Personagens do Fazer Jornalístico de São Borja nos anos 70 – memórias e relatos1 Autores Cárlida EMERIM2 Tiago Radeski HAFFERMANN3 Universidade Federal do Pampa, São Borja, RS Resumo O presente artigo faz uma sistematização e uma análise dos modos de feitura da imprensa radiofônica e impressa na cidade de São Borja no período compreendido entre 1970 e 1979, tentando entender esse fazer na perspectiva de uma inserção jornalística numa área de segurança nacional, no período considerado de auge da ditadura e da censura no país. Para tanto, entrevista seis realizadores da imprensa da época e a partir de seus relatos orais constrói uma retrospectiva do modo específico deste fazer. Palavras-chave história, memória oral, jornalismo, rotinas produtivas. 1. Introdução O trabalho desenvolvido no referente artigo é construído com base em depoimentos dos realizadores e atuaram no rádio e no jornal impresso, no período de 1970 a 1979, na cidade de São Borja (RS). Como metodologia de trabalho primeiramente foi realizada uma pesquisa bibliográfica, aos jornais da época e alguns pessoas da comunidade que podiam auxiliar na identificação dos participantes. Depois, empreendeu-se uma outra verificação com vistas a identificar quais dessas pessoas que atuaram no período estudado e poderiam relatar sobre suas experiências no jornalismo. 1 Trabalho apresentado no 7º Encontro Nacional de Pesquisadores em História da Mídia, evento da Rede Alfredo de Carvalho (ALCAR). 2 Cárlida EMERIM. Doutora em Comunicação e Processos Midiáticos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Mestre em Ciências da Comunicação com ênfase em Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Especialista no Ensino das Artes Visuais pela Universidade da Região da Campanha e Jornalista graduada em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa HISTÓRIA DA MÍDIA da UNIPAMPA Campus São Borja. Professora Adjunta II da Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja (RS). [email protected] 3 Tiago Radeski HAFFERMANN. Acadêmico do 7ª semestre de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja. Bolsista de Iniciação à Pesquisa. [email protected] De posse dessas informações agendou-se a realização de entrevistas gravadas para o suporte televisivo com o objetivo não só de preservar a memória oral da mídia no interior do Rio Grande do Sul, como também de buscar mais subsídios para o entendimento da historia e dos fazeres jornalísticos. O artigo apresenta além dessa introdução uma breve sobre a imprensa escrita e a falada nos anos 70 em São Borja; algumas considerações sobre o período da de ditadura militar no Brasil e os seus reflexos na cidade de São Borja; os relatos dos jornalistas e radialistas da época e finaliza com algumas interpretações e sistematizações sobre os fazeres jornalísticos a partir dos depoimentos gravados. 2. Breve Histórico da Imprensa em São Borja nos anos 70: Rádio e Jornal Impresso Segundo o jornal 7 dias, datado de 19 de novembro de 1967, a primeira rádio de São Borja iniciou suas atividades em agosto de 1940, com a ZYF-2, Rádio Fronteira do Sul AM. Fundada por treze empreendedores são-borjenses, ela foi inicialmente idealizada por um argentino, Florêncio Gimenez, que possuía uma loja que prestava serviços de consertos de rádios. A emissora funcionava em caráter experimental, mantendo-se nesse formato até a metade da década de 40 quando obtiveram a autorização governamental. Ao sair da direção da rádio, Gimenez negocia suas ações com o então advogado João Belchior Marques Goulart, que se torna deputado estadual em 1945 e, posteriormente, presidente da república em 1962, até o golpe em 1964. Goulart, por sua vez, nomeia o advogado e contador Leo Ayub Vargas, para administrar a emissora. A trajetória da emissora foi interrompida em 1975 pela ditadura, que na figura de representantes da Delegacia Nacional de Telecomunicações (Dentel), um dos órgãos responsáveis pela aplicação da censura aos meios de comunicação no Brasil, acabou por cortar o fio que ligava a antena ao transmissor. Diante do fato, o então diretor resolve fechar a rádio e dividir os móveis e equipamentos com os funcionários. 2 Com o fechamento da rádio Fronteira do Sul AM, a cidade ficou um tempo sem esta mídia, e em 1977 começa a funcionar a Rádio Cultura AM. Desde sua fundação foram realizadas coberturas importantes, como a morte do ex-ditador da Nicarágua, Anastácio Somoza; o encontro entre os ex-presidentes, Carlos Menem da Argentina e Fernando Henrique Cardoso do Brasil. Desde então a Cultura AM vem realizando eventos que tentam unir a comunidade em torno de interesses em comum, como o futebol. Tanto é que um dos eventos mais concorridos é o Culturão, torneio de futsal realizado pela emissora que reúne cerca de mil atletas de toda a região incluindo atletas da Argentina. Embora São Borja seja uma cidade longe das grandes capitais, o campo do jornal impresso sempre teve publicações ao longo da sua história. Nos anos 70 especificamente houve uma diminuição de publicações. Com o fechamento entre 68 e 69 do jornal 7 dias, do Jornal de São Borja, do jornal Uruguay e do jornal o Clarim, surge em 1970 o jornal Folha de São Borja. Fundado por José Grizólia, em 24 de fevereiro de 1970, reuniu vários colaboradores e passou a apresentar semanalmente uma seleção de noticias dos acontecimentos da cidade e região. Inicialmente em formato Standard, com oito paginas, dividia-se em editorias de policia, geral, informes, jurídicos, esporte e a coluna social. Em 1976 foi vendido para um grupo de empresários que tinha como acionista majoritário Renato Andrés que, em 1992, passa a direção da empresa para Roque Auri Andrés. A produção, como no início, ainda era feita artesanalmente, com a montagem através de recortes datilografados e colados em páginas chamadas de “boneco”. Depois de pronto o boneco, este era fotografado para poder produzir o fotolito para impressão e este fotolito muitas vezes era chamado de espelho, só então enviar para a gráfica. De 1970 até 1990, o jornal foi produzido assim. O jornal FSB era impresso em uma editora da cidade de Santana do Livramento, passou um tempo sendo impressa pelos próprios donos através da empresa Artes Gráficas São Borja Ltda - de propriedade de Roque Andrés (aliás, a que até hoje comporta a estrutura física do jornal), sendo impresso todo em preto e branco. Mais tarde, por questões econômicas, o periódico volta a ser 3 impresso em outra empresa, desta vez, na cidade de Santo Ângelo e permanece até os dias atuais. Como já se pode perceber, o fechamento de rádios e jornais também ocorreu após o Golpe de 64 em São Borja que, aliás, merece ser relembrado a partir de seus reflexos na cidade. O início do golpe militar foi na madrugada de 31 de março de 1964, quando as forças armadas tomaram o poder do governante legalmente instituído, o presidente João Goulart, que viajou em busca de segurança para Porto Alegre onde Leonel Brizola tentava organizar uma resistência, com o apoio de alguns oficiais simpatizantes. Mas Jango não quis arriscar um embate direto contra os militares golpistas e se exilou no Uruguai e depois na Argentina, retornando ao país, somente em 1976, para ser enterrado em sua terra natal, São Borja. Com o poder nas mãos, os militares dão inicio a uma intensa repressão contra setores da sociedade, contra políticos de esquerda, contra a União Nacional dos Estudantes, contra a Juventude Universitária Católica e as ações e movimentos populares. Nesse período calaram muitas pessoas, que foram presas irregularmente, sendo que existiam casos de tortura, coisa muito comum no nordeste do país, exemplo disso foi o que ocorreu com o líder sindicalista, Gregório Bezerra, que foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife no estado de Pernambuco. Ao longo desse período foram instituídos muitos mecanismos de repressão e, dentre eles, estava a censura e a perseguição através de órgãos governistas. No campo da mídia, essa repressão começou com bilhetes e telefonemas que eram enviados para as redações dos veículos de comunicação: quem era contrário aos desmandos do governo tinha que conviver com a presença de policiais e censores que vigiavam as redações. Mas, o mais duro golpe à liberdade de imprensa e expressão veio com o Ato Institucional AI-5, em 13 de janeiro de 1968, que dava plenos poderes aos governantes para punir arbitrariamente. Esse Ato marcou os dez anos seguintes por um duro é violento período histórico pelas perseguições e prisões além dos rechaços às contestações políticas e os confrontos entre os movimentos estudantis e a polícia. Em São Borja, uma cidade considerada zona de segurança militar, com quatro quartéis, órgão federais e estaduais, convivia desde sempre com a idéia da vigilância. Segundo moradores mais antigos, a ditadura não foi muito diferente do que já se 4 percebia e vivia na cidade. A imprensa necessitava se reportar à Polícia federal antes de publicar suas notícias e os cidadãos, para se precaverem, não se envolviam em nada que pudesse causar confronto ou desconfiança. 3. Relato resumido dos realizadores entrevistados Nesse sub-ítem propõe-se apresentar, brevemente, os relatos obtidos a partir dos depoimentos gravados com os jornalistas e radialistas que fizeram parte da imprensa de São Borja no anos 70. Assim, serão apresentados os relatos de Serzo Brites Rodrigues, Leo Ayub Vargas, Íbaro Rodrigues e Alberí Côgo. Nome: Serzo Brites Rodrigues Nome de Guerra: Bolachinha Função: Técnico em Radiofusão Empresa: Fronteira do Sul AM; Rádio Cultura AM Serzo Brites Rodrigues, de 67 anos, técnico em radiodifusão, tem 42 anos de experiência em técnica de rádio. Foi o responsável pela montagem das rádios Fronteira do Sul AM em 1967; Cultura AM em 1977 e Fronteira FM em 1985. Sua história na rádio começou por acaso. Formado no curso de Técnica em Eletrônica, trabalhava num hotel quando foi convidado para montar a estrutura de uma rádio. Era a rádio Fronteira do Sul AM. Na ZYF-2, iniciou na área técnica como operador de áudio, mas ajudava também nas transmissões externas. A grade de programação da rádio contava como programas musicais, como os tradicionalistas que apresentavam músicos locais e do estado, grupos e duplas sertanejas, tudo ao vivo. Outro ponto forte da programação era os programas esportivos, com as transmissões de jogos de futebol até mesmo em outras cidades. Um programa de muita audiência era o definido como horário musical que permitia que os ouvintes escolhessem músicas da programação e pudessem oferecer a outras pessoas. Este programa recebia por cada pedido musical e movimentava uma grande parte da renda total da emissora. As transmissões não se limitavam aos jogos de 5 futebol, eventos festivos como bailes carnavalescos, concursos de musicas, e rodeios recebiam a cobertura da emissora. E, como não poderia deixar de ser a rádio também apresentava notícias de hora em hora com locutores que tinham a única responsabilidade de narrar as reportagens produzidas pelos jornalistas. Outra forma de captar e de divulgar informações na rádio era através do sistema de rádioescuta, no qual alguns radialistas captavam e reproduziam notícias da Rádio Guaíba e da Rádio Gaúcha, ambas de Porto Alegre. Segundo ele, era muito complicado trabalhar em reportagens externas fora do estúdio, devido ao tipo de equipamento utilizado na época. Aliás, estas transmissões lhe renderam boas experiências, muito trabalho e histórias. Em sua história sobre a rádio em São Borja, ele aborda, também, peculiaridades da produção em rádio com baixo custo e tecnologia precária. As coberturas dos carnavais nos clubes da cidade eram verdadeiras maratonas. Serzo com que eles gravavam as fitas e algumas músicas em um ou dois clubes, um operador levava a fita até o estúdio que ficava rodando o programa e, enquanto isso acontecia, esta mesma pessoa voltava até o local onde estava o repórter, pegava mais fitas, resultado de mais gravações, refazia o mesmo percurso para que elas pudessem ser transmitidas. Deste modo, eles conseguiam passar a idéia de que o programa estava sendo transmitido ao vivo pela rádio. Quando não conseguiam realizar todo este translado, as fitas eram apresentadas todas, em seqüência, no dia seguinte. Também realizavam coberturas internacionais na cidade vizinha de Santo Tomé, na Argentina, porém as gravações eram veiculadas no dia posterior, pois a travessia entre as duas cidades, na época, era feita através de balsas pelo rio Uruguai, portanto, impossível de ter a agilidade necessária. Outra dificuldade era o fato de que não existia rádio transistorizada, elas eram valvuladas e tudo precisava de muita energia elétrica. Quando não tinham uma fonte de energia próxima, era preciso colocar uma extensão até a fonte mais próxima. Mas, com o passar do tempo, chegou à cidade o que eles chamavam de Conversor Vibrador, que era ligado a baterias. O aparelho facilitava a obtenção de energia, pois convertia a voltagem de 12 Volts para 220 Volts. Mas toda essa potência propiciada pelo conversor acabava concentrando muita energia causando choques nos 6 radialistas que seguravam o microfone. Durante muito tempo, eles tiveram que lidar com este fator até o aparelho cair em desuso. A sede da rádio Fronteira do Sul AM ficava a cerca de três quilômetros e meio da antena transmissora. Serzo explica que o sistema de transmissão/recepção do estúdio até o transmissor era feito através de linha física, ou seja, linhas telefônicas e fios. Era muito difícil de conseguir uma linha telefônica para fazer este tipo de trabalho, e os técnicos tinham que fazer uma ligação (fiação) da rádio até a antena, seguindo o fio do poste de luz, de poste em poste. O técnico contou o caso de uma cobertura de um evento que seria realizado no clube da cidade. Como a rádio não tinha muitos recursos e como eram cobradas altas taxas para o uso das linhas telefônicas a rádio mantia uma linha telefônica fixa num ponto estratégico da cidade. Quando precisava fazer transmissão direta de um evento, para baratear os custos, eles puxavam apenas um fio até a linha telefônica fixa da emissora: numa ponta tinha um bastão de metal que era trazido até a sede da emissora para ser enterrado no solo e, e na outra ponta ficava um outro bastão que deveria ficar no local onde seria feita a cobertura. Neste evento do clube, em especial, eles tiveram que pegar um fio que saiu da rádio e o puxaram até o local do evento. Depois dessa ligação, eles conectaram ao radiofone para transmitir direto para o estúdio, “pois, a transmissão para ser feita, tem que realizar um looping, tem que ir e retornar, então, a transmissão das ondas era feita por terra”, explica. Toda essa sistematização era necessária, pois a rádio na época não tinha muito retorno publicitário, o comércio local era pequeno e não oferecia capital de giro, por tanto, investia muito pouco em comerciais na rádio. Os funcionários, segundo ele, reduziam ao máximo as despesas para poder manter a rádio em funcionamento. Esta estrutura precária, quase artesanal, de linha física, influenciava na qualidade de som das transmissões que não era muito clara e nem firme, sofria ruídos e silêncios, repercutindo em muita perda de qualidade na transmissão das ondas de rádio. Quando a linha telefônica e a fonte de energia elétrica eram muito distantes os radialistas se viam em situações inusitadas. Como a que aconteceu na cobertura de um jogo de futebol de um time da cidade que iria jogar em outra cidade. A equipe teve que sair dois dias antes da partida de futebol, tiveram que puxar o fio até o poste do 7 telégrafo dos Correios onde então conseguiram permissão para usar a sua linha: Foram dez mil metros de fio do estádio de futebol até alinha fixa dos Correios, uma distância de 6 quilômetros. Depois de tudo montado ainda tiveram que enfrentar outro obstáculo: eles não tinham uma fonte de energia para ligar os equipamentos. Mas, como tudo naquela época era uma questão de criatividade e desafio eles conseguiram ligar o equipamento em uma tomada da casa de um morador que ficava distante quatro quadras do estádio de futebol. Em meio à euforia da equipe por terem conseguido tamanha façanha tecnológica veio a noticia de que o jogo de futebol havia sido cancelado e os técnicos tiveram que ficar mais dois dias na cidade para poder retirar toda a estrutura que haviam conseguido montar. Na cidade de Itaqui há 90 km de São Borja a linha telefônica ficava muito longe dos locais que costumavam sediar eventos cobertos pela rádio. Como não tinham fios suficientes para chegar até estes locais os técnicos da rádio Fronteira do Sul AM faziam uma operação antológica: eles “grampeavam” as cercas que delimitavam as áreas rurais, faziam uma ligação dos pontos de interrupção das cercas e estendiam, ai sim com fios, até a linha telefônica que vinha de São Borja pela estrada4. Quando perguntado sobre a estrutura administrativa da rádio Serzo afirma que sabia apenas que João Goulart, que era um dos donos da rádio, quando foi para o exílio resolverá passar todas as suas ações para os funcionários da emissora, utilizando-se de uma carta documento. Só que os funcionários não conseguiram regularizar a situação da emissora junto ao Dentel, nem tampouco efetivar junto ao cartório local a transferência das ações. Deste modo a rádio permaneceu no papel como propriedade de João Goulart até o seu fechamento em 1975. Após o fechamento da Fronteira do Sul AM, Serzo Brites foi trabalhar numa loja de concertos eletrônicos de propriedade de sua família, até ser chamado para trabalhar na implantação da rádio Cultura AM em 1976. Efetivamente no ar a partir de 1977 a rádio Cultura AM já começou as atividades com equipamentos mais modernos. O trabalho de Serzo ficou mais restrito a adequação de tecnologia e manutenção desta nova emissora. 4 Esta história que parece inverídica é contada por diferentes radialistas e técnicos em diferentes depoimentos obtidos pelo Grupo de Pesquisa História da Mídia. 8 Em relação ao período de ditadura militar de 1970 a 1979, Serzo Brites afirma que ele nunca foi alvo de nenhum tipo de censura ou de cerceamento de atividade. Ele acredita que a sua área de atuação não requeria muitas preocupações, pois ele não lidava com conteúdo. A única referencia a um tipo de censura foi a tentativa de boicote de divulgação de um programa político opositor ao regime, na rádio Fronteira do Sul AM. A cidade teve sofreu um blackout no horário de transmissão desse programa. O que não foi um problema para a emissora na época, pois vários amigos se mobilizaram e com baterias emprestadas conseguiram colocar o programa no ar. Nome: Leo Ayub Vargas Nome de Guerra: Leo Ayub Função: Diretor e Contabilista Empresa: Fronteira do Sul AM Leo Ayub Vargas, de 67 anos, Advogado e Contabilista, foi administrador e diretor da rádio Fronteira do Sul. A pedido de João Goulart ele foi para a emissora para tentar resolver algumas situações relacionadas a fiscalização da receita federal, bem como a sua própria legalização. Segundo Ayub Vargas tratou por muito tempo com advogados em Porto Alegre, para tentar validar o ato de doação das ações pertencentes a Jango para os funcionários da emissora, sem sucesso. Embora não trabalhando na linha de frente Ayub Vargas assumiu a função de uma espécie de diretor de programação da rádio e passou a apoiar radialistas com suas posturas críticas e notícias polêmicas. Criou novos modelos de programação e buscou uma rádio que estivesse com a produção de noticias sem operar como rádio release (aquela que recebia verbas para divulgar o que o cliente queria). A respeito da programação, afirma que a emissora tinha concessão para trabalhar 24 horas ao dia, mas fechavam suas transmissões a partir da meia noite. Com programação voltada para a comunidade apresentavam várias notícias de utilidade pública, respeitando a população local e agindo com responsabilidade na veiculação das informações, com fontes fidedignas e credibilidade dos repórteres. O forte destes programas jornalísticos eram as entrevistas que faziam com os políticos da cidade, sem 9 respeitar as ordens vindas de outras esferas. Esta prática causou muitas tentativas de repressão ao formato, sendo que em certa ocasião o prefeito da época tentou impor uma maneira de realizar tais entrevistas, pois achava que seu governo estava sendo atacado. Para Ayub Vargas, esse foi um motivo precursor da onda de perseguições ao funcionamento da Fronteira do Sul. Na linha musical, os programas de auditório eram um marco da emissora. Neste estilo, ofereciam aos jovens cantores da cidade um espaço nos programas de auditório que faziam sucesso na região. Ayub Vargas enumera alguns aspectos da época que podem ter contribuído para o fechamento da rádio. O primeiro deles é o fator financeiro que havia pouco investimento em publicidade na rádio obrigando os radialistas muitas vezes a pagarem os custos de viagem para realizar o trabalho em coberturas. O pouco que a rádio lucrava era utilizado para o pagamento dos funcionários. O segundo esta relacionado as pressões que a equipe sofria das autoridades locais da época, além das imposições do próprio regime militar. Ordens de não ofertar o microfone para opositores do governo, ordens de dar voz aos políticos do governo ou ordens de não exibir programas, mesmo musicais se estes tivessem alguém pelo qual o regime não nutrisse simpatia. O terceiro está diretamente relacionado ao fato de João Goulart ser um dos donos da rádio. Ela seria alvo de várias perseguições, em diferentes instâncias até ser fechada, pois quando o Ministério das Comunicações tomou conhecimento da queda de Jango, passou a dificultar todos os processos de legalização, de liberação da concessão e de validação da doação das ações aos funcionários. [...] a partir daí a rádio estaria fadada a morte [...] foi declarada perempta, o que significa que o tempo para que tinha sido instituída tinha terminado, esse é o lado jurídico, porque por outro lado está a vingança política, pois toda a vida a rádio pertenceu a João Goulart. (VARGAS, 2009). Leo Vargas é mais enfático ainda quando afirma: era muito difícil trabalhar no jornalismo no período da ditadura militar, pois quem queria fazer valer suas idéias era repreendido, mas para quem bajulava os poderosos ficava muito mais fácil de se trabalhar. Porém, afora este relato, Ayub Vargas afirma que nunca sofreu diretamente 10 ações de censura sob sua pessoa e nem fora chamado a dar esclarecimentos no período da ditadura militar. Nome: Íbaro Rodrigues Nome de Guerra: Íbaro Rodrigues Função: Locutor Esportivo Empresa: Rádio Cultura AM Íbaro Rodrigues, 47 anos, locutor esportivo, trabalhou em diversas rádios no estado. Em São Borja há 31 anos, começou a trabalhar na rádio Cultura AM na sua fundação em 1977. Sobre a produção de notícias Íbaro afirma que elas eram copiadas de algumas rádios do estado (rádioescuta) e que na programação, a rádio Cultura AM se pautava pela programação mais popular, com músicas tradicionalistas, transmissões esportivas, noticiário e reportagens. Entre as dificuldades descreve a falta de tecnologia pára a organização e o arquivamento da programação, bem como no controle e veiculação de anúncios publicitários. Como locutor esportivo Íbaro não sofreu nenhuma restrição em relação ao seu trabalho nos esportes. Porém, como atuava esporadicamente como locutor noticiarista relata algumas situações que vivenciou durante o período de ditadura militar. Colegas radialistas que produziam notícias e jornalistas que produziam reportagens sofriam várias imposições na realização de suas atividades. Quando estava fazendo a cobertura das eleições de 1978, Íbaro vivenciou diretamente a censura sob o seu trabalho: Na cobertura das eleições de 78 fui escalado como repórter para cobrir uma seção eleitoral localizada em um colégio da cidade. Fui impedido de informar que um candidato a deputado estadual por São Borja estaria votando naquela seção, não pude nem falar o nome daquele candidato, pois ele era da oposição. (RODRIGUES, 2009). Em relação a programação musical era necessário enviar uma lista com todos os nomes das canções e dos artistas que a rádio pretendia veicular para a Polícia Federal em São Borja. A lista voltava com as anotações de quem e quais canções poderiam ser 11 reproduzidas. Ele conta que os discos que vinham para a rádio já chegavam das gravadoras com faixas vetadas, as músicas censuradas nem rodavam no “bolachão”. Nome: Alberí Côgo Nome de Guerra: Côgo Função: Repórter Empresa: Folha de São Borja Alberí Côgo, 53 anos, na atividade desde 1977, quando começou a trabalhar no jornal Folha de Santiago. Em 1978, veio para São Borja onde começa a trabalhar no jornal Folha de São Borja, e posteriormente, na rádio Cultura AM. É formado em História. Côgo se define como um autodidata, um jornalista por vocação, pois tudo que aprendeu sobre o jornalismo foi decorrência das experiências vividas e de muito estudo. Com uma postura engajada reforça um comportamento apaixonado pela profissão e acredita que as facilidades trazidas pelas novas tecnologias acabam limitando o jornalismo no seu aspecto de conteúdo. Apesar das dificuldades, era um jornalismo romântico, mais realizador, que visava muito mais sonhos que lucros, a gente se inspirava mais, era mais desafiador. Hoje, considerando as facilidades maiores, a liberdade de expressão, a profissão é, certamente, menos desafiadora. (CÔGO, 2009). Na Folha de São Borja o jornalista e radialista relata que tudo era produzido de forma quase arcaica a base de muita criatividade e improvisação. Sobre as temáticas, ele afirma que as colunas tinham uma concepção mais literária, reportagens eram produzidas com muita inspiração, com texto rebuscado e informações aprofundadas. Para fugir da censura os jornalistas dedicavam-se mais a repercutir as notícias em formas de crônicas e comentários literatos. Côgo explica que as matérias eram feitas nas máquinas de escrever, depois recortadas e montadas no texto espelho para depois ser fotografado e transformada em fotolito. Este material rudimentar segundo ele era enviado por malotes do Correio para serem impressos em gráficas de outras cidades, um processo demorado e que muitas vezes se perdia em outros destinos. A evolução desta época foi passar a enviar os fotolitos pelos motoristas de ônibus que entregavam em 12 mãos para pessoas que já estavam a espera do material. Correspondente do jornal Correio do Povo (RS), com sede na capital gaúcha, Côgo conta que quando o deadline era muito ele acabava por ditar toda a reportagem por telefone para o pessoal da redação O jornalista é correspondente do jornal Correio de Povo há vários anos e conta que naquela época, havia muita demora na entrega dos malotes de correspondência, por isso era mais rápido enviar pelo motorista de ônibus das empresas de viagem, que ao chegar no destino entregava a correspondência a uma pessoa que estava à espera. Isso acontecia também com as fotos que precisava enviar, elas eram reveladas e assim repetia-se todo esse processo penoso. Quando seu deadline era muito curto ele acabava ditando toda a reportagem por telefone para o pessoal da redação. Entre todos os entrevistados Côgo é o que mais sofreu com a ditadura, não de forma direta pessoalística, mas através da necessidade de adequação do seu modo de trabalho e da adesão da autocensura que, com certeza, limitaram por um bom período o crescimento profissional de um jornalista por concepção. Quando perguntado sobre qual o trabalho que mais lhe impactou ele aponta a cobertura realizado por ele da volta de Leonel Brizola do exílio, em 1979. Na rádio cultura AM Alberí Côgo tem se dedicado desde sempre a comentários e a noticiarismo, seguindo o padrão instituído desde o seu ingresso na profissão. 4. Algumas considerações sobre o fazer jornalístico dos anos 70 em São Borja A partir destes depoimentos, é possível levantar algumas considerações sobre o fazer jornalístico em São Borja, nos anos 70. A primeira consideração pode ser feita em relação a formação dos radialistas e jornalistas. Poucos são oriundos de outras profissões, na linha de frente, além de alguns que saíram da classe do magistério, a grande maioria era autodidata. Uns escolhidos pela voz, outros porque estavam disponíveis. Muitos moldados pela vivência e, com ela, conseguiram aprimorar e evoluir sua produção. A segunda consideração pode ser relacionada ao próprio mercado e condições de produção do jornalismo. Os relatos apontam para dificuldades técnicas e de maquinário, 13 ausência de padrão a ser seguido e acúmulo de funções sem apoio ou respaldo financeiro. O trabalho era realizado precariamente, pois a tecnologia era muito limitadora, o que obrigava seus profissionais a improvisar quase sempre para poder dar continuidade as suas atividades. A terceira consideração é em relação ao período dos anos 70. Os relatos dão conta da existência de uma autocensura na produção e isso foi uma experiência tão intensa que até hoje, ao longo dos depoimentos, foi possível perceber uma preocupação com o que se diz e o como se diz. É recorrente nas falas que o alvo mais direto da censura sobre os textos eram os repórteres ou aqueles envolvidos diretamente com a produção da notícia. Esta acepção se comprova, principalmente, nas afirmativas já relatadas de Íbaro Rodrigues e de Leo Ayub, como também, abaixo destacado, as falas de Alberí Côgo e de Mário Aquino5: Tinha que escrever e levar para a Delegacia de Policia Federal e depois ler na rádio ou publicar no jornal. Com o tempo nos mesmos nos policiávamos. (CÔGO: 2009). Não sofria com isso porque eu era locutor, só lia as notícias. Mas os jornalistas tinham que ter muito cuidado porque a censura era direta. (AQUINO, 2009). Podemos perceber através dessas entrevistas que naquela década não havia uma grande produção de noticias, muitas vezes ocasionado pela mobilidade que era dificultada pela aparelhagem técnica necessária para a produção desse gênero. Então a maior parte das informações eram reportagens gravadas para ser transmitidas no dia posterior ao evento. Diante do exposto pode-se conceber que se o jornalismo do interior já é difícil hoje em dia, em plena era de formação global de profissionais da imprensa, na época estudada, é ainda mais premente a falta de pessoas para a atuação na imprensa do interior. Tanto é que há mais de 20 anos depois, muitos ainda permanecem na ativa, porque até agora nem o mercado conseguiu abrir espaço para novas vagas de trabalho nem a formação conseguiu seduzir os jovens jornalistas para assumirem as matrizes do interior. De outro modo, fica bem claro, também, que o período da ditadura militar São 5 Mário Aquino, radialista, foi um dos entrevistados do projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. 14 Borja, cerceou a oportunidade de crescimento e desenvolvimento do mercado da comunicação e fadou a cidade e a região há um monopolismo reducionista e de poucas expectativas de mudanças futuras. 5. Referências bibliográficas 5.1 - Livros AQUINO, Mário. Mário Aquino: Depoimento: [jul. 2009]. São Borja: Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja, 2009. Depoimento concedido a professora Cárlida Emerim e ao aluno Tiago Haffermann para o projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. CÔGO, Alberí. Alberí Côgo: Depoimento: [jul. 2009]. São Borja: Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja, 2009. Depoimento concedido a professora Cárlida Emerim e ao aluno Tiago Haffermann para o projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. PEREIRA (orgs.), Joseline PIPPI e Cárlida Emerim Jacinto. Memórias sobre a imprensa em São Borja. Santa Maria: Ed. PROGRAD/UFSM, 2007. RESENDE, Lino Geraldo. A censura contra a cidadania: o caso do Brasil, Pré-congresso da Federação Internacional de Estudos sobre a América Latina e o Caribe, Vitória, 2005. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/;; acessado em 18 de maio de 2009. RODRIGUES, Serzo Brites. Serzo Brites Rodrigues: Depoimento: [jul. 2009]. São Borja: Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja, 2009. Depoimento concedido a professora Cárlida Emerim e ao aluno Tiago Haffermann para o projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. RODRIGUES, Íbaro. Íbaro Rodrigues: Depoimento: [jul. 2009]. São Borja: Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja, 2009. Depoimento concedido a professora Cárlida Emerim e ao aluno Tiago Haffermann para o projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. VARGAS, Leo Ayub. Leo Ayub Vargas: Depoimento: [jul. 2009]. São Borja: Universidade Federal do Pampa, Campus São Borja, 2009. Depoimento concedido a professora Cárlida Emerim e ao aluno Tiago Haffermann para o projeto Preservação da Memória Oral da Imprensa em São Borja, do Grupo de Pesquisa História da Mídia. 15