“NAS BORDAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: ensaio psicanalítico sobre um caso clínico borderline homossexual” Mírian Cézar Carneiro da Cunha M.P. da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Rua Barão da Torre, 630/102, Ipanema Rio de Janeiro – RJ – Brasil CEP 22411-001 Tel. 0 55 21 2267-5406 [email protected] Abril/201 “NAS BORDAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: ensaio psicanalítico sobre um caso clinico borderline homossexual” Resumo A autora procura, por meio de um caso clínico, refletir sobre a sua escuta psicanalítica de uma paciente borderline homossexual. Desta forma, enfoca as entrevistas iniciais, como também, considerações psicanalíticas sobre organizações limítrofes e a contratransferência. Inspira-se na demanda da paciente para iniciar um estudo sobre escuta e abordagem, na clínica contemporânea, que contribua para a construção de um espaço psicanalítico para além das fronteiras clássicas. Palavras chave: Clínica, contratransferência, psicanálise contemporânea. Resumen La autora busca, por medio de un caso clínico, reflexionar sobre la su escucha psicoanalítica de una paciente borderline homosexual. Destaca las entrevistas iniciales, además, consideraciones psicoanalíticas sobre la organizacion limítrofe y la contratransferência. Inspirandose en la demanda de la paciente para iniciar un estudio sobre la escucha e la abordaje, en la clinica contemporânea, que contribuya con la construcción de un espacio psicoanalitico más allá de las fronteras tradicionales. Palabras chave: clínica, contratransferência, psicoanálisis contemporánea. “A análise é a arte de abrir o imediato aparentemente liso e compacto às vozes que o habitam, que falam nele com eloquência muda e que pedem apenas um pouco de atenção para se fazer ouvir” (Mezan , 1993, p.9). 2 Este ensaio psicanalítico é uma tentativa inicial de dar conta das inquietações que minha paciente despertou em mim, como analista e formanda de psicanálise (caso oficial). Tentarei, com intenção de aprimorar a acolhida clínica, transformar em palavra escrita, ainda que insipientemente, alguns “sons” deste atendimento, que reverberaram, para além do setting analítico, O caso clínico e a construção do espaço analítico Segundo Fernando Rocha (2011), devemos dedicar especial atenção às entrevistas preliminares porque, entre outras questões, “... precisamos definir a maneira mais adequada de investigar e de encaminhar o processo psicanalítico” (Rocha, 2011, p. 19a); e continua, identificando-se a Quinodz (en: Rocha, 2011), que, afirma existir um fenômeno estranho na primeira entrevista, pois parece “conter em germe, tudo o que será a problemática central do tratamento” (Rocha, 2011, p. 129b). Então, privilegio as entrevistas iniciais, da paciente, apesar de, ocultar informações, assim preservando-a. Identifico-a como Edgy. Em sua primeira entrevista, Edgy chega na hora, limpa os pés no tapetinho da porta. Ritual que a acompanha durante todo seu processo terapêutico. Veste camiseta, calça jeans, tênis e apesar de aparência adolescente, venho a descobrir que tem 30 anos. Afirma que chegou a mim por indicação de Maria, amiga sua e de uma ex-paciente minha. Diz que precisa de uma “analista que não passe a mão na cabeça”. Complementa que, precisa mesmo é “levar porrada”, para aprender, pois não aguenta mais “sua compulsão a repetição”. Afirma que repete situações que a fazem sofrer. Mesmo sabendo das consequências, não resiste e “entra em roubadas”. Diz que se envolve com pessoas difíceis, complicadas, que sempre a decepcionam. Afirma que está com medo de deprimir pois, anda desanimada em manter sua rotina, inclusive seu trabalho que lhe dá tanto prazer. Segundo ela, é profissional liberal e apesar de “ser tímida”,quando trabalha, ”sente-se outra pessoa”, solta, “como se entrasse num palco”. Afirma que seu atual emprego foi conseguido com ajuda de uma “dessas pessoas”, com quem, se envolveu. Descreve-me como conheceu “a pessoa” dizendo que foi, pela Internet, e como, por conta de envolvimento e paixão, elas (Edgy e “a 3 pessoa”), “radicalizaram”. Ambas largaram tudo: amigos, família, para morarem juntas. Porém, segundo Edgy, para ela foi pior, pois trocou, inclusive, a cidade onde morava. Complementa dizendo que, contudo, decepcionou-se. Diz ter terminado a relação porque “foi traída” e isto ela (Edgy) não aceita. Quando soube da traição “enlouqueceu”, foi atrás e fez um “escândalo”. Afirma que “essa pessoa” a está “tentando” novamente. Pede minha ajuda para “acabar de vez com essas histórias”. Ao ser requisitada a falar mais sobre “essas histórias” ,afirma que “não duram mais do que seis meses”.Em sua segunda entrevista, Edgy mostra-se mais a vontade e “cooperativa”. Diz que comprou um livro sobre psicanálise, “para me ajudar a lhe ajudar”. “Apresenta-me” sua família e informações sobre “coisas da infância”, pois “sabe que” , é “importante para o tratamento”. Informa que é a segunda filha de uma família com mais três filhos homens. Seu pai e sua mãe trabalham na mesma área, mas foi sua mãe quem obteve sucesso profissional. Afirma que eles conheceram-se num evento religioso e casaramse. Segundo ela, por conta do trabalho, os pais deixavam os filhos na casa dos avós maternos, num bairro próximo, e os pegavam, depois do expediente. Afirma que foi praticamente criada pela sua avó , e que, segundo Edgy, (a avó) era alguém muito rígida na educação. Enfatiza ter algo importante para falar, faz pausa, reticências e diz que “aos 9 anos tomou banho com a empregada e que, por conta disso,sua avó lhe deu uma surra”. Olha para mim, meio que aguardando alguma reação minha. Segue dizendo que quando pequena tinha medo de escuro e ia para cama dos pais. Fato que a levou para terapia. Fez terapia um mês. “Curou em um mês”. Complementa, “só tinha medo até meia noite, quando voltava para sua cama”. (ri) Afirma “hora de mudar”. Digo-lhe, ao final da entrevista que...”marcaremos outra por entender que ela teria mais coisas a serem ditas .Em sua terceira entrevista Edgy diz como entendeu minha intervenção sobre mais coisas a serem ditas.. “Você me surpreendeu, como sabia que tenho um segredo?” Após me colocar quase como uma guru afirma que “gostava de mulheres”, reformula, “gosto de mulhere”.. Diz ainda que viveu em várias cidades e isso se deve a que tende a fugir de seus problemas. Geralmente fica uns 3 meses em cada local onde se estabelece. detalhistas e não conseguí transcrevê-lo totalmente. Seu relato é longo e Sobre a hipótese 4 diagnóstica, fico confusa. Esta pouca clareza me leva às organizações psíquicas bordelines. Minha inquietação, encontra ajuda em Mezan (1993), pois identifico que Edgy representa, como afirma Green (en: Mezan, 1993), um “paciente típico de nosso tempo... (Mezan,1993, p.124, b). Por vezes, me sentia inundada e, ao mesmo tempo, vazia ao final de suas sessões. Inundada de personagens que ela trazia, mas, como se não houvessem representações significativas para serem trabalhadas. Em certo momento do processo, preciso mudar o endereço de meu consultório. Monto-o em minha residência. Havia-lhe informado com tempo suficiente para trabalhar eventuais manifestações. Após minha mudança, uns dias depois, já atendendo-a no novo endereço; ela falta algumas sessões, e ao retornar, informa: “estou feliz da vida”... “Mudei também.” Isso desperta em mim um sinal de perigo. O que Edgy comunica em sua atuação? Sua mudança soava “para ela” independência. Realizando um desejo antigo. Porém, para mim, apontava para ataque ao vinculo. Meus questionamentos me levam, a posteriori, ao encontro com Berenstein (en: Green,,2001), e seu estudo sobre contemporâniedade e vínculo, onde afirma:, “o certo é que o outro não poderá ter o status de ausente” (Berenstein, 2001, pag.196) Sobre sua mudança, Edgy afirma: “Não aconteceu nada do que queria, com minha mudança”, chora. Não teve tempo, nem dinheiro para ter uma infraestrutura básica, não tinha, panelas, geladeira etc., o que veio, aos poucos, a se regularizar...Sobre o prédio onde foi morar, afirma: “pensei que teria privacidade, que nada, perdi a privacidade”... interpreto que me dizia também como se sentia, aqui comigo, sem privacidade, mudei para minha residência... ela muda o tom da voz, parecendo animada, e diz: “que nada, adorei sua ‘casa’, comprei uma mesinha igual à sua, você não vai ficar chateada, vai?”. Fico com a impressão de ambiguidade, satisfação ambígua, por um lado, feliz por “me levar” para perto dela e ao mesmo tempo, certo tom de vingança — satisfação por ter feito algo errado... Após minha interpretação, ela associa e lembra da satisfação vingativa que sentiu por ter visto a carteira e não ter falado nada para a mãe, que acaba esquecendo-a (carteira) antes de se afastar para ir trabalhar... Afirma que sabia que a mãe ia “voltar enlouquecida” atrás de sua da carteira... o que ocorreu... Cena psíquica que 5 me remete à sua entrevista — ela enlouquecer quando traída... interpreto... “Então você fez mamãe sentir o que você sente, quando ela não está por perto... Ela surpreende-se: “Enlouqueço?”….:“Estranho, bateu forte, mas não doeu”... Foi um desses momentos significativos, que revela seus diferentes “contornos”. Como se saísse de estágio regressivo, quando atua ao mudar-se repentinamente — para um estado de amadurecimento egóico, capaz de associações e insights, Passagem clínica, que é apasiguada, ao estudar Pelegrin (1992) ao descrever sobre o processo de atendimento do paciente borderline “...o terapêuta pode ser surpreendido por manifestações de diferentes setores da organização da personalidade, muito divergentes entre si durante o processo terapêutico”... (Persano e Ventura, 2006, p. 109.). Permito-lhe então, ela me ensinar a, como devo comunicar-me com ela. Por vezes, estranhamente, eu mesma, me sentia mais confortável, quando fazia intervenções espetaculares, repetindo ou explicando racionalmente, sobre ela, o que se passava com ela — na tentativa de abrir espaço para interpretações transferenciais, que, por vezes, a afugentava, sentidas por ela, como invasivas ou evasivas. Então, apoio-me em Green (2002), ao referir-se às variações necessárias para sair de momentos de impasse, com pacientes, com estruturas limites ou narcísicas — não neuróticos “ ... todas as medidas se justificam pela busca de algo que possa ser colocado em andamento para salvar um processo parado” (Green, 2002, p. 114). Suspeito que, ao reassegurar-se, comigo, Edgy consegue afastar-se, “diferenciando-se”, mas se mantendo, ainda assim, ligada. Certa sessão, parece-me que, ela surpreende-se ao entrar em contato com sua transferência amorosa, ao falar de suas relações:.. “Vera, ela saiu fora, se desinteressou, não sei o que houve... se ela me ligar vou conversar... não sei se vou... o que importa é que não pirei com isso, acho que é porque estou mais próxima de Patrícia (a ex)... interpreto-lhe: “E de mim também”... Edgy continua. “É surpreendente... fazemos coisas juntas hoje... antes era só briga... agora está tudo tão estranhamente natural”... Edgy, parece estranhar, também, sua capacidade de envolver-se sem destruir, nem ser destruída. Nesses momentos sinto-a caminhando na direção de insights, quando o pensar não é tão enfaticamente utilizado contra o sentir e o sentir não é “carregadamente” vivenciado, impedindo o elaborar. Trabalhamos sua vinda transferida, a busca de uma 6 analista-avó, que lhe “dê porradas” por causa de suas “transgressões” — suas saídas noturnas, representando sua ida para a cama dos pais, gerando punições, por causa de fantasias edípicas mal resolvidas e assustadoras.. Chora a lembrança da morte da avó, que na época do falecimento “não havia lhe trazido nenhuma lágrima”. Contudo, ao mesmo tempo, “apronta”, como ela mesma diz. “se drogando”,e “me drogando”, “me deixando” preocupada. Encontro um grande aliado terapêutico na contratransferência — no sentido que Paula Haimann (en: Persano, 2006) sugere — é ... “todos os sentimentos que o analista sente pelo paciente “(Persano e Ventura, 2006, p. 109b), pois, para mim, apresenta-se como um interlocutor natural, um tradutor para suas “falas”, quando inaudíveis. Surge em mim um questionamento. Se a transferência é uma ferramenta de trabalho psicanalítico com pacientes “neuróticos”, nos casos limítrofes, será a contratransferência, que nos possibilita trabalhar? Suas sessões, aos poucos são preenchidas com associações, sonhos e insights. “Harmonias” e “momentos desafinados”, alternam-se, nesse nosso “ensaio” quase diário, que reverbera para além do, “instrumento psicanalítico”, para além da psicanálise de Edgy. RESUMO A autora procura, por meio desse ensaio psicanalítico, dar conta de inquietações surgidas durante atendimento, elaboração, defesa e aprovação do Relatório de caso oficial – paciente bordeline e homossexual. Por tanto, transita pelas ilustrações clínicas e seus comentários com intenção de aprimorar sua aprendizagem advinda das contribuições teórico-técnicas. Enfoca fenômenos resistênciais expressos na transferência e “decodificados” na contratransferência, entre outros, revelados durante o processo. Apoia-se em conceitos freudianos e concepções de autores contemporâneos, sobre casos bordeline. Por conseguinte, sem pretenção de aprofundar-se no campo teórico, levando em conta as demandas da paciente como fonte de inspiração, reflete sobre a possibilidade de uma clínica contemporânea, para além das fronteiras da psicanálise clássica, resultande da necessidade de acolhida de sofrimentos, que estão para além de contornos teóricos-técnicos pré-estabelecidos. 7 BIBLIOGRAFIA BERENSTEIN,I. “Reflexões sobre uma psicanálise do vinculo” En: Psicanálise Contemporânea – Revista francesa de psicanálise (2001) Green, A. (org.) ed.Imago,RJ, 2003, p. 196 GREEN, A. (2002). “Orientações para uma Psicanálise Contemporânea: Desconhecimento e Reconhecimento do Inconsciente”, ed. Imago, RJ, 2008, p. 114. MEZAN, R. (1993). “A Sombra de Don Juan: e outros ensaios”, ed. Casa do Psicólogo, segunda edição, SP, 2005, p. 9, a / p.124b. ROCHA, F. “Entrevistas Preliminares em Psicanálise: incursões clínicoteóricas”, ed. Casa do Psicólogo, SP, 2001, p.19, a/ 129, b. PERSANO, H e VENTURA, A. transtornos da “Contratransferência em pacientes com personalidade borderline e narcisistas”, En: “Contratransferência: Teoria e Prática Clínica”, Parte II – ZASLAVSK,J, SANTOS, M & colaboradores, ed. Artmed, SP, 2006, p. 109, a/ b. 8 9