Relatório da pesquisa proposta pela frente “Comunidades Tradicionais” As comunidades tradicionais no espaço urbano: um mapeamento de povos e comunidades tradicionais na região metropolitana de Belo Horizonte Julho de 2015 1 Belo Horizonte – Minas Gerais Equipe do projeto Projeto: Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais: Visibilização e Inclusão Sociopolítica Coordenação Geral do Programa Cidade e Alteridade: Profa. Dra. Miracy Barbosa de Sousa Gustin Coordenação do Projeto: Aderval Costa Filho (Prof. Adjunto Departamento de Antropologia e Arqueologia Orientadora de Campo: Cláudia Regina Rossi Fantini (Graduada em Ciências Sociais – UFMG) Pesquisadores: Amália Coelho Souza (Graduanda Antropologia - UFMG); Bárbara M. Martinez Viana (Graduanda Antropologia - UFMG); César Augusto Fernandes Silva (Graduando Ciências Socioambientais – UFMG); Fábio Cabral Jota (Graduando Antropologia - UFMG) Fernanda Fernandes Magalhães (Graduada Ciências Sociais – UFMG); Gabriela Lima Diniz (Graduada Geografia – UFMG); Laura Mattos Vieira (Graduanda em Ciências Sociais- UFMG); Maria Tereza Rocha (Graduada Ciências Sociais); Marlon Marcelo (Graduando Antropologia - UFMG); Mayara Ferreira Mattos (Graduanda em Antropologia- UFMG); Suelen Alves dos Santos (Graduada Ciências do Estado) Paula Pimenta Gomes (Graduando Antropologia - UFMG); Thaila Pereira de Araújo Bahiense (Graduando Antropologia - UFMG); Zilda D’Angelis Costa (Graduanda Direito PUCMINAS). 2 SUMÁRIO 1- APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 4 2- INTRODUÇÃO................................................................................................................ 4 2.1 - Os Povos e Comunidades Tradicionais................................................................... 5 3 - METODOLOGIA............................................................................................................ 7 3.1 – Mapeamento Social......................................................................................... 9 5 – ATIVIDADES REALIZADAS..................................................................................... 13 5.1 – Oficinas de direitos de povos e comunidades tradicionais........................... 13 5.2 – Comunidades Mapeadas – Caracterização Identitária................................ 15 4.3 – Resultados do Mapeamento............................................................................ 24 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 50 6 – BIBLIOGRAFIA............................................................................................................. 51 7 – ANEXO............................................................................................................................. 55 ***** 3 1- APRESENTAÇÃO: Os dados que apresentamos nesse relatório referem-se ao ano de 2015, particularmente ao primeiro semestre, e resultam de levantamentos bibliográficos, oficinas e incursões a campo realizadas pela equipe do Projeto Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, contando com o apoio do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA/UFMG, do Núcleo de Estudos sobre Populações Quilombolas e Tradicionais – NuQ/FAFICH, e do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano – NESTH/FAFICH. O Projeto de Mapeamento vai além do que designa seu título e visa, não apenas conhecer e mapear as comunidades e povos tradicionais do Estado, mas também contribuir para o seu fortalecimento, oferecendo subsídios e entendimentos necessários em termos de processos de autoafirmação identitária e para que seus direitos sejam acionados e conquistados. Por esta razão, a importância do envio deste relatório para o MPMG. Mapear as comunidades tradicionais no espaço urbano da região metropolitana de Belo Horizonte é um grande desafio para o Programa “Cidade e Alteridade: Convivência Multicultural e Justiça Urbana”, tendo em vista o processo de exclusão e de invisibilização dessas comunidades, engendrado historicamente, bem como a clivagem ou sobreposição de várias categorias, como agricultores familiares (urbanos e periurbanos), famílias abaixo da linha da pobreza beneficiárias de programas sociais governamentais, movimentos sociais diversos (sem terra, sem teto, sem exercer o direito à cidade). Saber quem são, quantas são, onde estão e como vivem essas comunidades têm demandado ampla articulação com redes sociais e organizações de apoio, estabelecimento de parcerias com agências governamentais, não governamentais, núcleos de pesquisa e extensão, bem como construção e aplicação de metodologia específica. Cabe ressaltar, a título de introdução, que o mapeamento que ora apresentamos é exploratório e terá continuidade nos meses que se seguirão até a finalização das atividades do Programa/Projeto. 2- INTRODUÇÃO O Projeto “Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica” teve iniciou no ano de 2012, com o objetivo de mapear 4 povos e comunidades tradicionais no Estado de Minas Gerais, bem como da região metropolitana de Belo Horizonte. Eram objetivos precípuos a valorização dos seus modos próprios de ser e viver, o conhecimento ou reconhecimento da sociodiversidade constitutiva do estado, podendo reverberar em processos de autorreconhecimento e inclusão sociopolítica desses povos e comunidades, no seu fortalecimento e respeito. O Programa conflui para a caracterização de um universo e estratégias que servem de ponto de partida para a pesquisa: o autorreconhecimento dos povos e comunidades tradicionais; o recorte regional, conjugando áreas de abrangência mais amplas (mesorregiões) e mais restritas (microrregiões), de forma a operacionalizar o mapeamento e demais atividades; a indicação de lideranças comunitárias de atuação de abrangência regional e local, a partir de redes ativadas com base na articulação dos movimentos sociais ou com base em relações intercomunitárias de naturezas diversas (parentesco, vizinhança, atividades produtivas comuns, associações de fundo religioso e cultural, etc.). O Programa também tem buscado promover direitos individuais e coletivos, com a construção de base de dados que visa subsidiar a proposição, otimização do acesso, adequação e/ou implementação de políticas públicas, sobretudo para diminuir a distância que existe entre integrantes desses povos e comunidades e demais cidadãos brasileiros. 2.1 – Os povos e comunidades tradicionais A categoria povos e comunidades tradicionais é relativamente nova, tanto na esfera governamental, quanto na esfera acadêmica ou social, não obstante a presença ou resistência histórica desses povos e comunidades, sobretudo no meio rural brasileiro e mineiro. Desde a década de 1970, os movimentos sociais têm incorporado critérios étnicos, de gênero, elementos de consciência ecológica e de autodefinição coletiva em suas reivindicações. Segundo Costa Filho (2011), na medida em que estes grupos começaram a se organizar localmente, emergindo da invisibilidade em que se encontravam, surgiu a necessidade de balizar a intervenção governamental junto aos mesmos […] Uma vez reconhecida ou criada pelo poder público uma categoria de diferenciação para abarcar identidades coletivas tradicionais, não somente os grupos sociais relacionados passaram a ser incluídos política e socialmente, como também se estabeleceu um pacto entre o poder público e esses segmentos, que inclui obrigações vis a vis, estimulando a interlocução entre sociedade civil e governo e o protagonismo social (COSTA FILHO 2011: 2-3). 5 Com isso, essas comunidades tradicionais podem ser caracterizadas como grupos sociais diferenciados cultural, social e historicamente, possuindo formas específicas de organização social, apossamento de terra e de apropriação dos recursos naturais. Com um processo social distinto do restante da sociedade nacional, essas comunidades construíram seus modos de vida em estreita relação como o seu território que, por sua vez, não se define só por suas dimensões físicas, mas também pelos significados simbólicos que permeiam as relações homem-natureza (ROCHA, 2010). Segundo Diegues e Arruda, as comunidades tradicionais se caracterizam: - pela dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida; - pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração; - pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; - pela moradia e ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; - pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relação com o mercado; - pela reduzida acumulação de capital; - pela importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; - pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca e atividades extrativistas; - pela tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor e sua família dominam todo o processo até o produto final; - pelo fraco poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos centros urbanos; - pela auto-identificação ou identificação por outros de pertencer a uma cultura distinta. (DIEGUES E ARRUDA, 2001:26) Esta definição identifica as comunidades como grupos sociais culturalmente diferenciados, com formas próprias de organização econômica, política e de transmissão de conhecimentos, estando estas ligadas a uma corrente ambientalista que procura desconstruir o “mito moderno da natureza intocada”. Brandão (2010: 46), com outro olhar, bastante próximo ao de boa parte dos novos estudos sobre comunidades tradicionais, desloca o eixo de: uma tradicionalidade cultural centrada sobre a interioridade peculiar de um modo de vida, para questões que priorizam a questão da ocupação ancestral de um território, o manejo do meio ambiente, as formas patrimoniais de saberes e práticas ligadas a tal manejo; a organização 6 interna das unidades comunitárias e sua dependência, sobretudo política e econômica, dos centros urbanos próximos ou mais remotos e, mais ainda, a dimensão identitária alter ou auto atribuída. Costa Filho (2014), enfatiza características recorrentes dos povos e comunidades tradicionais: sua dimensão territorial e os processos de territorialização envolvidos, sua campesinidade, seu modo familiar de organizar e dispor da produção, suas formas de sociabilidade e institucionalidade, seus sobredeterminantes étnicos e sua mobilização continuada, visando reprodução econômica e social. É patente o reconhecimento dos direitos diferenciados, a própria legitimação de identidades coletivas tradicionais, que resulta da mobilização social e da interrelação entre grupos étnicos com aliados e antagonistas, incluindo o próprio Estado. Assim, utiliza-se neste estudo a noção de comunidades tradicionais para definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, com base na interação com outros grupos, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se a todos os segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos (DIEGUES E ARRUDA, 2001: 62). Em se considerando o Brasil, essa definição engloba um leque considerável de grupos indígenas e não-indígenas como: seringueiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ciganos, pomeranos, geraizeiros, povos de terreiro, comunidades de fundo e fechos de pasto, faxinais, pantaneiros, dentre outros grupos sociais tradicionais (COSTA FILHO, 2014). Considerando o estado de Minas Gerais, temos os povos indígenas, os povos ciganos, os povos de terreiro, as comunidades quilombolas, os geraizeiros, os vazanteiros, os caatingueiros, os veredeiros, os apanhadores de flores sempre vivas, os faiscadores, a família circense, dentre outras categorias identitárias objetivadas em movimentos sociais. Especificamente na região metropolitana temos indígenas, quilombolas, povos de terreiro, congadeiros, a família circense, povos ciganos, dentre outros. 3 - METODOLOGIA Devido à magnitude do projeto, tanto em termos de abrangência geográfica, como da complexidade das atividades e dos produtos previstos, impôs-se a necessidade de delimitar 7 áreas para a atuação prioritária, assim como metas iniciais. As áreas prioritárias foram eleitas desde 2011 a partir de seu conhecido grau de vulnerabilidade: as Mesorregiões do Jequitinhonha, Noroeste de Minas e Norte de Minas, sendo que no ano de 2014 a abrangência do programa tornou-se maior ao trabalhar também com a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). O Projeto “Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais” tem utilizado como um dos primeiros passos metodológicos a realização de contatos com organizações de apoio aos povos e comunidades tradicionais, bem como setores de órgãos públicos que atuem na defesa e implementação dos seus direitos. Nessa oportunidade, são apresentados os objetivos do Projeto, sua metodologia e pactuada a coparticipação desses órgãos e entidades. Esta etapa é imprescindível, pois possibilitará um levantamento preliminar dos povos e comunidades tradicionais existentes na região ou microrregião, tendo em vista que esses órgãos e entidades já atuam há mais tempo junto aos mesmos. Na sequência, são comumente realizadas as oficinas de Direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, visando fortalecer institucionalmente esses grupos, podendo desencadear processos de autoidentificação ou autorreconhecimento, além de sua inclusão sociopolítica. As oficinas de formação têm sido voltadas para as comunidades previamente indicadas pelos parceiros, envolvendo lideranças e agentes comunitários, para que estes atuem de forma coparticipativa e autônoma no processo de produção do conhecimento, apropriação dos resultados e possam exercer e promover maior protagonismo social. Nessas oficinas têm sido abordados os seguintes conteúdos: análise histórica do conceito de “povos e comunidades tradicionais”; aparato jurídico-formal; direitos assegurados aos povos e comunidades tradicionais e instituições responsáveis pela sua implementação; processos de territorialização1; desafios inerentes à ordem do direito e das políticas públicas como, por exemplo, a questão das comunidades atingidas pela mineração e por Parques, ou ainda pela especulação imobiliária, resultando em (des)ordenamentos urbanos e outros conflitos socioambientais. 1 O antropólogo João Pacheco de Oliveira, assim define os processos de territorialização: “... o movimento pelo qual um objeto político-administrativo vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais” (OLIVEIRA 1999, p. 21-22). Naturalmente, esses movimentos pressupõem a manutenção de uma unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora, a constituição de mecanismos políticos especializados, a redefinição constante do controle sobre os recursos ambientais e a manutenção da cultura e da relação com o passado. 8 Logo após a realização das oficinas, a equipe do projeto Mapeamento costuma realizar as incursões a campo para coleta de dados nas comunidades que participaram da(s) oficina(s), e outras indicadas por estas como “tradicionais”. Nesta fase, entrevistas em profundidade são realizadas com idosos/idosas e lideranças, no intuito de melhor caracterizar as relações históricas, sociais, culturais, econômicas e religiosas das mesmas, possibilitando visibilizar também quais são os conflitos internos e externos que enfrentam ao longo do tempo e também quais as demandas atuais dessas comunidades. Após este trabalho o ponto de GPS é colhido no epicentro de cada comunidade trabalhada, podendo ser as coordenadas da casa do ancestral do grupo, ou da sede da associação comunitária, ou ainda da igreja da comunidade, etc. que servirá como base para a criação do mapa onde poderá ser visualizado a localização exata dos Povos e Comunidades Tradicionais no Estado de Minas Gerais, das suas mesorregiões, microrregiões e municípios. Constata-se na atualidade que boa parte dos povos e comunidades tradicionais encontra-se, ainda, na invisibilidade, silenciada por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e de exclusão sociopolítica, que propiciam hoje, como no passado, a expropriação de seus territórios, com a consequente desarticulação de práticas produtivas e culturais, resultando na precarização dos seus modos de vida. Em que pese ser de conhecimento geral o fato de que o Estado de Minas Gerais, em sua dimensão urbana e rural, congrega uma parte fundamental dessa diversidade e riqueza sociocultural (com o indicativo da presença de comunidades remanescentes de quilombos, povos indígenas, ciganos, geraizeiros, vazanteiros, pescadores artesanais, ceramistas, congadeiros, povos de terreiro, apanhadores de sempre-vivas, famílias circenses, entre outras categorias identitárias) a invisibilidade é o que predomina no contexto mineiro. Saber quem são, quantos são, onde estão e como vivem os Povos e Comunidades Tradicionais torna-se um imperativo para o seu (re)conhecimento e efetiva proteção desse riquíssimo Patrimônio Cultural por meio através da promoção de políticas públicas voltadas para a garantia de seus direitos e sustentabilidade de seus modos de vida, bem como para a valorização de sua cultura. 3.1 – Mapeamento Social Pode-se afirmar que o Projeto Mapeamento tem pautado suas ações no escopo dos trabalhos contemporâneos designados sob o termo “Mapeamento Social”, que pressupõe, para além de localizar as comunidades em bases cartográficas, instrumentalizá-las em termos de 9 direitos e políticas públicas, bem como promover ampla participação de comunitários nas etapas do Mapeamento e no próprio projeto político dos grupos ou comunidades envolvidos. Os mapeamentos sempre foram uma abstração social, pois elaborados a partir de algum ponto de vista. Para se configurarem da forma como se apresentam atualmente, foi necessário longo processo de invenção de técnicas e formas de se conceber e construir o espaço. Na história das representações espaciais, os mapas começaram como ficção, um meio de se pensar o mundo, a partir de crenças e de mitos, e não a partir da geografia (Acselrad, 2009). Ao longo de séculos, constantes observações de geógrafos possibilitaram a criação de instrumentos que proporcionassem capacidades de medida, de coordenadas e altitudes que atribuem objetividade aos mapas. Com isso, tudo o que se configura no espaço pode ser mapeado. A cartografia, até a penúltima década do século XX, foi um forte instrumento de dominação utilizado pelo Estado. Somente a partir de 1990 foi pensada de forma diferente, com o surgimento de experiências de “mapeamentos participativos” ou “cartografias sociais”. Algumas dessas experiências mostram como a cartografia pode incluir grupos historicamente marginalizados ou invisibilizados nos processos de construção dos mapeamentos, bem como esses grupos têm se valido dessas experiências para objetivarem suas identidades, fazendo-se emergir em disputas cartográficas, onde o ato de mapear ou de se visibilizar passa a ser um ato político. O mapeamento, desde sua origem, é constituído de representações de territórios recortados com o objetivo de se definir o real e, consequentemente, possuí-lo. Joliveau, citando Harley (2008), afirma que a linguagem do mapeamento é uma linguagem de poder constituída pelos grupos dominantes e reforçada pela tecnologia. Uma breve história da cartografia pode nos demonstrar isso. No século XVII, a cartografia, a ciência e o Estado se unem num processo de coprodução de mapas, com o objetivo de controlar os processos sociais e territoriais; estava claro à época que os mapas serviriam para a definição dos Estados, legitimando suas conquistas. No século XX, a cartografia segue contribuindo com o Estado na produção de mapas, visando à identificação de recursos naturais para sua gestão. E ao final do século XX surgem os mapeamentos participativos e cartografias sociais. Segundo Joliveau (2008), tais experiências constituem-se de planejamentos comunicativos e participativos para construir, juntamente com os sujeitos locais, a organização contínua do futuro território. A informação é 10 proveniente dos espaços tradicionais e o território passa a ser, cada vez mais, constituído a partir de outro ponto de vista que não exclusivamente o do Estado. No entanto, essas experiências buscam ora resistir às dinâmicas de globalização dominantes, ora servir como instrumentos para garantir essas mesmas dinâmicas, dependendo de como os processos geoestratégicos são usados na interação com a metodologia de mapeamentos participativos. Para Acselrad (2009: 05), esses diferentes usos e objetivos que são dados aos mapeamentos demostram as “implicações políticas dos mapas”, em que os mapeamentos são, eles próprios, “objeto da ação política”. Como a ação política diz respeito à divisão do mundo social, há que se considerar a existência de representações e domínios do espaço. Os mapeamentos sociais permitem a inclusão da ação e do universo de sujeitos neles envolvidos, não partindo, portanto, de um ponto de vista único ou do ponto de vista do dominador ou tão somente de um observador externo. Permite que o monopólio do Estado perante a representação espacial seja contestado e legitime agentes sociais emergentes envolvidos na disputa cartográfica. Essas práticas de mapeamento diferem dos mapeamentos convencionais, uma vez que reconhecem os saberes do espaço e do meio ambiente dos grupos locais envolvidos e insere-os em modelos consolidados de conhecimento. Nesse sentido, utilizam-se metodologias de “observação participativa” e de “pesquisa colaborativa” que, combinadas com tecnologias dos SIG – Sistemas de Informação Geográfica e de sensoriamento remoto –, são aplicadas na elaboração de mapas, gerando nova luz de produção e uso desses instrumentos na representação e domínio do espaço. No Brasil, surgiram no final do século XX, diversos tipos de mapeamentos com estratégias e metodologias diferentes; no entanto, só a partir de 2005 os mapeamentos sociais se intensificaram. Tais experiências tinham o objetivo de delimitar territórios, identitários ou não, para discutir sobre desenvolvimento local, oferecer subsídios a planos de manejo de unidades de conservação, proporcionar o etnozoneamento de terras indígenas, dentre outros. Para Acselrad (2009: 31), a inclusão de outros sujeitos na produção de mapeamentos fez emergir várias disputas territoriais. Criaram-se situações em que atores, pertencentes ou não ao Estado, integrantes de movimentos sociais, cientistas e grupos locais se unissem no intuito de produzir outros espaços. Essa união marca uma tentativa de conceber “territorialidades específicas” para promover uma construção política de realidades e evocar afirmações de identidades, assim como de autogestão territorial e controle dos recursos 11 naturais de que tradicionalmente se utilizam tais grupos. Nesse contexto, busca-se a objetivação de identidades, muitas vezes resultando na definição pelo próprio grupo dos critérios de inclusão e exclusão, ou seja, definição de suas próprias fronteiras. Se, por um lado, esses mapeamentos podem dar legitimidade a grupos que demandam territórios, por outro, eles podem contribuir para estabilização do mercado de terras com o intuito de atrair investimento internacional. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que esses mapeamentos também estão sendo utilizados por agências multilaterais, como o Banco Mundial. Nesse processo de visibilização e inclusão sociopolítica dos povos e comunidades tradicionais, muitas vezes tais reconhecimentos e delimitações de territórios etnicamente configurados aparecem como condição para o financiamento de megaprojetos econômicos ou de desenvolvimento no Brasil. Cabe ressaltar, também, que esses povos e comunidades são marcados pela exclusão não somente por fatores étnicos e raciais, mas, sobretudo, pela expropriação de seus territórios levada a efeito por grileiros, fazendeiros, empresas ou pelo Estado. Desde a promulgação da chamada “Lei de Terras de 1850” instaurou-se no Brasil uma diferença no acesso e manutenção da terra por comunitários no meio rural. A Constituição Federal de 1891, nos primeiros anos republicanos, transfere para os estados as terras devolutas, sobre as quais até então não havia sido reclamado domínio, reconhecendo o “direito de compra preferencial” pelos posseiros. Segundo Costa Filho & Mendes (2013: 2): Desde então houve um amplo processo de invasão das posses de comunitários e comunidades que, sem leitura e conhecimento das leis, sem recursos para pagar os serviços de medição das terras e registro em cartório, viram-se em desvantagem em relação aos cidadãos letrados, que conheciam o sistema instaurado e tinham várias alianças. A presença de jagunços, advogados, e até agentes do Estado para defender interesses dessas classes mais abastadas, ilustram a desigualdade na correlação de forças entre invasores e povos e comunidades tradicionais. Hoje, tais formas de expropriação de terras e territórios e direitos abrangem interesses do agronegócio, de obras e empreendimentos desenvolvimentistas, dos processos de exploração mineraria, de construção de hidrelétricas, de outras obras e empreendimentos, notadamente as obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC5 que, em grande medida, impactam territórios tradicionalmente ocupados. Não por outras razões existem as políticas afirmativas, que visam reparar um pouco desta desigualdade de 12 forças e estender a ação protetiva do Estado aos grupos mais vulnerabilizados nesses processos. É nesse contexto de contradições e interesses políticos antagônicos que se situa o Projeto “Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica”. 4 - ATIVIDADES REALIZADAS 4.1 – Oficinas de direitos de povos e comunidades tradicionais Foi realizada no período de 07 a 09 de novembro de 2014, na cidade de Conceição do Mato Dentro, em parceria com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), uma oficina que reuniu aproximadamente 50 pessoas, com carga horária de 20 horas-aulas, acrescidas de 20 horas para preparação, transcrição de dados posterior à oficina, bem como elaboração de relatório. A oficina foi ministrada/coordenada pelo Coordenador do Projeto Prof. Dr. Aderval Costa Filho, que vem acadêmica e profissionalmente aprimorando ferramentas de mapeamento social, bem como de capacitação de comunitários e lideranças. A Oficina foi realizada a partir de ampla mobilização que incluiu várias incursões a campo para contato com comunidades/comunitários, envolvendo tanto pesquisadores do Projeto Mapeamento, quanto colaboradores do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais – GESTA/FAFICH/UFMG e do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho Humano – NESTH/FAFICH/UFMG, além do apoio prestimoso da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social - CIMOS/MPMG, na pessoa do Oficial Luiz Tarcizio Gonzaga de Oliveira, que realizou visitas prévias para mobilização e organização da oficina, bem como ajudou a coordenar toda a oficina. Digna de nota também a participação na oficina do Promotor da Comarca de Conceição do Mato Dentro, do MPMG, Dr. Marcelo Mata Machado, que não só demandou a realização da mesma, quanto também disponibilizou recursos logísticos necessários à sua realização, bem como participou pessoalmente de toda a oficina, contribuindo com apontamentos na esfera jurídica na proposição de encaminhamentos e comprometendo-se a dar consecução aos mesmos, no que tange às possibilidades de atuação do MPMG. 13 Cabe salientar que a região de Conceição de Mato Dentro é região prioritária de atuação do Programa Cidade e Alteridade, sobretudo pelos eixos “Mineração” e “Unidades de Conservação da Natureza de Proteção Integral e Comunidades Locais”. A realização desta oficina especificamente na região possibilitou, portanto, contribuir no processo de empoderamento de comunidades e comunitários vulnerabilizados pela implantação do PARNA Serra do Cipó, e de dois grandes empreendimentos minerários, o Anglo American e o Manabi. Ambos os empreendimentos, em seus Estudos de Impacto Ambiental não reconhecem a existência de várias comunidades tradicionais, tanto na área de instalação dos complexos minerários quanto nas áreas de instalação de minerodutos, o que nos possibilitou contribuir tanto na sugestão de medidas protetivas pelas instituições responsáveis pelos processos de licenciamento, quanto medidas efetivas visando resguardar e proteger patrimônios culturais e direitos coletivos assegurados pela Constituição Federal. Os recursos e materiais utilizados foram exposições dialogadas, datashow, produção de textos em grupo, confecção de perfis paisagísticos, além de vídeos. A avaliação da oficina foi possível a partir da participação dos comunitários nas discussões, elaboração de textos em grupo, dinâmica de liderança, apresentação da construção de mapas preliminares dos territórios, avaliação final e encaminhamentos para o MPMG. Na oficina estavam representadas as comunidades localizadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) como as da Serra do Cipó, além de comunidades do município de Conceição do Mato Dentro, as comunidades de Água Limpa, Parauninha, Três Barras, Beco, Cubas, Buraco, Baú, Candeia, Sapo/Água quente e do município de Serro, a comunidade Ausente. Foi realizada também a Oficina de Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais na Região Metropolitana de Belo Horizonte, com participação de aproximadamente 45 pessoas no período de 01 a 03 de Maio de 2015, com carga horária de 20 horas-aulas. O Evento foi realizado no espaço cedido pelo Colégio Marista e utilizou de recursos como exposições dialogadas, datashow, produção de textos em grupo, confecção de perfis paisagísticos, além de mostra demonstrativa de vídeo. A avaliação foi possível ao longo dos três dias em que se constatou a participação ativa dos comunitários e representantes de diversas instituições representadas, além de elaboração de textos em grupo, dinâmicas, apresentação dos mapas dos territórios e deliberações pactuadas para a continuidade do trabalho iniciado no evento. 14 Nesta oficina estavam representantes dos Quilombos de Mangueiras, Manzo e Marinhos, Quilombo dos Arturos, Comunidade terreiro de Bantu Kasanje (de matriz africana), Família Circense, Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário (congadeiros), e representantes indígenas (Xakriabá, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe e Aranã). Enquanto organizações de Apoio participaram o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Jaceaba, membros do CIMI, UFMG, Rede de Apoio ao Circo, Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Superintendência de Povos e Comunidades Tradicionais, Superintendência da Agricultura Familiar, Secretaria de Desenvolvimento Agrário e membro da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. 4.2 – Comunidades Mapeadas - caracterização identitária Em termos de caracterização identitária, salientamos a seguir alguns elementos constitutivos dos processos de autoafirmação de cada categoria, a saber: circenses, quilombolas, povos de terreiro, congadeiros e indígenas. Em relação às especificidades inerentes à comunidade tradicional circense pode-se afirmar que a transumância é uma característica muito importante na reprodução social do grupo. Apesar do sentimento de pertença a um lugar de referência (território) ser um vínculo fundamental na constituição de qualquer comunidade tradicional, a família circense tem demonstrado que essa territorialidade não precisa ser necessariamente fixa. A noção de lugar, assim como a memória coletiva são marcadas pela mobilidade dos grupos, os quais percorrem rotas específicas e possuem seus processos de sociabilidade dispersos num território amplo. Pois, existe um processo de territorialização em que os membros dos grupos impregnam o espaço ocupado e há socialização num regime de propriedade comum, sendo assim, é possível traçar uma rota das ocupações sazonais das famílias circenses. Ou seja, o percurso da rota que é o tradicional, não o território fixo, existindo pontos preferenciais de acampamento e ocupação sazonal de porções do espaço territorial, os quais vão se tornando tradicionais. Como afirma Fernando Silva de Ávila, os circos tradicionais se desenvolvem num "território simbólico como espaço de referência para a construção de identidades." (2008:11) O mesmo ainda infere que: O território é construído pela atividade circense, num exercício de poder sobre o espaço que, para ser percebido materialmente, precisa ser inconstante, promovendo uma territorialidade nômade, ou seja, a materialidade de suas ações só se torna visível se acompanharmos suas 15 andanças. Porém, com vistas a melhor compreensão desta perspectiva analítica, valorizamos a escala do lugar, do pertencimento e identidade – a arte passa pelo lugar e territorializa as emoções – um lugar simbólico, como as igrejas, praças, tribunais de justiça, entre outros, aos quais as pessoas associam sensações vividas. (ÁVILA, 2008: 11) Essas rotas têm sido alteradas devido a decisões de gestores públicos, que têm cerceado o direito dessas famílias de se reproduzirem socioculturalmente em espaços tradicionalmente ocupados, como acontece em Diamantina. Sula Mavrudis, coordenadora da Rede de Apoio ao Circo (RAC), afirmou em uma fala na oficina que "o prefeito de Diamantina, simplesmente, diz que não quer circo na cidade. Ele não deixa nenhum circo entrar na 'sua cidade'". A falta de sensibilidade, mas primordialmente a falta de aplicabilidade das leis e desmandes por parte de alguns administradores públicos têm resultado em grandes dificuldades na reprodução dos modos de vida tradicionais dessas famílias, as quais veem seus direitos de ir e vir, como o de trabalhar e viver de acordo com suas tradições, serem ignorados ou negados por alguns setores públicos. A família tradicional de circo é identificada pelo sobrenome (subdividas em vários circos). Geralmente, cada família é uma trupe, que pode trabalhar no seu próprio circo, ou pode ser que trabalhem como contratados em circos de outras famílias. Assim, a comunidade circense desenvolve laços de solidariedade e de trocas constantes. Os membros dessas famílias extensas compartilham valores identitários, bem como se mobilizam politicamente como grupo que se expressa culturalmente de modo distinto. A vida itinerante obrigou os circenses a desenvolverem mecanismos fortes de adesão e proteção grupal, sendo a linguagem um desses mecanismos. No circo, a linguagem é de fato um instrumento de socialização. Comum em qualquer parte do mundo, é composta de expressões conhecidas como a língua dos circenses, e é transmitida por gerações aos membros da comunidade circense. Assim se pode compreender que a necessidade de manter íntegro, sobrevivente e unido o universo circense possui sua própria linguagem, que além de possuir um vocabulário específico, oriundo de suas múltiplas raízes, inclui todo um aparato gestual, físico e tecnológico. Entendendo que a linguagem não verbal tem também a função de comunicar e de promover a interação social, pode-se perceber que o circense possui uma série de possibilidades de identificação e reconhecimento daqueles que compõem seu universo cultural. (COSTA, 1999: 122-123) Os artistas dos circos de base familiar possuem seus conhecimentos herdados e repassados de pai/mãe para filho/filha, sendo que de geração a geração a tradição circense foi se consolidando e o circo brasileiro foi construindo sua identidade. A união de diferentes grupos podia dar origem a uma nova família, seja pela junção de famílias nucleares ou pela 16 incorporação de um(a) artista solo. Itinerantes, os circenses viviam, e ainda vivem, unidos por seus laços familiares e por seus saberes-fazeres de caráter próprio. Antiga e rica, sua história vem comprovar que a tradição pode contribuir para explicar uma vida tão longa, mas nunca será a razão da estagnação e da cristalização de um modelo, pois a tradição pertence à lógica dialética do conhecimento. Sendo assim, preservando sua identidade, o circo desenvolveu mecanismos de sobrevivência vinculados à preservação de suas mais profundas características. Vale salientar que ser tradicional para o campo epistemológico circense significa pertencer a um mundo onde um determinado tipo de conhecimento constitui a própria essência da instituição e chega íntegro às organizações por meio da vivência e da prática daqueles que, por laços consanguíneos ou não, constituem seu maior patrimônio, que são os indivíduos. O que torna particularmente interessante o uso do termo tradicional é que, de acordo com os paradigmas circenses, tradicionalidade é também um qualificativo usado no sentido de aceitação do indivíduo ao grupo. É comum ouvir-se de circenses tradicionais dizer que alguém não nascido em família circense, mas que tenha sido capaz de integrar-se a uma comunidade circense e que detenha os conhecimentos necessários para viver em circo e os domine com sabedoria e maestria, que esta pessoa tornou-se um “tradicional”. Admitir pessoas não nascidas entre clãs tão bem preservados é parte do processo de inclusão que sempre existiu no circo desde o tempo em este existia apenas como uma das artes da rua. Essa inclusão permanente de novos elementos renova-o, atualiza-o e o faz próximo da sociedade que o cerca. Assim pode-se admitir que alguém não nascido em circo venha a ser aceito como “tradicional”. Assim, "a família é no circo 'o mastro central' que sustenta toda uma estrutura sobre a qual se assenta a tradição, este elemento que se integra ao circo passa também a pertencer à família". (SILVA, 1996: 56) Como afirma Gilmar Rocha, "espécie de organismo vivo, o circo é, para o circense, a sua casa, o seu trabalho, enfim, a sua vida […]. O circo torna-se uma metáfora para a própria vida" (ROCHA, 2013: 60-61). Desse modo, ao adentrar por essas conformações próprias, percebe-se que as famílias circenses não podem ser entendidas somente pela lógica da unidade de trabalho. A constituição do grupo extrapola o devir artístico, incorporando e compartilhando modos de estar/ser no/o mundo numa dinâmica muito particular. 17 Seria, então, a reprodução social a responsável a assegurar, por meio da transmissão consciente ou inconsciente do capital cultural acumulado, a perpetuação das estruturas sociais, ou até mesmo das relações que configuram a "ordem social". Bourdieu esclarece: A vida social ou a vida do mundo social não é outra coisa senão o conjunto das ações e das reações tendentes a conservar ou transformar a estrutura, ou seja, a distribuição dos poderes que a cada momento determina as forças e as estratégias utilizadas na luta pela transformação ou conservação e, em conseqüência, as possibilidades que essas lutas têm de transformar ou de perpetuar a estrutura (BOURDIEU, 1994: 40). Outra categoria identitária presente na região metropolitana de Belo Horizonte é o indígena. Cabe salientar que, como afirma Almeida (2009), termos como índio, indígena e tribal são termos que são frutos da colonização e que, por mais que tenham sido termos genéricos e superficiais em sua criação, foram habitados por pessoas que, com o tempo, estão conseguindo converter esses termos que são repletos de preconceitos em bandeiras mobilizadoras. Apresentando uma identidade etnicamente diferenciada e mostrando uma ligação muito forte com as terras em que vivem, os povos indígenas desde 1970, vêm se organizando em relação a essas duas características que os define, a territorialidade e a etnicidade. A partir do artigo 231 da Constituição Nacional de 1988, os povos indígenas conseguiram assegurar seus direitos perante o Estado. Conforme esse artigo “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Deve-se salientar que hoje em dia a realidade dos povos indígenas também pode estar ligada à cidade. Alguns indígenas se ausentam das suas aldeias para trabalhar ou estudar, mas mantêm forte ligação com suas comunidades e territórios de origem, suas crenças e tradições. Vale lembrar que não se deve pensar os povos indígenas como detentores de uma cultura estática e imutável e que, mesmo mantendo uma relação com a cidade, eles têm o direito a preservação de suas características próprias, mesmo que marginalizados na cidade. Segundo Oliveira (1998), para escapar da armadilha de frigorificar comunidades e povos, bem como seus modos de vida, alguns autores (BARTH, 1984, 1988; HANNERZ, 1992, 1997) sugerem 18 abandonar imagens arquitetônicas de sistemas fechados e se passar a trabalhar com processos de circulação de significados, enfatizando que o caráter não estrutural, dinâmico e virtual é também constitutivo da cultura. Outra categoria identitária que marca intensa presença na região metropolitana de Belo Horizonte, são os povos ou comunidades de Terreiro. Os povos tradicionais de Terreiro, também conhecidos como Povo de santo, se definem como grupos: Representantes das diversas matrizes religiosas de origem africana no Brasil, as quais conformam, em seu conjunto, uma completa matriz civilizatória, com tradições de sabedoria de vida, convivência, economia, arte, filosofia, psicologia, relação com a natureza e...(CARVALHO, 2010: 37). Essas comunidades conformam, no Brasil, uma imensa diversidade de cultos, crenças, práticas e visões de mundo. Em suas formações contam uma grande diversidade de origem, dentre elas: candomblés (Kêtu, Ijexá, Gêge, Gêge-Mahin, Angola), xangôs (Nagô e Xambá), tambores de mina (Casa das Minas, Nagô, Fanti Ashanti, etc.), batuque, tambores de encantaria, candomblés de caboclo, jurema, pajelança, terecô, jarê, pemba, umbanda, omolocô, quimbanda, entre muitos outras. Essas comunidades reúnem diversos sujeitos adeptos a ritos e cultos distintos, mas que se reconhecem como componentes de um mesmo grupo religioso, o povo de santo. Para Pandri (1995), os templos religiosos, os terreiros, mesmo localizados em diferentes regiões se interligam por meio de linhagens, origens e influências. Historicamente, essas populações sofreram muito preconceito e segregação da população e do próprio Estado. Surgidas em meados do século XVIII e início do XIX, no auge do sistema escravocrata, essas religiões e práticas foram intensamente reprimidas e atacadas pelas autoridades e também pela população católica. A constituição imperial de 1824 definia a religião católica como oficial do regime e o código criminal de 1830 considerava qualquer culto diferente crime sujeito à pena de morte. Com a instituição da República, o espiritismo e o charlatanismo passaram a ser considerados crimes, forçando, em casos mais acentuados, o registro das casas e terreiros em delegacias mais próximas, bem como obrigando os sacerdotes e sacerdotisas de cultos de matrizes africanas a fazerem exames mentais. Apesar da repressão e preconceito, essas religiões resistiram e constituíram uma rede de saberes, bens e serviços que se encontra atualmente de norte a sul do país. Mesmo com grandes dificuldades os Pais e Mães-de-Santo constituíram suas roças, preservando diversos saberes advindos de África. Os terreiros se caracterizam por unidades pequenas que se 19 sustentam por laços próximos de parentesco, sejam estes de sangue ou de santo, formando uma rede de solidariedade e reciprocidade independentes das filiações de culto (CARVALHO, 2010). As roças são espaços sociais próprios, definidos por usos e práticas coletivas de manejo e de gestão (do território e de seus recursos), constituindo uma realidade única. As comunidades de terreiro, como outras comunidades tradicionais, são extremamente conservacionistas, pois para esses grupos a natureza é sagrada, local de vida das divindades. O uso das plantas nos cultos faz do meio ambiente lugar fundamental para reprodução das práticas culturais, sociais e ancestrais desses grupos. As comunidades congadeiras, outra categoria identitária encontrada na RMBH, são grupos que se organizam a partir de práticas ritualísticas em louvor a Nossa Senhora do Rosário, muitas vezes articuladas em subdivisões denominadas cortes, guardas ou ternos onde se encontram os Moçambiques, Congos, Catopes, Caboclinhos, Marujos, entre outros. Para Costa (2013) ser dançante do congado é disponibilizar o corpo para a ancestralidade e é nela que se mantêm unidas as comunidades. É por meio dos festejos que esses grupos celebram a fé no Rosário e: Abrem fresta no tempo do trabalho cotidiano e instaura um espaço-tempo mítico onde para sempre vivem os ancestrais. O brincar no Reinado do Rosário deixa de ser um simples representar, tornando-se um meio de afirmar o ser. Esta tradição herdada e reelaborada cotidianamente é o anteparo e a força promotora de sua própria identidade (COSTA, 2013: 44). Os denominados Reinados, contam com uma estrutura social complexa, que envolve constituição de hierarquias e transmissão de conhecimentos tradicionais de forma oral. Dentre os festejos, outros santos católicos também são cultuados, como Santa Efigênia e São Benedito, envolvendo a realização de diversas práticas, tais como novenas, levantamento de mastros de bandeiras, coroações de reis e rainhas, procissões, cantos, danças e banquetes coletivos. Esses grupos, apesar de se articularem a partir de valores ritualísticos, conformam comunidades que se caracterizam por uma reciprocidade e solidariedade entre si. Consideramse co-irmãos e se afiliam a partir da fé que compartilham na Senhora do Rosário. Os congados são, além da dimensão simbólica ritual, também comunidades que se relacionam mutuamente, preservando a tradição advinda de crenças africanas com figurações cristãs. Oriundos do processo colonial, os congados são expressões da reelaboração, devido a imposição do 20 catolicismo às crenças e práticas africanas. Lucas (1995) aponta que nos rituais de congado estão presentes valores e saberes africanos, sendo sua maior expressividade os da cultura bantu, que continuaram, a partir do cristianismo, sua trajetória no novo mundo. Dentre as organizações presentes nos congados, o Reinado é estrutura que denomina todo o ciclo de festividades do Rosário em Minas Gerais. Para Martins (1997), os Reinados são estruturas simbólicas complexas, que incluem além das guardas a instauração de um império, no qual se incluem vários elementos, atos litúrgicos, cerimônias e narrativas que reinterpretam as travessias dos negros da África para as Américas. A reprodução dos Reinados ou guardas são constituições de formas sociais complexas, que têm como base uma estrutura social baseada na tradição. Costa (2013) aponta que é na ligação com a ancestralidade que a comunidade se mantém unida. No que se refere à identidade Quilombola, presente também na Região Metropolitana, primeiramente, sua imagem esteve ligada à ideia de isolamento e reminiscência de um passado histórico. Imagem esta, decorrente de um processo de invisibilidade social e estigmatização racial, como consequência da história da escravidão no Brasil. A problemática fundiária é de extrema importância para se entender o processo de invisibilização, de exclusão e expropriação que essas comunidades sofreram e ainda sofrem, principalmente quando confrontam grupos de maior poder econômico da sociedade nacional e a racionalidade instrumental do Estado. Os conflitos territoriais surgem como demarcação de fronteiras, não só no sentido do espaço físico, mas também simbólico, cosmológico, político, de lógicas diferenciadas de se organizar, de conceber e de se apropriar do seu território. O significado que a terra possui para essas comunidades, o que se estende também para os demais Povos e Comunidades Tradicionais, não é regido pelo utilitarismo e pelo direito da propriedade individual e sim pela apropriação comunal, pelo direto consuetudinário. De acordo com Almeida (1988): [...] Se verificam formas de posse comunal, remete às regras de um direito consuetudinário que prescreve métodos de cultivo em extensão que podem ser utilizadas à vontade por cada grupo familiar, sem exigência de áreas contíguas ou de ter o conjunto de suas atividades produtivas confinadas numa parcela determinada. Delineiam-se domínios de caráter comunal, que não pertencem individualmente a nenhum grupo familiar e que são vitais para sobrevivência do conjunto de unidades familiares, tais como: cocais, babaçuais, fontes d’água, igarapés, pastagens naturais e reservas de matas (...)(ALMEIDA, 1988:44). 21 Não há um reconhecimento jurídico das formas solidárias de cooperação familiar, que exercem essas comunidades, pois não se encaixam no âmbito dos direitos de propriedade individual e de propriedade pública. O interessante nessas formas é o fato de se aliar a “domínios de usufruto comunal com regras de apropriação privada” (ALMEIDA, 1988:44). Ou seja, alguns domínios do território são regidos pelo uso coletivo e outros pelos usos individuais, como a roça, a casa e o quintal, que são apropriados pelas unidades familiares. Historicamente, essas áreas de apropriação comunal têm sido denominadas como terras de santo, terras de irmandade, terras de herança, terras de ausente, terras de índio, terra de preto, terras de uso comum. Essas denominações remetem às especificidades e diferenciações em cada umas delas, mas mantém como característica comum às formas de apropriação dos recursos baseadas na articulação entre uso coletivo e uso individualizado do grupo familiar. O processo de formação dos quilombos não está sempre marcado pelo isolamento, o que tem sido evidenciado pela existência de muitos quilombos formados a poucos metros da casa grande, quando não em contextos urbanos e periurbanos, ou ainda em terras aposseadas por núcleos familiares ancestrais, ou ainda em glebas de terras adquiridas por famílias negras e constituição de espaços de autonomia e liberdade, enfim, os quilombos têm sido conformados de várias maneiras. A formação dos quilombos é também consequência da decadência das grandes propriedades, à medida em que o poder dos grandes fazendeiros enfraquece e aumenta a autonomia dos agregados. O principal marco nesse processo foi a Constituição de 1988, com a aprovação do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece o direito ao território pelas comunidades negras rurais, utilizando a denominação de “remanescentes de comunidades de quilombo”, ou seja, um termo que remete ao passado, à sobrevivência. Mas, na verdade, o que a história dessas comunidades revela é a construção de uma autonomia que se encontrou ameaçada pela expropriação das suas terras. Sendo reconhecidos como remanescentes de quilombos, esses sujeitos se voltam para o passado, para sua historicidade, num processo de rearranjos sociais e reafirmação cultural, e para a construção de projetos de futuro. O termo “remanescentes” é complicado, como analisa Almeida (2002), pois deixa de lado fatores como a construção da autonomia desses grupos e suas dinâmicas culturais no presente. Reconhecer-se-ia o que sobrou, o que é visto como residual, aquilo que restou, ou seja, aceita-se o que já foi. O referido autor julga que, ao contrário, deveria se trabalhar com o conceito de quilombo, considerando o que ele é no presente. “Não é discutir o que foi, e sim 22 discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente” (ALMEIDA, 2002: 53). Mas, como coloca Arruti (1997), o termo quilombola assume uma positividade, ao mesmo tempo em que assume um caráter político de luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais. Com efeito, o uso da noção em ambos os casos, implica, para a população que se assume (indígena ou negra), a possibilidade de ocupar um novo lugar na relação com seus vizinhos, na política local, diante dos órgãos e políticas governamentais, no imaginário nacional e, finalmente, no seu próprio imaginário (ARRUTI, 1997: 21). A identificação da comunidade como quilombola pode expressar uma adaptação da mesma ao modo de ver da sociedade nacional, como forma de integração a ela, do modo e do jeito que esta determina, mas, ao mesmo tempo, expressa a afirmação do seu direito territorial através da única via legitima atualmente de reconhecimento desse direito. Aqui o estigma torna-se positivo, como os termos negro, preto, como reconhecimento de uma identidade política. A emergência das “comunidades remanescentes de quilombos” nos permite descrevêlas como etnicidades, uma vez que são grupos que, através do processo de interação, classificam e constroem oposições sociais e simbólicas, diferenciando-se dos outros ou criando fronteiras identitárias. Ainda que os conteúdos culturais possam variar no tempo, e no espaço, e na própria origem dos indivíduos que venham a compor o grupo étnico, a análise deve recair sobre os mecanismos de criação e/ou manutenção de uma forma organizacional que prescreve padrões unificados de interação e que regula quem faz e quem não faz parte do grupo, além das relações entre aqueles que fazem parte, entre estes e aqueles que não fazem (ARRUTI, 1997: 26). As “comunidades remanescentes de quilombos” são, portanto, grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade brasileira; sua identidade é base para sua organização, sua relação com os demais grupos e sua ação política. O Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo (apud O’Dwyer, 2002) afirma que contemporaneamente, o termo quilombo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente de várias comunidades negras em diferentes regiões do Brasil : O termo não se refere mais a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de 23 grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram construídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio... (: 18). Outro principal marco nesse processo foi o Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O Decreto 4887, em seu art. 2°, estabelece: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autodefinição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. O conceito de Quilombo é explicitado de maneira que a dimensão territorial é intrinsecamente ligada à questão da identidade étnica, das relações de parentesco e compadrio, da liberdade e autonomia, da solidariedade (trocas de dias, trocas de trabalho, mutirão, ajdutórios, etc.), à memória, à liberdade sociorreligiosa. O vínculo territorial nessas comunidades tem como dimensões simbólicas a memória do grupo, os sítios sagrados, o modo de vida, a visão de homem e de mundo pautada numa lógica específica, sistemas de saberes e conhecimentos locais próprios herdados coletivamente, sentimento de pertencimento ao território e identificação com o ecossistema. É importante ressaltar que esse território não é fixo, uma vez que existem casos de comunidades nômades e em transumância, como é o caso das famílias circenses. Além disso, ele não é só rural é também urbano, como nos casos dos quilombos urbanos, geralmente, comunidades engolidas pelo processo de expansão das cidades, como os quilombos urbanos Luízes, Mangueiras e Arturos, a comunidade quilombola e de terreiro Manzo Ngunzo Kaiango e todas as demais na RMBH. 4.3 – Resultados do Mapeamento Os resultados apresentados abaixo estão agrupados por eixos temáticos e instruídos com dados qualitativos e quantitativos obtidos em rodas de conversa (entrevistas em profundidade) com lideranças e idosos/idosas das comunidades, bem como pela aplicação de 24 questionários semiestruturados a famílias das respectivas comunidades que compuseram o escopo da pesquisa. Até o momento, foram realizadas 7 entrevistas em profundidade e foram aplicados 40 questionários às famílias das comunidades envolvidas. Buscou-se sempre correlacionar as diversas categorias identitárias contempladas, em cada um dos eixos temáticos, ilustrando ou instruindo com dados quantitativos e relatos/testemunhos ou depoimentos a realidade dos povos e comunidades contemplados, com ênfase, sobretudo, na precarização dos seus modos de vida, bem como nas suas formas de luta e resistência. Histórico e marcos de memória: Neste item apresentamos os dados referentes ao histórico de fundação, em alguns casos, “mitos de origem”, guardados na memória dos grupos visitados/mapeados, e reproduzidos na sua reconstrução no presente. Dar-se-á ênfase às comunidades visitadas até o momento e respectivas categorias identitárias, ressaltando marcos de memória, ancestralidade e resistência. Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória O Terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória foi criado pelo Sr. Nelson Mateus Nogueira, 85 anos. Em 1951, após morar no estado do Espírito Santo e Rio de Janeiro, Sr. Nelson veio residir na cidade de Belo Horizonte. Em Belo Horizonte, por intermédio de um Caboclo (entidade), Nelson foi orientado a fundar um Terreiro de matriz africana que foi denominado como Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória. Em 1964, com a ajuda de uma senhora chamada Maria Helena Dias do Nascimento, Nelson começou a estudar religiões de matriz africana, como o Candomblé. Em 1971, Nelson Mateus passou pelo rito de iniciação na doutrina candomblecista e só após pode fundar o seu próprio terreiro. Depois de algumas mudanças de endereço, conseguiu comprar um terreno no bairro Sarandi, onde se encontra atualmente a casa espiritual. Seu Nelson é considerado hoje em dia como sendo um dos pioneiros da Umbanda na Região Metropolitana de Belo Horizonte. ... meus pais faziam parte de uma casa As três pessoas da Santíssima Trindade. Foi quando eu era menino. Lá nesse Centro Espírita praticava um tipo de religião chamada Kabula. [...] Quando foi em 1946, eu fui transferido para o Rio de Janeiro. No Rio fiquei até 1951 e de lá vim para B. No Rio, frequentei também uma casa chamada Tenda Espiritual São Benedito, que era na rua do Acre, 1006, RJ [...]. Em 1964, eu fiquei conhecendo uma senhora chamada Maria Helena Dias do Nascimento, quem me ensinou o candomblé. Então, a entidade dela, que orientou tudo, mandou que eu fosse à Bahia e pediu para ela vir a BH e me iniciar no 25 Candomblé. Eu fui a Bahia e como gosto de obedecer, eu fui. Ela veio em 66, quando houve o procedimento de assentamento da casa. Fiz todo esse procedimento... E – E por que o nome da comunidade, Nossa Senhora da Glória? Nelson – Foi uma escolha de uma entidade da casa ‘Pai de Mede Aruanda’. Porque embora nós tenhamos o candomblé, nós começamos com a Umbanda aqui. Então na Umbanda, ao recebimento do espirito ou entidade do preto velho ou antigos africanos, caboclo nos guiou (Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015). Comunidade quilombola Mangueiras A comunidade quilombola Mangueiras é composta por descendentes de negros que viviam na região do Bairro Ribeiro de Abreu, Belo Horizonte, no final do século XIX. A Comunidade é composta por descendentes de Cassiano José de Azevedo e Vicência Vieira de Lima, lavradores negros que se instalaram na região antes mesmo da abolição da escravatura. Maria Bárbara, filha de Cassiano e Vicência, é considerada a matriarca da comunidade. A área que o quilombo ocupava na época da sua formação correspondia a uma área próxima ao Ribeirão do Isidoro, seguindo um longo trecho do Ribeirão do Onça até chegar ao córrego Lajinha, e de lá subia, a oeste, até o grande Lajedo, chamado também de Laje dos Urubus. Essa área era utilizada de maneira comum por Maria Bárbara e seus irmãos. As terras de Cassiano e Vicência foram divididas entre os herdeiros entre 1928 e 1932. Informante: Uma vez eu pus no lápis, na contagem deu cento e noventa e oito, só de um ramal de um casal de negro. É o Vicêncio, os pais da Maria Bárbara, esses dois, que você vai achar na história aí. E.: Eles eram de onde? Informante: Isso que a História não soube falar, de onde que eles vieram, a história só achou a data de nascimento da Maria Bárbara, a crioula que segurou isso tudo por causa do laudo da certidão de óbito dela, que tá lá constando a data de nascimento dela 1861, então se eu começar a falar pra trás é mentira. Isso aí o que cê sabe, que eu ajudei a fazer o processo,eu levei lá no cartório. (Roda de conversa no Quilombo de Mangueiras, julho de 2015) Família circense Kalahary Nascida no município de Presidente Prudente, localizado no estado de São Paulo, Dona Mafalda fundou o Circo TransBrasil (que foi posteriormente rebatizado como Kalahary), juntamente com seu marido, o Cheiroso, falecido há 3 anos. Tem 82 anos e diz que é dona de circo há 53 anos. De seus 4 filhos vivos, três trabalham no circo: Cheirosinho, Cláudio e Márcia. Eles são os principais responsáveis pela administração do circo. Além da família de Dona Mafalda, há também alguns artistas contratados. 26 A vida circense é marcada pela itinerância e pela arte. A constituição da família circense permite que os conhecimentos sejam transmitidos pelas gerações que se sucedem, e a vida gira em torno desses conhecimentos e dos espetáculos. A união familiar é bastante valorizada pelos circenses. Andrei afirma que se não for para viver no circo tradicional, prefere não trabalhar com circo: "A minha vida, num tive outra sem ser essa, é o que conheço. Eu tenho muita experiência por causa do circo”. Há também uma relação de cumplicidade com outras famílias circenses. Se num for pra viver num circo família, igual minha vó (Dona Mafalda) vive, também viver fora da minha família, eu acho que não. Ficar velhinho em circo só se meus filhos topar, meus tios, todo mundo. Agora eu viver sozinho, velhinho também não, só com a família. (Roda de conversa no Circo Kalahary, abril de 2015) Fantástico Circo Show Nascido na cidade de Ipanema, interior de Minas Gerais, Vladimir Braga, proprietário e fundador do Fantástico Circo Show, começou a trabalhar com circo há 23 anos. Em 1997, começou a fazer show nas escolas e comprou sua própria lona. Atualmente, o circo do Sr. Valdir tem se mantido nas cidades de Contagem, Betim, Ibirité, e na região de Venda Nova (BH). O corpo de artistas circenses é basicamente formado pela família de Valdir, duas filhas, dois filhos, um neto, e alguns amigos que esporadicamente ajudam no espetáculo, como o mágico Robson, o rei do pedal Moisés, e o Palhaço Choquito, que atua no picadeiro como malabares. E : Você é de família circense? Palhaço Choquito: Não. Eu fugi com o circo quando tinha 15 anos. Valdir: Eu fui pro circo eu tinha 16 anos, comecei a trabalhar com o Moises (rei do pedal). Tá com 36 anos que tô no circo. Palhaço Choquito: Logo depois que entrei meu irmão foi também. Comecei no circo do Melão, depois fui pro do Dica e do Hiran [...] Trabalhei num bocado, bastante mesmo. E: Quando você entrou você já sabia fazer alguma coisa? Palhaço Choquito: Sabia nada, comecei a desmontar e montar o circo. Fiz malabares, depois fiz cama elástica, duplo trapézio, giro, no final fazia mais trapézio, números de voos. E agora é só vê uma lona de circo que a gente vem, quem nasceu no circo num aguenta ficar longe. Nasceu só não, né? Valdir: Mas você sabe que nós gosta mais de circo que quem nasceu no circo? Palhaço Choquito: É. Valdir: Eu acho que a gente que entrou pro circo tem mais paixão pelo circo que as pessoas que é da própria família ali. Eu acho que muitos que é nascido no circo, tá ali o tempo todo, acho que eles quer respirar um outro ar, tem muitos que quer sair pra ver outra vida lá fora. Palhaço Choquito: Vê o que é diferente... 27 Valdir: Mas só que eu já fui nessa também, às vezes penso em parar, voltar. Ainda mais na situação agora. Ou você vive 100% no circo, mora, cai na estrada mesmo ou fica nessa mesmo, igual eu. Tô aqui, dentro de casa, é o quintal de casa né? (fala de fazer praça só nos bairros próximos mesmo). Tem lugares aí que eu já tive quatro, cinco vezes (…) E tem muita gente que ainda puxa o saco da gente, fala: 'é o melhor circo que eu já fui é o de vocês. Nunca encontrei outro circo que fosse tão agradável, simplicidade, jeito de ser. Muitos lugares aí que eu já voltei, a pessoa gostou. E: Mas você nasceu aqui nessa região mesmo, ou por aqui por perto? Valdir: Não, eu sou do interior de Minas Gerais. Só que foi aqui em Belo Horizonte que eu comecei a trabalhar no circo. Sou de Ipanema, quase Espírito Santo ali. Só que vim de lá com seis anos de idade, vim pra cá por que minha mãe tava com doença de chagas. Meu pai vendeu os negócio tudo lá pra vim pra cá pra cuidar da saúde da minha mãe [...]Mas seis meses que minha mãe tava aqui, fazendo tratamento né? Aí ela morreu. Morreu, eu tinha sete anos, na verdade ela morreu um dia antes do meu aniversário. O enterro dela foi no dia do meu aniversário. Aí eu fiquei naquela, fiquei com tia, com avó e tal. Meu pai casou de novo, tinha uma madrasta chata pra danar. Eu tava trabalhando quando peguei uma carona com o Moisés, pra ir ver o show dele, pagando ingresso. Aí o porteiro num veio, eu fique lá. Aí fez aquela amizade de eu ir no circo com ele, aí ele me chamou pra trabalhar com ele direto [...] Aí até que ele (Moisés) montou o circo dele, e eu fui trabalhar com ele. Em 79 o Moisés trabalhava com o Orlando Orfei, que montou onde hoje é o Diamond […] Aí o Moisés saiu do circo, pegou pra fazer show em escolas, pra fazer a propaganda da Monarca e das casas Martins. Aí ele foi morar lá perto de onde eu morava, alugou uma casa lá perto . Quando fui ver já tava envolvido já. (Roda de conversa no Circo Fantástico circo Show, julho de 2015) Itinerante Circo Thor O Itinerante Circo Thor é composto por quatro tradicionais famílias circenses (Portugal, Melo, Signorelli e Sbano) que, em decorrência de casamentos, se juntaram para trabalhar. O primeiro nome do circo era Pan Americano, mesmo nome do antigo circo de uma das famílias. Após alguns anos, a família resolveu adotar um novo nome, visto que agora o circo representava quatro famílias. Imigrante italiano né, minha família. Meu pai vai sabê mais, mas assim, chegô no Brasil e aí procura o que fazê, e acaba entrando pro circo né? Vamos dizer, entrou pro circo, e foi ficando, aí foi passando (a cada geração) [...] A gente, que é tradicional de circo, a gente nunca faz uma coisa só. Já fui de tudo, já fui malabarista, já fui equilibrista, trapezista, se faz de tudo, ainda mais o circo sendo nosso. Se falta ali, a gente tem que correr e cobrir. Meus filhos estão seguindo o mesmo trilho, minha filha é contorcionista [...]. E agora com esse negócio de que num pode nem ser criado mais em circo. Isso num tem lógica, isso é uma tradição nossa. Vai falar com os ciganos que os filhos deles num podem ficar com eles porque eles ficam mudando de cidade ou pros índios que eles num podem criar os filhos deles na aldeia [...]. Imagina, isso num tem lógica. Como que você vai tirar uma criança de uma tradição do circo, que ama o circo.” (Roda de conversa no Circo Thor, julho de 2015) 28 Quilombo Mato do Tição (Matição) A comunidade quilombola Matição descende de negros que viveram para a região de Jaboticatubas no final do século XIX. A comunidade recebeu o nome Mato do Tição (Matição) devido às tochas que os negros acendiam para iluminar as trilhas, quando se locomoviam e para se aquecerem à noite. A ancestral da família Siqueira, Constança, era escrava do coronel Chico Alves, proprietário de uma fazenda da região. Após a abolição da escravatura, Constança passou a habitar terras doadas pelo coronel, dando origem ao núcleo familiar. Situação Fundiária/ Associação: Em relação à posse da terra nas comunidades visitadas, 9,78% é terra herdada, 7,32% própria e 78,05% dos entrevistados não sabe ou não informou qual o tipo da condição de posse ou propriedade da terra, muito provavelmente porque a maioria dos respondentes é de famílias circenses, que não tem terras. Segundo os entrevistados, 15% das propriedades têm entre 1 e 3 hectares, 2,5% tem menos que 1 hectares e 85% não informou o tamanho das mesmas, pela razão já exposta. A seguir, temos a descrição ou apresentação de cada uma das comunidades visitadas/mapeadas quanto à composição, disponibilidade de terras e quanto ao grau de institucionalização (se dispõem ou não de associação comunitária formalizada). Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória 29 A comunidade possui aproximadamente 5 ou 6 núcleos familiares. Os comunitários não residem no espaço onde funciona a casa de atendimento, cada um mora em sua própria residência e todos se encontram na Cabana Umbandista uma vez por mês. O terreno hoje é deles e não houve informações quanto ao registro formal da associação, que possui o nome de Associação Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, fundada em 13 de Maio de 1961. Nelson: Como eu disse no inicio, nós começamos na rua Arara, nº 170, num lote emprestado. Lá construímos. De lá, quatro anos depois, adquirimos um terreno na rua Mateus Leme, no bairro Emelinda. Ai nós vendemos lá e compramos aqui. Aqui já tinha um galpão pronto. Só completamos e ainda falta completar alguma coisa. [...] Mas é assim, existem as contribuições. Cada um contribui com o que pode. Nós não exigimos nada. A Umbanda diz que cada um contribui com o que pode e outros mantêm a casa. Cada um faz do jeito que pode. Então, nossa despesa aqui é o que? água, luz, de vez em quando tem que passar uma tinta, Então quotiza-se a tinta e faz. E – sim, porque nesse grupo tem filho, tem pai… o senhor disse que hoje tem em torno de 50 pessoas? Nelson – isso, ai você poderia dividir em cinco, seis núcleos familiares de 5 pessoas (Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015) Comunidade quilombola Mangueiras A comunidade possui atualmente 23 famílias que vivem em uma área de 2 hectares e outras 3 ou 4 famílias que moram fora da comunidade e aguardam uma oportunidade de voltar, devido ao exíguo espaço que hoje a comunidade ocupa. O quilombo urbano tem uma Associação estruturada desde 2008. Informante: Olha, a Associação foi criada em 2007, né? 2006 começou a desenhar o modelo dela, em 2007... Na verdade ela começou a ser construída em cinco de maio de 2008. [...] mas teve muito problema, porque na época se queria criar uma comunidade quilombola, só que na vertente rural [...]. Só que na época eu num tava na associação ainda e começou a discussão só que era bloqueado. Mas como é que pode colocar dentro de um estatuto uma coisa que é feita no campo? E todo mundo queria, queria, queria. Aí eu falei assim "gente!". Aí eu comecei a fazer minhas pesquisas [...] e tive que cortar algumas coisas para que o cartório aceitasse o quilombo urbano, porque coisas que tava no quilombo rural jamais poderiam ser feita aqui dentro, e ficar no estatuto! Aí cê fala, tá registrado lá! Aí começou o processo do CNPJ, é tanto que o CNPJ demorou três anos pra sair com as datas, mas cargas d'água ele saiu retroativo no dia de efetivação do estatuto. Foi até um prejuízo pra nós porque assim que o CNPJ bateu, eu tive que desembolsar R$3.897,00 pra pagar o estatuto, e ele veio retroativo... E depois este estatuto foi uma coisa que foi feita correndo, pra que desse visibilidade e que o INCRA fizesse este relatório... Então, na época, não se pensou em ler o relatório direito não, foi pensado que a gente tivesse o estatuto então pode ter a documentação e foi feito! Ah menina... Fez estatuto, fez laudo antropológico ... Aí começa as eleição... O estatuto não tinha base pra nada! Isso deu muito problema, aí eu tive que correr, foi 30 muita correria mesmo, ninguém quis por a mão... Né? CEDEFES que tá aí, secretaria de desenvolvimento social, num quis! Defensoria Pública do Estado não quis! E aí que começou o complicador, e aí pra mim fazer o estatuto, com base na ação social de graça, aí ninguém quis fazer, porque “ah cês tem conflito lá... isso aí vai dar problema!" . Eu fui no prefeito e falei “quanto que tá o estatuto pra fazer?"... “R$14.000,00" ... A comunidade já tava com uma dívida de R$7.800,00 . Aí eu meu Deus o que eu vou fazer?! Aí eu na cara de pau cheguei no cara e falei a situação é essa, essa e essa! Manda fazer, eu libero! Só que depois de pronto foi R$14.898,00 só a confecção, caríssima. Hoje nós temos um estatuto talvez, se não for "o", talvez seja um dos melhores! É um estatuto com trinta e sete páginas, uma ata com trinta e nove páginas. Hoje a gente tem um modelo de estatuto que dá pra gerenciar qualquer coisa aqui dentro. (Roda de conversa Quilombo Mangueiras, julho 2015) Atualmente, o processo de demarcação e titulação de suas terras junto ao INCRA, que se iniciou em 2011 encontra-se na décima etapa de vinte. Informante: Nós tamo na décima etapa, que é a publicação do laudo antropológico. Só que esse laudo, na hora que bateu lá no INCRA aí o INCRA fez certo, porque tinha conflito, né? O conflito era interno e externo! Que nós precisávamos liberar um pedaço da comunidade pra gente fazer uma troca, pra gente conseguir as melhorias. E eu pedi a medida compensadora, medida mitigadora... Aí eu sentei com a comunidade aqui, e nós pedimos vinte e sete compensações. Aí estas vinte e sete depois de bem estudadas caiu pra vinte e cinco. Então o que tá emperrado lá é isso. Então tá na décima edição, né? Na etapa de número dez de um processo de vinte etapas... E.: É que é bem demorado este processo... Informante: E aí a Dilma mandou um recado, veio transmitir isto pra gente. "Ela só vai assinar a publicação quando resolver o problema no quilombo deles". E nisso ela deu suporte, ela mandou pra cá o IPHAN, ela mandou a Fundação Palmares, foi um corre-corre danado! Acionou a Prefeitura, Acionou o IPHAN. Aí que os problemas foi resolvido, aí que eu tava falando pra eles. Essa comunidade hoje tem um documento que talvez só os Marques tenha, que nós tem um documento pronto! No valor de mais de cinco milhões que o TAC! O nosso TAC tá pronto e ele é imexível! Ele não dá pra adiantar nem pra avançar... E cê sabe aonde foi bater este processo né? No Supremo Tribunal Federal! Eu nunca vi uma coisa tão simples ir pro Supremo né? Então a situação é mais ou menos essa né? Deu pra você entender como tá o processo né? E.: Quando que foi aberto o processo no INCRA? Informante: Ele foi aberto em 2011, 2011 começou a primeira etapa e teve a contestação!Aí a contestação entrou em 2011. M: É porque é assim, a primeira fase do processo é quando entra, aí tem noventa dias, e faz a sua defesa contra, e quando inteirou o noventa dias... E sabe como foi a contestação?Sabe qual foi o roteiro da contestação que eles protocoloram lá? Que comunidades quilombolas de Mangueiras sentou com o empreendedor, e com os donos da terra, e comeu porco com torresmo! Agora imagina os Werneck contratou os melhores escritórios de advocacia do Estado, se não do país! Pro cara chegar lá e botar uma contestação infantil! Menina o INCRA meteu o cacete neles! Indeferiu! E falou "não!"... Aí nós foi e contestou. 31 Informante: É quilombo é isso! Nós tamo tentando criar nosso território! [...] mas vinte e duas família morar em dois hectares não dá... Isso aqui é tudo numa família só. Como diz o povo, num é letrada, mamãe tem segundo ano de grupo só! Nunca até hoje vai ter escola pra ela aprender porque ela disse que ia correr pra escrever um livro. E ela já tem, vai fazer agora, depois de amanhã setenta e três anos ... E ela faz essa matemática, e ela fala sempre, tudo é uma matemática, procê vê dois negrinho começou e já tá deste tamanho! Fora os que aqui eram nove irmão que foram da família do papai, sem falar nos três né, que morreram, que era a família do grande Zezinho que foi... Era quantos irmão? (...) E.: Mas assim o laudo antropológico aumentou mais ou menos... Informante: Ah tá, é dois hectares que a gente mora, e o laudo ele aumentou entorno de dezessete ponto alguma coisa hectares, que a gente tá pleiteando a vitória. E.: Mas aí cê acha que pegou todo o território ancestral? Informante: Olha, na época nós tinha um presidente aí que ele é muito audacioso, mas se eu tivesse mais, pelo menos mais quatro a cinco do porte dele, não que os outro num merece, mas a mais, a gente tinha pegado mais terra. Mas acontece que o que nós pedimos deu... Mas assim nós não pedimos mais, porque na época quem fuçava mato a fora mesmo era só ele! Hoje os outros já anda e tudo! E.: São quantas famílias mesmo? Informante: Têm 23 famílias aqui ficante, e tem mais 3 a 4 famílias itinerantes que tá pra fora, estão esperando a oportunidade pra voltar... (Roda de conversa Quilombo Mangueiras, julho 2015) Quilombo Mato do Tição (Matição) Atualmente, cerca de 105 pessoas residem na comunidade, ocupando uma área de aproximadamente 3 hectares. No ano de 2012 a comunidade criou uma associação para lidar com as demandas comunitárias. Os fazendeiros que hoje vivem no entorno chegaram à região há 50 anos e ocuparam terras que eram destinadas ao plantio de roças para o sustento da comunidade. O direito de usucapião do que sobrou em nome dos Siqueira já foi reconhecido. Em 2006, a comunidade recebeu o certificado de reconhecimento quilombola. E, desde 2004, aguarda a titulação de seu território pelo INCRA. Boa parte dos comunitários participa do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Família circense Kalahary, Intinerante Circo Thor e Fantástico Circo Show As famílias circenses, em decorrência do modo de vida itinerante, possuem rotas migratórias que devem ser compreendidas como “territórios”, visto que, como afirma Paul Little (2001) o Brasil é constituído por uma imensa diversidade fundiária, muitas delas provenientes dos chamados povos e comunidades tradicionais. Em Minas Gerais, foi criada a Rede de Apoio ao Circo (RAC), que objetiva valorizar e registrar os saberes circenses, facilitando a reaproximação das famílias tradicionais, além de procurar implementação de novas possibilidades de trabalho e renda dentro de cada circo. Devido a grandes demandas 32 quanto a problemas de diálogo com os vários setores do poder público, a RAC também tem atuado como mediadora de conflitos, principalmente no que tange às dificuldades encontradas pelas famílias circenses em perpetuar sua arte e modo de vida particulares, já que as prefeituras de algumas cidades do interior de Minas Gerais têm proibido a entrada de circos, além de exigirem uma série de documentos impossível de ser obtida por essas famílias. As dificuldades da gente é quando a gente chega na praça né, e num pode fazer isso, num pode fazer aquilo. A água é difícil, tem praça que dá um problemão. Ás vezes dá vontade de acabar com isso tudo aqui, chega num quero isso mais não. Mas continua [...] Isso a gente já tem um conhecimento mais ou menos da região, das cidades que a gente acha que é melhor, nem sempre a gente acerta, mas a gente procura nas cidades que tem mais chance de faturar, né. Normalmente, a média que demora voltar pra cidade é de pelo menos dois anos. Mas às vezes foge da regra também. Depende muito. (Roda de conversa no Circo Kalahary, abril de 2015) As pessoas assimila muito o circo com os ciganos, alguns tem uns antepassados que é de família cigana sim. Que nem esses Sbano mesmo, os antepassados deles mais antigos eram ciganos, né? Mas hoje em dia não, muda muito. Ah circo, esse povo é que nem cigano, só que assimila na parte que vai roubar cavalo, que vai sair as muié pela rua pra poder coisar as coisas. E num tem nada a ver uma coisa com a outra, são completamente diferentes. Nem cigano, é completamente diferente... Acho que a maior dificuldade sempre foi a parte de terreno. Tem lugar que eles dificultam ao máximo, tem lugares que, vamos dizer, se o prefeito num gostar de circo, ninguém da cidade pode gostar de circo. Ele num gosta, então ninguém entra na cidade. Então, se ele num gosta e fala: aqui na minha cidade num entra circo! Então o circo num entra, então vai ter que comecar a brigar, entrar na justiça. Você tá aqui, quer fazer a cidade que tá ali na frente, aí vai demorar pra você entrar na justiça, pra tentar entrar naquele lugar vai demorar. Esse tempo você já andô, andô, já tá a duzentos quilômetros,ou às vezes mais do lugar que você queria fazer. Você num pode ficar parado, eu quero fazer a próxima cidade e tamo aqui e só vai ter uma resposta daqui um mês, então fica parado um mês aqui esperando a resposta? A gente num pode ficar parado. Samara: É por isso que as coisas não mudam, a gente num tem tempo útil e a gente num tem por quem brigar, a gente tem as associações, mas também num dão conta de fazer tudo que tem pra fazer. É muita demanda. Então é aquele negócio, você já num faz aquela cidade por que sabe que vai dificultar. Sandro Sbano: E tem outras pessoa que num brigam pelo que é importante, brigam por outra coisa. Acho que é isso aí, a parte burocrática. Daqui um mês a gente num sabe pra onde o circo vai, você num tem uma previsão, você num é aquela coisa, olha no mês de janeiro vamos fazê tal cidade, fevereiro tal e tal, a gente vai seguindo conforme,conforme, tá bom aqui? Vai ficando por aqui. Num tá bom, opa, então vamo dá uma viagem mais longa aí, vamo mudar de região. Então a gente num sabe nunca pra onde vai tá ou, num tem com o a gente fazer, deixar ali toda documentação pra essa, pra aquela, é caro fazer essa documentação e você num sabe, acaba pagando e num usa né? Sair fora de uma região, você perdeu aquela. (Roda de conversa no Circo Thor, julho de 2015) 33 Religião As comunidades visitadas possuem uma grande diversidade de crenças, sendo que a religião predominante é a católica (75%), sendo expressivo também a de terreiro ou espírita (5%), tendo ainda a presença da religião evangélica (10%). Atualmente, nas comunidades visitadas, coexistem as três religiões citadas, que são praticadas de forma harmônica, havendo o respeito por todas as práticas. E.: E aí em relação à religião, qual que é a predominante aqui? Informante 1: Olha a religião aqui de dentro eu falo até quatro! Informante 2: Espiritismo, católico e evangélico... Informante 1: E catumbeiro ! [risos] Informante 2: Religião aqui dentro no início foi meio conturbado tá? Mais assim, tudo isso foi conversado, tudo foi acertado! Informante 1: Sempre teve isso! Desde que existiu vida neste mundo já tinha isto! Informante 2: E aí hoje até que tá legal... Pode até pensar que não, mas tá legal! A outra mulher que teve aqui assentou a religião predominante do negro. E a predominante aqui é a católica! E eu até brinco assim, quando alguém me pergunta assim se eu tenho religião? Minha religião, eu como uma comida ali, converso com os evangélicos, eu converso com os católicos, com catumbeiro! Aqui nós temos padres que vem aqui dentro, temos pastores aqui... Teve uma missa afro aqui tudo, onde que teve todos os três segmentos religiosos... Com o babalorixá, com o pastor com o padre, onde que serviu pra assim... Mas mesmo assim tem uns conflitos, porque a religião do negro, ela não é conservadora, e ela às vezes tem umas coisas que pra muitos é macumba, é coisa do diabo, isso e aquilo...! Mas assim que hoje a comunidade entende que isso não é macumba, que é uma oferenda, aquele dízimo, aquela oferta que cê dá na Igreja, é maneira deles tá oferecendo pro sagrado deles! Então, em relação a isso aí até que tá bem tranquilo, e cada um tem o seu espaço! E.: E assim tem alguma festa religiosa? Informante 2: É assim ... Vou começar lá por cima primeiro... O católico, a gente tá tentando fazer uma capela, vai ter as luzes de Nossa Senhora Aparecida, já me deram a ideia de levantar a bandeira. O evangélico ele já tá começando já a se estruturar, que era muito fragmentado, um pouquinho aqui, um pouquinho ali, agora eles já estão se estruturando... Já tem os encontros! E a religião predominante do negro, ela já tem os calendários, já tem as festas, teve a festa de Xangô, agora no sábado. Então assim ela já tá mais estruturada no requisito, calendário de festas! E.: E a festa religiosa tem qual santo? Informante 1: Em Janeiro Oxalá, em abril é Ogum, em meados de junho é Oxossi, meados de julho Xangô. Era a vontade dos mais velhos aqui, nós mantivemos. E agosto tem o Pajé, setembro tem Erê. Outubro normalmente a gente comemora só um dia que é o dia de Nossa senhora de Aparecida, que é a Padroeira mesmo né, da comunidade! Mas cada um da sua forma, no seu canto, mas se ocê chegar você vai achar uma vela ali... Porque é o dia de nossa senhora de Aparecida que todo mundo gosta de comemorar esse dia! E em novembro nós temos a festa das Iabás, só as mulheres do 34 candomblé, Iemanjá, Iansã, Oxum e em dezembro nós fazemos o fechamento de Exu, que aí já é de umbanda que fecha o ano com a festa de Exu, e janeiro começa de novo. (Roda de conversa no Quilombo Mangueiras, julho de 2015). Informante: Sim o catolicismo né. A missa acontece todo mês ai vem todo mundo pra missa. Tem que respeitar esse jeito da pessoa né é eu acho que se a pessoa partir do momento que não respeita atrapalha tudo. Igual eu rezo o terço junto com a esposa quando eu preciso de buscar aquela bença porque eu só agradeço a Deus eu penso em pedir a única coisa que eu peço é paz, mas eu só agradeço o resto eu só agradeço. Não falta de serviço, não falta de comer tudo que eu ponho no objetivo que eu vou fazer eu consigo realizar tem hora que fico falando com ela. (Roda de conversa de Matição, junho de 2015). Essa parte foi muito interessante. Em 1964, eu fiquei conhecendo uma senhora chamada Maria Helena Dias do Nascimento, que me ensinou o candomblé. Então a entidade dela que orientou tudo, mandou que eu fosse a Bahia e pediu para ela vir a BH e me iniciar no Candomblé. Eu fui a Bahia e como gosto de obedecer, eu fui e em 1964 ela veio e em 66 houve um procedimento de assentamento da casa. Fiz todo esse procedimento e e em 1971 então é que eu fiz a iniciação (Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015). Ancestralidade de lugar No que se refere ao tempo de moradia na comunidade, a maior parcela dos entrevistados (50%), declarou que vive na comunidade há mais de 25 anos, sendo a permanência há décadas em um mesmo local, característica de comunidades tradicionais. Cabe considerar que esses dados, em alguns casos, a idade do informante se reflete no tempo de moradia/residência. 15% reside entre 1 e 5 anos na comunidade, 10% entre 10 e 15 anos e 12,5% de 15 a 20 anos. Já esses dados referem-se à dinâmica da família circense, 35 predominantemente. Dos entrevistados, 90% nasceu na comunidade e os demais, 10%, nasceu em outras localidades. Todos os entrevistados passam a maior parte do tempo na própria comunidade. Tempo na comunidade (em anos) 30,00% 27,50% 25,00% 22,50% 20,00% 15,00% 15,00% 12,50% 10,00% 10,00% 7,50% 5,00% 5,00% 0,00% menos de 1 de 1 a 5 de 5 a 10 de 10 a 15 de15 a 25 25 a 50 mais de 50 Percentual (%) Situação das moradias: As casas são, em sua maioria, de alvenaria (85%), sendo que no que concerne às famílias circenses, muitos moram em trailers ou ônibus. 100% dos entrevistados informou que as comunidades possuem energia elétrica e coleta de lixo. Quando alguém num tem (lugar pra morar), aí tem aquele baú meu ali grandão lá, aí eu dou um quartinho pra cada um, dá pra colocar uma cama e um fogão pra fazer comida e olhe lá, e cabe tudo, graças a Deus. É melhor que barraca, né? Eu morei ne barraca uma vida. Meus filhos tudo em barraca, quando nasceu meu último filho que eu fui morar em trailer. (Roda de conversa no Circo Kalahary, abril de 2015) Hoje num tem adobe aqui dentro mais, é tudo de Alvenaria... O que tinha de adobe caiu... Até porque as comunidades que ficavam isoladas como Mangueiras ficava, precisava de políticas públicas para ensinar a como proteger as casas. No entanto, tinha uma casa muito boa aqui que era dos pais da Ivone e que foi perdendo pela ação do tempo. O adobe tem uma vida útil, então não se protegeu, caiu... E hoje tem as casas, que num é aquela casa assim da vida digna! A gente até conseguiu desse investimento do PAC, já tá depositado um valor, para iniciar a construção ... Já tá em processo a minha casa minha vida quilombola, mas nós não aceitamos. A prefeitura, foi feita esse projeto aqui dentro... Hoje cê entra em qualquer barraquinho destes aí e num sabe se é pulêro, ou não... E: E com relação à acessibilidade aqui dentro, procê vê né? 36 Informante: Hoje, depois de muita conversação né, tive uma reunião aí... Eu posso falar o pecado que foi colocar este asfalto aqui. É lógico, a gente não é nenhum porco, mas foi o que eles me deram pra diminuir um pouco o sofrimento. [...] e no momento pra ter vida digna, e pro material subir pra reformar as casas, eu tive que reforçar o calçamento. (Roda Quilombo Mangueiras, julho de 2015). Saúde Já no que diz respeito aos serviços de saúde, a comunidade conta com atendimento médico do tipo agente de saúde. As doenças mais frequentes nas comunidades são as doenças cardíacas, a dengue e a leishmaniose. Nos casos de doença, além do tratamento alopático, são também utilizadas práticas tradicionais, como chás, benzeção e simpatias. Boa parte das comunidades contava com os serviços de parteiras, mas hoje estão em desuso. Informante: Olha eu acho assim, a comunidade, apesar de que a comunidade não participar de um posto de saúde, eu não posso falar que a gente tem um posto de saúde atuante... A gente tem um suporte sim! A gente leva as reivindicações né [...] A gente tem um conselho atuante na questão da saúde das comunidades adjacentes, de quilombolas. Ele só peca na requisito negro, mas já tá chegando o consenso, que ele precisa ter as suas especificidades né? Foi criado diversas ... Foi inserido no contexto das três 37 esferas políticas pra associar as comunidades quilombolas [...] a saúde aqui hoje tá bem [...] E.: Mas aqui não tem um posto de saúde né? M1: Dentro da comunidade não. Nós fazemos parte do posto de saúde comunitário de todos os bairros daqui de perto. (Roda Quilombo Mangueiras, julho de 2015). Educação 95% dos entrevistados afirmou não possuir escola dentro de suas terras, sendo que 89,68% disse que os estudantes são encaminhados via Prefeitura ou Estado, para escolas nas proximidades, sede do município ou comunidades vizinhas. Algumas comunidades relataram que a Prefeitura do município fornece transporte para os estudantes. E em relação aos Circenses, os seus filhos têm uma proteção legal para que seus estudos não sejam 38 prejudicados (a garantia de matrícula). Desde 1978, o artigo 29 da lei 6.533/1978 estabelece que as crianças têm vagas garantida nas escolas públicas mais próximas do local em que os pais estão trabalhando; a lei também assegura a transferência da matrícula e vaga em qualquer série dos ensinos fundamental e médio, mediante apresentação de certificado da escola anterior. Pela lei, as escolas particulares (mediante pagamento de mensalidade proporcional ao tempo de permanência) também são obrigadas a aceitar os alunos. Mas, apesar da lei, as crianças circenses ainda sofrem preconceitos e muita resistência por parte de algumas escolas em matricula-los. Eles nasceram de baixo do pano de circo né? Cherosinho começou a fazer palhaço de menino, eles faziam vários números. Acabou tudo num tem mais. Minha filha era perchista (percha é um número de circo), era uma senhora artista de circo, essa mais velha (Márcia, que hoje só fica na administração). [...] E aprendeu aqui no circo mesmo, porque os menino (filhos da Dona Mafalda) tudo sabe, tudo entende de número e ensinava elas. Criar um filho no circo, por exemplo, é muito mais seguro, porque eu vou te dá um exemplo. Um filho de casal de cidade, geralmente, ou ele vai pra creche ou ele vai pra escola, e o pai pega serviço às 7 ou às 8 da manhã e vai chegar em casa às 8 da noite, então ele perde o dia inteiro. Aqui não, e se o pai ou mãe de uma criança de circo sair, tem outro que gosta do menino e tá olhando, entendeu? Então, aí eu já vou em relação às drogas, a qualquer outro perigo, é um amparo muito maior do que uma criança de cidade. Às vezes, as pessoas de fora pensam o inverso. Mas é muito diferente, muito diferente. (Roda de conversa no Circo Kalahary, abril de 2015). Informante 2: O ciclo básico é muito bom, todos eles passaram. O fundamental é sensacional! Além de ser sensacional, é muito parceira da comunidade! Ás vezes a gente fura com a escola, Informante 1: Por falta de pernas... Informante 2: Mas a escola não fura com a gente! Quem não estudou é por causa na época tinha que acordar as seis ir lá e trabalhar. Então a educação aqui não falha! A não ser com a educação do ensino médio... Nisso a Macaé chamou a comunidade pra achar uma solução ... E.: Mas o acesso é fácil? Informante 2: Até o fundamental é muito fácil! Principalmente os meninos, os meninos tem ônibus aqui na porta, leva e traz! (Roda de conversa no Quilombo Mangueiras, julho de 2015) 39 Meios de transporte, comunicação e lazer Em todas as comunidades pesquisadas, o principal meio de locomoção é o carro (36,36%), seguido pelo ônibus (13,64%) e moto (2,27%). Já quando o assunto comunicação 95% utiliza o celular e tem a TV (40%) como meio de informação. Principal meio de comunicação utilizado pela família para comunicar com terceiros 2,50% 0,00% 2,50% 0,00% 95,00% Telefone público Telefone celular Telefone fixo Outros Rádio 40 Migração Todas as comunidades relataram haver membros que moram fora e aguardam uma oportunidade de voltar. 57,14% migraram para polos empregatícios na própria região e 28,57% para outras regiões de Minas Gerais. Os migrantes, em sua maioria, 57,14%, migraram em caráter permanente e 28,57% consiste em migração sazonal. Pelo que se depreende dos relatos abaixo, mesmo para aqueles que migram permanentemente, os vínculos com a comunidade se mantêm, seja nas visitações por ocasião de festas, seja para receber os parentes na cidade quando de alguma enfermidade, para estudos, ou para outros interesses. Devido ao pouco espaço que hoje muitas das comunidades possuem, como é o caso do quilombo Mangueiras, a volta dos migrantes seria um problema. Faz-se necessário a demarcação de um território maior para que seja possível a volta dos que foram embora para outras regiões. Informante: Uma semana e no final de semana eu volto. Eu venho todo sábado e volto segunda de manhã. A maioria de primo estão ai pra fora mesmo, o que é da comunidade não está aqui foi pra fora mesmo. Belo Horizonte, São Paulo... Muito que ficaram da família do meu pai são esses ai eles que falam que foram eles que foram eles que tem que vir aqui eu não vou não. Quando eles foram fazer uma cirurgia eu que levei eles na casa da irmã dele. O meu pai não tem essa coisa de ir e ficar indo não, ele fala mesmo, tanto que a família do meu pai são eles pra cá e eles pra lá. Eles encontram, batem papo e tudo, mas não tem aquele vinculo de irmão de ficar vindo e voltando não. E: Do pessoal que está fora tem alguém que manda recurso? Informante: recurso? Não, eles podem tirar o que tem aqui ainda. Nós se preocupa quando adoece, aí nós se preocupa com eles. (Roda de conversa no Quilombo de Matição, junho de 2015) E.: Como é a questão da migração? Informante 2: São os filhos, que saí pra trabalhar... E: Mas eles vão pra onde? Informante 2: Eles num vão pra longe não, é mais aqui perto mesmo. No mais é as filhas que casaram que tão assim, só esperando oportunidade pra voltar... (Roda de conversa no Quilombo Mangueiras, julho de 2015) 41 Recursos hídricos disponíveis: A água que abastece as comunidades é da COPASA, rede geral (88,50%) sendo muitas comunidades visitadas relataram que as águas das nascentes presentes nas proximidades do território eram utilizadas. Hoje em dia foram declaradas como contaminadas; atualmente o uso das águas das nascentes é muito raro. Tem o rio Jaboticatubas. Tem peixe nele não, se existisse o povo e assim mesmo o rio que tem que corta nosso fundo aqui ele é contaminado ai a gente nem usa. Eles jogam todo esgoto do município nele, aí a gente nem usa. Os meninos ainda, muitos ainda arrisca e ta comendo sabe muitos e esta pescando por ai abaixo eu falo “cuidado é descarga todinha” e o rio nasce tão pertinho dali. Eu não entendo isso, poluir uma água tão boa, nasce dois rio, o rio Jaboticatubas e o rio Vermelho. Se a gente subir a gente vê o rio nascendo logo alí. Contamina o rio e quando quer nadar vai nessa água suja, então tem que ir. Do balneário pra cima o rio já limpo ai ele cai aqui na direção a cem metros. São dois quilômetros daquele balneário ele já contamina o rio. Ai tem o balneário, ai tem um lugar que tem muita água que é o capão grosso, aí marcamos uma bolinha por lá ai dá pra aproveitar o Rio. (Roda de conversa no Quilombo de Matição, junho de 2015) Então, foi em 2005 que se descobriu que por causa do Orçamento Participativo, já tinha contaminado os córregos já... Tava contaminado quase 100% com poliforme fecal. [...] Quando a COPASA descobriu que estava contaminada, foi que ela trouxe o esgoto pra dentro. Na época, foi um delírio pra comunidade, é lógico todo mundo tava acostumado com água de graça... Também faltou um pouco de controle... É isso que eu te falo sobre o decreto 4887, que falta um preparo, um planejamento, sobre ... “olha cês agora não tão gastando nada com água não, e agora cês vão gastar água..." .[...] E hoje a COPASA tá vindo pra comunidade falar o que é bom pra eles é como é que tá. Era preciso fazer uma negociação [...], diminuir os custos pras pessoas da comunidade... (Roda de conversa no Quilombo Mangueiras, julho de 2015) 42 Produção Devido ao limitado território, a maior parte das comunidades visitadas (95%) não pratica o cultivo de roça, horta e nem a criação de animais. A comunidade que relatou existência de pequenas plantações e criação de animais (Quilombo Mata do Tição), afirma serem estas atividades destinadas ao consumo próprio. E: Mas você falou que tem uma horta? Informante: Tenho, mas é só pro consumo né. Eu tenho um pouquinho de cada coisa. É como vou explicar pra você, é muita coisa. Eu tenho tomate pepino, de fruta eu tenho, de horta alface couve almeirão, rúcula, tudo que faz bem. Eu trabalho com queijo aqui. Queijo e doce canudinho né, mas ai eu já trabalho com meu primo, porque já tem aquela dificuldade de vender, ai eu já pego e distribuo. Eu coloquei aquela placa porque tava sem opção mesmo meu filho. Tem o queijo e o docinho, muito bom, todo docinho caseiro mesmo canudinho caseiro mesmo. E: Você planta roça? Informante: Não. Aqui ninguém tá plantando roça mais não. A não ser seu Bado, que tem um pedacinho que planta, né. Não dá pra plantar não 3 hectares não dá pra plantar não. Três hectares era quando nós plantava lá na folha de baixo. Nós plantava arroz, feijão, milho, nós tinha tudo, meu pai nós ajudava. Arroz era 80 saco de arroz e tudo nós tinha que socar é no pilão. E: E da semente que vocês plantam tem semente crioula? Informante: Tem um bocado semente crioula, tem essas transgênica que o pessoal tá usando muito não por ela, mas por causa do solo né, então por eles estão contaminando o solo com essa química toda, o meu pai mesmo a gente tá voltando tudo. O Tio Bado mesmo depois que fez esse curso de homeopatia e aplicou no dele, depois que o pessoal viu que no dele deu certo, o povo agora acabou, ninguém quer ficar comprando adubo mais não ai, O tio Bado fez ele já usava muito a técnica dele, porque antes não tinha o adubo, ai agora eles voltaram pro orgânico, ai o tio Bado tudo dele é orgânico. O meu pai também tá voltando pro orgânico. Eles quer que o bichin comer deixa o bichinho comer o que sobrar é nosso. Ai eu planto, tem um primo meu que é dono do lado aqui, que não mora aqui, ele mora na 43 cidade ai tinha ai, ele foi e me deu a terra porque tava vindo muito bicho para minha casa ai desse terreno, tava braqueado, ai peguei esse terreno e fui plantando e cuidando, ai eles se afastando dali né. E: E de criação você tem boi, porco...? Informante: Não. Porco eu compro só pra matar, ai eu pego, engordo, mato e como. É mas criar assim ninguém cria mais não. Não Tio Bado cria, da família tem esse primo meu dono da fazenda, que arrendou a fazenda né?! Cria porco, galinha e tem de tudo. Agora eu tenho um pouquinho de galinha, porco um só pego engordo e mato ele. (Roda de conversa no Quilombo Matição, junho de 2015) 44 Composição da renda familiar: A maioria dos comunitários visitados recorre ao emprego assalariado na região de Belo Horizonte (7,38%), ou centro econômico mais próximo, para assim compor a renda familiar. 4,88% dos entrevistados recebe aposentadoria. As famílias circenses compõem a sua renda a partir da venda dos ingressos de seus espetáculos. A renda da comunidade de terreiro é composta, sobretudo, pelo jogo de Búzios, realizado pelo dirigente e zelador de Santo da casa espiritual e pelas doações feitas pelos fiéis. Apenas 2,5% dos entrevistados afirmaram receber Bolsa Família. E assim, o circo, tem hora que é muito ingrato, você monta e num vem quase ninguém. Mas a culpa num é do circo, eu amo o circo, porque o circo se você montar ele, se você quiser você desmonta, não é o circo em si, é a cidade, o público da cidade, é a publicidade, as pessoas que fazem a publicidade, depende daquilo tudo, do circo cair na graça daquela pessoa [...] Porque você num tem dinheiro agora pra comer, você chega a noite e se vem cinco pessoas você já tem dinheiro amanhã pra comer (…) Então eu sempre levanto a mão pro céu e agradeço, ainda bem que vem 5, 10, 100 pessoa, que veio no circo, porque você trabalha e amanhã você tem o que comer. (Roda de conversa no Circo Thor, julho de 2015) O que eu penso é o seguinte, ultimamente é que o negócio é num ter prejuízo, é num pagar pra trabalhar. Se o negócio tá dando pras despesas e pagar as pessoas, certinho […]. Graças a Deus, eu tenho as pessoas que eu posso contar. Nessa praça aqui, eu trabalhei mais sexta, sábado e domingo, que foi a frequência maior. Essa semana que foi bem na quinta, na sexta, e eu acho que de repente segunda dá espetáculo. (Roda de conversa no Fantástico Circo Show, julho de 2015) Uns vivem disso, nós, graças a deus, não vivemos disso, tá entendendo? [...] Nós jogamos o búzios. Esse procedimento é feito pelos iniciados. Uma passagem de pai para filho e nem todos que são iniciados tem o dom do jogo de búzios [...]. Tem um movimento que chama o grupo de búzios, ou seja, pra tentar olhar a vida da pessoa. É um movimento dessa casa. Isso hoje está sendo pouco feito, pois sou eu que faço na casa. Mas hoje não tem mais. Faço aos sábados, uma vez por mês. Eu vinha todos os dias, hoje não venho mais. Quando precisa, por exemplo, hoje está trocando telhado. Todo mundo reuniu e estão ai mexendo. A base é que alimentemos a terra para que ela nos alimente também. (Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015) Principais atividades produtivas/fonte de renda da família 12,20% NR/NS 75,61% 0,00% Aposentadoria 4,88% 7,32% Extrativismo 0,00% 0,00% Turismo 0,00% 0,00% Caça 0,00% 0,00% Garimpo 0,00% 0,00% Plantio 0,00% 45 Cooperação e solidariedade entre as famílias As famílias das comunidades mantêm relações que privilegiam a solidariedade e a cooperação, tanto para a realização das atividades culturais e religiosas, quanto nas demandas que se apresentam à comunidade ou às famílias que a compõem. De acordo com nossos informantes, as famílias cooperam umas com as outras por meio de contribuições, mutirões (22,5%), troca de serviços (37,5%), auxílio de idosos e doentes (30%). Circo pequeno é cada um na sua casa, é tranquilo. [...] No circo pequeno a vida é mais light. Eu fico aqui, minha cunhada ali, a gente se cruza, a gente conversa, trabalha, a gente se ajuda, mas num tem aquela fofocaiada, aquela conversa fiada.( Roda de conversa no Circo Thor, julho de 2015) Tem discordância igual toda família, mas tem que haver discordância, é útil a discordância porque se todo mundo concordar com uma cabeça só, às vezes num tem diversidade, ás vezes num cresce o horizonte de ideias, entendeu? Todo mundo é um pelo outro, na doença ou em qualquer outro perigo é um pelo outro mesmo, é tipo troca de vida mesmo. Eu dou minha vida pelos meus tios, meus tios dá por mim, meus primos, é um pelo outro. A união nesse sentido, isso num tem discordância, termo de doença, de uma briga. Inclusive, até o pessoal que é de fora, assim que num faz parte da família, automaticamente faz porque vive aqui há muitos anos né? (Roda de conversa no Circo Kalahary, abril de 2015) […] existem as contribuições. Cada um contribui com o que pode. Nós não exigimos nada. A Umbanda diz que cada um contribui com o que pode e outros mantêm a casa... Sempre alguém ajuda. A maior parte foi minha, mas teve a colaboração de mais gente, afinal sozinho ninguém faz nada, né? (Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015) Informante 1: Olha a comunidade aqui é uma comunidade que tem muita invisibilidade em relação ao pessoal. Quase não se encontram, cada um tem um tipo de serviço... Então assim, um trabalha com torno, em casa com enxada, vagabundo, com enxada... Então assim, agora no que tange a congruência da comunidade todos se comunicam entre si, em relação afetiva, porque a maioria é família... E.: A maioria é parente? Informante 1: A comunidade toda é família, tem os agregados. Eu vim pra cá, o Geraldo veio, mas eles são família... E.: E como é a relação de trabalho? Vocês têm trabalho coletivo? Um ajudando o outro, como é isso aqui? Informante 1: Até que não tem essa chance de acontecer isso aqui dentro, que a gente tem que trabalhar lá fora! E .: Mas tem mutirão ... 46 Informante 1: Tem, tem! Agora não, porque eu consegui uma coisa provisória! Mas se começa a capinar lá debaixo, aí vai até lá em cima! Nossa, é enxada é pá ... Tinha até umas quatro gravações deste processo! Infelizmente a pessoa que gravou já veio aqui chorando só pra conversar comigo que deu pau no computador e ela não deu tempo de salvar isso! Então tinha tudo isso gravado de como era o processo de capina, de limpeza. (Roda de conversa no Quilombo de Mangueiras, julho de 2015) Demandas atuais A principal demanda apresentada pelas comunidades visitadas é pela demarcação e regularização de um território (25,86%) e por políticas e legislação específicas, políticas socioassistenciais (19,83%), como é o caso da família circense, que garantam a reprodução material e imaterial de seus modos de vida. Eu acho que lei específica, eu acho que o circense ele num tem que, como tem uma lei pra um circense estudar, por exemplo, num tem uma vaga ali, ele tem direito de pôr uma cadeira e estudar. Tem que ter uma lei pro circense chegar e falar: Não, eu vou montar meu circo aqui e vou trabalhar, porque isso nó num é um evento, é uma atividade cultural contínua, onde a gente mora, onde a gente tem que comer, beber. E, além disso tudo, é uma atividade contínua, que envolve muitas famílias, entendeu? Eu acho que falta lei! Por exemplo, a gente chega na prefeitura e comunica. Meu sonho é esse, que só comunica: 'Oh, tô chegando com meu circo ae', ah, beleza, tem um terreno ali.' Facilidade, não ter que chegar pro prefeito e ficar: 'por favor, pelo amor de Deus, deixa eu entrar [...] A gente já passou muita humilhação, quem faz praça, igual meu tio (Cláudio) ter que pedir por amor de Deus […]. Do meu ponto de vista, eu acho que a melhora do circo passa pela mão de uma lei específica, uma lei que nos ampare, já engata uma lei onde eles tem que deixar circo entrar na cidade, já engata uma lei que se tem um terreno público, eles têm que conservar pra o circo. (Roda de conversa no Circo Kalahary , abril de 2015) A gente é uma comunidade muito farta, que farta tudo! Mas assim a gente não pode falar as demandas sem antes sair nosso TAC . Tem mais ou menos dez anos. [...] Nós fizemos a mesma reivindicação, com as mesmas palavras do TAC. Então nosso TAC não foi inventado, é demanda né, Tomás? De dez, quinze anos... Nossa demanda principal aqui, que tá gerando conflitos internos, que tá gerando conflitos sócio econômicos, impacto em todas as 47 instâncias que é definir pro quilombo o que realmente eles têm pra nos auxiliar? Porque não adianta falar com vocês que nós precisa de casa, [...] não adianta [...] As nossas demandas prioritárias são estas: ter uma identificação de localização e efetivação do quilombo de Mangueiras! Porque não adianta vocês saber que a gente precisa de tudo, se o cara não sabe onde que era a MG20, ele vai saber que existe um quilombo na MG20? A nossa preocupação é essa, que seja visto com todos os órgãos uma ação que dê sustentabilidade e visibilidade pra Comunidade Quilombola de Mangueiras. (Roda de conversa no Quilombo de Mangueiras, julho de 2015) Dificuldade financeira existe isso é um problema maior, mas fora isso não…(Roda de conversa no terreiro Cabana Umbandista Nossa Senhora da Glória, junho 2015) É justamente saneamento básico, água, educação. Quem não quer estudar é porque não quer mesmo o ônibus pega na porta de casa. Não vai porque não quer, escola tá bom. Mas em muitos aspectos a escola tem que melhorar. Não tem nenhuma escola quilombola dentro do município. O que aconteceu com esse negócio do recurso. Ai foi uma jogada que a gente teve que fazer um manuseio com a prefeitura para justamente poder equilibrar. Então, vieram pessoal da assistência social com o pessoal da Emater e as comunidades ai a gente se reuniu jogou o recurso ai que fez uma melhoria na merenda da escola em geral. Por exemplo, os meninos da zona rural, antes não tinha café da manhã, hoje eles já chegam lá já tem um café da manhã pra tomar. A gente tem essa flexibilidade, não existe essa coisa de só pra nós não. Ai o que fez teve aquele projeto da Emater né justamente dessa parte da alimentação na escola ai enquadrou meu tio Bado, com a produção organizada dele que seria para levar para merenda escolar. Eu tava falando com ele: ‘Na minha época era só sopa, hoje você tem uma refeição completa na escola. Rapaz, só de ter um acompanhamento de um nutricionista, quem de nós teve isso na época a gente nem sabia o que era um nutricionista? Não sabia o que era uma comida balanceada. É umas coisas assim, chega lá tem bolo de mandioca, bolo disso, bolo daquilo outro, café da manhã completo pros meninos. Nós baixava doze quilometro e meio e chegava lá estudava era na primeira fileira, primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, tudo numa sala só. Aí era um professor aqui, outro professor lá, ai ele dava aula de primeiro, segundo dava pra cá e terceiro e quarto dava pra lá. Todo mundo junto. (Roda de conversa no Quilombo de Matição, junho de 2015) 48 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se depreende deste relatório, o mapeamento das comunidades na região metropolitana de Belo Horizonte, embora apresente alguns resultados, ainda necessita cobrir dezenas e dezenas de comunidades, o que pretendemos fazer até o encerramento do Projeto e também nas próximas edições do mesmo, no âmbito do Programa Cidade e Alteridade: Convivência Multicultural e Justiça Urbana. Fica patente a necessidade de fomentar o reconhecimento das categorias identitárias aqui enumeradas, inclusive nas suas nuances rurais e urbanas, bem como otimizar o acesso dessas comunidades às políticas públicas que possibilite o exercício de direitos fundamentais, sobretudo no que diz respeito ao acesso ao território, à educação, à saúde, à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente, direito à reprodução dos seus modos de ser, viver e fazer. Do diagnóstico apresentado acima se infere que o entendimento de desterritorialização que melhor se adequa à analise do processo histórico e realidade das comunidades tradicionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte é o de precarização territorial preceituado por Haesbaert (2007): “A precarização ou exclusão social que lança milhões de pessoas na miséria faz com que elas valorizem seus vínculos básicos com o ‘território’. Mas esse território envolve sempre uma dimensão simbólico-identitária” (: 65-66). O autor identifica aqui duas leituras distintas e complementares. Numa primeira perspectiva, desterritorialização aparece associada à exclusão do acesso à terra propriamente dita e adquire um sentido eminentemente econômico. A identidade do grupo e os símbolos que a sustentam seriam construídos na própria luta pela terra enquanto instrumento de trabalho. O outro sentido é simbólico-cultural. Mesmo exercendo o domínio sobre um território, podem faltar ao grupo as referências territoriais de sua cultura, condensadas simbolicamente em determinadas parcelas do espaço territorial (um rio, uma cachoeira, um trecho da mata, espaços de deuses ou dos espíritos dos seus ancestrais). O que une os dois sentidos é a dinâmica de precarização socioespacial dominante na sociedade capitalista e mesorregião em estudo. Desterritorialização, portanto, seria o processo de exclusão socioespacial. A não manutenção das condições de reprodução social das comunidades nos moldes tradicionais corresponde a esta “exclusão” caracterizada pelo autor. 49 Durante este último ano, até o momento, tem sido definida e aprimorada a metodologia de trabalho, bem como lançadas as estratégias de construção de parcerias, incluso o Ministério Público Estadual, mobilização e articulação comunitária, bem como estabelecidas as estratégias para ampliação do mapeamento. Nesse relatório final apresentamos os dados quantiqualitativos relativos às comunidades propriamente ditas, bem como a construção das condições de continuidade do Projeto, que possibilitem e resultem não só no reconhecimento efetivo da sociodiversidade do Estado de Minas Gerais, notadamente da Região Metropolitana de Belo Horizonte, mas também e, sobretudo, no empoderamento de comunitários, suas organizações representativas e de apoio, suas comunidades, visando ao pleno exercício dos seus direitos individuais e coletivos. Belo Horizonte, 31 de julho de 2015. Aderval Costa Filho Coordenador do Eixo “Comunidades Tradicionais” do Programa Cidade e Alteridade / Coordenador do Projeto “Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais em Minas Gerais: visibilização e inclusão sociopolítica” 50 6 – BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, A. W. B. Terras de Preto, terras de Santo e Terras de Índio: posse comunal e conflito. In: Humanidades, Ano IV, 1987/1988, Brasília: Universidade de Brasília. __________. Os Quilombos e as novas etnias. In: O´Dwyer, E. C. (org.). Quilombos, Identidade Étnica e Territorialidade. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2002. p. 43-82. _________. Terras Tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. R. B estudos urbanos e regionais. V. 06, N. 01 Maio de 2004. __________. Terras de Quilombos, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PPGSCAUFAM, 2006. ALMEIDA, Mauro W. B. “Populações tradicionais e conservação ambiental”. In: Manuela Carneiro da Cunha. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. ARRUDA, R. Populações tradicionais e a proteção de recursos naturais. Ambiente & Sociedade, v.II, n.5, jul./dez.1999. ARRUTI, José Maurício Andion. A emergência dos "remanescentes": notas para o diálogo entre indígenas e Quilombolas. Mana, n. 3/2, Rio de Janeiro, n. 3/2, p. 7-38, out. 1997. ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola. Bauru: Edusc. APPADURAI, Ajurn. Soberania Sem Territorialidade - Notas para uma Geografia PósNacional”. In: Novos Estudos CEBRAP, n.49, novembro 1997, p. 33-46. ÁVILA, Fernando Silva de. Território Circense. UNESP, 1998. Dissertação de Mestrado. BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Notas para uma história social das áreas de proteção integral no Brasil. In Ricardo, F. (org.), Terras Indígenas e Unidades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições, ISA, 2004. BARRETTO FILHO, Henyo T. Populações Tradicionais: introdução à crítica da ecologia política de uma noção. Palestra apresentada no Workshop “Sociedades Caboclas Amazônicas: Modernidade e Invisibilidade”, São Paulo, 19 a 23 de maio de 2002. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5a edição. São Paulo: Perspectiva. 2001. ______________ “Trabalhos e Projetos”. Pierre Bourdieu. Renato Ortiz (Org.). São Paulo: Ática. 1994. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. CERRADO, GERAIS, SERTÃO: comunidades tradicionais dos sertões roseanos. Relatório final do Projeto Opará:. ´Tradição, Identidades, Territorialidades e Mudanças entre Populações Rurais e Ribeirinhas no Sertão Roseano. Montes Claros: Unimontes, 2010.. 51 CARNEIRO, M. J. Camponeses, Agricultores e Pluriatividade. Editora Contra-Capa: Rio de Janeiro, 1998. CAMARGO, Jaqueline. Humor e violência: Uma abordagem antropológica do circo-teatro da periferia da cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado ano 1989. CARVALHO, José Jorge de. A economia do axé: Os terreiros de religião de matriz afrobrasileira como fonte de segurança alimentar e rede de circuitos econômicos e comunitários. Em: Alimento: Direito Sagrado. MInistério do Desenvolvimento Social. 2010 CASTRO, Edna. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. In: DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Etnoconservação. São Paulo: Hucitec, 2000. CASTRO, Alice Viveiros. O circo conta sua história. Museu dos Teatros. Rio de Janeiro: FUNARJ, 1997. CIRCO: ESPETÁCULO DE PERIFERIA / 1977. PESQUISA 10. Edição 1981. São Paulo (município) Departamento de Informação e documentação Artísticas. Centro de Documentação e Informação sobre arte Brasileira contemporânea. COSTA, Karla Tereza Ocelli. Arturos, filhos do Rosário: Nas práticas sociais, Uma história que se revela na festa de Nossa Senhora do Rosário. Dissertação de Mestrado. UFMG. 2013 COSTA, Martha Maria Freitas da. O velho-novo circo: um estudo de sobrevivência organizacional pela preservação de valores institucionais. Dissertação de mestrado apresentada à Fundação Getúlio Vargas. 1999 COSTA FILHO, Aderval. Os Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil. NEAD/MDA. No prelo 2014. COSTA, João Batista de Almeida. A (des)invisibilidade dos povos e das comunidades tradicionais: a produção da identidade, do pertencimento e do modo de vida como estratégia para efetivação de direito coletivo. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cerrado, Gerais, Sertão: comunidades tradicionais dos sertões roseanos. Relatório final do Projeto Opará:. ´Tradição, Identidades, Territorialidades e Mudanças entre Populações Rurais e Ribeirinhas no Sertão Roseano. Montes Claros: Unimontes, 2010. DIEGUES, A.C. As Populações Tradicionais: Conceitos e Ambigüidades. In: DIEGUES, A.C. O Mito moderno da natureza intocada. 5ed. Hucitec, São Paulo: 2004. DIEGUES, A.C.; ARRUDA, Rinaldo S.V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério de Meio Ambiente, 2001. DUARTE, Regina Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas: Unicamp. 1995 DRUMMOND, J. A. A legislação ambiental brasileira de 1934 a 1988: Comentários de um cientista ambiental simpático ao conservacionismo. Ambiente & Sociedade, v.II, n.4, 1999. DRUMMOND, J. A. et al. Uma análise sobre a história e a situação das unidades de conservação no Brasil. In: GANEM, R. S. (Org.) Conservação da Biodiversidade: Legislação e Políticas Públicas. Brasília: Edições Câmara, 2010. 52 EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer. 2ª ed. S. Paulo, Perspectiva, 1993. FANTINI, C. R. R. COMUNIDADES GERAIZEIRAS DO NORTE DE MINAS: processos de construção identitária, visibilização e inclusão sociopolítica. Belo Horizonte; UFMG, 2013. Monografia de conclusão de graduação apresentada ao Departamento de Sociologia e Antropologia UFMG. GUPTA, Akhil, FERGUSON, James. "Mais Além da 'Cultura': espaço, identidade e política da diferença". In: ARANTES, Antonio A. Espaço da Diferença. Campinas -SP: 2000. HAESBAERT, R. Concepções de território para entender a desterritorialização. In: SANTOS, M.; BECKER, B.K. Territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. 3ª edição, Rio de Janeiro: Lamparina, 2007. LITTLE, Paul E. 2001. Amazonia: territorial struggles on perennial frontiers. Baltimore: Johns Hopkins University Press. LUCAS, Glaura. Os sons do Rosário: um estudo etnomusicológico do congado mineiro – Arturos e Jatobá. Escola de Comunicações e Artes da USP, 1999. LUZ DE OLIVEIRA, Claudia. Vazanteiros do Rio São Francisco: um estudo sobre populações tradicionais e territorialidade no Norte de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG. Dissertação de Mestrado, 2005. MARTINS, Leda. Afrografias da memória: O reinado do Rosário no Jatobá. Perspectivas. 1997. MARX, Karl. “Formas que preceden a la producción capitalista”. In Elementos fundamentales para la critica de la Economia Política. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1971. OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. “Uma etnologia dos índios misturados?: situação colonial, territorilização e fluxos culturais”. In. João Pacheco de Oliveira Filho (Org.) A viagem da Volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. ODWYER, Eliane Cantarino. Introdução. O papel social do antropólogo Aplicação do fazer antropológico e do conhecimento disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo. E-papers. Rio de Janeiro. 2010. PANDRI, Reginaldo. As religiões negras do brasil: Para uma sociologia dos cultos Afrobraisleiros. Revista USP, pags. 64-83, dezembro/ fevereiro 95/96. São Paulo. Cartilha para legalização de casa religiosas de Matriz africana. 1 ed. Puc-Rio. Rio de Janeiro, 2012. ROCHA, Maria Tereza. Comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata: Identidade, territorialidade e relações sociais de gêneros. Montes Claros; Unimontes, 2010. Monografia. ROCHA, Gilmar. A magia do circo: etnografia de uma cultura viajante. Rio de Janeiro: Lamparina e Faperj. 2013. 53 SILVA, Erminia. O circo: sua arte, seus saberes. O circo no Brasil, de final do século XIX a meados do XX. Dissertação de mestrado em História. Unicamp, 1996. SILVA, Erminia; ABREU, Luís Alberto de FUNARTE. Respeitável público- o circo em cena. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2009. 262p. TINHORÃO, José Ramos (2001). “Circo brasileiro, local do universal”. In: Cultura Popular – Temas e Questões. São Paulo: Editora 34. TORRES, Antônio (1988). O circo no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte. WEBER, Max. Economia e sociedade. in: FORACCHI, M.M. e MARTINS, J. de S. Sociologia e Sociedade: Leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1992. WOORTMANN, Ellen F. Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e gênero em comunidades “pesqueiras” do nordeste. In: Revista brasileira de Ciências Sociais. nº 18, v.7, p. 41-61, 1992. _____________________. Herdeiros, Parentes e Compadres. Brasília: Hucitec/EdUNB, 1995. WOORTMANN, Klaas. Com parente não se Neguceia: o campesinato como ordem moral In Anuário Antropológico/87. Brasília: EdUnB. 1990. Documentos: - Art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. - Art. 215, 216, 225, 231 e 232 da Constituição Federal. - Decreto Legislativo n° 143, de 20 de junho de 2002. - Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003. - Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004. - Decreto de 13 de julho de 2006. - Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007. - Lei n.9.985, de 18 de julho de 2000. - Lei 21.147, de 14 de janeiro de 2014. 54 7. Anexo: Comunidades Mapeadas 55