Letras Vernáculas . Módulo 4 . Volume 4
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I
LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
HISTÓRIA, SOCIEDADE E CULTURA
Inara de Oliveira Rodrigues
Paulo Roberto Alves dos Santos
Ilhéus, 2012
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Universidade Estadual de
Santa Cruz
Reitora
Profª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro
Vice-reitor
Prof. Evandro Sena Freire
Pró-reitor de Graduação
Prof. Elias Lins Guimarães
Diretor do Departamento de Letras e Artes
Prof. Samuel Leandro Oliveira de Mattos
Ministério da
Educação
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Letras Vernáculas | Módulo 4 | Volume 4 . Literatura de Língua Portuguesa História, Sociedade e Cultura
1ª edição | Junlo de 2012 | 462 exemplares
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Todos os direitos reservados à EAD-UAB/UESC
Obra desenvolvida para os cursos de Educação a
Distância da Universidade Estadual de Santa Cruz UESC (Ilhéus-BA)
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Projeto Gráfico e Diagramação
Jamile Azevedo de Mattos Chagouri Ocké
João Luiz Cardeal Craveiro
Capa
Sheylla Tomás Silva
Impressão e acabamento
JM Gráfica e Editora
Ficha Catalográfica
R696
Rodrigues, Inara de Oliveira.
Literaturas de língua portuguesa : história, sociedade
e cultura / Inara de Oliveira Rodrigues, Paulo Roberto Alves
dos Santos. – Ilhéus, BA: Editus, 2012.
374p. : il. (Letras - módulo 4 – volume 4 – EAD)
ISBN: 978-85-7455-283-5
1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura brasileira.
3. Literatura portuguesa. 4. Literatura africana. 5. Literatura
e Sociedades. 6. Língua portuguesa. I. Santos, Paulo
Roberto Alves dos. II. Título. III. Série.
CDD 869.09
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EAD . UAB|UESC
Coordenação UAB – UESC
Profª. Drª. Maridalva de Souza Penteado
Coordenação Adjunta UAB – UESC
Profª. Drª. Marta Magda Dornelles
Coordenação do Curso de Letras Vernáculas (EAD)
Profª. Ma. Eliuse Sousa Silva
Elaboração de Conteúdo
Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues
Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos
Instrucional Design
Profª. Ma. Marileide dos Santos de Oliveira
Profª. Ma. Cibele Cristina Barbosa Costa
Profª. Ma. Cláudia Celeste Lima Costa Menezes
Revisão
Prof. Me. Roberto Santos de Carvalho
Coordenação Fluxo Editorial
Me. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho
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PARA ORIENTAR SEUS ESTUDOS
PARA CONHECER
Aqui você será apresentado a autores e fontes de pesquisa
a fim de melhor conhecê-los.
SAIBA MAIS
Aqui você terá acesso a informações que complementam seus
estudos a respeito do tema abordado. São apresentados
trechos de textos ou indicações que contribuem para o aprofundamento de seus estudos.
VERBETE
Significado ou referência de uma palavra utilizada no texto
que seja importante para sua compreensão.
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DISCIPLINA
LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
História, Sociedade e Cultura
Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues
Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos
EMENTA
Estudo das Literaturas de Língua Portuguesa a
partir da análise crítico-reflexiva de autores e
obras singulares e fundamentais.
Carga Horária: 60 horas
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OS AUTORES
Inara de Oliveira Rodrigues
Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1987), mestrado em Letras (Teoria da Literatura)
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996)
e doutorado em Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000). Atualmente é
professora do curso de Letras da Universidade Estadual de Santa
Cruz (UESC - Ilhéus-BA) e Vice-coordenadora do PPGL Mestrado
em Linguagens e Representações. Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Outras Literaturas Vernáculas, atuando
principalmente nos seguintes temas: Literatura e História, Literatura
Portuguesa, Identidade, Literatura Brasileira, Leitura.
Paulo Roberto Alves dos Santos
Possui graduação em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de
Educação, Ciências e Letras (1987), mestrado em Linguística e Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996)
e doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (2005). Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente
nos seguintes temas: crítica literária, literatura brasileira, história
da literatura, crítica feminina e literatura sul-rio-grandense.
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APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA
Cara aluna, caro aluno,
A literatura, assim como qualquer outra manifestação artística,
é expressão de uma coletividade e como tal se vincula a fenômenos
socioculturais do grupo no qual se origina. A percepção de uma
obra literária está diretamente relacionada à familiaridade que
temos com a realidade histórica e o ambiente cultural que a gerou.
Por isso, para estudarmos as literaturas de língua portuguesa, são
importantes as informações a respeito da formação de Portugal, das
grandes navegações realizadas pelos portugueses, da colonização
do Brasil e dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(os PALOP) - Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe
e Guiné-Bissau - bem como dos processos subsequentes relacionados
às independências desses países. A partir do reconhecimento desses
fatos e de diferentes contextos histórico-culturais, você terá condições
de desenvolver leituras críticas sobre as mais relevantes expressões
artístico-literárias que, do passado ao presente, constituem-se em
um legado sempre atualizado pelos novos olhares e reflexões que
propiciam.
Bom trabalho!
Inara de Oliveira Rodrigues
Paulo Roberto Alves dos Santos
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SUMÁRIO
UNIDADE 1
AULA 1 - PORTUGAL: PRÁTICA, CULTURA E LÍNGUA
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................17
2
A FORMAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS ............................................................................18
2.1 A Idade Média: definição de território e organização de um Estado..............................18
2.2 As atividades econômicas ......................................................................................22
2.3 A formação cultural de Portugal ..............................................................................23
3
A LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................................................27
ATIVIDADES .............................................................................................................32
RESUMINDO .............................................................................................................36
REFERÊNCIAS ...........................................................................................................37
AULA 2 - LITERATURA MEDIEVAL
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................41
2
A PROSA MEDIEVAL .......................................................................................................41
3
O TROVADORISMO E AS CANTIGAS .................................................................................44
3.1 Os cancioneiros ..................................................................................................45
3.2 As cantigas e suas modalidades ............................................................................46
3.3 A decadência do Trovadorismo .............................................................................61
ATIVIDADES ............................................................................................................63
RESUMINDO ............................................................................................................65
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................65
AULA 3 - O HUMANISMO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................69
2
O HUMANISMO EM PORTUGAL .........................................................................................69
2.1 As mudanças: do ensino à percepção do mundo .....................................................69
2.2 As crônicas de Fernão Lopes ................................................................................74
3
GIL VICENTE: O VELHO E O NOVO COMO PRENÚNCIO DE OUTRA ERA ..................................79
3.1 O teatro medieval português ................................................................................79
3.2 O teatro de Gil Vicente ........................................................................................81
ATIVIDADES ............................................................................................................92
RESUMINDO ............................................................................................................93
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................93
AULA 4 - O RENASCIMENTO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................99
2
O RENASCIMENTO EM PORTUGAL ....................................................................................99
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3
A POESIA LÍRICA DE LUÍS DE CAMÕES ........................................................................... 102
4
A POESIA ÉPICA DE CAMÕES ........................................................................................ 108
4.1 Os Lusíadas ..................................................................................................... 112
4.1.2 A estrutura da epopeia camoniana ............................................................. 116
5
O LEGADO DE OS LUSÍADAS ......................................................................................... 121
6
QUADROS-SÍNTESE DE OS LUSÍADAS ............................................................................ 122
ATIVIDADES .......................................................................................................... 123
RESUMINDO .......................................................................................................... 126
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 126
AULA 5 - CONCERTOS BARROCOS
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 131
2
BRASIL: A TERRA “MUITO CHÃ E MUITO FORMOSA” ......................................................... 132
3
SEMENTES LANÇADAS AOS ECOS DE GIL VICENTE E CAMÕES ........................................... 134
4
DISSONÂNCIAS E NOTAS VARIADAS DO BARROCO NO BRASIL E EM PORTUGAL .................. 138
4.1 Padre Antônio Vieira .......................................................................................... 138
4.2 Gregório de Matos ............................................................................................ 143
4.3 Duas vozes relevantes com diapasões diferentes ................................................... 150
ATIVIDADES .......................................................................................................... 152
RESUMINDO .......................................................................................................... 156
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 157
UNIDADE 2
AULA 6 - ACORDES ÁRCADES E ECOS CAMONIANOS NO BRASIL
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 163
2
ECOS DE CAMÕES NAS MONTANHAS MINEIRAS ............................................................... 164
3
HERANÇA DE CLÁUDIO MANUEL: O PARDO DE VERGONHAS DESCOBERTAS COMO HERÓI ..... 171
3.1 Basílio da Gama: criador de belas imagens do índio e da natureza ............................ 172
3.2 Santa Rita Durão: conhecimento sobre a vida do índio ............................................ 178
3.3 Os fundadores do indianismo ............................................................................... 186
ATIVIDADES .......................................................................................................... 190
RESUMINDO .......................................................................................................... 191
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 192
AULA 7 - A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA OFICIAL
PORTUGUESA (PALOP)
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 197
2
A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PALOP .................................................................. 197
2.1 O processo de dominação portuguesa na África ...................................................... 197
2.2 Momentos iniciais das literaturas nos PALOP........................................................... 200
2.2.1 Como devemos chamar as literaturas dos PALOP? ........................................ 201
2.2.2 Qual a importância da oralidade para as literaturas dos PALOP? ..................... 202
2.2.3 Qual é a situação do português e das línguas nacionais nessas literaturas? ...... 204
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2.2.4 Como se formaram os atuais sistemas literários dos PALOP? .......................... 208
3
DA ÉPOCA COLONIAL AOS ANOS DE 1960 ...................................................................... 210
3.1 Cabo Verde ...................................................................................................... 210
3.2 São Tomé e Príncipe .......................................................................................... 212
3.3 Angola ............................................................................................................ 215
3.4 Moçambique .................................................................................................... 217
3.5 Guiné-Bissau ................................................................................................... 220
ATIVIDADES .......................................................................................................... 222
RESUMINDO .......................................................................................................... 227
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 227
UNIDADE 3
AULA 8 - O ROMANTISMO E A AFIRMAÇÃO DA NACIONALIDADE
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 233
2
NOVOS CONTEXTOS, NOVAS HISTÓRIAS ........................................................................ 233
3
A ESTÉTICA ROMÂNTICA EM PORTUGAL ......................................................................... 236
3.1 A prosa de Almeida Garrett ................................................................................ 236
3.2 Outros autores relevantes .................................................................................. 243
4
O ROMANTISMO NO BRASIL ......................................................................................... 247
4.1 José de Alencar e a atualidade do passado ........................................................... 252
ATIVIDADES .......................................................................................................... 257
RESUMINDO .......................................................................................................... 266
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 266
AULA 9 - REALISMO, NATURALISMO, PROGRAMAS E RUPTURAS
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 271
2
O REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL..................................................................... 272
2.1 A proposta estético-política de Eça de Queirós ........................................................ 279
3
O REALISMO E O NATURALISMO NO BRASIL.................................................................... 285
3.1 A singularidade da obra de Machado de Assis ....................................................... 287
ATIVIDADES .......................................................................................................... 296
RESUMINDO .......................................................................................................... 303
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 303
AULA 10 - MODERNISMOS
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 309
2
DO SÉCULO XIX AO XX: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS ................................................. 310
3
OS MODERNISMOS ...................................................................................................... 311
3.1 O grupo Orpheu: heranças e rupturas ................................................................... 311
3.1.1 A poética de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro................................... 319
3.2 A antropofagia brasileira: para além da Semana de 22 ............................................ 326
ATIVIDADES .......................................................................................................... 333
RESUMINDO .......................................................................................................... 337
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REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 339
AULA 11 - PERCURSOS CONTEMPORÂNEOS
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 343
2
LITERATURA E ENGAJAMENTO ....................................................................................... 343
2.1 Contextos conturbados....................................................................................... 343
2.2 O Neorrealismo e a obra de Alves Redol ............................................................... 346
2.3 A arte engajada de Jorge Amado ......................................................................... 350
3
NOVOS CENÁRIOS, NOVOS ATORES ............................................................................... 357
3.1 Perspectivas contemporâneas na cena brasileira ................................................... 358
3.2 As literaturas dos PALOP: problematizações da memória e da história....................... 361
3.3 A literatura portuguesa entre a retomada da história e novos rumos ........................ 364
ATIVIDADES........................................................................................................... 367
RESUMINDO .......................................................................................................... 373
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 373
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1ª
unidade
AULA 1
PORTUGAL: PRÁTICA,
CULTURA E LÍNGUA
OBJETIVOS
Possibilitar o reconhecimento das inter-relações entre
história e literatura, sociedade e cultura, a partir do
estudo da formação do Estado português, do conceito
de pátria e dos principais aspectos relacionados à língua
portuguesa.
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Unidade 1 . Aula
1
Portugal: prática, cultura e língua
1 INTRODUÇÃO
Para início de conversa, convidamos você a nos
acompanhar em um breve passeio pelo passado de Portugal,
para conhecer um pouco sobre sua formação enquanto
Estado, a evolução da língua, o surgimento da literatura,
entre outros aspectos. Para fazermos esse percurso,
recorreremos à História, pois é importante que você perceba
um fato importante, sobre o qual chamaremos sua atenção
constantemente: para o estudo de Literatura, portanto de
qualquer texto literário, precisamos levar em consideração a
série de fatores de ordem econômica, social, moral, cultural,
religiosa, política, entre outros, com os quais ela se vincula.
Por isso, devemos buscar na História informações que podem
contribuir significativamente para a compreensão de um
conto, de um romance ou de um poema, pois o aparecimento
da obra é sempre uma forma de diálogo com o meio em
que ela se insere. Essa é a razão que justifica nossa viagem
pelo tempo, pois assim poderemos compreender melhor a
literatura produzida na língua que falamos nós, os brasileiros,
os portugueses, os angolanos, os moçambicanos, os caboverdianos, os guineenses e os são-tomenses.
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Volume 4
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
2 A FORMAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS
2.1 A Idade Média: definição de território e
organização de um Estado
O início de nossa viagem é pelo ponto mais distante,
situado lá na Idade Média, mais exatamente o século XII.
Na época, a ideia de país era diferente da que temos nos dias
atuais, e a Europa se dividia de outra maneira. Inicialmente,
devemos levar em conta as diferentes definições para povo e
pátria. Estes termos passaram a ser empregados na acepção
que hoje conhecemos a partir do século XIX, quando o
conceito de nação adquiriu o sentido que usamos.
No texto a seguir, a professora e filósofa Marilena
Chauí esclarece que:
Antes da invenção histórica da nação,
como algo político ou Estado-nação, os
termos políticos empregados eram ‘povo’
(em referência a um grupo de indivíduos organizados institucionalmente, que obedecia
a normas, regras e leis comuns) e ‘pátria’.
Essa palavra também deriva de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, porém,
do pai como genitor de seus filhos - nesse
caso, usava-se genitor - mas de uma figura
jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem
a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe,
isto é, plantações, gado, edifícios (‘pai’ é
o dono do patrimonium), e o senhor, cuja
vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida
e morte sobre todos os que formam seu
domínio (casa, em latim, se diz domus, e o
poder do pai sobre a casa é o dominium),
e os que estão sob seu domínio formam a
família (mulher, filhos, parentes, clientes e
escravos). Pai se refere, portanto, ao poder
patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e
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Portugal: prática, cultura e língua
Unidade 1 . Aula
1
está sob seu poder. É nesse sentido jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é
Pai, isto é, senhor do universo e dos exércitos celestes. É também essa a origem da
expressão jurídica‘pátrio poder’, para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos,
esposa e dependentes (escravos, servos,
parentes pobres). Se ‘patrimônio’ é o que
pertence ao pai, ‘patrício’ é o que possui
um pai nobre e livre, e ‘patriarca’ é a sociedade estruturada segundo o poder do pai.
Esses termos designavam a divisão social
das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando
o Senado romano, e povo eram os homens
livres plebeus, representados no Senado
pelo tribuno da plebe (CHAUÍ).
Assim, compreendemos que é nesse contexto de
formação da sociedade patriarcal que se constitui o Estado
português. No caso da Península Ibérica, existiam ali vários
reinos, entre eles Castela, Leon, Galícia e Aragon, ocupando
o território em que hoje se situam Portugal e Espanha.
Se você pesquisar sobre a história de Portugal, verá
que, desde o final do século IX, há referências a um local
chamado Condado Portucalense. Foi, porém, a partir do
século XII que esse território se transformou em Estado
independente. Quando se fala em independência, nós
pensamos no Brasil, onde a emancipação ficou marcada
por um ato. Com Portugal aconteceu diferente e todo o
processo durou décadas, ao longo das quais se sucederam
vários fatos: os acontecimentos marcantes foram a
revolta liderada por Afonso Henriques (1109-1185) e a
conquista do Condado em 1128; a paz de Tui, de 1137;
a conferência de Samora e a enfeudação do Papa em
1143; o desaparecimento do título de Imperador com a
morte de Afonso VII (1105-1157) e a Bula Papal de 1179,
reconhecendo a nova monarquia (SARAIVA, 1996).
A chamada Revolta de Afonso Henriques teve
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
grande importância, porque, a partir de então, a autonomia
do Condado Portucalense começou a se consolidar, apesar
de provocar uma sucessão de guerras com Castela e Leon,
os reinos próximos. A intervenção do Papa, receoso de que
os mouros se aproveitassem da fragilidade dos reinos que
lutavam entre si e atacassem a Península Ibérica, encerrou os
Figura 1.1.1 - Afonso Henriques
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Ficheiro:AfonsoI-P.jpg
conflitos. Mesmo assim, a concessão definitiva do Condado
a Afonso Henriques demorou cerca de vinte anos por
causa da preocupação das autoridades da Igreja em evitar
embaraços nas relações com os reinos vizinhos. Desse
modo, o governante português passou a ser tratado como
rei somente a partir de 1179.
Os vinte e poucos anos consumidos para o
reconhecimento do reinado, ou seja, para que a existência
política de Portugal fosse admitida, foi um tempo curto
se comparado ao período decorrido para a definição do
território. Foram cem anos, ao longo dos quais se deram
muitas lutas, iniciadas com a conquista de Santarém e de
Lisboa, em 1147. Para expandir suas fronteiras, os portugueses
enfrentaram os reinos ibéricos e os mouros, obtendo mais
vitórias do que derrotas e aumentando seu território até a
fixação dos limites atuais, o que ocorreu em 1271(SARAIVA,
1996).
A formação de Portugal se desenvolveu sob a
orientação política e econômica do Feudalismo. Você deve
lembrar que o Feudalismo foi um sistema político em que a
origem de nascimento do indivíduo determinava sua função
social. Dentro de tal estrutura, as classes privilegiadas eram
a nobreza e o clero, sustentadas pelos servos.
O clero formava categoria social à parte, dispondo de
hierarquia e direitos próprios. A Igreja era a representação
divina no mundo e seu poder tinha natureza diferente em
relação ao exercido pelos reis porque emanava diretamente
de Deus. Por isso, as decisões dos religiosos não sofriam
contestações. Daí a visão de mundo teocêntrica ou o
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Portugal: prática, cultura e língua
Unidade 1 . Aula
1
Teocentrismo, segundo a qual Deus é o centro do mundo,
que vigorou em Portugal e na Europa até o século XIV.
A explicação das ações do homem como consequência
da intervenção de forças divinas revela a ignorância em relação
ao pensamento lógico e racional, bem como estimulava as
práticas religiosas e a busca de santificação, com a pregação
do amor e da humildade. A convergência de interesses
fez com que Igreja e nobreza agissem conjuntamente no
controle do conhecimento e, assim, formavam o único
segmento com domínio da escrita e da leitura, por isso
somente os indivíduos oriundos dessas duas classes tinham
acesso à cultura letrada.
O conhecimento escrito se restringia ao âmbito
dos mosteiros e circulava em latim, a língua de todo o
mundo cristão, porque estava acima dos reinos, mas escrita
e falada unicamente por quem tinha estudo. Os clérigos
exerciam a função de difusão da fé e do ensino das práticas
do catolicismo e, assim, ocupavam papel importante para a
divulgação do conhecimento.
Figura 1.1.2 - Copistas
Fonte: http://sumateologica.files.
wordpress.com/2011/02/monge_
escriba_medieval.jpg
Você deve ter ideia de que eram grandes as dificuldades
de comunicação e de transporte durante a Idade Média. Os
livros eram reproduzidos em cópias manuscritas e predominava
o analfabetismo tanto em Portugal quanto na Europa, de um
modo geral. Sendo praticamente o único segmento letrado,
o clero monopolizava a instrução, passando a existir ensino
fora dos conventos apenas no último período da era medieval.
Os mestres ensinavam o que se chamava Estudo Geral
porque se distinguia daquele destinado à formação de clérigos
(SARAIVA, 1996).
A expansão do Estudo Geral provocou o surgimento da
universidade, criada e organizada pela Igreja. A primeira a ser
reconhecida foi a de Paris, em 1215. Dom Dinis (1279-1325)
obteve autorização do Papa para criar uma universidade em
Portugal no ano de 1290. Fundada com o nome de Estudo
Geral de Lisboa, tinha por objetivo facilitar a formação de
indivíduos para a carreira religiosa.
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Figura 1.1.3 - Manuscritos da Bíblia
Fonte: http://www.reporternet.jor.
br/wp-content/uploads/2009/04/
codex_sinaiticus1.jpg
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
2.2 As atividades econômicas
A base inicial da economia foi a agricultura com o
cultivo do trigo e de videiras, complementada por atividades
como a caça, a pesca e a tecelagem, exercidas por mulheres.
A ferraria também era bastante praticada porque se destinava
à fabricação de utensílios essenciais para o uso cotidiano e
agrícola. Paralelamente, o comércio se desenvolveu com certa
rapidez e isso se deveu a vários fatores.
Um deles foi a presença de judeus, povo de longa
tradição comercial, em cidades conquistadas nas lutas
contra os mouros. Outro fato foram os indícios de que, no
século XII, já ocorriam navegações pela costa com caráter
mercantil. Há documentos da concessão de salvo-condutos
a portugueses pelo rei da Inglaterra, numa comprovação
de que as relações comerciais com outros reinos por via
marítima se intensificaram no século XIII. Por fim, são
fartas as informações de mercadores ambulantes que faziam
o comércio interno, levando seus produtos a todos os
lugares, adquirindo gêneros dos agricultores para vendêlos nas povoações. As crônicas de Fernão Lopes, que
estudaremos mais adiante, trazem notícias sobre essas feiras
para a comercialização de produtos agrícolas.
As atividades mercantis tomaram impulso e o
crescimento da economia trouxe consequências para a
organização social na medida em que propiciou o surgimento
e o fortalecimento de um novo grupo, os comerciantes,
tornando-se a causa para conflitos de interesses. As
divergências nasceram da valorização de produtos como
o vinho e o azeite no mercado externo, que exigiam a
disponibilidade de mais terras para o plantio de videiras e
oliveiras, em detrimento dos cereais (SARAIVA, 1996).
O aparecimento de gêneros exportáveis criou nova
realidade, na qual o cultivo da terra assumia outra função,
perdendo seu caráter de simples meio de sobrevivência para
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Unidade 1 . Aula
1
se transformar em fonte de lucro. Além disso, sua exploração
começou a se submeter aos desígnios do mercador, criando
outro problema: o aumento de preços. O comprador
estipulava o valor do produto, tomando por referência a
cotação externa, incluindo amplas margens para cobrir os
riscos do transporte marítimo e o lucro do mercador. O
produtor, por sua vez, via-se forçado a baratear seu produto
e a aviltar a mão de obra.
A mais-valia da agricultura ficava com o homem da
cidade, aquele que não tinha ação direta no cultivo, dando
origem a um capitalismo urbano de raiz rural, com reflexos
na estrutura social (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN,
1990). No embate entre esses dois grupos, prevaleceu a
posição de quem defendia a atividade mercantil externa,
como se percebe pelo ciclo das grandes navegações dos
séculos XV e XVI. Mais adiante, quando estudarmos Os
Lusíadas, veremos que Camões abordou o problema,
representado, principalmente, no episódio do “Velho do
Restelo”, uma das passagens significativas da obra.
2.3 A formação cultural de Portugal
Até aqui, fizemos uma breve apresentação de
acontecimentos ocorridos no período de formação de
Portugal. Mencionamos como o Condado Portucalense
se transformou em reino, tratamos da expansão e da
delimitação territorial, falamos da organização social e da
economia. Verificaremos, agora, como esses elementos
contribuíram para o surgimento de uma literatura de língua
portuguesa. Lembre-se de que nosso percurso se desenvolve
a partir de uma retrospectiva histórica, ou seja, por meio
da rememoração de acontecimentos importantes para o
surgimento e a consolidação de Portugal como estado
independente.
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O primeiro estágio do processo de formação de Portugal
aconteceu num momento em que o Feudalismo começava a
entrar em crise. A Idade Média chegava ao final e se inaugurava
outro período histórico em que a economia, a organização social
e a visão de mundo passavam por profundas transformações. A
sociedade se reestruturava, nasciam vilas, povoados e cidades,
formando um mercado consumidor para os produtos de origem
agrícola. Com isso, apareceu o segmento intermediário entre
o proprietário e o servo, que atuava no cultivo da terra. Nas
ocupações urbanas, apareceram os indivíduos cujo negócio era
o dinheiro. As Cruzadas haviam favorecido o crescimento de
aglomerações humanas situadas em sua rota de deslocamento.
saiba mais
De 1096 a 1270, expedições foram formadas sob
o comando da Igreja, a fim de recuperar Jerusalém (que se encontrava sob domínio dos turcos
seldjúcidas) e reunificar o mundo cristão, dividido com a “Cisma do Oriente”. Essas expedições
ficaram conhecidas como Cruzadas. A Europa
do século XI prosperava. Com o fim das invasões
bárbaras, teve início um período de estabilidade
e um crescimento do comércio. Consequentemente, a população também cresceu. No mundo
feudal, apenas o primogênito herdava os feudos,
o que resultou em muitos homens para pouca
terra. Os homens, sem terra para tirar seu sustento, lançaram-se na criminalidade, roubando,
Figura 1.1.5 - Cruzadas. Fonte: http://www.fsspx.com.br/exe2/
wp-content/uploads/2010/10/cruzadas01.jpg
saqueando e sequestrando. Algo precisava ser
feito. Como foi dito anteriormente, o mundo cristão se encontrava dividido. Por não concordarem com alguns dogmas da Igreja Romana (adoração a santos, cobrança de indulgências etc.) os católicos do Oriente fundaram a Igreja Ortodoxa. Jerusalém, a Terra
Santa, pertencia ao domínio árabe e até o século XI eles permitiram as peregrinações cristãs à Terra Santa.
Mas no final do século XI, povos da Ásia Central, os turcos seldjúcidas, tomaram Jerusalém. Convertidos
ao islamismo, os seldjúcidas eram bastante intolerantes e proibiram o acesso dos cristãos a Jerusalém.
Em 1095, o papa Urbano II convocou expedições com o intuito de retomar a Terra Sagrada. Os cruzados
(como ficaram conhecidos os expedidores) receberam este nome por carregarem uma grande cruz, principal símbolo do cristianismo, estampada nas vestimentas. Em troca da participação, ganhariam o perdão
de seus pecados. A Igreja não era a única interessada no êxito dessas expedições: a nobreza feudal tinha
interesse na conquista de novas terras; cidades mercantilistas como Veneza e Gênova se deslumbravam
com a possibilidade de ampliar seus negócios até o Oriente e todos estavam interessados nas especiarias
orientais, pelo seu alto valor, como: pimenta-do-reino, cravo, noz-moscada, canela e outros. Movidas pela
fé e pela ambição, entre os séculos XI e XIII, partiram para o Oriente oito Cruzadas.
Fonte: Cruzadas. Equipe Brasil Escola. Disponível em:http://www.brasilescola.com/historiag/cruzadas.htm. Acesso
em mar. 2011.
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Portugal: prática, cultura e língua
Unidade 1 . Aula
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Mesmo diante de tais mudanças, a circulação da
cultura escrita se restringia praticamente ao clero e à nobreza.
A reprodução de cópias de livros em folhas de pergaminho
era demorada e cara e exigia condições de trabalho existentes
apenas nos conventos. Assim, a escrita permanecia como
veículo secundário de transmissão cultural que se dava
prioritariamente pela oralidade, pelos jograis, pelos cantores
e músicos ambulantes. A divulgação ocorria nas feiras, nos
castelos, nas cidades, por meio de um repertório musical e
literário.
A cultura escrita permanecia em poder dos padres
e, pelas razões mencionadas anteriormente, eles faziam
a mediação entre o saber dos livros e o saber popular.
Surgiram, assim, duas literaturas – a escrita e a oral –
apresentando características e especificidades distintas.
Os livros reproduzidos nos conventos destinavam-se à
preparação dos clérigos e ao serviço religioso, consistindo
basicamente de obras de devoção e tratados escritos em
latim. A literatura oral dos jograis tinha como alvo o público
iletrado composto por vilões, burgueses e parte da nobreza.
Seu conteúdo tomava como inspiração a vida e o interesse
desse público, consistindo em poemas e narrativas na forma
de verso (SARAIVA, 1996).
A morosidade e o preço elevado das reproduções
de cópias manuscritas de livros impediam a disseminação
mais ampla da cultura escrita, restringindo-a aos religiosos,
tanto que a palavra clérigo se tornou sinônimo de letrado.
Em contrapartida, a cultura transmitida oralmente fixava os
padrões de vida, a visão de mundo, os princípios e valores
éticos, o patrimônio literário e a sabedoria popular.
A expressão característica do Feudalismo na literatura
foram os cantares épicos, como os dos Nibelungos, os
da mitologia nórdica, as canções de gesta francesas. Na
Península Ibérica, o interesse pela literatura heroica se
manteve por mais tempo em razão da longa duração da
mentalidade belicosa, estimulada pelas lutas contra os árabes.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
As epopeias medievais, ou canções de gesta, são longos poemas, em versos de oito, dez
ou doze sílabas, reunidos em estrofes de extensão desigual, cada uma delas terminando por
assonância numa vogal, em vez de rima. Era cantada diante de um auditório acompanhada
de um instrumento de cordas semelhante à viola.
O termo gesta é um neutro plural latino que significa “coisas feitas”, mas, posteriormente,
tornou-se um feminino singular com o sentido de “história”. Trata-se de um poema ou
conjunto de poemas cujos temas referem-se a um mesmo grupo de eventos lendários ou
de protagonistas. O assunto se desenvolve em torno de personagem ou acontecimento real,
modificado pela lenda e pela transmissão oral, o que se atesta pelas inúmeras versões de
cada história.
Os acontecimentos se dão na Alta Idade Média com invasões e lutas pela conquista de
territórios. Inicialmente as histórias são contadas oralmente e, depois, escritas em versos, e
ganham versões em prosa após alguns séculos. Entretanto, não devemos considerar, nesse
gênero, a oposição verso/prosa, pois ela não havia naquele tempo, quando toda literatura,
narrativa ou não, era feita em versos. As epopeias medievais exaltam as proezas de um herói,
num período em que os estados nacionais ainda estão em formação. Mostram um mundo
masculino, de batalhas, lutas por poder e combates a serviço de Deus. Há três grandes
epopeias desta época: a Canção de Rolando, francesa; o Cantar de Mio Cid, espanhola e
Canção dos Nibelungos, germânica.
Fonte: disponível em: http://pt.shvoong.com/humanities. Acesso em: nov. 2010.
para conhecer
O Cantar de Mio Cid trata dos feitos de Ruy Diaz de Vivar ou Rodrigo Diaz de Vivar, que
esteve à frente de lutas ocorridas na Península Ibérica, no século XI, contra a autoridade do
rei. O poema se compõe de mais de 3700 versos, distribuídos em estrofes irregulares.
A Canção de Rolando narra o heroísmo do conde Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que
morre na batalha de Roncesvales, ocorrida no século VIII. Alguns fatos e personalidades
históricos sofrem alterações, adequando-se ao ambiente do século XI, época em que o poema
apareceu e que também foi o período das Cruzadas e da reconquista da Península Ibérica
pelos cristãos.
A Canção dos Nibelungos é um conjunto de poemas épicos da literatura medieval alemã,
de autoria individual ou coletiva anônima, cuja narrativa gira em torno do amor de uma
mulher por seu marido, misturando ingredientes como traição, vingança e a decadência de
um reinado.
Essas
canções
estão
disponíveis
no
site:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/
PesquisaObraForm.jsp
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Segundo Benjamin Abdala Júnior e Paschoalin (1990),
contrastando com o sentimento hierárquico e rude das canções
de gesta, cuja temática remetia aos horrores dos combates,
existia a poesia lírica, de origem provençal. A Provença,
região situada ao sul da França, teve papel comercial relevante
durante o período das Cruzadas e seus trovadores serviram de
modelo para a poesia medieval posterior. De conformação mais
individualizada, essas poesias tematizam, entre outros assuntos
da época, a superação da distância social pelo amor, a transposição
das relações políticas entre as classes pela vassalagem para o
plano da submissão amorosa do amante, a descrição da mulher
como objeto amoroso, marcado pela delicadeza, a sutileza e a
suavidade – um claro processo de idealização amorosa.
O surgimento e a propagação do lirismo provençal
estão vinculados ao desenvolvimento da vida cortesã, que se
concentrava nos palácios, em torno dos reis e dos nobres,
refletindo sua adaptação à vida sedentária, que exigiu a criação
de distrações como forma de ocupar o tempo ocioso.
3 A LÍNGUA PORTUGUESA
A língua portuguesa possui uma longa história e, como
encontramos no site do Instituto Camões, “não se esgota na
descrição do seu sistema linguístico: uma língua como esta
vive na história, na sociedade e no mundo”. Ao contrário, “tem
uma existência que é motivada e condicionada pelos grandes
movimentos humanos e, imediatamente, pela existência dos
grupos que a falam”. Desse modo, o português falado em
Portugal, no Brasil, na África e, ainda que com menor registro,
na Ásia “pode continuar a ser sentido como uma única língua
enquanto os povos dos vários países lusofalantes sentirem
necessidade de laços que os unam. A língua é, porventura, o
mais poderoso desses laços” (http://cvc.instituto-camoes.pt/
hlp/brevesum/index.html).
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
Com relação ao desenvolvimento do português na
Europa, na época da criação do Estudo Geral de Lisboa,
Portugal vivia um fenômeno linguístico peculiar. Como já
vimos, o latim era a língua usada para as relações entre os
reinos e pelos segmentos sociais escolarizados. O povo se
comunicava empregando uma variante, o galego-português,
originada do latim falado. Diante de tal situação, os letrados
sentiram necessidade de aproximar as duas modalidades
porque precisavam se comunicar com o povo, a fim de
transmitir os sermões e as tradições pela oralidade, com o
objetivo de controlar a formação dos indivíduos.
Uma das medidas de aproximação entre a língua das
pessoas escolarizadas e aquela de uso popular foi responsável
pelo desenvolvimento do português que nós conhecemos
hoje. Em decreto de 1179, Dom Dinis determinou a adoção
oficial da língua portuguesa, contribuindo para que nosso
idioma começasse a adquirir a forma dos dias atuais. Datam
dessa época os primeiros documentos escritos, nos quais
se observa a mescla do português com o galego. Embora o
vocabulário e as regras de uso já estivessem definidos desde
o século XII, foi durante a Dinastia de Avis (1383 a 1582)
que a língua portuguesa se firmou.
Já com relação ao português falado no Brasil, de
acordo com Rosa Virgínia Mattos e Silva:
Pode-se afirmar [...] que até meados do século XVIII o multilinguismo generalizado
caracteriza o território brasileiro [e] perdura: ainda hoje, apesar de a língua portuguesa ser a língua oficial majoritária no
Brasil, persistem cerca de 180 línguas indígenas, com a média de 200 falantes por língua, faladas por 300.000 a 500.000 índios
(estimativas de 2000), perfazendo 0,2% da
população brasileira.
leitura recomendada
Para conhecer mais sobre
esse assunto – o português falado em nosso país
– leia o texto completo
de Rosa Virgínia Mattos
e Silva, “História da Língua portuguesa no Brasil”,
disponível em: http://cvc.
Fonte:
http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/hlpbrasil/index.
html. Acesso em nov. 2010.
instituto-camoes.pt/hlp/
hlpbrasil/index.html.
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Portugal: prática, cultura e língua
Unidade 1 . Aula
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Com o tráfico de escravos, o multilinguismo
brasileiro se enriqueceu e, segundo Jorge Couto (citado
pela professora Rosa Virgínia no texto referido), “nos finais
de Quinhentos, a presença africana (42%) já se estendia a
todas as capitanias, ultrapassando no conjunto, qualquer
dos outros grupos – portugueses (30%) e índios (28%) apresentando um crescimento espetacular nas capitanias
de Pernambuco e Bahia, esta última sextuplicando seus
habitantes negros”.
Deve-se considerar, ainda, que o quadro geral do
multilinguismo de nosso país completa-se com a chegada
dos emigrantes europeus e asiáticos, sobretudo a partir do
século XIX.
Com relação ao português falado nos países
africanos e asiáticos, deve-se considerar, no caso de Angola
e Moçambique, que:
O português reparte a sua influência com
numerosas línguas nacionais e é falado
como língua materna por uma parte não
majoritária da população. Nesses dois
grandes países, a sua importância e as suas
perspectivas de futuro vêm-lhe do papel
como língua de administração, cultura e
ensino, como língua de relação internacional e, principalmente, como língua de
relação interétnica, papel que, na GuinéBissau, por exemplo, cabe ao crioulo.
Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/brevesum/onde.
html. Acesso em nov. 2010.
saiba mais
Os crioulos são línguas naturais, de formação rápida, criadas pela necessidade de expressão e comunicação plena entre indivíduos inseridos em comunidades multilingues relativamente estáveis. Procurando
superar a pouca funcionalidade das suas línguas maternas, estes recorrem ao modelo imposto (mas
pouco acessível) da língua socialmente dominante e ao seu saber linguístico para constituir uma forma
de linguagem veicular simples, de uso restrito, mas eficaz, o pidgin, que posteriormente é gramaticalmente complexificada e lexicalmente expandida, em particular pelas novas gerações de crianças que a
adquirem como língua materna, dando origem ao crioulo.
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Chamam-se de base portuguesa os crioulos cujo léxico é, na sua maioria, de origem portuguesa. No entanto, do ponto de vista gramatical, os crioulos são línguas diferenciadas e autônomas. Sendo a línguabase aquela que dá o léxico, podemos encontrar crioulos de diferentes bases: de base inglesa (como o
Krio da Serra Leoa), de base francesa (como o crioulo das Seychelles), de base árabe (como o Kinubi de
Uganda e do Quénia) ou outra.
Os crioulos de base portuguesa são habitualmente classificados de acordo com um critério de ordem
predominantemente geográfica embora, em muitos casos, exista também uma correlação entre a localização geográfica e o tipo de línguas de substrato em presença no momento da formação.
Na África formaram-se os Crioulos da Alta Guiné (em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Casamansa) e os do
Golfo da Guiné (em S. Tomé, Príncipe e Ano Bom). [...]
Na Ásia surgiram ainda crioulos de base portuguesa na Malásia (Malaca, Kuala Lumpur e Singapura) e
em algumas ilhas da Indonésia (Java, Flores, Ternate, Ambom, Macassar e Timor) conhecidos sob a designação de Malaio-portugueses.Os crioulos Sino-portugueses são os de Macau e Hong-Kong.
Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/geografia/crioulosdebaseport.html. Acesso em nov. 2010.
Veja a seguir o mapa indicando os países em que a
língua oficial é o português, salientando que Macau é uma
região administrativa da China.
Figura 1.1.5
Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/geografia/index.html. Acesso em nov. 2010.
LEGENDA:
Países ou territórios com o português como língua materna e/
ou língua oficial:
1 Crioulos da Alta Guiné; 2 Crioulos do Golfo da Guiné; 3 Crioulos
Indo-portugueses;
4 Crioulos Malaio-portugueses; 5 Crioulos Sino-portugueses; 6
Crioulos do Brasil
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Portugal: prática, cultura e língua
Unidade 1 . Aula
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Por fim, não se pode perder de vista a diversidade
linguística que o português apresenta em todo seu grande
território, espalhado por quatro continentes. Os linguistas
divergem a respeito dessa diversidade. Para alguns, os atuais
português de Portugal (PE) e o português do Brasil (PB)
são línguas diferentes, enquanto outros, porém, constituem
variedades bastante distanciadas dentro de uma mesma língua.
No site do Instituto Camões, você pode acessar o Fórum dos
Linguistas e ampliar seus conhecimentos sobre esse tema.
atenção
Nestas nossas aulas, você deve observar que mantivemos a grafia do
português de Portugal nos originais que selecionamos para as citações:
já antes do Acordo Ortográfico (2012), os portugueses não colocavam
acento circunflexo em leem, creem, etc., não acentuavam ditongos como
ideia, epopeia, entre outros, nem usavam a trema, mas usavam o
c,
com valor de oclusiva velar, em palavras como afecto, acto, por exemplo,
além de outras regras que foram alteradas pelo novo Acordo. Fora das
citações originais, entretanto, seguimos as novas regras ortográficas em
vigor.
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ATIVIDADES
AT
A
TIVI
IVI
IV
ATIVIDADES
1. Segundo Abdala Júnior e Paschoalin, (1990, p. 12), “não
haveria teocentrismo sem existir o feudalismo e viceversa, afinal um está a serviço do outro da mesma forma
que não haveria o nobre ocioso se não houvesse o servo
trabalhador”. Explique essa afirmação, apresentando os
principais aspectos da formação de Portugal.
2. Como afirma Marilena Chauí, no texto que citamos
no início do capítulo, “Se ‘patrimônio’ é o que pertence
ao pai, ‘patrício’ é o que possui um pai nobre e livre, e
‘patriarcal’ é a sociedade estruturada segundo o poder do
pai. Esses termos designavam a divisão social das classes
em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos,
formando o Senado romano, e povo eram os homens
livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da
plebe”. Retomando essa afirmativa, e sabendo-se que o
patriarcalismo persistiu durante o feudalismo (assim
como nas sociedades capitalistas, posteriormente),
explique as principais relações de poder econômicas e
sociais desse contexto histórico, destacando a situação
portuguesa.
3. Pesquise em diversas fontes (sites, livros) e selecione
trechos de pelo menos dois textos literários que
corresponderam às expressões artístico-culturais da
época de formação do Estado português.
4. Leia o poema Língua portuguesa, de Olavo Bilac, e
descreva de que modo o poeta brasileiro representa
a nossa língua. Justifique sua descrição, destacando e
comentando versos do texto poético.
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Língua portuguesa
Unidade 1 . Aula
Olavo Bilac
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
[http://www.releituras.com/olavobilac_lingua.asp]
5. A partir da leitura da letra da música Língua, de Caetano
Veloso, transcrita a seguir (não deixe de ouvir/assistir a
um dos vídeos disponibilizados pelo youtube):
a. destaque a forma como o autor percebe os vários
“usos” da língua portuguesa;
b. descreva a maneira como o texto apresenta a nossa
língua em relação aos seus usuários e ao restante do
mundo, de modo geral.
Língua
Caetano Veloso
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de
Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes Nomes em ã
De coisas como rã e ímã imã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo
Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma
canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
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Portugal: prática, cultura e língua
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– Você e tu
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– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar
desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais
pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
As indicações são apenas sugestões de recursos que você pode usar
para tomar contato com alguns dos assuntos tratados na aula. Os filmes e os livros têm caráter ficcional, porém podem contribuir para o
conhecimento sobre a vida na Idade Média, pois fazem referência a
acontecimentos e figuras históricas, bem como a situações do cotidiano durante aquele período. A exceção é o filme Língua: vidas em
português, porque se trata de um documentário. Quanto aos sites, recomendamos aqueles cujas informações são confiáveis porque estão
ligados a instituições reconhecidas e em alguns os autores dos textos
são identificados, permitindo que saibamos o quanto são experientes
diante do assunto sobre o qual escrevem.
filmes
As cruzadas (2005), direção de Ridley Scott
As cruzadas: a meia lua e a cruz (2005), direção de Stuart Elliot e
Mark Lewis
Coração Valente (1995), direção de Mel Gibson
El Cid (1961), direção de Anthonny Mann
Em nome de Deus (1988), direção de Clive Donner
Excalibur (1981), direção de John Boorman
Língua: vidas em português (2004), direção de Victor Lopes
O nome da rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud
Robin Hood: o príncipe dos ladrões (1991), direção de Kevin Reynolds
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livros
As brumas de Avalon, de Marion Zimmer
Decameron, de Giovani Bocacio
Divina comédia, de Dante Aligheri
O nome da Rosa, de Umberto Eco
sites
Instituto Camões: http://www.instituto-camoes.pt
O Portal da História: http://www.arqnet.pt/
Vidas Lusófonas: http://www.vidaslusofonas.pt/
E-Dicionário de Termos Literários: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/
index.htm
RESUMINDO
RESUMINDO
Como afirmamos no início desta nossa primeira
aula, procuramos enfocar a literatura de língua portuguesa,
considerando alguns dos fatores históricos e sociais que
fazem parte do seu desenvolvimento, a partir da Idade Média,
como: as diferentes etapas de formação do Estado português,
a configuração de seu território, a organização política e
administrativa, as classes sociais, as atividades econômicas
e o sistema de ensino. No que diz respeito à literatura,
mencionamos a base cultural formada dentro da concepção
de mundo do feudalismo, influenciado pelo catolicismo e
pelo espírito das cruzadas que impulsionou as primeiras
manifestações literárias. Na parte final da aula, descrevemos
o surgimento da língua portuguesa e a disseminação do seu
uso pelo mundo, mostrando que é o idioma oficial em vários
países.
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REFERÊNCIAS
REFE
RE
FER
FE
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REFERÊNCIAS
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria
Aparecida. História social da literatura portuguesa. São
Paulo: Ática, 1990.
CHAUÍ, Marilena. Brasil - Mito fundador e sociedade
autoritária. Disponível em: http://www.scribd.com/
doc/7011303/Marilena-Chaui-Brasil-Mito-Fundador-esociedade-AutoritAria. Acesso em out. 2010.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de
textos. São Paulo: Cultrix, 1982.
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal.
18. ed. Lisboa: Europa-América, 1996.
SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da
literatura portuguesa. 17. ed. corrigida e atualizada. Porto:
Porto, 1996.
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Suas anotações
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1ª
unidade
AULA 2
LITERATURA MEDIEVAL
OBJETIVOS
Possibilitar o reconhecimento dos principais aspectos
econômicos, políticos e socioculturais da Europa, com
destaque para a situação portuguesa, durante o final
da Idade Média, e suas relações com as mais relevantes
expressões artístico-literárias do período.
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Literatura Medieval
1 INTRODUÇÃO
Na aula anterior, estudamos alguns fatos ligados
à formação de Portugal, partindo do princípio de que
os fenômenos sociais estão diretamente vinculados às
manifestações culturais. Em outras palavras, tratamos de
acontecimentos que explicam o surgimento da literatura em
língua portuguesa. Agora, mostraremos como essa literatura
se formou, estudando os elementos que a originaram,
destacando-se, na prosa portuguesa do período medieval, os
cronicões, as hagiografias, as novelas de cavalaria e as crônicas
de Fernão Lopes. Essas últimas, ainda que escritas com o
propósito de registrar fatos objetivos, assumiram feições
literárias graças ao estilo empregado pelo autor. Além desses
gêneros, trataremos de outra relevante expressão literária da
época, as cantigas, poemas acompanhados de instrumentos
musicais.
2 A PROSA MEDIEVAL
A prosa medieval portuguesa é representada por
quatro modalidades: as novelas de cavalaria, os livros de
linhagem, as hagiografias e as crônicas ou cronicões. Dentre
elas, a de maior interesse literário são as novelas de cavalaria.
Os livros de linhagens eram listas que estabeleciam as
relações de parentesco entre indivíduos com o intuito de
evitar casamento entre parentes até o sétimo grau e de
resolver problemas decorrentes da partilha de bens.
As hagiografias (hagios = santo; grafia = escrita)
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eram originariamente dirigidas apenas aos religiosos;
porém, graças ao estímulo deles, acabaram interessando ao
público mais amplo, na medida em que propagavam feitos de
santos, incentivavam as doações para templos e mosteiros;
produziam textos litúrgicos; serviam para leitura privada
ou como texto escolar; instruíam e edificavam a fé cristã;
divulgavam ensinamentos oficiais da Igreja.
Os cronicões, normalmente escritos em latim, possuem
valor literário pouco relevante, embora sejam os primeiros
documentos historiográficos de Portugal e tenham importância
indiscutível para o estudo da evolução da língua portuguesa. Por
descreverem fatos envolvendo reis e pessoas que circulavam ao
redor deles, permitem que se conheçam certos costumes da
época em que foram escritos.
Com relação às novelas de cavalaria, alguns estudiosos
questionam sua origem, mas aceita-se que os berços do gênero
sejam a Inglaterra e a França. Sua introdução em Portugal data
do século XIII. A configuração que tomaram está relacionada
com o processo de evolução das canções de gesta. Observa-se a
evolução de uma forma de caráter memorialístico e individual,
que deixou de se expressar cantada em verso, para outra, em
prosa, para ser lida.
Figura 1.2.1 - Novelas de Cavalaria. Fonte: http://espelhoesonho.blogspot.com.br/2012/03/
novelas-de-cavalaria-3.html
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Literatura Medieval
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A circulação das novelas de cavalaria se dava entre a
fidalguia e a nobreza e, apesar da aclimação pelas alterações,
todas provavelmente foram traduções do francês, porque
não se conhece uma que seja autenticamente portuguesa. De
inclinação mística, apresentam o cavaleiro de acordo com a
concepção da Igreja: casto, fiel, dedicado, humilde, íntegro
moralmente, resistente às tentações, à procura da honra e/
ou da vida eterna. Como ele sabe que é o escolhido, tem
força para superar os obstáculos e, ao final da peregrinação,
é compensado com sua elevação moral e espiritual.
Você pode observar a impregnação das novelas pela
ideologia de orientação religiosa do período medieval por
outros traços do herói: era obrigado a cumprir juramentos;
sua caracterização corresponde ao ideal das Cruzadas
de expansão da fé católica e da conquista de bens; presta
vassalagem a senhores e se submete ao poder da fé. As
novelas mais conhecidas foram História de Merlim, cuja
versão portuguesa desapareceu, José de Arimateia e a
Demanda do Santo Graal.
Em oposição ao modelo do cavaleiro perfeito,
surgiu a novela Amadis de Gaula (1508), cujo autor se
desconhece. Apesar de sua integridade e do amor cortês
e vassálico, Amadis rompe com a ordem vigente, porque
se casa com Oriana, razão pela qual essa novela é tomada
como marco da transição entre a Idade Média e a Idade
Moderna.
É comum encontrar referências a três ciclos das
novelas cavalheirescas, o bretão ou arturiano, tendo por
protagonistas o Rei Artur e seus cavaleiros; o carolíngio,
em torno de Carlos Magno e os doze pares da França;
e o ciclo clássico, relativo às novelas de temas grecolatinos. Em Portugal, só o primeiro deixou vestígios,
influenciando costumes da sociedade medieval e
estimulando o surgimento de uma produção literária de
grande aceitação em pleno século XVI, quando os valores
medievais já pertenciam ao passado.
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3 O TROVADORISMO E AS CANTIGAS
A origem das cantigas situa-se na Provença, região
situada ao sul da França - como vimos na aula anterior:
aproveite para rever o mapa - com grande atividade
comercial durante o período das Cruzadas cujos trovadores
(daí a denominação “Trovadorismo” para esse período)
serviram de modelo para a poesia medieval posterior.
Podemos apontar como características gerais do gênero o
individualismo, a superação da distância social pelo amor,
a descrição de atributos femininos como a delicadeza, a
sutileza e a suavidade. Se você revisar o que mencionamos
sobre a organização social do feudalismo, compreenderá
com facilidade que as cantigas transpõem para a literatura as
relações políticas entre as classes.
Observamos isso pela submissão do amante à mulher,
apresentando-se diante dela com humildade, em posição de
inferioridade e colocando-a como ser inacessível. As cenas
amorosas terminam por reproduzir a vassalagem prestada à
nobreza, isto é, representam a obediência e as obrigações de
servir impostas pelos senhores feudais às outras categorias
sociais.
O surgimento e a propagação das cantigas estão
vinculados às mudanças no estilo de vida das cortes. O
seu caráter emotivo e sentimental contrasta com tom rude
das canções de gesta, cuja temática remete aos combates,
à hierarquia e à vida em bando, próprios da ideologia que
orientou as Cruzadas. O gênero é o correspondente literário
do período em que a vida começava a se concentrar nos
palácios, em torno de reis e de nobres.
Da mesma forma como os membros da nobreza
participavam diretamente de expedições de conquistas
e de guerras, eles também se dedicavam a compor e a
divulgar as cantigas. Por isso, podemos afirmar que esses
poemas cantados refletem a adaptação dos indivíduos
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ao comportamento que regia as relações feudais. A sua
disseminação tem a ver com a necessidade de criar formas de
distração para ocupar o tempo ocioso de uma classe social
que vivia de ganhos obtidos sem esforço.
3.1 Os cancioneiros
A poesia surgiu antes da escrita e, como sua
transmissão era feita pela oralidade, precisou de recursos
para facilitar a memorização, como o verso, a rima e o ritmo.
A difusão “boca a boca” da literatura se manteve mesmo
depois que o homem passou a empregar sinais gráficos como
meio de comunicação, porque a maioria dos indivíduos
das sociedades primitivas não sabia escrever. Até mesmo
civilizações que deixaram valiosos registros escritos de sua
cultura viveram estágios com predomínio da cultura oral,
como é o caso dos gregos. Os provérbios são resquícios
da tradição oral, apresentando ritmo e sonoridade que
contribuem para a fixação na memória.
Os textos literários mais antigos em língua portuguesa
foram compostos para divulgação por meio da oralidade.
Os registros que encontramos hoje são transcrições de
composições do século XII, recolhidas posteriormente. A
reunião destas produções data dos séculos XIII e XIV e se
encontra distribuída em três cancioneiros: Cancioneiro da
ajuda, Cancioneiro da vaticana e Cancioneiro da Biblioteca
Nacional.
De acordo com Saraiva e Lopes (1996), o primeiro,
menos completo, abrange cantigas surgidas até o século
XIII, mas excluem as composições de Dom Dinis. Seu valor
consiste no fato de os manuscritos serem da época em que os
poetas apresentavam as composições nas cortes e nos castelos.
O Cancioneiro da vaticana e o Cancioneiro da Biblioteca
Nacional trazem cópias feitas no século XVI, a partir de
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manuscrito do século anterior. Esse último é o mais completo
porque inclui praticamente todo o material do outro com o
acréscimo de mais cantigas. Somados, os três cancioneiros
apresentam quase 1680 poesias de 160 autores.
Figuras 1.2.2 - Cancioneiros.Fontes: <http://desaparecidomasnaoesquecido.blogspot.com.br/2012/02/cancioneiro-daajuda-volume-i.html>, <http://cantigas.fcsh.unl.pt/images/CANC111.JPG>, <http://2.bp.blogspot.com/_jRkX9Orvexg/
S73hJyxbAqI/AAAAAAAAAAk/PAWxxf-ZK44/s1600/trovadores3.jpg>, respectivamente.
saiba mais
As
cantigas medievais
eram escritas e cantadas
em galego-português, ou
galaico-português,
origens
e
cujas
características
são muito discutidas pelos
especialistas.
Para
apro-
fundamento sobre o tema,
uma boa leitura é o artigo
“Sobre a noção de galego
português”, de Xoán Carlos Lagares Diez, publicado nos Cadernos de Letras
da
UFF,
disponível
em:
http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/35/artigo4.
pdf.
João Soares de Paiva, nascido por volta de 1140, é
apontado como o trovador mais antigo. Seu nome e a época
em que viveu são referenciais como marco do nascimento da
literatura escrita em Portugal. Há quem cite a “Cantiga da
Ribeirinha”, de 1189 ou 1198, como texto literário inaugural,
mas, de acordo com os estudos de António Saraiva e Oscar
Lopes (1996), Paio Soares Taveirós, seu autor, não seria o
mais antigo. Antes dele existiu Sancho I (1154-1211), o
segundo rei de Portugal, filho de Dom Afonso Henriques,
o Afonso I.
As cantigas se dividem nas seguintes modalidades:
cantigas de amor, cantigas de amigo, cantigas de escárnio e
cantigas de maldizer.
3.2 As cantigas e suas modalidades
A cantiga de amor é a modalidade que preserva os
traços mais vivos da influência provençal. Notamos sinais
desses traços em fatores como a temática, a linguagem e
a descrição de paisagens. Encontramos mais provas no
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atenção
É importante que você entenda
que
encontramos
infinita e se reflete pela manifestação de desejo jamais
alcançado. Daí, a submissão do homem diante da mulher,
sempre colocada em plano superior, assim como o suserano
que prestava vassalagem ao seu senhor, como já destacamos
na aula passada.
As figuras femininas aparecem estereotipadas, têm
a pele alva, os cabelos claros e, fisicamente, são delicadas.
Nas expressões, destacam-se pelo riso contido, pelos gestos
vinculações
da
literatu-
refinados e pela postura comedida. O recado da dama impõe
um código ao homem, segundo o qual deve se portar com
servilidade e discrição. Ele jamais revela a identidade da
amada porque a indicação de qualquer sinal que levasse ao
mático que somente bem
reconhecimento contrariava o princípio da idealização. Assim,
externa seu amor a um símbolo destituído de sensualidade
e nisso mostra outro indício da vinculação das cantigas com
os costumes da época. Por esse procedimento do poeta,
testemunhamos sua preocupação em assegurar respeito às
convenções da nobreza.
Em síntese, percebemos que certas características
pois, durante muito tem-
ra com a realidade social
em todas as épocas. Os
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uma aspiração sem correspondência de parte do ser amado.
A impossibilidade da realização amorosa gera uma tensão
2
vocabulário empregado, repleto de provençalismos, do qual
se originou uma dicção distinta em relação aos outros tipos,
em que tais vestígios são menos perceptíveis.
De acordo com Saraiva e Lopes (1996), o amor é o
tema predominante, representado como um ideal inatingível,
escritores e as escritoras,
os poetas e as poetisas,
são homens e mulheres
que,
ao
sua
arte,
desenvolverem
sempre
dialogando,
de
estão
diversos
modos, com a cultura de
seu tempo. Com relação à
produção literária feminina, por exemplo, é sintomais tarde, na história da
literatura
ocidental,
fora
algumas raras exceções,
as mulheres tenham conseguido espaço de publicação e reconhecimento,
po, elas não tinham direitos, não tinham acesso ao
ensino nem à alfabetização.
das cantigas evidenciam as simetrias entre a literatura e a
estrutura social vigente em Portugal, no período medieval.
O amor escondido equivale ao convencionalismo social
das cortes, nas quais os deveres e os papéis dos indivíduos
estavam bem definidos. O interior dos palácios se restringia
à nobreza e quem tinha acesso a seus salões, sem pertencer
à aristocracia, ocupava espaço que não lhe pertencia. Sua
presença ali indicava concessão dos senhores e de suas damas
ao permiti-la, ou seja, denunciava a condição de vassalo e a
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obrigação de se colocar em posição de subserviência. Era o
caso da maioria dos poetas.
Vimos também que a submissão, a obediência, a
humildade e a busca do aprimoramento das virtudes faziam
parte da pregação religiosa. Isso permite que enxerguemos
na Igreja outro instrumento de afirmação de valores e
princípios, funcionando como aliada para a preservação da
ideologia que interessava à camada social dominante.
A cantiga a seguir, da autoria do rei D. Dinis (CV 123,
CBN 485, ou seja, cantiga 123 do Cancioneiro da Vaticana,
e 485 do Cancioneiro da Biblioteca Nacional), apresenta as
principais características das cantigas de amor; para facilitar
a leitura, ao texto original segue uma versão em português:
Quer’eu em maneira de proençal
Quero eu à maneira provençal
fazer agora un cantar d’amor,
fazer agora um cantar de amor,
equerreimuit’iloar mia senhor
e quero louvar a minha senhora
a que preznenfremusura non fal,
a quem honra nem formosura não faltam
nen bondade; e mais vos direi en:
nem bondade; e mais vos direi sobre ela:
tanto a fez Deus comprida de bem
tanto a fez Deus completa de bem
que mais que todas las do mundo val.
Que mais do que todas no mundo (ela) vale.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
Pois a minha senhora Deus quis fazer tanto,
quando a faz, que a fez sabedor
quando a fez, que a fez conhecedora
de todo ben e de mui gran valor,
de todo bem e de muito grande valor,
econ todo est’é mui comunal
e mesmo assim é muito agradável com todos
ali u deve; e deu-lhi bom sen,
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do modo como se deve ser; e deu-lhe bom senso
edes i non lhi fez pouco de ben,
2
e disso não lhe fez pouco o bem,
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quando non quis que lh’outra foss’igual.
Quando não quis que outra lhe fosse igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
Pois em minha senhora nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad’eloor
mas colocou nela honra, beleza e louvor (=mérito)
e falar mui ben, e riir melhor
e é capaz de falar muito bem, e rir melhor
que outra molher; des i é leal
que outra mulher; ela é muito leal
muit’, e por esto non sei oj’euquen
e por isso, não sei eu quem
possacompridamente no seu bem
possa completamente no seu bem
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.
Falar, pois não outro bem como o seu.
Como você pode perceber, o texto é composto por
três estrofes de 7 versos (septilha ou setilha), com 10 sílabas
métricas (decassílabos):
Quer’/eu/em/ma/nei/ra/de/pro/em/çal
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Observe que sempre contamos a última sílaba quando
é tônica e também não esqueça que somente na versão em
galego-português encontramos a estrutura sonora e rítmica
original das cantigas.
Assim, você pode notar que se trata de um texto que
apresenta certa sofisticação poética, pois não há estribilho
(nesse caso, trata-se de uma cantiga de mestria ou maestria) e
o “conteúdo” do texto se desenvolve em versos que mantêm
a mesma unidade de rimas, organizadas em uma composição
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que exige domínio da versificação, como é o caso dos versos
decassílabos.
Agora, vamos reler o poema e atentar para o seguinte:
a) Na primeira estrofe, o eu lírico (a “voz” que
fala no texto, e não deve ser confundida com o
autor, embora possamos nos referir a esta voz
como a do poeta, de maneira ampla) indica a
que tipo de “estilo” ele segue? Sim, pois como
vemos no primeiro verso, ele refere-se “à maneira
provençal”, que era o modo mais sofisticado de
elaboração das cantigas (ou seja, equivaleria a
dizer que o poeta está fazendo uma cantiga à
maneira dos mestres do gênero);
b) Em todas as estrofes percebemos a reverência e
subserviência total do eu lírico à dama que instiga
o seu cantar? Podemos dizer que se trata de uma
representação idealizada desta mulher “perfeita”?
As respostas são positivas, claro; pois, ao final de
cada estrofe, o eu lírico sempre afirma que não há
comparação possível entre essa e qualquer outra
mulher do mundo!
c) E, no caso das qualidades desta dama, elas são
mais físicas ou morais? Sublinhe os adjetivos que
qualificam a senhora idolatrada dessa cantiga e
escreva sua resposta:
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
____________________________________________
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Pelo conjunto de respostas alcançadas, podemos
compreender, então, que as cantigas de amor, em geral,
seguem essa tendência de louvação a uma dama da nobreza,
exaltada de forma idealizada, e pela qual, não raramente, o
poeta sentia uma grande coita amorosa (o sentimento da
dor amorosa), capaz de levá-lo (poeticamente) à morte. É
o que vemos na cantiga abaixo, também da autoria de D.
Dinis (CV 127, CBN 489):
Proençaessoen mui bem trobar
Edizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
na tangran coita no seu coraçon
qual m’eu por mha senhor vejo levar.
Pero que troban e saben loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand’afrolsazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
nonan tal coita qual eu ei sen par.
Ca os que troban e que s’alegrar
vaneno tempo que ten a color
afrol consigu’, e, tanto que se for
aquel tempo, logu’em trobar razon
nonan, non viven [en] qual perdiçon
oj’eu vivo, que pois m’á-de matar.
Provençais sabem muito bem trovar
e dizem eles que é com amor;
mas os que trovam no tempo da flor (=primavera)
e não em outro, sei eu bem que não
tem tão grande coita no seu coração
como no meu, que por minha senhora estou a levar.
Porém, os que trovam e sabem louvar
suas que eles podem, sou sabedor senhoras o mais e
melhor
que os que trovam quando é estação da flor
e não antes, que Deus me perdoe,
não têm a mesma coita que se possa comparar
[à minha]
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Pois os que trovam e que se alegrar
vão no tempo que tem a cor
da flor, mas não tanto se não for
naquele tempo, pois logo em trovar razão
não acham, não vivem na mesma perdição
que hoje eu vivo e que me há de matar.
Nessa cantiga, “Provençais sabem muito bem trovar”,
o eu lírico, ao comparar a sua dor amorosa (a coita) à coita
dos (mestres) provençais, afirma que o seu sentimento é
muito mais intenso e verdadeiro, pois não se limita a cantar
versos apenas na estação primaveril, a tradicional metáfora
para a fase da vida e da natureza aberta ao enlace amoroso.
Mais do que isso, podemos perceber que, ao longo da cantiga,
há uma intensificação dos sentimentos do poeta? Para essa
resposta, observe os últimos versos de cada estrofe: você
reconhece a gradação que se vai construindo, da ideia de que
ele leva no peito uma dor muito forte (1ª estrofe), que não
tem comparação com nenhuma outra (2º estrofe) e pode
mesmo levá-lo à morte? (3ª estrofe).
Portanto vemos que, nas cantigas de amor, se
estabelece essa intensa subserviência do poeta ao amor que
sente (idealizado) pela dama (idealizada), numa elaboração
poética muitas vezes exigente em termos de versificação
(ritmo, rimas), o que nos mostra a importância desses textos
como fundamentos da lírica em língua portuguesa.
As cantigas de amigo têm como característica mais
marcante o fato de que a “voz” do eu lírico é feminina,
embora composta por um trovador, conforme os estudos de
Saraiva e Lopes (1996). Percebemos também particularidades
no que diz respeito ao ritmo e à forma. A unidade rítmica,
em vez de uma estrofe, é marcada, em muitos casos, por um
conjunto de estrofes ou por pares de dois versos (dísticos).
O par insiste na mesma ideia e o verso final de cada estrofe
se repete como primeiro da subsequente, técnica que remete
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Unidade 1 . Aula
2
às composições improvisadas por repentistas conhecidos
em várias regiões do Brasil.
Eliminadas as repetições, essas cantigas se reduzem
a poucos versos, evidenciando vinculações ao canto e à
dança, o que significa que não eram autônomas. A estrutura
construída por paralelismos e o refrão presentes como seus
elementos típicos fazem crer na existência de um coro. A
disposição das estrofes em pares pressupõe a alternância de
dois ou de grupos de cantores.
De um modo geral, podemos perceber que boa parte
das cantigas de amigo permite entrever cenas que ilustram
atividades do cotidiano feminino: na fonte, lavando roupas
ou os cabelos; na romaria, à espera do amigo ou fazendo
promessas aos santos pelo seu regresso, entre outras.
Também notamos que o lirismo das cantigas de amigo se
aproxima das formas narrativas e dramáticas, pois há ação
com diálogos e monólogos, em um cenário mais rústico e
natural. Além disso, os elementos naturais como fontes,
rios, árvores, aves agem sobre o eu feminino, inspirando o
amor, a confissão do desejo, nos levando a reconhecer uma
diferença em relação às cantigas de amor: a sensualidade, por
vezes descrita com realismo, revela uma realidade menos
solene, sem o convencionalismo da corte. Nela os jogos
amorosos aparecem explicitamente, livres dos subterfúgios
da conquista e apontam para a possibilidade de realização
carnal da relação amorosa, como afirma Natália Correia
(1978):
Ao contrário da cantiga de amor, que se
nutre da sublimidade de um sentimento
que transcende a carne, a cantiga [de amigo] oferece uma tópica que repõe o amor
na sua dimensão humana, patrocinado pela
natureza que tudo consente (p. 102).
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Figura 1.2.3 - Paisagem campestre. Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-M4fPX-iafjY/TnuziWpeiUI/
AAAAAAAAAM4/0J7p2NpXiaE/s1600/campestre.jpg
Um exemplo de “testemunho da comunhão carnal
[temos] na cantiga de amigo de Julião Bolseiro [...] que é a
expressão dolorosa da saudade física do amigo ausente e a
invocação dos tempos venturosos em que a jovem dormia
com o amante” (CORREIA, 1978, p. 45). Como podemos
ver a seguir (CORREIA, 1978, p. 120):
Sen meu amigo manh’ eu senlheira
e sol non dormen estes olhos meus
e, quant’ eu posso, peç’ a luz a Deus
e non mi-a dá per nulha maneira,
mais, se masessecon meu amigo,
a luz agora seria migo.
Quand’ eu con meu amigo dormia,
a noite non durava nulharen,
e ora dur’ a noit’ e vai e ven,
nonven a luz, nenpareç’ o dia,
mais, se masessecon meu amigo,
a luz agora seria migo.
E, segundo, com’ a mi parece,
Comigoman meu lum’ e meu senhor,
ven log’ a luz, de que non ei sabor,
e ora vai noit’ e ven e crece,
mais, se masessecon meu amigo,
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a luz agora seria migo.
Pater nostrusrez’ eu mais de cento,
2
poraquel que morreu na vera cruz,
que el mi mostre mui cedo a luz,
Unidade 1 . Aula
maismostra-mi as noites d’ avento,
mais, se masessecon meu amigo,
a luz agora seria migo.
Sem meu amigo sinto-me sozinha
e não adormecem estes olhos meus.
Tanto quanto posso peço a luz a Deus
e Deus não permite que a luz seja minha.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Quando eu a seu lado folgava e dormia
depressa passavam as noites; agora
vai e vem a noite, a manha demora;
demora-se a luz e não nasce o dia.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Diferente é a noite quando me aparece
meu lume e senhor e o dia me traz;
pois apenas chega logo a luz se faz.
Vai-se agora a noite, vem de novo e cresce.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo.
Padre nossos já rezei mais de um cento
implorando Àquele que morreu na cruz
que cedo me mostre novamente a luz
em vez destas longas noites de Advento.
Mas se eu ficasse com o meu amigo
a luz agora estaria comigo
Nessa cantiga, dividida em quatro estrofes de quatro
versos (quarteto), seguidas de um dístico que se constitui
em refrão (estribilho), a voz feminina lamenta a ausência do
seu amigo (ou seja, do seu amado, do seu amante) e torna
explícita a união física do casal enamorado. Entretanto, trataUESC
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se de uma cantiga mais elaborada se comparada à maioria
das cantigas de amigo, pois há uma certa sofisticação na
composição rítmica (versos decassílabos) e nas rimas. A esse
respeito, é importante sabermos que, de acordo com Natália
Correia, “a poesia provençal não poderia enraizar-se na língua
galego-portuguesa, se nela não encontrasse um terreno
poeticamente elaborado” (1978, p. 41), ou seja, a cantiga
de amigo, que se desenvolveu originalmente na Península
Ibérica, já possuía certa exigência formal, de maneira que foi
possível aos trovadores adotarem as sofisticadas estruturas
da cantiga de amor, à moda provençal.
De todo modo, muitas cantigas de amigo possuem
a simplicidade de versos destinados, sobretudo, ao canto
e à dança, como é o caso de “Ondas do mar de Vigo”, do
trovador Martin Codax (CV 884, CBN 1227):
Ondas do mar de Vigo,
saiba mais
Se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!
Martim Codax foi um jogral ou segrel galego, do
qual
restaram
apenas
Ondas do mar levado,
sete cantigas de amigo,
se vistes meu amado!
em que canta a cidade
E ai Deus, se verrá cedo!
galega de Vigo. É o mais
publicado e estudado de
todos os poetas galego-
Se vistes meu amigo,
portugueses. “A sua fama
o por que eu sospiro!
deve-se também ao facto
E ai Deus, se verrá cedo!
de os seus textos serem
os únicos que chegaram
até nós acompanhados da
Se vistes meu amado,
respectiva notação musi-
por que hei gran cuidado!
cal, encontrada, em 1914,
E ai Deus, se verrá cedo!
no manuscrito conhecido
como
«Pergaminho
del»”,
atualmente
Vinarqui-
vado na Pierpont Morgan
Library, em Nova York.
Fonte:www.astormentas.
com/din/biografia.
asp?autor=Martim
+Codax.
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Ondas do mar de Vigo
Se vistes o meu amigo!
Ai Deus, voltará cedo?
Ondas do mar levantado
Se vistes o meu amado!
Ai Deus, voltará cedo?
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Se vistes o meu amigo,
saiba mais
Aquele por quem suspiro!
De acordo com o professor
Ai Deus, voltará cedo?
Barros, “os meios trovadoconfrontos
Por quem tenho grande cuidado!
que
representam
pos
sociais
nos
as
quais
trovadores
os
gru-
Unidade 1 . Aula
Ai Deus, voltará cedo?
de
2
rescos ibéricos são ricos em
Se vistes o meu amado,
diversifi cados
se
constituíam
sociedades
ibéricas,
e
também em confrontos que
envolvem as diversas po-
A simplicidade dos dísticos seguidos do refrão
confere forte musicalidade ao texto, marcado pelo
lamento da moça que espera o amado, angustiada por
não ter notícias dele.
As cantigas satíricas se caracterizam pela crítica
sições
e se apresentam em duas categorias, as de escárnio
e as de maldizer. As cantigas de escárnio fazem
comentários mais gerais, sem individualizar os aspectos
confrontando com certos se-
desfavoráveis que apontam. As cantigas de maldizer se
referem a pessoas específicas, indicando explicitamente
particularidades físicas ou morais, sempre sob um ponto
de vista negativo. As duas categorias mostram situações
pitorescas da vida na corte, ridicularizando, por vezes
com sarcasmo e agressividade, atitudes reprováveis ou
anormalidades do corpo dos indivíduos. Raramente as
mo tempo, essa é a mesma
cantigas satíricas se voltam para assuntos de abrangência
mais ampla.
políticas
motivadas
pelas grandes questões da
época.
Devemos
lembrar,
por exemplo, que no século XIII tanto em Portugal
quanto em Castela, [ocorre]
um momento centralizador
em que a realeza estava se
tores da nobreza que lutam
acirradamente pela preservação de uma maior autonomia senhorial. Ao mesépoca em que, em contraponto à sua ascensão social
e participação nas lutas da
Reconquista, certos grupos
sociais não nobres, como os
cavaleiros-vilãos, lutam por
se afi rmar perante a nobreza. Esses confl itos entre as
diferentes ordens (nobreza,
clero,
não-nobres),
tam-
bém entre essas e a realeza, aparecem amplamente
na poesia trovadoresca da
época. Ao mesmo tempo, a
Os assuntos das cantigas satíricas variam e vão
de certos desregramentos de clérigos e reis às aventuras
poesia trovadoresca satírica
pícaras de um indivíduo qualquer.
Os jograis eram compostos por indivíduos
oriundos das camadas subalternas que desfrutavam
da condição de artistas, por isso desfrutavam de
prerrogativas negadas a outros segmentos das
classes populares. Conviviam no interior das cortes,
partilhando com fidalgos, reis e clérigos da boemia
Podemos falar, por exemplo,
é rica em confl itos internos
aos grandes grupos sociais.
nos
confl itos
internobiliár-
quicos, isto é, os confl itos
que se dão no próprio seio
da nobreza ibérica”.
Fonte: www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol6/
vol6_2.pdf. Acesso em nov.
2010.
e de certos desregramentos comportamentais e de
linguagem próprios de vínculos de mais intimidade. A
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proximidade com os senhores criou uma relação em que a
crítica não podia enveredar por temas morais ou sociais, se
limitando àquilo que melhor se prestava ao caráter trocista
das cantigas satíricas.
Apesar das restrições a que estavam submetidos os
jograis, algumas composições deixam transparecer problemas
da época como a miséria de determinados segmentos da
população. A representação da realidade social aparece ainda
de outras maneiras. Como andavam pelos mais diversos
lugares, frequentando castelos, feiras e cidades diferentes,
os jograis criaram cantigas que propiciam o conhecimento
das múltiplas facetas da vida em Portugal na época.
As cantigas de maldizer se referem a pessoas específicas,
indicando explicitamente particularidades físicas ou morais,
sempre sob um ponto de vista negativo. Os autores buscavam
o pitoresco e anedótico, por isso tratam desde o modo como
uma pessoa da corte se vestia ao comportamento afetado
de um fidalgo ou da inclinação pela bebida de um religioso.
Algumas contêm sabor mais picante, expondo as experiências
sexuais de uma mulher pertencente à nobreza (SARAIVA;
LOPES, 1996).
Transcrevemos, a seguir, uma cantiga de João Garcia
de Guilhade para que você observe algumas das características
mencionadas:
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
vocabulário
que vos nunca louv[o] em meu cantar;
•
Ora = agora;
mais ora quero fazer um cantar
•
toda via = sempre,
•
completamente;
em que vos loarei toda via;
•
sandia = louca;
e vedes como vos quero loar:
•
que vos eu loeen nesta
dona fea, velha e sandia!
razon = mereceis a justiça
de eu louvá-la;
•
loaçon = louvor;
Dona fea, se Deus mi pardom,
•
pero = todavia.
Pois avedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar toda via;
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e vedes qual sera a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
2
Dona fea, nunca vos eu loei
Unidade 1 . Aula
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja um bom cantrar farei,
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
Podemos classificar esta cantiga como de maldizer
porque o trovador se dirige diretamente à pessoa de quem fala,
a “dona feia, velha e louca”. Notamos na sátira que o poeta
revela certa crueldade em relação à mulher a quem se destina
a composição. Segundo o trovador, ela se julga merecedora
de uma cantiga de amor e à altura de suas atenções. Por trás
de um aparente comedimento, ele é duro na rejeição à dama,
apontando os defeitos que a tornavam desinteressante: era
feia, velha e louca. Considerando que se trata da recusa de uma
pretensão amorosa e o caráter desdenhoso da composição,
devemos relativizar o sentido dos adjetivos empregados pelo
poeta.
As cantigas de escárnio se caracterizam pela crítica
e fazem comentários mais gerais, sem individualizar os
aspectos desfavoráveis que apontam. Mostram situações
pitorescas da vida na corte, ridicularizando, pela ironia,
atitudes reprováveis ou anormalidades físicas dos indivíduos.
As diferenças entre as cantigas de escárnio e as de maldizer
são muito sutis porque suas características se misturam
numa mesma composição. O principal traço de distinção
consiste no fato de as primeiras satirizarem de modo mais
indireto, empregando a zombaria mais amarga e insultuosa,
em linguagem de sentido ambíguo. As cantigas de maldizer
são mais diretas, agressivas e contundentes, com uma
linguagem mais objetiva. A maior parte das poesias satíricas
pertence a este último grupo (MOISÉS, 1982).
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A cantiga a seguir é de Pero Garcia Burgalês, trovador
galego da segunda metade do século XIII. Nela percebemos
a crítica a Rui Queimado e a ironia em relação ao seu talento:
Rui Queimado morreu con amor
vocabulário
en seus cantares, por Sancta Maria
• Par = por;
por ua dona que gran ben queria,
• en = disso;
• porque cuida que faz
i
maestria
=
porque
pensa que possui talento;
• sabor = gosto;
• i = aí;
• desi= depois;
e, por se meter por mais trovador,
porque lh’ela non quis [o] ben fazer,
fez-s’elen seus cantares morrer,
mas ressurgiu depois ao tercer dia!
• ar, re = de novo,
Esto fez el por uasa senhor
• outra vez;
que quer gran ben, e mais vos en diria:
• ar viver = reviver;
• dês = desde;
porque cuida que faz i maestria,
• oi = hoje;
e nos cantares que fez sabor
• pois morrer, de viver =
de morrer i e desi d’ar viver;
viver depois de morrer
esto faz el que x’o pode fazer,
mas outr’o mem per ren non [n] o faria.
E non há já de sa morte pavor,
Se nonsa morte mais la temeria,
mas sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, dês quando morto for
e faz-(s’) en seu cantar morte prender,
desi ar viver: vede que poder
que lhi Deus deu, mas que non cuidaria.
E, si mi Deus a mim desse poder,
qual oi’ el há, pois morrer, de viver,
jamais morte nunca temeria.
O emprego de várias palavras com sentido duplo
dá um caráter ambíguo, permitindo que a composição seja
enquadrada na categoria de cantiga de escárnio. Percebemos
que Rui Queimado tem-se na conta de grande trovador; mas,
ao anunciar sua morte iminente, cai no ridículo porque é uma
morte lírica, de amor por uma “dona”. O poeta desdenha da
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Unidade 1 . Aula
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morte de Queimado e com isso ridiculariza o amor, recorrendo
a um tom irônico e irreverente em alguns versos, como naquele
em que fala do ressurgimento do desafeto. Observamos,
ainda, que, ao zombar do outro, o trovador revela certo grau
de inveja e parece querer se mostrar superior ao rival.
CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS DE AMOR E DE AMIGO
Cantigas de amor
• origem da Provença, região ao
sul da França;
• refletem a relação social de submissão;
• em geral, tratam de um relacionamento amoroso;
• o “eu” declara seu amor a uma
dama;
• mulher ocupa posição social superior, é inatingível;
• o “eu” implora pela aceitação de
sua dedicação e submissão;
• “eu lírico” masculino.
Cantigas de amigo
• voz da mulher, embora composta
por homem;
• o ponto de vista é feminino sobre a relação amorosa;
• expressam o sofrimento da mulher: a espera pelo namorado
(amigo), a dor diante do amor não
correspondido, as saudades, os ciúmes;
• as confidências são dirigidas à
mãe ou a amigas;
• presença de elementos da natureza;
• mostram o ambiente familiar.
CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS SATÍRICAS
Cantigas de escárnio
• crítica (sátira) indireta e a alguém;
• emprego de palavras de duplo
sentido;
• crítica disfarçada pela ironia;
• comentários mais gerais sem individualizar;
• representam as pessoas de
modo desfavorável;
• referem-se a situações das cortes e dos castelos.
Cantigas de maldizer
• referem-se diretamente às pessoas;
• indicam explicitamente particularidades físicas ou morais;
• ponto de vista negativo de reis,
religiosos e pessoas da nobreza;
• algumas têm caráter picante.
3.3 A decadência do Trovadorismo
Os estudiosos apontam três causas para a decadência
do Trovadorismo:
1) decadência do mecenato: os jograis eram mantidos
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pelos reis; mas, nos anos 1460, Dom Pedro I
extinguiu a prática;
2) aburguesamento de Portugal: a partir da Revolução
de Avis (1383-1385) as atividades mercantis se
expandiram significativamente, determinando
alterações no comportamento da sociedade,
instituindo um espírito comercial antagônico à
vida palaciana, que girava em torno do rei e da
fidalguia;
3) conflitos entre Portugal e Espanha: a língua do
trovadorismo era o galego-português, devido
à influência das peregrinações a Santiago de
Compostela, na Galiza. Com a independência
de Portugal, as relações com a Espanha passaram
a se caracterizar por conflitos permanentes,
ocasionando a separação linguística gradativa e a
busca de expressões culturais próprias.
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ATIVIDADES
ATIV
AT
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ATIVIDADES
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1. Pesquise em diferentes meios (na internet, nos livros
da biblioteca etc.), selecione uma passagem de novela
medieval, depois responda: de que modo esses textos
representam os valores do feudalismo?
2. Observamos, na cantiga a seguir, de Bernal de Bonaval
(apud MOISÉS, 1997, p. 21), a presença de dois campos
semânticos: um representa o sentimento e o outro, a
morte. Não observamos, entretanto, relação de oposição
entre ambos. Explique essa afirmação, desenvolvendo
um comentário crítico sobre o texto poético selecionado,
evidenciando as principais características desse tipo de
expressão lírica do Trovadorismo.
A dona que eu am’e tenho por senhor
amostrade-me-a Deus, se vos em prazer for,
se non dade-me-a morte.
A que tenh’eu por lume destes olhos meus
e por que choram sempre amostrade-me-a Deus,
se non dade-me-a morte.
Essa que Vós fizestes melhor parecer
de quantas sei, ai Deus, fazde-me-aveer,
se non dade-me-a morte.
Ai, Deus, que me-a fizestes mais ca mim amar,
mostrade-me-a u possa com ela falar,
se non dade-me-a morte.
3. Com base na resposta anterior, podemos afirmar
que essa cantiga expressa, de certo modo, a realidade
histórico-cultural na qual se insere o Trovadorismo?
Explique.
4. Elabore um comentário crítico sobre a cantiga
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abaixo, apontando os recursos formais do texto e
o sentido geral dos versos, definindo a que tipo de
cantiga pertence.
Dizia lafremosinha:
vocabulário
• fremosinha: formosinha
• ai, Deus, val!: ai, valhame Deus!
• bem talhada: bem feita,
elegante, bonita.
• coitada: infeliz, cheia de
sofrimento amoroso.
ai, Deus, val!
Com’estou d’amor ferida!
ai, Deus, val!
Dizia la bem talhada
ai, Deus, val!
Com’estou d’amor coitada!
ai, Deus, val!
Com’estou d’amor ferida!
ai, Deus, val!
Nom vem o que bem queria!
ai, Deus, val!
Com’estou d’amor coitada!
ai, Deus, val!
Nom vem o que muit’amava!
ai, Deus, val!”
D. Afonso Sanches
filmes
O sétimo selo(1957), de Ingmar Bergman
Henrique V(1989), deKennethBrannagh
Vídeos no youtube:
Amália
-
“Lá
Rodrigues:
Vão
Cantigas
As
de
‘Cantigas
Flores”Santa
Medievais’
Fado-World
Maria
(URL
Music
v=A_
G68CbDIqc&feature=fvw).
Figura 1.2.4 - Capa do
filme “O sétimo selo”.
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RESUMINDO
RESUMINDO
RE
ESU
S
Unidade 1 . Aula
2
Nesta aula, você estudou sobre as principais expressões
literárias do período medieval, com destaque para as cantigas
trovadorescas, reconhecendo as implicações entre a literatura e
o contexto histórico-cultural das produções artísticas.
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
R
RE
REFE
EFE
F R
As cantigas citadas estão disponíveis no site: http://www.
csbrj.org.br/culturaclassica/antologiaMedieval.htm. Acesso
em nov. 2010, e no livro seguinte:
CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galegoportugueses. Lisboa: Estampa, 1978.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de
textos. São Paulo: Cultrix, 1982.
______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva,
1993.
______. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1997.
SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da Literatura
Portuguesa. Porto: Porto, 1996.
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Suas anotações
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1ª
unidade
AULA 3
O HUMANISMO
OBJETIVOS
Compreender a realidade histórico-cultural da Europa,
de modo geral, e de Portugal, de modo específico,
durante a transição da Idade Média para a Idade
Moderna, reconhecendo as principais expressões
literárias portuguesas desse período, com destaque
para a obra de Fernão Lopes e de Gil Vicente.
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O Humanismo
Unidade 1 . Aula
3
1 INTRODUÇÃO
A partir de meados do século XV se sucederam
acontecimentos que enfraqueceram o poder da Igreja em
relação à influência exercida na Idade Média. Como já vimos,
no estágio inicial da formação de Portugal, o ensino visava à
formação de religiosos. Com a criação de estabelecimentos de
estudos gerais, a educação formal deixou de ser exclusividade
dos clérigos, reduzindo o seu controle sobre a transmissão
do conhecimento. Em consequência, surgiram descobertas
e inovações científicas responsáveis pela inauguração de
uma nova era da história, como se verá a seguir.
2 O HUMANISMO EM PORTUGAL
2.1 As mudanças: do ensino à percepção do
mundo
Uma série de acontecimentos que se sucederam
na Europa, durante o século XV, contribuiu para o início
do abrandamento da influência exercida pela Igreja no
comportamento das pessoas, nas decisões políticas e,
fundamentalmente, no pensamento. Uma das causas foi o
fim da exclusividade que os clérigos tinham na formação.
Em Portugal, a exemplo do que se passava em outros países,
o ensino mudou mediante a implantação dos chamados
estudos gerais, fato determinante para reduzir o controle
dos religiosos sobre a transmissão do conhecimento. Mais
aliviado da opressão reinante no interior dos mosteiros, o
homem começou a se afastar da visão teocêntrica e libertou
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sua imaginação e sua criatividade. Em consequência,
surgiram descobertas e inovações científicas responsáveis
pela inauguração de um período histórico marcante, o
Humanismo.
O Humanismo foi uma época de transição e um
dos movimentos que integraram o Renascimento, período
marcado por profundas transformações no campo do
conhecimento que tiveram, entre outras consequências,
avanços tecnológicos que facilitaram as grandes viagens
marítimas. O eixo central do Humanismo foi a ideia
da dignidade (respeito, justiça, honra, amor, liberdade,
solidariedade), com o propósito de valorizar as ações
humanas. A introdução de princípios lógicos e racionais
como explicação para certos fenômenos contrariava a visão
de mundo em vigor na Idade Média e marcava a oposição
homem X Deus. Em outras palavras, o Humanismo
colocava o homem como o centro de interesse, procurando
exaltá-lo por suas realizações individuais e coletivas e pela
sua capacidade de usar a razão. Para tanto, tomou a Grécia
Antiga como modelo, aproveitando o seu legado nas diversas
áreas: literatura, arte, filosofia, ciência, história, o que deu
origem a novos conceitos a respeito do mundo.
Por isso podemos destacar como um dos traços
marcantes da cultura no período a valorização da Antiguidade
Clássica, com os filósofos, os pintores e os poetas tomando-a
como inspiração. Os artistas pegavam as obras dos gregos
como modelo a ser seguido e sua meta era imitá-las, não como
cópia, mas como grandes exemplos para a criação artística.
A partir disso, surgiu um conjunto de normas estéticas que
estimulou o aparecimento de novas formas de expressão
artística, que se manifestaram de forma particular em cada país
(SARAIVA; LOPES, 1996).
Devemos pensar no advento do Humanismo
em Portugal como fato que se soma a outros ocorridos
entre o final do século XIV e o início do século XV. O
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acontecimento referencial da série foi a Revolução de Avis,
em 1385, quando D. João I assumiu o trono e deu início
ao período de prosperidade e avanços, que culminou com
os descobrimentos, ou seja, consolidou o país política
e geograficamente, impulsionou a economia, formou
Unidade 1 . Aula
3
poderosa frota naval e organizou respeitável força militar.
Disso resultou uma participação significativa no comércio
da época e a conquista de territórios na América, na África e
na Ásia (SARAIVA, 1984).
Figura 1.3.1 - Revolução de Avis. Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_wiAkUPTBrKg/
S7FUIqM8WcI/AAAAAAAAAAU/a0E0mfeTU_U/s1600/untitled.bmp
Essa transformação tem a ver com os motivos que
provocaram a Revolução de Avis. De um lado estavam os
interessados em preservar a estrutura política e econômica
do feudalismo, cuja base era a exploração da terra. Do
outro, os indivíduos ligados ao comércio, oriundos de outro
segmento da população, dispostos a desafiar os nobres. O
apoio desse grupo foi decisivo para D. João ser coroado
rei e para tomar decisões favoráveis às mudanças que se
seguiram. Vitoriosos, os mercadores deram grande impulso
à economia e promoveram o desenvolvimento das cidades,
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que passaram a desempenhar outro papel, o de espaço das
transações comerciais, da competição, da venda de produtos
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990).
As consequências dessa nova realidade se fizeram
perceber em todos os campos de atividade. Na vida social, o
homem comum passou a se envolver com o mundo prático,
portanto mais afastado dos religiosos e de sua preocupação
com a salvação da alma. Na esfera política, teve início
a expansão marítima, enquanto, no campo econômico,
o mercantilismo se consolidou, ou seja, o comércio se
intensificou, estimulando a busca de produtos em outros
lugares fora da Europa. Um indicativo da posição destacada
que Portugal passaria a ocupar nos séculos subsequentes foi a
conquista de Ceuta, no norte da África, em 1415. Mobilizando
mais de vinte mil homens e duzentos navios, D. João I partiu
para dominar um território sob a influência árabe, segundo
José Hermano Saraiva (1984, p. 125-6), sem motivo aparente.
Ainda que não tenha explicação, o historiador nos dá uma dica
de causas que podem ter estimulado o ataque.
A expansão da fé católica era um grande argumento
para as expedições militares da época que, quando bem
sucedidas, resultavam em negócio vantajoso, entre outros
aspectos, por conta dos saques praticados. O avanço sobre
Ceuta, como aponta Saraiva (1984), foi uma preparação
para empreitadas mais ousadas, ou seja, as grandes viagens
marítimas que se iniciaram em seguida. O êxito incentivou
novas aventuras, transformando o fato em marco para a
política de expansão territorial, implantada a partir de
então, e do protagonismo dos portugueses no comércio,
durante os séculos subsequentes. Com o desenvolvimento
da construção naval e a invenção de novos instrumentos,
as navegações se tornaram mais seguras para os padrões da
época, permitindo a realização das expedições marítimas
e a descoberta de mundos até então desconhecidos pelos
europeus.
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O Humanismo
Francesco Petrarca (1304-1374) e de Giovanni Boccaccio
(1313-1375).
Em Portugal, o Humanismo se caracterizou pela
introdução de novas perspectivas de organização social,
Figura 1.3.2 - Dante Alighieri.
Fonte: http://upload.wikimedia.org/
wikipedia/commons/6/6f/Portrait_
de_Dante.jpg
Unidade 1 . Aula
objetivo e a orientação transcendental, que explicava a realidade
pela intervenção de Deus. Da mesma forma, a valorização
da cultura grega, de caráter racional, conviveu com a cultura
religiosa, assim como a estrutura política e econômica do
feudalismo permaneceu em vigor, ainda que em decadência,
enquanto o mercantilismo se intensificava.
Em países como a Itália, foi um período de inovações
estéticas e os sinais destas transformações na literatura
são encontrados na obra de Dante Alighieri (1265-1321),
3
Precisamos lembrar que o Humanismo foi um período
de transição entre duas épocas distintas do ponto de vista
histórico: a Idade Média e a Idade Moderna, em que vigorou o
Renascimento. Por isso, caracteriza-se pelo convívio de forças
opostas, ou seja, a influência da Igreja diminuiu, mas não
desapareceu, provocando o confronto entre o pensamento
Figura 1.3.2 - Francesco Petrarca.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Francesco_Petrarca
econômica, política e cultural que marcaram o início de
um período de acontecimentos significativos. Mesmo
assim, o contato com outras civilizações, em consequência
das navegações, foi além da importação de produtos para
o consumo dos europeus. Assim como artigos até então
desconhecidos começaram a fazer parte hábitos e necessidades
dos portugueses, elementos culturais dos lugares onde suas
embarcações ancoravam se incorporam à vida cotidiana
(SARAIVA, 1984).
Os historiadores associam o advento do Humanismo
em Portugal ao nome de Fernão Lopes, personalidade
destacada da literatura de língua portuguesa do período,
como se verá a seguir.
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Figura 1.3.3 - Giovanni Boccaccio.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/
wiki/http://pt.wikipedia.org/wiki/
Giovanni_Boccaccio
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
2.2 As crônicas de Fernão Lopes
A biografia de Fernão Lopes traz lacunas quanto
a datas, sabendo-se apenas que nasceu entre 1380 e 1390,
em local desconhecido, e que faleceu, presumivelmente,
entre 1459 e 1460. Das poucas informações disponíveis, há
comprovações de que, por volta de 1420, ocupava importantes
funções públicas e que conheceu algumas personalidades que
participaram da Revolução de Avis, dentre as quais D. João I.
Figura 1.3.4 - Fernão Lopes. Fonte:
http://www.vidaslusofonas.pt/
flopes1.jpg
Exerceu várias atividades, entre elas, a de escrivão de D. João e,
mais tarde, de D. Fernando, de quem lavrou o testamento. Seu
ofício mais relevante para a literatura foi o de cronista-mor,
cujas atribuições consistiam em registrar os acontecimentos
da corte. Contrariando o costume da época, não se sujeitou
à vontade dos governantes, na medida em que deu outra
dimensão à descrição histórica (SARAIVA; LOPES, 1996).
Sob o ponto de vista da história, a ampliação de seu
relato se faz observar por aspectos como a investigação, por
meio da pesquisa em arquivos do Estado, em documentos
da Igreja e em sepulturas. Submeteu as anotações de fatos ao
confronto de versões, recusou a personalização de indivíduos à
condição de heróis e insubordinou-se aos interesses palacianos
ao ponto de criticar atitudes de reis e discutir a veracidade de
fontes. Sua visão histórica foi além das cortes, dos conventos e
da aristocracia; pois, em seus registros, aparecem as populações
dos povoados, os homens comuns, os mais diversos setores
da sociedade, o trabalhador da aldeia, as festas, a vida na
intensidade do seu cotidiano, com seus contrastes, com sua
pulsação (ibidem, idem).
Em estudo das crônicas de Fernão Lopes, António
José Saraiva escreve:
A alma que anima as crónicas é evidentemente a que animava as praças onde se reuniam, em magotes ou em assembleias, os
homens das vilas. A voz popular, a opinião
pública, tem um papel funcional nestas
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O Humanismo
3
crônicas. Sempre que relata um acontecimento saliente ou de grande importância,
Fernão Lopes dedica algumas páginas, às
vezes um capítulo inteiro, a expor o que
pensavam dele as pessoas, e em especial os
povos das vilas e cidades (1993, p. 27).
Unidade 1 . Aula
Os méritos maiores de Fernão Lopes talvez tenham
sido a perspicácia e a sua sensibilidade, reveladoras de dotes
de um artista da palavra. O estilo de sua escrita é simples
e coloquial, porém elegante, sóbrio, de técnicas apuradas,
que supera os limites da narração ou da descrição. Há
cortes inesperados, interrupções abruptas, simultaneidades,
digressões. Sua expressão é vibrante e arrebatadora, seus
diálogos conferem dramaticidade, a plasticidade permite
a visualização palpitante dos quadros representados, as
personagens têm densidade psicológica, porque hesitam,
fraquejam, são ambiciosas, enfim, apresentam as fraquezas
humanas (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990).
Atestamos, ainda, sua capacidade por outras marcas
que evidenciam aptidões próprias do escritor de ficção,
embora não fosse este o seu propósito. Seu domínio da palavra
permitiu-lhe o emprego de artifícios para prender a atenção
do leitor, com quem quase conversa. Da mesma forma, dá
teatralidade e unidade às ações, combina feitos individuais
com movimentos de massa, faz acontecimentos múltiplos
convergirem para um desfecho, alterna tons, intercalando
o colérico com o suave, o irônico com o depreciativo. Tudo
isso termina por dar vivacidade à narração na imaginação do
leitor, aproximando a descrição de fatos objetivos, como é
mais comum à história, da representação subjetiva, como
fazem os romancistas (SARAIVA; LOPES, 1996).
Boa parte das crônicas de Fernão Lopes se perdeu,
restando apenas três: a Crônica del-rei D. Pedro I, a Crônica
del-rei Dom Fernando e a Crônica del-rei D. João I. A
primeira traça o perfil psicológico do rei, a partir da narração
de acontecimentos de seu reinado. É famosa a descrição dos
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fatos ligados à morte de Inês de Castro. A Crônica del-rei
Dom Fernando é importante fonte histórica que reconstitui
o período entre o casamento de Dom Fernando com Leonor
Telles e o início da Revolução de Avis. Sua leitura permite o
conhecimento sobre a reação popular ao enlace, bem como
o perfil psicológico do rei e de sua esposa. A Crônica del-rei
Figura 1.3.5 - Crônica del-rei D. João
I. Chronica de El-Rei D. João I/Fernão
Lopes. - Lisboa: Escriptorio, 1897-1898.
7 volumes.
Fonte: Biblioteca Nacional: http://purl.
pt/homepage/419/419_341.jpg.
D. João I divide-se em duas partes, com a primeira dando
conta do período entre a morte de D. Fernando, em 1383, e
a aclamação de Dom João como rei de Portugal, em 1385. A
segunda trata de fatos ocorridos entre 1385 a 1411, quando
foi assinada a paz com Castela.
Observe os aspectos mencionados na crônica “Como
el-rei fez conde e armou cavaleiro João Afonso Telo e da grande
festa que lhe fez”, de Fernão Lopes:
Em três cousas, assinadamente, achamos, pela
mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava
seu tempo. A saber: em fazer justiça e desembargos do
Reino, em monte e caça, de que era mui querençoso;
e em danças e festas segundo aquele tempo, em que
tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido.
Figura 1.3.6 - Livro Crônica del-rei D.
Fernando. Crônica de el-rei D. Fernando/
Fernão Lopes. Lisboa: Escriptorio, 18951896. 3 volumes.
Fonte: Biblioteca Nacional: http://purl.
pt/homepage/419/419_341.jpg.
E estas danças era a som de umas longas que então
usavam, sem curando de outro instrumento, posto que
o aí houvesse; e se alguma vez lho queriam tanger, logo
se enfadava dele e dizia que o dessem ao demo, e que lhe
chamassem os trombeiros.
Ora deixemos os jogos e festas que el-Rei ordenava
por desenfadamento, nas quais, de dia e de noite, andava
dançando por mui grande espaço; mas vede se era bem
saboroso jogo. Vinha el-Rei em batéis de Almada para
Lisboa, e saíam-no a receber os cidadãos, e todos os
Figura 1.3.7 - Livro Crônica del-rei D
PedroI. Crônica del-rei D. Pedro I deste
nome, e dos reis de Portugal o oitavo
cognominado o Justiceiro na forma em
que a escreveu Fernão Lopes/copiada
fielmente do seu original antigo pelo Padre
José Pereira Bayam. Lisboa Ocidental: na
Oficina de Manoel Fernandes Costa, 1735.
Fonte: Biblioteca Nacional - http://purl.
pt/homepage/419/419_341.jpg.
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dos mesteres, com danças e trebelhos, segundo então
usavam, e ele saía dos batéis, e metia-se na dança com
eles, e assim ia até o paço.
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Parai mentes se foi bom sabor: jazia el-Rei em Lisboa
uma noite na cama, e não lhe vinha sono para dormir. E fez
levantar os moços, e quantos dormiam no paço; e mandou
3
chamar João Mateus e Lourenço Palos, que trouxessem os
trombas de prata. E fez acender tochas, e meteu-se pela
Unidade 1 . Aula
vila em dança com os outros.
As gentes, que dormiam, saíam às janelas, a ver
que festa era aquela, ou por que se fazia; e quando
viram daquela guisa el-Rei, tomaram prazer de o ver
assim ledo. E andou el-rei assim gram parte da noite,
e tornou-se ao paço em dança, e pediu vinho e fruta, e
lançou-se a dormir...
E não curando mais falar de tais jogos: ordenou
el-Rei de fazer conde e armar cavaleiro João Alfonso
Telo, irmão de Martim Afonso Telo, e fez-lhe a mor
honra, em sua festa, que até aquele tempo fora visto
que rei nenhum fizesse a semelhante pessoa; pois elRei mandou lavrar seiscentas arrobas de cera, de que
fizeram cinco mil círios e tochas; e vieram do termo de
Lisboa, onde el-Rei então estava, cinco mil homens das
vintenas para terem os ditos círios. E quando o conde
houve de velar suas armas, no mosteiro de S. Domingos
dessa cidade, ordenou el-Rei que desde aquele mosteiro
até os seus paços, que é assaz grande espaço, estivessem
quedos aqueles homens todos, cada um com seu círio
aceso, que davam todos mui grande lume; e el-Rei,
com muitos fidalgos e cavaleiros, andava por entre eles,
dançando e tomando sabor.
E assim despenderam gram parte da noite.
Em outro dia, estavam mui grandes tendas armadas
no Rossio, acerca daquele mosteiro, em que havia grandes
montes de pão cozido, e assaz de tinas cheias de vinho, e
logo prestes por que bebessem. E fora estavam ao fogo
vacas inteiras em espetos a assar, e quantos comer queriam
daquela vianda, tinham-na muito prestes e a nenhum não
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era vedada.
E assim estiveram sempre, enquanto durou a festa,
na qual foram armados outros cavaleiros, cujos nomes
não curamos dizer.
(Citado a partir de: SARAIVA, 1993, p. 46).
Verbetes
Longas = instrumento musical tocado por trombeteiro;
Trebelhos = brincadeira envolvendo pulos e saltos; Homens das vintenas = homens obrigados ficar à disposição
do rei, divididos em grupos de vinte (Fonte: SARAIVA,
1993).
Podemos perceber que Fernão Lopes descreve
vários aspectos da vida nos palácios, fazendo referências às
ocupações de ordem administrativa do rei e a suas distrações
preferidas, mostrando a relação que mantinha com o povo.
A cena em que o rei sai “pela vila em dança com os outros”
é bastante dinâmica: as tochas sendo acesas, a música das
trombas, o rei avançando pela vila, a dança, as janelas se
abrindo, a movimentação das pessoas. A descrição é muito
visual (não fosse o anacronismo, poderíamos comparar
às técnicas cinematográficas), pois começa com o rei na
cama e a perspectiva se abre gradativamente para encerrar
novamente no lugar em que iniciou, porém, a exemplo de
uma câmera, durante a abertura do foco são mostrados
detalhes, inclusive sugerindo expressão de alegria no rosto
das pessoas ao ver o rei.
Destacamos também a plasticidade como outro
recurso próprio da literatura que Fernão Lopes emprega. A
cena é emoldurada pelo contraste da escuridão da noite com
as tochas acesas. Essas tochas, presume-se, são conduzidas
pela rua, iluminando o bailado do rei e seu séquito, ao mesmo
tempo em que as janelas se abrem, sugerindo a claridade do
interior das casas. No parágrafo seguinte, tem grande efeito
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sugestivo a imagem dos cinco mil homens, divididos em
grupos de vinte, conduzindo círios e tochas.
para conhecer
3
Acesse o youtube e assista ao vídeo do Programa
Iluminuras, “Obra rara – Biblioteca da Câmara dos
Unidade 1 . Aula
Deputados”: nele você conhecerá um pouco mais
sobre a vida e obra de Fernão Lopes.
Fonte: http://youtu.be/XvHlzPJTbkw.
Os principais traços do estilo de Fernão Lopes podem
ser resumidos em poucas palavras: apesar de concentrar sua
atenção na figura do rei, revela interesse por fatos políticos
diante dos quais se posiciona. Faz sondagem psicológica, pois
se preocupa com a interioridade das pessoas, ainda que fique
nas camadas mais superficiais. Suas descrições abrangem aquilo
que está ao redor do rei, incluindo indivíduos de fora do círculo
da nobreza e apresentam tal dinamismo que lembram técnicas
das câmeras cinematográficas. Além de permitir a visualização,
surpreende trazendo para o leitor pormenores. Por fim,
Fernão Lopes soube equilibrar seu talento de prosador com a
influência das novelas de cavalaria, porém em estilo natural e
vigoroso sem se descuidar do rigor necessário ao historiador.
3 GIL VICENTE: O VELHO E O NOVO COMO
PRENÚNCIO DE OUTRA ERA
3.1 O teatro medieval português
Se podemos falar sobre as cantigas medievais ou as
crônicas de Fernão Lopes, comprovando objetivamente as
particularidades apontadas pelos historiadores da literatura
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é porque dispomos dos textos. As cantigas chegaram até
nós porque foram recolhidas em cancioneiros, os quais
estão devidamente preservados em bibliotecas, do mesmo
modo como os volumes com as crônicas de Fernão Lopes,
facilitando o acesso dos estudiosos. Infelizmente nem todas
as obras literárias do passado foram conservadas; pois, em
razão de fatores como guerras, incêndios, ou mero descaso,
entre outros, acabaram desaparecendo para sempre.
Com relação ao teatro português da Idade Média,
não se conhece a existência de manuscritos, porém isso não
significa que não tenham existido:
Não há documento que registre a existência do teatro litúrgico em Portugal. Entretanto, se não houvesse esse teatro não
haveria motivo para a existência de numerosas proibições destinadas a extinguir tal
‘devassidão’ dos costumes. Bispos e arcebispos portugueses protestavam contra o
pecado de dançar nas igrejas ou de usar
máscaras profanas. Aceitavam as representações como a do presépio, dos reis magos. Evidentemente eram contra o teatro
que as pessoas simples traziam para dentro
da Igreja: a experiência humana exterior
ao adro não era possível encenar dentro da
Igreja. Em praças públicas e na corte havia
os jograis remedadores, cujo trabalho consistia em imitar, ridicularizando, pessoas.
Não chega a constituir teatro porque não
há unidade texto-representação (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p.
25).
Pela citação, podemos constatar que existiu um
teatro religioso, caracterizado pelos chamados “mistérios”
e “milagres”, e havia as formas populares de representação.
Com relação ao primeiro, segundo os autores mencionados,
eram encenadas passagens da Bíblia por ocasião de datas
como o Natal e a Páscoa, com a finalidade de estimular a fé
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cristã e pregar princípios morais, portanto sem propósito
artístico. Nas manifestações provenientes do povo
predominava o humor de tom crítico que se realizava em
espaços abertos, evidenciando seu caráter marginal. Eram
as “farsas”, peças de curta duração em que, entre um ato e
outro, ocorria a encenação dos “entremezes”, apresentados
Unidade 1 . Aula
por jograis cômicos.
Nos palácios, tiveram boa aceitação as pantomimas,
isto é, representações apenas por meio dos gestos das
novelas de cavalaria que, por vezes, se limitavam “a vistosos
desfiles de personagens ou de símbolos da majestade régia”
(SARAIVA; LOPES, 1996, p. 191-192). Os milagres, os
mistérios, as farsas e as pantomimas sintetizam o teatro
da Idade Média que, apesar de carecer de elementos
fundamentais para a dramaturgia, foi a base para a produção
de Gil Vicente.
3.2 O teatro de Gil Vicente
Pouco se sabe sobre a biografia de Gil Vicente,
mas a certeza de sua grande importância para a literatura
portuguesa se opõe às interrogações a respeito de sua vida.
De acordo com estudos realizados, ele nasceu em 1465 ou
1466, provavelmente em Guimarães, norte de Portugal, e
sua primeira peça foi apresentada no ano de 1502. Ocupou
a função de organizador de festas, trabalhando para os reis
de seu tempo, chegando a se tornar uma figura respeitada.
Mesmo assim, algumas de suas peças foram proibidas pela
Inquisição. Seu último texto foi escrito em 1536, não se
conhecendo o que lhe sucedeu a partir de então (SARAIVA;
LOPES, 1996).
Gil Vicente, “a princípio buscou as ideias nas
representações pastoris de Juan del Encina” (ABDALA
JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 27), mas aproveitou
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Figura 1.3.8 - Gil Vicente.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Gil_Vicente
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
A Inquisição foi um tribunal criado para defender
os
princípios
da
Igreja
Católica. Com este argumento vigiava, perseguia
e
prendia
pessoas
sus-
peitas de desrespeitar o
catolicismo. Fazia isso interferindo
no
comporta-
mento, censurando livros,
negando a ciência, enfim,
procurando impedir o surgimento de qualquer coisa
que pudesse ameaçar a fé
ou a autoridade do papa.
As pessoas acusadas eram
presas e torturadas e, se
elementos dos tipos de manifestação feitas pelo povo. A
influência do poeta e dramaturgo espanhol foi consequência
dos contatos frequentes entre as cortes, “sendo castelhanas
todas as esposas dos reis de Portugal do século XVI”
(SARAIVA; LOPES, 1996, p. 192). Como por ocasião do
casamento as noivas se faziam acompanhar por um grupo
de pessoas de sua confiança, é fácil imaginarmos que o
castelhano era falado corriqueiramente no interior dos
palácios.
Ao amadurecer literariamente, Gil Vicente se distanciou
das influências e criou um estilo próprio, sem deixar de lado os
elementos da cultura teatral de Portugal:
confessavam sua culpa e
se
mostravam
didas,
eram
Mas, à medida que vai avançando e enriquecendo as suas formas e repertório teatral, Gil Vicente integra novos elementos,
alguns sem dúvida tradicionais: o sermão
burlesco (gênero que existe na literatura
espanhola do século XV, e nas representações populares portuguesas da mesma
época), outras imitações jocosas de atos
religiosos, como ladainhas [...]. Vai integrando, por outro lado, formas teatrais ridas fora de Portugal (SARAIVA; LOPES,
1996, p. 193).
arrepen-
perdoadas.
Aqueles que não mudavam de opinião e os reincidentes eram condenados
a morrer queimados por
fogueiras, em cerimônias
chamadas autos-de-fé.
Em outras palavras, Gil Vicente partiu de um modelo
de teatro mais apurado em relação àquilo que se fazia em
Portugal; mas, com o passar do tempo, aproveitou a tradição
portuguesa para se aprimorar, tanto no que diz respeito a
motivos quanto no uso de recursos cenográficos. Nesse
processo, tornou-se um nome referencial para o teatro e para
a literatura em língua portuguesa. Embora tenha vivido na
segunda metade do século XV, sua obra permite que façamos
associações com o período de transição entre a Idade Média
e o Renascimento. Por isso é possível encontrar em suas
peças certo bifrontismo, ou seja, ora são mais evidentes as
marcas do medievalismo, ora se fazem notar antecipações da
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era renascentista (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN,
1990).
Sua trajetória está ligada ao contexto dos avanços no
conhecimento científico, porém sofria maior influência da
atmosfera medieval, religiosa e conservadora do interior dos
palácios, onde viveu. Sua carreira está ligada à vida palaciana
Unidade 1 . Aula
e se estendeu por três reinados. A estreia foi com o Auto da
visitação ou Monólogo do vaqueiro (1502), encenado para
comemorar o nascimento de D. João III, e recebido com
entusiasmo. Conquistando a admiração de Leonor, irmã
do rei D. Manuel, Gil Vicente recebeu o apoio necessário
para desenvolver suas atividades e com isso fundar o teatro
português.
As oscilações que a obra de Gil Vicente expressa
não se devem unicamente ao confronto de concepções
antagônicas de mundo, em que a visão teocêntrica
do medievalismo resistia ao pensamento lógico e
antropocêntrico do Renascimento. Vivendo no interior
dos palácios, acompanhou de perto as decisões de reis com
atitudes contraditórias, embora compreensíveis diante do
quadro de mudanças radicais que aconteciam no período.
D. João II se esforçou para diminuir a influência da
nobreza ao longo de seus quinze anos de reinado, iniciado
em 1481, e em concomitância estimulou as navegações.
D. Manuel foi rei de 1495 a 1521 e tomou decisões em
outro sentido, como veremos (ABDALA JÚNIOR;
PASCHOALIN, 1990).
Não devemos esquecer que a Revolução de Avis teve
o apoio do segmento social que se dedicava ao comércio,
sendo o próprio rei mercador e monopolista. Essa situação
perdurou por cerca de duzentos anos, colocando Portugal em
situação diferente da existente em outros países da Europa,
onde a nobreza vivia de ganhos com a exploração da terra.
Os portugueses preferiam investir os lucros em transações
comerciais e atividades paralelas como o transporte e as
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viagens marítimas. D. Manuel tratou de repatriar nobres
exilados durante o reinado de seu antecessor, assim como se
mostrou tolerante com os judeus, encontrando uma solução
intermediária para que a fortuna deles permanecesse no país,
exigindo-lhes a conversão ao catolicismo.
D. João III, o terceiro rei de Portugal enquanto Gil
Vicente esteve em atividade, permaneceu no trono até 1557
e se destacou pela atuação em favor da cultura, exercendo
o mecenato e abrigando em sua corte escritores e artistas.
Também foram consideráveis suas iniciativas em prol do
ensino, instituindo reformas na universidade e concedendo
bolsas para estudos fora de Portugal. Em contrapartida,
permitiu a instalação da Inquisição e se submeteu à
Companhia de Jesus, a quem entregou a missão catequizadora
nos territórios recém-descobertos, assim como lhe entregou
grande parte da responsabilidade pela educação (SARAIVA,
1984).
Assim, criava-se em Portugal um conflito de
mentalidades, pois de um lado estavam os indivíduos
educados dentro dos fundamentos inquisitoriais dos jesuítas,
do outro, ficavam aqueles formados pelas universidades
estrangeiras, mais resistentes à influência da Igreja e mais
afastados da orientação medieval. Gil Vicente viveu neste
ambiente de contrastes entre duas concepções de vida e até
mesmo a forma como seu trabalho artístico era recompensado
expressa o caráter transitório da época. Consta que recebia
tenças, uma espécie de remuneração fixa, o que pode ser
tomado como antecipação das normas que viriam a regular
a atividade criadora e da transformação da obra de arte em
objeto de consumo (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN,
1990).
Sobre as principais características do teatro vicentino,
devemos lembrar que o dramaturgo português dividiu
com Juan del Encina a paternidade do teatro na Península
Ibérica. O modelo que ambos tinham à disposição era o
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O Humanismo
Figura 1.3.9 - Farsa de Inês Pereira.
Fonte: http://www.joraga.net/gilvicente/
pags/ximagens23InesPereira.htm
Unidade 1 . Aula
o propósito de amplificar seus efeitos emotivos.
Gil Vicente, entretanto, ignorou o rigor das regras
do teatro clássico, contrariando a máxima aristotélica da
eliminação de tudo que não contribuísse para o efeito final.
Em suas peças, aparecem temas diversos, seus autos e farsas
representam situações múltiplas e contam com quantidade
considerável de atores aos quais se somam inúmeros figurantes.
A ação se desenvolve com saltos temporais e quase nunca
ocorre a indicação de sua duração, assim como os lugares
3
teatro medieval e o da Grécia Antiga, conformado dentro
dos padrões rígidos da lei das três unidades estabelecidas por
Aristóteles. Segundo tais princípios, a unidade de ação (uma
ação principal como célula dramática), de tempo (duração
de um dia) e de lugar (desenvolvimento da ação em um só
lugar) tinha por finalidade unificar o tom das tragédias com
também se multiplicam, se sobrepondo uns aos outros, sem
qualquer preocupação quanto à unidade. Do mesmo modo,
há mistura de elementos sérios e cômicos, com o livre trânsito
de um tom a outro, apresentando personagens de classes sociais
distintas, recorrendo a elementos externos como vestuário,
gestos, instrumento de trabalho, mesclando níveis de registro
de linguagem, que se alternam de acordo com o grupo social
correspondente (SARAIVA; LOPES, 1996).
Com relação à ação dramática, encontramos no teatro
vicentino duas modalidades principais, as peças de ação
fragmentária e as peças de enredo. Nas primeiras, não há um
enredo de ação encadeada, com começo, meio e fim. As cenas
são quadros com certa autonomia e representados sem ordem
rigorosa. De modo geral, a ação é constituída por apenas
uma situação que se repete com variação de protagonistas e
de exemplos. Algumas das peças fragmentárias preservam o
sentido mesmo com a eliminação de duas ou três personagens,
embora com prejuízo na abrangência. Um exemplo é o Auto
da barca do inferno (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN,
1990).
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Nas peças de enredo, a história se desenvolve em torno
de ação contínua e encadeada, com situações construídas a
partir da realidade, ou de uma série de episódios envolvendo
uma personagem central. Há casos em que uma ação
homogênea se articula com outras de maior complexidade,
com início, meio e fim. São exemplos algumas de suas
principais obras: Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira e O
velho da horta.
Do ponto de vista do gênero, a produção de
Gil Vicente é predominantemente satírica, calcada na
crítica comportamental, sem distinção de camada social.
Percebemos em sua obra a presença de quantidade expressiva
de religiosos de todas as hierarquias: o frade, o bispo, o
cardeal e até mesmo o papa, que protagonizam situações
das mais díspares. Tanto se entregam a amores proibidos
ou enlouquecem por causa de uma mulher, quanto vendem
indulgências. Vão do misticismo exagerado à depravação.
Há os que rezam mecanicamente e aqueles que solicitam
favores pessoais em nome de Deus (SARAIVA; LOPES,
1996).
Gil Vicente, como dissemos, viveu num período de
transição entre concepções opostas de mundo, quando a
renovação do pensamento com base na lógica e na ciência
encontrava a resistência da mentalidade medieval fortemente
influenciada pelo catolicismo, a qual explicava os fenômenos
pela intervenção de Deus. Foi uma época de descrédito nos
valores que vigoravam na Idade Média, enquanto os novos
eram aceitos com certa reserva. Diante disso, podemos analisar
as sátiras de Gil Vicente sob duas perspectivas. Num plano
mais próximo, enxergamos a sociedade portuguesa do século
XVI, com suas fraquezas, sua moralidade e suas contradições.
Em uma segunda camada, nos deparamos com o homem
enquanto espécie, que vivia em uma sociedade tutelada pela
Igreja e submetida às conveniências dos interesses políticos e
econômicos (MOISÉS, 1983).
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Unidade 1 . Aula
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Observe algumas das características do teatro de Gil
Vicente que mencionamos no fragmento do Auto da Lusitânia
(1531), em que aparecem como personagens Ninguém, Todo
o Mundo, Berzebu e Dinato:
ESTÃO EM CENA O DIABO, BERZEBU, E SEU AMIGO,
DINATO, ESTE PREPARADO PARA ESCREVER
Entra Todo Mundo, homem vestido
como rico mercador, e faz que
anda buscando alguma cousa que
se lhe perdeu. E logo após ele um
homem vestido como pobre. Este
se chama Ninguém, e diz:
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando,
por quão bom é porfiar.
Como hás nome, cavaleiro?
Eu hei nome Todo Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.
BERZEBU PARA DINATO
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
Esta é boa experiência!
escreve isto bem.
Que escreverei, companheiro?
Que Ninguém busca consciência
e Todo Mundo dinheiro.
NINGUÉM PARA TODO MUNDO
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
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E agora, que buscas lá?
Busco honra muito grande.
E eu virtude, que Deus mande
que tope co’ela já.
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BERZEBU PARA DINATO
Berzebu:
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
Outra adição nos acude:
Escreve aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,
e Ninguém busca virtude.
Buscas outro mor bem qu’esse?
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
E eu quem me reprendesse
em cada cousa que errasse.
BERZEBU PARA DINATO
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
Escreve mais.
Que tens sabido?
Que quer em extremo grado
Todo Mundo ser louvado, e Ninguém ser
repreendido.
NINGUÉM PARA TODO O MUNDO
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Busco a vida e quem ma dê.
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve lá outra sorte.
Que sorte?
Muito garrida:
Todo Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
TODO MUNDO PARA NINGUÉM
Todo Mundo:
Ninguém:
E mais queria o Paraíso,
Semmo ninguém estorvar.
E eu ponho-me a pagar
quanto devo pera isso.
BERZEBU PARA DINATO
Escreve com muito aviso.
Que escreverei?
Escreve
que Todo Mundo quer Paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
TODO MUNDO PARA NINGUÉM
Todo Mundo:
Ninguém:
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Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
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BERZEBU PARA DINATO
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!
Quê?
Que Todo Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
Que mais buscas?
Lisonjar.
Eu sou todo desengano.
Unidade 1 . Aula
Ninguém:
Todo Mundo:
Ninguém:
3
NINGUÉM PARA TODO MUNDO
BERZEBU PARA DINATO
Berzebu:
Dinato:
Berzebu:
Escreve, ande lá mano!
Que me mandas assentar?
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
Fonte: portaldoprofessor.mec.gov.br. Acesso em abr. 2011.
A peça tem caráter satírico, como a maioria das
obras de Gil Vicente, que escrevia em verso. O diálogo
entre Todo Mundo e Ninguém é escutado por Berzebu e
Dinado, que anotam o que é dito para informar a Lúcifer.
Segundo Massaud Moisés (1983), a cena apresenta unidade
e autonomia, pois tem significado próprio e não sofre
prejuízo quando isolada do restante do texto. É evidente o
caráter alegórico, isto é, representa algo com o propósito de
remeter a questões morais dentro de situações que jogam com
sentidos duplos e figurados.
Dessa forma, os interlocutores não devem ser vistos
como seres concretos, mas tomados como símbolos de
pessoas vivas ou das inclinações humanas, daí a permanência
e a atualidade da obra, porque trata de problemas
relacionados à ganância, ao oportunismo, à falta de virtudes.
Por isso o texto apresenta uma primeira superfície em que
encontramos Portugal e a época em que Gil Vicente viveu,
e outra em que cabe o homem de qualquer tempo, com
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intenções moralizantes.
Esse fragmento do Auto da Lusitânia ainda nos
permite identificar outros elementos da realidade social
e econômica da época de Gil Vicente. Todo Mundo é um
homem rico e é mercador, ou seja, tudo indica que sua
fortuna foi acumulada com ganhos obtidos com o comércio.
Como vimos, o segmento dos comerciantes exerceu forte
influência no controle do poder político em Portugal
por aproximadamente duzentos anos e se empenhou na
realização das viagens marítimas e nas conquistas territoriais
que ocorriam naquele momento. Como homem afortunado,
Todo Mundo está identificado com o segmento que apoiava
as decisões do rei, permitindo que pensemos nos interesses
nem sempre declarados que moveram as chamadas grandes
descobertas.
É importante destacar que, apesar de criticar toda a
sociedade, Gil Vicente poupou de sua mordacidade a família
real, provavelmente porque dependia dela economicamente.
Também chama a atenção o fato de não questionar as
instituições, dirigindo-se sempre contra os indivíduos,
como exemplificam as sátiras envolvendo o clero, nas quais
não observamos qualquer indagação às verdades da fé cristã
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Antes, pelo
contrário, sua visão de mundo é teocêntrica, assim como se
opunha às mudanças em curso na época, temeroso de que elas
colocassem em risco a integridade do povo português. Daí o
moralismo de seus autos na crítica à corrupção, ao adultério,
à ambição.
As peças de Gil Vicente podem ser divididas, de acordo
com certas particularidades que apresentam (SARAIVA;
LOPES, 1996). Os autos pastoris são farsas de assunto
campestre, enquanto que farsas como Inês Pereira e os autos
cavalheirescos formam o teatro de enredo. Do ponto de vista
da estrutura cênica existe a farsa, com episódio simples de
um caso ou um tipo identificado por características morais
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ou sociais, como em Quem tem farelos?; o auto de enredo,
como é o caso de Inês Pereira; e o auto alegórico, que pode ser
religioso, como o Auto da barca do inferno, ou profano como
Frágua do amor. Das três categorias, a mais comum é a do auto
alegórico.
Em síntese, podemos apresentar o seguinte esquema,
Gênero teatral
Assunto
autos pastoris
monólogos ou diálogos de pastores
autos de moralidade
temática inspirada na Bíblia
autos cavalheirescos
episódios sentimentais ao gosto da
corte
farsas
flagrante da vida de uma pessoa ou
sucessão de quadros cômicos
alegoria
temas profanos, envolvendo cenas de
farsas, romance e canções
Unidade 1 . Aula
que visa apenas a facilitar a compreensão da obra de Gil
Vicente em sua multiplicidade de faces. A divisão que
estabelecemos parte de uma proposta definida por José
António Saraiva e Oscar Lopes (1996):
Em relação às características formais, as peças de Gil
Vicente juntam elementos cômicos com elementos sérios sem
nenhuma restrição, colocando no palco indivíduos de classes
sociais distintas, representadas por meio de gestos, pela
vestimenta, por instrumentos de trabalho e, principalmente,
pela linguagem. As personagens se apresentam como
generalizações e estereótipos, indicados por uma categoria
profissional ou uma classe social, ou podem ser um grupo
de pessoas identificadas pelo seu tipo psicológico. Existem
as personagens alegóricas que aparecem como deuses, anjos,
demônios, virtudes, a Igreja, a fama, as estações do ano, os
planetas. Vimos em Auto da Lusitânia que Todo Mundo e
Ninguém representam somente a ideia que seus nomes
sugerem, porque tanto são nomes próprios quanto pronomes
indefinidos.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
ATIVIDADES
AT
A
TIV
VI
ATIVIDADES
1. Pode-se dizer que, no excerto a seguir , encontramos
elementos que definem o caráter humanista da prosa de
Fernão Lopes? Explique:
Figura 1.3.9 - Assinatura autógrafa
de Fernão Lopes. Torre do Tombo.
Fonte: http://cvc.instituto-camoes.
pt/literatura/autflopes3.gif
“Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou
contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que
deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da
nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos
grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens
e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos
cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas
vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não
podemos da conteúda em esta obra”.
Fonte: Crónica de D. João I, Prólogo.
Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/fernaolopes.htm.
Acesso em mar. 2010.
2. Acesse o site “Domínio Público” e faça dowload
de O Auto da Índia e Farsa de Inês Pereira. Após a
leitura dessas obras de Gil Vicente, você concorda que
podemos afirmar, sobre o teatro vicentino, que se trata
de uma expressão artística popular, marcada por forte
crítica social, alicerçada sobre o humor e a ironia? Para
responder, siga os seguintes passos de análise:
a. aestabeleça qual é o tema central de cada um desses
textos (do que tratam?);
b. descreva os principais elementos da composição
formal das obras: tipos de personagens, de cenários (a
ambientação), a dimensão temporal (o tempo em que
se passam as ações);
c. por fim, conclua: por que podemos considerar tais
obras vicentinas como significativas expressões do
Humanismo português?
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O Humanismo
RESUMINDO
RESUMINDO
RE
ESU
Unidade 1 . Aula
3
Nesta aula, conhecemos um pouco da obra de Fernão
Lopes e de Gil Vicente, nomes representativos do Humanismo
em Portugal. Esse período marcou a transição dos valores
medievais para os valores da modernidade. Nas crônicas
de Fernão Lopes, percebemos a humanização dos reis, em
narrativas que buscam unir a tentativa do autor em garantir a
objetividade da história, com a utilização de recursos literários
capazes de manter o interesse do leitor. No caso de Gil Vicente,
vimos que ele foi o fundador do teatro em língua portuguesa
e um dos grandes renovadores do teatro moderno. Suas peças
retratam as contradições do período, pois nelas encontramos
sinais da mentalidade medieval de orientação teocêntrica, em
processo de enfraquecimento, e prenúncios da concepção de
mundo que entrava em vigor, colocando o homem no centro de
todas as coisas, com base na lógica, na razão e nas descobertas
científicas. Num outro plano, vislumbramos mais pontos de
conexão entre sua obra e a realidade social, cultural e política
do Humanismo, porque suas peças nos remetem à sociedade
portuguesa do século XVI e suas mazelas, suas relações de
poder, seus princípios morais e éticos.
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
R
RE
E
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria
Aparecida. História social da literatura portuguesa. 3. ed.
São Paulo: Ática, 1990.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 27. ed. revista
e aumentada. São Paulo: Cultrix, 1992.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
______. A literatura portuguesa através de textos. 13. ed.
São Paulo: Cultrix, 1983.
SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da literatura
portuguesa. Porto: Porto, 1996.
______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva,
1993.
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9.
ed. Europa-América: Lisboa, 1984.
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Suas anotações
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1ª
unidade
AULA 4
O RENASCIMENTO
OBJETIVOS
Identificar os propósitos estéticos do Renascimento,
reconhecendo os aspectos mais importantes do contexto
histórico-cultural português no início da Idade Moderna, com
destaque para o estudo sobre a obra de Luís de Camões.
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O Renascimento
1 INTRODUÇÃO
Unidade 1 . Aula
4
As novelas de cavalaria e as cantigas, as primeiras
manifestações literárias de Portugal, articulam-se com a
concepção de mundo da Idade Média e refletem a época de
lutas e conquistas em nome da fixação de um território, do
catolicismo e por relações econômicas de submissão e fidelidade
à nobreza. Assim, nós as identificamos como o correspondente
literário do ideal que orientou as Cruzadas e, mais tarde, a vida
reclusa do ambiente dos castelos. O teatro de Gil Vicente surgiu
em seguida, no momento de transição entre a Idade Média e o
Renascimento, caracterizado pela oposição entre o pensamento
teocêntrico, profundamente vinculado à religião, e a concepção
de mundo em que o homem ocupa papel central, com base
na lógica e na razão. O espírito humanista do Renascimento,
aberto ao pensamento lógico, enfraqueceu os poderes da Igreja e
estimulou grandes avanços tecnológicos, inaugurando uma fase
de transformações profundas em todas as áreas, de ampliação
de fronteiras geográficas e de conhecimento. Essas mudanças se
refletiram na criação literária, introduzindo assuntos e ambientes
novos e, sobretudo, levando os escritores a encarar o mundo
sob outra perspectiva. A partir de agora, conheceremos Luís de
Camões, a maior expressão literária do Renascimento e um dos
maiores nomes da literatura em língua portuguesa.
2 O RENASCIMENTO EM PORTUGAL
No final do século XV, começaram a se espalhar por
outros países europeus as transformações culturais que
vinham ocorrendo na Itália há cerca de cem anos, com o
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
aprofundamento das mudanças políticas e econômicas, em
decorrência da crescente aceitação de novos ideais. Até então
vigorara a concepção de mundo teocêntrica e a estrutura do
feudalismo, em que a vida estava orientada pela vigilância
da Igreja e pelas relações de poder, nas quais a maioria dos
indivíduos se sujeitava às obrigações de servir aos reis. As
mudanças se fizeram perceber em todos os campos, com
o desenvolvimento de atividades até então inexpressivas e
com outras adquirindo novas feições.
Os artesãos de certos ramos passaram a trabalhar nos
moldes próximos da indústria que conhecemos, com muitos
deles prestando serviços a um mesmo detentor de capital. Na
agricultura, iniciou-se a produção destinada ao mercado de
consumo, incrementando as atividades comerciais e a circulação
monetária, trazendo consigo a necessidade de procurar
bens e produtos em outros lugares. A área da tecnologia
experimentou um surto de invenções e avanços, muitos deles
favorecendo as navegações cada vez mais indispensáveis devido
à procura crescente de mercadorias. A criação de instrumentos
e o incremento na construção de embarcações aumentaram a
segurança das viagens marítimas, permitindo que se tornassem
mais longas. A criação de rotas para a Índia e a conquista das
Américas se situam dentro desse contexto de inovações e da
preocupação em atender necessidades de bens e produtos
antes inexistentes (SARAIVA; LOPES, 1996).
Em alguns países, as transformações econômicas e
políticas também se reproduziram no âmbito da cultura,
com repercussões marcantes nas artes. Em Portugal,
no entanto, o Renascimento se caracterizou mais pela
Figura 1.4.1 - Grandes navegações.
Fonte: http://s.wordpress.com/imgpr
ess?fit=1000,1000&url=http%3A%2
F%2Fprofessorwalter.files.wordpress.
com%2F2010%2F02%2Fnavegacoes.
jpg
100
introdução de novas perspectivas de organização social,
com forte interferência no sistema produtivo e na circulação
de bens, a partir do crescimento das atividades de comércio.
As viagens intercontinentais permitiram o encontro com
outras civilizações, propiciando o contato com culturas
desconhecidas pelos europeus e a importação de objetos
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O Renascimento
saiba mais
De forma sintética, as principais composições de inspiração clássica foram:
écloga:
composição
geral-
mente dialogada, em que o
poeta idealiza assuntos sobre
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990).
Com relação à literatura, o marco referencial
para o Renascimento em Portugal foi o retorno de Sá
de Miranda (1481 ou 1485-1558) da Itália, onde fora
estudar e terminou conhecendo as novidades estéticas.
Em 1527, depois de ausente seis anos, Sá
de Miranda regressa da Itália, onde contatara com
estudiosos peninsulares impregnados das novas ideias,
levando-as para Portugal. [...] Estando o solo preparado
a vida no campo. Suas perso-
desde há muito tempo, demorou pouco para o empenho
de Sá de Miranda alcançar êxito em atingir os confrades
com as novidades literárias de origem italiana (MOISÉS,
1992, p. 50).
acontecimentos grandiosos),
pastoris), pescadores (éclogas pisctórias) ou caçadores
(éclogas venatórias);
elegia: poema de fundo melancólico, que fala dos sentimentos tristes ou é inspirada
neles;
ode:
composição
pequena,
de caráter erudito, com elevação do pensamento, sobre vários assuntos. As odes
podem ser classificadas em
pendáricas (cantam heróis ou
anacreônicas (cantam o amor
e a beleza) e satíricas (celebram assuntos morais e/ou
filosóficos);
epístola:
composição
em
Na viagem, Sá de Miranda viu de perto uma
realidade cultural em estágio ainda não alcançado pelos
portugueses e conviveu com importantes escritores
daquele tempo. Quando retornou, as novidades que
levou para Portugal renovaram a literatura lusitana, pois
foi o responsável pela introdução da ode, do soneto, da
que o autor expõe suas ideias
écloga, da elegia, da epístola, entre outros gêneros.
A principal característica do Renascimento
ta, de longas estrofes, ver-
foi a valorização das culturas grega e latina, tomandoas como modelos por serem, segundo os conceitos da
época, exemplos da perfeição. Daí o surgimento de uma
concepção de arte com base na imitação, porém:
4
nagens são pastores (éclogas
Unidade 1 . Aula
e de materiais que favoreceram o surgimento de
novas formas de expressão artística. Parte do impulso
criativo que isso provocou foi asfixiado pela Inquisição
que, articulada com os reis e seus interesses políticos,
recebeu o apoio da recém-fundada Companhia de Jesus
para combater aquilo que julgava ameaçar a fé católica
e opiniões, em estilo familiar.
Pode ser doutrinária, amorosa ou satírica. É feita à maneira de uma carta;
epitalâmio: composição em
honra
aos
recém
casados,
própria para ser recitada em
bodas;
canção: composição erudisos decassílabos, por vezes
entremeados com outros de
seis sílabas (heroicos) e de
caráter amoroso;
epigrama: composição de 2
ou 3 versos com pensamentos engenhosos.
Fonte: http://www.iportais.com/
classicismo.html. Acesso em
nov. 2010.
Imitar não significava copiar, mas, sim,
a procura de criar obras de arte segundo as fórmulas, as medidas, empregadas pelos antigos. Daí a observância de
regras, estabelecidas como verdadeiros
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suportes ou pressupostos da obra literária:
os escritores não tinham mais que observá-las, acrescentando-lhes a força do talento pessoal (MOISÉS, 1992, p. 51).
Figura 1.4.2 - Sá de MIranda.
Fonte: wikipedia/commons/4/48/
Francisco_de_Sá_de_Miranda.
jpg?uselang=pt-br
As novas maneiras de expressão literária foram
absorvidas com rapidez em Portugal, porque encontraram
indivíduos interessados pela renovação, em especial na poesia.
Isso explica o aparecimento de número significativo de poetas,
dentre os quais Luís de Camões, e que tenha sido a poesia a
principal forma de expressão literária do período (MOISÉS,
1992). Embora a importância de Sá de Miranda e de outros,
Camões foi o grande nome desse período, pelo talento e
porque soube executar com brilho as propostas estéticas
de seu tempo. Hábil e inteligente, deu vigor à imitação dos
antigos, acrescentando sua visão de mundo, à luz de uma
sensibilidade peculiar, demonstrando consciência de que o
modelo, por melhor que seja, não vale por si, o que é também
demonstração da consciência de seu papel de artista.
3 A POESIA LÍRICA DE LUÍS DE CAMÕES
A biografia de Luís Vaz de Camões, filho de uma
família com raízes nobres, mas empobrecida, é tão fascinante
como sua obra, porque nela encontramos aventuras ousadas,
desregramentos, vivências e nuances misteriosas que
aguçariam a curiosidade de bisbilhoteiros de qualquer época.
As obscuridades principiam pela data de seu nascimento,
pois não há certeza se foi em 1524 ou em 1525. Ignora-se
a sua formação, assim como falta comprovação de outras
circunstâncias de sua vida, mas sabe-se que experimentou
situações díspares ao mesmo tempo, como a intimidade
Figura 1.4.3 - Luís Vaz de Camões.
Fonte: commons.wikimedia.
org/wiki/File:Lu%C3%ADs_
de_Cam%C3%B5es_por_
Fran%C3%A7ois_G%C3%A9rard.jpg
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da aristocracia e o convívio com prostitutas e jovens bemnascidos, despreocupados com a vida.
Na companhia deles, envolveu-se em brigas e
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desordens, o que resultou na condenação à prisão. Em 1552,
aceitou a liberdade em troca do compromisso de partir
para a Índia, onde passou por vários incidentes, que foram
do naufrágio do navio em que estava à perda da visão em
um olho. Depois de longo período, retornou a Portugal,
trazendo na bagagem Os Lusíadas, que publicou em 1572. O
Unidade 1 . Aula
4
prestígio que o poema épico alcançou fez com que passasse
a receber uma recompensa do rei, na forma de uma espécie
de aposentadoria que, além de modesta, era paga com atraso.
Apesar de se tornar conhecido, morreu pobre em 1589 ou
1590. Seu enterro foi pago por uma instituição beneficente
(SARAIVA; LOPES, 1996).
O mais importante é entendermos que,
independentemente das aventuras que protagonizou e das
situações incomuns que vivenciou, sua fama se justifica pelo
que escreveu. A grandiosidade de Os Lusíadas, principal
obra literária do Renascimento, é mais do que suficiente
para colocá-lo entre os grandes nomes da literatura de
todos os tempos. Há outros motivos que comprovam
sua importância, a começar pela poesia lírica que inspirou
seguidores nos séculos seguintes.
O estudo da lírica de Camões nos confronta com
um problema porque ele morreu sem ter publicado sua
obra do gênero, assim, apesar da divulgação logo após
seu falecimento, “eram poesias compiladas de vários
manuscritos que estavam nas mãos de colecionadores”
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 38). O
fato é relevante porque diz respeito à forma como esses
textos foram fixados. Em outras palavras, é impossível
definir se os poemas que conhecemos são fiéis àquilo que
Camões escreveu, pois não foram revisados por ele depois
de impressos. De qualquer maneira, podemos estudá-los e
verificar como essa produção se caracteriza.
A primeira constatação é de que a temática amorosa
predomina. Muitos críticos relacionam esse fato a episódios
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da vida do poeta e citam como exemplo algumas de suas
poesias mais conhecidas. É o caso do soneto “Alma minha
gentil que te partiste”, associado ao caso amoroso com uma
moça de nome Dinamene, que aparece também em outras
composições. Em “Junto dum seco, duro, estéril monte”
se encontram alusões às experiências de Camões na guerra,
enquanto outras mencionam suas viagens ao Oriente. Tais
alusões, por si, são insuficientes para caracterizar que a
poesia camoniana possui fortes traços autobiográficos.
O modo como Camões trata literariamente o amor
deixa transparecer a concepção do conceito platônico,
presente na tradição cristã e revigorado por Petrarca. Em
versos conhecidos como “Transforma-se o amador na cousa
amada” é explícita a identificação do sujeito com o objeto
do amor. Em “Pede-me o desejo, dama, que vos veja / Não
entende o que pede; está enganado”, ocorre a anulação do
desejo físico. O amor não se consuma por causa da ausência
da mulher amada, provocando um conflito angustiante.
O amor é motivo de debates entre sensações, desejos,
realidades e estados que se opõem: a vida e a morte, a água e
o fogo, a esperança e o desengano.
Para António José Saraiva e Óscar Lopes existem
dois tipos de tensões que aparecem constantemente na
poesia lírica de Luís de Camões:
a. O amor: como dissemos, é representado dentro de uma
concepção platônica, de acordo com a mentalidade cristã,
a partir do pensamento de Santo Agostinho e São Tomás
de Aquino. A mulher é assunto recorrente e aparece
como um ser ambíguo, pois está revestida de propriedades
sobrenaturais, semelhantes às dos anjos, que lhes realçam
os dotes físicos, sendo inatingível e desejável ao mesmo
tempo (SARAIVA; LOPES, 1996). A figura feminina
assim representada contrasta o ideal de beleza física e o
ideal da beleza como espelho do interior, numa oposição
do mundo físico com o mundo da sensibilidade. Esses
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antagonismos são característicos do período renascentista
e ainda se fazem perceber na abordagem de temas mais
abstratos como a passagem inexorável do tempo, a
instabilidade da vida. Por vezes, a descrição da mulher
torna sua figura inapreensível, com destaque a certas
particularidades físicas que não permitem a fixação de uma
para conhecer
Aurélio Agostinho (Santo Agostinho) (354-430)
foi um dos mais importantes pensadores do catolicismo, escrevendo vários livros de interesse filosófico.
Do ponto de vista literário,
imagem:
Ondados fios de ouro reluzente
Tomás de Aquino (1225-
Que, agora da mão bela recolhidos,
1274) foi o grande filósofo
Agora sobre as rosas estendidos,
da
Fazeis que a sua beleza se acrescente;
e filosofia cristã da Idade
Olhos, que vos moveis tão docemente,
escolástica,
doutrina
Média, que procurou combinar a racionalidade de
Platão e Aristóteles com
Em mil divinos raios encendidos,
a fé católica e os ensina-
Se de cá me levais alma e sentidos,
mentos bíblicos.
Unidade 1 . Aula
As confissões por se constituir em autobiografia.
4
tem relevância a sua obra
Que fora, se de vós não fora ausente?
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece,
Se na alma em doces ecos não o ouvisse!...
Se, imaginando só tanta beleza,
De si em nova glória a alma se esquece,
Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse…
(CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br)
No que diz respeito à mulher e ao amor, observamos
que aparecem divinizados, aspecto que aproxima a poesia
lírica de Camões das cantigas medievais. Em seus versos,
a beleza da amada suscita sensualidade e desperta desejos
físicos, imediatamente reprimidos por força das convenções
sociais que oprimem as manifestações decorrentes do
amor. Cria-se, assim, uma situação de tensão que provoca
o sofrimento, dando origem à dor e à amargura, gerando
um conflito insolúvel entre a sensibilidade, o sentimento e a
razão. O erotismo se mescla com as frustrações pelos desejos
não realizados, provocando angústia que se manifesta pelo
sofrimento e pela saudade.
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b. O desconcerto do mundo: é constante na poesia de Camões
a representação do mundo como um desconcerto, em
consequência da irracionalidade e das contradições do
homem. É como se houvesse um desajuste de normas e
princípios de conduta com a realidade, num confronto
“entre a razão e o fato, entre as necessidades vivas e a
sua satisfação” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 322). Para
os autores, “O desconcerto do mundo reside na própria
relação entre ele, como pessoa paradigmática, e um
destino com que ele se encontra e que, ao mesmo tempo,
lhe é opaco” (ibidem, p. 323). Estas manifestações de
inquietação fogem ao conceito do equilíbrio apregoado
pelos renascentistas, pois expressa a visão de um mundo
contraditório, fragmentado e problemático e tão pouco
querem expressar as contradições da época, porque se
explicam por conceitos vagos como Verdade, Amor,
Razão, Merecimento. Podemos observar isso nos versos
seguintes:
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o Regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte;
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança o humano entendimento.
Doutos varões darão razões subidas;
Mas são experiências mais provadas,
E por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser cridas
E cousas cridas há sem ser passadas...
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
(CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br)
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O Renascimento
Percebemos que a falta de plenitude está além das
aflições características do período em que a noção de mundo
físico era motivo de perturbação, frente ao rompimento de
fronteiras geográficas antes desconhecidas e envolvidas por
fantasias e superstições. Existe na poesia lírica de Camões
o ideal do antagonismo entre o mundo e os sentimentos
Unidade 1 . Aula
4
humanos mais íntimos. Por causa disso, o sofrimento de
experiências vivenciadas pelo “eu” se opõe às aspirações e aos
anseios de sua interioridade. Podemos dizer que, no lirismo
camoniano, a forma e o conteúdo do mundo se confrontam
com a existência humana, num embate de dilaceramentos.
O ideal de beleza, amor puro, razão, verdade e justiça vive
em permanente conflito com a realidade sofrida e amarga.
Desse contraste nasce o sentimento lírico, por vezes cético e
pessimista, por vezes revestido de esperança, com perspectivas
de plenitude.
A poesia lírica de Camões, com destaque para
os sonetos, representa aquilo que mais significativo ele
produziu, porque estão dentro dos padrões literários de
seu tempo. Obedecem ao princípio da imitação, no sentido
de tomar um modelo e acrescentar-lhe a visão particular de
mundo “com toda a liberdade de seu gênio poético, e não
raro suplantou os mestres” (MOISÉS, 1983, p. 72). Suas
qualidades de sonetista podem ser comprovadas a seguir:
Busque Amor novas artes, novo engenho.
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
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Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei por quê.
(CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br)
No legado que deixou, identificamos a síntese da
época, como se concentrasse na sua produção todas as
tendências, fazendo sozinho aquilo que realizaram os
demais escritores portugueses do período. Afora isso, ainda
expressa os ideais e valores que orientaram o pensamento
do homem quinhentista e que elevaram Portugal ao seu
apogeu, dominando os mares e conquistando territórios
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN 1990). Camões
é o grande autor da literatura em língua portuguesa
porque produziu uma obra representativa de uma época
e, principalmente, porque vem dialogando com leitores
de todos os tempos, chegando aos dias de hoje com toda
vitalidade.
4 A POESIA ÉPICA DE CAMÕES
A ideia de realizar um poema heroico sobre as grandes
navegações e as conquistas territoriais desafiava a imaginação
desde o século XV, dentro e fora de Portugal. Poetas italianos,
espanhóis e portugueses sugeriram a composição de poemas
cantando os feitos dos navegadores, outros se ofereceram,
existindo ainda quem exaltou os descobrimentos em textos
dedicados a reis (SARAIVA; LOPES, 1996). O interesse
que o assunto despertava se justifica pela reação de espanto
diante da grandiosidade das viagens e devido à valorização
da cultura grega pelo homem renascentista, como falamos
anteriormente.
Você já sabe que a epopeia é herança da Grécia e
também uma das formas literárias mais nobres. Assim, se
reivindicava a representação literária das viagens portuguesas,
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porque serviam para comparações com as aventuras de Ulisses
em Odisseia, da mesma forma as lutas do passado pelo território
e as conquistas recentes se equiparavam aos feitos de gregos
e troianos descritos também em Ilíada. Compreensível, pois,
o desejo de elevar personalidades históricas como Afonso
Henriques e Vasco da Gama à condição de grandes heróis, com
Unidade 1 . Aula
4
as feições de personagens da mitologia grega.
O aproveitamento literário da história de Portugal envolve,
necessariamente, as viagens marítimas. As primeiras foram
realizadas no início do século XV, com expedições a ilhas como
Canárias, Madeira, Açores (SARAIVA, 1984). Essas empreitadas,
entretanto, não se comparam com a aventura comandada por
Vasco da Gama e, depois, por Pedro Álvares Cabral, devido ao seu
grande significado político e econômico, daí sua importância para
a literatura:
A exaltação à história de Portugal implica
cantar a expansão marítima e as decorrentes
conquistas. Os antecedentes dessa expansão
são entusiasticamente apresentados. Mas são
os descobrimentos que propiciam o canto e
a imortalização dos heróis, porque com eles
surgiu um novo reino. Portugal foi o desbravador do caminho marítimo e sua contribuição para o desenvolvimento comercial
do mundo implicou o golpe definitivo contra
as forças do feudalismo (se bem que na terra
portuguesa não chegou a ser um golpe definitivo) (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 42).
Camões tomou por modelo os épicos de Homero,
Os argonautas, de Apolônio, e Eneida, de Virgílio. O último,
apesar da relevância como poema heroico latino, é fonte
secundária porque surgiu como imitação de Homero. Nesse
sentido, nós precisamos levar em consideração que existe uma
diferença marcante e insuperável entre as epopeias gregas e as
suas congêneres renascentistas. Na cultura grega do tempo
de Homero, acreditava-se na interferência direta dos deuses
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nas ações práticas do cotidiano, por isso os seres divinos
aparecem na literatura e em todas as manifestações artísticas
como forças vivas, conforme Abdala Júnior e Paschoalin
(1990).
saiba mais
Epopeia escrita por Apolônio, poeta do século III a. C., Os argonautas
tem enredo que se desenvolve a partir do retorno de Jasão a Iolcos, na
Tessália, situada ao nordeste da Grécia. O jovem príncipe regressa para
reivindicar o trono que Pétias usurpara de seu pai. Contrariado, Pétias
concorda com o pedido do sobrinho, exigindo em troca, que ele traga do
Cáucaso o Tosão de Ouro para ofertá-lo ao templo de Zeus. O tosão é a
lã dourada de um carneiro divino, que pertence ao rei Aetes, na distante
Cólquis. Jasão aceita o desafio e sai pela Grécia, convocando os homens
mais destemidos para acompanhá-lo na perigosa missão.
Diferente do que acontece com Ulisses, de Odisseia, que está longe da
sua pátria e precisa percorrer longo caminho e superar uma série de
obstáculos para retornar, em Os argonautas “a viagem é circular, porque
o grande ideal que a justifica, na consciência dos argonautas, é o do regresso. Por outro lado, à virtude bélica tradicional, Jasão contrapõe outro
valor: a retórica, instrumento capaz de encontrar mediações e de evitar,
mais do que resolver, os diversos conflitos. Na empresa de apoderar-se
do tosão de ouro, Jasão é ajudado por Medeia; e quando os dois celebram as bodas apressadas e constrangidas pela presença hostil dos Cólquidos, vivem uma situação emblemática e ontologicamente reflexiva:
“Nós, estirpe infeliz dos homens, não podemos entrar / na alegria com
pé seguro; sempre a dor amarga/ se instaura no meio dos momentos do
nosso prazer” (IV, 1165-1167).
Fonte:http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/123903.html.
nov. 2011.
Acesso
em
A Eneida é o épico escrito por Virgílio, poeta do século I a. C., em cumprimento à tarefa atribuída por Augusto, com o propósito de celebrar os
feitos de seu povo. Trata-se de uma epopeia nacional, composta para
engrandecer a origem e o crescimento do império romano e tem como
motivo a lenda da fundação de uma colônia no Lácio, por Enéas, após a
queda de Tróia. O poema representa a Itália como nação única e descreve a história romana como um todo contínuo, desde a fundação da
cidade até a expansão completa do império. A maneira adequada como
a grandiosidade do tema é tratada e o tom elevado realçam o talento do
autor. É, ao mesmo tempo, obra de tom mitológico e histórico, porque
recorre a lendas tradicionais para narrar as peripécias de Enéias e utiliza
acontecimentos objetivos como pretexto para exaltar Roma e Augusto.
Com tal procedimento, o poeta valoriza as realizações do imperador e os
feitos mais remotos do seu povo. Epopeia latina por excelência, Eneida
equipara-se à Ilíada e à Odisseia, os consagrados poemas de Homero.
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/viajantes4.htm
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O Renascimento
monoteísta viveram numa época de debates, conflitos de
motivação religiosa, em que, ao mesmo tempo em que o
homem começava a se libertar da mentalidade teocêntrica, a Igreja
criava a Inquisição para preservar seu controle sobre o destino da
sociedade, perseguindo e punindo quem afrontava seus princípios.
Precisamos também levar em consideração o fato de os poemas
gregos pertencerem à tradição oral e mencionarem acontecimentos
tomados por verídicos, há muito incorporados ao imaginário da
população.
A recuperação do gênero épico pelo Renascimento
se desenvolveu sob uma perspectiva de mundo radicalmente
transformada em relação à Grécia Antiga. Do ponto de vista
religioso, a crença era monoteísta, a Igreja se dividia e o
cristianismo vivia uma fase de contradições por causa da Reforma
Luterana e da Inquisição. Na economia, o mercantilismo se
instalava como norma das relações econômicas, em substituição
à ordem dominante no feudalismo, favorecendo as atividades
comerciais e a acumulação de riquezas, quer sejam monetárias,
quer sejam em bens equivalentes como metais preciosos.
Na vida cotidiana, o pensamento lógico e racional
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Volume 4
saiba mais
Reforma
Luterana.
No ano de 1517, insatisfeito com a situação
da Igreja Católica, o
padre alemão Martinho
Unidade 1 . Aula
nas lutas e se posicionando a favor deste ou daquele indivíduo,
empenhando-se intensamente para dar a vitória a seus adoradores.
Os homens, por sua vez, entregam-se à guerra e usam de todos os
atributos para combater e vencer os adversários, sejam eles humanos
ou divinos. Como recompensa pelas vitórias, adquirem proporções
sobre-humanas e podem ser premiados com a imortalidade.
Os renascentistas pertenceram a um mundo
completamente diferente e tiveram outras práticas religiosas.
Frutos da cultura de orientação judaico-cristã e de caráter
4
Devemos entender que os poemas de Homero se
apresentam como expressão da religiosidade, como celebração
e prescrição de ritos e culto aos deuses gregos. Assim fica mais
fácil compreender a intervenção das divindades no cotidiano
fazendo intrigas, brigando entre si, tendo sentimentos humanos
como o ciúme, a raiva, a inveja e, principalmente, participando
(Martin) Lutero escreveu suas críticas na forma de teses, visando à
‘reforma’ do catolicismo. Entre outras práticas, condenava a venda de indulgências e a
negociação de cargos.
Além disso, propunha
nova relação com os
fiéis, afirmando que o
indivíduo deveria obter
a salvação pela fé e não
por seus atos. Excomungado, fundou, com
apoio de seus seguidores, a Igreja Luterana.
Outras dissidências se
seguiram,
ampliando
o movimento de Reforma, ao qual a Igreja Católica respondeu
com a Contrarreforma.
Como uma das ações
contrarreformistas,
foi
criado
do
o
Tribunal
Santo Ofício, com plenos poderes para realizar a Inquisição e julgar
os que eram acusados
de heresia.
111
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
ganhava mais força, deixando ainda mais distante o espaço
para deuses e criaturas semidivinas. Assim, a presença da
mitologia, característica marcante do gênero épico, era
um recurso estético necessário, porém um desafio para a
criatividade dos poetas. Tarefa em que Luís de Camões se
saiu melhor do que qualquer outro de seu tempo.
4.1 Os Lusíadas
Em Os Lusíadas se sobressai a habilidade de um
poeta, cujas virtudes mais admiráveis foram a ousadia e a
disposição para o trabalho meticuloso que o ofício exige.
Com o brilho dos grandes talentos, Camões nos deixou um
modelo de tratamento artístico da palavra. Valorizando suas
possibilidades de sonoridade e ritmo, construiu o melhor
exemplo de revigoramento de um gênero literário que dera
suas melhores obras num passado distante (SARAIVA;
Figura 1.4.4 - Primeira edição de
Os Lusíadas, impressa em 1572 por
Antônio Gonçalves. Fonte: Biblioteca
Nacional de Portugal - http://purl.
pt/1/1/cam-3-p_JPG/cam-3-p_
JPG_24-C-W0140/cam-3-p_0007_I_
t24-C-W0140.jpg
LOPES, 1996).
Publicado em 1572, seu poema épico se transformou
na expressão da nacionalidade portuguesa e no maior
monumento literário de nossa língua. Por isso podemos
lê-lo sob duas perspectivas: como retrato da visão de
mundo do homem português renascentista ou como bela
e convincente descrição testemunhal do momento em que
Portugal vivia a sua fase mais gloriosa (ABDALA JÚNIOR;
PASCHOALIN, 1990).
Encontramos em Os Lusíadas a representação
das aspirações e dos ideais renascentistas, no sentido da
Figura 1.4.5 - Primeira estrofe do
primeiro canto de Os Lusíadas.
Fonte: http://purl.pt/1/1/P5.html
112
reabilitação de conceitos estéticos da antiguidade clássica,
ou seja, a imitação não como cópia, mas a criação de obras
segundo as fórmulas e padrões empregados pelos antigos.
Daí a observância de regras, estabelecidas como verdadeiros
suportes ou pressupostos da obra literária com os escritores
observando os modelos, acrescentando-lhes a força do
talento pessoal.
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Figura 1.4.7 - Vasco da Gama.
Fonte: http://commons.wikimedia.
org/wiki/File:Vasco_da_Gama__1838.png
Unidade 1 . Aula
4
O Renascimento
Figura 1.4.6 - Mapa da rota de Vasco da Gama. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/
File:Vasco_de_Gama_map-fr.svg
A grandeza de Camões está no fato de ter realizado
o desejo da época de recuperar a epopeia tradicional,
adequando-a ao tempo em que vivia encontrando maneira
de superar a artificialidade, o principal obstáculo para o
êxito de outras iniciativas:
Criações eruditas e artificiosas, fora de
tempo, os poemas renascentistas em que
se procurou ressuscitar a epopéia clássica
dentro dos cânones homéricos e virgilianos malograr-se [...]. Foi precisamente o
desiderato da ressurreição da epopéia clássica segundo o padrão homérico que Camões procurou satisfazer, levando a cabo
um objetivo característico dos escritores
humanistas (SARAIVA; LOPES, 1996, p.
327).
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A obra tem como eixo narrativo a expedição
comandada por Vasco da Gama, realizada entre 8 de julho de
1497 e 14 de maio de 1498, partindo de Portugal em direção
ao Oriente. Os navios partiram de Lisboa, contornaram a
costa da África até chegar a Calicute, na Índia (SARAIVA,
1984). Camões aproveitou o tema da viagem e construiu um
enredo que gira em torno de uma intriga entre os deuses
que se dividem, uns se posicionando contra e outros a favor
dos portugueses. A estratégia revela sua inventividade, pois
a viagem de Vasco da Gama ainda era recente para garantir
interesse épico, embora presente como tema em Odisseia e
Eneida:
[...] a viagem às Índias carecia de força dramática, como episódio histórico e motivação literária, para justificar por si só uma
epopeia de tão alto sentido e intenção.
Além de ser então muito recente para se
tornar mito (condição básica da epopeia),
faltava-lhe o porte heroico, isto é, faltavalhe instituir-se num cometimento que
transcendesse o plano humano e se aproximasse do divino (o herói clássico resultava
do consórcio entre um deus e uma mortal:
daí o seu caráter de semideus, e as façanhas
sobrenaturais que operava; seu lado humano se revelava numa imperfeição, como o
calcanhar de Aquiles). Só assim a viagem
poderia ser admitida com base na mão-deobra do povo português (MOISÉS, 1992,
p. 58-59).
A solução que Camões encontrou para os impasses
a sua pretensão de enaltecer os feitos de seus compatriotas
com um poema épico foi o deslocamento da ênfase
narrativa, fazendo com que situações secundárias passassem
a ocupar o primeiro plano e que outras, desnecessárias a
priori, incorporassem-se à narrativa. Podemos observar o
artifício em episódios como, a Ilha dos Amores, os Doze
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O Renascimento
de Inglaterra, Inês de Castro, o Gigante Adamastor, a
fala do Velho do Restelo (SARAIVA; LOPES, 1996). Os
momentos líricos se concentram nestas passagens, atingindo
proporções elevadas em algumas delas, como é o caso da que
envolve Inês de Castro. A estratégia, devidamente ajustada à
proposta de estruturação, é um dos tantos méritos do autor
Unidade 1 . Aula
4
e resultou na criação de momentos belos e vibrantes, citados
constantemente como representativos das qualidades do
autor.
Segundo a definição de Aristóteles, a epopeia se opõe
ao lirismo, por causa do caráter heroico, ou seja, porque a
tensão e a emoção devem ser provocadas pela descrição das
ações de guerra; porém na prática esta distinção se anula. Nos
épicos de Homero existem situações extremamente líricas,
como o reencontro entre Ulisses e Penélope; a diferença é
que a situação faz parte das ações ligadas ao herói, portanto
do enredo central. Na obra de Camões, devemos ver as
cenas amorosas sob a perspectiva de mundo do homem
renascentista, ou seja, de um momento de embate entre
o teocentrismo medieval e o antropocentrismo lógico e
racional.
Camões celebrava a conquistas dos mares pelos
portugueses, em outras palavras, apresenta-os como
representantes do homem renascentista, portanto do novo
homem, naquilo que havia de melhor e mais grandioso,
pois, graças ao conhecimento científico resultante da sua
capacidade de usar a razão, criava avanços tecnológicos e se
mostrava capaz de dominar a natureza. Se tais realizações
tinham um tanto de energia física, eram, antes de tudo, vitória
da disposição moral, cuja grandeza não se pode medir e que
se impunha diante de forças igualmente incomensuráveis,
até então jamais vencidas pela ação humana.
Podemos apontar outra peculiaridade de Os
Lusíadas que marca diferenças significativas em relação às
epopeias greco-romanas, nas quais Camões se inspirou. O
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protagonista das aventuras é Vasco da Gama, porém não é o
herói, porque sua viagem não resultou de iniciativa individual,
mas de realização coletiva da nação portuguesa. O navegador
deu materialidade à ousadia dos lusitanos, simbolizando o
povo e investido da função de porta-voz e propagador da fé
cristã (SARAIVA; LOPES, 1996). Aventurou-se por mares
desconhecidos para uma viagem em direção a lugares sobre os
quais pouco se sabia e fez isso em nome de Portugal. Se lermos
a obra por esta perspectiva, percebemos sua universalidade,
isto é, enxergamos nela a representação de um feito incomum
da humanidade alcançado pelas mãos dos portugueses.
4.1.2 A estrutura da epopeia camoniana
O poema se divide em dez partes, chamadas cantos,
cada uma apresentando número variável de estrofes. O canto
décimo é o mais longo de todos, com mais de 150 estrofes. Ao
todo são 1102 estrofes ou estâncias, que somam 8816 versos. As
estâncias se organizam em oitava-rima, ou seja, em oito versos
com a mesma estrutura em todas as estrofes, sendo cruzadas
nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos, com
o seguinte esquema: ABABABCC. Os versos são decassílabos,
na maioria heroicos, ou seja, acentuados na sexta e na décima
sílaba métrica. Há cesuras alternadas na segunda, na terceira,
na quarta, na sexta e na décima sílaba.
Estrofe de oito versos com seu esquema de rima
Vereis amor da pátria, não movido
116
A
De prêmio vil, mas alto e quase eterno:
B
Que não é prêmio vil ser conhecido
A
Por um pregão do ninho meu paterno.
B
Ouvi: vereis o nome engrandecido
A
Daqueles de quem sois senhor superno,
B
E julgareis qual é mais excelente,
C
Se ser do mundo Rei, se de til gente
C
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O Renascimento
As sílabas métricas
A contagem vai até a última sílaba tônica; ocorre a junção de
vogais que se atraem pela sonoridade:
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Ve/reis/ a/mor/ da/ pá/tria,/ não/ mo/vi/do
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Unidade 1 . Aula
4
De/ prê/mio/ vil,/ mas/ al/to e/ qua/se e/ ter/ no:
Cesura: pausa no interior de um verso, no geral longo,
que não deve ser confundida com a pausa de leitura, que é
variável de leitor para leitor. Pode ocorrer:

no princípio: “Cantei; //mas se me alguém pergunta
quando”, Camões

no meio: “é ferida que dói, // e não se sente”,
Camões)

ou perto do fim do verso: “enquanto não quiserdes
vós, // Senhora”, Camões
A obra se divide em três partes. A introdução (18
primeiras estâncias), subdividida em proposição (estâncias
1-3) e invocação (estâncias 4-5). Na proposição, o poeta
apresenta sua disposição para cantar as façanhas das “armas
e os barões assinalados”, isto é, os feitos de guerra de
homens ilustres de Portugal. Na invocação, pede inspiração
e proteção às Tágides, musas do rio Tejo. Na dedicatória
(estâncias 6-18), oferece o poema a Dom Sebastião, rei de
Portugal, que pagou a publicação da obra. A segunda parte
é a narração (do canto I, estância 19, ao canto X, estância
144). A terceira parte é o epílogo (canto X, estâncias 145
a 156).
A ação do poema começa na estância 19, em media res,
ou seja, no meio da história, com a frota de Vasco da Gama
navegando em pleno Oceano Índico. Enquanto a viagem
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transcorre pela vastidão do mar, os deuses se reúnem
no Olimpo, a fim de deliberar sobre o destino das naus
portuguesas. Júpiter se posiciona a favor dos viajantes e,
com a adesão de Vênus, vence a contrariedade de Baco.
Este, insatisfeito com a decisão, passa a criar dificuldades
para conhecer
para evitar que os portugueses alcancem seu objetivo.
Quando chegam a Moçambique, Vasco da Gama
Figura 1.4.8 - Dom Sebastião
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Rei_D._Sebasti%C3%A3o.jpg
Dom Sebastião (1544-1578),
morto
durante
invasão
dos
portugueses ao Marrocos, em
circunstâncias
pouco
claras.
O fato de ser querido pelos
portugueses e as dúvidas em
torno da maneira como morreu deram origem ao chamado
Sebastianismo, crença de que
voltaria como uma espécie de
messias para conduzir Portugal
a um novo período de glórias.
Fonte:
Portugal
Dicionário
Histórico, disponível em http://
www.arqnet.pt/dicionario.
saiba mais
Júpiter era o mais poderoso
dos deuses da mitologia romana, equivalente a Zeus para
os gregos. Vênus, a deusa do
amor e filha do Céu e da Terra,
na mitologia grega chama-se
Afrodite. Marte, deus da guerra, o mesmo que Ares para os
gregos. Baco, deus da festa e
do prazer, filho de Júpiter, considerado pelos romanos como
um amante da paz e promotor
da civilização, é Dionísio, na
mitologia grega. E na epopeia
camoniana é o principal inimigo
dos portugueses por não querer que eles ultrapassem seus
domínios no Oriente.
118
desembarca e se depara com uma cilada armada por Baco,
da qual consegue escapar. Em Mombaça, Vênus intervém
e evita que caiam em outra armadilha. Indignada, a
deusa reclama a Júpiter a quem pede proteção aos
navegantes, no que foi atendida, porém não pôde evitar
que encontrassem novos perigos pela frente. Nesta nova
etapa, Vasco da Gama e sua frota chegam a Melinde,
sendo recebidos amistosamente.
Atendendo pedido do rei, Gama passa a contar
a história de Portugal, investindo-se na condição de
segundo narrador. O viajante começa pela descrição da
Europa para, em seguida, falar sobre seu país, iniciando
seu relato citando Luso, fundador da Lusitânia. Fala
sobre figuras e acontecimentos históricos: D. Henrique
de Borgonha, Egas Moniz, Inês de Castro, as batalhas
de Ourique, do Salado e de Aljubarrota, a tomada de
Ceuta. Ainda se refere aos preparativos da viagem, à
fala do Velho do Restelo, à partida e a toda a primeira
parte da jornada, com destaque para as passagens em
que descreve o fogo de Santelmo, a tromba marinha, a
aventura de Veloso e o Gigante Adamastor.
Depois de partirem de Melinde, Baco desce ao
fundo do mar com o propósito de convencer os deuses
marinhos a se levantarem contra a frota portuguesa.
Éolo, deus dos ventos, decide soltá-los para que
impeçam a navegação, mas Vênus envia as ninfas
amorosas para abrandar seu furor. Passada a tempestade,
Vasco da Gama e seus comandados chegam a Calicute,
onde são recepcionados pelo Samorim. Enquanto isso,
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O Renascimento
Baco faz seu último esforço para deter os lusitanos, sendo
malsucedido novamente.
No regresso, os navegantes passam pela Ilha dos
Amores e lá são favorecidos pelas ninfas, em reconhecimento
ao ato heroico que praticaram. Tétis oferece-lhes um
banquete e, após, conduz Vasco da Gama ao monte mais alto
da ilha para desvendar-lhe a Máquina do Mundo e o futuro
Unidade 1 . Aula
4
glorioso dos portugueses. Partem em seguida e, finalmente,
chegam a Portugal.
Alguns dos episódios de Os Lusíadas apresentam
significado simbólico, como é o caso do sonho de D.
Manuel, no canto IV, que aparece como representação da
política de expansão territorial dos portugueses. O Velho
do Restelo simboliza a política agrária, ou seja, aqueles que
se opunham às navegações, em outras palavras, aos interesses
econômicos dos comerciantes. O Gigante Adamastor é a
força da natureza e seus perigos como obstáculos para os
navegadores e, por extensão, para os portugueses e para a
humanidade. É importante observarmos que aparece no
canto V, exatamente na metade do poema. No canto VI,
consta o episódio dos Doze da Inglaterra, numa referência
ao cavalheirismo medieval português. A Ilha dos Amores
corresponde aos prêmios e honrarias a que os grandes heróis
têm direito. Ainda encontramos os episódios naturalistas,
representados por aqueles em que ocorrem fenômenos
naturais (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990).
De acordo com as normas estabelecidas por
Aristóteles, a epopeia deve apresentar unidade, variedade,
verdade e integridade. Em Os Lusíadas encontramos todas
essas qualidades, porque o princípio da unidade é garantido
pela harmonia da ação. Os episódios são dinâmicos e
diversificados, garantindo a variedade. A verdade aparece
na representação de um assunto histórico e, por fim, a
integridade consiste na ação completa, ou seja, com início,
meio e fim.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
Luso: suposto filho ou companheiro de Baco, fundador da Lusitânia, área que
corresponde ao atual território de Portugal e da Extremadura, na Espanha. Camões faz referência a isso em Os Lusíadas, porém não há registro histórico do
epônimo Luso ou Lusus entre os povos que habitaram a região.
Fonte: http://issuu.com/mj_125/docs/dicionario_mitologico, acesso em abr.
2011.
Dom Henrique de Borgonha (1057- 1114), o conde de Borgonha, fundador
da monarquia portuguesa, por ter sido pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei
de Portugal.
Fonte: Portugal Dicionário Histórico, disponível em www.arqnet.pt, acesso em
abr. 2011.
Egas Moniz de Ribadouro (? – 1140 ou 1146), fidalgo descente de importante
família a quem coube a educação de D. Afonso Henriques, tendo participado de
várias batalhas em defesa de seu reinado.
Fonte: Enciclopédia e Dicionário Porto, disponível em www.infopedia.pt, acesso
abr./2011.
Inês de Castro (1323-1355), filha ilegítima de nobres da Galícia, foi para Portugal como dama de honra de D. Constança, quando esta se casou com o príncipe herdeiro D. Pedro, filho do rei de Portugal, D. Afonso IV. Na corte tornou-se
amante do príncipe herdeiro, com quem se casou secretamente depois dele enviuvar. O rei e parte da nobreza não aceitaram o casamento, decidindo-se pela
morte de Inês numa ocasião em que D. Pedro se ausentou. As circunstâncias
dramáticas que envolveram a paixão de Inês e Pedro transformaram o fato em
matéria da ficção, sendo mencionado em Os Lusíadas, e em outras obras literárias.
Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa,
1984.
A Batalha de Ourique ocorreu em 25 de Julho de 1139, num local que as fontes denominam de Ourique, controlado pelos muçulmanos. A vitória comandada
por Afonso Henrique foi fundamental para a consolidação do Estado de Portugal,
sendo por isso um dos fatos mais marcantes da história do país.
Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa,
1984.
A Batalha de Aljubarrota travou-se no dia 14 de agosto de 1385, entre portugueses e castelhanos e se insere no conjunto de confrontos motivados pela luta
da sucessão ao trono em consequência da Revolução de Avis. Foi uma batalha
importante porque a vitória portuguesa desmoralizou os adversários de D. João,
que contavam com o apoio de Castela, assegurando-lhe a continuidade da preservação da independência.
Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa,
1984.
A Batalha do Salado se travou nas margens do riacho do mesmo nome, na
província de Cadiz, em 30 de outubro de 1340, numa aliança cristã dos reinos
de Portugal com o reino de Castela para combater os muçulmanos. D. Afonso IV,
o sétimo rei português, se destacou, vindo daí o cognome Bravo pelo qual ficou
conhecido.
Fonte: Dicionário e Enciclopédia Porto, disponível em www.infopedia.pt, acesso
abr. 2011.
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O Renascimento
5 O LEGADO DE OS LUSÍADAS
4
Camões concebeu Os Lusíadas como obra de ficção,
porém a criação envolveu componentes que tornam difícil a
distinção entre a realidade e a invenção artística. Não estamos
nos referindo à transformação de vultos e acontecimentos
históricos em matéria literária, mas a circunstâncias ligadas
à vida do autor. Na biografia de Camões, constam viagens
Unidade 1 . Aula
com sabor de aventura por diversos lugares, chegando a
paragens distantes, como a China. Embora seu épico não
seja mero relato das andanças, é evidente que nele existem
dados recolhidos nos continentes por onde andou. E
nisso reconhecemos mais seus méritos, porque soube tirar
proveito artístico dos elementos oferecidos pela realidade,
equilibrando-os talentosamente com a inspiração patriótica.
O nome de Camões está vinculado ao período
mais marcante da história de Portugal. As descobertas
foram realizações grandiosas, proporcionando riquezas
que elevaram o país à posição de destaque entre as nações
e orgulharam sua população. O poeta se juntou a seus
conterrâneos na glorificação de seu país, porém sem
esquecer sua condição de artista. Por isso, deu caráter lírico a
episódios históricos significativos, ao mesmo tempo em que
adequava uma forma literária do passado, às necessidades da
época em que vivia (SARAIVA; LOPES, 1993).
O valor de Os Lusíadas ultrapassa os limites do
século XVI e da literatura em língua portuguesa porque
se tornou uma obra representativa de toda uma época,
não apenas como criação artística. Nela encontramos a
representação de aspirações humanas, como o desejo de
conquistas e de superação de dificuldades, fazendo com que
Camões “pela representação universal de seu pensamento,
fruto de um singular poder de transfiguração poética, típica
do visionário e do gênio, seja considerado um dos maiores
poetas de todos os tempos” (MOISÉS, 1992, p. 60).
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
Razões como estas nos ajudam a enxergar Os
Lusíadas como o poema épico mais expressivo depois de
Homero, fazendo de Camões um dos grandes escritores
de todos os tempos. É importante lembrar que a obra
contribuiu decisivamente para a fixação da nossa língua,
portanto deve nos envaidecer como usuários desse belo e
melodioso idioma. Compreendem-se, pois, os motivos que
transformaram Luís de Camões em modelo para poetas dos
séculos posteriores, inclusive brasileiros, como veremos em
aulas que virão.
6 QUADROS-SÍNTESE DE OS LUSÍADAS
ESTRUTURA EXTERNA
Cantos
10
Estrofes por canto
variável
Total de estrofes
1102
Versos por estrofes
8
Total de versos
8816
Tipo de verso
decassílabos
Rimas cruzadas e emparelhadas
ABABABCC
ESTRUTURA INTERNA
122
Introdução - estrofes
1 a 18, canto I
Apresentação do assunto
Proposição – estrofes
1a3
Anúncio do canto épico; os grandes
feitos dos heróis portugueses.
Invocação – estrofes
4e5
Pedido de inspiração para as Tágides.
Dedicatória – estrofes
6 a 18
O poema é dedicado a D. Sebastião.
Narração – estrofe 19,
do canto I, à estrofe
144, do canto X
Início com a viagem em andamento,
no
Oceano
Índico,
próximo
a
Moçambique.
Epílogo – estrofes 146
a 156, canto X
Camões abandona o tom heroico do
poema e passa a lamentar a situação
de Portugal depois do período mais
grandioso de sua história.
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O Renascimento
ATIVIDADES
ATIVIDADES
AT
A
TIV
IVI
VI
1. A partir da leitura do soneto a seguir, de Camões,
responda as questões que seguem:
vocabulário
• verso 3
delgado = delicado,
espiritual
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja;
• verso 7
Que, quem o tem, não sabe o que deseja.
4
É este amor tão fino e tão delgado
logo = portanto
• verso
se dana = se corrompe, se perde
Unidade 1 . Aula
Não entende o que pede, está enganado.
Não há cousa, a qual natureza seja,
Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeto em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,
Assim o pensamento (pela parte
Que vai tomar em mim, terrestre, humana),
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
a. O eu lírico se debate, logo no primeiro quarteto,
entre duas concepções de amor. Interprete os quatro
primeiros versos, explicitando esses dois conceitos
de amor, defendendo para qual o poeta mais se
inclina.
b. A segunda quadra confirma a primeira? Elabore
comentário, justificando a resposta.
c. Os tercetos são introduzidos pelo verso “Mas este
puro afeto em mim se dana”, em que a conjunção
adversativa “mas” estabelece um sentido de oposição
aos quartetos antecedentes. Desenvolva comentário,
explicando: em que consiste essa oposição?
2. Analise o poema a seguir, de Camões, destacando:
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
a. as relações entre o tema e a estrutura formal do texto
(como o tema é desenvolvido em cada estrofe do
soneto?).
b. pode-se afirmar que se trata de um texto poético do
Renascimento? Por quê?
O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;
O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.
3. Acesse o site “www.dominiopublico.gov.br/”, depois
selecione as estâncias (estrofes) iniciais do Canto I, de Os
Lusíadas (1 a 21), e desenvolva as atividades propostas.
a. Na apresentação do assunto (estâncias 1 a 3), o
narrador menciona a grandiosidade da viagem
realizada por Vasco da Gama, comparando-a a outros
fatos. Descreva quem serve de referência para as
comparações e como valoriza o feito do navegador
português.
b. Na invocação (estâncias 4 e 5), o poeta pede proteção
às ninfas do Tejo. Indique o objetivo que ele pretende
alcançar com o pedido.
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O Renascimento
c. Na incitação a Dom Sebastião (estâncias 15 a 19),
Camões revela receio quanto ao destino de Portugal,
sugerindo ações que garantam as glórias do passado.
Identifique as estâncias em que essa preocupação se
evidencia e as medidas que o poeta sugere ao rei.
Unidade 1 . Aula
4
d. Descreva como se percebe a influência do catolicismo
no fragmento de Os Lusíadas em análise.
filmes
1492, a conquista do paraíso (1992), de Ridley Scott
sites
Filmes sobre o Renasciomento Cultural. Disponível em: <http://
educacao.centralblogs.com.br/post.php?href=filmes+sobre+o+renasci
mento+cultural&KEYWORD=9304&POST=3855388>.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
RESUMINDO
RE
ESU
S
RESUMINDO
Nesta aula, vimos que Luís Vaz de Camões se tornou
o poeta mais importante da literatura em língua portuguesa.
Sua obra em verso se divide em poesias líricas e o poema
épico Os Lusíadas. Na primeira modalidade, destacou-se
pelos sonetos que escreveu cujas qualidades o transformaram
em modelo para as gerações posteriores, em Portugal e no
Brasil. Enquanto poeta épico, Camões é a melhor expressão
de uma época, a Renascença; em Os Lusíadas encontramos
princípios estéticos, morais de uma época de alargamentos de
fronteiras metafóricas, em função dos avanços tecnológicos
e científicos, bem como geográficos, em decorrência das
conquistas territoriais.
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
R
RE
EFE
F R
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria
Aparecida. História social da literatura portuguesa. 3. ed.
São Paulo: Ática, 1990.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 27. ed. revista
e aumentada. São Paulo: Cultrix, 1992.
______. A literatura portuguesa através de textos. 13. ed.
São Paulo: Cultrix, 1983.
SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da literatura
portuguesa. Porto: Porto, 1996.
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O Renascimento
______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva,
1993.
4
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9.
ed. Europa-América: Lisboa, 1984.
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Volume 4
Unidade 1 . Aula
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Soneto. Disponível
em: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/S/soneto.
htm.
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Suas anotações
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2ª
unidade
AULA 5
CONCERTOS BARROCOS
OBJETIVOS
Identificar os principais aspectos estético-culturais do período
Barroco em Portugal e no Brasil, percebendo as relações
histórico-sociais entre os dois países e como se desenvolveu a
formação da Literatura Brasileira.
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Concerto Barroco
1 INTRODUÇÃO
Estudamos o surgimento e o desenvolvimento da
literatura em Portugal, verificando as suas transformações
vinculadas a fenômenos econômicos, sociais e políticos.
Evidenciamos, assim, uma sincronia entre o progresso
Unidade 2 . Aula
5
econômico, as mudanças de caráter social e a evolução da
literatura. Num período de pouco mais de três séculos,
Portugal saiu da condição de condado espremido entre
importantes reinos e o mar para a posição de um país que
conquistou vastos territórios. Observamos que as atividades
literárias seguiram trajetória análoga durante esse período,
partindo de manifestações da tradição oral, como as cantigas,
para atingir o estágio de paradigma da cultura escrita
renascentista com Os Lusíadas. Em ambos os campos, o país
se destacou, tornando possível comparar a grandiosidade
das navegações e das conquistas territoriais com a do poema
épico escrito por Camões, que apresenta dimensões tão
monumentais quanto o alargamento de fronteiras decorrente
da possessão do Brasil. O processo de fixação dos portugueses
aqui e a colonização que implantaram provocaram confrontos
culturais com os nativos e os africanos, esses trazidos como
escravos num sistema de exploração, justificado pelas
concepções mercantilistas da época.
Esses confrontos compõem alguns dos mais tristes
e trágicos acontecimentos da história moderna, quando
populações inteiras foram dizimadas. Além disso, as
influências culturais do índio e do negro na formação da
cultura brasileira foram negadas por muito tempo, mas
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
sabemos que se incorporaram ao dia a dia da então colônia
portuguesa e passaram a interferir positivamente na criação
artística, determinando que aqui surgisse uma literatura em
língua portuguesa com peculiaridades bem definidas. É o que
veremos a partir desta aula.
2 BRASIL: A TERRA “MUITO CHÃ E MUITO
FORMOSA”
Os símbolos do apogeu econômico e político
de Portugal foram as expedições marítimas a lugares
desconhecidos pelos europeus. Em 1497, Vasco da Gama saiu
de Lisboa, contornou o continente africano e chegou ao sul da
Índia. Três anos mais tarde, Pedro Álvares Cabral partiu com
o mesmo destino, porém atravessou o Oceano Atlântico e
chegou ao litoral da Bahia, para depois retomar a rota seguida
pelo antecessor (CASTRO, 1985). Devemos lembrar que o
início da ocupação demorou algumas décadas após a chegada
da esquadra de Cabral, começando efetivamente por volta
de 1530, com a implantação da segunda etapa do sistema de
capitanias (SODRÉ, 1988).
Figura 2.5.1 - Desembarque dos
Portugueses no Brasil, ao ser
encontrado por Pedro Alvares Cabral,
em Porto Seguro. Óleo sobre tela
(190 X 333 cm), de Oscar Pereira da
Silva, 1922. Museu Paulista de São
Paulo.
Fonte: http://cidadanialusofona.
files.wordpress.com/2010/04/
desembarquecabral.jpg
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Concerto Barroco
A fixação de moradores brancos no território
brasileiro respondeu às estratégias econômicas e militares de
Portugal, mas tem relação estreita com as questões religiosas
que estavam em debate durante o Renascimento. Sabemos
da crise enfrentada pela Igreja Católica no século XVI, que
culminou com a insubordinação do monge alemão Martinho
Unidade 2 . Aula
5
Lutero. Disso veio a Reforma Protestante ou Luterana
(1517), instaurando princípios doutrinários inconciliáveis
com as normas ditadas pelo catolicismo. Em reação, sucessivos
papas adotaram um conjunto de medidas que ficaram
conhecidas como Contrarreforma. As providências tinham
caráter moralizador e visavam a reorganização administrativa,
com intuito de punir padres rebeldes, impedir o avanço do
protestantismo e recuperar o prestígio perdido.
Em Portugal, os reflexos das iniciativas de combate à
expansão protestante apareceram pela criação do Tribunal do
Santo Ofício, instituição de caráter judicial, com o propósito
de inquirir heresias, isto é, investigar práticas contrárias
aos princípios da fé católica, daí a redução para Inquisição
(SARAIVA, 1984). No Brasil, os reflexos da disputa com
os protestantes aparecem principalmente pela presença
de membros da Companhia de Jesus. Criada em 1534, na
Espanha, por Inácio de Loyola, logo se instalou no país
vizinho, onde obteve permissão para a criação de escolas, o
que também aconteceu no Brasil. Organizados com base na
estrutura militar, seus membros se consideravam soldados
da Igreja e desenvolviam vários tipos de atividades com o
intuito de expandir o catolicismo.
Ao se definir pela posse efetiva da colônia, a coroa
portuguesa tomou medidas com o objetivo de oferecer
condições para a fixação de famílias na nova terra, como
a fundação de cidades e a designação de funcionários para
o exercício de cargos políticos e administrativos. Com os
primeiros colonos vieram os padres Jesuítas, a quem coube
erguer escolas. Os jesuítas assumiram a incumbência por
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leitura recomendada
A definição do que são os
primeiros textos literários
escritos no Brasil é assunto
complexo,
porque
envolve a discussão de critérios usados para apontar
obras e autores pioneiros.
Por exemplo, o que define se um texto do período
colonial é brasileiro? É o
local onde foi escrito? É a
intenção do autor? É a feição literária que adquiriu
com o passar do tempo?
É o local de nascimento
do autor? É o local onde
o autor desenvolveu suas
atividades? Para aprofundar essas questões, sugerimos a leitura do livro A
formação da literatura
brasileira: momentos de-
delegação do rei, cujo erário não dispunha de recursos para
arcar com os custos necessários à construção e manutenção
dos estabelecimentos de ensino (SODRÉ, 1988). Se por um
lado os religiosos difundiam o conhecimento com a intenção
de divulgar a fé católica e de formar quadros para a sua ordem,
por outro tiveram papel importante para o desenvolvimento
das atividades literárias no Brasil. Além de contribuir para a
formação de leitores, figuram entre os primeiros indivíduos a
escreverem textos históricos e literários.
Assim, as primeiras iniciativas de divulgação e
produção de literatura em nosso país se desenvolveram em
grande parte pela ação dos jesuítas. Em consequência, foram
orientadas pelo espírito expansionista do catolicismo ditado
pela Contrarreforma, sob o influxo do ambiente opressor
imposto pela instalação do Tribunal do Santo Ofício.
cisivos, de Antonio Candido, disponível na biblioteca
da UESC, e O sequestro
do barroco na formação
da literatura brasileira:
o caso Gregório de Matos, de Haroldo de Cam-
3 SEMENTES LANÇADAS AOS ECOS DE GIL
VICENTE E CAMÕES
pos, texto disponível em:
< h t t p : / / w w w. 4 s h a r e d .
com/document/yfUz4UoR/
CAMPOS_Haroldo_-_O_
Sequestro_d.html>.
De maneira geral, os textos escritos no Brasil durante
o século XVI se destacam pelo valor histórico, devido às
informações sobre os diversos aspectos da natureza, o tipo de
vida que levavam os índios e as possibilidades de exploração
econômica. São importantes também porque mostram,
por um lado, o fascínio dos portugueses frente ao novo,
ao desconhecido, àquilo que aos seus olhos parecia exótico
e exuberante. Por outro, revelam a posição do europeu,
portanto do homem branco de pensamento influenciado
pela fé católica, diante de outra cultura, do diferente. Quase
sempre redigidos por membros das primeiras expedições
exploratórias, esses textos têm características de relatório.
Por isso são chamados crônicas ou relatos de viagem e,
no seu conjunto, recebem a denominação de literatura de
informação.
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Concerto Barroco
Figura 2.5.2 - Percurso feito por
Pedro Alvares Cabral na viagem que
marca a sua viagem ao Brasil.
Fonte: http://veja.abril.com.br/
idade/descobrimento/imagens/
descobrimento6.jpg
Unidade 2 . Aula
5
Dentre as crônicas de viagem mais importantes do
século XVI está a Carta (1500), de Pero Vaz de Caminha,
escrita com o propósito de noticiar ao rei D. Manuel
a chegada ao Brasil, ou, como diz o autor, “o achamento
desta vossa terra nova”. Nela, descreve brevemente a
travessia do “mar longo”, enaltece as belezas, empregando
adjetivos como “formosa”, “graciosa”, entre outros. Revela
encanto diante da natureza, mencionando a abundância de
águas e reiterando seu espanto com a densa floresta e com
a presença de “grandes arvoredos”. O elemento que mais
chamou sua atenção foi o habitante nativo, do qual se ocupa
mais demoradamente, encerrando o relato, dizendo que sua
conversão ao catolicismo era o melhor fruto a ser colhido
aqui.
Existem outras crônicas de viagem, sendo as mais
conhecidas o Diário de navegação (1530), de Pero Lopes
de Souza; o Tratado da terra do Brasil (1576), de Pero de
Magalhães Gandavo; e o Tratado descritivo do Brasil (1587),
de Gabriel Soares de Souza. Um dos pontos de convergência
entre estes registros é o fascínio pelos elementos da natureza
e a surpresa diante do índio, tratado sempre como ser
inferior por causa de práticas culturais e comportamentos
incompreensíveis para o homem europeu. Em outras
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palavras, a desconsideração pelo habitante nativo evidencia o
sentimento de propriedade da terra como expressa Caminha
na Carta.
Ao se atribuir o direito de posse, os portugueses
pensavam na exploração de riquezas minerais e no
cultivo do solo, fatos que o escrivão também mencionou.
Figura 2.5.3 - Trecho manuscrito da
carta de Caminha. Fonte: commons.
wikimedia.org/wiki/File:Carta-cami
nha.png
Figura 2.5.4 - Capa do Diário
de navegação, de Pero Lopes de
Souza (1530). Fonte: http://www.
megabook.com.br
Preocupavam-se, ainda, com a difusão do catolicismo, uma
forma de melhor concretizar seus objetivos econômicos. Os
propósitos religiosos propiciaram o surgimento de outro
tipo de textos durante o século XVI. Escritos por padres,
destinavam-se à conversão dos indígenas ao cristianismo.
Os mais importantes têm como autores José de Anchieta
(1534-1597) e Manuel de Nóbrega (1517-1570), membros
da Companhia de Jesus. Tais escritos e os relatos de viagem
formam a chamada Literatura Quinhentista, responsável
pelo acréscimo de novos ingredientes para a criação literária
em língua portuguesa, particularmente, em obras do século
XVIII de autores nascidos no Brasil.
Entre os dois religiosos, o nome de maior destaque é
Anchieta porque, mesmo preocupado prioritariamente com
a catequese, seus textos nasceram sob “o signo da literatura e
suas escolhas estéticas parecem tão típicas de uma tradição e
de uma escola” que remetem a Gil Vicente, segundo Luciana
Stegagno-Picchio (1997, p. 78-79).
Na virada do século XVI para o XVII, surgiu uma
Figura 2.5.5 - Tratado da terra do
Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo
(1576). Fonte: http://bndigital.bn.br/
redememoria/images/131.jpg
obra considerada a primeira de caráter essencialmente
literário escrita no Brasil. Trata-se de Prosopopeia, de Bento
Teixeira (1561-1600), poema de pretensões épicas, publicado
no ano de 1601, em Lisboa. A intenção de dar tratamento
Figura 2.5.6 - e do Tratado descritivo
do Brasil, de Gabriel Soares de Souza
(1587). Fonte: http://4.bp.blogspot.
com/-Rv9CZUSdbw0/Td6li1GVyeI/
AAAAAAAAACs/6teJypLp2zw/s1600/
PICE1C4.tmp.jpg
136
literário a fatos históricos resultou em elogios exagerados
a Jorge Albuquerque Coelho, donatário da capitania de
Pernambuco, elevado à condição de grande herói da colônia.
O autor esboça uma descrição de Recife e de Olinda, mas
os traços são insuficientes para que se possa fazer uma
ideia de como eram as cidades na época. O poema merece
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Concerto Barroco
registro por dois motivos: pelo inegável valor histórico e
pela tentativa em seguir o modelo de Camões (MARTINS,
1992).
Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) escreveu
Música do parnaso, primeiro livro de autor nascido no Brasil,
impresso em 1705, que tem como destaque o poema “A Ilha
Unidade 2 . Aula
5
da Maré”. Inspirado no episódio “A Ilha dos Amores”, do
canto IX, de Os Lusíadas. A composição repete e adapta “o
modelo às peculiaridades da nova terra – as frutas nativas
e os mariscos –, o que não é feito em ‘A Ilha da Maré’ de
modo neutro, e sim com a reiterada ressalva de que tais
peculiaridades evidenciam superioridade ou vantagens das
ilhas brasileiras” (CUNHA, 2006, p. 38).
Outro seguidor de Camões foi frei Manuel
Santa Maria Itaparica (1704-1768, provavelmente) que
buscou inspiração no mesmo episódio para escrever a sua
“Descrição da Ilha de Itaparica”. Percebemos que no épico
camoniano os prazeres proporcionados pela natureza
estão associados à sensualidade de ninfas correndo nuas
pelas praias, transformando a Ilha dos Amores num lugar
de deleite, oferecido como prêmio aos portugueses por
suas conquistas. Curiosamente, os autores brasileiros
eliminam o caráter sensual de seus poemas, distanciandose de uma realidade em que a ideia de paraíso se misturava
ao sentimento de posse e violência contra o nativo com “a
prática frequente do estupro das índias pelos portugueses,
no litoral da colônia americana” (CUNHA, 2006, p. 41).
Esses autores normalmente são qualificados
pelas histórias da literatura tradicionais como poetas de
menor importância. É certo que nenhum deles produziu
obra inovadora ou surpreendente pela originalidade e
facilmente se percebe como cópias mal disfarçadas de
Camões. Entretanto, convém mencioná-los como forma
de valorizar o esforço que fizeram para configurar uma
imagem literária do espaço geográfico brasileiro. Nesse
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sentido, podemos estabelecer relações com a passagem
da Carta em que Caminha anunciava as possibilidades de
cultivo das terras brasileiras, descrevendo as condições
favoráveis do clima, do solo e a abundância de águas. As
iniciativas de Botelho e Itaparica permitem que façamos
analogias com as recomendações do escrivão, pois viram nos
elementos naturais motivos propícios para a criação literária,
lançando sementes que frutificariam séculos mais tarde.
Isso é suficiente para que sejam reconhecidos, afinal, eles se
empenharam na superação das precariedades em que viviam
e na procura de símbolos para a nova terra. Também temos
que ressaltar que o desenvolvimento e o amadurecimento
de uma literatura é um processo demorado que envolve
experiências, sendo a cópia uma das etapas necessárias.
4 DISSONÂNCIAS E NOTAS VARIADAS DO
BARROCO NO BRASIL E EM PORTUGAL
O padre Antônio Vieira e Gregório de Matos foram dois dos
autores mais expressivos da literatura em língua portuguesa
do século XVII, e suas trajetórias são multifacetadas. Para
Martins (1992, p. 170), “são dois excêntricos com relação
à vida intelectual da Colônia (e não às suas respectivas
vidas como intelectuais da Colônia, o que é outra coisa)” e
“ambos pertencem intelectualmente à Europa muito mais
do que à América, a Portugal muito mais do que ao Brasil”.
Começaremos a seguir esses trajetos com a importante e
polêmica figura que foi Vieira e, posteriormente, vamos
conhecer o não menos polêmico Gregório de Matos.
4.1 Padre Antônio Vieira
Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e
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aos sete anos veio para a Bahia, onde o pai passou a exercer
cargo administrativo, permanecendo aqui até 1641, quando
se transferiu para Portugal. De 1652 a 1661, entremeou
períodos de residência na metrópole com outros de retorno à
colônia, de onde se ausentou por vinte anos para então voltar
em definitivo.
Unidade 2 . Aula
5
Seu nome está incluído na literatura brasileira pela
obra de oratória, modalidade comum na Antiguidade, mas em
desuso nos séculos recentes. Nos quinze volumes dos Sermões,
publicados já na maturidade, revigorou o gênero, utilizando-o
como instrumento para a defesa de ideias e a divulgação do
catolicismo junto ao índio e ao colono português. O volume
inicial apareceu em 1679, sucedido por outros onze, divulgados
enquanto o autor vivia. Os tomos restantes surgiram em 1699,
1710 e 1748, completando a primeira edição integral da obra
(MARTINS, 1992).
Com opiniões claras e firmes, manifestou-se a
respeito de assuntos diversos como a invasão holandesa, o
modelo ganancioso da colonização portuguesa, a escravidão
e a perseguição aos judeus. A respeito do tratamento dos
portugueses aos africanos, o ardor católico o induziu a
incorrer em contradição, pois invocava o argumento da
igualdade entre os homens, porém via no servilismo uma
ação positiva porque permitia aos negros o conhecimento
da fé católica e a salvação de suas almas (STEGAGNOPICCHIO, 1997).
Padre Vieira teve trajetória complexa, cuja explicação
está nas cinco “metamorfoses” pelas quais passou, segundo
Wilson Martins, numa referência às suas ações como
missionário, político, orador sacro, profeta e escritor.
Na opinião do crítico, Vieira se sentiu mais atraído pelos
problemas de seu tempo do que pela catequese, ocupandose deles como missão a ser cumprida. Essa preocupação
o levou a exercer as outras atividades, chegando a ocupar
cargos importantes como diplomata e conselheiro de D.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
João IV.
Foi orador sacro e profeta a vida inteira, ou pelo
menos desde os vinte e poucos anos, quando iniciou a
atividade sacerdotal. A retórica, no sentido de se expressar
bem, fazendo bom uso das palavras, foi o seu instrumento
em todas as ocupações a que se dedicou. Tal habilidade fez
de Vieira “um dos pontos mais altos da oratória sacra em
todo o mundo” (MARTINS, 1992, p. 173). Para Luciana
Stegagno-Picchio, “em torno da sua personalidade e sobre
o exemplo de sua pregação, floresceu na Bahia uma escola
de oratória sacra [...], que incide profundamente sobre a
cultura do tempo” (1997, p. 105).
Assim como Wilson Martins, a professora italiana
inscreve Antônio Vieira nas literaturas brasileira e
portuguesa. Sua posição se assemelha a de António Saraiva
e Oscar Lopes, que destacam seu nome com a dedicação
de várias páginas à avaliação da sua obra, fato que chama a
nossa atenção porque são bem menos generosos em relação
a outros escritores brasileiros do período colonial. Entre os
elogios, salientam a capacidade de Vieira para renovar um
gênero em decadência: “Esta conjugação de uma arte de
discorrer já inadequada ao senso comum dominante com
uma orientação que era, afinal, tão prática faz da oratória
de Vieira uma das expressões mais consumadas, mais tensas,
mais desenvolvidas e explícitas das formas culturais que
estão na base da tradição sermonária” (SARAIVA; LOPES,
1998, p. 521-522).
Devemos atribuir os elogios dos historiadores
portugueses à competência de Vieira na formulação de ideias
e a sua capacidade de reflexão sobre assuntos complexos. Em
outras palavras, o pertencer intelectualmente à Europa de que
fala Wilson Martins tem a ver com as ações do religioso em
defesa dos interesses de Portugal junto ao governo de diversos
países. Para tanto, empregou suas energias vigorosamente
naquilo que melhor sabia fazer, ou seja, o uso da palavra,
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Concerto Barroco
pois foi homem interessado pela solução dos problemas mais
relevantes de seu tempo. Enquanto os holandeses ameaçaram
Salvador com naus fundeadas em Itaparica e incendiando
engenhos e canaviais das cercanias, Vieira estimulava seus
fiéis a enfrentar o agressor.
Ilustra o engajamento na campanha contra a invasão
“O sermão para o bom sucesso das armas de Portugal contra
a Holanda”, uma de suas peças mais famosas:
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5
O que venho a pedir ou protestar, Senhor,
é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva
nos, et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao tempo.
Em tempo que tão oprimidos e tão cativos
estamos, que devemos pedir com maior
necessidade, senão que nos liberteis: Redime-nos? E na casa da Senhora da Ajuda,
que devemos esperar com maior confiança, senão que nos ajudeis: Adjuva nos? Não
hei de pedir pedindo, senão protestando e
argumentando, pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão
justiça. Se a causa fora só nossa, e eu viera
a rogar só por nosso remédio, pedira favor
e misericórdia. Mas, como a causa, Senhor,
é mais vossa que nossa, e como venho a
requerer por parte de vossa honra e glória,
e pelo crédito de vosso nome: Propterno
memtuum: razão é que peça só razão, justo
é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei de arguir, vos hei de argumentar, e confio tanto da vossa razão e da
vossa benignidade, que também vos hei de
convencer. Se chegar a me queixar de vós,
e acusar as dilações de vossa justiça ou as
desatenções de vossa misericórdia: —
Quare obdormis, quare oblivisceris? — não
será esta vez a primeira em que sofrestes
semelhantes excessos a quem advoga por
vossa causa. Às custas de toda a demanda,
também vós, Senhor, as haveis de pagar,
porque me há de dar vossa mesma graça as
razões com que vos hei de arguir, a eficácia
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com que vos hei de apertar, e todas as armas com que vos hei de render. E se para
isto não bastam os merecimentos da causa,
suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja
ajuda principalmente confio. Ave Maria.
(VIEIRA, Antônio. Disponível em: www.cce.ufsc.br/~nupill/
literatura/BT2803035.html).
Observamos que Vieira desenvolve sua argumentação
em torno da ideia de justiça, tomando como referência
o princípio de que os portugueses eram propagadores e
guardiões da fé cristã. Como estudamos anteriormente,
você deve lembrar-se da presença constante dos propósitos
religiosos, portanto da Igreja Católica, ao longo da história
de Portugal. Na Idade Média, o ideal de expansão do
catolicismo que serviu de pretexto às Cruzadas, estimulou
as lutas dos portugueses contra os muçulmanos e as grandes
viagens marítimas que resultaram na chegada à Índia e ao
Brasil, acendendo as esperanças de “acrescentamento da fé”
de que fala Caminha. Por fim, cabe lembrar que a devoção
católica serviu de desculpa para a imposição cultural aonde
chegavam, assim como justificou atos desumanos como o
massacre dos nativos daqui e a escravização dos africanos.
No que diz respeito às preocupações com o destino de
Portugal, Vieira ia além das situações provocadas pelas ameaças
frente a um inimigo. Interferiu em assuntos econômicos,
recomendou ações políticas ao rei, tratou de questões
comerciais, discutiu temas religiosos, encarregou-se de missões
diplomáticas e defendeu o abrandamento das interferências da
Inquisição (SARAIVA; LOPES, 1998, p. 518). Para Luciana
Stegagno-Picchio (1997), ele foi um defensor dos interesses
portugueses em nome da fé. Quanto a suas atividades literárias,
Wilson Martins afirma:
Pode-se pensar, entretanto, que é a volta
definitiva ao Brasil que o transforma realmente em escritor (e, por consequência,
que coloca a preocupação estilística, no
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sentido literário da palavra, no primeiro
plano de seu interesse, isto é, que se apresenta como a última finalidade de sua vida)
(1992, p. 171).
Acrescenta que Vieira estava impregnado da atmosfera
brasileira, devido ao tempo em que aqui viveu durante sua
juventude. Luciana Stegagno-Picchio aponta para sentido
oposto, ao destacar que a linguagem de Vieira é repleta de
arcaísmos, latinismos e expressões do espanhol e do italiano,
sendo raros os termos brasileiros, à exceção dos empregados
para designar árvores, animais e tribos indígenas (1997, p. 108).
Unidade 2 . Aula
5
Divergências à parte, o interesse pela obra do padre
Vieira se justifica pelas razões mencionadas, ou seja, pela
renovação da oratória, pela importância que tem para a
literatura sacra e pelo valor que representa para a cultura da
época. António Saraiva e Oscar Lopes (1998) nos oferecem
mais motivos, quando afirmam que foi das figuras mais
representativas das letras portuguesas do século XVII,
sendo modelo para a prosa da época. Ainda, de acordo com
os historiadores lusitanos, se nossa curiosidade for além dos
seus sermões, encontraremos nas cartas e nos documentos
que escreveu um quadro expressivo da vida dos índios, da
fauna, do modo de vida, das relações dos nativos com os
portugueses.
4.2 Gregório de Matos
Sobre a biografia de Gregório de Matos pairam muitas
dúvidas. A primeira delas é quanto à data de seu nascimento,
que uns dão como acontecido em março de 1623 e outros
dizem que foi em dezembro de 1633, sendo essa última
tomada por mais exata (TEIXEIRA, 1977). Da mesma forma,
não há registro sobre sua morte, assinatura comprovada ou
imagem pintada de sua pessoa (MALARD, 1998).
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Figura 2.5.7 - Gregório de Matos.
Fonte: http://commons.wikimedia.
org/wiki/File:Greg%C3%B3rio_de_
Matos.jpg
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Do ponto de vista da literatura, as indagações a serem
respondidas têm dimensões bem mais profundas porque se
trata de saber exatamente o montante da obra deixada por
Gregório de Matos, isto é, se todos os textos atribuídos a ele
são efetivamente de sua autoria e qual é a data em que foram
escritos. Para Wilson Martins, são dois grandes mistérios:
O primeiro, claro está, é o de saber o que
realmente lhe pertence no conjunto de
poema constante da dezena ou vintena de
apógrafos tidos como dele; o segundo, seria o de estabelecer a cronologia das composições efetivamente ou seguramente
autênticas. Sem o esclarecimento dessas
questões, qualquer aproximação séria da
poesia gregoriana está previamente condenada ao insucesso: não sabemos se escreveu tudo o que corre sob o seu nome, não
sabemos que parte do que corre sob o seu
nome teria sido por ele realmente escrita
(1992, p. 225).
É evidente que Wilson Martins exagera um pouco
quando condena ao insucesso qualquer estudo sobre a obra
de Gregório de Matos, mas sua observação é um fato a ser
considerado. Inexiste volume impresso publicado com tais
poesias enquanto o autor estava vivo, e os manuscritos nos
quais os historiadores se baseiam foram feitos por outras
pessoas. A fonte que todos os estudos tomam por referência
“é a famosa Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de
Matos Guerra, por Manuel Pereira Rabelo, escrita nos meados
do século XVIII e publicada pela primeira vez em 1882”
(MARTINS, 1992, p. 228).
Apesar disso, podemos afirmar que ele foi a grande
expressão da nossa poesia no século XVII, o autor que
expressou vivamente a realidade da colônia na época. Sua
poesia permite a composição de um quadro bem interessante
sobre como era a cidade de Salvador dos anos seiscentos e,
por extensão, nos ajuda a compreender o Brasil colonial
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dos senhores de engenho (TEIXEIRA, 1977). Ao mesmo
tempo, revela um pouco da tumultuada vida pessoal de um
sujeito cuja interioridade parece ter vivido em constantes
tormentos provocados por intensos conflitos de sentimento.
Sua biografia mostra uma vida de desregramentos, com a
prática de atos que desaprovava em sua poesia:
5
Quando [...] se percebe a liberdade de
comportamento e de expressão que a si
próprio concedia, concluímos desde logo
que não se trata de um moralista (nem
mesmo no sentido literário da palavra),
mas, antes, de uma testemunha (MARTINS, 1992, p. 226).
Unidade 2 . Aula
A crítica corrosiva e áspera que encontramos em
seus textos evidencia que Gregório de Matos foi um homem
preocupado com o mundo ao seu redor, portanto observador
atento daquilo que se passava diante de seus olhos. Aliados
a esse olhar crítico e questionador, estavam atributos como
o talento, a inteligência e a curiosidade intelectual, o que
lhe permitiu conhecer literatura e cultura geral (TEIXEIRA,
1977). Segundo Sodré, contudo, há indícios de que sua base
cultural tinha pouca solidez:
Foi um misto de homem de letras e de cantador popular; ao mesmo tempo em que
se esmerava em indicar a posse de cultura
ampla, que parece realmente não ter dominado, buscava aproximar-se dos motivos
triviais, rolando para o nível da vulgaridade mais simplória (SODRÉ, 1988, p. 85).
Mesmo que sua linguagem e seu estilo não sejam
do agrado de todos e que se possa discutir a consistência
de seu saber, observamos em sua poesia a representação
da estrutura política e social da Bahia de seu tempo,
independente do caráter satírico, religioso ou lírico com
que trata os assuntos. Os acontecimentos relevantes sobre
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a época estão registrados pela História, porém os fatos
envolvendo o cotidiano e o homem comum aparecem na
obra de Gregório de Matos. Nesse sentido, os “motivos
triviais” revelam o dinamismo da realidade que conheceu e
tiram os relatos históricos de sua moldura estática para darlhes vida.
A visão de mundo que expressa, nos mostra Gregório
de Matos como homem interessado pela elucidação dos fatos,
fazendo do riso, da ironia e até mesmo da amargura um recurso
para torná-los mais visíveis. Da mesma forma como abriu mão
do prestígio conquistado como advogado e que também poderia
desfrutar da sua formação como padre, rompeu as barreiras do
meio social ao qual pertencia. De origem abastada, teve uma
vida modesta e, em seu universo literário, aparecem pessoas
de todas as camadas, inclusive as que transitavam à margem
da sociedade. Em suas obras, são mencionados os membros
da elite econômica e social, composta por plantadores de
cana, membros da Igreja, governadores e ocupantes de altos
cargos públicos de um lado; enquanto do outro aparecem os
escravos, os artesãos, os índios. As mulheres aparecem com
grande frequência, compondo vasta galeria em que estão
presentes damas, mulatas, negras, prostitutas e lavadeiras
(TEIXEIRA, 1977). De modo geral, podemos reconhecer
que o autor descreve as figuras de seu tempo sem mascará-las,
independente de condição social ou cor da pele.
As pessoas representadas por Gregório de Matos têm
muita vivacidade e a energia delas normalmente se manifesta
pelas deformidades morais, portanto são reveladoras
da capacidade do autor para refletir sobre as normas de
organização da sociedade de seu tempo. Em outras palavras,
sua poesia reproduz os costumes da época e isso equivale
a dizer que a organização social se caracterizava pelos
desregramentos:
Porque a verdade é que nenhum homem de
letras de época tão recuada deixou no que
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criou tantos traços e tão nítidos da existência comum, a tal ponto que há quem o
aponte como o intérprete de uma nascente burguesia citadina em protesto contra
as demasias dos grandes proprietários, do
clero, da nobreza e dos funcionários reais
(SODRÉ, 1988, p. 87).
Sendo assim, Gregório de Matos retratou a sociedade
de um período de crise profunda da qual nem a Igreja escapava,
fato que se explica pelos problemas enfrentados por Portugal.
Com a morte de D. Sebastião, em 1578, Felipe II, rei da
Espanha, julgou-se no direito de assumir o trono lusitano,
Unidade 2 . Aula
5
fato que se consumou, por ser da mesma linhagem familiar.
O domínio espanhol durou várias décadas, entretanto as
dificuldades para exercer a autoridade se fizeram perceber em
diversos setores, provocando desencontros administrativos
de toda natureza. As invasões dos holandeses ao Brasil e o
tempo que permaneceram em Pernambuco exemplificam
as complicações vividas no período (SARAIVA, 1984).
Em outras palavras, assim como fragilizou a capacidade
de garantir a posse territorial da colônia, a ausência de uma
orientação governamental clara propiciava a germinação de
distorções que se materializavam pelos desrespeitos a normas
comportamentais e a padrões morais.
Analisando a poesia de Gregório de Matos por
esse enfoque, podemos enxergar nela a expressão de um
indivíduo consciente das transgressões a princípios e da
necessidade de questionamento da realidade. O fato de ele
ter se deixado envolver pelas circunstâncias não desmerece
sua postura, porque elimina o caráter moralizador da crítica
que faz à sociedade.
Serve como exemplo um de seus sonetos
mais populares, no qual descreve a incapacidade dos
administradores públicos:
A cada canto um grande conselheiro,
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Que nos quer governar cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um frequentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
(Disponível em www.dominiopublico.gov.br)
Percebemos que o soneto apresenta alguns dos
aspectos que identificam a poesia de Gregório de Matos. No
que diz respeito às figuras humanas, podemos reconhecer
no conselheiro os administradores e ocupantes de cargos
públicos, ou seja, também os vereadores, os juízes, entre
outros. Nesse sentido apesar da relevância da função, as
autoridades tomam atitudes nada exemplares; porque,
além de incompetentes, são bisbilhoteiras, indiscretas
e desrespeitosas. Mais ainda, agem com más intenções,
tornando pública a vida dos cidadãos, como se deduz pelo
verso “Para levar à Praça, e ao Terreiro”. Os termos praça e
terreiro remetem aos lugares públicos, onde ficavam a forca
e o pelourinho, portanto onde se executavam as punições
a escravos e criminosos. Do ponto de vista metafórico, o
verso apresenta dois sentidos, pois tanto indica comentários
sobre a vida de alguém, como a procura de motivos para
incriminar as pessoas (MALARD 1998).
Dos poemas que Gregório de Matos dedicou a
figuras femininas, dentre os mais conhecidos estão os que
falam sobre Dona Ângela, uma mulher branca, assim como
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outras tantas. Sua galeria, entretanto, é composta também
por negras ou mulatas, como podemos ver no soneto “À
mulata Vivência, amando ao mesmo tempo a três sujeitos”:
Com vossos três amantes me confundo,
Mas vendo-vos com todos cuidadosa,
Entendo que de amante e amorosa
Podeis vender amor a todo o mundo.
Se de amor vosso peito é tão fecundo,
E tendes essa entranha tão piedosa,
Vendei-me de afeição uma ventosa,
Que é pouco mais que um selamim sem fundo.
Se tal compro, e nas cartas há verdade,
Eu terei, quando menos, trinta damas,
Unidade 2 . Aula
5
Que infunde vosso amor pluralidade.
E dirá, quem me vir com tantas chamas,
Que Vicência me fez a caridade,
Porque o leite mamei das suas mamas.
(Disponível em www.dominiopublico.br)
Há composições em que o poeta menciona atributos
como a beleza e a pureza, mas também percebemos um
erotismo intenso, em particular, com relação a negras e
mulatas. Em muitas situações, conta somente a atração
física:
Mas o que predomina é o binário erótico
dedicado às morenas – pardas e negras –
desde as mais atraentes às mais repulsivas,
formando um acervo de comparsas que
nos entram nos olhos e pela imaginação
adentro, com força muito maior do que
os personagens de muitos livros em prosa
(TEIXEIRA, 1977, p. 95).
Nas poesias em que observamos esses traços,
reconhecemos indícios das inclinações pessoais do poeta,
entretanto ficar apenas nisso significa uma avaliação
superficial de sua obra. Para verificar o que existe em outras
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camadas, precisamos confrontar esses aspectos com a realidade
que se vivia no Brasil escravagista, quando não se aceitavam
as relações amorosas entre indivíduos com coloração de pele
diferente. Os senhores de engenho, porém, costumavam se
envolver sexualmente com as mulheres negras, muitas vezes
violentando-as, conforme já mencionamos em aula anterior.
Uma conclusão que se evidencia é que Gregório de
Matos não mascarava a realidade ou fingia cegueira àquilo
que estava diante de seus olhos; sendo esse, certamente, um
dos motivos que inspirou o apelido de “Boca do Inferno”. A
temática predominante em sua poesia nos ajuda a compreender
a forma como encarava o mundo e, seguindo o critério adotado
por Letícia Malard (1998), sua obra pode ser dividida em oito
grupos, de acordo com o assunto: sociedade, religiosidade,
zombaria e louvores, o mundo desconcertado, carpe diem,
lágrimas e erotismo, inconstância das coisas e elevação e
degradação da beleza:
Tema/assunto
Conteúdo
Sociedade
Denúncia da corrupção, de irregularidades
administrativas,
práticas
condenáveis
de
religiosos e políticos.
Religiosidade
Debate entre o humano e o divino, a culpa e o
perdão, a vida e a morte.
Zombaria ou louvores
Deboche
ou
elogios
a
administrativas e religiosas.
O mundo desconcertado
Desilusão diante de coisas erradas.
Carpe diem
Proveito da vida, da beleza da mulher enquanto
jovem, dos prazeres passageiros.
Lágrima e erotismo
Reação diante do choro da mulher.
Inconstância das coisas
O eterno ciclo da vida, a transformação do dia
em noite.
Elevação e degradação
da beleza
A mulher como o mais belo e precioso na
natureza, mas fisiologicamente igual a todos.
personalidades
4.3 Duas vozes relevantes com diapasões
diferentes
A comparação entre Gregório de Matos e Antônio Vieira
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é inevitável, se consideramos que eles foram dois homens com
grande capacidade de refletir sobre a vida no século XVII, tanto
no Brasil quanto em Portugal. Há outros fatores em comum;
pois, apesar da diferença de idade, foram contemporâneos
e conviveram em Salvador, sem contar a formação jesuítica,
apesar de Gregório ter se recusado a se ordenar padre
(MALARD, 1998). No que diz respeito ao modo como se
Unidade 2 . Aula
5
preocupavam com a realidade, Vieira era mais interessado
pelos grandes temas relativos ao governo ou à Igreja, por causa
disso se envolvia nas questões políticas e doutrinárias.
Mesmo assim, ambos conseguiam observar a vida
com um olhar mais profundo do que os homens letrados
de seu tempo. Apesar de exercer o sacerdócio, Vieira não se
preocupou apenas com “acrescentamento da fé”, isto é, com
a conversão de indivíduos de outras práticas religiosas ao
catolicismo, como Anchieta havia feito no século anterior.
Ao perceber que a crença religiosa não restringia sua visão
de mundo aos limites determinados pela doutrina católica,
inscreveu-se na nossa literatura. Gregório de Matos superou
Bento Teixeira e Manuel Botelho de Oliveira pelo talento
e pela capacidade de transfigurar a realidade artisticamente,
transformando elementos do seu cotidiano em matéria para
a criação literária. Pena que os bons frutos que produziu não
tenham gerado sementes.
A obra de Gregório de Matos revela que sua atenção se
voltava para fatos próximos, ligados a assuntos do cotidiano,
apesar de ter ocupado cargos importantes. Ao tratar de
problemas como o despreparo dos administradores, a
corrupção, a frouxidão dos costumes, a promiscuidade, enfim
dos problemas do dia a dia da colônia, leva-nos a acreditar que
teve uma vivência mais enraizada no Brasil. Sua poesia nos faz
pensar numa preocupação mais concentrada nos problemas
daqui e, com repetidas manifestações de apego ao Brasil,
permite que enxerguemos nela um sentimento de nativismo
(TEIXEIRA, 1977). Nesse sentido, foi mais brasileiro do que
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Vieira.
Precisamos considerar, porém, que foi uma voz isolada e
que permaneceu em silêncio até o final do século XIX, quando
sua poesia se tornou conhecida dos brasileiros. Isto quer dizer
que, apesar da importância dentro da literatura brasileira, a
contribuição de Gregório de Matos para o desenvolvimento
dela foi praticamente nula, pela inexistência de diálogo de sua
poesia com aquela produzida pelas gerações posteriores. A
descoberta tardia de sua obra impediu que os poetas nascidos
no século XVIII tivessem contato com ela, isto é, só se passou a
saber de sua existência quando era impossível exercer influência
sobre alguém porque já não se enquadrava aos padrões de
criação artística em vigor na década de 1880.
Ativid
ades
ATIVIDADES
1. Leia o fragmento a seguir do segundo capítulo do “Sermão
de Santo Antônio aos peixes”, de Antônio Vieira e
desenvolva as atividades propostas.
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior
auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de
ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar
ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de
converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume
quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem
Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus
parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança
destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal,
filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós
mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para
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que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as
pregações do vosso pregador Santo Antônio, como também
as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o
bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar
e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto
pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu
lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non
Unidade 2 . Aula
5
carperesolum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis,
etquaeprosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o
Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e
louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar,
Sagenaemissae in mare, diz que os pescadores «recolheram os
peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegeruntbonos in vasa,
malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que
louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos
com clareza, dividirei peixes, o vosso sermão em dois pontos:
no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo
repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos
às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que
experimentá-las depois de mortos.
Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem
vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e
sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou
primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da
terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu
Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três
elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes,
os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesitpiscibusmaris
et volatilibuscaeli, et bestiis, universaequeterrae. Entre todos
os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os
maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves
e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação
na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista
da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela
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nomeou pelo seu: Creavit Deus cetegrandia. E os três músicos
da fornalha da Babilônia o cantaram também como singular
entre todos: Benedicite, cete e tomniaquae moventur in aquis,
Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências
de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas
isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades,
e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e
não para o púlpito. (VIEIRA, Antônio. Disponível em www.
dominiopublico.gov.br)
a. Como Vieira caracteriza os peixes, como auditório,
quanto a virtudes e defeitos?
b. Comente a frase “Mas esta dor é tão ordinária, que já
pelo costume quase se não sente”, sob a perspectiva da
conversão ao catolicismo.
c. Vieira cita as propriedades do sal e, a partir delas, divide o
sermão em duas partes. Indique quais são as duas grandes
partes e o que é tratado em cada uma delas.
2. Responda as questões sobre os dois sonetos de Gregório
de Matos, destacados a seguir (disponíveis em <www.
dominiopublico.gov.br>):
AOS PRINCIPAIS DA BAHIA CHAMADOS OS
CARAMURUS
Há cousa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.
A linha feminina é carimá
Moqueca, pititingacaruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piraguá.
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
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Concerto Barroco
Dormiu no promontório de Passé.
vocabulário
• Aricobé: nome de tribo indí-
O Branco era um marau, que veio aqui,
gena.
Ela era uma Índia de Maré
• Caramuru:
Cobé pá, Aricobé, CobéPaí.
homem
branco.
No soneto, com sentido pejorativo, origina-se do apelido de
Diogo Álvares.
• Carimá: bolo de farinha de
mandioca.
AO MESMO ASSUNTO
• Cobé pá: dialeto dos índios
Cobé que habitavam próximo
Um calção de pindoba a meia zorra
da cidade. Pá é o afirmativo
“sim”.
Camisa de Urucu, mantéu de Arara,
• Marau: malandro.
Em lugar de cotó arco, e taquara,
• Mui prezado: muito desejoso.
Penacho de Guarás em vez de gorra.
• Paiaiá: indígena de Sergipe;
pajé, feiticeiro.
• Passé: possibilidade de dois
Furado o beiço, e sem temor que morra,
sentidos: localidade não iden-
O pai, que lho envazou cumatitara,
tificada ou tribo indígena da
Senão a Mãe, que a pedra lhe aplicara,
dos: localidade não identificada; apócope de epiraguara, si-
Animal sem razão, bruto sem fé,
nônimo de caipira; pilão.
Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra,
• Pisado: socado no pilão.
De Paiaiá virou-se em Abaeté.
• Pititinga:
nomes
de
peixe;
manjuba ou enchova.
• Tatu: talvez se refira a um
Não sei, once acabou, ou em que guerra,
famoso chefe indígena. (MA-
Só sei, que deste Adão de Massapé,
LARD, 1998).
Unidade 2 . Aula
A reprimir-lhe o sangue, que não corra.
5
Amazônia.
• Piraguá: pode ter três senti-
• Camisa de urucu: referência
Procedem os fidalgos desta terra.
à tinta de urucu com que os índios pintam o corpo.
• Cuma: com uma (elipse)
• Gorra: gorro.
Tomando por referência a divisão temática
da poesia de Gregório de Matos proposta por
Letícia Malard (1998), indique, desenvolvendo
argumentos, a quais deles os sonetos melhor se
enquadram.
• Guarás: espécies de ave.
• Lho envazou cumatitara: furou o lábio com um espinho de
palmeira.
• Mantéu de arara: capa feita
com penas de arara.
• Massapé: dois sentidos, massapê, terra fértil para a cultura
da cana ou designação para as
a. Na poesia em que Gregório de Matos aborda
problemas da sociedade, o eu lírico pode
ter duas posturas, dependendo do teor: a
de sofrimento com a situação e a de mero
espectador (MALARD, 1998). Indique com
argumentos em qual delas se classifica o eu
lírico de cada soneto.
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terras de propriedade de Mem
de Sá.
• Pedra: enfeite que os índios
trazem no lábio.
• Penacho: penas que adornam
a cabeça.
• Pindoba: variedade de palmeira
(MALARD, 1998)
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
b. As figuras humanas da poesia de Gregório de Matos
são vivas, isto é, não são idealizadas. Descreva como se
percebe isso nesses dois sonetos.
c. Dois traços marcantes em Gregório de Matos e Antônio
Vieira são a forma irônica com que tratam os assuntos
e o uso das antíteses. Indique como observamos tais
marcas no fragmento do “Sermão de Santo Antônio aos
peixes” e nos dois sonetos.
Resumindo
Re
RESUMINDO
Nesta aula, estudamos autores das primeiras
manifestações literárias no Brasil e como essas produções se
vinculam ao meio em que surgiram. Os relatos de viagem, a
começar pela Carta, de Pero Vaz de Caminha, apresentam
informações sobre as peculiaridades naturais e possíveis
riquezas existentes. Com os colonos pioneiros, vieram os
jesuítas, entre eles Manuel de Nóbrega e José de Anchieta, que
deixaram textos escritos, em particular o último, considerado
por alguns críticos como seguidor de Gil Vicente. Entretanto,
coube a Bento Teixeira escrever o primeiro texto literário no
Brasil, Prosopopeia, inspirado no sucesso de Os Lusíadas,
mas sem a mesma grandeza, o que também sucedeu a Manuel
Botelho de Oliveira e Manuel Santa Maria Itaparica, pois
lhes faltou originalidade e talento para se desprenderem do
molde. Tais qualidades nós encontramos em Antônio Vieira e
Gregório de Matos, cuja importância para a literatura brasileira
consiste, entre outros aspectos, na forma como retrataram o
século XVII.
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Concerto Barroco
REFERÊNCIAS
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Suas anotações
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2ª
unidade
AULA 6
ACORDES ÁRCADES E ECOS
CAMONIANOS NO BRASIL
OBJETIVOS
Reconhecer as principais proposições estéticas e a
importância dos autores árcades na formação da
Literatura Brasileira, identificando os ecos camonianos no
Arcadismo brasileiro.
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
1 INTRODUÇÃO
Nas aulas anteriores, estudamos obras que representam
o conjunto das primeiras manifestações literárias do Brasil,
no qual se incluem produções escritas nos séculos XVI e
XVII. Alguns textos surgiram como documentos históricos,
Unidade 2 . Aula
6
mas terminaram se incorporando à tradição literária, como a
Carta, de Caminha, e os chamados relatos de viagem. Os autos
de Anchieta surgiram com feições literárias e são valorizados
como tais, mas se destinavam à conversão dos índios ao
catolicismo. Os Sermões, de Antônio Vieira, nasceram
como fruto do interesse da época pelos modelos grecoromanos e se tornaram exemplos do bom aproveitamento
de formas superadas, graças ao talento do padre jesuíta.
Por fim, existem as produções concebidas com intenções
estéticas que, independente de qualquer julgamento, devem
ser valorizadas por expressar a vontade consciente de criar
um objeto artístico, pelo esforço na imitação de grandes
escritores e pela preocupação em incorporar aspectos da
realidade brasileira. Como vimos, quem melhor cumpriu
todos esses objetivos foi Gregório de Matos. Sua poesia,
entretanto, ficou desconhecida por longo tempo, por isso é
um autor que não se inscreve entre aqueles que promoveram
a continuidade literária, ou seja, a sucessão de uma geração de
escritores por outra. Esse processo só se efetivou na literatura
brasileira a partir do século XVIII, como começaremos a ver
daqui pra frente.
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2 ECOS DE CAMÕES NAS MONTANHAS
MINEIRAS
Você se lembra de que, em várias oportunidades,
mencionamos a importância de Luís de Camões para
a literatura em língua portuguesa. Uma maneira de
dimensionarmos seu valor, assim como no caso de qualquer
outro autor, é verificarmos de que modo sua obra vem
repercutindo ao longo do tempo, bem como identificarmos
que os autores de épocas próximas a que ele viveu o tenham
tomado por referência. Tais fatos se somam a uma série de
fenômenos ocorridos nos anos oitocentos que contribuíram
significativamente para o desenvolvimento da literatura no
Brasil.
Os sinais do nascimento de uma literatura com traços
brasileiros começaram a aparecer com mais clareza no século
XVIII, quando do surgimento de algumas das condições
necessárias para tanto. O tipo de ocupação do território
adotado pelos portugueses e a economia baseada na agricultura
determinaram que, inicialmente, as aglomerações urbanas
fossem esparsas e isoladas umas das outras. A descoberta de
pedras e metais preciosos nos anos setecentos alterou o curso
dos fatos porque possibilitou, em curto espaço de tempo, que
surgissem cidades próximas umas das outras, principalmente
em Minas Gerais, onde se concentravam as principais
jazidas. Nelson Werneck Sodré (1988) aponta uma série de
transformações que ocorreram na região, em consequência da
exploração de minérios.
De acordo com Sodré (1988), ocorreram mudanças
significativas na vida da colônia, entre elas o esboço de
um mercado interno com a intensificação na circulação de
pessoas e produtos. O comércio se desenvolveu juntamente
com outras atividades como as artesanais e determinou
o crescimento no emprego de mão de obra livre. Mesmo
a relação do escravo com o senhor se tornou diferente
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
em relação àquela que prevalecia na agricultura. O poder
público se fortaleceu administrativa e politicamente, com
reestruturação do sistema de controle e gerenciamento,
revigorando o poder judiciário, a fiscalização e as milícias,
isto é, os mecanismos de controle. Enquanto as funções
ligadas ao poder público exigiam mais pessoas, outras antes
inexistentes começaram a fazer parte da paisagem social,
tornando-a mais diversificada. A cidade passou a ter papel até
então desconhecido e a vida urbana adquiriu características
mais próximas das que conhecemos hoje.
Assim, as aglomerações humanas que, no período
anterior, funcionavam apenas como portos de embarque
dos produtos, passaram a desempenhar função econômica
e social relevante. A agricultura provocava movimentação
sazonal determinada pelo ritmo da colheita da cana, o que se
Unidade 2 . Aula
6
dava no momento em que se fazia o embarque do açúcar. Na
mineração, a extração na lavra e o envio para a Europa eram
permanentes, proporcionando fluxo ininterrupto de carga
e de pessoas, sendo importante levarmos em consideração
outro fator. Anteriormente, as cidades se situavam a grandes
distâncias uma das outras, situação que se modificou com a
nova realidade econômica, quando a presença de minerais
propiciou o surgimento de concentrações pouco afastadas
geograficamente. Tal fato favorecia os deslocamentos,
atraía gente de outras regiões e exigia a criação de serviços
e atividades para atender as necessidades das pessoas
(SODRÉ, 1998).
Oambientecitadinoémaispropícioaodesenvolvimento
das atividades literárias porque favorece a aproximação entre
os indivíduos, estimulando sua organização em grupos. O
espírito associativo é indispensável à literatura porque a obra
nasce para circular de mão em mão (CANDIDO, 1981), ou
seja, precisa ser lida, comentada, debatida. Devemos considerar
ainda que, na época, os indivíduos letrados se concentravam
nas cidades, por isso o crescimento urbano favoreceu a
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expansão da rede de ensino e estimulou a fermentação de
ideias. O acúmulo de riqueza devido à mineração permitiu
que maior número de famílias enviasse seus filhos homens
para estudar nas universidades europeias (SODRÉ, 1988).
Lá, eles encontravam oportunidades de acesso a livros,
tomavam contato com as novidades estéticas e conviviam
de perto com uma realidade cultural viva e dinâmica. Muitos
deles prolongavam sua estada após a conclusão do curso e
viajavam por vários países antes de regressarem.
Quando aqui chegavam, esses rapazes passavam a
desfrutar de grande prestígio social, juntando-se aos homens
mais autorizados para discutir, difundir e produzir literatura,
como os religiosos, os militares graduados e os magistrados
(CANDIDO, 1981). Foram indivíduos oriundos desses
segmentos que formaram o grupo de poetas cujos nomes
estão associados ao Arcadismo e que são apontados como
fundadores da literatura brasileira. Um dos mais ilustres foi
Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), minerador, advogado
que exerceu diversas funções públicas como juiz medidor de
Figura 2.6.1 - Cláudio Manuel da
Costa. Fonte: http://pt.wikipedia.
org/wiki/Cl%C3%A1udio_Manuel_
da_Costa
terras, senador por Ouro Preto e secretário de governo. Foi,
indiscutivelmente, figura das mais destacadas da literatura
de língua portuguesa, por isso temos nele um dos nossos
principais sonetistas, modalidade em que sua habilidade é
comparada à de Camões.
Luciana Stegagno-Picchio afirma que:
sua poesia terá grande influência sobre a
futura literatura brasileira. O soneto, de
puras formas neoclássicas, de Cláudio Manuel da Costa, em que a lição de Petrarca e
de Camões se dilui numa nova doçura expressiva, constituirá, ainda no fim do século XIX, um modelo para os parnasianos
(1997, p. 127).
Em outras palavras, Cláudio Manuel da Costa
tomou por modelo Petrarca e Camões, respectivamente, o
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criador do soneto moderno e o poeta que renovou a forma ao
adequá-la aos motivos literários e à linguagem de seu tempo,
como já vimos. A criatividade e o talento do poeta mineiro
o transformaram em exemplo para brasileiros de gerações
futuras, como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, cuja aceitação
pelos leitores avançou o século XX, apesar de criticados pelos
modernistas.Na avaliação sobre o talento de Cláudio Manuel
da Costa, Antonio Candido diz que “Nos sonetos se encontra
pois, de modo geral, a sua mais alta realização, e não constitui
novidade escrever que é dos maiores cultores dessa forma em
nossa língua” (1981, p. 93). Antonio Candido salienta que três
assuntos são constantes na obra do mineiro: as montanhas, o
dilaceramento interior e o esforço para expressar a realidade de
sua terra.
As sucessivas referências a montanhas, que Antonio
Unidade 2 . Aula
6
Candido denomina de “imaginação de pedra”, deve-se ao
fascínio de algumas tendências literárias de então por rochas
e cavernas, “talvez pela irregularidade poderosa com que
representam movimentos plásticos” (CANDIDO, 1981, p. 96).
O sofrimento íntimo que dilacera o eu lírico se deve à oposição
de sentimentos do poeta, dividido afetivamente entre Brasil e
Portugal. Homem apegado ao local de nascimento, sempre
esteve ligado emocionalmente a suas raízes, das quais extraía
o objeto de seu interesse, como podemos observar no soneto
LXII:
Torno a ver-vos, ó montes: o destino
Aqui me torna a pôr nestes oiteiros;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte rico, e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
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Que da cidade o lisonjeiro encanto;
Aqui descanse a louca fantasia;
E o que até agora se tornava em pranto,
Se converta em afetos de alegria.
(Disponível em www.domíniopublico.br)
A formação intelectual de Cláudio Manuel da Costa se
deu na Europa, onde realizou os estudos superiores, aprendeu
as normas de poesia que praticava e se tornou escritor. Assim,
sentia-se preso aos dois lugares ou, se quisermos, a dois
mundos, daí a criação de uma poesia em que alterna estados de
espírito, ora pedindo desculpas pela rusticidade de seus versos,
ora os elevando às alturas. Podemos entender tais oscilações
ao conflito do indivíduo que confrontava internamente uma
realidade que julgava mais próxima dos estágios primitivos
da humanidade com a cultura europeia, a qual considerava
superior, segundo o pensamento de sua época. Essa noção de
superioridade fica mais clara se considerarmos fenômenos em
curso naquele momento como a Independência dos Estados
Unidos, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
Devemos esclarecer que o poeta não vivenciou de
perto todos estes acontecimentos, porém esteve na Europa
num período em que o Iluminismo, corrente filosófica que
o orientou, estava no auge. Disso, decorre a “ambivalência de
colonial bairrista, crescido entre os duros penhascos de Minas,
e de intelectual formado na disciplina mental metropolitana”.
Daí que “seus pastores encarnam o drama do artista brasileiro,
situado entre duas realidades, quase diríamos duas fidelidades”
(CANDIDO, 1981, p. 91).
Para entendermos a terceira constante da poesia de
Cláudio Manuel, precisamos levar em consideração o contexto
político e econômico do século XVIII. A mineração enriqueceu
muitos indivíduos, permitindo a formação de uma elite que
se sentia prejudicada pela coroa portuguesa. Diferente dos
plantadores de cana-de-açúcar, até então o segmento social
mais influente e que fora fiel ao rei, a nova classe adotou postura
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O Iluminismo foi o nome do “movimento intelectual situável na Europa
do século XVIII, embora com importantes antecedentes, nomeadamente
na Grécia antiga, e que parte da identificação entre cultura e civilização,
convertida em ideal de razão, ciência e progresso. Tal movimento, que se
reclama herdeiro do racionalismo do século XVII, tem alguns dos seus representantes mais influentes na França, Suíça e Alemanha. Os escritos de
Jean-Jacques Rosseau e dos enciclopedistas franceses polarizam boa parte do movimento, mas o facto de a filosofia de Kant ou a literatura favorável às Revoluções Americana e Francesa serem frequentemente incluídas
no seu âmbito torna a respectiva caracterização mais difícil de sintetizar.
Francis Bacon, Descartes, Newton e Locke são alguns dos filósofos e cientistas usualmente apontados como precursores próximos. Representante
típico do iluminismo setecentista é o alemão J. Christian Wolff, que no livro
Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo, a alma humana e todas as
coisas em geral (1720) expõe as suas convicções fundamentais: a razão
humana tem a possibilidade de dissipar as nuvens da ignorância, do erro
e da injustiça, até iluminar, como um sol, o caminho da ciência que há-de
permitir à humanidade o progresso e a felicidade. Os princípios iluministas
andam em geral associados a uma crítica racional propícia à investigação
científica e tecnológica, à tolerância, ao humanitarismo e aos direitos universais do homem”.
Unidade 2 . Aula
6
Fonte: E-Dicionário de Termos Literários- verbete elaborado por J. M. de Souza
Nunes. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/I/iluminismo.
htm.
contestadora, manifestou suas insatisfações políticas e
fomentou conspirações contra a metrópole. Tais fatos são
sinais do crescimento do nativismo, pois os habitantes da
colônia não se sentiam portugueses. Em contrapartida,
o adjetivo “brasileiro”, empregado com o propósito de
desqualificar os nascidos aqui, passou a ser motivo de
orgulho para eles (SODRÉ, 1988).
Podemos compreender, pois, que, em meio a esse
ambiente, Cláudio Manuel da Costa tenha se preocupado
com assuntos locais, por vezes, com ares patrióticos, como
podemos observar no soneto XCVIII:
Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Figuras 2.6.2 - Iluministas: Francis
Bacon,
René
Descartes,
Jonh
Locke, Isaac Newton, Jean-Jacques
Rousseau. Fontes: http://commons.
wikimedia.org
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
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Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano;
Vós que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência mais se apura.
(Disponível em www.dominiopublico.br)
As seguidas referências a montanhas, vales, rios e outros
elementos característicos valorizavam o ambiente brasileiro
e são indícios de que o sentimento nativista se espalhava. A
transposição para o campo da literatura de aspectos da natureza
tem caráter inovador porque acrescentou ingredientes para a
criação artística e contribuiu para a construção de símbolos
que se incorporaram ao imaginário artístico. Numa perspectiva
mais ampla, podemos situar a temática na linha inaugurada por
Caminha, seguida por outros cronistas e por poetas do século
XVI que, independente de produzirem ou não textos literários,
mencionam os elementos naturais ao lado do índio, assuntos
que se tornaram recorrentes na nossa literatura, como veremos
adiante.
Cláudio Manuel da Costa foi mais além, porque expressou
em atitudes práticas a preocupação com sua terra, tomando parte
da Inconfidência Mineira, assim como outros poetas. Entre suas
motivações, estava o reflexo de seus contatos com os ideais do
Iluminismo durante sua estada na Europa. Sem desmerecer os
demais, seu nome também se distingue pelo papel de fundador
da literatura brasileira porque, segundo Antonio Candido (1981),
influenciou diretamente as gerações subsequentes, a começar
pelos que vieram logo depois dele, como Basílio da Gama, Tomás
Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto.
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saiba mais
Devemos relembrar o que foi, em linhas gerais, a Inconfidência Mineira:
“[...] as elites intelectuais e econômicas da economia mineradora, influenciadas pelo iluminismo, começaram a se articular em oposição à dominação
portuguesa. No ano de 1789, um grupo de poetas, profissionais liberais,
mineradores e fazendeiros tramavam tomar o controle de Minas Gerais. O
plano seria colocado em prática em fevereiro de 1789, data marcada para
a cobrança da derrama. Aproveitando-se da agitação contra a cobrança do
imposto, os inconfidentes contaram com a mobilização popular para alcançarem seus objetivos. Entre os inconfidentes estavam poetas como Claudio
Manoel da Costa e Tomas Antonio Gonzaga; os padres Carlos Correia de
Toledo, o coronel Joaquim Silvério dos Reis; e o alferes Tiradentes, um dos
poucos participantes de origem popular dessa rebelião. Eles iriam proclamar
a independência e a proclamação de uma república na região de Minas. Com
a aproximação da cobrança metropolitana, as reuniões e expectativas em
torno da inconfidência tornavam-se cada vez mais intensas. Chegada a data
da derrama, sua cobrança fora revogada pelas autoridades lusitanas. Nesse meio tempo, as autoridades metropolitanas estabeleceram um inquérito
para apurar uma denúncia sobre a insurreição na região de Minas. Através
da delação de Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou seus companheiros
pelo perdão de suas dívidas, várias pessoas foram presas pelas autoridades
6
de Portugal. Tratando-se de um movimento composto por influentes integrantes das elites, alguns poucos denunciados foram condenados à prisão
Unidade 2 . Aula
e ao degredo na África. O único a assumir as responsabilidades pela trama
foi Tiradentes. Para reprimir outras possíveis revoltas, Portugal decretou o
enforcamento e o esquartejamento do inconfidente de origem menos abastada. Seu corpo foi exposto nas vias que davam acesso a Minas Gerais. Era
o fim da Inconfidência Mineira. Mesmo tendo caráter separatista, os inconfidentes impunham limites ao seu projeto. Não pretendiam dar fim à escravidão africana e não possuíam algum tipo de ideal que lutasse pela independência da ‘nação brasileira’. Dessa forma, podemos ver que a inconfidência
foi um movimento restrito e incapaz de articular algum tipo de mobilização
que definitivamente desse fim à exploração colonial lusitana”.
Fonte: http://www.brasilescola.com/historiab/inconfidencia-mineira.htm.
3 HERANÇA DE CLÁUDIO MANUEL: O PARDO DE
VERGONHAS DESCOBERTAS COMO HERÓI
Quando pensamos no Arcadismo brasileiro, precisamos
entender que não foi um movimento coeso e articulado, em
que os escritores se reuniam para debater propostas estéticas e
criar obras literárias que as representassem. Apesar de ter em
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comum o fato de nascer ou viver em Minas Gerais, nem todos
chegaram a se encontrar diretamente, por isso não formaram
um grupo orgânico. Cláudio Manuel da Costa esteve isolado
em Vila Rica, a partir de 1754, quando retornou de Portugal.
Em 1776, Alvarenga Peixoto (1744-1893) se juntou a ele e
Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) completou o trio seis
anos mais tarde. Basílio da Gama passou boa parte de sua vida
em Portugal, onde teve contato com Silva Alvarenga que, de
volta ao Brasil, fixou-se no Rio de Janeiro. Santa Rita Durão
saiu daqui aos nove anos de idade e nunca mais retornou
(CANDIDO, 1981).
Assim, quando falamos em grupo de poetas, não estamos
nos referindo a uma ação articulada e consciente de indivíduos.
Considerando-se a data de nascimento, Santa Rita Durão e
Cláudio Manuel da Costa pertencem à geração da década de 1720
e os demais formam a geração dos anos 1740. Literariamente,
porém, a ordem muda porque Durão, o mais velho de todos, foi
dos últimos a estrear. Mesmo assim, também são dois grupos:
aqueles que ficaram conhecidos pela poesia lírica, com Cláudio
Manuel influenciando os outros, e os que escreveram poemas
épicos, sendo Basílio um dos modelos de Durão.
Divisões à parte, o fato fundamental é que a poesia que
fizeram tem parentesco com a obra de Camões. Em autores
como Basílio da Gama, verifica-se um “aproveitamento
requintado de leituras”, de acordo com Candido (1981, p. 129),
isto é, as alusões são menos explícitas. Os autores brasileiros
de epopeia partilham do mesmo ponto de vista em relação aos
povos dominados: a ideia de superioridade da cultura europeia
e o caráter elevado da conquista.
3.1 Basílio da Gama: criador de belas imagens do
índio e da natureza
De um modo geral, podemos afirmar que toda obra
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
literária é resultado de outras que a antecederam, ou seja, os
autores sempre dialogam com outros que os precederam,
confirmando-os ou deles distanciando-se. Nem sempre
identificamos de imediato o processo de “filiação”, porque é
algo que acontece de muitas maneiras. O certo é que, quanto
mais tivermos informações sobre literatura, mais aptos
estaremos para desvendar os parentescos entre os textos. No
caso da ascendência de Cláudio Manuel da Costa sobre poetas
brasileiros do século XVIII, há fatos comprobatórios, como a
convivência com Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto
e a admiração que manifestavam por ele, conforme Antonio
Candido (1981).
Do ponto de vista literário, podemos identificar
afinidades por elementos que as obras sugerem para
estabelecer as pontes, exemplificados pela presença de aspectos
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característicos de Minas Gerais e da paisagem tropical, bem
como pela representação do índio. Se levarmos em consideração
acontecimentos históricos e fenômenos sociológicos, ou seja,
as insatisfações com a coroa portuguesa e o despertar de um
nativismo, encontraremos outros caminhos que permitem
a aproximação entre os poetas do século XVIII. Com isso,
podemos entender certas particularidades da literatura
produzida no período como reflexo do contexto social.
As motivações que levaram os poetas do Arcadismo
brasileiro a se interessar por assuntos locais variam. Cláudio
Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, por exemplo, tiveram
postura de comprometimento com os problemas imediatos de
um segmento social, enquanto Basílio da Gama e Santa Rita
Durão foram movidos por outros interesses pessoais, como,
por exemplo, a intenção de conquistar a simpatia do Marquês
de Pombal, para com isso alcançar favores e benefícios.
Basílio da Gama publicou O Uraguai em 1769.
Composto em versos decassílabos brancos e dividido em cinco
cantos, o poema representa a luta de portugueses e espanhóis
contra os índios das missões controladas pelos padres jesuítas.
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A narração está ambientada em área que hoje
corresponde a região da fronteira entre Brasil com a
Argentina e o desenvolvimento do enredo se dá em
torno do combate lusitano aos índios, porém termina
por engrandecê-los, com destaques para as figuras de
para conhecer
Sepé, Cacambo e Catitu.
O propósito da obra de Gama era elogiar
Figura 2.6.3 - Marques de Pombal.
Fonte: http://commons.wikimedia.org/
wiki/File:Marques_de_Pombal.jpg
Sebastião José de Carvalho e
Melo (1699-1782), o Marquês
de Pombal, político e importante líder de Portugal durante
o reinado de José I, ficou conhecido pela modernização que
introduziu em Portugal e pela
expulsão dos jesuítas. Em 1750,
foi nomeado ministro para Assuntos Exteriores. Quando do
terremoto que destruiu Lisboa,
no ano de 1755, organizou as
forças de auxílio e planejou a
reconstrução da cidade, se tornando primeiro-ministro nesse
mesmo ano. A partir de 1756,
com poderes quase absolutos,
realizou um programa político
de acordo com os princípios do
Iluminismo,
reorganizando
o
sistema educacional, elaborando
novo código penal, reformulando
o exército e a marinha, estimulando a agricultura, o comércio e
as finanças. Em 1770, recebeu
o título de marquês. Suas reformas desagradaram setores da
aristocracia e foram mal recebidas pelos jesuítas, ressentidos
com sua expulsão. Depois da
morte de D. José, foi condenado
por abuso de poder. Expulso da
Corte, retirou-se para sua propriedade rural em Pombal, onde
faleceu.
Fonte: www.arqnet.pt/dicionario/
pombal1m.html, acesso em abril.
2011.
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a política do Marquês de Pombal, com quem se
reconciliava no momento em que a publicou. Exaluno de colégio jesuíta, o poeta chegou a ser preso em
Lisboa, no ano de 1767, sob a acusação de conspirar
em favor da Companhia de Jesus, sendo condenado
ao degredo em Angola. Depois de suplicar clemência
em um poema dedicado à filha do Marquês, não só
foi perdoado como se tornou protegido do dirigente
português (MARTINS, 1992).
Antônio Gomes Freire de Andrade, que
exercia o cargo correspondente a governador do Rio
de Janeiro, foi o comandante das tropas portuguesas
no ataque aos índios, ordenado por Pombal durante o
processo de expulsão dos jesuítas de Portugal e suas
colônias. Assim, deveria ser a personagem principal
da narrativa de Basílio da Gama que, apesar de tal
propósito, deu mais destaque para os guerreiros
indígenas. Sintonizado com o espírito de seu tempo,
revela afinidades com ideias de filósofos franceses
sobre a valorização da vida primitiva, sensorial e
intuitiva do habitante da selva.
A obra opõe o pensamento lógico do europeu,
representada por espanhóis e portugueses, ao mundo
do homem americano, seu saber rudimentar e suas
virtudes naturais. Conforme Antonio Candido,
Basílio da Gama escreveu o poema movido pela:
[...] intenção ostensiva, [de] fazer
um panfleto antijesuítico para con-
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ciliar as graças de Pombal. A análise revela,
todavia, que também outros intuitos animavam o poeta; notadamente descrever o
conflito entre a ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio (1981, p.
127-128).
Basílio da Gama valoriza, sobretudo, as qualidades
morais dos indígenas, cuja participação nos episódios da
guerra, entretanto, é insuficiente para dar dimensão épica ao
poema, porque as cenas que protagonizam são destituídas de
grandiosidade. Os episódios mais marcantes de O Uraguai
não colocam as personagens diante de forças superiores ou
que exijam qualidades excepcionais. Cacambo é de índole
pacífica, por isso se sente contrariado com a guerra; assim,
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aquilo que se perde pela ausência de elementos épicos
é compensado pela habilidade do poeta em aproveitar a
plasticidade e o colorido sugerido pelos elementos naturais
e humanos nativos. Há belos quadros que expressam o viço
da mata, o frescor das águas, o multicolorido das plumas e
das flores, segundo Antonio Candido (1981).
Juízo semelhante faz Luciana Stegagno-Picchio
(1997, p. 139), sintetizando os atributos do frei jesuíta pela
“elaboração de versos musicais nos quais se percebe o eco
de Virgílio, de Petrarca, do Tasso ou de Camões, mas em
que a natureza tem cores de impressão setecentista”. Apesar
da elevação à condição de herói, o indígena é caracterizado
como homem rude, sem disciplina, sem valor, sem armas, ou
seja, um indivíduo inferior do ponto de vista do colonizador,
como se observa no canto II. Quem emite o juízo é Gomes
Freire e devemos compreendê-lo como representativo da
visão da civilização europeia, que não reconhece no modo
de vida do elemento autóctone uma cultura diferente porque
via nela a ausência de cultura.
Basílio da Gama repete na ficção aquilo que Caminha
escreveu a respeito dos habitantes da terra da qual os
portugueses se apossavam. Apesar da simpatia com que se
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refere aos “homens, pardos, todos nus, sem nenhuma cousa
que lhes cobrisse as suas vergonhas” (CASTRO, 1985, p.
76), encerra a Carta prevendo o proveito que o contato com
os nativos poderá render ao catolicismo. Em outras palavras,
não levou em consideração as crenças religiosas dos índios
que sequer conhecia naquele momento. Do mesmo modo, a
ideia de indisciplina pressupõe o ordenamento hierarquizado
do mundo sob a perspectiva da tradição judaico-cristã, ou
seja, da fé católica e da estrutura econômica do capitalismo.
A representação da vida indígena por Basílio da
Gama levava o leitor da época a imaginar uma forma de
organização social e econômica caótica e ignora o fato de o
nativo brasileiro ter outra maneira de viver e de se relacionar
com seus semelhantes e com o mundo circundante. No
pensamento do poeta, seres que desconheciam a escrita
não professavam a fé católica e se tinham comportamentos
e maneiras diferentes de ordenação social não podiam se
equiparar ao europeu. A constatação pela voz de Gomes
Freire de que era um povo sem armas sintetiza a visão do
conquistador, mas é incoerente em relação à forma como
os portugueses impuseram sua cultura. Quando chegaram
ao Brasil, eles empregaram a força bélica para se apropriar
de terras pertencentes aos nativos, que resistiram como
puderam antes de perdê-las.
Aspectos como esses permitem que façamos a
aproximação entre o Uraguai e Os Lusíadas. Nos dois casos
ocorre a representação do português como povo guerreiro,
valente e brioso. Em Basílio, a contradição é flagrante, porque
as qualidades atribuídas a Sepé, Catitu e Cacambo dotam o
índio dessas mesmas virtudes, apesar da descrição negativa
da sua organização social e do menosprezo por suas armas.
Podemos observar isso no fragmento a seguir do já referido
canto II:
Caitutu de outra parte altivo e forte
Opunha o peito à fúria do inimigo,
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E servia de muro à sua gente.
Fez proezas Sepé naquele dia.
Conhecido de todos, no perigo
Mostrava descoberto o rosto e o peito
Forçando os seus co’ exemplo e co’as palavras.
Já tinha despejado a aljava toda,
E destro em atirar, e irado e forte
Quantas setas da mão voar fazia
[...]
Morto o grande Sepé, já não resistem
As tímidas esquadras. Não conhece
Leis o temor. Debalde está diante,
E anima os seus o rápido Cacambo.
(Disponível em www.dominiopublico.gov.br)
Podemos observar que, graças à altivez, à força, à
destreza e ao ímpeto que lhes são próprios, os indígenas se
opõem com bravura aos ataques de espanhóis e portugueses,
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desmentindo a caracterização pejorativa feita por Gomes
Freire. É bom lembrar que, no século XVIII, Portugal e
Espanha estavam entre as nações de maior poderio militar,
entretanto tais contradições não desqualificam a obra nem
desmerecem seu autor. Se expressam valores que hoje
consideramos absurdos, é porque correspondem a uma época
cuja visão de mundo, felizmente, já foi superada.
Paralelamente aos combates pela posse da terra,
ocorre a disputa pelo amor de Lindoia, esposa de Cacambo,
o chefe indígena. A jovem é desejada pelo inescrupuloso
padre Balda, administrador das missões que, com a intenção
de conquistá-la, aprisiona e mata seu marido, dando-lhe uma
bebida misteriosa. Tanajura, velha índia dotada de poderes
sobrenaturais, conduz a bela viúva até uma gruta, onde revela
por meio de visões o assassinato de Cacambo. Transtornada,
Lindoia entra em profundo estado de prostração e se deixa
ficar na caverna, onde foi picada por uma serpente, morrendo
em seguida.
A cena da morte de Lindoia, assim como as descrições
da paisagem e dos indígenas, revela o grande talento de
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Basílio da Gama para a construção de belas imagens, segundo
Antonio Candido (1981). Essas passagens, juntamente com
outras tantas de O Uraguai, somam-se às referências às
montanhas de Minas Gerais, que encontramos na poesia de
Cláudio Manuel da Costa como expressão de uma orientação
localista, presente na obra dos poetas brasileiros do século
XVIII.
3.2 Santa Rita Durão: conhecimento sobre a
vida do índio
Você se lembra quando dissemos que, apesar de ser
o mais velho dentre os poetas brasileiros de seu tempo,
frei José de Santa Rita Durão se aventurou pela literatura
tardiamente. Sabe-se que é autor de outros textos, alguns
escritos antes de publicar Caramuru, em 1781, mas esses
servem apenas para revelar a face menos conhecida do autor,
sendo de pouco ou nenhum valor literário (POLITO, 2000).
Com o ambicioso projeto de escrever um poema épico, sua
intenção principal era seguir o modelo de Camões, como se
vê nas “Reflexões prévias”, onde afirma que “Os sucessos
do Brasil não mereciam menos um poema que os da Índia”
(DURÃO, 2000, p. 5). Em outras palavras, considerava que
a passagem de Pedro Álvares Cabral pelo Brasil, em 1500,
quando rumava em direção à Índia, estava à altura da viagem
realizada por Vasco da Gama.
O enredo de Caramuru se desenvolve a partir de
um episódio protagonizado por Diogo Álvares ou Diogo
Álvares Correia, que se incorporou à historiografia e ao
imaginário brasileiros. Um dos primeiros brancos a se fixar
no Brasil, Álvares se estabeleceu em Salvador e consta como
fato mais conhecido de sua vida um naufrágio do qual foi
vítima, nas proximidades de Itaparica. A força das águas
arrastou o barco em que viajava até a praia, onde foi atacado
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pelos índios, porém sobreviveu porque fez disparar o
mosquetão que tinha em mãos, atemorizando os nativos que,
por desconhecerem arma de fogo, prostraram-se a seus pés,
entre reverentes e assustados, chamando-o de “caramuru”,
o equivalente a filho do fogo ou filho do trovão.
De acordo com os relatos, Diogo Álvares conhecia
línguas e costumes dos índios e se envolveu em guerras
entre tribos, tornando-se respeitado por alguns chefes.
Um deles teria lhe dado sua filha Paraguaçu como esposa,
com quem o português se casou. O casal chegou a viajar
para a França e lá Paraguaçu foi batizada na igreja católica,
recebendo o nome de Catarina. Paralelamente a esses fatos,
Durão trata do triângulo amoroso do qual faz parte Moema
que, inconformada com a partida de Caramuru, lança-se ao
mar e sai nadando em perseguição ao navio no qual ele viaja,
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morrendo afogada.
As informações a respeito de Caramuru são
contraditórias e nem todas são comprovadas, embora obras
como o Tratado descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares
de Souza, e a Crônica da Companhia de Jesus do Estado do
Brasil (1663), do padre Simão de Vasconcelos, mencionem
fatos relativos a sua vida. Além desses autores, Santa Rita
Durão também usa como fonte A relação da viagem que fez
ao Brasil a Armada da Companhia, do ano 1655 (1657), de
Francisco de Brito Freire, e A história da América Portuguesa
(1730), de Sebastião da Rocha Pita (CANDIDO, 1981).
Santa Rita Durão toma o naufrágio como mote para
descrever a colonização da Bahia pelos portugueses e segue
à risca a forma de Camões em Os Lusíadas, estruturando
seu poema em dez cantos, com estrofes de oito versos
e o esquema de rima ABABABCC. Compreende-se sua
postura, pois se ele considerava o assunto equivalente
ao abordado pelo português, é natural que recorresse aos
mesmos recursos para destacar a sua relevância. Importa
lembrar que no século XVIII Portugal estava em situação
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completamente distinta da vivenciada trezentos anos antes,
quando conheceu o apogeu econômico e militar. Na época
áurea, o país havia ocupado posição de vanguarda nas
grandes viagens marítimas, no comércio internacional e nas
conquistas territoriais (SARAIVA, 1984), sendo a chegada
de Vasco da Gama à Índia símbolo dessas glórias.
No tempo de Durão, a economia portuguesa
estava em declínio e as riquezas produzidas no Brasil eram
fundamentais para suas relações comerciais e financeiras com
outros países. A atividade extrativista chegava ao momento
de maior produção e as pedras e os metais preciosos de
Minas Gerais eram o principal produto que os portugueses
tinham para oferecer. Visto por essa perspectiva, o poema
sugere a comparação entre o passado e o futuro, com Índia e
Brasil funcionando, respectivamente, como metáforas para
as glórias de séculos anteriores e a promessa de redenção
num tempo vindouro, prenunciando-se pela atividade
mineradora.
A enumeração dos diversos aspectos das terras
brasileiras faz parte dessa ideia de um futuro glorioso e rico,
em particular a fertilidade do solo que produz a cana-deaçúcar, o tabaco, o milho, a mandioca, entre outras riquezas
enumeradas no canto VII:
Ervilhas, feijão, favas, milho e trigo
Tudo a terra produz, se transplanta;
Fruta também, o pomo, a pera, o figo
Com bífera colheita e em cópia tanta,
Que mais que no país que o dera antigo
No Brasil frutifica qualquer planta;
Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente
Os que a nós transplantamos de outra gente.
Nas comestíveis ervas, é louvada
O quiabo, o giló, os maxixeres,
A maniçoba peitoral presada,
A taioba agradável nos comeres,
O palmito de folha delicada,
E outras mil ervas, que, se usar quiseres,
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Acharás na opulenta natureza
Sempre com mimo preparada a mesa.
(DURÃO, 2001, p. 216-217)
A importância dada às propriedades do solo e à
variedade de plantas, frutas, raízes e peixes serve de pretexto
para realçar a abundância de alimentos e a facilidade de obtêlos no Brasil. A fecundidade da terra e a fartura de gêneros
remetem, por oposição, aos frequentes problemas enfrentados
pelos portugueses para se abastecerem do necessário como
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sustento (SARAIVA, 1984).
Durão também procura apresentar com minúcias
o homem nativo, outra particularidade do Brasil, para isso
descreve seus costumes, bem como as guerras entre as
tribos. A exemplo de Basílio da Gama, antepõe a cultura
indígena à europeia, chamando a atenção para sua conversão
ao catolicismo. Assim distingue os gentios, colocando de
um lado os dóceis e confiáveis e, do outro, os bárbaros,
correspondendo, respectivamente, aos convertidos e aos
que ainda não haviam se dobrado ao cristianismo. O artifício
é uma forma indireta de reforçar os elogios ao trabalho
dos jesuítas, engrandecido mais explicitamente em outras
passagens:
São desta espécie operários santos,
Que com fadiga dura, intenção reta,
Padecem pela fé trabalhos tantos,
O Nóbrega famoso, o claro Anchieta:
Por meio de perigos e de espantos,
Sem temer do gentio a cruel seta,
Todo o vasto sertão têm penetrado,
E a fé com mil trabalhos propagado
.
Em muitos trechos de Caramuru percebemos que a
descrição assume feições catalográficas, ou seja, o autor como
que cataloga itens, realizando uma enumeração extensa e até
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monótona. Nesses trechos observamos quanto Durão se prendeu
às fontes que tomou por referência, como lembra Antonio
Candido:
Afastado da pátria desde os nove anos, Durão
construiu dela uma noção minuciosamente
elaborada sobre alguns textos básicos, que
cita no prefácio e nas notas. Estes textos, –
Simão de Vasconcelos, Brito Freire, Rocha
Pita e outros, – de onde sai toda a informação
(1981, p. 179).
Dos eventos relativos à formação do Brasil, Durão
destaca fatos do passado como a distribuição das capitanias
hereditárias e a resistência portuguesa frente às ameaças
de franceses e holandeses. Também faz referências a
acontecimentos de seu tempo, como o tratamento de Pombal
aos membros da Companhia de Jesus. Cabe ressaltar que
Santa Rita Durão teve posição ambígua diante da expulsão dos
jesuítas de Portugal, segundo Ronald Polito (2000). Chegou a
tomar parte nas acusações de que seriam eles os responsáveis
pelo atentado sofrido pelo rei, Dom José, em 1758. A atitude
visava a agradar ao bispo de Leiria, que almejava aproximação
com o Marquês de Pombal, algo também ambicionado pelo
poeta.
O esforço foi em vão porque, após alcançar o objetivo
ambicionado, o prelado se esqueceu dos favores prestados
por Durão que, decepcionado, rompeu relações com ele e
se incompatibilizou com a ordem religiosa à qual pertencia.
Temendo perseguições, fugiu para a Espanha e, depois, para a
França, onde foi preso. Após ser libertado, fixou-se na Itália por
vários anos até que, pobre e desempregado, recorreu ao bispo de
Beja, solicitando sua intervenção junto a Pombal, obtendo com
isso o cargo de professor de teologia (CANDIDO, 1981).
As ambiguidades de Durão ultrapassam o plano da crença
religiosa e das vinculações com o poder político; pois, num certo
sentido, tais hesitações se fazem perceber na comparação com Os
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Lusíadas. Segundo Eneida Cunha, “Cópia de cópia, o Caramuru
tende a se materializar através de um esforço de repetição e
diferenciação distinto do requerido ao seu passado” (2006, p.
50). A autora prossegue sua argumentação, apontando duas
diferenças fundamentais. Camões construiu sua obra tomando
por referência grande quantidade de fontes, cuja origem nem
sempre se pode distinguir, enquanto para o mineiro ele é a única
referência, ainda que se percebam as alusões a outros escritores.
A outra distinção é que o acontecimento escolhido
por Camões se articula com a série de eventos relacionados à
fundação de Portugal. Trocando em miúdos, significa que entre
os séculos XII, época do surgimento do Condado Portucalense,
e o XV, quando se deu a bem sucedida aventura de Vasco
da Gama, ocorreram muitas lutas para garantir e expandir o
território português. A expedição do grande navegador, por
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seu ineditismo, representa uma segunda etapa dentro dos
vários estágios em que se deu a fundação do país. A chegada da
esquadra de Cabral ao Brasil, apesar de pertencer ao processo,
não apresenta caráter fundacional:
A viagem de Vasco da Gama às Índias, ao ser
erigida à condição de aventura épica, possibilitou ao poeta a articulação entre a conquista
do além-mar e as lutas anteriores pela preservação e expansão do território pátrio, culminado com um processo de construção de
nacionalidade precoce, ao qual o poema [Os
Lusíadas] atribuiu a qualidade e o valor compatíveis com o imaginário expansionista português: a dilatação da Fé (CUNHA, 2006, p.
51).
Segundo a autora, o desembarque de portugueses no
litoral baiano foi um desdobramento secundário do projeto
expansionista lusitano. Para melhor entender o caráter de episódio
que o descobrimento do Brasil teve dentro de acontecimentos
maiores, ou seja, a pouca representatividade em relação à viagem
de Vasco da Gama, basta lembrarmos que Pedro Álvares Cabral
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saiu de Lisboa com destino ao oriente, para repetir o mesmo
roteiro. A Índia foi efetivamente o rumo que tomou depois que
partiu daqui, conforme relata o escrivão Pero Vaz de Caminha
(CASTRO, 1985).
Diante desse impasse colocado pelos fatos, Santa Rita
Durão teve que buscar uma solução que tornasse viável seu
projeto literário, por isso deu dimensões épicas ao resultado
feliz do naufrágio de Diogo Álvares:
De Filho do Trovão denominado,
Que o peito soube dominar à fera gente;
O valor cantarei a adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.
É indiscutível que a viagem de Vasco da Gama foi
acontecimento maior e mais arriscado do que o acidente
sofrido por Diogo Álvares, portanto está mais à altura de uma
obra literária destinada a celebrar grandes feitos. O sucesso
da jornada eleva o comandante da frota que viajou à Índia
entre os homens que realizaram façanhas em todas as épocas,
colocando-o acima dos grandes nomes da história de Portugal
e dos grandes navegadores de seu tempo, daí a dimensão épica
que sua jornada assumiu.
Uma das obras em que Camões se inspirou é Odisseia,
modelo de tratamento literário para o tema da viagem. Em
Os Lusíadas, podemos reconhecer semelhanças do retorno de
Vasco da Gama à Lisboa com o regresso de Ulisses à Ítaca, sendo
ambos acolhidos com veneração. A personagem de Homero foi
saudada com honrarias porque reinstaurou a ordem, enquanto
o navegante português trouxe, no seu retorno, a perspectiva de
uma nova ordem. Num e noutro caso, o regresso dos viajantes
abre a perspectiva de um futuro promissor.
A viagem de Vasco da Gama assumiu proporções
extraordinárias porque ele realizou no mundo concreto algo
até então considerado impossível ao homem. Seu caráter
extraordinário é inquestionável, por isso revestido de caráter
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Ao redor do século
VIII
a. C. aparecem as
epopeias inspiradas na lenda da Guerra de
Tróia: a Ilíada e a Odisseia. Segundo a tradição, o seu autor é Homero, cuja atividade literária se baseia nas tradições orais,
transmitidas de geração em geração, sobre
as expedições gregas a Tróia (no Noroeste
da Ásia Menor). A lenda troiana narra o se-
obra porque esta era a mentalidade da época.
A professora Eneida da Cunha chama a nossa
atenção para outra distinção entre Diogo e
Vasco da Gama, que é o fato de Caramuru
não ter ascendência heroica, porque seu
heroísmo é acidental, “construído a partir
de um insucesso: do naufrágio próximo
ao litoral da Bahia de Todos os Santos, em
guinte: Paris, filho de Príamo, rei de Tróia,
flagrante contraste com a viagem desejada e
venturosa de Vasco da Gama” (2006, p. 54).
Nem tudo, porém, é demérito no
poema de Durão. Antonio Candido vê nele
se pela sua universalidade, pois superam
todos “os elementos tradicionais do gênero
[épico]: duros trabalhos de um herói,
contato de gentes diversas, visão de uma
sequência histórica” (1981, p. 179). Para
Candido, ainda que se entregue à fantasia,
Durão retrata costumes, ritos, organização
social, enfim, o modo de vida dos índios
rapta a bela Helena, esposa de Menelau.
Forma-se então, para vingar a afronta,
uma confederação grega sob as ordens de
Agamémnon, irmão de Menelau. Os chefes gregos (Agamémnon, Menelau, Aquiles, Ajax, Ulisses, Heitor, Eneias e outros)
assediam Tróia durante dez anos e, após
múltiplos episódios heróicos, conquistamna e incendeiam-na. Ulisses (ou Odisseus)
demora dez anos a regressar a sua casa,
correndo pelo caminho uma infinidade de
aventuras. Essas duas obras caracterizamas barreiras do tempo (há mais de vinte e
cinco séculos que são lidas com interesse)
e do espaço (todos os povos do Ocidente
as conhecem e admiram). Na Odisseia o
argumento é centrado em Ulisses e seus
companheiros, no seu filho (Telémaco) e
na sua mulher (Penélope). Ulisses, rei de
Ítaca, é esperado durante anos, após a
guerra de Tróia, pela mulher e pelo filho.
Penélope, assediada por vários pretendentes, promete-lhes escolher marido quando acabar de tecer um tapete, que tece
durante o dia e desfaz de noite. Telémaco
corre diversas aventuras à procura do pai.
Ulisses vê dificultado o seu regresso a Ítaca por diversos obstáculos: tempestades,
magos, sereias, etc. Entre os perigos que
da melhor maneira possível em sua época.
Segundo ele, passagens da obra em que o
passam Ulisses e os seus companheiros
assunto é abordado estão entre os melhores
momentos da narrativa. Precisamos
entender essa avaliação dentro do contexto
literário brasileiro, ou seja, Durão procura
valorizar as qualidades da obra considerando
o esforço dos autores, deixando de lado as
distorções entre a realidade dos nativos e a
mens. Ulisses chega por fim a Ítaca incóg-
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superioridade do homem europeu e de sua
cultura, tornando possível a aceitação da
saiba mais
Unidade 2 . Aula
épico, enquanto a grandiosidade do ato de
Diogo Álvares diante dos tupinambás se
deve à visão de Santa Rita Durão em relação
ao nativo brasileiro. Em outras palavras,
Durão tomou como ponto de partida a
conta-se a luta com Polifemo, gigante com
um só olho na fronte e devorador de honito, mata os pretendentes e, finalmente,
é reconhecido pela mulher e pelo filho.
A Odisseia é um conjunto de aventuras
mais complexo que a Ilíada. As astúcias
de Ulisses, as aventuras do seu corajoso
filho Telêmaco, a fidelidade de Penélope e
outros aspectos desta epopeia fazem com
que seja mais humana, perante o aspecto
predominantemente heroico da Ilíada.
Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/homero.htm. Acesso em nov. 2010.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
descrição apresentada no poema.
Problemas como esses devem ser atribuídos ao
imaginário da época e estão ligados à visão de mundo de
Santa Rita Durão, pois é preciso levar em consideração que
dedicou a vida ao catolicismo, portanto seu pensamento é
de um homem comprometido com os valores religiosos de
seu tempo. Por essa razão, elogia e justifica a colonização
portuguesa, considerando-a iniciativa de caráter benéfica
por converter o homem nativo ao cristianismo. Posicionase como se a imposição da fé católica fosse ato inofensivo à
cultura indígena e os portugueses viessem para cá sem qualquer
interesse material. Em nome de sua crença, harmoniza o
mundo do homem branco com o mundo do índio, em nome
de uma lei natural que os concilia em torno da paz e da justiça
(CANDIDO, 1981).
A perspectiva com que Durão descreve o encontro da
civilização europeia, de tradição cristã, com a cultura nativa
da América pode parecer ingênua em alguns aspectos nos dias
atuais. Sob tal enfoque, os fatos são apresentados como se a
força divina guiasse o homem branco e lhe assegurasse o direito
de conquistar territórios e impor seus costumes e suas práticas
religiosas aos habitantes desses lugares. Com isso, passa a ideia de
que as riquezas obtidas pelos colonizadores foram resultado da
intervenção das forças celestiais, portanto um prêmio pela difusão
da fé cristã, como se a busca por elas não fosse o principal objetivo
do avanço europeu sobre outros povos e causa da escravização e
da dizimação de alguns deles.
3.3 Os fundadores do indianismo
Os mais renomados estudiosos da literatura brasileira
se dividem, porque na opinião de uns O Uraguai é superior
a Caramuru, enquanto outros consideram o poema de Santa
Rita melhor do que o de Basílio da Gama. É difícil, porém,
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
encontrar quem discorde a respeito da relevância de ambos
para nossa literatura e, consequentemente, para a literatura de
língua portuguesa. Sua importância para a literatura nacional
consiste na definição de duas vertentes temáticas, a natureza,
e, principalmente, o indianismo. Os dois assuntos têm se
mostrado inesgotáveis, passando por constantes atualizações
ao longo do tempo.
Na intenção de dar conta de obras e autores que
considera fundamentais para a formação da literatura brasileira,
Antonio Candido (1981) compara os dois poemas, apontando
aspectos que julga negativos e positivos em um e outro.
Com relação à obra de Basílio da Gama, considera que não é
epopeia no sentido tradicional, embora seu autor pretendesse
seguir o cânone do gênero, recriando-o de um modo próprio.
Destaca a naturalidade com que o poeta escreve e, graças a essa
Unidade 2 . Aula
6
aptidão, consegue construir quadros que impressionam pela
plasticidade.
Em sua opinião, Basílio é um dos melhores poetas
brasileiros e, por causa de seu talento, percebe o mundo sensível,
dá movimento e fluidez à descrição, proporcionando prazer
ao leitor. Seu modo de escrever valoriza certos episódios, nos
quais revela grande capacidade criadora por meio da vivacidade
de determinadas cenas, permitindo que se observe a densidade
dramática, assim como a dinamicidade das ações. Para Candido,
o autor “é um maravilhoso artífice, não há dúvida, e dos poemas
longos da literatura brasileira talvez seja O Uraguai aquele em
que há maior número de versos expressivos e lapidares” (1981,
p. 134).
A respeito de Santa Rita Durão, o crítico afirma que,
apesar de escolher um grande modelo, Camões, talvez não tenha
lido autores mais próximos de seu tempo que também escreveram
épico, mas revitalizando o gênero. Vê, igualmente, uma
dificuldade do frei para equilibrar informações com invenção,
por isso, quando trata dos acontecimentos verídicos mantémse excessivamente próximo das fontes históricas e, nas partes
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em que deixa a imaginação livre perde-se na prolixidade. Em
contrapartida, reconhece nele grande conhecimento da matéria
com a qual trabalhou, compensando os excessos da palavra
com momentos de grande concisão: “O conhecimento aparece
em Durão como boa informação das coisas, discernimento
das paixões, e também visão intelectual, ordenação mental da
matéria poética” (1981, p. 185).
O aparecimento na mesma época, a abordagem de
fatos históricos e o propósito de dar a ele dimensões épicas,
a representação do índio e a descrição da natureza estão entre
os fatores que determinam aproximação entre O Uraguai e
Caramuru. Entretanto, apesar da possibilidade de fazermos
essas associações, as obras formam, de acordo com Candido
(1981), um par antitético, com Durão fazendo réplica a Basílio,
no sentido de tentar conciliar a política de Pombal com as ações
dos jesuítas.
Para Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 140), “falta,
todavia, ao Caramuru, que tem apesar de tudo, oásis de poesia
nativista como o canto VI, o incisivo frescor do poema de Basílio
da Gama”. Isto é, considera O Uraguai, obra mais intensa e
viva, atribuindo essas características à capacidade do autor de
se distanciar o máximo que pôde da explicação religiosa para os
acontecimentos, enquanto o outro não conseguiu se despir da
sua condição de católico.
Wilson Martins (1992) alerta que Basílio da Gama foi
mal sucedido no propósito de fazer de O Uraguai um épico
porque:
[...] o seu gênio era lírico e sua intenção, polêmica; acrescente-se que o tema era histórico e
contemporâneo, tudo isso pouco compatível
com a narrativa em que o heroico, segundo a
definição clássica, se alia ao maravilhoso (p.
428).
Prossegue sua argumentação, acrescentando outros
motivos para que a obra não seja lida como epopeia, afirmando
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que o autor se distanciou consciente ou contraditoriamente do
modelo, ao optar pelo verso branco, pela divisão em estrofes,
pelo episódio único, pelo curto período de tempo abrangido e
pela ausência do mito nacional. Com relação a Caramuru, afirma
que a obra “sustenta a comparação com seus modelos e [...] nada
há de necessariamente inferior em Diogo Álvares Correia com
relação aos demais personagens da poesia épica” (p. 498).
As duas obras têm nos elementos naturais e no índio
a principal matéria e isso transformou ambas em referência
para a literatura nacional, estimulando a criação na poesia e
na prosa e popularizando escritores. Os reflexos mais visíveis
são encontrados no século XIX, quando o Romantismo
impulsionou efetivamente as atividades literárias no Brasil.
Orientada pelo viés nacionalista, a escola encontrou no homem
nativo e na natureza o traço distintivo para caracterizar o país,
Unidade 2 . Aula
6
em oposição a Portugal.
A independência gerou forte sentimento antilusitano,
portanto rejeição ao passado colonial representado pelo
domínio português. Em função disso, o índio foi transformado
em símbolo da emancipação política, econômica, social e
cultural, expressando aquilo que Nelson Werneck Sodré
denominou “furor nativista” (1988, p. 276). Segundo o autor, o
entusiasmo foi ao ponto de muitas famílias de origem europeia
adotarem nomes indígenas, daí Araripes, Juremas, costume
incorporado pelas instâncias oficiais, como se observa em
títulos nobiliárquicos como os viscondes Itaboraí, Inhaúma, o
barão de Mauá etc. Esse, porém, é um dos assuntos das nossas
próximas aulas.
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ATIVIDADES
A
AT
ATIV
TIV
IVI
VI
ATIVIDADES
1. Leia o texto do professor Voltaire Schiling sobre o “Ciclo
do Ouro” no Brasil, e elabore uma síntese sobre os aspectos
mais relevantes desse momento histórico no qual se inserem
as iniciativas artísticas dos árcades brasileiros. Disponível
em:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/br_
ouro6.htm.
2. Releia o soneto abaixo, de Cláudio Manuel da Costa, e
responda:
Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano;
Vós que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência mais se apura.
a. Elabore uma paráfrase em prosa do poema – siga o
exemplo: “Na primeira estrofe, o poeta apresenta a
paisagem de seu nascimento, ou seja, as montanhas, os
penhascos de pedra, e exclama que ninguém imaginaria
que, nesse lugar tão “duro”, poderia se criar uma alma
branda, suave. No segundo quarteto...” (complete):
b. A partir da resposta anterior, aponte o tema geral do
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
soneto e explique porque o autor pode ser considerado,
de certo modo, iniciador de uma literatura com traços
efetivamente nativistas, brasileiros.
3. Assista ao vídeo “Caramuru”, do programa “De lá para cá”,
da TV Brasil, disponível no youtube em cinco partes, que você
pode acessar a partir da primeira em: http://youtu.be/3Vfp97Hf94.
a. Selecione as passagens que achar mais significativas de
cada parte, descrevendo-as.
b. Você concorda que, em linhas gerais, o vídeo confirma a
ideia que estudamos em aula sobre a importância da obra
Caramuru (assim como Uruguai) por ter colocado os
“elementos naturais e o índio [como] principal matéria,
Unidade 2 . Aula
6
o que transformou [essas obras] em referência para a
literatura nacional, estimulando a criação na poesia e na
prosa e popularizando escritores”? Explique.
RESUMINDO
R
RES
RE
ES
RESUMINDO
Você estudou, nesta aula, que os poetas mineiros
do Arcadismo tiveram importante papel no processo de
desenvolvimento da Literatura Brasileira, destacando-se Cláudio
Manuel da Costa. Nesse processo, outros árcades participaram
com a intenção de imprimir uma elevação estética às letras
nacionais. Entretanto, o resultado das iniciativas artísticas de
Santa Rita Durão e Basílio da Gama, por exemplo, muito ligados à
herança camoniana, apresentam traços conservadores em termos
das relações do poder colonial, que reafirmam em seus textos.
Ainda assim, contribuíram com uma representação da natureza
e do indígena que será acolhida, com traços renovados, pelo
Romantismo, matéria que trataremos em nossa próxima aula.
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livros
Obras de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Basílio da
Gama e Santa Rita Durão no site www.dominiopublico.br.
filmes
Filme: Caramuru, a invenção do Brasil, direção de Guel Arraes e Jorge
Furtado
Clipe: “Jack Soul Brasileiro”, Lenine; disponível em: www.youtu.be/ScSCaMnj5YU
Referências
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira.
Vol. 1. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto
Alegre: L&PM, 1985.
CUNHA, Eneida Leal. Estampas do imaginário: literatura
e identidade cultural. UFMG: Belo Horizonte, 2006.
DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do
descobrimento da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 4.
ed. Vol. 1 (1550-1794). São Paulo: T. A. Queiroz, 1992.
POLITO, Ronald. Introdução. In: DURÃO, José de Santa
Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da
literatura portuguesa. Porto: Porto, 1998.
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9.
ed. Lisboa: Europa-América, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil.
8. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
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6
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
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2ª
unidade
AULA 7
A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS
DOS PAÍSES AFRICANOS DE
LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA
(PALOP)
OBJETIVOS
Conhecer os aspectos mais relevantes do processo da
colonização portuguesa na África e os primeiros momentos
das literaturas desenvolvidas em Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde.
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
1 INTRODUÇÃO
Os cinco países africanos de língua oficial portuguesa,
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe
e Cabo Verde, foram colônias de Portugal desde o século
XV, quando teve início a expansão ultramarina portuguesa,
até o ano de 1975, quando conquistaram sua independência
política. Nesta aula, vamos conhecer um pouco sobre esse
processo de colonização e sobre os primeiros momentos
das literaturas africanas registradas e divulgadas em língua
Unidade 2 . Aula
7
portuguesa, sem deixarmos de refletir sobre questões, entre
outras, relacionadas às “línguas nacionais”. Quer dizer,
vamos reconhecer alguns dos principais aspectos ligados
à formação desses países africanos, entendendo que não
se trata de uma realidade homogênea, mas, pelo contrário,
vamos perceber as diferenças importantes que marcam as
diferentes situações histórico-sociais dessas nações africanas
com as quais nós, brasileiros, temos inegáveis laços culturais.
2 A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PALOP
2.1 O processo de dominação portuguesa na
África
Durante a época das chamadas “grandes
navegações”, os portugueses chegaram na África, na foz
do Zaire, em 1482, e fundaram São Paulo de Assunção
de Loanda, a primeira povoação portuguesa, em 1575,
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hoje Luanda, capital de Angola (FERREIRA, 1977, p. 12).
Entretanto, o processo efetivo de colonização instaura-se a
partir da Conferência de Berlim, quando é decidida a partilha
da África pelas potências europeias, no século XIX. Esse
processo foi decorrente da crise da escravidão negra, quando a
mão de obra escrava, principal “produto” visado pelos países
europeus por mais de quatro séculos na África, começa a ser
questionada principalmente pelos novos rumos do capitalismo
industrial. Nesse novo contexto, a mão de obra assalariada
tornava-se mais produtiva sob o ponto de vista das potências
econômicas, pois possibilitava a criação de um público
consumidor para as mercadorias produzidas em larga escala.
Assim, quando o continente africano deixou de
ser fonte de escravos, iniciou-se o processo de ocupação
territorial. Para Voltaire Schilling, isso deveu-se a dois
motivos principais:
O primeiro deles é que ambicionavam explorar as riquezas africanas, minerais e agrícolas,
existentes no [interior], até então só parcialmente conhecidas. O segundo deveu-se à
competição imperialista cada vez maior entre
[as potências], especialmente após a celebração da unificação da Alemanha, ocorrida em
1871.
(Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/
mundo/africa6.htm. Acesso em nov. 2010).
Nesse contexto ocorreu o chamado “Ultimato”, em
1890, quando a Inglaterra impôs ameaças aos interesses
expansionistas de Portugal na África. O propósito colonialista
lusitano, fruto da partilha da África, era atrelar toda região
que se estende de Angola a Moçambique sob seu domínio –
o que a Inglaterra não aceitou, impondo sanções militares
à monarquia portuguesa que, fragilizada economicamente,
acatou as determinações inglesas, gerando um forte protesto
nacional, que acabou levando ao fortalecimento dos
republicanos em Portugal.
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
saiba mais
O
que
foi
a
chamada
“Conferência de Berlim”?
De
acordo
re
Schilling:
com
Voltai-
Atendendo
ao convite do chanceler
do II Reich alemão, Otto
von Bismarck, 12 países
com interesse na África
encontraram-se em Berlim - entre novembro de
1884 a fevereiro de 1885
-, para a realização de
um congresso. O objetivo
de Bismarck era que os
demais reconhecessem a
Alemanha como uma potência com interesses em
manter certas regiões afri-
Figura 2.7.1 - A partilha da àfrica. Fonte: http://www.
infoescola.com/wp-content/uploads/2010/05/partilha-daafrica.jpg
canas como protetorados.
Além disso acertou-se que
o Congo seria propriedade do rei Leopoldo II da Bélgica (responsável indireto
por um dos mais terríveis genocídios de africanos), convertido porém em zona
franca comercial. Tanto a Alemanha, como a França e a Inglaterra combinaram
reconhecimentos mútuos e acertaram os limites das suas respectivas áreas. O
congresso de Berlim deu enorme impulso à expansão colonial, sendo comple-
7
mentado posteriormente por acordos bilaterais entre as partes envolvidas, tais
como Convênio franco-britânico de 1889-90, e o Tratado anglo-germânico de
Unidade 2 . Aula
Heligoland, de 1890. Até 1914 a África encontrou-se inteiramente divida entre
os principais países europeus (Inglaterra, França, Espanha, Itália, Bélgica, Portugal e Alemanha). Com a derrota alemã de 1918, e obedecendo ao Tratado de
Versalhes de 1919, as antigas colônias alemãs passaram à tutela da Inglaterra
e da França. Também, a partir desse tratado, as potências comprometeram-se a
administrar seus protetorados de acordo com os interesses dos nativos africanos
e não mais com os das companhias metropolitanas. Naturalmente que isso ficou
apenas como uma afirmação retórica.
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/africa6.htm.
Em linhas gerais, de acordo com Abdala Júnior e
Paschoalin (1990, p. 186), mesmo com a República recémimplantada, em 1910, os portugueses “continuaram a sonhar
com a África, como o fizeram anteriormente com o Brasil. As
pequenas reformas sociais que procederam visaram apenas à
manutenção da situação colonial”. No regime salazarista, como
estratégia de dominação colonialista, as colônias africanas de
Portugal passaram a ser chamadas de “Províncias Ultramarinas”,
mas isso em nada mudava o caráter da exploração da metrópole
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
portuguesa. Pelo contrário, Portugal desenvolveu uma política
altamente repressiva e assimilacionista,
[que visava a] desorganizar e, se possível
eliminar, a cultura própria do país, considerada inferior, e impor a do colonizador,
que seria assim um agente da ‘civilização’.
Em 1954, em Angola, os colonialistas dividiram a população entre ‘civilizados’ e
‘não-civilizados’. Para ser considerado ‘civilizado’, teria que preencher as seguintes
condições: ter mais de 18 anos, falar corretamente o português, exercer profissão
para sustento próprio e da família, ter bom
comportamento e hábitos civilizados, não
ser [...] desertor do serviço militar (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990,
p. 186).
você sabia?
O Brasil possui a segunda
maior população negra do
mundo; a Nigéria ocupa o
primeiro lugar. Não se sabe
exatamente o número de
escravos africanos trazidos
para o Brasil entre os séculos XVI e XIX, mas há estimativas de que somaram
3,5 milhões de pessoas.
leitura recomendada
Para aprofundar o estudo
sobre o processo da ocupação e colonização de Portugal na África, recomendamos a leitura de “O Luso, o
Trópico... e os Outros”, de
Maria da Conceição Neto
(1996), disponível em:
http://www.
casadasafricas.org.br/img/
Como consequência dessas imposições, que
não podiam ser atendidas a não ser por menos de 5% da
população, tiveram início muitas revoltas e começaram a
se estruturar organizações para a luta anticolonialista. O
agravamento dos conflitos levará à luta armada nos anos de
1960 (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990), como
veremos em nossas próximas aulas.
upload/553854.pdf.
2.2 Momentos iniciais das literaturas nos
PALOP
Quando estudamos as literaturas de Angola,
Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e GuinéBissau, não devemos esquecer (por isso não custa frisarmos)
que estamos nos referindo a realidades socioculturais
diferentes que, se tiveram alguns pontos em comum na
sua história, muito maior foram (e são) suas diferenças.
Entretanto, essa constatação – que devemos estender para
a própria compreensão do termo “África”, ou seja, não se
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
trata de uma unidade, mas de um continente marcado, como
qualquer outro, pela diversidade cultural – não nos impede
de reconhecermos certos temas (e problemas) recorrentes
em todos esses países, como por exemplo: a denominação
dessas literaturas; as marcas da oralidade dessas culturas
e, por extensão, o problema das línguas nacionais; e a
delimitação desses sistemas literários. Vamos, então,
transformar esses temas/problemas em perguntas, cujas
respostas construiremos juntos.
2.2.1 Como devemos chamar as literaturas dos
PALOP?
7
Para começarmos, vamos a outra pergunta básica:
como nós denominamos a nossa Literatura? Sim, Literatura
Brasileira. E fomos também, como os cinco países africanos
que estamos estudando, colônia de Portugal. Entretanto,
Unidade 2 . Aula
tendo em vista uma série de questões históricas (ou seja,
relacionadas à economia, à política, à sociedade e à cultura), a
tendência geral dos estudos dessas literaturas é compreendêlas e nomeá-las em bloco, pois vivenciaram muitos aspectos
do processo de colonização portuguesa comuns, sobretudo
a partir do século XIX, como vimos anteriormente, até a
época da independência (1975).
Inicialmente, devemos saber que, na vigência da
colonização, os textos produzidos nesses países eram
denominados, de forma ampla, como literatura ultramarina,
pois tinham a ver “com os territórios de Ultramar, como
durante muito tempo eram designadas oficialmente as
colônias” (PORTUGAL, 1999, p. 15). Com o passar do tempo,
e com as críticas e lutas contrárias ao processo colonial, essa
denominação deixou de ser usada pela sua óbvia conotação
colonialista.
Passou-se a utilizar, então, a partir de 1975, o termo
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
Outro
termo
controverso
para a definição das literaturas dos PALOP é “Lusofonia”. No dicionário Aulete
digital, o verbete é assim
apresentado: “Conjunto de
povos ou comunidades que
falam a língua portuguesa”. Entretanto, o termo é
igualmente polêmico, pois,
para muitos escritores e
estudiosos, sobrepõe a língua portuguesa em universos culturais diferentes, o
que acaba sendo criticado
como herança do colonialismo. Para os defensores
da
expressão,
a
lusofo-
nia deveria significar uma
unidade político-linguística
capaz de fazer frente, por
exemplo, à difusão globalizada da língua inglesa.
Lusófono teria o mesmo
sentido
internacional
de
anglófono ou francófono.
consagrado por Manuel Ferreira em sua obra: Literaturas
Africanas de Expressão Portuguesa. A palavra “expressão”
visava a neutralizar os sentidos de dependência ou de
qualquer forma de dominação colonial, e foi largamente
referida como matéria nos currículos acadêmicos, sobretudo
portugueses (quer dizer, nas universidades portuguesas,
começou a fazer parte dos cursos de Letras a disciplina
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa).
No entanto, com o crescente interesse e estudos
variados por essas literaturas, os próprios escritores
africanos e pesquisadores de diferentes nacionalidades
passaram a questionar o termo, pois parecia apontar para
uma “visão de mundo” que, se é portuguesa, não atingia a
ideia da autonomia cultural desses países da África. Assim,
a forma de referência mais aceita para essas literaturas hoje
é designá-las como LITERATURAS AFRICANAS DE
LÍNGUA PORTUGUESA. Ainda assim, não se trata de
ponto pacífico, pois essas literaturas não são escritas apenas
na nossa língua, o que nos remete às questões seguintes.
2.2.2 Qual a importância da oralidade para as
literaturas dos PALOP?
A tradição oral possui grande importância na cultura
desses países africanos. De acordo com Joseph Ki-Zerbo
(2011), não se trata apenas de “uma fonte que se aceita
por falta de outra melhor e à qual nos resignamos por
desespero de causa. É uma fonte integral, cuja metodologia
já se encontra bem estabelecida e que confere à história do
continente Africano uma notável originalidade” (p. 43).
Essa originalidade está implicada no modo como
conhecimento e sabedoria são transmitidos:
Uma sociedade oral reconhece a fala não
apenas como um meio de comunicação
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
contudo, evitar um contraponto
oralidade e escrita, pois elas devem ser
que efetivamente são: ou seja, de acordo
Marcuschi, em seu artigo “Oralidade e
escrita”, tanto a oralidade quanto a escrita são “modos de
representação cognitiva e social que se revelam em práticas
específicas” (1997, p. 140). Assim, não há como julgarmos
a maior importância de uma ou de outra, embora o linguista
também sublinhe: a oralidade é inerente a todo ser humano
e “é um fator de identidade social, regional, grupal dos
indivíduos” (p. 141).
Precisamos, na verdade, distinguir oralidade x
letramento, de fala x escrita. Veja bem: a oralidade, enquanto
prática social, se apresenta sob diferentes formas e gêneros
textuais e nos mais variados contextos de utilização. Já o
letramento “é o uso da escrita na sociedade e pode ir desde
uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que
é analfabeto, mas sabe o valor do dinheiro, sabe o ônibus que
deve tomar [...], até o indivíduo que desenvolve tratados de
Filosofia e Matemática” (MARCUSCHI, 1997, p. 142).
Com relação à fala, trata-se do aparato natural de todo
ser humano, enquanto a escrita, para o mesmo linguista, “além
de uma tecnologia de representação abstrata da própria fala [é]
um modo de produção textual-discursiva com suas próprias
especificidades” (1997, p. 142). Assim, também é importante
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Volume 4
Figura 2.7.2. Fonte: http://upload.
wikimedia.org/wikipedia/commons/
thumb/2/25/Diffa_Niger_Griot_
DSC_0177.jpg/260px-Diffa_Niger_
Griot_DSC_0177.jpg
Chama-se “Griot” (termo
franco-africano,
variável em muitas regiões da África) ao narrador de histórias que,
geralmente sob a copa
de antigas e grandes
árvores ou em volta de
uma fogueira, contava
histórias para seu povo.
Nessas histórias, o griot
transmitia ensinamentos, retomava as tradições e mantinha viva a
memória de seus antepassados. Também musicavam suas histórias,
contando feitos épicos
ao som de instrumentos
de corda ou xilofones. A
figura dos griots persiste na atualidade, tanto na forma tradicional
quanto em diferentes
modalidades:
sempre
que escritores e escritoras, poetas, animadores culturais, grupos de
teatro, entre outros, se
dispõem a contar histórias que remetem à reflexão sobre os valores,
os sentidos da vida, as
questões propriamente dos povos africanos,
estão, de certo modo,
atualizando o papel dos
griots.
7
Devemos,
equivocado entre
reconhecidas pelo
com o professor
você sabia?
Unidade 2 . Aula
diária, mas também como um meio de
preservação da sabedoria dos ancestrais,
venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A
tradição pode ser definida, de fato, como
um testemunho transmitido verbalmente
de uma geração para outra. Quase em toda
parte, a palavra tem um poder misterioso,
pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas (VANSINA, 2010, p.
139-140).
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
não esquecermos que “não existem sociedades letradas, mas
sim grupos de letrados, elites que detêm o poder social, já que
as sociedades não são fenômenos homogêneos, globais, mas
apresentam diferenças internas” (MARCUSCHI, 1997, p. 144 –
grifos do autor).
Essas diferenças internas, a que se refere o professor
Marcuschi, dizem respeito, como podemos entender, a divisões
sociais e, como sabemos, quem detém determinadas formas de
conhecimento valorizadas nas sociedades capitalistas, possui
maior espaço de poder. Por isso é importante valorizarmos
todas as formas de comunicação, todas as línguas e todas as
expressões culturais, artísticas e de compreensão do mundo –
pois, ao evitarmos esses julgamentos equivocados estaremos
evitando toda forma de preconceito. E preconceito, como
você deve saber, significa pré-conceituar, pré-julgar, ou seja,
significa julgar sem conhecer, o que equivale à afirmação da
ignorância. Ignorar é desconhecer, e para conhecer precisamos
estar abertos ao Outro, quer dizer, precisamos saber dialogar
abertamente com as culturas que são diferentes das nossas. E,
como esperamos demonstrar a você até o final de nossas aulas,
no caso da literatura dos cinco países que estamos estudando,
temos com eles muito mais afinidades do que se costuma (re)
conhecer. Uma dessas afinidades é, sem dúvida, a nossa língua,
mas não se trata, mais uma vez, de um aspecto distante da
polêmica. Veremos porque na resposta da próxima pergunta.
2.2.3 Qual é a situação do português e das línguas
nacionais nessas literaturas?
Para respondermos a essa questão, que não é nada
simples, precisamos saber, inicialmente, que a língua
portuguesa foi considerada, pelas lideranças dos movimentos
de independência dos cinco países, uma estratégia fundamental
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
para a garantia das respectivas unidades nacionais. Isso porque,
com algumas exceções, como veremos adiante, nesses países
existem diferentes grupos étnicos e linguísticos que, em disputa,
poderiam fragmentar e inviabilizar a construção nacional. Além
disso, a língua europeia permite mais diretamente o acesso ao
conhecimento, à técnica e a outros instrumentos das relações
de poder no mundo globalizado (entenda-se, no mundo
regido por determinadas relações e imposições econômicas e
capitalistas).
De todo modo, não se trata de matéria pacífica, pois
há autores africanos que questionam essa hegemonia da língua
portuguesa, assim como há estudiosos que contemporizam
diferentes perspectivas. Vejamos o caso do escritor
moçambicano Luís Bernardo Honwana: para ele, enquanto
a literatura de Moçambique for “exclusivamente produzida
Unidade 2 . Aula
7
em língua portuguesa, uma parte importante dos nossos
concidadãos permanecerá receptor passivo dos nossos textos,
sem embargo da representatividade cultural ou do nível literário
que possam alcançar” (2006, p. 23). E vai mais fundo:
[...] o monopólio da palavra que vem sendo
exercido pelos falantes da língua portuguesa
se estabelece como a nova fronteira da africanidade, aquela que nos fará derrubar os
muros internos da exclusão, não menos inadmissíveis do que os muros externos, os que
retêm os nossos países no gueto do subdesenvolvimento e da dependência (HONWANA, 2006, p. 24).
Já Inocência Mata, são-tomense de nascimento e
professora da Universidade de Lisboa, apresenta outro
posicionamento:
[...] se a língua expressa o mundo em que
vive o sujeito falante (o ambiente humano,
natural, social, psicológico, cultural, histórico; mudivivencial, enfim), a questão não
será o sistema linguístico, mas antes na for-
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ma de expressão como essa língua é usada,
isto é, a LINGUAGEM – posicionamento
que contempla sobretudo a expressão, o estar
linguístico que é a representação do ser dos
seus produtores, a sua forma de ser africano
(MATA, 1998, p. 121 – grifos da autora).
Nessa mesma direção, encontramos a reflexão da
professora brasileira Laura Cavalcante Padilha (2002), que,
ao citar TidjaniSerpos (Aspects de la critique africaine, 1987),
desloca o problema “para o fato de que, o que significa, no
ato de criação, é muito mais a leitura feita pelo artista dos
elementos de sua cultura do que propriamente o uso dessa
ou daquela língua” (p. 42). Desse modo, no duplo trabalho
do escritor e da língua de que se vale, vai se realizando uma
incorporação de “termos, expressões, estruturas sintáticas e
morfológicas das línguas nacionais”, ao mesmo tempo em que
a língua portuguesa “vai deixando de ser europeia para ganhar
contornos angolanos, moçambicanos, santomenses, etc.”
(2002, p. 42).
O que podemos entender, a partir desses três ilustrativos
posicionamentos da questão, é que, afinal, de consenso mesmo,
o que temos é a importância dos textos literários (contos,
romances, poemas...) como espaço privilegiado para o embate
das diferentes vozes culturais. Embate que desvela as diferentes
relações de poder que constituem a referida fronteira da
africanidade, segundo Honwana. Consideremos, por fim, como
uma espécie de síntese para esta complexa resposta, a afirmativa de
Francisco Noa (2009), professor moçambicano da Universidade
de Maputo:
Se é verdade que grande parte [dos autores
moçambicanos] pertence às elites maioritariamente educadas segundo os preceitos
culturais, ideológicos e estéticos do antigo colonizador, não é menos verdade que
elas instituem falas e visões do mundo que
se contrapõem ao imaginário dominante,
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
quando não o subvertem. Por outro lado,
transformam a escrita num espaço de intermediação que permite a visualização e
a legitimação de seres e de linguagens que,
de outro modo, se manteriam silenciadas e
obscuras ou, então, devido a mecanismos
de apropriação, diminuídas ou caricaturadas em relação à sua real dimensão (p. 97).
saiba mais
De acordo com Eduardo
Guimarães, em seu artigo
“Enunciação e políticas de
línguas no Brasil”, devemos
reconhecer as seguintes diferenças entre:
“Língua materna: é a língua cujos falantes a praticam pelo fato de a sociedade em que se nasce
a praticar; nesta medida
ela é, em geral, a língua
que se representa como
línguas nacionais, o que se evidencia é a existência de uma
literatura africana que, na nossa língua, consegue denunciar
as mazelas sociais, os conflitos, as diferentes questões
primeira
para
seus
fa-
vivenciadas nesses países, bem como suas realizações, sua
riqueza cultural, sua importância e sua história.
e que são falantes desta
lantes. Língua Franca: é
aquela que é praticada por
grupos de falantes de línguas maternas diferentes,
língua para o intercurso
comum.
Língua nacional: é a língua
Cabo Verde
Guiné-Bissau
Moçambique
São Tomé e
Príncipe
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gua que o caracteriza, que
Kikongo, Kimbundo, Cokwe, N’hanekaHumbe,
N’ganguela, Umbundo e Kuanhama, Yaneka,
entre as mais de vinte línguas faladas pelas
diferentes etnias.
dá a seus falantes uma re-
Crioulo cabo-verdiano, que mescla o português
arcaico a línguas africanas e divide-se em
dialetos (variantes) entre as dez ilhas.
ria nas ações formais do
Crioulo Guineense e línguas de base africana,
conforme os grupos étnicos, como Balanta,
Fula, Manjaco, Mandinga, Pepel, entre outras.
De origem bantu, destacam-se: Emakhuwa,
Xichangana, Elomwe, Cisena, Echuwabo entre
muitas outras com menor incidência de falantes.
lação de pertencimento a
este povo. Língua oficial:
é a língua de um Estado,
aquela
que
é
obrigató-
Estado, nos seus atos le-
Unidade 2 . Aula
de um povo, enquanto lín-
AS LÍNGUAS NACIONAIS – Quadro resumo
Angola
7
Essa compreensão pode ser estendida aos demais
países africanos que têm no português a sua língua oficial,
ou seja: sem desconsiderar o evidente espaço de poder
que significa o uso majoritário da língua portuguesa, sem
desconsiderar também a necessidade de valorização das
gais. Pode-se ver que as
duas primeiras categorias
tratam das relações cotidianas entre falantes e
as duas seguintes de suas
relações imaginárias (ideológicas) e institucionais.”
Fonte: http://w3.ufsm.br/
revistaletras/artigos_r27/
revista27_4.pdf.
Acesso:
nov. 2010.
Crioulo Santome (LungwaSantome ou Forro
ou Fôlô) e o Angolar (Ngola ou LungaNgola),
falados na ilha de S. Tomé, e o Lung’ie (ou
principense) falado na ilha do Príncipe.
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2.2.4 Como se formaram os atuais sistemas
literários dos PALOP?
A definição de sistema literário foi formulada por
Antônio Candido, em Formação da Literatura Brasileira:
momentos decisivos (1981), obra na qual define os seguintes
critérios para a afirmação de uma literatura nacional:
[...] a existência, além das características
internas (língua, temas, imagens), de certos elementos de natureza social e psíquica,
embora literariamente organizados, que se
manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre
eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto
de receptores, formando os diferentes tipos
de público, sem os quais a obra não vive;
um mecanismo transmissor (de modo geral,
uma linguagem, traduzida em estilos), que
liga uns a outros (p. 23).
Esses critérios são “aplicáveis” às literaturas de
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e
Cabo Verde, ainda que não possamos deixar de reconhecer
que elas tiveram seu desenvolvimento de forma desigual. De
todo modo, podemos considerar, como aspectos comuns
em termos do contexto histórico-social, as seguintes
situações, ocorridas entre o final do século XIX e o início
do século XX: o processo de industrialização, da diminuição
dos índices de analfabetismo, formação consequente de um
público leitor a partir, também, do desenvolvimento da
imprensa (PORTUGAL, 1999).
Ao reconhecermos os passos iniciais das literaturas
dos PALOP, outro problema que surge é quanto à
periodização para o estudo dessas literaturas. Sobre esse
aspecto, devemos entender que
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Periodizar uma literatura significa realizar
um esforço por compreender os diferentes fenômenos culturais que estão na base
da produção textual e significa, também,
marcar as linhas de força que definem o
próprio sistema literário (PORTUGAL,
1999, p. 48).
Existem muitas divergências quanto à definição
dessas linhas de força, mas optamos pela perspectiva crítica
do professor Manuel Ferreira, quando distingue o que seria
a literatura colonial e o que seriam já as literaturas africanas
de língua portuguesa. No caso da primeira, pode-se entender
como coloniais aquelas expressões literárias que têm “no
centro do universo narrativo ou poético [a vinculação] ao
homem europeu e não africano”. O branco é que, exaltado
Unidade 2 . Aula
7
como “herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o
portador de uma cultura superior” (FERREIRA, 1977, p. 14).
A grande maioria desses textos pertence hoje ao esquecimento,
e representa o que criticamente devemos entender como obras
a serviço da ideologia colonial.
Assim, mesmo que ainda no final do século XIX
tenham existido alguns autores/obras delineando o que
seria uma literatura de extração mais propriamente africana
em meio à literatura colonial, vamos seguir Manuel Ferreira
(1977, p. 34) e sua fixação dos seguintes marcos para o início
das literaturas dos PALOP:
 1936/1960 – Cabo Verde – revista Claridade;
 1942 – São Tomé e Príncipe – livro de poemas
Ilha de nome santo, de Francisco José Tenreiro;
 1951-1952 – Angola – revista Mensagem;
 1952 – Moçambique – revista Msaho;
 1977 – Guiné-Bissau – antologia Mantenhas
para quem luta!
Nessa marcação temporal, definida por critérios
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literários, estão presentes os elementos necessários à
constituição de um sistema literário, ou seja, (vamos retomar
a citação de Antônio Candido): cada uma dessas expressões
literárias (revistas e livros) assinala a existência de um conjunto
de escritores que se identificam como tal, como escritores de certo
grupo sociocultural; a existência de leitores potenciais, para o qual
se dirigem essas publicações, que são os transmissores apropriados
para veiculação de determinadas linguagens e estilos. Assim,
vamos seguir essas coordenadas para conhecermos um pouco mais
a respeito dos primeiros momentos dessas literaturas até a década
de 1960, quando se afirmam as lutas pelas independências dos
PALOP e ganham maior amplitude os seus sistemas literários.
3 DA ÉPOCA COLONIAL AOS ANOS DE 1960
3.1 Cabo Verde
A literatura cabo-verdiana está diretamente relacionada,
ainda que de diferentes modos, com a realidade desse arquipélago
composto por dez ilhas, marcadas por intensas estiagens
(períodos de seca) que dizimaram populações, desencadeando,
assim, profunda crise econômica e a consequente emigração
generalizada em vários momentos de sua história. Apesar
das adversidades naturais, em Cabo Verde desenvolveu-se
relativamente cedo, enquanto país colonizado, o sistema de
ensino e a imprensa, já no século XIX (1842).
O primeiro romance publicado no país foi O escravo
(1856), de José Evaristo d’Almeida, e é interessante sabermos
que os gêneros narrativos foram os mais desenvolvidos nesse
período de desenvolvimento inicial da literatura cabo-verdiana,
ao contrário do que é mais usual, ou seja, o desenvolvimento
de gêneros poéticos. Nesse primeiro romance, de feições
românticas, a escravidão é representada criticamente, mas de
maneira idealizada, em meio a situações de amores platônicos
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Entretanto, a partir de 1930 se
inicia uma literatura efetivamente mais
voltada para a realidade de Cabo Verde,
embora não se trate ainda de motivações
anticoloniais. O marco mais importante
desse momento foi a referida revista
Claridade, e o consequente movimento
“claridoso”, cujo expoente foi, entre
outros, Baltazar Lopes (Nhô Baltas)
que, nos seus trabalhos poéticos, adotava
o nome de Osvaldo Alcântara. É desse
autor o afamado romance Chiquinho,
de 1947, no qual se percebem claras
influências ou ressonâncias do romance
brasileiro da década de 1930, com
autores como José Lins do Rego e Jorge
Amado. Outros autores de destaque da
Claridade foram Jorge Barbosa, Manuel
Lopes, Aurélio Gonçalves e Pedro
Corsino Azevedo.
Posterior ao grupo claridoso,
ganha importância a geração de escritores
da revista Certeza, de 1944, fortemente
influenciada pelo movimento neorealista português (que conheceremos
em nossas próximas aulas), marcado pela
perspectiva marxista. Denúncia social,
enfoque sobre a situação de exploração
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O romance “Chiquinho é uma forte denúncia:
do abandono a que foram votadas as pessoas
de Cabo Verde. As secas destruíam colheitas,
a fome estendia as suas garras sobre uma população indefesa e desesperada. No entanto, as
personagens desta história alimentam um sonho, uma esperança, todos poderiam ser outra
pessoa que não são, se ao menos a terra não
fosse madrasta. É aqui que entra o mar, a miragem da América, os baleeiros para correr sete
mundos, o futuro prometido para lá da fome,
das secas e do sofrimento. Chiquinho é o fio
condutor por onde passam todas estas personagens. É através das tribulações deste jovem,
de origem modesta, mas livre num mundo desconhecido, que Baltasar Lopes se impõe como
um dos principais fundadores da literatura caboverdiana”.
Fonte: http://www.novavega.pt/Book.aspx?id=36.
Acesso em nov. 2010.
saiba mais
7
africanas (negros, mestiços, mulatos)”
(1977, p. 23).
saiba mais
De acordo com o professor Pires Laranjeira, de
1926 a 1935 desenvolveu-se um movimento
literário em Cabo Verde denominado Hesperitano (ou “Cabo-verdianismo”), por meio do
qual os escritores tentavam fundar um sentimento de identidade com a terra de Cabo Verde que fosse ao mesmo tempo distante de Portugal e da África. Pires Laranjeira explica: “O
fundamento que leva a que se possa designar
Unidade 2 . Aula
e situações trágicas de claro recorte
romântico, conforme nos revela Manuel
Ferreira (1977). Para Ferreira, “uma das
virtudes desse texto está em que a quase
totalidade das personagens [...] são
tal período como Hesperitano ressalta da assunção do antigo mito hesperitano ou arsinário. Trata-se do mito, proveniente da Antiguidade Clássica, de que, no Atlântico, existiu um
imenso continente, a que deram o nome de
Continente Hespério. As ilhas de Cabo Verde
seriam, então, as ilhas arsinárias, de Cabo Arsinário, nome antigo do Cabo Verde continental [...]. Os poetas criaram o mito poético para
escaparem idealmente à limitação da pátria
portuguesa, exterior ao sentimento ou desejo
de uma pátria interna, íntima, simbolicamente
representada pela lenda da Atlântida, de que
resultou também o nome de atlantismohesperitano, por oposição ao continentalismo africano e europeu. […]”.
Fonte: http://lusofonia.com.sapo.pt/caboverde.
htm. Acesso em nov. 2010.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
dos trabalhadores, dimensão do coletivo são temas recorrentes
desse grupo de escritores, que vivenciou e denunciou também
os absurdos da Segunda Guerra Mundial (FERREIRA, 1977).
O movimento seguinte da literatura cabo-verdiana viria
com uma perspectiva marcada pelo reconhecimento positivo
do país como parte indissociável da cultura africana, o que
se desdobrou nas lutas de afirmação anticolonialista, como
veremos em nossas próximas aulas.
3.2 São Tomé e Príncipe
No intervalo entre a expressão ainda colonial da
literatura realizada em São Tomé e Príncipe e o início de
uma escrita mais voltada à reflexão da realidade santomense,
destacam-se as narrativas de Viana de Almeida (Maia Poçon,
1937) ede Sun Marky (O vale das ilusões, 1956), este já com
elementos de crítica ao sistema colonial. Entretanto, será
com o poeta Francisco José Tenreiro e seus versos de Ilha de
nome santo (1942) que se inicia propriamente a literatura do
país. Antes dele, será Caetano da Costa Alegre, com seu livro
póstumo, Versos (de 1916), “o primeiro, em todo o espaço
africano de língua portuguesa, a dar ao tópico da cor um
tratamento poético” (FERREIRA, 1977, p. 79). Entretanto,
Costa Alegre possui uma visão marcadamente alienada, que
vê o negro como sujeito inferior, ainda que com sentimentos
nobres, como podemos ler neste fragmento do poema “Para
um leque” da referida obra poética:
A minha cor é negra,
Indica luto e pena;
É luz, que nos alegra,
A tua cor morena.
É negra a minha raça,
A tua raça é branca,
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Tu és cheia de graça,
Tens a alegria franca,
[...]
Todo eu sou um defeito,
Sucumbo sem esperanças,
E o meu olhar atesta
Que é triste o meu sonhar [...].
Fonte: http://lusofonia.com.sapo.pt/LiteraturaSantomense.htm
Em direção contrária, afirmando a sua “africanidade”,
Francisco José Tenreiro, mesmo distante de sua terra de
nascimento, canta o sentimento de pertencer ao mundo
africano, em seu primeiro poema, sem título, dedicado à “Mãe”
(em Ilha de nome santo – conforme Obra poética, 1967, p. 19):
7
Nasci naquela terra distante
num dia de batuque.
Unidade 2 . Aula
daí esta pressa de viver!
Ombros balançando
lábios sangrando de prazer
eles dançavam
dançavam...
Daí este olhar pró sofrer!
Depois o descanso.
Olhos longe sem se saber porquê
Assim esta vontade de viver!
E na conhecida “Canção do Mestiço”, o poeta
exorta sua condição de “filho do negro e do branco” que,
por fundir culturas, tem uma “alma feita de adição”. E
com sua “gargalhada livre”, pode amar a branca e a negra,
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
quando, respectivamente, transforma-se em branco/negro,
no presente, no aqui e agora de uma condição afirmativa da
mestiçagem:
Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
Mestiço!
E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.
Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...
Mestiço!
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...
Reunidas em importantes antologias, os poetas e
escritores de São Tomé e Príncipe seguiram cantando sua
terra, com diferentes tons e tensões, até afirmar-se uma
literatura mais madura, quando da independência do país.
3.3 Angola
7
A imprensa ocupou papel importante em Angola já
no século XIX, quando se destacou o jornal Almanach de
Lembranças (1851 a 1900) por reunir “o mais importante grupo
de colaboradores angolanos, assim como artigos de interesse e
Unidade 2 . Aula
origem angolanas” (PORTUGAL, 1999, p. 59). Entretanto, foi
na década de trinta do século XX que se desenvolveu uma escrita
mais voltada para a afirmação positiva da terra angolana, sendo
precursor o romance O segredo da morta (1929), de António
de Assis Júnior. Em 1949, Castro Soromenho lança o primeiro
romance da “trilogia do camaxilo”, Terra Morta (os outros dois
são Viragem e A chaga, que chega aos anos de 1970) e com ele se
estabelece de modo efetivo “uma literatura plenamente nacional,
no sentido que hoje é dado ao termo”, de acordo com Salinas
Portugal (1999, p. 61).
Esses passos iniciais da literatura angolana foram
reforçados pelo Movimento dos Novos Intelectuais de
Angola, de 1948, e seu grito de “guerra”: “Vamos descobrir
Angola!”. Por certo seus objetivos de instrução e garantias
de direitos ao povo africano não foram alcançados, tendo em
vista a resistência do governo colonial. Suas ideias, porém,
veiculadas sobretudo na revista Mensagem (1951) por autores
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como António Jacinto, Mário Pinto de Andrade e Viriato da
Cruz e o poeta e militante político Agostinho Neto, foram
muito importantes para a afirmação de um novo tempo, em
que se consolidaram as bases da literatura em Angola. Citando
Russel Hamilton (1981), Maria Tereza Salgado (2008) destaca,
sobre essa geração dos anos de 1950, a inovação poética que
desenvolveram. Por exemplo, em “Só Santo”, Viriato da Cruz
combina uma “poesia narrativa com um ritmo sincopado”;
no “Poema da alienação”, António Jacinto introduz a forte
musicalidade, “a linguagem dos pregões dos bairros populares”
(SALGADO, 2008).
Para percebermos essas importantes expressões da
poesia angolana, reproduzimos trechos, abaixo, dos poemas
mencionados. Primeiro o de Viriato da Cruz, “Sô Santo”:
Lá vai o sô Santo...
Bengala na mão
Grande corrente de ouro, que sai da lapela
Ao bolso... que não tem um tostão.
Figura 2.7.3 - Viriato da Cruz.
Fonte: http://fotos.sapo.pt/
G0dYUFChTmUJ8tLjbIZS/x435
Quando sô Santo passa
Gente e mais gente vem à janela:
- “Bom dia, padrinho...”
- “Olá!...”
- “Beçácumpadre...”
- “Como está?...”
- “Bom-omdi-ia sô Saaanto!...”
- “Olá, Povo!...”
Mas por que é saudado em coro?
Porque tem muitos afilhados?
Porque tem corrente de ouro
A enfeitar sua pobreza?...
Não me responde, avó Naxa? [...]
Como você pode notar, o poeta introduz diálogos e
marcas de oralidade a reforçar a representação da fala popular.
A seguir, no “Poema da alienação”, de António Jacinto,
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
perceba a forma, a musicalidade. Os versos se referem ao
processo de elaboração da própria poesia (metapoesia), do
mesmo modo como ainda estava em elaboração o processo
de afirmação nacional de Angola:
leitura recomendada
O poema completo de Viriato da Cruz, seguido de
uma
interessante
análise
realizada por Leodegário de
Azevedo Filho está disponível em:
http://www.filo-
logia.org.br/abf/volume1/
numero1/01.htm.
O de António Jacinto você
encontra em: http://
resistente.3e.com.pt/
7
joomla/index.
Figura 2.7.4 - Jacinto Antônio.
Fonte: http://1.bp.blogspot.
com/-Jg-dFyid3Vc/TdxTLPZy2pI/
AAAAAAAACkI/sQQW97Xkt_o/s320/
Ant%25C3%25B3nio.jpg
Um nome de grande importância que se destacou já
nesse período foi o de Agostinho Neto, poeta e primeiro
Unidade 2 . Aula
Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não
Eu ainda não sei nem posso escrever o meu
poema
o grande poema que sinto já circular em mim
[...]
O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo
“malimonjemalimonjééé”
[...]
Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim-preto
a cavalgar pela vida.
presidente de Angola. Com ele, como estudaremos em
nossas próximas aulas, temos uma poesia reconhecida por
sua dimensão de espaço de luta em prol da independência
política e cultural de Angola.
3.4 Moçambique
Na época colonial, em Moçambique, destacaram-se dois jornais, O Africano (1900)
e O Brado Africano (1918), ambos dirigi-
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dos pelos irmãos José e João Albasini, nos
quais se verifica a típica ambiguidade do
período: os autores das páginas desses jornais renegam, de diferentes modos, a condição de africanos e tentam, embora não
consigam, afirmar sua posição de colonos
europeus, portugueses. Será esse dualismo
a tônica das publicações dessa época, conforme os apontamentos de Salinas Portugal (1999).
Historicamente, a fundação da literatura moçambicana
é registrada com O livro da dor (1925), reunião de poesias
de João Albasini e, na prosa, o destaque fica com Godido e
outros contos (1952), de João Dias. Entretanto, de acordo
com o professor Pires Laranjeira (1995), a fase de formação
dessa literatura desenvolveu-se após a Segunda Guerra
Mundial, quando se destacou a revista Masaho que, apesar
da vida efêmera (foi lançado apenas um número), reuniu os
Figura 2.7.5 - Noémia Sousa. Fonte:
http://macua.blogs.com/.a/6a00d
83451e35069e2015435f7daaa97
0c-800wi
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poetas mais relevantes em termos de renovação literária e
consciência das questões africanas. Como exemplos, podemos
citar Fonseca Amaral, Orlando Mendes, Virgílio de Lemos,
Rui Guerra, e destacamos a poeta Noémia de Sousa, que
enfatiza, em seus versos, a condição da mulher negra. Dessa
autora, reproduzimos o trecho final do poema “Se me quiseres
conhecer”, de 1949, publicado no caderno “Sangue Negro”,
de 1951:
Ah! Essa sou eu:
órbitas vazias no desespero de possuir a vida
boca rasgada em ferida de angustia,
mãos enorme, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis
pelos duros chicotes da escravatura...
torturada e magnífica
altiva e mística,
africa da cabeça aos pés,
– Ah, essa sou eu!
Se quiseres compreender-me
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Vem debruçar-te sobre a minha alma de africa,
Nos gemidos dos negros no cais
Nos batuques frenéticos do muchopes
Na rebeldia dos machanganas
Na estranha melodia se evolando
Duma canção nativa noite dentro
E nada mais me perguntes,
Se é que me queres conhecer...
Que não sou mais que um búzio de carne
Onde a revolta de africa congelou
Seu grito inchado de esperança.
Outro destacado poeta, considerado uma das vozes
mais importantes na consolidação da literatura moçambicana
por refletir sobre sua nacionalidade e sentidos, é José
Craveirinha. Estudaremos com mais profundidade sua
7
poesia nas nossas próximas aulas, mas registramos um de
seus mais conhecidos poemas, publicado na década de 1940:
Unidade 2 . Aula
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina.
Patrão!
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!
Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
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Patrão!
Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
Os pontos de exclamação do poema demarcam o tom de
afirmação da condição negra, do reconhecimento indignado da
exploração do negro. Propomos a você que, no espaço abaixo,
elabore um comentário sobre os dois últimos versos do poema:
...................................................................................................
...................................................................................................
...................................................................................................
...................................................................................................
3.5 Guiné-Bissau
A literatura desenvolvida na Guiné-Bissau,
também denominada literatura bissau-guineense, não
teve o mesmo desenvolvimento que nos demais PALOP,
se considerarmos sua expressão em língua portuguesa.
Entretanto, é interessante observarmos, como registra
Salinas Portugal, que o território foi alvo de crônicas
e estudos durante o período da expansão marítima
portuguesa, nos séculos XV e XVI. São exemplos a
Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné (1448),
de Gomes Eanes Zurara, e o Tratado breve dos rios da
Guiné e Cabo Verde (1594), de André Álvares de Almada.
Deve-se considerar que a proximidade da Guiné-Bissau
com Cabo Verde, inclusive, é um fator de repercussão
nessa literatura, tanto mais que muitos cabo-verdianos
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
foram para o território vizinho incentivados pelo modelo
colonial português. Nesse sentido, autores como Fausto
Duarte, durante o período colonial, e Amílcar Cabral,
no período de lutas pela independência, embora tenham
uma escrita voltada a questões Bissau-guineenses, são
originários de Cabo Verde.
Apesar disso, a afirmação dessa literatura também
se deu em outros importantes registros: em 1952, James
Pinto Bull publicou o primeiro conto escrito “por um
autor guineense nato, ou seja, ‘Amor e trabalho’, no
Boletim cultural da Guiné Portuguesa (vol. VII, n. 25,
1952, pp. 181-187)”, de acordo com Couto (2008). Já o
livro considerado inicial na poesia guineense, Poemas, de
Carlos Semedo, “foi publicado em Bolama pela Imprensa
Nacional, em 1963. O primeiro romance, Eterna paixão, de
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AbdulaiSilá, só veio a lume em 1994, em Bissau, pela Ku Si
Mon Editora”, conforme Couto (2008).
Assim, estudaremos com mais profundidade a
literatura Bissau-guineense quando tratarmos da situação
histórica dos PALOP após os processos de independência.
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ATIVIDADES
AT
A
TIV
VI
ATIVIADES
1. Leia a citação a seguir e elabore um comentário a partir
dos estudos realizados na primeira parte desta aula sobre
a importância da oralidade para a cultura africana:
O intelectual Amadou HampâtéBâé autor
da famosa afirmação: ‘Em África quando um velho tradicionalista morre é uma
biblioteca inexplorada que se queima’
(MATA, 1998).
2. Elabore um comentário sobre o sentido de ‘insularidade’
(do viver em uma ilha, o sentimento de isolamento
sobretudo) presente no poema abaixo, do cabo-verdiano
Jorge Barbosa, apontando para a ideia de evasão, de fuga,
como uma das marcas recorrentes dos escritores da
revista Claridade. “Dica”: passe para o registro em prosa
cada uma das estrofes; depois, releia o poema percebendo
que tanto a maneira como são expressos graficamente
quanto a sonoridade dos versos reforçam o sentido do
mar em movimento como, por exemplo, no verso:
“baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...”.
POEMA DO MAR
O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!
O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos
pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por
estas costas...
7
O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das
ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os
passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da
terra!
Unidade 2 . Aula
O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...
O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando
histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos
estrangeiros...
O Mar! dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de
muita gente!
Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
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Este desespero de querer partir
e ter que ficar!
(do livro Ambiente, de 1941).
3. No poema a seguir, “Namoro”, do poeta angolano
Viriato da Cruz, encontramos um registro lírico que não
deixa de ser acompanhado por certo humor crítico:
Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando
de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a
rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo
rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.
Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
“Por ti sofre o meu coração”
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou
Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo, rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
Levei á Avo Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.
Esperei-a de tarde, á porta da fabrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.
7
Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
“-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?”
E perdido me deram no morro da Samba.
Unidade 2 . Aula
Para me distrair
levaram-me ao baile do Sô Januario
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso
as moças mais lindas do Bairro Operário.
Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voamos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: “Aí Benjamim !”
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.
a) Realize os mesmos procedimentos iniciais para a análise do
poema, conforme a “dica” da questão anterior – entretanto,
o destaque agora é para a dimensão lírica, amorosa e subjetiva
do poema, e os seus traços de humor crítico – assinale os
versos em que esses elementos aparecem (lirismo e humor).
b) A partir do levantamento das ideias anteriormente
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comentadas (questão a), explique a seguinte afirmação de
José Carlos Venâncio (1992, p. 21-22):
O ideal para Viriato da Cruz (e para os da
sua geração [...]) seria, afinal, que ambos
[o poeta e o personagem Benjamim do
poema] partilhassem do mesmo universo
estético-cultural. Era esse o nível, o da interiorização [...] do espaço luandense, do
espaço crioulo, que os identificaria, os uniria, permitindo-lhes uma vivência comum
da angolanidade em prol duma pátria que
tinha ainda de ser criada.
4. Podemos dizer que no poema abaixo, de Noémia de
Souza, encontramos uma perspectiva de esperança para
a afirmação nacional de Moçambique? Explique, a partir
da seleção de versos que demonstrem sua leitura:
Um dia
Quando este sol ardente de África
nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor
quero ir contigo, amigo,
de mãos dadas,deslumbrados
pelos trilhos abertos da nossa terra estranha,
adubada com sangue e suor de séculos...
Uma luz clara e doce se abrirá para todos
e nós iremos de mãos dadas
amigo
pelos trilhos verdes de Moçambique.
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A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP)
RESUMINDO
RESUMINDO
RE
ESUM
SU
U
Você conheceu, nesta aula, os principais aspectos
sobre a formação das literaturas dos cinco países africanos
de língua oficial portuguesa (PALOP), reconhecendo as
implicações entre a literatura e esses diferentes contextos
histórico-culturais. Desse modo, você estudou que as
expressões literárias dos primeiros momentos de afirmação
desses sistemas foram marcadas pela busca de uma
identidade nacional que esteve demarcada, com diferentes
tons e intensidades, pelas lutas contra o colonialismo, que
ganharam força na década de 1960, assunto que vamos tratar
em nossas próximas aulas.
7
REFERÊNCIAS
Unidade 2 . Aula
REFERÊNCIAS
RE
EFE
F R
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
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Unidade 2 . Aula
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VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África
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Cultura e Língua portuguesa, 1992.
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Suas anotações
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3ª
unidade
AULA 8
O ROMANTISMO E
A AFIRMAÇÃO DA
NACIONALIDADE
OBJETIVOS
Possibilitar o reconhecimento dos principais aspectos da
realidade histórico-cultural em que se inseriu a estética
romântica, respectivamente em Portugal e no Brasil, bem
como os elementos mais relevantes das obras literárias
de autores portugueses e brasileiros desse período, com
destaque para as ficções narrativas.
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas aulas, vimos que o desenvolvimento
da literatura em língua portuguesa apresenta algumas
particularidades a partir da colonização do Brasil, devido à
introdução de fatores novos. Oficialmente, havia unidade
administrativa e política entre a metrópole e a colônia, mas
cultural e sociologicamente as diferenças se acentuavam com
o passar do tempo. Aos poucos, se formaram mundos com
dinâmicas específicas, pela configuração de grupos humanos,
pela organização da vida e, consequentemente, pela constituição
de mentalidades e interesses, por vezes, inconciliáveis. No
plano da literatura, Camões serviu de parâmetro para a renovação
literária em Portugal. Aqui, foi eco tardio, porém inspirou poetas
cujas obras se caracterizam por certa ambiguidade, porque
nem todos se sentiam ou se expressavam como portugueses.
Observa-se preocupação com as nossas coisas já nas primeiras
8
manifestações ficcionais. Na prática, porém, cada indivíduo
escreveu estimulado por motivações próprias e a consciência
Unidade 3 . Aula
literária coletiva começou a se formar depois de 1750, como
vimos na aula 6, e se consolidou praticamente cem anos depois,
como estudaremos a partir de agora.
2 NOVOS CONTEXTOS, NOVAS HISTÓRIAS
Durante os três séculos de colonização, as ameaças de
ruptura do Brasil com Portugal foram impedidas sem grandes
transtornos, porque o exército metropolitano conseguiu resistir
aos ataques de Espanha, França e Holanda, enquanto, no âmbito
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
A respeito da Revolta do
Quilombo dos Palmares
consulte: http://www1.
folha.uol.com.br/fol/
brasil500/zumbi_19.htm
Sobre a Inconfidência
Mineira, acesse: Revista
Brasileira de História, em:
http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S0102-88
2002000200009&script=
sci_arttext.
Para conhecer mais sobre
a Conjuração Baiana,
acesse: http://www.
sohistoria.com.br/ef2/
conjuracao/
interno, a coroa reprimiu duramente as insubordinações.
São exemplos todas as rebeliões de escravos, a começar
pelo levante de Palmares liderado por Zumbi, em 1695, as
punições aplicadas a envolvidos na Inconfidência Mineira,
em 1792, e na Conjuração Baiana, em 1798, cujos líderes
foram condenados à morte (HOLANDA, 2006). A situação
começou a se alterar quando Napoleão assumiu o poder
na França e comandou ambicioso projeto de expansão,
atacando vários países.
Quando percebeu que não poderia impedir a marcha
do exército francês, D. João VI tratou de minimizar o
estrago e se transferiu com a corte para o Brasil. Recebeu
apoio da Inglaterra, que enviou tropas a Portugal para ajudar
no enfrentamento aos invasores, e destacou uma frota de
navios para proteger sua travessia. A chegada do soberano
transformou o Rio de Janeiro na capital administrativa do
reino, pois com ele vieram ministros, altos funcionários civis
e militares, autoridades religiosas e diplomatas estrangeiros,
enquanto Lisboa ficou apenas como sede do parlamento
(SARAIVA, 1984).
As precariedades da cidade eram enormes e, para
diminuí-las, foram realizadas mudanças significativas, a
fim de propiciarem condições para a instalação da nobreza
lusitana. Dentre as medidas tomadas nesse sentido, destacase o franqueamento dos portos para o comércio com outros
países, permitindo que produtos brasileiros embarcassem
diretamente rumo a seu destino e, principalmente, que
mercadorias estrangeiras fossem descarregadas aqui sem
passar por Portugal. Essa providência veio acompanhada
da instalação de pequenas indústrias, da importação de
máquinas, da construção de estradas e da fundação do Banco
do Brasil. Paralelamente, ocorreram ações para facilitar
a rotina de governo, por meio da construção de prédios
públicos, e proporcionar comodidade, pelo arruamento e
pela edificação de moradias, palácios e teatros (HOLANDA,
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
2006).
Também contribuiu para a movimentação da cidade a
abertura de casas comerciais, a chegada de pessoas de outras
regiões do país, de negociantes, enfim, de gente atraída
pelo súbito crescimento na circulação humana, de bens e
de dinheiro. O desenvolvimento do comércio estimulou a
incorporação ao cotidiano de objetos antes inexistentes ou sem
grande importância como móveis, espelhos, papel de parede,
quadros, relógios de parede, entre outros. Aconteceu também
o surgimento de atividades econômicas, principalmente as
remuneradas, e o aumento pela procura de outras como
cabeleireiro, costureira e artesãos, principalmente os vindos da
Europa (SODRÉ, 1988).
Os progressos daqui contrastavam com os problemas
de Portugal: a ausência do rei e do comando administrativo
dificultava o funcionamento dos serviços públicos. O Brasil
passou de principal fonte de divisas a gerador de despesas,
devido aos gastos com obras e benfeitorias, aos privilégios
fiscais concedidos e aos gastos para assegurar a posse da
Unidade 3 . Aula
8
Banda Oriental, território onde hoje se situa o Uruguai, fato
conhecido como Guerra da Cisplatina (HOLANDA, 2006).
Esses fatores provocaram descontentamentos e contribuíram
para o alastramento de contestações, levando D. João a optar
pelo regresso a Lisboa. Ao partir, teve a precaução de deixar D.
Pedro como regente, num último esforço para evitar a separação,
porém foi mal sucedido porque os deputados portugueses
reprovaram sua decisão e ordenaram o regresso imediato do
príncipe, ato que apressou a declaração de independência do
Brasil (SARAIVA, 1984).
A morte de D. João agravou a crise em Portugal,
dividindo o país em facções favoráveis a Pedro e Miguel, dois
de seus filhos, que, respectivamente, representavam interesses
de Inglaterra e Espanha. Como sabia que não podia deixar
o Brasil, o primeiro abriu mão do trono em nome de uma
filha, solução satisfatória apenas para seus simpatizantes. A
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
Consulte
w w w. r e v i s t a t e m a l i v r e .
com/cisplatina06.htm
para conhecer mais sobre
a Guerra da Cisplatina.
impossibilidade de entendimento aumentou a instabilidade
política e desencadeou a guerra civil iniciada em 1828 e
que se prolongou por seis anos. A inexperiência de uma
rainha muito jovem, a inconsistência ideológica e a falta de
comprometimento dos partidos políticos com o desempenho
da soberana retardaram o retorno à normalidade. Diante
de tal cenário, a economia se destroçou e os problemas se
arrastaram até cerca de 1850, quando surgiram condições
para o entendimento nacional, permitindo que o país
reencontrasse seu rumo (SARAIVA, 1984).
3 A ESTÉTICA ROMÂNTICA EM PORTUGAL
3.1 A prosa de Almeida Garrett
Considera-se que o Romantismo, em Portugal, tem
início com a publicação dos poemas “Camões” e “Dona
Branca”, de Almeida Garrett, em 1825/1826. Como já
registramos, nessa época, havia uma disputa ferrenha entre
liberais, dos quais Garrett era partidário, e absolutistas
– quando os últimos alcançaram o poder, efetivaram
perseguições a seus inimigos políticos, forçando muitos
ao exílio. Foi o que aconteceu com o autor que estamos
estudando: na Inglaterra, exilado, Garrett conheceu as
principais proposições estéticas românticas e compôs os
referidos poemas. Entretanto, deve-se assinalar que essas
composições líricas ainda guardavam traços clássicos, pois
podemos entender que o escritor português, nesse início
de experimentação romântica, não estava de todo desligado
das tendências estéticas precedentes. Vejamos trechos do
poema “Camões”:
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
CANTO SÉTIMO XII
saiba mais
Nascido no Porto, a 4 de fevereiro de
1799, João Baptista da Silva Leitão viria
a falecer em Lisboa a 9 de dezembro de
1854.Matriculado em 1816 na Faculdade de Direito de Coimbra, em breve se
dedica à atividade dramática num meio
acadêmico agitado pelas novas ideias,
sobretudo políticas. Concluído o curso,
em 1821 (ano em que termina O Retrato de Vênus), vai para Lisboa, onde imediatamente acumula triunfos, no âmbito
literário, com a representação de Catão
(estreado a 29-11-1821) e casa-se com
Luísa Midosi (de quem viria a separarse em 1836). Exilado como liberal em
1823, viveu em Inglaterra e em França
até 1826. No regresso a Portugal dirige
os jornais O Português e O Cronista, mas
conhece de novo o exílio de 1828 a 1832.
De 1833 a 1836, é nomeado Encarregado
de Negócios e Cônsul-Geral na Bélgica.
Em 1838, integra o novo governo, sendo encarregado da restauração do teatro
português, missão que leva a cabo criando, não só o Conservatório de Arte Dramática, mas sobretudo o Teatro Nacional.
É nomeado Deputado em 1837, CronistaMor em 1838 e finalmente Par do Reino
em 1851. D. Pedro V agraciou-o, a 25
de junho de 1854, meses antes da sua
morte, com o título de Visconde de Almeida Garrett. Principais obras impressas e
publicadas em vida do autor: 1825 - Camões, Paris; 1826 - Dona Branca, Paris;
1842 - O Alfageme de Santarém, Lisboa;
8
1843 - Romanceiro e Cancioneiro Geral,
Lisboa;1844 - Frei Luís de Sousa, Lisboa; 1845-1850 - O Arco de Sant’Anna,
Unidade 3 . Aula
Estavam de altas árvores à sombra
De aveludada relva em fresco assento.
Atento o jovem rei fitava ansioso
O guerreiro cantor que o nobre aspecto
Tinha como de glória resplendente,
E na divina inspiração aceso.
Qual deveras o imita, qual fingindo;
Mas todos se compõem do rei a exemplo.
O vate começou: pausado acento,Respeitoso não
tímido, lhe alonga
Solenemente o cadenciar medido
Do metro numeroso. O heróico assunto
Primeiro expõe do Canto: armas e glória
Dos barões lusitanos que fundaram
Do Oriente o Império novo; os grandes feitos
Dos reis, dos cidadãos de eterna fama
Que se hão da lei da morte libertado.
Logo as Tágides musas invocando
Porque alto som lhe dêem e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente:
– «Dai-me – com voz mais elevada clama –
Dai-me uma fúria sonorosa e grande,
E não de agreste avena ou rudafrauta,
Mas da tuba canora e belicosa
Que o peito acende, e a dor ao gesto muda,
Um canto igual a meu erguido assunto.
Se tão sublime preço cabe em verso.
2 vols., Lisboa; 1846 - Viagens na Minha
Terra, Lisboa; 1853 - Folhas Caídas, Lisboa.
Podemos perceber que se trata de uma
espécie de “releitura” de Os Lusíadas, mas em
versão diferenciada: não há preocupação com
formas fixas, nem com rimas definidas, embora
utilize “o verso branco de dez sílabas que já
fora usado pelos árcades” (SARAIVA apud
ABDALA JÚNIOR.; PASCHOALIN, 1982,
p. 83). Se fizermos uma leitura simplificada do
texto, entendemos que, sob a copa de árvores
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Fonte:
http://www.instituto-camoes.
pt/revista/bibliografia.htm. Acesso em
dez./2011.
para conhecer
Na “Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa”, Biblioteca Digital da Porto Editora,
você encontra a versão integral do poema
“Camões”. Acesse o site: http://www.adfaportugal.com/livros/camoes.pdf.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
frondosas, Camões (“o guerreiro cantor”) expõe seu
canto (Os Lusíadas) ao “jovem rei”, no caso, D. Sebastião.
Você deve ter notado também que se trata de uma estrofe
numerada como décima primeira do canto sétimo. Pois esse
poema de Garrett, a exemplo da épica de Camões, dividese em 10 cantos, mas seus versos não possuem, também,
métrica definida. Sabemos que essa foi uma das marcas
da estética romântica: os poetas, em nome da liberdade
de criação, não aceitavam seguir modelos, diferenciandose, assim, da arte clássica. Porém, o que se percebe nesse
texto poético inaugural de Garrett, é que o autor, como
mencionado, ainda se encontra preso a determinadas
fórmulas do Classicismo: em lugar do individualismo
romântico, permanece o “universalismo épico [e] o destino
do herói identifica-se com a pátria” (ABDALA JÚNIOR.;
PASCHOALIN, 1982, p. 83).
De todo modo, com o tema central sobre o exílio,
a saudade da pátria e questionamentos sobre o destino do
país, esse foi o poema considerado iniciador da estética
romântica em Portugal. Garrett, no entanto, teve uma
importância muito mais efetiva no processo de formação e
afirmação do Romantismo português: com sua atuação pela
modernização do teatro português, produziu uma das mais
importantes obras da dramaturgia portuguesa do século
XIX, a peça Frei Luís de Souza.
Nesse texto, o autor utiliza fatos e figuras que
para conhecer
Não
deixe
de
ler:
você
encontra uma versão integral
deste texto de Garrett em:
http://web.portoeditora.
pt/bdigital/pdf/NTSITE99_
FreiLuisSou.pdf.
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realmente existiram na história portuguesa, como o
personagem que dá nome à obra, mas reinterpreta-os e
reescreve-os de acordo com as intenções românticas. Assim,
o enredo gira em torno do grande amor que uniu o fidalgo
Manuel de Sousa Coutinho com Madalena de Vilhena, com
quem teve uma filha, Maria de Noronha. O drama acontece
quando D. Madalena de Vilhena, que se julgava viúva de D.
João, um nobre que teria lutado ao lado de D. Sebastião em
Alcácer-Quibir, vê seu mundo desmoronar com o retorno
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
de seu ex-marido, que, após sete anos de procura, enfim, não
estava morto. A solução para esse enredo de notas trágicas se
dá com a conversão de Manuel e de Madalena à vida religiosa,
quando ele passa a adotar o nome de Frei Luis de Souza. Diante
dessa situação em que os personagens “morrem” para a vida
social, morre dramaticamente a filha do casal, que sempre teve
a saúde frágil.
Elevado à categoria de herói romântico, Frei Luis
de Souza, antes Manuel, foi, sobretudo, um patriota, capaz
de incendiar a própria casa para não a dispor aos espanhóis,
durante o domínio filipino em Portugal. Além disso, foi capaz
de viver o seu verdadeiro amor até as últimas consequências e
essa é a marca romântica de maior força na peça, além das crises
psicológicas de Madalena, sempre às voltas com a culpa de ter
cedido as suas paixões ao invés de manter o luto absoluto pelo
ex-marido desaparecido.
Com relação a seus poemas, os que compõem a sua
última obra, “Folhas Caídas”, são considerados os mais
românticos do poeta, “constituídos a partir da observação e da
Unidade 3 . Aula
8
vivência da realidade atual, e mais próximos de sua vida afetiva”
(ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1982, p. 85). Não
devemos esquecer que, para o artista romântico, fundir vida e
obra significava manter a coerência de princípios artísticos com
os da vida prática e política – a poesia deveria ser a expressão mais
viva de uma subjetividade vivida plenamente. Daí as marcas tão
autorais nos poemas, pois se sabia, na altura, que os versos eram
dedicados a sua amante, Rosa Montúfar, Viscondesa da Luz, o
que provocou escândalo na sociedade de então. Vejamos o poema
“Rosa e Lírio” desse livro:
A rosa
É formosa;
Bem sei.
Porque lhe
chamam - flor
D’amor,
Não sei.
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A flor,
Bem de amor
É o lírio;
Tem mel no
aroma - dor
Na cor
O lírio.
Se o cheiro
É fagueiro
Na rosa,
Se é de beleza - mor
Primor
A rosa,
No lírio
O martírio
Que é meu
Pintado vejo:
cor
E ardor
É o meu.
A rosa
É formosa,
Bem sei ...
E será de outros flor
D’amor...
Não sei.
Se entendermos que a “Rosa” é diretamente uma
referência a sua amada, percebemos que o “lírio” é a
representação do poeta. Então, identifique no poema:
a)
Como se caracteriza a rosa?
______________________________________
b)
Como é caracterizado o lírio?
_______________________________________
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Com base nessas respostas, reconhecendo o estilo
livre do texto poético, que não está marcado por nenhum
modelo, podemos dizer que se trata de uma expressão típica
da lírica romântica.
No entanto, a obra literária reconhecidamente mais
importante do romantismo garrettiano é a narrativa Viagens
na minha terra (1846). Trata-se de um texto literário que
não se encaixa perfeitamente no que chamamos romance,
pois se caracteriza por ser um misto de narrativa de viagens,
de crônica jornalística, de autobiografia, de comentário
político, de novela sentimental que “produz um relato
com variedade de motivos: realistas, líricos, humorísticos,
históricos, [...] mas todos exprimem o amor por tudo que é
nacional, marcadamente português” (FERREIRA, 1997, p.
23).
Nesse intuito de reconhecer o país, buscando afirmar
sua grandeza nos próprios limites de sua territorialidade e não
mais em função do grande império colonial, já decadente e
imagem do passado, Garrett desenvolve a narrativa dividida
Unidade 3 . Aula
8
em dois planos: no primeiro, encontramos o cronista que
realmente efetivou uma viagem de Lisboa a Santarém por
motivações políticas; no segundo, e alternando-se com a
anterior, há uma história sentimental, ficcional, a de Carlos
e Joaninha. Entretanto, ao final do livro, as figuras reais e as
fictícias acabam se encontrando e todos ganham estatuto de
personagem:
Assim, por esse artifício da narração, realidade e ficção se fundem-se em Viagens na
minha terra, de acordo com a ideia defendida pelos românticos: identificação entre
Vida e Literatura (FERREIRA, 1997, p.
26).
Com uma perspectiva popular, de acordo com a
lógica das publicações em folhetim, essa narrativa de Garrett
“denuncia a oligarquia portuguesa (os ‘barões’ e os ‘frades’)”
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(ABDALA JÚNIOR.; PASCHOALIN, 1982, p. 84),
afirmando os valores do liberalismo e a necessidade de Portugal
reconhecer suas potencialidades nacionais, o valor de seu povo
e de suas expressões artístico-culturais.
A seguir, reproduzimos um trecho do primeiro
capítulo dessa obra literária de Almeida Garrett:
Capítulo I
De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar
na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como
resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens.
Parte para Santarém. Chega ao terreiro do Paço,
embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A
Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron
e um bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os
Bordas-d’Água: os da calça larga levam a melhor.
Que viaje à roda do seu quarto quem está à
beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase
tão frio como S. Petersburgo - entende-se. Mas com
este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a
laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o
próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao
menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de
estio, viajo até a minha janela para ver uma nesguita
de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com
uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa
infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca
escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões
pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a
minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo.
Pois hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém:
e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu
pensar e sentir se há de fazer crônica.
Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção,
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas
desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais
histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me
as instâncias de um amigo, decidem-me as tonteiras
de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em
desígnio político determinado a minha visita.
Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me.
São 17 deste mês de julho, ano da graça de
1843, uma Segunda feira, dia sem nota e de boa
estreia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu
a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a
horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus
companheiros de viagem, que todos se prezam de
mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim
da praça quando oiço o rodar grave mas pressuroso
de uma carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e
comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que
chega em estado.
Também
são
chegados
os
outros
companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Percebemos, nesse excerto, o tom coloquial, com
certa graça e ironia, que caracteriza a narrativa. Ao longo
8
de 49 capítulos, as impressões, críticas e os sentimentos do
narrador-personagem-autor nos são contados para reafirmar
Unidade 3 . Aula
a sua preocupação com os destinos da pátria portuguesa e,
para alguns críticos, “a prosa moderna portuguesa nasceu
com este livro de Garrett” (FERREIRA, 1997, p. 31).
leitura recomendada
3.2 Outros autores relevantes
Não deixe de ler integralmente
este
importante
romance Viagens na mi-
Devemos sempre lembrar que as divisões da literatura
em fases, gerações, períodos, são formas principalmente
didáticas de estudarmos a matéria literária. Assim, quando
lemos que o Romantismo, tanto no Brasil quanto em
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nha terra: há vários sites
com versões digitalizadas,
como, entre outros, o seguinte:
http://www.triplov.com/
contos/garrett/viagens/
index.htm.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
Portugal, conheceu três fases ou gerações – a saber: a primeira,
de traços nacionalistas; a segunda, ultrarromântica; a terceira,
de transição para o Realismo – precisamos compreender que
não se trata de classificação definitiva nem estanque, pois
boa parte dos melhores escritores e artistas de diferentes
expressões culturais escapa aos “rótulos” simplistas. Um
exemplo muito nítido disso é a obra de Camilo Castelo
Branco.
para conhecer
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu a 16 de março de
1825, em Lisboa. Órfão de mãe aos dois anos e de pai aos nove, passou a viver em Vila Real com uma tia paterna. Aos 16 anos, casou-se
com Joaquina Pereira e, em 1844, instalou-se no Porto com o intuito
de cursar Medicina, projeto que não levou adiante. Em 1845, estreouse na poesia e no ano seguinte no teatro e também no jornalismo atividade, aliás, que nunca abandonaria. Viúvo desde 1847, fixou-se
definitivamente no Porto a partir de 1848 (onde, em 1846, já estivera
preso por ter raptado Patrícia Emília, um dos seus tumultuosos amores,
de quem teria uma filha). De 1849 a 1851 consolidou a sua atividade
jornalística, retomou o teatro, estreou-se no romance com Anátema
(1851), conheceu a alta-roda portuense bem como os meios boêmios e
foi protagonista de aventuras romanescas. Em 1853, abandonou o curso de Teologia no Seminário Episcopal, fundou vários jornais e em 1855
tornou-se o redator principal de O Porto e de Carta. Nessa altura, o seu
nome começava a soar nos meios jornalísticos e literários do Porto e
de Lisboa: já alimentara várias polêmicas e publicara alguns romances.
Mas foi a partir de 1856 que atingiu a maturidade literária com o romance Onde Está a Felicidade?. Foi ainda neste ano que iniciou o relacionamento amoroso com Ana Plácido, casada desde 1850 com Manuel
Pinheiro Alves. Por proposta de Alexandre Herculano, foi eleito sócio da
Academia Real das Ciências de Lisboa em 1858 - ano em que nasceu
Manuel Plácido, filho de Camilo e de Ana Plácido. Em 1860, Manuel Pinheiro Alves desencadeou o processo de adultério: em junho foi presa
a mulher e a 1 de outubro Camilo entregou-se na cadeia da Relação
do Porto. D. Pedro V visitou-o, em 1861, na cadeia, e a 16 de outubro
desse ano os réus foram absolvidos. Era intensa a atividade literária de
Camilo: entre 1862 e 1863, o escritor publicou onze novelas e romances atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. Em 1864, fixouse na quinta de S. Miguel de Seide (propriedade de Manuel Pinheiro
Alves que, entretanto, falecera em 1863) e nasceu-lhe o terceiro filho,
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
Nuno. Quatro anos depois, dirigiu a Gazeta Literária do Porto; em 1870
iniciou o processo do viscondado (o título ser-lhe-ia atribuído em 1885)
e, em 1876, tomou consciência da loucura do segundo filho, Jorge. No
ano seguinte, morreu Manuel Plácido. A partir de 1881, agravaram-se
os padecimentos, incluindo a doença dos olhos que o afetava. Em 1889,
por ocasião do seu aniversário, foi objeto de calorosa homenagem de
escritores, artistas e estudantes, promovida por João de Deus. No ano
seguinte, já cego, impossibilitado de escrever, suicidou-se com um tiro
de revólver. A casa de Seide é hoje o museu do escritor e na sua vizinhança foram inauguradas, a 1º de junho de 2005, as novas instalações do Centro de Estudos Camilianos.
Fonte:
http://www.infopedia.pt/$camilo-castelo-branco.
Acesso
em
dez./2011.
A vida deste autor apaixonado pela escrita foi, como
a sua biografia indica, muito tumultuada, aproximandose de um grande livro de aventuras dramáticas. Inquieto,
irreverente, sua obra, contudo, costuma ser classificada como
ultrarromântica, principalmente pelo sucesso que obteve
com a novela Amor de Perdição. A história dos jovens Simão
e Rita, que tiveram seu amor interditado pela inimizade
das famílias (e qualquer semelhança com Romeu e Julieta
Unidade 3 . Aula
8
não é mera coincidência), somada ao amor incondicional
da pobre Mariana também por Simão, sem nunca lhe ter
disputado com a moça rica, corre a um ritmo intenso e tem
desenlaces passionais que marcaram a escrita de Camilo como
pertencente à segunda geração romântica. Entretanto, muitos
são os estudos que demonstram o quanto tal classificação
da obra camiliana não se sustenta, pois se trata de um autor
multifacetado:
Nascido cerca de 20 anos depois dos membros da primeira geração [romântica], ele
poderia ser, teoricamente, membro da
segunda, mas, com certeza, só com muitas concessões, poder-se-ia, atualmente,
chamá-lo de ultrarromântico. [...] Curio-
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
so destino: sem lugar definido, Camilo
parece, qual fantasma, se multiplicar em
várias personas. Incontornável e incômoda: assim parece ser a imensa e multiforme
obra deste incansável polígrafo profissional (OLIVEIRA, 2007, p. 108).
Assim, ao lado do novelista romântico, encontra-se o
satírico escritor de críticas sociais em textos como Coração,
cabeça e estômago (1862), A queda dum anjo (1866) e, com
tom nitidamente realista, as narrativas Eusébio Macário
(1879) e A corja (1880).
Outro mencionado autor português da prosa
romântica é Julio Dinis. Em seus romances já se percebem
traços do Realismo, por isso ele costuma ser enquadrado na
saiba mais
No
Dicionário
de
Camilo
Castelo Branco, de Alexandre Cabral, p.65 a 67 [Lisboa: Editorial Caminho, Lisboa, 1988], contam-se 137
títulos que correspondem
a 180 volumes, assim distribuídos: A - Antologia 1;
B - Biografia 4; C - Crítica
4; D - Diversos 2; E - Epistolografia 1; H - História 3;
M - Miscelânea 18; N - Narrativa 9; P - Polémica 7; R Romance 54; T - Teatro 12;
V - Versos 22. Para ler suas
principais obras, você pode
acessar: http://www.domi-
terceira geração, ou seja, na transição do Romantismo para
a estética realista. Um exemplo desse processo é a narrativa
romanesca As pupilas do Senhor Reitor. A história gira em
torno da vida da abdicada Margarida e sua irmã Clara, que
têm correspondentes amorosos nos irmãos Pedro e Daniel.
Sem grandes tensões dramáticas, alicerçado nos valores do
liberalismo, encarnado pelo Reitor do título, o romance
ainda apresenta a idealização do amor e da vida no campo,
mas já apresenta algumas novidades: a protagonista, embora
não tenha necessidades financeiras, decide trabalhar: é
professora. Além disso, atente para o trecho seguinte e os
termos destacados:
niopublico.gov.br/pesquisa/
Vendo o padre a inclinação da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em
quando, alguns presentes de livros, depois
de os passar pela crítica dos seus rígidos
princípios morais, e julgá-los salutares.
Margarida lia-os com ardor, e, pouco a
pouco, costumou-se a lê-los com reflexão também. Não sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a
reler, mais que uma vez, os mesmos livros
— o que é sempre uma vantagem para a
PesquisaObra Form.do.
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
instrução colhida neles.
(Disponível em: virtualbooks.terra.com.br/
freebook/port/as_pupilas_senhor_reitor.htm).
O que percebemos é uma personagem feminina
capaz de refletir sobre as leituras realizadas (sim, isso era
uma novidade naquele tempo!) e, além disso, ao longo do
romance, podemos ver que Margarida questiona algumas
injustiças sociais. Entretanto, no conjunto da obra, revela-se
fundamentalmente ainda uma heroína romântica que busca,
sobretudo, a felicidade do amor verdadeiro. Esse amor ela
devota a Daniel, amor de infância. O moço, porém, ao fazer
carreira de médico e ausentar-se da vila, é corrompido pelos
valores da cidade grande (Porto), e aí encontramos outro
mote diferenciado do estilo comumente romântico: Daniel é,
a um só tempo, o “mocinho” e o “vilão” da história. Porém,
os ares simples e a vida mais verdadeira do campo, conforme a
idealização do autor, somados ao amor de Margarida, acabam
por reconduzir o moço ao bom caminho e, como nos melhores
textos românticos, “todos foram felizes para sempre”!
Unidade 3 . Aula
8
4 O ROMANTISMO NO BRASIL
saiba mais
Júlio Dinis é o pseudónimo literário mais conhecido de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, entre os vários que o autor adotou ao longo da sua
carreira literária. Nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto, e morreu
a 12 de setembro de 1871, na mesma cidade. Licenciou-se em Medicina, mas dedicou-se, sobretudo à literatura. É autor de poesias, peças de
teatro, textos de teorização literária, mas destaca-se como romancista,
deixando em pouco mais de trinta e dois anos de vida uma produção original e inovadora, que contribuiu grandemente para a criação do romance
moderno em Portugal. Órfão de mãe aos seis anos, estudou na Academia
Politécnica a partir de 1853, onde se relacionou com o poeta portuense
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
Soares de Passos, e ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em
1855, ano em que dois irmãos seus morrem, vítimas da tuberculose.
[...]. Em 1861, concluiu o curso de Medicina. Nos dois anos seguintes,
publicou em folhetim no Jornal do Porto alguns dos contos que seriam
postumamente compilados em Serões da Província, assinando ora Júlio
Dinis, ora Diana de Aveleda. Em 1863, passou uma temporada em casa
de familiares, em Ovar, para se tratar da tuberculose, declarada um ano
antes. Aí, descobre os encantos da vida rural, que estará presente em
grande parte das suas obras - Júlio Dinis foi principalmente um escritor
de espaços, oferecendo-nos quadros nos quais revela uma preocupação
pela veracidade nas descrições das aldeias, dos ambientes e caracteres,
e na evolução da intriga. O seu primeiro romance, As Pupilas do Senhor
Reitor, é publicado em folhetins no Jornal do Porto, em 1866, e em volume um ano depois. [Publica], em 1868, Uma Família Inglesa (retrato da
vida citadina, dando especial relevo à pequena burguesia nascente) e A
Morgadinha dos Canaviais, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor
Reitor, adaptadas ao teatro, são representadas no Teatro da Trindade. Em
1869, parte para a Madeira, em busca de uma melhoria do seu estado
de saúde, regressando, um ano depois, ao Porto, onde publica os Serões
da Província. No mesmo ano, concluiu o seu quarto romance, Os Fidalgos
da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acabará de rever. Em
1871, no mesmo ano em que as Pupilas do Senhor Reitor são representadas no Rio de Janeiro, assinalando já a celebridade do escritor além
fronteiras, morre prematuramente, vítima da tuberculose.
Fonte: www.infopedia.pt/$julio-dinis. Acesso em out. 2010.
Os poetas brasileiros do século XVIII contribuíram
decisivamente para o desenvolvimento de nossa vida literária,
incorporando os padrões estéticos da época e os aproveitando
leitura recomendada
Em nossas aulas, daremos ênfase à literatura
romântica em prosa – por
isso, para você retomar
estudos sobre a lírica no
Romantismo
brasileiro,
indicamos
seguintes
leituras:
as
CANDIDO,
A.;
CASTELO, A. J. Do Romantismo
ao
Simbo-
lismo. São Paulo: Difel,
1964; MOISÉS, Massaud.
História da Literatura
Brasileira.
São
Cultrix, v. 5. 1989.
248
Paulo:
para a criação de formas de expressão para o país. Também
teve importância o modo como trataram a literatura, porque
deixaram de encará-la como prática diletante, para transformála em instrumento de valorização da vida local, realizando aqui
o que se fazia na Europa (CANDIDO, 1981). Apesar desses
avanços, o incremento fundamental foi a combinação de fatores
decorrentes de um conjunto de fenômenos culturais, sociais,
políticos e econômicos.
Durante sua permanência no Brasil, D. João
proporcionou iniciativas culturais, criando cursos superiores,
a Academia Real de Belas Artes, a Biblioteca Real, o Teatro
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
Real de São João e a Imprensa Régia. Em 1816, promoveu o
desembarque de um grupo de artistas que ficou conhecido
como Missão Artística Francesa, composto por escultores,
arquitetos e pintores, entre eles Jean Baptiste Debret (17681848), celebrizado pela criação de quadros que retratam
para conhecer
Sobre a Missão Artística
Francesa, consultar:
www.educacao.uol.com.br/
cultura-brasileira/.
costumes brasileiros do século XIX.
A passagem de D. João pelo Rio de Janeiro também
deixou marcas na forma de convivência entre as pessoas,
promovendo alterações na vida familiar. As mulheres
que, durante o período colonial viviam reclusas em casa,
começaram a sair e a ter atividades públicas: iam à missa,
à modista, ao teatro, às joalherias e às lojas. Apareceram
produtos destinados a elas: joias, adornos para a casa,
utensílios domésticos e acessórios de uso pessoal como
chapéu, luva, leque e de artigos como perfume e sabonete. A
circulação de revistas de moda teve grande importância para
o universo feminino, porque estas publicações costumavam
estampar textos literários e estimularam o desenvolvimento
do hábito de leitura.
Unidade 3 . Aula
8
Apesar da submissão ao pai e ao marido, a maior
participação feminina no cotidiano foi uma exigência da
sociedade que se formava naquele momento no Rio de
Janeiro. Coube à mulher um papel fundamental neste
processo, porque as filhas solteiras se tornaram moeda de
troca nas relações políticas e econômicas, ou seja, na aliança
entre as elites rural e urbana a fim de interferir nas decisões.
Por causa disso, os salões das amplas casas recém-erguidas
pelos endinheirados assumiram grande relevância, pois
abrigavam festas e recepções que serviam para demonstrar
o prestígio social dos donos e, consequentemente, sua
capacidade de influenciar na gestão do país. Tais ocasiões,
tanto quanto a missa e o teatro, propiciavam o contato
das moças com os estudantes, portanto faziam parte do
mecanismo que a classe abastada dispunha para se manter
no controle do poder.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
A instalação de faculdades valorizou o título de doutor,
tornando-o igual ao de proprietário de terras ou a uma grande
fortuna, determinando que as famílias se empenhassem na
habilitação das filhas para o casamento com os diplomados. Em
função disso, passaram a submeter as meninas a uma educação
destinada a provê-las de atributos indispensáveis ao ambiente
citadino, ou seja, da vida mundana dos salões. Entre os prérequisitos necessários, a música, por meio do canto e do piano
e, principalmente, a alfabetização para que as moças pudessem
ler revistas de moda e de orientações para os cuidados da casa.
Esta realidade social aparece como cenário em praticamente
todas as narrativas de temática urbana de autores brasileiros
escritas entre as décadas de 1840 e 1860. Foi também o ambiente
preferido de Machado de Assis, ainda que o grosso de sua prosa
ficcional tenha aparecido a partir de 1870.
Os fatores mencionados, decorrentes da concentração
das atividades sociais e econômicas na cidade, favoreceram o
aparecimento de outra figura humana importante na paisagem
do Rio de Janeiro do século XIX: os estudantes, segmento
composto por rapazes oriundos de várias regiões do país. O
prestígio que desfrutavam permitia a realização de ambições
e mesmo quem não pertencesse à classe abastada podia
almejar a ascensão social e econômica pelo diploma, porque
podia transformar o advogado pobre recém-formado em
genro de um grande proprietário de terras cujos interesses
passaria a representar. A frequência às redações dos jornais era
prática preferida destes rapazes como estratégia para ficarem
conhecidos e se exercitar para a carreira política, publicando
artigos de opinião e textos literários. Presenças indispensáveis
nos teatros e nas recepções, eles também tinham em comum
com as moças o hábito da leitura.
Essas mudanças ocorriam ao mesmo tempo em que no
campo político e ideológico transcorria a busca por elementos
que pudessem sintetizar o país. A Independência despertou o
desejo de manifestar novos sentimentos, o orgulho patriótico
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em substituição ao nativismo das manifestações literárias do
século XVIII. Fez nascer a disposição para a criação de uma
literatura que não estivesse atrelada ao passado e à literatura
portuguesa, daí a valorização de Basílio da Gama e Santa Rita
Durão, por ambos transformarem o índio em matéria literária
(que tal revisar a aula 6?). Isso se explica pela oposição do
indígena ao lusitano, sendo o homem nativo tomado como
expressão da nossa origem, enquanto o outro foi visto como
explorador (CANDIDO, 1981).
Na prática, a Independência estimulou ações destinadas
à construção das instituições nacionais, sendo o principal
fator para a preocupação em dotar o país de uma literatura.
Nesse sentido, o trabalho intelectual passou a constituir
prova do valor do brasileiro, da capacidade intelectual do país
e, ao mesmo tempo, assumiu viés patriótico. Os escritores
se sentiram no compromisso de participar desse esforço e a
maneira encontrada foi o aproveitamento literário de tudo
aquilo que pudesse demonstrar seu patriotismo. O homem de
letras assumiu, assim, a tarefa tripla de construção: da nossa
Unidade 3 . Aula
8
vida intelectual, da nossa literatura e de nossos símbolos
(CANDIDO, 1981). As obras que escreviam, por sua vez, se
destinavam a cumprir dupla função: aproximar literariamente o
Brasil da Europa e servir como meio de expressão de uma ideia
de país, por isso a artificialidade de boa parte das produções da
época.
Os indivíduos letrados tinham consciência que
precisavam realizar no plano literário o correspondente àquilo
que havia ocorrido no campo político e administrativo, ou
seja, pensavam em criar uma literatura autônoma em relação a
Portugal. Acontece que a separação política e administrativa foi
um acordo para a acomodação de interesses, por isso ignorou
conflitos e problemas graves, sendo o principal a escravidão
(SODRÉ, 1988). Uma sociedade forjada de tal maneira
precisava criar mecanismos de compensação e encontrou
na literatura um deles, em nome do ardor patriótico. Os
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escritores eram indivíduos pertencentes ou identificados com
a classe dominante, a tutora do país que se formava, por isso
empregavam os artificialismos e a idealização como maquiagem
para a realidade.
Assim, criou-se uma contradição porque a matéria viva,
ou seja, os problemas e a vida prática ficaram de fora da literatura,
enquanto foi grande o esforço para enaltecer a natureza
e as peculiaridades nacionais. Devemos valorizar o fervor
patriótico devido ao impulso que deu para o desenvolvimento
da literatura nacional e em língua portuguesa, introduzindo
temas, imagens, metáforas, elementos naturais, peculiaridades
regionais e figuras humanas características, como o gaúcho e
o sertanejo. A parte negativa ficou por conta da ausência de
pulsação nas personagens, pelos exageros e rompantes na
poesia e pela pouca atenção a cuidados estéticos, no que diz
respeito ao acabamento e à melhor estruturação de boa parte
das obras.
Nisso consistem os maiores defeitos e as principais
virtudes dos escritores da época, porém cada um tratou de
trabalhar a seu modo para a fundação da nossa literatura, tarefa
que realizaram exitosamente no curto período de pouco mais
de três décadas, a partir de 1836. O saldo é altamente favorável,
porque, excluídos os acima da média, normalmente poucos
em qualquer lugar, nossos escritores resistem bem quando
comparados aos de outras literaturas da época.
4.1 José de Alencar e a atualidade do passado
A concretização do projeto de construção de símbolos
nacionais alimentado durante as décadas posteriores à
Independência teve em José de Alencar (1829-1877) um
dos principais participantes. A avaliação de sua trajetória
demonstra que suas obras se encaixam num amplo e sólido
projeto literário que passou por constantes transformações,
resultando em um legado representado por experimentos
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
em vários gêneros e, fundamentalmente, por uma prosa de
assuntos diversos. O escritor cearense encarnou a disposição
de seus contemporâneos em contribuir decisivamente para o
desenvolvimento das letras no país:
Sobressai nesse instante a figura de José de
Alencar, o patriarca da literatura brasileira
símbolo da revolução literária então realizada, a cuja obra está ligada a fixação desse processo revolucionário que enquadrou a literatura brasileira nos seus moldes definitivos
(COUTINHO, 1986, p. 153).
No campo da literatura, realizou sozinho grande parte
daquilo que almejavam os escritores brasileiros da época, ao
produzir obra vasta e diversificada em três gêneros: crítica,
teatro e romance. Se a dedicação às várias modalidades foi
prática comum, afinal naquele tempo tudo estava por fazer e
todos queriam contribuir, o cearense se destaca em relação aos
demais pelo equilíbrio, principalmente dos romances, razão
pela qual tem o nome associado aos melhores momentos da
Unidade 3 . Aula
8
nossa prosa ficcional do período e conquistou grande prestígio
junto aos leitores. A consagração pelo público veio com O
guarani, seu segundo livro, publicado em 1857, depois de uma
polêmica por meio dos jornais com Gonçalves de Magalhães. A
origem do debate, que rendeu vários artigos de ambos os lados,
foi a crítica desfavorável de Alencar ao poema A confederação
dos tamoios, épico com a qual o introdutor do romantismo no
Brasil pretendia dar conta da temática indígena:
A primeira surtida em campo indianista ocorreu em 1856, quando, em torno d’A confederação dos tamoios de Gonçalves de Magalhães,
se haviam aliado de um e de outro lado da barricada, como defensores (Porto Alegre [Araújo
Porto Alegre] e o próprio imperador D. Pedro
II) e como acusadores, os mais vivos engenhos
da época, entre os quais o próprio Alencar
(STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 200).
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Tudo leva a crer que O guarani surgiu como
demonstração a Magalhães e seus partidários sobre o modo
pelo qual tratar literariamente o tema do índio, ou seja, o
aparecimento do romance evidencia a sintonia de Alencar
com sua época. Ele percebeu o essencial: a falta de dimensões
épicas ao assunto, a superação da epopeia como forma de
expressão artística e que o gênero romanesco, então uma
novidade, se consolidaria na literatura mundial.
A publicação de O guarani também revela a
inquietação de Alencar e sua busca constante por novos
padrões de expressão literária. Em Cinco minutos (1856),
seu livro de estreia, aborda os costumes urbanos, o que
continuou fazendo até o final da vida. Ao mesmo tempo,
porém, intercalou a temática indígena, com a regionalista e
com a histórica. No que se refere à escolha de assuntos, o
fato de escrever inspirado na vida do Rio de Janeiro constitui
prova de preocupação com inovações, porque aproveita
esta matéria para mostrar a multifacetação da sociedade
brasileira que, já mencionamos, começava a ocorrer naquele
momento.
Antonio Candido afirma que dos vinte e um
romances de Alencar, “nenhum é péssimo, todos merecem
leitura e, na maioria, permanecem vivos” (1981, p. 222).
Em outras palavras, se deixarmos de lado a esquematização
redutora e superficial, encontraremos em sua obra muito
saiba mais
O guarani inspirou várias
obras homônimas: a ópera
composta
por
Carlos
Gomes (1870); sete filmes (1911, 1916, 1920,
1926, 1950 1979, 1996) e
uma minissérie produzida
pela extinta TV Manchete
(1991).
254
mais do que as características gerais da escola romântica. Seu
enraizamento com nossa literatura é profundo e se ramifica
em todas as direções.
Num sentido, partiu do passado e projetou o
futuro, porque tomou por referência os poetas do século
XVIII, os precursores no aproveitamento literário da
vida e dos costumes indígenas, e rejuvenesceu a matéria,
como demonstra com O guarani. O romance surgiu como
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
atualização do tema e adequação de um gênero literário a ele,
razão pela qual se inscreve como inaugurador de uma sucessão
de obras, sendo o próprio Alencar um dos continuadores, com
Iracema (1865) e Ubirajara (1874). A tradição atravessou os
séculos e nesse percurso gerou romances como Macunaíma
(1928), de Mário de Andrade, e Kuarup (1967), de Antônio
Callado, entre outros tantos. A respeito da importância das
obras de Alencar para o imaginário dos escritores brasileiros
vale destacar que:
Para libertar-se do mito de Peri, desse bom selvagem sem mácula nem medo, os modernistas
de 1922 construirão em vão o seu Macunaíma;
o mau selvagem, zombeteiro e desleal, pávido
e degradado. Peri resistirá como resistirá Iracema (STEGAGNO-PICHIO, 1997, p. 203).
No outro, dedicou grande atenção ao que se passava
ao seu redor, não apenas pelo o enfrentamento a Gonçalves
de Magalhães, um dos mais respeitados homens de letras da
Unidade 3 . Aula
8
época. Antes do aparecimento de O guarani, o habitante nativo
do Brasil já havia inspirado o poeta Gonçalves Dias, outro
grande escritor do romantismo e criador de figuras indígenas
inesquecíveis, como Marabá, e de obras como Leito de folhas
verdes, cujo lirismo engrandece a poesia brasileira. Este é apenas
um dos vínculos de Alencar com a vida literária de seu tempo,
porque ao não se limitar a escrever sobre um só assunto criou
relações mais amplas com a literatura de seus contemporâneos.
José de Alencar também dialoga literariamente com
Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) e Manuel Antônio
de Almeida (1831-1861) que, em romances publicados antes
de Cinco minutos, escreveram sobre a vida urbana. Assim
como se aproxima da geração anterior, de quem é continuador,
o cearense serviu de modelo para os mais novos, entre eles,
ninguém menos do que Machado de Assis (1839-1908), um
dos principais nomes da literatura em nossa língua. Alencar
também se juntou aos que fortaleceram o romance brasileiro
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pela ambientação de narrativas na zona rural e nas regiões
mais afastadas do Rio de Janeiro, como Visconde de Taunay
(1843-1899) e Bernardo Guimarães (1825-1884). Ao lado
deles, contribuiu para a incorporação de ambientes, tipos
humanos e peculiaridades regionais ao imaginário criativo, bem
como acrescentando expressões e vocábulos característicos à
linguagem literária, dotando a literatura brasileira e de língua
portuguesa de mais recursos expressivos.
Com relação à introdução de motivos regionais, o
interesse dos escritores ultrapassava os limites da literatura e
corresponde literariamente aos fenômenos sociológicos e às
transformações econômicas e políticas que ocorriam no Brasil.
A partir da Independência, o país começou um longo processo
de movimentação em direção a regiões antes menos conhecidas,
por vários motivos:
[...] as oposições Norte, Sul, província e metrópole, costa e interior; as especializações
regionais de cultura e civilização com paisagem cultural e artística própria, com até um
tipo humano, psicológica e socialmente diferenciado, formas de cozinha, de arte e de
língua peculiares; (COUTINHO & COUTINHO, 1986, p. 236).
O regionalismo se tornou uma das vertentes mais
fecundas do romance brasileiro e permanece como fonte
constante de revigoramento da nossa prosa. Desde o tempo em
que José de Alencar se apresentou como um dos precursores
no aproveitamento de peculiaridades de regiões brasileiras,
o assunto segue fermentando a imaginação dos escritores.
Como mostra Karl Erik Schollhammer “nunca foi abandonado
por completo o cenário regional, que subsiste até hoje na
literatura brasileira desde o século XIX” (2009, p. 77-78).
Assim, o cearense aparece entre os escritores que contribuíram
decisivamente para o desenvolvimento da nossa literatura.
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ATIVIDADES
Atividades
I – A partir da leitura do romance Viagens na minha terra,
analise o capítulo abaixo e responda as questões seguintes:
CAPÍTULO X
Vale de Santarém. — Namora-se o A. de uma janela que vê por
entre umas árvores. — Conjeturas várias a respeito da dita janela.
— Semelhança do poeta com a mulher namorada, e inquestionável
inferioridade do homem que não é poeta. — Os rouxinóis.
Reminiscência e Bernadim Ribeiro e das suas Saudades. — De
como o A. tinha quase completo os eu romance, menos um vestido
branco e uns olhos pretos. — Saem verdes os olhos com grande
admiração e pasmo seu. — Verificam-se as conjeturas sobre a
misteriosa janela. — Da menina dos rouxinóis. — Censura das
damas muito para temer, a crítica dos elegantes muito para rir. —
Começa o primeiro episódio dessa odisséia.
Unidade 3 . Aula
8
O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela
natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a
situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há
ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de
cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente,
que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o
repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor
e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos,
os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe.
Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com
a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que
ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo
viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os ramos
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas
grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado
vestem e alcatifam o chão. Para mais realçar a beleza do quadro,
vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma
habitação antiga mas não dilapidada — com certo ar de conforto
grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a
que está exposta. A janela é larga e baixa; parece-me mais ornada e
também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali? Parei e pusme a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por
detrás. Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era
completo o romance.
Como há de ser belo ver o pôr o sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de maio!...
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela? ... quem
aprecie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos
gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada. São os dois
entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada;
veem, sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não sente
não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não
é poeta, entre sempre o seu tanto de vil prosa humana: é liga sem
que não se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não; a mulher
apaixonada deveras sublima-se. Idealiza-se logo, toda ela é poesia,
e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a
façam descer ao positivo da existência prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais
linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
Respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre
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ambos um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem
medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do
meu romance, esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se
deixou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim de
tarde... o que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão —
vestido de branco — oh! branco por força... a frente descaída
sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados
ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! É amiudar
muito demais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços
para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade
poética.
— Os olhos, os olhos... - disse eu, pensando já alto, e todo no
meu êxtase - os olhos... pretos.
— Pois eram verdes!
— Verdes os olhos... dela, do vulto na janela?
— Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes,
Unidade 3 . Aula
8
brilhantes, sem preço.
— Quê! Pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali
uma mulher, bonita, bonita, e?...
Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas
houve... oh! houve um anjo, um anjo, que deve estar no céu.
— Bem dizia eu que aquela janela...
— É a janela dos rouxinóis...
— Que lá estão a cantar.
— Estão, esses lá estão ainda como há dez anos — os mesmos
ou outros, mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.
— A menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras
tem uma história aquela janela?
— É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os
franceses, e conta-se em duas palavras.
— Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com os olhos
verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já.
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— Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos
nossos companheiros de viagem. Apeamo-nos,[...] sentamo-nos,
e eis aqui a história da menina dos rouxinóis, como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha odisseia: estou com medo de
entrar nele, porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra
que o português não é bom para isto, que em francês que há outro
não sei quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os
elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque
enfim, enfim, deles me rio eu: mas poesia ou romance, música ou
drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos; o que
eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas,
peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e
singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do
meu conto para o seguinte.
1) Aponte os elementos propriamente românticos que
o excerto apresenta, considerando a representação da
natureza e as digressões do autor-narrador.
2) Como podemos entender a seguinte passagem: “São os
dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher
namorada; veem, sentem pensam, falam como a outra
gente não vê, não sente não pensa nem fala”? Trata-se de
uma concepção tipicamente romântica? Por quê?
3) Aponte passagens em que se pode perceber a ironia do
autor em relação ao “bom gosto” dos portugueses e
explique os seus principais sentidos.
4) Pesquise em sites da internet e responda: por que o autor
faz referência à obra de Bernardim Ribeiro? Elabore
um parágrafo, indicando quem foi esse autor e qual sua
importância para a literatura romântica portuguesa.
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II - O texto abaixo é o desfecho do romance O guarani, de
José de Alencar.
“Tudo era água e céu.
A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a
vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal
durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos
confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente
em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se
abatera sobre a várzea.
A tempestade continuava ainda ao longo de toda a
cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas
o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.
A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se
gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem
dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas
de arbustos.
A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília,
parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente;
Unidade 3 . Aula
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as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso,
onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos
uma só morte, pois uma só era a sua vida.
Cecília esperava o seu último momento com a sublime
resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria
feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece
que expirara dos seus lábios.
[...]
Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças
profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e
sentimento.
Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras,
como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe
que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia
do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber-
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se no seu coração, que se abria para recebê-la.
A água subindo molhou as pontas das largas folhas da
palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na
alva cambraia das roupas de Cecília.
A menina, por um movimento instintivo de terror,
conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em
que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou
docemente:
- Meu Deus!... Peri!...
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu
uma cena estupenda, heroica, sobre-humana; um espetáculo
grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam
pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço
desesperado cingindo o tronco da palmeira nos seus braços
hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se,
inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou,
cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que
a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida
contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força
contra a imobilidade.
Houve um momento de repouso em que o homem,
concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra
a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia
despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das
águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já
minada profundamente pela torrente.
A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente,
resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha
flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase
inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento
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de ventura suprema:
- Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo
ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida
eterna.
- Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de
Deus, junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar ao berço.
- Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no
seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu
viverás com tua irmã, sempre...!
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida
reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores
e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas
de um beijo soltando o voo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte”.
8
(ALENCAR, José de. O guarani. 18. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1974, p. 316-318).
Unidade 3 . Aula
1. Descreva como o fragmento final de O guarani
permite que se perceba a valorização das origens do povo
brasileiro.
2. Desenvolva breve comentário, argumentando como
o episódio evidencia representação de Peri como
personagem ajustado aos valores ideológicos do século
XIX e à ideia de construção de símbolos nacionais.
3. Leia o fragmento a seguir do livro de Gênesis, extraído
da Bíblia Sagrada:
“Durante quarenta dias o dilúvio se abateu sobre a
terra. As águas subiram e ergueram a arca, que se
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elevou acima da terra.
As águas cresceram e aumentaram muito sobre
a terra, de modo que a arca começou a flutuar na
superfície das águas.
As águas cresceram tanto sobre a terra que cobriram
as montanhas mais altas que há debaixo do céu.
As águas subiram uns oito metros acima das
montanhas.
Pereceram todas as criaturas que se moviam na
terra, aves, animais domésticos, animais selvagens
e todos os animais que fervilham pelo chão, bem
como todos os seres humanos.
[...] Pouco a pouco as águas foram se retirando
da terra. Ao término de cento e cinquenta dias
começaram a diminuir.
No dia dezessete do sétimo mês, a arca pousou
sobre os montes de Ararat.
As águas continuaram diminuindo até o décimo
mês. E no primeiro dia desse mês apareceram os
cumes das montanhas.
[...] Saiu, pois, Noé da arca com os filhos, a mulher
e as mulheres dos filhos.
Saíram também todos os animais selvagens e
domésticos, todas as aves e todos os animais que
se movem pelo chão, todos segundo suas espécies.
[...] Enquanto a terra durar, plantio e colheita, frio
e calor, verão e inverno, dia e noite jamais hão de
cessar”.
Bíblia Sagrada. Disponível em: www.bibliacatolica.
com.br/02. Acesso em agosto/2011
a) Compare com o trecho de O guarani e descreva as
semelhanças com relação à representação da inundação.
b) Estabeleça paralelos entre o desfecho do mito bíblico e
do romance de José de Alencar quanto ao destino de,
respectivamente, Noé e sua família, Ceci e Peri.
4) Estabeleça associações entre a passagem bíblica
mencionada, o desfecho de O guarani e suas relações
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com a ideia de formação do Brasil em vigor logo após a
Independência.
livros
1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, de
Laurentino Gomes.
1822: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco
por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo
para dar errado, de Laurentino Gomes.
A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal.
Imperatriz no fim do mundo, de Ivanir Calado.
Audiovisual
As pupilas do Senhor Reitor. Novela com trechos acessíveis no youtube.
Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati
O guarani (1996), de Norma Benguel
Unidade 3 . Aula
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Mauá, o imperador e o rei (1999), de Sérgio Resende
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RESUMINDO
re
esu
um
resumindo
Estudamos, nesta aula, os aspectos mais relevantes do contexto
histórico-cultural que possibilitou a emergência da estética
romântica no Brasil e em Portugal. Assim, compreendemos as
principais implicações da ascensão e afirmação da burguesia, com
suas semelhanças e diferenças para as realidades lusitana e brasileira,
na primeira metade do século XIX. Vimos que, nesses contextos,
destacou-se a prosa narrativa de Garrett e Alencar, em Portugal e no
Brasil, respectivamente, considerados os nomes mais importantes
para a intenção da estética romântica de confirmação de sentidos
de nacionalidade, com o privilégio da perspectiva subjetiva.
REFERÊNCIAS
Referências
R
Re
Refe
efe
ferê
r
ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria
Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São
Paulo: Ática, 1982.
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1955.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. vol 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
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O Romantismo e a afirmação da nacionalidade
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo. A literatura
no Brasil. vol. IV. 3. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro:
José Olympio; Niterói: EDUFF, 1986.
FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Introdução. In: GARRETT,
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:
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MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve
história da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks,
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OLIVEIRA, Paulo Motta. À esquina do cânone: olhares
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SCHOLLHAMER,
Karl
Erik.
Ficção
brasileira
contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
SARAIVA, António José; LOPES; Óscar. História da
literatura portuguesa. Porto: Porto, 1998.
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SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9.
ed. Europa-América: Lisboa, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil. 8.
ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana Stegagno. História da
literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
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Suas anotações
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3ª
unidade
AULA 9
REALISMO, NATURALISMO,
PROGRAMAS E RUPTURAS
OBJETIVOS
Reconhecer os principais aspectos histórico-culturais que
contextualizaram as expressões artísticas do Realismo
e do Naturalismo em Portugal e no Brasil, bem como os
principais nomes e obras literárias que fundamentaram
novos programas estéticos e anunciaram rupturas artísticas
no campo literário.
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Realismo, Naturalismo, programas e rupturas
1 INTRODUÇÃO
A partir de 1830, explodiram conflitos sociais na
Europa que, tendo a França como ponto de irradiação, se
espalharam pelo continente e provocaram mudanças profundas
com desdobramentos ao longo das décadas seguintes. O
caráter antimonarquista, liberal e nacionalista estimulou as
manifestações populares em vários países cujo momento mais
crítico aconteceu por volta de 1850. A instituição do voto
universal fez a burguesia se sentir ameaçada pelo proletariado,
colocando os dois segmentos em campos separados e
evidenciando a divergência entre seus respectivos interesses
(SARAIVA, 1984).
Diante disso, o capitalismo entrou em outra fase,
inaugurando um período de expansão comercial e de colonização
da África, onde procurava as matérias-primas necessárias à
produção de bens. A expansão industrial expôs os problemas
do capitalismo e dos ideais da Revolução Francesa, quando
os segmentos menos favorecidos da população perceberam
9
que não podiam adquirir os bens produzidos nem usufruir
dos avanços tecnológicos, assim como estavam excluídos das
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decisões políticas. A consciência de que a igualdade não era para
todos deu origem ao surgimento de manifestações de caráter
reivindicatório que, juntamente com a valorização da ciência
e a crença no pensamento racional, estimularam a busca por
inovações nas formas de representação artística. Na literatura,
o marco do advento de uma nova era foi o romance Madame
Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1857. Essa obra
literária é apontada como uma das principais referências da
rebeldia contra a idealização do Romantismo e por trazer para a
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ficção a vida dos indivíduos obscuros, portanto de pessoas mais
próximas da realidade, compostas de opostos: o bem e o mal,
a rudeza e o requinte, a vileza e a dignidade (COUTINHO,
1986). Nesta aula, estudaremos os principais aspectos do
Realismo e do Naturalismo em Portugal e no Brasil.
2 O REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL
Quando estudamos a estética realista, devemos,
inicialmente, considerar a imprecisão generalizante do termo
“realismo”:
Se o uso do termo realismo tem uma longa
história no campo artístico, está também ligado a questões filosóficas de fundo, voltadas para os próprios conceitos de ‘real’ e de
‘realidade’, que se transformaram ao longo
dos séculos, [mas] o realismo surgiu como
uma palavra totalmente nova, apenas no século XIX; em francês, por volta de 1830, e
em inglês, no vocabulário crítico, em 1856,
sendo que, a partir de então, desenvolveu-se
como termo que descreve um método e uma
postura em arte e literatura: primeiro uma excepcional acuidade na representação e depois
um compromisso de descrever eventos reais,
mostrando-os como existem de fato, sendo
que aqui, em muitos casos, inclui-se uma
intenção política (WILLIAMS, 1983, apud
PELLEGRINI, 2007, p. 139).
Em geral, costuma-se definir que o Realismo teve
origem francesa, contrapondo-se às diretrizes do Romantismo
e convergindo em parte com o Naturalismo. Essa origem
francesa data de 1856/57, quando Duranty e Champfleury
publicaram, respectivamente, a revista chamada Réalisme e
um conjunto de ensaios intitulado Le Réalisme. Em termos
literários, 1857 é também o ano de publicação de Madame
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Realismo, Naturalismo, programas e rupturas
Bovary, de Flaubert.
No entanto o termo “realismo”, enquanto proposta
estética voltada a retratar o mundo da forma mais direta e
objetiva possível, foi cunhado pelo pintor francês Gustave
Courbet (1819-1877), quando ele abriu uma exposição
individual em Paris, em 1855, intitulada de Lê Réalisme.
Os britadores, de G. Courbet.
Quais eram então, de modo geral, as dominantes
ideológicas do Realismo? Eram as que se opunham ao idealismo
romântico, propondo uma visão materialista das coisas e
fenômenos, priorizando a realidade material, empiricamente
verificável que deve ser observada e analisada de maneira neutra,
desapaixonada e tanto quanto possível objetiva. Só assim seria
possível o reconhecimento minucioso dos costumes, para que
se efetivasse uma crítica social.
Assim, o Realismo, no plano social, conecta-se com
correntes de índole reformista e mesmo socialista, nos moldes
do pensamento de Proudhon, e de uma leitura de tradução
francesa do pensamento de Hegel.
9
O quadro geral é o advento e afirmação do capitalismo
industrial com destaque para grandes mudanças no pensamento
científico da época, sobretudo com os estudos de Darwin e
com o surto de campos de conhecimento como a geologia, a
embriologia, a sociologia, as descobertas da bioquímica – e a
ideia de unidade material de todos os fenômenos.
Em Portugal, acentuava-se a dependência econômica do
Unidade 3 . Aula
país em relação à Inglaterra, mas registrava-se algum crescido
em termos comerciais, fazendo surgir uma burguesia urbana
composta por uma classe média que possuía maior acesso à
vida cultural nas cidades. Cresce a imprensa, a circulação de
livros e revistas. No campo, entretanto, permanecia o índice de
analfabetismo em torno de 80% até 1900.
O regime monárquico começava a ser questionado
e ganhavam espaço as ideias republicanas. Data de 1875 a
fundação do Partido Socialista Francês e de 1876 o Partido
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para conhecer
PROUDHON, Pierre-Joseph - Nasceu em Besançon em 15 de janeiro
de 1809. Estudou como bolsista no Colégio de sua cidade natal, interrompeu seus estudos aos 19 anos, bacharelando-se em 1838. Foi
aprendiz de impressor e tipógrafo, profissão que lhe permitiu o acesso
às mais diversas leituras. Nos meados de 1840 manteve contato com
vários socialistas, inclusive com Marx, com quem se encontrou em Paris
e que o iniciou nos estudos da filosofia hegeliana, mas logo se distanciaram por conta das divergências ideológicas surgidas entre os dois.
Posicionando-se contra todas as correntes do pensamento socialista da
época [...], Proudhon defendeu a liberdade individual dos homens e a
justiça como os dois pilares da organização social. [...] Opôs-se à propriedade privada na medida em que expressava a injustiça e a limitação
à liberdade, pois esses dois princípios deveriam assegurar a propriedade a cada homem individualmente. Considerado introdutor da palavra
“anarquismo” no dicionário político e criador do mutualismo, Proudhon
escreveu várias obras, entre elas: [O que é a propriedade?] (1840),
e [Sistema das contradições econômicas ou a filosofia da miséria], de
“Système des contradictions economiques ou philosophie de la misère”
(1846) [...]. Pierre-Joseph Proudhon faleceu em Paris em 16 de janeiro
de 1865.
Fonte:
http://www.moreira.pro.br/pierreproudhon.htm.
Acesso
em
dez./2011.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (27/8/1770, Stuttgart, Alemanha
- 14/11/1831, Berlim, Alemanha) - Foi um dos mais influentes filósofos
alemães do século XIX. Escreveu sobre psicologia, direito, história, arte
e religião. Filho de um funcionário público, Hegel foi para Tübingen
(seminário da igreja protestante) em 1788, onde estudou teologia e
filosofia [...]. Após a sua graduação, tornou-se autodidata até 1801,
quando começou a lecionar na Universidade de Jena. Forçado a partir
devido às guerras napoleônicas, tornou-se diretor de ginásio de Nuremberg. Casou-se com Marie von Tucher, com quem teve dois filhos. [...]
Ele lecionou em Heidelberg durante algum tempo e foi para Universidade de Berlim em 1818, tornando-se reitor em 1830. Morreu víima
de cólera no dia 14 de novembro de 1831. Hegel concebeu um modelo
de análise da realidade que influenciou Marx, Rousseau, Goethe e até
Wagner. Hegel debruçou-se sobre domínios diversos como lógica, direito, religião, arte, moral, ciência e história da filosofia, e em todos eles
viu a manifestação do Espírito Absoluto que se materializava através
da História da Humanidade. Na filosofia hegeliana, a dialética permitiu
compreender e elucidar a racionalidade do real. Suas principais obras
foram: “Fenomenologia do Espírito” (1806), “Ciência da Lógica” (18121816), “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (1817-1830), “Filosofia
do Direito” (1817-1830).
Fonte: biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_487.htmlEm cache
– Similares.
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Republicano. Diante dessa realidade, alguns escritores
sentiram a necessidade de uma arte engajada com seu
tempo, capaz de reeducar os leitores, ou seja, que tivesse
uma atitude pedagógica.
Para tanto, era necessário escolher, recortar temas da
realidade que deveria ser “retratada”. É o que aparece nestas
palavras de Guy de Maupassant:
O realista [...] não procurará mostrar a fotografia banal da vida, mas dar-nos dela a
visão mais completa, mais surpreendente,
mais evidente do que a própria realidade.
Seria impossível contar tudo, porque então seria necessário pelo menos um volume por dia, para enumerar as multidões de
incidentes insignificantes que preenchem
a nossa existência. Impõem-se, pois, uma
escolha – o que constitui um primeiro prejuízo à teoria de toda a verdade. A vida,
além disso, é composta pelas coisas mais
diferentes, mais imprevistas, mais contrárias, mais díspares; a vida é brutal, sem
sequência, sem encadeamento, plena de
catástrofes inexplicáveis, ilógicas e contraditórias [...] (MAUPASSANT apud REIS,
1997, p. 438).
Aí aparece explícita a noção de seletividade – que
aponta para a dificuldade que o escritor realista encontra
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9
quando pretende olhar e descrever a realidade de forma
objetiva. Por isso a necessidade de selecionar TEMAS
dominantes no universo que os abarca: o universo da vida
familiar nos seus episódios domésticos e cenas íntimas, a
vida social, a vida cultural e suas modas. De um modo geral,
no Realismo português encontramos, como grandes temas,
questões ligadas à educação, ao adultério, às falsas aparências
da vida social, a degradação do sentimento amoroso, entre
outros.
Tais temas implicam, para seu desenvolvimento,
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saiba mais
Na Enciclopédia Simpozio,
você encontra importantes
dados sobre o Positivismo. Na introdução encontra-se a seguinte definição
geral: “o positivismo foi
um rótulo novo, para uma
nova fase de desenvolvimento do empirismo. Nasceu o nome em 1830, na
Escola do socialista utópico
Saint-Simon (1760-1825),
e ganhou fortuna com Augusto Comte, o pensador
protótipo do movimento,
sobretudo na França. Derivado do latim positum
(= posto, o que está posto
diante, situado), significa
descritivamente o que se
observa,
ou
experimen-
ta. O positivismo [...] reduziu o conhecimento ao
experimentável, o que na
prática significa uma consideração
das
relações
extrínsecas entre as coisas”. Disponível em http://
cfh.ufsc.br/~simpozio/
novo/2216y840.htm.
certas estratégias literárias que têm a ver com o tipo de
gêneros mais aptos a dar conta desses universos que querem
retratar: a predileção recai, assim, sobre o romance e o conto,
mas principalmente o romance, pois o gênero romanesco
propicia a ativação de signos e movimentos narrativos
ajustados aos princípios doutrinários do Realismo.
Também se define como estratégia literária
fundamental o processo de descrição para a representação
do espaço social e dos personagens. Os personagens são
fundamentalmente constituídos em tipos sociais, síntese de
características que articulam o coletivo e individual, como
certos profissionais, ou figuras relacionadas ao contexto
econômico e cultural. Assim são representados o avarento,
o falso intelectual, o romântico decadente, os padres sem
vocação, as moças casadoiras e fúteis, as falsas beatas, etc.
Todas essas características gerais são observadas pelo
Naturalismo, mas, nesse caso, são levados mais longe os
princípios do cientificismo que prevaleceram de acordo com
o Positivismo.
Por isso, o romance será também o único gênero
propício ao desenvolvimento das prerrogativas estéticoprogramáticas do Naturalismo: é o que diz Zola, no seu
texto “O romance experimental”:
O romance [...] invadiu e desapossou os
outros gêneros. Tal como a ciência, ele é
dono do mundo. Ele aborda todos os assuntos, escreve a História, trata da fisiologia e de psicologia, sobe até a poesia mais
alta, estuda as questões mais diversas, a
política, a economia social, a religião, os
costumes. O seu domínio é a natureza inteira (ZOLA apud REIS, 1997, p. 444).
Para atingir seus propósitos, então, o romance
naturalista, visando a questionar o comportamento humano
e por força de suas imposições ideológicas, apresenta índole
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retrospectiva: procura, assim, explicar as causas remotas de
certos fenômenos, comportamentos, mergulhando no passado
das personagens. Do mesmo modo que o romance realista,
a focalização é onisciente, pois o narrador heterodiegético
assume a posição do cientista que estuda um caso, procurando
validar suas teses.
Nessa procura por construir universos orgânicos e
tensamente articulados, os escritores realistas/naturalistas
intentam compor ciclos romanescos: foi assim a proposição
de Zola com seu Lês Rougon-Marcquart (com o subtítulo
“História natural e social de uma família sob o Segundo
Império”) e a tentativa de Eça de Queirós na composição das
“Cenas da vida portuguesa”, pensada para ser desenvolvida em
doze volumes. No final, ele compôs o Crime do Padre Amaro,
como “cenas devotas”, O Primo Basílio, como “cenas da vida
doméstica” e Os Maias, “cenas da vida romântica”, ainda que
nesse último romance já se encontre menos traços naturalistas
na trajetória da escrita queirosiana.
De forma sintética, podemos dizer que prevalece
atenção
O Realismo e o Naturalismo constituem diferentes
proposições
artísticas;
o
primeiro caracteriza uma
forma objetiva de representação do real em arte
e o segundo, também em
linhas gerais, propõe uma
direção mais ligada ao determinismo
cientificista.
Entretanto,
precisamos
atentar para o seguinte:
em Portugal “a distinção
[entre esses dois termos]
não foi alvo de grandes
preocupações,
chegando
mesmo a ser deliberadamente ignorada [...]. As
duas palavras eram indiferentemente utilizadas para
significarem, em bloco, um
mesmo movimento de renovação [literária]” (REIS,
1990, p. 101).
9
no Naturalismo, sob a égide do Positivismo: a crença no
desenvolvimento das leis naturais que explicam o devir
das sociedades e as transformações a que os homens estão
sujeitos; a confiança na ciência, nas suas conquistas e
certezas; e, sobretudo, a visão determinista de acordo com
as proposições de H. Taine: as determinações do meio, da
raça e do momento sobre o comportamento humano. Essa
Unidade 3 . Aula
síntese encontra-se nas palavras seguintes de Zola:
O romancista é feito de um observador e
de um experimentador. Nele, o observador faculta os dados tal como os observou,
fixa o ponto de partida, estabelece o terreno sólido sobre o qual vão movimentar-se
os personagens e desenvolver-se os fenômenos. Depois, o experimentador aparece e institui a experiência, quero dizer,
faz mover as personagens numa história
particular, para mostrar que a sucessão dos
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fatos corresponderá à exigência do determinismo dos fenômenos submetidos a estudo
(ZOLA apud REIS, 1997, p. 448).
Decorre daí a importância do enfoque sobre a
hereditariedade, a influência dos ambientes e da educação, o
que conduz à noção de fatalismo: como diz ainda Zola: “escolhi
personagens soberanamente dominadas pelos seus nervos e pelo
seu sangue, desprovidas de livre arbítrio, arrastadas a cada ato da
sua vida pelas fatalidades de sua carne” (apud REIS, 1997, p. 149).
Com esse propósito define-se a obra dos franceses já
citados, Zola, Flaubert e Maupassant, do português Eça de
Queirós e, no Brasil, de Aluísio Azevedo, com o Cortiço.
Em geral, são enfocadas, em suas obras, personagens
degradadas física e moralmente, movimentando-se em cenários
urbanos de grande concentração populacional, promíscuos – ao
que se juntam temperamentos perturbados por patologias como o
alcoolismo, a histeria; os desvios de caráter que levam ao adultério,
à prostituição, ao fanatismo religioso, à ambição desmedida.
Tais enfoques acabaram se convertendo na
“especialidade” do romance naturalista que, cada vez mais,
aprofundava o traço das deformidades humanas, chegando a
tornar repugnantes alguma descrições, como é o caso de uma
passagem de O barão de Lavos, de Abel Botelho, publicado em
1891:
A sua finíssima pele, que fora tão alva, lanugenta e macia, perdera toda a mimosa frescura da adolescência. Endurecera, espessara,
asperizara-se, granulara em concreções de
thopus, orografara-se em vermelhidões de
urticária, deixara roer toda a suavidade feminil de sua cor dos quinze anos pela erupção
pintalgada e luzente da dermatose que lhe
envenenava o sangue. Via-se a magreza estirando e cavando em volta dos malares salientes a face desfibrinada [...] escoltando a pêra,
erguia-se um grosso afloramento irregular
de placas avermelhadas, papulosas, estaladas,
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secas, largando um desagregado contínuo
de películas pulverulentas. E uma oleosidade sebácea e lustrosa porejava constante
da base do nariz e das glândulas temporais
subcutâneas, dando a este pobre rosto,
variolado de herpetismo, o aspecto repugnante e mole de um morango sorvo (BOTELHO apud REIS, 1997, p. 450).
Esses exageros acabaram por desgastar a estética
Naturalista. Entretanto, a perspectiva realista manteve-se e
mantém-se em arte, se por isso entendermos que se pode
usar o conceito
para significar uma tomada de posição
diante de novas realidades (postura), expressas justamente na característica especial de observação crítica muito próxima
e detalhada do real ou do que é tomado
como real (método), que em literatura
não só a técnica descritiva representou, e
muitas vezes ainda representa, ao lado de
outras, podendo, desse modo, ser encontrada em várias épocas, como refração da
primeira (PELLEGRINI, 2007, p. 149).
Nosso próximo enfoque é conhecermos a escrita de
Unidade 3 . Aula
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Eça de Queirós, considerado o mais importante nome do
Realismo/Naturalismo em Portugal.
2.1 A proposta estético-política de Eça de
Queirós
O Realismo/Naturalismo tem início em Portugal com
a Questão Coimbrã. Dela, entretanto, não participou Eça de
Queirós, que se integra à chamada “Geração de 70” (1870)
somente mais tarde, quando foram realizadas as Conferências
do Casino Lisbonense.
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saiba mais
Também conhecida como a Questão do Bom Senso e Bom Gosto, a Questão
Coimbrã foi uma das mais importantes polémicas literárias portuguesas e a
maior em todo o século XIX [...]. Foi desencadeada em Coimbra por um grupo
de jovens intelectuais que vinham reagindo contra a degenerescência romântica e o atraso cultural do país. A polémica começou em outubro de 1865,
quando António Feliciano de Castilho aludiu, na carta-posfácio ao Poema da
Mocidade, de Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia
ininteligível, ridicularizando o aparato filosófico e os novos modelos literários
de que ela se nutria [...]. Sentindo-se visado, Antero de Quental respondeu
com o panfleto Bom Senso e Bom Gosto, carta ao Ex.mo. Sr. Antônio Feliciano
de Castilho, em que definiu “a bela, a imensa missão do escritor” como “um
sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos
sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras”, que exige, por um lado,
uma alta posição ética, por outro lado, uma total independência de pensamento
e de carácter. Como consequência, e numa clara alusão a Castilho, Antero repudiava a poesia que cultiva a “palavra” em vez da “ideia”; a poesia decorativa
dos “enfeitadores das ninharias luzidias”; a poesia conservadora dos que “preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir”; em suma, a poesia
que “soa bem, mas não ensina nem eleva”. Estavam marcadas as posições:
de um lado os intelectuais conservadores; do outro a nova geração, aberta às
recentes correntes europeias. Seguiram-se “Bom Senso e Bom Gosto, folhetim
a propósito da carta...”, de Pinheiro Chagas, que acorreu em defesa de Castilho,
e, do lado dos coimbrões, os folhetos Teocracias Literárias, de Teófilo Braga,
e A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, de Antero. [...] Embora de
origem literária, a questão alargou-se a outras áreas como a cultura, a política
e a filosofia. Esta refrega durou mais de um ano e envolveu nomes que já eram
ilustres, como Ramalho Ortigão e Camilo C. Branco. Os artigos, folhetins e
opúsculos em apoio de uma e de outra parte multiplicaram-se, até que, a partir
de março de 1866, a polémica começou a declinar em quantidade e qualidade.
Fonte : http://www.infopedia.pt/$questao-coimbra. Acesso em dez./2011.
Das conferências, que foram reuniões públicas realizadas
em 1871, em Lisboa, por iniciativa do chamado grupo do
Cenáculo, faziam parte Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime
Batalha Reis [entre outros] e “visavam abrir um debate sobre o
que de mais moderno, a nível de pensamento, se vinha fazendo
lá fora. Aproximar Portugal da Europa era o objetivo máximo,
anunciado, aliás, no respetivo programa” (In: Infopédia. Porto:
Porto Editora, 2003-2012). Elas tiveram uma grande importância
na vida literária de Eça de Queirós, pois fundamentaram seu
compromisso com as linhas estético-políticas do Realismo/
Naturalismo de acordo com as quais era preciso “afirmar a
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condição militante e interventora da criação artística; de fazer do
romance o grande instrumento de análise de males sociais; de
levar a cabo, de um ponto de vista reformista, uma sistemática
reflexão crítica sobre a sociedade portuguesa [...]” (REIS, 1990,
p. 124). Em carta endereçada ao amigo Teófilo Braga, em 1878,
logo após a publicação de O primo Basílio, Eça assim explicitava
a sua “missão” como escritor:
A minha ambição seria pintar a sociedade
portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo de 1830 – e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país ele formam – eles e elas.
É o meu fim nas Cenas da vida portuguesa. É
necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo
agrícola, o mundo supersticioso - e com todo
o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e
as falsas realizações que lhe dá uma sociedade
podre (apud REIS, 1990, p. 124).
O projeto dessas “Cenas da vida portuguesa” acabou não
se concretizando integralmente, como vimos anteriormente,
limitando-se à publicação de seus romances mais conhecidos:
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O crime do padre Amaro; O primo Basílio; e Os Maias. Assim,
para entendermos um pouco mais as propostas estético-políticas
desse importante autor português, vamos considerar algumas
questões importantes sobre o segundo desses romances citados
(que você pode encontrar em vários sites, como o seguinte (não
deixe de ler!): <http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/ph000227.pdf>.
Inicialmente, não devemos esquecer que O primo Basílio
procurava atender aos principais objetivos da chamada fase
mais propriamente realista/naturalista de Eça: nesse romance,
encontramos o tema do adultério, as marcas do determinismo
social na conduta e trajetória da governanta Juliana, a crítica à
sociedade lisboeta nos personagens que, como Julião Zuzarte,
o Conselheiro Acácio, Ernestinho Ledesma, encarnam,
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respectivamente, o invejoso, o falso intelectual, o escritor
romântico decadente, entre tantos outros tipos ironicamente
compostos nessa narrativa.
O tema do adultério acompanha a ideia de que Luiza, a
Luisinha casada com o engenheiro Jorge, era uma moça formada
nos moldes do romantismo mais distanciado da vida prática: ela
costumava ler romances românticos e suspirava por ter uma vida
cheia de aventuras como as das mocinhas dos enredos que lia.
Foi motivada por essa ambição fantasiosa, e pelo tédio de um
casamento sem novidades e vivido com atividades fúteis, que Luísa
cedeu à sedução de seu primo Basílio e essa pode ser considerada
a “tese” do romance. Como podemos ver na seguinte passagem:
Como desejaria visitar os países que conhecia
dos romances - a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos;
aportar às baias, onde um mar luminoso e
faiscante morre na areia fulva; e das cabanas
dos pescadores de teto chato, onde vivem as
Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas
de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram
pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000227.pdf).
Nessa passagem, você pode facilmente reconhecer as
ambições de Luíza e o contraste com sua vida “real”, que não
era exatamente de uma família pobre, mas de uma burguesia
média, sustentada pelo trabalho de Jorge como funcionário
público. Já Basílio, também originário da baixa burguesia,
ascendeu socialmente por conta de negócios realizados no Brasil
e representava, para a prima sonhadora, os ideais de uma vida
emocionante. Entretanto, o narrador queirosiano faz questão de
demonstrar as falácias dessa idealização fantasiosa de Luísa e um
dos pontos altos do romance é a famosa cena em que ela chega ao
“Paraíso”, o lugar alugado por Basílio para viverem a sua proibida
relação:
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Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que
lera tantas vezes nos romances amorosos! Era
uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo - a
casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas
as palpitações do perigo! Porque o aparato
impressionava-a, atraía-a mais que Basílio!
Como seria? [...] Desejaria antes que fosse
no campo, numa quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fofas; [...] Mas era um terceiro andar, - quem sabe como seria dentro?
Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval
em que o herói, poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça; [...]
Conhecia o gosto de Basílio, e o Paraíso decerto era como no romance de Paulo Féval..
[...] A carruagem parou ao pé de uma casa
amarelada, com uma portinha pequena. Logo
à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a.
A escada, de degraus gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes onde a cal caía,
e a humidade fizera nódoas. No patamar da
sobreloja, uma janela com um gradeadozinho
de arame, parda do pó acumulado, coberta de
teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E
por trás de uma portinha, ao lado, sentia-se
o ranger de um berço, o chorar doloroso de
uma criança.
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000227.pdf).
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Na parte sublinhada, podemos entender que Luiza estava
movida ao adultério muito mais pela aventura do que por um
grande amor a Basílio. E não pode ser mais desconcertante e
irônica a “verdadeira” fachada do Paraíso: uma casa pobre, suja e
no subúrbio.
A continuação do texto é bem conhecida: Juliana, a
empregada, descobre as cartas dos amantes e começa a fazer
chantagem com a patroa, ao ponto de se inverterem os papéis
e Luizinha passar a fazer o serviço doméstico, fora o dinheiro
estimulado pela governanta em exigência por seu silêncio. Enfim,
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leitura recomendada
Eça de Queirós foi uma
grande referência para os
escritores
brasileiros
en-
tão seus contemporâneos.
Sobre
essa
importância
da escrita queirosiana e
sua
leia:
recepção
ABDALA
no
Brasil,
JÚNIOR,
Benjamin (Org.). Ecos do
Brasil: Eça de Queirós,
leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora
SENAC, São Paulo, 2000;
ZILBERMAN, Regina et al.
Eça e os outros: diálogos com a ficção de Eça de
Queirós. Porto Alegre: Edi-
o bom amigo da família, Sebastião, desfaz o angustiante ciclo
de chantagens, Juliana acaba morrendo, mas Jorge termina
descobrindo o adultério por uma carta enviada tardiamente
por Basílio. A pobre Luizinha não resiste a uma doença séria
e, na morte, é perdoada pelo marido, que sempre prefere a
moderação a se expor socialmente.
Se nesse romance, bem como em O crime do padre
Amaro, Eça de Queirós fundamenta sua crença nos princípios
do realismo/naturalismo, como são exemplares as citações
lidas anteriormente de O primo Basílio, já em Os Maias o
autor português começa a se distanciar das linhas mestras
naturalistas: nesse romance, “de demorada concepção,
escrita e acabamento [evidencia-se] uma evolução que se
orienta no sentido da superação do Naturalismo” (REIS,
1990, p. 149). Essa superação será contínua, conforme os
estudos do professor Carlos Reis, um dos mais importantes
estudiosos da obra queirosiana:
pucrs, 2002.
A publicação, em 1887, do romance A
relíquia, que abre com a célebre epígrafe: “Sobre a nudez forte da verdade, o
manto diáfano da fantasia”, vem confirmar que a novela O mandarim, publicada em 1880 não era apenas uma “escapada” ao mundo da fantasia [...], mas
sim a procura e a apetência de Eça de
Queirós, de outras formas narrativas e
outros mundos ficcionais para além dos
prescritos pelo Realismo/Naturalismo
(REIS, 1990, p. 158).
para conhecer
Algumas
obras
literárias
de Eça de Queirós foram
adaptadas para o cinema e
para a televisão; você pode
assistir as seguintes produções:
• O crime do padre Amaro,
de Carlos Carrera, México, 2002
• O crime do padre Amaro,
de Carlos Coelho da Silva, Portugal, 2005
• O primo Basílio, de Daniel Filho, Brasil, 2007
• O primo Basílio, de Reynaldo
Boury
e
Daniel
Nesse processo de mudança de sua escrita, o que
encontramos é sempre uma maior complexidade da obra
queirosiana, que tem seu lugar garantido entre as mais
importantes realizações da Literatura Portuguesa.
Filho, 1988, série da TV
Globo
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3 O REALISMO E O NATURALISMO NO BRASIL
Enquanto na Europa o proletariado reivindicava seus
direitos, no Brasil ainda prevalecia o escravagismo, mantendo
a ideia de que o trabalho rebaixava o indivíduo. Por conta
dessa deformação social, a atividade produtiva cabia quase
que exclusivamente aos escravos, assim quem exercia ofício
remunerado acabava aderindo aos valores da elite a fim de se
distinguir socialmente (SODRÉ, 1988). A classe abastada se
compunha majoritariamente pelos proprietários de terra e por
indivíduos ligados a atividades dependentes do desempenho da
lavoura de café, como importadores, exportadores, comerciantes
e os traficantes de africanos. Na literatura, o Romantismo estava
em pleno vigor, sendo 1957 o ano em que veio a público O guarani,
a grande referência da prosa indianista, conforme destacamos na
aula anterior.
A elite agrária sustentou a monarquia desde a
Independência e viveu seu momento mais coeso entre 1850 e
1870, quando o regime atingiu seu apogeu. A boa cotação do
café no mercado internacional proporcionou um período de
prosperidade econômica, levando o país a se aproximar do
Unidade 3 . Aula
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mundo pós Revolução Industrial, mudando sua fisionomia
em todas as áreas (HOLANDA, 2006). A vida cultural
intensificou-se em diversas cidades, com destaque para Recife,
onde a Faculdade de Direito foi a porta de entrada de novas
teorias e formou indivíduos com participação decisiva em
acontecimentos mais marcantes das três últimas décadas do
século XIX (STEGAGNO-PICCHIO, 1997).
O fim da guerra contra o Paraguai, em 1870, alterou o
clima de otimismo existente. Aumentaram as dificuldades para
a classe dominante se manter unida, resultando em conflitos que
a dividiriam mais adiante, em função da insatisfação dos setores
urbanos com a maneira pela qual o país era conduzido. A classe
rural controlava os partidos políticos e o sistema eleitoral que,
na prática, só permitiam a participação de quem ela consentisse
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(HOLANDA, 2006). Com o crescimento das atividades
citadinas, agravaram-se as discordâncias e a disputa por
espaço, enfraquecendo a monarquia continuamente.
No plano literário, as fórmulas que até então haviam
popularizado poetas e prosadores perderam o encanto aos
olhos dos leitores. As tramas açucaradas cujo melhor exemplo
saiba mais
Machado de Assis desdenhava do apego de seus
contemporâneos ao positivismo de Auguste Comte
e ao cientificismo de Charles Darwin, como se pode
perceber em “O alienista”,
um de seus contos mais
célebres,
publicado
em
1881. Sua posição crítica
ainda se manifesta pelo
Humanitismo,
filosofia
inventada
Quincas
Borba,
por
personagem
que
aparece rapidamente em
Memórias
póstumas
de
Brás Cubas, no episódio
da briga de cães, do capítulo 141, voltando a ser
mencionado a partir do
capítulo 157. No romance
Quincas Borba (1891) a filosofia humanitista reaparece no capítulo 6, com a
parábola “Ao vencedor, as
batatas”.
é A Moreninha (1844), cansavam o público, porque o mundo
sem conflito representado por elas perdeu seu fascínio
quando as pessoas começaram a perceber que a concepção da
arte como expressão da alma, do sentimento, da emoção e a
visão idealizada da vida estavam muito distantes da realidade
(MERQUIOR, 1996). Enquanto isso, o debate em torno
do problema da “cor local” estimulava os escritores a se
interessarem por outros temas e pela introdução de novos
tipos humanos. Assim, um grupo fazia o esforço derradeiro
para revigorar o Romantismo, enquanto outro se sentia
atraído pelas ideias de renovação mais profunda.
Coube, porém, a Machado de Assis, nome
consagrado por conta de uma trajetória de vinte anos, o
papel mais importante na revitalização da prosa nacional,
embora o reconhecimento por isso viesse bem mais tarde.
Com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em
1881, mudou radicalmente seu modo de escrever, revelandose um escritor maduro e inaugurando a fase de sua trajetória
que renderia os melhores romances. Naquele momento,
entretanto, as atenções recaíram sobre O cortiço, de Aluísio
Azevedo, cujo aparecimento no mesmo ano provocou grande
repercussão por ser considerado mais inovador. As razões da
preferência se devem a dois fatores: a importância atribuída
às ideias ligadas ao positivismo e ao cientificismo e o impacto
pelo erotismo de algumas cenas.
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3.1 A singularidade da obra de Machado de
Assis
local”. É preciso salientar, porém, que Machado sempre
se destacou pela forma particular de sua linguagem
e, segundo José Guilherme Merquior (1996), essa
característica chama a atenção nos primeiros textos em
prosa que publicou. Esses traços apareceram de modo
gradativo em seus contos, para se revelarem plenamente
nos romances a partir de Memórias póstumas de Brás
Cubas, que veio a público em 1881.
No endereço a seguir, você
encontra títulos de obras de
Machado de Assis adaptadas
para o cinema, bem como vídeos sobre algumas delas ou
sobre o autor: http://www.
academia.org.br/abl_minisites/machadodeassiscinema/
vídeo.
leitura recomendada
O conhecimento literário admirável e a capacidade para
refletir sobre os diversos aspectos da literatura permitiram que Machado de Assis
A trajetória de Machado de Assis sempre foi
ascendente, mas a transformação que o consagrou
aconteceu com a publicação de Memórias póstumas
de Brás Cubas. O aparecimento da obra se deu em
meio à ocorrência de fatos decisivos para a história do
Brasil, em especial, o crescimento das manifestações
reivindicatórias que culminaram com o fim da escravidão
e a queda do regime monárquico. A associação da
narrativa com tais acontecimentos dá outro rumo para
as discussões sobre a literatura brasileira, suscitando
indagações mais complexas do que aquelas que os
transitasse com igual desen-
escritores faziam em torno do problema da “cor local”.
Para Machado de Assis, o assunto era mais profundo,
co em que Machado ambien-
como podemos constatar por suas observações em
“Notícia da atual literatura brasileira - instinto de
nacionalidade”.
A vinculação de Memórias póstumas de Brás Cubas
com fenômenos socioculturais do período permite a
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Volume 4
voltura na crítica e na ficção.
Notamos isso pela sua produção artística em verso ou prosa e pelos textos críticos que
escreveu. Desses recomendamos
“Notícia
da
atual
literatura brasileira - instinto de nacionalidade”. O
artigo apresenta importante
análise da literatura brasileira do período, sobretudo em
relação ao debate em torno
do problema da “cor local”,
que tanto angustiava escritores e críticos. A associação
de propostas ali presentes ao
enredo e ao contexto históritou Memórias póstumas de
Brás Cubas revela sua visão
de literatura. Esse artigo está
disponível
em:
www.letras.
9
a obra não apresenta nenhum sinal do envolvimento do
autor com a discussão que se fazia em torno da “cor
saiba mais
Unidade 3 . Aula
Machado de Assis começou a modelar sua carreira
em 1861, escrevendo poesias, textos para o teatro e
contos, estreando no romance somente em 1872, com
a divulgação de Ressurreição. Apesar de publicada num
momento em que os escritores procuravam novidades,
cabaladada.org/letras/instinto _nacionalidade. pdf..
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
interpretação do romance como uma análise crítica da sociedade
brasileira da segunda metade do século XIX. No romance
estão os passatempos, os costumes, as festas, os passeios, a
frequência ao teatro, a vida parlamentar, os acordos políticos, as
formas de ganhar dinheiro, enfim, vários aspectos do cotidiano
da elite. Quanto à transposição dessas particularidades para a
literatura, o autor dá prosseguimento ao que vinha fazendo
José de Alencar, seu amigo e um de seus grandes modelos, nos
chamados romances urbanos.
Num certo sentido, ambos se propõem a fazer uma
exposição crítica da sociedade fluminense, descrevendo a
hipocrisia e o afrontamento a princípios morais e éticos praticados
por uma elite para permanecer desfrutando privilégios à custa
do trabalho escravo. A diferença é que Machado foi mais crítico
e, fundamentalmente, foi mais habilidoso na transformação
de fatos corriqueiros em matéria ficcional. Alguns episódios
do romance são muito representativos a esse respeito porque
ilustram a maneira como o escritor representou a realidade com
o distanciamento e o equilíbrio necessários para se manter no
campo da criação artística. É importante salientar que isso não
diminui José de Alencar, cujo projeto literário é de importância
fundamental para nossa literatura.
A proibição ao tráfico de africanos, em 1850, determinou
que os capitais destinados até então a essa finalidade fossem
redirecionados para novas fontes de lucros. O mercado ilegal
de negros e a especulação financeira foram as mais procuradas,
tornando-se fatores para que fortunas se acumulassem ou se
desfizessem com rapidez. Enquanto os plantadores de café
empobreciam devido ao aumento do preço dos escravos que
os obrigava a tomar dinheiro emprestado a juros elevadíssimos,
quem apostava na especulação, financiando o tráfico de africanos,
investindo na bolsa de valores ou na agiotagem obtinha grandes
lucros (FAORO, 2006).
A transferência do dinheiro das mãos dos senhores
de terra e escravos para os indivíduos ligados a atividades
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Realismo, Naturalismo, programas e rupturas
urbanas acontecia ao mesmo tempo em que o Brasil aderia aos
fundamentos do capitalismo, dos quais a bolsa de valores era
novidade recém-chegada ao país (SODRÉ, 1988). Aqueles
que se adaptavam mais rapidamente às mudanças encontravam
grandes oportunidades para o acúmulo de fortuna, sendo
mais favorecido quem dava pouca importância a escrúpulos e
princípios éticos. Cotrim, cunhado de Brás Cubas, enriqueceu
com o tráfico de escravos, com a especulação financeira e com
a corrupção em negócios com órgãos públicos.
Apesar dos interesses conflitantes em algumas situações,
a elite procurava manter sua unidade para garantir o controle
do poder político, aglutinando-se em torno de conveniências,
a fim de preservar seus privilégios. Frágil do ponto de vista
político, essa aliança tinha nos acordos de casamento um
de seus pilares de sustentação. Machado de Assis aborda o
problema em Memórias póstumas de Brás Cubas, valendo-se da
ironia para expor abertamente as mazelas do segmento social
que sustentou a monarquia. As referências aparecem no acerto
entre Bento Cubas e o Conselheiro Dutra, envolvendo a união
dos filhos e a candidatura de Brás a deputado.
O poder de Dutra junto ao centro das decisões determina
que a eleição de Brás seja dada como certa. Numa representação
ilustrativa do funcionamento do sistema eleitoral da época, ele é
descrito como “uma influência política” (ASSIS, 1978, p. 59), ou
seja, um homem de grande prestígio, pela fortuna e pelo controle
Unidade 3 . Aula
9
que exercia do ambiente político. Para decepção do velho Cubas,
que ambicionava ver o rapaz no parlamento para engrandecer o
nome da família, o acordo se desfez repentinamente, em nome
de razões impostas pelas conveniências:
Então apareceu o Lobo Neves, um homem
que não era mais esbelto do que eu, nem mais
elegante, nem mais lido, nem mais simpático,
e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a
candidatura, dentro de poucas semanas, com
um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não
precedeu nenhum despeito; não houve a me-
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nor violência de família. Dutra veio dizer-me,
um dia, que esperasse outra aragem, porque a
candidatura de Lobo Neves era apoiada por
grandes influências (ASSIS, 1978, p. 73).
O episódio e o próprio romance revelam a profundidade
com que o autor representava a sociedade brasileira e
expressam o quadro final de esboços que encontramos em
vários de seus contos publicados anteriormente. O rumo que
o assunto toma na obra dá a medida das distinções entre ele e
seus contemporâneos. Como nenhum outro escritor brasileiro
de seu tempo e como um dos raros em todas as épocas,
Machado de Assis esmiuçou a realidade do país, como ilustra a
representação da fragilidade da estrutura político-partidária da
época. Valendo-se da ironia, portanto de um recurso artístico,
como as conveniências e os interesses interferiam nas decisões,
determinando acordos e desacertos entre os membros da elite.
O pai de Virgília optou por casar a filha com aquele
em quem enxergou as melhores possibilidades de realizar seus
projetos políticos, seguindo as normas da classe dominante
para se manter no poder. O episódio também serve de artifício
para Machado de Assis abordar a causa de outro problema
recorrente na sociedade brasileira de seu tempo: tratado como
negócio, o casamento era o elemento mais visível da hipocrisia
que predominava nas relações entre os membros da classe
dominante. Assim, funcionava como um filtro para o acesso
de alguns indivíduos ao centro do poder político e ao topo do
prestígio social.
Duas situações em Memórias póstumas de Brás Cubas
servem de ilustração a esse respeito, sendo ambas frustrantes
às personagens que ambicionavam ascensão. O já mencionado
fracasso na pretensão de Bento Cubas e o caso de Damasceno,
diante da morte de Nhá Loló em consequência da febre amarela.
O primeiro vê cair por terra seu projeto de engrandecer o nome
da família e apagar de vez a origem dela, enquanto o outro tem as
portas de acesso à elite fechadas em definitivo. Uma das chaves
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dessa estrutura era a submissão da mulher ao pai e ao marido
(SODRÉ, 1988), fato que lhe impunha uma vida de resignação
e de insatisfação.
Sem poder interferir nos ajustes a respeito de seu
destino, as moças acatavam a escolha do pai, saindo da sua
tutela para se submeter ao marido, aceitando um enlace que as
condenava à infelicidade. Assim, a traição encontra explicações
que a atenuam, pois era uma forma de realização afetiva e
sexual para a mulher, algo que não encontrava no casamento.
Em Memórias póstumas de Brás Cubas isso se faz representar
pela figura de Virgília.
A dimensão artística que Machado dá aos problemas
do cotidiano aparece na ambiguidade da atitude de Virgília,
pois se tornando amante de Brás mostra que se rebela contra
o ajuste em que foi envolvida. Por outro lado, quando solteira,
ela manifesta sua ambição por prestígio social:
Uma semana depois, Virgília perguntou ao
Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
– Pela minha vontade, já; pelas dos outros,
daqui a um ano.
Virgília replicou:
– Promete que algum dia me fará baronesa?
– Marquesa, porque eu serei marquês.
(ASSIS, 1978, p. 73).
Unidade 3 . Aula
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Ao se casar com Lobo Neves, Virgília satisfez a vontade
de seu pai e manteve suas aspirações, porque ele tinha perfil
mais adequado para transformá-las em realidade. O problema
é que amava Brás, por isso teve que passar a se debater em
permanente conflito:
[...] tinham comentado as minhas relações
na casa; em suma, éramos objeto da suspeita
pública. Concluiu dizendo que não sabia que
fazer.
– O melhor é fugirmos, insinuei.
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– Nunca, respondeu ela abanando a
cabeça.
Vi que era impossível separar duas
coisas que no espírito dela estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a
consideração pública. Virgília era capaz
de iguais e grandes sacrifícios para
conservar ambas as vantagens, e a fuga
só lhe deixava uma (ASSIS, 1978, p. 99).
Já afirmamos em outros momentos que o trabalho não
servia como instrumento para a ascensão social porque estava
vinculado ao escravo. É por isso que Dona Plácida, doceira
e costureira, sujeita-se ao constrangimento da alcovitagem,
aceitando conformada a casa que Brás lhe dá em troca do
acobertamento de seus encontros com Virgília:
Quando obtive a confiança, imaginei uma
história patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei
que outros toques de novela. Dona Plácida
não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse
a todos três juntos diria que Dona Plácida era
minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco
contos, — os cinco contos achados em Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e
nunca mais deixou de rezar por mim, todas as
noites, diante de uma imagem da Virgem, que
tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o
nojo (ASSIS, 1978, p. 101-102).
A escravidão, o outro modo de trabalho, era ainda
mais aviltante, como demonstra o episódio protagonizado por
Prudêncio. Criado como escravo dos Cubas, ganhou alforria
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depois da morte de Bento e se estabeleceu com um pequeno
negócio. Na condição de homem livre, usufruiu o direito de
adquirir seu próprio escravo, submetendo-o a humilhações
semelhantes às que sofrera:
[...] era um preto que vergalhava outro na
praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia
somente estas únicas palavras: — Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas
o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica,
respondia com uma vergalhada nova.
-Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão,
bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
[...]
Era um modo que o Prudêncio tinha de se
desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o,
punha-lhe um freio na boca, e desancava-o
sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora,
porém, que era livre, dispunha de si mesmo,
dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou
um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro,
as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (ASSIS, 1978, p. 99-100).
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O episódio remete às deformações provocadas pela
escravidão nas relações entre os indivíduos. Como proprietário
de uma quitanda e de um escravo, Prudêncio se distinguia em
relação aos negros, porém continuava à margem da sociedade
branca, como ele próprio reconhece ao mostrar submissão a
Brás, atendendo ao pedido para que deixasse de espancar o
outro: “- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede” (p. 99).
Da mesma forma como podemos debater as referências
que Memórias póstumas de Brás Cubas faz à vida no Rio de
Janeiro durante o reinado de Dom Pedro II, é possível ver
relações com os debates literários do período. Para isso se
faz necessário estabelecer vinculações entre alguns fatos. A
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publicação do romance aconteceu em meio à busca de renovação
do romance brasileiro, porém Machado discordava das posições
dominantes. No já citado “Notícia da atual literatura brasileira
– instinto de nacionalidade”, rejeita a supervalorização dos
elementos locais, argumentando que:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo
uma literatura nascente, deve principalmente
alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a
sua região, mas não estabeleçamos doutrinas
tão absolutas que a empobreçam. O que se
deve exigir do escritor antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem do
seu tempo e do seu país, ainda quando trate
de assuntos remotos no tempo e no espaço
(ASSIS, 1955, p. 135).
Sua preocupação não se restringia à literatura brasileira,
como podemos perceber no artigo que escreveu sobre O primo
Basílio, de Eça de Queirós, 1878. Ali, recorre a conceitos
estéticos para expor falhas na estrutura da obra, mostrando
a inverossimilhança de algumas das situações engendradas
por seu colega português e manifestando sua antipatia pela
aproximação excessiva do Realismo e do Naturalismo com as
ideias defendidas por positivistas e evolucionistas:
Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós, e
a inanidade do caráter da heroína. Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou
que Juliana não tinha a malícia de as procurar,
ou enfim que não havia semelhante flâmula
em casa, nem outra da mesma índole. Estava
acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria
do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida
anterior.[...]
Tirai o extravio das cartas, a casa de Jorge
passa a ser uma nesga do paraíso; sem essa
circunstância, inteiramente casual, acabaria
o romance. Ora, a substituição do principal
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pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente,
para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte (ASSIS,
1955, p. 161;171).
Em ambos os casos, Machado de Assis se opõe
ao pensamento predominante, num primeiro momento
contrariando a concepção de uma literatura brasileira voltada
apenas para os assuntos locais e no segundo apontando
problemas na obra de um escritor com prestígio em alta no
Brasil, devido a suas afinidades com as correntes filosóficas mais
valorizadas por nossos intelectuais da época. As referências
que faz a essas circunstâncias em Memórias póstumas de Brás
Cubas tornam mais profundos os vínculos do romance com
fenômenos socioculturais da segunda metade do século XIX.
Se podemos reconhecer algo semelhante no Romantismo,
como já vimos, cabe salientar o modo como o autor procedeu.
Ao invés de envolver-se em debates passionais e pouco
produtivos, preferiu discutir as causas dos fatos, fazendo isso
artisticamente, projetando elementos do mundo concreto para
o campo da estética. Em outras palavras, procurou representar a
vida e o homem de seu tempo, descrevendo-os em seus romances
como possibilidade, não como transposição. Estabelecendo esse
distanciamento, próprio da criação artística, rompeu as fronteiras
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do tempo e do espaço, porque leva seus leitores a um mergulho
na alma do homem contemporâneo. Por isso construiu uma obra
que estabelece diálogos em diversos sentidos, quer seja com
as gerações subsequentes, quer seja com as produções mais
expressivas de qualquer literatura, em todos os tempos.
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ATIVIDADES
A
AT
TIV
IVI
VI
ATIVIDADES
I – O texto abaixo é um extrato de uma das conferências
proferidas por Eça de Queirós sobre o sentido da arte no seu
tempo. Após a leitura, responda as questões correspondentes:
Romantismo e Idealismo, Realismo e Naturalismo
O Naturalismo é a forma científica que toma a
arte, como a República é a forma política que
toma a democracia, como o positivismo é a
forma experimental que toma a filosofia.
Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula
geral: que fora da observação dos fatos e da experiência dos fenômenos, o espírito não pode
obter nenhuma soma de verdade.
Outrora uma novela romântica, em lugar de
estudar o homem, inventava-o. Hoje o romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no
drama, no romance, concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje, analisa-se a posteriori, por processos tão exatos como os da própria fisiologia.
Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é a mesma que rege os seres vivos, que
a constituição intrínseca de uma pedra obedeceu
às mesmas leis que a constituição do espírito de
uma donzela, que há no mundo uma fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos
dos mundos não difere da lei que rege as paixões
humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha
simplesmente de observar. [...] A arte tornou-se
o estudo dos fenômenos vivos e não a idealização
das imaginações inatas...[...].
Apresentam-se dois novelistas — o Idealista e
o Naturalista. Tu dá-lhes o teu assunto: uma
menina que se chama Virgínia e que habita ali
defronte.
O idealista não a quer ver nem ouvir; não quer
saber mais detalhes. Toma imediatamente a sua
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boa pena de Toledo, recorda durante um momento os seus autores e, num relance, cria-te a
menina Virgínia deste modo: na figura, a graça
de Margarida; no coração, a paixão grandiosa
de Julieta; nos movimentos, a languidez de
qualquer odalisca (à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloquência
de Santo Agostinho...
Dir-me-ão: é mentira! — Como, mentira? Vejam a criação da Morgadinha dos canaviais, um
romance, e feito pelo talento delicado e paciente de Júlio Diniz, o artista que entre nós mais
importância deu à realidade. E todavia a sua
Morgadinha é bem extraordinária. Ali está uma
burguesinha da serra, vivendo na serra, educada na serra, e querendo ser a personificação da
mulher de classe média em Portugal: ama com
a sinceridade heróica de Cordélia; tem com os
sobinhos o tom da maternidade romântica da
amante de Werther; [...] junta a isso, em intrigas sentimentais, a finura das duquesas de
Balzac - e quando fala de amor, julgamos ouvir Rousseau declamar. Sem contar que tudo
quanto diz de poesia, de arte ou de religião, é
de Chateaubriand!...
Mas voltemos à nossa Virgínia, que mora ali
defronte. É agora o escritor naturalista que a
vai pintar. Esse homem começa por fazer uma
coisa extraordinária: vai vê-la!
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Não se riam: o simples fato de ir ver Virgínia
quando se pretende descrever Virgínia, é uma
revolução na arte! É toda a filosofia cartesiana:
significa que só a observação dos fenômenos dá
a ciência das coisas. Este homem vai ver Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda
o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gestos que tem - e
dá, enfim, uma Virgínia que não é Cordélia, nem
Ofélia, nem Santo Agostinho, nem Clara de Borgonha - mas que é a burguesa da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de 1879.
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Eça de Queirós, “Idealismo e Realismo”
(1879). In: REIS, Carlos. O conhecimento da
Literatura. Introdução aos estudos literários.
Coimbra: Almedina, 1997.
1) Quais são os aspectos mais positivos da arte naturalista
para Eça de Queirós?
2) Qual é o paradigma cultural no qual o autor português
se insere?
3) Cite as principais características do Realismo/
Naturalismo apontadas no texto:
II - Sobre o romance realista/naturalista O primo Basílio, de
Eça de Queirós, a partir dos excertos abaixo:
4) Elabore um comentário crítico no qual apareçam as
principais características do romance português realista/
naturalista, ou seja: - o desvio de caráter provocado pela
educação romântica, sobretudo feminina; - a objetividade/
subjetividade presente no processo de narração, bem
como a importância da descrição; - a determinação social
sobre os indivíduos; - a hipocrisia da pequena-burguesia e
sua decadência moral.
Tenho um amate
Não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio
voluntariamente! ... Tinha sido uma fatalidade:
fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez... Estava douda, decerto. E
repetia consigo as atenuações tradicionais: não
era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício, ela fora por paixão...
Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e
eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham
amantes. E ele amava-a tanto!... Seria tão fiel, tão
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discreto! As suas palavras eram tão cativantes,
os seus beijos tão estonteadores!...E enfim que
lhe havia de fazer agora? Já agora!...E resolveu ir
responder-lhe. Foi ao escritório. Logo ao entrar
o seu olhar deu com a fotografia de Jorge [...].
Uma comoção comprimiu-lhe o coração; ficou
como tolhida.
9
Juliana Couceiro
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte
anos a dormir em cacifros, a levantar de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más
palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para
o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se
quando voltava a saúde!... Era de mais! Tinha
agora dias em que só de ver o balde das águas
sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o
estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelistas ou
de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa:
mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar
foram sete moedas ao fim de anos: tinha então
adoecido; com o horror do hospital fora tratarse para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai!
derretera-se! No dia em que se trocou a última
libra, chorou horas com a cabeça debaixo da
roupa.
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Ficou sempre adoentada desde então, perdeu
toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa
certeza dava-lhe uma desconsolação constante.
Começou a azedar-se.
Fonte: esses excertos foram retirados de: dominiopúblico.com.gov.br.
III – Sobre Machado de Assis
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5) Leia os fragmentos a seguir, de Memórias póstumas de
Brás Cubas.
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão,
recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio,
eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na
mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo,
- mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um - “ai, nhonhô”! - ao que eu retorquia: -“Cala a boca, besta! (p. 30-31).
______________________________
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo,
por aquele Valongo fora, logo depois de ver e
ajustar a casa. Interrompeu-as um ajuntamento;
era um preto que vergalhava outro na praça. O
outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas
únicas palavras: – “Não, perdão, meu senhor; meu
senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso,
e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada
nova.
– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
– Meu senhor! gemia o outro.
– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o
do vergalho? Nada menos que o meu moleque
Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos
antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me
a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
– É, sim, nhonhô.
– Fez-te alguma cousa?
– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá
embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para
ir na venda beber.
– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
– Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.
Entra para casa, bêbado!”(p. 99-100).
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Realismo, Naturalismo, programas e rupturas
a) Filho de um pai negro, Machado de Assis chegou a ser
criticado por não ter participado ativamente dos movimentos
contra a escravidão, como fizeram alguns colegas seus. Os
trechos citados revelam o equívoco cometido por quem
assim pensava. Tomando-os como referência, descreva como
podemos perceber a preocupação do escritor com o problema.
atenção
Machado de Assis faz
referências constantes
ao problema da escravidão em sua obra,
como é o caso do romance Esaú e Jacó,
e de contos como “O
caso
da
vara”,
“Pai
contra mãe” e “Ma-
b) Compare os papéis de Brás e Prudêncio em cada um dos
episódios citados e elabore breve comentário a respeito.
riana”.
ao
Com
último,
relação
são
dois
contos com o mesmo
título. Aqui se trata do
que foi publicado primeiramente pelo Jornal das Famílias, em
6) Observe a seguinte descrição de Cotrim:
1871, e mais tarde no
volume póstumo Contos avulsos, de 1966.
 em Memórias póstumas de Brás Cubas:
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Volume 4
Unidade 3 . Aula
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Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim,
a quem não souber que ele possuía um carácter
ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto
com ele durante os anos que se seguiram ao
inventário de meu pai. Reconheço que era um
modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que
tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser
como os orçamentos: melhor é o saldo que o
cusat. Como era muito seco de maneiras tinha
inimigos, que chegavam a cusa-lo de bárbaro.
O único facto alegado neste particular era o de
mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas,
além de que ele só mandava os perversos e os
fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo
modo ao trato um pouco mais duro que esse
gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.
A prova de que o Cotrim tinha sentimentos
pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e
na dor que padeceu quando lhe morreu Sara,
dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu,
e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito
com a reputação da avareza; verdade é que o
benefício não caíra no chão: a irmandade (de
que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato
a óleo. Não era perfeito, de certo; tinha, por
exemplo, o sestro de mandar para os jornais
a notícia de um ou outro benefício que praticava, -- sestro repreensível ou não louvável,
concordo; mas ele desculpava-se dizendo que
as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso.
Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio)
que ele não praticava, de quando em quando,
esses benefícios senão com o fim de espertar
a filantropia dos outros; e se tal era o intuito,
força é confessar que a publicidade tornava-se
uma condição sine qua non. Em suma, poderia
dever algumas atenções, mas não devia um real
a ninguém (ASSIS, 1978, p. 99-100).
 na análise de Raymundo Faoro:
Podemos afirmar que Cotrim enriquecera na
Regência e consolidara sua fortuna no Segundo Reinado. Machado de Assis atribui-lhe todas as más tendências próprias a um homem
de negócio, fingindo desculpá-lo e justificá-lo.
Avarento, traficante de escravos, perverso com
os negros cativos, negocista – tudo lhe enche
a alma. Mas o romancista brinca de torná-lo
inocente, realçando-lhe por efeito do humorismo, a hipocrisia e a maldade que preside todo
o convívio do dinheiro com o lucro (FAORO,
2006, p. 252).
a) Depois de comparar os dois textos, desenvolva comentário
registrando suas conclusões.
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Realismo, Naturalismo, programas e rupturas
RESUMINDO
RESUMINDO
RE
ESU
S
Nesta aula, estudamos os principais aspectos do contexto
histórico-cultural em que se desenvolveu a estética realista e
naturalista em Portugal e no Brasil, destacando os autores Eça de
Queirós e Machado de Assis, respectivamente. Ao reconhecermos
as diferenças e aproximações entre eles, percebemos que foram
de fundamental importância para a renovação literária em seus
países e que, cada um a seu modo, continuam ser relevantes
referências para a literatura contemporânea, inclusive para além
das fronteiras portuguesas e brasileiras.
REFERÊNCIAS
REFE
RE
FER
FE
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Obras completas. Vol. I Romance
Urbano. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.
ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: Jackson,
1955.
9
_____. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril,
Unidade 3 . Aula
1978.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. vol
1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio.
Rio de Janeiro: Globo, 2006.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve
história da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks,
1996.
PELLEGRINI, T. Realismo: postura e método. Letras de
Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, dezembro 2007, p. 137-155.
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Coimbra:
Almedina, 1997.
_____. Literatura portuguesa moderna e contemporânea.
Lisboa: Universidade Aberta, 1990.
SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9.
ed. Europa-América: Lisboa, 1984.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil. 8.
ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
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Suas anotações
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3ª
unidade
AULA 10
MODERNISMOS
OBJETIVOS
Compreender os principais fatores históricos que
contextualizaram as mais expressivas criações literárias
dos Modernismos português e brasileiro e seus respectivos
autores.
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Modernismos
1 INTRODUÇÃO
Temos acompanhado a progressão da literatura em
língua portuguesa, observando seu desenvolvimento no
Brasil e em Portugal. Vimos que a incorporação de elementos
paisagísticos e humanos moldou, aos poucos, a fisionomia
das produções literárias daqui. Num primeiro momento,
como reação de surpresa e admiração diante do homem e
da natureza, refletindo a visão dos europeus diante de um
mundo novo e exótico. Depois, as menções à natureza e
ao índio passaram a expressar o sentimento de nativismo,
porque surgiram no momento em que aumentava o desejo de
autonomia. No estágio seguinte, as peculiaridades próprias
do Brasil serviram de pretexto para a criação de símbolos
nacionais e como traço de diferença, em consequência da
emancipação. Como os vínculos culturais entre os dois países
são profundos, as literaturas continuaram entrelaçadas,
porque nossos escritores tomaram colegas portugueses como
modelo durante o Romantismo, ou pelas semelhanças entre
os projetos literários de Eça de Queirós e Machado de Assis.
No século XX, a literatura em língua portuguesa ganhou
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Unidade 3 . Aula
10
novos componentes devido à multiplicidade de direção das
influências, com o fortalecimento da literatura brasileira e
das literaturas africanas em nosso idioma, como você verá nas
aulas seguintes. Nesta aula, vamos tratar especialmente das
principais proposições estéticas dos Modernismos português
e brasileiro, com ênfase sobre as expressões poéticas.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
2 DO SÉCULO XIX AO XX: TRANSFORMAÇÕES E
saiba mais
DESAFIOS
As proposições estéticas
dessas vanguardas foram
fundamentais para a criação artística do século XX.
Entretanto,
precisamos
destacar também a importância do Simbolismo em
razão das mudanças que
provocou na percepção do
artista sobre o sentido da
arte. O movimento simbolista tem no manifesto “Le
Symbolisme”,
publicado
pelo francês Jean Moréas,
em 1886, a sua certidão
de nascimento. Baseandose na valorização de metáforas incomuns, num vocabulário aberto, de ritmo
acentuado e de sonoridade
forte, a tendência surgiu
como reação às fórmulas
estéticas do Parnasianismo.
A literatura sempre
empregou o símbolo como
forma de expressão, no
entanto a principal preocupação
da
época
foi
“instalar um credo estético baseado no subjetivo,
no pessoal, na sugestão
e no vago, no misterioso
e ilógico, na expressão indireta e simbólica” (COUTINHO, 2004, p. 319). O
precursor do simbolismo
foi o poeta francês Charles
Baudelaire
(1821-1867),
um dos principais colabores do primeiro volume do
Parnaspo
contemporâneo
(1866), em francês, Parnasse contemporain, antologia que permite perceber o início das inovações
que só se completaramduas décadas mais tarde.
O período entre o final do século XIX e o início
do século XX caracterizou-se por acontecimentos que
provocaram mudanças radicais na vida e na maneira de
organização das sociedades. As alterações nos meios de
produção, os avanços tecnológicos, o desenvolvimento
das comunicações e dos transportes, a valorização do
conhecimento científico são fenômenos que provocaram
essas transformações. Conflitos sociais e crises políticas se
somaram a tais acontecimentos, determinando que o mundo
alterasse sua fisionomia rapidamente e em dimensões jamais
vistas (CARDOSO, 2006).
Inventos do período como o rádio, o telefone, o
cinema, o automóvel e progressos em áreas como a química
e a biologia se refletiram no âmbito da cultura. Por outro
lado, a preocupação com as manifestações emocionais levou
o austríaco Sigmund Freud a estabelecer os princípios da
Psicologia, os quais alteraram a forma do homem encarar
a si mesmo e o mundo, abrindo também um campo vasto
para a criação artística. Os estados interiores dos indivíduos
sempre fascinaram os artistas, mas essas pesquisas
ampliaram o repertório para a abordagem de tais assuntos
(MERQUIOR, 1996).
Paralelamente, diversas manifestações culturais
apareceram quase ao mesmo tempo em vários países da
Europa, se espalhando em consequência do aperfeiçoamento
dos meios de comunicação. Num período de cerca de quinze
anos surgiram o Futurismo (1909), o Expressionismo
(1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo
(1924), as expressões mais representativas dos movimentos
conhecidos como vanguardas. Apesar de diferentes entre si,
tinham em comum o posicionamento diante de um mundo em
crise e a contestação à herança cultural que vinha do passado
recente.
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Modernismos
Nas palavras de Gilberto Mendonça Telles:
[...] os movimentos de vanguarda na
Europa podem ser ordenados em duas
frentes opostas [a expressão ordenada
ou caótica do universo] e, ao mesmo
tempo, unidas por um princípio comum, o de renovação literária. Futurismo e Dadaísmo se aproximam, do
mesmo modo que encontramos identidade entre expressionismo e cubismo
(1986, p. 83).
saiba mais
Futurismo: surgiu em 1909
com a publicação do “Manifesto
futurista”
pelo
poeta
italiano Filippo Marinetti, que
propunha
o
aproveitamento
das inovações tecnológicas e
da velocidade como fonte de
criação.
Expressionismo: surgiu na
Alemanha com a pretensão
de expressar o mundo dos sonhos, naquilo que escapa da
compreensão lógica e a vida
anterior dos indivíduos.
Todas essas manifestações foram, de diferentes
modos, incorporadas pelas proposições estéticas
renovadoras dos Modernismos português e brasileiro,
como veremos a seguir.
Cubismo: o movimento tratava de formas da natureza por
meio de figuras geométricas,
com o propósito de representar as partes de um objeto em
um mesmo plano, rompendo o
compromisso com a aparência
real das coisas.
Dadaísmo: surgiu em Zurique, em manifesto apresenta-
3 OS MODERNISMOS
do por Tristan Tzara, no ano de
1916 e tem como característica principal a oposição a qual-
3.1 O grupo Orpheu: heranças e rupturas
quer tipo de equilíbrio, combinando
pessimismo,
ironia,
ingenuidade, ceticismo com o
Costuma-se marcar o início do Modernismo em
Portugal com o lançamento da revista Orpheu, em 1915.
Dela participaram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro,
Almada Negreiros, além do brasileiro, Ronald de Carvalho,
pois se tratava de uma publicação que ligava os intelectuais
ilógico e o absurdo.
Surrealismo: surgiu a partir
da ruptura do Dadaísmo, tomando como base o mundo
dos sonhos e as contradições
com a realidade, o pensamento, e a loucura.
dos dois países. Sobre o projeto e publicação da revista,
assim se referiu Fernando Pessoa:
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Volume 4
Para saber mais sobre as vanguardas europeias, sugerimos
as seguintes leituras:
HELENA, Lúcia. Modernismo
brasileiro e vanguarda. São
Paulo, Ática, 1996.
TELES,
Gilberto
Mendonça.
Vanguarda européia e mo-
Unidade 3 . Aula
Em princípios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luís de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio),
encontrando-se no Montanha comigo e
com o Sá-Carneiro, lembrou a ideia de
se fazer uma revista literária trimestral
— ideia que tinha tido no Brasil, tanto
assim que trazia para colaboração alguns
poemas de poetas brasileiros jovens, e
10
leitura recomendada
dernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1986.
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
a ideia do próprio título da revista — Orpheu. Acolhemos a ideia com entusiasmo
[...]. Sem perda de tempo se adoptaram o
nome e a periodicidade, e se estabeleceu o
número de páginas [...]. E ficou igualmente assente que figurariam como directores
Luís de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos — Ronald de Carvalho.
(Disponível em: http://www.letras.puc-rio.
br/catedra/revista/4Sem_16.html. Acesso
em: dez./2011).
Figura 3.10.1 - Orpheu, fascículo n.º 1,
Janeiro–Fevereiro–Março de 1915.
Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Revista_
Orpheu
Entretanto, o projeto não se desenvolveu além do
segundo número, mas foi suficiente para apresentar uma
nova perspectiva para a arte portuguesa (e, sem dúvida,
também para a arte brasileira, como vamos entender adiante).
Para o responsável pela Introdução, Luís de Montalvor, a
revista tinha por objetivos “formar, em grupo ou ideia, um
número escolhido de revelações em pensamentos ou arte,
que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU
o seu ideal esotérico (nosso) e bem nosso de nos sentirmos
e conhecermo-nos” (apud VILA MAIOR, 1996, p. 77).
Tratava-se, assim, de “revelar” novos pensamentos ou formas
de arte, capazes de renovar o cenário artístico, sobretudo no
campo da literatura, em Portugal. Para isso, a nova estética
elege expressões e visões carregadas de absurdo, em que “a
inovação semântica e vocabular é assumida como prática
recorrente” (VILA MAIOR, 1996, p. 81).
Para compreendermos melhor as proposições do
modernismo lusitano, precisamos, porém, conhecer um
pouco mais o cenário histórico e cultural em que ele se
desencadeou. E um primeiro fato a considerar é que Portugal
vivia os primeiros anos da sua recente vida republicana:
proclamada em 1910, a República representava os setores
médios da sociedade que estavam preocupados com “o
atraso do país, o futuro das colônias, [eram] anticlericais
e antimonárquicos, assim como geralmente se mostravam
antissocialistas e nacionalistas ferrenhos” (MARQUES
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Modernismos
apud ABDALA JÚNIOR, 1999, p. 133).
Essa referência “ao futuro das colônias”
relaciona-se à situação portuguesa à época da
eclosão da Primeira Guerra Mundial, por sua
vez ligada ao acontecimento do “Ultimato”,
ocorrido em 1890. Esse ultimato foi dado
pela Inglaterra quando Portugal ambicionou
alargar suas possessões na África, ou seja,
diante das pretensões lusitanas, a resposta
inglesa foi a ameaça de um confronto direto.
O governo monárquico de então recuou e
esse recuo foi muito mal visto pela população,
aumentando as fileiras dos republicanos. Já
proclamada a República, o governo português
tratou de se colocar ao lado dos Aliados na
Primeira Guerra, visando, assim, ao menos
manter suas colônias na África diante do
interesse crescente das potências europeias
pelo continente africano. Isso nos permite
reconhecer o seguinte quadro (Quadro 1)
para o contexto histórico-social e cultural
saiba mais
Do segundo número da revista (junho de 1915), dirigido por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro,
constam textos de Angelo de Lima,
Mário de Sá-Carneiro, Eduardo Guimaraens, Raul Leal, Violante de Cysneiros, Luis de Montalvor, Fernando
Pessoa e Álvaro de Campos. Esta edição conta ainda com a colaboração de
Santa-Rita Pintor. O terceiro número
da revista não passou, por falta de
financiamento, da fase das provas de
página. Para este número estavam
previstos textos de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Albino Menezes, Augusto Ferreira Gomes, Almada Negreiros, Thomaz de Almeida,
de C. Pacheco e de Castello Moraes.
Para além da falta de dinheiro para
a continuidade do projeto, o grupo
do Orpheu em breve se vê desagregado, para o que contribuiu a morte
de Mário de Sá-Carneiro, em 1916,
de Santa-Rita Pintor e de Amadeo
de Sousa Cardoso, em 1918, a ida
de Côrtes-Rodrigues para os Açores,
de onde era natural, e o afastamento
de António Ferro para outros campos
como o jornalismo e a política.
Fonte: http://www.cfh.ufsc.
br/~magno/orpheuufp.htm
português quando teve início o Modernismo:
1911
UESC
CULTURA/HISTÓRIA DE
PORTUGAL
CULTURA/HISTÓRIA
MUNDIAL
Lançamento da revista A
Águia
Revolução republicana de
5 de outubro/ Teófilo Braga
– Presidente do Governo
Provisório Republicano
Kandisky pinta primeira
aquarela abstrata/ Manifesto da
Pintura Futurista/Freud funda
a Sociedade Internacional de
Psicanálise/Ford produz seu
primeiro automóvel em série.
T. de Pascoaes: Marânus
Manuel de Arriaga:
Primeiro Presidente da
República Portuguesa/
Reforma do Ensino Primário
e Secundário/ Separação
da Igreja e do Estado
Prêmio Nobel para Maeterlinck/
Roald Amundsen atinge o
Pólo Sul/ Teoria Atômica de
Rutheford/Morre Mahler
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Volume 4
Unidade 3 . Aula
1910
LITERATURA
PORTUGUESA
10
Quadro 1: Contexto histórico-cultural do Modernismo Português
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
F. Pessoa publica artigos
1912
1913
1914
n’A Águia/ T. Pascoaes:
O espírito lusitano e o
Saudosismo/ Surge o
grupo da Renascença
Portuguesa
Congresso do Partido
Republicano
Mário Sá-Carneiro escreve
os poemas de Dispersão e
a narrativa Confissões de
Lúcio
Almada Negreiros
apresenta sua primeira
exposição de desenhos e
conhece Fernando Pessoa.
F. Pessoa cria os
heterônimos Alberto
Caeiro, Álvaro de Campos
e Ricardo Reis e rompe
com A Águia/ Sá-Carneiro
Fundação da União
Operária Nacional
regressa a Portugal e
publica Dispersão e
Confissões de Lúcio
1915
Lançamento da Revista
Orpheu/Publicação de
obras de Fernando Pessoa:
O Marinheiro, Opiário, Ode
Triunfal, Chuva Oblíqua,
Ode Marítima
1916
Segall: Primeira Exposição de
Pintura Moderna no Brasil/
Jung: Teoria do Inconsciente
Coletivo/ Einstein: Teoria Geral
da Relatividade
Abertura do Canal do Panamá/
Assassinato do Arquiduque
Francisco Ferdinando, da Áustria/
Início da Primeira Guerra Mundial
Luta republicana e vitória
contra ditadura de Pimenta
de Castro
Mário de Sá-Carneiro
Almada Negreiros publica
o Manifesto Anti-Dantas
Exposição Futurista em Paris/
Ravel: Daphne e Cloé/ Morre
Strindberg/ Naufrágio do Titanic
em sua viagem inaugural
suicida-se em Paris/
Conturbações políticas:
censura à imprensa
Kafka: A metamorfose/
Formação do Círculo Linguístico
de Moscou, dando início ao
Formalismo Russo/Auge do New
Orleans Jazz
Publicação do Curso de
Linguística Geral, de Saussure/
Exposições de Klee e Miró
Revista Portugal Futurista/
1917
1918
Almada Negreiros:
Ultimatum Futurista às
gerações portuguesas do
século XX
Morre Santa Rita Pintor
Ditadura de Sidônio Pais/
Divulgação do fenômeno de
Nª. Srª de Fátima
Assassinato de Sidônio
Pais/Beatificação de Nuno
Álvares Pereira
Revolução Russa – início da
União Soviética
T. Tzara: Manifesto Dada/ Fim da
Primeira Guerra Mundial
Fonte: Adaptado de VILA MAIOR, Dionísio. Introdução ao Modernismo. Coimbra: Almedina, 1996.
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Modernismos
Trata-se de um período de grande agitação política e
cultural, destacando-se o grupo Orpheu por sua inquietação
intelectual e criatividade: “a revista Orpheu deveria se
afirmar como ‘a soma e a síntese de todos os movimentos
literários modernos’ europeus e portugueses, [servindo] de
momento culminante [...] de todos os ideais e teorias que as
duas figuras mais proeminentes do movimento – Fernando
Pessoa e Sá-Carneiro – vinham ensaiando e desenvolvendo”
(REIS, 1990, p. 168).
São muito claras as palavras de Fernando Pessoa
sobre as perspectivas do novo grupo:
Não somos portugueses que escrevem
para portugueses; [...] somos portugueses
que escrevem para a Europa, para toda a
civilização; nada somos por enquanto, mas
aquilo que agora fazemos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. [...]
Não pode ser de outra maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado
é inevitavelmente esse. Afastamo-nos de
Camões, de todos os absurdos enfadonhos
da tradição portuguesa e avançamos para o
futuro (PESSOA, 1966, p. 121-122).
Como podemos perceber nas colocações acima, o
Modernismo visava a uma perspectiva internacionalista,
baseada na ruptura com a cultura tradicional, voltando-
Unidade 3 . Aula
10
se à renovação da arte em direção ao futuro. Nesse
direcionamento, “os órficos [valorizavam] exclusivamente
o raro e o insólito [e] gostavam de definir a sua estética de
forma tão extravagante quanto enigmática” (REIS, 1990, p.
173).
Desse momento criativo derivam muitos “ismos”,
pois se tratava de postular várias frentes inovadoras
para arte e a cultura de modo geral, como o Paulismo, o
Sensacionismo e o Interseccionismo.
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Figura 3.10.2 - Folha de rosto “Orfeu”. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/05/Orpheu1915.jpg
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Modernismos
saiba mais
Paulismo: termo que deriva [da expressão “Pauis”, colocada no início do poema “Impressões do Crepúsculo” – ver a seguir] é uma invenção de Pessoa que consiste num refinamento dos processos simbolistas.
[...] «Pauis» ilustra, bem melhor que a poesia saudosista, os caracteres que Pessoa atribuíra a esta num
artigo d’A Águia: o vago, o complexo, o sutil [...] O estilo paúlico define-se pela voluntária confusão do
subjetivo e do objetivo, pela «associação de ideias desconexas», pelas frases nominais, exclamativas,
pelas aberrações da sintaxe («transparente de Foi, oco de ter-se»), pelo vocabulário expressivo de tédio,
do vazio da alma, do anseio de «outra coisa», um vago «além» («ouro», «azul», «Mistério», pelo uso de
maiúsculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras («Outros Sinos», «Hora») (COELHO, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA, Porto: Figueirinhas, 1979 – Disponível em: http://
faroldasletras.no.sapo.pt/paulismo.htm).
IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO (excerto)
Pauis de roçarem ânsias pela minh’ alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’ alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
[...]
Sensacionismo: O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação - que a
sensação é a única realidade para nós. Partindo daí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações
que podemos ter - as sensações aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental - as
sensações do abstracto. Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser
a organização das sensações do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações
do abstracto. A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem. Mas a arte
deve obedecer a condições de Realidade (isto é, deve produzir cousas que tenham, quanto possível, um
ar concreto, visto que, sendo a arte criação, deve tentar produzir quanto possível uma impressão análoga à que as cousas exteriores produzem). A arte deve também obedecer a condições de Emoção porque
deve produzir a impressão que os sentimentos exclusivamente interiores produzem, que é emocionar
sem provocar à acção, os sentimentos de sonhos, entende-se, que são os sentimentos no seu mais puro
estado. A arte, devendo reunir, pois, as três qualidades de Abstracção, Realidade e Emoção, não pode
deixar de tomar consciência de si como sendo a concretização abstracta da emoção (a concretização
emotiva da abstracção). Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há realidade, mas
apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção,
10
mas sensações de emoção), mas a abstracção. Não a abstracção pura, que gera a metafísica, mas a
abstracção criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que a filosofia é estática, a arte é dinâmica;
Unidade 3 . Aula
é mesmo essa a única diferença entre a arte e a filosofia (PESSOA, In: Obras de Fernando Pessoa, v. III,
Porto> Lello & Irmão, 1986; disponível em:
faroldasletras.no.sapo.pt/sensacionismo.htm).
Interseccionismo: Processo típico da poesia do Modernismo, paralelo às sobreposições dinâmicas da
pintura futurista, e de que Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis partes de “Chuva Oblíqua” [publicadas na revista Orpheu n.º 2, de 1915], uma demonstração brilhante de inteligência estética
e de capacidade inovadora. Cruzam-se aí a paisagem presente e a ausente, o atual e o pretérito, o real
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e o onírico: ‘Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente
de as velas de grandes navios / Que largam do cais...’. A alma está lucidamente dividida, a hora é ‘dupla’, o autor capta subtis correspondências de sensações: ‘Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste
dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...’ Mas Pessoa cedo poria de lado essa
experiência lúdica, dos ‘arredores da sua sinceridade’ (COELHO, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA, Porto: Figueirinhas, 1979 – Disponível em: http://faroldasletras.no.sapo.pt/paulismo.htm).
CHUVA OBLÍQUA – Fernando Pessoa [excerto]
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
De um modo geral, esses “ismos” se integram no
“sensacionismo, afirmando-se mais enquanto modos dessa
‘corrente estranha’ – como diz Pessoa – a que pertencem a
maioria das composições do Orpheu [...]” (REIS, 1990, p.
174).
Antes de passarmos ao estudo de dois dos mais
importantes autores desta geração, devemos colocar em
relevo uma dimensão importante quando estudamos o
Modernismo português: trata-se dos “diálogos” possíveis
com o Modernismo brasileiro. A esse respeito, destacamos
o seguinte:
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Modernismos
Em 1973, em comunicação apresentada
na Convenção Anual do MLA — Modern
Language Association, em New York, intitulada ‘Sobre o Modernismo em Portugal
e no Brasil: alguns problemas e clarificações’, lembrava Jorge de Sena:
Ainda estão por estudar em extensão e em
profundidade as relações das vanguardas
de Portugal e do Brasil, não só em 191522, mas até aos anos 40, quando durante
os anos 30 e 40 os modernistas brasileiros
colaboravam nas revistas modernistas portuguesas e eram nelas criticados com especial relevo. Não se trata ou não deverá
tratar-se de meramente atribuir influências ou precedências, ou discutir ridiculamente quem primeiro fez seja o que for,
mas de ter presente que duas literaturas na
mesma língua, cujos contactos mútuos e
íntimos vinham desde as origens do Brasil,
necessariamente não se ignoraram durante
essas décadas.
Fonte:http://www.letras.pucrio.br/catedra/revista/4Sem_16.html
leitura recomendada
Para aprofundar seus estudos sobre as relações
entre o Modernismo Português e Brasileiro, recomendamos:
MARTINHO,
Fernando
J.
B. Modernismo Português
e Modernismo Brasileiro:
olhas e escritas cruzadas.
SCRIPTA, Belo Horizonte,
v. 6, n. 12, p. 189-208,
1º sem. 2003. Disponível
em:
http://www.ich.pucminas.
br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta12/Conteudo/
N12_Parte02art02.
SARAIVA, Arnaldo. O Mo-
Por isso é importante conhecermos sempre mais a
respeito de diferentes culturas e expressões literárias, tanto
mais quando possuem afinidades e interesses que foram
marcados por uma história e língua comuns.
dernismo brasileiro e o
Modernismo português
- subsídios para o seu estudo e para a história das
suas relações. Porto: Porto, 1986.
3.1.1 A poética de Fernando Pessoa e Mário de
10
Sá-Carneiro
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Não é objetivo desta aula aprofundar estudos sobre
a poesia de Pessoa e Sá-Carneiro propriamente. Nossa
proposta é que você reconheça as principais contribuições
desses autores para o movimento modernista português.
Entretanto, para isso, claro, precisaremos relembrar alguns
dos mais famosos poemas desses dois importantes nomes
da “Geração Orpheu”.
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Inicialmente, vamos relembrar no que consiste o
fenômeno pessoano da heteronímia: trata-se da criação de
outros poetas que, não tendo existência física concreta,
receberam, por parte do seu criador, Fernando Pessoa,
traços estéticos e biografias próprias. Contam-se hoje mais
de setenta heterônimos reconhecidos pelos estudiosos
da poesia pessoana, mas os mais completos e importantes
foram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
À voz poética de Fernando Pessoa, ao Fernando Pessoa ele
mesmo como se costuma designar, chamamos de ortônimo.
Sobre esse processo da heteronímia devemos compreender
que:
A configuração dos heterônimos e a elaboração de uma constelação poética assente no princípio de diversificação (de
valores, de atitudes ideológicas, de estilos
literários) é o contributo decisivo de Pessoa para o Modernismo português (REIS,
1990, p. 185).
Não se trata, entretanto, de um processo desvinculado
do contexto histórico-cultural de seu tempo: diante da crise
das certezas do Positivismo, entram em crise, também, todas
as certezas sobre o sujeito e a linguagem. No lugar de um
todo coerente e fechado, o sujeito passa a ser encarado como
múltiplo, multifacetado e tal configuração pluralizada vem
acompanhada de inovações na linguagem, da compreensão e
afirmação de que a arte poética é uma construção linguística,
é uma criação, um fingimento. Essa poética do fingimento
nos remete ao conhecido poema “Autopsicografia”, de
Fernando Pessoa (ortônimo):
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
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E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as dores que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
para conhecer
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha
nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias
são meus”.
Alberto Caieiro [Fernando Pessoa],
“Poemas inconjuntos”
Figura 3.10.3 - Fernando Pessoa.
Fonte: http://commons.wikimedia.
org/wiki/Fernando_Pessoa
FERNANDO ANTÓNIO NOGUEIRA PESSOA nascido a 13 de Junho de
1988, [...] com seis anos de idade, confronta-se com a morte do pai e um
ano depois, com a morte do irmão [e é quando cria seu primeiro heterónimo, Chevalier de Pas]. [...] D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa,
sua mãe, [casa-se] com o comandante João Miguel Rosa, entretanto nomeado cônsul interino em Durban, casamento que se realiza por procuração em 1895. Depois do casamento, mãe e filho partem para Durban,
África do Sul, onde Fernando Pessoa viverá até à data do seu regresso
definitivo a Portugal, no ano de 1905. [...] Vive, pois, grande parte da infância e adolescência (cerca de 10 anos) [naquele] país, onde recebe uma
educação inglesa. Os seus primeiros estudos e os seus primeiros textos
10
são feitos em inglês. Fernando Pessoa nunca abandonará a língua inglesa.
É através dela que trabalhará, mais tarde, já em Lisboa, como «correspon-
Unidade 3 . Aula
dente comercial», [quando regressa aos dezessete anos]. A sua estreia
literária realiza-se na revista A Águia, com a publicação de uma série de
ensaios acerca da Nova Poesia Portuguesa. A colaboração com esta revista
dura, contudo, pouco tempo. [...] Na companhia de amigos como Mário
de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa
ficará para sempre associado às novas correntes modernistas [...]. O isolamento e a solidão do poeta parecem ter marcado a maior parte da sua
vida, ao longo da qual, todavia, foi criando, no sentido literal do termo,
novos amigos [...] os mais conhecidos, entre 1912 e 1914, a que chamou
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Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. [...] A atração pelo mistério, encaminha-o para campos ocultistas na busca de uma verdade e de
um conhecimento espiritual, na busca da compreensão de si próprio e de
um universo que transcende em muito o campo do imediatamente visível.
[...] [Já sua reflexão sobre o Portugal] culmina em termos de produção
literária, com a publicação, em 1934, da sua obra Mensagem. Aí temos
presente, partindo da epopeia da diáspora de Portugal que deverá ser
retomada e concluída, a vontade de regeneração de um país estagnado
e a referência a mitologias diversas. [...] [Nunca casou e teve uma única
namorada, conforme cartas trocadas com Ophélia Queirós] e, assim, Fernando Pessoa trocou a perspectiva de um amor e de uma família por um
outro chamamento, seja ele o da missão a desempenhar seja o do compromisso com a sua própria identidade e com a humanidade. Abandonado
a si mesmo, à sua vida intelectual e mística, ao seu isolamento, que, aliás,
marcou toda a sua existência, é sozinho que Fernando Pessoa, já profundamente desgastado pela angústia que o mina, pela constante busca de
si próprio, morre no dia 30 de novembro de 1935, com 47 anos de idade.
Fonte: http://www.ufp.pt/ - Universidade Fernando Pessoa – Portugal.
Disponível
em:
http://www.cfh.ufsc.br/~magno/vidaeobradefernando
pessoa.htm.
Vamos estudar esse poema, mas deixamos a você a
tarefa de pesquisar sobre o título: por que “Autopsicografia”?
Façamos, primeiramente, uma leitura geral do texto
poético: temos três estrofes de quatro versos (quartetos),
com rimas alternadas (fingidor – A/completamente – B/dor
– A/sente – B; e assim sucessivamente). Percebemos que
não há a presença de um eu lírico no texto, mas uma reflexão
sobre o fazer poético de modo geral, pois o primeiro verso
apresenta a definição do que é um poeta (todo e qualquer
poeta): “o poeta é um fingidor”. Para entendermos o sentido
desse fingimento, precisamos saber que o verbo fingir deriva
do latim fingire e que, dentre seus significados, está o de
criar, inventar. Assim, vamos substituir, apenas a título de
exercício de leitura, o verbo fingir pelo verbo criar:
“O poeta é um criador.
Cria tão completamente
Que chega a fingir (ou a criar) a dor
Que deveras sente”
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É claro que o texto “joga” com o sentido de fingir
como simulação, falsidade, mas se pensarmos que a poesia
é criação e toda criação é uma invenção, de certo modo é
um faz de conta (do mesmo modo que as crianças inventam
o mundo do “faz de conta” quando brincam), então não
tem a ver o sentido de mentira, falsidade para o caso da arte
poética. A questão é que o poeta, como criador, não pode
transpor para o poema a dor que “deveras sente” (que sente
de verdade), porque essa não é “traduzível”. Ele apenas pode
criar uma dor que se aproxima (ou seja, é fingida, criada) da
que ele realmente sente.
Vamos adiante: na segunda estrofe, o leitor é colocado
na reflexão: “E os que leem o que escreve” (aqueles que
leem o que o poeta – fingidor, criador – escreve), na dor que
leem sentem bem “não as duas que ele teve” (quer dizer, a
“verdadeira” e a criada poeticamente), mas “só a que eles
não têm” (pois a dor de quem lê também não é “traduzível”
– apenas pode se aproximar da dor do poeta).
Então chegamos na terceira e última estrofe, que
sintetiza o sentido do fazer poético para Fernando Pessoa,
de acordo com as linhas gerais do Modernismo: “calhas de
roda” são trilhos de trem; “comboio de corda”, é trenzinho
de brinquedo, movido à corda, então: quem “gira a entreter
a razão” é esse trenzinho de corda “que se chama coração”.
Assim, o centro da criação poética é a razão, que é entretida
pela emoção, pelo coração. Não há uma sem a outra, mas
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o trabalho poético é criação pensada, refletida a partir
da vivência emocional do poeta. Agora releia o poema e
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elabore uma paráfrase sobre ele (ou seja, reelabore em prosa
explicativa esse texto poético).
O importante é você compreender que assim como
em “Autopsicografia”, toda a obra pessoana se vale de jogos de
linguagem e de sentido que exigem uma “decifração” criativa;
no lugar do leitor passivo, a arte modernista vai exigir um
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“colaborador” ativo, capaz de se arriscar em novas ideias e
possibilidades poéticas.
Então, você já tem propostas para o sentido, ou
os sentidos, do título desse poema de Fernando Pessoa?
Escreva aqui:
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
Isso é o que acontece também, ainda que de modo
muito diferente, claro, com a poética de Mário de SáCarneiro: nesse caso, uma palavra-chave é dispersão:
[Esse poeta] concluíra que o sujeito é uma
entidade pulverizada, ambivalente e virtualmente plural; e que a perda da unidade
se traduz em contradição [...]. A dispersão
[resultante], Mário de Sá-Carneiro traduz
num poema crucial, de afirmação [...] da
Modernidade (REIS, 1990, p. 188).
Vamos ler um trecho desse poema a seguir (você
encontra a versão integral dessa obra em: http://purl.
pt/240):
VI – DISPERSÃO (excerto)
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
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Modernismos
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
para conhecer
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO nasceu em
Lisboa no dia 19 de maio de 1890. Os
primeiros anos de sua vida são marcados
pela dor causada com a morte da mãe,
em 1892, quando ele tinha apenas dois
anos. Em 1911, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, no ano seguinte, transfere-se para Universidade de
Paris para dar continuidade ao curso de
Direito, que não chegou a concluir. Ainda
em 1912, publica a peça teatral Amizade
e o volume de novelas “Princípio”. Nessa época, começa a corresponder-se com
Figura 3.10.4 - Mário de
Sá-Carneiro. Fonte: http://
commons.wikimedia.org/wiki/
M%C3%A1rio_de_S%C3%A1Carneiro
Fernando Pessoa e já se refletem, nas
cartas, o agravamento dos seus problemas emocionais e as ideias de morte e
suicídio. Em 1914, além de publicar as obras Dispersão e A confissão de
Lúcio, Sá Carneiro intensifica sua correspondência com Fernando Pessoa,
a quem envia seus poemas e projetos de obras, revelando crescentes
sinais de pessimismo e desespero. Em 1915, como integrante do grupo
modernista em Portugal, participa do lançamento da revista Orpheu. No
segundo volume dessa revista publica o poema futurista “Manucure”,
que, ao lado do poema “Ode triunfal” do heterônimo pessoano Álvaro de
Campos, provocam impacto e polêmicas nos meios literários. Ainda em
1915, regressa à Paris, onde passa por constantes crises de depressões,
10
que são agravadas por causa das suas dificuldades financeiras. Em 1916,
numa carta a Fernando Pessoa, anuncia a sua intenção de suicídio, o que
Unidade 3 . Aula
efetivamente ocorre no dia 26 de Abril, num quarto do Hotel Nice, em
Paris.
Fonte: http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=337.
Para aprofundar estudos sobre a vida e obra desse poeta, consulte:
httt://purl.pt/246/1/P39.html.
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No excerto, já podemos perceber a angústia do poeta,
marcada desde o início pela afirmação do eu lírico: “Perdi-me
dentro de mim”; entretanto, a complexidade desse texto poético
só é efetivamente compreendida quando fazemos a leitura
de todos os demais poemas que compõem o livro Dispersão,
palavra que também dá título ao sexto poema da obra. De um
modo geral, entretanto, cabe-nos compreender que
Mário de Sá-Carneiro captou plenamente o
espírito de quase todas as sugestões e teorias
formuladas por Fernando Pessoa, exercitando-as na obra de forma [...] original. Teve
assim uma participação igualmente ativa e
importante na formação da estética e mentalidade modernistas, embora a sua imensa
criatividade tenha sido de natureza distinta,
predominantemente poética e prática (REIS,
1990, p. 175).
Assim, se esse poeta não teve o mesmo ímpeto de refletir
teoricamente sobre as novas formas de arte, foi um criador de
grande relevância para a renovação da poesia portuguesa.
3.2 A antropofagia brasileira: para além da
Semana de 22
As transformações que estavam em curso nos países
europeus se refletiam em outras partes do mundo. Aqui,
também ocorreu uma sucessão de fatos significativos ao
longo do período de transição entre os séculos XIX e XX.
Os historiadores costumam situar essa etapa da nossa história
entre 1889, ano da queda da monarquia com a implantação do
regime republicano, e 1930, quando se encerrou a chamada
República Velha com a revolução que levou Getúlio Vargas à
presidência. Foi a partir de então que o poder político do país
trocou de mãos, transferindo-se da oligarquia rural para a elite
citadina (PRIORE; VENANCIO, 2010).
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No campo da literatura, as mudanças não foram menos
significativas, pois além de Machado de Assis publicar a maioria
de seus romances mais importantes nesse período, surgiram
escritores com grande disposição para inovar a literatura
brasileira. É o caso de Lima Barreto (1881-1922), que tirou
proveito dos “processos estilísticos do folhetim publicado em
jornal, transformando-os em recurso para uma estética popular
do romance” (SANTIAGO, 2000, p. 101), modernizando a
linguagem do gênero e ampliando a faixa de leitores.
Outro escritor importante da época foi Euclides da
Cunha (1866-1909), porque embora tenha dito que Os sertões
(1902) “a princípio se resumia à história da Campanha de
Canudos” (CUNHA, 1985, p. 85), a obra se transformou num
marco cultural. Em outras palavras, não surgiu como criação
artística, porém com o tempo se incorporou à literatura e
acabou se tornando uma obra referencial, pois “sua sombra
pairou sobre a literatura brasileira com uma intensidade que
excedeu de muito a seu tempo” (GALVÃO, 2000, p. 17).
Considerando-se o fato de que Euclides da Cunha precisou
arcar com parte das despesas para a impressão, tal repercussão
não era esperada pelo editor, que certamente se surpreendeu ao
ver o esgotamento da tiragem inicial em poucos meses.
Podemos mencionar ainda outros fatos que evidenciam
a atmosfera de inquietação do período e uma das comprovações
é o aparecimento de Canaã, de Graça Aranha, no mesmo ano,
provocando grande alarde. Segundo Afrânio Coutinho “A razão
do êxito excepcional explica-se: era um livro revolucionário no
10
quadro das letras nacionais, inclusive no sentido social” (2004, p.
496). Seu autor continuou desfrutando de prestígio nas décadas
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seguintes, chegando a ser apontado como um dos chefes do
grupo que realizou a famosa Semana de Arte Moderna de 1922,
em São Paulo (MARTINS, 1969), no entanto sua popularidade
foi diminuindo, da mesma forma como os leitores de épocas
posteriores deixaram de se interessar por sua obra.
Na poesia, Olavo Bilac e Alberto Oliveira estavam no auge
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
da consagração, principalmente o primeiro, cuja popularidade
aumentou consideravelmente por conta de sua participação
em campanhas de caráter cívico. O sucesso dos parnasianos
e a submissão do rigor formal de seus versos ao cientificismo
ofuscaram poetas como Cruz e Sousa, determinando que
enfrentasse uma “atmosfera de oposição e hostilidade” criada
pelo pensamento realista e positivista dominante desde 1870
(COUTINHO, 2004, p. 323). Augusto dos Anjos também
é desse período, publicando Eu e outros poemas em 1912, seu
único livro e um dos grandes êxitos da nossa literatura, uma
vez que as edições se sucedem continuamente até os dias atuais.
Essa pluralidade de tendências literárias era fruto de um
ambiente em ebulição cultural, no qual se confrontavam forças
antagônicas com alto poder de explosão, como é próprio dos
períodos das grandes transições entre concepções de princípios
estéticos. As novas correntes se apresentavam com energia
avassaladora e as direcionavam violentamente contra forças
remanescentes do século XIX que ainda preservavam grande
vitalidade. Para completar, o confronto se dava num clima
de tensões e radicalismos em todas as áreas, favorecendo os
extremismos que redundaram na eclosão da Primeira Guerra
Mundial, em 1914.
Esse clima de confrontos entre tendências estéticas serviu
de fermentação para a realização da Semana de Arte Moderna de
1922, um dos movimentos culturais mais importantes do século
XX no Brasil. Na opinião de Wilson Martins, “foi o coroamento
de todo um processo intelectual” (1969, p. 16), que vinha em
desenvolvimento nas décadas anteriores, do qual os escritores
mencionados há pouco foram os precursores. O impacto inicial
do evento foi muito mais em razão do caráter provocador
que assumiu (MARTINS, 1969), porém, aos poucos, seus
desdobramentos se fizeram perceber, de tal forma que ao longo
dos anos subsequentes se espalharam pelo país inteiro.
A Semana de 1922 “foi realmente o catalizador da nova
literatura, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia
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Modernismos
de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes da
renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas”
(CANDIDO, 1976, p. 117-118). Em outras palavras, foi um
desaguadouro de correntes com grande potencial cujas dimensões
só se revelaram nos anos subsequentes. O primeiro estágio foi
o mais inovador, de posições mais radicais, de mudanças mais
profundas, de experimentalismos mais revolucionários e teve na
poesia a forma de expressão predominante.
O segundo, que se iniciou por volta de 1930, foi muito
menos ruidoso e, apesar de reafirmar os avanços do grupo
precedente, recorreu a padrões de expressão tradicionais. Na
poesia, estrearam Carlos Drummond de Andrade, Cecília
Meireles, Vinicius de Morais, entre tantos outros, enquanto
Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico
Verissimo são apenas alguns dos nomes que atestam a boa safra de
prosadores do período. Uma das características mais marcantes
do grupo foi a preocupação com os problemas sociais do Brasil,
na prosa, abordados dentro de uma perspectiva regional.
O aparecimento desses escritores, a chamada geração de
1930, evidencia que a de 1922 havia consolidado suas conquistas
estéticas e que a partir de então nunca mais se poderia fazer
como no passado:
Unidade 3 . Aula
10
Por isso que todos os escritores de trinta são
modernistas, no sentido de que, por trás de
seu expressionismo verbal, do diálogo ou do
monólogo dos seus personagens rústicos, da
invenção verbal ou do corte das cenas, se sente a lição de Mário e Oswald; mas também
de todos os poetas e ensaístas que de vinte
a trinta romperam a barreira a separar o discurso escrito do falado (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 523).
O grupo que realizou a Semana de Arte Moderna
representa o desaguadouro de um processo de renovação em
germinação desde os anos anteriores. A forma articulada com
que apresentou suas propostas e a ousadia de algumas delas
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garantiram aos paulistas certo protagonismo na modernização
de nossa literatura, porém seus experimentalismos marcam o
momento inicial do movimento. Logo em seguida, apareceram
os sinais de estabilização e da busca de equilíbrio entre o novo
e os modelos tradicionais, tanto na produção de participantes
da Semana quanto pelo surgimento de nomes de igual
importância que consolidariam as inovações, principalmente a
partir de 1930. A consolidação das inovações proporcionou o
aparecimento de um grupo de escritores de muito talento. Na
poesia:
Esta admirável safra lírica marca um divisor
de águas, para cada um de seus autores e para
a poesia brasileira. São a flor suprema da fase
de guerra do Modernismo, a sua expressão
mais madura e mais fecunda, depois da qual
virão os frutos de um decênio excepcionalmente rico para aqueles autores, para outros poetas (neles inspirados, ou divergente
em relação a eles), para toda a nossa poesia
(CANDIDO; ADERALDO, 1997, p. 26).
A continuidade do processo de renovação iniciado em 1922
trouxe benefícios semelhantes para o desenvolvimento do romance
brasileiro, provocando:
[...] grande surto do romance, tão brilhante
quanto o que se verificou entre 1880 e 1910, e
que apenas em pequena parte dependeu da estética modernista (CANDIDO; ADERALDO, 1997, p. 29). Entretanto, os mesmos críticos reconhecem que, “sem ela, e sobretudo
sem o movimento que lhe correspondeu, os
novos romancistas não teriam tido provavelmente a oportunidade de se exprimirem e
serem aceitos, desde logo, com o maior entusiasmo (CANDIDO; ADERALDO, 1997,
p. 29-30).
De um modo geral, é consenso avaliar-se que as inovações
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introduzidas a partir da Semana de Arte Moderna deixaram um
legado consistente e um saldo altamente positivo, traduzidos em
uma série de fatores. Num apanhado breve, Afrânio Coutinho
(1986) faz um balanço que pode ser assim resumido: maturidade
e integração da consciência de brasilidade com mudança de
mentalidade em relação as nossas produções; atualização com o
fim da defasagem cultural em relação a outras partes do mundo;
libertação do colonialismo mental com o desenvolvimento
de um modo próprio de criar sem a submissão a modelos
importados; nacionalismo no sentido de redescoberta do Brasil,
criando consciência sobre a realidade brasileira; revitalização do
regionalismo, das tradições e das manifestações populares, com
o aproveitamento de elementos das culturas indígenas e negras,
da linguagem das populações simples e, por meio de investigação
sobre o passado, a formação e a vida do homem brasileiro; em
suma, afirma-se a autonomia da literatura brasileira.
Mais importante do que o tratamento artístico
desses elementos foi o reconhecimento de que a principal
particularidade da cultura brasileira é o seu caráter multifacetado.
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10
O aproveitamento da vasta matéria oferecida pelas vertentes
culturais do país em combinação com as influências externas
foram decisivos para o amadurecimento da nossa literatura,
contribuindo para que ela aflorasse com a força e a pluralidade
que podemos perceber a partir de 1930.
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ATIVIDADES
ATIVIDADES
I – Sobre o Modernismo português
Para os modernistas, [...] ter um pouco de Europa n’alma” – frase de Fernando Pessoa que
Sá-Carneiro destaca entusiasticamente na sua
correspondência -, funcionava praticamente como uma divisa orientadora de todos os
actos estéticos. Este querer-ser europeu era
também sinônimo de uma dupla meta, fundamental para a compreensão do Modernismo
e do seu carácter vanguardista. Tratava-se do
desejo de universalidade que impunha a superação das limitadas fronteiras portuguesas e,
simultaneamente, de uma vontade de ruptura
com a literatura do passado que sugeria uma
viragem rumo ao futuro e despertava o fascínio por tudo quanto fosse inteiramente novo
(REIS, 1990, p. 170).
1) Desenvolva um comentário sobre a citação acima,
apontando os principais aspectos do Modernismo
português: a) apresente uma síntese sobre o momento
histórico-cultural vivido na Europa e em Portugal; b)
explique a importância da revista Orpheu:
2) Aponte os principais sentidos do poema abaixo e, desse
modo, explique as principais características da poética
pessoana, considerando-se as conclusões apresentadas
nesta aula sobre o poema “Autopsicografia”:
ISTO
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
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Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço,
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
II – Sobre o Modernismo brasileiro
1) Leia o “Prefácio interessantíssimo”, a seguir, e elabore
comentário a respeito do que Mario de Andrade dizia
sobre:
a. Inspiração X poesia
b. O passado
c. A renovação literária
Prefácio Interessantíssimo
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Leitor: Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
[...]
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar
tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois:
não só para corrigir, como para justificar o que
escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a
blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpem-me por estar tão atrasado dos
movimentos artísticos atuais. Sou passadista,
confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez
das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro
seria hipócrita si pretendesse representar orientação
moderna que ainda não compreende bem.
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[...]
Um pouco de teoria?
Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente,
acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria
frases que são versos inteiros, sem prejuízo de
medir tantas sílabas, com acentuação determinada.
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho
a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada
a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar
a doida carreira do estado lírico para avisa-lo das
pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que
tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o
poema de repetições fastientas, de sentimentalidades
românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros
coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida
como sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram.
E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de
expressão.
[...]
O impulso lírico clama dentro de nós como turba
enfuriada. Seria engraçadíssimo que esta dissesse:
“Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver
o argumento mais forte, guarde-o para o fim!” A
turba é confusão aparente. Quem souber afastarse idealmente dela, verá o impotente desenvolverse dessa alma coletiva, falando a retórica exata das
reivindicações. Minhas reivindicações? Liberdade.
Uso dela; não abuso. Sei imbricá-la nas minhas
verdades filosóficas e religiosas, não convencionais
como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não
pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo
andar sozinho.
[...]
Harmonia: combinação de sons simultâneos.
Exemplo:
“Arroubos.. Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas palavras não se ligam. Não formam
enumeração. Cada uma é fase, período elíptico,
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reduzido ao mínimo telegráfico.
Si pronuncio “Arroubos”, como não faz parte de
frase (melodia), a palavra chama atenção para seu
insulamento e fica vibrando, à espera duma frase
que lhe faço adquirir significado e que não vem.
“Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”;
e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a
primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras
vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia
(frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia,
- o verso harmônico. Mas, si em vez de usar só
palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação
de superposição, não já de palavras (notas) mas de
frases (melodias). Portanto: polifonia poética.
[...]
Escrever arte moderna não significa jamais para
mim representar a vida atual no que tem de exterior:
automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras
frequentam-me o livro é porque pense com elas
escrever moderna, mas porque sendo meu livro
moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Mas todo este prefácio, com todo a disparate das
teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma.
Quando escrevi “Paulicéia Desvairada” não pensei
em nada disto. Garanto porém que chorei, que
cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos
mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se
Quem não souber cantar não leia Paisagem nº 1.
Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês.
Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar:
A Escalada. Sofre: Colloque Sentimental. Perdoar:
a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura,
das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo.
Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for
como eu tem essa chave.
E está acabada a escola poética “Desvairismo”.
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola=imbecilidade
de muitos para vaidade dum só.
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Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio
Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem
do cárcere”.
Fonte: www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/
jogo/pauliceia.asp. Acesso ago. 2011.
2) Releia os versos iniciais de “Poética” e:
a) Descreva como o eu lírico de Manuel Bandeira se posiciona
em relação à poesia.
b) Em versos como “Abaixo os puristas”, percebe-se uma
atitude hostil em relação ao apego a fórmulas prontas de
poesia, em particular ao soneto, tão ao gosto dos poetas
parnasianos. Indique outro verso que remeta ao mesmo
assunto e elabore comentário a respeito.
c) Os versos mencionados também fazem referência ao gosto
dos parnasianos por um vocabulário mais tradicional.
Indique palavras da poesia de Manuel Bandeira que podem
ser associadas à proposta de renovação da linguagem
literária.
d) Compare os aspectos destacados nas questões anteriores
com a posição de Mario de Andrade sobre literatura e
elabore comentário, apontando preocupações comuns aos
dois autores; dessa maneira, redija uma síntese sobre os
principais aspectos do Modernismo de 22.
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no
dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
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Modernismos
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do
amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
RESUMINDO
RES
RE
S
RESUMINDO
Nesta aula, estudamos as implicações da realidade
histórico-cultural no surgimento das vanguardas europeias e de
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que modo elas fundamentaram, de diferentes maneiras, novas
perspectivas para a arte, que se fizeram sentir nos modernismos
português e brasileiro. Vimos que, em Portugal, destacaramse, entre outros, os poetas Fernando Pessoa e Mário de SáCarneiro e que, no Brasil, os participantes da Semana de 22
foram importantes renovadores da literatura brasileira.
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REFERÊNCIAS
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RE
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REFERÊNCIAS
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teoria e história literária. 5. ed. revista. São Paulo: Nacional,
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COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7. ed. rev.
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PRIORE, Mary del; VENANCIO, Renato. Uma breve
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REIS, Carlos. Literatura portuguesa moderna
contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.
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e
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Modernismos
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios
sobre dependência cultural. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura
brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e
modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas,
manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 até
hoje. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
Unidade 3 . Aula
10
VILA MAIOR, Dionísio. Introdução ao Modernismo.
Coimbra: Almedina, 1996.
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3ª
unidade
AULA 11
PERCURSOS
CONTEMPORÂNEOS
OBJETIVOS
Reconhecer os principais aspectos das relações históricoculturais que contextualizaram as expressões literárias em
língua portuguesa no decorrer do século XX, bem como
as questões mais relevantes presentes nas produções
contemporâneas das literaturas em estudo.
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Modernismos
1
INTRODUÇÃO
As mudanças introduzidas com as diferentes expressões
artístico-literárias modernistas foram tomando outras formas de
acordo com os novos contextos histórico-culturais que surgiam,
pois, como estamos demonstrando desde o início destas nossas
aulas, a arte literária encontra-se profundamente ligada à realidade
histórica das sociedades. Nos anos de 1930 e 1940, escritores
do Brasil e de Portugal passaram a denunciar com mais força as
injustiças sociais em seus países; a eclosão da Segunda Guerra
Mundial e suas consequências provocaram grandes alterações no
panorama político e a arte, em suas variadas formas, acompanhou
as inquietações daquele tempo. Na década de 1960, eclodiram
as lutas pela independência nos países africanos colonizados por
Portugal que, entre outros aspectos, acabaram por enfraquecer
o regime totalitário salazarista. No Brasil, nessa mesma época,
instaura-se a ditadura militar. Já no final do século passado,
outros contextos se afiguram e novas questões são trazidas à cena
literária. Vamos, nesta aula, conhecer os aspectos mais relevantes
desse percurso contemporâneo das literaturas escritas em língua
portuguesa.
2 LITERATURA E ENGAJAMENTO
Unidade 3 . Aula
11
2.1 Contextos conturbados
O ano de 1945 costuma ser lembrado pelo fim da Segunda
Guerra Mundial, com a vitória das forças aliadas diante dos
exércitos liderados pela Alemanha nazista. O triunfo militar
representou muito mais, pois do ponto de vista geopolítico
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Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura
saiba mais
Revolução dos Cravos é o nome
dado ao golpe de estado militar
que derrubou, num só dia, sem
grande resistência das forças leais
ao governo - que cederam perante
a revolta das forças armadas - o
regime político que vigorava em
Portugal desde 1926. O levantamento, também conhecido pelos
portugueses como 25 de Abril, foi
conduzido em 1974 pelos oficiais
intermédios da hierarquia militar
(o MFA), na sua maior parte capitães que tinham participado na
Guerra Colonial. Considera-se, em
termos gerais, que esta revolução
trouxe a liberdade ao povo português (denominando-se “Dia da
Liberdade” o feriado instituído em
Portugal para comemorar a revolução).
Fonte: http://www.enciclopedia.
com.pt/articles.php?article_
id=1094.
você sabia?
À meia noite e vinte minutos do dia
25 de abril “foi dada a senha definitiva [para o início da Revolução
dos Cravos], quando foi transmitida a leitura gravada da primeira
estrofe da canção ‘Grândola Vila
Morena’ de José Afonso, no programa independente Limite transmitido através da Rádio Renascença. A
senha definitiva confirmava o início
simultâneo das operações em todo
o País e comanda o avanço das forças sobre os seus objetivos”.
Fonte: http://www.enciclopedia.
com.pt/articles.php?article_
id=1094.
Procure na internet a letra completa dessa música, bem como informações sobre a vida e obra de José
[Zeca] Afonso, grande nome da
música popular portuguesa contemporânea.
344
consagrou a divisão do mundo em dois blocos, um
em torno dos Estados Unidos e outro sob a influência
da extinta União Soviética. Por conta disso, instalouse um clima permanente de disputa indireta entre
ambos os países, conhecido como Guerra Fria, que
perdurou até o início dos anos de 1990. A devastação
provocada pela guerra desarticulou a economia dos
principais países europeus, enquanto na mesma
proporção fortaleceu todos os setores produtivos
estadunidenses, com seus desdobramentos culturais,
dos quais o cinema e a música funcionaram como
veículos propagadores de uma maneira de vida e de
bens de consumo.
Em Portugal, a ditadura de António de Oliveira
Salazar, iniciada nos anos de 1920, experimentava
diferentes desdobramentos, ora afirmando seu lado
mais truculento, ora sendo confrontada com valores
democráticos, como os que prevaleceram após a
vitória dos Aliados. Entretanto, as forças reacionárias
do governo português foram finalmente derrotadas
na década de 1970, com a Revolução dos Cravos
(em 25 de abril de 1974).
Há muitos estudos sobre esse período, mas
vale destacar que a ditadura salazarista começou a
enfraquecer com a chamada guerra colonial, nomeada
como guerra pela independência nos países africanos
de colonização portuguesa (os PALOP, conforme
já estudamos), iniciada de modo mais sistemático na
década de sessenta. Já em 1956, Amilcar Cabral havia
fundado o Partido Africano de Independência de
Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), cujas ações de
guerrilha começaram em 1961. Em Angola, no mês
de março de 1962, constituiu-se a Frente Nacional
pela Libertação de Angola (FNLA), que mais tarde
convergiu para o Movimento Pela Libertação de
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Modernismos
Angola (MPLA) e, no mesmo ano, em junho, é criada a Frelimo
(Frente de Libertação de Moçambique).
Quando cai a ditadura de Salazar, com a vitória da
Revolução dos Cravos, entre as iniciais medidas do novo
governo português estava o reconhecimento das independências
dos países africanos sob colonização portuguesa, o que ocorreu
entre os anos de 1974 e 1975.
No Brasil, o desfecho da Segunda Guerra decretou
o fim da ditadura de Getúlio Vargas e acelerou o processo de
industrialização que vinha em curso nos anos anteriores. No
âmbito da literatura, a morte de Mário de Andrade foi um
dos símbolos do encerramento das etapas de transformação
introduzidas a partir de 1922, fechamento que ele próprio
já havia anunciado (MARTINS, 1969). Ao chegar à metade
do século XX, as feições do Brasil haviam se modificado
drasticamente e isso também se fazia observar na literatura.
A denúncia das mazelas sociais passa a vigorar como temática
central do chamado “romance de 30”, quando são questionadas,
entre outras problemáticas da vida brasileira,
atenção
Você deve entender que
“a história da libertação
dos povos africanos das
colônias
portuguesas
tem raízes mais profundas do que aquelas que
são manifestas na sua
fase contemporânea: a
luta armada que conduziu à conquista das independências. Ela aparece
em suas diversas formas
de resistência como a
produção
literária
de
protesto e denúncia escrita
pelos
intelectuais
autóctones,
movimentos
diversos
nativistas,
movimentos
profético-
messiânicos,
greves
e
desobediência civil. Os
quatrocentos anos que
marcam a presença colonial
de
Portugal
em
África são marcados pela
luta permanente dos povos africanos”, conforme
nos aleta Carlos Serrano
no site da União dos Es-
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critores Angolanos. Disponível em: http://www.
ueangola.com/index.
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php/criticas-e-ensaios.
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[...] a ascensão e queda dos coronéis [de
que são exemplos] Bangüê e Fogo morto,
de José Lins do Rego; Terras do sem fim e
São Jorge dos Ilhéus, de Jorge Amado; e O
tempo e o vento, de Erico Verissimo. Estes
relatos oscilam entre a saga (exaltação com
traços épicos) e a crítica mais contundente,
seja a ideológica (Jorge Amado), seja a ética (Erico Verissimo). No caso específico de
José Lins do Rego, predomina um tom nostálgico e melancólico diante das ruínas dos
engenhos. [Também são problematizados]
os dramas dos trabalhadores rurais: Seara
vermelha, de Jorge Amado; e Vidas secas, de
Graciliano Ramos. Ambos correspondem
a uma impugnação da realidade latifundiária nordestina; [outro enfoque foi] o confronto entre o Brasil rural e o Brasil urbano,
visível no choque entre Paulo Honório e
Madalena em São Bernardo, de Graciliano
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Ramos. A obra sintetiza o descompasso entre
a mentalidade patriarcal-latifundiária e a urbana modernizada. Também de Graciliano Ramos, Angústia revela a solidão e a destruição
de Luís da Silva, descendente da oligarquia, na
teia complexa das relações citadinas. Por outro
lado, tanto em A bagaceira, de José Américo de
Almeida, romance inaugural do ciclo de 1930,
quanto em O quinze, de Rachel de Queiroz,
os personagens principais, Lúcio e Conceição – embora filhos das velhas elites agrárias
– foram modernizados pela escolarização na
cidade. Por isso, acabam questionando o horror da seca, da miséria e o atraso do latifúndio
(GONZAGA, disponível em: educaterra.terra.com.br/literatura/resumao/resumao_122.
htm).
A seguir, vamos estudar alguns aspectos principais da obra
de dois autores cujas temáticas centrais renovaram as literaturas
de seus países, incutindo na arte literária uma perspectiva de
crítica política e de denúncia: o português Alves Redol, um dos
nomes mais relevantes do Neorrealismo literário português, e a
obra do baiano Jorge Amado, cuja importância ultrapassou em
muito as nossas fronteiras nacionais. Assim, vamos conhecer
as mais relevantes linhas de força das literaturas portuguesa
e brasileira, em meados do século XX, no seu intento de se
configurar com um espaço de luta contra a opressão e a injustiça.
2.2 O Neorrealismo e a obra de Alves Redol
Falar sobre o Neorrealismo português, em termos globais,
de acordo com Carlos Reis, em Textos teóricos do Neo-Realismo
português, “implica a referência a uma dupla problemática: por
um lado, às motivações históricas e socioculturais subjacentes
ao movimento em questão; por outro lado, a uma dinâmica de
inovação literária obviamente própria de um fenômeno artístico
que se apresenta como novo” (1981, p.13).
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Modernismos
Com base na segunda problemática, a dinâmica de
inovação literária, podemos encarar a estética neorrealista como
movimento de ruptura: além de se posicionar contrariamente às
práticas literárias que lhe eram contemporâneas, como é o caso do
Presencismo, ela não deve ser encarada como um prolongamento ou
nova roupagem do Realismo que a antecedeu, pois o Neorrealismo
se forja no embate com as diretrizes dessa escola literária, bem
como as do Naturalismo.
E quais eram, fundamentalmente, essas diretrizes a
que se opunha o Neorrealismo? Eram as que se apoiavam
no humanismo do século XIX, que encarava a evolução da
sociedade como um caminho natural em direção à justiça
social. Não era necessário, nem desejável, nenhum tipo de
interferência revolucionária para a transformação social. Dessa
forma, aos escritores realistas cabia reproduzirem fielmente
a sociedade, da forma mais objetiva e distanciada possível,
numa atitude passivamente reflexiva. Quanto aos naturalistas,
seguidores das noções positivistas que viam no cientificismo
o caminho de todo progresso material e social, tinham suas
produções literárias ancoradas na concepção do determinismo
evolucionista, de caráter fatalista; paradoxalmente, o homem
seria um indivíduo determinado, mas não determinante. Com
relação aos modernistas, tanto do movimento Orpheu (1915)
quanto da Presença (1927), esses tinham preocupações estéticas
voltadas ao intimismo de conotações românticas e psicológicas.
Principalmente no caso do grupo Presencista, contra o qual
mais diretamente se posicionou o movimento neorrealista,
é importante salientarmos que possuía uma “concepção da
atividade intelectual rigorosamente asséptica em relação a
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11
compromissos político-sociais” (REIS, 1981, p. 20).
Justamente em oposição a todas essas posturas estéticopolíticas, fundou-se o Neorrealismo, movimento literário
advindo das concepções do Novo Humanismo, como acabou
sendo designado o socialismo marxista em tempos de ditadura
fascista. Explicita-se, então, aqui, a primeira problemática
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para conhecer
António Alves Redol nasceu em 1911, em Vila
Franca de Xira. Frequentou o Curso Comercial,
que concluiu em 1927 e
no ano seguinte partiu
para Angola, onde ficou
durante três anos. A sua
passagem por Angola não
é muito feliz, mas traz-lhe
experiências que dão uma
outra visão do mundo e
lhe servirão mais tarde
na sua atividade literária. Em 1936, torna-se
colaborador do jornal O
Diabo, para o qual escreve crónicas e contos ribatejanos. Mas Redol viria
a destacar-se principalmente como romancista
e dramaturgo, sendo considerado um dos grandes
expoentes do neorrealismo literário português. O
grande exemplo disso é
o seu primeiro romance
Gaibéus (1939) que nas
palavras do autor “não
pretende ficar na literatura como obra de arte.
Quer ser, antes de tudo,
um documentário humano fixado no Ribatejo.
Depois disso será o que
os outros entenderem”.
Essa preocupação em não
se limitar à ficção e partir da experiência vivida
e documentada será um
traço fundamental da sua
obra. Como romancista
Alves Redol destaca-se
ainda pelas obras Marés
(1941); Avieiros (1943);
Fanga
(1944);
Reinegros (1945); Porto Manso
(1946); Ciclo Port-Whine,
composto de três romances escritos entre 1949 e
1953; A Barca dos Sete
Lemes (1958); Uma Fenda
na Muralha (1959) e Barranco de Cegos (1962), a
sua obra-prima. Alves Redol morreu em Lisboa, em
1969.
Fonte: http://www.citi.
pt/cultura/artes_plasticas/
desenho/alvaro_cunhal/
redol.html
348
do Neorrealismo, já apontada por Carlos Reis (1981):
a conjuntura histórica e sociocultural que subjaz a esse
movimento, inaugurado em 1939 com o romance Gaibéus, de
Alves Redol.
Um dos temas mais caros ao Neorrealismo foi o da
alienação social, entendida como a imposição de toda uma
ordem de poder que impede aos homens o reconhecimento
de sua efetiva condição na realidade em que estão inseridos.
Romper com esse impedimento, revelando as contradições
que sustentam a manutenção da desigualdade social, era uma
das tarefas mais prementes para a arte comprometida como se
definia a neorrealista.
Não se pode perder de vista que o Neorrealismo deu
seus primeiros passos em meio à Guerra Civil Espanhola,
à ascensão do fascismo e à crise mundial que fará eclodir a
II Guerra. Foi diante dessa conjuntura que os intelectuais
polarizados em torno do ideário comunista começaram a
questionar o então quadro artístico e cultural que vigorava
em Portugal, no qual a Presença despontava como proposição
estética mais afirmada, e à qual o Neorrealismo reputava a
negativa proposição de se limitar à arte pela arte. Nesse clima
de polêmica, Alves Redol publicou Gaibéus (1939), mas o
movimento foi muitas vezes criticado por impor um peso
político excessivo na arte. Sobre esse aspecto, anos mais tarde
se pronunciou o autor, reconhecendo alguns excessos como
legítima força de combate da juventude contra as injustiças
sociais de seu tempo:
O que pode suceder em dado momento, quando alguns insistem em traçar limites para a literatura, entendendo que lhes está vedado exprimir, por exemplo, os dramas quotidianos de
um povo, é que outros reajam contra essa limitação, trazendo exactamente ao primeiro plano
as alienações sociais de que é vítima o homem.
Foi o que aconteceu aí por 38-39 com o neorealismo, que quis ser mudança de perspectiva
na literatura e, portanto, uma nova experiên-
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cia para o seu enriquecimento. Como, porém,
esses outros escritores se vangloriavam de sua
posição extrema de arte pela arte, desfigurandoa, a reacção operou-se também por outro excesso, fenómeno natural no jogo das contradições,
principalmente quando vem de jovens que se supõem, e ainda bem, capazes de renovar o mundo, o homem e arte. O neo-realismo foi, assim,
um sadio combate da juventude (REDOL, Prefácio da 6ª edição de Gaibéus, 1965, p. 32 a 36).
O importante é assinalarmos que esse processo de
autorreflexão foi uma constante do movimento que, num
tempo de censura e opressão, reconhecia na arte um canal de
conscientização e resistência. Isso significa que o propósito da
arte, para os neorrealistas, era a crítica social capaz de desalienar
o povo, estabelecendo, assim, a mais intrínseca conciliação da
ética com a estética. Foi o que afirmou em conferência realizada
em 1936, na sua província de Vila Franca de Xira, intitulada
“Arte”: “A arte deve contribuir para o desenvolvimento da
consciência e para melhorar a ordem social” (SALEMA, 1980,
p. 28).
Com essa premissa, mais do que fator de verossimilhança,
a participação da História no mundo do romance neorrealista
implicava a busca pela ampliação do conhecimento histórico. De
tal sorte que procurava garantir à literatura a função de propiciar a
transformação da sociedade.
Para conhecermos um pouco mais a escrita redoliana,
reproduzimos, abaixo, uma passagem de Gaibéus:
O rancho esqueceu as cantigas e só sabe que a alguns passos
dali o almoço magro ferve nas marmitas.
O ceifeiro rebelde pensa que depois do almoço a faina
11
recomeça.
E recomeça mais dura. E vai até o Sol morrer nos montes da
Unidade 3 . Aula
outra margem do Tejo.
No outro dia, ao alvor, pegam de novo na foice. Dia a dia,
todos os dias, a foice pesará mais. Podia servir para brinquedo
de criança ou diadema de noiva - parece prata ao sol quando
a compram pela primeira vez.
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A cada nova hora, porém, a foice tem metamorfoses.
Ora fica leve como pluma, ora carrega como barra de
chumbo.
Para o ceifeiro rebelde não passa de grilheta que o prende
à terra, em cumprimento de pena por males que não fez.
A caverna do peito é nave vazia onde se desdobram
angústias.
leitura recomendada
No artigo de Maria de Fátima Vaz de Medeiros, “O
Neo-realismo
português
e o romance de 30 do
nordeste”,
você
importantes
encontra
abordagens
sobre esse tema, como a
citação do professor Carlos
Reis (em “Evolução literária”, de Textos Teóricos do
Neo-Realismo
Português,
Lisboa, Seara Nova/Editorial Comunicações, 1981,
p. 27): “o romance brasileiro nordestino [...],
por razões culturais e
até afectivas, representou, mais do que qualquer
outro,
o
Vemos, nesse trecho, algumas características da
escrita neorrealista: a dimensão do coletivo, os personagens
que não são nomeados, mas representam um perfil social
(como o “ceifeiro rebelde”), a crítica à situação de extrema
penúria dos trabalhadores. Entretanto, nem todos os textos
neorrealistas foram tão marcadamente dirigidos por uma
perspectiva engajada de forma explícita. O próprio Alves
Redol desenvolveu romances mais densos posteriormente,
povoados de personagens complexos e que, sem abandonar
a crítica social, conseguiam seu intento de forma mais
equilibrada, afirmando a importância artística de suas obras.
Um aspecto importante sobre o Neorrealismo é que
esse movimento travou um diálogo muito próximo com o
chamado “romance de 30” brasileiro, ou seja, os neorrealistas
encontraram uma vertente importante de reflexão estética
nos autores brasileiros também engajados em questionar e
denunciar os problemas sociais de seu país. Dentre esses,
destacamos, a seguir, a obra de Jorge Amado.
modelo
preferido pelos escritores neorrealistas” Além
disso, pode-se reconhecer
2.3 A arte engajada de Jorge Amado
a existência de uma “linguagem da geração [...]
de códigos, quer de natureza estritamente literária
(códigos estilísticos, técnico narrativos, etc.), quer
paraliterários
temáticos
e
(sobretudo
ideológicos)
[...].” (Grifos nossos). Disponível em:
http://docs.paginas.sapo.
pt/literatura_comparada/
medeiros1997.pdf
350
Os romances de Jorge Amado se igualam aos de outros
escritores apontados como responsáveis pela renovação
literária instaurada com o aparecimento da chamada segunda
geração modernista, justificando a inclusão de seu nome
na lista. A linguagem despojada e o estilo de “contador de
histórias como gostava de dizer” (RISÉRIO, 2007) são
apenas fatores que se somam a outros que determinaram
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a receptividade que teve, certamente também influenciando a
decisão de editores estrangeiros.
A observação da tradição romanesca nacional revela que
o autor baiano se inscreve na linha de sucessão iniciada por José
de Alencar e que tem continuadores como Aluísio Azevedo,
Lima Barreto, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, dentre
tantos, pela contribuição para o abrasileiramento da paisagem
literária. Prosseguindo na comparação com seus pares, seu
nome é digno de ser colocado junto ao de Erico Verissimo,
Machado de Assis, João Ubaldo Ribeiro, Josué Montello
e outros que, de maneira diferente, apresentam excelentes
painéis de momentos importantes da vida nacional.
Todos os fatores apontados prestam-se como critérios
para a aferição da relevância de um escritor, na opinião de Marisa
Lajolo (2004), que também se refere à criação de símbolos, item
no qual poucos podem ser equiparados a Jorge Amado. Afinal,
é sua criação uma das figuras femininas mais representativas não
só da literatura, mas de todo um imaginário criativo do país:
Em uma de suas obras mais conhecidas – Gabriela cravo e canela (1958) –, mais uma vez o
leitor encontra uma figura feminina no título
da obra e pivô da narrativa. Como já sucedera em Iracema e Inocência, imagens fortes
de mulher pontilham o romance brasileiro e
se transformam em símbolos, como esta Gabriela que ganhou mundos (LAJOLO, 2004,
p. 103-104).
O parentesco dos romances de Jorge Amdo com
as produções de cultores do gênero pode ser identificado
11
por outros caminhos, como a classe social e o espaço físico
predominantes nas obras. Da mesma forma como na
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Unidade 3 . Aula
comparação pelas particularidades referidas, os ancestrais estão
ligados à origem da forma no Brasil e a momentos marcantes
do seu desenvolvimento. No caso de Tenda dos milagres, as
personagens marginalizadas e o mesmo ambiente urbano
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para conhecer
Jorge
Leal
Amado
de
Faria
(Jorge Amado) nasceu a 10 de
agosto de 1912, na fazenda
Auricídia, no distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul
do Estado da Bahia. Filho do
fazendeiro de cacau João Amado de Faria e de Eulália Leal
Amado. Com um ano de idade,
foi para Ilhéus, onde passou a
infância. Fez os estudos secundários no Colégio Antônio Vieira e no Ginásio Ipiranga, em
Salvador. Neste período, co-
Figura 3.11.1 - Jore Amado.
Fonte: www.jorgeamado.org.br
meçou a trabalhar em jornais
e a participar da vida literária,
sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes. Publicou seu primeiro romance, O país do carnaval, em 1931. Casou-se em 1933, com
Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, Lila. Nesse ano publicou
seu segundo romance, Cacau. Formou-se pela Faculdade Nacional de
Direito, no Rio de Janeiro, em 1935. Militante comunista, foi obrigado a
exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que
fez longa viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se
de Matilde Garcia Rosa. Em 1945, foi eleito membro da Assembleia Nacional Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
tendo sido o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo. Jorge
Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à
liberdade de culto religioso. Nesse mesmo ano, casou-se com Zélia Gattai. Em 1947, ano do nascimento de João Jorge, primeiro filho do casal,
o PCB foi declarado ilegal e seus membros perseguidos e presos. Jorge
Amado teve que se exilar com a família na França, onde ficou até 1950,
quando foi expulso. Em 1949, morreu no Rio de Janeiro sua filha Lila.
Entre 1950 e 1952, viveu em Praga, onde nasceu sua filha Paloma. De
volta ao Brasil, Jorge Amado afastou-se, em 1955, da militância política,
sem, no entanto, deixar os quadros do Partido Comunista. Dedicou-se,
a partir de então, inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de
1961, para a cadeira de número 23, da Academia Brasileira de Letras,
que tem por patrono José de Alencar e por primeiro ocupante Machado
de Assis. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações
para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de
samba em várias partes do Brasil. Seus livros foram traduzidos para 49
idiomas, existindo também exemplares em braile e em formato de audiolivro. Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001.
Foi cremado conforme seu desejo, e suas cinzas foram enterradas no
jardim de sua residência na Rua Alagoinhas, no dia em que completaria
89 anos. A obra de Jorge Amado mereceu diversos prêmios nacionais e
internacionais. [...] Jorge Amado orgulhava-se do título de Obá, posto
civil que exercia no Ilê Axé Opô Afonjá, na Bahia.
Fonte: http://www.jorgeamado.org.br
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ocupado por elas também estão presentes em Memórias de um
sargento de milícias e O cortiço, por exemplo, mas quando se
abre a perspectiva para problemas sociais num sentido amplo, a
lista aumenta consideravelmente.
O tratamento literário de assuntos que remetem a
questões do cotidiano, a segmentos da população menos
favorecidos é recorrente em sua obra:
Seu herói é mesmo o povo e disso o romancista faz uso constante e credo sincero, profundo e autêntico, conquanto se alternem
maneirismos ou contrafações hostis. O romance amadoano atinge uma dupla acepção
de ressonância coletiva, (disparada sem qualquer sutileza) no ir e vir das repercussões entre a criação e a leitura (ARAÚJO, 2008, p.
83).
Manuel Antônio de Almeida e Aluísio Azevedo
lidam apropriadamente com a temática social, entretanto
suas personagens são tipos e as escolhas lexicais que fizeram
passam longe da magnificência, sem que isso os diminua ou
seja fundamental para uma avaliação favorável dos citados
romances. A exemplos dos dois prosadores do passado, são
outros os pontos de interesse nos escritos de Jorge Amado:
11
Há que distinguir três espécies de romancistas: o criador de tipos; o criador de linguagem
e o que, ao gerar tipos, gera a linguagem. Ora,
Jorge é um dos mais prodigiosos criadores de
tipos da nossa literatura, e o seu estilo serve,
propositadamente, a esse desígnio (NEJAR,
2007, p. 297).
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Por tudo isso, Jorge Amado encontra-se entre os mais
importantes autores brasileiros de todos os tempos e seus
livros ultrapassaram as nossas fronteiras, sendo justamente
reconhecido como um dos autores brasileiros mais traduzidos
no mundo.
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para conhecer
Faça
um
passeio
virtu-
al pela Fundação Casa de
Jorge Amado, onde você
encontra peças do acervo do autor, exposições e
outras relevantes informações sobre a vida e a obra
de Jorge Amado. Disponível em:
http://www.jorgeamado.
dreamhosters.com/?page_
É importante sabermos que, do mesmo modo como
o Neorrealismo português bebeu na fonte da literatura
brasileira de engajamento social, a obra de autores como
Jorge Amado também foram uma referência muito forte
nos países africanos de língua portuguesa. Reproduzimos,
a seguir, trechos de uma bonita palestra do escritor Mia
Couto, apresentada em São Paulo, em 2008, por ocasião do
relançamento de livros de Jorge Amado, em que esse autor
moçambicano fala sobre a profunda impressão dos romances
do escritor baiano na sua formação e, por extensão, na
formação de muitos moçambicanos:
id=75
Eu venho de muito longe e trago aquilo
que eu acredito ser uma mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de
Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné
Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na génese
da literatura dos países africanos que falam
português.
[...] Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros
de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram
um impacto extraordinário no nosso imaginário colectivo. É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele
chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego,
Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Raquel de
Queiroz, Drummond de Andrade, João
Cabral Melo e Neto e tantos, tantos outros.
[...] Neste breve depoimento eu gostaria de viajar em redor da seguinte interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por
que esta adesão imediata e duradoura?
[...] É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente na qualidade do
texto de escritor baiano. [...] Jorge Amado
soube tratar a literatura na dose certa, e
soube permanecer, para além do texto, um
exímio contador de histórias e um notável
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criador de personagens.
[...] Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse
tom de conversa íntima, uma conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador
da Bahia e se estende para além do Atlântico.
Nesse narrar fluído e espreguiçado, Jorge vai
desfiando prosa e os seus personagens saltam
da página para a nossa vida quotidiana.
[...] Esta familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos
nossos países. Os seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos
nomes, gente com as nossas raças passeavam
pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam
os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o
cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No
fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós
mesmos.
[...] Jorge não escrevia livros, ele escrevia um
país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a África. Havia, pois, uma outra nação
que era longínqua mas não nos era exterior.
E nós precisávamos desse Brasil como quem
carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e
mistificado, mas era um espaço mágico onde
nos renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade.
Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil
- tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava
essa margem que nos faltava para sermos rio.
Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a explicar porque Jorge é
tão Amado nos países africanos. Mas existem
outros motivos, talvez mais circunstanciais.
Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado eram objecto de interdição. Livrarias foram fechadas e
editores foram perseguidos por divulgarem
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essas obras. O encontro com o nosso irmão
brasileiro surgia, pois, com épico sabor da
afronta e da clandestinidade. A circunstância
de partilharmos os mesmos subterrâneos da
liberdade também contribuiu para a mística
da escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a 14 anos de
prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das grades
uma carta em que pedia o seguinte: “Enviem
o meu manuscrito ao Jorge Amado para ver
se ele consegue publicar lá, no Brasil...” Na
realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como
uma bandeira.
[...] E há, ainda, uma outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro lado
do mundo, se revelava a possibilidade de um
outro lado da nossa língua. Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de
um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se
dar o encontro com o português brasileiro,
nós falávamos uma língua que não nos falava.
E ter uma língua assim, apenas por metade, é
um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num
outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.
[...] Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi
isso que fez Amado ser nosso, africano, e nos
fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar,
por ter convertido a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge
(COUTO, 2009, p. 61-67).
O sonho de que fala Mia Couto, nesse relato tão
emocionado e emocionante, continuou e continua a ecoar, de
diferentes modos, em nossas literaturas. No tópico seguinte,
vamos estudar as transformações que marcaram o final do
século XX e o início do presente século e como essas mudanças
repercutem nas atuais literaturas de língua portuguesa.
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3 NOVOS CENÁRIOS, NOVOS ATORES
Na passagem do final do século XX ao século XXI,
muitas são as mudanças mundiais. Como síntese dessas
mudanças, podemos destacar:
[...] as grandes movimentações e transformações históricas (de que a queda do Muro de
Berlim se torna o acontecimento mítico); políticas (com Gorbachov dando início à queda
do império soviético e do socialismo através
da Glasnost, e os EUA tornando-se a nação hegemônica e, como tal, impondo-se ao
mundo); geográficas (com as movimentações
de fronteiras); econômicas (com a abertura
da China ao capital estrangeiro e com a queda
das barreiras ao leste europeu) [...] E, nisso
tudo, o grande avanço tecnológico, sobretudo no que diz respeito às comunicações,
inaugura a mundialização [globalização] [...],
a beneficiar o avanço neoliberal, aprofundando as valas entre países ricos e pobres (TUTIKIAN, 2008, p. 42).
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Nesse novo cenário, prevalece o sentimento de certa
instabilidade de sentidos para a vida social, com o processo
de fragmentação do sujeito e a imposição de uma lógica
individualista e de consumo. Contudo, não cessa a necessidade
humana de ficcionalizar esses novos tempos e espaços,
questionando, de maneiras diversas e por meio das mais
variadas expressões artístico-culturais, o presente. Gêneros se
fundem, linguagens se entrecruzam e, do mundo real ao mundo
virtual, a literatura continua sendo um espaço importante para
conhecermos e refletirmos sobre a nossa vida.
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3.1 Perspectivas contemporâneas na cena
brasileira
No Brasil, os anos de 1970 ficaram marcados por uma
literatura de combate ao regime militar, de que são exemplo,
entre outros, Mês de cães danados (Moacyr Scliar), Em câmara
lenta (Renato Tapajós), Cabeça de papel (Paulo Francis), Galvez,
o Imperador do Acre (Márcio Souza), Quatro-Olhos (Renato
Pompeu), Essa terra (Antonio Torres), Incidente em Antares
(Erico Verissimo), bem como a obra de Antônio Callado e
Loyola Brandão.
Os anos de 1980 iniciam com a tendência do
autobiografismo relacionado com a ditadura, como é o caso de
Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e outros. Isso abre caminho
para derivações, como fizeram Eliane Maciel e Marcelo Rubens
Paiva. Em meados dessa década, também se assistiu a um retorno
de temas tradicionais sobre a fundação da nação, que se verifica
em obras como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro.
A década de 1990 prenunciou aquilo que tem sido o século
XXI: a convivência de tendências que adotam técnicas, estilos e
formas de expressão diversas. Para Schollhammer (2010), nesse
convívio destaca-se a permanência de elementos de décadas
anteriores, como a retomada do conto, forma comum nos anos
de 1970, que recobram força a partir de figuras como Dalton
Trevisan e Rubem Fonseca, expandindo-se na escrita de autores
como Roberto Drummond e mais recentemente Patrícia Melo.
Outros escritores em destaque na década final do
século passado são Luiz Ruffato e Amilcar Betega Barbosa, que
combinam os temas da realidade sem abrir mão do compromisso
com a inovação das formas de expressão e das técnicas de escrita.
Fenômeno recente é a literatura marginal, caracterizada
por estabelecer o contato com a realidade brasileira sob
perspectiva dos excluídos, marginalizados. Um marco é Estação
Carandiru (2001), de Dráuzio Varela, sucedido por outros,
como Cidade de Deus, de Paulo Lins.
A literatura de caráter autobiográfico é uma forma de
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expressão, por vezes nos limites extremos, como em O filho eterno
(2007), de Cristovão Tezza. Há outros, porém, em que os sinais
da pessoalidade são menos visíveis, como em Berkely em Belagio
(2002) e Lorde (2004) de João Gilberto Noll.
A metaficção reapareceu nos anos recentes e é do interesse
de autores como Bernardo Carvalho com Nove noites (2002) e O
sol se põe em São Paulo (2007); Adriana Lisboa, com Sinfonia em
branco (2001) e Um beijo de Colombina (2003); Daniel Galera
com Mãos de cavalo (2006) e A cordilheira (2008).
Outro nome importante é o de Milton Hatoum, que
passaremos a conhecer mais detidamente, como um dos
exemplos de temática e de estratégias narrativas da literatura
brasileira contemporânea.
Milton Hatoum, escritor e professor de Literatura, filho
de imigrantes libaneses, nascido em Manaus, em 1952, adota,
como cenário significativo em suas obras, a cidade de seu
nascimento. Nesse espaço, seus romances apresentam variadas
temporalidades que, em diálogo com o presente, nos permitem
(re)conhecer diferentes perspectivas da vida brasileira do
passado e do presente.
Em seu primeiro romance, de 1989, Relato de um certo
Oriente, ganha destaque o trabalho com a memória, com as
tensões da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares,
sentimentos variados das personagens em relação ao mundo. A
casa de Emilie, matriarca da família central da trama narrativa,
de origem libanesa, é um microcosmo em que essas tensões
aparecem, a partir de uma composição do tecido narrativo em
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que se complementam “versões” de diferentes vozes.
Dois Irmãos (2000), segundo romance do autor, é outro
drama familiar, em que a história apresenta como se faz e se
desfaz a casa de Halim e Zana, também um casal de libaneses,
que tem três filhos: Rania e os gêmeos Yaqub e Omar, os
quais nunca se entendem e travam constantes disputas, numa
inferência direta ao mito bíblico de Caim e Abel, somando-
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Essas considerações sobre a obra de Milton Hatoum, aqui sintetizadas,
encontram-se no artigo
“Fronteiras e(m) representação na obra de Milton Hatoum”, de RODRIGUES, I.; NIEDERAUER,
S., publicado na revista
Língua e Literatura, URI,
F. Westphalen, v. 13., n.
20, ago/2011. Disponível em:
http://www.fw.uri.br/
publicacoes/linguaeliteratura/artigos/art20_9.
pdf.
se a babélica situação de vozes que se desencontram. Mais
do que desencontros, entretanto, a narrativa é marcada pela
problematização do deslocamento enquanto situação daquele
que vive entre mundos diferentes, por vezes próximos, por
vezes distantes, e sempre provisórios.
No romance Cinzas do Norte (2005), Milton
Hatoum estabelece o entrecruzamento da História com a
ficção partindo do ponto de chegada do romance anterior,
ou seja, por intermédio das lembranças, principalmente,
de dois personagens narradores, Lavo e Ranulfo, realizase o resgate crítico da época da ditadura militar, de 1964,
até a década de 1980, no Brasil. Esse resgate denuncia os
sofrimentos e as tragédias ocorridas durante aquele período
tortuoso, duramente contestado pelo personagem Mundo,
que não aceita o cerceamento da liberdade imposto pelo
regime ditatorial, refletido na figura de seu pai, Jano. Como
contraponto a Mundo, o comportamento de Lavo é o de
um indivíduo conformado com o sistema. No quadro que
compõem, os personagens estabelecem o testemunho de
uma época, em que procurar um norte resulta no encontro de
cinzas, permanecendo o tema do deslocamento, como aponta
a epígrafe: “Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares” [João
Guimarães Rosa].
Em Órfãos do Eldorado (2008), o autor retoma os
principais conteúdos da sua ficção, em uma estratégia discursiva
na qual enunciação e enunciado se entrelaçam e o Eldorado
se revela e se esconde nas teias possíveis da interpretação.
No posfácio, o autor (vamos chamá-lo assim, embora se
possa entender que essa voz autoral também faz parte do
jogo narrativo) relata que o livro foi escrito a partir de suas
memórias sobre as histórias contadas por seu avô, seguindose os agradecimentos, no qual explica que, além desses
relatos, também foram realizadas pesquisas no processo de
construção ficcional. Nesses percursos da enunciação, (des)
velam-se as malhas do enunciado que dão substância ao mito
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– narrativa que vive na fronteira da realidade e da fabulação, do
sono e da vigília. Entretanto, na novela de Hatoum, a miragem
de um não lugar aponta para a impossibilidade da utopia e nos
faz olhar criticamente para o presente.
3.2 As literaturas dos PALOP: problematizações da
memória e da história
A problematização da memória e de questões identitárias
também está presente nas literaturas dos Países Africanos
de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). A literatura, nesses
países, como sabemos, foi espaço fundamental de luta contra
a opressão e a dominação colonial, mas posteriormente às
independências, se compõem de um panorama multifacetado de
proposições temáticas e de linguagem.
Apresentamos, a seguir, um panorama sintético sobre
alguns dos principais nomes e composições literárias dos
PALOP de meados do século passado até a atualidade.
Começaremos pela literatura angolana que teve como
destaque, entre outras, a obra de Agostinho Neto: Sagrada Esperança
é uma “espécie de texto épico angolano social, cultural e político,
sobre a exploração econômica, a repressão policial e política, a miséria
e o analfabetismo [...], do amor e da esperança, do exílio e da nostalgia,
da revolta e revolução” (PORTUGAL, 1999, p. 63).
No período imediato à Independência, destacam-se,
entre outros, Pepetela e Luandino Vieira. Sobre o primeiro,
devemos saber que
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Pepetela [é o], nome artístico de Artur Carlos
Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, [considerado] um dos maiores escritores angolanos, ligado a uma vertente
ficcional que assume, por vezes deliberadamente, a função social da literatura. Seus vários romances registram a intenção de permanecer junto daqueles que ficaram do lado de
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fora na distribuição do “mel”, metáfora com
que o autor, implícito no romance Jayme Bunda, agente secreto (PEPETELA, 2001, p. 85),
alude à perversa divisão de renda e de direitos
que o panorama do pós-independência angolano acentua. O escritor publicou três romances
no período anterior à independência: As aventuras de Ngunga (1977), Muana Puó (1978) e
Mayombe (1980). Os demais livros foram publicados após a independência, e neles pode ser
identificada uma revisão melancólica da utopia
revolucionária, como em A geração da utopia
(1992), mas também se acentua a visão irônica
sobre os desmandos da classe que assumiu os
destinos da nova nação. O romance A gloriosa
família (1997) faz uma incursão pela história
de Angola e retoma dados importantes relativos aos interesses de diferentes poderes, expondo as armações necessárias à sustentação
dos negócios gerenciados por aventureiros de
várias nacionalidades durante o longo e lucrativo período do comércio de escravos (FONSECA; MOREIRA, disponível em:http://
www.ich.pucminas.br/posletras/
Nazareth_panorama.pdf.).
.
Outros nomes importantes são o de Ruy Duarte de
Carvalho, Ana Paula Tavares, Manuel Rui, Agualusa, entre
tantos autores e autoras de reconhecida importância no cenário
atual das literaturas em língua portuguesa.
Em Moçambique, “Craveirinha é, sem dúvida, o ‘poeta
nacional’ por excelência, com tudo o que isso significa na
consolidação e na referência de um sistema literário nacional
[...]” (PORTUGAL, 1999, p. 94). Na prosa, destacou-se, em
1964, Eduardo Honwana com Nós matámos o cão tinhoso, e
que vem desenvolvendo uma importante obra narrativa sobre
os caminhos de seu país. A partir de 1975, podemos falar da
consolidação dessa literatura, destacando o poeta Rui Nogar,
os romancistas Ungulani Ba Ka Khosa, Nelson Saúte, Paulina
Chiziane e o já citado Mia Couto, também poeta, que estreou
em 1986, com Vozes anoitecidas e é considerado “um dos autores
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mais inovadores da língua portuguesa, com uma obra ficcional
cada vez mais consolidada (PORTUGAL, 1999, p. 95).
Em Cabo Verde, foi na década de 1970 que se consolidou
a sua literatura, com nomes como João Vário, Timóteo Tio
Tiofe, Corsino Fortes e Teixeira de Sousa. Autores importantes
que se destacam hoje, mas que vêm desenvolvendo sua obra
desde o momento pós-independência, são Germano Almeida e
Arménio Vieira, entre outros.
Sobre a atual literatura de São Tomé e Príncipe e GuinéBissau, citamos a resposta da professora Inocência Mata, em
uma entrevista à Revista Crioula (n. 5, de maio de 2009), quando
foi questionada se já estão consolidados os sistemas literários
desses países na atualidade:
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Claro. A questão é que nós continuamos a
pensar a África a partir do olhar da ex-metrópole. Estudar a África pelo prisma do excolonizador é um crime intelectual. O fato
de um escritor não ser publicado em Portugal
não quer dizer que ele não exista. [...] Existe
pois, nestes países, um sistema consolidado
com livros que estão publicados. [...] O que
nós vemos, [entretanto] é que os escritores
que não são publicados em Portugal não são
estudados. Salvo raríssimas exceções. [...] é
verdade que Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe não têm a produção que tem uma Angola.
[Mas] é uma questão, enfim, de números. Em
São Tomé são 160 mil e os angolanos são 14
milhões… No entanto, acho o seguinte: nós
vivemos no mundo, dizem, das autoestradas
da informação, da internet e as pessoas devem
procurar saber, mesmo que não tenham acesso, o que saiu. A imprensa desses países faz-se
também com jornais digitais. Esta informação
está lá. A informação de que foi publicado um
livro de Malé Madeçu, Retalhos do massacre de
Batepá, a informação de que foi publicado um
livro em Cabo Verde. [...] O que me incomoda
muitas vezes é que nem sabem que existe. Por
exemplo: Aíto Bonfim, escritor são-tomense,
que não é um escritor tão jovem assim, tem 55
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ou 53 anos. Muitos não o conhecem, mas é um
escritor maravilhoso. É dramaturgo, tem três
peças de teatro, tem dois livros de poesia, um
romance. Um escritor, na minha perspectiva,
um dos melhores. Pois não o conhecem. Agora, é realmente a literatura são-tomense uma
literatura consolidada, é pena que não tenha a
condição de uma Angola, que é uma das maiores produtoras.
(Disponível
em:
http://www.fflch.usp.
br/dlcv/revistas/crioula/edicao/05/
Entrevista%20-20Inocencia%20Mata.pdf)
Portanto, seguindo as palavras de Inocência Mata, nos
cabe conhecer cada vez mais essas literaturas que, abarcando
uma realidade local, apontam para questões que nos dizem
respeito, numa arquitetura renovadora de linguagens e de
sentidos.
3.3 A literatura portuguesa entre a retomada da
história e novos rumos
Nas décadas de 1950 e de 1960, ganha terreno, após a
Segunda Guerra e todos os seus tristes desdobramentos, uma
perspectiva mais centrada no indivíduo, ainda que sem abrir
mão de uma dimensão social crítica. A literatura portuguesa,
com Vergílio Ferreira, sobretudo, conhece uma expressão
artística centrada em traços do Existencialismo e o Neorrelismo
vai perdendo espaço, ou por outra, vai se reconfigurando
em outras modalidades de representação questionadora da
realidade social.
Na poesia, nomes importantes que chegaram à atualidade,
são os de Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugênio de
Andrade e António Ramos Rosa, Herberto Helder. Na ficção
narrativa, são importantes as obras de Augustina Bessa-Luís,
Maria Judite de Carvalho e, mais recentemente, Teolinda Gersão
e Lidia Jorge. Destacam-se, também, na criação de romances,
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José Cardoso Pires, António Lobo Antunes e o prêmio Nobel
em língua portuguesa, José Saramago. Em comum, esses autores
trataram de estabelecer, de modos muito diversos e não raro
divergentes, um diálogo com a história de Portugal, de cunho
mais alegórico ou mais “realista”, procurando problematizar
versões do chamado discurso oficial. Ou seja, esses escritores
e escritoras desenvolveram narrativas que com ironia, humor
ou de forma muito incisivamente crítica apontam novas
perspectivas para se pensar Portugal.
Na verdade, é sempre muito difícil fazermos uma síntese
de qualquer expressão literária de um país ou de uma determinada
cultura ou sociedade. Essa advertência encontramos no site
sobre a Literatura Portuguesa Contemporânea do Instituto
Camões, que reproduzimos abaixo:
para conhecer
Sobre a obra de José
Saramago, sua vida
e importância de sua
produção
literária,
você encontra muitas
informações
tantes
na
imporFundação
José Saramago, acessível pelo site: http://
josesaramago.blogs.
sapo.pt/95699.html.
Visite!
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Muitos outros romancistas e poetas enriquecem a nossa literatura e tornam difícil a sua
síntese. Os contemporâneos são isso mesmo:
o excesso em relação ao olhar do crítico, o
transbordar da vida e da sua continuidade
inesgotável em relação ao crivo do historiador. Fiquemos, ainda, pois, com poetas como
Egito Gonçalves, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura, António Franco Alexandre, João
Miguel Fernandes Jorge, Paulo Teixeira - e o
mesmo diremos dos escritores de ficção: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Hélia
Correia, Alexandre Pinheiro Torres, Eduarda Dionísio e tantos outros. São todos estes,
aliás, aqueles de que não chegámos a falar e
os que nem sequer nomeámos, que dão sentido [e nos fazem sentir] o quanto a literatura é viva e desmedida, porque ela é antes
de mais leitura e tempo, e não fixidez, e não
cabe afinal em nenhuma página (Disponível
em: http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/contemporaneos.htm).
Para finalizarmos, a certeza de que esse nosso percurso
não se completa, pois, como parte da magia e da dimensão
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ética e crítica de toda a arte, as literaturas de língua portuguesa
continuam inventando mundos, elaborando poemas,
apresentando vozes e sentidos de nossa existência.
Nesse incessante fazer, nos cabe, como leitores,
mantermos acesa a nossa curiosidade por conhecer outros
lugares e tempos e por viver outras vidas que nos são oferecidas
pela criação literária – assim, quem sabe, conseguiremos atingir
melhor esse infindável intento que é o de conhecermos melhor
a nós mesmos. É o que lemos, de maneira tão bela e instigante,
no poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar:
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte será arte?
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ATIVIDADES
ATIVIDADES
1. Em A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge
Amado, (disponível em: http://veja.abril.com.br/150801/
quincas.html), encontramos uma dimensão crítica em
relação à sociedade que é retratada na narrativa? Explique,
elaborando uma síntese desse texto, no qual seja possível
reconhecer os principais aspectos da obra de Jorge Amado.
2. Para responder a esta questão, você deverá realizar a leitura
de três textos: do excerto do conto “As águas do tempo”,
de Mia Couto (abaixo), do conto “A terceira margem do
rio”, de Guimarães Rosa (disponível em: http://www.
releituras.com/guimarosa_margem.asp) e do artigo “‘O
mundo misturado’ de Guimarães Rosa e de Mia Couto”,
de Vima Lia Martin, no qual a autora afirma: “Nos últimos
anos, as obras de Guimarães Rosa e de Mia Couto têm
sido aproximadas em vários trabalhos acadêmicos. O
próprio autor moçambicano já declarou inúmeras vezes
que há convergências significativas entre seus textos e
os do escritor mineiro”. Após a leitura das narrativas
literárias, explique, com exemplos de passagens dos
textos, a seguinte afirmativa da professora Martin
(2010, disponível em: http://setorlitafrica.letras.ufrj.
br/mulemba/artigo.php?art=artigo_3_6.php):
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Se ‘o sertão de Rosa é a própria travessia’, a
savana de Mia Couto também o é. Isso significa que os seus textos, elaborados por meio
de processos composicionais que misturam,
em níveis diferenciados, aportes culturais de
matriz oral e aportes culturais de matriz letrada, se configuram como desafios para os
leitores que são impelidos a encontrar formas
próprias de reflexão sobre a realidade.
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NAS ÁGUAS DO TEMPO – Mia Couto
Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado
em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente
raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava,
onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco
desabandonado.
- Mas vocês vão aonde?
Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes,
nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam
por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
- Voltamos antes de um agorinha, respondia.
Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era.
Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era
que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me
segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como
me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era
ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me
admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô
era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela
novidade de viver.
Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater
na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada.
Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados
e recolhia uma aguinha com sua mão em concha, E eu lhe
imitava.
- Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário
ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar
os espíritos que fluem.
Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso
pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas
criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava
de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre
água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas
nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos.
Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave
embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens.
Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas
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da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada.
Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecia-mos
perfeitos.
De repente, meu avô se erguia no concho. Com o
balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado,
acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão.
A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por
pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas
o avô acenava seu pano.
- Você não vê lá, na margem? por trás do cacimbo?
Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
- Não é lá. É lááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os receáveis
aléns, onde o horizonte se perde.
Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia,
encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem
companhia de palavra.
Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito
me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos
para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se
zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos.
Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a
brincadeira:
- Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda
ganhávamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite,
feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós
éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha.
Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava.
Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o
tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós,
miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos
o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na
margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem:
o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro
homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que
meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os
pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra nãofirme.
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- Nunca! Nunca faça isso!
O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira
a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que
estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo.
Mas ele ripostou:
- Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir
daqui, são eternidades.
Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o
fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão
para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei
nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O
velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era
maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou
e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos
assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De
repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a
agitá-lo sobre a cabeça.
- Cumprimenta também, você!
Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao
avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável:
subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O
remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria.
Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio,
dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o
velho me pediu:
- Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém,
ouviu?
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões.
Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca.
Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós
temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para
ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos
estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os
outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim
lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos
para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser
visitado pelos panos.
- Me entende?
Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou
uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou
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a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O
avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão
apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém.
Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos
pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
- Fique aqui!
E saltou para a margem, me roubando o peito no
susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente
ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou
balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar.
Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem.
Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem
da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de
um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme
brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os
flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi
então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o
pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô
na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo,
mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do
meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente,
tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi o vermelho do pano
dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se
neblinaram até que se poentaram as visões.
Enquanto remava um demorado regresso, me vinham
à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o
tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu
acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca
de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe
ensinando vislumbrar os brancos panos da out
In: Estórias abenssonhadas. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1996.
Unidade 3 . Aula
3. Leia O conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago
(disponível em: http://www.releituras.com/jsaramago_
conto.asp) e responda:
a) Qual é o tema (assunto) central desse conto?
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b) Apresente uma síntese sobre seus personagens principais
(quem são, como são apresentados).
c) Podemos dizer que, nessa narrativa, José Saramago
desenvolve uma reflexão em que revisita o passado de
Portugal (questionando a ideia de grandeza do império
português) e, ao mesmo tempo, problematiza questões de
nossa vivência existencial (quem somos, quais são nossos
sonhos etc.)? Explique, elaborando um comentário
sintético sobre as ideias mais importantes desse conto
saramaguiano. [Uma dica: caso tenha problemas com o
modo como o autor desenvolve o texto, em termos do
estilo que emprega, faça uma leitura em voz alta. Verá
então, que as falas trocam de personagem sempre que
encontramos uma letra maiúscula antecedida por vírgula
– aí fica fácil!].
4. Com base no fragmento abaixo, do artigo de Rita Chaves
“O Brasil na cena literária dos países africanos de língua
portuguesa” (disponível em:
bibliotecavirtual.clacso.
org.ar/ar/libros/aladaa/chaves.rtfSimilares), elabore um
texto sintético sobre a importância de conhecermos e
colocarmos em diálogo as literaturas de língua portuguesa
(complemente, desse modo, a visão da autora, incluindo a
Literatura Portuguesa nessa perspectiva):
[...] felizmente, inclusive para nossa autoestima,
contrariando a perspectiva da metrópole, dentre os vários “brasis” que lá iam desembarcando,
os escritores africanos souberam catalisar numa
chave progressista as imagens que convidavam
à mudança. E o seu impulso para a transformação permite, inclusive, compreender como
a nossa realidade - povoada pelas injustiças e pelos preconceitos que conhecemos – acabou por
se converter num vetor de mobilização para a
consecução de um projeto conduzido pelo sentido da liberdade e outras utopias.
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R
RE
E
RESUMINDO
Estudamos, nesta aula, os principais aspectos das
literaturas de língua portuguesa no decorrer do século XX
ao século XXI, de maneira a entendermos as mais relevantes
relações entre os contextos e os textos. Desse modo,
conhecemos as referências mais importantes de obras e
autores que marcaram e marcam a nossa contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
RE
EFE
F R
ARAÚJO, Jorge de Souza. Floração de imaginários:
o romance baiano no século 20. Itabuna/Ilhéus: Via
Litterarum, 2008.
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
FONSECA, M. N. S.; MOREIRA, T. T. Panorama das
literaturas africanas de língua portuguesa. Disponível
em:
http://www.ich.pucminas.br/posletras/Nazareth_
panorama.pdf.
11
LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do
mundo. 14 ed. São Paulo: Ática, 2004.
Unidade 3 . Aula
LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA.
Instituto Camões. Disponível em: http://cvc.institutocamoes.pt/literatura/contemporaneos.htm.
MARTINS, Wilson. O Modernismo. São Paulo: Cultrix,
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1969.
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PORTUGAL, Francisco Salinas. Entre Próspero e Caliban:
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1999.
REIS, Carlos. Textos teóricos do Neo-Realismo português.
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RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros.
São Paulo: Editora 34, 2007.
SALEMA, Álvaro. Alves Redol – a obra e o homem. Lisboa:
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SCHOLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea.
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TUTIKIAN, Jane. Por uma Pasárgada caboverdeana. Letras de
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Suas anotações
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