governo. Possuem as informações que circulam no processo estabelecendo um elo entre o representante e o representado, elo que se perdeu na prática política da democracia representativa moderna. 119 A delegação de poder que os delegados e conselheiros do OP receberam dos demais partícipes do processo é o mesmo capital político de que fala Bourdieu? Onde está a origem do capital político e que espécie de capital é esse? Este é o assunto a ser tratado no próximo ponto. Espécies de capital político Em Bourdieu (2003) encontramos duas espécies de capital político: capital pessoal e capital delegado da autoridade política. O capital pessoal – resulta de notoriedade e de popularidade, fundamentadas pelo fato de ser conhecido e reconhecido na sua pessoa e possuir certo número de qualificações específicas que sustentam uma boa reputação. Este capital pessoal de notável é produto de uma acumulação lenta e contínua, a qual leva em geral toda uma vida. Weber fala de um capital pessoal heróico ou profético proveniente do ‘carisma´, resultante de uma ação inaugural, realizada em situação de crise, no vazio e no silêncio deixado pelas instituições e os aparelhos (p.191). Caracteriza-se pela ascensão rápida pelo sucesso da linguagem profética (salvador) e pelo acúmulo inicial de força mobilizadora. Este capital desaparece com a pessoa do seu portador. O capital delegado da autoridade política é semelhante ao do sacerdote, do professor e do funcionário. Resulta da transferência limitada e provisória de um capital detido e controlado pela instituição e só por ela: é o partido. Este através dos quadros e militantes acumulou capital simbólico de reconhecimento e de fidelidade. Bourdieu esclarece que a aquisição de um capital delegado obedece a uma lógica muito particular: a investida – acto propriamente mágico de instituição pelo qual o partido consagra oficialmente o candidato oficial a uma eleição e que marca a transmissão de um capital político (...) - não pode ser senão a contrapartida de um longo investimento de tempo, de trabalho, de dedicação, de devoção à instituição. (...) a instituição investe aqueles que investiram na instituição (p.192 – 93). E mais, o fator determinante nem sempre passa pelas qualidades pessoais do investido, pois aquele que é investido de um capital de função, equivalente à graça institucional ou ao carisma de função do sacerdote, pode não possuir qualquer outra qualificação a não ser a que a instituição lhe outorga pelo acto de investidura. E é 120 ainda a instituição que controla o acesso à notoriedade pessoal, controlando por exemplo o acesso às posições mais em vista (p. 192). Em resumo, a aquisição de um capital delegado passa por um longo caminho onde o partido, através das lideranças mais experientes28, filtra os dignos de receber a investidura, sendo consagrados com a transmissão de capital político29. Aí está o pressuposto da institucionalização desta “espécie de capital em instituições permanentes, a sua materialização em máquinas políticas, em postos e instrumentos de mobilização e a sua reprodução contínua por mecanismos e estratégias” (p. 194). Para Bourdieu, quanto mais avançado é o processo de institucionalização do capital político, tanto mais tende a conquista do “espírito” a subordinar-se à conquista dos postos e tanto mais os militantes, ligados apenas pela sua dedicação à “causa”, recuam em proveito dos “prebendados” (clientes) (p.195). No percurso da teoria sociológica (européia) para a prática do OP (latino-americana), constata-se que o capital político dos delegados e dos conselheiros do OP pode ser compreendido a partir das duas espécies de capital político de Bourdieu: capital pessoal e capital delegado. Na pesquisa de campo, em Salvador das Missões, há indicativos de que a escolha dos representantes passou pelas duas espécies de capital político. Nas assembléias foram ungidas com poder de representação pessoas de notoriedade e de popularidade, características de capital pessoal. Quando uma ex-delegada do OP ressalta a capacidade de liderança e a habilidade de negociação por ocasião das assembléias regionais, ela fala de qualidades pessoais da liderança e da importância deste fator na organização da sociedade. Porém, uma escolha vai além do capital pessoal. Trata-se de um capital delegado que as pessoas investem em quem mostrou-se comprometido com as causas priorizadas no OP. Como em Bourdieu, a delegação de capital é uma concessão da instituição, no OP, em relação aos delegados, trata-se de uma concessão dos participantes da assembléia para 28 São detentoras de um capital político acumulado no processo histórico. Prática verificada também no processo de instituição do OP Estadual no RS, por ocasião da escolha dos coordenadores regionais. Quem foram os escolhidos para serem os coordenadores do processo nas 22 micro-regiões do Estado? Lideranças que possuíam um crédito, um capital político e reconhecimento entre as classes populares de sua região, com história no partido. A partir de 2003 foram criados mais dois COREDES, passando de 22 para 24 micro-regiões. 29 121 alguém que julgam merecer a confiança. As pessoas em geral procuram investir em quem já demonstrou em algum momento ser útil e capaz na defesa dos pleitos coletivos. A escolha dos vinte e dois (22) coordenadores regionais do OP Estadual aconteceu por ato de delegação institucional do Estado e pela indicação do partido majoritário do poder (PT). Assim, mesmo que Bourdieu tenha se dedicado a estudar as relações de poder construídas entre a instituição e seus representantes, representado e seus representantes, entende-se que há uma relação muito próxima com o que aconteceu na experiência do OP. Capital político: contribuições de Bourdieu e Schugurensky A perspectiva sociológica de Bourdieu contribui para o exame dos mecanismos sociais que produzem e reproduzem as diferenças entre agentes políticos ‘ativos´ e ‘passivos´. Isto acontece a partir de dois fatores: distribuição do capital e a divisão do trabalho político. No primeiro caso, Bourdieu alerta que a concentração do capital político nas mãos de pequenos grupos é difícil de ser evitada, especialmente quando os indivíduos comuns não possuem instrumentos materiais e culturais necessários para acompanhar o processo político. Assim, os países marcados por profundas diferenças sociais, como o Brasil, estariam mais propensos para a concentração política nas mãos de pequenos grupos. Acredita-se que poderá haver esta tendência concentradora num contexto de má distribuição de riqueza pelo simples fato de existir uma certa lógica na qual os bens econômicos, culturais e políticos não caminham separadamente. Na prática, a concentração do capital político nas mãos de elites significa a ausência deste capital para as camadas populares, aqueles que são apenas consumidores das práticas determinadas pelos dirigentes. Como romper com o ciclo de produção e reprodução das diferenças de capital político? Até que ponto a experiência do OP pode ser considerada uma mediação eficaz no combate a esta tendência concentradora de capital político? São interrogações que precisam ser respondidas apesar da complexidade que sugerem. Na raiz desta problemática estão as razões e a própria origem das diferenças sociais. Numa análise dos elementos teóricos do OP Estadual, é possível perceber que existe uma lógica distributiva que perpassa o projeto. No campo empírico, isto também foi verificado em Salvador das Missões. As falas dos grupos focais destacaram que o OP 122 potencializa uma tendência eqüitativa30, tanto no campo econômico como em bens culturais, na medida em que todos participam diretamente das assembléias onde acontece a escolha das prioridades locais e regionais. Este estar junto e poder intervir diretamente resulta em conhecimento que é poder. A lógica distributiva do processo do OP propicia e fomenta a igualdade de oportunidades em relação aos bens culturais que poderá produzir efeitos no campo político. Se a crescente concentração do capital político nas mãos de pequenos grupos implica desapossamento para a maioria dos militantes, significa que se caminha em direção a um processo não-includente e incapaz de emancipar a maior parte da população. Este tem sido o resultado prático da aplicação da democracia representativa moderna. A política acabou sendo refém dos políticos. Este distanciamento entre as classes dirigentes e os dirigidos é fator de produção de alienação. Marx identificou esta tendência de separação entre a elite e o povo em geral como sendo um elemento estrutural do modo capitalista de produção da riqueza. Disso decorre que a política se torna monopólio de profissionais e como conseqüência os indivíduos comuns passaram a ser consumidores leais de marcas reconhecidas, delegando poderes para representantes. O desafio imediato é reconhecer que todas as pessoas são portadoras potenciais de capital político, desde que disponham dos produtos culturais e econômicos em condições de igualdade de oportunidade. O OP Estadual caracterizou-se como mediação distributiva dos bens culturais, econômicos e políticos, ao inaugurar e desenvolver processos participativos com o propósito de diminuir as diferenças sociais. As políticas públicas que tenham como perspectiva a redistribuição dos bens culturais e econômicos são fundamentais para a descentralização e qualificação do capital político. O Estado pode ser um instrumento catalizador e promotor da construção de uma sociedade mais participativa. Ao analisar o conceito capital político, Schugurensky (s.d) entende que Bourdieu trata o “capital político como o poder simbólico desfrutado por políticos, um poder que é derivado da confiança que um grupo de seguidores coloca neles”.(p.3). Compreendido dessa forma, o capital político é algo muito dinâmico, mas a garantia da preservação desse crédito só se efetuará a partir de um intenso e continuado trabalho. Trata-se de uma situação de risco constante. A preocupação do pesquisador dirige-se para o alargamento da concepção de capital político para além dos profissionais da política e da academia. Entende que, na perspectiva da educação emancipatória, interessa um conceito de capital político que potencialize e promova a cidadania ativa e criativa. 30 Cf. Apêndice B – Sistematização das questões de pesquisa de campo, ítem 5.2. 123 O que se necessita é uma conceitualização alternativa de capital político que enfatize mais a ação humana, as possibilidades de distribuir o poder na sociedade e o papel potencial que a educação de adultos, os movimentos sociais e as políticas públicas podem exercer no sentido de democratizar a vida política e capacitar as pessoas que se encontram politicamente organizadas (s.d., p.4). A pesquisa de Schugurensky aponta para a aproximação do conceito de capital político (elitista) de Bourdieu e daquele que a ciência política explicita. Em ambos está implícito que o capital político é um recurso exclusivo de líderes e partidos. “O que essas conceitualizações do termo possuem em comum é o fato de não reconhecerem a possibilidade de que o capital político eventualmente exista além do círculo de políticos profissionais.”(p.4). A restrição de capital político a políticos profissionais legitima a divisão “entre um grupo seleto de atores políticos ativos e um grupo maciço de apoiadores passivos cujo único papel político é conceder e retirar a confiança do primeiro grupo”(idem). O capital político, concebido como recurso exclusivo de líderes políticos e partidos não contempla os interessados em desenvolver uma educação emancipatória na perspectiva de construção da sociedade democrática e participativa. A partir dessa constatação, Schugurensky busca reconceitualizar capital político. O conceito alternativo que o pesquisador encontra parte do pressuposto de que a capacidade de influenciar decisões políticas não é privilégio de políticos profissionais. Tendo como pressuposto que todos os cidadãos possuem esse potencial, variando apenas em graus, redefine e compreende “capital político como a capacidade de influenciar decisões políticas”.(p.4). Apesar dos limites apontados na definição original do conceito desenvolvido por Bourdieu, Schugurensky aposta na possibilidade de que se trata de um conceito útil e ferramenta importante na aplicação da análise do capital ao campo político. Na prática, um conceito se torna útil e relevante para pesquisadores, na medida em que for contextualizado. Para o pesquisador canadense, a importância e eficácia de um conceito pode ser avaliado no momento de sua aplicação. A partir da idéia de capital político, é possível apreender as “conecções entre o aprendizado e o poder quanto à deliberação e à tomada de decisões em experiências locais de democracia participativa”(idem). 124 Os desdobramentos do conceito de capital político de Schugurensky sugerem duas perguntas: a) Que fatores ajudam a ativar e inibir a capacidade de influenciar nas decisões políticas? b) O que faz com que algumas pessoas tenham mais capital político do que outras? Na investigação que realizou em Porto Alegre onde analisou o potencial do conceito capital político na experiência do OP municipal, o pesquisador destaca cinco dimensões pela sua relevância para o aprendizado da cidadania e para as políticas públicas que visam a promover uma participação democrática mais genuína: conhecimento, habilidades, atitudes, proximidade ao poder e recursos. Todas estas dimensões se relacionam e intercomplementam. Assim, não basta conhecimento para ativar a capacidade de influenciar nas decisões políticas. Habilidades, atitudes, proximidade ao poder e recursos pessoais são fatores que corroboram para a produção e reprodução do capital político. O estudo de Schugurensky trouxe uma nova perspectiva e grande contribuição à pesquisa educacional na medida que contextualiza e reconceitualiza o conceito de capital político, ampliando-o para outro campo – a educação. Com seu estudo ativa e dinamiza a capacidade crítica em processos político-pedagógicos; resgata a dimensão emancipatória da educação, na perspectiva transformadora, onde se encontra com as origens da Educação Popular. Trata o político e o pedagógico como elementos de um mesmo processo na medida que politiza a educação e educa o político. Também reconhece e atualiza a importância da educação emancipatória para a cidadania no contexto de um projeto mais amplo de uma sociedade em movimento. A compreensão ampliada de capital político, além de representar uma contribuição para o campo das ciências sociais, significou uma mediação importante para a compreensão das complexas relações que atravessam o processo do OP Estadual. Para além das discordâncias em relação às concepções de capital político, defende-se a possibilidade de aproveitamento das diferentes noções deste conceito que veio enriquecer o caminhar científico e constituiu-se em ferramenta de pesquisa para áreas de conhecimento como a política, sociologia, antropologia e educação. Sustenta-se que o conceito de capital político desenvolvido por Bourdieu não exclui necessariamente os indivíduos comuns, simples consumidores, dos produtos políticos. O que o sociólogo francês fez foi aplicá-lo a uma realidade específica no campo da política com o foco dirigido para a atuação e comportamento de lideranças naquele país. Ao examinar os mecanismos sociais que produzem e reproduzem a distribuição de capital de maneira desigual entre os agentes políticos, este buscou as razões desta distribuição e apropriação diferenciada do capital 125 político. Isto possibilitou a compreensão das diferentes variáveis que sustentam ou não uma prática política mais includente ou excludente. Para Schugurensky, o que há de comum entre conceito capital político de Bourdieu e de outros analistas políticos é o “fato de não reconhecerem a possibilidade de que o capital político eventualmente exista além do círculo dos políticos profissionais” (p.4). Com isto legitimam uma divisão arbitrária nos processos políticos pela existência de um grupo de atores políticos ativos e um grupo maciço de apoiadores passivos que concedem ou retiram a confiança das lideranças. Esta concepção é muito limitada para compreender processos emancipatórios. Para aplicá-lo numa realidade latino-americana é preciso que haja uma contextualização e reinterpretação a fim de favorecer a compreensão de políticas públicas municipais de caráter participativo, como é o Orçamento Participativo. Quando define capital político como a “capacidade de influenciar decisões políticas”, o pesquisador canadense pressupõe que esta é uma capacidade que todos os cidadãos possuem, não só as lideranças. Este alargamento do conceito permite a ampliação do leque de uso na pesquisa pelo fato de servir como ferramenta para além de uma única perspectiva. Graças a trabalho e criatividade de Bourdieu e a Schugurensky, os pesquisadores dispõem de instrumentos mais precisos e adequados para a realização dos trabalhos de investigação. Nesta pesquisa, parte-se da premissa de que o poder popular é fundamental para o equilíbrio e aperfeiçoamento da democracia participativa. Reconhecem-se os avanços significativos produzidos pela teoria e prática da democracia representativa na vida republicana em relação à monarquia e outras formas de governo que excluem a participação das camadas populares dos processos decisórios. No entanto, é necessário aprofundar os debates em relação aos efeitos e desgastes que a prática da democracia representativa do campo liberal tem significado para as classes populares. Em diversas partes do planeta, há indicativos de que a população em geral está cansada e descrente com as formas de representação política. A partir desta constatação, especialmente os partidos de base popular, quando chegam ao poder, introduzem práticas que vão ao encontro da perspectiva popular – a democracia participativa. São práticas que reafirmam o compromisso do representante com o representado. Não se trata de excluir a democracia representativa, mas, deixar claro que esta não é a única prática democrática possível. Para muitos estudiosos, políticos e setores progressistas da sociedade em geral, a teoria e prática do Orçamento Participativo tem se revelado uma saudável forma de integrar a democracia representativa com a democracia participativa, revigorando o processo democrático no Brasil e na América Latina. Na prática 126 da pesquisa de campo, foi possível verificar que a experiência do OP Estadual, no contexto do município de Salvador das Missões, apresenta indicadores de capital político que emergem e repercutem na constituição da cidadania. REFERÊNCIAS As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro. (Org.) Gilson R. de M. Pereira (UFRN); Denise B. Catani (FEUSP); Afrânio M. Catani (FEUSP). http://www.anped.org.br/23textos/1401t.PDF , 2001, ( visitado em 25/05/2004. AZEVEDO, Mário Luiz Neves de. 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Para tanto, parte de uma breve análise sobre o Estado e as relações de poder, enfocando as abordagens clássicas e as discussões atuais a respeito do Estado, com ênfase na construção de uma visão sociocêntrica do triângulo da sociedade: Estado, mercado e sociedade civil. Aborda o poder local em suas múltiplas dimensões e, a partir daí, concentra a atenção no que denomina poder interativo da sociedade civil, passando a enfocar o papel dos conselhos gestores de políticas públicas municipais. A seguir o texto passa a analisar o caso de Ijuí-RS, recuperando brevemente a trajetória histórica deste município no que se refere a ações de participação autônoma da sociedade local. Ao abordar os conselhos distritais neste município, retoma sua trajetória em três momentos: o primeiro, da institucionalização e da prática efetiva; o segundo, do abandono da experiência através da imposição de governo local; o terceiro, da tentativa de reativação e das razões da sua não concretização. As conclusões evidenciam a permanência da síndrome da descontinuidade administrativa, a relativização da autonomia dos espaços da sociedade civil quando institucionalizados pelo Estado, a necessidade de programa permanente de educação para dinamizar a atuação dos conselhos e a necessidade de viabilizar autonomia administrativa e financeira destes espaços públicos de interação entre a sociedade civil e o Estado. Apesar da existência de um grande número de estudos enfocando aspectos inerentes à participação da sociedade civil no processo de formulação e implementação de políticas públicas de âmbito local, entende-se que este estudo é pertinente, por buscar conhecer a forma de atuação dos conselhos municipais nesses processos. Além disso, os conselhos têm um relacionamento forte com o governo local, e o papel do governo local varia em cada contexto, 1 Artigo produzido com base em análises da pesquisa “O papel da cidadania no noroeste gaúcho: a atuação dos conselhos gestores de políticas públicas nos municípios do Corede Noroeste Colonial”, financiado pela Fapergs através do Edital Procoredes-2004. Versão anterior foi apresentada no III-SIDR (Seminário Internacional de Desenvolvimento Regional da UNISC) em 2006. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC e Mestre em Administração pela EBAPE/FGV; professor do Departamento de Estudos da Administração da UNIJUÍ. 129 em cada circunstância e época. Cada município é único, apresentando uma peculiar combinação de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais e demográficos, que definem a rede de relações de poder que consubstancia o processo de produção de políticas públicas. Estado e relações de poder A discussão acerca do Estado coloca-se há muito como ponto central na Ciência Política, na Sociologia e na Administração Pública. Essa centralidade inicia-se sem dúvida com os estudos de Maquiavel (1469-1527), que elaborou “uma teoria de como se formam os Estados, de como na verdade se constitui o Estado moderno” (GRUPPI, 1980, p.10). Após Maquiavel, pensadores políticos do porte de Bodin (1530-1596), Hobbes (1588-1679), Locke (1632-1704), Kant (1724-1804), Rousseau (1712-1778), Adam Smith (1723-1790), Benjamin Constant (1767-1830), Hegel (1770-1831), e Tocqueville (1805-1859), contribuíram para as concepções do Estado surgidas na fase da construção do Estado burguês moderno, isto é, a concepção liberal, “que defende a correlação entre propriedade e liberdade” e a concepção democrática, “segundo a qual a liberdade baseia-se na igualdade, mas essencialmente na igualdade jurídica (embora Rousseau chegue a colocar o problema da propriedade)” (GRUPPI, 1980, p.22). Com a concepção marxista surge uma visão crítica do Estado. Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Lênin (1870-1924), Gramsci (1891-1937), Althusser (1918-1990), Poulantzas (1936-1979) e Offe (1940-) estão entre os pensadores e principais estudiosos que contribuíram para a construção de uma teoria do Estado a partir da perspectiva de classe. A concepção de Estado dentro do pensamento marxista tem sido objeto de polêmicas, verificando-se todo um processo de redefinição que, mantendo o fundamento básico, tem expressado teoricamente as significativas mudanças na posição e funções do Estado nas sociedades contemporâneas. Das contribuições desses dois grupos de pensadores e cientistas políticos, podem-se conceber duas posições fundamentais clássicas sobre o Estado: a concepção liberal - o Estado árbitro - onde o Estado de Bem-Estar aparece como uma instância acima das classes sociais, com autonomia absoluta e a concepção marxista, que analisa o Estado sob a perspectiva de classe e que se desdobra por sua vez na concepção do Estado Instrumento uma instituição manipulada pela classe dominante, sem nenhuma autonomia e do Estado Ampliado - uma instituição constituída/atravessada pelas contradições de classe, com relativa autonomia. 130 Muito se tem dito e escrito sobre o novo Estado das décadas de 1980 e 1990 e do início deste século. Enquanto uns concentram sua análise na derrocada do Keynesianismo ou Estado de Bem Estar Social, outros abordam o fim do Estado Desenvolvimentista, típico da América Latina. Enquanto uns fazem verdadeiro proselitismo ao Estado Neoliberal Mínimo ou então uma crítica radical ao Estado Neoliberal, outros se detêm em analisar (muitas vezes em tom de defesa e justificativa) o fim do Estado Socialista Real com a derrocada da União Soviética. Estabelece-se, entretanto, mais uma vez, uma centralidade entre o debate liberal/conservador e o debate progressista acerca do Estado contemporâneo. Como afirma Höfling (2001, p. 36) as teses neoliberais, absorvendo o movimento e as transformações da história do capitalismo, retomam as teses clássicas do liberalismo e resumem na conhecida expressão “menos Estado e mais mercado” sua concepção de Estado e de governo. Voltadas fundamentalmente para a crítica às teses de Keynes (1883-1946), que inspiraram o Estado de Bem-Estar Social, defendem enfaticamente as liberdades individuais, criticam a intervenção estatal e elogiam as virtudes reguladoras do mercado. Estas idéias ganharam força e visibilidade com a grande crise do capitalismo na década de 1970, apresentadas como possíveis saídas para a mesma. Entre os principais teóricos do modelo neoliberal de Estado estão Hayek (1977) com a obra O caminho da Servidão e Friedman (1977), com a obra Capitalismo e Liberdade. Já entre os autores progressistas que discutem o Estado contemporâneo podemos apontar Habermas, Rosanvallon, Hobsbawn e O’Connor. Quer se considere a falência do Estado de Bem Estar Social no primeiro mundo, ou a falência do Estado-Desenvolvimentista na América Latina, dando lugar ao Estado mínimo neoliberal, conseqüência da reestruturação produtiva e organizativa do sistema capitalista, a questão das relações sociais e a sua re-atualização é tarefa que se impõe. E esta é uma tarefa que tem a ver com governança, com a gestão do desenvolvimento ou, em última análise, com gestão social. De qualquer forma, a maioria dos estudiosos concorda que um novo Estado está em construção e, para geri-lo, é necessário um novo paradigma de gestão. Surge assim a New Public Management, como o grande instrumento para viabilizar o Estado Mínimo. No Brasil, passa-se a adotar a Administração Pública Gerencial (denominação cunhada por Bresser Pereira), modelo que se contrapõe à Administração Pública Burocrática implantada no Brasil a partir dos anos 30 com Getúlio Vargas, à época a grande reforma para superar a Administração Pública Patrimonialista vigente no país. 131 A discussão sobre as relações de poder na sociedade tem sido conduzida com base em duas óticas principais: a mercadocêntrica, que enfatiza a supremacia do mercado como o grande condutor da sociedade, reservando um papel secundário ao Estado, responsável pelo cumprimento das leis e pela segurança; e a estadocêntrica, que, ao contrário, considera o mercado incapaz de coordenar as relações de poder existentes na sociedade, passando a dar um peso maior ao Estado como o grande condutor destas relações. No Brasil, em especial, o Estado Desenvolvimentista fez com que as discussões se concentrassem sobre o tripé estatal, com o foco voltado para quem tinha mais poder: o Executivo, o Legislativo, ou o Judiciário. O mercado, ausente formalmente, agia através do lobby junto aos três poderes deste tripé. E a sociedade civil? Na verdade, por muito tempo, a sociedade civil não tinha espaço nenhum. Quando muito, conseguia alguma participação mínima através de alguns dos partidos políticos. Relações de Poder e o novo triângulo social Com o processo de globalização e as conseqüentes novas relações entre os EstadosNações, há necessidade de construir novas relações entre os segmentos que compõem a sociedade: o Estado, o mercado e a sociedade civil. Passa-se à construção de um novo modelo tripartite da sociedade, que Dowbor (1999) chama de novo tripé social. Trata-se, portanto, de construir novas relações de poder, com equilíbrio mínimo entre estes três vértices do que se pode chamar de triângulo social. Não se trata mais, portanto, da postura dos movimentos sociais da década de 70, de estarem permanentemente de costas para o Estado e para o mercado, e estes de costas para os movimentos sociais. Trata-se de, através de um processo permanente de concertação entre estes segmentos, construir uma sociedade efetivamente cidadã. Se na visão estadocêntrica e/ou mercadocêntrica a sociedade civil era vista como alvo ou cliente, o novo triângulo social, em última análise, propõe uma visão sociocêntrica, onde a sociedade civil passa a ser, em articulação com o Estado e o mercado, sujeito do processo, protagonista do desenvolvimento. A concretização da ação do triângulo social, que conforma o tecido social, dá-se sob a forma de relações de poder: o Estado exerce o poder político, o mercado exerce o poder econômico e a sociedade civil exerce o poder social. O poder político, assim, consubstancia-se no Estado. O Estado é uma relação social que exerce suas funções - de acumulação e de dominação - através de certas objetivações em 132 instituições. Essas objetivações se dão no poder executivo, no poder legislativo e no poder judiciário. O poder executivo, por sua vez, divide-se no governo propriamente dito e nos aparelhos administrativo-burocráticos. O poder local Mas as funções do Estado Capitalista são desempenhadas também por meio de distintas esferas: federal (união), regional (Estados) e local (Municípios). Existe uma divisão de atribuições entre as diversas esferas, o que nem sempre é claramente determinado nas constituições. No caso brasileiro, é importante ressaltar nosso modelo federativo tripartite – caso único no mundo – em que União, Estados e Municípios são entes autônomos que integram a República Federativa do Brasil. O Município, que representa a esfera local no Brasil, é uma instância fundamental no assentamento de relações democráticas entre Estado e sociedade civil, entre Estado e classes populares, entre Estado e classes dominantes. O município brasileiro constitui-se numa organização formal com limites e população claramente definidos. Representa a unidade de governo local no sistema político federativo brasileiro, gozando de autonomia nos termos e limites da constituição brasileira e das constituições estaduais. Há um consenso geral entre estudiosos do poder local (Daniel, 1982; Pinho & Santana, 1998; Pinho & Santana, 2000; Fedozzi, 1999; Soares & Caccia-Bava, 1998) que no Brasil, seguindo uma tendência mundial de valorização dos espaços subnacionais, a partir da Constituição de 1988, ganha impulso um processo de descentralização, com um conjunto importante de tarefas, antes assumidas pelo poder central, passando ao âmbito dos governos subnacionais, especialmente os municípios. Para muitos, transferir problemas para o nível local aumenta a eficácia das ações, já que o município estaria mais habilitado para enfrentá-los, uma vez que a sociedade se encontra mais próxima do governo podendo, portanto, participar na definição da solução e acompanhar e controlar a execução. Nos municípios interioranos de pequeno e médio porte3, onde os cidadãos estão mais próximos dos tomadores de decisão, esta é uma questão crucial. Os mecanismos de eficiência coletiva ou social passam a ter maior relevância, pois o município não pode privilegiar as funções reguladoras em detrimento das de provisão de serviços nas áreas sociais, principalmente se considerarmos o aumento das carências sociais provocadas pela exclusão de grandes camadas da população. 3 Dos 5564 municípios brasileiros existentes em 2007, 89,8% tinham menos de 50 mil habitantes e 71,9% menos de 20 mil habitantes. 133 É nestes municípios que as exigências pelo atendimento das demandas passam a ser cada vez mais cobradas. Por isso considera-se o município um espaço privilegiado para a concretização da democracia, com a efetiva participação cidadã da sociedade. O governo é a fração de classe que assume, por eleição, a gestão do aparelho estatal, figurando como dirigente do poder de Estado, o que não significa ter hegemonia, principalmente em se tratando de um governo local no Brasil. Mas uma instância de governo sub-central ou subnacional, tanto pode ser um instrumento de controle central como um gerador de graus de obstáculos para seu exercício. Há pautas de autonomia possível num governo local, decorrentes da forma como se exerce o poder nas esferas locais. Caracterizado o poder político local como esfera do Estado Capitalista, aborda-se agora como se organiza este poder estatal local. Como já foi afirmado, no Brasil a expressão local remete à esfera municipal, e o poder político local organiza-se no governo local, no aparelho burocrático-administrativo local e no legislativo municipal (a câmara de vereadores). Não há, portanto, nesta esfera, a existência de aparelhos do poder judiciário, cujas funções estão reservadas aos níveis estadual e federal4. São estes lugares de exercício do poder político local que executam as ações necessárias ao desempenho das funções básicas do Estado Capitalista - as funções de acumulação e de dominação. O município, assim, cumpre no âmbito local as funções de dominação e acumulação inerentes ao Estado Capitalista, pois está inserido no processo contraditório que viabiliza o desempenho de tais funções. Segundo Daniel (1982), o poder estatal local capitalista deve cumprir duas funções sociais básicas: uma função de acumulação - relativa ao peculiar interesse local – e uma função de dominação, mais propriamente situada no nível do governo local – relativa ao coesionamento de interesses de setores e frações de classes dominantes e dominadas. As citadas funções sociais tomam parte do conjunto das funções de acumulação e dominação específicas do Estado capitalista. No que se refere à função de dominação, o poder local concentra sua ação nas tarefas de legitimação mais do que nas de repressão aberta (coação), já que a maioria dos municípios 4 A partir da Constituição de 1988, houve um fortalecimento significativo do Ministério Público, que, ainda que vinculado como esfera ao nível estadual, exerce suas funções no nível local, interferindo, portanto, fortemente nas relações de poder locais entre Estado, Mercado e Sociedade Civil. 134 não conta com aparelho policial próprio5 e uma vez que, a nível local, não existem tarefas relativas ao poder judiciário. É comum afirmar, com base numa concepção liberal, que a ação do poder público se fundamenta na idéia de proteger e promover o bem comum, e que o governo municipal, para atingir aquele objetivo, atua em três grandes linhas: a) estimula o desenvolvimento econômico e social; b) atende necessidades da população em bens e serviços públicos e c) compatibiliza interesses e aspirações dos diversos agentes (organizados ou não em grupos) que atuam no território municipal (empresas privadas, população, entidades civis e entidades do próprio governo). Na verdade essa atuação corresponde às funções de acumulação e dominação antes referidas. O estímulo ao desenvolvimento econômico e social ocorre quando se desempenham ações com vistas à reprodução do capital e à reprodução da força de trabalho; o atendimento em bens e serviços cumpre a função de reprodução da força de trabalho (prioritariamente, por mais que possa também cumprir a função de reprodução do capital) e a função de dominação, através da legitimação; a compatibilização de interesses decorre da necessidade da harmonia social, através do amortecimento dos conflitos, tanto entre as classes dominada e dominante, como no interior das classes. Retomando a análise pela lógica das relações de poder que se estabelecem no tecido social, estas relações, no nível local (municipal) podem ser assim sintetizadas: a) Poder Econômico Local: 1- grupos ligados à produção dos meios de consumo coletivos, meios de circulação material e seus suportes físicos (obras e serviços urbanos): empresas construtoras, empreiteiras de serviços de pavimentação, canalização, empresas de transporte coletivo, empresas de limpeza urbana, coleta de lixo e tratamento de resíduos sólidos, fornecimento de iluminação pública, etc. 2- grupos que dependem da forma de aglomeração dos elementos que se justapõem no espaço urbano (uso, ocupação e parcelamento do solo): empresas imobiliárias e incorporadoras, de projetos e de construção civil, etc. b) Poder Social Local: 5 A partir de 1988 a Constituição Federal, em seu artigo 144, parágrafo 8º, possibilitou a criação da Guarda Municipal, destinada à proteção dos bens, serviços e instalações do Município; grande maioria dos municípios de médio e grande porte instituiu as guardas municipais, com funções especialmente voltadas ao controle do trânsito. Recentemente o Congresso aprovou legislação no sentido de permitir que as guardas municipais de municípios com mais de 100 mil habitantes possam trabalhar armadas. 135 1 - poder das elites locais: - grupamentos sociais que se apresentam como portadores da tradição local, formada por agentes sociais diversos: profissionais liberais, membros do empresariado local, das classes médias assalariadas; associações empresariais: associações comerciais e industriais, clubes de diretores lojistas, etc.; associações de profissionais: associações de administradores, de engenheiros e arquitetos, de profissionais da saúde, de advogados, de contadores, etc.; clubes de serviços: ROTARY, LIONS, etc.; clubes esportivos; associações religiosas; meios de comunicação de massas locais: jornais, rádios, televisão. 2- poder dos movimentos sociais: grupos sociais cujos integrantes se unem em função da percepção dos agentes de uma carência comum, seja na empresa, seja no bairro: sindicatos; associações de bairros; movimentos de defesa do consumidor; movimentos de defesa do meio ambiente; movimentos feministas, etc. c) Poder Político Local: 1 - poder do governo local: prefeito, vice-prefeito, secretários e demais cargos de confiança; partidos políticos integrantes da coalizão de poder. 2 - poder administrativo local: aparelho burocrático local; corpo administrativo local. 3 - poder legislativo local: vereadores eleitos; partidos políticos. d) poder moderador local6: ações de fiscalização e de cumprimento das normas e de curadoria da sociedade decorrentes da atuação do ministério público, muito fortalecido após a Constituição de 1988. e) poder da cidadania interativa7: Conselhos Gestores de Políticas Públicas Poder da cidadania interativa: os conselhos municipais Os conselhos municipais, instituídos durante a década de 90 em todos os municípios brasileiros, até como exigência legal do processo de descentralização implantado pelas reformas em curso, são espaços privilegiados para praticar novas formas de gestão e construir processos de cidadania ativa e efetiva. 6 Pode parecer estranho falar em poder moderador local. Porpõe-se aqui esta classificação, dada a importante atuação do ministério público no nível local, no cumprimento de seu papel de curador da sociedade civil. Esta atuação interfere diretamente nas relações de poder local estabelecidas no tecido social. Por isso, considera-se válido falar também em poder moderador local. 7 Como se verá a seguir existe uma polêmica a respeito do lugar dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Há os que os classificam como instância do poder político, uma vez que os Conselhos são criados por Leis Municipais. Outros, porém, afirmam que integram o poder social. Propõe-se aqui classificá-los como poder da cidadania interativa, pois, mesmo sendo criados por lei, sua dinâmica não deve ser de subordinação ao poder do governo local, nem ao poder administrativo local ou legislativo local. Os Conselhos devem(riam) atuar com autonomia e independência, em seu papel de interação entre a sociedade civil e o Estado. 136 Está-se vivenciando uma verdadeira reinvenção do governo, especialmente através do estabelecimento de novas formas de relacionamento entre a sociedade e o Estado, novos mecanismos de participação e democracia, novas formas de comunicação mais democráticas e transparentes. Entretanto, a realidade da grande maioria dos municípios brasileiros é ainda a convivência com práticas e processos de gestão que estão mais próximas de modelos neopatriomanialistas ou burocráticos do que de novo o paradigma democrático, por mais que sejam incorporadas formas participativas nos processos de gestão pública. Em muitos casos, os conselhos municipais constituem-se apenas formalmente para atender exigências legais para repasse de recursos no processo de descentralização. Os formatos dos conselhos brasileiros variam conforme estejam vinculados à implementação de ações focalizadas, através de conselhos gestores de programas governamentais – merenda ou alimentação escolar, acompanhamento do FUNDEB – ou à elaboração, implantação e controle de políticas públicas, através de conselhos de políticas setoriais, definidos por leis federais para concretizarem direitos de caráter universal – saúde, educação, assistência social. Existem também os conselhos temáticos, envolvidos com temas transversais que permeiam os direitos e comportamentos dos indivíduos e da sociedade – direitos humanos, violência, antidrogas. Os conselhos territoriais, existentes em muitos municípios, atuam no processo de formulação e gestão de políticas de caráter mais universal, mas na ótica territorial, exercendo muitas vezes funções executivas – conselhos distritais, conselhos de regiões administrativas, conselhos de bairros. Por fim, existem os conselhos globais, de caráter mais geral e que envolvem vários temas transversais – conselhos de desenvolvimento municipal, conselhos de desenvolvimento urbano, conselhos de desenvolvimento rural. Conselhos municipais em Ijuí Ijuí vem experimentando a idéia de conselhos como espaço público de relacionamento e cooperação entre a sociedade civil e o governo há várias décadas. O primeiro conselho, do qual se encontrou registros, surgiu em 1º de junho de 1953, quando, pelo Decreto Executivo nº 80, foi criado o Conselho de Assessoramento do Plano Diretor8. Em 1957, foi criado, pelo 8 O Conselho tinha por finalidade cooperar com a administração municipal nos estudos, elaboração e execução do Plano Diretor da cidade, era constituído de 10 membros, com representação de diversas classes, não podendo ter mais de dois representantes de uma mesma classe. As reuniões eram mensais, estando sujeito à perda do mandato conselheiro que faltasse a três reuniões consecutivas. As deliberações na plenária eram por maioria simples. Este conselho foi concebido como um órgão técnico de caráter consultivo e opinativo para as questões de planejamento integral do Município. (ALLEBRANDT, 2002, p. 90-2). 137 DE 159, o Conselho Municipal de Energia Elétrica9; em 09/06/1969, pelo DE nº 197-S, foi criado o Conselho Municipal de Educação e em 1971 (DE 313-S de 20/07), foi criado o Conselho Municipal de Trânsito. Em 1956, através do DE nº 132, foram criadas as Comissões Distritais. Nos considerandos iniciais o decreto ressaltava a necessidade de maior contato da administração com o interior e a vantagem do conhecimento dos problemas mais prementes, expostos por um órgão consultivo do próprio meio distrital. Constituíram-se, estas comissões, em órgãos de cooperação com o poder público municipal, com a finalidade de estudar, sugerir e propor as medidas necessárias ao bom andamento dos serviços municipais, portanto, consideradas órgãos consultivos do governo municipal, compostas por cinco membros, que escolhiam presidente e secretário. Ijuí é um município que foi tomado pela chamada febre conselhista da década de 90. A trajetória histórica da sociedade ijuiense sem dúvida foi um dos fatores importantes que fez com que cedo fossem criados diversos conselhos, tanto temáticos, como setoriais, programáticos e, sobretudo, conselhos territoriais e globais, como é o caso do Conselho de Desenvolvimento do Município de Ijuí (CODEMI), do Conselho de Desenvolvimento Rural de Ijuí (COMRURAL), e dos Conselhos Distritais de Ijuí. O envolvimento decisivo das entidades locais, como os partidos políticos, entidades vinculadas ao movimento sindical, a organização comunitária já existente, com Associações de Bairros congregadas no Conselho de Bairros de Ijuí, institucionalizado pela prática de muitos anos, e só mais tarde institucionalizado do ponto de vista formal pelo poder público, a existência do Movimento pela Retomada do Desenvolvimento de Ijuí (de 1983 ao início da década de 90), a existência do Conselho Municipal de Educação, criado em 1969, o funcionamento da Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde (CIMS) desde 1983 e o plano de governo do partido que estava exercendo o segundo mandato consecutivo, foram todos elementos que, no nível local alimentaram o debate desenvolvido durante a constituinte municipal, que culminou com esta Lei Orgânica incorporando diversos mecanismos no sentido da consolidação e institucionalização da participação comunitária no planejamento, gestão, controle e avaliação da gestão pública, no processo de formulação, implementação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas. 9 O Conselho Municipal de Energia Elétrica era constituído de 10 membros (um representante da Prefeitura Municipal). A escolha do presidente cabia à plenária. (ALLEBRANDT, 2002, p. 93). 138 A constituinte também foi palco de diversos conflitos, sendo um dos principais a discussão gerada com respeito ao caráter dos conselhos municipais. Enquanto a proposta do relator defendia que os conselhos deveriam ser órgãos de cooperação e assessoramento governamental, houve um movimento da sociedade, coordenado especialmente pela CIMS, no sentido de garantir o caráter deliberativo no texto constitucional. A pressão popular realizada garantiu o caráter deliberativo. Isso é importante, ainda que não garanta que os conselhos efetivamente funcionem com tal prerrogativa, ou, quando funcionam, nem sempre garante que o executivo coloque em prática as decisões deliberadas. A instalação dos diferentes conselhos deu-se assim a partir de 1990. Até o final do governo, em 1992, haviam sido instalados 20 conselhos e em 1996 já eram 25 os conselhos em funcionamento em Ijuí. Isso sem considerar a existência do Conselho de Bairros de Ijuí10 (CBI), que congrega as 36 associações de bairros existentes e em funcionamento, e que possuem uma participação efetiva no processo de planejamento e orçamento do município. Mesmo não se constituindo em conselho municipal em sentido estrito, o CBI constitui-se num dos principais espaços públicos de interação entre a sociedade civil e o poder público local. A importância da experiência dos conselhos em Ijuí não se dá evidentemente em razão da quantidade de conselhos em funcionamento. O aspecto que reforça sua importância é a forma de organização e funcionamento dos mesmos. No caso de Ijuí, mais de 70% dos conselhos enquadram-se no tipo de conselho denominado conselhos sociedade-governo ou autônomo11, dada a hegemonia da sociedade civil na sua composição e, portanto, a sua hegemonia no processo decisório, já que, de acordo com a Lei Orgânica de Ijuí, todos os conselhos são de caráter deliberativo. No item a seguir aborda-se alguns aspectos relacionados à trajetória dos conselhos distritais de Ijuí, dada sua importância no processo de democratização da gestão pública local. Os Conselhos Distritais Os conselhos distritais são do tipo de conselho territorial. Os conselhos territoriais são fundamentais no processo de planejamento e gestão do desenvolvimento local e devem possuir uma dinâmica de organização e funcionamento que lhes garanta o caráter de universalidade na construção de diretrizes e estratégicas voltadas ao desenvolvimento. 10 A partir de 2007 o CBI se reestrutura na União das Associações de Bairros de Ijuí (UABI). Este é um dos 8 tipos de conselhos propostos na tipologia construída com base nas características de organização e de composição dos conselhos. O conselho sociedade-governo ou autônomo é aquele que possui real autonomia em sua atuação, dada a hegemonia da sociedade civil na sua composição. Ver a este respeito o capitulo A configuração interna de poder dos conselhos em ALLEBRANDT (2002). 11 139 Já se apontou que em Ijuí existiram comissões distritais já na década de 50. Na década de 60 a organização do movimento comunitário de base reforçou a organização em núcleos e conselhos distritais, juntamente com a organização em bairros e no conselho de bairros no meio urbano. A retomada da idéia dos conselhos distritais na década de 90, deus-e pela necessidade de criar espaços de interação com a sociedade para o processo de planejamento e gestão pública12. No meio urbano, a organização territorial era coordenada pelas associações de bairros e pelo Conselho de Bairros de Ijuí. Era necessário qualificar estes espaços e estender a experiência para o meio rural. As intenções do grupo que estava assumindo o poder político em Ijuí, a esse respeito, já estavam pautadas no Plano de Governo construído e discutido com a população no período da campanha eleitoral. Alguns trechos do plano são elucidativos neste sentido: Fazer um governo popular e participativo. Num salto de qualidade, queremos consolidar a participação dos grupos sociais, das associações e entidades classistas no processo decisório, na gestão municipal. Vamos nos esforçar para devolver ao cidadão um espaço onde ele possa moldar o mundo em que vive. Queremos recuperar o espaço de decisão local para recuperar a dimensão política do cidadão. Para atingir plenamente os objetivos implícitos nesses compromissos, estabelecemos como pontos básicos(...): (...) 1.14 - Viabilizar unidades administrativas territoriais, buscando a desconcentração administrativa, o incremento do fluxo de comunicação entre a comunidade e o governo municipal e a participação popular mais efetiva na gestão pública. 1.15 - Manter as subprefeituras distritais e implantar as mesmas nos distritos já criados, ouvida a comunidade respectiva. 1.16 - Incentivar a implantação de Conselhos Distritais com a finalidade de organizar as respectivas comunidades interioranas, garantindo eficácia e representatividade à atuação dos subprefeitos. 1.17 - Criar o Conselho de Distritos de Ijuí – CDI, integrado pelos presidentes dos conselhos distritais existentes, com a função entre outras, de participação no planejamento municipal. 1.18 - Incentivar a organização de associações de quadras, de ruas, quarteirões, como instrumento de participação popular. 1.19 - Garantir a participação das associações de quadras, ruas, quarteirões, das associações de bairros e do Conselho de Bairros de Ijuí – CBI, no planejamento, execução, controle e avaliação das atividades da administração municipal. (grifos nossos) (Plano de Governo, 1989:1-15) Os objetivos traçados no plano de governo refletem a importância dada aos conselhos distritais, ao lado das associações de bairros e do CBI (estes já existentes) para o processo participativo no planejamento, execução e controle das atividades da administração municipal. 12 No Município de Ijuí, apesar do alto grau de urbanização, ainda é de fundamental importância a presença de população no meio rural. O resultado do Censo 2000 aponta uma população de 75,7 mil habitantes, com 84% moradores dos 36 bairros organizados da sede, onde encontramos uma densidade demográfica de 2.055 hab/km² e 16% morando nas cerca de 40 comunidades do interior, organizadas em oito distritos oficiais, com uma densidade de 14,5 hab/km² (considerando o município no seu todo, a densidade é de 110 hab/km²). Estão cadastradas cerca de 2700 unidades agrícolas, com o tamanho médio de 27 hectares. 140 A concretização das ações propostas inicia-se em 1990, com a aprovação da Lei Municipal 2.579, de 12 de dezembro de 1990, que autoriza o Poder Executivo a criar Conselhos Distritais no Município. Cada Distrito podia constituir seu Conselho Distrital, por solicitação dos moradores do respectivo Distrito, mediante Decreto Executivo. Cada Conselho era constituído por cinco conselheiros, sendo um deles o Subprefeito nomeado para o Distrito e os outros quatro eleitos pela Assembléia dos moradores maiores de 16 anos. Podiam candidatar-se a conselheiro os moradores com mais de 21 anos. O mandato dos conselheiros era de dois anos, com renovação anual de metade dos membros. A Assembléia reunia-se ordinariamente na 2ª quinzena de dezembro, para apreciar relatório do Conselho e eleger os novos conselheiros. Os conselheiros escolhiam o Presidente e o Secretário do Conselho, estabelecendo o período de mandato. O Conselho Distrital tinha a função de assessorar, orientar e colaborar com o subprefeito no desempenho de suas funções, possuindo as seguintes atribuições e responsabilidades: levantar as necessidades, em termos de serviços públicos do distrito e estabelecer prioridades no seu atendimento; estudar o planejamento de obras e atividades a serem executadas no Distrito, submetendo-os à programação geral do planejamento municipal; organizar e apoiar programas e campanhas nas áreas da saúde, meio ambiente, educação, ação comunitária e outras de interesse da comunidade; cooperar com a administração municipal no levantamento econômico do Distrito, para fins de retorno do ICMS; orientar e fiscalizar os serviços realizados por máquinas e equipamentos da Prefeitura no Distrito, zelando pelo cumprimento das determinações e critérios de utilização dos mesmos; os serviços devem obedecer prioridades e cronogramas estabelecidos pelo Conselho Distrital; zelar pelos bens públicos sediados no Distrito; promover a conscientização da comunidade distrital quanto às práticas conservacionistas da terra, rios, nascentes, lagos e estradas, inclusive quanto aos programas de microbacias; fiscalizar e orientar os moradores do Distrito quanto aos serviços de roçadas em beiras de estradas e sua conservação; participar de encontros convocados pelo Prefeito e das reuniões e convenções dos Conselhos Distritais; cumprir e fazer cumprir as determinações do Plano Diretor do Município bem como dos demais códigos e leis complementares; responsabilizar-se pelas decisões tomadas e pelo cumprimento de suas respectivas implicações. O Conselho Distrital, após ter sua programação analisada e aprovada pelo Conselho dos Distritos e pelo Executivo Municipal, tinha garantido a sua execução. Após a aprovação da lei, foram realizados encontros em todos os distritos, incentivando a criação dos conselhos. A decisão de criação cabia à assembléia dos moradores. Ainda em 1991 foram criados 8 distritos, sendo que um foi criado em 1992 e um em 1995. Os Conselhos Distritais começaram a funcionar e constituíram-se num espaço de discussão e decisões sobre os problemas de interesse das comunidades do interior, canalizando tais demandas aos órgãos públicos municipais ou mesmo estaduais (Emater) ou privados (Cooperativas). Como a escolha de 4 dos 5 conselheiros se dava em processo de eleição direta em Assembléia dos moradores com mais de 16 anos, o Conselho atuava com bastante legitimidade, tanto frente aos moradores, como frente ao governo municipal, ao Prefeito e Secretários ou mesmo Vereadores. A escolha do Presidente era feita pelo Conselho, sendo que, normalmente, o Presidente era indicado entre os 4 membros eleitos. O Subprefeito, 141 membro nato do Conselho, de um modo geral não ocupava a Presidência, ainda que isto não fosse impedido pela legislação dos Conselhos Distritais. O Subprefeito era indicado pelo Prefeito Municipal. Entretanto, a partir do funcionamento dos Conselhos, a própria indicação levava em conta o funcionamento dos Conselhos em cada Distrito. Desta forma, mesmo sendo um subordinado ao Prefeito, e sendo remunerado como detentor de um Cargo em Comissão os Subprefeitos eram ao mesmo tempo grandes defensores das demandas de suas comunidades frente ao governo municipal. A manutenção da população no meio rural, importante para evitar o agravamento da marginalização e da exclusão social, requer um conjunto de políticas públicas voltadas ao atendimento de necessidades básicas que garantam o mínimo de qualidade de vida, tanto nos serviços da infra-estrutura física, quanto nos serviços sociais como educação e saúde, além da preocupação crescente com as questões do meio ambiente e da conservação do solo. Construir mecanismos e instrumentos que se constituam numa forma de buscar a interatividade entre as comunidades e o poder público local é fundamental. Não é suficiente a descentralização através da criação de subprefeituras nos distritos, responsáveis pelos serviços colocados à disposição das populações do interior. É preciso que a comunidade se envolva efetivamente, garantindo assim uma maior qualidade desses serviços, melhorando a eficiência dos mesmos e, especialmente, a sua eficácia. Os conselhos distritais possuem, assim, por um lado, um papel importante no processo de planejamento, constituindo-se no espaço privilegiado de interação sociedadegoverno no processo de formação da agenda de políticas públicas. Por outro lado, estes conselhos cumprem também um papel de gestores, ao se constituírem no fórum de tomada de decisão no que se refere aos serviços públicos prestados no distrito. Mais do que um órgão fiscalizador da subprefeitura, dos programas e das ações da prefeitura municipal no distrito, o conselho distrital interage de forma mais ampla e permanente, ao participarem da análise das situações e das definições das ações a serem empreendidas, além do acompanhamento e da avaliação. Desta forma, entende-se que os conselhos distritais, considerando as suas funções, as suas atribuições, a sua forma de composição e a sua organização, contribuem para a constituição de uma esfera pública ampliada, espaço de interação entre a sociedade e o Estado. Como afirma Teixeira (2000), estas esferas públicas, por possuírem uma vinculação institucional com o Estado (criadas e regulamentadas por lei, conselheiros com mandatos e empossados pelo Executivo, etc.), não podem ser consideradas esferas públicas não-estatais. 142 Entretanto, lembramos que os conselhos distritais em Ijuí enquadram-se no tipo de conselho que denominamos sociedade-estado13, dado sua composição e forma de indicação (eleição direta dos conselheiros pela comunidade, em assembléia) e dado sua organização (assembléia geral de moradores que define metas e prioridades para o planejamento e à qual o conselho presta contas) constituindo-se por isso em espaço público no qual, pela interação comunicativa, se captam os problemas sociais, que, organizados em agenda, são transmitidos ao estado. Por outro lado, o conselho atua também como um espaço de partilha de poder, já que toma decisões por delegação em questões diretamente ligadas a alguns serviços básicos, constituindo-se neste caso como um colegiado decisório atuando conjuntamente com o subprefeito distrital, que é executor destas decisões do conselho. Considerando as modalidades de participação consultiva e resolutiva analisadas por Cunnil-Grau (1998), podemos afirmar que o conselho distrital é um mecanismo de participação que atua em ambas as modalidades, tanto na da participação consultiva como na da participação resolutiva. Da análise de algumas atas de reuniões de Conselhos e de suas Assembléias, podemos evidenciar aspectos importantes do funcionamento deste espaço institucionalizado de participação na gestão pública local. Percebe-se, por exemplo, que os Conselhos mostram-se dispostos a melhorar a qualidade de vida dos moradores do distrito. Abordam questões rotineiras, como necessidade de encascalhamento de estradas, mas também questões mais amplas, como conservação de estradas, onde entra a responsabilidade dos próprios agricultores. Na questão da infra-estrutura os conselhos tiveram participação efetiva na política de fixação de patrolas (motoniveladoras) nos distritos: em muitos deles, até 1997, foram construídas moradias pelo poder público e os operadores passaram a residir no distrito, sendo que o Conselhos Distrital, juntamente com o sub-prefeito, coordenavam as atividades de conservação das estradas existentes no território. Preocupações com o meio-ambiente (lixo tóxico proveniente de embalagens de produtos agrícolas...), de segurança (com discussões sobre a necessidade de patrulhas montadas da brigada militar, ações concretas contra a prática de abigeato, necessidade de sonorizadores nas rodovias estaduais e federais que cruzam o território do distrito) também estão presentes, mesmo que o responsável imediato pela decisão e pelo atendimento/execução nesse caso não seja o governo local. A preocupação com a educação fundamental também está presente nas discussões retratadas nas atas de reuniões dos conselhos. Garantia de 13 Ver nota 10 143 transporte escolar para as escolas nucleadas do interior ou para o deslocamento às escolas da sede urbana, melhorias na merenda escolar, manutenção dos prédios escolares, estão entre os temas abordados. A questão da política urbana e da gestão pública também estava presente, encontrando-se o registro de reuniões voltadas para a delimitação do perímetro urbano dos distritos. Anualmente, eram realizadas assembléias que faziam uma análise das atividades do exercício e avaliavam a resposta dos diferentes órgãos públicos às demandas da comunidade, além de definirem as metas e objetivos para o período seguinte, tanto em termos de prioridades a serem incluídas nos planos plurianuais e nas leis orçamentárias anuais, quanto às prioridades que não dependiam diretamente dos recursos do poder público. A saúde é tema que também está presente em muitas das reuniões, com preocupações que vão desde a luta por posto fixo de atendimento até mecanismos de atuação de agentes de saúde nos distritos14. O Conselho de Distritos de Ijuí (CDI) não chegou a ser institucionalizado por lei. A idéia é que o CDI, à semelhança do Conselho de Bairros de Ijuí (CBI) congregasse os coordenadores dos conselhos distritais, com vistas a uma atuação mais integrada no âmbito do município como um todo. Na prática, entretanto, o Prefeito e os Secretários realizavam reuniões conjuntas com os presidentes dos conselhos. Destes encontros originaram-se ações voltadas ao desenvolvimento do município. Exemplo disso é a definição de uma marca ou vocação para cada distrito num processo de diversificação. Assim, definiu-se que cada distrito procuraria intensificar sua atuação em determinada área, como a citricultura, o vinho, o milho, o leite, a mandioca, o peixe. A partir destas definições, diversos distritos implantaram festas distritais anuais, como a festa da Laranja no distrito Santana, a festa do Peixe em Coronel Barros, a festa do Leite em Mauá, a festa do Milho no Chorão. Algumas destas festas distritais consolidaram-se e ainda ocorrem atualmente15. Na maioria dos distritos as reuniões do Conselho eram abertas à comunidade. Nos registros das atas existentes verifica-se número significativo de participantes além dos membros do conselho. As assembléias, por sua vez, em muitos casos conseguiam reunir 120 ou mais pessoas residentes nos distritos e que, por sua vez, representavam as diferentes comunidades organizadas territorialmente nos limites de cada distrito. Percebemos que os conselhos estavam construindo seu espaço, buscando entender e melhorar sua organização e funcionamento. Fica evidente, também, que as atividades do Subprefeito e do Conselho 14 Análise mais detalhada do funcionamento dos conselhos distritais em Ijuí pode ser encontrada em ALLEBRANDT (2002; 2004). 15 A adoção destas marcas da comunidade teve reflexos econômicos, ampliando-se investimentos em diversas áreas. No caso de Santana, por exemplo, o investimento na cultura de cítricos viabilizou a consolidação de viveiros de mudas, sendo o Município considerado hoje um dos mais importantes pólos estaduais em produção de mudas cítricas. 144 estavam intrinsecamente ligadas, funcionando o Conselho efetivamente como um coordenador/controlador das atividades do mesmo. Os conselhos funcionaram regularmente na maioria dos distritos até 1996. Em 1997, quando assume novo governo, de uma coligação PP-PMDB, derrubando a hegemonia de 14 anos contínuos do PDT, ocorrem mudanças significativas na relação que o poder público estabelece com a sociedade civil. A Lei 3.295, de 12 de março de 1997, revoga a Lei de criação dos Conselhos Distritais e, em seu lugar, institui os Conselhos Comunitários no Meio Rural. A Lei Municipal que autoriza o Poder Executivo a criar os Conselhos Comunitários no Meio Rural, praticamente não difere da Lei anterior. As funções e atribuições permanecem as mesmas. O que muda, essencialmente, é o conceito de territorialidade. O novo conselho deve ser organizado por comunidades, não mais por Distritos legalmente constituídos, que congregam diversas comunidades do interior. Além disso, todas as subprefeituras e os respectivos cargos de subprefeitos foram extintos. A idéia era que os novos Conselhos Comunitários substituíssem as funções tanto dos antigos Conselhos Distritais quanto dos Subprefeitos. Na prática, nenhum destes Conselhos chegou a funcionar efetivamente. Esse é, inclusive, o entendimento de integrantes do primeiro escalão do governo que os implementou, como o então Secretário de Planejamento, em entrevista concedida. O Prefeito justifica a mudança com o argumento de que esta nova forma seria mais democrática pois permite a cada comunidade solicitar determinados auxílios da administração municipal. Na sua visão os conselhos distritais eram muito amplos e sucitavam disputas de poder entre as diferentes comunidades integrantes do território de cada distrito. Na verdade a nova administração, além de extinguir o cargo de subprefeito, acaba com a política de fixação de operador e equipamento nos distritos. As patrolas (motoniveladoras), que chegaram a 12 em 1994, são vendidas em leilão público como sucatas. O serviço de conservação de estradas passa a ser terceirizado para empresas privadas que na sua maioria adquiriram os equipamentos através dos leilões. Como resultado, as estradas passaram a um péssimo estado de conservação sendo que muitas localidades não receberam mais cuidados de conservação durante todo o mandato. A mudança de organização, no entanto, deu-se mais por motivos políticos, por necessidade de marcar a gestão com inovações e pela tentativa clara de cooptação das comunidades interioranas, que, dessa forma, passavam a ter mais dificuldade de organização no sentido de enfrentar os reais problemas de desenvolvimento e cidadania com a cobrança e 145 enfrentamento, muitas vezes conflituoso, com a administração. Em alguns distritos, inclusive, houve duas assembléias, uma convocada pelo prefeito, e outra pelo extinto conselho distrital, que elegeram cada um nova diretoria para o novo conselho comunitário. Em 2001 retorna ao poder o grupo do PDT, tendo à frente o mesmo prefeito da gestão 1989/1992. No plano de governo constava a meta de recriação dos Conselhos Distritais. Efetivamente, em 2001 e 2002 esta administração reativa conselhos e implementa um processo de planejamento participativo com vistas à construção do Plano de Desenvolvimento de Ijuí. Ao longo de 2001 e 2002 são realizados os Fóruns de Desenvolvimento de Ijuí, desencadeando o processo de planejamento estratégico participativo de Ijuí (PEPI). São encontros com a participação de mais de 400 representantes de conselhos, sindicados, movimentos sociais e segmentos da sociedade civil, como também dos representantes do meio empresarial, e das organizações não-governamentais, em que se discute a importância de elaboração de plano de desenvolvimento, com a criação de comissões temáticas para estudos específicos. Em dezembro de 2002, através da Lei 4051, são criados os Conselhos Distritais e o Conselho de Distritos de Ijuí (CDI), que congregaria os coordenadores dos diversos Conselhos Distritais. A lei autoriza a criação dos Conselhos Distritais, mas sua instituição é livre, de acordo com a vontade dos Distritos. A lei também incentiva a criação ou manutenção de conselhos comunitários (propostos pela administração anterior) nas diversas comunidades dos Distritos, que passariam a ter papel atuante nas assembléias distritais. Entretanto, até o final do governo, em 2004, nenhum Conselho havia sido criado. O prefeito foi reeleito. No Plano de Governo para a gestão 2005/2008 não consta a meta de efetivar a implantação destes conselhos. No final de 2005 alguns secretários, como também membros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (COMRURAL) manifestaramse contrários à instalação dos conselhos distritais. Alegavam que a LM 4051 (encaminhada pelo mesmo governo ao legislativo em 2002) não tinha mais sentido, uma vez que o COMRURAL cumpre com eficiência o papel de pensar o desenvolvimento rural. O COMRURAL, entretanto, ainda que seja do tipo de conselho mais global, acaba, na prática, tendo uma atuação essencialmente setorial, na ótica do desenvolvimento agrícola. É gestor do FUMAPRI, um fundo setorial da agricultura e tem pautado suas preocupações num enfoque de desenvolvimento da produção agrícola. Mesmo que sua composição seja representativa do ponto de vista territorial, já que é integrado, além de representantes dos organismos técnicos voltados para a agricultura, por um representante eleito por cada distrito 146 em eleição conduzida pelo COMRURAL. Neste sentido os integrantes do COMRURAL consideram que poderia haver um conflito entre o representante eleito para o COMRURAL e os integrantes do respectivo conselho distrital. Os conselhos distritais, ao contrário, garantem maior identidade territorial às comunidades do interior. A noção de pertencimento a determinado distrito era reforçada pela atuação sistemática dos conselhos distritais. Mesmo que cada distrito esteja organizado em um conjunto de quatro a cinco comunidades localizadas, estas comunidades (tendo ou não seu conselhos comunitário organizado) sentiam-se representadas pelo conselho distrital ainda que entre os membros da diretoria do conselho não houvesse um representante daquela comunidade: é que a escolha dos representantes e a discussão das grandes questões e as prestações de contas aconteciam sempre em assembléias gerais do distrito. Além do mais, , os conselhos distritais, pela sua dimensão de territorialidade, são abrangentes no que se refere à sua atuação: levantam todo tipo de problema, priorizam a agenda de políticas locais, deliberam sobre políticas horizontais e transversais. Constituem-se, assim, num dos espaços mais importantes na interação com a administração pública local e com o governo local. Os conselhos distritais também faziam importante interação com os demais conselhos municipais setoriais, programáticos e globais. Por outro lado, não existindo os conselhos distritais, tampouco existe o CDI (Conselhos dos Distritos de Ijuí). O CDI possui uma vaga permanente na composição do CODEMI (Conselho de Desenvolvimento de Ijuí), que não foi ocupada até agora pela inexistência do CDI. Assim, os ijuienses que residem no meio rural não possuem representatividade no conselho maior do município. Os argumentos a favor da não reativação dos conselhos distritais, alguns explicitados claramente, outros nem tanto, eram vários: - Existem conselhos em excesso, não se consegue quem queira ser conselheiro, tem muita reunião, acaba recaindo sempre nas mesmas pessoas (argumento utilizado diversas vezes por um líder sindical muito atuante, que é membro 4 a 5 conselhos diferentes e, no mínimo, sempre presidente ou coordenador de um deles); - As decisões demoram muito, já existem as audiências públicas para isto. Além disso, os conselhos acabam substituindo os vereadores, que ficam sem função (este argumento aparece a todo o momento, externado tanto por vereadores como por secretários municipais; entretanto, nas audiências públicas acaba não indo ninguém, seja por falta de articulação - 147 papel dos conselhos - seja por falhas, deliberadas ou não, no fluxo de divulgação para tais espaços); - No tempo em que funcionavam os conselhos distritais, havia muita cobrança, o prefeito, os secretários ou assessores eram chamados seguidamente para dar explicações ou para cobrar soluções, nós não temos tempo, já que os bairros e o centro da cidade nos consomem; para o interior já tem um secretário da agricultura que está aí para resolver os problemas de estradas (argumento típico de “liderança” que não possui visão de totalidade da gestão pública e do desenvolvimento; nesta visão fragmentada, o interior, no máximo, precisa de cuidados com as estradas; educação, saúde, cultura, infra-estrutura de energia e comunicações etc. são questões de menor importância). - Havia muito conflito entre grupos das comunidades do interior, que brigavam para assumir o poder; nas reuniões estes conflitos apareciam, gerando muitas vezes discussões desnecessárias (argumentos que para um dos prefeitos justificou a extinção dos distritos; ora, o conflito é não só inerente aos processos dialógicos de democracia deliberativa, como desejável; qualquer processo de planejamento participativo traz à tona os conflitos existentes; é no processo de negociação que se constroem os consensos necessários; o conflito faz parte do processo de construção da cidadania). Parece ter havido retrocesso na construção das relações de interação estabelecidas entre a sociedade civil (pelo menos no que se refere aos cidadãos do meio rural) e o poder público local, com a renovação de relações do tipo paternalista e patrimonialista na política local. Quando se começa a demonstrar medo ou receio da dinâmica participativa da sociedade, na realidade está-se evitando o surgimento de novas lideranças e, em última análise, não se quer mais compartilhar o poder com a sociedade civil. Esta opção é totalmente contrária à consolidação da democracia, ainda tão frágil e incipiente. Ao contrário, o papel dos dirigentes políticos locais deve ser o de fortalecer as dinâmicas participativas, ampliando o leque das dinâmicas e espaços de participação, portanto, estando disposto a dividir mais ainda o poder com a sociedade. No final de 2007 o CODEMI retoma a discussão com a administração, reforçando a necessidade de instalar os conselhos distritais, tendo sido efetivamente organizado um cronograma de reuniões nos Distritos, nas quais foram eleitos os conselheiros distritais. No mês de maio de 2008, foi realizado o ato solene de posse dos conselheiros escolhidos em cada Distrito e indicados os integrantes do CDI, cujo coordenador passa a integrar o Conselho Diretor do CODEMI. Inicia-se assim nova fase na trajetória dos conselhos distritais em Ijuí. 148 Conclusão O presente estudo buscou conhecer, analisar e evidenciar alguns entendimentos possíveis em relação à prática de atuação dos conselhos distritais e suas relações com a gestão pública local, mais especificamente dos conselhos distritais com base na experiência de IjuíRS. Tal análise pautou-se através da ótica que analisa os conselhos como um espaço de poder, denominado aqui de poder da cidadania interativa, atuando de forma integrada com os demais poderes do tecido social local, em especial o poder político local (governo local, legislativo local e aparelho administrativo local), o poder social local (elites locais e movimentos sociais) e o poder econômico local. No caso específico dos conselhos distritais, algumas constatações finais são possíveis. Uma delas é que a organização dos mesmos no início dos anos 90 significou de certa forma uma retomada da experiência de organização do Movimento Comunitário de Base, que também se organizava, num de seus níveis, em distritos. Entretanto, agora a organização era institucionalizada pelo poder público local. Em função disso, podemos afirmar que o movimento torna-se mais dependente, pois está - de certa forma - atrelado à atuação dos detentores do poder político, especialmente Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários, como se depreende de diversos depoimentos. Outro aspecto é a síndrome da descontinuidade administrativa, presente na cultura administrativa brasileira. Após a criação dos conselhos distritais no início de 90, os mesmos funcionaram com efetividade durante toda aquela gestão (1989-1992). No período 93-96, apesar de continuar no poder o mesmo partido político, houve mudanças significativas de rumos na administração, ocasionado em grande parte pela morte do prefeito, já que o viceprefeito que assumiu para concluir o mandato, em função de coalizões de poder para garantir a mínima governabilidade, não conseguiu dar o apoio necessário às experiências exitosas. Mesmo assim, alguns conselhos seguiam sua trajetória, com razoável grau de autonomia. Um dos resultados foi a derrota do partido na eleição seguinte. O grupo que assumiu - uma coalizão de forças mais de centro-direita - não deixou os conselhos distritais seguir seu curso natural. Interferiram no processo através da extinção da experiência. Aparentemente pode parecer que o objetivo foi tornar mais democrático o processo, já que no lugar dos conselhos distritais (em número de 10), criaram 40 conselhos comunitários. Essa organização, entretanto, não tem nada a ver com a experiência de nucleação existente à época do Movimento Comunitário de Base, no qual os diversos núcleos se organizavam nos conselhos distritais. Na verdade, nesta última forma, a fragmentação ocasionou o esvaziamento dos 149 conselhos, que gradativamente cessaram de funcionar. Retornando ao poder em 2001, o grupo que criou os conselhos em 1990 sinalizou com a reativação dos conselhos, inclusive com a reconstituição do marco legal necessário (lei municipal e decretos). Entretanto, não se passou da retórica sobre participação, durante quase duas gestões. Apenas no último ano da segunda gestão do atual grupo político, é que a experiência foi retomada na prática, com a instalação dos Conselhos e a constituição do CDI. No que se refere ao formato dos Conselhos Distritais, estruturados com uma Diretoria, o Conselho propriamente dito e uma Assembléia Geral do Conselho, esta é uma forma democrática de organização, garantindo maior participação de todos os cidadãos no processo de tomada de decisões. A Assembléia elege os membros do Conselho, o que legitima a sua atuação e os fortalece na sua relação com o poder público. Certamente trata-se de uma experiência inconclusa. Apesar de posições contrárias, a sociedade local deve lutar pela manutenção dos conselhos. Algumas recomendações podem auxiliar na qualificação do processo. Uma delas é o funcionamento regular do Conselho de Distritos de Ijuí - reunião de todos os Conselhos - que é o colegiado deliberativo da priorização das demandas e da definição das políticas, que, a partir daí tornar-se-iam de execução obrigatória, como previsto na legislação municipal. Importante também um processo de qualificação dos conselheiros nos aspectos atinentes à gestão de políticas públicas e aos instrumentos de gestão pública, especialmente o processo de orçamento e diretrizes orçamentárias. Além disso, é importante constituir um instrumento municipal para ampliar o processo de publicização da atuação dos conselhos. No caso dos conselhos distritais, mais importante que um boletim impresso é um programa radiofônico periódico, uma vez que a cultura do rádio ainda está muito presente no meio rural. Um último aspecto é o relativo à necessidade garantir certa autonomia aos conselhos também no aspecto financeiro. É fundamental a destinação de recursos públicos para a cobertura de despesas dos conselhos. No caso dos Conselhos Distritais, seus membros necessitam de deslocamentos constantes à sede municipal, para participar de audiências, reuniões, para participar como representantes dos Conselhos Distritais nos demais Conselhos Municipais. A não existência de fundos para fazer frente a este tipo de despesa desestimula a participação e enfraquece a atuação dos conselhos. Trata-se de criar uma indenização cívica àqueles que voluntariamente assumem essa função político-cívica importante. Não se trata de remuneração, já que é uma atividade voluntária, mas trata-se de indenizar despesas no exercício desta função. 150 Bibliografia ABRAMOVAY, Ricardo. Conselhos além dos limites. Seminário de Desenvolvimento Local e Conselhos Municipais de Desenvolvimento rural. EMATER-RS e FETAG-RS, 20 e 21/06/2001. Porto Alegre. ALLEBRANDT, Sérgio Luís. 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O tema das políticas sociais tem ocupado importância crescente no universo de reflexão de diversas ciências e áreas do conhecimento, assim como tem assumido relevância no espaço da política e da própria organização da sociedade. Esta preocupação com as políticas sociais evidencia que elas deixaram de ser apenas instrumentos de cooptação, de paternalismo, de clientelismo e de compensação das desigualdades para assumir um papel importante na formulação de políticas e na definição de projetos de desenvolvimento para o país e, especialmente, para os estados e municípios. No primeiro tópico, procura-se situar a reflexão em torno das políticas sociais, evidenciando que sua origem está ligada ao acirramento do conflito entre capital e trabalho, a partir da segunda metade do século XIX. As diversas proposições de políticas sociais, implantadas nas diferentes nações e nos mais variados momentos históricos, carregam as marcas das nuances assumidas pelo conflito entre essas duas forças que marcam a trajetória da sociedade capitalista. Da parte das forças ligadas ao mundo do trabalho, tende a ser ressaltado o aspecto da conquista. Por outro lado, as forças ligadas ao capital tendem a ressaltar a idéia de concessão. Essa marca histórica tende a ser redefinida com as transformações atuais, decorrentes do processo de reestruturação produtiva e da nova fase vivida pelo capitalismo. 1 Doutor em Serviço Social pela PUCRS. Mestre em Sociologia pela UFRGS. Professor e pesquisador da Unijuí. Integrante dos Grupos de Pesquisa CNPq: Direito, Cidadania e Desenvolvimento; Núcleo de Estudos em Políticas e Economia Social; Centro de Estudos e Pesquisas sobre Ordenamento e Gestão Territorial. 155 No segundo tópico, demonstra-se a trajetória de implantação de políticas sociais no Noroeste gaúcho, evidenciando os conflitos em jogo e as diferentes formas que as políticas sociais assumiram ao longo do século XX e neste início do século XXI. Faz-se o estudo de uma realidade específica para evidenciar que os espaços locais apresentam especificidades nem sempre consideradas pelas perspectivas analíticas totalizantes. No terceiro tópico, analisam-se os investimentos em políticas sociais realizados pelos quatro municípios-pólo (Cruz Alta, Santo Ângelo, Ijuí e Santa Rosa) do Noroeste gaúcho ao longo da década de 1990. Busca-se identificar a possível relação entre a ampliação dos investimentos em políticas sociais e a melhora das perspectivas de inclusão, expansão da cidadania e desenvolvimento da região Situando o debate sobre as políticas sociais As políticas sociais, entendidas aqui como a ação da sociedade organizada sobre as manifestações da questão social, têm sua origem eminentemente associada à emergência da sociedade capitalista. As grandes transformações em curso na sociedade mundial, a partir do século XV, vão corroer a idéia de que a sociedade era um produto da vontade dos deuses e afirmar a compreensão de que a sociedade é produto humano e seus conflitos devem ser tratados à luz da ciência. Esta nova compreensão a respeito da sociedade é que vai possibilitar uma nova visão das desigualdades sociais, que passam a ser associadas não mais apenas a processos individuais e naturais, mas, especialmente, a processos sociais, criados pelos seres humanos em suas relações concretas de existência. Esta nova compreensão das desigualdades tensiona as relações sociais na medida em que, cada vez mais, um número maior de pessoas não se conforma com a miséria e com os diferentes processos de exclusão a que está submetido e passa a buscar formas de enfrentá-los. A politização dos “problemas sociais” é que os transforma em “questão social”. 2 Ou seja, aspectos que, anteriormente, eram tratados como naturais, individuais ou, no máximo, como decorrentes de desfuncionalidades ou desequilíbrios momentâneos da sociedade, passam a ser polemizados publicamente e postos como decorrentes de um conflito de classes 2 A expressão “questão social” surge na Europa Ocidental, na terceira década do séc. XIX, para designar o fenômeno do pauperismo, decorrente da instauração do capitalismo em seu estágio industrial- concorrencial (NETTO, 2001). O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social”. Diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da “questão social” (NETTO, 2001). 156 e da lógica de reprodução de uma sociedade de classes. Com isso, a burguesia passou a mobilizar seus intelectuais para “produzir” uma explicação para esse fenômeno sem afetar a “nova ordem social construída”. A “naturalização”, a “desfuncionalidade”, “os desvios morais”, “a anomia”, “o não-trabalho”, a “criminalização” foram explicações usadas pela burguesia para desqualificar as reivindicações feitas pelos que acabavam ficando fora do usufruto das benesses da nova sociedade burguesa. Na medida em que as explicações se tornaram insuficientes, foi necessário criar mecanismos para contemplar, em parte, as reivindicações dos excluídos. O Estado, enquanto um instrumento nas mãos da classe dominante (burguesia), passou a ser utilizado para tratar essa questão social no sentido de amenizar ou reduzir seus efeitos através de políticas sociais (NETTO, 1996). A expansão do acesso à educação, a criação de seguros sociais que amparavam os impossibilitados ao trabalho, a criação de programas de saúde pública, de programas de saneamento, de programas de acesso à habitação, de programas de assistência, entre outros, começam a tomar corpo como formas de enfrentamento da questão social, na Europa do século XIX (ROTTA, 2007). Estas “legislações sociais”, como por muitos foram chamadas, traziam um misto de concessão e de conquista, o que produz uma marca indelével na idéia de políticas sociais. Marca esta que vai acompanhá-la ao longo de toda a sua trajetória de discussão. Para os trabalhadores, as políticas sociais implementadas significaram o fruto de uma luta árdua pela conquista de direitos, luta esta feita com muito sangue e sacrifício (HOBSBAWM, 2002). Para a classe dominante, as políticas sociais apareciam como forma de apaziguar os conflitos e possibilitar novos ciclos de expansão do processo de acumulação do capital. No debate teórico a respeito das políticas sociais, podem ser identificadas algumas posições dominantes, sem desmerecer as demais. A primeira delas é a “Teoria da Cidadania”, para a qual a política social é inseparável da compreensão do processo de expansão da cidadania. A base de referência dessa compreensão encontra-se na obra de T.H. Marshall, classe social e cidadania. Para Marshall, na sociedade contemporânea, a cidadania é essencialmente um conjunto de direitos civis, políticos e sociais que devem estar acessíveis a todos os cidadãos (COIMBRA, 1994). A segunda é a abordagem marxista, que tem como referência os escritos de Karl Marx e dos pós-marxistas. Marx não apresenta uma teorização explícita e sistemática a respeito das políticas sociais, pois entendia que elas se constituíam em criações da burguesia, que controlava o Estado e utilizava as mesmas para cooptar, iludir e evitar os movimentos dos 157 trabalhadores. Na passagem para o século XX, afirma-se, entre os marxistas, a compreensão das políticas sociais como algo essencialmente funcional ao capitalismo, utilizadas para rebaixar os custos de produção, elevar a produtividade, manter níveis elevados de demanda, garantir a adesão e a docilidade dos trabalhadores. A partir da emergência do neoliberalismo e do conseqüente ataque às políticas sociais, grande parte dos autores de inspiração marxista passa a defender as políticas sociais como direitos dos trabalhadores, conquistados com um histórico de lutas e que devem ser ampliados e não reduzidos (COIMBRA, 1994). A terceira é a abordagem funcionalista, originária das idéias de Émile Durkheim e dos pós-durkheiminianos. Para os funcionalistas, a política social é parte do subsistema integrativo, isto é, o conjunto de instituições e papéis que se destinam a manter a harmonia e a solidariedade social. A política social existiria para aumentar o nível de integração, coesão e harmonia nas relações entre grupos e pessoas. Na sociedade moderna, as políticas sociais estariam fazendo o papel que nas sociedades anteriores destinava-se à família e à religião, dentro de um processo de “diferenciação estrutural”. Isto é, instituições modernas de assistência (centradas no Estado) substituem as tradicionais, centradas na sociedade civil. Com isso, as políticas sociais afirmaram-se como instrumentos para garantir a reprodução da sociedade e evitar maiores conflitos e transformações mais radicais (COIMBRA, 1994; BEHRING e BOSCHETTI, 2006). A quarta abordagem procede da teoria da convergência, originária dos estudos de Mishra, Galbraith, Clark Kerr e os teóricos da modernização. Estes autores consideram o desenvolvimento econômico e industrial como a tarefa fundamental das sociedades modernas e acreditam que é em torno dessa exigência central que a estrutura social se integra funcionalmente. Entendem as políticas sociais como exigência e conseqüência da economia e da tecnologia industrial. Na trajetória das sociedades, pouco importam as diferenças iniciais, pois, em longo prazo, todas as sociedades tendem a se encontrar num só lugar e a usar as mesmas estratégias. Nos estágios iniciais as políticas sociais até podem ser diferentes, pois variam as elites e as ideologias que conduzem o processo. Porém, nas medida em que o processo avança, as exigências funcionais da industrialização impõem políticas semelhantes a todas as sociedades, que são as políticas de treinamento e formação de mão-de-obra, políticas de atenção à saúde e políticas urbanas (COIMBRA, 1994). A quinta abordagem provém dos autores da ciência política contemporânea, especialmente norte-americanos e europeus (Lindblon, Dahl, Hall, entre outros). Para estes, a política social é uma arena onde uma pluralidade de atores, movida por uma multiplicidade de 158 causas, se encontra para transacionar. Estas interações envolvem o emprego de recursos de várias ordens e provenientes de múltiplos interesses. Os pluralistas vêem a política como uma instância não dependente da economia, mas como um campo sujeito a inúmeras influências sem uma determinação causal específica. Advogam a necessidade de estudar as realidades específicas para compreender cada caso particular de elaboração e execução de uma política (COIMBRA, 1994). A sexta abordagem provém das teorias econômicas (liberais, welfare economics, estudos macroeconômicos do gasto público) que consideram a política social como um instrumento de gestão econômica, utilizado de diferentes formas, de acordo com a proposta de política macroeconômica implantada. Preocupam-se com os “gastos sociais” e em saber como será o impacto dos mesmos na estrutura produtiva, nas condições de vida da população e nas finanças públicas (COIMBRA, 1994). A sétima abordagem provém dos recentes estudos a respeito do desenvolvimento, especialmente dos pensadores ligados à idéia de desenvolvimento sustentável, desenvolvimento humano e desenvolvimento regional. Para estes, as políticas sociais são elementos ativos e integrantes do próprio processo de desenvolvimento. As políticas sociais são fundamentais tanto para auxiliar na criação das condições para o crescimento econômico quanto para efetivar mecanismos que possibilitem ampliar, gradativamente, a qualidade de vida da população. Elas contribuem para expandir as liberdades dos sujeitos, para facilitar a participação ativa dos mesmos na sociedade, para ampliar a consciência de direitos e para incentivar o exercício da cidadania ativa (SEN, 2000; ROTTA, 2007). Uma oitava abordagem provém dos autores que consideram as políticas sociais como instrumentos privilegiados de transferência de renda e de garantia de acesso à riqueza social produzida. Para estes autores, a fase atual de desenvolvimento do capitalismo tem produzido contingentes crescentes de excluídos do acesso às possibilidades de participar do processo produtivo e, com isso, garantir a renda necessária para obter os bens e serviços indispensáveis a uma vida com relativa dignidade. Diante desta realidade, torna-se indispensável acionar mecanismos que criem as condições para que estes excluídos possam voltar a se inserir no processo produtivo e ter acesso aos bens e serviços, indispensáveis para o exercício da cidadania na fase atual do capitalismo (SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2004). Sabe-se que estas abordagens são apenas uma tentativa de mapear o universo de reflexão a respeito das políticas sociais, sem a pretensão de ser conclusiva. Ainda mais no período atual, em que as políticas sociais ocupam espaços privilegiados no debate acadêmico 159 e no cotidiano da vida social, especialmente dos brasileiros. Observam-se posições das mais variadas possíveis. Desde aqueles que as vêem como mecanismos de manutenção do clientelismo e da cooptação política, passando pelos que as entendem como gastos públicos de resultados duvidosos e chegando aos que as defendem como mecanismos de garantia de direitos e expansão da cidadania. A opção adotada por este texto vai nesta terceira direção, como se procurará demonstrar na seqüência, a partir da análise do caso concreto da região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul. As políticas sociais no Noroeste gaúcho A região Noroeste faz parte da última área a ser incorporada à então Província de São Pedro, atual Rio Grande do Sul. Somente em 1801, quando se concluiu o processo de troca, entre Portugal e Espanha, do território das Missões pela Colônia de Sacramento, é que a região passou a ser incorporada ao território português. Não se trata aqui de recuperar toda essa história, até porque os registros da mesma são fartos e de excelente qualidade.3 Neste período anterior à ocupação portuguesa, a região vivenciou a experiência das Reduções Jesuíticas, onde se pode encontrar as primeiras formas de proteção social experimentadas pela sociedade regional. A experiência missioneira trouxe para a região a compreensão dominante na Igreja Católica da época a respeito da forma de tratar o social, isto é, pelo viés social-assistencial, impregnado de uma visão mística que atribuía a origem dos problemas sociais à vontade de Deus. Os critérios da incapacidade física ou mental e do pertencimento à comunidade serviam para definir os beneficiados. A gestão da assistência estava integrada ao sistema de gestão da redução, geralmente confiado a autoridades civis recrutadas entre os próprios índios de mais “merecimento e prestígio” junto ao grupo (SCHALLENBERGER e HARTMANN, 1981). Tem-se claro que a definição dos pressupostos ideológicos da assistência estavam confiados, em última instância, à autoridade religiosa exercida pelo missionário jesuíta (ROTTA, 2007). Os conflitos pela posse do território, ocorridos durante o século XVIII, a conseqüente desagregação da experiência missioneira e a lenta reocupação pelos portugueses, feita ao longo de todo o século XIX até meados do século XX, geraram a emergência de uma nova forma societária que se constituiu de maneira “marginal” ao processo oficial. A “sociedade cabocla” que se estruturou na região, durante esse período de conflito e de transição para um 3 Para o estudo desta temática, pode-se consultar Pesavento, 1997; Zarth, 1997 e 2002; Rotta, 1999; Christensen, 2001 e, Cavalari, 2004. 160 novo modelo de colonização, trouxe uma nova forma de proteção social, essencialmente centrada na família. As famílias ampliadas eram as responsáveis pelo cuidado das pessoas que necessitassem de qualquer tipo de assistência, tais como órfãos, viúvas e portadores de deficiência. A visão mística dos problemas sociais ainda permanecia dominante. A partir do processo de colonização da região, com imigrantes europeus não-ibéricos e/ou seus descendentes, tem-se o início do estabelecimento de uma nova forma de proteção social centrada nas comunidades locais. Em razão da reduzida participação do Estado na dinâmica social da região, as próprias comunidades locais foram dando conta de organizar a prestação dos principais serviços, inclusive os sociais. É o caso da estrutura de atendimento à educação (via escolas paroquiais e confessionais), à saúde (com os hospitais comunitários), à cultura e ao lazer (com os clubes sociais e as sociedades líricas e recreativas), à religião (com as comunidades e capelas), à assistência (com as ações voluntárias, os orfanatos, os lares para idosos e os patronatos), ao financiamento à habitação (com as caixas comunitárias e as cooperativas), entre outros (ROTTA, 2007). Esta estrutura de serviços e formas de proteção social produzida pelas próprias comunidades locais, porém, não garantia que todos fossem atendidos. Eram atendidos aqueles que participavam da comunidade, estavam associados às instituições criadas, contribuíam para a sua manutenção ou eram “dignas” e “merecedoras” de receber a ajuda da comunidade. Geralmente, nessa “seleção dos beneficiados”, influíam critérios étnico-culturais e ligados à “ética do trabalho” (ROTTA, 1999; WEBER, 2002). Pode-se dizer que se retoma o viés social-assistencial no trato das manifestações da questão social. Até porque a influência das Igrejas Cristãs era muito forte na maioria das comunidades que se formaram na região a partir da colonização. Kreutz (1991) destaca que essa prática está ligada a um modelo de organização social vigente na Europa no início do período moderno e que foi transplantado e adaptado às condições locais pelos imigrantes e seus descendentes. No incipiente mercado de trabalho assalariado urbano, as medidas adotadas pelo governo federal em termos de legislação trabalhista e previdenciária, especialmente a partir de 1934, começaram a ter alguma repercussão, porém eram limitadas pela carência dos mecanismos de fiscalização por parte do Estado, pela dificuldade de organização dos 161 operários, pelo desconhecimento da legislação e pela mentalidade dos empresários4 e dos próprios trabalhadores5 (WEBER, 2002). Os funcionários de instituições públicas e os trabalhadores de empresas que possuíam um maior número de empregados tinham melhores condições de reivindicar os direitos sociais que começavam a ser instituídos no país. No caso dos primeiros, foi importante a criação do Instituto de Previdência do Estado (IPE)6, em 1931, que passou a congregar a antiga Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Funcionários Públicos do Estado e a concentrar as questões ligadas ao trabalho, previdência e assistência médica dos funcionários públicos estaduais (FEE, 1983). Na análise das condições de vida dos operários urbanos de Ijuí, nas décadas de 1930 e 1940, é possível constatar que alguns trabalhadores tinham acesso ao seguro de saúde e acidente de trabalho, à licença maternidade, à aposentadoria e ao financiamento para a construção da casa própria através dos IAP’s.7 Porém, esses direitos, garantidos pela legislação trabalhista, eram aplicados parcialmente e dependiam muito da fiscalização. Como os mecanismos de fiscalização eram precários, os direitos apareciam muito mais como decorrentes da “bondade” do patrão do que da luta dos trabalhadores (WEBER, 2002). Situação essa que não divergia muito do restante do estado e do país. As atividades agropecuárias e de economia familiar que ocupavam a maioria absoluta8 da população economicamente ativa da região permaneciam à margem das medidas adotadas pelos governos federal e estadual em relação aos trabalhadores urbanos. A medida de política social que mais atingiu essa população foi a nacionalização do ensino. Através dela, o governo federal buscava estender a educação elementar9 para toda a população brasileira, 4 O empresariado brasileiro, com pouca tradição no trato do trabalho livre, assimila com dificuldade os poucos direitos a que fazia jus a ainda incipiente classe operária que despontava. Em geral o empresariado brasileiro, no período de industrialização, é nitidamente conservador e muitas vezes reacionário. Sua atitude visa a impedir ou retardar a regulamentação dos direitos sociais já conquistados, ao ignorá-los na prática (CARMO, 1992). 5 Que tendiam a encarar os direitos trabalhistas como favores ou concessão dada pela bondade do patrão e não como direitos. 6 Pelo Decreto Estadual nº 4.842, de 08/08/1931. 7 Os Institutos de Aposentadoria e Pensão foram sendo criados a partir de 1937, especialmente pelas categorias de trabalhadores mais organizadas ou com maior número de integrantes, a exemplo dos ferroviários, bancários, comerciários, transportes e cargas, industriários e marítimos. Esses institutos financiavam a habitação, pois a entendiam como uma “forma de investimento lucrativo” (FEE, 1983). No caso de Ijuí, Weber (2002) destaca a presença do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Trabalhadores da Indústria (IAPI). Esses institutos foram unificados, em 1967, através da criação do Instituto Nacional de Previdência Social. 8 Pelo Censo de 1950, por exemplo, as atividades urbanas do município de Santa Rosa ocupavam apenas 8% da população economicamente ativa do município (ROTTA, 1999, p. 71). 9 Na Reforma Capanema, de 1932, entendia-se por Educação Elementar aquela compreendida pela Escola Primária, ou seja, do 1º ao 5º ano. Maiores detalhes vide TEIXEIRA, l997. 162 porém, a partir de um ideário nacionalista, onde se destacava o ensino em língua nacional, o sentimento patriótico, o civismo, a moralidade e a aquisição de habilidades mínimas em escrita, leitura e cálculo matemático. Na proposta do governo federal, atribuía-se aos estados a função de expandir as escolas públicas, especialmente primárias e profissionalizantes, e criar uma estrutura capaz de organizar a política de educação, estabelecer normatizações e fiscalizar as atividades ligadas à educação. Para dar conta dessas atribuições, o governo estadual criou a Secretaria de Educação e Saúde Pública10 e o Conselho Estadual de Educação.11 No âmbito da secretaria foram criados órgãos de administração especial, encarregados das atribuições específicas que o contexto exigia, tais como o Departamento de Educação Primária e Normal, a Superintendência do Ensino Profissional, a Superintendência do Ensino Secundário, o Departamento de Educação Física e a Diretoria de Estatística Educacional (FEE, 1983). Para implantar sua política nas diversas regiões do estado, o governo criou as Delegacias Regionais de Ensino, dividindo o estado em circunscrições escolares, abrangendo, cada uma delas, um número reduzido de municípios, a fim de facilitar as funções técnicas e administrativas. Essas delegacias eram coordenadas por um delegado nomeado pelo governador e acompanhadas por orientadores de educação elementar. Instituiu ainda a carreira do magistério primário público, com o objetivo de disciplinar as formas de acesso ao magistério público, organizar a carreira e prover as escolas de pessoal minimamente qualificado. Também criou o Plano de Estudos das Escolas Normais Rurais com o objetivo de disciplinar a formação de professores para as escolas da área rural a partir do meio social em que viviam (FEE, 1983). A proposta de nacionalização do ensino gerou, na região Noroeste do RS, um intenso conflito12 com as escolas comunitárias confessionais que haviam sido criadas pelos colonizadores. Nessas escolas a direção pedagógica e os professores eram definidos pela própria comunidade; os custos eram bancados pelas famílias; as aulas eram ministradas na língua falada na comunidade e os conteúdos eram voltados para a realidade local. A proposta de nacionalização acabou criando escolas públicas gratuitas em muitas dessas comunidades, 10 Criada pelo Decreto Estadual nº 5.969, de 26/06/1935 (FEE, 1983). 11 Criado pelo Decreto Estadual nº 6.105, de 25/11/1935, como órgão de caráter consultivo e encarregado de traçar as diretrizes do ensino na esfera estadual (FEE, 1983). 12 Existe uma boa literatura que analisa este conflito. Entre as quais se destaca Kreutz (1991). 163 que, não raras vezes, eram boicotadas e vistas como forma de intromissão, espionagem e controle ideológico por parte do governo nessas comunidades (BERWANGER, 2005). A partir da década de 1950 a região Noroeste do RS passou a enfrentar um processo de reestruturação que foi transformando sua estrutura sócio-econômica e definindo uma nova forma de inserção na dinâmica do estado e do país. Paralelo a este processo de integração mais acentuada a um mercado nacional, a região passou a enfrentar dificuldades para reproduzir o modelo implantado com a colonização. A alternativa encontrada pelas lideranças locais foi a modernização da agricultura, a agroindustrialização e a conquista de novos mercados (ROTTA, 2007). Soluções estas que iam ao encontro de propostas semelhantes defendidas em nível estadual e nacional (MÜLLER, 1979; PESAVENTO, 1997; BRUM, 2003). A consolidação do modelo da modernização da agricultura e da agroindústria evidenciou a insuficiência das antigas formas de proteção social estruturadas na região. As comunidades locais passaram a demandar uma maior intervenção do Estado, em suas esferas estadual e nacional, para dar conta das novas manifestações da questão social. A partir da década de 1950 ampliou-se, de forma significativa, a rede de escolas públicas, tanto no meio rural quanto no urbano. Essa ampliação está vinculada a uma política de expansão do ensino básico de caráter público e gratuito levada a efeito pelo governo estadual (FEE, 1983) e pelo governo federal (ARANHA, 1989) com o objetivo de qualificar a população para inseri-la no processo de desenvolvimento em curso no estado e no país. A criação de um grande número de novos municípios, a partir da década de 1950, também contribuiu para a expansão das escolas públicas gratuitas (WEBER, 2002). Para qualificar a mão-de-obra necessária ao novo momento que a sociedade regional vivia e para atender às “aspirações das lideranças comunitárias”, ao “interesse das autoridades públicas” e à “aspiração dos estudantes de nível médio” (BRUM, 1998) constituiu-se uma estrutura de escolas secundárias, de ensino técnico e de ensino superior nas principais13 cidades da região. Como a ação do Estado foi insuficiente para dar conta dessas novas necessidades, acabou predominando a atuação das Fundações Comunitárias e das Instituições Religiosas (BROSE, 2005; BRUM, 1998). Os serviços de saúde, em sua maioria, continuaram a ser prestados pelos hospitais comunitários. Porém, esses passaram a receber subvenções dos governos estadual e federal, 13 Como é o caso de Cruz Alta, Panambi, Ibirubá, Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga, Ijuí, Três Passos, Santa Rosa, Três de Maio, entre outras. 164 atendendo a uma orientação do “modelo médico-assistencial privatista” (RABELO, 1994), que passou a vigorar no país durante o regime militar. Por esse modelo, tocava ao INPS (Instituto Nacional de Previdência Social)14 o atendimento dos trabalhadores segurados (aqueles que estavam ao abrigo do sistema formal de trabalho) e às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde o atendimento aos segmentos da população marginalizada do sistema produtivo formal. A lógica que orientava os dois tipos de atendimento era o repasse de recursos para a compra de serviços de terceiros (RABELO, 1994). A região passou a experimentar a lógica que geria a política social pública durante o regime militar, fundada no tratamento técnico, no direito como concessão do Estado, na despolitização, na centralização, no controle e na privatização do espaço público (ROTTA, 2007). Na área da habitação, registra-se a ampliação do acesso aos programas de aquisição da casa própria a partir da criação do BNH,15 pois a atuação da Fundação da Casa Popular16 e sua correspondente gaúcha, a Companhia de Materiais Pró-Casa Popular, foram inexpressivas na região. A inexistência de centros urbanos mais expressivos na região antes da década de 1960 pode servir como indicativo para explicar a reduzida atuação dos órgãos estaduais e federais, mesmo que a habitação já ocupasse lugar importante nos debates a respeito das políticas públicas (FEE, 1983; VILLAÇA, 1986). A partir da afirmação do modelo da modernização e da criação de um mercado de trabalho urbano em torno das indústrias e dos serviços que lhe dão sustentação, cresce a atuação, na região, do BNH. Essa atuação se deu através da COHAB,17 que organizou (em convênio com os municípios) e financiou a implantação de núcleos habitacionais populares nos principais municípios da região e atuou no financiamento direto, via Caixa Econômica Federal, de moradias para as diferentes classes sociais.18 Os municípios também passaram a conveniar com o BNH para a implantação de infra-estrutura urbana, especialmente na 14 Em 1967, o Governo Federal unificou os vários institutos existentes (antigos IAPs) através da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que passou a ser o responsável pela assistência médica individual, curativa e privatista dos trabalhadores pertencentes à economia formal (RABELO, 1994). 15 Criado pela Lei Federal nº 4.380, de 21 de agosto de 1964 (VILLAÇA, 1986, p. 64-5). 16 A Fundação da Casa Popular foi criada em 1º de maio de 1946, pelo presidente Gaspar Dutra. A partir dela criaram-se as Companhias Estaduais, tais como a Companhia de Materiais Pró-Casa Popular, no Rio Grande do Sul, em 1947, no governo de Walter Jobim. 17 As Companhias de Habitação Popular (COHAB’S) foram criadas a partir da publicação da Lei Federal nº 4.830, de 21 de agosto de 1964. Suas ações eram direcionadas aos estados e municípios, constituindo-se em braço operacional do Sistema Financeiro de Habitação (www.habitacao.rs.gov.br). 18 Em torno de 50% das moradias financiadas pelo BNH se destinaram as famílias com renda acima de cinco salários mínimos (VILLAÇA, 1986). 165 estrutura viária e no saneamento básico.19 Essa atuação dos mecanismos estatais funcionou como instrumento importante para ativar a economia regional e para produzir uma imagem favorável ao próprio governo, visto como quem concede esses empréstimos, financiamentos e incentivos. A consolidação de um mercado de trabalho assalariado urbano gerou uma organização mais intensa dos sindicatos e associações profissionais, introduzindo uma nova dinâmica nas relações de trabalho. O conhecimento dos direitos e a pressão para efetivá-los se tornaram mais intensos. Porém, esse momento coincidiu com a implantação do regime militar, o que acabou limitando a obtenção de maiores conquistas pelos trabalhadores. O empresariado local passa a valer-se da legislação trabalhista e previdenciária como estratégias de controle e de legitimação do processo de acumulação capitalista. Aliás, em clima de repressão, muitas vezes, nem essa legislação era cumprida. As políticas sociais voltadas ao trabalho ficaram restritas à intensificação dos cursos profissionalizantes nas escolas públicas e ao cumprimento da legislação trabalhista e previdenciária. A política de assistência social que se construiu neste período foi marcada pela lógica impressa pelos “gabinetes de primeira dama”, pois a maioria dos municípios da região não possuía uma secretaria específica para cuidar da assistência. A área da assistência social estava ligada diretamente ao gabinete da primeira dama e os programas eram nitidamente assistencialistas. Por esses gabinetes, passava a lógica impressa pela LBA (Legião Brasileira de Assistência)20 na concepção e na gestão da assistência. Essa situação vivida pela assistência em nível regional seguia uma lógica nacional, pois a própria Secretaria de Assistência Social, em nível federal, tinha a LBA, ligada ao Gabinete da Primeira Dama do país, como a grande executora dos serviços de assistência social. E sua ação era marcada por uma lógica fragmentada e assistencialista (SPOSATI et al., 1998). Sposati (1988) mostra que a presença da LBA, através de seus programas e projetos, era forte em quase todos os municípios brasileiros, dando a tônica da assistência social. A partir da segunda metade da década de 1980, a região passa a enfrentar um processo de crise do modelo de desenvolvimento que havia adotado a partir da década de 1960. Essa crise está ligada a fatores internos de realização do próprio modelo, na região, mas também a 19 Em torno de 30% dos recursos do BNH foram investidos em Desenvolvimento Urbano, entre os anos de 1974 e 1983, através de convênios com os estados e municípios (VILLAÇA, 1986). 20 A Legião Brasileira de Assistência (LBA) foi criada em 1942, pela então Primeira Dama do país, Darcy S. Vargas, com o objetivo de assistir às famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial. Ao acabar a guerra, a LBA foi transformada numa instituição de assistência em geral e acabou polarizando a política de assistência impressa pelo governo (SPOSATI et al., 1998, p. 87). 166 fatores externos, decorrentes da crise do capitalismo e do socialismo real, da conjuntura vivida pela sociedade brasileira e pelo estado gaúcho (ROTTA, 2007). Este novo cenário de crise que a região viveu evidenciou o esgotamento das estratégias de políticas sociais utilizadas no momento anterior. A crise econômica afetou a capacidade de sustentação das Fundações Comunitárias e Instituições Religiosas que atuavam na área da educação e da saúde. A diminuição do poder aquisitivo da população fez com que um contingente maior de pessoas necessitasse da ação do Estado para dar conta de suas necessidades de saúde, educação e habitação. Esse aumento da necessidade da ação do Estado contrastava com um cenário onde essa ação tendia a diminuir por força do esgotamento da capacidade dos governos federal e estadual continuarem atuando no financiamento do processo produtivo e das políticas sociais e da emergência de uma nova postura em relação ao papel do Estado. Nova postura essa decorrente da emergência das políticas de recorte neoliberal (ROTTA, 2007). O esgotamento da capacidade de financiamento e a emergência das políticas de recorte neoliberal geraram uma contenção dos investimentos públicos em áreas vitais para a sustentação das políticas sociais que haviam se constituído na região no momento anterior. As ações na área da assistência social eram sustentadas pelas verbas estaduais e federais, caso dos programas mantidos pela LBA, dos programas específicos para menores carentes, idosos, portadores de necessidades especiais, entre outros. As ações existentes na área da habitação e do saneamento básico dependiam diretamente dos financiamentos obtidos junto ao BNH e seu braço estadual, caso da COHAB. As ações na área do trabalho, embora quase sempre reduzidas ao incentivo a cursos profissionalizantes, também dependiam de verbas estaduais e federais. As áreas da saúde e da educação, com maior estrutura e tradição de ação regional, também sentiram o corte dos investimentos públicos e tiveram ameaçados muitos de seus serviços ou a sua qualidade de atendimento (ROTTA, 2007). Neste novo cenário é que se passa a observar mais os diferenciais entre os municípios em termos de estabelecer prioridades e organizar sua atuação na área das políticas sociais. O novo marco legal, estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e pelas legislações complementares, efetivou a descentralização como estratégia básica de organização da ação do Estado para a área das políticas sociais. Com isso o protagonismo do poder local torna-se essencial na produção dos diferenciais. Aspectos estes que serão tratados no tópico a seguir. 167 Políticas sociais como instrumentos de inclusão e expansão da cidadania no Noroeste gaúcho Neste estudo, analisam-se as opções feitas pelos quatro maiores municípios do Noroeste Gaúcho (Cruz Alta, Santo Ângelo, Ijuí e Santa Rosa), durante a década de 1990 e que acabaram gerando diferenciais importantes em termos das políticas sociais de educação, saúde, habitação, trabalho e assistência social. Toma-se como referência os Planos Plurianuais elaborados para o período (1991 a 1993, 1994 a 1997 e 1998 a 2001) e as execuções orçamentárias realizadas durante a década de 1990. Na seqüência, busca-se relacionar as opções e os investimentos realizados com os resultados obtidos pelos municípios em termos de indicadores de desenvolvimento. Na análise dos Planos Plurianuais, percebeu-se um acréscimo de quantidade e de qualidade na definição de prioridades para as cinco áreas de políticas sociais estudadas. A redação se tornou mais clara e a definição de prioridades mais articulada com as outras áreas e mais voltada para uma tentativa de superar os entraves enfrentados pela sociedade local, especialmente os decorrentes da crise do modelo de desenvolvimento fundado na modernização da agricultura e da agroindústria (ROTTA, 2007). As políticas sociais foram, aos poucos, superando um viés centrado no assistencialismo e na realização de obras materiais, para ingressarem na perspectiva do direito e do investimento nas pessoas. A compreensão de desenvolvimento foi se deslocando de uma mera reprodução, na esfera local, daquilo que ocorria em nível nacional, para uma postura mais ativa e propositiva, em termos de elaboração de projetos a partir das necessidades e demandas locais, com a participação dos atores locais (ROTTA, 2007). Os municípios de Santa Rosa e de Ijuí foram os que assumiram, de forma mais clara e consistente, os princípios da descentralização e da participação da sociedade na gestão das políticas sociais. As áreas de educação e de saúde foram as que receberam maior atenção dos municípios, seguidas pelas de habitação, assistência social e trabalho. A área de trabalho foi a que menos recebeu importância, sendo quase que inexistente em termos de estabelecimento de prioridades, nos quatro municípios e nos três Planos Plurianuais. Esta situação contrasta com a importância do trabalho em termos de viabilização do acesso à renda e aos instrumentos para a conquista da cidadania (ROTTA, 2007). Na análise dos investimentos realizados, constata-se que as políticas sociais de educação e saúde também foram as que receberam o maior contingente de recursos ao longo 168 de toda a década e nos quatro municípios. Na seqüência, vêm a assistência e a previdência, para depois encontrarmos a habitação, o urbanismo e a área do trabalho. Na área do trabalho, pode-se perceber que os recursos investidos são irrisórios, não se encontrando, no município de Ijuí, nenhum investimento ao longo de toda a década. Os dados podem ser observados na tabela a seguir. Tabela 1- Montante dos investimentos realizados segundo as áreas de políticas sociais selecionadas, tendo presente os períodos dos três Planos Plurianuais analisados. 1991 CRUZ ALTA 2.773.542,00 5.018.267,29 * 0,00 666.219,16 1991 IJUÍ 4.896.022,38 1.227.806,29 1.121.041,75 0,00 2.360.121,81 1991 SANTA ROSA 5.386.057,78 1.339.141,01 2.050.031,20 259.654,75 2.284.894,04 1991 SANTO ÂNGELO 5.237.346,91 3.149.534,40 621.792,03 0,00 2.132.502,52 1992 CRUZ ALTA 2.206.318,32 6.239.857,71 35.154,30 0,00 557.677,66 1992 IJUÍ 4.151.086,06 747.120,48 927.518,44 0,00 1.967.394,67 1992 SANTA ROSA 3.803.846,71 923.631,08 3.768.948,96 150.684,81 2.017.550,00 1992 SANTO ÂNGELO 5.087.189,19 3.329.248,84 610.336,88 0,00 2.151.798,87 1993 CRUZ ALTA 6.012.671,97 5.471.684,50 100.115,30 0,00 5.219.148,23 1993 IJUÍ 3.108.972,05 286.012,69 1.400.683,71 0,00 2.220.471,64 1993 SANTA ROSA 3.877.028,26 1.255.724,24 1.407.943,66 268.510,41 1.940.596,75 1993 SANTO ÂNGELO 3.215.719,60 1.249.830,86 274.748,84 103.200,64 2.092.361,83 *Os dados de saúde e saneamento estavam incluídos na Habitação e Saneamento e Assistência e Previdência 1994 IJUÍ 6.451.104,95 861.195,26 2.556.153,40 0,00 3.929.246,40 1994 SANTA ROSA 5.686.589,72 1.676.611,22 5.983.014,10 252.115,11 5.122.682,46 1994 SANTO ÂNGELO 4.851.681,57 2.062.255,29 1.600.755,54 302.274,71 3.116.680,85 1995 CRUZ ALTA 5.097.092,95 8.342.040,39 832.377,20 2.542.758,23 3.109.065,94 1995 IJUÍ 7.928.449,43 258.989,58 3.783.022,24 0,00 5.840.266,02 1995 SANTA ROSA 10.566.291,75 4.614.569,85 20.457.806,40 319.360,02 7.599.490,71 1995 SANTO ÂNGELO 8.505.327,66 3.681.497,03 2.645.039,57 487.892,07 5.226.024,31 1996 CRUZ ALTA 7.116.271,14 7.358.502,83 1.710.782,25 2.529.286,90 3.058.901,44 1996 IJUÍ 9.810.725,99 696.711,46 4.697.735,35 0,00 6.104.066,17 1996 SANTA ROSA 13.218.101,38 4.445.395,42 23.770.285,98 863.463,79 7.804.316,84 1996 SANTO ÂNGELO 10.256.865,94 3.730.430,89 2.976.909,51 593.790,78 5.979.421,98 1997 CRUZ ALTA 8.346.772,42 7.161.141,09 2.170.715,11 2.332.438,99 2.431.896,63 1997 IJUÍ 9.043.997,37 902.185,42 4.913.304,80 0,00 6.776.209,67 1997 SANTA ROSA 13.156.211,18 2.642.781,16 22.344.915,03 1.126.104,59 7.759.484,85 1997 SANTO ÂNGELO 8.696.520,06 2.816.361,86 2.840.630,49 680.721,39 5.517.498,21 Ano Município Educ. e Cult. Hab. e Urb. Saúde e San. Trabalho Assist. e Prev. 169 Ano Município Educ. e Cult. Hab. e Urb. Saúde e San. Trabalho Assist. e Prev. 1998 CRUZ ALTA 12.422.495,79 3.918.921,85 3.373.430,90 2.935.376,84 1998 IJUÍ 10.945.639,42 1.390.731,46 8.023.828,39 0,00 2.908.388,47 6.880.518,07 1998 SANTA ROSA 13.805.246,74 2.942.540,02 23.096.174,31 1.077.859,91 7.619.190,74 1998 SANTO ÂNGELO 14.991.019.66 5.370.167,20 5.140.643,15 512.396,70 6.516.226,72 1999 CRUZ ALTA 13.177.558,45 6.554.197,54 4.169.684,78 1.438.429,41 2.394.408,90 1999 IJUÍ 10.123.859,22 1.819.382,32 6.929.933,31 0,00 5.754.128,82 1999 SANTA ROSA 12.861.254,03 2.914.262,55 20.048.069,10 1.039.853,26 2.334.112,87 1999 SANTO ÂNGELO 11.487.682,65 3.876.799,61 5.066.053,91 444.683,17 5.756.356,75 2000 CRUZ ALTA 10.504.656,30 6.809.771,44 4.842.102,01 1.389.526,50 1.699.046,02 2000 IJUí 15.016.887,85 2.669.216,28 9.289.053,51 0,00 5.613.362,01 2000 SANTA ROSA 13.090.695,69 2.517.974,84 16.747.944,99 738.104,25 5.759.754,57 2000 SANTO ÂNGELO 13.150.723,02 2.659.981,99 5.934.025,01 409.073,28 5.863.370,01 Fonte: ROTTA, 2007. Reorganizadas pelo autor. Se fizermos um comparativo entre o primeiro e o último ano da década, podemos observar as principais mudanças ocorridas nos respectivos municípios e as principais tendências observadas. A tabela abaixo demonstra os dados. Tabela 2- Montante dos investimentos realizados segundo as áreas de políticas sociais selecionadas. Período 1991 a 2000. Ano Município Educ. e Cult. Hab. e Urb. Saúde e San. Trabalho Assist. e Prev. 1991 CRUZ ALTA 2.773.542,00 5.018.267,29 * 0,00 666.219,16 1991 IJUÍ 4.896.022,38 1.227.806,29 1.121.041,75 0,00 2.360.121,81 1991 SANTA ROSA 5.386.057,78 1.339.141,01 2.050.031,20 259.654,75 2.284.894,04 1991 SANTO ÂNGELO 1991 TOTAL 5.237.346,91 18.292.969,07 3.149.534,40 10.734.748,99 621.792,03 3.792.864,98 0,00 259.654,75 2.132.502,52 7.443.737,53 2000 CRUZ ALTA 10.504.656,30 6.809.771,44 4.842.102,01 1.389.526,50 1.699.046,02 2000 IJUÍ 15.016.887,85 2.669.216,28 9.289.053,51 0,00 5.613.362,01 2000 SANTA ROSA 13.090.695,69 2.517.974,84 16.747.944,99 738.104,25 5.759.754,57 2000 SANTO ÂNGELO 13.150.723,02 2.659.981,99 5.934.025,01 409.073,28 5.863.370,01 51.762.962,86 14.656.944,55 36.813.125,52 2.536.704,03 18.935.532,61 2000 TOTAL *Os dados de saúde e saneamento estavam incluídos na Habitação e Saneamento e Assistência e Previdência Fonte: ROTTA, 2007, p. 269. Comparando-se o total de recursos investidos nas cinco áreas em 1991 com o total de recursos investidos em 2000, constata-se que o município de Santa Rosa é o que apresenta o maior crescimento, tanto em valores totais (de R$ 9.474.778,78 para R$ 38.854.474,34) quanto em percentuais (310,08%). Na seqüência, vem o município de Ijuí, que também apresenta um expressivo aumento dos valores totais (de R$ 9.604.992,23 para R$ 32.588,519, 65) e dos percentuais (239,28%) investidos. O município de Santo Ângelo apresenta um 170 aumento um pouco menor dos valores totais (de R$ 11.141.175,86 para R$ 28.017.173,31) e dos percentuais (151,47%). O município de Cruz Alta é o que apresenta o menor valor investido (de R$ 8.458.028,45 para R$ 25.245.102,27), porém supera Santo Ângelo em termos de aumento de percentuais investidos (198,47% contra 151,47%). Essa situação apresentada por Santa Rosa e Ijuí, na comparação com Santo Ângelo e Cruz Alta, está sustentada nas prioridades e opções feitas na elaboração dos seus Planos Plurianuais (ROTTA, 2007). Na análise geral, percebe-se que o aumento dos investimentos em políticas sociais é significativo para o período, pois em todos os municípios ultrapassa a ordem de 150%, sendo mais expressivo em Santa Rosa, com um aumento de 310,08%. Esse crescimento dos investimentos torna-se ainda mais significativo ao considerar-se que se trata de uma década de crise do Estado, de ajuste fiscal e de implantação de políticas de recorte neoliberal. Aspectos que provocaram um refluxo na compreensão dos direitos conquistados ao longo da década de 1980. Esse crescimento significativo dos investimentos em políticas sociais pode ter sido uma forma que os municípios da região encontraram para impulsionar uma economia que se encontrava num momento de crise, pois, nos países em desenvolvimento, as políticas sociais podem funcionar como impulsionadoras do processo de desenvolvimento, na medida em que ampliam as oportunidades, expandem as capacidades humanas, melhoram as habilidades produtivas das pessoas, melhoram a qualidade de vida e proporcionam um ambiente favorável ao crescimento econômico com maior eqüidade social (SEN, 2000). Esta inferência pode ser evidenciada ao se analisar se os investimentos se traduziram em melhoria da qualidade de vida e em crescimento econômico para os municípios da região. Para verificar essa relação, utilizaram-se os indicadores do IDH-M21 e do IDESE,22 especialmente no quesito renda e na composição total dos indicadores.23 Nos aspectos relacionados à renda, o IDH-M trabalha com os indicadores de renda per capita, pobreza e desigualdade e a porcentagem de renda apropriada pelos diferentes estratos da população. O quadro abaixo indica os três primeiros. 21 O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) é elaborado como base no IDH, desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Maiores detalhes, consultar www.pnud.gov.br 22 O Índice de Desenvolvimento Sócio-Econômico (IDESE) é elaborado pela Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul e está disponível a partir de 1990, para todos os municípios gaúchos. Maiores detalhes, consultar www.fee.tche.br 23 Uma análise mais detalhada pode ser encontrada em ROTTA, 2007. 171 Tabela 3- Indicadores de renda, pobreza e desigualdade, 1991 e 2000. INDICADORES Renda per capita Média (R$ de 2000) Proporção de Pobres (%) Índice de Gini CRUZ ALTA 1991 2000 233,2 344,4 33,9 22 0,59 0,6 IJUÍ 1991 224,4 33,2 0,57 2000 332,1 21,2 0,57 SANTO ÂNGELO 1991 2000 232,4 330,5 32,2 22,4 0,58 0,58 SANTA ROSA 1991 2000 218,3 309,4 34,1 19,4 0,57 0,56 Fonte: ROTTA, 2007, p. 279. Percebe-se que os quatro municípios conseguiram aumentar sua renda per capita média em mais de 40% no período. Os maiores acréscimos ficaram por conta de Ijuí, com 47,99% e Cruz Alta, com 47,68%. Os menores ficaram por conta de Santa Rosa, com 41,73% e Santo Ângelo, com 42,21%. Comparando-se com a situação verificada no estado do RS, percebe-se que o aumento, em percentual, ocorrido na região foi maior (no estado verificou-se um aumento médio de 36,89%), porém, a renda per capita média da mesma (329,1) fica um pouco abaixo da média estadual (357,7) e nenhum dos municípios atinge a média estadual. Isso demonstra que a região cresceu economicamente mais que a média estadual, mas não o suficiente para superar a diferença24 entre a sua média de renda per capita e a média estadual. Esse crescimento econômico aponta para uma perspectiva de retomada do desenvolvimento após a profunda crise da década de 1980. Em relação à proporção de pobres (percentual sobre a população total), tem-se uma redução significativa nos quatro municípios. A maior redução ficou por conta de Santa Rosa, com 14,7 pontos percentuais, vindo na seqüência Ijuí, com 12, Cruz Alta, com 11,9, e Santo Ângelo, com 9,8. Santa Rosa, que apresentava a maior proporção de pobres em 1991 (34,1%), passa a apresentar a menor em 2000 (19,4%). Santo Ângelo, que apresentava a menor proporção de pobres em 1991 (32,2%), passa a apresentar a maior em 2000 (22,4%). Comparando-se com a situação estadual, constata-se que a redução média regional (12,1 pontos percentuais) foi maior que a estadual (9,1 pontos percentuais), porém somente o município de Santa Rosa consegue ter menos pobres do que a média estadual (que ficou em 19,7% da sua população em 2000). Esse desempenho apresentado por Santa Rosa evidencia que a estratégia de priorização das políticas sociais na elaboração dos Planos Plurianuais e na execução orçamentária apresentou resultados importantes. 24 Essa diferença era de 15,07%, em 1991, e foi reduzida para 8,69%, em 2000. 172 Em relação ao Índice de Gini, verifica-se que Ijuí e Santo Ângelo permanecem com o mesmo índice de 1991, respectivamente, 0,57 e 0,58. O município de Cruz Alta piora seu indicador, ao passar de 0,59 para 0,6. Santa Rosa melhora seu indicador, ao passar de 0,57 para 0,56. Essa melhora do Índice de Gini obtida por Santa Rosa tem referência direta com a priorização das políticas sociais, aspecto já destacado no parágrafo anterior. Porém, para Cruz Alta, não se pode fazer a mesma afirmação. Mesmo aumentando seus investimentos orçamentários em políticas sociais, os resultados em termos de Índice de Gini pioram, no período analisado. Essa situação remete à busca de outros termos de comparação que podem estar relacionados à forma como os investimentos são realizados. Ao se analisar a diferença entre os Planos Plurianuais desses dois municípios, estabelecidos para a década, pode-se sentir maior clareza e consistência nos apresentados por Santa Rosa. Sabe-se que não é um argumento suficiente e os recursos para depurá-lo são precários, mas trata-se de um aspecto que deve ser considerado na busca de uma explicação para essa diferença. Ao se comparar o desempenho demonstrado pelos quatro municípios com a situação estadual, percebe-se que apenas Cruz Alta fica com um Índice de Gini pior do que a média estadual, que permaneceu em 0,59 durante a década analisada. Isso demonstra que a região possui uma renda melhor distribuída entre seus estratos de população do que a média estadual. Também evidencia que a região apresentou avanços significativos durante a década de 1990, em termos de crescimento da renda per capita e da diminuição da proporção de pobres. Pelo menos, esse segundo aspecto possui uma relação direta com a priorização das políticas sociais analisadas. Entre os mecanismos de distribuição de renda, o acesso à educação, à saúde e ao saneamento, à habitação e urbanização, ao trabalho e à assistência e previdência, constituemse em ferramentas fundamentais. A análise dos percentuais da renda apropriada pelos diferentes estratos da população pode trazer novos elementos para a análise. Tabela 4- Porcentagem da renda apropriada por estratos da população, 1991 e 2000. PORCENTAGEM 20% mais pobres 40% mais pobres 60% mais pobres 80% mais pobres 20% mais ricos CRUZ ALTA 1991 2000 3,1 2,6 9,1 8,6 19 18,5 36,6 36 63,4 64 IJUÍ 1991 3,1 9,4 19,7 37,9 62,1 2000 2,4 8,9 19,8 38,8 61,2 SANTO ÂNGELO 1991 2000 2,8 2,3 8,9 8,4 19,3 18,7 38,1 37,4 61,9 62,6 SANTA ROSA 1991 2000 3 2,8 9,3 9,8 19,8 21 37,9 39,9 62,1 60,1 173 Fonte: ROTTA, 2007, p. 281. Os dados demonstram que os 20% mais pobres da população diminuíram sua participação na apropriação da renda nos quatro municípios, sendo de forma mais intensa em Ijuí, Cruz Alta e Santo Ângelo. Fato semelhante ocorre em nível estadual, porém com menor intensidade. Essa situação demonstra que, mesmo havendo uma priorização das políticas sociais, nos quatro municípios e durante a década analisada, e um conjunto de proposições em seus Planos Plurianuais direcionadas a esse segmento, elas não foram suficientes para evitar a perda de renda por parte dessa população mais pobre. Tomando-se como referência os 40% mais pobres, percebe-se que a apropriação da renda por este estrato da população diminui em Cruz Alta, Ijuí e Santo Ângelo, mas aumenta em Santa Rosa. Constata-se, também, que apenas Santa Rosa acompanha a tendência estadual. Com isso, pode-se perguntar se as políticas sociais implementadas por Santa Rosa constituíram-se num diferencial em relação aos outros três municípios e passaram a ter uma ação mais efetiva a partir desse estrato da população ou se foram outros fatores que levaram a esse resultado diferenciado obtido por Santa Rosa? A seqüência da análise pode trazer novas considerações e auxiliar na resposta dessa questão. Tendo-se como referência os 60% mais pobres, constata-se que a apropriação da renda por esse estrato da população diminui em Cruz Alta e Santo Ângelo, mas aumenta em Santa Rosa e Ijuí, os dois últimos acompanhando a tendência estadual. A situação de Santa Rosa se consolida em termos de ampliar o acesso à renda também a esse estrato da população. A novidade agora é a inclusão de Ijuí como município em que a apropriação da renda aumenta entre os 60% mais pobres. A pergunta anteriormente feita a Santa Rosa pode agora ser dirigida a Ijuí: será que as políticas sociais tiveram uma ação mais efetiva a partir desse estrato da população ou foram outros fatores que levaram a uma maior distribuição da renda? Tomando-se como referência os 80% mais pobres, percebe-se que a apropriação da renda diminui em Cruz Alta e Santo Ângelo, acompanhando a tendência estadual, e aumenta em Santa Rosa e Ijuí. A tendência estadual agora se inverte e a situação de Santa Rosa e Ijuí se consolida em termos de ampliação do acesso à renda aos estratos mais pobres da população. Com isso, pode-se considerar que as políticas sociais previstas nos Planos Plurianuais de Cruz Alta e Santo Ângelo foram menos eficientes do que as de Santa Rosa e Ijuí em termos de ampliação do acesso à renda aos estratos mais pobres da população. 174 Ao tomar-se como referência os 20% mais ricos, consolida-se a tendência já constatada anteriormente. Em Santo Ângelo e Cruz Alta, os 20% mais ricos ampliam a sua “fatia” na apropriação da renda municipal, acompanhando a tendência estadual. Em Santa Rosa (de forma mais significativa) e em Ijuí, esses 20% mais ricos diminuem sua “fatia” na apropriação da renda municipal. Essa situação deixa claro que Santa Rosa (de forma mais significativa) e Ijuí produziram, na década de 1990, um diferencial em termos de estratégias de desenvolvimento e de superação da crise vivida na década de 1980 e que grande parte desse diferencial se encontra na forma como pensaram e a que estratos da população direcionaram, prioritariamente, as políticas sociais. Tabela 5- Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, 1991 e 2000. ÍNDICES IDH-M Educação Longevidade Renda CRUZ ALTA 1991 2000 0,758 0,825 0,856 0,92 0,734 0,807 0,683 0,748 IJUÍ 1991 0,748 0,847 0,72 0,676 2000 0,803 0,926 0,742 0,742 SANTO ÂNGELO 1991 2000 0,762 0,821 0,851 0,934 0,752 0,789 0,682 0,741 SANTA ROSA 1991 2000 0,747 0,831 0,844 0,932 0,724 0,832 0,672 0,73 Fonte: ROTTA, 2007, p. 283 Constata-se que os quatro municípios melhoraram seus indicadores, em relação a 1991, nos três quesitos que compõem o IDH-M e, por conseqüência, o seu próprio indicador. As melhoras mais expressivas aconteceram em relação à educação, pois os quatro municípios ficaram em patamares superiores a 0,92, bem acima da média estadual, que ficou em 0,904. Esse fato demonstra que a priorização da educação na elaboração dos Planos Plurianuais e na execução orçamentária (já destacados anteriormente) produziu resultados importantes. No indicador de longevidade, apenas Ijuí ficou abaixo da média estadual, que foi de 0,785. Considerando que esse indicador está ligado diretamente às políticas sociais da área de saúde e saneamento e essas também obtiveram um avanço significativo nos quatro municípios na década analisada, pode-se perguntar por que o desempenho de Ijuí não acompanhou os demais. Ainda mais considerando-se que foi essa a área que mais obteve ampliação dos investimentos e uma consistente qualificação nas prioridades definidas nos Planos Plurianuais de 1994/97 e 1998/2001 no município de Ijuí. No indicador de renda, os quatro municípios ficaram abaixo da média estadual, que foi de 0,754. Porém, percebe-se uma melhora (numa média de 9%) desse indicador nos quatro municípios durante a década analisada. O indicador de renda está ligado à situação apresentada pela renda per capita e às condições de distribuição da renda entre os estratos da 175 população. Conforme já destacado anteriormente, os quatro municípios conseguiram aumentar sua renda per capita média em mais de 40% no período analisado. Um crescimento, inclusive, acima da média estadual (que foi de 36,89%), mas esse acréscimo não foi suficiente para superar a diferença histórica em relação à média estadual que era de 15,07% em 1991. Em relação às condições de distribuição da renda entre os diferentes estratos da população, foram constatados problemas mais expressivos em Cruz Alta e Santo Ângelo, prejudicando seu desempenho. Em relação ao IDH-M, o crescimento mais expressivo foi o apresentado por Santa Rosa, que ocupava a última posição entre os quatro municípios em 1991 (com 0,747), apresentando uma média menor do que a estadual (que era de 0,753) e passou a ocupar a primeira posição em 2000 (com 0,831), bem acima da média estadual (que ficou em 0,803). Pode-se inferir que esse desempenho de Santa Rosa tem muita relação com as políticas sociais implementadas por esse município ao longo da década de 1990. Santo Ângelo e Cruz Alta eram os dois municípios da região (entre os quatro analisados) que apresentavam IDH-M maior do que a média estadual em 1991 e mantiveram-se bem acima da média estadual. Essa situação também demonstra que suas políticas sociais, embora com menor impacto do que Santa Rosa, contribuíram para alcançar esse resultado. Dos quatro municípios analisados, apenas Ijuí (com 0,803) apresentou IDH-M inferior à média estadual (que ficou em 0,814), embora tenha alcançado um importante avanço (7,35%) em relação a 1991. A situação de Ijuí evidencia que, mesmo tendo obtido importantes avanços com as políticas sociais implementadas ao longo da década de 1990, elas não foram na mesma proporção que Santa Rosa (que obteve crescimento de 11,24% no seu IDH-M), o que lhe permitiria superar a média do IDH-M estadual. Os dados do IDH-M representam um parâmetro importante para “medir” o desenvolvimento e a qualidade de vida de um município ou região, porém “o principal defeito do IDH-M é que ele resulta da média aritmética dos três índices mais específicos que captam renda, escolaridade e longevidade” (VEIGA, 2005, p. 88). Buscando superar esses “defeitos” é que são propostos novos tipos de indicadores, a exemplo do Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS, da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), do Índice de Desenvolvimento Sócio-econômico (IDESE, da Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul), do “DNA-Brasil” (Criado pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da UNICAMP) e do Índice de Desenvolvimento Social (IDS, do Instituto 176 Nacional de Altos Estudos, no RJ).25 Para os municípios do Rio Grande do Sul, no período analisado tem-se disponível o IDESE. Na seqüência, passa-se a trabalhar com os dados do mesmo a fim de ampliar os termos de comparação e de análise dos municípios propostos. O IDESE é composto por um conjunto de quatro blocos de indicadores: educação, renda, condições de domicílio, saneamento e saúde. Cada um desses blocos é composto por um conjunto de variáveis com pesos diferenciados na composição do bloco e do índice como um todo, a fim de superar o problema da média aritmética simples apresentada no IDH-M e produzir uma visão mais “qualificada” do processo de desenvolvimento de um município ou região. Neste artigo priorizam-se os dados de renda e o índice geral.26 Tabela 6- Composição do IDESE – Renda, por indicador e índice, dos municípios e do Estado, para 1991 e 2000. ESTADO E MUNICÍPIOS Cruz Alta Ijuí Santa Rosa Santo Ângelo Rio Grande do Sul GERAÇÃO DE APROPRIAÇÃO DE RENDA RENDA 1991 2000 1991 2000 0,630 0,690 0,754 0,764 0,663 0,702 0,794 0,826 0,714 0,751 0,746 0,745 0,634 0,645 0,716 0,721 0,701 0,766 0,715 0,748 IDESE-RENDA 1991 0,692 0,729 0,730 0,675 0,708 2000 0,727 0,764 0,748 0,683 0,757 Fonte: ROTTA, 2007, p. 289. Em termos de geração de renda, percebe-se que os quatro municípios melhoram seu índice, porém nenhum deles alcança a média estadual, o que mais se aproxima desta média é Santa Rosa. Nesse aspecto também é evidente a distância que separa Santa Rosa (com 0,751 em 2000) de Santo Ângelo (com 0,645 em 2000) e Cruz Alta (com 0,690 em 2000). Em relação à apropriação de renda, constata-se que apenas Santa Rosa piora seu índice no período e que Ijuí e Cruz Alta apresentam índice maior que a média estadual. Constata-se, aqui, certa divergência27 em relação aos dados apresentados pelo IDH-M, onde os municípios da região haviam apresentado melhora na renda per capita, superior ao desempenho da média estadual na década, e Santa Rosa e Ijuí se destacado em termos de repartição de renda entre os estratos mais pobres da população. Pelos dados do IDESE, apenas o município de Ijuí condiz com a situação apresentada no IDH-M. 25 Maiores detalhes sobre a diferença desses índices pode ser encontrada em VEIGA, 2005. 26 A análise do demais indicadores pode ser encontrada em ROTTA, 2007. 27 Que pode estar relacionada à metodologia de cálculo ou à fonte de obtenção dos dados. 177 Analisando o IDESE-Renda, verifica-se que os quatro municípios melhoraram seu índice, na década analisada, porém apenas Ijuí apresenta índice superior à média estadual em 2000. A melhora do índice, em relação a 1991, pode evidenciar o fato de que os municípios da região têm buscado alternativa para superar a crise do modelo da modernização da agricultura e da agroindústria vivida na década de 1980. Por outro lado, o desempenho que se mantém abaixo da média estadual, com exceção para Ijuí, evoca a necessidade de se pensar estratégias de desenvolvimento e, nessas, as políticas sociais podem cumprir um papel fundamental, como já demonstrado durante a década de 1990. A situação também demonstra a necessidade de os municípios encararem, de forma mais séria e propositiva, tanto em seus Planos Plurianuais quanto nos investimentos orçamentários, a política social do trabalho. Essa área de política social recebeu pouca atenção durante a década analisada, contrastando com a necessidade apresentada pela sociedade regional de repensar sua estrutura sócio-econômica e construir alternativas de desenvolvimento. Tabela 7- Composição do IDESE por blocos e no geral, dos municípios e do Estado, para 1991 e 2000. EDUCAÇÃO RENDA ESTADO E MUNICÍPIOS Cruz Alta Ijuí Santa Rosa Santo Ângelo Rio Grande do Sul 1991 0,790 0,785 0,780 0,776 0,765 2000 0,850 0,862 0,863 0,872 0,834 1991 0,692 0,729 0,730 0,675 0,708 CONDIÇÕES DE DOMICÍLIO E SANEAMENTO 2000 0,727 0,764 0,748 0,683 0,757 1991 0,513 0,425 0,500 0,511 0,457 2000 0,591 0,611 0,593 0,581 0,662 SAÚDE 1991 0,803 0,847 0,825 0,843 0,821 2000 0,831 0,822 0,886 0,857 0,853 IDESE 1991 0,700 0,696 0,708 0,701 0,688 2000 0,750 0,765 0,772 0,748 0,751 Fonte: IDESE, 2003. Dados organizados pelo autor. Analisando o resultado final do IDESE, pode-se constatar que há um crescimento significativo do índice geral, nos quatro municípios, em relação a 1991. Os maiores crescimentos no índice final são verificados em Ijuí (9,91%) e em Santa Rosa (9,03%), vindo na seqüência Cruz Alta (7,14%) e Santo Ângelo (6,7%). Nos casos de Santa Rosa, Cruz Alta e Santo Ângelo, o crescimento é decorrente do aumento dos índices nos quatro blocos analisados. Em Ijuí, o crescimento é decorrente do avanço em três blocos, excetuando-se a saúde, aspecto esse já ressaltado anteriormente. Os melhores indicadores apresentados pelos quatro municípios encontram-se no bloco referente à educação, o que manifesta que essa área de políticas sociais foi a que respondeu melhor às prioridades elencadas nos Planos Plurianuais e aos investimentos realizados pelos 178 municípios. Na seqüência vem a área de saúde, com avanços importantes apresentados por Santa Rosa, Santo Ângelo e Cruz Alta. Nessa área, a surpresa é Ijuí, conforme já destacado ao longo desse tópico. No bloco referente à renda, apenas Ijuí consegue resultados acima da média estadual. No bloco condições de domicílio e saneamento, os quatro municípios situamse bem abaixo da média estadual. Com isso, pode-se inferir que os maiores desafios, para os municípios da região, apresentam-se nas condições de domicílio e saneamento e na renda, respectivamente. Conforme já destacado, os indicadores desses dois blocos foram os que receberam menor atenção dos municípios nos Planos Plurianuais e nos investimentos realizados durante a década analisada. Comparando-se o desempenho dos municípios estudados com a média do estado do Rio Grande do Sul é possível constatar que, em 1991, os quatro municípios apresentavam o IDESE superior à média estadual, reduzindo-se para apenas dois (Santa Rosa e Ijuí) em 2000. O crescimento da média estadual (9,15%, no período) foi bem acima do registrado em Cruz Alta (7,14%) e Santo Ângelo (6,7%), significando um indicativo de que esses municípios enfrentaram problemas e não conseguiram responder afirmativamente aos mesmos. Outra diferença entre a média estadual e os quatro municípios estudados está relacionada aos blocos de melhor desempenho. No caso dos municípios do Noroeste gaúcho, o melhor desempenho encontra-se na área da educação, vindo na seqüência a saúde. Essa situação inverte-se na média estadual, com a saúde ocupando a melhor posição. Os blocos condições de domicílio e saneamento e renda, também se apresentam como os maiores desafios em nível estadual. Os dados presentes no IDESE não apresentam grandes divergências em relação aos demonstrados no IDH-M, até mesmo porque grande parte deles é obtida da mesma fonte. A maior exceção constatada é em relação ao aspecto renda, já ressaltado anteriormente. A análise desses dois indicadores de desenvolvimento deixa evidente que os municípios de Santa Rosa e Ijuí, respectivamente, foram os que responderam, de forma mais propositiva, à crise vivenciada pela região no final da década de 1980. Demonstra, também, que grande parte dessa resposta está ligada às prioridades estabelecidas e aos investimentos feitos em políticas sociais. Considerações Finais A reflexão sobre as políticas sociais vem ganhando espaço crescente na área do serviço social, da sociologia, da ciência política, do direito e até mesmo da economia. Esta conquista de espaço significa o reconhecimento de sua importância na sociedade contemporânea. Porém, também significa a emergência de múltiplas compreensões, que 179 passam a disputar espaços na definição das políticas sociais que se estabelecem nas diferentes esferas estatais e nos demais ambientes da sociedade organizada. Esta disputa pela hegemonia da compreensão das políticas sociais e das suas formas de execução faz com que as diferentes áreas do conhecimento envolvidas neste debate intensifiquem os estudos, fortaleçam suas posições e produzam novos conhecimentos. O estudo de realidades sociais específicas torna-se importante para evitar que as reflexões permaneçam em um nível de generalidade excessiva que acabe apenas deduzindo as conseqüências quando se fala em casos concretos e específicos. A trajetória histórica de desenvolvimento das políticas sociais na região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul evidencia a articulação necessária do viés dominante presente a respeito das mesmas com o modelo de desenvolvimento implantado, nos diferentes momentos, e com a dinâmica das forças sociais locais. Os condicionantes locais acabam por dar uma feição própria aos projetos estaduais e nacionais que se quer implantar. No comparativo realizado entre os quatro municípios-pólo da região Noroeste, na década de 1990, percebeu-se que os municípios de Santa Rosa e Ijuí apresentaram uma compreensão mais clara da importância das políticas sociais na dinâmica do desenvolvimento local. Isto esteve materializado nas proposições estabelecidas nos seus Planos Plurianuais e nas suas execuções orçamentárias. Esta resposta mais propositiva dos municípios de Santa Rosa e Ijuí pode estar relacionada com a presença de um ambiente maior de reflexão e de participação da sociedade nos debates a respeito do desenvolvimento. Dallabrida (2001) refere que em nenhum momento da história das duas microrregiões polarizadas por Ijuí (Noroeste Colonial) e Santa Rosa (Fronteira Noroeste) se discutiu tanto a questão do desenvolvimento e com o envolvimento de tantos atores sociais quanto na década de 1990. Essas reflexões estiveram balizadas pela perspectiva do desenvolvimento regional, da sustentabilidade e das novas reflexões sobre desenvolvimento que atribuem um papel importante às políticas sociais enquanto instrumentos de inclusão e de expansão da cidadania. Referências Bibliográficas ARANHA, Maria Lucia de Arruda. História da educação. 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Falta Dallabrida 2001 Capital social, diversidade cultural e juventude Karin Elinor Sauer1 Sílvio Marcus de Souza Correa2 Introdução Na última década, os estudos internacionais sobre capital social tiveram um expressivo aumento em termos quantitativos e qualitativos. Muitos sociólogos, economistas e cientistas políticos se empenharam em comprovar as teses de Robert Putnam em diversas regiões do planeta. As críticas também foram diversas tanto no plano teórico quanto metodológico. No meio acadêmico latino-americano, têm-se reações bem distintas. Alguns mais eufóricos acreditam que o capital social seja uma chave do desenvolvimento (KLIKSBERG, 2000), enquanto outros – talvez mais reticentes por questões ideológicas – evitam simplesmente qualquer tese liberal sobre a relação entre capital social, democracia e economia de mercado (MARRERO, 2004). No Rio Grande do Sul, várias dissertações de mestrado e teses de doutorado (BENDER, 2007; PASE, 2007; VOGT, 2006; CREMONENSE, 2006) sobre capital social foram defendidas nos últimos anos e diversos livros (BAQUERO, 2001; CORREA, 2003; BAQUERO, 2004; BAQUERO e CREMONESE, 2006; BAQUERO, 2007), números especiais de revistas científicas (Redes 2006, v.11, n.2; Redes 2007, v.12, n.1), e anais de seminários internacionais (cf. III Seminário Internacional sobre Desenvolvimento Regional, 2006) foram publicados sob diversas formas. Tendo por base empírica dados de entrevistas com jovens, nosso estudo lança algumas pistas para a reflexão de alguns preceitos da teoria do capital social, especialmente em relação à confiança interpessoal, à participação política dos jovens e à relação entre capital social e diversidade cultural. Em termos metodológicos, a pesquisa adotou um modelo qualitativo através do qual foram realizadas entrevistas narrativas com jovens pertencentes a grupos minoritários. Como grupo minoritário foi considerado aquele grupo cuja cultura primária e modo de vida não são os mesmos da core society. 1 2 Karin E. Sauer é doutora em Ciência da Educação pela Universidade de Tübigen (Alemanha). Sílvio M. de S. Correa é doutor em Sociologia pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha). 184 Através da narrativa da trajetória de jovens indígenas, afro-descendentes, homossexuais e portadores de necessidades especiais foi possível compreender alguns problemas relacionados ao capital social e à diversidade cultural. Cabe ressaltar que os dados que serviram à análise qualitativa deste trabalho foram obtidos com a devida autorização dos depoentes que participaram do projeto Wege der Integration im Erziehungs- und Bildungsprozess. Como parâmetro nacional do perfil dos jovens brasileiros foram empregados os dados do Projeto Juventude (2003), da Fundação Perseu Abramo. Capital social e diversidade cultural Em 2007, a revista Scandinavian Political Studies publicou um artigo intitulado E Pluribus Unum: Diversity and Community in the Twenty-First Century, de Robert Putnam. Para alguns, o renomado professor de Harvard chegou a uma conclusão politically incorrect ao afirmar que a diversidade cultural engendrada pela imigração pode minar o capital social e representar um desafio para a solidariedade nas sociedades ocidentais. A base empírica da nova tese de Putnam vem de um survey sobre capital social nos EUA. Os dados acusam um baixo grau de confiança em comunidades mais heterogêneas, em termos étnico-culturais. Putnam (2007) observou que, em áreas de grande diversidade étnica e cultural, os depoentes diziam confiar menos nos governos e lideranças locais e a freqüência da votação era menor. Também eles apresentaram menor engajamento em formas de cooperação voluntária para resolver problemas locais e pouco vínculo com projetos comunitários, bem como pouco vínculo em ações de donativos ou de voluntariado. Nestas áreas de grande diversidade, os entrevistados têm um círculo de amigos e confidentes diminuto e dispensam grande parte do seu “tempo livre” na frente da televisão. Nesse sentido, pode-se inferir que as metrópoles tendem a apresentar maior entropia social. Porém, são nelas que se acumulam outras formas de capital. Capital financeiro e capital humano, por exemplo, estão altamente concentrados nas grandes capitais norteamericanas, onde a diversidade cultural também é maior. Ainda para relativizar as afirmações de Putnam, cabe lembrar que o sociólogo suíço Volker Bornschier (2001) chegou a resultados mais otimistas em relação à coesão social, à capacidade de formação de capital social e à confiança nas democracias ocidentais. A relação entre confiança generalizada, sistema político e o desempenho econômico das sociedades ocidentais é tema complexo. Bornschier (2001) apontou para uma variante cultural entre 185 países de matriz anglo-saxônica e protestante e países de tradição latina e católica. Comparados com outros resultados (KNACK e KEEFER, 1997) que confirmam a relação entre a situação material do desenvolvimento dos países em tela com o nível de confiança, as conclusões de Bornschier (2001, p.467-468) ressaltam fatores socioculturais e sócio-políticos. Entre eles, destacam-se o maior grau de confiança em países onde o nível de capital humano é elevado e onde o grau de conflito político é baixo. Apesar de muitos pontos de convergência entre os estudos internacionais em ciências sociais, econômicas e políticas que apontam para uma relação positiva entre confiança, democracia e crescimento econômico (FUKUYAMA, 1995; HELLIWELL, 1996; KNACK e KEEFER, 1997; HICKS e KENWORTHY, 1998; WOOLCOCK, 1998; KUNZ, 2000; BORNSCHIER, 2001), o declínio do capital social nos EUA parece ser uma preocupação mor dos últimos estudos de Putnam. Por isso, Putnam (2007) ressalta a necessidade de um novo consenso, de um novo we, de uma nova unidade. É isso que Putnam defende através da máxima latina e pluribus unum. A equação de Putnam tem suas variantes (MISZTAL 1996, KNACK E KEEFER 1997, WIEVIORKA 1997; SINGLY 2003). No Canadá, a comissão dirigida por Gérard Bouchard e Charles Taylor (2007) fez la mise au point da política oficial do multiculturalismo. Escusado ressaltar que a integração social e cultural é uma preocupação política. Entre outros intelectuais canadenses, Charles Taylor (1992), Will Kymlicka (1997) e Joseph Yvon Thériault (2007) têm tentado equacionar o binômio da diversidade e unidade. Este último chega a fazer uma distinção entre cultura primária e cultura secundária para tratar da diversidade na unidade. A cultura primária seria aquela da esfera privada, expressa por um capital (cultural, lingüístico, etc.) que se adquire através da incorporação de um habitus familiar. Já a cultura secundária seria aquela adquirida na esfera pública, especialmente na escola. Trata-se de um capital cultural na sua forma institucional que, além de ser fundamental para o capital humano, configura a orientação cívica dos cidadãos. É a cultura secundária que mais se relaciona ao briding social capital enquanto a cultura primária está mais relacionada ao bonding social capital. Até aqui nada de novo já que a sociologia clássica distingue uma fase primária (mais familiar e informal) de uma secundária (mais pública e formal) no processo de socialização dos indivíduos. O que se tem notado, todavia, é que a cultura primária pode prevalecer, em alguns casos, sobre a cultura secundária ou o processo de socialização ser precário, não havendo êxito na transição da fase primária para a secundária. Nestes casos, a anomia pode se instalar 186 e colocar em risco a coesão social. Na sociologia urbana, o outro, aquele recém-chegado, tem sido a personificação do perigo para a coesão social. A Escola de Chicago elaborou várias teorias de assimilação e também não foi por acaso que o tema central do último congresso da Associação Internacional de Sociólogos de Língua Francesa (AISLF) foi être en société: le lien social à l’épreuve des cultures. Desde Georg Simmel, o debate sociológico tem sido constante sobre o lugar do outro na cidade. Mas tal debate tem sido mais acalorado nos países com expressivas comunidades de imigrantes, como EUA (PUTNAM, 2007), Canadá (KYMLICKA, 1997), França (DEWITTE, 1999), Suíça (BOLZMAN et alii 2003) e Alemanha (TREIBEL, 1999; SCHMALS 2000). No Brasil, economistas, sociólogos e cientistas políticos têm tratado do capital social quase independentemente da diversidade étnico-cultural, embora alguns estudos apontem para uma relação direta entre grupos étnicos, capital social e desenvolvimento regional em áreas de colonização e imigração européias no sul do Brasil (CORREA, 2003, GUBERT e POLLINI, 2005, VOGT 2006). Para tratar da relação entre capital social e diversidade cultural no Brasil um “outro” também foi eleito. Escusado lembrar que o outro é construído socialmente, que ele pode ser um de nós, que se diferencia e/ou é diferenciado. Assim, os jovens podem ser vistos como diferentes, pois é através deles que a sociedade se renova e se incrementa. A diversidade cultural engendrada pelos jovens será vista a seguir não como algo negativo ou que coloca em risco a coesão social, mas sim como um fator de mudança social. Cabe salientar que a diferença dos jovens entrevistados reside na condição de pertencimento a grupos minoritários, marginalizados socialmente. Nesse sentido, suas narrativas apontaram para um sinal diacrítico (a pobreza), um denominador comum através do qual eles foram freqüentemente discriminados em suas trajetórias. A diversidade étnico-cultural deste outro (o jovem) passa, então, a ser pouco valorizada uma vez que ela está associada à pobreza. Capital social de jovens pertencentes a grupos minoritários No Rio Grande do Sul, a relação entre democracia, capital social e juventude já foi tratada em alguns livros (SCHMIDT, 2001; BAQUERO, 2004). As formas de participação dos jovens na democracia dependem do processo de socialização dos mesmos em que capital social e cultura política formam um binômio incontornável. Assim, a construção do capital 187 social entre os jovens está relacionada à incorporação de uma cultura cívica (SCHMIDT, 2004). Trata-se do vínculo entre capital social e democracia que se pode traduzir pelo compromisso dos cidadãos com o bem público, com sua comunidade cívica (PUTNAM 1993). Desse modo, vale para os jovens o mesmo pressuposto político de que o imigrante deve adotar a cultura secundária, patrimônio comum a todos os pertencentes à mesma comunidade cívica (THÉRIAULT 2007). Nesse sentido, a preocupação de sociólogos, cientistas políticos e assistentes sociais repousa na propalada “despolitização” dos jovens. Na última década, estudos têm apontado para uma frágil participação política dos jovens brasileiros (BAQUERO, 1997; KRISCHKE, 2005) e para um baixo capital cultural entre eles (SCHMIDT, 2004; BAQUERO, 2004). Porém, esses estudos relativizam a “despolitização” dos jovens tendo em vista ela não ser tão diferente daquela dos adultos. Mas o baixo capital social não pode ser dissociado dos demais tipos de capital. Tal relação está imbricada na configuração de capital dos jovens de grupos minoritários. O capital social é também decorrência do estoque de capital econômico, cultural e simbólico. Outro aspecto é a confiança. De modo geral, os países da América Latina apresentam baixos índices de confiança interpessoal. Uma das razões desse entrave ao processo democrático tem sido a baixa escolarização da população (SCHMIDT, 2004:152-153). A relação entre educação e capital social (COLEMAN, 1990; HELLIWELL, e PUTNAM, 1999) tem apontado para o quanto a democracia funciona melhor quanto maior for o capital humano. Como acusa a literatura especializada, o ambiente escolar é um espaço social fundamental para o aprendizado de estratégias à obtenção de capital social de ponte (bridging social capital). No entanto, as diferenças entre escolas públicas e privadas, centrais e periféricas, urbanas e rurais têm sido resultado de um processo seletivo que vem reforçando a distância entre crianças e jovens de diferentes grupos étnico-culturais e sócio-econômicos. Tal tendência já foi apontada em países como EUA (COLEMAN et alii 1975) e da Europa ocidental (BOURDIEU e PASSERON 1970; ROGERS 1986; HENRIOT-VAN ZANTEN, PAYET e ROULLEAU-BERGER 1994). No Brasil, a escola também tem exercido seu papel na reprodução social, tornando-se mais um espaço para a formação de bonding social capital do que de bridging social capital. A escola brasileira se tornou mais um quintal da esfera privada e familiar, tanto para pobres quanto para ricos, do que espaço público para aquisição de uma cultural formal, comum a todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade cívica. Devido à baixa escolarização, os jovens brasileiros têm sido prejudicados em vários aspectos. Aqui cabe destacar o gap na 188 formação de uma cultura cívica. Esse manco acaba se refletindo na propalada “despolitização” de jovens e adultos, bem como na desconfiança generalizada. Com base nos dados do Projeto Juventude (2003) pode-se notar uma alta desconfiança dos jovens em partidos políticos, sindicatos etc. Por outro lado, os jovens têm uma alta confiança nos pais e familiares. Esses dados revelam a prevalência da cultura primária sobre a secundária entre os jovens brasileiros. Ela fica ainda maior quando o foco recai sobre os jovens de grupos minoritários. Os jovens com poucos recursos (econômicos, culturais e sociais) para acessar certos serviços se valem sobremaneira das suas relações informais, da esfera privada, e ficam circunscritos ao mundo da família e da vizinhança. Seu capital social se reduz, basicamente, àquele do seu ingroup cujos membros gozam de maior confiança. Nas entrevistas narrativas sobre o percurso sócio-biográfico desses jovens, a importância das redes sociais horizontais é notória. O auxílio dos familiares, dos vizinhos e dos amigos está presente em todas elas. Em vários relatos, os jovens entrevistados demonstraram um compromisso recíproco com a comunidade de origem. A própria orientação profissional de muitos deles acusa certo retorno ao bairro, à comunidade de origem, às relações primárias. Pode-se inferir que a confiança é uma forma de reconhecimento. Assim, os jovens inculcam uma “dívida simbólica” com sua família e/ou com sua comunidade. Em nenhum relato, houve menção a uma “dívida simbólica” com o Estado, já que poucos obtiveram benefícios sociais. E mesmo quando os jovens entrevistados receberam algum recurso, este não era suficiente, sendo a ajuda familiar ou de alguma organização comunitária imprescindível para eles. A figura do Estado é, geralmente, associada à do pai severo, que oprime através de uma pesada carga tributária, ou de um pai ausente, que se omite de seus deveres, que não cumpre a parte que lhe cabe no contrato social. Como os jovens de grupos minoritários ficam circunscritos a uma mobilidade social e espacial muito pequena e o contato com membros de outros grupos sociais é, geralmente, assimétrica, o capital social de ponte é quase nulo. Disso decorre uma alta desconfiança interpessoal. Para Putnam (2000, p.23), é através do capital social de ponte que indivíduos do outgroup podem tomar conhecimento sobre comportamentos e valores de outros grupos, além de informações úteis a uma abertura (ou fechamento) de interação com os mesmos. Cabe salientar que este tipo de capital social pode servir de indicador para o grau de coesão social em sociedades em que predomina a pluralidade cultural. 189 Em comunidades ou sociedades mais homogêneas, o bonding social capital prevalece, geralmente, como indicador da coesão social (CORREA, 2003, p.318-319). Nas narrativas sobre as trajetórias dos jovens de grupos minoritários, a interação social com indivíduos da core society é pautada por vários preconceitos à brasileira. Jovens do meio rural, jovens afrodescendentes, jovens homossexuais e jovens portadores de necessidades especiais, cada um à sua maneira, relataram experiências cotidianas em que o preconceito se manifesta com freqüência. A desconfiança recíproca entre negros, mulatos e brancos e entre heteros e homossexuais parece se confundir com aquela entre indivíduos com diferente constelação de capital cultural e econômico. Não apenas jovens ricos e pobres têm desconfiança vis-à-vis um do outro, como também jovens qualificados e aqueles sem formação. Assim, o baixo capital social dos jovens de grupos minoritários é, principalmente, aquele de transição ou de ponte. Mas alguns entrevistados mostraram interesse e mesmo resultados positivos no empenho em fomentar esse tipo de capital social. A participação política de jovens pertencentes a grupos minoritários Devido à dificuldade de concluir de forma linear e sem interrupção a escolaridade formal, muitos jovens de grupos minoritários fizeram alguma formação alternativa. Outros conseguiram retornar aos caminhos de uma educação formal e mesmo ingressar na universidade. A orientação pessoal e profissional desses jovens é, contudo, muito voltada ao local. A localização de suas ações tem a ver com a própria (i)mobilidade social e espacial que restringe o raio de suas interações sociais com outros grupos e em outros espaços sociais. Entre as ações voluntárias dos jovens entrevistados se destacam aquelas sob organizações religiosas e clubes desportivos, geralmente aquelas voltadas à comunidade à qual eles pertencem. Essa orientação “neo-comunitarista” tem a ver com a desconfiança que a maioria dos jovens demonstrou em relação à política, notadamente em nível estadual e federal. Segundo os jovens, numa escala municipal ou local, os políticos parecem ser menos corruptos, talvez pelo envolvimento mais direto destes com seus eleitores. As narrativas sobre as trajetórias sócio-biográficas dos jovens entrevistados revelaram um engajamento político muito localizado já que a comunidade se tornou o “mundo” desses jovens. Em termos de macropolítica, constatou-se o mesmo comportamento e atitude da juventude brasileira em geral. Com baixo capital cultural, em termos institucionais ou 190 formais, os jovens entrevistados têm ao seu dispor baixo capital social, sendo que o último se reduz praticamente ao capital social do tipo bonding. Com base nos dados do Projeto Juventude (2003), a participação em grupos de jovens é extremamente baixa. Entre os entrevistados, 85% disseram não participar de nenhum grupo de jovens. Ainda sobre a não participação em grupos de jovens, há uma diferença percentual de 10% entre os jovens de 15 a 17 anos (79%) e 21 a 24 anos (89%). Entre os que participam (15%), os grupos vinculados a entidades religiosas são os mais freqüentados. Apesar da baixa participação de jovens em associações ou grupos, há um empreendedorismo potencial. Os dados do Projeto Juventude (2003) demonstram que 20% dos jovens pensam em fazer algum trabalho social ou montar negócio no bairro, que fosse bom para a comunidade. Entre os jovens de 21 a 24 anos o percentual aumenta para 28%, sendo 23% entre as jovens. Nessa faixa etária, apenas 3% dos jovens entrevistados já participam de algum trabalho social ou negócio. Para esses jovens, são os seguintes tipos de apoio necessário que lhes faltam: investimento ou capital inicial (37%); salário ou ajuda mensal (14%); espaço físico (10%); equipamentos (9%); orientação jurídica (5%); orientação administrativa e/ou contábil (3%); não sabe (19%). Ainda em relação aos dados do Projeto Juventude (2003), 72% dos jovens entrevistados afirmaram desconhecer instituições que apóiam trabalhos sociais, pequenos negócios ou projetos para a comunidade e/ou jovens. Essa desinformação não se constatou nas entrevistas realizadas com jovens de grupos minoritários. A razão seja talvez pelo vínculo dos jovens entrevistados com tais instituições, especialmente aquelas religiosas. Para os jovens entrevistados durante a nossa pesquisa, esse vínculo com certas pessoas ou instituições, notadamente de caráter religioso, permitiu o acesso a uma realidade social diferente daquela conhecida no próprio grupo minoritário. Poder-se-ia dizer que o capital social criado através dessas relações passou de uma forma bonding – dentro das relações familiares de confiança etc. – a uma forma bridging. Essa passagem permitiu aos jovens entrevistados superar certas limitações sociais do grupo de origem. Diversidade cultural de jovens pertencentes a grupos minoritários A população brasileira entre 15 e 24 anos perfaz mais ou menos 34 milhões, representando 20% do total da população. A escolaridade dessa população é bastante inferior à média satisfatória considerada pelo UNICEF para a América Latina. Isso significa que a cultura cívica dos jovens brasileiros é precária, já que a instituição por excelência para tal 191 aprendizado (a escola) não está conseguindo manter os jovens por mais de sete anos em seu seio na escola. Em relatório recente do Programme for International Student Assessment (PISA) da UNESCO, o nível da educação brasileira aparece como um dos piores do mundo. Ao contrário de um patrimônio cultural comum, tem-se, então, uma diversidade cultural que não pode ser confundida com aquela introduzida, em geral, pela imigração. A diversidade cultural que impera no Brasil é mais de caráter regional e fortemente condicionada pela enorme desigualdade social. Contudo, alguns jovens pertencentes a grupos minoritários têm uma cultura primária que pode se confundir com uma cultura regional. No Rio Grande do Sul, por exemplo, jovens com descendência alemã ou italiana têm sua cultura primária como referência regional em áreas de colonização e imigração. Depois da região metropolitana de Porto Alegre, é nessas áreas de colonização e imigração européia que o estoque de capital social é maior (BANDEIRA, 2003). Pode-se inferir que a diversidade cultural engendrou capital social no Sul do Brasil. A imigração européia permitiu um aumento do capital cultural e, por conseguinte, do capital social no Rio Grande do Sul. Através de organizações institucionais como igreja e escola, as comunidades de imigrantes europeus e seus descendentes recriavam sua vida associativa em solo brasileiro. No entanto, a diversidade cultural não garantiu o capital social e tampouco o desenvolvimento regional (VOGT, 2006; CREMONESE, 2006, BENDER, 2007) dessas regiões. Em relação aos nossos entrevistados, os jovens entrevistados têm valorizado a sua cultura primária e a diversidade cultural. Ao mesmo tempo, gostariam de adquirir uma educação formal e uma cultura cívica comum, que não discrimine aqueles pertencentes às minorias visíveis ou não. Em suas narrativas, a cultura primária é fonte de auto-estima, de auto-referência e pode ser considerada como capital cultural familiar, já que o capital cultural escolar é baixo. Cabe, portanto, distinguir a diversidade cultural por inércia, isto é, pela precariedade do processo de socialização, especialmente via escolarização, daquela que orienta certas políticas educacionais desde a década de 1970 no Rio Grande do Sul. Aliás, Gubert e Pollini (2005) mostraram que o capital cultural foi um elemento fundamental ao desenvolvimento regional em áreas de colonização e imigração européias no Rio Grande do Sul. Para os EUA, Putnam (2007) também reconhece que a diversidade cultural foi benéfica em médio e longo prazo. Diversidade cultural e desigualdade social 192 Em um período relativamente curto, a sociedade brasileira adotou meios de comunicação de massa antes de erradicar o analfabetismo e assegurar a formação básica escolar à maioria dos jovens. Isso significa que a cultura de massa foi introduzida numa sociedade heterogênea em termos culturais. Tanto a tradição oral – que não foi de todo superada em termos de transmissão do conhecimento para modus operandi e modus vivendi – quanto a cultura de massa não têm maiores compromissos com a formação de uma cultura cívica. A democratização da educação, que vem se consolidando com muita dificuldade no sistema de ensino brasileiro, não conseguiu ainda equiparar a qualidade de ensino das escolas pública e privada. Nesse sentido, a desigualdade social fomenta uma diversidade cultural que é também sinônimo de desigualdade cultural. Jovens de origem alemã, polonesa ou italiana do meio rural no Rio Grande do Sul têm uma cultura primária como predominante em seu cotidiano porque simplesmente lhes faltou acesso à cultura secundária, àquela que garante aos cidadãos um patrimônio cultural comum. Jovens afro-descendentes dos diversos remanescentes de quilombos e jovens indígenas de reservas ou aldeamentos também apresentam sérios problemas para a sua integração social fora de sua comunidade de origem. Em geral, esses jovens vivem em torno de suas comunidades étnicas. As entrevistas realizadas junto a jovens de comunidades indígenas e de remanescentes de quilombo na região do Vale do Taquari nos permitiu inferir a absoluta falta de capital social de parte dos membros desses grupos. No entanto, alguns jovens conseguiram romper com essa situação de exclusão social. Entre eles, destacou-se uma jovem afro-descendente que logrou completar o ensino médio. Ela também fez vários cursos paralelos à escolarização em instituição formal. Nesses cursos, foi possível conhecer outras pessoas que não pertenciam àquele ingroup, operando uma construção de bridging social capital. Considerações finais No Rio Grande do Sul, a diversidade cultural engendrou capital social na primeira fase da colonização e imigração européias. Ao passo que essas comunidades foram se “abrasileirando”, seu estoque de capital social foi se dissipando (CORREA 2003; VOGT, 2007, CREMONESE, 2007). É verdade que alguns discursos de parlamentares gaúchos acusavam uma preocupação da core society com a imigração em relação à coesão social na 193 província à época (CORREA, 2006:269-271). Políticas autoritárias de assimilação chegaram a ser impostas às comunidades étnico-culturais no Rio Grande do Sul. Mas foi a industrialização e a urbanização que lograram tornar essas áreas mais heterogêneas a partir da migração interna. Os descendentes do “outro” de antanho (o imigrante europeu) passou a se deparar com o migrante recém-chegado. Entre eles não há apenas uma diferença histórica, como aquela entre estabelecidos e outsiders (ELIAS 1994), mas também étnico-cultural. A diversidade cultural aparece novamente nas cidades de porte médio do Rio Grande do Sul através da migração interna. Apesar da mídia ainda reproduzir imagens estereotipadas de cidades como Caxias do Sul ou Santa Cruz do Sul, como, respectivamente, italiana e alemã, sua população é majoritariamente mista. A preocupação de Putnam de que a diversidade cultural pode, em curto prazo, minar o capital social e/ou formas de solidariedade não deve fomentar teses xenófobas. Ao contrário, deve-se salientar que a diversidade cultural pode ser um problema à reprodução social quando há exclusão do outro, não necessariamente do processo produtivo, mas da divisão de riqueza tanto econômica quanto cultural de uma sociedade. Neste caso, ao outro resta apenas sua cultura primária, cuja conversão com outras formas de capital (econômico, social e simbólico) é restrita. Considerando o particularismo histórico do desenvolvimento regional no Rio Grande do Sul, nota-se que a desigualdade social advinda do processo de urbanização e industrialização foi a grande responsável pela dissipação de capital social. Tal desigualdade social engendrou uma outra diversidade cultural, que impede aos indivíduos de diferentes grupos sociais compartilharem de um patrimônio cultural comum. Deve-se, portanto, distinguir a diversidade cultural advinda da imigração daquela resultante da escolarização diferenciada. Esta última é produto e produtora de uma desigualdade social que fomenta uma estranheza generalizada diante do outro. Nesse sentido, não há cultura cívica que garanta um ambiente político de confiança interpessoal. A diversidade cultural advinda da desigualdade social não pode ser confundida com aquela cujos principais atores são imigrantes ou jovens. Se a primeira decorre da falta de um patrimônio cultural comum (cultura cívica), a segunda pode ser decorrência do processo precário de socialização desses atores sociais. 194 Evidentemente, a diversidade cultural de imigrantes e/ou de jovens pode se tornar uma ameaça à coesão social se a integração social de ambos for precária ou se eles forem excluídos da divisão social da riqueza. No Brasil, se o estoque de capital social é baixo, isso pode ter relação também com a diversidade cultural, mas não com aquela engendrada pela imigração ou pela juventude e sim com aquela imbricada à desigualdade social. O que Putnam talvez devesse questionar é sobre a eficácia dos processos de inclusão social e cultural dos imigrantes nas sociedades democráticas. Na verdade, Putnam teme uma nova Torre de Babel, onde ninguém se entende. Mas, como adverte Michael Oakeshott (2003,p.257), a Torre de Babel representava um projeto ambicioso de querer atingir os céus. Por isso, o castigo divino fez Babel passar da cidade da liberdade à cidade da confusão. Em relação aos EUA, se a diversidade cultural tem o potencial de minar o status quo, cabe também indagar do que ela pode nos livrar. 195 Referências Bibliográficas BAQUERO, Marcello; CREMONESE, Dejalma. Capital social – teoria e prática. Ijuí: Unijui. 2006. BAQUERO, Marcello (Org.) Capital social, desenvolvimento sustentável e democracia na América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade. 2007. BAQUERO, Marcello. O papel dos adolescentes no processo de construção democrática no Brasil: um estudo preliminar de socialização política. Porto Alegre: UFRGS. 1997. BENDER, Simone. Capital Social em São Leopoldo. Santa Cruz do Sul: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (dissertação de Mestrado). 2007. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. La reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement, Paris: Les Editions de Minuit. 1970. BORNSCHIER, Volker. 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A experiência nos grupos juvenis, no acompanhamento das comunidades eclesiais e na assessoria à Pastoral da Juventude indicava que havia um aprendizado que se revelava um plus (algo a mais) para a vida pessoal, familiar e profissional dos que participam da convivência comunitária. Pesquisas sobre juventude revelam que a temática grupos juvenis foi aprofundada pela Escola de Chicago (USA) nos anos de 1940, focalizando especialmente a formação de agrupamentos (gangues) nos bairros pobres, com certa homogeneidade étnica (guetos), contrastando-os com os agrupamentos que encontram sua referência na vida escolar. No Brasil, propostas de grupos, como a desenvolvida pela Ação Católica, ainda têm muito a revelar, especialmente pela metodologia com que trabalhavam. Nos anos 80 expressões como darks e punks chamam a atenção de pesquisadores, mostrando que se deve estar atento para as novas formas de sociabilidade juvenil. Trago para o diálogo a pesquisa “Aprendizados de convivência e a formação de capital social: um estudo sobre grupos juvenis” (HAMMES, 2005). A grande questão que orientou a pesquisa era “A que leva a participação nos grupos juvenis?”. Em vista disso, organizamos uma pesquisa em três organizações que trabalham com jovens, em vista do protagonismo juvenil, na metodologia de grupos: Rede Em Busca da Paz (EBP),1 Pastoral da Juventude Estudantil (PJE)2 e Movimento dos Sem Terra (MST).3 Tais organizações concebem o grupo como espaço de amadurecimento e crescimento e propõem oferecer aos jovens espaços de ∗ Doutor em Educação, professor da Universidade Federal do Pampa. E-mail: [email protected]. 1 A Rede Em Busca da Paz, com sede em Santa Cruz do Sul, constituiu-se em uma ONG voltada para a construção de uma cultura de paz, de promoção dos direitos humanos e assume a não-violência como estilo de vida e metodologia de ação. O grupo pesquisado desta organização foi Jovens Unidos Pela Paz (JUPA), de Santa Cruz do Sul, tendo jovens entre 12 e 28 anos. 2 A Pastoral da Juventude Estudantil é organizada por, com e para os estudantes do Ensino Fundamental e Médio para que desempenhem a missão: “construir uma sociedade justa e fraterna, buscando transformações a partir da sala de aula”. Os jovens entrevistados são da PJE de Sapucaia do Sul – jovens entre 13 e 27. 3 O Movimento dos Sem Terra surge em função da reforma agrária no dia 07 de setembro de 1979 em Ronda Alta (RS). Neste Movimento, “a juventude, de fato pode ser a força determinante dentro do MST, assumindo as tarefas de liderança que já são distribuídas dentro das instâncias” (BOGO, 1999, p. 90). Os jovens entrevistados eram do grupo de jovens do assentamento da Fazenda Quinta de Encruzilhada do Sul e tinham entre 12 e 21 anos. 199 convivência, subsídios, contatos com pessoas qualificadas para o trabalho juvenil e uma estrutura mínima para o acompanhamento do processo de formação da juventude. Os dados foram recolhidos através de entrevistas em profundidade (com os jovens dos grupos e egressos de grupos) e através de Grupos de Foco (junto aos jovens dos grupos estudados, com um grupo de controle – jovens que não tiveram experiência de grupo). O desenvolvimento da pesquisa com jovens de grupos e com adultos, egressos de grupos, possibilitou conhecer e avaliar a importância dessa experiência na formação da juventude, concluindo que a participação em grupos pode contribuir para a construção de uma outra cultura, mais solidária e co-responsável, desenvolvendo capacidades individuais e coletivas entre os jovens, constituindo-se em mediação importante para a construção de capital social junto à juventude e o estabelecimento de fundamentos para a construção da cultura da paz. Os dados da pesquisa foram coletados através de entrevistas em profundidade e grupos de foco, acompanhados por um diário de campo e análise documental. As entrevistas foram realizadas junto a 27 jovens, sendo 9 de cada um dos grupos estudados. Os jovens foram classificados conforme seu nível de participação no grupo (iniciante, militante e egresso). Os grupos em foco, por sua vez, foram realizados com 15 jovens, participantes dos três grupos estudados e um grupo de controle formado por 10 jovens que não participam de grupo. A interpretação desses dados teve como referenciais as categorias de capital social, cultura juvenil e educação para a paz. Com esta pesquisa, defendo a hipótese de que nos grupos juvenis desenvolvem-se aprendizagens de e na convivência (tolerância, respeito mútuo, solidariedade, cooperação), fundamentais para a constituição de capital social e a formação de uma sociedade pacífica. Nos grupos desenvolve-se um processo pedagógico privilegiado para a formação da juventude, tendo em vista seu protagonismo e a formação de lideranças. A pergunta que se impôs foi: “A que leva a participação nos grupos de jovens?” Na busca de respostas para os questionamentos, entrei em contato com as pesquisas sobre a temática juventude e grupos, relacionando os aprendizados desenvolvidos na convivência com a categoria capital social. O texto está organizado para que possa revelar os resultados da pesquisa. Após a introdução, apresenta resultados da pesquisa, buscando relacionar a categoria capital social com a cultura da paz. 200 Convivência no grupo e a formação de capital social A convivência em grupo, conforme Flora & Flora (2003), favorece o desenvolvimento de capital social, que pode constituir-se de duas formas: intragrupos (bonding) e intergrupos (bridging). O capital social intragrupos consiste nas vinculações entre pessoas em grupos homogêneos, estabelecidos principalmente sobre critérios como classe, etnicidades, gênero ou outras características sociais, em que os membros do grupo se conhecem em uma multiplicidade de entornos e relações. Como intergrupos, o capital social favorece a sinergia entre grupos, permitindo conectar-se entre si e outros grupos e organizações mais distantes. Conforme Durston (2003), o capital social contribui para o empoderamento de pessoas e comunidades, integrando setores sociais e aproximando as oportunidades entre os atores envolvidos. “Es la antítesis del paternalismo, y la esencia de la autogestión mediante la pedagogía constructivista, que construye sobre las fuerzas existentes de una persona o grupo social” (DURSTON, 2003, p. 187). Esta inter-relação entre capital social e empowerment4 pode contribuir para resolver situações de violência e superar a pobreza de pessoas e comunidades, transformando as relações de poder em favor daqueles que tinham pouca autoridade para que tenham controle sobre os recursos (físicos, humanos, intelectuais, financeiros e de seu próprio ser) e sobre a ideologia (crenças, valores e atitudes). Segundo Durston (2003), os grupos e comunidades que têm considerável reserva de capital social em suas variadas manifestações podem cumprir melhor e mais rapidamente com as condições de empowerment. O acesso às redes que transcendem os círculos fechados da comunidade pobre e o capital social comunitário manifestado em diferentes formas de associativismo são elementos importantes do empowerment das pessoas e das comunidades. Atria (2003, p. 582) delineia duas dimensões ou eixos distintos para abordar o conceito capital social: a primeira, entendida como “una capacidad específica de movilización de determinados recursos por parte de un grupo” e a segunda, que “se remite a la disponibilidad de redes de relaciones sociales”. O autor ressalta que em torno da capacidade 4 Como oficialmente não há o termo empoderamento na língua portuguesa, que poderia expressar o correspondente inglês, empowerment, conceito que toma emprestado noções de diferentes campos de conhecimento e tem suas raízes nas lutas pelos direitos civis (negros, mulheres, estudantes) e na ideologia da “ação social”, presentes nas sociedades dos países desenvolvidos na segunda metade do século XX – prefiro usar o termo empowerment (original e em grifo), incluindo toda a riqueza desta categoria, como a horizontalização, socialização e descentralização do poder entre os cidadãos e o reforço da cidadania. O processo do empowerment inclui a conscientização e a participação com determinado grupo ou ao conjunto de uma sociedade, ou seja, a conquista da condição e da capacidade de participação, inclusão social e exercício da cidadania. Para Shor & Freire (1986), empowerment significa: “A) dar poder a, B) ativar a potencialidade criativa, C) desenvolver a potencialidade criativa do sujeito, D) dinamizar a potencialidade do sujeito”. 201 de mobilização convergem duas noções especialmente importantes: “el liderazgo y su contrapartida, el empoderamiento”. A partir disso, afirma que o capital social de um determinado grupo poderia ser entendido como a capacidade da mobilizar (em benefício da coletividade) os recursos associativos das distintas redes sociais a que têm acesso os membros do grupo em questão. A formação para a liderança e o empowerment são objetivos destacados pelas EBP, PJE e MST, propondo aumentar o poder da autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos através de relações interpessoais e institucionais. Esta proposta pode ser verificada com a pesquisa, indicando que a convivência em grupos contribui para desenvolver atitudes e valores importantes para a construção de capital social. Graficamente, pode ser representada da seguinte maneira: Esquematização gráfica da tese de pesquisa O Jovem e seu entorno LID EMPOWERMENT Encontros no Grupo RANÇA Encontros com outros grupos Vínculos sociais Fonte: HAMMES, 2005, p. 169. Os dados revelaram que os participantes da pesquisa se inserem em um contexto concreto em que atuam, estabelecem relações no seu entorno (com familiares, amigos, colegas de estudo ou trabalho, etc) e a respectiva participação em grupos favorece o desenvolvimento de vínculos com outras pessoas e grupos. Tal processo contribui para que os jovens adquiram capacidades relacionadas à liderança e ao empowerment, importantes para o desenvolvimento de capital social junto a esta juventude. 202 A proposta do grupo como referência básica para a formação da juventude pode ter influência de educadores como Freire, ao propor um dos aspectos fundamentais do empowerment, que “diz respeito às possibilidades de que a ação local fomente a formação de alianças políticas capazes de ampliar o debate da opressão no sentido de contextualizá-la e favorecer a sua compreensão como fenômeno histórico, estrutural e político” (BECKER et al., 2004, p. 657). Aprendizados desenvolvidos nos grupos juvenis Kliksberg (2000) refere quatro tipos de capital: o capital natural (constituído pela dotação de recursos naturais), o capital construído (gerado pelas pessoas, incluindo infraestrutura, bens de capital, capital financeiro, comercial, etc), o capital humano (determinado pelo grau de nutrição, saúde e educação) e o capital social, cujo conceito, conforme o autor: Está aún en plena delimitación de su identidad. Sin embargo, pese a considerables imprecisiones, hay la impresión cada vez más generalizada de que, al investigarlo, las disciplinas del desarrollo están incorporando al conocimiento y a la acción un amplísimo número de variables importantes que estaban fuera del encuadre convencional (KLIKSBERG, 1999, p. 87). Para a compreensão da categoria capital social contribuem as pesquisas de autores como Émile Durkheim, Max Weber, Alex de Tocqueville e Edward Banfield, cuja produção contém elementos precursores do conceito de capital social, enfatizando a importância da sociedade civil e das associações voluntárias para a consolidação da democracia e do bemestar da coletividade. Lyda Judson Hanifan, na sua pesquisa sobre as escolas comunitárias rurais já usou o termo capital social em 1916, como também a urbanista Jane Jacobs, que constatou uma densa rede social entre a vizinhança em 1961, favorecendo a segurança pública, identificada como forma de capital social. A partir da década de 1980, os cientistas sociais Pierre Bourdieu, James Coleman e Robert Putnam retomam o termo e dão novo sentido e difundem seu uso para diversos âmbitos de pesquisa e projeções sociais. Aparecem elementos-chave, como confiança, coesão social, redes, normas e instituições, em vários contextos e disciplinas, em que o conceito tem sido usado, implícito ou explicitamente. Percebe-se que, tal como a categoria juventude, capital social é uma categoria viva, multiplicando sua compreensão nos diversos ambientes em que é usada.5 Nos aproximamos 5 Especialmente com os estudos de Bourdieu, Coleman e Putnam, a categoria capital social é difundida e usada para compreender fatores como violência social, pobreza, democracia, nível educacional, cooperação voluntária, dentre muitos outros. 203 da categoria, buscando apoio na compreensão de capital social em autores já consagrados na temática, em pesquisadores e centros de pesquisa sobre capital social. Capital social, como redes, normas de reciprocidade e confiança, pode ser reforçado pela formação de grupos, a colaboração nos grupos e entre eles na sociedade civil. No entanto, o Estado desempenha um papel essencial, podendo favorecer ou impedir o desenvolvimento e até destruir o capital social, como atestam as pesquisas de Putnam (1995, 1996, 2003) e Baquero (2003). Segundo Flora & Flora (2003, p. 562), o Estado pode contribuir com a reorientação dos recursos e a modificação das regras para que entidades nãogovernamentais possam receber fundos estatais, favorecendo as interações, como também ser inflexível, defendendo sua burocracia, negando espaço e seguridade, contribuindo para destruir o capital social. Putnam (1996), ao analisar as regiões do Norte e Sul da Itália, a partir de estudos empíricos, mostra que “o desenvolvimento de uma instituição não pode ser avaliado de uma semana para a outra” (p. 74) e, ao utilizar indicadores para a mensuração de capital social, delimita sua pesquisa na questão: “Por que alguns governos democráticos têm bom desempenho e outros não?” (p. 19). A constatação de que há diferenças entre Norte e Sul no ambiente político e no desempenho institucional permitiu testar “duas possibilidades genéricas” da origem das diferenças. Com base nos teóricos republicanos, define os indicadores: participação cívica; igualdade política; solidariedade, confiança e tolerância e associações (estruturas sociais de cooperação). O autor conclui: “o contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições” (p. 191). Com a pesquisa, buscamos identificar os efeitos da formação nos grupos juvenis de convivência, a partir da hipótese de que a vivência nos grupos gera ações coletivas, colocando a solidariedade em movimento. A questão que nos orienta é “Quais os efeitos da formação dos grupos juvenis de convivência na construção de capital social?”. Partimos da hipótese de que a metodologia de grupo – relações horizontais –, adotada na PJE, Rede Em Busca da Paz e no MST, desenvolve atitudes de confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas (PUTNAM, 1996, p. 177). A pesquisa com grupos de foco, realizada junto aos jovens dos grupos estudados, com um grupo de controle (jovens que não participam de grupo), contribui para analisar a importância dos grupos juvenis na constituição (ou não) de capital social junto à juventude. 204 Participação em ações de interesse social A partir da hipótese de que a prática da participação desenvolve o espírito democrático, propomos analisar a participação dos jovens em ações de interesse social (participação popular), investigando a visão dos jovens sobre as organizações sociais e a importância que atribuem à participação no grupo e na vida social. Esta participação é checada nos encontros dos Grupos de Foco. Uma primeira aproximação sobre a inclinação dos jovens para a participação em ações de interesse social foi delineada, com base nas suas percepções sobre as organizações sociais. Perguntamos: “Como você vê as organizações sociais? Muito importante, importante ou sem sentido. Por quê?”. Dos 27 entrevistados, 80% vêem as organizações como muito importantes e 20% como importantes. Afirmam que favorece a união e o alcance dos direitos das pessoas e que vêem nas organizações sociais possibilidades para unir as pessoas em torno de objetivos comuns, conseguir direitos e coisas importantes para o bem de todos e são uma alternativa para agregar e formar pessoas para viver em sociedade. Os jovens afirmam que as organizações são: Importante, porque ajudam a formar unidade e melhorar a vida de todos. Muito importante. Contribuem para que as pessoas tenham maior proveito do que existe. A gente tem mais fácil acesso às coisas (Jovem da EBP). Acho importante. É uma alternativa para se inserir e contribuir. Acho que as pessoas que não estão inseridas no grupo não conseguem muitas coisas. As grandes transformações só se consegue com a participação coletiva (Jovem da PJE). Mas os jovens também reconhecem que nem todos as organizações buscam o bem comum e que algumas tendem ao corporativismo. Segundo os jovens: “São muito importantes. Mas temos que reconhecer que nem todos os movimentos querem o bem comum. Só querem o bem do seu grupo, muitas vezes, contra a vontade da maioria”. A partir da afirmação de que “a participação popular está diminuindo”, perguntamos aos jovens do Grupo de Foco: “Para vocês, é importante participar? Por quê?”. Tanto os jovens que realizam (ou realizaram) a experiência de grupos, quanto aqueles que não têm esta experiência afirmaram a importância da participação. E, sugerem: “A motivação para a participação teria que ser constante e os jovens teriam que perceber o valor disso tudo”. Tais predisposições encontram materialização entre os jovens, participantes de grupos que vêm participando da coordenação da catequese, do Conselho Municipal da Juventude, do 205 movimento estudantil, do grêmio estudantil. Por outro lado, nenhum jovem do grupo de controle (dos jovens que não participam de grupos juvenis) referiu participar de alguma associação. Com a participação cidadã direta da juventude e a organização de novas formas de fazer política entre os jovens, rompendo com o esquema clientelista, desenvolvem-se também capacidades de gestão cidadã, pela experiência acumulada de participação. Estas experiências são “caldo de cultivo de nuevas actitudes proclives al reconocimiento y respeto entre generaciones, porque abren posibilidades para la toma de perspectiva y el acceso a espacios de comunicación” (RODRÍGUEZ, 2003, p. 24). Os sistemas de participação cívica, segundo Putnam (1996), são uma forma essencial de capital social: quanto mais desenvolvidos forem esses sistemas numa comunidade, maior será a probabilidade de que seus cidadãos sejam capazes de cooperar em benefício mútuo. A confiança nas pessoas e nas instituições Normalmente os autores (PUTNAM, 1996; BAQUERO, 2003; KLIKSBERG, 2000; dentre outros) destacam a confiança, como componente fundamental na constituição de capital social. Não uma confiança cega, mas que possibilita “acreditar que se goza de confiança dos outros” (PUTNAM, 1996, p. 174) e que aumenta na medida em que se confia. Destacam ainda que a confiança, como elemento de capital social, vai além da confiança interpessoal, abrangendo instituições de interesse coletivo. A questão que orientou a pesquisa sobre a confiança interpessoal foi: “Você confia nos colegas do grupo de convivência (muito, relativo, ou não confia)”. Os entrevistados, participantes, egressos de grupos, responderam, em sua quase totalidade, que confiam nos colegas do grupo, dentre outros motivos, porque são amigos, se conhecem bem, formam um grupo. O conjunto dos depoimentos revela que, na convivência em grupos, os jovens formam comunidade, com vínculos de amizade, respeito e responsabilidade (62,5% das respostas) e favorece o desenvolvimento do conhecimento mútuo que leva à confiança interpessoal (18,8%). Outros destacam que confiam, porque participar do grupo é uma ação voluntária que serve para o apoio mútuo (18,8% das respostas) e porque a confiança nos colegas do grupo abre possibilidades de realizar empreendimentos (18,8% das respostas) e alguns jovens afirmaram que confiam, com restrições e que não são ingênuos porque a confiança cega pode machucar, outros, porém, afirmaram que não confiam nos seus colegas de grupo. 206 Para conhecer melhor a relação de confiança interpessoal, perguntamos ainda se confia nos colegas nos colegas da escola (muito, relativo ou não confia), ao que a grande maioria dos entrevistados respondeu que confia muito (81,5% dos entrevistados). Mas há também os que confiam desconfiando (14,8% dos entrevistados), e mesmo os que não confiam (3,7% dos entrevistados). A confiança, cultivada pela reciprocidade de relações, é destacada pelos entrevistados, que afirmam depositar muita confiança nos colegas da escola porque ajuda a todos. Em seus depoimentos, afirmam confiar porque “há um ganho mútuo”; “dá força para o bem de todos”. Alguns afirmaram que confiam em alguns e em outros não, porque, segundo eles, não se conhecem bem e, também, por haver muita falsidade. Desse modo, revelam que a confiança nas pessoas é conquistada pelas relações interpessoais na convivência em grupos. Estas relações favorecem a sociabilidade dos jovens, tão importante quanto as necessidades materiais. Na expressão de Durston (2003), “satisfactores socioemocionales”, constituindo-se em estímulo para valorizar os grupos e as organizações, porque trazem recompensas, independentemente do êxito ou fracasso do empreendimento compartilhado. Quando perguntados se confiavam na força das associações (muito, relativo ou pouco), os entrevistados responderam, por unanimidade, que confiam. Nos depoimentos, afirmaram sua confiança em relação às organizações, justificando que aumenta a união, possibilitando conquistar benefícios, não só para o indivíduo, mas também para o grupo, e formando redes para uma ação social coletiva. Dentre outros destaques, os jovens responderam: Confio sim. Porque com a participação todos acabamos ganhando: o grupo, a comunidade e cada um de nós (jovem da EBP). Acredito muito. Com a participação de todos é mais fácil descobrir o melhor caminho para todos (jovem do MST). Confio, pois acho que é muito importante como espaço de participação, trocar idéias e construir uma comunidade mais justa. Também para conseguir coisas práticas, como infra-estrutura (jovem da PJE). No entanto, há que se destacar que alguns entrevistados, embora confiem nas associações, ressaltaram que nem todas estão voltadas para o bem comum, preocupadas com o favorecimento pessoal ou o do seu grupo. Afirmam: “Basicamente sim. Mas, às vezes, as associações estão mais voltadas para si, seu grupo, do que para o todo”. 207 Em relação às instituições, os jovens dos grupos estudados referiram que confiam especialmente na Igreja (80% das respostas) e no Judiciário (40% das respostas), indicando como materialização dessas predisposições: “Com a nossa organização (com jantares e rifas) conseguimos dinheiro para pagar nossos custos (cursos) e ajudar as pessoas mais necessitadas do bairro”; “Com os encontros com os jovens e com outros grupos, procuramos unir as pessoas”. Para a CEPAL (2001), as redes de capital social, individual ou comunitário, supõem distintas formas de funcionamento nas relações sociais: a) individual – redes pessoais, manejando contatos para realizar projetos individuais; b) grupal – é uma extensão das redes onde se cruzam muitos vínculos em um grupo onde todos se conhecem, todos são amigos e confiam uns nos outros; c) sistemas institucionais comunitários – são as instituições socioculturais e de vizinhança que funcionam quando têm capital social e não funcionam quando não têm, sendo que a situação de institucionalidade informal é propriedade de toda a comunidade (tem liderança e controle social de seus membros); e d) conexões distantes (horizontais e verticais). Pertencimento a uma rede de cooperação Para compreender a influência da participação em uma rede de relações, intergrupos e intragrupos, procuramos analisar se a vivência em grupos gera (ou não) ações coletivas em benefício da coletividade, colocando a solidariedade em movimento. Perguntamos: “Você tem alguma conquista através da organização comunitária?”. Os jovens da EBP destacam como conquistas principais a arrecadação e distribuição de roupas e alimentos para os pobres e as oficinas de música, brinquedos e de costura. Os do MST, por sua vez, destacam a “conquista da terra (assentamento)”; a “construção da igreja”; a “aquisição do resfriador de leite” e “um projeto de apicultura para um grupo de agricultores”. Já os jovens da PJE, destacam como conquistas o “reforço para os estudantes da 8ª série”; a “arrecadação e distribuição de roupas e alimentos para os pobres”; “o projeto ‘Pé no Chão’” (reforço escolar para crianças); a “melhoria na rede de esgoto” e “uma escola diferente numa vila de Sapucaia (para os pobres)”. As conquistas elencadas pelos jovens dos grupos, através da organização comunitária, revelam as mais diversas ações em que os jovens estão envolvidos. Além disso, revelam especificidades de grupos, em face de sua vinculação com diferentes organizações. São 208 motivações para que continuem participando e um indicativo da importância de pertencer a uma rede de cooperação. Para compreender melhor o índice de pertencimento dos jovens a uma rede de cooperação, perguntamos se participam das reuniões da sua comunidade (bairro) e por que participam. O conjunto das respostas revelou que os jovens do grupo vinculado ao MST referiram um maior índice de participação em ações da coletividade (77,8% das respostas), seguidos pela EBP (72,7% das respostas) e PJE (66,7% das respostas). Os jovens que participam revelam estar envolvidos por diferentes por motivos. Um grupo afirma que se envolve porque aprendeu a valorizar a participação em ações coletivas: “participo da comunidade porque acredito que é importante”, ou “porque aprendi a valorizar a participação de todos”. Outros afirmaram que a participação abre-se em forma de uma rede de participação e referem: “participo do grupo e, a partir dele, participo de reuniões com a coordenação da Rede, de retiros e cursos, organizados pela Pastoral da Juventude”; “como coordenadora do grupo participo de outras reuniões de lideranças”. Já os que não participam se justificam, dizendo que têm planejado se engajar em uma ação coletiva, ou referem que não têm tempo, moram longe, dentre outros motivos. Porém, o conjunto dos entrevistados concorda que a participação comunitária está diminuindo e cita conseqüências da cultura individualista que se impõe, conforme a sua experiência de vida: Acho que isso não é bom para a sociedade, porque aumenta sempre mais o individualismo (jovem da EBP). A gente vê a pobreza aumentando muito, porque algumas pessoas querem tudo, especialmente terra, dinheiro e casas (jovem do MST). Aumenta a desconfiança por causa da competição (jovem da EPB) Os entrevistados afirmam que é importante superar o individualismo com respostas como: “Acho que é importante superar o individualismo, pois, além de pensar em si, também é importante pensar na comunidade e nos outros, como um todo e nos pobres”. Mas afirmaram também: “Acho importante não superar a individualidade, pois temos que cuidar de nós, da família, dos estudos. Mas acho importante cultivar valores comunitários”. Em relação às estruturas de relações, o conjunto dos entrevistados revela que, “de modo geral, instituições e movimentos sociais apresentam uma estrutura hierarquizada de relações”. Especialmente, os jovens que não têm a experiência de grupo afirmam o valor das 209 relações hierarquizadas, pois, “se não há comando, as coisas não acontecem” ou, “assim como na família as relações são verticais, concordo que elas sejam necessárias para ter ordem”. Já os jovens dos grupos defendem instituições e grupos em que haja relações horizontais, com depoimentos como: “Conhecemos, por exemplo, bispos que trabalham bem com o povo, com relações horizontais”; “na Pastoral, mesmo não sendo da coordenação, eu posso participar de encontros”; “também acho que a família é um espaço de relações horizontais, porque podemos conversar abertamente”. Percebe-se que os jovens dos grupos valorizam a participação e as relações horizontais, considerando-as importantes e adequadas para os jovens de hoje. Já os que não fizeram a experiência de grupo, afirmam que neste tipo de relações “todos seriam valorizados”, mas “seria meio desorganizado, porque não tem quem dita as regras”, evidenciando sua crença em relações hierarquizadas de poder. Bourdieu (1998), ao conceituar capital social, destaca a constituição de uma “rede durável de relações”, vinculadas a um grupo. Dados da presente pesquisa revelam que os grupos juvenis podem formar esses recursos, organizar-se em redes de relações. A participação comunitária ou em grupos horizontalmente organizados (PUTNAM, 1996) exige o envolvimento em ações de cooperação e o acompanhamento destas através de reuniões e encontros, formais ou informais. Tolerância, respeito mútuo e solidariedade Fukuyama (1999) define capital social como normas ou valores partilhados que promovem a cooperação social, “not as formal laws but rather as informal norms promoting cooperative behavior” (p. 28). Nessa perspectiva, o capital social pode ser cultivado e transmitido no âmbito dos valores culturais, pois “la cultura es el ámbito básico donde una sociedad genera valores y los transmite generacionalmente” (KLIKSBERG, 1999, p. 27). Nos Grupos de Foco, uma das temáticas pesquisadas era a tolerância entre a juventude, com a frase provadora: “Em geral as pessoas têm dificuldades para lidar com opiniões contrárias e há pouca tolerância com idéias diferentes”. Procuramos identificar as predisposições dos jovens para a tolerância e o respeito mútuo, perguntando: “O que vocês pensam desta afirmação? Concordam com ela? Por quê?”. O debate resultou em duas posições: os que se colocaram a favor, dizendo que conhecem pessoas que “teimam, não aceitam os outros e querem impor sua idéia” e aqueles que não concordaram com a afirmação, 210 justificando com depoimentos como: “Sou uma pessoa pouco tolerante, mas no grupo temos que ceder”; e “embora cada um tenha sua idéia, é possível aceitar e trabalhar com o outro”. Conforme os entrevistados, o grupo é um espaço de debate de idéias e de construção de acordos em relação às controvérsias que vão aparecendo na caminhada: No grupo aprendemos a respeitar as idéias dos outro, procurando olhar os dois lados e analisamos as posições diferentes. Aprendemos a não desistir das idéias simplesmente porque o outro pensa diferente, mas também não podemos passar por cima dos outros. Ver sempre o que é melhor para todos (jovem da PJE). Nós procuramos sempre colocar em comum as idéias. Se forem idéias diferentes somos capazes de fazer um acordo, através do diálogo (jovem da EBP). No entanto, em relação à tolerância e ao respeito mútuo, os jovens afirmaram que ainda há muita discriminação e que tem um caminho muito grande a percorrer “até chegar a nos aceitar a todos como realmente somos” (jovem da EBP). Outra temática aprofundada nos Grupos de Foco foi a solidariedade juvenil, com a frase: “O lema que parece estar sempre presente nas relações é cada um para si e Deus por todos”. Durante o debate, alguns responderam que concordam com a afirmação, através de considerações como: “No começo todos são amigos, mas na hora H é apenas concorrente”. Já um outro grupo discordou, afirmando que: “Tem muita gente que faz trabalho voluntário” e “Não dá mais para pensar só em si, pois podemos precisar do outro” (jovem do MST). Quando perguntamos se era importante ser solidário, todos responderam afirmativamente, indicando ser muito importantes a participação e a solidariedade, referindo como ações sociais de solidariedade, o sopão da solidariedade, a entre-ajuda nas colheitas, as coletas de roupas e alimentos para distribuir entre os pobres. Os depoimentos assinalam que, de modo geral, os jovens revelam que gostariam de viver numa sociedade em que os valores comunitários fossem respeitados. Embora a situação sócio-econômico-cultural em que os jovens se encontram influencie decisivamente em suas práticas cotidianas de caráter individualista, a pesquisa revelou haver ainda predisposições para trabalhar coletivamente, em busca de valores comunitários por parte dos jovens integrantes dos grupos estudados. Os cidadãos virtuosos, conforme Putnam (1996), são prestativos, respeitosos e confiantes uns nos outros, ainda que haja divergência em relação a assuntos importantes. O 211 autor constata conseqüências da participação social em análise recente sobre iniciativas comunitárias na América Latina, ressaltando a importância social da cooperação local e da mobilização política, mesmo quando não se logram resultados práticos imediatos, mas por contribuírem indiretamente para “combater o isolamento e a desconfiança mútua” (PUTNAM, 1996, p. 102). A formação para a solidariedade também pode ser intensificada através da educação cidadã, como sugere Valdivieso (2003): “La educación ciudadana puede promover la participación, mediante el conocimiento y la afirmación de valores positivos para la convivencia, la responsabilidad, la tolerancia, la solidaridad y el sentido por la justicia” (p. 9). Esta perspectiva de educação vai ao encontro da perspectiva de Humberto Eco (1998), sugerindo que a educação para a tolerância comece na “mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne uma casca comportamental espessa e dura demais” (p.117). Os jovens afirmaram, nesta pesquisa, os grupos como espaços formativos para a tolerância, o respeito mútuo e a solidariedade, valores importantes para a conivência humana e condições essenciais para construção de capital social. Convivência, liderança e empowerment A formação de lideranças e o protagonismo juvenil estão na base das organizações a que os grupos estudados nesta pesquisa estão vinculados. Ainda que cada organização tenha seus objetivos, o princípio pedagógico que orienta sua proposta é o protagonismo juvenil e a formação de lideranças. Em suas respostas os entrevistados para a tese afirmaram que a liderança nos grupos era exercida de modo participativo, com a escolha de uma equipe de coordenação de modo democrático, com uma assessoria e a coordenação geral, através do rodízio de liderança, representações e da participação de todos. Em seus depoimentos revelam também particularidades de cada grupo, como mostra a Tabela 1, organizada a partir das entrevistas em profundidade. 212 Tabela 1 – Exercício da liderança nos grupos juvenis (%) Organização O exercício da liderança PJE MST De forma participativa 13,6 35,7 Por uma equipe de coordenação 31,8 7,1 De modo democrático 18,2 21,4 Com um (a) assessor (a) 13,6 Com a participação de todos 28,6 Com o rodízio da coordenação 22,7 7,1 Com anotações em atas Total da coluna 100,0 100,0 Número de respostas 22 14 Fonte: HAMMES, Lúcio Jorge, 2005, * n=27 (enquadramento múltiplo nas categorias da variável “o exercício da liderança”) EPB 22,7 18,2 22,7 22,7 4,5 4,5 4,5 100,0 22 p. Total 22,4 20,7 20,7 13,8 8,6 12,1 1,7 100,0 58* 169. Parece que o alcance dos objetivos e das ações desenvolvidas nos grupos se concretiza com a formação e o exercício da liderança nas organizações em que participam e nas redes que vão construindo. Esse processo de formação que tem presente a participação protagônica da juventude contribui para formar grupos e lideranças capazes de obter sucesso em outras ações que propõem, capacitando seus participantes a atuar na realidade social de forma organizada e coletivamente que, conforme Freire (1985), não existe por acaso, como também não se transforma por acaso. Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se entregam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘convivência’ com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita a um nível puramente intelectual, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas que esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (FREIRE, 1985, p. 37). Para Freire, práxis é uma atividade com a qual os indivíduos criam cultura e sociedade, formando pessoas com consciência crítica, através do ciclo da ação-reflexão-ação. Esta proposta unindo teoria e prática marcou profundamente as organizações voltadas para a conscientização e a libertação de pessoas e grupos a partir dos anos de 1960. As características da práxis incluem autodeterminação, intencionalidade, criatividade e racionalidade, reconhecidas como centrais para o empowerment das pessoas. Por isso, segundo Freire, “a libertação autêntica é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1985, p. 58) 213 Segundo Gohn (2002), o significado e o resultado do uso da dimensão do empowerment não têm um caráter universal, podendo promover e impulsionar grupos e comunidades – crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas; como poderá promover a integração dos excluídos e carentes de bens elementares à sobrevivência, serviços públicos, atenção pessoal, etc. O conceito inclui o aumento do poder e da autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institucionais. Becker et al. (2004) mostram que o empowerment é importante para a redução da iniqüidade, para promover a saúde e a qualidade de vida e “contribui para o surgimento de um tecido social fortalecido pelas interações que promove, evidenciadas pelo caráter dialético e contraditório presente em todas as relações sociais e essencialmente confere poder ao sujeito social envolvido” (p 657). No entanto, conforme alerta Freire (1986), na sociedade latino-americana o tecido social a ser fortalecido se identifica com classe social, pois o empowerment individual ou de alguns não é o suficiente, embora seja fundamental para a transformação radical da sociedade. Este educador compreende o empowerment, “como empowerment de classe social. Não individual, nem comunitário, nem meramente social, mas um conceito de empowerment ligado à classe social” (SHOR & FREIRE, 1986). Para identificar o empowerment desenvolvido nos grupos juvenis, problematizamos nos Grupos de Foco as predisposições dos jovens e suas ações em relação à temática participação e empowerment. O estímulo que contribuiu para orientar o debate foi: “O poder é essencial a todas as coisas vivas”. Os entrevistados reagiram, afirmando que “sentir-se capaz é bom, pois, para buscar qualquer coisa, temos que ter a confiança” e “todos temos um poder muito grande, como a capacidade de sair e fazer alguma coisa a mais”. Destacaram que nos grupos em que participam não há aqueles que são maiores: é um poder compartilhado – no caso de escrever a ata, se alguém não tem como fazer é pedido para que um outro assuma. E sentem que têm poder ao participar de ações como “jejuns pela paz”, “manifestações contra o aumento da passagem escolar”; “participação nas reuniões da comunidade”. Ao serem questionados sobre a finalidade das manifestações que desenvolveram, os entrevistados responderam que: “A preocupação era social, para o benefício de todos”; “o objetivo era chamar a atenção da mídia para mostrar que não queríamos mais tanta violência”; “conseguir melhores condições para as crianças”; “conseguir diminuir o valor da passagem porque muitos jovens já não conseguem estudar”. Além disso, afirmaram: “com a participação a luta se renova” e “nós nos sentimos bem, participando”. 214 Gadotti (2002), ao apresentar reflexão a respeito de uma educação da juventude orientada para o empowerment e a formação de lideranças, destaca a importância dos jovens serem ouvidos em suas demandas, referindo o papel de mediação do educador na tradução dessas demandas. O autor chama a atenção para a necessidade de participação dos jovens em todas as esferas da ação educativa – do planejamento à execução e avaliação das ações – e de seu papel como atores e autores de projetos que busquem problematizar e comparar realidades distintas das suas, a fim de que possam exercer um papel protagônico na sua escola, na comunidade e na sociedade mais ampla. Segundo Gadotti (2002), o jovem é apático quando o protagonismo juvenil é de “padrão” adulto, isto é, quando são pessoas do mundo adulto que atuam junto com os jovens a partir da perspectiva do adulto e não os jovens que o fazem de maneira autônoma a partir da sua perspectiva. O Capital social e a construção de uma cultura da paz Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os indicadores sociais (2004) mostram que os homicídios representam a maior causa de mortes externas (41%) de jovens de 15 a 24 anos. Especificamente para o sexo masculino, no período de 1980 a 2000, as taxas de mortalidade por homicídio mais que duplicaram, passando de 21,2 para 49,7 óbitos por 100 mil habitantes. Estes dados se tornam mais eloqüentes observando as pesquisas sobre capital social como as da World Values Survey6 ao constatarem que o engajamento cívico de todos os tipos está declinando, com destaque para o Brasil, ocupando o lugar mais baixo em confiança social e um dos mais baixos em engajamento cívico dos 35 países pesquisados. Além disso, pesquisas empíricas identificam que o capital social (Putnam, 1995) pode melhorar a educação, diminuir a pobreza, inibir o crime, incentivar o desempenho econômico, promover um governo melhor e até reduzir a mortalidade. Ao contrário, as deficiências de capital social contribuem para muitos males sociais, econômicos, políticos e sociais. De modo geral, as pesquisas indicam ainda uma organização social baseada no paradigma (cultural) militarista e violento, o que contribui para a compreensão do fato social da violência, não episódica, mas metódica. Parece fazer parte da racionalidade moderna, 6 Os dados estão disponíveis no site <http://www.worldvaluessurvey.org>. acesso em maio de 2008. 215 expressão do paradigma dominante (desvendou os segredos do átomo e produz supersafra na agricultura, condena um terço da humanidade à fome e é capaz de explodir cidades como Hiroshima e Nagasaki), podendo se desenvolver com um “currículo oculto”7 que educa para a violência de modo muito sutil, pelos programas de televisão, músicas, nomes de rua, etc. Porém, sabemos que o paradigma não se impõe para sempre. Sousa Santos (2001) já diagnosticou a crise do paradigma da racionalidade moderna, trazendo o perfil do paradigma emergente, chamado pelo autor como o “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente” (SOUSA SANTOS, 2001, p. 36). Como paradigma científico (conhecimento prudente) e social (vida decente), este paradigma encontra adeptos entre aqueles que desejam fortalecer uma atitude crítica à cultura de violência, fornecendo instrumental para perceberem como a violência e o militarismo atuam em diversos canais, como, por exemplo, nos brinquedos e jogos de guerra e através dos meios de comunicação. Os resultados da tese (Hammes, 2005) indicam que capital social tem importância decisiva para a construção da cultura da paz. À questão “O que aprenderam com a experiência no grupo de jovens”, os entrevistados responderam: Já tive oportunidade em que afirmei que a minha principal escola foi a Pastoral da Juventude. O fato de conseguir olhar além do óbvio, devo muito à PJ. O que está em mim da PJ: a consciência crítica e, gostar e saber trabalhar em grupo (jovem da PJE). Não consigo hoje imaginar minha vida sem o grupo de jovens. Mas para mim foi um espaço de descoberta das potencialidades. Com o processo de participação no grupo de jovens fui me descobrindo capaz, companheiro, cristão, solidário, líder e, sobretudo, comprometido com o mundo, uma ética nova, o Reino de Deus. De propor algo diferente do normal que está sendo oferecido. Acredito que o grupo, além de gestar o novo, suscitar o novo, é o espaço de descobrir que o novo pode se fazer no coletivo. Que o sonho somado é mais possível, como dizia D. Hélder Câmara – sonho que se sonha juntos (jovem da PJE). No grupo a gente aprende a ser muito humano, a cativar pessoas, a ser cativado, a gente se abre para o outro. A gente aprende a partilhar. A gente aprende a cuidar do outro. Começa a ser crítico. É todo um processo. E a cada passo que você dá aprende uma coisa diferente. Aprende a escutar o 7 O “currículo oculto” é o conjunto de práticas e métodos utilizados, não previstos ou não pretendidos explicitamente. Ou seja, o conjunto de fatores modeladores de aprendizagens não-acadêmicas e não-mensuráveis, ou ainda o contexto social, normas sociais e princípios de conduta, dada a sua prolongada exposição a esse ambiente. Entram neste currículo, por exemplo, as mídias que divulgam fotos que comovem até os corações mais endurecidos e geram revolta e desejo de vingança nas mentes belicosas. 216 próximo, respeitar as opiniões diferentes. Aprende a respeitar o diferente e a abrir os braços para ele. Todos somos diferentes (jovem da PJE). Aprendi bastante. Tipo, não incentivar a violência. Me sinto mais solidário. Um pacifista (jovem da EBP). Em suas respostas os entrevistados revelam a importância do grupo para assumirem uma nova postura, marcada pelo compromisso social e a construção de relações pautadas em uma cultura de paz. Ao perguntar “Que mudanças você destaca em sua vida pela participação no grupo?”, destacam-se respostas como: A solidariedade, o interesse em participar. O sentimento da necessidade de pegar juntos para o bem de todos (jovem do MST). Antes eu era muito caseiro e levava uma vida muito individualista. Depois, quando começamos a nos reunir, começamos a sentir o valor da união e da participação (jovem do MST). Passei a respeitar mais os colegas e a não julgar as pessoas pela aparência. Antes não podíamos ter esta relação de cada um colocar sua opinião” (jovem da EBP). Eu mudei bastante em casa. Sou mais participativa e não brigo mais tanto. E na comunidade me sinto mais integrada e assumo junto as responsabilidades para termos uma sociedade melhor (jovem da EBP). As respostas dos jovens mostram que nos grupos se desenvolvem aprendizados importantes para a construção de capital social e da cultura da paz. Acontecem mudanças de percepçao da realidade e aprendem novas formas de se relacionar com as pessoas e o mundo, indo contra a maré individualista e violenta, princípios tão divulgados pela sociedade moderna. Com as pesquisas de Abramovay & Pinheiro (2004), García & Sarmento (2002) e Putnam (1995), percebe-se que o capital social é importante para a convivência humana e que as relações de confiança, as redes e a cidadania contribuem para a formação de uma sociedade solidária, capaz de dirimir os conflitos pelos princípios da não-violência e da paz. Atributo importante para a convivência, o capital social é produto das relações sociais: “os estoques de capital social, como confiança, normas e sistemas de participação, tendem a ser cumulativos e a reforçar-se mutuamente” (PUTNAM, 1996, p. 186). Esta compreensão da paz e da violência favorece a militância por uma cultura de nãoviolência e paz, entendendo que não somos naturalmente violentos ou pacíficos: a violência e a paz são ensinadas; a violência e a paz são apreendidas. A construção da cultura de paz é 217 possível, através do estabelecimento de bases para a convivência humana, onde a juventude com seus grupos tem papel importante, proporcionando o desenvolvimento da sua consciência ética, política, moral e social. Além disso, a compreensão da violência e da paz, na relação social mais ampla, pode contribuir para que a publicação dos atos de violência não a tornem trivial, buscando soluções em sociedade. As manchetes como “jovens morrem em acidente de trânsito”, “dois jovens assaltam e matam uma senhora idosa”, “jovens feridos em baile funk”, levam muitas vezes, pelo afã de compreender e prevenir a violência, a olhar os jovens em sua situação individual e familiar (quando muito) e não se pergunta: como, mesmo em comunidades muito pobres, onde a violência e os traficantes de drogas oferecem aos jovens uma renda imediata, tantos jovens optam pela paz? Quais as utopias e esperanças da juventude de hoje? Quais as redes, ou grupos que dão sustentação a estas utopias e esperanças? Como esta pesquisa, é possível perceber que as relações de confiança, as redes e a cidadania contribuem também para a formação de uma sociedade mais solidária, baseada nos princípios de não-violência e paz. Nessa perspectiva, o capital social é um elemento importante para a convivência humana, permitindo afirmar que, aumentando o capital social entre a juventude, diminui a violência e se constrói uma cultura da paz. Essa afirmação é possível porque a participação em grupos e comunidades favorece a visibilidade perante a sociedade8 e melhora as chances de cada um se tornar líder comunitário, atuando em favor da coletividade. Considerações finais Resultados desta análise vão ao encontro da tese postulada nesta pesquisa, de que a convivência em grupos pode contribuir para a construção de uma outra cultura, mais solidária e co-responsável, desenvolvendo capacidades individuais e coletivas, relações de confiança e de entre-ajuda, as quais se constituem em mediações importantes para a construção de capital social junto à juventude e à comunidade, contribuindo para a formação de uma cultura da paz. As pesquisas têm mostrando que os grupos influenciam fortemente a vida dos jovens, clareando questões, propiciando novos referenciais e possibilitando uma atuação que abre espaço para a criação de expectativas de uma perspectiva de vida. Além de possibilitar a 8 Alguns afirmam que a pior forma de violência é a invisibilidade, ou seja, não ser reconhecido ou valorizado na família, na escola em outros espaços da juventude. 218 assimilação da novidade, a convivência transforma o indivíduo e o grupo, deslocando o indivíduo de si próprio para o universo do outro, favorecendo o encontro de sujeitos capazes de “dizer sua palavra” e conquistar sua dignidade. As relações de confiança, as redes e a cidadania contribuem para a formação de uma sociedade solidária, capaz de dirimir seus conflitos pelos princípios de não-violência e paz. Nessa perspectiva, Abramovay & Pinheiro (2004), García & Sarmento (2002) e Putnam (1995) indicam o capital social como elemento importante para a convivência humana. Com eles poder-se-ia afirmar que, aumentando o capital social entre a juventude, diminui a violência. Essa afirmação é possível porque a participação em grupos e comunidades favorece a visibilidade perante a sociedade9 e melhora as chances de se tornar líder comunitário, atuando em favor da coletividade. Em Sevilha (Espanha), reuniram-se pesquisadores em diversas disciplinas para “chamar a atenção sobre as atividades mais perigosas e mais destrutivas da nossa espécie, a saber, a violência e a guerra”, resultando no Manifesto de Sevilha10 que impugna pretensiosos descobrimentos biológicos, usados para justificar a violência e a guerra. Esses pesquisadores afirmam que é incorreto dizer que herdamos de nossos antepassados (os animais) uma propensão para fazer guerra; que a guerra, ou qualquer outra forma de comportamento violento, está geneticamente programado na natureza humana; que no decorrer da evolução humana se operou uma seleção a favor do comportamento agressivo sobre outros tipos; que os homens têm cérebro violento; ou ainda, que a guerra é um fenômeno instintivo ou que responde a um único motivo. Segundo o referido manifesto: “Assim como as guerras começam na alma dos homens, a paz também encontra sua origem em nossa alma. A mesma espécie que inventou a guerra, também, é capaz de inventar a paz”. Na mesma perspectiva, Garcia & Sarmiento (2002) afirmam que o conflito armado na Colômbia, por exemplo, não só gera respostas violentas, mas também expressões pacifistas de contundente rechaço aos grupos armados, com marchas e atos de resistência civil, buscando soluções para a construção da paz, que transcendem a conjuntura presente, em vistas de melhorar suas condições de vida. Os autores analisam que os Programas Regionales de Desarrollo y Paz (PRDP) têm abrandado o conflito, com a participação de todos na 9 Alguns afirmam que a pior forma de violência é a invisibilidade, ou seja, não ser reconhecido ou valorizado na família, na escola ou outros espaços da juventude. 10 Manifesto de Sevilha foi lançado no dia 16 de maio de 1986, por uma reunião mundial de cientistas em Sevilha (Espanha), adotado pela UNESCO na sua 25ª. sessão da conferência geral em 1989. Trad. de Beatriz Didonet Nery. Disponível em: <www.educapaz.org.br>. Acesso em: dez.2007. 219 identificação e solução dos problemas, estabelecendo condições que poderiam levar à consolidação dos processos de descentralização do Estado e sua aproximação com as populações. A integração dos programas leva a um aprendizado coletivo, com uma concepção e prática da promoção e criação de capital social que se desenvolve nestes programas. Essa posição também é assumida por Putnam (2003), ao defender avaliações rotineiras das políticas sobre o impacto no ambiente físico, para evitar políticas que danifiquem os laços comunitários. Sugere estratégias do “crescimento inteligente” para, não só evitar o crescimento desordenado das áreas suburbanas para reduzir a poluição do ar, como, também, permitir aos trabalhadores passar mais tempo com a família e os amigos. Neste sentido, as pesquisas indicam que o capital social contribui para o controle da criminalidade e das drogas, através das normas e redes comunitárias. Essa perspectiva vai à raiz do problema (violência-criminalidade) e contribui para a sua superação. Como ensina Paulo Freire: “A paz se cria, se constrói, na e pela superação das realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói, na construção incessante da justiça social” (apud GADOTTI et allii, 1996, p. 52). Resultados desta pesquisa permitem inferir que a violência e paz deveriam ser compreendidas na relação social mais ampla. E a publicação dos atos de violência deveria ter o cuidado para não torná-los triviais, buscando as soluções também em sociedade. As manchetes como “Jovens morrem em acidente de trânsito”, “Estudante mata cinto e fere três”, “Escola pára por causa de briga entre gangues”, levam muitas vezes, pelo afã de compreender e prevenir a violência, a olhar os jovens em sua situação individual e familiar (quando muito) e não se pergunta: como, mesmo em comunidades muito pobres, onde a violência e os traficantes de drogas oferecem aos jovens uma renda imediata, tantos jovens optam pela paz? Quais as utopias e esperanças da juventude de hoje? Quais as redes, ou grupos, que dão sustentação a estas utopias e esperanças? Referências Bibliográficas ABRAMOVAY, Miriam e PINHEIRO, Leonardo Castro. Violência e vulnerabilidade social. In: FRAERMAN, Alicia (Ed.). Inclusión social y desarrollo: Presente y futuro de La Comunidad IberoAmericana. Madri: Comunica. 2003. ATRIA, Raúl. Capital social: concepto, dimensiones y estrategias para su desarrollo. 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Constitui-se uma economia global, isto é, intensificou o processo de internacionalização das economias capitalistas, ligando pessoas e atividades em todo o mundo e, ao mesmo tempo, expulsando das redes de poder e riqueza grande contingente de pessoas e de populações. Nosso mundo - e nossa vida - está sendo resignificado, produzindo uma nova forma de sociedade na qual a cidadania passa pelo consumo e o imaginário se põe a serviço do dinheiro. Todavia, apesar da pujança do crescimento econômico, o desemprego torna-se crônico, o salário médio tende a baixar, explode o trabalho flexível e informal e a exclusão se agrava. De fato, a pobreza e a exclusão social têm aumentado enormemente no capitalismo contemporâneo. A globalização da produção e das trocas capitalistas (que inclui a internacionalização das decisões e a grande mobilidade do capital) torna as relações econômicas independentes do controle político. A lógica capitalista do lucro pela exploração da força de trabalho perde referências de contestação, porquanto a soberania política tende a declinar. Entre os traços mais marcantes deste processo está o enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social, portanto, das políticas públicas capazes de inserir, pela via institucional, as pessoas em zonas de integração social ou, pelo menos, de impedir que elas sejam jogadas em zonas de desfiliação e de exclusão. A mobilidade do capital e dos grupos transnacionais desobriga qualquer compromisso com os países nos quais desenvolvem suas atividades. O Estado não tem poder de negociação 223 frente a elas, mas tem compromisso com o capital e o cumpre. Com efeito, o Estado se enfraquece em termos do bem-estar social, constrangendo o atendimento (em saúde, em educação, em garantias de empregos...) da população e se fortalece para atender às demandas das finanças e de outros interesses internacionais. Os grupos transnacionais visam gerar mercadorias a baixo custo, fragmentando e dispersando o processo de produção, percorrendo, para isso, diferentes países e regiões, com variadas formas de engajamento do trabalhador (pagamento por peça, contratos convencionais, terceirização, contratos precários...) e visam consolidar um mercado consumidor global. Ou seja, os grupos transnacionais orbitam em torno do lucro em detrimento do bem-estar do planeta, das pessoas, da ética. Este processo produtor de subjetividades vinculadas com o valor dinheiro e o valor consumo, também produz, em paralelo, um potencial enorme de subjetividade capaz de fornecer uma base ética e ontológica antagonista e favorável a outro modo de viver. Neste ensaio, assumimos a tarefa de refletir a respeito dessa subjetividade que se insurge contra o poder da globalização, portanto, não sucumbindo a ele, produz alternativas locais de sustentabilidade que desatam posições econômicas, políticas e culturais. Na correnteza desse arranjo, também queremos refletir a respeito da educação. Três são os eixos que, interligados, orientam o trabalho: produção de subjetividades, alternativas de sustentabilidade no interior da globalização e, finalmente, educação para a sustentabilidade. A produção da subjetividade O sujeito é constituído no interior da trama histórica.11 Portanto, ele é produto de uma série de elementos heterogêneos e de determinações estranhas a si mesmo. O sujeito, produzido sempre em consonância com as tecnologias de poder de cada época, é o resultado de um processo de subjetivação. Acontece que o poder coloca em ação relações, dispositivos e tecnologias com vistas a construir tipos de sujeito. O sujeito do capitalismo pós-industrial tende a ser mais fluído, mais ondulatório do que o sujeito do capitalismo industrial, muito mais fixado no espaço e no tempo, planejado e repetitivo, dotado de certezas que a modernidade lhe ofertava. O tempo de 11 Não vamos entrar aqui na discussão conceitual do sujeito. 224 criação em que vive o sujeito do capitalismo pós-industrial, apesar do biopoder, pode se abrir, no entanto, para um devir, negando a fatalidade do destino. No capitalismo industrial, a disciplina é a matriz social, construída por uma rede ramificada de dispositivos ou de aparelhos que produzem hábitos, costumes e práticas produtivas. O assujeitamento real na sociedade disciplinar se origina mecanicamente de uma relação fictícia no interior das instituições médicas, punitivas, pedagógicas, tecnológicas, capazes de produzir corpos dóceis. Os corpos dóceis são bem divididos, sua atividade controlada, sua gênese organizada e suas forças compostas, resultado das pequenas espertezas, das acomodações sutis, das inconfessáveis economias e das coerções sem grandeza (FOULCAULT, 1977). Isto é, os corpos dóceis e submissos resultam das espertezas da razão. A sociedade disciplinar, com seus mecanismos de integração e de exclusão, funciona sobre o princípio do confinamento: família, escola, caserna, hospital, prisão (DELEUZE & GUATTARI,1977). O corpo passa de um espaço fechado a outro. Mas não foi suficiente apenas confinar, foi preciso enquadrar, quadricular o espaço real e simbólico, onde cada um tem um lugar, um código funcional, uma classificação, seguindo um programa educativo. Foi preciso, também, ordenar o tempo (FOUCAULT,1991). Compor no espaço-tempo uma força produtiva. A sociedade disciplinar foi capaz de organizar a produção. Nela a sanção normativa está onipresente. Não há, na sociedade disciplinar, uma cultura da vontade geral, mas uma cultura da docilidade automática. Todavia, a sociedade disciplinar tende a se converter na sociedade de controle, Michel Foucault previu isso. Não que a nova sociedade abandone o poder disciplinar, o que ocorre é a permanência da disciplina (já interiorizada) e a agregação do controle. Os confinamentos são moldes e os controles modulações (DELEUZE, 1990). Ou seja, diferente da disciplina que permanece como um molde interiorizado, o controle funciona como uma moldagem autodeformante que muda continuamente. Não se está mais diante do par massa-indivíduo, mas diante de divisíveis (DELEUZE, 1990). Diante da multiplicidade singular. Portanto, são outras as subjetividades produzidas. O capitalismo pós-industrial, de sobre-produção, não se ocupa da produção, esta é relegada aos países periféricos, mas se ocupa da compra de produtos acabados e de peças destacadas. A questão é que ele se investe em vender serviços e comprar ações. Portanto, é um capitalismo eminentemente dispersivo, fragmentador. Com isso as instituições tornam-se frágeis, deformáveis e transformáveis. 225 Nessa circunstância, o poder necessário ao desenvolvimento e manutenção do capitalismo pós-industrial não é mais disciplinar, mas de controle. Trata-se da implantação de um regime de dominação diferente daquele estabelecido nas sociedades disciplinares. Hoje, os mecanismos de dominação são muito mais democráticos e sempre mais imanentes ao campo social. E, também, estão muito mais interiorizados no sujeito. Toni Negri (2000) observa que a sociedade de controle pode ser caracterizada por uma intensificação e uma generalização dos aparelhos normalizadores da disciplina que animam, do interior, as práticas ordinárias e cotidianas. Entretanto, ao contrário da disciplina, o controle se estende além das instituições sociais, através das redes, flutuantes e moduláveis. O novo paradigma do poder tem uma natureza biopolítica (FOULCAULT, 1994). O biopoder é uma forma de poder que regulamenta a vida social, desde o seu interior, seguindoa, interpretando-a, assimilando-a e reformulando-a. Ou seja, o poder investe na vida e a administra, pois o que está em jogo é a própria vida. A vida tornou-se, como afirma Foucault (1994), um objeto do poder. O resultado disso é que o poder penetra de tal modo na consciência e no corpo a ponto de organizar, para cada um, a totalidade de suas atividades. Na sociedade disciplinar esse englobamento não era totalizante, o que possibilitava que entre o poder e o corpo social houvesse um espaço de resistência. Com o biopoder - o poder que penetra nos centros vitais da estrutura social e de seus processos de desenvolvimento - o corpo social é totalmente englobado pela máquina do poder. Portanto, a implicação das forças sociais é cada vez mais intensa. Ao organizar o planeta em conjunto com o capitalismo pósindustrial, o biopoder o faz com uma tensão e uma crueldade enormes, instaurando uma brutal desigualdade entre ricos e pobres. O capitalismo contemporâneo não é capaz de regular o prodigioso aumento da capacidade de produção dos meios atuais com um sistema de distribuição da riqueza. Toni Negri (2000), analisando a submissão total facultada pelo investimento do biopoder, observa que é justamente essa submissão que o capitalismo procurou ao longo do seu desenvolvimento e que ela está totalmente realizada. A submissão real vai além do econômico ou do cultural, mas abrange, antes de tudo, o bios social. O poder biopolítico influencia a produção de um tipo de subjetividade. Entretanto, outras forças (entendimento, vontade, imaginação...) podem fazer nascer outras combinações e, portanto, outro tipo de subjetividade. Até mesmo uma subjetividade emancipada (ou em vias de emancipação), capaz de inventar novas possibilidades de vida. 226 Em outros termos, em cada época o poder produz um modo de pensar e de agir que só o agir humano tomado por uma ética, na via do contrapoder ou do antipoder, pode a ele resistir ou se insurgir. Assim, se, por um lado, o poder tem capacidade de produzir sujeitos para assujeitar, por outro, só os sujeitos, com suas potências desbloqueadas e movidos pela razão subversiva, estão capacitados a produzir estratégias contra o poder, tornando-se uma força subjetiva. A questão, portanto, diz respeito, por um lado, à capacidade que tem o poder, no mundo contemporâneo, de governar por meio de dispositivos que abarcam o trabalho, o imaginário, a vida; por outro, diz respeito à resposta que o sujeito lhe dá. A resposta pode ser a afirmação do assujeitamento, mas pode não ser. E quando não o é, o sujeito utiliza estratégias constituintes e, efetivamente, elabora uma ética contra o poder, propondo um novo modo de viver. Aqui, é preciso lembrar os trabalhos de Michel Foucault quando refere que a subjetivação, processo de individuação, individual ou coletivo, de um ou de vários, se distingue de toda a moral, isto é, de todo o código moral. A subjetivação é ética e estética, diz o filósofo. Porquanto, a moral é um conjunto de valores e regras prescritivas e visa nortear as relações da pessoa consigo mesma e com os outros. São as instituições (família, escola, igreja...) responsáveis por essas prescrições. A ética é diferente, pois diz respeito à maneira pela qual cada um constrói a si mesmo como sujeito moral. O capitalismo contemporâneo e o biopoder que o acompanha brutalmente excluem do mercado de trabalho um grande contingente de trabalhadores e os condena à pobreza e exclusão sócio-econômicas. Entretanto, existem brechas que permitem a produção de sujeitos éticos resistentes e insurgentes contra a naturalização dos efeitos perversos das atuais transformações da ordem econômica. Esses sujeitos éticos produzem espaços e tempos alternativos e dissidentes com novas possibilidades de produção e de relação com a vida e com o planeta. Trata-se, portanto, de uma invenção de novos modos de pensar e de agir. Alternativas de sustentabilidade no interior da globalização O que se observa no mundo contemporâneo é, de um lado, o caos político e social, a decomposição e, de outro, pontos de resistência e de insurgência, tentando criar alternativas possíveis para uma vida de melhor qualidade no interior da própria globalização. Nesta perspectiva, surgem várias e distintas alternativas de sustentabilidade. Algumas visando apenas à reestruturação produtiva e à superação da pobreza. Portanto, se ancorando num nível vital, imediato, econômico, com novas possibilidades de trabalho e geração de renda. Entre elas, algumas discutem os temas da responsabilidade individual, social, econômica e 227 ambiental, mas o fazem desarticuladamente e, não raras vezes, tentando, em primeiro lugar, preservar o mercado e o consumo. Para outras, a sustentabilidade significa apenas sobrevivência e para outras ainda, incremento de bons negócios. Mas um outro grupo de alternativas se move pela vontade da invenção da vida, isto é, da invenção de outro modo de existir. O tema da sustentabilidade é um dos discursos da nossa época. As empresas falam em sustentabilidade, os países falam em desenvolvimento sustentável, e assim por diante. No documento Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Sustentável (2000), encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente, encontram-se arroladas dimensões da sustentabilidade: social, ecológica, econômica, espacial, político-institucional, cultural. A sustentabilidade social tem como base o princípio da eqüidade na distribuição de renda e de bens, mas também o princípio da igualdade de direitos e o princípio da solidariedade dos laços sociais; a sustentabilidade ecológica tem como base o princípio da solidariedade com o planeta, suas riquezas e a biosfera; a sustentabilidade econômica tem como base a sustentabilidade social, tendo em vista a vida material; a sustentabilidade espacial tem como base a eqüidade nas relações inter-regionais e distribuição populacional entre o rural e o urbano; a sustentabilidade político-institucional visa manter a continuidade das ações numa perspectiva de longo prazo; e, finalmente, a sustentabilidade cultural visa à afirmação da cultura local, regional e nacional para fazer face à padronização imposta pela globalização. Todavia, essa visão de sustentabilidade é ainda insuficiente. Na reflexão que este trabalho propõe, a sustentabilidade será tratada como a possibilidade de se opor à vida que propõe a globalização, à subjetividade que ela quer impor, ao biopoder. Trata-se, pois, de um modo de resistência e de insurgência e, ao mesmo tempo, uma afirmação da vida e do desejo. Portanto, trata-se de uma configuração ética que se estrutura por uma resistência e uma insurgência prática que inventa tecnologias capazes de produzir redes comuns e discursos (comportamentos) possíveis de romper os sistemas de domínio. O conceito de sustentabilidade retira o homem do centro do mundo e o coloca na mesma dimensão dos outros seres vivos. Ou seja, acaba com o antropocentrismo e com a idéia de infinitude da natureza e cria uma responsabilidade ética com o outro. A responsabilidade ética com o outro implica, também, a responsabilidade com o planeta. Félix Guattari, em seu livro As três ecologias, fala da relação da subjetividade com sua exterioridade social, animal, vegetal, cósmica. Para o autor, as formações políticas e as instâncias executivas são incapazes de compreender a problemática contemporânea e, quando 228 o fazem, geralmente se contentam em focar a perspectiva tecnocrática. Entretanto, continua ele, somente uma articulação ético-política e estética, entre três registros - do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade - poderia, de fato, clarificar o dilema atual. O que está em jogo é a maneira de viver daqui em diante, isto é, a vida em outros modos e em outra sensibilidade, inteligência e desejo. A sustentabilidade, tendo como base o paradigma ético-político e estético, opera uma autêntica revolução política, social e cultural. Isso significa aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de referência sociais e individuais (GUATTARI, 1995). Nesta perspectiva, a sustentabilidade é uma questão de princípios e valores de transformação dos modos de vida e de afirmação de desejos de libertação.12 Portanto, ela opera como um antipoder, que leva em conta resistência, insurgência e poder constituinte. Embora estejamos nos referindo à esfera do antipoder, sabemos que este sempre corre o risco de ser assimilado pelo poder dominante. E é justamente isso o que se observa quando empresas e governos se referem à sustentabilidade. Mas não vamos entrar nesses meandros, pois o que visamos neste ensaio é refletir a respeito de uma sociedade ética construída pela via da sustentabilidade baseada no paradigma éticopolítico e estético. Para aproximar discussões teóricas e práticas, é necessário dizer que as pessoas envolvidas na experiência de tal sustentabilidade experimentam um outramento. Neste sentido do outramento, é útil re-visitar o pensamento de Levinas (1988) para quem a ética é a porta para o exterior, isto é, a abertura em direção ao outro. O filósofo insiste na radical heteronímia da ética. Na ética, a liberdade tem origem no outro, não sendo, pois, o seu limite. O outro não é uma ameaça para o meu arbítrio, mas ele é a medida da minha injustiça, ou seja, daquilo que eu devia e podia fazer, da resposta que, voluntariamente, não dei. Com efeito, o que está em discussão é a lógica da responsabilidade pelo outro (o outro me diz respeito). A liberdade nascida do outro, e não limitada por ele, encontra-se no fundamento da sustentabilidade. Em outros termos, a sustentabilidade nasce como um antipoder contra a tirania do capitalismo contemporâneo e deve garantir a liberdade contra as injustiças, deve garantir a pluralidade, o encontro intersubjetivo e a vida ética em todos os sentidos. Nisso 12 E não um simples encaminhamento de empreendimentos e negócios, mesmo que eles se distribuam entre os mais diversos setores da economia e que coloque, em seu discurso, a ecologia. 229 reside o outramento, isto é, a produção de outra existência tendo referência a responsabilidade ética com o outro. O plano da sustentabilidade é ético e não a simples substituição do poder existente. O que a sustentabilidade (que de fato é antipoder) propõe são formas de liberdade e produção de vidas. Nesta perspectiva, destruir o biopoder, instrumento do capitalismo contemporâneo, se torna essencial (destruição necessária). O modelo a ser destruído é o do capitalismo e, junto, suas crises de onipresença no mercado global e no mundo. O que queremos aqui enfatizar é o caráter político (e não ideológico) da sustentabilidade que visa modificar as relações de força existentes. Trata-se de um movimento vindo de baixo, que expressa uma potência capaz de transformar. É, pois, força de transformação ontológica produzida pelo antipoder. Em verdade, a sustentabilidade, através de um enraizamento na realidade social e produtiva, aponta para uma saída ética ao caos que a globalização (capitalismo contemporâneo) produziu. Isso significa a construção de redes de saber e de agir (vindas de baixo) contra a privatização do poder e da riqueza. Significa a produção da justiça social pela superação da exploração e da exclusão. Significa o resgate de linguagens comuns, na direção de uma vida livre. Significa dobrar as regras excludentes do mercado capitalista, hoje, global. Para tanto, a sustentabilidade necessita se espalhar no planeta através da emigração cultural e laboral, material e imaterial, formando uma rede antipoder, produzindo o que Milton Santos (2000) chamaria de outra globalização. Educação para a sustentabilidade A educação para a sustentabilidade é a educação para a liberdade. Liberdade não com o significado de livre-arbítrio, abstrato e ilusório, disseminado pelo discurso moral, conservador e autoritário. Para a sustentabilidade, liberdade e potência caminham juntas. A liberdade tem a potência daquilo que é - uma força coletiva singular. A educação para a sustentabilidade, evidentemente, não é da competência do Estado, porquanto o Estado está aliado ao modelo econômico. O Estado veicula sua ideologia através da educação, visando à manutenção das relações de força e à continuidade do capitalismo, legitimando a dominação. Tem, pois, o objetivo de moldar e de normalizar as pessoas, tornando-as dependentes e fracas. Pessoas despotencializadas, com nada de vontade. Sendo a sustentabilidade um antipoder, a educação é de competência da própria comunidade e está relacionada à autogestão pedagógica e social. A sustentabilidade precisa de uma autoridade 230 organizacional, mas não de uma autoridade política. Até porque não vivemos mais, essencialmente, na esfera política (ARENDT, 1979). Compreender isso é uma questão de educação para a sustentabilidade. A autoridade deve ser aqui definida, como o faz Hannah Arendt (1979), em contraposição à coerção pela força como à persuasão pelos argumentos. (A relação autoritária entre o que manda e o que obedece não se assenta nem na razão comum nem no poder do que manda; o que eles possuem em comum é a própria hierarquia (horizontal), cujo direito e legitimidade ambos reconhecem e na qual ambos têm seu lugar estável predeterminado (p. 56 ). A autoridade se opõe ao autoritarismo. Ter autoridade é não possuir o poder que domina, porquanto ela não quer garantir a vigência deste poder e tampouco se nutre do medo do outro. A autoridade que organiza as ações na esfera da sustentabilidade é uma relação intersubjetiva entre subjetividades emancipadas. A esfera política contemporânea perdeu a autoridade. O fundamento da autoridade na esfera da sustentabilidade é a responsabilidade ética com o outro. Neste sentido, a equação saber-poder, discutida por Michel Foucault em seus trabalhos, sobretudo na obra Vigiar e punir (1991), ganha outra leitura. A educação para a sustentabilidade trata o saber como legado humano e disponível para todos e o poder como uma rede de relações.13Como o modelo não é o de exploração, não há interesse de que o saber esteja vinculado ao poder, em termos de estratégia de dominação. O saber se relaciona com o poder da própria estrutura de sustentabilidade e das pessoas, dos grupos ou das comunidades que a ela estão ligados. Neste caso, o saber sustenta o próprio processo de instauração e de continuidade das estruturas de sustentabilidade, mas não ampara relações de dominação entre as pessoas. Ao criar muitos lugares de saber, ao mesmo tempo, se está criando muitos lugares de poder que se contrapõem ao poder dominante e o ameaçam. As estruturas de sustentabilidade ameaçam o modelo econômico contemporâneo e o seu poder de dominação. O saber nas estruturas de sustentabilidade prepara para a vivência plena da liberdade, porquanto as referências da produção das subjetividades e das relações intersubjetivas emanam do próprio grupo de pessoas em relação entre si mesmas e com o mundo. Embora se trate de um aprender mútuo tendo por base a igualdade, a educação para a sustentabilidade parte da autoridade (sem invadir o nível político por excelência) para assim chegar à esfera da 13 As relações humanas são relações de força e as relações de força são relações de poder. Para aprofundar o assunto, consultar as obras de Friedrich Nietzsche e de Michel Foucault. 231 liberdade coletiva, socialmente construída. A autoridade opera organizando o aprendizado na perspectiva da autogestão. Portanto, a educação prepara para a ação política, fundada em outras bases. Não se tratando, pois, de uma política baseada em relações de forças dominadoras, fontes de violência e de injustiça social. A ação política nas estruturas de sustentabilidade está baseada na igualdade e na solidariedade. A educação para a sustentabilidade é a educação para a autogestão no plano microssocial, visando à organização social (incluída a gestão dos recursos econômicos) e à organização política. O processo da formação das estruturas de sustentabilidade se movimenta de baixo para cima, não o contrário. E devem ser impulsionadas para se disseminarem e se proliferarem no mundo, operando como focos contaminadores de uma idéia a se propagar. As estruturas de sustentabilidade são potências democráticas, porquanto somam liberdade e trabalho, combinando-os na produção do bem comum. Produtividade e ética da vida estão nelas intimamente vinculadas. A autogestão está no centro das estruturas de sustentabilidade, garantindo a sua autonomia. A educação para a sustentabilidade precisa trabalhar este tema e o deve realizar em dois níveis distintos e interligados: auto-organização do grupo e dos conteúdos a estudar e autogestão pedagógica. É, portanto, profundamente relacionada ao processo de disseminação e proliferação de atividades criativas, relações e formas associativas, considerando o conjunto de singularidades, isto é, as diferenças daqueles que a compõem. A autogestão não busca o consenso, mas formas de cooperação produtiva. Cooperação que se estende através das redes nas quais se movimentam as estruturas de sustentabilidade. O consenso é a negação da autogestão. Portanto, a sustentabilidade precisa ser fundamentada em outras bases: exige uma novo comportamento ético. Diferentemente da ética antropocêntrica, que vem presidindo os caminhos da globalização e do mundo contemporâneo, legitimadora de um contrato social excludente entre os homens e destes com a natureza, onde a emancipação do homem é construída às custas da depleção da natureza e do outro (FERREIRA, 2000), essa nova ética fundamenta-se numa “virada ética e ecológica, que advoga um caráter integrador e mais biocêntrico e põe os valores da manutenção da vida e a integridade humana planetária na base da questão” (PELIZZOLI, 1999, p. 99 – ss). 232 A nova ética orienta-se no sentido de trabalhar pensando no “sujeito comunidade” (PELIZZOLI, 1999, p. 98), na contramão da visão antropocêntrica que exacerba valores individualistas, utilitaristas e de competitividade, bem como o consumo (LIMA, 2003). A educação a legitimar a ética antropocêntrica configura-se como uma educação convencional, que se assenta numa racionalidade técnica, de natureza instrumental (orientada por noções antiambientais), numa concepção empírico-analítica de ciência, bem como num projeto educativo legitimador do paradigma industrialista do capitalismo. As idéias e pressupostos que permeiam a noção de antiambiental na educação convencional, conforme ilustrado por Gun (1995), se apóiam num discurso onde “tornar-se humano é distinguir-se o mais possível da natureza, porque esta é primitiva e selvagem”, onde “a libertação do homem está vinculada ao domínio da natureza”, entre outros. Por sua vez, a concepção empírico-analítica de ciência se orienta por um modelo explicativo de mundo, de natureza causal-mecânico e químico-matemático e na afirmação da objetividade do conhecimento e seu decorrente reducionismo, enquanto que o discurso da educação convencional tem sido alimentado por propostas que obedecem, prioritariamente, aos imperativos do mercado, voltando-se a educação para a formação de mão-de-obra para o mercado, visando garantir a produção e reprodução da lógica do capital. A educação para a sustentabilidade vinculada à nova ética emerge como um conceito dinâmico que engloba uma outra perspectiva de educação que procura integrar as pessoas de modo a assumir a responsabilidade de criar esferas de sustentabilidade (FREIRE, 2005). Ela requer a formação de um novo modo de pensar e agir. Requer o reconhecimento de interrelação entre os sistemas econômicos, sociais e ambientais e do impacto da globalização em nossas vidas. Exige, ao mesmo tempo, que se aprenda a resistir a esse impacto e se compreenda que a nossa atuação local tem influência global (Wheeler, 2000). Segundo Ana Maria Freire (2005), um maior reconhecimento de que as decisões e acções humanas a nível local afectam globalmente o ambiente e o nosso modo de vida leva-nos a pensar na necessidade de explicar finalidades de ensino em consonância com a sustentabilidade do planeta e, por isso, uma nova ética global. (p. 1258). Por envolver uma nova forma de encarar a relação do homem com a natureza e uma forma diferente de ver o mundo e os homens, a educação para a sustentabilidade, na perspectiva de uma nova ética, tanto na relação com o presente quanto com o futuro, implica 233 uma educação para os valores, como eqüidade, justiça, cidadania, consciência ambiental, e no desenvolvimento de práticas solidárias, para a superação do individualismo. Trata-se de formar cidadãos com consciência local e planetária, na defesa da vida, profundamente comprometidos com a constituição de uma cidadania para todos, recusando e superando o impacto da degradação das condições de vida decorrentes de degradação socioambiental. Nesse sentido, a educação e a produção de conhecimentos necessitam necessariamente contemplar as inter-relações do meio natural com o social, incluindo a análise dos determinantes do processo, o papel dos diversos atores envolvidos e as formas de organização social que aumentam o poder de ações alternativas de um novo desenvolvimento (...) (JACOBI, 2003, p. 190). Leff (2001, apud JACOBI, 2003) refere a impossibilidade de resolver os crescentes e complexos problemas no âmbito das diferentes dimensões que constituem a sustentabilidade e reverter suas causas, sem que ocorra uma mudança radical nos sistemas de conhecimento, dos princípios, dos valores e dos comportamentos gerados pela dinâmica da racionalidade existente, fundada na esfera econômica do desenvolvimento. O Documento da Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Sociedade, realizado na Grécia, por sua vez, chama a atenção para a importância de que as ações educativas consideram a articulação entre os conceitos de ética, sustentabilidade, identidade e diversidade, mobilização, participação e práticas interdisciplinares (SORRENTINO, 1998). Trata-se, de acordo com Jacobi (2003), de uma educação que envolve “pensar a realidade de modo complexo, defini-la com uma nova racionalidade e um espaço onde se articulam natureza, técnica e cultura...” (p. 191), numa lógica que privilegie o diálogo e a interdependência de diferentes áreas de saber. Lima (2003), ao problematizar o discurso da sustentabilidade e suas implicações para a educação, destaca que a educação tem uma contribuição relevante a cumprir na busca da sustentabilidade social, desde que consiga superar as concepções reprodutivistas que tendem a reduzi-la às necessidades da economia, numa ação congruente com a visão conservadora do conceito de sustentabilidade, que a reduz à dimensão econômica. O autor propõe uma educação crítica integradora como possibilidade para superar esse obstáculo. Apoiado em Sterling, Lima (2005) destaca que as políticas e práticas educacionais estão dominadas por um 234 extremo instrumentalismo, evidenciado num modelo pragmático de educação que tende a priorizar a profissionalização para o mercado de trabalho e valores relacionados à eficiência, controle de qualidade e competitividade. Com base nessa crítica e tendo como referência o autor citado, Lima (2003) levanta a necessidade de diferenciar tipos de aprendizado e mudança de primeira e de segunda ordens. Os processos de aprendizado e mudança de primeira ordem são de natureza adaptativa e quantitativa; ocorrem dentro dos limites do modelo pré-existente, sem questionar seus fins nem alterar os valores estabelecidos. Têm por objetivo melhorar a eficiência do modelo. Estão voltados à conservação do status quo, sendo, por esse motivo, também denominados de “mudanças dentro da permanência”. Os processos de segunda ordem, por sua vez, envolvem tipos de aprendizado e mudança reflexivos e integradores; estimulam a capacidade crítica, a autonomia e a criatividade, capacitando os educandos para a resolução de problemas e a realização de mudanças sociais e individuais qualitativas. Sem desconsiderar que as duas ordens de mudanças são necessárias ao desenvolvimento da educação, os autores ponderam que os problemas complexos que caracterizam as sociedades contemporâneas e desafiam a transição para a sustentabilidade dependem, essencialmente, de respostas de segunda ordem. Nas palavras de Jacobi (2005) o processo educativo deve ser capaz de formar um pensamento crítico, criativo e sintonizado com a necessidade de propor respostas (...), capaz de analisar as complexas relações entre os processos naturais e sociais e de atuar no ambiente em uma perspectiva global, respeitando as diversidades socioculturais (p. 214). O objetivo dessa educação, acrescenta o autor, é propiciar a produção de novos comportamentos dos indivíduos face ao consumo em nossa sociedade, estimulando a mudança de valores, tanto individuais quanto coletivos. De modo geral, as práticas educativas para a sustentabilidade podem se situar segundo dois eixos: o eixo conservador e o eixo emancipatório. A abordagem conservadora, orientada por uma visão reformista, propõe respostas instrumentais. Entre as suas estratégias predominam ações pontuais e descontextualizadas, 235 desvinculadas de um projeto político-pedagógico. Tais ações apenas alimentam uma visão reducionista e unidimensional de sustentabilidade, sem questionar o processo civilizatório. A abordagem emancipatória, por outro lado, se apóia em referenciais no campo da educação crítica (Paulo Freire, Giroux), como em outros referenciais que também discutem a questão do poder e da dominação (Foucault, Deleuze, Negri) e têm como horizonte a transformação de hábitos e práticas sociais e políticas e a formação de uma subjetividade capacitada para compreender a questão da sustentabilidade como um campo de conhecimentos e significados socialmente construídos, portanto, perpassado por conflitos de interesses e pela diversidade cultural. Nessa perspectiva de educação, a ênfase é no desenvolvimento de uma visão crítica em relação aos problemas que afetam a vida no nosso planeta com a compreensão de que suas causas não se restringem a fatores biológicos, mas envolvem dimensões políticas, econômicas, sociais, institucionais e culturais (JACOBI, 2003). Francisco Gutiérrez e Cruz Prado (apud GADOTTI, 2005) propõem, no que diz respeito à educação para a sustentabilidade, uma Pedagogia da Terra, a Ecopedagogia, entendida como movimento pedagógico, como abordagem curricular e como movimento social e político enquanto projeto alternativo global que tem como finalidade, por um lado, promover a aprendizagem do sentido das coisas a partir da vida cotidiana e, por outro, um novo modelo de civilização sustentável do ponto de vista ecológico. Isso nos remete a pensar na proposta da Ecosofia de Guattari (1995), filosofia na qual interagem ambiente, relações sociais e subjetividade. Na perspectiva de uma Ecosofia, a educação para a sensibilidade ocupa um lugar essencial na produção da responsabilidade ética com o outro. A proposta de uma ecopedagogia, hoje, é necessária, porque sem uma pedagogia para a educação do homem/mulher, principalmente do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã predatória, não poderemos mais falar da terra como um lar, como uma toca, para o bicho homem, como fala Paulo Freire. Sem uma educação sustentável a Terra continuará apenas sendo considerada como espaço do nosso sustento, de domínio técnico-tecnológico, objeto de nossas pesquisas, ensaio e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas não será um espaço de vida, um espaço do aconchego, de cuidado (BOFF, 1999 apud GADOTTI, 2005.) Nessa perspectiva, a sustentabilidade se constitui num princípio reorientador da educação, cuja prática envolve mais do que ações de limpeza de rios, despoluição do ar e reflorestamento, para tornar possível uma vida de melhor qualidade. Trata-se, pois, de 236 problematizar soluções aos problemas contemporâneos, uma vez que os problemas ecológicos afetam toda a vida no planeta, em todas as suas dimensões, exigindo dos seres humanos novas formas de pensar e de agir. Enquanto que as pedagogias clássicas têm orientação antropocêntrica, a Pedagogia da Terra amplia seu ponto de referência para uma consciência planetária, apoiando-se, entre outros, nos seguintes princípios, explicitados na “Carta da Ecopedagogia” (1999): 1. Nossa Mãe Terra é um organismo vivo e em evolução. 2. A mudança do paradigma economicista é condição necessária para estabelecer um desenvolvimento com justiça e eqüidade. 3. A sustentabilidade econômica e a preservação do meio ambiente dependem também de uma consciência ecológica e esta da educação. 4. A ecopedagogia, fundada na consciência de que pertencemos a uma única comunidade da vida, desenvolve a solidariedade e a cidadania planetárias. 5. A partir da problemática ambiental vivida cotidianamente pelas pessoas nos grupos e espaços de convivência e na busca humana da felicidade, processa- se a consciência ecológica e opera-se a mudança de mentalidade. 6. A ecopedagogia não se dirige apenas aos educadores, mas a todos os cidadãos do planeta. 7. As exigências da sociedade planetária devem ser trabalhadas partir da vida cotidiana, da subjetividade, isto é, a partir das pedagogicamente a necessidades e interesses das pessoas. 8. A ecopedagogia tem por finalidade reeducar o olhar das pessoas, isto é, desenvolver a atitude de observar e evitar a presença de agressões ao meio ambiente e aos viventes e o desperdício, a poluição sonora, visual, a poluição água e do ar etc. para intervir no mundo no sentido de reeducar o habitante da do planeta e reverter a cultura do descartável. 9. Uma educação para a cidadania planetária tem por finalidade a construção uma cultura da sustentabilidade, isto é, uma biocultura, uma cultura da vida, convivência harmônica entre os seres humanos e entre estes e a natureza. da de 237 10. A ecopedagogia propõe uma nova forma de governabilidade diante da ingovernabilidade do gigantismo dos sistemas de ensino, propondo a descentralização e uma racionalidade baseada na ação comunicativa, na gestão democrática, na autonomia, na participação, na ética e na diversidade cultural. Dessa forma, o conceito de Ecopedagogia está relacionado com a sustentabilidade para além da economia e da ecologia. Seu objetivo é considerar a Terra como paradigma. Desse modo, a educação para a sustentabilidade não pode ser reduzida à problematização das nossas relações com o ambiente; ela se insere no quotidiano, questionando o valor da existência e os projetos humanos de vida no Planeta Terra. A educação para a sustentabilidade opera construindo saberes que, por sua vez, influenciam ações emacipatórias, tanto na esfera pessoal como coletiva, possibilitando cidadania para todos. Considerações finais Atualmente, enfrentamos sérios problemas resultantes do desgaste da Terra, que se traduzem na deterioração das condições de vida no planeta, no esgotamento dos recursos naturais, na degradação da biosfera, na homogeneização das culturas, na concentração e centralização de renda e de bens materiais e na má qualidade das relações pessoais, coletivas e sociais. Parte desses problemas resulta dos paradigmas éticos, estéticos e políticos que estruturam o projeto da Modernidade. Neste cenário, as pessoas se tornam cada vez mais individualistas e predatórias, definindo a cidadania pela capacidade de consumo. As sociedades, em maior ou menor grau, dependendo do contexto nacional, não conseguem superar violações e privações de direitos. Especificamente para o caso brasileiro, conforme assinala José Murilo de Carvalho(2004), a sociedade está constituída por poucos cidadãos, alguns cidadãos incompletos e muitos nãocidadãos. O contexto de concentração e centralização da riqueza e de exclusão sócio-econômica, presente na sociedade contemporânea, é exacerbado pelas políticas neo-liberais. Paradoxalmente, no entanto, esta realidade de injustiças sociais, concretizadas em diferentes formas, favorece possibilidades reais de resistências e de insurgências. A educação para a sustentabilidade constitui-se, neste sentido, um processo inflexivo, porquanto é resultado de resistências e de insurgências e produtora de espaços emancipatórios que se materializam em práticas de sustentabilidade. 238 O fundamento da educação para a sustentabilidade é, pois, a responsabilidade ética com o outro. A chave do aprendizado do caminho ético é o desenvolvimento da capacidade de destruir os valores estabelecidos como superiores à vida. As práticas de sustentabilidade são investimentos na invenção e na produção de novos mundos, de mundos comuns, e têm, como conseqüência, a destruição dos signos instituídos e dos valores estabelecidos que produzem desigualdades. Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva. 1979. PRIMEIRO ENCONTRO INTERNACIONAL DA CARTA DA TERRA NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO. Carta da Ecopedagogia. Em defesa de uma Pedagogia da Terra. Instituto Paulo Freire. São Paulo, 23 a 26 de agosto de 1999. CARVALHO, José M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5ta ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2004. CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. Brasília, 2000, DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense. 1990. DELEUZE, Gilles; GUATTTARI, Félix. Mille plateaux. Capitalisme et schizophrénie. 1977. FERREIRA, Yoshiya Nakagawara. Metrópole sustentável? Não é uma questão urbana. São Paulo em Perspectiva. p. 139-144. 2000. 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