Letras Vernáculas . Módulo 4 . Volume 4 drerit libero aliquam. Nulla facilisis arcu quis mi sodales tempor. Suspendisse vehicu sa id blandit rutrum, lorem orci dictum ligula, eget fermentum mauris arcu placerat erat. In a urna nisi. Nulla pretium cursus massa, non dapibus libero elementum non. Etiam rhonc purus. Integer ac lectus velit, mattis cursus elit. Sed eget magna metus, non auctor lore m sociis natoque penatibus et magnis dis parturient montes, nascetur ridiculus mus. Null gnissim tellus. In nec nibh eros, sed fermentum nisl. Cras id sapien a magna venenatis matt am accumsan sem at eros malesuada pharetra. In ac nulla diam. Morbi ultrices tempor maur tpat aliquet ligula vehicula in. Maecenas et erat in nunc lobortis congue. d posuere, odio at cursus hendrerit, sem lorem placerat magna, quis varius velit arcu sed nu nec in lorem justo. Nulla eget dui nulla. Nulla ultricies, risus vitae laoreet mattis, felis an modo lectus, nec convallis neque quam ac sapien. Proin lectus ipsum, consequat quis lacin cus, elementum ac magna. Sed non auctor nisi. Integer in lorem lectus, laoreet consectetur el quam malesuada libero eu turpis mattis sit amet lacinia velit blandit. Nulla eu accumsan vel am tincidunt tortor neque. Donec tincidunt blandit mauris, eu rhoncus sem adipiscing vamus id eros a orci sodales vulputate. Nulla pharetra viverra sapien elementum sodales. N la magna, fringilla ac fringilla in, blandit ut sapien. vamus varius sem vel enim tempus quis aliquam quam gravida. Curabitur nibh diam, adip g vel luctus nec, fringilla id magna. Donec in felis massa, a venenatis lorem. Aliquam tinc convallis congue. Quisque sit amet orci et elit sodales semper. Aliquam ut leo ut turp drerit tincidunt et eget sapien. Donec porttitor massa nec metus sodales sodales. Donec uam ante. Quisque laoreet, libero ut rhoncus ultricies, eros tortor sodales augue, eget hendre magna eget risus. Phasellus pellentesque mi ac ante sodales at cursus sapien aliquet. Ph I LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA HISTÓRIA, SOCIEDADE E CULTURA Inara de Oliveira Rodrigues Paulo Roberto Alves dos Santos Ilhéus, 2012 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 1 25/07/2012 14:07:52 Universidade Estadual de Santa Cruz Reitora Profª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro Vice-reitor Prof. Evandro Sena Freire Pró-reitor de Graduação Prof. Elias Lins Guimarães Diretor do Departamento de Letras e Artes Prof. Samuel Leandro Oliveira de Mattos Ministério da Educação LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 3 25/07/2012 14:07:54 Letras Vernáculas | Módulo 4 | Volume 4 . Literatura de Língua Portuguesa História, Sociedade e Cultura 1ª edição | Junlo de 2012 | 462 exemplares Copyright by EAD-UAB/UESC Todos os direitos reservados à EAD-UAB/UESC Obra desenvolvida para os cursos de Educação a Distância da Universidade Estadual de Santa Cruz UESC (Ilhéus-BA) Campus Soane Nazaré de Andrade - Rodovia IlhéusItabuna, Km 16 - CEP 45662-000 - Ilhéus-Bahia. www.nead.uesc.br | [email protected] | (73) 3680.5458 Projeto Gráfico e Diagramação Jamile Azevedo de Mattos Chagouri Ocké João Luiz Cardeal Craveiro Capa Sheylla Tomás Silva Impressão e acabamento JM Gráfica e Editora Ficha Catalográfica R696 Rodrigues, Inara de Oliveira. Literaturas de língua portuguesa : história, sociedade e cultura / Inara de Oliveira Rodrigues, Paulo Roberto Alves dos Santos. – Ilhéus, BA: Editus, 2012. 374p. : il. (Letras - módulo 4 – volume 4 – EAD) ISBN: 978-85-7455-283-5 1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura brasileira. 3. Literatura portuguesa. 4. Literatura africana. 5. Literatura e Sociedades. 6. Língua portuguesa. I. Santos, Paulo Roberto Alves dos. II. Título. III. Série. CDD 869.09 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 4 25/07/2012 14:07:56 EAD . UAB|UESC Coordenação UAB – UESC Profª. Drª. Maridalva de Souza Penteado Coordenação Adjunta UAB – UESC Profª. Drª. Marta Magda Dornelles Coordenação do Curso de Letras Vernáculas (EAD) Profª. Ma. Eliuse Sousa Silva Elaboração de Conteúdo Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos Instrucional Design Profª. Ma. Marileide dos Santos de Oliveira Profª. Ma. Cibele Cristina Barbosa Costa Profª. Ma. Cláudia Celeste Lima Costa Menezes Revisão Prof. Me. Roberto Santos de Carvalho Coordenação Fluxo Editorial Me. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 5 25/07/2012 14:07:56 PARA ORIENTAR SEUS ESTUDOS PARA CONHECER Aqui você será apresentado a autores e fontes de pesquisa a fim de melhor conhecê-los. SAIBA MAIS Aqui você terá acesso a informações que complementam seus estudos a respeito do tema abordado. São apresentados trechos de textos ou indicações que contribuem para o aprofundamento de seus estudos. VERBETE Significado ou referência de uma palavra utilizada no texto que seja importante para sua compreensão. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 6 25/07/2012 14:07:56 DISCIPLINA LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA História, Sociedade e Cultura Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues Prof. Dr. Paulo Roberto Alves dos Santos EMENTA Estudo das Literaturas de Língua Portuguesa a partir da análise crítico-reflexiva de autores e obras singulares e fundamentais. Carga Horária: 60 horas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 7 25/07/2012 14:07:56 OS AUTORES Inara de Oliveira Rodrigues Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), mestrado em Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000). Atualmente é professora do curso de Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC - Ilhéus-BA) e Vice-coordenadora do PPGL Mestrado em Linguagens e Representações. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Outras Literaturas Vernáculas, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e História, Literatura Portuguesa, Identidade, Literatura Brasileira, Leitura. Paulo Roberto Alves dos Santos Possui graduação em Letras pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras (1987), mestrado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, literatura brasileira, história da literatura, crítica feminina e literatura sul-rio-grandense. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 8 25/07/2012 14:07:56 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Cara aluna, caro aluno, A literatura, assim como qualquer outra manifestação artística, é expressão de uma coletividade e como tal se vincula a fenômenos socioculturais do grupo no qual se origina. A percepção de uma obra literária está diretamente relacionada à familiaridade que temos com a realidade histórica e o ambiente cultural que a gerou. Por isso, para estudarmos as literaturas de língua portuguesa, são importantes as informações a respeito da formação de Portugal, das grandes navegações realizadas pelos portugueses, da colonização do Brasil e dos cinco Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (os PALOP) - Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau - bem como dos processos subsequentes relacionados às independências desses países. A partir do reconhecimento desses fatos e de diferentes contextos histórico-culturais, você terá condições de desenvolver leituras críticas sobre as mais relevantes expressões artístico-literárias que, do passado ao presente, constituem-se em um legado sempre atualizado pelos novos olhares e reflexões que propiciam. Bom trabalho! Inara de Oliveira Rodrigues Paulo Roberto Alves dos Santos LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 9 25/07/2012 14:07:56 SUMÁRIO UNIDADE 1 AULA 1 - PORTUGAL: PRÁTICA, CULTURA E LÍNGUA 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................17 2 A FORMAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS ............................................................................18 2.1 A Idade Média: definição de território e organização de um Estado..............................18 2.2 As atividades econômicas ......................................................................................22 2.3 A formação cultural de Portugal ..............................................................................23 3 A LÍNGUA PORTUGUESA .................................................................................................27 ATIVIDADES .............................................................................................................32 RESUMINDO .............................................................................................................36 REFERÊNCIAS ...........................................................................................................37 AULA 2 - LITERATURA MEDIEVAL 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................41 2 A PROSA MEDIEVAL .......................................................................................................41 3 O TROVADORISMO E AS CANTIGAS .................................................................................44 3.1 Os cancioneiros ..................................................................................................45 3.2 As cantigas e suas modalidades ............................................................................46 3.3 A decadência do Trovadorismo .............................................................................61 ATIVIDADES ............................................................................................................63 RESUMINDO ............................................................................................................65 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................65 AULA 3 - O HUMANISMO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................69 2 O HUMANISMO EM PORTUGAL .........................................................................................69 2.1 As mudanças: do ensino à percepção do mundo .....................................................69 2.2 As crônicas de Fernão Lopes ................................................................................74 3 GIL VICENTE: O VELHO E O NOVO COMO PRENÚNCIO DE OUTRA ERA ..................................79 3.1 O teatro medieval português ................................................................................79 3.2 O teatro de Gil Vicente ........................................................................................81 ATIVIDADES ............................................................................................................92 RESUMINDO ............................................................................................................93 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................93 AULA 4 - O RENASCIMENTO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................99 2 O RENASCIMENTO EM PORTUGAL ....................................................................................99 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 11 25/07/2012 14:07:57 3 A POESIA LÍRICA DE LUÍS DE CAMÕES ........................................................................... 102 4 A POESIA ÉPICA DE CAMÕES ........................................................................................ 108 4.1 Os Lusíadas ..................................................................................................... 112 4.1.2 A estrutura da epopeia camoniana ............................................................. 116 5 O LEGADO DE OS LUSÍADAS ......................................................................................... 121 6 QUADROS-SÍNTESE DE OS LUSÍADAS ............................................................................ 122 ATIVIDADES .......................................................................................................... 123 RESUMINDO .......................................................................................................... 126 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 126 AULA 5 - CONCERTOS BARROCOS 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 131 2 BRASIL: A TERRA “MUITO CHÃ E MUITO FORMOSA” ......................................................... 132 3 SEMENTES LANÇADAS AOS ECOS DE GIL VICENTE E CAMÕES ........................................... 134 4 DISSONÂNCIAS E NOTAS VARIADAS DO BARROCO NO BRASIL E EM PORTUGAL .................. 138 4.1 Padre Antônio Vieira .......................................................................................... 138 4.2 Gregório de Matos ............................................................................................ 143 4.3 Duas vozes relevantes com diapasões diferentes ................................................... 150 ATIVIDADES .......................................................................................................... 152 RESUMINDO .......................................................................................................... 156 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 157 UNIDADE 2 AULA 6 - ACORDES ÁRCADES E ECOS CAMONIANOS NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 163 2 ECOS DE CAMÕES NAS MONTANHAS MINEIRAS ............................................................... 164 3 HERANÇA DE CLÁUDIO MANUEL: O PARDO DE VERGONHAS DESCOBERTAS COMO HERÓI ..... 171 3.1 Basílio da Gama: criador de belas imagens do índio e da natureza ............................ 172 3.2 Santa Rita Durão: conhecimento sobre a vida do índio ............................................ 178 3.3 Os fundadores do indianismo ............................................................................... 186 ATIVIDADES .......................................................................................................... 190 RESUMINDO .......................................................................................................... 191 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 192 AULA 7 - A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA (PALOP) 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 197 2 A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PALOP .................................................................. 197 2.1 O processo de dominação portuguesa na África ...................................................... 197 2.2 Momentos iniciais das literaturas nos PALOP........................................................... 200 2.2.1 Como devemos chamar as literaturas dos PALOP? ........................................ 201 2.2.2 Qual a importância da oralidade para as literaturas dos PALOP? ..................... 202 2.2.3 Qual é a situação do português e das línguas nacionais nessas literaturas? ...... 204 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 12 25/07/2012 14:07:57 2.2.4 Como se formaram os atuais sistemas literários dos PALOP? .......................... 208 3 DA ÉPOCA COLONIAL AOS ANOS DE 1960 ...................................................................... 210 3.1 Cabo Verde ...................................................................................................... 210 3.2 São Tomé e Príncipe .......................................................................................... 212 3.3 Angola ............................................................................................................ 215 3.4 Moçambique .................................................................................................... 217 3.5 Guiné-Bissau ................................................................................................... 220 ATIVIDADES .......................................................................................................... 222 RESUMINDO .......................................................................................................... 227 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 227 UNIDADE 3 AULA 8 - O ROMANTISMO E A AFIRMAÇÃO DA NACIONALIDADE 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 233 2 NOVOS CONTEXTOS, NOVAS HISTÓRIAS ........................................................................ 233 3 A ESTÉTICA ROMÂNTICA EM PORTUGAL ......................................................................... 236 3.1 A prosa de Almeida Garrett ................................................................................ 236 3.2 Outros autores relevantes .................................................................................. 243 4 O ROMANTISMO NO BRASIL ......................................................................................... 247 4.1 José de Alencar e a atualidade do passado ........................................................... 252 ATIVIDADES .......................................................................................................... 257 RESUMINDO .......................................................................................................... 266 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 266 AULA 9 - REALISMO, NATURALISMO, PROGRAMAS E RUPTURAS 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 271 2 O REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL..................................................................... 272 2.1 A proposta estético-política de Eça de Queirós ........................................................ 279 3 O REALISMO E O NATURALISMO NO BRASIL.................................................................... 285 3.1 A singularidade da obra de Machado de Assis ....................................................... 287 ATIVIDADES .......................................................................................................... 296 RESUMINDO .......................................................................................................... 303 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 303 AULA 10 - MODERNISMOS 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 309 2 DO SÉCULO XIX AO XX: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS ................................................. 310 3 OS MODERNISMOS ...................................................................................................... 311 3.1 O grupo Orpheu: heranças e rupturas ................................................................... 311 3.1.1 A poética de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro................................... 319 3.2 A antropofagia brasileira: para além da Semana de 22 ............................................ 326 ATIVIDADES .......................................................................................................... 333 RESUMINDO .......................................................................................................... 337 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 13 25/07/2012 14:07:57 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 339 AULA 11 - PERCURSOS CONTEMPORÂNEOS 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 343 2 LITERATURA E ENGAJAMENTO ....................................................................................... 343 2.1 Contextos conturbados....................................................................................... 343 2.2 O Neorrealismo e a obra de Alves Redol ............................................................... 346 2.3 A arte engajada de Jorge Amado ......................................................................... 350 3 NOVOS CENÁRIOS, NOVOS ATORES ............................................................................... 357 3.1 Perspectivas contemporâneas na cena brasileira ................................................... 358 3.2 As literaturas dos PALOP: problematizações da memória e da história....................... 361 3.3 A literatura portuguesa entre a retomada da história e novos rumos ........................ 364 ATIVIDADES........................................................................................................... 367 RESUMINDO .......................................................................................................... 373 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 373 LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 14 25/07/2012 14:07:57 1ª unidade AULA 1 PORTUGAL: PRÁTICA, CULTURA E LÍNGUA OBJETIVOS Possibilitar o reconhecimento das inter-relações entre história e literatura, sociedade e cultura, a partir do estudo da formação do Estado português, do conceito de pátria e dos principais aspectos relacionados à língua portuguesa. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 15 25/07/2012 14:07:57 Unidade 1 . Aula 1 Portugal: prática, cultura e língua 1 INTRODUÇÃO Para início de conversa, convidamos você a nos acompanhar em um breve passeio pelo passado de Portugal, para conhecer um pouco sobre sua formação enquanto Estado, a evolução da língua, o surgimento da literatura, entre outros aspectos. Para fazermos esse percurso, recorreremos à História, pois é importante que você perceba um fato importante, sobre o qual chamaremos sua atenção constantemente: para o estudo de Literatura, portanto de qualquer texto literário, precisamos levar em consideração a série de fatores de ordem econômica, social, moral, cultural, religiosa, política, entre outros, com os quais ela se vincula. Por isso, devemos buscar na História informações que podem contribuir significativamente para a compreensão de um conto, de um romance ou de um poema, pois o aparecimento da obra é sempre uma forma de diálogo com o meio em que ela se insere. Essa é a razão que justifica nossa viagem pelo tempo, pois assim poderemos compreender melhor a literatura produzida na língua que falamos nós, os brasileiros, os portugueses, os angolanos, os moçambicanos, os caboverdianos, os guineenses e os são-tomenses. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 17 Volume 4 17 25/07/2012 14:07:57 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2 A FORMAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS 2.1 A Idade Média: definição de território e organização de um Estado O início de nossa viagem é pelo ponto mais distante, situado lá na Idade Média, mais exatamente o século XII. Na época, a ideia de país era diferente da que temos nos dias atuais, e a Europa se dividia de outra maneira. Inicialmente, devemos levar em conta as diferentes definições para povo e pátria. Estes termos passaram a ser empregados na acepção que hoje conhecemos a partir do século XIX, quando o conceito de nação adquiriu o sentido que usamos. No texto a seguir, a professora e filósofa Marilena Chauí esclarece que: Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado-nação, os termos políticos empregados eram ‘povo’ (em referência a um grupo de indivíduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns) e ‘pátria’. Essa palavra também deriva de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, porém, do pai como genitor de seus filhos - nesse caso, usava-se genitor - mas de uma figura jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios (‘pai’ é o dono do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa, em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa é o dominium), e os que estão sob seu domínio formam a família (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao poder patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e 18 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 18 EAD 25/07/2012 14:07:57 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 está sob seu poder. É nesse sentido jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é Pai, isto é, senhor do universo e dos exércitos celestes. É também essa a origem da expressão jurídica‘pátrio poder’, para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres). Se ‘patrimônio’ é o que pertence ao pai, ‘patrício’ é o que possui um pai nobre e livre, e ‘patriarca’ é a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a divisão social das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe (CHAUÍ). Assim, compreendemos que é nesse contexto de formação da sociedade patriarcal que se constitui o Estado português. No caso da Península Ibérica, existiam ali vários reinos, entre eles Castela, Leon, Galícia e Aragon, ocupando o território em que hoje se situam Portugal e Espanha. Se você pesquisar sobre a história de Portugal, verá que, desde o final do século IX, há referências a um local chamado Condado Portucalense. Foi, porém, a partir do século XII que esse território se transformou em Estado independente. Quando se fala em independência, nós pensamos no Brasil, onde a emancipação ficou marcada por um ato. Com Portugal aconteceu diferente e todo o processo durou décadas, ao longo das quais se sucederam vários fatos: os acontecimentos marcantes foram a revolta liderada por Afonso Henriques (1109-1185) e a conquista do Condado em 1128; a paz de Tui, de 1137; a conferência de Samora e a enfeudação do Papa em 1143; o desaparecimento do título de Imperador com a morte de Afonso VII (1105-1157) e a Bula Papal de 1179, reconhecendo a nova monarquia (SARAIVA, 1996). A chamada Revolta de Afonso Henriques teve UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 19 Volume 4 19 25/07/2012 14:07:57 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura grande importância, porque, a partir de então, a autonomia do Condado Portucalense começou a se consolidar, apesar de provocar uma sucessão de guerras com Castela e Leon, os reinos próximos. A intervenção do Papa, receoso de que os mouros se aproveitassem da fragilidade dos reinos que lutavam entre si e atacassem a Península Ibérica, encerrou os Figura 1.1.1 - Afonso Henriques Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:AfonsoI-P.jpg conflitos. Mesmo assim, a concessão definitiva do Condado a Afonso Henriques demorou cerca de vinte anos por causa da preocupação das autoridades da Igreja em evitar embaraços nas relações com os reinos vizinhos. Desse modo, o governante português passou a ser tratado como rei somente a partir de 1179. Os vinte e poucos anos consumidos para o reconhecimento do reinado, ou seja, para que a existência política de Portugal fosse admitida, foi um tempo curto se comparado ao período decorrido para a definição do território. Foram cem anos, ao longo dos quais se deram muitas lutas, iniciadas com a conquista de Santarém e de Lisboa, em 1147. Para expandir suas fronteiras, os portugueses enfrentaram os reinos ibéricos e os mouros, obtendo mais vitórias do que derrotas e aumentando seu território até a fixação dos limites atuais, o que ocorreu em 1271(SARAIVA, 1996). A formação de Portugal se desenvolveu sob a orientação política e econômica do Feudalismo. Você deve lembrar que o Feudalismo foi um sistema político em que a origem de nascimento do indivíduo determinava sua função social. Dentro de tal estrutura, as classes privilegiadas eram a nobreza e o clero, sustentadas pelos servos. O clero formava categoria social à parte, dispondo de hierarquia e direitos próprios. A Igreja era a representação divina no mundo e seu poder tinha natureza diferente em relação ao exercido pelos reis porque emanava diretamente de Deus. Por isso, as decisões dos religiosos não sofriam contestações. Daí a visão de mundo teocêntrica ou o 20 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 20 EAD 25/07/2012 14:07:57 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 Teocentrismo, segundo a qual Deus é o centro do mundo, que vigorou em Portugal e na Europa até o século XIV. A explicação das ações do homem como consequência da intervenção de forças divinas revela a ignorância em relação ao pensamento lógico e racional, bem como estimulava as práticas religiosas e a busca de santificação, com a pregação do amor e da humildade. A convergência de interesses fez com que Igreja e nobreza agissem conjuntamente no controle do conhecimento e, assim, formavam o único segmento com domínio da escrita e da leitura, por isso somente os indivíduos oriundos dessas duas classes tinham acesso à cultura letrada. O conhecimento escrito se restringia ao âmbito dos mosteiros e circulava em latim, a língua de todo o mundo cristão, porque estava acima dos reinos, mas escrita e falada unicamente por quem tinha estudo. Os clérigos exerciam a função de difusão da fé e do ensino das práticas do catolicismo e, assim, ocupavam papel importante para a divulgação do conhecimento. Figura 1.1.2 - Copistas Fonte: http://sumateologica.files. wordpress.com/2011/02/monge_ escriba_medieval.jpg Você deve ter ideia de que eram grandes as dificuldades de comunicação e de transporte durante a Idade Média. Os livros eram reproduzidos em cópias manuscritas e predominava o analfabetismo tanto em Portugal quanto na Europa, de um modo geral. Sendo praticamente o único segmento letrado, o clero monopolizava a instrução, passando a existir ensino fora dos conventos apenas no último período da era medieval. Os mestres ensinavam o que se chamava Estudo Geral porque se distinguia daquele destinado à formação de clérigos (SARAIVA, 1996). A expansão do Estudo Geral provocou o surgimento da universidade, criada e organizada pela Igreja. A primeira a ser reconhecida foi a de Paris, em 1215. Dom Dinis (1279-1325) obteve autorização do Papa para criar uma universidade em Portugal no ano de 1290. Fundada com o nome de Estudo Geral de Lisboa, tinha por objetivo facilitar a formação de indivíduos para a carreira religiosa. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 21 Volume 4 Figura 1.1.3 - Manuscritos da Bíblia Fonte: http://www.reporternet.jor. br/wp-content/uploads/2009/04/ codex_sinaiticus1.jpg 21 25/07/2012 14:07:58 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2.2 As atividades econômicas A base inicial da economia foi a agricultura com o cultivo do trigo e de videiras, complementada por atividades como a caça, a pesca e a tecelagem, exercidas por mulheres. A ferraria também era bastante praticada porque se destinava à fabricação de utensílios essenciais para o uso cotidiano e agrícola. Paralelamente, o comércio se desenvolveu com certa rapidez e isso se deveu a vários fatores. Um deles foi a presença de judeus, povo de longa tradição comercial, em cidades conquistadas nas lutas contra os mouros. Outro fato foram os indícios de que, no século XII, já ocorriam navegações pela costa com caráter mercantil. Há documentos da concessão de salvo-condutos a portugueses pelo rei da Inglaterra, numa comprovação de que as relações comerciais com outros reinos por via marítima se intensificaram no século XIII. Por fim, são fartas as informações de mercadores ambulantes que faziam o comércio interno, levando seus produtos a todos os lugares, adquirindo gêneros dos agricultores para vendêlos nas povoações. As crônicas de Fernão Lopes, que estudaremos mais adiante, trazem notícias sobre essas feiras para a comercialização de produtos agrícolas. As atividades mercantis tomaram impulso e o crescimento da economia trouxe consequências para a organização social na medida em que propiciou o surgimento e o fortalecimento de um novo grupo, os comerciantes, tornando-se a causa para conflitos de interesses. As divergências nasceram da valorização de produtos como o vinho e o azeite no mercado externo, que exigiam a disponibilidade de mais terras para o plantio de videiras e oliveiras, em detrimento dos cereais (SARAIVA, 1996). O aparecimento de gêneros exportáveis criou nova realidade, na qual o cultivo da terra assumia outra função, perdendo seu caráter de simples meio de sobrevivência para 22 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 22 EAD 25/07/2012 14:07:58 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 se transformar em fonte de lucro. Além disso, sua exploração começou a se submeter aos desígnios do mercador, criando outro problema: o aumento de preços. O comprador estipulava o valor do produto, tomando por referência a cotação externa, incluindo amplas margens para cobrir os riscos do transporte marítimo e o lucro do mercador. O produtor, por sua vez, via-se forçado a baratear seu produto e a aviltar a mão de obra. A mais-valia da agricultura ficava com o homem da cidade, aquele que não tinha ação direta no cultivo, dando origem a um capitalismo urbano de raiz rural, com reflexos na estrutura social (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). No embate entre esses dois grupos, prevaleceu a posição de quem defendia a atividade mercantil externa, como se percebe pelo ciclo das grandes navegações dos séculos XV e XVI. Mais adiante, quando estudarmos Os Lusíadas, veremos que Camões abordou o problema, representado, principalmente, no episódio do “Velho do Restelo”, uma das passagens significativas da obra. 2.3 A formação cultural de Portugal Até aqui, fizemos uma breve apresentação de acontecimentos ocorridos no período de formação de Portugal. Mencionamos como o Condado Portucalense se transformou em reino, tratamos da expansão e da delimitação territorial, falamos da organização social e da economia. Verificaremos, agora, como esses elementos contribuíram para o surgimento de uma literatura de língua portuguesa. Lembre-se de que nosso percurso se desenvolve a partir de uma retrospectiva histórica, ou seja, por meio da rememoração de acontecimentos importantes para o surgimento e a consolidação de Portugal como estado independente. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 23 Volume 4 23 25/07/2012 14:07:58 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura O primeiro estágio do processo de formação de Portugal aconteceu num momento em que o Feudalismo começava a entrar em crise. A Idade Média chegava ao final e se inaugurava outro período histórico em que a economia, a organização social e a visão de mundo passavam por profundas transformações. A sociedade se reestruturava, nasciam vilas, povoados e cidades, formando um mercado consumidor para os produtos de origem agrícola. Com isso, apareceu o segmento intermediário entre o proprietário e o servo, que atuava no cultivo da terra. Nas ocupações urbanas, apareceram os indivíduos cujo negócio era o dinheiro. As Cruzadas haviam favorecido o crescimento de aglomerações humanas situadas em sua rota de deslocamento. saiba mais De 1096 a 1270, expedições foram formadas sob o comando da Igreja, a fim de recuperar Jerusalém (que se encontrava sob domínio dos turcos seldjúcidas) e reunificar o mundo cristão, dividido com a “Cisma do Oriente”. Essas expedições ficaram conhecidas como Cruzadas. A Europa do século XI prosperava. Com o fim das invasões bárbaras, teve início um período de estabilidade e um crescimento do comércio. Consequentemente, a população também cresceu. No mundo feudal, apenas o primogênito herdava os feudos, o que resultou em muitos homens para pouca terra. Os homens, sem terra para tirar seu sustento, lançaram-se na criminalidade, roubando, Figura 1.1.5 - Cruzadas. Fonte: http://www.fsspx.com.br/exe2/ wp-content/uploads/2010/10/cruzadas01.jpg saqueando e sequestrando. Algo precisava ser feito. Como foi dito anteriormente, o mundo cristão se encontrava dividido. Por não concordarem com alguns dogmas da Igreja Romana (adoração a santos, cobrança de indulgências etc.) os católicos do Oriente fundaram a Igreja Ortodoxa. Jerusalém, a Terra Santa, pertencia ao domínio árabe e até o século XI eles permitiram as peregrinações cristãs à Terra Santa. Mas no final do século XI, povos da Ásia Central, os turcos seldjúcidas, tomaram Jerusalém. Convertidos ao islamismo, os seldjúcidas eram bastante intolerantes e proibiram o acesso dos cristãos a Jerusalém. Em 1095, o papa Urbano II convocou expedições com o intuito de retomar a Terra Sagrada. Os cruzados (como ficaram conhecidos os expedidores) receberam este nome por carregarem uma grande cruz, principal símbolo do cristianismo, estampada nas vestimentas. Em troca da participação, ganhariam o perdão de seus pecados. A Igreja não era a única interessada no êxito dessas expedições: a nobreza feudal tinha interesse na conquista de novas terras; cidades mercantilistas como Veneza e Gênova se deslumbravam com a possibilidade de ampliar seus negócios até o Oriente e todos estavam interessados nas especiarias orientais, pelo seu alto valor, como: pimenta-do-reino, cravo, noz-moscada, canela e outros. Movidas pela fé e pela ambição, entre os séculos XI e XIII, partiram para o Oriente oito Cruzadas. Fonte: Cruzadas. Equipe Brasil Escola. Disponível em:http://www.brasilescola.com/historiag/cruzadas.htm. Acesso em mar. 2011. 24 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 24 EAD 25/07/2012 14:07:59 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 Mesmo diante de tais mudanças, a circulação da cultura escrita se restringia praticamente ao clero e à nobreza. A reprodução de cópias de livros em folhas de pergaminho era demorada e cara e exigia condições de trabalho existentes apenas nos conventos. Assim, a escrita permanecia como veículo secundário de transmissão cultural que se dava prioritariamente pela oralidade, pelos jograis, pelos cantores e músicos ambulantes. A divulgação ocorria nas feiras, nos castelos, nas cidades, por meio de um repertório musical e literário. A cultura escrita permanecia em poder dos padres e, pelas razões mencionadas anteriormente, eles faziam a mediação entre o saber dos livros e o saber popular. Surgiram, assim, duas literaturas – a escrita e a oral – apresentando características e especificidades distintas. Os livros reproduzidos nos conventos destinavam-se à preparação dos clérigos e ao serviço religioso, consistindo basicamente de obras de devoção e tratados escritos em latim. A literatura oral dos jograis tinha como alvo o público iletrado composto por vilões, burgueses e parte da nobreza. Seu conteúdo tomava como inspiração a vida e o interesse desse público, consistindo em poemas e narrativas na forma de verso (SARAIVA, 1996). A morosidade e o preço elevado das reproduções de cópias manuscritas de livros impediam a disseminação mais ampla da cultura escrita, restringindo-a aos religiosos, tanto que a palavra clérigo se tornou sinônimo de letrado. Em contrapartida, a cultura transmitida oralmente fixava os padrões de vida, a visão de mundo, os princípios e valores éticos, o patrimônio literário e a sabedoria popular. A expressão característica do Feudalismo na literatura foram os cantares épicos, como os dos Nibelungos, os da mitologia nórdica, as canções de gesta francesas. Na Península Ibérica, o interesse pela literatura heroica se manteve por mais tempo em razão da longa duração da mentalidade belicosa, estimulada pelas lutas contra os árabes. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 25 Volume 4 25 25/07/2012 14:07:59 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais As epopeias medievais, ou canções de gesta, são longos poemas, em versos de oito, dez ou doze sílabas, reunidos em estrofes de extensão desigual, cada uma delas terminando por assonância numa vogal, em vez de rima. Era cantada diante de um auditório acompanhada de um instrumento de cordas semelhante à viola. O termo gesta é um neutro plural latino que significa “coisas feitas”, mas, posteriormente, tornou-se um feminino singular com o sentido de “história”. Trata-se de um poema ou conjunto de poemas cujos temas referem-se a um mesmo grupo de eventos lendários ou de protagonistas. O assunto se desenvolve em torno de personagem ou acontecimento real, modificado pela lenda e pela transmissão oral, o que se atesta pelas inúmeras versões de cada história. Os acontecimentos se dão na Alta Idade Média com invasões e lutas pela conquista de territórios. Inicialmente as histórias são contadas oralmente e, depois, escritas em versos, e ganham versões em prosa após alguns séculos. Entretanto, não devemos considerar, nesse gênero, a oposição verso/prosa, pois ela não havia naquele tempo, quando toda literatura, narrativa ou não, era feita em versos. As epopeias medievais exaltam as proezas de um herói, num período em que os estados nacionais ainda estão em formação. Mostram um mundo masculino, de batalhas, lutas por poder e combates a serviço de Deus. Há três grandes epopeias desta época: a Canção de Rolando, francesa; o Cantar de Mio Cid, espanhola e Canção dos Nibelungos, germânica. Fonte: disponível em: http://pt.shvoong.com/humanities. Acesso em: nov. 2010. para conhecer O Cantar de Mio Cid trata dos feitos de Ruy Diaz de Vivar ou Rodrigo Diaz de Vivar, que esteve à frente de lutas ocorridas na Península Ibérica, no século XI, contra a autoridade do rei. O poema se compõe de mais de 3700 versos, distribuídos em estrofes irregulares. A Canção de Rolando narra o heroísmo do conde Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que morre na batalha de Roncesvales, ocorrida no século VIII. Alguns fatos e personalidades históricos sofrem alterações, adequando-se ao ambiente do século XI, época em que o poema apareceu e que também foi o período das Cruzadas e da reconquista da Península Ibérica pelos cristãos. A Canção dos Nibelungos é um conjunto de poemas épicos da literatura medieval alemã, de autoria individual ou coletiva anônima, cuja narrativa gira em torno do amor de uma mulher por seu marido, misturando ingredientes como traição, vingança e a decadência de um reinado. Essas canções estão disponíveis no site: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ PesquisaObraForm.jsp 26 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 26 EAD 25/07/2012 14:07:59 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 Segundo Benjamin Abdala Júnior e Paschoalin (1990), contrastando com o sentimento hierárquico e rude das canções de gesta, cuja temática remetia aos horrores dos combates, existia a poesia lírica, de origem provençal. A Provença, região situada ao sul da França, teve papel comercial relevante durante o período das Cruzadas e seus trovadores serviram de modelo para a poesia medieval posterior. De conformação mais individualizada, essas poesias tematizam, entre outros assuntos da época, a superação da distância social pelo amor, a transposição das relações políticas entre as classes pela vassalagem para o plano da submissão amorosa do amante, a descrição da mulher como objeto amoroso, marcado pela delicadeza, a sutileza e a suavidade – um claro processo de idealização amorosa. O surgimento e a propagação do lirismo provençal estão vinculados ao desenvolvimento da vida cortesã, que se concentrava nos palácios, em torno dos reis e dos nobres, refletindo sua adaptação à vida sedentária, que exigiu a criação de distrações como forma de ocupar o tempo ocioso. 3 A LÍNGUA PORTUGUESA A língua portuguesa possui uma longa história e, como encontramos no site do Instituto Camões, “não se esgota na descrição do seu sistema linguístico: uma língua como esta vive na história, na sociedade e no mundo”. Ao contrário, “tem uma existência que é motivada e condicionada pelos grandes movimentos humanos e, imediatamente, pela existência dos grupos que a falam”. Desse modo, o português falado em Portugal, no Brasil, na África e, ainda que com menor registro, na Ásia “pode continuar a ser sentido como uma única língua enquanto os povos dos vários países lusofalantes sentirem necessidade de laços que os unam. A língua é, porventura, o mais poderoso desses laços” (http://cvc.instituto-camoes.pt/ hlp/brevesum/index.html). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 27 Volume 4 27 25/07/2012 14:08:00 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Com relação ao desenvolvimento do português na Europa, na época da criação do Estudo Geral de Lisboa, Portugal vivia um fenômeno linguístico peculiar. Como já vimos, o latim era a língua usada para as relações entre os reinos e pelos segmentos sociais escolarizados. O povo se comunicava empregando uma variante, o galego-português, originada do latim falado. Diante de tal situação, os letrados sentiram necessidade de aproximar as duas modalidades porque precisavam se comunicar com o povo, a fim de transmitir os sermões e as tradições pela oralidade, com o objetivo de controlar a formação dos indivíduos. Uma das medidas de aproximação entre a língua das pessoas escolarizadas e aquela de uso popular foi responsável pelo desenvolvimento do português que nós conhecemos hoje. Em decreto de 1179, Dom Dinis determinou a adoção oficial da língua portuguesa, contribuindo para que nosso idioma começasse a adquirir a forma dos dias atuais. Datam dessa época os primeiros documentos escritos, nos quais se observa a mescla do português com o galego. Embora o vocabulário e as regras de uso já estivessem definidos desde o século XII, foi durante a Dinastia de Avis (1383 a 1582) que a língua portuguesa se firmou. Já com relação ao português falado no Brasil, de acordo com Rosa Virgínia Mattos e Silva: Pode-se afirmar [...] que até meados do século XVIII o multilinguismo generalizado caracteriza o território brasileiro [e] perdura: ainda hoje, apesar de a língua portuguesa ser a língua oficial majoritária no Brasil, persistem cerca de 180 línguas indígenas, com a média de 200 falantes por língua, faladas por 300.000 a 500.000 índios (estimativas de 2000), perfazendo 0,2% da população brasileira. leitura recomendada Para conhecer mais sobre esse assunto – o português falado em nosso país – leia o texto completo de Rosa Virgínia Mattos e Silva, “História da Língua portuguesa no Brasil”, disponível em: http://cvc. Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/hlpbrasil/index. html. Acesso em nov. 2010. instituto-camoes.pt/hlp/ hlpbrasil/index.html. 28 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 28 EAD 25/07/2012 14:08:00 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 Com o tráfico de escravos, o multilinguismo brasileiro se enriqueceu e, segundo Jorge Couto (citado pela professora Rosa Virgínia no texto referido), “nos finais de Quinhentos, a presença africana (42%) já se estendia a todas as capitanias, ultrapassando no conjunto, qualquer dos outros grupos – portugueses (30%) e índios (28%) apresentando um crescimento espetacular nas capitanias de Pernambuco e Bahia, esta última sextuplicando seus habitantes negros”. Deve-se considerar, ainda, que o quadro geral do multilinguismo de nosso país completa-se com a chegada dos emigrantes europeus e asiáticos, sobretudo a partir do século XIX. Com relação ao português falado nos países africanos e asiáticos, deve-se considerar, no caso de Angola e Moçambique, que: O português reparte a sua influência com numerosas línguas nacionais e é falado como língua materna por uma parte não majoritária da população. Nesses dois grandes países, a sua importância e as suas perspectivas de futuro vêm-lhe do papel como língua de administração, cultura e ensino, como língua de relação internacional e, principalmente, como língua de relação interétnica, papel que, na GuinéBissau, por exemplo, cabe ao crioulo. Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/brevesum/onde. html. Acesso em nov. 2010. saiba mais Os crioulos são línguas naturais, de formação rápida, criadas pela necessidade de expressão e comunicação plena entre indivíduos inseridos em comunidades multilingues relativamente estáveis. Procurando superar a pouca funcionalidade das suas línguas maternas, estes recorrem ao modelo imposto (mas pouco acessível) da língua socialmente dominante e ao seu saber linguístico para constituir uma forma de linguagem veicular simples, de uso restrito, mas eficaz, o pidgin, que posteriormente é gramaticalmente complexificada e lexicalmente expandida, em particular pelas novas gerações de crianças que a adquirem como língua materna, dando origem ao crioulo. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 29 Volume 4 29 25/07/2012 14:08:00 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Chamam-se de base portuguesa os crioulos cujo léxico é, na sua maioria, de origem portuguesa. No entanto, do ponto de vista gramatical, os crioulos são línguas diferenciadas e autônomas. Sendo a línguabase aquela que dá o léxico, podemos encontrar crioulos de diferentes bases: de base inglesa (como o Krio da Serra Leoa), de base francesa (como o crioulo das Seychelles), de base árabe (como o Kinubi de Uganda e do Quénia) ou outra. Os crioulos de base portuguesa são habitualmente classificados de acordo com um critério de ordem predominantemente geográfica embora, em muitos casos, exista também uma correlação entre a localização geográfica e o tipo de línguas de substrato em presença no momento da formação. Na África formaram-se os Crioulos da Alta Guiné (em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Casamansa) e os do Golfo da Guiné (em S. Tomé, Príncipe e Ano Bom). [...] Na Ásia surgiram ainda crioulos de base portuguesa na Malásia (Malaca, Kuala Lumpur e Singapura) e em algumas ilhas da Indonésia (Java, Flores, Ternate, Ambom, Macassar e Timor) conhecidos sob a designação de Malaio-portugueses.Os crioulos Sino-portugueses são os de Macau e Hong-Kong. Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/geografia/crioulosdebaseport.html. Acesso em nov. 2010. Veja a seguir o mapa indicando os países em que a língua oficial é o português, salientando que Macau é uma região administrativa da China. Figura 1.1.5 Fonte: http://cvc.instituto-camoes.pt/hlp/geografia/index.html. Acesso em nov. 2010. LEGENDA: Países ou territórios com o português como língua materna e/ ou língua oficial: 1 Crioulos da Alta Guiné; 2 Crioulos do Golfo da Guiné; 3 Crioulos Indo-portugueses; 4 Crioulos Malaio-portugueses; 5 Crioulos Sino-portugueses; 6 Crioulos do Brasil 30 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 30 EAD 25/07/2012 14:08:00 Portugal: prática, cultura e língua Unidade 1 . Aula 1 Por fim, não se pode perder de vista a diversidade linguística que o português apresenta em todo seu grande território, espalhado por quatro continentes. Os linguistas divergem a respeito dessa diversidade. Para alguns, os atuais português de Portugal (PE) e o português do Brasil (PB) são línguas diferentes, enquanto outros, porém, constituem variedades bastante distanciadas dentro de uma mesma língua. No site do Instituto Camões, você pode acessar o Fórum dos Linguistas e ampliar seus conhecimentos sobre esse tema. atenção Nestas nossas aulas, você deve observar que mantivemos a grafia do português de Portugal nos originais que selecionamos para as citações: já antes do Acordo Ortográfico (2012), os portugueses não colocavam acento circunflexo em leem, creem, etc., não acentuavam ditongos como ideia, epopeia, entre outros, nem usavam a trema, mas usavam o c, com valor de oclusiva velar, em palavras como afecto, acto, por exemplo, além de outras regras que foram alteradas pelo novo Acordo. Fora das citações originais, entretanto, seguimos as novas regras ortográficas em vigor. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 31 Volume 4 31 25/07/2012 14:08:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES AT A TIVI IVI IV ATIVIDADES 1. Segundo Abdala Júnior e Paschoalin, (1990, p. 12), “não haveria teocentrismo sem existir o feudalismo e viceversa, afinal um está a serviço do outro da mesma forma que não haveria o nobre ocioso se não houvesse o servo trabalhador”. Explique essa afirmação, apresentando os principais aspectos da formação de Portugal. 2. Como afirma Marilena Chauí, no texto que citamos no início do capítulo, “Se ‘patrimônio’ é o que pertence ao pai, ‘patrício’ é o que possui um pai nobre e livre, e ‘patriarcal’ é a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a divisão social das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe”. Retomando essa afirmativa, e sabendo-se que o patriarcalismo persistiu durante o feudalismo (assim como nas sociedades capitalistas, posteriormente), explique as principais relações de poder econômicas e sociais desse contexto histórico, destacando a situação portuguesa. 3. Pesquise em diversas fontes (sites, livros) e selecione trechos de pelo menos dois textos literários que corresponderam às expressões artístico-culturais da época de formação do Estado português. 4. Leia o poema Língua portuguesa, de Olavo Bilac, e descreva de que modo o poeta brasileiro representa a nossa língua. Justifique sua descrição, destacando e comentando versos do texto poético. 32 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 32 EAD 25/07/2012 14:08:01 Portugal: prática, cultura e língua 1 Língua portuguesa Unidade 1 . Aula Olavo Bilac Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela... Amo-te assim, desconhecida e obscura. Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela, E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, em que da voz materna ouvi: “meu filho!”, E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! [http://www.releituras.com/olavobilac_lingua.asp] 5. A partir da leitura da letra da música Língua, de Caetano Veloso, transcrita a seguir (não deixe de ouvir/assistir a um dos vídeos disponibilizados pelo youtube): a. destaque a forma como o autor percebe os vários “usos” da língua portuguesa; b. descreva a maneira como o texto apresenta a nossa língua em relação aos seus usuários e ao restante do mundo, de modo geral. Língua Caetano Veloso Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões Gosto de ser e de estar E quero me dedicar a criar confusões de prosódia E uma profusão de paródias Que encurtem dores E furtem cores como camaleões Gosto do Pessoa na pessoa Da rosa no Rosa UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 33 Volume 4 33 25/07/2012 14:08:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura E sei que a poesia está para a prosa Assim como o amor está para a amizade E quem há de negar que esta lhe é superior? E deixe os Portugais morrerem à míngua “Minha pátria é minha língua” Fala Mangueira! Fala! Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó O que quer O que pode esta língua? Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas E o falso inglês relax dos surfistas Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas! Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate E – xeque-mate – explique-nos Luanda Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo Sejamos o lobo do lobo do homem Lobo do lobo do lobo do homem Adoro nomes Nomes em ã De coisas como rã e ímã imã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã Nomes de nomes Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó O que quer O que pode esta língua? Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção Está provado que só é possível filosofar em alemão Blitz quer dizer corisco Hollywood quer dizer Azevedo E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo A língua é minha pátria E eu não tenho pátria, tenho mátria E quero frátria Poesia concreta, prosa caótica Ótica futura Samba-rap, chic-left com banana (– Será que ele está no Pão de Açúcar? – Tá craude brô 34 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 34 EAD 25/07/2012 14:08:01 Portugal: prática, cultura e língua 1 – Você e tu Unidade 1 . Aula – Lhe amo – Qué queu te faço, nego? – Bote ligeiro! – Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado! – Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho! – I like to spend some time in Mozambique – Arigatô, arigatô!) Nós canto-falamos como quem inveja negros Que sofrem horrores no Gueto do Harlem Livros, discos, vídeos à mancheia E deixa que digam, que pensem, que falem As indicações são apenas sugestões de recursos que você pode usar para tomar contato com alguns dos assuntos tratados na aula. Os filmes e os livros têm caráter ficcional, porém podem contribuir para o conhecimento sobre a vida na Idade Média, pois fazem referência a acontecimentos e figuras históricas, bem como a situações do cotidiano durante aquele período. A exceção é o filme Língua: vidas em português, porque se trata de um documentário. Quanto aos sites, recomendamos aqueles cujas informações são confiáveis porque estão ligados a instituições reconhecidas e em alguns os autores dos textos são identificados, permitindo que saibamos o quanto são experientes diante do assunto sobre o qual escrevem. filmes As cruzadas (2005), direção de Ridley Scott As cruzadas: a meia lua e a cruz (2005), direção de Stuart Elliot e Mark Lewis Coração Valente (1995), direção de Mel Gibson El Cid (1961), direção de Anthonny Mann Em nome de Deus (1988), direção de Clive Donner Excalibur (1981), direção de John Boorman Língua: vidas em português (2004), direção de Victor Lopes O nome da rosa (1986), de Jean-Jacques Annaud Robin Hood: o príncipe dos ladrões (1991), direção de Kevin Reynolds UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 35 Volume 4 35 25/07/2012 14:08:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura livros As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Decameron, de Giovani Bocacio Divina comédia, de Dante Aligheri O nome da Rosa, de Umberto Eco sites Instituto Camões: http://www.instituto-camoes.pt O Portal da História: http://www.arqnet.pt/ Vidas Lusófonas: http://www.vidaslusofonas.pt/ E-Dicionário de Termos Literários: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/ index.htm RESUMINDO RESUMINDO Como afirmamos no início desta nossa primeira aula, procuramos enfocar a literatura de língua portuguesa, considerando alguns dos fatores históricos e sociais que fazem parte do seu desenvolvimento, a partir da Idade Média, como: as diferentes etapas de formação do Estado português, a configuração de seu território, a organização política e administrativa, as classes sociais, as atividades econômicas e o sistema de ensino. No que diz respeito à literatura, mencionamos a base cultural formada dentro da concepção de mundo do feudalismo, influenciado pelo catolicismo e pelo espírito das cruzadas que impulsionou as primeiras manifestações literárias. Na parte final da aula, descrevemos o surgimento da língua portuguesa e a disseminação do seu uso pelo mundo, mostrando que é o idioma oficial em vários países. 36 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 36 EAD 25/07/2012 14:08:01 Portugal: prática, cultura e língua 1 REFERÊNCIAS REFE RE FER FE Unidade 1 . Aula REFERÊNCIAS ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1990. CHAUÍ, Marilena. Brasil - Mito fundador e sociedade autoritária. Disponível em: http://www.scribd.com/ doc/7011303/Marilena-Chaui-Brasil-Mito-Fundador-esociedade-AutoritAria. Acesso em out. 2010. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de textos. São Paulo: Cultrix, 1982. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 18. ed. Lisboa: Europa-América, 1996. SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. corrigida e atualizada. Porto: Porto, 1996. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 37 Volume 4 37 25/07/2012 14:08:02 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 38 25/07/2012 14:08:02 1ª unidade AULA 2 LITERATURA MEDIEVAL OBJETIVOS Possibilitar o reconhecimento dos principais aspectos econômicos, políticos e socioculturais da Europa, com destaque para a situação portuguesa, durante o final da Idade Média, e suas relações com as mais relevantes expressões artístico-literárias do período. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 39 25/07/2012 14:08:02 Unidade 1 . Aula 2 Literatura Medieval 1 INTRODUÇÃO Na aula anterior, estudamos alguns fatos ligados à formação de Portugal, partindo do princípio de que os fenômenos sociais estão diretamente vinculados às manifestações culturais. Em outras palavras, tratamos de acontecimentos que explicam o surgimento da literatura em língua portuguesa. Agora, mostraremos como essa literatura se formou, estudando os elementos que a originaram, destacando-se, na prosa portuguesa do período medieval, os cronicões, as hagiografias, as novelas de cavalaria e as crônicas de Fernão Lopes. Essas últimas, ainda que escritas com o propósito de registrar fatos objetivos, assumiram feições literárias graças ao estilo empregado pelo autor. Além desses gêneros, trataremos de outra relevante expressão literária da época, as cantigas, poemas acompanhados de instrumentos musicais. 2 A PROSA MEDIEVAL A prosa medieval portuguesa é representada por quatro modalidades: as novelas de cavalaria, os livros de linhagem, as hagiografias e as crônicas ou cronicões. Dentre elas, a de maior interesse literário são as novelas de cavalaria. Os livros de linhagens eram listas que estabeleciam as relações de parentesco entre indivíduos com o intuito de evitar casamento entre parentes até o sétimo grau e de resolver problemas decorrentes da partilha de bens. As hagiografias (hagios = santo; grafia = escrita) UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 41 Volume 4 41 25/07/2012 14:08:02 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura eram originariamente dirigidas apenas aos religiosos; porém, graças ao estímulo deles, acabaram interessando ao público mais amplo, na medida em que propagavam feitos de santos, incentivavam as doações para templos e mosteiros; produziam textos litúrgicos; serviam para leitura privada ou como texto escolar; instruíam e edificavam a fé cristã; divulgavam ensinamentos oficiais da Igreja. Os cronicões, normalmente escritos em latim, possuem valor literário pouco relevante, embora sejam os primeiros documentos historiográficos de Portugal e tenham importância indiscutível para o estudo da evolução da língua portuguesa. Por descreverem fatos envolvendo reis e pessoas que circulavam ao redor deles, permitem que se conheçam certos costumes da época em que foram escritos. Com relação às novelas de cavalaria, alguns estudiosos questionam sua origem, mas aceita-se que os berços do gênero sejam a Inglaterra e a França. Sua introdução em Portugal data do século XIII. A configuração que tomaram está relacionada com o processo de evolução das canções de gesta. Observa-se a evolução de uma forma de caráter memorialístico e individual, que deixou de se expressar cantada em verso, para outra, em prosa, para ser lida. Figura 1.2.1 - Novelas de Cavalaria. Fonte: http://espelhoesonho.blogspot.com.br/2012/03/ novelas-de-cavalaria-3.html 42 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 42 EAD 25/07/2012 14:08:02 Literatura Medieval Unidade 1 . Aula 2 A circulação das novelas de cavalaria se dava entre a fidalguia e a nobreza e, apesar da aclimação pelas alterações, todas provavelmente foram traduções do francês, porque não se conhece uma que seja autenticamente portuguesa. De inclinação mística, apresentam o cavaleiro de acordo com a concepção da Igreja: casto, fiel, dedicado, humilde, íntegro moralmente, resistente às tentações, à procura da honra e/ ou da vida eterna. Como ele sabe que é o escolhido, tem força para superar os obstáculos e, ao final da peregrinação, é compensado com sua elevação moral e espiritual. Você pode observar a impregnação das novelas pela ideologia de orientação religiosa do período medieval por outros traços do herói: era obrigado a cumprir juramentos; sua caracterização corresponde ao ideal das Cruzadas de expansão da fé católica e da conquista de bens; presta vassalagem a senhores e se submete ao poder da fé. As novelas mais conhecidas foram História de Merlim, cuja versão portuguesa desapareceu, José de Arimateia e a Demanda do Santo Graal. Em oposição ao modelo do cavaleiro perfeito, surgiu a novela Amadis de Gaula (1508), cujo autor se desconhece. Apesar de sua integridade e do amor cortês e vassálico, Amadis rompe com a ordem vigente, porque se casa com Oriana, razão pela qual essa novela é tomada como marco da transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. É comum encontrar referências a três ciclos das novelas cavalheirescas, o bretão ou arturiano, tendo por protagonistas o Rei Artur e seus cavaleiros; o carolíngio, em torno de Carlos Magno e os doze pares da França; e o ciclo clássico, relativo às novelas de temas grecolatinos. Em Portugal, só o primeiro deixou vestígios, influenciando costumes da sociedade medieval e estimulando o surgimento de uma produção literária de grande aceitação em pleno século XVI, quando os valores medievais já pertenciam ao passado. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 43 Volume 4 43 25/07/2012 14:08:04 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 3 O TROVADORISMO E AS CANTIGAS A origem das cantigas situa-se na Provença, região situada ao sul da França - como vimos na aula anterior: aproveite para rever o mapa - com grande atividade comercial durante o período das Cruzadas cujos trovadores (daí a denominação “Trovadorismo” para esse período) serviram de modelo para a poesia medieval posterior. Podemos apontar como características gerais do gênero o individualismo, a superação da distância social pelo amor, a descrição de atributos femininos como a delicadeza, a sutileza e a suavidade. Se você revisar o que mencionamos sobre a organização social do feudalismo, compreenderá com facilidade que as cantigas transpõem para a literatura as relações políticas entre as classes. Observamos isso pela submissão do amante à mulher, apresentando-se diante dela com humildade, em posição de inferioridade e colocando-a como ser inacessível. As cenas amorosas terminam por reproduzir a vassalagem prestada à nobreza, isto é, representam a obediência e as obrigações de servir impostas pelos senhores feudais às outras categorias sociais. O surgimento e a propagação das cantigas estão vinculados às mudanças no estilo de vida das cortes. O seu caráter emotivo e sentimental contrasta com tom rude das canções de gesta, cuja temática remete aos combates, à hierarquia e à vida em bando, próprios da ideologia que orientou as Cruzadas. O gênero é o correspondente literário do período em que a vida começava a se concentrar nos palácios, em torno de reis e de nobres. Da mesma forma como os membros da nobreza participavam diretamente de expedições de conquistas e de guerras, eles também se dedicavam a compor e a divulgar as cantigas. Por isso, podemos afirmar que esses poemas cantados refletem a adaptação dos indivíduos 44 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 44 EAD 25/07/2012 14:08:04 Literatura Medieval Unidade 1 . Aula 2 ao comportamento que regia as relações feudais. A sua disseminação tem a ver com a necessidade de criar formas de distração para ocupar o tempo ocioso de uma classe social que vivia de ganhos obtidos sem esforço. 3.1 Os cancioneiros A poesia surgiu antes da escrita e, como sua transmissão era feita pela oralidade, precisou de recursos para facilitar a memorização, como o verso, a rima e o ritmo. A difusão “boca a boca” da literatura se manteve mesmo depois que o homem passou a empregar sinais gráficos como meio de comunicação, porque a maioria dos indivíduos das sociedades primitivas não sabia escrever. Até mesmo civilizações que deixaram valiosos registros escritos de sua cultura viveram estágios com predomínio da cultura oral, como é o caso dos gregos. Os provérbios são resquícios da tradição oral, apresentando ritmo e sonoridade que contribuem para a fixação na memória. Os textos literários mais antigos em língua portuguesa foram compostos para divulgação por meio da oralidade. Os registros que encontramos hoje são transcrições de composições do século XII, recolhidas posteriormente. A reunião destas produções data dos séculos XIII e XIV e se encontra distribuída em três cancioneiros: Cancioneiro da ajuda, Cancioneiro da vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional. De acordo com Saraiva e Lopes (1996), o primeiro, menos completo, abrange cantigas surgidas até o século XIII, mas excluem as composições de Dom Dinis. Seu valor consiste no fato de os manuscritos serem da época em que os poetas apresentavam as composições nas cortes e nos castelos. O Cancioneiro da vaticana e o Cancioneiro da Biblioteca Nacional trazem cópias feitas no século XVI, a partir de UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 45 Volume 4 45 25/07/2012 14:08:04 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura manuscrito do século anterior. Esse último é o mais completo porque inclui praticamente todo o material do outro com o acréscimo de mais cantigas. Somados, os três cancioneiros apresentam quase 1680 poesias de 160 autores. Figuras 1.2.2 - Cancioneiros.Fontes: <http://desaparecidomasnaoesquecido.blogspot.com.br/2012/02/cancioneiro-daajuda-volume-i.html>, <http://cantigas.fcsh.unl.pt/images/CANC111.JPG>, <http://2.bp.blogspot.com/_jRkX9Orvexg/ S73hJyxbAqI/AAAAAAAAAAk/PAWxxf-ZK44/s1600/trovadores3.jpg>, respectivamente. saiba mais As cantigas medievais eram escritas e cantadas em galego-português, ou galaico-português, origens e cujas características são muito discutidas pelos especialistas. Para apro- fundamento sobre o tema, uma boa leitura é o artigo “Sobre a noção de galego português”, de Xoán Carlos Lagares Diez, publicado nos Cadernos de Letras da UFF, disponível em: http://www.uff.br/cadernosdeletrasuff/35/artigo4. pdf. João Soares de Paiva, nascido por volta de 1140, é apontado como o trovador mais antigo. Seu nome e a época em que viveu são referenciais como marco do nascimento da literatura escrita em Portugal. Há quem cite a “Cantiga da Ribeirinha”, de 1189 ou 1198, como texto literário inaugural, mas, de acordo com os estudos de António Saraiva e Oscar Lopes (1996), Paio Soares Taveirós, seu autor, não seria o mais antigo. Antes dele existiu Sancho I (1154-1211), o segundo rei de Portugal, filho de Dom Afonso Henriques, o Afonso I. As cantigas se dividem nas seguintes modalidades: cantigas de amor, cantigas de amigo, cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. 3.2 As cantigas e suas modalidades A cantiga de amor é a modalidade que preserva os traços mais vivos da influência provençal. Notamos sinais desses traços em fatores como a temática, a linguagem e a descrição de paisagens. Encontramos mais provas no 46 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 46 EAD 25/07/2012 14:08:04 Literatura Medieval atenção É importante que você entenda que encontramos infinita e se reflete pela manifestação de desejo jamais alcançado. Daí, a submissão do homem diante da mulher, sempre colocada em plano superior, assim como o suserano que prestava vassalagem ao seu senhor, como já destacamos na aula passada. As figuras femininas aparecem estereotipadas, têm a pele alva, os cabelos claros e, fisicamente, são delicadas. Nas expressões, destacam-se pelo riso contido, pelos gestos vinculações da literatu- refinados e pela postura comedida. O recado da dama impõe um código ao homem, segundo o qual deve se portar com servilidade e discrição. Ele jamais revela a identidade da amada porque a indicação de qualquer sinal que levasse ao mático que somente bem reconhecimento contrariava o princípio da idealização. Assim, externa seu amor a um símbolo destituído de sensualidade e nisso mostra outro indício da vinculação das cantigas com os costumes da época. Por esse procedimento do poeta, testemunhamos sua preocupação em assegurar respeito às convenções da nobreza. Em síntese, percebemos que certas características pois, durante muito tem- ra com a realidade social em todas as épocas. Os Unidade 1 . Aula uma aspiração sem correspondência de parte do ser amado. A impossibilidade da realização amorosa gera uma tensão 2 vocabulário empregado, repleto de provençalismos, do qual se originou uma dicção distinta em relação aos outros tipos, em que tais vestígios são menos perceptíveis. De acordo com Saraiva e Lopes (1996), o amor é o tema predominante, representado como um ideal inatingível, escritores e as escritoras, os poetas e as poetisas, são homens e mulheres que, ao sua arte, desenvolverem sempre dialogando, de estão diversos modos, com a cultura de seu tempo. Com relação à produção literária feminina, por exemplo, é sintomais tarde, na história da literatura ocidental, fora algumas raras exceções, as mulheres tenham conseguido espaço de publicação e reconhecimento, po, elas não tinham direitos, não tinham acesso ao ensino nem à alfabetização. das cantigas evidenciam as simetrias entre a literatura e a estrutura social vigente em Portugal, no período medieval. O amor escondido equivale ao convencionalismo social das cortes, nas quais os deveres e os papéis dos indivíduos estavam bem definidos. O interior dos palácios se restringia à nobreza e quem tinha acesso a seus salões, sem pertencer à aristocracia, ocupava espaço que não lhe pertencia. Sua presença ali indicava concessão dos senhores e de suas damas ao permiti-la, ou seja, denunciava a condição de vassalo e a UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 47 Volume 4 47 25/07/2012 14:08:05 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura obrigação de se colocar em posição de subserviência. Era o caso da maioria dos poetas. Vimos também que a submissão, a obediência, a humildade e a busca do aprimoramento das virtudes faziam parte da pregação religiosa. Isso permite que enxerguemos na Igreja outro instrumento de afirmação de valores e princípios, funcionando como aliada para a preservação da ideologia que interessava à camada social dominante. A cantiga a seguir, da autoria do rei D. Dinis (CV 123, CBN 485, ou seja, cantiga 123 do Cancioneiro da Vaticana, e 485 do Cancioneiro da Biblioteca Nacional), apresenta as principais características das cantigas de amor; para facilitar a leitura, ao texto original segue uma versão em português: Quer’eu em maneira de proençal Quero eu à maneira provençal fazer agora un cantar d’amor, fazer agora um cantar de amor, equerreimuit’iloar mia senhor e quero louvar a minha senhora a que preznenfremusura non fal, a quem honra nem formosura não faltam nen bondade; e mais vos direi en: nem bondade; e mais vos direi sobre ela: tanto a fez Deus comprida de bem tanto a fez Deus completa de bem que mais que todas las do mundo val. Que mais do que todas no mundo (ela) vale. Ca mia senhor quiso Deus fazer tal, Pois a minha senhora Deus quis fazer tanto, quando a faz, que a fez sabedor quando a fez, que a fez conhecedora de todo ben e de mui gran valor, de todo bem e de muito grande valor, econ todo est’é mui comunal e mesmo assim é muito agradável com todos ali u deve; e deu-lhi bom sen, 48 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 48 EAD 25/07/2012 14:08:05 Literatura Medieval do modo como se deve ser; e deu-lhe bom senso edes i non lhi fez pouco de ben, 2 e disso não lhe fez pouco o bem, Unidade 1 . Aula quando non quis que lh’outra foss’igual. Quando não quis que outra lhe fosse igual. Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal, Pois em minha senhora nunca Deus pôs mal, mais pôs i prez e beldad’eloor mas colocou nela honra, beleza e louvor (=mérito) e falar mui ben, e riir melhor e é capaz de falar muito bem, e rir melhor que outra molher; des i é leal que outra mulher; ela é muito leal muit’, e por esto non sei oj’euquen e por isso, não sei eu quem possacompridamente no seu bem possa completamente no seu bem falar, ca non á, tra-lo seu ben, al. Falar, pois não outro bem como o seu. Como você pode perceber, o texto é composto por três estrofes de 7 versos (septilha ou setilha), com 10 sílabas métricas (decassílabos): Quer’/eu/em/ma/nei/ra/de/pro/em/çal 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Observe que sempre contamos a última sílaba quando é tônica e também não esqueça que somente na versão em galego-português encontramos a estrutura sonora e rítmica original das cantigas. Assim, você pode notar que se trata de um texto que apresenta certa sofisticação poética, pois não há estribilho (nesse caso, trata-se de uma cantiga de mestria ou maestria) e o “conteúdo” do texto se desenvolve em versos que mantêm a mesma unidade de rimas, organizadas em uma composição UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 49 Volume 4 49 25/07/2012 14:08:06 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura que exige domínio da versificação, como é o caso dos versos decassílabos. Agora, vamos reler o poema e atentar para o seguinte: a) Na primeira estrofe, o eu lírico (a “voz” que fala no texto, e não deve ser confundida com o autor, embora possamos nos referir a esta voz como a do poeta, de maneira ampla) indica a que tipo de “estilo” ele segue? Sim, pois como vemos no primeiro verso, ele refere-se “à maneira provençal”, que era o modo mais sofisticado de elaboração das cantigas (ou seja, equivaleria a dizer que o poeta está fazendo uma cantiga à maneira dos mestres do gênero); b) Em todas as estrofes percebemos a reverência e subserviência total do eu lírico à dama que instiga o seu cantar? Podemos dizer que se trata de uma representação idealizada desta mulher “perfeita”? As respostas são positivas, claro; pois, ao final de cada estrofe, o eu lírico sempre afirma que não há comparação possível entre essa e qualquer outra mulher do mundo! c) E, no caso das qualidades desta dama, elas são mais físicas ou morais? Sublinhe os adjetivos que qualificam a senhora idolatrada dessa cantiga e escreva sua resposta: ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ ____________________________________________ 50 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 50 EAD 25/07/2012 14:08:06 Literatura Medieval Unidade 1 . Aula 2 Pelo conjunto de respostas alcançadas, podemos compreender, então, que as cantigas de amor, em geral, seguem essa tendência de louvação a uma dama da nobreza, exaltada de forma idealizada, e pela qual, não raramente, o poeta sentia uma grande coita amorosa (o sentimento da dor amorosa), capaz de levá-lo (poeticamente) à morte. É o que vemos na cantiga abaixo, também da autoria de D. Dinis (CV 127, CBN 489): Proençaessoen mui bem trobar Edizen eles que é con amor; mais os que troban no tempo da frol e non en outro, sei eu ben que non na tangran coita no seu coraçon qual m’eu por mha senhor vejo levar. Pero que troban e saben loar sas senhores o mais e o melhor que eles poden, soõ sabedor que os que troban quand’afrolsazon á, e non ante, se Deus mi perdon, nonan tal coita qual eu ei sen par. Ca os que troban e que s’alegrar vaneno tempo que ten a color afrol consigu’, e, tanto que se for aquel tempo, logu’em trobar razon nonan, non viven [en] qual perdiçon oj’eu vivo, que pois m’á-de matar. Provençais sabem muito bem trovar e dizem eles que é com amor; mas os que trovam no tempo da flor (=primavera) e não em outro, sei eu bem que não tem tão grande coita no seu coração como no meu, que por minha senhora estou a levar. Porém, os que trovam e sabem louvar suas que eles podem, sou sabedor senhoras o mais e melhor que os que trovam quando é estação da flor e não antes, que Deus me perdoe, não têm a mesma coita que se possa comparar [à minha] UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 51 Volume 4 51 25/07/2012 14:08:06 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Pois os que trovam e que se alegrar vão no tempo que tem a cor da flor, mas não tanto se não for naquele tempo, pois logo em trovar razão não acham, não vivem na mesma perdição que hoje eu vivo e que me há de matar. Nessa cantiga, “Provençais sabem muito bem trovar”, o eu lírico, ao comparar a sua dor amorosa (a coita) à coita dos (mestres) provençais, afirma que o seu sentimento é muito mais intenso e verdadeiro, pois não se limita a cantar versos apenas na estação primaveril, a tradicional metáfora para a fase da vida e da natureza aberta ao enlace amoroso. Mais do que isso, podemos perceber que, ao longo da cantiga, há uma intensificação dos sentimentos do poeta? Para essa resposta, observe os últimos versos de cada estrofe: você reconhece a gradação que se vai construindo, da ideia de que ele leva no peito uma dor muito forte (1ª estrofe), que não tem comparação com nenhuma outra (2º estrofe) e pode mesmo levá-lo à morte? (3ª estrofe). Portanto vemos que, nas cantigas de amor, se estabelece essa intensa subserviência do poeta ao amor que sente (idealizado) pela dama (idealizada), numa elaboração poética muitas vezes exigente em termos de versificação (ritmo, rimas), o que nos mostra a importância desses textos como fundamentos da lírica em língua portuguesa. As cantigas de amigo têm como característica mais marcante o fato de que a “voz” do eu lírico é feminina, embora composta por um trovador, conforme os estudos de Saraiva e Lopes (1996). Percebemos também particularidades no que diz respeito ao ritmo e à forma. A unidade rítmica, em vez de uma estrofe, é marcada, em muitos casos, por um conjunto de estrofes ou por pares de dois versos (dísticos). O par insiste na mesma ideia e o verso final de cada estrofe se repete como primeiro da subsequente, técnica que remete 52 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 52 EAD 25/07/2012 14:08:06 Literatura Medieval Unidade 1 . Aula 2 às composições improvisadas por repentistas conhecidos em várias regiões do Brasil. Eliminadas as repetições, essas cantigas se reduzem a poucos versos, evidenciando vinculações ao canto e à dança, o que significa que não eram autônomas. A estrutura construída por paralelismos e o refrão presentes como seus elementos típicos fazem crer na existência de um coro. A disposição das estrofes em pares pressupõe a alternância de dois ou de grupos de cantores. De um modo geral, podemos perceber que boa parte das cantigas de amigo permite entrever cenas que ilustram atividades do cotidiano feminino: na fonte, lavando roupas ou os cabelos; na romaria, à espera do amigo ou fazendo promessas aos santos pelo seu regresso, entre outras. Também notamos que o lirismo das cantigas de amigo se aproxima das formas narrativas e dramáticas, pois há ação com diálogos e monólogos, em um cenário mais rústico e natural. Além disso, os elementos naturais como fontes, rios, árvores, aves agem sobre o eu feminino, inspirando o amor, a confissão do desejo, nos levando a reconhecer uma diferença em relação às cantigas de amor: a sensualidade, por vezes descrita com realismo, revela uma realidade menos solene, sem o convencionalismo da corte. Nela os jogos amorosos aparecem explicitamente, livres dos subterfúgios da conquista e apontam para a possibilidade de realização carnal da relação amorosa, como afirma Natália Correia (1978): Ao contrário da cantiga de amor, que se nutre da sublimidade de um sentimento que transcende a carne, a cantiga [de amigo] oferece uma tópica que repõe o amor na sua dimensão humana, patrocinado pela natureza que tudo consente (p. 102). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 53 Volume 4 53 25/07/2012 14:08:06 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Figura 1.2.3 - Paisagem campestre. Fonte: http://1.bp.blogspot.com/-M4fPX-iafjY/TnuziWpeiUI/ AAAAAAAAAM4/0J7p2NpXiaE/s1600/campestre.jpg Um exemplo de “testemunho da comunhão carnal [temos] na cantiga de amigo de Julião Bolseiro [...] que é a expressão dolorosa da saudade física do amigo ausente e a invocação dos tempos venturosos em que a jovem dormia com o amante” (CORREIA, 1978, p. 45). Como podemos ver a seguir (CORREIA, 1978, p. 120): Sen meu amigo manh’ eu senlheira e sol non dormen estes olhos meus e, quant’ eu posso, peç’ a luz a Deus e non mi-a dá per nulha maneira, mais, se masessecon meu amigo, a luz agora seria migo. Quand’ eu con meu amigo dormia, a noite non durava nulharen, e ora dur’ a noit’ e vai e ven, nonven a luz, nenpareç’ o dia, mais, se masessecon meu amigo, a luz agora seria migo. E, segundo, com’ a mi parece, Comigoman meu lum’ e meu senhor, ven log’ a luz, de que non ei sabor, e ora vai noit’ e ven e crece, mais, se masessecon meu amigo, 54 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 54 EAD 25/07/2012 14:08:06 Literatura Medieval a luz agora seria migo. Pater nostrusrez’ eu mais de cento, 2 poraquel que morreu na vera cruz, que el mi mostre mui cedo a luz, Unidade 1 . Aula maismostra-mi as noites d’ avento, mais, se masessecon meu amigo, a luz agora seria migo. Sem meu amigo sinto-me sozinha e não adormecem estes olhos meus. Tanto quanto posso peço a luz a Deus e Deus não permite que a luz seja minha. Mas se eu ficasse com o meu amigo a luz agora estaria comigo. Quando eu a seu lado folgava e dormia depressa passavam as noites; agora vai e vem a noite, a manha demora; demora-se a luz e não nasce o dia. Mas se eu ficasse com o meu amigo a luz agora estaria comigo. Diferente é a noite quando me aparece meu lume e senhor e o dia me traz; pois apenas chega logo a luz se faz. Vai-se agora a noite, vem de novo e cresce. Mas se eu ficasse com o meu amigo a luz agora estaria comigo. Padre nossos já rezei mais de um cento implorando Àquele que morreu na cruz que cedo me mostre novamente a luz em vez destas longas noites de Advento. Mas se eu ficasse com o meu amigo a luz agora estaria comigo Nessa cantiga, dividida em quatro estrofes de quatro versos (quarteto), seguidas de um dístico que se constitui em refrão (estribilho), a voz feminina lamenta a ausência do seu amigo (ou seja, do seu amado, do seu amante) e torna explícita a união física do casal enamorado. Entretanto, trataUESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 55 Volume 4 55 25/07/2012 14:08:07 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura se de uma cantiga mais elaborada se comparada à maioria das cantigas de amigo, pois há uma certa sofisticação na composição rítmica (versos decassílabos) e nas rimas. A esse respeito, é importante sabermos que, de acordo com Natália Correia, “a poesia provençal não poderia enraizar-se na língua galego-portuguesa, se nela não encontrasse um terreno poeticamente elaborado” (1978, p. 41), ou seja, a cantiga de amigo, que se desenvolveu originalmente na Península Ibérica, já possuía certa exigência formal, de maneira que foi possível aos trovadores adotarem as sofisticadas estruturas da cantiga de amor, à moda provençal. De todo modo, muitas cantigas de amigo possuem a simplicidade de versos destinados, sobretudo, ao canto e à dança, como é o caso de “Ondas do mar de Vigo”, do trovador Martin Codax (CV 884, CBN 1227): Ondas do mar de Vigo, saiba mais Se vistes meu amigo! E ai Deus, se verrá cedo! Martim Codax foi um jogral ou segrel galego, do qual restaram apenas Ondas do mar levado, sete cantigas de amigo, se vistes meu amado! em que canta a cidade E ai Deus, se verrá cedo! galega de Vigo. É o mais publicado e estudado de todos os poetas galego- Se vistes meu amigo, portugueses. “A sua fama o por que eu sospiro! deve-se também ao facto E ai Deus, se verrá cedo! de os seus textos serem os únicos que chegaram até nós acompanhados da Se vistes meu amado, respectiva notação musi- por que hei gran cuidado! cal, encontrada, em 1914, E ai Deus, se verrá cedo! no manuscrito conhecido como «Pergaminho del»”, atualmente Vinarqui- vado na Pierpont Morgan Library, em Nova York. Fonte:www.astormentas. com/din/biografia. asp?autor=Martim +Codax. 56 Ondas do mar de Vigo Se vistes o meu amigo! Ai Deus, voltará cedo? Ondas do mar levantado Se vistes o meu amado! Ai Deus, voltará cedo? Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 56 EAD 25/07/2012 14:08:07 Literatura Medieval Se vistes o meu amigo, saiba mais Aquele por quem suspiro! De acordo com o professor Ai Deus, voltará cedo? Barros, “os meios trovadoconfrontos Por quem tenho grande cuidado! que representam pos sociais nos as quais trovadores os gru- Unidade 1 . Aula Ai Deus, voltará cedo? de 2 rescos ibéricos são ricos em Se vistes o meu amado, diversifi cados se constituíam sociedades ibéricas, e também em confrontos que envolvem as diversas po- A simplicidade dos dísticos seguidos do refrão confere forte musicalidade ao texto, marcado pelo lamento da moça que espera o amado, angustiada por não ter notícias dele. As cantigas satíricas se caracterizam pela crítica sições e se apresentam em duas categorias, as de escárnio e as de maldizer. As cantigas de escárnio fazem comentários mais gerais, sem individualizar os aspectos confrontando com certos se- desfavoráveis que apontam. As cantigas de maldizer se referem a pessoas específicas, indicando explicitamente particularidades físicas ou morais, sempre sob um ponto de vista negativo. As duas categorias mostram situações pitorescas da vida na corte, ridicularizando, por vezes com sarcasmo e agressividade, atitudes reprováveis ou anormalidades do corpo dos indivíduos. Raramente as mo tempo, essa é a mesma cantigas satíricas se voltam para assuntos de abrangência mais ampla. políticas motivadas pelas grandes questões da época. Devemos lembrar, por exemplo, que no século XIII tanto em Portugal quanto em Castela, [ocorre] um momento centralizador em que a realeza estava se tores da nobreza que lutam acirradamente pela preservação de uma maior autonomia senhorial. Ao mesépoca em que, em contraponto à sua ascensão social e participação nas lutas da Reconquista, certos grupos sociais não nobres, como os cavaleiros-vilãos, lutam por se afi rmar perante a nobreza. Esses confl itos entre as diferentes ordens (nobreza, clero, não-nobres), tam- bém entre essas e a realeza, aparecem amplamente na poesia trovadoresca da época. Ao mesmo tempo, a Os assuntos das cantigas satíricas variam e vão de certos desregramentos de clérigos e reis às aventuras poesia trovadoresca satírica pícaras de um indivíduo qualquer. Os jograis eram compostos por indivíduos oriundos das camadas subalternas que desfrutavam da condição de artistas, por isso desfrutavam de prerrogativas negadas a outros segmentos das classes populares. Conviviam no interior das cortes, partilhando com fidalgos, reis e clérigos da boemia Podemos falar, por exemplo, é rica em confl itos internos aos grandes grupos sociais. nos confl itos internobiliár- quicos, isto é, os confl itos que se dão no próprio seio da nobreza ibérica”. Fonte: www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol6/ vol6_2.pdf. Acesso em nov. 2010. e de certos desregramentos comportamentais e de linguagem próprios de vínculos de mais intimidade. A UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 57 Volume 4 57 25/07/2012 14:08:07 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura proximidade com os senhores criou uma relação em que a crítica não podia enveredar por temas morais ou sociais, se limitando àquilo que melhor se prestava ao caráter trocista das cantigas satíricas. Apesar das restrições a que estavam submetidos os jograis, algumas composições deixam transparecer problemas da época como a miséria de determinados segmentos da população. A representação da realidade social aparece ainda de outras maneiras. Como andavam pelos mais diversos lugares, frequentando castelos, feiras e cidades diferentes, os jograis criaram cantigas que propiciam o conhecimento das múltiplas facetas da vida em Portugal na época. As cantigas de maldizer se referem a pessoas específicas, indicando explicitamente particularidades físicas ou morais, sempre sob um ponto de vista negativo. Os autores buscavam o pitoresco e anedótico, por isso tratam desde o modo como uma pessoa da corte se vestia ao comportamento afetado de um fidalgo ou da inclinação pela bebida de um religioso. Algumas contêm sabor mais picante, expondo as experiências sexuais de uma mulher pertencente à nobreza (SARAIVA; LOPES, 1996). Transcrevemos, a seguir, uma cantiga de João Garcia de Guilhade para que você observe algumas das características mencionadas: Ai, dona fea, fostes-vos queixar vocabulário que vos nunca louv[o] em meu cantar; • Ora = agora; mais ora quero fazer um cantar • toda via = sempre, • completamente; em que vos loarei toda via; • sandia = louca; e vedes como vos quero loar: • que vos eu loeen nesta dona fea, velha e sandia! razon = mereceis a justiça de eu louvá-la; • loaçon = louvor; Dona fea, se Deus mi pardom, • pero = todavia. Pois avedes [a]tam gram coraçom que vos eu loe, em esta razom vos quero já loar toda via; 58 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 58 EAD 25/07/2012 14:08:07 Literatura Medieval e vedes qual sera a loaçom: dona fea, velha e sandia! 2 Dona fea, nunca vos eu loei Unidade 1 . Aula em meu trobar, pero muito trobei; mais ora ja um bom cantrar farei, em que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! Podemos classificar esta cantiga como de maldizer porque o trovador se dirige diretamente à pessoa de quem fala, a “dona feia, velha e louca”. Notamos na sátira que o poeta revela certa crueldade em relação à mulher a quem se destina a composição. Segundo o trovador, ela se julga merecedora de uma cantiga de amor e à altura de suas atenções. Por trás de um aparente comedimento, ele é duro na rejeição à dama, apontando os defeitos que a tornavam desinteressante: era feia, velha e louca. Considerando que se trata da recusa de uma pretensão amorosa e o caráter desdenhoso da composição, devemos relativizar o sentido dos adjetivos empregados pelo poeta. As cantigas de escárnio se caracterizam pela crítica e fazem comentários mais gerais, sem individualizar os aspectos desfavoráveis que apontam. Mostram situações pitorescas da vida na corte, ridicularizando, pela ironia, atitudes reprováveis ou anormalidades físicas dos indivíduos. As diferenças entre as cantigas de escárnio e as de maldizer são muito sutis porque suas características se misturam numa mesma composição. O principal traço de distinção consiste no fato de as primeiras satirizarem de modo mais indireto, empregando a zombaria mais amarga e insultuosa, em linguagem de sentido ambíguo. As cantigas de maldizer são mais diretas, agressivas e contundentes, com uma linguagem mais objetiva. A maior parte das poesias satíricas pertence a este último grupo (MOISÉS, 1982). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 59 Volume 4 59 25/07/2012 14:08:07 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A cantiga a seguir é de Pero Garcia Burgalês, trovador galego da segunda metade do século XIII. Nela percebemos a crítica a Rui Queimado e a ironia em relação ao seu talento: Rui Queimado morreu con amor vocabulário en seus cantares, por Sancta Maria • Par = por; por ua dona que gran ben queria, • en = disso; • porque cuida que faz i maestria = porque pensa que possui talento; • sabor = gosto; • i = aí; • desi= depois; e, por se meter por mais trovador, porque lh’ela non quis [o] ben fazer, fez-s’elen seus cantares morrer, mas ressurgiu depois ao tercer dia! • ar, re = de novo, Esto fez el por uasa senhor • outra vez; que quer gran ben, e mais vos en diria: • ar viver = reviver; • dês = desde; porque cuida que faz i maestria, • oi = hoje; e nos cantares que fez sabor • pois morrer, de viver = de morrer i e desi d’ar viver; viver depois de morrer esto faz el que x’o pode fazer, mas outr’o mem per ren non [n] o faria. E non há já de sa morte pavor, Se nonsa morte mais la temeria, mas sabe ben, per sa sabedoria, que viverá, dês quando morto for e faz-(s’) en seu cantar morte prender, desi ar viver: vede que poder que lhi Deus deu, mas que non cuidaria. E, si mi Deus a mim desse poder, qual oi’ el há, pois morrer, de viver, jamais morte nunca temeria. O emprego de várias palavras com sentido duplo dá um caráter ambíguo, permitindo que a composição seja enquadrada na categoria de cantiga de escárnio. Percebemos que Rui Queimado tem-se na conta de grande trovador; mas, ao anunciar sua morte iminente, cai no ridículo porque é uma morte lírica, de amor por uma “dona”. O poeta desdenha da 60 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 60 EAD 25/07/2012 14:08:07 Literatura Medieval Unidade 1 . Aula 2 morte de Queimado e com isso ridiculariza o amor, recorrendo a um tom irônico e irreverente em alguns versos, como naquele em que fala do ressurgimento do desafeto. Observamos, ainda, que, ao zombar do outro, o trovador revela certo grau de inveja e parece querer se mostrar superior ao rival. CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS DE AMOR E DE AMIGO Cantigas de amor • origem da Provença, região ao sul da França; • refletem a relação social de submissão; • em geral, tratam de um relacionamento amoroso; • o “eu” declara seu amor a uma dama; • mulher ocupa posição social superior, é inatingível; • o “eu” implora pela aceitação de sua dedicação e submissão; • “eu lírico” masculino. Cantigas de amigo • voz da mulher, embora composta por homem; • o ponto de vista é feminino sobre a relação amorosa; • expressam o sofrimento da mulher: a espera pelo namorado (amigo), a dor diante do amor não correspondido, as saudades, os ciúmes; • as confidências são dirigidas à mãe ou a amigas; • presença de elementos da natureza; • mostram o ambiente familiar. CARACTERÍSTICAS DAS CANTIGAS SATÍRICAS Cantigas de escárnio • crítica (sátira) indireta e a alguém; • emprego de palavras de duplo sentido; • crítica disfarçada pela ironia; • comentários mais gerais sem individualizar; • representam as pessoas de modo desfavorável; • referem-se a situações das cortes e dos castelos. Cantigas de maldizer • referem-se diretamente às pessoas; • indicam explicitamente particularidades físicas ou morais; • ponto de vista negativo de reis, religiosos e pessoas da nobreza; • algumas têm caráter picante. 3.3 A decadência do Trovadorismo Os estudiosos apontam três causas para a decadência do Trovadorismo: 1) decadência do mecenato: os jograis eram mantidos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 61 Volume 4 61 25/07/2012 14:08:08 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura pelos reis; mas, nos anos 1460, Dom Pedro I extinguiu a prática; 2) aburguesamento de Portugal: a partir da Revolução de Avis (1383-1385) as atividades mercantis se expandiram significativamente, determinando alterações no comportamento da sociedade, instituindo um espírito comercial antagônico à vida palaciana, que girava em torno do rei e da fidalguia; 3) conflitos entre Portugal e Espanha: a língua do trovadorismo era o galego-português, devido à influência das peregrinações a Santiago de Compostela, na Galiza. Com a independência de Portugal, as relações com a Espanha passaram a se caracterizar por conflitos permanentes, ocasionando a separação linguística gradativa e a busca de expressões culturais próprias. 62 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 62 EAD 25/07/2012 14:08:08 Literatura Medieval ATIVIDADES ATIV AT IV VI ATIVIDADES Unidade 1 . Aula 2 1. Pesquise em diferentes meios (na internet, nos livros da biblioteca etc.), selecione uma passagem de novela medieval, depois responda: de que modo esses textos representam os valores do feudalismo? 2. Observamos, na cantiga a seguir, de Bernal de Bonaval (apud MOISÉS, 1997, p. 21), a presença de dois campos semânticos: um representa o sentimento e o outro, a morte. Não observamos, entretanto, relação de oposição entre ambos. Explique essa afirmação, desenvolvendo um comentário crítico sobre o texto poético selecionado, evidenciando as principais características desse tipo de expressão lírica do Trovadorismo. A dona que eu am’e tenho por senhor amostrade-me-a Deus, se vos em prazer for, se non dade-me-a morte. A que tenh’eu por lume destes olhos meus e por que choram sempre amostrade-me-a Deus, se non dade-me-a morte. Essa que Vós fizestes melhor parecer de quantas sei, ai Deus, fazde-me-aveer, se non dade-me-a morte. Ai, Deus, que me-a fizestes mais ca mim amar, mostrade-me-a u possa com ela falar, se non dade-me-a morte. 3. Com base na resposta anterior, podemos afirmar que essa cantiga expressa, de certo modo, a realidade histórico-cultural na qual se insere o Trovadorismo? Explique. 4. Elabore um comentário crítico sobre a cantiga UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 63 Volume 4 63 25/07/2012 14:08:08 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura abaixo, apontando os recursos formais do texto e o sentido geral dos versos, definindo a que tipo de cantiga pertence. Dizia lafremosinha: vocabulário • fremosinha: formosinha • ai, Deus, val!: ai, valhame Deus! • bem talhada: bem feita, elegante, bonita. • coitada: infeliz, cheia de sofrimento amoroso. ai, Deus, val! Com’estou d’amor ferida! ai, Deus, val! Dizia la bem talhada ai, Deus, val! Com’estou d’amor coitada! ai, Deus, val! Com’estou d’amor ferida! ai, Deus, val! Nom vem o que bem queria! ai, Deus, val! Com’estou d’amor coitada! ai, Deus, val! Nom vem o que muit’amava! ai, Deus, val!” D. Afonso Sanches filmes O sétimo selo(1957), de Ingmar Bergman Henrique V(1989), deKennethBrannagh Vídeos no youtube: Amália - “Lá Rodrigues: Vão Cantigas As de ‘Cantigas Flores”Santa Medievais’ Fado-World Maria (URL Music v=A_ G68CbDIqc&feature=fvw). Figura 1.2.4 - Capa do filme “O sétimo selo”. 64 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 64 EAD 25/07/2012 14:08:08 Literatura Medieval RESUMINDO RESUMINDO RE ESU S Unidade 1 . Aula 2 Nesta aula, você estudou sobre as principais expressões literárias do período medieval, com destaque para as cantigas trovadorescas, reconhecendo as implicações entre a literatura e o contexto histórico-cultural das produções artísticas. REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS R RE REFE EFE F R As cantigas citadas estão disponíveis no site: http://www. csbrj.org.br/culturaclassica/antologiaMedieval.htm. Acesso em nov. 2010, e no livro seguinte: CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galegoportugueses. Lisboa: Estampa, 1978. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através de textos. São Paulo: Cultrix, 1982. ______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993. ______. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1997. SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, 1996. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 65 Volume 4 65 25/07/2012 14:08:08 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 66 25/07/2012 14:08:09 1ª unidade AULA 3 O HUMANISMO OBJETIVOS Compreender a realidade histórico-cultural da Europa, de modo geral, e de Portugal, de modo específico, durante a transição da Idade Média para a Idade Moderna, reconhecendo as principais expressões literárias portuguesas desse período, com destaque para a obra de Fernão Lopes e de Gil Vicente. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 67 25/07/2012 14:08:09 O Humanismo Unidade 1 . Aula 3 1 INTRODUÇÃO A partir de meados do século XV se sucederam acontecimentos que enfraqueceram o poder da Igreja em relação à influência exercida na Idade Média. Como já vimos, no estágio inicial da formação de Portugal, o ensino visava à formação de religiosos. Com a criação de estabelecimentos de estudos gerais, a educação formal deixou de ser exclusividade dos clérigos, reduzindo o seu controle sobre a transmissão do conhecimento. Em consequência, surgiram descobertas e inovações científicas responsáveis pela inauguração de uma nova era da história, como se verá a seguir. 2 O HUMANISMO EM PORTUGAL 2.1 As mudanças: do ensino à percepção do mundo Uma série de acontecimentos que se sucederam na Europa, durante o século XV, contribuiu para o início do abrandamento da influência exercida pela Igreja no comportamento das pessoas, nas decisões políticas e, fundamentalmente, no pensamento. Uma das causas foi o fim da exclusividade que os clérigos tinham na formação. Em Portugal, a exemplo do que se passava em outros países, o ensino mudou mediante a implantação dos chamados estudos gerais, fato determinante para reduzir o controle dos religiosos sobre a transmissão do conhecimento. Mais aliviado da opressão reinante no interior dos mosteiros, o homem começou a se afastar da visão teocêntrica e libertou UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 69 Volume 4 69 25/07/2012 14:08:09 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura sua imaginação e sua criatividade. Em consequência, surgiram descobertas e inovações científicas responsáveis pela inauguração de um período histórico marcante, o Humanismo. O Humanismo foi uma época de transição e um dos movimentos que integraram o Renascimento, período marcado por profundas transformações no campo do conhecimento que tiveram, entre outras consequências, avanços tecnológicos que facilitaram as grandes viagens marítimas. O eixo central do Humanismo foi a ideia da dignidade (respeito, justiça, honra, amor, liberdade, solidariedade), com o propósito de valorizar as ações humanas. A introdução de princípios lógicos e racionais como explicação para certos fenômenos contrariava a visão de mundo em vigor na Idade Média e marcava a oposição homem X Deus. Em outras palavras, o Humanismo colocava o homem como o centro de interesse, procurando exaltá-lo por suas realizações individuais e coletivas e pela sua capacidade de usar a razão. Para tanto, tomou a Grécia Antiga como modelo, aproveitando o seu legado nas diversas áreas: literatura, arte, filosofia, ciência, história, o que deu origem a novos conceitos a respeito do mundo. Por isso podemos destacar como um dos traços marcantes da cultura no período a valorização da Antiguidade Clássica, com os filósofos, os pintores e os poetas tomando-a como inspiração. Os artistas pegavam as obras dos gregos como modelo a ser seguido e sua meta era imitá-las, não como cópia, mas como grandes exemplos para a criação artística. A partir disso, surgiu um conjunto de normas estéticas que estimulou o aparecimento de novas formas de expressão artística, que se manifestaram de forma particular em cada país (SARAIVA; LOPES, 1996). Devemos pensar no advento do Humanismo em Portugal como fato que se soma a outros ocorridos entre o final do século XIV e o início do século XV. O 70 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 70 EAD 25/07/2012 14:08:09 O Humanismo acontecimento referencial da série foi a Revolução de Avis, em 1385, quando D. João I assumiu o trono e deu início ao período de prosperidade e avanços, que culminou com os descobrimentos, ou seja, consolidou o país política e geograficamente, impulsionou a economia, formou Unidade 1 . Aula 3 poderosa frota naval e organizou respeitável força militar. Disso resultou uma participação significativa no comércio da época e a conquista de territórios na América, na África e na Ásia (SARAIVA, 1984). Figura 1.3.1 - Revolução de Avis. Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_wiAkUPTBrKg/ S7FUIqM8WcI/AAAAAAAAAAU/a0E0mfeTU_U/s1600/untitled.bmp Essa transformação tem a ver com os motivos que provocaram a Revolução de Avis. De um lado estavam os interessados em preservar a estrutura política e econômica do feudalismo, cuja base era a exploração da terra. Do outro, os indivíduos ligados ao comércio, oriundos de outro segmento da população, dispostos a desafiar os nobres. O apoio desse grupo foi decisivo para D. João ser coroado rei e para tomar decisões favoráveis às mudanças que se seguiram. Vitoriosos, os mercadores deram grande impulso à economia e promoveram o desenvolvimento das cidades, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 71 Volume 4 71 25/07/2012 14:08:09 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura que passaram a desempenhar outro papel, o de espaço das transações comerciais, da competição, da venda de produtos (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). As consequências dessa nova realidade se fizeram perceber em todos os campos de atividade. Na vida social, o homem comum passou a se envolver com o mundo prático, portanto mais afastado dos religiosos e de sua preocupação com a salvação da alma. Na esfera política, teve início a expansão marítima, enquanto, no campo econômico, o mercantilismo se consolidou, ou seja, o comércio se intensificou, estimulando a busca de produtos em outros lugares fora da Europa. Um indicativo da posição destacada que Portugal passaria a ocupar nos séculos subsequentes foi a conquista de Ceuta, no norte da África, em 1415. Mobilizando mais de vinte mil homens e duzentos navios, D. João I partiu para dominar um território sob a influência árabe, segundo José Hermano Saraiva (1984, p. 125-6), sem motivo aparente. Ainda que não tenha explicação, o historiador nos dá uma dica de causas que podem ter estimulado o ataque. A expansão da fé católica era um grande argumento para as expedições militares da época que, quando bem sucedidas, resultavam em negócio vantajoso, entre outros aspectos, por conta dos saques praticados. O avanço sobre Ceuta, como aponta Saraiva (1984), foi uma preparação para empreitadas mais ousadas, ou seja, as grandes viagens marítimas que se iniciaram em seguida. O êxito incentivou novas aventuras, transformando o fato em marco para a política de expansão territorial, implantada a partir de então, e do protagonismo dos portugueses no comércio, durante os séculos subsequentes. Com o desenvolvimento da construção naval e a invenção de novos instrumentos, as navegações se tornaram mais seguras para os padrões da época, permitindo a realização das expedições marítimas e a descoberta de mundos até então desconhecidos pelos europeus. 72 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 72 EAD 25/07/2012 14:08:11 O Humanismo Francesco Petrarca (1304-1374) e de Giovanni Boccaccio (1313-1375). Em Portugal, o Humanismo se caracterizou pela introdução de novas perspectivas de organização social, Figura 1.3.2 - Dante Alighieri. Fonte: http://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/6/6f/Portrait_ de_Dante.jpg Unidade 1 . Aula objetivo e a orientação transcendental, que explicava a realidade pela intervenção de Deus. Da mesma forma, a valorização da cultura grega, de caráter racional, conviveu com a cultura religiosa, assim como a estrutura política e econômica do feudalismo permaneceu em vigor, ainda que em decadência, enquanto o mercantilismo se intensificava. Em países como a Itália, foi um período de inovações estéticas e os sinais destas transformações na literatura são encontrados na obra de Dante Alighieri (1265-1321), 3 Precisamos lembrar que o Humanismo foi um período de transição entre duas épocas distintas do ponto de vista histórico: a Idade Média e a Idade Moderna, em que vigorou o Renascimento. Por isso, caracteriza-se pelo convívio de forças opostas, ou seja, a influência da Igreja diminuiu, mas não desapareceu, provocando o confronto entre o pensamento Figura 1.3.2 - Francesco Petrarca. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Francesco_Petrarca econômica, política e cultural que marcaram o início de um período de acontecimentos significativos. Mesmo assim, o contato com outras civilizações, em consequência das navegações, foi além da importação de produtos para o consumo dos europeus. Assim como artigos até então desconhecidos começaram a fazer parte hábitos e necessidades dos portugueses, elementos culturais dos lugares onde suas embarcações ancoravam se incorporam à vida cotidiana (SARAIVA, 1984). Os historiadores associam o advento do Humanismo em Portugal ao nome de Fernão Lopes, personalidade destacada da literatura de língua portuguesa do período, como se verá a seguir. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 73 Volume 4 Figura 1.3.3 - Giovanni Boccaccio. Fonte: http://pt.wikipedia.org/ wiki/http://pt.wikipedia.org/wiki/ Giovanni_Boccaccio 73 25/07/2012 14:08:12 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2.2 As crônicas de Fernão Lopes A biografia de Fernão Lopes traz lacunas quanto a datas, sabendo-se apenas que nasceu entre 1380 e 1390, em local desconhecido, e que faleceu, presumivelmente, entre 1459 e 1460. Das poucas informações disponíveis, há comprovações de que, por volta de 1420, ocupava importantes funções públicas e que conheceu algumas personalidades que participaram da Revolução de Avis, dentre as quais D. João I. Figura 1.3.4 - Fernão Lopes. Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/ flopes1.jpg Exerceu várias atividades, entre elas, a de escrivão de D. João e, mais tarde, de D. Fernando, de quem lavrou o testamento. Seu ofício mais relevante para a literatura foi o de cronista-mor, cujas atribuições consistiam em registrar os acontecimentos da corte. Contrariando o costume da época, não se sujeitou à vontade dos governantes, na medida em que deu outra dimensão à descrição histórica (SARAIVA; LOPES, 1996). Sob o ponto de vista da história, a ampliação de seu relato se faz observar por aspectos como a investigação, por meio da pesquisa em arquivos do Estado, em documentos da Igreja e em sepulturas. Submeteu as anotações de fatos ao confronto de versões, recusou a personalização de indivíduos à condição de heróis e insubordinou-se aos interesses palacianos ao ponto de criticar atitudes de reis e discutir a veracidade de fontes. Sua visão histórica foi além das cortes, dos conventos e da aristocracia; pois, em seus registros, aparecem as populações dos povoados, os homens comuns, os mais diversos setores da sociedade, o trabalhador da aldeia, as festas, a vida na intensidade do seu cotidiano, com seus contrastes, com sua pulsação (ibidem, idem). Em estudo das crônicas de Fernão Lopes, António José Saraiva escreve: A alma que anima as crónicas é evidentemente a que animava as praças onde se reuniam, em magotes ou em assembleias, os homens das vilas. A voz popular, a opinião pública, tem um papel funcional nestas 74 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 74 EAD 25/07/2012 14:08:20 O Humanismo 3 crônicas. Sempre que relata um acontecimento saliente ou de grande importância, Fernão Lopes dedica algumas páginas, às vezes um capítulo inteiro, a expor o que pensavam dele as pessoas, e em especial os povos das vilas e cidades (1993, p. 27). Unidade 1 . Aula Os méritos maiores de Fernão Lopes talvez tenham sido a perspicácia e a sua sensibilidade, reveladoras de dotes de um artista da palavra. O estilo de sua escrita é simples e coloquial, porém elegante, sóbrio, de técnicas apuradas, que supera os limites da narração ou da descrição. Há cortes inesperados, interrupções abruptas, simultaneidades, digressões. Sua expressão é vibrante e arrebatadora, seus diálogos conferem dramaticidade, a plasticidade permite a visualização palpitante dos quadros representados, as personagens têm densidade psicológica, porque hesitam, fraquejam, são ambiciosas, enfim, apresentam as fraquezas humanas (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Atestamos, ainda, sua capacidade por outras marcas que evidenciam aptidões próprias do escritor de ficção, embora não fosse este o seu propósito. Seu domínio da palavra permitiu-lhe o emprego de artifícios para prender a atenção do leitor, com quem quase conversa. Da mesma forma, dá teatralidade e unidade às ações, combina feitos individuais com movimentos de massa, faz acontecimentos múltiplos convergirem para um desfecho, alterna tons, intercalando o colérico com o suave, o irônico com o depreciativo. Tudo isso termina por dar vivacidade à narração na imaginação do leitor, aproximando a descrição de fatos objetivos, como é mais comum à história, da representação subjetiva, como fazem os romancistas (SARAIVA; LOPES, 1996). Boa parte das crônicas de Fernão Lopes se perdeu, restando apenas três: a Crônica del-rei D. Pedro I, a Crônica del-rei Dom Fernando e a Crônica del-rei D. João I. A primeira traça o perfil psicológico do rei, a partir da narração de acontecimentos de seu reinado. É famosa a descrição dos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 75 Volume 4 75 25/07/2012 14:08:21 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura fatos ligados à morte de Inês de Castro. A Crônica del-rei Dom Fernando é importante fonte histórica que reconstitui o período entre o casamento de Dom Fernando com Leonor Telles e o início da Revolução de Avis. Sua leitura permite o conhecimento sobre a reação popular ao enlace, bem como o perfil psicológico do rei e de sua esposa. A Crônica del-rei Figura 1.3.5 - Crônica del-rei D. João I. Chronica de El-Rei D. João I/Fernão Lopes. - Lisboa: Escriptorio, 1897-1898. 7 volumes. Fonte: Biblioteca Nacional: http://purl. pt/homepage/419/419_341.jpg. D. João I divide-se em duas partes, com a primeira dando conta do período entre a morte de D. Fernando, em 1383, e a aclamação de Dom João como rei de Portugal, em 1385. A segunda trata de fatos ocorridos entre 1385 a 1411, quando foi assinada a paz com Castela. Observe os aspectos mencionados na crônica “Como el-rei fez conde e armou cavaleiro João Afonso Telo e da grande festa que lhe fez”, de Fernão Lopes: Em três cousas, assinadamente, achamos, pela mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava seu tempo. A saber: em fazer justiça e desembargos do Reino, em monte e caça, de que era mui querençoso; e em danças e festas segundo aquele tempo, em que tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido. Figura 1.3.6 - Livro Crônica del-rei D. Fernando. Crônica de el-rei D. Fernando/ Fernão Lopes. Lisboa: Escriptorio, 18951896. 3 volumes. Fonte: Biblioteca Nacional: http://purl. pt/homepage/419/419_341.jpg. E estas danças era a som de umas longas que então usavam, sem curando de outro instrumento, posto que o aí houvesse; e se alguma vez lho queriam tanger, logo se enfadava dele e dizia que o dessem ao demo, e que lhe chamassem os trombeiros. Ora deixemos os jogos e festas que el-Rei ordenava por desenfadamento, nas quais, de dia e de noite, andava dançando por mui grande espaço; mas vede se era bem saboroso jogo. Vinha el-Rei em batéis de Almada para Lisboa, e saíam-no a receber os cidadãos, e todos os Figura 1.3.7 - Livro Crônica del-rei D PedroI. Crônica del-rei D. Pedro I deste nome, e dos reis de Portugal o oitavo cognominado o Justiceiro na forma em que a escreveu Fernão Lopes/copiada fielmente do seu original antigo pelo Padre José Pereira Bayam. Lisboa Ocidental: na Oficina de Manoel Fernandes Costa, 1735. Fonte: Biblioteca Nacional - http://purl. pt/homepage/419/419_341.jpg. 76 dos mesteres, com danças e trebelhos, segundo então usavam, e ele saía dos batéis, e metia-se na dança com eles, e assim ia até o paço. Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 76 EAD 25/07/2012 14:08:21 O Humanismo Parai mentes se foi bom sabor: jazia el-Rei em Lisboa uma noite na cama, e não lhe vinha sono para dormir. E fez levantar os moços, e quantos dormiam no paço; e mandou 3 chamar João Mateus e Lourenço Palos, que trouxessem os trombas de prata. E fez acender tochas, e meteu-se pela Unidade 1 . Aula vila em dança com os outros. As gentes, que dormiam, saíam às janelas, a ver que festa era aquela, ou por que se fazia; e quando viram daquela guisa el-Rei, tomaram prazer de o ver assim ledo. E andou el-rei assim gram parte da noite, e tornou-se ao paço em dança, e pediu vinho e fruta, e lançou-se a dormir... E não curando mais falar de tais jogos: ordenou el-Rei de fazer conde e armar cavaleiro João Alfonso Telo, irmão de Martim Afonso Telo, e fez-lhe a mor honra, em sua festa, que até aquele tempo fora visto que rei nenhum fizesse a semelhante pessoa; pois elRei mandou lavrar seiscentas arrobas de cera, de que fizeram cinco mil círios e tochas; e vieram do termo de Lisboa, onde el-Rei então estava, cinco mil homens das vintenas para terem os ditos círios. E quando o conde houve de velar suas armas, no mosteiro de S. Domingos dessa cidade, ordenou el-Rei que desde aquele mosteiro até os seus paços, que é assaz grande espaço, estivessem quedos aqueles homens todos, cada um com seu círio aceso, que davam todos mui grande lume; e el-Rei, com muitos fidalgos e cavaleiros, andava por entre eles, dançando e tomando sabor. E assim despenderam gram parte da noite. Em outro dia, estavam mui grandes tendas armadas no Rossio, acerca daquele mosteiro, em que havia grandes montes de pão cozido, e assaz de tinas cheias de vinho, e logo prestes por que bebessem. E fora estavam ao fogo vacas inteiras em espetos a assar, e quantos comer queriam daquela vianda, tinham-na muito prestes e a nenhum não UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 77 Volume 4 77 25/07/2012 14:08:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura era vedada. E assim estiveram sempre, enquanto durou a festa, na qual foram armados outros cavaleiros, cujos nomes não curamos dizer. (Citado a partir de: SARAIVA, 1993, p. 46). Verbetes Longas = instrumento musical tocado por trombeteiro; Trebelhos = brincadeira envolvendo pulos e saltos; Homens das vintenas = homens obrigados ficar à disposição do rei, divididos em grupos de vinte (Fonte: SARAIVA, 1993). Podemos perceber que Fernão Lopes descreve vários aspectos da vida nos palácios, fazendo referências às ocupações de ordem administrativa do rei e a suas distrações preferidas, mostrando a relação que mantinha com o povo. A cena em que o rei sai “pela vila em dança com os outros” é bastante dinâmica: as tochas sendo acesas, a música das trombas, o rei avançando pela vila, a dança, as janelas se abrindo, a movimentação das pessoas. A descrição é muito visual (não fosse o anacronismo, poderíamos comparar às técnicas cinematográficas), pois começa com o rei na cama e a perspectiva se abre gradativamente para encerrar novamente no lugar em que iniciou, porém, a exemplo de uma câmera, durante a abertura do foco são mostrados detalhes, inclusive sugerindo expressão de alegria no rosto das pessoas ao ver o rei. Destacamos também a plasticidade como outro recurso próprio da literatura que Fernão Lopes emprega. A cena é emoldurada pelo contraste da escuridão da noite com as tochas acesas. Essas tochas, presume-se, são conduzidas pela rua, iluminando o bailado do rei e seu séquito, ao mesmo tempo em que as janelas se abrem, sugerindo a claridade do interior das casas. No parágrafo seguinte, tem grande efeito 78 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 78 EAD 25/07/2012 14:08:23 O Humanismo sugestivo a imagem dos cinco mil homens, divididos em grupos de vinte, conduzindo círios e tochas. para conhecer 3 Acesse o youtube e assista ao vídeo do Programa Iluminuras, “Obra rara – Biblioteca da Câmara dos Unidade 1 . Aula Deputados”: nele você conhecerá um pouco mais sobre a vida e obra de Fernão Lopes. Fonte: http://youtu.be/XvHlzPJTbkw. Os principais traços do estilo de Fernão Lopes podem ser resumidos em poucas palavras: apesar de concentrar sua atenção na figura do rei, revela interesse por fatos políticos diante dos quais se posiciona. Faz sondagem psicológica, pois se preocupa com a interioridade das pessoas, ainda que fique nas camadas mais superficiais. Suas descrições abrangem aquilo que está ao redor do rei, incluindo indivíduos de fora do círculo da nobreza e apresentam tal dinamismo que lembram técnicas das câmeras cinematográficas. Além de permitir a visualização, surpreende trazendo para o leitor pormenores. Por fim, Fernão Lopes soube equilibrar seu talento de prosador com a influência das novelas de cavalaria, porém em estilo natural e vigoroso sem se descuidar do rigor necessário ao historiador. 3 GIL VICENTE: O VELHO E O NOVO COMO PRENÚNCIO DE OUTRA ERA 3.1 O teatro medieval português Se podemos falar sobre as cantigas medievais ou as crônicas de Fernão Lopes, comprovando objetivamente as particularidades apontadas pelos historiadores da literatura UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 79 Volume 4 79 25/07/2012 14:08:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura é porque dispomos dos textos. As cantigas chegaram até nós porque foram recolhidas em cancioneiros, os quais estão devidamente preservados em bibliotecas, do mesmo modo como os volumes com as crônicas de Fernão Lopes, facilitando o acesso dos estudiosos. Infelizmente nem todas as obras literárias do passado foram conservadas; pois, em razão de fatores como guerras, incêndios, ou mero descaso, entre outros, acabaram desaparecendo para sempre. Com relação ao teatro português da Idade Média, não se conhece a existência de manuscritos, porém isso não significa que não tenham existido: Não há documento que registre a existência do teatro litúrgico em Portugal. Entretanto, se não houvesse esse teatro não haveria motivo para a existência de numerosas proibições destinadas a extinguir tal ‘devassidão’ dos costumes. Bispos e arcebispos portugueses protestavam contra o pecado de dançar nas igrejas ou de usar máscaras profanas. Aceitavam as representações como a do presépio, dos reis magos. Evidentemente eram contra o teatro que as pessoas simples traziam para dentro da Igreja: a experiência humana exterior ao adro não era possível encenar dentro da Igreja. Em praças públicas e na corte havia os jograis remedadores, cujo trabalho consistia em imitar, ridicularizando, pessoas. Não chega a constituir teatro porque não há unidade texto-representação (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 25). Pela citação, podemos constatar que existiu um teatro religioso, caracterizado pelos chamados “mistérios” e “milagres”, e havia as formas populares de representação. Com relação ao primeiro, segundo os autores mencionados, eram encenadas passagens da Bíblia por ocasião de datas como o Natal e a Páscoa, com a finalidade de estimular a fé 80 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 80 EAD 25/07/2012 14:08:23 O Humanismo 3 cristã e pregar princípios morais, portanto sem propósito artístico. Nas manifestações provenientes do povo predominava o humor de tom crítico que se realizava em espaços abertos, evidenciando seu caráter marginal. Eram as “farsas”, peças de curta duração em que, entre um ato e outro, ocorria a encenação dos “entremezes”, apresentados Unidade 1 . Aula por jograis cômicos. Nos palácios, tiveram boa aceitação as pantomimas, isto é, representações apenas por meio dos gestos das novelas de cavalaria que, por vezes, se limitavam “a vistosos desfiles de personagens ou de símbolos da majestade régia” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 191-192). Os milagres, os mistérios, as farsas e as pantomimas sintetizam o teatro da Idade Média que, apesar de carecer de elementos fundamentais para a dramaturgia, foi a base para a produção de Gil Vicente. 3.2 O teatro de Gil Vicente Pouco se sabe sobre a biografia de Gil Vicente, mas a certeza de sua grande importância para a literatura portuguesa se opõe às interrogações a respeito de sua vida. De acordo com estudos realizados, ele nasceu em 1465 ou 1466, provavelmente em Guimarães, norte de Portugal, e sua primeira peça foi apresentada no ano de 1502. Ocupou a função de organizador de festas, trabalhando para os reis de seu tempo, chegando a se tornar uma figura respeitada. Mesmo assim, algumas de suas peças foram proibidas pela Inquisição. Seu último texto foi escrito em 1536, não se conhecendo o que lhe sucedeu a partir de então (SARAIVA; LOPES, 1996). Gil Vicente, “a princípio buscou as ideias nas representações pastoris de Juan del Encina” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 27), mas aproveitou UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 81 Volume 4 Figura 1.3.8 - Gil Vicente. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Gil_Vicente 81 25/07/2012 14:08:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais A Inquisição foi um tribunal criado para defender os princípios da Igreja Católica. Com este argumento vigiava, perseguia e prendia pessoas sus- peitas de desrespeitar o catolicismo. Fazia isso interferindo no comporta- mento, censurando livros, negando a ciência, enfim, procurando impedir o surgimento de qualquer coisa que pudesse ameaçar a fé ou a autoridade do papa. As pessoas acusadas eram presas e torturadas e, se elementos dos tipos de manifestação feitas pelo povo. A influência do poeta e dramaturgo espanhol foi consequência dos contatos frequentes entre as cortes, “sendo castelhanas todas as esposas dos reis de Portugal do século XVI” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 192). Como por ocasião do casamento as noivas se faziam acompanhar por um grupo de pessoas de sua confiança, é fácil imaginarmos que o castelhano era falado corriqueiramente no interior dos palácios. Ao amadurecer literariamente, Gil Vicente se distanciou das influências e criou um estilo próprio, sem deixar de lado os elementos da cultura teatral de Portugal: confessavam sua culpa e se mostravam didas, eram Mas, à medida que vai avançando e enriquecendo as suas formas e repertório teatral, Gil Vicente integra novos elementos, alguns sem dúvida tradicionais: o sermão burlesco (gênero que existe na literatura espanhola do século XV, e nas representações populares portuguesas da mesma época), outras imitações jocosas de atos religiosos, como ladainhas [...]. Vai integrando, por outro lado, formas teatrais ridas fora de Portugal (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 193). arrepen- perdoadas. Aqueles que não mudavam de opinião e os reincidentes eram condenados a morrer queimados por fogueiras, em cerimônias chamadas autos-de-fé. Em outras palavras, Gil Vicente partiu de um modelo de teatro mais apurado em relação àquilo que se fazia em Portugal; mas, com o passar do tempo, aproveitou a tradição portuguesa para se aprimorar, tanto no que diz respeito a motivos quanto no uso de recursos cenográficos. Nesse processo, tornou-se um nome referencial para o teatro e para a literatura em língua portuguesa. Embora tenha vivido na segunda metade do século XV, sua obra permite que façamos associações com o período de transição entre a Idade Média e o Renascimento. Por isso é possível encontrar em suas peças certo bifrontismo, ou seja, ora são mais evidentes as marcas do medievalismo, ora se fazem notar antecipações da 82 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 82 EAD 25/07/2012 14:08:24 O Humanismo 3 era renascentista (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Sua trajetória está ligada ao contexto dos avanços no conhecimento científico, porém sofria maior influência da atmosfera medieval, religiosa e conservadora do interior dos palácios, onde viveu. Sua carreira está ligada à vida palaciana Unidade 1 . Aula e se estendeu por três reinados. A estreia foi com o Auto da visitação ou Monólogo do vaqueiro (1502), encenado para comemorar o nascimento de D. João III, e recebido com entusiasmo. Conquistando a admiração de Leonor, irmã do rei D. Manuel, Gil Vicente recebeu o apoio necessário para desenvolver suas atividades e com isso fundar o teatro português. As oscilações que a obra de Gil Vicente expressa não se devem unicamente ao confronto de concepções antagônicas de mundo, em que a visão teocêntrica do medievalismo resistia ao pensamento lógico e antropocêntrico do Renascimento. Vivendo no interior dos palácios, acompanhou de perto as decisões de reis com atitudes contraditórias, embora compreensíveis diante do quadro de mudanças radicais que aconteciam no período. D. João II se esforçou para diminuir a influência da nobreza ao longo de seus quinze anos de reinado, iniciado em 1481, e em concomitância estimulou as navegações. D. Manuel foi rei de 1495 a 1521 e tomou decisões em outro sentido, como veremos (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Não devemos esquecer que a Revolução de Avis teve o apoio do segmento social que se dedicava ao comércio, sendo o próprio rei mercador e monopolista. Essa situação perdurou por cerca de duzentos anos, colocando Portugal em situação diferente da existente em outros países da Europa, onde a nobreza vivia de ganhos com a exploração da terra. Os portugueses preferiam investir os lucros em transações comerciais e atividades paralelas como o transporte e as UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 83 Volume 4 83 25/07/2012 14:08:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura viagens marítimas. D. Manuel tratou de repatriar nobres exilados durante o reinado de seu antecessor, assim como se mostrou tolerante com os judeus, encontrando uma solução intermediária para que a fortuna deles permanecesse no país, exigindo-lhes a conversão ao catolicismo. D. João III, o terceiro rei de Portugal enquanto Gil Vicente esteve em atividade, permaneceu no trono até 1557 e se destacou pela atuação em favor da cultura, exercendo o mecenato e abrigando em sua corte escritores e artistas. Também foram consideráveis suas iniciativas em prol do ensino, instituindo reformas na universidade e concedendo bolsas para estudos fora de Portugal. Em contrapartida, permitiu a instalação da Inquisição e se submeteu à Companhia de Jesus, a quem entregou a missão catequizadora nos territórios recém-descobertos, assim como lhe entregou grande parte da responsabilidade pela educação (SARAIVA, 1984). Assim, criava-se em Portugal um conflito de mentalidades, pois de um lado estavam os indivíduos educados dentro dos fundamentos inquisitoriais dos jesuítas, do outro, ficavam aqueles formados pelas universidades estrangeiras, mais resistentes à influência da Igreja e mais afastados da orientação medieval. Gil Vicente viveu neste ambiente de contrastes entre duas concepções de vida e até mesmo a forma como seu trabalho artístico era recompensado expressa o caráter transitório da época. Consta que recebia tenças, uma espécie de remuneração fixa, o que pode ser tomado como antecipação das normas que viriam a regular a atividade criadora e da transformação da obra de arte em objeto de consumo (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Sobre as principais características do teatro vicentino, devemos lembrar que o dramaturgo português dividiu com Juan del Encina a paternidade do teatro na Península Ibérica. O modelo que ambos tinham à disposição era o 84 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 84 EAD 25/07/2012 14:08:24 O Humanismo Figura 1.3.9 - Farsa de Inês Pereira. Fonte: http://www.joraga.net/gilvicente/ pags/ximagens23InesPereira.htm Unidade 1 . Aula o propósito de amplificar seus efeitos emotivos. Gil Vicente, entretanto, ignorou o rigor das regras do teatro clássico, contrariando a máxima aristotélica da eliminação de tudo que não contribuísse para o efeito final. Em suas peças, aparecem temas diversos, seus autos e farsas representam situações múltiplas e contam com quantidade considerável de atores aos quais se somam inúmeros figurantes. A ação se desenvolve com saltos temporais e quase nunca ocorre a indicação de sua duração, assim como os lugares 3 teatro medieval e o da Grécia Antiga, conformado dentro dos padrões rígidos da lei das três unidades estabelecidas por Aristóteles. Segundo tais princípios, a unidade de ação (uma ação principal como célula dramática), de tempo (duração de um dia) e de lugar (desenvolvimento da ação em um só lugar) tinha por finalidade unificar o tom das tragédias com também se multiplicam, se sobrepondo uns aos outros, sem qualquer preocupação quanto à unidade. Do mesmo modo, há mistura de elementos sérios e cômicos, com o livre trânsito de um tom a outro, apresentando personagens de classes sociais distintas, recorrendo a elementos externos como vestuário, gestos, instrumento de trabalho, mesclando níveis de registro de linguagem, que se alternam de acordo com o grupo social correspondente (SARAIVA; LOPES, 1996). Com relação à ação dramática, encontramos no teatro vicentino duas modalidades principais, as peças de ação fragmentária e as peças de enredo. Nas primeiras, não há um enredo de ação encadeada, com começo, meio e fim. As cenas são quadros com certa autonomia e representados sem ordem rigorosa. De modo geral, a ação é constituída por apenas uma situação que se repete com variação de protagonistas e de exemplos. Algumas das peças fragmentárias preservam o sentido mesmo com a eliminação de duas ou três personagens, embora com prejuízo na abrangência. Um exemplo é o Auto da barca do inferno (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 85 Volume 4 85 25/07/2012 14:08:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Nas peças de enredo, a história se desenvolve em torno de ação contínua e encadeada, com situações construídas a partir da realidade, ou de uma série de episódios envolvendo uma personagem central. Há casos em que uma ação homogênea se articula com outras de maior complexidade, com início, meio e fim. São exemplos algumas de suas principais obras: Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira e O velho da horta. Do ponto de vista do gênero, a produção de Gil Vicente é predominantemente satírica, calcada na crítica comportamental, sem distinção de camada social. Percebemos em sua obra a presença de quantidade expressiva de religiosos de todas as hierarquias: o frade, o bispo, o cardeal e até mesmo o papa, que protagonizam situações das mais díspares. Tanto se entregam a amores proibidos ou enlouquecem por causa de uma mulher, quanto vendem indulgências. Vão do misticismo exagerado à depravação. Há os que rezam mecanicamente e aqueles que solicitam favores pessoais em nome de Deus (SARAIVA; LOPES, 1996). Gil Vicente, como dissemos, viveu num período de transição entre concepções opostas de mundo, quando a renovação do pensamento com base na lógica e na ciência encontrava a resistência da mentalidade medieval fortemente influenciada pelo catolicismo, a qual explicava os fenômenos pela intervenção de Deus. Foi uma época de descrédito nos valores que vigoravam na Idade Média, enquanto os novos eram aceitos com certa reserva. Diante disso, podemos analisar as sátiras de Gil Vicente sob duas perspectivas. Num plano mais próximo, enxergamos a sociedade portuguesa do século XVI, com suas fraquezas, sua moralidade e suas contradições. Em uma segunda camada, nos deparamos com o homem enquanto espécie, que vivia em uma sociedade tutelada pela Igreja e submetida às conveniências dos interesses políticos e econômicos (MOISÉS, 1983). 86 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 86 EAD 25/07/2012 14:08:25 O Humanismo Unidade 1 . Aula 3 Observe algumas das características do teatro de Gil Vicente que mencionamos no fragmento do Auto da Lusitânia (1531), em que aparecem como personagens Ninguém, Todo o Mundo, Berzebu e Dinato: ESTÃO EM CENA O DIABO, BERZEBU, E SEU AMIGO, DINATO, ESTE PREPARADO PARA ESCREVER Entra Todo Mundo, homem vestido como rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz: Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: Que andas tu aí buscando? Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando porfiando, por quão bom é porfiar. Como hás nome, cavaleiro? Eu hei nome Todo Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo. Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência. BERZEBU PARA DINATO Berzebu: Dinato: Berzebu: Esta é boa experiência! escreve isto bem. Que escreverei, companheiro? Que Ninguém busca consciência e Todo Mundo dinheiro. NINGUÉM PARA TODO MUNDO Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: UESC E agora, que buscas lá? Busco honra muito grande. E eu virtude, que Deus mande que tope co’ela já. Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 87 Volume 4 87 25/07/2012 14:08:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura BERZEBU PARA DINATO Berzebu: Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: Outra adição nos acude: Escreve aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo, e Ninguém busca virtude. Buscas outro mor bem qu’esse? Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. E eu quem me reprendesse em cada cousa que errasse. BERZEBU PARA DINATO Berzebu: Dinato: Berzebu: Escreve mais. Que tens sabido? Que quer em extremo grado Todo Mundo ser louvado, e Ninguém ser repreendido. NINGUÉM PARA TODO O MUNDO Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: Buscas mais, amigo meu? Busco a vida e quem ma dê. A vida não sei que é, a morte conheço eu. BERZEBU PARA DINATO Escreve lá outra sorte. Que sorte? Muito garrida: Todo Mundo busca a vida, e Ninguém conhece a morte. Berzebu: Dinato: Berzebu: TODO MUNDO PARA NINGUÉM Todo Mundo: Ninguém: E mais queria o Paraíso, Semmo ninguém estorvar. E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso. BERZEBU PARA DINATO Escreve com muito aviso. Que escreverei? Escreve que Todo Mundo quer Paraíso, e Ninguém paga o que deve. Berzebu: Dinato: Berzebu: TODO MUNDO PARA NINGUÉM Todo Mundo: Ninguém: 88 Folgo muito d’enganar, e mentir nasceu comigo. Eu sempre verdade digo, sem nunca me desviar. Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 88 EAD 25/07/2012 14:08:25 O Humanismo BERZEBU PARA DINATO Berzebu: Dinato: Berzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso! Quê? Que Todo Mundo é mentiroso, e Ninguém diz a verdade. Que mais buscas? Lisonjar. Eu sou todo desengano. Unidade 1 . Aula Ninguém: Todo Mundo: Ninguém: 3 NINGUÉM PARA TODO MUNDO BERZEBU PARA DINATO Berzebu: Dinato: Berzebu: Escreve, ande lá mano! Que me mandas assentar? Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo Mundo é lisonjeiro, e Ninguém desenganado. Fonte: portaldoprofessor.mec.gov.br. Acesso em abr. 2011. A peça tem caráter satírico, como a maioria das obras de Gil Vicente, que escrevia em verso. O diálogo entre Todo Mundo e Ninguém é escutado por Berzebu e Dinado, que anotam o que é dito para informar a Lúcifer. Segundo Massaud Moisés (1983), a cena apresenta unidade e autonomia, pois tem significado próprio e não sofre prejuízo quando isolada do restante do texto. É evidente o caráter alegórico, isto é, representa algo com o propósito de remeter a questões morais dentro de situações que jogam com sentidos duplos e figurados. Dessa forma, os interlocutores não devem ser vistos como seres concretos, mas tomados como símbolos de pessoas vivas ou das inclinações humanas, daí a permanência e a atualidade da obra, porque trata de problemas relacionados à ganância, ao oportunismo, à falta de virtudes. Por isso o texto apresenta uma primeira superfície em que encontramos Portugal e a época em que Gil Vicente viveu, e outra em que cabe o homem de qualquer tempo, com UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 89 Volume 4 89 25/07/2012 14:08:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura intenções moralizantes. Esse fragmento do Auto da Lusitânia ainda nos permite identificar outros elementos da realidade social e econômica da época de Gil Vicente. Todo Mundo é um homem rico e é mercador, ou seja, tudo indica que sua fortuna foi acumulada com ganhos obtidos com o comércio. Como vimos, o segmento dos comerciantes exerceu forte influência no controle do poder político em Portugal por aproximadamente duzentos anos e se empenhou na realização das viagens marítimas e nas conquistas territoriais que ocorriam naquele momento. Como homem afortunado, Todo Mundo está identificado com o segmento que apoiava as decisões do rei, permitindo que pensemos nos interesses nem sempre declarados que moveram as chamadas grandes descobertas. É importante destacar que, apesar de criticar toda a sociedade, Gil Vicente poupou de sua mordacidade a família real, provavelmente porque dependia dela economicamente. Também chama a atenção o fato de não questionar as instituições, dirigindo-se sempre contra os indivíduos, como exemplificam as sátiras envolvendo o clero, nas quais não observamos qualquer indagação às verdades da fé cristã (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Antes, pelo contrário, sua visão de mundo é teocêntrica, assim como se opunha às mudanças em curso na época, temeroso de que elas colocassem em risco a integridade do povo português. Daí o moralismo de seus autos na crítica à corrupção, ao adultério, à ambição. As peças de Gil Vicente podem ser divididas, de acordo com certas particularidades que apresentam (SARAIVA; LOPES, 1996). Os autos pastoris são farsas de assunto campestre, enquanto que farsas como Inês Pereira e os autos cavalheirescos formam o teatro de enredo. Do ponto de vista da estrutura cênica existe a farsa, com episódio simples de um caso ou um tipo identificado por características morais 90 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 90 EAD 25/07/2012 14:08:25 O Humanismo 3 ou sociais, como em Quem tem farelos?; o auto de enredo, como é o caso de Inês Pereira; e o auto alegórico, que pode ser religioso, como o Auto da barca do inferno, ou profano como Frágua do amor. Das três categorias, a mais comum é a do auto alegórico. Em síntese, podemos apresentar o seguinte esquema, Gênero teatral Assunto autos pastoris monólogos ou diálogos de pastores autos de moralidade temática inspirada na Bíblia autos cavalheirescos episódios sentimentais ao gosto da corte farsas flagrante da vida de uma pessoa ou sucessão de quadros cômicos alegoria temas profanos, envolvendo cenas de farsas, romance e canções Unidade 1 . Aula que visa apenas a facilitar a compreensão da obra de Gil Vicente em sua multiplicidade de faces. A divisão que estabelecemos parte de uma proposta definida por José António Saraiva e Oscar Lopes (1996): Em relação às características formais, as peças de Gil Vicente juntam elementos cômicos com elementos sérios sem nenhuma restrição, colocando no palco indivíduos de classes sociais distintas, representadas por meio de gestos, pela vestimenta, por instrumentos de trabalho e, principalmente, pela linguagem. As personagens se apresentam como generalizações e estereótipos, indicados por uma categoria profissional ou uma classe social, ou podem ser um grupo de pessoas identificadas pelo seu tipo psicológico. Existem as personagens alegóricas que aparecem como deuses, anjos, demônios, virtudes, a Igreja, a fama, as estações do ano, os planetas. Vimos em Auto da Lusitânia que Todo Mundo e Ninguém representam somente a ideia que seus nomes sugerem, porque tanto são nomes próprios quanto pronomes indefinidos. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 91 Volume 4 91 25/07/2012 14:08:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES AT A TIV VI ATIVIDADES 1. Pode-se dizer que, no excerto a seguir , encontramos elementos que definem o caráter humanista da prosa de Fernão Lopes? Explique: Figura 1.3.9 - Assinatura autógrafa de Fernão Lopes. Torre do Tombo. Fonte: http://cvc.instituto-camoes. pt/literatura/autflopes3.gif “Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não podemos da conteúda em esta obra”. Fonte: Crónica de D. João I, Prólogo. Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/fernaolopes.htm. Acesso em mar. 2010. 2. Acesse o site “Domínio Público” e faça dowload de O Auto da Índia e Farsa de Inês Pereira. Após a leitura dessas obras de Gil Vicente, você concorda que podemos afirmar, sobre o teatro vicentino, que se trata de uma expressão artística popular, marcada por forte crítica social, alicerçada sobre o humor e a ironia? Para responder, siga os seguintes passos de análise: a. aestabeleça qual é o tema central de cada um desses textos (do que tratam?); b. descreva os principais elementos da composição formal das obras: tipos de personagens, de cenários (a ambientação), a dimensão temporal (o tempo em que se passam as ações); c. por fim, conclua: por que podemos considerar tais obras vicentinas como significativas expressões do Humanismo português? 92 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 92 EAD 25/07/2012 14:08:25 O Humanismo RESUMINDO RESUMINDO RE ESU Unidade 1 . Aula 3 Nesta aula, conhecemos um pouco da obra de Fernão Lopes e de Gil Vicente, nomes representativos do Humanismo em Portugal. Esse período marcou a transição dos valores medievais para os valores da modernidade. Nas crônicas de Fernão Lopes, percebemos a humanização dos reis, em narrativas que buscam unir a tentativa do autor em garantir a objetividade da história, com a utilização de recursos literários capazes de manter o interesse do leitor. No caso de Gil Vicente, vimos que ele foi o fundador do teatro em língua portuguesa e um dos grandes renovadores do teatro moderno. Suas peças retratam as contradições do período, pois nelas encontramos sinais da mentalidade medieval de orientação teocêntrica, em processo de enfraquecimento, e prenúncios da concepção de mundo que entrava em vigor, colocando o homem no centro de todas as coisas, com base na lógica, na razão e nas descobertas científicas. Num outro plano, vislumbramos mais pontos de conexão entre sua obra e a realidade social, cultural e política do Humanismo, porque suas peças nos remetem à sociedade portuguesa do século XVI e suas mazelas, suas relações de poder, seus princípios morais e éticos. REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS R RE E ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 27. ed. revista e aumentada. São Paulo: Cultrix, 1992. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 93 Volume 4 93 25/07/2012 14:08:26 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ______. A literatura portuguesa através de textos. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1983. SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1996. ______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9. ed. Europa-América: Lisboa, 1984. 94 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 94 EAD 25/07/2012 14:08:26 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 95 25/07/2012 14:08:26 1ª unidade AULA 4 O RENASCIMENTO OBJETIVOS Identificar os propósitos estéticos do Renascimento, reconhecendo os aspectos mais importantes do contexto histórico-cultural português no início da Idade Moderna, com destaque para o estudo sobre a obra de Luís de Camões. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 97 25/07/2012 14:08:26 O Renascimento 1 INTRODUÇÃO Unidade 1 . Aula 4 As novelas de cavalaria e as cantigas, as primeiras manifestações literárias de Portugal, articulam-se com a concepção de mundo da Idade Média e refletem a época de lutas e conquistas em nome da fixação de um território, do catolicismo e por relações econômicas de submissão e fidelidade à nobreza. Assim, nós as identificamos como o correspondente literário do ideal que orientou as Cruzadas e, mais tarde, a vida reclusa do ambiente dos castelos. O teatro de Gil Vicente surgiu em seguida, no momento de transição entre a Idade Média e o Renascimento, caracterizado pela oposição entre o pensamento teocêntrico, profundamente vinculado à religião, e a concepção de mundo em que o homem ocupa papel central, com base na lógica e na razão. O espírito humanista do Renascimento, aberto ao pensamento lógico, enfraqueceu os poderes da Igreja e estimulou grandes avanços tecnológicos, inaugurando uma fase de transformações profundas em todas as áreas, de ampliação de fronteiras geográficas e de conhecimento. Essas mudanças se refletiram na criação literária, introduzindo assuntos e ambientes novos e, sobretudo, levando os escritores a encarar o mundo sob outra perspectiva. A partir de agora, conheceremos Luís de Camões, a maior expressão literária do Renascimento e um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa. 2 O RENASCIMENTO EM PORTUGAL No final do século XV, começaram a se espalhar por outros países europeus as transformações culturais que vinham ocorrendo na Itália há cerca de cem anos, com o UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 99 Volume 4 99 25/07/2012 14:08:26 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura aprofundamento das mudanças políticas e econômicas, em decorrência da crescente aceitação de novos ideais. Até então vigorara a concepção de mundo teocêntrica e a estrutura do feudalismo, em que a vida estava orientada pela vigilância da Igreja e pelas relações de poder, nas quais a maioria dos indivíduos se sujeitava às obrigações de servir aos reis. As mudanças se fizeram perceber em todos os campos, com o desenvolvimento de atividades até então inexpressivas e com outras adquirindo novas feições. Os artesãos de certos ramos passaram a trabalhar nos moldes próximos da indústria que conhecemos, com muitos deles prestando serviços a um mesmo detentor de capital. Na agricultura, iniciou-se a produção destinada ao mercado de consumo, incrementando as atividades comerciais e a circulação monetária, trazendo consigo a necessidade de procurar bens e produtos em outros lugares. A área da tecnologia experimentou um surto de invenções e avanços, muitos deles favorecendo as navegações cada vez mais indispensáveis devido à procura crescente de mercadorias. A criação de instrumentos e o incremento na construção de embarcações aumentaram a segurança das viagens marítimas, permitindo que se tornassem mais longas. A criação de rotas para a Índia e a conquista das Américas se situam dentro desse contexto de inovações e da preocupação em atender necessidades de bens e produtos antes inexistentes (SARAIVA; LOPES, 1996). Em alguns países, as transformações econômicas e políticas também se reproduziram no âmbito da cultura, com repercussões marcantes nas artes. Em Portugal, no entanto, o Renascimento se caracterizou mais pela Figura 1.4.1 - Grandes navegações. Fonte: http://s.wordpress.com/imgpr ess?fit=1000,1000&url=http%3A%2 F%2Fprofessorwalter.files.wordpress. com%2F2010%2F02%2Fnavegacoes. jpg 100 introdução de novas perspectivas de organização social, com forte interferência no sistema produtivo e na circulação de bens, a partir do crescimento das atividades de comércio. As viagens intercontinentais permitiram o encontro com outras civilizações, propiciando o contato com culturas desconhecidas pelos europeus e a importação de objetos Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 100 EAD 25/07/2012 14:08:26 O Renascimento saiba mais De forma sintética, as principais composições de inspiração clássica foram: écloga: composição geral- mente dialogada, em que o poeta idealiza assuntos sobre (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Com relação à literatura, o marco referencial para o Renascimento em Portugal foi o retorno de Sá de Miranda (1481 ou 1485-1558) da Itália, onde fora estudar e terminou conhecendo as novidades estéticas. Em 1527, depois de ausente seis anos, Sá de Miranda regressa da Itália, onde contatara com estudiosos peninsulares impregnados das novas ideias, levando-as para Portugal. [...] Estando o solo preparado a vida no campo. Suas perso- desde há muito tempo, demorou pouco para o empenho de Sá de Miranda alcançar êxito em atingir os confrades com as novidades literárias de origem italiana (MOISÉS, 1992, p. 50). acontecimentos grandiosos), pastoris), pescadores (éclogas pisctórias) ou caçadores (éclogas venatórias); elegia: poema de fundo melancólico, que fala dos sentimentos tristes ou é inspirada neles; ode: composição pequena, de caráter erudito, com elevação do pensamento, sobre vários assuntos. As odes podem ser classificadas em pendáricas (cantam heróis ou anacreônicas (cantam o amor e a beleza) e satíricas (celebram assuntos morais e/ou filosóficos); epístola: composição em Na viagem, Sá de Miranda viu de perto uma realidade cultural em estágio ainda não alcançado pelos portugueses e conviveu com importantes escritores daquele tempo. Quando retornou, as novidades que levou para Portugal renovaram a literatura lusitana, pois foi o responsável pela introdução da ode, do soneto, da que o autor expõe suas ideias écloga, da elegia, da epístola, entre outros gêneros. A principal característica do Renascimento ta, de longas estrofes, ver- foi a valorização das culturas grega e latina, tomandoas como modelos por serem, segundo os conceitos da época, exemplos da perfeição. Daí o surgimento de uma concepção de arte com base na imitação, porém: 4 nagens são pastores (éclogas Unidade 1 . Aula e de materiais que favoreceram o surgimento de novas formas de expressão artística. Parte do impulso criativo que isso provocou foi asfixiado pela Inquisição que, articulada com os reis e seus interesses políticos, recebeu o apoio da recém-fundada Companhia de Jesus para combater aquilo que julgava ameaçar a fé católica e opiniões, em estilo familiar. Pode ser doutrinária, amorosa ou satírica. É feita à maneira de uma carta; epitalâmio: composição em honra aos recém casados, própria para ser recitada em bodas; canção: composição erudisos decassílabos, por vezes entremeados com outros de seis sílabas (heroicos) e de caráter amoroso; epigrama: composição de 2 ou 3 versos com pensamentos engenhosos. Fonte: http://www.iportais.com/ classicismo.html. Acesso em nov. 2010. Imitar não significava copiar, mas, sim, a procura de criar obras de arte segundo as fórmulas, as medidas, empregadas pelos antigos. Daí a observância de regras, estabelecidas como verdadeiros UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 101 Volume 4 101 25/07/2012 14:08:27 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura suportes ou pressupostos da obra literária: os escritores não tinham mais que observá-las, acrescentando-lhes a força do talento pessoal (MOISÉS, 1992, p. 51). Figura 1.4.2 - Sá de MIranda. Fonte: wikipedia/commons/4/48/ Francisco_de_Sá_de_Miranda. jpg?uselang=pt-br As novas maneiras de expressão literária foram absorvidas com rapidez em Portugal, porque encontraram indivíduos interessados pela renovação, em especial na poesia. Isso explica o aparecimento de número significativo de poetas, dentre os quais Luís de Camões, e que tenha sido a poesia a principal forma de expressão literária do período (MOISÉS, 1992). Embora a importância de Sá de Miranda e de outros, Camões foi o grande nome desse período, pelo talento e porque soube executar com brilho as propostas estéticas de seu tempo. Hábil e inteligente, deu vigor à imitação dos antigos, acrescentando sua visão de mundo, à luz de uma sensibilidade peculiar, demonstrando consciência de que o modelo, por melhor que seja, não vale por si, o que é também demonstração da consciência de seu papel de artista. 3 A POESIA LÍRICA DE LUÍS DE CAMÕES A biografia de Luís Vaz de Camões, filho de uma família com raízes nobres, mas empobrecida, é tão fascinante como sua obra, porque nela encontramos aventuras ousadas, desregramentos, vivências e nuances misteriosas que aguçariam a curiosidade de bisbilhoteiros de qualquer época. As obscuridades principiam pela data de seu nascimento, pois não há certeza se foi em 1524 ou em 1525. Ignora-se a sua formação, assim como falta comprovação de outras circunstâncias de sua vida, mas sabe-se que experimentou situações díspares ao mesmo tempo, como a intimidade Figura 1.4.3 - Luís Vaz de Camões. Fonte: commons.wikimedia. org/wiki/File:Lu%C3%ADs_ de_Cam%C3%B5es_por_ Fran%C3%A7ois_G%C3%A9rard.jpg 102 da aristocracia e o convívio com prostitutas e jovens bemnascidos, despreocupados com a vida. Na companhia deles, envolveu-se em brigas e Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 102 EAD 25/07/2012 14:08:27 O Renascimento desordens, o que resultou na condenação à prisão. Em 1552, aceitou a liberdade em troca do compromisso de partir para a Índia, onde passou por vários incidentes, que foram do naufrágio do navio em que estava à perda da visão em um olho. Depois de longo período, retornou a Portugal, trazendo na bagagem Os Lusíadas, que publicou em 1572. O Unidade 1 . Aula 4 prestígio que o poema épico alcançou fez com que passasse a receber uma recompensa do rei, na forma de uma espécie de aposentadoria que, além de modesta, era paga com atraso. Apesar de se tornar conhecido, morreu pobre em 1589 ou 1590. Seu enterro foi pago por uma instituição beneficente (SARAIVA; LOPES, 1996). O mais importante é entendermos que, independentemente das aventuras que protagonizou e das situações incomuns que vivenciou, sua fama se justifica pelo que escreveu. A grandiosidade de Os Lusíadas, principal obra literária do Renascimento, é mais do que suficiente para colocá-lo entre os grandes nomes da literatura de todos os tempos. Há outros motivos que comprovam sua importância, a começar pela poesia lírica que inspirou seguidores nos séculos seguintes. O estudo da lírica de Camões nos confronta com um problema porque ele morreu sem ter publicado sua obra do gênero, assim, apesar da divulgação logo após seu falecimento, “eram poesias compiladas de vários manuscritos que estavam nas mãos de colecionadores” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 38). O fato é relevante porque diz respeito à forma como esses textos foram fixados. Em outras palavras, é impossível definir se os poemas que conhecemos são fiéis àquilo que Camões escreveu, pois não foram revisados por ele depois de impressos. De qualquer maneira, podemos estudá-los e verificar como essa produção se caracteriza. A primeira constatação é de que a temática amorosa predomina. Muitos críticos relacionam esse fato a episódios UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 103 Volume 4 103 25/07/2012 14:08:28 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura da vida do poeta e citam como exemplo algumas de suas poesias mais conhecidas. É o caso do soneto “Alma minha gentil que te partiste”, associado ao caso amoroso com uma moça de nome Dinamene, que aparece também em outras composições. Em “Junto dum seco, duro, estéril monte” se encontram alusões às experiências de Camões na guerra, enquanto outras mencionam suas viagens ao Oriente. Tais alusões, por si, são insuficientes para caracterizar que a poesia camoniana possui fortes traços autobiográficos. O modo como Camões trata literariamente o amor deixa transparecer a concepção do conceito platônico, presente na tradição cristã e revigorado por Petrarca. Em versos conhecidos como “Transforma-se o amador na cousa amada” é explícita a identificação do sujeito com o objeto do amor. Em “Pede-me o desejo, dama, que vos veja / Não entende o que pede; está enganado”, ocorre a anulação do desejo físico. O amor não se consuma por causa da ausência da mulher amada, provocando um conflito angustiante. O amor é motivo de debates entre sensações, desejos, realidades e estados que se opõem: a vida e a morte, a água e o fogo, a esperança e o desengano. Para António José Saraiva e Óscar Lopes existem dois tipos de tensões que aparecem constantemente na poesia lírica de Luís de Camões: a. O amor: como dissemos, é representado dentro de uma concepção platônica, de acordo com a mentalidade cristã, a partir do pensamento de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A mulher é assunto recorrente e aparece como um ser ambíguo, pois está revestida de propriedades sobrenaturais, semelhantes às dos anjos, que lhes realçam os dotes físicos, sendo inatingível e desejável ao mesmo tempo (SARAIVA; LOPES, 1996). A figura feminina assim representada contrasta o ideal de beleza física e o ideal da beleza como espelho do interior, numa oposição do mundo físico com o mundo da sensibilidade. Esses 104 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 104 EAD 25/07/2012 14:08:29 O Renascimento antagonismos são característicos do período renascentista e ainda se fazem perceber na abordagem de temas mais abstratos como a passagem inexorável do tempo, a instabilidade da vida. Por vezes, a descrição da mulher torna sua figura inapreensível, com destaque a certas particularidades físicas que não permitem a fixação de uma para conhecer Aurélio Agostinho (Santo Agostinho) (354-430) foi um dos mais importantes pensadores do catolicismo, escrevendo vários livros de interesse filosófico. Do ponto de vista literário, imagem: Ondados fios de ouro reluzente Tomás de Aquino (1225- Que, agora da mão bela recolhidos, 1274) foi o grande filósofo Agora sobre as rosas estendidos, da Fazeis que a sua beleza se acrescente; e filosofia cristã da Idade Olhos, que vos moveis tão docemente, escolástica, doutrina Média, que procurou combinar a racionalidade de Platão e Aristóteles com Em mil divinos raios encendidos, a fé católica e os ensina- Se de cá me levais alma e sentidos, mentos bíblicos. Unidade 1 . Aula As confissões por se constituir em autobiografia. 4 tem relevância a sua obra Que fora, se de vós não fora ausente? Honesto riso, que entre a mor fineza De perlas e corais nasce e parece, Se na alma em doces ecos não o ouvisse!... Se, imaginando só tanta beleza, De si em nova glória a alma se esquece, Que será quando a vir?... Ah! Quem a visse… (CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br) No que diz respeito à mulher e ao amor, observamos que aparecem divinizados, aspecto que aproxima a poesia lírica de Camões das cantigas medievais. Em seus versos, a beleza da amada suscita sensualidade e desperta desejos físicos, imediatamente reprimidos por força das convenções sociais que oprimem as manifestações decorrentes do amor. Cria-se, assim, uma situação de tensão que provoca o sofrimento, dando origem à dor e à amargura, gerando um conflito insolúvel entre a sensibilidade, o sentimento e a razão. O erotismo se mescla com as frustrações pelos desejos não realizados, provocando angústia que se manifesta pelo sofrimento e pela saudade. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 105 Volume 4 105 25/07/2012 14:08:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura b. O desconcerto do mundo: é constante na poesia de Camões a representação do mundo como um desconcerto, em consequência da irracionalidade e das contradições do homem. É como se houvesse um desajuste de normas e princípios de conduta com a realidade, num confronto “entre a razão e o fato, entre as necessidades vivas e a sua satisfação” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 322). Para os autores, “O desconcerto do mundo reside na própria relação entre ele, como pessoa paradigmática, e um destino com que ele se encontra e que, ao mesmo tempo, lhe é opaco” (ibidem, p. 323). Estas manifestações de inquietação fogem ao conceito do equilíbrio apregoado pelos renascentistas, pois expressa a visão de um mundo contraditório, fragmentado e problemático e tão pouco querem expressar as contradições da época, porque se explicam por conceitos vagos como Verdade, Amor, Razão, Merecimento. Podemos observar isso nos versos seguintes: Verdade, Amor, Razão, Merecimento, qualquer alma farão segura e forte; porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, têm do confuso mundo o Regimento. Efeitos mil revolve o pensamento, E não sabe a que causa se reporte; Mas sabe que o que é mais que vida e morte, Que não o alcança o humano entendimento. Doutos varões darão razões subidas; Mas são experiências mais provadas, E por isso é melhor ter muito visto. Cousas há i que passam sem ser cridas E cousas cridas há sem ser passadas... Mas o melhor de tudo é crer em Cristo. (CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br) 106 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 106 EAD 25/07/2012 14:08:29 O Renascimento Percebemos que a falta de plenitude está além das aflições características do período em que a noção de mundo físico era motivo de perturbação, frente ao rompimento de fronteiras geográficas antes desconhecidas e envolvidas por fantasias e superstições. Existe na poesia lírica de Camões o ideal do antagonismo entre o mundo e os sentimentos Unidade 1 . Aula 4 humanos mais íntimos. Por causa disso, o sofrimento de experiências vivenciadas pelo “eu” se opõe às aspirações e aos anseios de sua interioridade. Podemos dizer que, no lirismo camoniano, a forma e o conteúdo do mundo se confrontam com a existência humana, num embate de dilaceramentos. O ideal de beleza, amor puro, razão, verdade e justiça vive em permanente conflito com a realidade sofrida e amarga. Desse contraste nasce o sentimento lírico, por vezes cético e pessimista, por vezes revestido de esperança, com perspectivas de plenitude. A poesia lírica de Camões, com destaque para os sonetos, representa aquilo que mais significativo ele produziu, porque estão dentro dos padrões literários de seu tempo. Obedecem ao princípio da imitação, no sentido de tomar um modelo e acrescentar-lhe a visão particular de mundo “com toda a liberdade de seu gênio poético, e não raro suplantou os mestres” (MOISÉS, 1983, p. 72). Suas qualidades de sonetista podem ser comprovadas a seguir: Busque Amor novas artes, novo engenho. Para matar-me, e novas esquivanças; Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto Onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 107 Volume 4 107 25/07/2012 14:08:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei por quê. (CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br) No legado que deixou, identificamos a síntese da época, como se concentrasse na sua produção todas as tendências, fazendo sozinho aquilo que realizaram os demais escritores portugueses do período. Afora isso, ainda expressa os ideais e valores que orientaram o pensamento do homem quinhentista e que elevaram Portugal ao seu apogeu, dominando os mares e conquistando territórios (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN 1990). Camões é o grande autor da literatura em língua portuguesa porque produziu uma obra representativa de uma época e, principalmente, porque vem dialogando com leitores de todos os tempos, chegando aos dias de hoje com toda vitalidade. 4 A POESIA ÉPICA DE CAMÕES A ideia de realizar um poema heroico sobre as grandes navegações e as conquistas territoriais desafiava a imaginação desde o século XV, dentro e fora de Portugal. Poetas italianos, espanhóis e portugueses sugeriram a composição de poemas cantando os feitos dos navegadores, outros se ofereceram, existindo ainda quem exaltou os descobrimentos em textos dedicados a reis (SARAIVA; LOPES, 1996). O interesse que o assunto despertava se justifica pela reação de espanto diante da grandiosidade das viagens e devido à valorização da cultura grega pelo homem renascentista, como falamos anteriormente. Você já sabe que a epopeia é herança da Grécia e também uma das formas literárias mais nobres. Assim, se reivindicava a representação literária das viagens portuguesas, 108 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 108 EAD 25/07/2012 14:08:29 O Renascimento porque serviam para comparações com as aventuras de Ulisses em Odisseia, da mesma forma as lutas do passado pelo território e as conquistas recentes se equiparavam aos feitos de gregos e troianos descritos também em Ilíada. Compreensível, pois, o desejo de elevar personalidades históricas como Afonso Henriques e Vasco da Gama à condição de grandes heróis, com Unidade 1 . Aula 4 as feições de personagens da mitologia grega. O aproveitamento literário da história de Portugal envolve, necessariamente, as viagens marítimas. As primeiras foram realizadas no início do século XV, com expedições a ilhas como Canárias, Madeira, Açores (SARAIVA, 1984). Essas empreitadas, entretanto, não se comparam com a aventura comandada por Vasco da Gama e, depois, por Pedro Álvares Cabral, devido ao seu grande significado político e econômico, daí sua importância para a literatura: A exaltação à história de Portugal implica cantar a expansão marítima e as decorrentes conquistas. Os antecedentes dessa expansão são entusiasticamente apresentados. Mas são os descobrimentos que propiciam o canto e a imortalização dos heróis, porque com eles surgiu um novo reino. Portugal foi o desbravador do caminho marítimo e sua contribuição para o desenvolvimento comercial do mundo implicou o golpe definitivo contra as forças do feudalismo (se bem que na terra portuguesa não chegou a ser um golpe definitivo) (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 42). Camões tomou por modelo os épicos de Homero, Os argonautas, de Apolônio, e Eneida, de Virgílio. O último, apesar da relevância como poema heroico latino, é fonte secundária porque surgiu como imitação de Homero. Nesse sentido, nós precisamos levar em consideração que existe uma diferença marcante e insuperável entre as epopeias gregas e as suas congêneres renascentistas. Na cultura grega do tempo de Homero, acreditava-se na interferência direta dos deuses UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 109 Volume 4 109 25/07/2012 14:08:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura nas ações práticas do cotidiano, por isso os seres divinos aparecem na literatura e em todas as manifestações artísticas como forças vivas, conforme Abdala Júnior e Paschoalin (1990). saiba mais Epopeia escrita por Apolônio, poeta do século III a. C., Os argonautas tem enredo que se desenvolve a partir do retorno de Jasão a Iolcos, na Tessália, situada ao nordeste da Grécia. O jovem príncipe regressa para reivindicar o trono que Pétias usurpara de seu pai. Contrariado, Pétias concorda com o pedido do sobrinho, exigindo em troca, que ele traga do Cáucaso o Tosão de Ouro para ofertá-lo ao templo de Zeus. O tosão é a lã dourada de um carneiro divino, que pertence ao rei Aetes, na distante Cólquis. Jasão aceita o desafio e sai pela Grécia, convocando os homens mais destemidos para acompanhá-lo na perigosa missão. Diferente do que acontece com Ulisses, de Odisseia, que está longe da sua pátria e precisa percorrer longo caminho e superar uma série de obstáculos para retornar, em Os argonautas “a viagem é circular, porque o grande ideal que a justifica, na consciência dos argonautas, é o do regresso. Por outro lado, à virtude bélica tradicional, Jasão contrapõe outro valor: a retórica, instrumento capaz de encontrar mediações e de evitar, mais do que resolver, os diversos conflitos. Na empresa de apoderar-se do tosão de ouro, Jasão é ajudado por Medeia; e quando os dois celebram as bodas apressadas e constrangidas pela presença hostil dos Cólquidos, vivem uma situação emblemática e ontologicamente reflexiva: “Nós, estirpe infeliz dos homens, não podemos entrar / na alegria com pé seguro; sempre a dor amarga/ se instaura no meio dos momentos do nosso prazer” (IV, 1165-1167). Fonte:http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/123903.html. nov. 2011. Acesso em A Eneida é o épico escrito por Virgílio, poeta do século I a. C., em cumprimento à tarefa atribuída por Augusto, com o propósito de celebrar os feitos de seu povo. Trata-se de uma epopeia nacional, composta para engrandecer a origem e o crescimento do império romano e tem como motivo a lenda da fundação de uma colônia no Lácio, por Enéas, após a queda de Tróia. O poema representa a Itália como nação única e descreve a história romana como um todo contínuo, desde a fundação da cidade até a expansão completa do império. A maneira adequada como a grandiosidade do tema é tratada e o tom elevado realçam o talento do autor. É, ao mesmo tempo, obra de tom mitológico e histórico, porque recorre a lendas tradicionais para narrar as peripécias de Enéias e utiliza acontecimentos objetivos como pretexto para exaltar Roma e Augusto. Com tal procedimento, o poeta valoriza as realizações do imperador e os feitos mais remotos do seu povo. Epopeia latina por excelência, Eneida equipara-se à Ilíada e à Odisseia, os consagrados poemas de Homero. Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/viajantes4.htm 110 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 110 EAD 25/07/2012 14:08:29 O Renascimento monoteísta viveram numa época de debates, conflitos de motivação religiosa, em que, ao mesmo tempo em que o homem começava a se libertar da mentalidade teocêntrica, a Igreja criava a Inquisição para preservar seu controle sobre o destino da sociedade, perseguindo e punindo quem afrontava seus princípios. Precisamos também levar em consideração o fato de os poemas gregos pertencerem à tradição oral e mencionarem acontecimentos tomados por verídicos, há muito incorporados ao imaginário da população. A recuperação do gênero épico pelo Renascimento se desenvolveu sob uma perspectiva de mundo radicalmente transformada em relação à Grécia Antiga. Do ponto de vista religioso, a crença era monoteísta, a Igreja se dividia e o cristianismo vivia uma fase de contradições por causa da Reforma Luterana e da Inquisição. Na economia, o mercantilismo se instalava como norma das relações econômicas, em substituição à ordem dominante no feudalismo, favorecendo as atividades comerciais e a acumulação de riquezas, quer sejam monetárias, quer sejam em bens equivalentes como metais preciosos. Na vida cotidiana, o pensamento lógico e racional UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 111 Volume 4 saiba mais Reforma Luterana. No ano de 1517, insatisfeito com a situação da Igreja Católica, o padre alemão Martinho Unidade 1 . Aula nas lutas e se posicionando a favor deste ou daquele indivíduo, empenhando-se intensamente para dar a vitória a seus adoradores. Os homens, por sua vez, entregam-se à guerra e usam de todos os atributos para combater e vencer os adversários, sejam eles humanos ou divinos. Como recompensa pelas vitórias, adquirem proporções sobre-humanas e podem ser premiados com a imortalidade. Os renascentistas pertenceram a um mundo completamente diferente e tiveram outras práticas religiosas. Frutos da cultura de orientação judaico-cristã e de caráter 4 Devemos entender que os poemas de Homero se apresentam como expressão da religiosidade, como celebração e prescrição de ritos e culto aos deuses gregos. Assim fica mais fácil compreender a intervenção das divindades no cotidiano fazendo intrigas, brigando entre si, tendo sentimentos humanos como o ciúme, a raiva, a inveja e, principalmente, participando (Martin) Lutero escreveu suas críticas na forma de teses, visando à ‘reforma’ do catolicismo. Entre outras práticas, condenava a venda de indulgências e a negociação de cargos. Além disso, propunha nova relação com os fiéis, afirmando que o indivíduo deveria obter a salvação pela fé e não por seus atos. Excomungado, fundou, com apoio de seus seguidores, a Igreja Luterana. Outras dissidências se seguiram, ampliando o movimento de Reforma, ao qual a Igreja Católica respondeu com a Contrarreforma. Como uma das ações contrarreformistas, foi criado do o Tribunal Santo Ofício, com plenos poderes para realizar a Inquisição e julgar os que eram acusados de heresia. 111 25/07/2012 14:08:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ganhava mais força, deixando ainda mais distante o espaço para deuses e criaturas semidivinas. Assim, a presença da mitologia, característica marcante do gênero épico, era um recurso estético necessário, porém um desafio para a criatividade dos poetas. Tarefa em que Luís de Camões se saiu melhor do que qualquer outro de seu tempo. 4.1 Os Lusíadas Em Os Lusíadas se sobressai a habilidade de um poeta, cujas virtudes mais admiráveis foram a ousadia e a disposição para o trabalho meticuloso que o ofício exige. Com o brilho dos grandes talentos, Camões nos deixou um modelo de tratamento artístico da palavra. Valorizando suas possibilidades de sonoridade e ritmo, construiu o melhor exemplo de revigoramento de um gênero literário que dera suas melhores obras num passado distante (SARAIVA; Figura 1.4.4 - Primeira edição de Os Lusíadas, impressa em 1572 por Antônio Gonçalves. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal - http://purl. pt/1/1/cam-3-p_JPG/cam-3-p_ JPG_24-C-W0140/cam-3-p_0007_I_ t24-C-W0140.jpg LOPES, 1996). Publicado em 1572, seu poema épico se transformou na expressão da nacionalidade portuguesa e no maior monumento literário de nossa língua. Por isso podemos lê-lo sob duas perspectivas: como retrato da visão de mundo do homem português renascentista ou como bela e convincente descrição testemunhal do momento em que Portugal vivia a sua fase mais gloriosa (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). Encontramos em Os Lusíadas a representação das aspirações e dos ideais renascentistas, no sentido da Figura 1.4.5 - Primeira estrofe do primeiro canto de Os Lusíadas. Fonte: http://purl.pt/1/1/P5.html 112 reabilitação de conceitos estéticos da antiguidade clássica, ou seja, a imitação não como cópia, mas a criação de obras segundo as fórmulas e padrões empregados pelos antigos. Daí a observância de regras, estabelecidas como verdadeiros suportes ou pressupostos da obra literária com os escritores observando os modelos, acrescentando-lhes a força do talento pessoal. Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 112 EAD 25/07/2012 14:08:30 Figura 1.4.7 - Vasco da Gama. Fonte: http://commons.wikimedia. org/wiki/File:Vasco_da_Gama__1838.png Unidade 1 . Aula 4 O Renascimento Figura 1.4.6 - Mapa da rota de Vasco da Gama. Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Vasco_de_Gama_map-fr.svg A grandeza de Camões está no fato de ter realizado o desejo da época de recuperar a epopeia tradicional, adequando-a ao tempo em que vivia encontrando maneira de superar a artificialidade, o principal obstáculo para o êxito de outras iniciativas: Criações eruditas e artificiosas, fora de tempo, os poemas renascentistas em que se procurou ressuscitar a epopéia clássica dentro dos cânones homéricos e virgilianos malograr-se [...]. Foi precisamente o desiderato da ressurreição da epopéia clássica segundo o padrão homérico que Camões procurou satisfazer, levando a cabo um objetivo característico dos escritores humanistas (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 327). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 113 Volume 4 113 25/07/2012 14:08:41 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A obra tem como eixo narrativo a expedição comandada por Vasco da Gama, realizada entre 8 de julho de 1497 e 14 de maio de 1498, partindo de Portugal em direção ao Oriente. Os navios partiram de Lisboa, contornaram a costa da África até chegar a Calicute, na Índia (SARAIVA, 1984). Camões aproveitou o tema da viagem e construiu um enredo que gira em torno de uma intriga entre os deuses que se dividem, uns se posicionando contra e outros a favor dos portugueses. A estratégia revela sua inventividade, pois a viagem de Vasco da Gama ainda era recente para garantir interesse épico, embora presente como tema em Odisseia e Eneida: [...] a viagem às Índias carecia de força dramática, como episódio histórico e motivação literária, para justificar por si só uma epopeia de tão alto sentido e intenção. Além de ser então muito recente para se tornar mito (condição básica da epopeia), faltava-lhe o porte heroico, isto é, faltavalhe instituir-se num cometimento que transcendesse o plano humano e se aproximasse do divino (o herói clássico resultava do consórcio entre um deus e uma mortal: daí o seu caráter de semideus, e as façanhas sobrenaturais que operava; seu lado humano se revelava numa imperfeição, como o calcanhar de Aquiles). Só assim a viagem poderia ser admitida com base na mão-deobra do povo português (MOISÉS, 1992, p. 58-59). A solução que Camões encontrou para os impasses a sua pretensão de enaltecer os feitos de seus compatriotas com um poema épico foi o deslocamento da ênfase narrativa, fazendo com que situações secundárias passassem a ocupar o primeiro plano e que outras, desnecessárias a priori, incorporassem-se à narrativa. Podemos observar o artifício em episódios como, a Ilha dos Amores, os Doze 114 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 114 EAD 25/07/2012 14:08:53 O Renascimento de Inglaterra, Inês de Castro, o Gigante Adamastor, a fala do Velho do Restelo (SARAIVA; LOPES, 1996). Os momentos líricos se concentram nestas passagens, atingindo proporções elevadas em algumas delas, como é o caso da que envolve Inês de Castro. A estratégia, devidamente ajustada à proposta de estruturação, é um dos tantos méritos do autor Unidade 1 . Aula 4 e resultou na criação de momentos belos e vibrantes, citados constantemente como representativos das qualidades do autor. Segundo a definição de Aristóteles, a epopeia se opõe ao lirismo, por causa do caráter heroico, ou seja, porque a tensão e a emoção devem ser provocadas pela descrição das ações de guerra; porém na prática esta distinção se anula. Nos épicos de Homero existem situações extremamente líricas, como o reencontro entre Ulisses e Penélope; a diferença é que a situação faz parte das ações ligadas ao herói, portanto do enredo central. Na obra de Camões, devemos ver as cenas amorosas sob a perspectiva de mundo do homem renascentista, ou seja, de um momento de embate entre o teocentrismo medieval e o antropocentrismo lógico e racional. Camões celebrava a conquistas dos mares pelos portugueses, em outras palavras, apresenta-os como representantes do homem renascentista, portanto do novo homem, naquilo que havia de melhor e mais grandioso, pois, graças ao conhecimento científico resultante da sua capacidade de usar a razão, criava avanços tecnológicos e se mostrava capaz de dominar a natureza. Se tais realizações tinham um tanto de energia física, eram, antes de tudo, vitória da disposição moral, cuja grandeza não se pode medir e que se impunha diante de forças igualmente incomensuráveis, até então jamais vencidas pela ação humana. Podemos apontar outra peculiaridade de Os Lusíadas que marca diferenças significativas em relação às epopeias greco-romanas, nas quais Camões se inspirou. O UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 115 Volume 4 115 25/07/2012 14:08:53 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura protagonista das aventuras é Vasco da Gama, porém não é o herói, porque sua viagem não resultou de iniciativa individual, mas de realização coletiva da nação portuguesa. O navegador deu materialidade à ousadia dos lusitanos, simbolizando o povo e investido da função de porta-voz e propagador da fé cristã (SARAIVA; LOPES, 1996). Aventurou-se por mares desconhecidos para uma viagem em direção a lugares sobre os quais pouco se sabia e fez isso em nome de Portugal. Se lermos a obra por esta perspectiva, percebemos sua universalidade, isto é, enxergamos nela a representação de um feito incomum da humanidade alcançado pelas mãos dos portugueses. 4.1.2 A estrutura da epopeia camoniana O poema se divide em dez partes, chamadas cantos, cada uma apresentando número variável de estrofes. O canto décimo é o mais longo de todos, com mais de 150 estrofes. Ao todo são 1102 estrofes ou estâncias, que somam 8816 versos. As estâncias se organizam em oitava-rima, ou seja, em oito versos com a mesma estrutura em todas as estrofes, sendo cruzadas nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos, com o seguinte esquema: ABABABCC. Os versos são decassílabos, na maioria heroicos, ou seja, acentuados na sexta e na décima sílaba métrica. Há cesuras alternadas na segunda, na terceira, na quarta, na sexta e na décima sílaba. Estrofe de oito versos com seu esquema de rima Vereis amor da pátria, não movido 116 A De prêmio vil, mas alto e quase eterno: B Que não é prêmio vil ser conhecido A Por um pregão do ninho meu paterno. B Ouvi: vereis o nome engrandecido A Daqueles de quem sois senhor superno, B E julgareis qual é mais excelente, C Se ser do mundo Rei, se de til gente C Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 116 EAD 25/07/2012 14:08:53 O Renascimento As sílabas métricas A contagem vai até a última sílaba tônica; ocorre a junção de vogais que se atraem pela sonoridade: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Ve/reis/ a/mor/ da/ pá/tria,/ não/ mo/vi/do 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Unidade 1 . Aula 4 De/ prê/mio/ vil,/ mas/ al/to e/ qua/se e/ ter/ no: Cesura: pausa no interior de um verso, no geral longo, que não deve ser confundida com a pausa de leitura, que é variável de leitor para leitor. Pode ocorrer: no princípio: “Cantei; //mas se me alguém pergunta quando”, Camões no meio: “é ferida que dói, // e não se sente”, Camões) ou perto do fim do verso: “enquanto não quiserdes vós, // Senhora”, Camões A obra se divide em três partes. A introdução (18 primeiras estâncias), subdividida em proposição (estâncias 1-3) e invocação (estâncias 4-5). Na proposição, o poeta apresenta sua disposição para cantar as façanhas das “armas e os barões assinalados”, isto é, os feitos de guerra de homens ilustres de Portugal. Na invocação, pede inspiração e proteção às Tágides, musas do rio Tejo. Na dedicatória (estâncias 6-18), oferece o poema a Dom Sebastião, rei de Portugal, que pagou a publicação da obra. A segunda parte é a narração (do canto I, estância 19, ao canto X, estância 144). A terceira parte é o epílogo (canto X, estâncias 145 a 156). A ação do poema começa na estância 19, em media res, ou seja, no meio da história, com a frota de Vasco da Gama navegando em pleno Oceano Índico. Enquanto a viagem UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 117 Volume 4 117 25/07/2012 14:08:53 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura transcorre pela vastidão do mar, os deuses se reúnem no Olimpo, a fim de deliberar sobre o destino das naus portuguesas. Júpiter se posiciona a favor dos viajantes e, com a adesão de Vênus, vence a contrariedade de Baco. Este, insatisfeito com a decisão, passa a criar dificuldades para conhecer para evitar que os portugueses alcancem seu objetivo. Quando chegam a Moçambique, Vasco da Gama Figura 1.4.8 - Dom Sebastião Fonte: http://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Rei_D._Sebasti%C3%A3o.jpg Dom Sebastião (1544-1578), morto durante invasão dos portugueses ao Marrocos, em circunstâncias pouco claras. O fato de ser querido pelos portugueses e as dúvidas em torno da maneira como morreu deram origem ao chamado Sebastianismo, crença de que voltaria como uma espécie de messias para conduzir Portugal a um novo período de glórias. Fonte: Portugal Dicionário Histórico, disponível em http:// www.arqnet.pt/dicionario. saiba mais Júpiter era o mais poderoso dos deuses da mitologia romana, equivalente a Zeus para os gregos. Vênus, a deusa do amor e filha do Céu e da Terra, na mitologia grega chama-se Afrodite. Marte, deus da guerra, o mesmo que Ares para os gregos. Baco, deus da festa e do prazer, filho de Júpiter, considerado pelos romanos como um amante da paz e promotor da civilização, é Dionísio, na mitologia grega. E na epopeia camoniana é o principal inimigo dos portugueses por não querer que eles ultrapassem seus domínios no Oriente. 118 desembarca e se depara com uma cilada armada por Baco, da qual consegue escapar. Em Mombaça, Vênus intervém e evita que caiam em outra armadilha. Indignada, a deusa reclama a Júpiter a quem pede proteção aos navegantes, no que foi atendida, porém não pôde evitar que encontrassem novos perigos pela frente. Nesta nova etapa, Vasco da Gama e sua frota chegam a Melinde, sendo recebidos amistosamente. Atendendo pedido do rei, Gama passa a contar a história de Portugal, investindo-se na condição de segundo narrador. O viajante começa pela descrição da Europa para, em seguida, falar sobre seu país, iniciando seu relato citando Luso, fundador da Lusitânia. Fala sobre figuras e acontecimentos históricos: D. Henrique de Borgonha, Egas Moniz, Inês de Castro, as batalhas de Ourique, do Salado e de Aljubarrota, a tomada de Ceuta. Ainda se refere aos preparativos da viagem, à fala do Velho do Restelo, à partida e a toda a primeira parte da jornada, com destaque para as passagens em que descreve o fogo de Santelmo, a tromba marinha, a aventura de Veloso e o Gigante Adamastor. Depois de partirem de Melinde, Baco desce ao fundo do mar com o propósito de convencer os deuses marinhos a se levantarem contra a frota portuguesa. Éolo, deus dos ventos, decide soltá-los para que impeçam a navegação, mas Vênus envia as ninfas amorosas para abrandar seu furor. Passada a tempestade, Vasco da Gama e seus comandados chegam a Calicute, onde são recepcionados pelo Samorim. Enquanto isso, Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 118 EAD 25/07/2012 14:08:53 O Renascimento Baco faz seu último esforço para deter os lusitanos, sendo malsucedido novamente. No regresso, os navegantes passam pela Ilha dos Amores e lá são favorecidos pelas ninfas, em reconhecimento ao ato heroico que praticaram. Tétis oferece-lhes um banquete e, após, conduz Vasco da Gama ao monte mais alto da ilha para desvendar-lhe a Máquina do Mundo e o futuro Unidade 1 . Aula 4 glorioso dos portugueses. Partem em seguida e, finalmente, chegam a Portugal. Alguns dos episódios de Os Lusíadas apresentam significado simbólico, como é o caso do sonho de D. Manuel, no canto IV, que aparece como representação da política de expansão territorial dos portugueses. O Velho do Restelo simboliza a política agrária, ou seja, aqueles que se opunham às navegações, em outras palavras, aos interesses econômicos dos comerciantes. O Gigante Adamastor é a força da natureza e seus perigos como obstáculos para os navegadores e, por extensão, para os portugueses e para a humanidade. É importante observarmos que aparece no canto V, exatamente na metade do poema. No canto VI, consta o episódio dos Doze da Inglaterra, numa referência ao cavalheirismo medieval português. A Ilha dos Amores corresponde aos prêmios e honrarias a que os grandes heróis têm direito. Ainda encontramos os episódios naturalistas, representados por aqueles em que ocorrem fenômenos naturais (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990). De acordo com as normas estabelecidas por Aristóteles, a epopeia deve apresentar unidade, variedade, verdade e integridade. Em Os Lusíadas encontramos todas essas qualidades, porque o princípio da unidade é garantido pela harmonia da ação. Os episódios são dinâmicos e diversificados, garantindo a variedade. A verdade aparece na representação de um assunto histórico e, por fim, a integridade consiste na ação completa, ou seja, com início, meio e fim. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 119 Volume 4 119 25/07/2012 14:08:54 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Luso: suposto filho ou companheiro de Baco, fundador da Lusitânia, área que corresponde ao atual território de Portugal e da Extremadura, na Espanha. Camões faz referência a isso em Os Lusíadas, porém não há registro histórico do epônimo Luso ou Lusus entre os povos que habitaram a região. Fonte: http://issuu.com/mj_125/docs/dicionario_mitologico, acesso em abr. 2011. Dom Henrique de Borgonha (1057- 1114), o conde de Borgonha, fundador da monarquia portuguesa, por ter sido pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Fonte: Portugal Dicionário Histórico, disponível em www.arqnet.pt, acesso em abr. 2011. Egas Moniz de Ribadouro (? – 1140 ou 1146), fidalgo descente de importante família a quem coube a educação de D. Afonso Henriques, tendo participado de várias batalhas em defesa de seu reinado. Fonte: Enciclopédia e Dicionário Porto, disponível em www.infopedia.pt, acesso abr./2011. Inês de Castro (1323-1355), filha ilegítima de nobres da Galícia, foi para Portugal como dama de honra de D. Constança, quando esta se casou com o príncipe herdeiro D. Pedro, filho do rei de Portugal, D. Afonso IV. Na corte tornou-se amante do príncipe herdeiro, com quem se casou secretamente depois dele enviuvar. O rei e parte da nobreza não aceitaram o casamento, decidindo-se pela morte de Inês numa ocasião em que D. Pedro se ausentou. As circunstâncias dramáticas que envolveram a paixão de Inês e Pedro transformaram o fato em matéria da ficção, sendo mencionado em Os Lusíadas, e em outras obras literárias. Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa, 1984. A Batalha de Ourique ocorreu em 25 de Julho de 1139, num local que as fontes denominam de Ourique, controlado pelos muçulmanos. A vitória comandada por Afonso Henrique foi fundamental para a consolidação do Estado de Portugal, sendo por isso um dos fatos mais marcantes da história do país. Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa, 1984. A Batalha de Aljubarrota travou-se no dia 14 de agosto de 1385, entre portugueses e castelhanos e se insere no conjunto de confrontos motivados pela luta da sucessão ao trono em consequência da Revolução de Avis. Foi uma batalha importante porque a vitória portuguesa desmoralizou os adversários de D. João, que contavam com o apoio de Castela, assegurando-lhe a continuidade da preservação da independência. Fonte: SARAIVA, J. H. História Concisa de Portugal. Europa-América: Lisboa, 1984. A Batalha do Salado se travou nas margens do riacho do mesmo nome, na província de Cadiz, em 30 de outubro de 1340, numa aliança cristã dos reinos de Portugal com o reino de Castela para combater os muçulmanos. D. Afonso IV, o sétimo rei português, se destacou, vindo daí o cognome Bravo pelo qual ficou conhecido. Fonte: Dicionário e Enciclopédia Porto, disponível em www.infopedia.pt, acesso abr. 2011. 120 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 120 EAD 25/07/2012 14:08:54 O Renascimento 5 O LEGADO DE OS LUSÍADAS 4 Camões concebeu Os Lusíadas como obra de ficção, porém a criação envolveu componentes que tornam difícil a distinção entre a realidade e a invenção artística. Não estamos nos referindo à transformação de vultos e acontecimentos históricos em matéria literária, mas a circunstâncias ligadas à vida do autor. Na biografia de Camões, constam viagens Unidade 1 . Aula com sabor de aventura por diversos lugares, chegando a paragens distantes, como a China. Embora seu épico não seja mero relato das andanças, é evidente que nele existem dados recolhidos nos continentes por onde andou. E nisso reconhecemos mais seus méritos, porque soube tirar proveito artístico dos elementos oferecidos pela realidade, equilibrando-os talentosamente com a inspiração patriótica. O nome de Camões está vinculado ao período mais marcante da história de Portugal. As descobertas foram realizações grandiosas, proporcionando riquezas que elevaram o país à posição de destaque entre as nações e orgulharam sua população. O poeta se juntou a seus conterrâneos na glorificação de seu país, porém sem esquecer sua condição de artista. Por isso, deu caráter lírico a episódios históricos significativos, ao mesmo tempo em que adequava uma forma literária do passado, às necessidades da época em que vivia (SARAIVA; LOPES, 1993). O valor de Os Lusíadas ultrapassa os limites do século XVI e da literatura em língua portuguesa porque se tornou uma obra representativa de toda uma época, não apenas como criação artística. Nela encontramos a representação de aspirações humanas, como o desejo de conquistas e de superação de dificuldades, fazendo com que Camões “pela representação universal de seu pensamento, fruto de um singular poder de transfiguração poética, típica do visionário e do gênio, seja considerado um dos maiores poetas de todos os tempos” (MOISÉS, 1992, p. 60). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 121 Volume 4 121 25/07/2012 14:08:54 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Razões como estas nos ajudam a enxergar Os Lusíadas como o poema épico mais expressivo depois de Homero, fazendo de Camões um dos grandes escritores de todos os tempos. É importante lembrar que a obra contribuiu decisivamente para a fixação da nossa língua, portanto deve nos envaidecer como usuários desse belo e melodioso idioma. Compreendem-se, pois, os motivos que transformaram Luís de Camões em modelo para poetas dos séculos posteriores, inclusive brasileiros, como veremos em aulas que virão. 6 QUADROS-SÍNTESE DE OS LUSÍADAS ESTRUTURA EXTERNA Cantos 10 Estrofes por canto variável Total de estrofes 1102 Versos por estrofes 8 Total de versos 8816 Tipo de verso decassílabos Rimas cruzadas e emparelhadas ABABABCC ESTRUTURA INTERNA 122 Introdução - estrofes 1 a 18, canto I Apresentação do assunto Proposição – estrofes 1a3 Anúncio do canto épico; os grandes feitos dos heróis portugueses. Invocação – estrofes 4e5 Pedido de inspiração para as Tágides. Dedicatória – estrofes 6 a 18 O poema é dedicado a D. Sebastião. Narração – estrofe 19, do canto I, à estrofe 144, do canto X Início com a viagem em andamento, no Oceano Índico, próximo a Moçambique. Epílogo – estrofes 146 a 156, canto X Camões abandona o tom heroico do poema e passa a lamentar a situação de Portugal depois do período mais grandioso de sua história. Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 122 EAD 25/07/2012 14:08:55 O Renascimento ATIVIDADES ATIVIDADES AT A TIV IVI VI 1. A partir da leitura do soneto a seguir, de Camões, responda as questões que seguem: vocabulário • verso 3 delgado = delicado, espiritual Pede-me o desejo, Dama, que vos veja; • verso 7 Que, quem o tem, não sabe o que deseja. 4 É este amor tão fino e tão delgado logo = portanto • verso se dana = se corrompe, se perde Unidade 1 . Aula Não entende o que pede, está enganado. Não há cousa, a qual natureza seja, Que não queira perpétuo seu estado; Não quer logo o desejo o desejado, Por que não falte nunca onde sobeja. Mas este puro afeto em mim se dana; Que, como a grave pedra tem por arte O centro desejar da Natureza, Assim o pensamento (pela parte Que vai tomar em mim, terrestre, humana), Foi, Senhora, pedir esta baixeza. a. O eu lírico se debate, logo no primeiro quarteto, entre duas concepções de amor. Interprete os quatro primeiros versos, explicitando esses dois conceitos de amor, defendendo para qual o poeta mais se inclina. b. A segunda quadra confirma a primeira? Elabore comentário, justificando a resposta. c. Os tercetos são introduzidos pelo verso “Mas este puro afeto em mim se dana”, em que a conjunção adversativa “mas” estabelece um sentido de oposição aos quartetos antecedentes. Desenvolva comentário, explicando: em que consiste essa oposição? 2. Analise o poema a seguir, de Camões, destacando: UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 123 Volume 4 123 25/07/2012 14:08:55 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura a. as relações entre o tema e a estrutura formal do texto (como o tema é desenvolvido em cada estrofe do soneto?). b. pode-se afirmar que se trata de um texto poético do Renascimento? Por quê? O tempo acaba o ano, o mês e a hora, A força, a arte, a manha, a fortaleza; O tempo acaba a fama e a riqueza, O tempo o mesmo tempo de si chora; O tempo busca e acaba o onde mora Qualquer ingratidão, qualquer dureza; Mas não pode acabar minha tristeza, Enquanto não quiserdes vós, Senhora. O tempo o claro dia torna escuro E o mais ledo prazer em choro triste; O tempo, a tempestade em grão bonança. Mas de abrandar o tempo estou seguro O peito de diamante, onde consiste A pena e o prazer desta esperança. 3. Acesse o site “www.dominiopublico.gov.br/”, depois selecione as estâncias (estrofes) iniciais do Canto I, de Os Lusíadas (1 a 21), e desenvolva as atividades propostas. a. Na apresentação do assunto (estâncias 1 a 3), o narrador menciona a grandiosidade da viagem realizada por Vasco da Gama, comparando-a a outros fatos. Descreva quem serve de referência para as comparações e como valoriza o feito do navegador português. b. Na invocação (estâncias 4 e 5), o poeta pede proteção às ninfas do Tejo. Indique o objetivo que ele pretende alcançar com o pedido. 124 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 124 EAD 25/07/2012 14:08:55 O Renascimento c. Na incitação a Dom Sebastião (estâncias 15 a 19), Camões revela receio quanto ao destino de Portugal, sugerindo ações que garantam as glórias do passado. Identifique as estâncias em que essa preocupação se evidencia e as medidas que o poeta sugere ao rei. Unidade 1 . Aula 4 d. Descreva como se percebe a influência do catolicismo no fragmento de Os Lusíadas em análise. filmes 1492, a conquista do paraíso (1992), de Ridley Scott sites Filmes sobre o Renasciomento Cultural. Disponível em: <http:// educacao.centralblogs.com.br/post.php?href=filmes+sobre+o+renasci mento+cultural&KEYWORD=9304&POST=3855388>. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 125 Volume 4 125 25/07/2012 14:08:55 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura RESUMINDO RE ESU S RESUMINDO Nesta aula, vimos que Luís Vaz de Camões se tornou o poeta mais importante da literatura em língua portuguesa. Sua obra em verso se divide em poesias líricas e o poema épico Os Lusíadas. Na primeira modalidade, destacou-se pelos sonetos que escreveu cujas qualidades o transformaram em modelo para as gerações posteriores, em Portugal e no Brasil. Enquanto poeta épico, Camões é a melhor expressão de uma época, a Renascença; em Os Lusíadas encontramos princípios estéticos, morais de uma época de alargamentos de fronteiras metafóricas, em função dos avanços tecnológicos e científicos, bem como geográficos, em decorrência das conquistas territoriais. REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS R RE EFE F R ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 27. ed. revista e aumentada. São Paulo: Cultrix, 1992. ______. A literatura portuguesa através de textos. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1983. SARAIVA, A. J; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1996. 126 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 126 EAD 25/07/2012 14:08:56 O Renascimento ______. As crônicas de Fernão Lopes. Lisboa: Gradiva, 1993. 4 SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9. ed. Europa-América: Lisboa, 1984. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 127 Volume 4 Unidade 1 . Aula SOUSA, Maria Leonor Machado de. Soneto. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/S/soneto. htm. 127 25/07/2012 14:08:56 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 128 25/07/2012 14:08:56 2ª unidade AULA 5 CONCERTOS BARROCOS OBJETIVOS Identificar os principais aspectos estético-culturais do período Barroco em Portugal e no Brasil, percebendo as relações histórico-sociais entre os dois países e como se desenvolveu a formação da Literatura Brasileira. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 129 25/07/2012 14:08:56 Concerto Barroco 1 INTRODUÇÃO Estudamos o surgimento e o desenvolvimento da literatura em Portugal, verificando as suas transformações vinculadas a fenômenos econômicos, sociais e políticos. Evidenciamos, assim, uma sincronia entre o progresso Unidade 2 . Aula 5 econômico, as mudanças de caráter social e a evolução da literatura. Num período de pouco mais de três séculos, Portugal saiu da condição de condado espremido entre importantes reinos e o mar para a posição de um país que conquistou vastos territórios. Observamos que as atividades literárias seguiram trajetória análoga durante esse período, partindo de manifestações da tradição oral, como as cantigas, para atingir o estágio de paradigma da cultura escrita renascentista com Os Lusíadas. Em ambos os campos, o país se destacou, tornando possível comparar a grandiosidade das navegações e das conquistas territoriais com a do poema épico escrito por Camões, que apresenta dimensões tão monumentais quanto o alargamento de fronteiras decorrente da possessão do Brasil. O processo de fixação dos portugueses aqui e a colonização que implantaram provocaram confrontos culturais com os nativos e os africanos, esses trazidos como escravos num sistema de exploração, justificado pelas concepções mercantilistas da época. Esses confrontos compõem alguns dos mais tristes e trágicos acontecimentos da história moderna, quando populações inteiras foram dizimadas. Além disso, as influências culturais do índio e do negro na formação da cultura brasileira foram negadas por muito tempo, mas UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 131 Volume 4 131 25/07/2012 14:08:56 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura sabemos que se incorporaram ao dia a dia da então colônia portuguesa e passaram a interferir positivamente na criação artística, determinando que aqui surgisse uma literatura em língua portuguesa com peculiaridades bem definidas. É o que veremos a partir desta aula. 2 BRASIL: A TERRA “MUITO CHÃ E MUITO FORMOSA” Os símbolos do apogeu econômico e político de Portugal foram as expedições marítimas a lugares desconhecidos pelos europeus. Em 1497, Vasco da Gama saiu de Lisboa, contornou o continente africano e chegou ao sul da Índia. Três anos mais tarde, Pedro Álvares Cabral partiu com o mesmo destino, porém atravessou o Oceano Atlântico e chegou ao litoral da Bahia, para depois retomar a rota seguida pelo antecessor (CASTRO, 1985). Devemos lembrar que o início da ocupação demorou algumas décadas após a chegada da esquadra de Cabral, começando efetivamente por volta de 1530, com a implantação da segunda etapa do sistema de capitanias (SODRÉ, 1988). Figura 2.5.1 - Desembarque dos Portugueses no Brasil, ao ser encontrado por Pedro Alvares Cabral, em Porto Seguro. Óleo sobre tela (190 X 333 cm), de Oscar Pereira da Silva, 1922. Museu Paulista de São Paulo. Fonte: http://cidadanialusofona. files.wordpress.com/2010/04/ desembarquecabral.jpg 132 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 132 EAD 25/07/2012 14:08:56 Concerto Barroco A fixação de moradores brancos no território brasileiro respondeu às estratégias econômicas e militares de Portugal, mas tem relação estreita com as questões religiosas que estavam em debate durante o Renascimento. Sabemos da crise enfrentada pela Igreja Católica no século XVI, que culminou com a insubordinação do monge alemão Martinho Unidade 2 . Aula 5 Lutero. Disso veio a Reforma Protestante ou Luterana (1517), instaurando princípios doutrinários inconciliáveis com as normas ditadas pelo catolicismo. Em reação, sucessivos papas adotaram um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como Contrarreforma. As providências tinham caráter moralizador e visavam a reorganização administrativa, com intuito de punir padres rebeldes, impedir o avanço do protestantismo e recuperar o prestígio perdido. Em Portugal, os reflexos das iniciativas de combate à expansão protestante apareceram pela criação do Tribunal do Santo Ofício, instituição de caráter judicial, com o propósito de inquirir heresias, isto é, investigar práticas contrárias aos princípios da fé católica, daí a redução para Inquisição (SARAIVA, 1984). No Brasil, os reflexos da disputa com os protestantes aparecem principalmente pela presença de membros da Companhia de Jesus. Criada em 1534, na Espanha, por Inácio de Loyola, logo se instalou no país vizinho, onde obteve permissão para a criação de escolas, o que também aconteceu no Brasil. Organizados com base na estrutura militar, seus membros se consideravam soldados da Igreja e desenvolviam vários tipos de atividades com o intuito de expandir o catolicismo. Ao se definir pela posse efetiva da colônia, a coroa portuguesa tomou medidas com o objetivo de oferecer condições para a fixação de famílias na nova terra, como a fundação de cidades e a designação de funcionários para o exercício de cargos políticos e administrativos. Com os primeiros colonos vieram os padres Jesuítas, a quem coube erguer escolas. Os jesuítas assumiram a incumbência por UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 133 Volume 4 133 25/07/2012 14:08:58 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura leitura recomendada A definição do que são os primeiros textos literários escritos no Brasil é assunto complexo, porque envolve a discussão de critérios usados para apontar obras e autores pioneiros. Por exemplo, o que define se um texto do período colonial é brasileiro? É o local onde foi escrito? É a intenção do autor? É a feição literária que adquiriu com o passar do tempo? É o local de nascimento do autor? É o local onde o autor desenvolveu suas atividades? Para aprofundar essas questões, sugerimos a leitura do livro A formação da literatura brasileira: momentos de- delegação do rei, cujo erário não dispunha de recursos para arcar com os custos necessários à construção e manutenção dos estabelecimentos de ensino (SODRÉ, 1988). Se por um lado os religiosos difundiam o conhecimento com a intenção de divulgar a fé católica e de formar quadros para a sua ordem, por outro tiveram papel importante para o desenvolvimento das atividades literárias no Brasil. Além de contribuir para a formação de leitores, figuram entre os primeiros indivíduos a escreverem textos históricos e literários. Assim, as primeiras iniciativas de divulgação e produção de literatura em nosso país se desenvolveram em grande parte pela ação dos jesuítas. Em consequência, foram orientadas pelo espírito expansionista do catolicismo ditado pela Contrarreforma, sob o influxo do ambiente opressor imposto pela instalação do Tribunal do Santo Ofício. cisivos, de Antonio Candido, disponível na biblioteca da UESC, e O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, de Haroldo de Cam- 3 SEMENTES LANÇADAS AOS ECOS DE GIL VICENTE E CAMÕES pos, texto disponível em: < h t t p : / / w w w. 4 s h a r e d . com/document/yfUz4UoR/ CAMPOS_Haroldo_-_O_ Sequestro_d.html>. De maneira geral, os textos escritos no Brasil durante o século XVI se destacam pelo valor histórico, devido às informações sobre os diversos aspectos da natureza, o tipo de vida que levavam os índios e as possibilidades de exploração econômica. São importantes também porque mostram, por um lado, o fascínio dos portugueses frente ao novo, ao desconhecido, àquilo que aos seus olhos parecia exótico e exuberante. Por outro, revelam a posição do europeu, portanto do homem branco de pensamento influenciado pela fé católica, diante de outra cultura, do diferente. Quase sempre redigidos por membros das primeiras expedições exploratórias, esses textos têm características de relatório. Por isso são chamados crônicas ou relatos de viagem e, no seu conjunto, recebem a denominação de literatura de informação. 134 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 134 EAD 25/07/2012 14:08:58 Concerto Barroco Figura 2.5.2 - Percurso feito por Pedro Alvares Cabral na viagem que marca a sua viagem ao Brasil. Fonte: http://veja.abril.com.br/ idade/descobrimento/imagens/ descobrimento6.jpg Unidade 2 . Aula 5 Dentre as crônicas de viagem mais importantes do século XVI está a Carta (1500), de Pero Vaz de Caminha, escrita com o propósito de noticiar ao rei D. Manuel a chegada ao Brasil, ou, como diz o autor, “o achamento desta vossa terra nova”. Nela, descreve brevemente a travessia do “mar longo”, enaltece as belezas, empregando adjetivos como “formosa”, “graciosa”, entre outros. Revela encanto diante da natureza, mencionando a abundância de águas e reiterando seu espanto com a densa floresta e com a presença de “grandes arvoredos”. O elemento que mais chamou sua atenção foi o habitante nativo, do qual se ocupa mais demoradamente, encerrando o relato, dizendo que sua conversão ao catolicismo era o melhor fruto a ser colhido aqui. Existem outras crônicas de viagem, sendo as mais conhecidas o Diário de navegação (1530), de Pero Lopes de Souza; o Tratado da terra do Brasil (1576), de Pero de Magalhães Gandavo; e o Tratado descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza. Um dos pontos de convergência entre estes registros é o fascínio pelos elementos da natureza e a surpresa diante do índio, tratado sempre como ser inferior por causa de práticas culturais e comportamentos incompreensíveis para o homem europeu. Em outras UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 135 Volume 4 135 25/07/2012 14:08:58 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura palavras, a desconsideração pelo habitante nativo evidencia o sentimento de propriedade da terra como expressa Caminha na Carta. Ao se atribuir o direito de posse, os portugueses pensavam na exploração de riquezas minerais e no cultivo do solo, fatos que o escrivão também mencionou. Figura 2.5.3 - Trecho manuscrito da carta de Caminha. Fonte: commons. wikimedia.org/wiki/File:Carta-cami nha.png Figura 2.5.4 - Capa do Diário de navegação, de Pero Lopes de Souza (1530). Fonte: http://www. megabook.com.br Preocupavam-se, ainda, com a difusão do catolicismo, uma forma de melhor concretizar seus objetivos econômicos. Os propósitos religiosos propiciaram o surgimento de outro tipo de textos durante o século XVI. Escritos por padres, destinavam-se à conversão dos indígenas ao cristianismo. Os mais importantes têm como autores José de Anchieta (1534-1597) e Manuel de Nóbrega (1517-1570), membros da Companhia de Jesus. Tais escritos e os relatos de viagem formam a chamada Literatura Quinhentista, responsável pelo acréscimo de novos ingredientes para a criação literária em língua portuguesa, particularmente, em obras do século XVIII de autores nascidos no Brasil. Entre os dois religiosos, o nome de maior destaque é Anchieta porque, mesmo preocupado prioritariamente com a catequese, seus textos nasceram sob “o signo da literatura e suas escolhas estéticas parecem tão típicas de uma tradição e de uma escola” que remetem a Gil Vicente, segundo Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 78-79). Na virada do século XVI para o XVII, surgiu uma Figura 2.5.5 - Tratado da terra do Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo (1576). Fonte: http://bndigital.bn.br/ redememoria/images/131.jpg obra considerada a primeira de caráter essencialmente literário escrita no Brasil. Trata-se de Prosopopeia, de Bento Teixeira (1561-1600), poema de pretensões épicas, publicado no ano de 1601, em Lisboa. A intenção de dar tratamento Figura 2.5.6 - e do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza (1587). Fonte: http://4.bp.blogspot. com/-Rv9CZUSdbw0/Td6li1GVyeI/ AAAAAAAAACs/6teJypLp2zw/s1600/ PICE1C4.tmp.jpg 136 literário a fatos históricos resultou em elogios exagerados a Jorge Albuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, elevado à condição de grande herói da colônia. O autor esboça uma descrição de Recife e de Olinda, mas os traços são insuficientes para que se possa fazer uma ideia de como eram as cidades na época. O poema merece Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 136 EAD 25/07/2012 14:08:59 Concerto Barroco registro por dois motivos: pelo inegável valor histórico e pela tentativa em seguir o modelo de Camões (MARTINS, 1992). Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) escreveu Música do parnaso, primeiro livro de autor nascido no Brasil, impresso em 1705, que tem como destaque o poema “A Ilha Unidade 2 . Aula 5 da Maré”. Inspirado no episódio “A Ilha dos Amores”, do canto IX, de Os Lusíadas. A composição repete e adapta “o modelo às peculiaridades da nova terra – as frutas nativas e os mariscos –, o que não é feito em ‘A Ilha da Maré’ de modo neutro, e sim com a reiterada ressalva de que tais peculiaridades evidenciam superioridade ou vantagens das ilhas brasileiras” (CUNHA, 2006, p. 38). Outro seguidor de Camões foi frei Manuel Santa Maria Itaparica (1704-1768, provavelmente) que buscou inspiração no mesmo episódio para escrever a sua “Descrição da Ilha de Itaparica”. Percebemos que no épico camoniano os prazeres proporcionados pela natureza estão associados à sensualidade de ninfas correndo nuas pelas praias, transformando a Ilha dos Amores num lugar de deleite, oferecido como prêmio aos portugueses por suas conquistas. Curiosamente, os autores brasileiros eliminam o caráter sensual de seus poemas, distanciandose de uma realidade em que a ideia de paraíso se misturava ao sentimento de posse e violência contra o nativo com “a prática frequente do estupro das índias pelos portugueses, no litoral da colônia americana” (CUNHA, 2006, p. 41). Esses autores normalmente são qualificados pelas histórias da literatura tradicionais como poetas de menor importância. É certo que nenhum deles produziu obra inovadora ou surpreendente pela originalidade e facilmente se percebe como cópias mal disfarçadas de Camões. Entretanto, convém mencioná-los como forma de valorizar o esforço que fizeram para configurar uma imagem literária do espaço geográfico brasileiro. Nesse UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 137 Volume 4 137 25/07/2012 14:09:00 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura sentido, podemos estabelecer relações com a passagem da Carta em que Caminha anunciava as possibilidades de cultivo das terras brasileiras, descrevendo as condições favoráveis do clima, do solo e a abundância de águas. As iniciativas de Botelho e Itaparica permitem que façamos analogias com as recomendações do escrivão, pois viram nos elementos naturais motivos propícios para a criação literária, lançando sementes que frutificariam séculos mais tarde. Isso é suficiente para que sejam reconhecidos, afinal, eles se empenharam na superação das precariedades em que viviam e na procura de símbolos para a nova terra. Também temos que ressaltar que o desenvolvimento e o amadurecimento de uma literatura é um processo demorado que envolve experiências, sendo a cópia uma das etapas necessárias. 4 DISSONÂNCIAS E NOTAS VARIADAS DO BARROCO NO BRASIL E EM PORTUGAL O padre Antônio Vieira e Gregório de Matos foram dois dos autores mais expressivos da literatura em língua portuguesa do século XVII, e suas trajetórias são multifacetadas. Para Martins (1992, p. 170), “são dois excêntricos com relação à vida intelectual da Colônia (e não às suas respectivas vidas como intelectuais da Colônia, o que é outra coisa)” e “ambos pertencem intelectualmente à Europa muito mais do que à América, a Portugal muito mais do que ao Brasil”. Começaremos a seguir esses trajetos com a importante e polêmica figura que foi Vieira e, posteriormente, vamos conhecer o não menos polêmico Gregório de Matos. 4.1 Padre Antônio Vieira Antônio Vieira (1608-1697) nasceu em Lisboa e 138 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 138 EAD 25/07/2012 14:09:00 Concerto Barroco aos sete anos veio para a Bahia, onde o pai passou a exercer cargo administrativo, permanecendo aqui até 1641, quando se transferiu para Portugal. De 1652 a 1661, entremeou períodos de residência na metrópole com outros de retorno à colônia, de onde se ausentou por vinte anos para então voltar em definitivo. Unidade 2 . Aula 5 Seu nome está incluído na literatura brasileira pela obra de oratória, modalidade comum na Antiguidade, mas em desuso nos séculos recentes. Nos quinze volumes dos Sermões, publicados já na maturidade, revigorou o gênero, utilizando-o como instrumento para a defesa de ideias e a divulgação do catolicismo junto ao índio e ao colono português. O volume inicial apareceu em 1679, sucedido por outros onze, divulgados enquanto o autor vivia. Os tomos restantes surgiram em 1699, 1710 e 1748, completando a primeira edição integral da obra (MARTINS, 1992). Com opiniões claras e firmes, manifestou-se a respeito de assuntos diversos como a invasão holandesa, o modelo ganancioso da colonização portuguesa, a escravidão e a perseguição aos judeus. A respeito do tratamento dos portugueses aos africanos, o ardor católico o induziu a incorrer em contradição, pois invocava o argumento da igualdade entre os homens, porém via no servilismo uma ação positiva porque permitia aos negros o conhecimento da fé católica e a salvação de suas almas (STEGAGNOPICCHIO, 1997). Padre Vieira teve trajetória complexa, cuja explicação está nas cinco “metamorfoses” pelas quais passou, segundo Wilson Martins, numa referência às suas ações como missionário, político, orador sacro, profeta e escritor. Na opinião do crítico, Vieira se sentiu mais atraído pelos problemas de seu tempo do que pela catequese, ocupandose deles como missão a ser cumprida. Essa preocupação o levou a exercer as outras atividades, chegando a ocupar cargos importantes como diplomata e conselheiro de D. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 139 Volume 4 139 25/07/2012 14:09:00 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura João IV. Foi orador sacro e profeta a vida inteira, ou pelo menos desde os vinte e poucos anos, quando iniciou a atividade sacerdotal. A retórica, no sentido de se expressar bem, fazendo bom uso das palavras, foi o seu instrumento em todas as ocupações a que se dedicou. Tal habilidade fez de Vieira “um dos pontos mais altos da oratória sacra em todo o mundo” (MARTINS, 1992, p. 173). Para Luciana Stegagno-Picchio, “em torno da sua personalidade e sobre o exemplo de sua pregação, floresceu na Bahia uma escola de oratória sacra [...], que incide profundamente sobre a cultura do tempo” (1997, p. 105). Assim como Wilson Martins, a professora italiana inscreve Antônio Vieira nas literaturas brasileira e portuguesa. Sua posição se assemelha a de António Saraiva e Oscar Lopes, que destacam seu nome com a dedicação de várias páginas à avaliação da sua obra, fato que chama a nossa atenção porque são bem menos generosos em relação a outros escritores brasileiros do período colonial. Entre os elogios, salientam a capacidade de Vieira para renovar um gênero em decadência: “Esta conjugação de uma arte de discorrer já inadequada ao senso comum dominante com uma orientação que era, afinal, tão prática faz da oratória de Vieira uma das expressões mais consumadas, mais tensas, mais desenvolvidas e explícitas das formas culturais que estão na base da tradição sermonária” (SARAIVA; LOPES, 1998, p. 521-522). Devemos atribuir os elogios dos historiadores portugueses à competência de Vieira na formulação de ideias e a sua capacidade de reflexão sobre assuntos complexos. Em outras palavras, o pertencer intelectualmente à Europa de que fala Wilson Martins tem a ver com as ações do religioso em defesa dos interesses de Portugal junto ao governo de diversos países. Para tanto, empregou suas energias vigorosamente naquilo que melhor sabia fazer, ou seja, o uso da palavra, 140 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 140 EAD 25/07/2012 14:09:00 Concerto Barroco pois foi homem interessado pela solução dos problemas mais relevantes de seu tempo. Enquanto os holandeses ameaçaram Salvador com naus fundeadas em Itaparica e incendiando engenhos e canaviais das cercanias, Vieira estimulava seus fiéis a enfrentar o agressor. Ilustra o engajamento na campanha contra a invasão “O sermão para o bom sucesso das armas de Portugal contra a Holanda”, uma de suas peças mais famosas: UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 141 Volume 4 Unidade 2 . Aula 5 O que venho a pedir ou protestar, Senhor, é que nos ajudeis e nos liberteis: Adjuva nos, et redime nos. Mui conformes são estas petições ambas ao lugar e ao tempo. Em tempo que tão oprimidos e tão cativos estamos, que devemos pedir com maior necessidade, senão que nos liberteis: Redime-nos? E na casa da Senhora da Ajuda, que devemos esperar com maior confiança, senão que nos ajudeis: Adjuva nos? Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando, pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor, senão justiça. Se a causa fora só nossa, e eu viera a rogar só por nosso remédio, pedira favor e misericórdia. Mas, como a causa, Senhor, é mais vossa que nossa, e como venho a requerer por parte de vossa honra e glória, e pelo crédito de vosso nome: Propterno memtuum: razão é que peça só razão, justo é que peça só justiça. Sobre este pressuposto vos hei de arguir, vos hei de argumentar, e confio tanto da vossa razão e da vossa benignidade, que também vos hei de convencer. Se chegar a me queixar de vós, e acusar as dilações de vossa justiça ou as desatenções de vossa misericórdia: — Quare obdormis, quare oblivisceris? — não será esta vez a primeira em que sofrestes semelhantes excessos a quem advoga por vossa causa. Às custas de toda a demanda, também vós, Senhor, as haveis de pagar, porque me há de dar vossa mesma graça as razões com que vos hei de arguir, a eficácia 141 25/07/2012 14:09:00 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura com que vos hei de apertar, e todas as armas com que vos hei de render. E se para isto não bastam os merecimentos da causa, suprirão os da Virgem Santíssima, em cuja ajuda principalmente confio. Ave Maria. (VIEIRA, Antônio. Disponível em: www.cce.ufsc.br/~nupill/ literatura/BT2803035.html). Observamos que Vieira desenvolve sua argumentação em torno da ideia de justiça, tomando como referência o princípio de que os portugueses eram propagadores e guardiões da fé cristã. Como estudamos anteriormente, você deve lembrar-se da presença constante dos propósitos religiosos, portanto da Igreja Católica, ao longo da história de Portugal. Na Idade Média, o ideal de expansão do catolicismo que serviu de pretexto às Cruzadas, estimulou as lutas dos portugueses contra os muçulmanos e as grandes viagens marítimas que resultaram na chegada à Índia e ao Brasil, acendendo as esperanças de “acrescentamento da fé” de que fala Caminha. Por fim, cabe lembrar que a devoção católica serviu de desculpa para a imposição cultural aonde chegavam, assim como justificou atos desumanos como o massacre dos nativos daqui e a escravização dos africanos. No que diz respeito às preocupações com o destino de Portugal, Vieira ia além das situações provocadas pelas ameaças frente a um inimigo. Interferiu em assuntos econômicos, recomendou ações políticas ao rei, tratou de questões comerciais, discutiu temas religiosos, encarregou-se de missões diplomáticas e defendeu o abrandamento das interferências da Inquisição (SARAIVA; LOPES, 1998, p. 518). Para Luciana Stegagno-Picchio (1997), ele foi um defensor dos interesses portugueses em nome da fé. Quanto a suas atividades literárias, Wilson Martins afirma: Pode-se pensar, entretanto, que é a volta definitiva ao Brasil que o transforma realmente em escritor (e, por consequência, que coloca a preocupação estilística, no 142 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 142 EAD 25/07/2012 14:09:00 Concerto Barroco sentido literário da palavra, no primeiro plano de seu interesse, isto é, que se apresenta como a última finalidade de sua vida) (1992, p. 171). Acrescenta que Vieira estava impregnado da atmosfera brasileira, devido ao tempo em que aqui viveu durante sua juventude. Luciana Stegagno-Picchio aponta para sentido oposto, ao destacar que a linguagem de Vieira é repleta de arcaísmos, latinismos e expressões do espanhol e do italiano, sendo raros os termos brasileiros, à exceção dos empregados para designar árvores, animais e tribos indígenas (1997, p. 108). Unidade 2 . Aula 5 Divergências à parte, o interesse pela obra do padre Vieira se justifica pelas razões mencionadas, ou seja, pela renovação da oratória, pela importância que tem para a literatura sacra e pelo valor que representa para a cultura da época. António Saraiva e Oscar Lopes (1998) nos oferecem mais motivos, quando afirmam que foi das figuras mais representativas das letras portuguesas do século XVII, sendo modelo para a prosa da época. Ainda, de acordo com os historiadores lusitanos, se nossa curiosidade for além dos seus sermões, encontraremos nas cartas e nos documentos que escreveu um quadro expressivo da vida dos índios, da fauna, do modo de vida, das relações dos nativos com os portugueses. 4.2 Gregório de Matos Sobre a biografia de Gregório de Matos pairam muitas dúvidas. A primeira delas é quanto à data de seu nascimento, que uns dão como acontecido em março de 1623 e outros dizem que foi em dezembro de 1633, sendo essa última tomada por mais exata (TEIXEIRA, 1977). Da mesma forma, não há registro sobre sua morte, assinatura comprovada ou imagem pintada de sua pessoa (MALARD, 1998). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 143 Volume 4 Figura 2.5.7 - Gregório de Matos. Fonte: http://commons.wikimedia. org/wiki/File:Greg%C3%B3rio_de_ Matos.jpg 143 25/07/2012 14:09:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Do ponto de vista da literatura, as indagações a serem respondidas têm dimensões bem mais profundas porque se trata de saber exatamente o montante da obra deixada por Gregório de Matos, isto é, se todos os textos atribuídos a ele são efetivamente de sua autoria e qual é a data em que foram escritos. Para Wilson Martins, são dois grandes mistérios: O primeiro, claro está, é o de saber o que realmente lhe pertence no conjunto de poema constante da dezena ou vintena de apógrafos tidos como dele; o segundo, seria o de estabelecer a cronologia das composições efetivamente ou seguramente autênticas. Sem o esclarecimento dessas questões, qualquer aproximação séria da poesia gregoriana está previamente condenada ao insucesso: não sabemos se escreveu tudo o que corre sob o seu nome, não sabemos que parte do que corre sob o seu nome teria sido por ele realmente escrita (1992, p. 225). É evidente que Wilson Martins exagera um pouco quando condena ao insucesso qualquer estudo sobre a obra de Gregório de Matos, mas sua observação é um fato a ser considerado. Inexiste volume impresso publicado com tais poesias enquanto o autor estava vivo, e os manuscritos nos quais os historiadores se baseiam foram feitos por outras pessoas. A fonte que todos os estudos tomam por referência “é a famosa Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos Guerra, por Manuel Pereira Rabelo, escrita nos meados do século XVIII e publicada pela primeira vez em 1882” (MARTINS, 1992, p. 228). Apesar disso, podemos afirmar que ele foi a grande expressão da nossa poesia no século XVII, o autor que expressou vivamente a realidade da colônia na época. Sua poesia permite a composição de um quadro bem interessante sobre como era a cidade de Salvador dos anos seiscentos e, por extensão, nos ajuda a compreender o Brasil colonial 144 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 144 EAD 25/07/2012 14:09:01 Concerto Barroco dos senhores de engenho (TEIXEIRA, 1977). Ao mesmo tempo, revela um pouco da tumultuada vida pessoal de um sujeito cuja interioridade parece ter vivido em constantes tormentos provocados por intensos conflitos de sentimento. Sua biografia mostra uma vida de desregramentos, com a prática de atos que desaprovava em sua poesia: 5 Quando [...] se percebe a liberdade de comportamento e de expressão que a si próprio concedia, concluímos desde logo que não se trata de um moralista (nem mesmo no sentido literário da palavra), mas, antes, de uma testemunha (MARTINS, 1992, p. 226). Unidade 2 . Aula A crítica corrosiva e áspera que encontramos em seus textos evidencia que Gregório de Matos foi um homem preocupado com o mundo ao seu redor, portanto observador atento daquilo que se passava diante de seus olhos. Aliados a esse olhar crítico e questionador, estavam atributos como o talento, a inteligência e a curiosidade intelectual, o que lhe permitiu conhecer literatura e cultura geral (TEIXEIRA, 1977). Segundo Sodré, contudo, há indícios de que sua base cultural tinha pouca solidez: Foi um misto de homem de letras e de cantador popular; ao mesmo tempo em que se esmerava em indicar a posse de cultura ampla, que parece realmente não ter dominado, buscava aproximar-se dos motivos triviais, rolando para o nível da vulgaridade mais simplória (SODRÉ, 1988, p. 85). Mesmo que sua linguagem e seu estilo não sejam do agrado de todos e que se possa discutir a consistência de seu saber, observamos em sua poesia a representação da estrutura política e social da Bahia de seu tempo, independente do caráter satírico, religioso ou lírico com que trata os assuntos. Os acontecimentos relevantes sobre UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 145 Volume 4 145 25/07/2012 14:09:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura a época estão registrados pela História, porém os fatos envolvendo o cotidiano e o homem comum aparecem na obra de Gregório de Matos. Nesse sentido, os “motivos triviais” revelam o dinamismo da realidade que conheceu e tiram os relatos históricos de sua moldura estática para darlhes vida. A visão de mundo que expressa, nos mostra Gregório de Matos como homem interessado pela elucidação dos fatos, fazendo do riso, da ironia e até mesmo da amargura um recurso para torná-los mais visíveis. Da mesma forma como abriu mão do prestígio conquistado como advogado e que também poderia desfrutar da sua formação como padre, rompeu as barreiras do meio social ao qual pertencia. De origem abastada, teve uma vida modesta e, em seu universo literário, aparecem pessoas de todas as camadas, inclusive as que transitavam à margem da sociedade. Em suas obras, são mencionados os membros da elite econômica e social, composta por plantadores de cana, membros da Igreja, governadores e ocupantes de altos cargos públicos de um lado; enquanto do outro aparecem os escravos, os artesãos, os índios. As mulheres aparecem com grande frequência, compondo vasta galeria em que estão presentes damas, mulatas, negras, prostitutas e lavadeiras (TEIXEIRA, 1977). De modo geral, podemos reconhecer que o autor descreve as figuras de seu tempo sem mascará-las, independente de condição social ou cor da pele. As pessoas representadas por Gregório de Matos têm muita vivacidade e a energia delas normalmente se manifesta pelas deformidades morais, portanto são reveladoras da capacidade do autor para refletir sobre as normas de organização da sociedade de seu tempo. Em outras palavras, sua poesia reproduz os costumes da época e isso equivale a dizer que a organização social se caracterizava pelos desregramentos: Porque a verdade é que nenhum homem de letras de época tão recuada deixou no que 146 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 146 EAD 25/07/2012 14:09:01 Concerto Barroco criou tantos traços e tão nítidos da existência comum, a tal ponto que há quem o aponte como o intérprete de uma nascente burguesia citadina em protesto contra as demasias dos grandes proprietários, do clero, da nobreza e dos funcionários reais (SODRÉ, 1988, p. 87). Sendo assim, Gregório de Matos retratou a sociedade de um período de crise profunda da qual nem a Igreja escapava, fato que se explica pelos problemas enfrentados por Portugal. Com a morte de D. Sebastião, em 1578, Felipe II, rei da Espanha, julgou-se no direito de assumir o trono lusitano, Unidade 2 . Aula 5 fato que se consumou, por ser da mesma linhagem familiar. O domínio espanhol durou várias décadas, entretanto as dificuldades para exercer a autoridade se fizeram perceber em diversos setores, provocando desencontros administrativos de toda natureza. As invasões dos holandeses ao Brasil e o tempo que permaneceram em Pernambuco exemplificam as complicações vividas no período (SARAIVA, 1984). Em outras palavras, assim como fragilizou a capacidade de garantir a posse territorial da colônia, a ausência de uma orientação governamental clara propiciava a germinação de distorções que se materializavam pelos desrespeitos a normas comportamentais e a padrões morais. Analisando a poesia de Gregório de Matos por esse enfoque, podemos enxergar nela a expressão de um indivíduo consciente das transgressões a princípios e da necessidade de questionamento da realidade. O fato de ele ter se deixado envolver pelas circunstâncias não desmerece sua postura, porque elimina o caráter moralizador da crítica que faz à sociedade. Serve como exemplo um de seus sonetos mais populares, no qual descreve a incapacidade dos administradores públicos: A cada canto um grande conselheiro, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 147 Volume 4 147 25/07/2012 14:09:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Que nos quer governar cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um frequentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. (Disponível em www.dominiopublico.gov.br) Percebemos que o soneto apresenta alguns dos aspectos que identificam a poesia de Gregório de Matos. No que diz respeito às figuras humanas, podemos reconhecer no conselheiro os administradores e ocupantes de cargos públicos, ou seja, também os vereadores, os juízes, entre outros. Nesse sentido apesar da relevância da função, as autoridades tomam atitudes nada exemplares; porque, além de incompetentes, são bisbilhoteiras, indiscretas e desrespeitosas. Mais ainda, agem com más intenções, tornando pública a vida dos cidadãos, como se deduz pelo verso “Para levar à Praça, e ao Terreiro”. Os termos praça e terreiro remetem aos lugares públicos, onde ficavam a forca e o pelourinho, portanto onde se executavam as punições a escravos e criminosos. Do ponto de vista metafórico, o verso apresenta dois sentidos, pois tanto indica comentários sobre a vida de alguém, como a procura de motivos para incriminar as pessoas (MALARD 1998). Dos poemas que Gregório de Matos dedicou a figuras femininas, dentre os mais conhecidos estão os que falam sobre Dona Ângela, uma mulher branca, assim como 148 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 148 EAD 25/07/2012 14:09:01 Concerto Barroco outras tantas. Sua galeria, entretanto, é composta também por negras ou mulatas, como podemos ver no soneto “À mulata Vivência, amando ao mesmo tempo a três sujeitos”: Com vossos três amantes me confundo, Mas vendo-vos com todos cuidadosa, Entendo que de amante e amorosa Podeis vender amor a todo o mundo. Se de amor vosso peito é tão fecundo, E tendes essa entranha tão piedosa, Vendei-me de afeição uma ventosa, Que é pouco mais que um selamim sem fundo. Se tal compro, e nas cartas há verdade, Eu terei, quando menos, trinta damas, Unidade 2 . Aula 5 Que infunde vosso amor pluralidade. E dirá, quem me vir com tantas chamas, Que Vicência me fez a caridade, Porque o leite mamei das suas mamas. (Disponível em www.dominiopublico.br) Há composições em que o poeta menciona atributos como a beleza e a pureza, mas também percebemos um erotismo intenso, em particular, com relação a negras e mulatas. Em muitas situações, conta somente a atração física: Mas o que predomina é o binário erótico dedicado às morenas – pardas e negras – desde as mais atraentes às mais repulsivas, formando um acervo de comparsas que nos entram nos olhos e pela imaginação adentro, com força muito maior do que os personagens de muitos livros em prosa (TEIXEIRA, 1977, p. 95). Nas poesias em que observamos esses traços, reconhecemos indícios das inclinações pessoais do poeta, entretanto ficar apenas nisso significa uma avaliação superficial de sua obra. Para verificar o que existe em outras UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 149 Volume 4 149 25/07/2012 14:09:01 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura camadas, precisamos confrontar esses aspectos com a realidade que se vivia no Brasil escravagista, quando não se aceitavam as relações amorosas entre indivíduos com coloração de pele diferente. Os senhores de engenho, porém, costumavam se envolver sexualmente com as mulheres negras, muitas vezes violentando-as, conforme já mencionamos em aula anterior. Uma conclusão que se evidencia é que Gregório de Matos não mascarava a realidade ou fingia cegueira àquilo que estava diante de seus olhos; sendo esse, certamente, um dos motivos que inspirou o apelido de “Boca do Inferno”. A temática predominante em sua poesia nos ajuda a compreender a forma como encarava o mundo e, seguindo o critério adotado por Letícia Malard (1998), sua obra pode ser dividida em oito grupos, de acordo com o assunto: sociedade, religiosidade, zombaria e louvores, o mundo desconcertado, carpe diem, lágrimas e erotismo, inconstância das coisas e elevação e degradação da beleza: Tema/assunto Conteúdo Sociedade Denúncia da corrupção, de irregularidades administrativas, práticas condenáveis de religiosos e políticos. Religiosidade Debate entre o humano e o divino, a culpa e o perdão, a vida e a morte. Zombaria ou louvores Deboche ou elogios a administrativas e religiosas. O mundo desconcertado Desilusão diante de coisas erradas. Carpe diem Proveito da vida, da beleza da mulher enquanto jovem, dos prazeres passageiros. Lágrima e erotismo Reação diante do choro da mulher. Inconstância das coisas O eterno ciclo da vida, a transformação do dia em noite. Elevação e degradação da beleza A mulher como o mais belo e precioso na natureza, mas fisiologicamente igual a todos. personalidades 4.3 Duas vozes relevantes com diapasões diferentes A comparação entre Gregório de Matos e Antônio Vieira 150 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 150 EAD 25/07/2012 14:09:02 Concerto Barroco é inevitável, se consideramos que eles foram dois homens com grande capacidade de refletir sobre a vida no século XVII, tanto no Brasil quanto em Portugal. Há outros fatores em comum; pois, apesar da diferença de idade, foram contemporâneos e conviveram em Salvador, sem contar a formação jesuítica, apesar de Gregório ter se recusado a se ordenar padre (MALARD, 1998). No que diz respeito ao modo como se Unidade 2 . Aula 5 preocupavam com a realidade, Vieira era mais interessado pelos grandes temas relativos ao governo ou à Igreja, por causa disso se envolvia nas questões políticas e doutrinárias. Mesmo assim, ambos conseguiam observar a vida com um olhar mais profundo do que os homens letrados de seu tempo. Apesar de exercer o sacerdócio, Vieira não se preocupou apenas com “acrescentamento da fé”, isto é, com a conversão de indivíduos de outras práticas religiosas ao catolicismo, como Anchieta havia feito no século anterior. Ao perceber que a crença religiosa não restringia sua visão de mundo aos limites determinados pela doutrina católica, inscreveu-se na nossa literatura. Gregório de Matos superou Bento Teixeira e Manuel Botelho de Oliveira pelo talento e pela capacidade de transfigurar a realidade artisticamente, transformando elementos do seu cotidiano em matéria para a criação literária. Pena que os bons frutos que produziu não tenham gerado sementes. A obra de Gregório de Matos revela que sua atenção se voltava para fatos próximos, ligados a assuntos do cotidiano, apesar de ter ocupado cargos importantes. Ao tratar de problemas como o despreparo dos administradores, a corrupção, a frouxidão dos costumes, a promiscuidade, enfim dos problemas do dia a dia da colônia, leva-nos a acreditar que teve uma vivência mais enraizada no Brasil. Sua poesia nos faz pensar numa preocupação mais concentrada nos problemas daqui e, com repetidas manifestações de apego ao Brasil, permite que enxerguemos nela um sentimento de nativismo (TEIXEIRA, 1977). Nesse sentido, foi mais brasileiro do que UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 151 Volume 4 151 25/07/2012 14:09:02 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Vieira. Precisamos considerar, porém, que foi uma voz isolada e que permaneceu em silêncio até o final do século XIX, quando sua poesia se tornou conhecida dos brasileiros. Isto quer dizer que, apesar da importância dentro da literatura brasileira, a contribuição de Gregório de Matos para o desenvolvimento dela foi praticamente nula, pela inexistência de diálogo de sua poesia com aquela produzida pelas gerações posteriores. A descoberta tardia de sua obra impediu que os poetas nascidos no século XVIII tivessem contato com ela, isto é, só se passou a saber de sua existência quando era impossível exercer influência sobre alguém porque já não se enquadrava aos padrões de criação artística em vigor na década de 1880. Ativid ades ATIVIDADES 1. Leia o fragmento a seguir do segundo capítulo do “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, de Antônio Vieira e desenvolva as atividades propostas. Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins. Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para 152 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 152 EAD 25/07/2012 14:09:02 Concerto Barroco que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non Unidade 2 . Aula 5 carperesolum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, etquaeprosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenaemissae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegeruntbonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos. Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesitpiscibusmaris et volatilibuscaeli, et bestiis, universaequeterrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 153 Volume 4 153 25/07/2012 14:09:02 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura nomeou pelo seu: Creavit Deus cetegrandia. E os três músicos da fornalha da Babilônia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete e tomniaquae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito. (VIEIRA, Antônio. Disponível em www. dominiopublico.gov.br) a. Como Vieira caracteriza os peixes, como auditório, quanto a virtudes e defeitos? b. Comente a frase “Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente”, sob a perspectiva da conversão ao catolicismo. c. Vieira cita as propriedades do sal e, a partir delas, divide o sermão em duas partes. Indique quais são as duas grandes partes e o que é tratado em cada uma delas. 2. Responda as questões sobre os dois sonetos de Gregório de Matos, destacados a seguir (disponíveis em <www. dominiopublico.gov.br>): AOS PRINCIPAIS DA BAHIA CHAMADOS OS CARAMURUS Há cousa como ver um Paiaiá Mui prezado de ser Caramuru, Descendente de sangue de Tatu, Cujo torpe idioma é cobé pá. A linha feminina é carimá Moqueca, pititingacaruru Mingau de puba, e vinho de caju Pisado num pilão de Piraguá. A masculina é um Aricobé Cuja filha Cobé um branco Paí 154 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 154 EAD 25/07/2012 14:09:02 Concerto Barroco Dormiu no promontório de Passé. vocabulário • Aricobé: nome de tribo indí- O Branco era um marau, que veio aqui, gena. Ela era uma Índia de Maré • Caramuru: Cobé pá, Aricobé, CobéPaí. homem branco. No soneto, com sentido pejorativo, origina-se do apelido de Diogo Álvares. • Carimá: bolo de farinha de mandioca. AO MESMO ASSUNTO • Cobé pá: dialeto dos índios Cobé que habitavam próximo Um calção de pindoba a meia zorra da cidade. Pá é o afirmativo “sim”. Camisa de Urucu, mantéu de Arara, • Marau: malandro. Em lugar de cotó arco, e taquara, • Mui prezado: muito desejoso. Penacho de Guarás em vez de gorra. • Paiaiá: indígena de Sergipe; pajé, feiticeiro. • Passé: possibilidade de dois Furado o beiço, e sem temor que morra, sentidos: localidade não iden- O pai, que lho envazou cumatitara, tificada ou tribo indígena da Senão a Mãe, que a pedra lhe aplicara, dos: localidade não identificada; apócope de epiraguara, si- Animal sem razão, bruto sem fé, nônimo de caipira; pilão. Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra, • Pisado: socado no pilão. De Paiaiá virou-se em Abaeté. • Pititinga: nomes de peixe; manjuba ou enchova. • Tatu: talvez se refira a um Não sei, once acabou, ou em que guerra, famoso chefe indígena. (MA- Só sei, que deste Adão de Massapé, LARD, 1998). Unidade 2 . Aula A reprimir-lhe o sangue, que não corra. 5 Amazônia. • Piraguá: pode ter três senti- • Camisa de urucu: referência Procedem os fidalgos desta terra. à tinta de urucu com que os índios pintam o corpo. • Cuma: com uma (elipse) • Gorra: gorro. Tomando por referência a divisão temática da poesia de Gregório de Matos proposta por Letícia Malard (1998), indique, desenvolvendo argumentos, a quais deles os sonetos melhor se enquadram. • Guarás: espécies de ave. • Lho envazou cumatitara: furou o lábio com um espinho de palmeira. • Mantéu de arara: capa feita com penas de arara. • Massapé: dois sentidos, massapê, terra fértil para a cultura da cana ou designação para as a. Na poesia em que Gregório de Matos aborda problemas da sociedade, o eu lírico pode ter duas posturas, dependendo do teor: a de sofrimento com a situação e a de mero espectador (MALARD, 1998). Indique com argumentos em qual delas se classifica o eu lírico de cada soneto. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 155 Volume 4 terras de propriedade de Mem de Sá. • Pedra: enfeite que os índios trazem no lábio. • Penacho: penas que adornam a cabeça. • Pindoba: variedade de palmeira (MALARD, 1998) 155 25/07/2012 14:09:02 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura b. As figuras humanas da poesia de Gregório de Matos são vivas, isto é, não são idealizadas. Descreva como se percebe isso nesses dois sonetos. c. Dois traços marcantes em Gregório de Matos e Antônio Vieira são a forma irônica com que tratam os assuntos e o uso das antíteses. Indique como observamos tais marcas no fragmento do “Sermão de Santo Antônio aos peixes” e nos dois sonetos. Resumindo Re RESUMINDO Nesta aula, estudamos autores das primeiras manifestações literárias no Brasil e como essas produções se vinculam ao meio em que surgiram. Os relatos de viagem, a começar pela Carta, de Pero Vaz de Caminha, apresentam informações sobre as peculiaridades naturais e possíveis riquezas existentes. Com os colonos pioneiros, vieram os jesuítas, entre eles Manuel de Nóbrega e José de Anchieta, que deixaram textos escritos, em particular o último, considerado por alguns críticos como seguidor de Gil Vicente. Entretanto, coube a Bento Teixeira escrever o primeiro texto literário no Brasil, Prosopopeia, inspirado no sucesso de Os Lusíadas, mas sem a mesma grandeza, o que também sucedeu a Manuel Botelho de Oliveira e Manuel Santa Maria Itaparica, pois lhes faltou originalidade e talento para se desprenderem do molde. Tais qualidades nós encontramos em Antônio Vieira e Gregório de Matos, cuja importância para a literatura brasileira consiste, entre outros aspectos, na forma como retrataram o século XVII. 156 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 156 EAD 25/07/2012 14:09:02 Concerto Barroco REFERÊNCIAS Referências Re efe f rrê ê CARRILHO, Fernando. Sermão de Santo Antônio aos peixes de Padre Vieira. Lisboa: Texto, 1999. CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1985. CUNHA, Eneida Leal. Estampas do imaginário: literatura e identidade cultural. UFMG: Belo Horizonte, 2006. MALARD, Letícia. Poemas de Gregório de Matos. Unidade 2 . Aula 5 Autêntica: Belo Horizonte, 1998. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 4. ed. v. 1 1550-1794. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. MATOS, Gregório. Poemas. Disponível em: www. dominiopublico.gov.br. OLIVEIRA, Manuel Botelho. Música do parnaso. Disponível em: www.brasiliana.usp.br. SARAIVA, António José; LOPES; Óscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1998. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9. ed. Europa-América: Lisboa, 1984. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil. 8. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 157 Volume 4 157 25/07/2012 14:09:02 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura TEIXEIRA, Bento. Prosopopeia. Disponível em: www. dominiopublico.gov.br. TEIXEIRA, Maria de Lourdes. Gregório de Matos: estudo e antologia. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977. VIEIRA, Antônio. Sermão da sexagésima. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso em nov. 2010. 158 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 158 EAD 25/07/2012 14:09:03 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 159 25/07/2012 14:09:03 2ª unidade AULA 6 ACORDES ÁRCADES E ECOS CAMONIANOS NO BRASIL OBJETIVOS Reconhecer as principais proposições estéticas e a importância dos autores árcades na formação da Literatura Brasileira, identificando os ecos camonianos no Arcadismo brasileiro. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 161 25/07/2012 14:09:03 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil 1 INTRODUÇÃO Nas aulas anteriores, estudamos obras que representam o conjunto das primeiras manifestações literárias do Brasil, no qual se incluem produções escritas nos séculos XVI e XVII. Alguns textos surgiram como documentos históricos, Unidade 2 . Aula 6 mas terminaram se incorporando à tradição literária, como a Carta, de Caminha, e os chamados relatos de viagem. Os autos de Anchieta surgiram com feições literárias e são valorizados como tais, mas se destinavam à conversão dos índios ao catolicismo. Os Sermões, de Antônio Vieira, nasceram como fruto do interesse da época pelos modelos grecoromanos e se tornaram exemplos do bom aproveitamento de formas superadas, graças ao talento do padre jesuíta. Por fim, existem as produções concebidas com intenções estéticas que, independente de qualquer julgamento, devem ser valorizadas por expressar a vontade consciente de criar um objeto artístico, pelo esforço na imitação de grandes escritores e pela preocupação em incorporar aspectos da realidade brasileira. Como vimos, quem melhor cumpriu todos esses objetivos foi Gregório de Matos. Sua poesia, entretanto, ficou desconhecida por longo tempo, por isso é um autor que não se inscreve entre aqueles que promoveram a continuidade literária, ou seja, a sucessão de uma geração de escritores por outra. Esse processo só se efetivou na literatura brasileira a partir do século XVIII, como começaremos a ver daqui pra frente. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 163 Volume 4 163 25/07/2012 14:09:03 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2 ECOS DE CAMÕES NAS MONTANHAS MINEIRAS Você se lembra de que, em várias oportunidades, mencionamos a importância de Luís de Camões para a literatura em língua portuguesa. Uma maneira de dimensionarmos seu valor, assim como no caso de qualquer outro autor, é verificarmos de que modo sua obra vem repercutindo ao longo do tempo, bem como identificarmos que os autores de épocas próximas a que ele viveu o tenham tomado por referência. Tais fatos se somam a uma série de fenômenos ocorridos nos anos oitocentos que contribuíram significativamente para o desenvolvimento da literatura no Brasil. Os sinais do nascimento de uma literatura com traços brasileiros começaram a aparecer com mais clareza no século XVIII, quando do surgimento de algumas das condições necessárias para tanto. O tipo de ocupação do território adotado pelos portugueses e a economia baseada na agricultura determinaram que, inicialmente, as aglomerações urbanas fossem esparsas e isoladas umas das outras. A descoberta de pedras e metais preciosos nos anos setecentos alterou o curso dos fatos porque possibilitou, em curto espaço de tempo, que surgissem cidades próximas umas das outras, principalmente em Minas Gerais, onde se concentravam as principais jazidas. Nelson Werneck Sodré (1988) aponta uma série de transformações que ocorreram na região, em consequência da exploração de minérios. De acordo com Sodré (1988), ocorreram mudanças significativas na vida da colônia, entre elas o esboço de um mercado interno com a intensificação na circulação de pessoas e produtos. O comércio se desenvolveu juntamente com outras atividades como as artesanais e determinou o crescimento no emprego de mão de obra livre. Mesmo a relação do escravo com o senhor se tornou diferente 164 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 164 EAD 25/07/2012 14:09:03 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil em relação àquela que prevalecia na agricultura. O poder público se fortaleceu administrativa e politicamente, com reestruturação do sistema de controle e gerenciamento, revigorando o poder judiciário, a fiscalização e as milícias, isto é, os mecanismos de controle. Enquanto as funções ligadas ao poder público exigiam mais pessoas, outras antes inexistentes começaram a fazer parte da paisagem social, tornando-a mais diversificada. A cidade passou a ter papel até então desconhecido e a vida urbana adquiriu características mais próximas das que conhecemos hoje. Assim, as aglomerações humanas que, no período anterior, funcionavam apenas como portos de embarque dos produtos, passaram a desempenhar função econômica e social relevante. A agricultura provocava movimentação sazonal determinada pelo ritmo da colheita da cana, o que se Unidade 2 . Aula 6 dava no momento em que se fazia o embarque do açúcar. Na mineração, a extração na lavra e o envio para a Europa eram permanentes, proporcionando fluxo ininterrupto de carga e de pessoas, sendo importante levarmos em consideração outro fator. Anteriormente, as cidades se situavam a grandes distâncias uma das outras, situação que se modificou com a nova realidade econômica, quando a presença de minerais propiciou o surgimento de concentrações pouco afastadas geograficamente. Tal fato favorecia os deslocamentos, atraía gente de outras regiões e exigia a criação de serviços e atividades para atender as necessidades das pessoas (SODRÉ, 1998). Oambientecitadinoémaispropícioaodesenvolvimento das atividades literárias porque favorece a aproximação entre os indivíduos, estimulando sua organização em grupos. O espírito associativo é indispensável à literatura porque a obra nasce para circular de mão em mão (CANDIDO, 1981), ou seja, precisa ser lida, comentada, debatida. Devemos considerar ainda que, na época, os indivíduos letrados se concentravam nas cidades, por isso o crescimento urbano favoreceu a UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 165 Volume 4 165 25/07/2012 14:09:03 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura expansão da rede de ensino e estimulou a fermentação de ideias. O acúmulo de riqueza devido à mineração permitiu que maior número de famílias enviasse seus filhos homens para estudar nas universidades europeias (SODRÉ, 1988). Lá, eles encontravam oportunidades de acesso a livros, tomavam contato com as novidades estéticas e conviviam de perto com uma realidade cultural viva e dinâmica. Muitos deles prolongavam sua estada após a conclusão do curso e viajavam por vários países antes de regressarem. Quando aqui chegavam, esses rapazes passavam a desfrutar de grande prestígio social, juntando-se aos homens mais autorizados para discutir, difundir e produzir literatura, como os religiosos, os militares graduados e os magistrados (CANDIDO, 1981). Foram indivíduos oriundos desses segmentos que formaram o grupo de poetas cujos nomes estão associados ao Arcadismo e que são apontados como fundadores da literatura brasileira. Um dos mais ilustres foi Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), minerador, advogado que exerceu diversas funções públicas como juiz medidor de Figura 2.6.1 - Cláudio Manuel da Costa. Fonte: http://pt.wikipedia. org/wiki/Cl%C3%A1udio_Manuel_ da_Costa terras, senador por Ouro Preto e secretário de governo. Foi, indiscutivelmente, figura das mais destacadas da literatura de língua portuguesa, por isso temos nele um dos nossos principais sonetistas, modalidade em que sua habilidade é comparada à de Camões. Luciana Stegagno-Picchio afirma que: sua poesia terá grande influência sobre a futura literatura brasileira. O soneto, de puras formas neoclássicas, de Cláudio Manuel da Costa, em que a lição de Petrarca e de Camões se dilui numa nova doçura expressiva, constituirá, ainda no fim do século XIX, um modelo para os parnasianos (1997, p. 127). Em outras palavras, Cláudio Manuel da Costa tomou por modelo Petrarca e Camões, respectivamente, o 166 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 166 EAD 25/07/2012 14:09:03 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil criador do soneto moderno e o poeta que renovou a forma ao adequá-la aos motivos literários e à linguagem de seu tempo, como já vimos. A criatividade e o talento do poeta mineiro o transformaram em exemplo para brasileiros de gerações futuras, como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, cuja aceitação pelos leitores avançou o século XX, apesar de criticados pelos modernistas.Na avaliação sobre o talento de Cláudio Manuel da Costa, Antonio Candido diz que “Nos sonetos se encontra pois, de modo geral, a sua mais alta realização, e não constitui novidade escrever que é dos maiores cultores dessa forma em nossa língua” (1981, p. 93). Antonio Candido salienta que três assuntos são constantes na obra do mineiro: as montanhas, o dilaceramento interior e o esforço para expressar a realidade de sua terra. As sucessivas referências a montanhas, que Antonio Unidade 2 . Aula 6 Candido denomina de “imaginação de pedra”, deve-se ao fascínio de algumas tendências literárias de então por rochas e cavernas, “talvez pela irregularidade poderosa com que representam movimentos plásticos” (CANDIDO, 1981, p. 96). O sofrimento íntimo que dilacera o eu lírico se deve à oposição de sentimentos do poeta, dividido afetivamente entre Brasil e Portugal. Homem apegado ao local de nascimento, sempre esteve ligado emocionalmente a suas raízes, das quais extraía o objeto de seu interesse, como podemos observar no soneto LXII: Torno a ver-vos, ó montes: o destino Aqui me torna a pôr nestes oiteiros; Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Pelo traje da Corte rico, e fino. Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Os meus fiéis, meus doces companheiros, Vendo correr os míseros vaqueiros Atrás de seu cansado desatino. Se o bem desta choupana pode tanto, Que chega a ter mais preço, e mais valia, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 167 Volume 4 167 25/07/2012 14:09:03 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Que da cidade o lisonjeiro encanto; Aqui descanse a louca fantasia; E o que até agora se tornava em pranto, Se converta em afetos de alegria. (Disponível em www.domíniopublico.br) A formação intelectual de Cláudio Manuel da Costa se deu na Europa, onde realizou os estudos superiores, aprendeu as normas de poesia que praticava e se tornou escritor. Assim, sentia-se preso aos dois lugares ou, se quisermos, a dois mundos, daí a criação de uma poesia em que alterna estados de espírito, ora pedindo desculpas pela rusticidade de seus versos, ora os elevando às alturas. Podemos entender tais oscilações ao conflito do indivíduo que confrontava internamente uma realidade que julgava mais próxima dos estágios primitivos da humanidade com a cultura europeia, a qual considerava superior, segundo o pensamento de sua época. Essa noção de superioridade fica mais clara se considerarmos fenômenos em curso naquele momento como a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Devemos esclarecer que o poeta não vivenciou de perto todos estes acontecimentos, porém esteve na Europa num período em que o Iluminismo, corrente filosófica que o orientou, estava no auge. Disso, decorre a “ambivalência de colonial bairrista, crescido entre os duros penhascos de Minas, e de intelectual formado na disciplina mental metropolitana”. Daí que “seus pastores encarnam o drama do artista brasileiro, situado entre duas realidades, quase diríamos duas fidelidades” (CANDIDO, 1981, p. 91). Para entendermos a terceira constante da poesia de Cláudio Manuel, precisamos levar em consideração o contexto político e econômico do século XVIII. A mineração enriqueceu muitos indivíduos, permitindo a formação de uma elite que se sentia prejudicada pela coroa portuguesa. Diferente dos plantadores de cana-de-açúcar, até então o segmento social mais influente e que fora fiel ao rei, a nova classe adotou postura 168 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 168 EAD 25/07/2012 14:09:03 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil saiba mais O Iluminismo foi o nome do “movimento intelectual situável na Europa do século XVIII, embora com importantes antecedentes, nomeadamente na Grécia antiga, e que parte da identificação entre cultura e civilização, convertida em ideal de razão, ciência e progresso. Tal movimento, que se reclama herdeiro do racionalismo do século XVII, tem alguns dos seus representantes mais influentes na França, Suíça e Alemanha. Os escritos de Jean-Jacques Rosseau e dos enciclopedistas franceses polarizam boa parte do movimento, mas o facto de a filosofia de Kant ou a literatura favorável às Revoluções Americana e Francesa serem frequentemente incluídas no seu âmbito torna a respectiva caracterização mais difícil de sintetizar. Francis Bacon, Descartes, Newton e Locke são alguns dos filósofos e cientistas usualmente apontados como precursores próximos. Representante típico do iluminismo setecentista é o alemão J. Christian Wolff, que no livro Pensamentos racionais sobre Deus, o mundo, a alma humana e todas as coisas em geral (1720) expõe as suas convicções fundamentais: a razão humana tem a possibilidade de dissipar as nuvens da ignorância, do erro e da injustiça, até iluminar, como um sol, o caminho da ciência que há-de permitir à humanidade o progresso e a felicidade. Os princípios iluministas andam em geral associados a uma crítica racional propícia à investigação científica e tecnológica, à tolerância, ao humanitarismo e aos direitos universais do homem”. Unidade 2 . Aula 6 Fonte: E-Dicionário de Termos Literários- verbete elaborado por J. M. de Souza Nunes. Disponível em: http://www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/I/iluminismo. htm. contestadora, manifestou suas insatisfações políticas e fomentou conspirações contra a metrópole. Tais fatos são sinais do crescimento do nativismo, pois os habitantes da colônia não se sentiam portugueses. Em contrapartida, o adjetivo “brasileiro”, empregado com o propósito de desqualificar os nascidos aqui, passou a ser motivo de orgulho para eles (SODRÉ, 1988). Podemos compreender, pois, que, em meio a esse ambiente, Cláudio Manuel da Costa tenha se preocupado com assuntos locais, por vezes, com ares patrióticos, como podemos observar no soneto XCVIII: Destes penhascos fez a natureza O berço em que nasci: oh! quem cuidara Figuras 2.6.2 - Iluministas: Francis Bacon, René Descartes, Jonh Locke, Isaac Newton, Jean-Jacques Rousseau. Fontes: http://commons. wikimedia.org Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza! UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 169 Volume 4 169 25/07/2012 14:09:04 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Amor, que vence os tigres, por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra meu coração guerra tão rara Que não me foi bastante a fortaleza. Por mais que eu mesmo conhecesse o dano A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano; Vós que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei: que Amor tirano Onde há mais resistência mais se apura. (Disponível em www.dominiopublico.br) As seguidas referências a montanhas, vales, rios e outros elementos característicos valorizavam o ambiente brasileiro e são indícios de que o sentimento nativista se espalhava. A transposição para o campo da literatura de aspectos da natureza tem caráter inovador porque acrescentou ingredientes para a criação artística e contribuiu para a construção de símbolos que se incorporaram ao imaginário artístico. Numa perspectiva mais ampla, podemos situar a temática na linha inaugurada por Caminha, seguida por outros cronistas e por poetas do século XVI que, independente de produzirem ou não textos literários, mencionam os elementos naturais ao lado do índio, assuntos que se tornaram recorrentes na nossa literatura, como veremos adiante. Cláudio Manuel da Costa foi mais além, porque expressou em atitudes práticas a preocupação com sua terra, tomando parte da Inconfidência Mineira, assim como outros poetas. Entre suas motivações, estava o reflexo de seus contatos com os ideais do Iluminismo durante sua estada na Europa. Sem desmerecer os demais, seu nome também se distingue pelo papel de fundador da literatura brasileira porque, segundo Antonio Candido (1981), influenciou diretamente as gerações subsequentes, a começar pelos que vieram logo depois dele, como Basílio da Gama, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. 170 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 170 EAD 25/07/2012 14:09:11 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil saiba mais Devemos relembrar o que foi, em linhas gerais, a Inconfidência Mineira: “[...] as elites intelectuais e econômicas da economia mineradora, influenciadas pelo iluminismo, começaram a se articular em oposição à dominação portuguesa. No ano de 1789, um grupo de poetas, profissionais liberais, mineradores e fazendeiros tramavam tomar o controle de Minas Gerais. O plano seria colocado em prática em fevereiro de 1789, data marcada para a cobrança da derrama. Aproveitando-se da agitação contra a cobrança do imposto, os inconfidentes contaram com a mobilização popular para alcançarem seus objetivos. Entre os inconfidentes estavam poetas como Claudio Manoel da Costa e Tomas Antonio Gonzaga; os padres Carlos Correia de Toledo, o coronel Joaquim Silvério dos Reis; e o alferes Tiradentes, um dos poucos participantes de origem popular dessa rebelião. Eles iriam proclamar a independência e a proclamação de uma república na região de Minas. Com a aproximação da cobrança metropolitana, as reuniões e expectativas em torno da inconfidência tornavam-se cada vez mais intensas. Chegada a data da derrama, sua cobrança fora revogada pelas autoridades lusitanas. Nesse meio tempo, as autoridades metropolitanas estabeleceram um inquérito para apurar uma denúncia sobre a insurreição na região de Minas. Através da delação de Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou seus companheiros pelo perdão de suas dívidas, várias pessoas foram presas pelas autoridades 6 de Portugal. Tratando-se de um movimento composto por influentes integrantes das elites, alguns poucos denunciados foram condenados à prisão Unidade 2 . Aula e ao degredo na África. O único a assumir as responsabilidades pela trama foi Tiradentes. Para reprimir outras possíveis revoltas, Portugal decretou o enforcamento e o esquartejamento do inconfidente de origem menos abastada. Seu corpo foi exposto nas vias que davam acesso a Minas Gerais. Era o fim da Inconfidência Mineira. Mesmo tendo caráter separatista, os inconfidentes impunham limites ao seu projeto. Não pretendiam dar fim à escravidão africana e não possuíam algum tipo de ideal que lutasse pela independência da ‘nação brasileira’. Dessa forma, podemos ver que a inconfidência foi um movimento restrito e incapaz de articular algum tipo de mobilização que definitivamente desse fim à exploração colonial lusitana”. Fonte: http://www.brasilescola.com/historiab/inconfidencia-mineira.htm. 3 HERANÇA DE CLÁUDIO MANUEL: O PARDO DE VERGONHAS DESCOBERTAS COMO HERÓI Quando pensamos no Arcadismo brasileiro, precisamos entender que não foi um movimento coeso e articulado, em que os escritores se reuniam para debater propostas estéticas e criar obras literárias que as representassem. Apesar de ter em UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 171 Volume 4 171 25/07/2012 14:09:11 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura comum o fato de nascer ou viver em Minas Gerais, nem todos chegaram a se encontrar diretamente, por isso não formaram um grupo orgânico. Cláudio Manuel da Costa esteve isolado em Vila Rica, a partir de 1754, quando retornou de Portugal. Em 1776, Alvarenga Peixoto (1744-1893) se juntou a ele e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) completou o trio seis anos mais tarde. Basílio da Gama passou boa parte de sua vida em Portugal, onde teve contato com Silva Alvarenga que, de volta ao Brasil, fixou-se no Rio de Janeiro. Santa Rita Durão saiu daqui aos nove anos de idade e nunca mais retornou (CANDIDO, 1981). Assim, quando falamos em grupo de poetas, não estamos nos referindo a uma ação articulada e consciente de indivíduos. Considerando-se a data de nascimento, Santa Rita Durão e Cláudio Manuel da Costa pertencem à geração da década de 1720 e os demais formam a geração dos anos 1740. Literariamente, porém, a ordem muda porque Durão, o mais velho de todos, foi dos últimos a estrear. Mesmo assim, também são dois grupos: aqueles que ficaram conhecidos pela poesia lírica, com Cláudio Manuel influenciando os outros, e os que escreveram poemas épicos, sendo Basílio um dos modelos de Durão. Divisões à parte, o fato fundamental é que a poesia que fizeram tem parentesco com a obra de Camões. Em autores como Basílio da Gama, verifica-se um “aproveitamento requintado de leituras”, de acordo com Candido (1981, p. 129), isto é, as alusões são menos explícitas. Os autores brasileiros de epopeia partilham do mesmo ponto de vista em relação aos povos dominados: a ideia de superioridade da cultura europeia e o caráter elevado da conquista. 3.1 Basílio da Gama: criador de belas imagens do índio e da natureza De um modo geral, podemos afirmar que toda obra 172 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 172 EAD 25/07/2012 14:09:11 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil literária é resultado de outras que a antecederam, ou seja, os autores sempre dialogam com outros que os precederam, confirmando-os ou deles distanciando-se. Nem sempre identificamos de imediato o processo de “filiação”, porque é algo que acontece de muitas maneiras. O certo é que, quanto mais tivermos informações sobre literatura, mais aptos estaremos para desvendar os parentescos entre os textos. No caso da ascendência de Cláudio Manuel da Costa sobre poetas brasileiros do século XVIII, há fatos comprobatórios, como a convivência com Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e a admiração que manifestavam por ele, conforme Antonio Candido (1981). Do ponto de vista literário, podemos identificar afinidades por elementos que as obras sugerem para estabelecer as pontes, exemplificados pela presença de aspectos Unidade 2 . Aula 6 característicos de Minas Gerais e da paisagem tropical, bem como pela representação do índio. Se levarmos em consideração acontecimentos históricos e fenômenos sociológicos, ou seja, as insatisfações com a coroa portuguesa e o despertar de um nativismo, encontraremos outros caminhos que permitem a aproximação entre os poetas do século XVIII. Com isso, podemos entender certas particularidades da literatura produzida no período como reflexo do contexto social. As motivações que levaram os poetas do Arcadismo brasileiro a se interessar por assuntos locais variam. Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, por exemplo, tiveram postura de comprometimento com os problemas imediatos de um segmento social, enquanto Basílio da Gama e Santa Rita Durão foram movidos por outros interesses pessoais, como, por exemplo, a intenção de conquistar a simpatia do Marquês de Pombal, para com isso alcançar favores e benefícios. Basílio da Gama publicou O Uraguai em 1769. Composto em versos decassílabos brancos e dividido em cinco cantos, o poema representa a luta de portugueses e espanhóis contra os índios das missões controladas pelos padres jesuítas. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 173 Volume 4 173 25/07/2012 14:09:11 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A narração está ambientada em área que hoje corresponde a região da fronteira entre Brasil com a Argentina e o desenvolvimento do enredo se dá em torno do combate lusitano aos índios, porém termina por engrandecê-los, com destaques para as figuras de para conhecer Sepé, Cacambo e Catitu. O propósito da obra de Gama era elogiar Figura 2.6.3 - Marques de Pombal. Fonte: http://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Marques_de_Pombal.jpg Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal, político e importante líder de Portugal durante o reinado de José I, ficou conhecido pela modernização que introduziu em Portugal e pela expulsão dos jesuítas. Em 1750, foi nomeado ministro para Assuntos Exteriores. Quando do terremoto que destruiu Lisboa, no ano de 1755, organizou as forças de auxílio e planejou a reconstrução da cidade, se tornando primeiro-ministro nesse mesmo ano. A partir de 1756, com poderes quase absolutos, realizou um programa político de acordo com os princípios do Iluminismo, reorganizando o sistema educacional, elaborando novo código penal, reformulando o exército e a marinha, estimulando a agricultura, o comércio e as finanças. Em 1770, recebeu o título de marquês. Suas reformas desagradaram setores da aristocracia e foram mal recebidas pelos jesuítas, ressentidos com sua expulsão. Depois da morte de D. José, foi condenado por abuso de poder. Expulso da Corte, retirou-se para sua propriedade rural em Pombal, onde faleceu. Fonte: www.arqnet.pt/dicionario/ pombal1m.html, acesso em abril. 2011. 174 a política do Marquês de Pombal, com quem se reconciliava no momento em que a publicou. Exaluno de colégio jesuíta, o poeta chegou a ser preso em Lisboa, no ano de 1767, sob a acusação de conspirar em favor da Companhia de Jesus, sendo condenado ao degredo em Angola. Depois de suplicar clemência em um poema dedicado à filha do Marquês, não só foi perdoado como se tornou protegido do dirigente português (MARTINS, 1992). Antônio Gomes Freire de Andrade, que exercia o cargo correspondente a governador do Rio de Janeiro, foi o comandante das tropas portuguesas no ataque aos índios, ordenado por Pombal durante o processo de expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias. Assim, deveria ser a personagem principal da narrativa de Basílio da Gama que, apesar de tal propósito, deu mais destaque para os guerreiros indígenas. Sintonizado com o espírito de seu tempo, revela afinidades com ideias de filósofos franceses sobre a valorização da vida primitiva, sensorial e intuitiva do habitante da selva. A obra opõe o pensamento lógico do europeu, representada por espanhóis e portugueses, ao mundo do homem americano, seu saber rudimentar e suas virtudes naturais. Conforme Antonio Candido, Basílio da Gama escreveu o poema movido pela: [...] intenção ostensiva, [de] fazer um panfleto antijesuítico para con- Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 174 EAD 25/07/2012 14:09:11 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil ciliar as graças de Pombal. A análise revela, todavia, que também outros intuitos animavam o poeta; notadamente descrever o conflito entre a ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio (1981, p. 127-128). Basílio da Gama valoriza, sobretudo, as qualidades morais dos indígenas, cuja participação nos episódios da guerra, entretanto, é insuficiente para dar dimensão épica ao poema, porque as cenas que protagonizam são destituídas de grandiosidade. Os episódios mais marcantes de O Uraguai não colocam as personagens diante de forças superiores ou que exijam qualidades excepcionais. Cacambo é de índole pacífica, por isso se sente contrariado com a guerra; assim, Unidade 2 . Aula 6 aquilo que se perde pela ausência de elementos épicos é compensado pela habilidade do poeta em aproveitar a plasticidade e o colorido sugerido pelos elementos naturais e humanos nativos. Há belos quadros que expressam o viço da mata, o frescor das águas, o multicolorido das plumas e das flores, segundo Antonio Candido (1981). Juízo semelhante faz Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 139), sintetizando os atributos do frei jesuíta pela “elaboração de versos musicais nos quais se percebe o eco de Virgílio, de Petrarca, do Tasso ou de Camões, mas em que a natureza tem cores de impressão setecentista”. Apesar da elevação à condição de herói, o indígena é caracterizado como homem rude, sem disciplina, sem valor, sem armas, ou seja, um indivíduo inferior do ponto de vista do colonizador, como se observa no canto II. Quem emite o juízo é Gomes Freire e devemos compreendê-lo como representativo da visão da civilização europeia, que não reconhece no modo de vida do elemento autóctone uma cultura diferente porque via nela a ausência de cultura. Basílio da Gama repete na ficção aquilo que Caminha escreveu a respeito dos habitantes da terra da qual os portugueses se apossavam. Apesar da simpatia com que se UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 175 Volume 4 175 25/07/2012 14:09:12 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura refere aos “homens, pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse as suas vergonhas” (CASTRO, 1985, p. 76), encerra a Carta prevendo o proveito que o contato com os nativos poderá render ao catolicismo. Em outras palavras, não levou em consideração as crenças religiosas dos índios que sequer conhecia naquele momento. Do mesmo modo, a ideia de indisciplina pressupõe o ordenamento hierarquizado do mundo sob a perspectiva da tradição judaico-cristã, ou seja, da fé católica e da estrutura econômica do capitalismo. A representação da vida indígena por Basílio da Gama levava o leitor da época a imaginar uma forma de organização social e econômica caótica e ignora o fato de o nativo brasileiro ter outra maneira de viver e de se relacionar com seus semelhantes e com o mundo circundante. No pensamento do poeta, seres que desconheciam a escrita não professavam a fé católica e se tinham comportamentos e maneiras diferentes de ordenação social não podiam se equiparar ao europeu. A constatação pela voz de Gomes Freire de que era um povo sem armas sintetiza a visão do conquistador, mas é incoerente em relação à forma como os portugueses impuseram sua cultura. Quando chegaram ao Brasil, eles empregaram a força bélica para se apropriar de terras pertencentes aos nativos, que resistiram como puderam antes de perdê-las. Aspectos como esses permitem que façamos a aproximação entre o Uraguai e Os Lusíadas. Nos dois casos ocorre a representação do português como povo guerreiro, valente e brioso. Em Basílio, a contradição é flagrante, porque as qualidades atribuídas a Sepé, Catitu e Cacambo dotam o índio dessas mesmas virtudes, apesar da descrição negativa da sua organização social e do menosprezo por suas armas. Podemos observar isso no fragmento a seguir do já referido canto II: Caitutu de outra parte altivo e forte Opunha o peito à fúria do inimigo, 176 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 176 EAD 25/07/2012 14:09:12 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil E servia de muro à sua gente. Fez proezas Sepé naquele dia. Conhecido de todos, no perigo Mostrava descoberto o rosto e o peito Forçando os seus co’ exemplo e co’as palavras. Já tinha despejado a aljava toda, E destro em atirar, e irado e forte Quantas setas da mão voar fazia [...] Morto o grande Sepé, já não resistem As tímidas esquadras. Não conhece Leis o temor. Debalde está diante, E anima os seus o rápido Cacambo. (Disponível em www.dominiopublico.gov.br) Podemos observar que, graças à altivez, à força, à destreza e ao ímpeto que lhes são próprios, os indígenas se opõem com bravura aos ataques de espanhóis e portugueses, Unidade 2 . Aula 6 desmentindo a caracterização pejorativa feita por Gomes Freire. É bom lembrar que, no século XVIII, Portugal e Espanha estavam entre as nações de maior poderio militar, entretanto tais contradições não desqualificam a obra nem desmerecem seu autor. Se expressam valores que hoje consideramos absurdos, é porque correspondem a uma época cuja visão de mundo, felizmente, já foi superada. Paralelamente aos combates pela posse da terra, ocorre a disputa pelo amor de Lindoia, esposa de Cacambo, o chefe indígena. A jovem é desejada pelo inescrupuloso padre Balda, administrador das missões que, com a intenção de conquistá-la, aprisiona e mata seu marido, dando-lhe uma bebida misteriosa. Tanajura, velha índia dotada de poderes sobrenaturais, conduz a bela viúva até uma gruta, onde revela por meio de visões o assassinato de Cacambo. Transtornada, Lindoia entra em profundo estado de prostração e se deixa ficar na caverna, onde foi picada por uma serpente, morrendo em seguida. A cena da morte de Lindoia, assim como as descrições da paisagem e dos indígenas, revela o grande talento de UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 177 Volume 4 177 25/07/2012 14:09:12 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Basílio da Gama para a construção de belas imagens, segundo Antonio Candido (1981). Essas passagens, juntamente com outras tantas de O Uraguai, somam-se às referências às montanhas de Minas Gerais, que encontramos na poesia de Cláudio Manuel da Costa como expressão de uma orientação localista, presente na obra dos poetas brasileiros do século XVIII. 3.2 Santa Rita Durão: conhecimento sobre a vida do índio Você se lembra quando dissemos que, apesar de ser o mais velho dentre os poetas brasileiros de seu tempo, frei José de Santa Rita Durão se aventurou pela literatura tardiamente. Sabe-se que é autor de outros textos, alguns escritos antes de publicar Caramuru, em 1781, mas esses servem apenas para revelar a face menos conhecida do autor, sendo de pouco ou nenhum valor literário (POLITO, 2000). Com o ambicioso projeto de escrever um poema épico, sua intenção principal era seguir o modelo de Camões, como se vê nas “Reflexões prévias”, onde afirma que “Os sucessos do Brasil não mereciam menos um poema que os da Índia” (DURÃO, 2000, p. 5). Em outras palavras, considerava que a passagem de Pedro Álvares Cabral pelo Brasil, em 1500, quando rumava em direção à Índia, estava à altura da viagem realizada por Vasco da Gama. O enredo de Caramuru se desenvolve a partir de um episódio protagonizado por Diogo Álvares ou Diogo Álvares Correia, que se incorporou à historiografia e ao imaginário brasileiros. Um dos primeiros brancos a se fixar no Brasil, Álvares se estabeleceu em Salvador e consta como fato mais conhecido de sua vida um naufrágio do qual foi vítima, nas proximidades de Itaparica. A força das águas arrastou o barco em que viajava até a praia, onde foi atacado 178 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 178 EAD 25/07/2012 14:09:12 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil pelos índios, porém sobreviveu porque fez disparar o mosquetão que tinha em mãos, atemorizando os nativos que, por desconhecerem arma de fogo, prostraram-se a seus pés, entre reverentes e assustados, chamando-o de “caramuru”, o equivalente a filho do fogo ou filho do trovão. De acordo com os relatos, Diogo Álvares conhecia línguas e costumes dos índios e se envolveu em guerras entre tribos, tornando-se respeitado por alguns chefes. Um deles teria lhe dado sua filha Paraguaçu como esposa, com quem o português se casou. O casal chegou a viajar para a França e lá Paraguaçu foi batizada na igreja católica, recebendo o nome de Catarina. Paralelamente a esses fatos, Durão trata do triângulo amoroso do qual faz parte Moema que, inconformada com a partida de Caramuru, lança-se ao mar e sai nadando em perseguição ao navio no qual ele viaja, Unidade 2 . Aula 6 morrendo afogada. As informações a respeito de Caramuru são contraditórias e nem todas são comprovadas, embora obras como o Tratado descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza, e a Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil (1663), do padre Simão de Vasconcelos, mencionem fatos relativos a sua vida. Além desses autores, Santa Rita Durão também usa como fonte A relação da viagem que fez ao Brasil a Armada da Companhia, do ano 1655 (1657), de Francisco de Brito Freire, e A história da América Portuguesa (1730), de Sebastião da Rocha Pita (CANDIDO, 1981). Santa Rita Durão toma o naufrágio como mote para descrever a colonização da Bahia pelos portugueses e segue à risca a forma de Camões em Os Lusíadas, estruturando seu poema em dez cantos, com estrofes de oito versos e o esquema de rima ABABABCC. Compreende-se sua postura, pois se ele considerava o assunto equivalente ao abordado pelo português, é natural que recorresse aos mesmos recursos para destacar a sua relevância. Importa lembrar que no século XVIII Portugal estava em situação UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 179 Volume 4 179 25/07/2012 14:09:12 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura completamente distinta da vivenciada trezentos anos antes, quando conheceu o apogeu econômico e militar. Na época áurea, o país havia ocupado posição de vanguarda nas grandes viagens marítimas, no comércio internacional e nas conquistas territoriais (SARAIVA, 1984), sendo a chegada de Vasco da Gama à Índia símbolo dessas glórias. No tempo de Durão, a economia portuguesa estava em declínio e as riquezas produzidas no Brasil eram fundamentais para suas relações comerciais e financeiras com outros países. A atividade extrativista chegava ao momento de maior produção e as pedras e os metais preciosos de Minas Gerais eram o principal produto que os portugueses tinham para oferecer. Visto por essa perspectiva, o poema sugere a comparação entre o passado e o futuro, com Índia e Brasil funcionando, respectivamente, como metáforas para as glórias de séculos anteriores e a promessa de redenção num tempo vindouro, prenunciando-se pela atividade mineradora. A enumeração dos diversos aspectos das terras brasileiras faz parte dessa ideia de um futuro glorioso e rico, em particular a fertilidade do solo que produz a cana-deaçúcar, o tabaco, o milho, a mandioca, entre outras riquezas enumeradas no canto VII: Ervilhas, feijão, favas, milho e trigo Tudo a terra produz, se transplanta; Fruta também, o pomo, a pera, o figo Com bífera colheita e em cópia tanta, Que mais que no país que o dera antigo No Brasil frutifica qualquer planta; Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente Os que a nós transplantamos de outra gente. Nas comestíveis ervas, é louvada O quiabo, o giló, os maxixeres, A maniçoba peitoral presada, A taioba agradável nos comeres, O palmito de folha delicada, E outras mil ervas, que, se usar quiseres, 180 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 180 EAD 25/07/2012 14:09:13 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil Acharás na opulenta natureza Sempre com mimo preparada a mesa. (DURÃO, 2001, p. 216-217) A importância dada às propriedades do solo e à variedade de plantas, frutas, raízes e peixes serve de pretexto para realçar a abundância de alimentos e a facilidade de obtêlos no Brasil. A fecundidade da terra e a fartura de gêneros remetem, por oposição, aos frequentes problemas enfrentados pelos portugueses para se abastecerem do necessário como Unidade 2 . Aula 6 sustento (SARAIVA, 1984). Durão também procura apresentar com minúcias o homem nativo, outra particularidade do Brasil, para isso descreve seus costumes, bem como as guerras entre as tribos. A exemplo de Basílio da Gama, antepõe a cultura indígena à europeia, chamando a atenção para sua conversão ao catolicismo. Assim distingue os gentios, colocando de um lado os dóceis e confiáveis e, do outro, os bárbaros, correspondendo, respectivamente, aos convertidos e aos que ainda não haviam se dobrado ao cristianismo. O artifício é uma forma indireta de reforçar os elogios ao trabalho dos jesuítas, engrandecido mais explicitamente em outras passagens: São desta espécie operários santos, Que com fadiga dura, intenção reta, Padecem pela fé trabalhos tantos, O Nóbrega famoso, o claro Anchieta: Por meio de perigos e de espantos, Sem temer do gentio a cruel seta, Todo o vasto sertão têm penetrado, E a fé com mil trabalhos propagado . Em muitos trechos de Caramuru percebemos que a descrição assume feições catalográficas, ou seja, o autor como que cataloga itens, realizando uma enumeração extensa e até UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 181 Volume 4 181 25/07/2012 14:09:13 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura monótona. Nesses trechos observamos quanto Durão se prendeu às fontes que tomou por referência, como lembra Antonio Candido: Afastado da pátria desde os nove anos, Durão construiu dela uma noção minuciosamente elaborada sobre alguns textos básicos, que cita no prefácio e nas notas. Estes textos, – Simão de Vasconcelos, Brito Freire, Rocha Pita e outros, – de onde sai toda a informação (1981, p. 179). Dos eventos relativos à formação do Brasil, Durão destaca fatos do passado como a distribuição das capitanias hereditárias e a resistência portuguesa frente às ameaças de franceses e holandeses. Também faz referências a acontecimentos de seu tempo, como o tratamento de Pombal aos membros da Companhia de Jesus. Cabe ressaltar que Santa Rita Durão teve posição ambígua diante da expulsão dos jesuítas de Portugal, segundo Ronald Polito (2000). Chegou a tomar parte nas acusações de que seriam eles os responsáveis pelo atentado sofrido pelo rei, Dom José, em 1758. A atitude visava a agradar ao bispo de Leiria, que almejava aproximação com o Marquês de Pombal, algo também ambicionado pelo poeta. O esforço foi em vão porque, após alcançar o objetivo ambicionado, o prelado se esqueceu dos favores prestados por Durão que, decepcionado, rompeu relações com ele e se incompatibilizou com a ordem religiosa à qual pertencia. Temendo perseguições, fugiu para a Espanha e, depois, para a França, onde foi preso. Após ser libertado, fixou-se na Itália por vários anos até que, pobre e desempregado, recorreu ao bispo de Beja, solicitando sua intervenção junto a Pombal, obtendo com isso o cargo de professor de teologia (CANDIDO, 1981). As ambiguidades de Durão ultrapassam o plano da crença religiosa e das vinculações com o poder político; pois, num certo sentido, tais hesitações se fazem perceber na comparação com Os 182 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 182 EAD 25/07/2012 14:09:13 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil Lusíadas. Segundo Eneida Cunha, “Cópia de cópia, o Caramuru tende a se materializar através de um esforço de repetição e diferenciação distinto do requerido ao seu passado” (2006, p. 50). A autora prossegue sua argumentação, apontando duas diferenças fundamentais. Camões construiu sua obra tomando por referência grande quantidade de fontes, cuja origem nem sempre se pode distinguir, enquanto para o mineiro ele é a única referência, ainda que se percebam as alusões a outros escritores. A outra distinção é que o acontecimento escolhido por Camões se articula com a série de eventos relacionados à fundação de Portugal. Trocando em miúdos, significa que entre os séculos XII, época do surgimento do Condado Portucalense, e o XV, quando se deu a bem sucedida aventura de Vasco da Gama, ocorreram muitas lutas para garantir e expandir o território português. A expedição do grande navegador, por Unidade 2 . Aula 6 seu ineditismo, representa uma segunda etapa dentro dos vários estágios em que se deu a fundação do país. A chegada da esquadra de Cabral ao Brasil, apesar de pertencer ao processo, não apresenta caráter fundacional: A viagem de Vasco da Gama às Índias, ao ser erigida à condição de aventura épica, possibilitou ao poeta a articulação entre a conquista do além-mar e as lutas anteriores pela preservação e expansão do território pátrio, culminado com um processo de construção de nacionalidade precoce, ao qual o poema [Os Lusíadas] atribuiu a qualidade e o valor compatíveis com o imaginário expansionista português: a dilatação da Fé (CUNHA, 2006, p. 51). Segundo a autora, o desembarque de portugueses no litoral baiano foi um desdobramento secundário do projeto expansionista lusitano. Para melhor entender o caráter de episódio que o descobrimento do Brasil teve dentro de acontecimentos maiores, ou seja, a pouca representatividade em relação à viagem de Vasco da Gama, basta lembrarmos que Pedro Álvares Cabral UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 183 Volume 4 183 25/07/2012 14:09:13 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiu de Lisboa com destino ao oriente, para repetir o mesmo roteiro. A Índia foi efetivamente o rumo que tomou depois que partiu daqui, conforme relata o escrivão Pero Vaz de Caminha (CASTRO, 1985). Diante desse impasse colocado pelos fatos, Santa Rita Durão teve que buscar uma solução que tornasse viável seu projeto literário, por isso deu dimensões épicas ao resultado feliz do naufrágio de Diogo Álvares: De Filho do Trovão denominado, Que o peito soube dominar à fera gente; O valor cantarei a adversa sorte, Pois só conheço herói quem nela é forte. É indiscutível que a viagem de Vasco da Gama foi acontecimento maior e mais arriscado do que o acidente sofrido por Diogo Álvares, portanto está mais à altura de uma obra literária destinada a celebrar grandes feitos. O sucesso da jornada eleva o comandante da frota que viajou à Índia entre os homens que realizaram façanhas em todas as épocas, colocando-o acima dos grandes nomes da história de Portugal e dos grandes navegadores de seu tempo, daí a dimensão épica que sua jornada assumiu. Uma das obras em que Camões se inspirou é Odisseia, modelo de tratamento literário para o tema da viagem. Em Os Lusíadas, podemos reconhecer semelhanças do retorno de Vasco da Gama à Lisboa com o regresso de Ulisses à Ítaca, sendo ambos acolhidos com veneração. A personagem de Homero foi saudada com honrarias porque reinstaurou a ordem, enquanto o navegante português trouxe, no seu retorno, a perspectiva de uma nova ordem. Num e noutro caso, o regresso dos viajantes abre a perspectiva de um futuro promissor. A viagem de Vasco da Gama assumiu proporções extraordinárias porque ele realizou no mundo concreto algo até então considerado impossível ao homem. Seu caráter extraordinário é inquestionável, por isso revestido de caráter 184 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 184 EAD 25/07/2012 14:09:13 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil Ao redor do século VIII a. C. aparecem as epopeias inspiradas na lenda da Guerra de Tróia: a Ilíada e a Odisseia. Segundo a tradição, o seu autor é Homero, cuja atividade literária se baseia nas tradições orais, transmitidas de geração em geração, sobre as expedições gregas a Tróia (no Noroeste da Ásia Menor). A lenda troiana narra o se- obra porque esta era a mentalidade da época. A professora Eneida da Cunha chama a nossa atenção para outra distinção entre Diogo e Vasco da Gama, que é o fato de Caramuru não ter ascendência heroica, porque seu heroísmo é acidental, “construído a partir de um insucesso: do naufrágio próximo ao litoral da Bahia de Todos os Santos, em guinte: Paris, filho de Príamo, rei de Tróia, flagrante contraste com a viagem desejada e venturosa de Vasco da Gama” (2006, p. 54). Nem tudo, porém, é demérito no poema de Durão. Antonio Candido vê nele se pela sua universalidade, pois superam todos “os elementos tradicionais do gênero [épico]: duros trabalhos de um herói, contato de gentes diversas, visão de uma sequência histórica” (1981, p. 179). Para Candido, ainda que se entregue à fantasia, Durão retrata costumes, ritos, organização social, enfim, o modo de vida dos índios rapta a bela Helena, esposa de Menelau. Forma-se então, para vingar a afronta, uma confederação grega sob as ordens de Agamémnon, irmão de Menelau. Os chefes gregos (Agamémnon, Menelau, Aquiles, Ajax, Ulisses, Heitor, Eneias e outros) assediam Tróia durante dez anos e, após múltiplos episódios heróicos, conquistamna e incendeiam-na. Ulisses (ou Odisseus) demora dez anos a regressar a sua casa, correndo pelo caminho uma infinidade de aventuras. Essas duas obras caracterizamas barreiras do tempo (há mais de vinte e cinco séculos que são lidas com interesse) e do espaço (todos os povos do Ocidente as conhecem e admiram). Na Odisseia o argumento é centrado em Ulisses e seus companheiros, no seu filho (Telémaco) e na sua mulher (Penélope). Ulisses, rei de Ítaca, é esperado durante anos, após a guerra de Tróia, pela mulher e pelo filho. Penélope, assediada por vários pretendentes, promete-lhes escolher marido quando acabar de tecer um tapete, que tece durante o dia e desfaz de noite. Telémaco corre diversas aventuras à procura do pai. Ulisses vê dificultado o seu regresso a Ítaca por diversos obstáculos: tempestades, magos, sereias, etc. Entre os perigos que da melhor maneira possível em sua época. Segundo ele, passagens da obra em que o passam Ulisses e os seus companheiros assunto é abordado estão entre os melhores momentos da narrativa. Precisamos entender essa avaliação dentro do contexto literário brasileiro, ou seja, Durão procura valorizar as qualidades da obra considerando o esforço dos autores, deixando de lado as distorções entre a realidade dos nativos e a mens. Ulisses chega por fim a Ítaca incóg- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 185 6 superioridade do homem europeu e de sua cultura, tornando possível a aceitação da saiba mais Unidade 2 . Aula épico, enquanto a grandiosidade do ato de Diogo Álvares diante dos tupinambás se deve à visão de Santa Rita Durão em relação ao nativo brasileiro. Em outras palavras, Durão tomou como ponto de partida a conta-se a luta com Polifemo, gigante com um só olho na fronte e devorador de honito, mata os pretendentes e, finalmente, é reconhecido pela mulher e pelo filho. A Odisseia é um conjunto de aventuras mais complexo que a Ilíada. As astúcias de Ulisses, as aventuras do seu corajoso filho Telêmaco, a fidelidade de Penélope e outros aspectos desta epopeia fazem com que seja mais humana, perante o aspecto predominantemente heroico da Ilíada. Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/homero.htm. Acesso em nov. 2010. Volume 4 185 25/07/2012 14:09:13 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura descrição apresentada no poema. Problemas como esses devem ser atribuídos ao imaginário da época e estão ligados à visão de mundo de Santa Rita Durão, pois é preciso levar em consideração que dedicou a vida ao catolicismo, portanto seu pensamento é de um homem comprometido com os valores religiosos de seu tempo. Por essa razão, elogia e justifica a colonização portuguesa, considerando-a iniciativa de caráter benéfica por converter o homem nativo ao cristianismo. Posicionase como se a imposição da fé católica fosse ato inofensivo à cultura indígena e os portugueses viessem para cá sem qualquer interesse material. Em nome de sua crença, harmoniza o mundo do homem branco com o mundo do índio, em nome de uma lei natural que os concilia em torno da paz e da justiça (CANDIDO, 1981). A perspectiva com que Durão descreve o encontro da civilização europeia, de tradição cristã, com a cultura nativa da América pode parecer ingênua em alguns aspectos nos dias atuais. Sob tal enfoque, os fatos são apresentados como se a força divina guiasse o homem branco e lhe assegurasse o direito de conquistar territórios e impor seus costumes e suas práticas religiosas aos habitantes desses lugares. Com isso, passa a ideia de que as riquezas obtidas pelos colonizadores foram resultado da intervenção das forças celestiais, portanto um prêmio pela difusão da fé cristã, como se a busca por elas não fosse o principal objetivo do avanço europeu sobre outros povos e causa da escravização e da dizimação de alguns deles. 3.3 Os fundadores do indianismo Os mais renomados estudiosos da literatura brasileira se dividem, porque na opinião de uns O Uraguai é superior a Caramuru, enquanto outros consideram o poema de Santa Rita melhor do que o de Basílio da Gama. É difícil, porém, 186 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 186 EAD 25/07/2012 14:09:13 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil encontrar quem discorde a respeito da relevância de ambos para nossa literatura e, consequentemente, para a literatura de língua portuguesa. Sua importância para a literatura nacional consiste na definição de duas vertentes temáticas, a natureza, e, principalmente, o indianismo. Os dois assuntos têm se mostrado inesgotáveis, passando por constantes atualizações ao longo do tempo. Na intenção de dar conta de obras e autores que considera fundamentais para a formação da literatura brasileira, Antonio Candido (1981) compara os dois poemas, apontando aspectos que julga negativos e positivos em um e outro. Com relação à obra de Basílio da Gama, considera que não é epopeia no sentido tradicional, embora seu autor pretendesse seguir o cânone do gênero, recriando-o de um modo próprio. Destaca a naturalidade com que o poeta escreve e, graças a essa Unidade 2 . Aula 6 aptidão, consegue construir quadros que impressionam pela plasticidade. Em sua opinião, Basílio é um dos melhores poetas brasileiros e, por causa de seu talento, percebe o mundo sensível, dá movimento e fluidez à descrição, proporcionando prazer ao leitor. Seu modo de escrever valoriza certos episódios, nos quais revela grande capacidade criadora por meio da vivacidade de determinadas cenas, permitindo que se observe a densidade dramática, assim como a dinamicidade das ações. Para Candido, o autor “é um maravilhoso artífice, não há dúvida, e dos poemas longos da literatura brasileira talvez seja O Uraguai aquele em que há maior número de versos expressivos e lapidares” (1981, p. 134). A respeito de Santa Rita Durão, o crítico afirma que, apesar de escolher um grande modelo, Camões, talvez não tenha lido autores mais próximos de seu tempo que também escreveram épico, mas revitalizando o gênero. Vê, igualmente, uma dificuldade do frei para equilibrar informações com invenção, por isso, quando trata dos acontecimentos verídicos mantémse excessivamente próximo das fontes históricas e, nas partes UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 187 Volume 4 187 25/07/2012 14:09:13 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura em que deixa a imaginação livre perde-se na prolixidade. Em contrapartida, reconhece nele grande conhecimento da matéria com a qual trabalhou, compensando os excessos da palavra com momentos de grande concisão: “O conhecimento aparece em Durão como boa informação das coisas, discernimento das paixões, e também visão intelectual, ordenação mental da matéria poética” (1981, p. 185). O aparecimento na mesma época, a abordagem de fatos históricos e o propósito de dar a ele dimensões épicas, a representação do índio e a descrição da natureza estão entre os fatores que determinam aproximação entre O Uraguai e Caramuru. Entretanto, apesar da possibilidade de fazermos essas associações, as obras formam, de acordo com Candido (1981), um par antitético, com Durão fazendo réplica a Basílio, no sentido de tentar conciliar a política de Pombal com as ações dos jesuítas. Para Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 140), “falta, todavia, ao Caramuru, que tem apesar de tudo, oásis de poesia nativista como o canto VI, o incisivo frescor do poema de Basílio da Gama”. Isto é, considera O Uraguai, obra mais intensa e viva, atribuindo essas características à capacidade do autor de se distanciar o máximo que pôde da explicação religiosa para os acontecimentos, enquanto o outro não conseguiu se despir da sua condição de católico. Wilson Martins (1992) alerta que Basílio da Gama foi mal sucedido no propósito de fazer de O Uraguai um épico porque: [...] o seu gênio era lírico e sua intenção, polêmica; acrescente-se que o tema era histórico e contemporâneo, tudo isso pouco compatível com a narrativa em que o heroico, segundo a definição clássica, se alia ao maravilhoso (p. 428). Prossegue sua argumentação, acrescentando outros motivos para que a obra não seja lida como epopeia, afirmando 188 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 188 EAD 25/07/2012 14:09:13 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil que o autor se distanciou consciente ou contraditoriamente do modelo, ao optar pelo verso branco, pela divisão em estrofes, pelo episódio único, pelo curto período de tempo abrangido e pela ausência do mito nacional. Com relação a Caramuru, afirma que a obra “sustenta a comparação com seus modelos e [...] nada há de necessariamente inferior em Diogo Álvares Correia com relação aos demais personagens da poesia épica” (p. 498). As duas obras têm nos elementos naturais e no índio a principal matéria e isso transformou ambas em referência para a literatura nacional, estimulando a criação na poesia e na prosa e popularizando escritores. Os reflexos mais visíveis são encontrados no século XIX, quando o Romantismo impulsionou efetivamente as atividades literárias no Brasil. Orientada pelo viés nacionalista, a escola encontrou no homem nativo e na natureza o traço distintivo para caracterizar o país, Unidade 2 . Aula 6 em oposição a Portugal. A independência gerou forte sentimento antilusitano, portanto rejeição ao passado colonial representado pelo domínio português. Em função disso, o índio foi transformado em símbolo da emancipação política, econômica, social e cultural, expressando aquilo que Nelson Werneck Sodré denominou “furor nativista” (1988, p. 276). Segundo o autor, o entusiasmo foi ao ponto de muitas famílias de origem europeia adotarem nomes indígenas, daí Araripes, Juremas, costume incorporado pelas instâncias oficiais, como se observa em títulos nobiliárquicos como os viscondes Itaboraí, Inhaúma, o barão de Mauá etc. Esse, porém, é um dos assuntos das nossas próximas aulas. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 189 Volume 4 189 25/07/2012 14:09:14 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES A AT ATIV TIV IVI VI ATIVIDADES 1. Leia o texto do professor Voltaire Schiling sobre o “Ciclo do Ouro” no Brasil, e elabore uma síntese sobre os aspectos mais relevantes desse momento histórico no qual se inserem as iniciativas artísticas dos árcades brasileiros. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/br_ ouro6.htm. 2. Releia o soneto abaixo, de Cláudio Manuel da Costa, e responda: Destes penhascos fez a natureza O berço em que nasci: oh! quem cuidara Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza! Amor, que vence os tigres, por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra meu coração guerra tão rara Que não me foi bastante a fortaleza. Por mais que eu mesmo conhecesse o dano A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano; Vós que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei: que Amor tirano Onde há mais resistência mais se apura. a. Elabore uma paráfrase em prosa do poema – siga o exemplo: “Na primeira estrofe, o poeta apresenta a paisagem de seu nascimento, ou seja, as montanhas, os penhascos de pedra, e exclama que ninguém imaginaria que, nesse lugar tão “duro”, poderia se criar uma alma branda, suave. No segundo quarteto...” (complete): b. A partir da resposta anterior, aponte o tema geral do 190 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 190 EAD 25/07/2012 14:09:14 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil soneto e explique porque o autor pode ser considerado, de certo modo, iniciador de uma literatura com traços efetivamente nativistas, brasileiros. 3. Assista ao vídeo “Caramuru”, do programa “De lá para cá”, da TV Brasil, disponível no youtube em cinco partes, que você pode acessar a partir da primeira em: http://youtu.be/3Vfp97Hf94. a. Selecione as passagens que achar mais significativas de cada parte, descrevendo-as. b. Você concorda que, em linhas gerais, o vídeo confirma a ideia que estudamos em aula sobre a importância da obra Caramuru (assim como Uruguai) por ter colocado os “elementos naturais e o índio [como] principal matéria, Unidade 2 . Aula 6 o que transformou [essas obras] em referência para a literatura nacional, estimulando a criação na poesia e na prosa e popularizando escritores”? Explique. RESUMINDO R RES RE ES RESUMINDO Você estudou, nesta aula, que os poetas mineiros do Arcadismo tiveram importante papel no processo de desenvolvimento da Literatura Brasileira, destacando-se Cláudio Manuel da Costa. Nesse processo, outros árcades participaram com a intenção de imprimir uma elevação estética às letras nacionais. Entretanto, o resultado das iniciativas artísticas de Santa Rita Durão e Basílio da Gama, por exemplo, muito ligados à herança camoniana, apresentam traços conservadores em termos das relações do poder colonial, que reafirmam em seus textos. Ainda assim, contribuíram com uma representação da natureza e do indígena que será acolhida, com traços renovados, pelo Romantismo, matéria que trataremos em nossa próxima aula. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 191 Volume 4 191 25/07/2012 14:09:14 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura livros Obras de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Basílio da Gama e Santa Rita Durão no site www.dominiopublico.br. filmes Filme: Caramuru, a invenção do Brasil, direção de Guel Arraes e Jorge Furtado Clipe: “Jack Soul Brasileiro”, Lenine; disponível em: www.youtu.be/ScSCaMnj5YU Referências REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Vol. 1. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. CASTRO, Sílvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1985. CUNHA, Eneida Leal. Estampas do imaginário: literatura e identidade cultural. UFMG: Belo Horizonte, 2006. DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. 4. ed. Vol. 1 (1550-1794). São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. POLITO, Ronald. Introdução. In: DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 192 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 192 EAD 25/07/2012 14:09:15 Acordes árcades e ecos camonianos no Brasil SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 1998. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9. ed. Lisboa: Europa-América, 1984. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil. 8. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. Unidade 2 . Aula 6 STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 193 Volume 4 193 25/07/2012 14:09:15 2ª unidade AULA 7 A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA (PALOP) OBJETIVOS Conhecer os aspectos mais relevantes do processo da colonização portuguesa na África e os primeiros momentos das literaturas desenvolvidas em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 195 25/07/2012 14:09:15 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) 1 INTRODUÇÃO Os cinco países africanos de língua oficial portuguesa, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, foram colônias de Portugal desde o século XV, quando teve início a expansão ultramarina portuguesa, até o ano de 1975, quando conquistaram sua independência política. Nesta aula, vamos conhecer um pouco sobre esse processo de colonização e sobre os primeiros momentos das literaturas africanas registradas e divulgadas em língua Unidade 2 . Aula 7 portuguesa, sem deixarmos de refletir sobre questões, entre outras, relacionadas às “línguas nacionais”. Quer dizer, vamos reconhecer alguns dos principais aspectos ligados à formação desses países africanos, entendendo que não se trata de uma realidade homogênea, mas, pelo contrário, vamos perceber as diferenças importantes que marcam as diferentes situações histórico-sociais dessas nações africanas com as quais nós, brasileiros, temos inegáveis laços culturais. 2 A FORMAÇÃO DAS LITERATURAS DOS PALOP 2.1 O processo de dominação portuguesa na África Durante a época das chamadas “grandes navegações”, os portugueses chegaram na África, na foz do Zaire, em 1482, e fundaram São Paulo de Assunção de Loanda, a primeira povoação portuguesa, em 1575, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 197 Volume 4 197 25/07/2012 14:09:15 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura hoje Luanda, capital de Angola (FERREIRA, 1977, p. 12). Entretanto, o processo efetivo de colonização instaura-se a partir da Conferência de Berlim, quando é decidida a partilha da África pelas potências europeias, no século XIX. Esse processo foi decorrente da crise da escravidão negra, quando a mão de obra escrava, principal “produto” visado pelos países europeus por mais de quatro séculos na África, começa a ser questionada principalmente pelos novos rumos do capitalismo industrial. Nesse novo contexto, a mão de obra assalariada tornava-se mais produtiva sob o ponto de vista das potências econômicas, pois possibilitava a criação de um público consumidor para as mercadorias produzidas em larga escala. Assim, quando o continente africano deixou de ser fonte de escravos, iniciou-se o processo de ocupação territorial. Para Voltaire Schilling, isso deveu-se a dois motivos principais: O primeiro deles é que ambicionavam explorar as riquezas africanas, minerais e agrícolas, existentes no [interior], até então só parcialmente conhecidas. O segundo deveu-se à competição imperialista cada vez maior entre [as potências], especialmente após a celebração da unificação da Alemanha, ocorrida em 1871. (Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/ mundo/africa6.htm. Acesso em nov. 2010). Nesse contexto ocorreu o chamado “Ultimato”, em 1890, quando a Inglaterra impôs ameaças aos interesses expansionistas de Portugal na África. O propósito colonialista lusitano, fruto da partilha da África, era atrelar toda região que se estende de Angola a Moçambique sob seu domínio – o que a Inglaterra não aceitou, impondo sanções militares à monarquia portuguesa que, fragilizada economicamente, acatou as determinações inglesas, gerando um forte protesto nacional, que acabou levando ao fortalecimento dos republicanos em Portugal. 198 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 198 EAD 25/07/2012 14:09:15 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) saiba mais O que foi a chamada “Conferência de Berlim”? De acordo re Schilling: com Voltai- Atendendo ao convite do chanceler do II Reich alemão, Otto von Bismarck, 12 países com interesse na África encontraram-se em Berlim - entre novembro de 1884 a fevereiro de 1885 -, para a realização de um congresso. O objetivo de Bismarck era que os demais reconhecessem a Alemanha como uma potência com interesses em manter certas regiões afri- Figura 2.7.1 - A partilha da àfrica. Fonte: http://www. infoescola.com/wp-content/uploads/2010/05/partilha-daafrica.jpg canas como protetorados. Além disso acertou-se que o Congo seria propriedade do rei Leopoldo II da Bélgica (responsável indireto por um dos mais terríveis genocídios de africanos), convertido porém em zona franca comercial. Tanto a Alemanha, como a França e a Inglaterra combinaram reconhecimentos mútuos e acertaram os limites das suas respectivas áreas. O congresso de Berlim deu enorme impulso à expansão colonial, sendo comple- 7 mentado posteriormente por acordos bilaterais entre as partes envolvidas, tais como Convênio franco-britânico de 1889-90, e o Tratado anglo-germânico de Unidade 2 . Aula Heligoland, de 1890. Até 1914 a África encontrou-se inteiramente divida entre os principais países europeus (Inglaterra, França, Espanha, Itália, Bélgica, Portugal e Alemanha). Com a derrota alemã de 1918, e obedecendo ao Tratado de Versalhes de 1919, as antigas colônias alemãs passaram à tutela da Inglaterra e da França. Também, a partir desse tratado, as potências comprometeram-se a administrar seus protetorados de acordo com os interesses dos nativos africanos e não mais com os das companhias metropolitanas. Naturalmente que isso ficou apenas como uma afirmação retórica. Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/africa6.htm. Em linhas gerais, de acordo com Abdala Júnior e Paschoalin (1990, p. 186), mesmo com a República recémimplantada, em 1910, os portugueses “continuaram a sonhar com a África, como o fizeram anteriormente com o Brasil. As pequenas reformas sociais que procederam visaram apenas à manutenção da situação colonial”. No regime salazarista, como estratégia de dominação colonialista, as colônias africanas de Portugal passaram a ser chamadas de “Províncias Ultramarinas”, mas isso em nada mudava o caráter da exploração da metrópole UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 199 Volume 4 199 25/07/2012 14:09:15 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura portuguesa. Pelo contrário, Portugal desenvolveu uma política altamente repressiva e assimilacionista, [que visava a] desorganizar e, se possível eliminar, a cultura própria do país, considerada inferior, e impor a do colonizador, que seria assim um agente da ‘civilização’. Em 1954, em Angola, os colonialistas dividiram a população entre ‘civilizados’ e ‘não-civilizados’. Para ser considerado ‘civilizado’, teria que preencher as seguintes condições: ter mais de 18 anos, falar corretamente o português, exercer profissão para sustento próprio e da família, ter bom comportamento e hábitos civilizados, não ser [...] desertor do serviço militar (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990, p. 186). você sabia? O Brasil possui a segunda maior população negra do mundo; a Nigéria ocupa o primeiro lugar. Não se sabe exatamente o número de escravos africanos trazidos para o Brasil entre os séculos XVI e XIX, mas há estimativas de que somaram 3,5 milhões de pessoas. leitura recomendada Para aprofundar o estudo sobre o processo da ocupação e colonização de Portugal na África, recomendamos a leitura de “O Luso, o Trópico... e os Outros”, de Maria da Conceição Neto (1996), disponível em: http://www. casadasafricas.org.br/img/ Como consequência dessas imposições, que não podiam ser atendidas a não ser por menos de 5% da população, tiveram início muitas revoltas e começaram a se estruturar organizações para a luta anticolonialista. O agravamento dos conflitos levará à luta armada nos anos de 1960 (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1990), como veremos em nossas próximas aulas. upload/553854.pdf. 2.2 Momentos iniciais das literaturas nos PALOP Quando estudamos as literaturas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e GuinéBissau, não devemos esquecer (por isso não custa frisarmos) que estamos nos referindo a realidades socioculturais diferentes que, se tiveram alguns pontos em comum na sua história, muito maior foram (e são) suas diferenças. Entretanto, essa constatação – que devemos estender para a própria compreensão do termo “África”, ou seja, não se 200 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 200 EAD 25/07/2012 14:09:16 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) trata de uma unidade, mas de um continente marcado, como qualquer outro, pela diversidade cultural – não nos impede de reconhecermos certos temas (e problemas) recorrentes em todos esses países, como por exemplo: a denominação dessas literaturas; as marcas da oralidade dessas culturas e, por extensão, o problema das línguas nacionais; e a delimitação desses sistemas literários. Vamos, então, transformar esses temas/problemas em perguntas, cujas respostas construiremos juntos. 2.2.1 Como devemos chamar as literaturas dos PALOP? 7 Para começarmos, vamos a outra pergunta básica: como nós denominamos a nossa Literatura? Sim, Literatura Brasileira. E fomos também, como os cinco países africanos que estamos estudando, colônia de Portugal. Entretanto, Unidade 2 . Aula tendo em vista uma série de questões históricas (ou seja, relacionadas à economia, à política, à sociedade e à cultura), a tendência geral dos estudos dessas literaturas é compreendêlas e nomeá-las em bloco, pois vivenciaram muitos aspectos do processo de colonização portuguesa comuns, sobretudo a partir do século XIX, como vimos anteriormente, até a época da independência (1975). Inicialmente, devemos saber que, na vigência da colonização, os textos produzidos nesses países eram denominados, de forma ampla, como literatura ultramarina, pois tinham a ver “com os territórios de Ultramar, como durante muito tempo eram designadas oficialmente as colônias” (PORTUGAL, 1999, p. 15). Com o passar do tempo, e com as críticas e lutas contrárias ao processo colonial, essa denominação deixou de ser usada pela sua óbvia conotação colonialista. Passou-se a utilizar, então, a partir de 1975, o termo UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 201 Volume 4 201 25/07/2012 14:09:16 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Outro termo controverso para a definição das literaturas dos PALOP é “Lusofonia”. No dicionário Aulete digital, o verbete é assim apresentado: “Conjunto de povos ou comunidades que falam a língua portuguesa”. Entretanto, o termo é igualmente polêmico, pois, para muitos escritores e estudiosos, sobrepõe a língua portuguesa em universos culturais diferentes, o que acaba sendo criticado como herança do colonialismo. Para os defensores da expressão, a lusofo- nia deveria significar uma unidade político-linguística capaz de fazer frente, por exemplo, à difusão globalizada da língua inglesa. Lusófono teria o mesmo sentido internacional de anglófono ou francófono. consagrado por Manuel Ferreira em sua obra: Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. A palavra “expressão” visava a neutralizar os sentidos de dependência ou de qualquer forma de dominação colonial, e foi largamente referida como matéria nos currículos acadêmicos, sobretudo portugueses (quer dizer, nas universidades portuguesas, começou a fazer parte dos cursos de Letras a disciplina Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa). No entanto, com o crescente interesse e estudos variados por essas literaturas, os próprios escritores africanos e pesquisadores de diferentes nacionalidades passaram a questionar o termo, pois parecia apontar para uma “visão de mundo” que, se é portuguesa, não atingia a ideia da autonomia cultural desses países da África. Assim, a forma de referência mais aceita para essas literaturas hoje é designá-las como LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA. Ainda assim, não se trata de ponto pacífico, pois essas literaturas não são escritas apenas na nossa língua, o que nos remete às questões seguintes. 2.2.2 Qual a importância da oralidade para as literaturas dos PALOP? A tradição oral possui grande importância na cultura desses países africanos. De acordo com Joseph Ki-Zerbo (2011), não se trata apenas de “uma fonte que se aceita por falta de outra melhor e à qual nos resignamos por desespero de causa. É uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra bem estabelecida e que confere à história do continente Africano uma notável originalidade” (p. 43). Essa originalidade está implicada no modo como conhecimento e sabedoria são transmitidos: Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação 202 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 202 EAD 25/07/2012 14:09:16 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) contudo, evitar um contraponto oralidade e escrita, pois elas devem ser que efetivamente são: ou seja, de acordo Marcuschi, em seu artigo “Oralidade e escrita”, tanto a oralidade quanto a escrita são “modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas específicas” (1997, p. 140). Assim, não há como julgarmos a maior importância de uma ou de outra, embora o linguista também sublinhe: a oralidade é inerente a todo ser humano e “é um fator de identidade social, regional, grupal dos indivíduos” (p. 141). Precisamos, na verdade, distinguir oralidade x letramento, de fala x escrita. Veja bem: a oralidade, enquanto prática social, se apresenta sob diferentes formas e gêneros textuais e nos mais variados contextos de utilização. Já o letramento “é o uso da escrita na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o indivíduo que é analfabeto, mas sabe o valor do dinheiro, sabe o ônibus que deve tomar [...], até o indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática” (MARCUSCHI, 1997, p. 142). Com relação à fala, trata-se do aparato natural de todo ser humano, enquanto a escrita, para o mesmo linguista, “além de uma tecnologia de representação abstrata da própria fala [é] um modo de produção textual-discursiva com suas próprias especificidades” (1997, p. 142). Assim, também é importante UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 203 Volume 4 Figura 2.7.2. Fonte: http://upload. wikimedia.org/wikipedia/commons/ thumb/2/25/Diffa_Niger_Griot_ DSC_0177.jpg/260px-Diffa_Niger_ Griot_DSC_0177.jpg Chama-se “Griot” (termo franco-africano, variável em muitas regiões da África) ao narrador de histórias que, geralmente sob a copa de antigas e grandes árvores ou em volta de uma fogueira, contava histórias para seu povo. Nessas histórias, o griot transmitia ensinamentos, retomava as tradições e mantinha viva a memória de seus antepassados. Também musicavam suas histórias, contando feitos épicos ao som de instrumentos de corda ou xilofones. A figura dos griots persiste na atualidade, tanto na forma tradicional quanto em diferentes modalidades: sempre que escritores e escritoras, poetas, animadores culturais, grupos de teatro, entre outros, se dispõem a contar histórias que remetem à reflexão sobre os valores, os sentidos da vida, as questões propriamente dos povos africanos, estão, de certo modo, atualizando o papel dos griots. 7 Devemos, equivocado entre reconhecidas pelo com o professor você sabia? Unidade 2 . Aula diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas (VANSINA, 2010, p. 139-140). 203 25/07/2012 14:09:16 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura não esquecermos que “não existem sociedades letradas, mas sim grupos de letrados, elites que detêm o poder social, já que as sociedades não são fenômenos homogêneos, globais, mas apresentam diferenças internas” (MARCUSCHI, 1997, p. 144 – grifos do autor). Essas diferenças internas, a que se refere o professor Marcuschi, dizem respeito, como podemos entender, a divisões sociais e, como sabemos, quem detém determinadas formas de conhecimento valorizadas nas sociedades capitalistas, possui maior espaço de poder. Por isso é importante valorizarmos todas as formas de comunicação, todas as línguas e todas as expressões culturais, artísticas e de compreensão do mundo – pois, ao evitarmos esses julgamentos equivocados estaremos evitando toda forma de preconceito. E preconceito, como você deve saber, significa pré-conceituar, pré-julgar, ou seja, significa julgar sem conhecer, o que equivale à afirmação da ignorância. Ignorar é desconhecer, e para conhecer precisamos estar abertos ao Outro, quer dizer, precisamos saber dialogar abertamente com as culturas que são diferentes das nossas. E, como esperamos demonstrar a você até o final de nossas aulas, no caso da literatura dos cinco países que estamos estudando, temos com eles muito mais afinidades do que se costuma (re) conhecer. Uma dessas afinidades é, sem dúvida, a nossa língua, mas não se trata, mais uma vez, de um aspecto distante da polêmica. Veremos porque na resposta da próxima pergunta. 2.2.3 Qual é a situação do português e das línguas nacionais nessas literaturas? Para respondermos a essa questão, que não é nada simples, precisamos saber, inicialmente, que a língua portuguesa foi considerada, pelas lideranças dos movimentos de independência dos cinco países, uma estratégia fundamental 204 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 204 EAD 25/07/2012 14:09:17 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) para a garantia das respectivas unidades nacionais. Isso porque, com algumas exceções, como veremos adiante, nesses países existem diferentes grupos étnicos e linguísticos que, em disputa, poderiam fragmentar e inviabilizar a construção nacional. Além disso, a língua europeia permite mais diretamente o acesso ao conhecimento, à técnica e a outros instrumentos das relações de poder no mundo globalizado (entenda-se, no mundo regido por determinadas relações e imposições econômicas e capitalistas). De todo modo, não se trata de matéria pacífica, pois há autores africanos que questionam essa hegemonia da língua portuguesa, assim como há estudiosos que contemporizam diferentes perspectivas. Vejamos o caso do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana: para ele, enquanto a literatura de Moçambique for “exclusivamente produzida Unidade 2 . Aula 7 em língua portuguesa, uma parte importante dos nossos concidadãos permanecerá receptor passivo dos nossos textos, sem embargo da representatividade cultural ou do nível literário que possam alcançar” (2006, p. 23). E vai mais fundo: [...] o monopólio da palavra que vem sendo exercido pelos falantes da língua portuguesa se estabelece como a nova fronteira da africanidade, aquela que nos fará derrubar os muros internos da exclusão, não menos inadmissíveis do que os muros externos, os que retêm os nossos países no gueto do subdesenvolvimento e da dependência (HONWANA, 2006, p. 24). Já Inocência Mata, são-tomense de nascimento e professora da Universidade de Lisboa, apresenta outro posicionamento: [...] se a língua expressa o mundo em que vive o sujeito falante (o ambiente humano, natural, social, psicológico, cultural, histórico; mudivivencial, enfim), a questão não será o sistema linguístico, mas antes na for- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 205 Volume 4 205 25/07/2012 14:09:17 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ma de expressão como essa língua é usada, isto é, a LINGUAGEM – posicionamento que contempla sobretudo a expressão, o estar linguístico que é a representação do ser dos seus produtores, a sua forma de ser africano (MATA, 1998, p. 121 – grifos da autora). Nessa mesma direção, encontramos a reflexão da professora brasileira Laura Cavalcante Padilha (2002), que, ao citar TidjaniSerpos (Aspects de la critique africaine, 1987), desloca o problema “para o fato de que, o que significa, no ato de criação, é muito mais a leitura feita pelo artista dos elementos de sua cultura do que propriamente o uso dessa ou daquela língua” (p. 42). Desse modo, no duplo trabalho do escritor e da língua de que se vale, vai se realizando uma incorporação de “termos, expressões, estruturas sintáticas e morfológicas das línguas nacionais”, ao mesmo tempo em que a língua portuguesa “vai deixando de ser europeia para ganhar contornos angolanos, moçambicanos, santomenses, etc.” (2002, p. 42). O que podemos entender, a partir desses três ilustrativos posicionamentos da questão, é que, afinal, de consenso mesmo, o que temos é a importância dos textos literários (contos, romances, poemas...) como espaço privilegiado para o embate das diferentes vozes culturais. Embate que desvela as diferentes relações de poder que constituem a referida fronteira da africanidade, segundo Honwana. Consideremos, por fim, como uma espécie de síntese para esta complexa resposta, a afirmativa de Francisco Noa (2009), professor moçambicano da Universidade de Maputo: Se é verdade que grande parte [dos autores moçambicanos] pertence às elites maioritariamente educadas segundo os preceitos culturais, ideológicos e estéticos do antigo colonizador, não é menos verdade que elas instituem falas e visões do mundo que se contrapõem ao imaginário dominante, 206 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 206 EAD 25/07/2012 14:09:17 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) quando não o subvertem. Por outro lado, transformam a escrita num espaço de intermediação que permite a visualização e a legitimação de seres e de linguagens que, de outro modo, se manteriam silenciadas e obscuras ou, então, devido a mecanismos de apropriação, diminuídas ou caricaturadas em relação à sua real dimensão (p. 97). saiba mais De acordo com Eduardo Guimarães, em seu artigo “Enunciação e políticas de línguas no Brasil”, devemos reconhecer as seguintes diferenças entre: “Língua materna: é a língua cujos falantes a praticam pelo fato de a sociedade em que se nasce a praticar; nesta medida ela é, em geral, a língua que se representa como línguas nacionais, o que se evidencia é a existência de uma literatura africana que, na nossa língua, consegue denunciar as mazelas sociais, os conflitos, as diferentes questões primeira para seus fa- vivenciadas nesses países, bem como suas realizações, sua riqueza cultural, sua importância e sua história. e que são falantes desta lantes. Língua Franca: é aquela que é praticada por grupos de falantes de línguas maternas diferentes, língua para o intercurso comum. Língua nacional: é a língua Cabo Verde Guiné-Bissau Moçambique São Tomé e Príncipe UESC gua que o caracteriza, que Kikongo, Kimbundo, Cokwe, N’hanekaHumbe, N’ganguela, Umbundo e Kuanhama, Yaneka, entre as mais de vinte línguas faladas pelas diferentes etnias. dá a seus falantes uma re- Crioulo cabo-verdiano, que mescla o português arcaico a línguas africanas e divide-se em dialetos (variantes) entre as dez ilhas. ria nas ações formais do Crioulo Guineense e línguas de base africana, conforme os grupos étnicos, como Balanta, Fula, Manjaco, Mandinga, Pepel, entre outras. De origem bantu, destacam-se: Emakhuwa, Xichangana, Elomwe, Cisena, Echuwabo entre muitas outras com menor incidência de falantes. lação de pertencimento a este povo. Língua oficial: é a língua de um Estado, aquela que é obrigató- Estado, nos seus atos le- Unidade 2 . Aula de um povo, enquanto lín- AS LÍNGUAS NACIONAIS – Quadro resumo Angola 7 Essa compreensão pode ser estendida aos demais países africanos que têm no português a sua língua oficial, ou seja: sem desconsiderar o evidente espaço de poder que significa o uso majoritário da língua portuguesa, sem desconsiderar também a necessidade de valorização das gais. Pode-se ver que as duas primeiras categorias tratam das relações cotidianas entre falantes e as duas seguintes de suas relações imaginárias (ideológicas) e institucionais.” Fonte: http://w3.ufsm.br/ revistaletras/artigos_r27/ revista27_4.pdf. Acesso: nov. 2010. Crioulo Santome (LungwaSantome ou Forro ou Fôlô) e o Angolar (Ngola ou LungaNgola), falados na ilha de S. Tomé, e o Lung’ie (ou principense) falado na ilha do Príncipe. Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 207 Volume 4 207 25/07/2012 14:09:17 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2.2.4 Como se formaram os atuais sistemas literários dos PALOP? A definição de sistema literário foi formulada por Antônio Candido, em Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1981), obra na qual define os seguintes critérios para a afirmação de uma literatura nacional: [...] a existência, além das características internas (língua, temas, imagens), de certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros (p. 23). Esses critérios são “aplicáveis” às literaturas de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, ainda que não possamos deixar de reconhecer que elas tiveram seu desenvolvimento de forma desigual. De todo modo, podemos considerar, como aspectos comuns em termos do contexto histórico-social, as seguintes situações, ocorridas entre o final do século XIX e o início do século XX: o processo de industrialização, da diminuição dos índices de analfabetismo, formação consequente de um público leitor a partir, também, do desenvolvimento da imprensa (PORTUGAL, 1999). Ao reconhecermos os passos iniciais das literaturas dos PALOP, outro problema que surge é quanto à periodização para o estudo dessas literaturas. Sobre esse aspecto, devemos entender que 208 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 208 EAD 25/07/2012 14:09:17 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Periodizar uma literatura significa realizar um esforço por compreender os diferentes fenômenos culturais que estão na base da produção textual e significa, também, marcar as linhas de força que definem o próprio sistema literário (PORTUGAL, 1999, p. 48). Existem muitas divergências quanto à definição dessas linhas de força, mas optamos pela perspectiva crítica do professor Manuel Ferreira, quando distingue o que seria a literatura colonial e o que seriam já as literaturas africanas de língua portuguesa. No caso da primeira, pode-se entender como coloniais aquelas expressões literárias que têm “no centro do universo narrativo ou poético [a vinculação] ao homem europeu e não africano”. O branco é que, exaltado Unidade 2 . Aula 7 como “herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior” (FERREIRA, 1977, p. 14). A grande maioria desses textos pertence hoje ao esquecimento, e representa o que criticamente devemos entender como obras a serviço da ideologia colonial. Assim, mesmo que ainda no final do século XIX tenham existido alguns autores/obras delineando o que seria uma literatura de extração mais propriamente africana em meio à literatura colonial, vamos seguir Manuel Ferreira (1977, p. 34) e sua fixação dos seguintes marcos para o início das literaturas dos PALOP: 1936/1960 – Cabo Verde – revista Claridade; 1942 – São Tomé e Príncipe – livro de poemas Ilha de nome santo, de Francisco José Tenreiro; 1951-1952 – Angola – revista Mensagem; 1952 – Moçambique – revista Msaho; 1977 – Guiné-Bissau – antologia Mantenhas para quem luta! Nessa marcação temporal, definida por critérios UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 209 Volume 4 209 25/07/2012 14:09:17 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura literários, estão presentes os elementos necessários à constituição de um sistema literário, ou seja, (vamos retomar a citação de Antônio Candido): cada uma dessas expressões literárias (revistas e livros) assinala a existência de um conjunto de escritores que se identificam como tal, como escritores de certo grupo sociocultural; a existência de leitores potenciais, para o qual se dirigem essas publicações, que são os transmissores apropriados para veiculação de determinadas linguagens e estilos. Assim, vamos seguir essas coordenadas para conhecermos um pouco mais a respeito dos primeiros momentos dessas literaturas até a década de 1960, quando se afirmam as lutas pelas independências dos PALOP e ganham maior amplitude os seus sistemas literários. 3 DA ÉPOCA COLONIAL AOS ANOS DE 1960 3.1 Cabo Verde A literatura cabo-verdiana está diretamente relacionada, ainda que de diferentes modos, com a realidade desse arquipélago composto por dez ilhas, marcadas por intensas estiagens (períodos de seca) que dizimaram populações, desencadeando, assim, profunda crise econômica e a consequente emigração generalizada em vários momentos de sua história. Apesar das adversidades naturais, em Cabo Verde desenvolveu-se relativamente cedo, enquanto país colonizado, o sistema de ensino e a imprensa, já no século XIX (1842). O primeiro romance publicado no país foi O escravo (1856), de José Evaristo d’Almeida, e é interessante sabermos que os gêneros narrativos foram os mais desenvolvidos nesse período de desenvolvimento inicial da literatura cabo-verdiana, ao contrário do que é mais usual, ou seja, o desenvolvimento de gêneros poéticos. Nesse primeiro romance, de feições românticas, a escravidão é representada criticamente, mas de maneira idealizada, em meio a situações de amores platônicos 210 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 210 EAD 25/07/2012 14:09:18 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Entretanto, a partir de 1930 se inicia uma literatura efetivamente mais voltada para a realidade de Cabo Verde, embora não se trate ainda de motivações anticoloniais. O marco mais importante desse momento foi a referida revista Claridade, e o consequente movimento “claridoso”, cujo expoente foi, entre outros, Baltazar Lopes (Nhô Baltas) que, nos seus trabalhos poéticos, adotava o nome de Osvaldo Alcântara. É desse autor o afamado romance Chiquinho, de 1947, no qual se percebem claras influências ou ressonâncias do romance brasileiro da década de 1930, com autores como José Lins do Rego e Jorge Amado. Outros autores de destaque da Claridade foram Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Aurélio Gonçalves e Pedro Corsino Azevedo. Posterior ao grupo claridoso, ganha importância a geração de escritores da revista Certeza, de 1944, fortemente influenciada pelo movimento neorealista português (que conheceremos em nossas próximas aulas), marcado pela perspectiva marxista. Denúncia social, enfoque sobre a situação de exploração UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 211 O romance “Chiquinho é uma forte denúncia: do abandono a que foram votadas as pessoas de Cabo Verde. As secas destruíam colheitas, a fome estendia as suas garras sobre uma população indefesa e desesperada. No entanto, as personagens desta história alimentam um sonho, uma esperança, todos poderiam ser outra pessoa que não são, se ao menos a terra não fosse madrasta. É aqui que entra o mar, a miragem da América, os baleeiros para correr sete mundos, o futuro prometido para lá da fome, das secas e do sofrimento. Chiquinho é o fio condutor por onde passam todas estas personagens. É através das tribulações deste jovem, de origem modesta, mas livre num mundo desconhecido, que Baltasar Lopes se impõe como um dos principais fundadores da literatura caboverdiana”. Fonte: http://www.novavega.pt/Book.aspx?id=36. Acesso em nov. 2010. saiba mais 7 africanas (negros, mestiços, mulatos)” (1977, p. 23). saiba mais De acordo com o professor Pires Laranjeira, de 1926 a 1935 desenvolveu-se um movimento literário em Cabo Verde denominado Hesperitano (ou “Cabo-verdianismo”), por meio do qual os escritores tentavam fundar um sentimento de identidade com a terra de Cabo Verde que fosse ao mesmo tempo distante de Portugal e da África. Pires Laranjeira explica: “O fundamento que leva a que se possa designar Unidade 2 . Aula e situações trágicas de claro recorte romântico, conforme nos revela Manuel Ferreira (1977). Para Ferreira, “uma das virtudes desse texto está em que a quase totalidade das personagens [...] são tal período como Hesperitano ressalta da assunção do antigo mito hesperitano ou arsinário. Trata-se do mito, proveniente da Antiguidade Clássica, de que, no Atlântico, existiu um imenso continente, a que deram o nome de Continente Hespério. As ilhas de Cabo Verde seriam, então, as ilhas arsinárias, de Cabo Arsinário, nome antigo do Cabo Verde continental [...]. Os poetas criaram o mito poético para escaparem idealmente à limitação da pátria portuguesa, exterior ao sentimento ou desejo de uma pátria interna, íntima, simbolicamente representada pela lenda da Atlântida, de que resultou também o nome de atlantismohesperitano, por oposição ao continentalismo africano e europeu. […]”. Fonte: http://lusofonia.com.sapo.pt/caboverde. htm. Acesso em nov. 2010. Volume 4 211 25/07/2012 14:09:18 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura dos trabalhadores, dimensão do coletivo são temas recorrentes desse grupo de escritores, que vivenciou e denunciou também os absurdos da Segunda Guerra Mundial (FERREIRA, 1977). O movimento seguinte da literatura cabo-verdiana viria com uma perspectiva marcada pelo reconhecimento positivo do país como parte indissociável da cultura africana, o que se desdobrou nas lutas de afirmação anticolonialista, como veremos em nossas próximas aulas. 3.2 São Tomé e Príncipe No intervalo entre a expressão ainda colonial da literatura realizada em São Tomé e Príncipe e o início de uma escrita mais voltada à reflexão da realidade santomense, destacam-se as narrativas de Viana de Almeida (Maia Poçon, 1937) ede Sun Marky (O vale das ilusões, 1956), este já com elementos de crítica ao sistema colonial. Entretanto, será com o poeta Francisco José Tenreiro e seus versos de Ilha de nome santo (1942) que se inicia propriamente a literatura do país. Antes dele, será Caetano da Costa Alegre, com seu livro póstumo, Versos (de 1916), “o primeiro, em todo o espaço africano de língua portuguesa, a dar ao tópico da cor um tratamento poético” (FERREIRA, 1977, p. 79). Entretanto, Costa Alegre possui uma visão marcadamente alienada, que vê o negro como sujeito inferior, ainda que com sentimentos nobres, como podemos ler neste fragmento do poema “Para um leque” da referida obra poética: A minha cor é negra, Indica luto e pena; É luz, que nos alegra, A tua cor morena. É negra a minha raça, A tua raça é branca, 212 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 212 EAD 25/07/2012 14:09:18 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Tu és cheia de graça, Tens a alegria franca, [...] Todo eu sou um defeito, Sucumbo sem esperanças, E o meu olhar atesta Que é triste o meu sonhar [...]. Fonte: http://lusofonia.com.sapo.pt/LiteraturaSantomense.htm Em direção contrária, afirmando a sua “africanidade”, Francisco José Tenreiro, mesmo distante de sua terra de nascimento, canta o sentimento de pertencer ao mundo africano, em seu primeiro poema, sem título, dedicado à “Mãe” (em Ilha de nome santo – conforme Obra poética, 1967, p. 19): 7 Nasci naquela terra distante num dia de batuque. Unidade 2 . Aula daí esta pressa de viver! Ombros balançando lábios sangrando de prazer eles dançavam dançavam... Daí este olhar pró sofrer! Depois o descanso. Olhos longe sem se saber porquê Assim esta vontade de viver! E na conhecida “Canção do Mestiço”, o poeta exorta sua condição de “filho do negro e do branco” que, por fundir culturas, tem uma “alma feita de adição”. E com sua “gargalhada livre”, pode amar a branca e a negra, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 213 Volume 4 213 25/07/2012 14:09:18 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura quando, respectivamente, transforma-se em branco/negro, no presente, no aqui e agora de uma condição afirmativa da mestiçagem: Mestiço! Nasci do negro e do branco e quem olhar para mim é como se olhasse para um tabuleiro de xadrez: a vista passando depressa fica baralhando cor no olho alumbrado de quem me vê. Mestiço! E tenho no peito uma alma grande uma alma feita de adição como l e l são 2. Foi por isso que um dia o branco cheio de raiva contou os dedos das mãos fez uma tabuada e falou grosso: — mestiço! a tua conta está errada. Teu lugar é ao pé do negro. Ah! Mas eu não me danei ... E muito calminho arrepanhei o meu cabelo para trás fiz saltar fumo do meu cigarro cantei do alto a minha gargalhada livre que encheu o branco de calor! ... Mestiço! 214 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 214 EAD 25/07/2012 14:09:19 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Quando amo a branca sou branco... Quando amo a negra sou negro. Pois é... Reunidas em importantes antologias, os poetas e escritores de São Tomé e Príncipe seguiram cantando sua terra, com diferentes tons e tensões, até afirmar-se uma literatura mais madura, quando da independência do país. 3.3 Angola 7 A imprensa ocupou papel importante em Angola já no século XIX, quando se destacou o jornal Almanach de Lembranças (1851 a 1900) por reunir “o mais importante grupo de colaboradores angolanos, assim como artigos de interesse e Unidade 2 . Aula origem angolanas” (PORTUGAL, 1999, p. 59). Entretanto, foi na década de trinta do século XX que se desenvolveu uma escrita mais voltada para a afirmação positiva da terra angolana, sendo precursor o romance O segredo da morta (1929), de António de Assis Júnior. Em 1949, Castro Soromenho lança o primeiro romance da “trilogia do camaxilo”, Terra Morta (os outros dois são Viragem e A chaga, que chega aos anos de 1970) e com ele se estabelece de modo efetivo “uma literatura plenamente nacional, no sentido que hoje é dado ao termo”, de acordo com Salinas Portugal (1999, p. 61). Esses passos iniciais da literatura angolana foram reforçados pelo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, de 1948, e seu grito de “guerra”: “Vamos descobrir Angola!”. Por certo seus objetivos de instrução e garantias de direitos ao povo africano não foram alcançados, tendo em vista a resistência do governo colonial. Suas ideias, porém, veiculadas sobretudo na revista Mensagem (1951) por autores UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 215 Volume 4 215 25/07/2012 14:09:19 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura como António Jacinto, Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz e o poeta e militante político Agostinho Neto, foram muito importantes para a afirmação de um novo tempo, em que se consolidaram as bases da literatura em Angola. Citando Russel Hamilton (1981), Maria Tereza Salgado (2008) destaca, sobre essa geração dos anos de 1950, a inovação poética que desenvolveram. Por exemplo, em “Só Santo”, Viriato da Cruz combina uma “poesia narrativa com um ritmo sincopado”; no “Poema da alienação”, António Jacinto introduz a forte musicalidade, “a linguagem dos pregões dos bairros populares” (SALGADO, 2008). Para percebermos essas importantes expressões da poesia angolana, reproduzimos trechos, abaixo, dos poemas mencionados. Primeiro o de Viriato da Cruz, “Sô Santo”: Lá vai o sô Santo... Bengala na mão Grande corrente de ouro, que sai da lapela Ao bolso... que não tem um tostão. Figura 2.7.3 - Viriato da Cruz. Fonte: http://fotos.sapo.pt/ G0dYUFChTmUJ8tLjbIZS/x435 Quando sô Santo passa Gente e mais gente vem à janela: - “Bom dia, padrinho...” - “Olá!...” - “Beçácumpadre...” - “Como está?...” - “Bom-omdi-ia sô Saaanto!...” - “Olá, Povo!...” Mas por que é saudado em coro? Porque tem muitos afilhados? Porque tem corrente de ouro A enfeitar sua pobreza?... Não me responde, avó Naxa? [...] Como você pode notar, o poeta introduz diálogos e marcas de oralidade a reforçar a representação da fala popular. A seguir, no “Poema da alienação”, de António Jacinto, 216 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 216 EAD 25/07/2012 14:09:19 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) perceba a forma, a musicalidade. Os versos se referem ao processo de elaboração da própria poesia (metapoesia), do mesmo modo como ainda estava em elaboração o processo de afirmação nacional de Angola: leitura recomendada O poema completo de Viriato da Cruz, seguido de uma interessante análise realizada por Leodegário de Azevedo Filho está disponível em: http://www.filo- logia.org.br/abf/volume1/ numero1/01.htm. O de António Jacinto você encontra em: http:// resistente.3e.com.pt/ 7 joomla/index. Figura 2.7.4 - Jacinto Antônio. Fonte: http://1.bp.blogspot. com/-Jg-dFyid3Vc/TdxTLPZy2pI/ AAAAAAAACkI/sQQW97Xkt_o/s320/ Ant%25C3%25B3nio.jpg Um nome de grande importância que se destacou já nesse período foi o de Agostinho Neto, poeta e primeiro Unidade 2 . Aula Não é este ainda o meu poema o poema da minha alma e do meu sangue não Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim [...] O meu poema anda por aí fora envolto em panos garridos vendendo-se vendendo “malimonjemalimonjééé” [...] Mas o meu poema não é fatalista o meu poema é um poema que já quer e já sabe o meu poema sou eu-branco montado em mim-preto a cavalgar pela vida. presidente de Angola. Com ele, como estudaremos em nossas próximas aulas, temos uma poesia reconhecida por sua dimensão de espaço de luta em prol da independência política e cultural de Angola. 3.4 Moçambique Na época colonial, em Moçambique, destacaram-se dois jornais, O Africano (1900) e O Brado Africano (1918), ambos dirigi- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 217 Volume 4 217 25/07/2012 14:09:19 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura dos pelos irmãos José e João Albasini, nos quais se verifica a típica ambiguidade do período: os autores das páginas desses jornais renegam, de diferentes modos, a condição de africanos e tentam, embora não consigam, afirmar sua posição de colonos europeus, portugueses. Será esse dualismo a tônica das publicações dessa época, conforme os apontamentos de Salinas Portugal (1999). Historicamente, a fundação da literatura moçambicana é registrada com O livro da dor (1925), reunião de poesias de João Albasini e, na prosa, o destaque fica com Godido e outros contos (1952), de João Dias. Entretanto, de acordo com o professor Pires Laranjeira (1995), a fase de formação dessa literatura desenvolveu-se após a Segunda Guerra Mundial, quando se destacou a revista Masaho que, apesar da vida efêmera (foi lançado apenas um número), reuniu os Figura 2.7.5 - Noémia Sousa. Fonte: http://macua.blogs.com/.a/6a00d 83451e35069e2015435f7daaa97 0c-800wi 218 poetas mais relevantes em termos de renovação literária e consciência das questões africanas. Como exemplos, podemos citar Fonseca Amaral, Orlando Mendes, Virgílio de Lemos, Rui Guerra, e destacamos a poeta Noémia de Sousa, que enfatiza, em seus versos, a condição da mulher negra. Dessa autora, reproduzimos o trecho final do poema “Se me quiseres conhecer”, de 1949, publicado no caderno “Sangue Negro”, de 1951: Ah! Essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida boca rasgada em ferida de angustia, mãos enorme, espalmadas, erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis pelos duros chicotes da escravatura... torturada e magnífica altiva e mística, africa da cabeça aos pés, – Ah, essa sou eu! Se quiseres compreender-me Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 218 EAD 25/07/2012 14:09:19 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Vem debruçar-te sobre a minha alma de africa, Nos gemidos dos negros no cais Nos batuques frenéticos do muchopes Na rebeldia dos machanganas Na estranha melodia se evolando Duma canção nativa noite dentro E nada mais me perguntes, Se é que me queres conhecer... Que não sou mais que um búzio de carne Onde a revolta de africa congelou Seu grito inchado de esperança. Outro destacado poeta, considerado uma das vozes mais importantes na consolidação da literatura moçambicana por refletir sobre sua nacionalidade e sentidos, é José Craveirinha. Estudaremos com mais profundidade sua 7 poesia nas nossas próximas aulas, mas registramos um de seus mais conhecidos poemas, publicado na década de 1940: Unidade 2 . Aula Eu sou carvão! E tu arrancas-me brutalmente do chão E fazes-me tua mina. Patrão! Eu sou carvão! E tu acendes-me, patrão Para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não Patrão! Eu sou carvão! E tenho que arder, sim E queimar tudo com a força da minha combustão. Eu sou carvão! Tenho que arder na exploração Arder até às cinzas da maldição Arder vivo como alcatrão, meu Irmão Até não ser mais tua mina UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 219 Volume 4 219 25/07/2012 14:09:19 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Patrão! Eu sou carvão! Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão. Sim! Eu serei o teu carvão Patrão! Os pontos de exclamação do poema demarcam o tom de afirmação da condição negra, do reconhecimento indignado da exploração do negro. Propomos a você que, no espaço abaixo, elabore um comentário sobre os dois últimos versos do poema: ................................................................................................... ................................................................................................... ................................................................................................... ................................................................................................... 3.5 Guiné-Bissau A literatura desenvolvida na Guiné-Bissau, também denominada literatura bissau-guineense, não teve o mesmo desenvolvimento que nos demais PALOP, se considerarmos sua expressão em língua portuguesa. Entretanto, é interessante observarmos, como registra Salinas Portugal, que o território foi alvo de crônicas e estudos durante o período da expansão marítima portuguesa, nos séculos XV e XVI. São exemplos a Crônica do Descobrimento e Conquista da Guiné (1448), de Gomes Eanes Zurara, e o Tratado breve dos rios da Guiné e Cabo Verde (1594), de André Álvares de Almada. Deve-se considerar que a proximidade da Guiné-Bissau com Cabo Verde, inclusive, é um fator de repercussão nessa literatura, tanto mais que muitos cabo-verdianos 220 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 220 EAD 25/07/2012 14:09:19 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) foram para o território vizinho incentivados pelo modelo colonial português. Nesse sentido, autores como Fausto Duarte, durante o período colonial, e Amílcar Cabral, no período de lutas pela independência, embora tenham uma escrita voltada a questões Bissau-guineenses, são originários de Cabo Verde. Apesar disso, a afirmação dessa literatura também se deu em outros importantes registros: em 1952, James Pinto Bull publicou o primeiro conto escrito “por um autor guineense nato, ou seja, ‘Amor e trabalho’, no Boletim cultural da Guiné Portuguesa (vol. VII, n. 25, 1952, pp. 181-187)”, de acordo com Couto (2008). Já o livro considerado inicial na poesia guineense, Poemas, de Carlos Semedo, “foi publicado em Bolama pela Imprensa Nacional, em 1963. O primeiro romance, Eterna paixão, de UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 221 Volume 4 Unidade 2 . Aula 7 AbdulaiSilá, só veio a lume em 1994, em Bissau, pela Ku Si Mon Editora”, conforme Couto (2008). Assim, estudaremos com mais profundidade a literatura Bissau-guineense quando tratarmos da situação histórica dos PALOP após os processos de independência. 221 25/07/2012 14:09:20 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES AT A TIV VI ATIVIADES 1. Leia a citação a seguir e elabore um comentário a partir dos estudos realizados na primeira parte desta aula sobre a importância da oralidade para a cultura africana: O intelectual Amadou HampâtéBâé autor da famosa afirmação: ‘Em África quando um velho tradicionalista morre é uma biblioteca inexplorada que se queima’ (MATA, 1998). 2. Elabore um comentário sobre o sentido de ‘insularidade’ (do viver em uma ilha, o sentimento de isolamento sobretudo) presente no poema abaixo, do cabo-verdiano Jorge Barbosa, apontando para a ideia de evasão, de fuga, como uma das marcas recorrentes dos escritores da revista Claridade. “Dica”: passe para o registro em prosa cada uma das estrofes; depois, releia o poema percebendo que tanto a maneira como são expressos graficamente quanto a sonoridade dos versos reforçam o sentido do mar em movimento como, por exemplo, no verso: “baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...”. POEMA DO MAR O drama do Mar, o desassossego do Mar, sempre sempre dentro de nós! O Mar! cercando prendendo as nossas Ilhas, 222 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 222 EAD 25/07/2012 14:09:20 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) desgastando as rochas das nossas Ilhas! Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores, roncando nas areias das nossas praias, batendo a sua voz de encontro aos montes, baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas... 7 O Mar! pondo rezas nos lábios, deixando nos olhos dos que ficaram a nostalgia resignada de países distantes que chegam até nós nas estampas das ilustrações nas fitas de cinema e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros quando desembarcam para ver a pobreza da terra! Unidade 2 . Aula O Mar! a esperança na carta de longe que talvez não chegue mais!... O Mar! saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados, histórias da baleia que uma vez virou a canoa... de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros... O Mar! dentro de nós todos, no canto da Morna, no corpo das raparigas morenas, nas coxas ágeis das pretas, no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente! Este convite de toda a hora que o Mar nos faz para a evasão! UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 223 Volume 4 223 25/07/2012 14:09:20 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Este desespero de querer partir e ter que ficar! (do livro Ambiente, de 1941). 3. No poema a seguir, “Namoro”, do poeta angolano Viriato da Cruz, encontramos um registro lírico que não deixa de ser acompanhado por certo humor crítico: Mandei-lhe uma carta em papel perfumado e com letra bonita eu disse ela tinha um sorrir luminoso tão quente e gaiato como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas espalhando diamantes na fímbria do mar e dando calor ao sumo das mangas Sua pele macia - era sumaúma... Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo tão rijo e tão doce - como o maboque... Seus seios, laranjas - laranjas do Loje seus dentes... - marfim... Mandei-lhe essa carta e ela disse que não. Mandei-lhe um cartão que o amigo Maninho tipografou: “Por ti sofre o meu coração” Num canto - SIM, noutro canto - NÃO E ela o canto do NÃO dobrou Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete pedindo, rogando de joelhos no chão pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigenia, me desse a ventura do seu namoro... E ela disse que não. 224 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 224 EAD 25/07/2012 14:09:20 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) Levei á Avo Chica, quimbanda de fama a areia da marca que o seu pé deixou para que fizesse um feitiço forte e seguro que nela nascesse um amor como o meu... E o feitiço falhou. Esperei-a de tarde, á porta da fabrica, ofertei-lhe um colar e um anel e um broche, paguei-lhe doces na calçada da Missão, ficamos num banco do largo da Estátua, afaguei-lhe as mãos... falei-lhe de amor... e ela disse que não. 7 Andei barbudo, sujo e descalço, como um mona-ngamba. Procuraram por mim “-Não viu...(ai, não viu...?) não viu Benjamim?” E perdido me deram no morro da Samba. Unidade 2 . Aula Para me distrair levaram-me ao baile do Sô Januario mas ela lá estava num canto a rir contando o meu caso as moças mais lindas do Bairro Operário. Tocaram uma rumba - dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu! E a malta gritou: “Aí Benjamim !” Olhei-a nos olhos - sorriu para mim pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim. a) Realize os mesmos procedimentos iniciais para a análise do poema, conforme a “dica” da questão anterior – entretanto, o destaque agora é para a dimensão lírica, amorosa e subjetiva do poema, e os seus traços de humor crítico – assinale os versos em que esses elementos aparecem (lirismo e humor). b) A partir do levantamento das ideias anteriormente UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 225 Volume 4 225 25/07/2012 14:09:20 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura comentadas (questão a), explique a seguinte afirmação de José Carlos Venâncio (1992, p. 21-22): O ideal para Viriato da Cruz (e para os da sua geração [...]) seria, afinal, que ambos [o poeta e o personagem Benjamim do poema] partilhassem do mesmo universo estético-cultural. Era esse o nível, o da interiorização [...] do espaço luandense, do espaço crioulo, que os identificaria, os uniria, permitindo-lhes uma vivência comum da angolanidade em prol duma pátria que tinha ainda de ser criada. 4. Podemos dizer que no poema abaixo, de Noémia de Souza, encontramos uma perspectiva de esperança para a afirmação nacional de Moçambique? Explique, a partir da seleção de versos que demonstrem sua leitura: Um dia Quando este sol ardente de África nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor quero ir contigo, amigo, de mãos dadas,deslumbrados pelos trilhos abertos da nossa terra estranha, adubada com sangue e suor de séculos... Uma luz clara e doce se abrirá para todos e nós iremos de mãos dadas amigo pelos trilhos verdes de Moçambique. 226 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 226 EAD 25/07/2012 14:09:20 A formação das literaturas dos países africanos de língia oficial portuguesa (PALOP) RESUMINDO RESUMINDO RE ESUM SU U Você conheceu, nesta aula, os principais aspectos sobre a formação das literaturas dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), reconhecendo as implicações entre a literatura e esses diferentes contextos histórico-culturais. Desse modo, você estudou que as expressões literárias dos primeiros momentos de afirmação desses sistemas foram marcadas pela busca de uma identidade nacional que esteve demarcada, com diferentes tons e intensidades, pelas lutas contra o colonialismo, que ganharam força na década de 1960, assunto que vamos tratar em nossas próximas aulas. 7 REFERÊNCIAS Unidade 2 . Aula REFERÊNCIAS RE EFE F R ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990. CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1981. COUTO, Hildo Honório do. A poesia crioula bissauguineense. PAPIA 18, 2008, p. 83-100. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977 (Biblioteca Breve). HAMILTON, Russel. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa: Edições 70, 1981. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 227 Volume 4 227 25/07/2012 14:09:20 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura HONWANA, Luís Bernardo. Literatura e o conceito de africanidade. In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia (Orgs.). Marcas da diferença. As literaturas africanas de língua portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006. p. 17-25. KI-ZERBO, Joseph. História geral da África: Metodologia e Pré-História da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010. p. XXXI/LVII (Introdução Geral). Disponível em: <http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318. pdf.>. Acesso em: fev. 2011. LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Colaboração de Inocência Mata e Elsa Santos. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Oralidade e escrita. Signótica, Goiás, UPG, v. 9, n. 1, Goiás, 1997. MATA, Inocência. Diálogo com as ilhas. Sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Colibri, 1998. NOA, Francisco. As falas das vozes desocultas: a literatura como restituição. In: GALVES, C; GARMES, H; RIBEIRO, F. R. (Orgs.). África – Brasil. Caminhos da Língua portuguesa. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. p. 85-100. PADILHA, Laura Cavalcante. A semântica da diferença. In: ______. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. 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Disponível em: <http://www. dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf.>. Acesso em: fev. 2011. Unidade 2 . Aula 7 VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África lusófona. Lisboa: Ministério da Educação. Instituto de Cultura e Língua portuguesa, 1992. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 229 Volume 4 229 25/07/2012 14:09:21 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 230 25/07/2012 14:09:21 3ª unidade AULA 8 O ROMANTISMO E A AFIRMAÇÃO DA NACIONALIDADE OBJETIVOS Possibilitar o reconhecimento dos principais aspectos da realidade histórico-cultural em que se inseriu a estética romântica, respectivamente em Portugal e no Brasil, bem como os elementos mais relevantes das obras literárias de autores portugueses e brasileiros desse período, com destaque para as ficções narrativas. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 231 25/07/2012 14:09:21 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade 1 INTRODUÇÃO Nas últimas aulas, vimos que o desenvolvimento da literatura em língua portuguesa apresenta algumas particularidades a partir da colonização do Brasil, devido à introdução de fatores novos. Oficialmente, havia unidade administrativa e política entre a metrópole e a colônia, mas cultural e sociologicamente as diferenças se acentuavam com o passar do tempo. Aos poucos, se formaram mundos com dinâmicas específicas, pela configuração de grupos humanos, pela organização da vida e, consequentemente, pela constituição de mentalidades e interesses, por vezes, inconciliáveis. No plano da literatura, Camões serviu de parâmetro para a renovação literária em Portugal. Aqui, foi eco tardio, porém inspirou poetas cujas obras se caracterizam por certa ambiguidade, porque nem todos se sentiam ou se expressavam como portugueses. Observa-se preocupação com as nossas coisas já nas primeiras 8 manifestações ficcionais. Na prática, porém, cada indivíduo escreveu estimulado por motivações próprias e a consciência Unidade 3 . Aula literária coletiva começou a se formar depois de 1750, como vimos na aula 6, e se consolidou praticamente cem anos depois, como estudaremos a partir de agora. 2 NOVOS CONTEXTOS, NOVAS HISTÓRIAS Durante os três séculos de colonização, as ameaças de ruptura do Brasil com Portugal foram impedidas sem grandes transtornos, porque o exército metropolitano conseguiu resistir aos ataques de Espanha, França e Holanda, enquanto, no âmbito UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 233 Volume 4 233 25/07/2012 14:09:21 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais A respeito da Revolta do Quilombo dos Palmares consulte: http://www1. folha.uol.com.br/fol/ brasil500/zumbi_19.htm Sobre a Inconfidência Mineira, acesse: Revista Brasileira de História, em: http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0102-88 2002000200009&script= sci_arttext. Para conhecer mais sobre a Conjuração Baiana, acesse: http://www. sohistoria.com.br/ef2/ conjuracao/ interno, a coroa reprimiu duramente as insubordinações. São exemplos todas as rebeliões de escravos, a começar pelo levante de Palmares liderado por Zumbi, em 1695, as punições aplicadas a envolvidos na Inconfidência Mineira, em 1792, e na Conjuração Baiana, em 1798, cujos líderes foram condenados à morte (HOLANDA, 2006). A situação começou a se alterar quando Napoleão assumiu o poder na França e comandou ambicioso projeto de expansão, atacando vários países. Quando percebeu que não poderia impedir a marcha do exército francês, D. João VI tratou de minimizar o estrago e se transferiu com a corte para o Brasil. Recebeu apoio da Inglaterra, que enviou tropas a Portugal para ajudar no enfrentamento aos invasores, e destacou uma frota de navios para proteger sua travessia. A chegada do soberano transformou o Rio de Janeiro na capital administrativa do reino, pois com ele vieram ministros, altos funcionários civis e militares, autoridades religiosas e diplomatas estrangeiros, enquanto Lisboa ficou apenas como sede do parlamento (SARAIVA, 1984). As precariedades da cidade eram enormes e, para diminuí-las, foram realizadas mudanças significativas, a fim de propiciarem condições para a instalação da nobreza lusitana. Dentre as medidas tomadas nesse sentido, destacase o franqueamento dos portos para o comércio com outros países, permitindo que produtos brasileiros embarcassem diretamente rumo a seu destino e, principalmente, que mercadorias estrangeiras fossem descarregadas aqui sem passar por Portugal. Essa providência veio acompanhada da instalação de pequenas indústrias, da importação de máquinas, da construção de estradas e da fundação do Banco do Brasil. Paralelamente, ocorreram ações para facilitar a rotina de governo, por meio da construção de prédios públicos, e proporcionar comodidade, pelo arruamento e pela edificação de moradias, palácios e teatros (HOLANDA, 234 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 234 EAD 25/07/2012 14:09:21 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade 2006). Também contribuiu para a movimentação da cidade a abertura de casas comerciais, a chegada de pessoas de outras regiões do país, de negociantes, enfim, de gente atraída pelo súbito crescimento na circulação humana, de bens e de dinheiro. O desenvolvimento do comércio estimulou a incorporação ao cotidiano de objetos antes inexistentes ou sem grande importância como móveis, espelhos, papel de parede, quadros, relógios de parede, entre outros. Aconteceu também o surgimento de atividades econômicas, principalmente as remuneradas, e o aumento pela procura de outras como cabeleireiro, costureira e artesãos, principalmente os vindos da Europa (SODRÉ, 1988). Os progressos daqui contrastavam com os problemas de Portugal: a ausência do rei e do comando administrativo dificultava o funcionamento dos serviços públicos. O Brasil passou de principal fonte de divisas a gerador de despesas, devido aos gastos com obras e benfeitorias, aos privilégios fiscais concedidos e aos gastos para assegurar a posse da Unidade 3 . Aula 8 Banda Oriental, território onde hoje se situa o Uruguai, fato conhecido como Guerra da Cisplatina (HOLANDA, 2006). Esses fatores provocaram descontentamentos e contribuíram para o alastramento de contestações, levando D. João a optar pelo regresso a Lisboa. Ao partir, teve a precaução de deixar D. Pedro como regente, num último esforço para evitar a separação, porém foi mal sucedido porque os deputados portugueses reprovaram sua decisão e ordenaram o regresso imediato do príncipe, ato que apressou a declaração de independência do Brasil (SARAIVA, 1984). A morte de D. João agravou a crise em Portugal, dividindo o país em facções favoráveis a Pedro e Miguel, dois de seus filhos, que, respectivamente, representavam interesses de Inglaterra e Espanha. Como sabia que não podia deixar o Brasil, o primeiro abriu mão do trono em nome de uma filha, solução satisfatória apenas para seus simpatizantes. A UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 235 Volume 4 235 25/07/2012 14:09:21 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Consulte w w w. r e v i s t a t e m a l i v r e . com/cisplatina06.htm para conhecer mais sobre a Guerra da Cisplatina. impossibilidade de entendimento aumentou a instabilidade política e desencadeou a guerra civil iniciada em 1828 e que se prolongou por seis anos. A inexperiência de uma rainha muito jovem, a inconsistência ideológica e a falta de comprometimento dos partidos políticos com o desempenho da soberana retardaram o retorno à normalidade. Diante de tal cenário, a economia se destroçou e os problemas se arrastaram até cerca de 1850, quando surgiram condições para o entendimento nacional, permitindo que o país reencontrasse seu rumo (SARAIVA, 1984). 3 A ESTÉTICA ROMÂNTICA EM PORTUGAL 3.1 A prosa de Almeida Garrett Considera-se que o Romantismo, em Portugal, tem início com a publicação dos poemas “Camões” e “Dona Branca”, de Almeida Garrett, em 1825/1826. Como já registramos, nessa época, havia uma disputa ferrenha entre liberais, dos quais Garrett era partidário, e absolutistas – quando os últimos alcançaram o poder, efetivaram perseguições a seus inimigos políticos, forçando muitos ao exílio. Foi o que aconteceu com o autor que estamos estudando: na Inglaterra, exilado, Garrett conheceu as principais proposições estéticas românticas e compôs os referidos poemas. Entretanto, deve-se assinalar que essas composições líricas ainda guardavam traços clássicos, pois podemos entender que o escritor português, nesse início de experimentação romântica, não estava de todo desligado das tendências estéticas precedentes. Vejamos trechos do poema “Camões”: 236 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 236 EAD 25/07/2012 14:09:21 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade CANTO SÉTIMO XII saiba mais Nascido no Porto, a 4 de fevereiro de 1799, João Baptista da Silva Leitão viria a falecer em Lisboa a 9 de dezembro de 1854.Matriculado em 1816 na Faculdade de Direito de Coimbra, em breve se dedica à atividade dramática num meio acadêmico agitado pelas novas ideias, sobretudo políticas. Concluído o curso, em 1821 (ano em que termina O Retrato de Vênus), vai para Lisboa, onde imediatamente acumula triunfos, no âmbito literário, com a representação de Catão (estreado a 29-11-1821) e casa-se com Luísa Midosi (de quem viria a separarse em 1836). Exilado como liberal em 1823, viveu em Inglaterra e em França até 1826. No regresso a Portugal dirige os jornais O Português e O Cronista, mas conhece de novo o exílio de 1828 a 1832. De 1833 a 1836, é nomeado Encarregado de Negócios e Cônsul-Geral na Bélgica. Em 1838, integra o novo governo, sendo encarregado da restauração do teatro português, missão que leva a cabo criando, não só o Conservatório de Arte Dramática, mas sobretudo o Teatro Nacional. É nomeado Deputado em 1837, CronistaMor em 1838 e finalmente Par do Reino em 1851. D. Pedro V agraciou-o, a 25 de junho de 1854, meses antes da sua morte, com o título de Visconde de Almeida Garrett. Principais obras impressas e publicadas em vida do autor: 1825 - Camões, Paris; 1826 - Dona Branca, Paris; 1842 - O Alfageme de Santarém, Lisboa; 8 1843 - Romanceiro e Cancioneiro Geral, Lisboa;1844 - Frei Luís de Sousa, Lisboa; 1845-1850 - O Arco de Sant’Anna, Unidade 3 . Aula Estavam de altas árvores à sombra De aveludada relva em fresco assento. Atento o jovem rei fitava ansioso O guerreiro cantor que o nobre aspecto Tinha como de glória resplendente, E na divina inspiração aceso. Qual deveras o imita, qual fingindo; Mas todos se compõem do rei a exemplo. O vate começou: pausado acento,Respeitoso não tímido, lhe alonga Solenemente o cadenciar medido Do metro numeroso. O heróico assunto Primeiro expõe do Canto: armas e glória Dos barões lusitanos que fundaram Do Oriente o Império novo; os grandes feitos Dos reis, dos cidadãos de eterna fama Que se hão da lei da morte libertado. Logo as Tágides musas invocando Porque alto som lhe dêem e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente: – «Dai-me – com voz mais elevada clama – Dai-me uma fúria sonorosa e grande, E não de agreste avena ou rudafrauta, Mas da tuba canora e belicosa Que o peito acende, e a dor ao gesto muda, Um canto igual a meu erguido assunto. Se tão sublime preço cabe em verso. 2 vols., Lisboa; 1846 - Viagens na Minha Terra, Lisboa; 1853 - Folhas Caídas, Lisboa. Podemos perceber que se trata de uma espécie de “releitura” de Os Lusíadas, mas em versão diferenciada: não há preocupação com formas fixas, nem com rimas definidas, embora utilize “o verso branco de dez sílabas que já fora usado pelos árcades” (SARAIVA apud ABDALA JÚNIOR.; PASCHOALIN, 1982, p. 83). Se fizermos uma leitura simplificada do texto, entendemos que, sob a copa de árvores UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 237 Volume 4 Fonte: http://www.instituto-camoes. pt/revista/bibliografia.htm. Acesso em dez./2011. para conhecer Na “Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa”, Biblioteca Digital da Porto Editora, você encontra a versão integral do poema “Camões”. Acesse o site: http://www.adfaportugal.com/livros/camoes.pdf. 237 25/07/2012 14:09:22 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura frondosas, Camões (“o guerreiro cantor”) expõe seu canto (Os Lusíadas) ao “jovem rei”, no caso, D. Sebastião. Você deve ter notado também que se trata de uma estrofe numerada como décima primeira do canto sétimo. Pois esse poema de Garrett, a exemplo da épica de Camões, dividese em 10 cantos, mas seus versos não possuem, também, métrica definida. Sabemos que essa foi uma das marcas da estética romântica: os poetas, em nome da liberdade de criação, não aceitavam seguir modelos, diferenciandose, assim, da arte clássica. Porém, o que se percebe nesse texto poético inaugural de Garrett, é que o autor, como mencionado, ainda se encontra preso a determinadas fórmulas do Classicismo: em lugar do individualismo romântico, permanece o “universalismo épico [e] o destino do herói identifica-se com a pátria” (ABDALA JÚNIOR.; PASCHOALIN, 1982, p. 83). De todo modo, com o tema central sobre o exílio, a saudade da pátria e questionamentos sobre o destino do país, esse foi o poema considerado iniciador da estética romântica em Portugal. Garrett, no entanto, teve uma importância muito mais efetiva no processo de formação e afirmação do Romantismo português: com sua atuação pela modernização do teatro português, produziu uma das mais importantes obras da dramaturgia portuguesa do século XIX, a peça Frei Luís de Souza. Nesse texto, o autor utiliza fatos e figuras que para conhecer Não deixe de ler: você encontra uma versão integral deste texto de Garrett em: http://web.portoeditora. pt/bdigital/pdf/NTSITE99_ FreiLuisSou.pdf. 238 realmente existiram na história portuguesa, como o personagem que dá nome à obra, mas reinterpreta-os e reescreve-os de acordo com as intenções românticas. Assim, o enredo gira em torno do grande amor que uniu o fidalgo Manuel de Sousa Coutinho com Madalena de Vilhena, com quem teve uma filha, Maria de Noronha. O drama acontece quando D. Madalena de Vilhena, que se julgava viúva de D. João, um nobre que teria lutado ao lado de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, vê seu mundo desmoronar com o retorno Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 238 EAD 25/07/2012 14:09:22 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade de seu ex-marido, que, após sete anos de procura, enfim, não estava morto. A solução para esse enredo de notas trágicas se dá com a conversão de Manuel e de Madalena à vida religiosa, quando ele passa a adotar o nome de Frei Luis de Souza. Diante dessa situação em que os personagens “morrem” para a vida social, morre dramaticamente a filha do casal, que sempre teve a saúde frágil. Elevado à categoria de herói romântico, Frei Luis de Souza, antes Manuel, foi, sobretudo, um patriota, capaz de incendiar a própria casa para não a dispor aos espanhóis, durante o domínio filipino em Portugal. Além disso, foi capaz de viver o seu verdadeiro amor até as últimas consequências e essa é a marca romântica de maior força na peça, além das crises psicológicas de Madalena, sempre às voltas com a culpa de ter cedido as suas paixões ao invés de manter o luto absoluto pelo ex-marido desaparecido. Com relação a seus poemas, os que compõem a sua última obra, “Folhas Caídas”, são considerados os mais românticos do poeta, “constituídos a partir da observação e da Unidade 3 . Aula 8 vivência da realidade atual, e mais próximos de sua vida afetiva” (ABDALA JÚNIOR; PASCHOALIN, 1982, p. 85). Não devemos esquecer que, para o artista romântico, fundir vida e obra significava manter a coerência de princípios artísticos com os da vida prática e política – a poesia deveria ser a expressão mais viva de uma subjetividade vivida plenamente. Daí as marcas tão autorais nos poemas, pois se sabia, na altura, que os versos eram dedicados a sua amante, Rosa Montúfar, Viscondesa da Luz, o que provocou escândalo na sociedade de então. Vejamos o poema “Rosa e Lírio” desse livro: A rosa É formosa; Bem sei. Porque lhe chamam - flor D’amor, Não sei. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 239 Volume 4 239 25/07/2012 14:09:22 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A flor, Bem de amor É o lírio; Tem mel no aroma - dor Na cor O lírio. Se o cheiro É fagueiro Na rosa, Se é de beleza - mor Primor A rosa, No lírio O martírio Que é meu Pintado vejo: cor E ardor É o meu. A rosa É formosa, Bem sei ... E será de outros flor D’amor... Não sei. Se entendermos que a “Rosa” é diretamente uma referência a sua amada, percebemos que o “lírio” é a representação do poeta. Então, identifique no poema: a) Como se caracteriza a rosa? ______________________________________ b) Como é caracterizado o lírio? _______________________________________ 240 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 240 EAD 25/07/2012 14:09:22 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade Com base nessas respostas, reconhecendo o estilo livre do texto poético, que não está marcado por nenhum modelo, podemos dizer que se trata de uma expressão típica da lírica romântica. No entanto, a obra literária reconhecidamente mais importante do romantismo garrettiano é a narrativa Viagens na minha terra (1846). Trata-se de um texto literário que não se encaixa perfeitamente no que chamamos romance, pois se caracteriza por ser um misto de narrativa de viagens, de crônica jornalística, de autobiografia, de comentário político, de novela sentimental que “produz um relato com variedade de motivos: realistas, líricos, humorísticos, históricos, [...] mas todos exprimem o amor por tudo que é nacional, marcadamente português” (FERREIRA, 1997, p. 23). Nesse intuito de reconhecer o país, buscando afirmar sua grandeza nos próprios limites de sua territorialidade e não mais em função do grande império colonial, já decadente e imagem do passado, Garrett desenvolve a narrativa dividida Unidade 3 . Aula 8 em dois planos: no primeiro, encontramos o cronista que realmente efetivou uma viagem de Lisboa a Santarém por motivações políticas; no segundo, e alternando-se com a anterior, há uma história sentimental, ficcional, a de Carlos e Joaninha. Entretanto, ao final do livro, as figuras reais e as fictícias acabam se encontrando e todos ganham estatuto de personagem: Assim, por esse artifício da narração, realidade e ficção se fundem-se em Viagens na minha terra, de acordo com a ideia defendida pelos românticos: identificação entre Vida e Literatura (FERREIRA, 1997, p. 26). Com uma perspectiva popular, de acordo com a lógica das publicações em folhetim, essa narrativa de Garrett “denuncia a oligarquia portuguesa (os ‘barões’ e os ‘frades’)” UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 241 Volume 4 241 25/07/2012 14:09:22 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura (ABDALA JÚNIOR.; PASCHOALIN, 1982, p. 84), afirmando os valores do liberalismo e a necessidade de Portugal reconhecer suas potencialidades nacionais, o valor de seu povo e de suas expressões artístico-culturais. A seguir, reproduzimos um trecho do primeiro capítulo dessa obra literária de Almeida Garrett: Capítulo I De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens. Parte para Santarém. Chega ao terreiro do Paço, embarca no vapor de Vila Nova; e o que aí lhe sucede. A Dedução Cronológica e a Baixa de Lisboa. Lorde Byron e um bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos e os Bordas-d’Água: os da calça larga levam a melhor. Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo - entende-se. Mas com este clima, com esse ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal. Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até a minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crônica. Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção, 242 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 242 EAD 25/07/2012 14:09:22 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental das nossas vilas. Abalam-me as instâncias de um amigo, decidem-me as tonteiras de um jornal, que por mexeriquice quis encabeçar em desígnio político determinado a minha visita. Pois por isso mesmo vou: pronunciei-me. São 17 deste mês de julho, ano da graça de 1843, uma Segunda feira, dia sem nota e de boa estreia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço. Chego muito a horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que chega em estado. Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos. Percebemos, nesse excerto, o tom coloquial, com certa graça e ironia, que caracteriza a narrativa. Ao longo 8 de 49 capítulos, as impressões, críticas e os sentimentos do narrador-personagem-autor nos são contados para reafirmar Unidade 3 . Aula a sua preocupação com os destinos da pátria portuguesa e, para alguns críticos, “a prosa moderna portuguesa nasceu com este livro de Garrett” (FERREIRA, 1997, p. 31). leitura recomendada 3.2 Outros autores relevantes Não deixe de ler integralmente este importante romance Viagens na mi- Devemos sempre lembrar que as divisões da literatura em fases, gerações, períodos, são formas principalmente didáticas de estudarmos a matéria literária. Assim, quando lemos que o Romantismo, tanto no Brasil quanto em UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 243 Volume 4 nha terra: há vários sites com versões digitalizadas, como, entre outros, o seguinte: http://www.triplov.com/ contos/garrett/viagens/ index.htm. 243 25/07/2012 14:09:22 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Portugal, conheceu três fases ou gerações – a saber: a primeira, de traços nacionalistas; a segunda, ultrarromântica; a terceira, de transição para o Realismo – precisamos compreender que não se trata de classificação definitiva nem estanque, pois boa parte dos melhores escritores e artistas de diferentes expressões culturais escapa aos “rótulos” simplistas. Um exemplo muito nítido disso é a obra de Camilo Castelo Branco. para conhecer Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu a 16 de março de 1825, em Lisboa. Órfão de mãe aos dois anos e de pai aos nove, passou a viver em Vila Real com uma tia paterna. Aos 16 anos, casou-se com Joaquina Pereira e, em 1844, instalou-se no Porto com o intuito de cursar Medicina, projeto que não levou adiante. Em 1845, estreouse na poesia e no ano seguinte no teatro e também no jornalismo atividade, aliás, que nunca abandonaria. Viúvo desde 1847, fixou-se definitivamente no Porto a partir de 1848 (onde, em 1846, já estivera preso por ter raptado Patrícia Emília, um dos seus tumultuosos amores, de quem teria uma filha). De 1849 a 1851 consolidou a sua atividade jornalística, retomou o teatro, estreou-se no romance com Anátema (1851), conheceu a alta-roda portuense bem como os meios boêmios e foi protagonista de aventuras romanescas. Em 1853, abandonou o curso de Teologia no Seminário Episcopal, fundou vários jornais e em 1855 tornou-se o redator principal de O Porto e de Carta. Nessa altura, o seu nome começava a soar nos meios jornalísticos e literários do Porto e de Lisboa: já alimentara várias polêmicas e publicara alguns romances. Mas foi a partir de 1856 que atingiu a maturidade literária com o romance Onde Está a Felicidade?. Foi ainda neste ano que iniciou o relacionamento amoroso com Ana Plácido, casada desde 1850 com Manuel Pinheiro Alves. Por proposta de Alexandre Herculano, foi eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa em 1858 - ano em que nasceu Manuel Plácido, filho de Camilo e de Ana Plácido. Em 1860, Manuel Pinheiro Alves desencadeou o processo de adultério: em junho foi presa a mulher e a 1 de outubro Camilo entregou-se na cadeia da Relação do Porto. D. Pedro V visitou-o, em 1861, na cadeia, e a 16 de outubro desse ano os réus foram absolvidos. Era intensa a atividade literária de Camilo: entre 1862 e 1863, o escritor publicou onze novelas e romances atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. Em 1864, fixouse na quinta de S. Miguel de Seide (propriedade de Manuel Pinheiro Alves que, entretanto, falecera em 1863) e nasceu-lhe o terceiro filho, 244 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 244 EAD 25/07/2012 14:09:23 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade Nuno. Quatro anos depois, dirigiu a Gazeta Literária do Porto; em 1870 iniciou o processo do viscondado (o título ser-lhe-ia atribuído em 1885) e, em 1876, tomou consciência da loucura do segundo filho, Jorge. No ano seguinte, morreu Manuel Plácido. A partir de 1881, agravaram-se os padecimentos, incluindo a doença dos olhos que o afetava. Em 1889, por ocasião do seu aniversário, foi objeto de calorosa homenagem de escritores, artistas e estudantes, promovida por João de Deus. No ano seguinte, já cego, impossibilitado de escrever, suicidou-se com um tiro de revólver. A casa de Seide é hoje o museu do escritor e na sua vizinhança foram inauguradas, a 1º de junho de 2005, as novas instalações do Centro de Estudos Camilianos. Fonte: http://www.infopedia.pt/$camilo-castelo-branco. Acesso em dez./2011. A vida deste autor apaixonado pela escrita foi, como a sua biografia indica, muito tumultuada, aproximandose de um grande livro de aventuras dramáticas. Inquieto, irreverente, sua obra, contudo, costuma ser classificada como ultrarromântica, principalmente pelo sucesso que obteve com a novela Amor de Perdição. A história dos jovens Simão e Rita, que tiveram seu amor interditado pela inimizade das famílias (e qualquer semelhança com Romeu e Julieta Unidade 3 . Aula 8 não é mera coincidência), somada ao amor incondicional da pobre Mariana também por Simão, sem nunca lhe ter disputado com a moça rica, corre a um ritmo intenso e tem desenlaces passionais que marcaram a escrita de Camilo como pertencente à segunda geração romântica. Entretanto, muitos são os estudos que demonstram o quanto tal classificação da obra camiliana não se sustenta, pois se trata de um autor multifacetado: Nascido cerca de 20 anos depois dos membros da primeira geração [romântica], ele poderia ser, teoricamente, membro da segunda, mas, com certeza, só com muitas concessões, poder-se-ia, atualmente, chamá-lo de ultrarromântico. [...] Curio- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 245 Volume 4 245 25/07/2012 14:09:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura so destino: sem lugar definido, Camilo parece, qual fantasma, se multiplicar em várias personas. Incontornável e incômoda: assim parece ser a imensa e multiforme obra deste incansável polígrafo profissional (OLIVEIRA, 2007, p. 108). Assim, ao lado do novelista romântico, encontra-se o satírico escritor de críticas sociais em textos como Coração, cabeça e estômago (1862), A queda dum anjo (1866) e, com tom nitidamente realista, as narrativas Eusébio Macário (1879) e A corja (1880). Outro mencionado autor português da prosa romântica é Julio Dinis. Em seus romances já se percebem traços do Realismo, por isso ele costuma ser enquadrado na saiba mais No Dicionário de Camilo Castelo Branco, de Alexandre Cabral, p.65 a 67 [Lisboa: Editorial Caminho, Lisboa, 1988], contam-se 137 títulos que correspondem a 180 volumes, assim distribuídos: A - Antologia 1; B - Biografia 4; C - Crítica 4; D - Diversos 2; E - Epistolografia 1; H - História 3; M - Miscelânea 18; N - Narrativa 9; P - Polémica 7; R Romance 54; T - Teatro 12; V - Versos 22. Para ler suas principais obras, você pode acessar: http://www.domi- terceira geração, ou seja, na transição do Romantismo para a estética realista. Um exemplo desse processo é a narrativa romanesca As pupilas do Senhor Reitor. A história gira em torno da vida da abdicada Margarida e sua irmã Clara, que têm correspondentes amorosos nos irmãos Pedro e Daniel. Sem grandes tensões dramáticas, alicerçado nos valores do liberalismo, encarnado pelo Reitor do título, o romance ainda apresenta a idealização do amor e da vida no campo, mas já apresenta algumas novidades: a protagonista, embora não tenha necessidades financeiras, decide trabalhar: é professora. Além disso, atente para o trecho seguinte e os termos destacados: niopublico.gov.br/pesquisa/ Vendo o padre a inclinação da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes de livros, depois de os passar pela crítica dos seus rígidos princípios morais, e julgá-los salutares. Margarida lia-os com ardor, e, pouco a pouco, costumou-se a lê-los com reflexão também. Não sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a reler, mais que uma vez, os mesmos livros — o que é sempre uma vantagem para a PesquisaObra Form.do. 246 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 246 EAD 25/07/2012 14:09:23 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade instrução colhida neles. (Disponível em: virtualbooks.terra.com.br/ freebook/port/as_pupilas_senhor_reitor.htm). O que percebemos é uma personagem feminina capaz de refletir sobre as leituras realizadas (sim, isso era uma novidade naquele tempo!) e, além disso, ao longo do romance, podemos ver que Margarida questiona algumas injustiças sociais. Entretanto, no conjunto da obra, revela-se fundamentalmente ainda uma heroína romântica que busca, sobretudo, a felicidade do amor verdadeiro. Esse amor ela devota a Daniel, amor de infância. O moço, porém, ao fazer carreira de médico e ausentar-se da vila, é corrompido pelos valores da cidade grande (Porto), e aí encontramos outro mote diferenciado do estilo comumente romântico: Daniel é, a um só tempo, o “mocinho” e o “vilão” da história. Porém, os ares simples e a vida mais verdadeira do campo, conforme a idealização do autor, somados ao amor de Margarida, acabam por reconduzir o moço ao bom caminho e, como nos melhores textos românticos, “todos foram felizes para sempre”! Unidade 3 . Aula 8 4 O ROMANTISMO NO BRASIL saiba mais Júlio Dinis é o pseudónimo literário mais conhecido de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, entre os vários que o autor adotou ao longo da sua carreira literária. Nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto, e morreu a 12 de setembro de 1871, na mesma cidade. Licenciou-se em Medicina, mas dedicou-se, sobretudo à literatura. É autor de poesias, peças de teatro, textos de teorização literária, mas destaca-se como romancista, deixando em pouco mais de trinta e dois anos de vida uma produção original e inovadora, que contribuiu grandemente para a criação do romance moderno em Portugal. Órfão de mãe aos seis anos, estudou na Academia Politécnica a partir de 1853, onde se relacionou com o poeta portuense UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 247 Volume 4 247 25/07/2012 14:09:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Soares de Passos, e ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1855, ano em que dois irmãos seus morrem, vítimas da tuberculose. [...]. Em 1861, concluiu o curso de Medicina. Nos dois anos seguintes, publicou em folhetim no Jornal do Porto alguns dos contos que seriam postumamente compilados em Serões da Província, assinando ora Júlio Dinis, ora Diana de Aveleda. Em 1863, passou uma temporada em casa de familiares, em Ovar, para se tratar da tuberculose, declarada um ano antes. Aí, descobre os encantos da vida rural, que estará presente em grande parte das suas obras - Júlio Dinis foi principalmente um escritor de espaços, oferecendo-nos quadros nos quais revela uma preocupação pela veracidade nas descrições das aldeias, dos ambientes e caracteres, e na evolução da intriga. O seu primeiro romance, As Pupilas do Senhor Reitor, é publicado em folhetins no Jornal do Porto, em 1866, e em volume um ano depois. [Publica], em 1868, Uma Família Inglesa (retrato da vida citadina, dando especial relevo à pequena burguesia nascente) e A Morgadinha dos Canaviais, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas ao teatro, são representadas no Teatro da Trindade. Em 1869, parte para a Madeira, em busca de uma melhoria do seu estado de saúde, regressando, um ano depois, ao Porto, onde publica os Serões da Província. No mesmo ano, concluiu o seu quarto romance, Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acabará de rever. Em 1871, no mesmo ano em que as Pupilas do Senhor Reitor são representadas no Rio de Janeiro, assinalando já a celebridade do escritor além fronteiras, morre prematuramente, vítima da tuberculose. Fonte: www.infopedia.pt/$julio-dinis. Acesso em out. 2010. Os poetas brasileiros do século XVIII contribuíram decisivamente para o desenvolvimento de nossa vida literária, incorporando os padrões estéticos da época e os aproveitando leitura recomendada Em nossas aulas, daremos ênfase à literatura romântica em prosa – por isso, para você retomar estudos sobre a lírica no Romantismo brasileiro, indicamos seguintes leituras: as CANDIDO, A.; CASTELO, A. J. Do Romantismo ao Simbo- lismo. São Paulo: Difel, 1964; MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. São Cultrix, v. 5. 1989. 248 Paulo: para a criação de formas de expressão para o país. Também teve importância o modo como trataram a literatura, porque deixaram de encará-la como prática diletante, para transformála em instrumento de valorização da vida local, realizando aqui o que se fazia na Europa (CANDIDO, 1981). Apesar desses avanços, o incremento fundamental foi a combinação de fatores decorrentes de um conjunto de fenômenos culturais, sociais, políticos e econômicos. Durante sua permanência no Brasil, D. João proporcionou iniciativas culturais, criando cursos superiores, a Academia Real de Belas Artes, a Biblioteca Real, o Teatro Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 248 EAD 25/07/2012 14:09:23 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade Real de São João e a Imprensa Régia. Em 1816, promoveu o desembarque de um grupo de artistas que ficou conhecido como Missão Artística Francesa, composto por escultores, arquitetos e pintores, entre eles Jean Baptiste Debret (17681848), celebrizado pela criação de quadros que retratam para conhecer Sobre a Missão Artística Francesa, consultar: www.educacao.uol.com.br/ cultura-brasileira/. costumes brasileiros do século XIX. A passagem de D. João pelo Rio de Janeiro também deixou marcas na forma de convivência entre as pessoas, promovendo alterações na vida familiar. As mulheres que, durante o período colonial viviam reclusas em casa, começaram a sair e a ter atividades públicas: iam à missa, à modista, ao teatro, às joalherias e às lojas. Apareceram produtos destinados a elas: joias, adornos para a casa, utensílios domésticos e acessórios de uso pessoal como chapéu, luva, leque e de artigos como perfume e sabonete. A circulação de revistas de moda teve grande importância para o universo feminino, porque estas publicações costumavam estampar textos literários e estimularam o desenvolvimento do hábito de leitura. Unidade 3 . Aula 8 Apesar da submissão ao pai e ao marido, a maior participação feminina no cotidiano foi uma exigência da sociedade que se formava naquele momento no Rio de Janeiro. Coube à mulher um papel fundamental neste processo, porque as filhas solteiras se tornaram moeda de troca nas relações políticas e econômicas, ou seja, na aliança entre as elites rural e urbana a fim de interferir nas decisões. Por causa disso, os salões das amplas casas recém-erguidas pelos endinheirados assumiram grande relevância, pois abrigavam festas e recepções que serviam para demonstrar o prestígio social dos donos e, consequentemente, sua capacidade de influenciar na gestão do país. Tais ocasiões, tanto quanto a missa e o teatro, propiciavam o contato das moças com os estudantes, portanto faziam parte do mecanismo que a classe abastada dispunha para se manter no controle do poder. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 249 Volume 4 249 25/07/2012 14:09:23 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A instalação de faculdades valorizou o título de doutor, tornando-o igual ao de proprietário de terras ou a uma grande fortuna, determinando que as famílias se empenhassem na habilitação das filhas para o casamento com os diplomados. Em função disso, passaram a submeter as meninas a uma educação destinada a provê-las de atributos indispensáveis ao ambiente citadino, ou seja, da vida mundana dos salões. Entre os prérequisitos necessários, a música, por meio do canto e do piano e, principalmente, a alfabetização para que as moças pudessem ler revistas de moda e de orientações para os cuidados da casa. Esta realidade social aparece como cenário em praticamente todas as narrativas de temática urbana de autores brasileiros escritas entre as décadas de 1840 e 1860. Foi também o ambiente preferido de Machado de Assis, ainda que o grosso de sua prosa ficcional tenha aparecido a partir de 1870. Os fatores mencionados, decorrentes da concentração das atividades sociais e econômicas na cidade, favoreceram o aparecimento de outra figura humana importante na paisagem do Rio de Janeiro do século XIX: os estudantes, segmento composto por rapazes oriundos de várias regiões do país. O prestígio que desfrutavam permitia a realização de ambições e mesmo quem não pertencesse à classe abastada podia almejar a ascensão social e econômica pelo diploma, porque podia transformar o advogado pobre recém-formado em genro de um grande proprietário de terras cujos interesses passaria a representar. A frequência às redações dos jornais era prática preferida destes rapazes como estratégia para ficarem conhecidos e se exercitar para a carreira política, publicando artigos de opinião e textos literários. Presenças indispensáveis nos teatros e nas recepções, eles também tinham em comum com as moças o hábito da leitura. Essas mudanças ocorriam ao mesmo tempo em que no campo político e ideológico transcorria a busca por elementos que pudessem sintetizar o país. A Independência despertou o desejo de manifestar novos sentimentos, o orgulho patriótico 250 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 250 EAD 25/07/2012 14:09:24 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade em substituição ao nativismo das manifestações literárias do século XVIII. Fez nascer a disposição para a criação de uma literatura que não estivesse atrelada ao passado e à literatura portuguesa, daí a valorização de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, por ambos transformarem o índio em matéria literária (que tal revisar a aula 6?). Isso se explica pela oposição do indígena ao lusitano, sendo o homem nativo tomado como expressão da nossa origem, enquanto o outro foi visto como explorador (CANDIDO, 1981). Na prática, a Independência estimulou ações destinadas à construção das instituições nacionais, sendo o principal fator para a preocupação em dotar o país de uma literatura. Nesse sentido, o trabalho intelectual passou a constituir prova do valor do brasileiro, da capacidade intelectual do país e, ao mesmo tempo, assumiu viés patriótico. Os escritores se sentiram no compromisso de participar desse esforço e a maneira encontrada foi o aproveitamento literário de tudo aquilo que pudesse demonstrar seu patriotismo. O homem de letras assumiu, assim, a tarefa tripla de construção: da nossa Unidade 3 . Aula 8 vida intelectual, da nossa literatura e de nossos símbolos (CANDIDO, 1981). As obras que escreviam, por sua vez, se destinavam a cumprir dupla função: aproximar literariamente o Brasil da Europa e servir como meio de expressão de uma ideia de país, por isso a artificialidade de boa parte das produções da época. Os indivíduos letrados tinham consciência que precisavam realizar no plano literário o correspondente àquilo que havia ocorrido no campo político e administrativo, ou seja, pensavam em criar uma literatura autônoma em relação a Portugal. Acontece que a separação política e administrativa foi um acordo para a acomodação de interesses, por isso ignorou conflitos e problemas graves, sendo o principal a escravidão (SODRÉ, 1988). Uma sociedade forjada de tal maneira precisava criar mecanismos de compensação e encontrou na literatura um deles, em nome do ardor patriótico. Os UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 251 Volume 4 251 25/07/2012 14:09:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura escritores eram indivíduos pertencentes ou identificados com a classe dominante, a tutora do país que se formava, por isso empregavam os artificialismos e a idealização como maquiagem para a realidade. Assim, criou-se uma contradição porque a matéria viva, ou seja, os problemas e a vida prática ficaram de fora da literatura, enquanto foi grande o esforço para enaltecer a natureza e as peculiaridades nacionais. Devemos valorizar o fervor patriótico devido ao impulso que deu para o desenvolvimento da literatura nacional e em língua portuguesa, introduzindo temas, imagens, metáforas, elementos naturais, peculiaridades regionais e figuras humanas características, como o gaúcho e o sertanejo. A parte negativa ficou por conta da ausência de pulsação nas personagens, pelos exageros e rompantes na poesia e pela pouca atenção a cuidados estéticos, no que diz respeito ao acabamento e à melhor estruturação de boa parte das obras. Nisso consistem os maiores defeitos e as principais virtudes dos escritores da época, porém cada um tratou de trabalhar a seu modo para a fundação da nossa literatura, tarefa que realizaram exitosamente no curto período de pouco mais de três décadas, a partir de 1836. O saldo é altamente favorável, porque, excluídos os acima da média, normalmente poucos em qualquer lugar, nossos escritores resistem bem quando comparados aos de outras literaturas da época. 4.1 José de Alencar e a atualidade do passado A concretização do projeto de construção de símbolos nacionais alimentado durante as décadas posteriores à Independência teve em José de Alencar (1829-1877) um dos principais participantes. A avaliação de sua trajetória demonstra que suas obras se encaixam num amplo e sólido projeto literário que passou por constantes transformações, resultando em um legado representado por experimentos 252 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 252 EAD 25/07/2012 14:09:24 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade em vários gêneros e, fundamentalmente, por uma prosa de assuntos diversos. O escritor cearense encarnou a disposição de seus contemporâneos em contribuir decisivamente para o desenvolvimento das letras no país: Sobressai nesse instante a figura de José de Alencar, o patriarca da literatura brasileira símbolo da revolução literária então realizada, a cuja obra está ligada a fixação desse processo revolucionário que enquadrou a literatura brasileira nos seus moldes definitivos (COUTINHO, 1986, p. 153). No campo da literatura, realizou sozinho grande parte daquilo que almejavam os escritores brasileiros da época, ao produzir obra vasta e diversificada em três gêneros: crítica, teatro e romance. Se a dedicação às várias modalidades foi prática comum, afinal naquele tempo tudo estava por fazer e todos queriam contribuir, o cearense se destaca em relação aos demais pelo equilíbrio, principalmente dos romances, razão pela qual tem o nome associado aos melhores momentos da Unidade 3 . Aula 8 nossa prosa ficcional do período e conquistou grande prestígio junto aos leitores. A consagração pelo público veio com O guarani, seu segundo livro, publicado em 1857, depois de uma polêmica por meio dos jornais com Gonçalves de Magalhães. A origem do debate, que rendeu vários artigos de ambos os lados, foi a crítica desfavorável de Alencar ao poema A confederação dos tamoios, épico com a qual o introdutor do romantismo no Brasil pretendia dar conta da temática indígena: A primeira surtida em campo indianista ocorreu em 1856, quando, em torno d’A confederação dos tamoios de Gonçalves de Magalhães, se haviam aliado de um e de outro lado da barricada, como defensores (Porto Alegre [Araújo Porto Alegre] e o próprio imperador D. Pedro II) e como acusadores, os mais vivos engenhos da época, entre os quais o próprio Alencar (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 200). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 253 Volume 4 253 25/07/2012 14:09:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Tudo leva a crer que O guarani surgiu como demonstração a Magalhães e seus partidários sobre o modo pelo qual tratar literariamente o tema do índio, ou seja, o aparecimento do romance evidencia a sintonia de Alencar com sua época. Ele percebeu o essencial: a falta de dimensões épicas ao assunto, a superação da epopeia como forma de expressão artística e que o gênero romanesco, então uma novidade, se consolidaria na literatura mundial. A publicação de O guarani também revela a inquietação de Alencar e sua busca constante por novos padrões de expressão literária. Em Cinco minutos (1856), seu livro de estreia, aborda os costumes urbanos, o que continuou fazendo até o final da vida. Ao mesmo tempo, porém, intercalou a temática indígena, com a regionalista e com a histórica. No que se refere à escolha de assuntos, o fato de escrever inspirado na vida do Rio de Janeiro constitui prova de preocupação com inovações, porque aproveita esta matéria para mostrar a multifacetação da sociedade brasileira que, já mencionamos, começava a ocorrer naquele momento. Antonio Candido afirma que dos vinte e um romances de Alencar, “nenhum é péssimo, todos merecem leitura e, na maioria, permanecem vivos” (1981, p. 222). Em outras palavras, se deixarmos de lado a esquematização redutora e superficial, encontraremos em sua obra muito saiba mais O guarani inspirou várias obras homônimas: a ópera composta por Carlos Gomes (1870); sete filmes (1911, 1916, 1920, 1926, 1950 1979, 1996) e uma minissérie produzida pela extinta TV Manchete (1991). 254 mais do que as características gerais da escola romântica. Seu enraizamento com nossa literatura é profundo e se ramifica em todas as direções. Num sentido, partiu do passado e projetou o futuro, porque tomou por referência os poetas do século XVIII, os precursores no aproveitamento literário da vida e dos costumes indígenas, e rejuvenesceu a matéria, como demonstra com O guarani. O romance surgiu como Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 254 EAD 25/07/2012 14:09:24 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade atualização do tema e adequação de um gênero literário a ele, razão pela qual se inscreve como inaugurador de uma sucessão de obras, sendo o próprio Alencar um dos continuadores, com Iracema (1865) e Ubirajara (1874). A tradição atravessou os séculos e nesse percurso gerou romances como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Kuarup (1967), de Antônio Callado, entre outros tantos. A respeito da importância das obras de Alencar para o imaginário dos escritores brasileiros vale destacar que: Para libertar-se do mito de Peri, desse bom selvagem sem mácula nem medo, os modernistas de 1922 construirão em vão o seu Macunaíma; o mau selvagem, zombeteiro e desleal, pávido e degradado. Peri resistirá como resistirá Iracema (STEGAGNO-PICHIO, 1997, p. 203). No outro, dedicou grande atenção ao que se passava ao seu redor, não apenas pelo o enfrentamento a Gonçalves de Magalhães, um dos mais respeitados homens de letras da Unidade 3 . Aula 8 época. Antes do aparecimento de O guarani, o habitante nativo do Brasil já havia inspirado o poeta Gonçalves Dias, outro grande escritor do romantismo e criador de figuras indígenas inesquecíveis, como Marabá, e de obras como Leito de folhas verdes, cujo lirismo engrandece a poesia brasileira. Este é apenas um dos vínculos de Alencar com a vida literária de seu tempo, porque ao não se limitar a escrever sobre um só assunto criou relações mais amplas com a literatura de seus contemporâneos. José de Alencar também dialoga literariamente com Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) e Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) que, em romances publicados antes de Cinco minutos, escreveram sobre a vida urbana. Assim como se aproxima da geração anterior, de quem é continuador, o cearense serviu de modelo para os mais novos, entre eles, ninguém menos do que Machado de Assis (1839-1908), um dos principais nomes da literatura em nossa língua. Alencar também se juntou aos que fortaleceram o romance brasileiro UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 255 Volume 4 255 25/07/2012 14:09:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura pela ambientação de narrativas na zona rural e nas regiões mais afastadas do Rio de Janeiro, como Visconde de Taunay (1843-1899) e Bernardo Guimarães (1825-1884). Ao lado deles, contribuiu para a incorporação de ambientes, tipos humanos e peculiaridades regionais ao imaginário criativo, bem como acrescentando expressões e vocábulos característicos à linguagem literária, dotando a literatura brasileira e de língua portuguesa de mais recursos expressivos. Com relação à introdução de motivos regionais, o interesse dos escritores ultrapassava os limites da literatura e corresponde literariamente aos fenômenos sociológicos e às transformações econômicas e políticas que ocorriam no Brasil. A partir da Independência, o país começou um longo processo de movimentação em direção a regiões antes menos conhecidas, por vários motivos: [...] as oposições Norte, Sul, província e metrópole, costa e interior; as especializações regionais de cultura e civilização com paisagem cultural e artística própria, com até um tipo humano, psicológica e socialmente diferenciado, formas de cozinha, de arte e de língua peculiares; (COUTINHO & COUTINHO, 1986, p. 236). O regionalismo se tornou uma das vertentes mais fecundas do romance brasileiro e permanece como fonte constante de revigoramento da nossa prosa. Desde o tempo em que José de Alencar se apresentou como um dos precursores no aproveitamento de peculiaridades de regiões brasileiras, o assunto segue fermentando a imaginação dos escritores. Como mostra Karl Erik Schollhammer “nunca foi abandonado por completo o cenário regional, que subsiste até hoje na literatura brasileira desde o século XIX” (2009, p. 77-78). Assim, o cearense aparece entre os escritores que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da nossa literatura. 256 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 256 EAD 25/07/2012 14:09:24 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade ATIVIDADES Atividades I – A partir da leitura do romance Viagens na minha terra, analise o capítulo abaixo e responda as questões seguintes: CAPÍTULO X Vale de Santarém. — Namora-se o A. de uma janela que vê por entre umas árvores. — Conjeturas várias a respeito da dita janela. — Semelhança do poeta com a mulher namorada, e inquestionável inferioridade do homem que não é poeta. — Os rouxinóis. Reminiscência e Bernadim Ribeiro e das suas Saudades. — De como o A. tinha quase completo os eu romance, menos um vestido branco e uns olhos pretos. — Saem verdes os olhos com grande admiração e pasmo seu. — Verificam-se as conjeturas sobre a misteriosa janela. — Da menina dos rouxinóis. — Censura das damas muito para temer, a crítica dos elegantes muito para rir. — Começa o primeiro episódio dessa odisséia. Unidade 3 . Aula 8 O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração. À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os ramos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 257 Volume 4 257 25/07/2012 14:09:24 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão. Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada — com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece-me mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê... Interessou-me aquela janela. Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali? Parei e pusme a namorar a janela. Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás. Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance. Como há de ser belo ver o pôr o sol daquela janela!... E ouvir cantar os rouxinóis!... E ver raiar uma alvorada de maio!... Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela? ... quem aprecie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em torno? Se for homem é poeta; se é mulher está namorada. São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; veem, sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não sente não pensa nem fala. Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entre sempre o seu tanto de vil prosa humana: é liga sem que não se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se. Idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica. Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir. Era ao pé da dita janela! Respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre 258 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 258 EAD 25/07/2012 14:09:25 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade ambos um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais. Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água de cansado. O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim de tarde... o que faltava para completar o romance? Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão — vestido de branco — oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! É amiudar muito demais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poética. — Os olhos, os olhos... - disse eu, pensando já alto, e todo no meu êxtase - os olhos... pretos. — Pois eram verdes! — Verdes os olhos... dela, do vulto na janela? — Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, Unidade 3 . Aula 8 brilhantes, sem preço. — Quê! Pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher, bonita, bonita, e?... Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo, que deve estar no céu. — Bem dizia eu que aquela janela... — É a janela dos rouxinóis... — Que lá estão a cantar. — Estão, esses lá estão ainda como há dez anos — os mesmos ou outros, mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou. — A menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela? — É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os franceses, e conta-se em duas palavras. — Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com os olhos verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 259 Volume 4 259 25/07/2012 14:09:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura — Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado. Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem. Apeamo-nos,[...] sentamo-nos, e eis aqui a história da menina dos rouxinóis, como ela se contou. É o primeiro episódio da minha odisseia: estou com medo de entrar nele, porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês que há outro não sei quê... Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu: mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta. Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos; o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão. Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu conto para o seguinte. 1) Aponte os elementos propriamente românticos que o excerto apresenta, considerando a representação da natureza e as digressões do autor-narrador. 2) Como podemos entender a seguinte passagem: “São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; veem, sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não sente não pensa nem fala”? Trata-se de uma concepção tipicamente romântica? Por quê? 3) Aponte passagens em que se pode perceber a ironia do autor em relação ao “bom gosto” dos portugueses e explique os seus principais sentidos. 4) Pesquise em sites da internet e responda: por que o autor faz referência à obra de Bernardim Ribeiro? Elabore um parágrafo, indicando quem foi esse autor e qual sua importância para a literatura romântica portuguesa. 260 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 260 EAD 25/07/2012 14:09:25 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade II - O texto abaixo é o desfecho do romance O guarani, de José de Alencar. “Tudo era água e céu. A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea. A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas. A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos. A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; Unidade 3 . Aula 8 as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida. Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios. [...] Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento. Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 261 Volume 4 261 25/07/2012 14:09:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura se no seu coração, que se abria para recebê-la. A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecília. A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente: - Meu Deus!... Peri!... Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heroica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura. Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes. Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado. Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade. Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível: Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente. A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas. Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento 262 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 262 EAD 25/07/2012 14:09:25 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade de ventura suprema: - Tu viverás!... Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna. - Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!... O anjo espanejava-se para remontar ao berço. - Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...! Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte. O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o voo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte”. 8 (ALENCAR, José de. O guarani. 18. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1974, p. 316-318). Unidade 3 . Aula 1. Descreva como o fragmento final de O guarani permite que se perceba a valorização das origens do povo brasileiro. 2. Desenvolva breve comentário, argumentando como o episódio evidencia representação de Peri como personagem ajustado aos valores ideológicos do século XIX e à ideia de construção de símbolos nacionais. 3. Leia o fragmento a seguir do livro de Gênesis, extraído da Bíblia Sagrada: “Durante quarenta dias o dilúvio se abateu sobre a terra. As águas subiram e ergueram a arca, que se UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 263 Volume 4 263 25/07/2012 14:09:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura elevou acima da terra. As águas cresceram e aumentaram muito sobre a terra, de modo que a arca começou a flutuar na superfície das águas. As águas cresceram tanto sobre a terra que cobriram as montanhas mais altas que há debaixo do céu. As águas subiram uns oito metros acima das montanhas. Pereceram todas as criaturas que se moviam na terra, aves, animais domésticos, animais selvagens e todos os animais que fervilham pelo chão, bem como todos os seres humanos. [...] Pouco a pouco as águas foram se retirando da terra. Ao término de cento e cinquenta dias começaram a diminuir. No dia dezessete do sétimo mês, a arca pousou sobre os montes de Ararat. As águas continuaram diminuindo até o décimo mês. E no primeiro dia desse mês apareceram os cumes das montanhas. [...] Saiu, pois, Noé da arca com os filhos, a mulher e as mulheres dos filhos. Saíram também todos os animais selvagens e domésticos, todas as aves e todos os animais que se movem pelo chão, todos segundo suas espécies. [...] Enquanto a terra durar, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais hão de cessar”. Bíblia Sagrada. Disponível em: www.bibliacatolica. com.br/02. Acesso em agosto/2011 a) Compare com o trecho de O guarani e descreva as semelhanças com relação à representação da inundação. b) Estabeleça paralelos entre o desfecho do mito bíblico e do romance de José de Alencar quanto ao destino de, respectivamente, Noé e sua família, Ceci e Peri. 4) Estabeleça associações entre a passagem bíblica mencionada, o desfecho de O guarani e suas relações 264 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 264 EAD 25/07/2012 14:09:25 O Romantismo e a afirmação da nacionalidade com a ideia de formação do Brasil em vigor logo após a Independência. livros 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, de Laurentino Gomes. 1822: Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado, de Laurentino Gomes. A marquesa de Santos, de Paulo Setúbal. Imperatriz no fim do mundo, de Ivanir Calado. Audiovisual As pupilas do Senhor Reitor. Novela com trechos acessíveis no youtube. Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati O guarani (1996), de Norma Benguel Unidade 3 . Aula 8 Mauá, o imperador e o rei (1999), de Sérgio Resende UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 265 Volume 4 265 25/07/2012 14:09:25 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura RESUMINDO re esu um resumindo Estudamos, nesta aula, os aspectos mais relevantes do contexto histórico-cultural que possibilitou a emergência da estética romântica no Brasil e em Portugal. Assim, compreendemos as principais implicações da ascensão e afirmação da burguesia, com suas semelhanças e diferenças para as realidades lusitana e brasileira, na primeira metade do século XIX. Vimos que, nesses contextos, destacou-se a prosa narrativa de Garrett e Alencar, em Portugal e no Brasil, respectivamente, considerados os nomes mais importantes para a intenção da estética romântica de confirmação de sentidos de nacionalidade, com o privilégio da perspectiva subjetiva. REFERÊNCIAS Referências R Re Refe efe ferê r ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1982. ALENCAR, José de. Obras completas. Vol. I. Romance Urbano. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959. ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: Jackson, 1955. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. vol 2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 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UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 267 Volume 4 267 25/07/2012 14:09:26 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 268 25/07/2012 14:09:26 3ª unidade AULA 9 REALISMO, NATURALISMO, PROGRAMAS E RUPTURAS OBJETIVOS Reconhecer os principais aspectos histórico-culturais que contextualizaram as expressões artísticas do Realismo e do Naturalismo em Portugal e no Brasil, bem como os principais nomes e obras literárias que fundamentaram novos programas estéticos e anunciaram rupturas artísticas no campo literário. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 269 25/07/2012 14:09:26 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas 1 INTRODUÇÃO A partir de 1830, explodiram conflitos sociais na Europa que, tendo a França como ponto de irradiação, se espalharam pelo continente e provocaram mudanças profundas com desdobramentos ao longo das décadas seguintes. O caráter antimonarquista, liberal e nacionalista estimulou as manifestações populares em vários países cujo momento mais crítico aconteceu por volta de 1850. A instituição do voto universal fez a burguesia se sentir ameaçada pelo proletariado, colocando os dois segmentos em campos separados e evidenciando a divergência entre seus respectivos interesses (SARAIVA, 1984). Diante disso, o capitalismo entrou em outra fase, inaugurando um período de expansão comercial e de colonização da África, onde procurava as matérias-primas necessárias à produção de bens. A expansão industrial expôs os problemas do capitalismo e dos ideais da Revolução Francesa, quando os segmentos menos favorecidos da população perceberam 9 que não podiam adquirir os bens produzidos nem usufruir dos avanços tecnológicos, assim como estavam excluídos das Unidade 3 . Aula decisões políticas. A consciência de que a igualdade não era para todos deu origem ao surgimento de manifestações de caráter reivindicatório que, juntamente com a valorização da ciência e a crença no pensamento racional, estimularam a busca por inovações nas formas de representação artística. Na literatura, o marco do advento de uma nova era foi o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1857. Essa obra literária é apontada como uma das principais referências da rebeldia contra a idealização do Romantismo e por trazer para a UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 271 Volume 4 271 25/07/2012 14:09:26 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ficção a vida dos indivíduos obscuros, portanto de pessoas mais próximas da realidade, compostas de opostos: o bem e o mal, a rudeza e o requinte, a vileza e a dignidade (COUTINHO, 1986). Nesta aula, estudaremos os principais aspectos do Realismo e do Naturalismo em Portugal e no Brasil. 2 O REALISMO/NATURALISMO EM PORTUGAL Quando estudamos a estética realista, devemos, inicialmente, considerar a imprecisão generalizante do termo “realismo”: Se o uso do termo realismo tem uma longa história no campo artístico, está também ligado a questões filosóficas de fundo, voltadas para os próprios conceitos de ‘real’ e de ‘realidade’, que se transformaram ao longo dos séculos, [mas] o realismo surgiu como uma palavra totalmente nova, apenas no século XIX; em francês, por volta de 1830, e em inglês, no vocabulário crítico, em 1856, sendo que, a partir de então, desenvolveu-se como termo que descreve um método e uma postura em arte e literatura: primeiro uma excepcional acuidade na representação e depois um compromisso de descrever eventos reais, mostrando-os como existem de fato, sendo que aqui, em muitos casos, inclui-se uma intenção política (WILLIAMS, 1983, apud PELLEGRINI, 2007, p. 139). Em geral, costuma-se definir que o Realismo teve origem francesa, contrapondo-se às diretrizes do Romantismo e convergindo em parte com o Naturalismo. Essa origem francesa data de 1856/57, quando Duranty e Champfleury publicaram, respectivamente, a revista chamada Réalisme e um conjunto de ensaios intitulado Le Réalisme. Em termos literários, 1857 é também o ano de publicação de Madame 272 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 272 EAD 25/07/2012 14:09:26 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas Bovary, de Flaubert. No entanto o termo “realismo”, enquanto proposta estética voltada a retratar o mundo da forma mais direta e objetiva possível, foi cunhado pelo pintor francês Gustave Courbet (1819-1877), quando ele abriu uma exposição individual em Paris, em 1855, intitulada de Lê Réalisme. Os britadores, de G. Courbet. Quais eram então, de modo geral, as dominantes ideológicas do Realismo? Eram as que se opunham ao idealismo romântico, propondo uma visão materialista das coisas e fenômenos, priorizando a realidade material, empiricamente verificável que deve ser observada e analisada de maneira neutra, desapaixonada e tanto quanto possível objetiva. Só assim seria possível o reconhecimento minucioso dos costumes, para que se efetivasse uma crítica social. Assim, o Realismo, no plano social, conecta-se com correntes de índole reformista e mesmo socialista, nos moldes do pensamento de Proudhon, e de uma leitura de tradução francesa do pensamento de Hegel. 9 O quadro geral é o advento e afirmação do capitalismo industrial com destaque para grandes mudanças no pensamento científico da época, sobretudo com os estudos de Darwin e com o surto de campos de conhecimento como a geologia, a embriologia, a sociologia, as descobertas da bioquímica – e a ideia de unidade material de todos os fenômenos. Em Portugal, acentuava-se a dependência econômica do Unidade 3 . Aula país em relação à Inglaterra, mas registrava-se algum crescido em termos comerciais, fazendo surgir uma burguesia urbana composta por uma classe média que possuía maior acesso à vida cultural nas cidades. Cresce a imprensa, a circulação de livros e revistas. No campo, entretanto, permanecia o índice de analfabetismo em torno de 80% até 1900. O regime monárquico começava a ser questionado e ganhavam espaço as ideias republicanas. Data de 1875 a fundação do Partido Socialista Francês e de 1876 o Partido UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 273 Volume 4 273 25/07/2012 14:09:26 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura para conhecer PROUDHON, Pierre-Joseph - Nasceu em Besançon em 15 de janeiro de 1809. Estudou como bolsista no Colégio de sua cidade natal, interrompeu seus estudos aos 19 anos, bacharelando-se em 1838. Foi aprendiz de impressor e tipógrafo, profissão que lhe permitiu o acesso às mais diversas leituras. Nos meados de 1840 manteve contato com vários socialistas, inclusive com Marx, com quem se encontrou em Paris e que o iniciou nos estudos da filosofia hegeliana, mas logo se distanciaram por conta das divergências ideológicas surgidas entre os dois. Posicionando-se contra todas as correntes do pensamento socialista da época [...], Proudhon defendeu a liberdade individual dos homens e a justiça como os dois pilares da organização social. [...] Opôs-se à propriedade privada na medida em que expressava a injustiça e a limitação à liberdade, pois esses dois princípios deveriam assegurar a propriedade a cada homem individualmente. Considerado introdutor da palavra “anarquismo” no dicionário político e criador do mutualismo, Proudhon escreveu várias obras, entre elas: [O que é a propriedade?] (1840), e [Sistema das contradições econômicas ou a filosofia da miséria], de “Système des contradictions economiques ou philosophie de la misère” (1846) [...]. Pierre-Joseph Proudhon faleceu em Paris em 16 de janeiro de 1865. Fonte: http://www.moreira.pro.br/pierreproudhon.htm. Acesso em dez./2011. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (27/8/1770, Stuttgart, Alemanha - 14/11/1831, Berlim, Alemanha) - Foi um dos mais influentes filósofos alemães do século XIX. Escreveu sobre psicologia, direito, história, arte e religião. Filho de um funcionário público, Hegel foi para Tübingen (seminário da igreja protestante) em 1788, onde estudou teologia e filosofia [...]. Após a sua graduação, tornou-se autodidata até 1801, quando começou a lecionar na Universidade de Jena. Forçado a partir devido às guerras napoleônicas, tornou-se diretor de ginásio de Nuremberg. Casou-se com Marie von Tucher, com quem teve dois filhos. [...] Ele lecionou em Heidelberg durante algum tempo e foi para Universidade de Berlim em 1818, tornando-se reitor em 1830. Morreu víima de cólera no dia 14 de novembro de 1831. Hegel concebeu um modelo de análise da realidade que influenciou Marx, Rousseau, Goethe e até Wagner. Hegel debruçou-se sobre domínios diversos como lógica, direito, religião, arte, moral, ciência e história da filosofia, e em todos eles viu a manifestação do Espírito Absoluto que se materializava através da História da Humanidade. Na filosofia hegeliana, a dialética permitiu compreender e elucidar a racionalidade do real. Suas principais obras foram: “Fenomenologia do Espírito” (1806), “Ciência da Lógica” (18121816), “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” (1817-1830), “Filosofia do Direito” (1817-1830). Fonte: biografias.netsaber.com.br/ver_biografia_c_487.htmlEm cache – Similares. 274 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 274 EAD 25/07/2012 14:09:26 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas Republicano. Diante dessa realidade, alguns escritores sentiram a necessidade de uma arte engajada com seu tempo, capaz de reeducar os leitores, ou seja, que tivesse uma atitude pedagógica. Para tanto, era necessário escolher, recortar temas da realidade que deveria ser “retratada”. É o que aparece nestas palavras de Guy de Maupassant: O realista [...] não procurará mostrar a fotografia banal da vida, mas dar-nos dela a visão mais completa, mais surpreendente, mais evidente do que a própria realidade. Seria impossível contar tudo, porque então seria necessário pelo menos um volume por dia, para enumerar as multidões de incidentes insignificantes que preenchem a nossa existência. Impõem-se, pois, uma escolha – o que constitui um primeiro prejuízo à teoria de toda a verdade. A vida, além disso, é composta pelas coisas mais diferentes, mais imprevistas, mais contrárias, mais díspares; a vida é brutal, sem sequência, sem encadeamento, plena de catástrofes inexplicáveis, ilógicas e contraditórias [...] (MAUPASSANT apud REIS, 1997, p. 438). Aí aparece explícita a noção de seletividade – que aponta para a dificuldade que o escritor realista encontra Unidade 3 . Aula 9 quando pretende olhar e descrever a realidade de forma objetiva. Por isso a necessidade de selecionar TEMAS dominantes no universo que os abarca: o universo da vida familiar nos seus episódios domésticos e cenas íntimas, a vida social, a vida cultural e suas modas. De um modo geral, no Realismo português encontramos, como grandes temas, questões ligadas à educação, ao adultério, às falsas aparências da vida social, a degradação do sentimento amoroso, entre outros. Tais temas implicam, para seu desenvolvimento, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 275 Volume 4 275 25/07/2012 14:09:27 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Na Enciclopédia Simpozio, você encontra importantes dados sobre o Positivismo. Na introdução encontra-se a seguinte definição geral: “o positivismo foi um rótulo novo, para uma nova fase de desenvolvimento do empirismo. Nasceu o nome em 1830, na Escola do socialista utópico Saint-Simon (1760-1825), e ganhou fortuna com Augusto Comte, o pensador protótipo do movimento, sobretudo na França. Derivado do latim positum (= posto, o que está posto diante, situado), significa descritivamente o que se observa, ou experimen- ta. O positivismo [...] reduziu o conhecimento ao experimentável, o que na prática significa uma consideração das relações extrínsecas entre as coisas”. Disponível em http:// cfh.ufsc.br/~simpozio/ novo/2216y840.htm. certas estratégias literárias que têm a ver com o tipo de gêneros mais aptos a dar conta desses universos que querem retratar: a predileção recai, assim, sobre o romance e o conto, mas principalmente o romance, pois o gênero romanesco propicia a ativação de signos e movimentos narrativos ajustados aos princípios doutrinários do Realismo. Também se define como estratégia literária fundamental o processo de descrição para a representação do espaço social e dos personagens. Os personagens são fundamentalmente constituídos em tipos sociais, síntese de características que articulam o coletivo e individual, como certos profissionais, ou figuras relacionadas ao contexto econômico e cultural. Assim são representados o avarento, o falso intelectual, o romântico decadente, os padres sem vocação, as moças casadoiras e fúteis, as falsas beatas, etc. Todas essas características gerais são observadas pelo Naturalismo, mas, nesse caso, são levados mais longe os princípios do cientificismo que prevaleceram de acordo com o Positivismo. Por isso, o romance será também o único gênero propício ao desenvolvimento das prerrogativas estéticoprogramáticas do Naturalismo: é o que diz Zola, no seu texto “O romance experimental”: O romance [...] invadiu e desapossou os outros gêneros. Tal como a ciência, ele é dono do mundo. Ele aborda todos os assuntos, escreve a História, trata da fisiologia e de psicologia, sobe até a poesia mais alta, estuda as questões mais diversas, a política, a economia social, a religião, os costumes. O seu domínio é a natureza inteira (ZOLA apud REIS, 1997, p. 444). Para atingir seus propósitos, então, o romance naturalista, visando a questionar o comportamento humano e por força de suas imposições ideológicas, apresenta índole 276 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 276 EAD 25/07/2012 14:09:27 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas retrospectiva: procura, assim, explicar as causas remotas de certos fenômenos, comportamentos, mergulhando no passado das personagens. Do mesmo modo que o romance realista, a focalização é onisciente, pois o narrador heterodiegético assume a posição do cientista que estuda um caso, procurando validar suas teses. Nessa procura por construir universos orgânicos e tensamente articulados, os escritores realistas/naturalistas intentam compor ciclos romanescos: foi assim a proposição de Zola com seu Lês Rougon-Marcquart (com o subtítulo “História natural e social de uma família sob o Segundo Império”) e a tentativa de Eça de Queirós na composição das “Cenas da vida portuguesa”, pensada para ser desenvolvida em doze volumes. No final, ele compôs o Crime do Padre Amaro, como “cenas devotas”, O Primo Basílio, como “cenas da vida doméstica” e Os Maias, “cenas da vida romântica”, ainda que nesse último romance já se encontre menos traços naturalistas na trajetória da escrita queirosiana. De forma sintética, podemos dizer que prevalece atenção O Realismo e o Naturalismo constituem diferentes proposições artísticas; o primeiro caracteriza uma forma objetiva de representação do real em arte e o segundo, também em linhas gerais, propõe uma direção mais ligada ao determinismo cientificista. Entretanto, precisamos atentar para o seguinte: em Portugal “a distinção [entre esses dois termos] não foi alvo de grandes preocupações, chegando mesmo a ser deliberadamente ignorada [...]. As duas palavras eram indiferentemente utilizadas para significarem, em bloco, um mesmo movimento de renovação [literária]” (REIS, 1990, p. 101). 9 no Naturalismo, sob a égide do Positivismo: a crença no desenvolvimento das leis naturais que explicam o devir das sociedades e as transformações a que os homens estão sujeitos; a confiança na ciência, nas suas conquistas e certezas; e, sobretudo, a visão determinista de acordo com as proposições de H. Taine: as determinações do meio, da raça e do momento sobre o comportamento humano. Essa Unidade 3 . Aula síntese encontra-se nas palavras seguintes de Zola: O romancista é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o observador faculta os dados tal como os observou, fixa o ponto de partida, estabelece o terreno sólido sobre o qual vão movimentar-se os personagens e desenvolver-se os fenômenos. Depois, o experimentador aparece e institui a experiência, quero dizer, faz mover as personagens numa história particular, para mostrar que a sucessão dos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 277 Volume 4 277 25/07/2012 14:09:27 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura fatos corresponderá à exigência do determinismo dos fenômenos submetidos a estudo (ZOLA apud REIS, 1997, p. 448). Decorre daí a importância do enfoque sobre a hereditariedade, a influência dos ambientes e da educação, o que conduz à noção de fatalismo: como diz ainda Zola: “escolhi personagens soberanamente dominadas pelos seus nervos e pelo seu sangue, desprovidas de livre arbítrio, arrastadas a cada ato da sua vida pelas fatalidades de sua carne” (apud REIS, 1997, p. 149). Com esse propósito define-se a obra dos franceses já citados, Zola, Flaubert e Maupassant, do português Eça de Queirós e, no Brasil, de Aluísio Azevedo, com o Cortiço. Em geral, são enfocadas, em suas obras, personagens degradadas física e moralmente, movimentando-se em cenários urbanos de grande concentração populacional, promíscuos – ao que se juntam temperamentos perturbados por patologias como o alcoolismo, a histeria; os desvios de caráter que levam ao adultério, à prostituição, ao fanatismo religioso, à ambição desmedida. Tais enfoques acabaram se convertendo na “especialidade” do romance naturalista que, cada vez mais, aprofundava o traço das deformidades humanas, chegando a tornar repugnantes alguma descrições, como é o caso de uma passagem de O barão de Lavos, de Abel Botelho, publicado em 1891: A sua finíssima pele, que fora tão alva, lanugenta e macia, perdera toda a mimosa frescura da adolescência. Endurecera, espessara, asperizara-se, granulara em concreções de thopus, orografara-se em vermelhidões de urticária, deixara roer toda a suavidade feminil de sua cor dos quinze anos pela erupção pintalgada e luzente da dermatose que lhe envenenava o sangue. Via-se a magreza estirando e cavando em volta dos malares salientes a face desfibrinada [...] escoltando a pêra, erguia-se um grosso afloramento irregular de placas avermelhadas, papulosas, estaladas, 278 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 278 EAD 25/07/2012 14:09:27 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas secas, largando um desagregado contínuo de películas pulverulentas. E uma oleosidade sebácea e lustrosa porejava constante da base do nariz e das glândulas temporais subcutâneas, dando a este pobre rosto, variolado de herpetismo, o aspecto repugnante e mole de um morango sorvo (BOTELHO apud REIS, 1997, p. 450). Esses exageros acabaram por desgastar a estética Naturalista. Entretanto, a perspectiva realista manteve-se e mantém-se em arte, se por isso entendermos que se pode usar o conceito para significar uma tomada de posição diante de novas realidades (postura), expressas justamente na característica especial de observação crítica muito próxima e detalhada do real ou do que é tomado como real (método), que em literatura não só a técnica descritiva representou, e muitas vezes ainda representa, ao lado de outras, podendo, desse modo, ser encontrada em várias épocas, como refração da primeira (PELLEGRINI, 2007, p. 149). Nosso próximo enfoque é conhecermos a escrita de Unidade 3 . Aula 9 Eça de Queirós, considerado o mais importante nome do Realismo/Naturalismo em Portugal. 2.1 A proposta estético-política de Eça de Queirós O Realismo/Naturalismo tem início em Portugal com a Questão Coimbrã. Dela, entretanto, não participou Eça de Queirós, que se integra à chamada “Geração de 70” (1870) somente mais tarde, quando foram realizadas as Conferências do Casino Lisbonense. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 279 Volume 4 279 25/07/2012 14:09:27 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Também conhecida como a Questão do Bom Senso e Bom Gosto, a Questão Coimbrã foi uma das mais importantes polémicas literárias portuguesas e a maior em todo o século XIX [...]. Foi desencadeada em Coimbra por um grupo de jovens intelectuais que vinham reagindo contra a degenerescência romântica e o atraso cultural do país. A polémica começou em outubro de 1865, quando António Feliciano de Castilho aludiu, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, à moderna escola de Coimbra e à sua poesia ininteligível, ridicularizando o aparato filosófico e os novos modelos literários de que ela se nutria [...]. Sentindo-se visado, Antero de Quental respondeu com o panfleto Bom Senso e Bom Gosto, carta ao Ex.mo. Sr. Antônio Feliciano de Castilho, em que definiu “a bela, a imensa missão do escritor” como “um sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras”, que exige, por um lado, uma alta posição ética, por outro lado, uma total independência de pensamento e de carácter. Como consequência, e numa clara alusão a Castilho, Antero repudiava a poesia que cultiva a “palavra” em vez da “ideia”; a poesia decorativa dos “enfeitadores das ninharias luzidias”; a poesia conservadora dos que “preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir”; em suma, a poesia que “soa bem, mas não ensina nem eleva”. Estavam marcadas as posições: de um lado os intelectuais conservadores; do outro a nova geração, aberta às recentes correntes europeias. Seguiram-se “Bom Senso e Bom Gosto, folhetim a propósito da carta...”, de Pinheiro Chagas, que acorreu em defesa de Castilho, e, do lado dos coimbrões, os folhetos Teocracias Literárias, de Teófilo Braga, e A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, de Antero. [...] Embora de origem literária, a questão alargou-se a outras áreas como a cultura, a política e a filosofia. Esta refrega durou mais de um ano e envolveu nomes que já eram ilustres, como Ramalho Ortigão e Camilo C. Branco. Os artigos, folhetins e opúsculos em apoio de uma e de outra parte multiplicaram-se, até que, a partir de março de 1866, a polémica começou a declinar em quantidade e qualidade. Fonte : http://www.infopedia.pt/$questao-coimbra. Acesso em dez./2011. Das conferências, que foram reuniões públicas realizadas em 1871, em Lisboa, por iniciativa do chamado grupo do Cenáculo, faziam parte Antero de Quental, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis [entre outros] e “visavam abrir um debate sobre o que de mais moderno, a nível de pensamento, se vinha fazendo lá fora. Aproximar Portugal da Europa era o objetivo máximo, anunciado, aliás, no respetivo programa” (In: Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2012). Elas tiveram uma grande importância na vida literária de Eça de Queirós, pois fundamentaram seu compromisso com as linhas estético-políticas do Realismo/ Naturalismo de acordo com as quais era preciso “afirmar a 280 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 280 EAD 25/07/2012 14:09:27 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas condição militante e interventora da criação artística; de fazer do romance o grande instrumento de análise de males sociais; de levar a cabo, de um ponto de vista reformista, uma sistemática reflexão crítica sobre a sociedade portuguesa [...]” (REIS, 1990, p. 124). Em carta endereçada ao amigo Teófilo Braga, em 1878, logo após a publicação de O primo Basílio, Eça assim explicitava a sua “missão” como escritor: A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo de 1830 – e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país ele formam – eles e elas. É o meu fim nas Cenas da vida portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso - e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e as falsas realizações que lhe dá uma sociedade podre (apud REIS, 1990, p. 124). O projeto dessas “Cenas da vida portuguesa” acabou não se concretizando integralmente, como vimos anteriormente, limitando-se à publicação de seus romances mais conhecidos: Unidade 3 . Aula 9 O crime do padre Amaro; O primo Basílio; e Os Maias. Assim, para entendermos um pouco mais as propostas estético-políticas desse importante autor português, vamos considerar algumas questões importantes sobre o segundo desses romances citados (que você pode encontrar em vários sites, como o seguinte (não deixe de ler!): <http://www.dominiopublico.gov.br/download/ texto/ph000227.pdf>. Inicialmente, não devemos esquecer que O primo Basílio procurava atender aos principais objetivos da chamada fase mais propriamente realista/naturalista de Eça: nesse romance, encontramos o tema do adultério, as marcas do determinismo social na conduta e trajetória da governanta Juliana, a crítica à sociedade lisboeta nos personagens que, como Julião Zuzarte, o Conselheiro Acácio, Ernestinho Ledesma, encarnam, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 281 Volume 4 281 25/07/2012 14:09:28 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura respectivamente, o invejoso, o falso intelectual, o escritor romântico decadente, entre tantos outros tipos ironicamente compostos nessa narrativa. O tema do adultério acompanha a ideia de que Luiza, a Luisinha casada com o engenheiro Jorge, era uma moça formada nos moldes do romantismo mais distanciado da vida prática: ela costumava ler romances românticos e suspirava por ter uma vida cheia de aventuras como as das mocinhas dos enredos que lia. Foi motivada por essa ambição fantasiosa, e pelo tédio de um casamento sem novidades e vivido com atividades fúteis, que Luísa cedeu à sedução de seu primo Basílio e essa pode ser considerada a “tese” do romance. Como podemos ver na seguinte passagem: Como desejaria visitar os países que conhecia dos romances - a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baias, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta! (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000227.pdf). Nessa passagem, você pode facilmente reconhecer as ambições de Luíza e o contraste com sua vida “real”, que não era exatamente de uma família pobre, mas de uma burguesia média, sustentada pelo trabalho de Jorge como funcionário público. Já Basílio, também originário da baixa burguesia, ascendeu socialmente por conta de negócios realizados no Brasil e representava, para a prima sonhadora, os ideais de uma vida emocionante. Entretanto, o narrador queirosiano faz questão de demonstrar as falácias dessa idealização fantasiosa de Luísa e um dos pontos altos do romance é a famosa cena em que ela chega ao “Paraíso”, o lugar alugado por Basílio para viverem a sua proibida relação: 282 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 282 EAD 25/07/2012 14:09:28 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo - a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a, atraía-a mais que Basílio! Como seria? [...] Desejaria antes que fosse no campo, numa quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fofas; [...] Mas era um terceiro andar, - quem sabe como seria dentro? Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em que o herói, poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça; [...] Conhecia o gosto de Basílio, e o Paraíso decerto era como no romance de Paulo Féval.. [...] A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à entrada um cheiro mole e salobro enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes onde a cal caía, e a humidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado, coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança. (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000227.pdf). Unidade 3 . Aula 9 Na parte sublinhada, podemos entender que Luiza estava movida ao adultério muito mais pela aventura do que por um grande amor a Basílio. E não pode ser mais desconcertante e irônica a “verdadeira” fachada do Paraíso: uma casa pobre, suja e no subúrbio. A continuação do texto é bem conhecida: Juliana, a empregada, descobre as cartas dos amantes e começa a fazer chantagem com a patroa, ao ponto de se inverterem os papéis e Luizinha passar a fazer o serviço doméstico, fora o dinheiro estimulado pela governanta em exigência por seu silêncio. Enfim, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 283 Volume 4 283 25/07/2012 14:09:28 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura leitura recomendada Eça de Queirós foi uma grande referência para os escritores brasileiros en- tão seus contemporâneos. Sobre essa importância da escrita queirosiana e sua leia: recepção ABDALA no Brasil, JÚNIOR, Benjamin (Org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2000; ZILBERMAN, Regina et al. Eça e os outros: diálogos com a ficção de Eça de Queirós. Porto Alegre: Edi- o bom amigo da família, Sebastião, desfaz o angustiante ciclo de chantagens, Juliana acaba morrendo, mas Jorge termina descobrindo o adultério por uma carta enviada tardiamente por Basílio. A pobre Luizinha não resiste a uma doença séria e, na morte, é perdoada pelo marido, que sempre prefere a moderação a se expor socialmente. Se nesse romance, bem como em O crime do padre Amaro, Eça de Queirós fundamenta sua crença nos princípios do realismo/naturalismo, como são exemplares as citações lidas anteriormente de O primo Basílio, já em Os Maias o autor português começa a se distanciar das linhas mestras naturalistas: nesse romance, “de demorada concepção, escrita e acabamento [evidencia-se] uma evolução que se orienta no sentido da superação do Naturalismo” (REIS, 1990, p. 149). Essa superação será contínua, conforme os estudos do professor Carlos Reis, um dos mais importantes estudiosos da obra queirosiana: pucrs, 2002. A publicação, em 1887, do romance A relíquia, que abre com a célebre epígrafe: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, vem confirmar que a novela O mandarim, publicada em 1880 não era apenas uma “escapada” ao mundo da fantasia [...], mas sim a procura e a apetência de Eça de Queirós, de outras formas narrativas e outros mundos ficcionais para além dos prescritos pelo Realismo/Naturalismo (REIS, 1990, p. 158). para conhecer Algumas obras literárias de Eça de Queirós foram adaptadas para o cinema e para a televisão; você pode assistir as seguintes produções: • O crime do padre Amaro, de Carlos Carrera, México, 2002 • O crime do padre Amaro, de Carlos Coelho da Silva, Portugal, 2005 • O primo Basílio, de Daniel Filho, Brasil, 2007 • O primo Basílio, de Reynaldo Boury e Daniel Nesse processo de mudança de sua escrita, o que encontramos é sempre uma maior complexidade da obra queirosiana, que tem seu lugar garantido entre as mais importantes realizações da Literatura Portuguesa. Filho, 1988, série da TV Globo 284 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 284 EAD 25/07/2012 14:09:28 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas 3 O REALISMO E O NATURALISMO NO BRASIL Enquanto na Europa o proletariado reivindicava seus direitos, no Brasil ainda prevalecia o escravagismo, mantendo a ideia de que o trabalho rebaixava o indivíduo. Por conta dessa deformação social, a atividade produtiva cabia quase que exclusivamente aos escravos, assim quem exercia ofício remunerado acabava aderindo aos valores da elite a fim de se distinguir socialmente (SODRÉ, 1988). A classe abastada se compunha majoritariamente pelos proprietários de terra e por indivíduos ligados a atividades dependentes do desempenho da lavoura de café, como importadores, exportadores, comerciantes e os traficantes de africanos. Na literatura, o Romantismo estava em pleno vigor, sendo 1957 o ano em que veio a público O guarani, a grande referência da prosa indianista, conforme destacamos na aula anterior. A elite agrária sustentou a monarquia desde a Independência e viveu seu momento mais coeso entre 1850 e 1870, quando o regime atingiu seu apogeu. A boa cotação do café no mercado internacional proporcionou um período de prosperidade econômica, levando o país a se aproximar do Unidade 3 . Aula 9 mundo pós Revolução Industrial, mudando sua fisionomia em todas as áreas (HOLANDA, 2006). A vida cultural intensificou-se em diversas cidades, com destaque para Recife, onde a Faculdade de Direito foi a porta de entrada de novas teorias e formou indivíduos com participação decisiva em acontecimentos mais marcantes das três últimas décadas do século XIX (STEGAGNO-PICCHIO, 1997). O fim da guerra contra o Paraguai, em 1870, alterou o clima de otimismo existente. Aumentaram as dificuldades para a classe dominante se manter unida, resultando em conflitos que a dividiriam mais adiante, em função da insatisfação dos setores urbanos com a maneira pela qual o país era conduzido. A classe rural controlava os partidos políticos e o sistema eleitoral que, na prática, só permitiam a participação de quem ela consentisse UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 285 Volume 4 285 25/07/2012 14:09:28 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura (HOLANDA, 2006). Com o crescimento das atividades citadinas, agravaram-se as discordâncias e a disputa por espaço, enfraquecendo a monarquia continuamente. No plano literário, as fórmulas que até então haviam popularizado poetas e prosadores perderam o encanto aos olhos dos leitores. As tramas açucaradas cujo melhor exemplo saiba mais Machado de Assis desdenhava do apego de seus contemporâneos ao positivismo de Auguste Comte e ao cientificismo de Charles Darwin, como se pode perceber em “O alienista”, um de seus contos mais célebres, publicado em 1881. Sua posição crítica ainda se manifesta pelo Humanitismo, filosofia inventada Quincas Borba, por personagem que aparece rapidamente em Memórias póstumas de Brás Cubas, no episódio da briga de cães, do capítulo 141, voltando a ser mencionado a partir do capítulo 157. No romance Quincas Borba (1891) a filosofia humanitista reaparece no capítulo 6, com a parábola “Ao vencedor, as batatas”. é A Moreninha (1844), cansavam o público, porque o mundo sem conflito representado por elas perdeu seu fascínio quando as pessoas começaram a perceber que a concepção da arte como expressão da alma, do sentimento, da emoção e a visão idealizada da vida estavam muito distantes da realidade (MERQUIOR, 1996). Enquanto isso, o debate em torno do problema da “cor local” estimulava os escritores a se interessarem por outros temas e pela introdução de novos tipos humanos. Assim, um grupo fazia o esforço derradeiro para revigorar o Romantismo, enquanto outro se sentia atraído pelas ideias de renovação mais profunda. Coube, porém, a Machado de Assis, nome consagrado por conta de uma trajetória de vinte anos, o papel mais importante na revitalização da prosa nacional, embora o reconhecimento por isso viesse bem mais tarde. Com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881, mudou radicalmente seu modo de escrever, revelandose um escritor maduro e inaugurando a fase de sua trajetória que renderia os melhores romances. Naquele momento, entretanto, as atenções recaíram sobre O cortiço, de Aluísio Azevedo, cujo aparecimento no mesmo ano provocou grande repercussão por ser considerado mais inovador. As razões da preferência se devem a dois fatores: a importância atribuída às ideias ligadas ao positivismo e ao cientificismo e o impacto pelo erotismo de algumas cenas. 286 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 286 EAD 25/07/2012 14:09:28 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas 3.1 A singularidade da obra de Machado de Assis local”. É preciso salientar, porém, que Machado sempre se destacou pela forma particular de sua linguagem e, segundo José Guilherme Merquior (1996), essa característica chama a atenção nos primeiros textos em prosa que publicou. Esses traços apareceram de modo gradativo em seus contos, para se revelarem plenamente nos romances a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, que veio a público em 1881. No endereço a seguir, você encontra títulos de obras de Machado de Assis adaptadas para o cinema, bem como vídeos sobre algumas delas ou sobre o autor: http://www. academia.org.br/abl_minisites/machadodeassiscinema/ vídeo. leitura recomendada O conhecimento literário admirável e a capacidade para refletir sobre os diversos aspectos da literatura permitiram que Machado de Assis A trajetória de Machado de Assis sempre foi ascendente, mas a transformação que o consagrou aconteceu com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. O aparecimento da obra se deu em meio à ocorrência de fatos decisivos para a história do Brasil, em especial, o crescimento das manifestações reivindicatórias que culminaram com o fim da escravidão e a queda do regime monárquico. A associação da narrativa com tais acontecimentos dá outro rumo para as discussões sobre a literatura brasileira, suscitando indagações mais complexas do que aquelas que os transitasse com igual desen- escritores faziam em torno do problema da “cor local”. Para Machado de Assis, o assunto era mais profundo, co em que Machado ambien- como podemos constatar por suas observações em “Notícia da atual literatura brasileira - instinto de nacionalidade”. A vinculação de Memórias póstumas de Brás Cubas com fenômenos socioculturais do período permite a UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 287 Volume 4 voltura na crítica e na ficção. Notamos isso pela sua produção artística em verso ou prosa e pelos textos críticos que escreveu. Desses recomendamos “Notícia da atual literatura brasileira - instinto de nacionalidade”. O artigo apresenta importante análise da literatura brasileira do período, sobretudo em relação ao debate em torno do problema da “cor local”, que tanto angustiava escritores e críticos. A associação de propostas ali presentes ao enredo e ao contexto históritou Memórias póstumas de Brás Cubas revela sua visão de literatura. Esse artigo está disponível em: www.letras. 9 a obra não apresenta nenhum sinal do envolvimento do autor com a discussão que se fazia em torno da “cor saiba mais Unidade 3 . Aula Machado de Assis começou a modelar sua carreira em 1861, escrevendo poesias, textos para o teatro e contos, estreando no romance somente em 1872, com a divulgação de Ressurreição. Apesar de publicada num momento em que os escritores procuravam novidades, cabaladada.org/letras/instinto _nacionalidade. pdf.. 287 25/07/2012 14:09:28 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura interpretação do romance como uma análise crítica da sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. No romance estão os passatempos, os costumes, as festas, os passeios, a frequência ao teatro, a vida parlamentar, os acordos políticos, as formas de ganhar dinheiro, enfim, vários aspectos do cotidiano da elite. Quanto à transposição dessas particularidades para a literatura, o autor dá prosseguimento ao que vinha fazendo José de Alencar, seu amigo e um de seus grandes modelos, nos chamados romances urbanos. Num certo sentido, ambos se propõem a fazer uma exposição crítica da sociedade fluminense, descrevendo a hipocrisia e o afrontamento a princípios morais e éticos praticados por uma elite para permanecer desfrutando privilégios à custa do trabalho escravo. A diferença é que Machado foi mais crítico e, fundamentalmente, foi mais habilidoso na transformação de fatos corriqueiros em matéria ficcional. Alguns episódios do romance são muito representativos a esse respeito porque ilustram a maneira como o escritor representou a realidade com o distanciamento e o equilíbrio necessários para se manter no campo da criação artística. É importante salientar que isso não diminui José de Alencar, cujo projeto literário é de importância fundamental para nossa literatura. A proibição ao tráfico de africanos, em 1850, determinou que os capitais destinados até então a essa finalidade fossem redirecionados para novas fontes de lucros. O mercado ilegal de negros e a especulação financeira foram as mais procuradas, tornando-se fatores para que fortunas se acumulassem ou se desfizessem com rapidez. Enquanto os plantadores de café empobreciam devido ao aumento do preço dos escravos que os obrigava a tomar dinheiro emprestado a juros elevadíssimos, quem apostava na especulação, financiando o tráfico de africanos, investindo na bolsa de valores ou na agiotagem obtinha grandes lucros (FAORO, 2006). A transferência do dinheiro das mãos dos senhores de terra e escravos para os indivíduos ligados a atividades 288 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 288 EAD 25/07/2012 14:09:29 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas urbanas acontecia ao mesmo tempo em que o Brasil aderia aos fundamentos do capitalismo, dos quais a bolsa de valores era novidade recém-chegada ao país (SODRÉ, 1988). Aqueles que se adaptavam mais rapidamente às mudanças encontravam grandes oportunidades para o acúmulo de fortuna, sendo mais favorecido quem dava pouca importância a escrúpulos e princípios éticos. Cotrim, cunhado de Brás Cubas, enriqueceu com o tráfico de escravos, com a especulação financeira e com a corrupção em negócios com órgãos públicos. Apesar dos interesses conflitantes em algumas situações, a elite procurava manter sua unidade para garantir o controle do poder político, aglutinando-se em torno de conveniências, a fim de preservar seus privilégios. Frágil do ponto de vista político, essa aliança tinha nos acordos de casamento um de seus pilares de sustentação. Machado de Assis aborda o problema em Memórias póstumas de Brás Cubas, valendo-se da ironia para expor abertamente as mazelas do segmento social que sustentou a monarquia. As referências aparecem no acerto entre Bento Cubas e o Conselheiro Dutra, envolvendo a união dos filhos e a candidatura de Brás a deputado. O poder de Dutra junto ao centro das decisões determina que a eleição de Brás seja dada como certa. Numa representação ilustrativa do funcionamento do sistema eleitoral da época, ele é descrito como “uma influência política” (ASSIS, 1978, p. 59), ou seja, um homem de grande prestígio, pela fortuna e pelo controle Unidade 3 . Aula 9 que exercia do ambiente político. Para decepção do velho Cubas, que ambicionava ver o rapaz no parlamento para engrandecer o nome da família, o acordo se desfez repentinamente, em nome de razões impostas pelas conveniências: Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto do que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a me- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 289 Volume 4 289 25/07/2012 14:09:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura nor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências (ASSIS, 1978, p. 73). O episódio e o próprio romance revelam a profundidade com que o autor representava a sociedade brasileira e expressam o quadro final de esboços que encontramos em vários de seus contos publicados anteriormente. O rumo que o assunto toma na obra dá a medida das distinções entre ele e seus contemporâneos. Como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo e como um dos raros em todas as épocas, Machado de Assis esmiuçou a realidade do país, como ilustra a representação da fragilidade da estrutura político-partidária da época. Valendo-se da ironia, portanto de um recurso artístico, como as conveniências e os interesses interferiam nas decisões, determinando acordos e desacertos entre os membros da elite. O pai de Virgília optou por casar a filha com aquele em quem enxergou as melhores possibilidades de realizar seus projetos políticos, seguindo as normas da classe dominante para se manter no poder. O episódio também serve de artifício para Machado de Assis abordar a causa de outro problema recorrente na sociedade brasileira de seu tempo: tratado como negócio, o casamento era o elemento mais visível da hipocrisia que predominava nas relações entre os membros da classe dominante. Assim, funcionava como um filtro para o acesso de alguns indivíduos ao centro do poder político e ao topo do prestígio social. Duas situações em Memórias póstumas de Brás Cubas servem de ilustração a esse respeito, sendo ambas frustrantes às personagens que ambicionavam ascensão. O já mencionado fracasso na pretensão de Bento Cubas e o caso de Damasceno, diante da morte de Nhá Loló em consequência da febre amarela. O primeiro vê cair por terra seu projeto de engrandecer o nome da família e apagar de vez a origem dela, enquanto o outro tem as portas de acesso à elite fechadas em definitivo. Uma das chaves 290 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 290 EAD 25/07/2012 14:09:29 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas dessa estrutura era a submissão da mulher ao pai e ao marido (SODRÉ, 1988), fato que lhe impunha uma vida de resignação e de insatisfação. Sem poder interferir nos ajustes a respeito de seu destino, as moças acatavam a escolha do pai, saindo da sua tutela para se submeter ao marido, aceitando um enlace que as condenava à infelicidade. Assim, a traição encontra explicações que a atenuam, pois era uma forma de realização afetiva e sexual para a mulher, algo que não encontrava no casamento. Em Memórias póstumas de Brás Cubas isso se faz representar pela figura de Virgília. A dimensão artística que Machado dá aos problemas do cotidiano aparece na ambiguidade da atitude de Virgília, pois se tornando amante de Brás mostra que se rebela contra o ajuste em que foi envolvida. Por outro lado, quando solteira, ela manifesta sua ambição por prestígio social: Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro. – Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano. Virgília replicou: – Promete que algum dia me fará baronesa? – Marquesa, porque eu serei marquês. (ASSIS, 1978, p. 73). Unidade 3 . Aula 9 Ao se casar com Lobo Neves, Virgília satisfez a vontade de seu pai e manteve suas aspirações, porque ele tinha perfil mais adequado para transformá-las em realidade. O problema é que amava Brás, por isso teve que passar a se debater em permanente conflito: [...] tinham comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer. – O melhor é fugirmos, insinuei. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 291 Volume 4 291 25/07/2012 14:09:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura – Nunca, respondeu ela abanando a cabeça. Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma (ASSIS, 1978, p. 99). Já afirmamos em outros momentos que o trabalho não servia como instrumento para a ascensão social porque estava vinculado ao escravo. É por isso que Dona Plácida, doceira e costureira, sujeita-se ao constrangimento da alcovitagem, aceitando conformada a casa que Brás lhe dá em troca do acobertamento de seus encontros com Virgília: Quando obtive a confiança, imaginei uma história patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novela. Dona Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três juntos diria que Dona Plácida era minha sogra. Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, — os cinco contos achados em Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo (ASSIS, 1978, p. 101-102). A escravidão, o outro modo de trabalho, era ainda mais aviltante, como demonstra o episódio protagonizado por Prudêncio. Criado como escravo dos Cubas, ganhou alforria 292 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 292 EAD 25/07/2012 14:09:29 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas depois da morte de Bento e se estabeleceu com um pequeno negócio. Na condição de homem livre, usufruiu o direito de adquirir seu próprio escravo, submetendo-o a humilhações semelhantes às que sofrera: [...] era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova. -Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! - Meu senhor! gemia o outro. - Cala a boca, besta! replicava o vergalho. [...] Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (ASSIS, 1978, p. 99-100). Unidade 3 . Aula 9 O episódio remete às deformações provocadas pela escravidão nas relações entre os indivíduos. Como proprietário de uma quitanda e de um escravo, Prudêncio se distinguia em relação aos negros, porém continuava à margem da sociedade branca, como ele próprio reconhece ao mostrar submissão a Brás, atendendo ao pedido para que deixasse de espancar o outro: “- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede” (p. 99). Da mesma forma como podemos debater as referências que Memórias póstumas de Brás Cubas faz à vida no Rio de Janeiro durante o reinado de Dom Pedro II, é possível ver relações com os debates literários do período. Para isso se faz necessário estabelecer vinculações entre alguns fatos. A UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 293 Volume 4 293 25/07/2012 14:09:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura publicação do romance aconteceu em meio à busca de renovação do romance brasileiro, porém Machado discordava das posições dominantes. No já citado “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, rejeita a supervalorização dos elementos locais, argumentando que: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (ASSIS, 1955, p. 135). Sua preocupação não se restringia à literatura brasileira, como podemos perceber no artigo que escreveu sobre O primo Basílio, de Eça de Queirós, 1878. Ali, recorre a conceitos estéticos para expor falhas na estrutura da obra, mostrando a inverossimilhança de algumas das situações engendradas por seu colega português e manifestando sua antipatia pela aproximação excessiva do Realismo e do Naturalismo com as ideias defendidas por positivistas e evolucionistas: Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de Queirós, e a inanidade do caráter da heroína. Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não havia semelhante flâmula em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida anterior.[...] Tirai o extravio das cartas, a casa de Jorge passa a ser uma nesga do paraíso; sem essa circunstância, inteiramente casual, acabaria o romance. Ora, a substituição do principal 294 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 294 EAD 25/07/2012 14:09:29 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte (ASSIS, 1955, p. 161;171). Em ambos os casos, Machado de Assis se opõe ao pensamento predominante, num primeiro momento contrariando a concepção de uma literatura brasileira voltada apenas para os assuntos locais e no segundo apontando problemas na obra de um escritor com prestígio em alta no Brasil, devido a suas afinidades com as correntes filosóficas mais valorizadas por nossos intelectuais da época. As referências que faz a essas circunstâncias em Memórias póstumas de Brás Cubas tornam mais profundos os vínculos do romance com fenômenos socioculturais da segunda metade do século XIX. Se podemos reconhecer algo semelhante no Romantismo, como já vimos, cabe salientar o modo como o autor procedeu. Ao invés de envolver-se em debates passionais e pouco produtivos, preferiu discutir as causas dos fatos, fazendo isso artisticamente, projetando elementos do mundo concreto para o campo da estética. Em outras palavras, procurou representar a vida e o homem de seu tempo, descrevendo-os em seus romances como possibilidade, não como transposição. Estabelecendo esse distanciamento, próprio da criação artística, rompeu as fronteiras UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 295 Volume 4 Unidade 3 . Aula 9 do tempo e do espaço, porque leva seus leitores a um mergulho na alma do homem contemporâneo. Por isso construiu uma obra que estabelece diálogos em diversos sentidos, quer seja com as gerações subsequentes, quer seja com as produções mais expressivas de qualquer literatura, em todos os tempos. 295 25/07/2012 14:09:29 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES A AT TIV IVI VI ATIVIDADES I – O texto abaixo é um extrato de uma das conferências proferidas por Eça de Queirós sobre o sentido da arte no seu tempo. Após a leitura, responda as questões correspondentes: Romantismo e Idealismo, Realismo e Naturalismo O Naturalismo é a forma científica que toma a arte, como a República é a forma política que toma a democracia, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia. Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos fatos e da experiência dos fenômenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade. Outrora uma novela romântica, em lugar de estudar o homem, inventava-o. Hoje o romance estuda-o na sua realidade social. Outrora no drama, no romance, concebia-se o jogo das paixões a priori; hoje, analisa-se a posteriori, por processos tão exatos como os da própria fisiologia. Desde que se descobriu que a lei que rege os corpos brutos é a mesma que rege os seres vivos, que a constituição intrínseca de uma pedra obedeceu às mesmas leis que a constituição do espírito de uma donzela, que há no mundo uma fenomenalidade única, que a lei que rege os movimentos dos mundos não difere da lei que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente de observar. [...] A arte tornou-se o estudo dos fenômenos vivos e não a idealização das imaginações inatas...[...]. Apresentam-se dois novelistas — o Idealista e o Naturalista. Tu dá-lhes o teu assunto: uma menina que se chama Virgínia e que habita ali defronte. O idealista não a quer ver nem ouvir; não quer saber mais detalhes. Toma imediatamente a sua 296 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 296 EAD 25/07/2012 14:09:29 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas boa pena de Toledo, recorda durante um momento os seus autores e, num relance, cria-te a menina Virgínia deste modo: na figura, a graça de Margarida; no coração, a paixão grandiosa de Julieta; nos movimentos, a languidez de qualquer odalisca (à escolha); na mente, a prudência de Salomão, e nos lábios, a eloquência de Santo Agostinho... Dir-me-ão: é mentira! — Como, mentira? Vejam a criação da Morgadinha dos canaviais, um romance, e feito pelo talento delicado e paciente de Júlio Diniz, o artista que entre nós mais importância deu à realidade. E todavia a sua Morgadinha é bem extraordinária. Ali está uma burguesinha da serra, vivendo na serra, educada na serra, e querendo ser a personificação da mulher de classe média em Portugal: ama com a sinceridade heróica de Cordélia; tem com os sobinhos o tom da maternidade romântica da amante de Werther; [...] junta a isso, em intrigas sentimentais, a finura das duquesas de Balzac - e quando fala de amor, julgamos ouvir Rousseau declamar. Sem contar que tudo quanto diz de poesia, de arte ou de religião, é de Chateaubriand!... Mas voltemos à nossa Virgínia, que mora ali defronte. É agora o escritor naturalista que a vai pintar. Esse homem começa por fazer uma coisa extraordinária: vai vê-la! UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 297 Volume 4 Unidade 3 . Aula 9 Não se riam: o simples fato de ir ver Virgínia quando se pretende descrever Virgínia, é uma revolução na arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que só a observação dos fenômenos dá a ciência das coisas. Este homem vai ver Virgínia, estuda-lhe a figura, os modos, a voz; examina o seu passado, indaga da sua educação, estuda o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gestos que tem - e dá, enfim, uma Virgínia que não é Cordélia, nem Ofélia, nem Santo Agostinho, nem Clara de Borgonha - mas que é a burguesa da Baixa, em Lisboa, no ano da graça de 1879. 297 25/07/2012 14:09:30 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Eça de Queirós, “Idealismo e Realismo” (1879). In: REIS, Carlos. O conhecimento da Literatura. Introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 1997. 1) Quais são os aspectos mais positivos da arte naturalista para Eça de Queirós? 2) Qual é o paradigma cultural no qual o autor português se insere? 3) Cite as principais características do Realismo/ Naturalismo apontadas no texto: II - Sobre o romance realista/naturalista O primo Basílio, de Eça de Queirós, a partir dos excertos abaixo: 4) Elabore um comentário crítico no qual apareçam as principais características do romance português realista/ naturalista, ou seja: - o desvio de caráter provocado pela educação romântica, sobretudo feminina; - a objetividade/ subjetividade presente no processo de narração, bem como a importância da descrição; - a determinação social sobre os indivíduos; - a hipocrisia da pequena-burguesia e sua decadência moral. Tenho um amate Não fora culpa sua. Não abrira os braços a Basílio voluntariamente! ... Tinha sido uma fatalidade: fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez... Estava douda, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício, ela fora por paixão... Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!... Seria tão fiel, tão 298 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 298 EAD 25/07/2012 14:09:30 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus beijos tão estonteadores!...E enfim que lhe havia de fazer agora? Já agora!...E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escritório. Logo ao entrar o seu olhar deu com a fotografia de Jorge [...]. Uma comoção comprimiu-lhe o coração; ficou como tolhida. 9 Juliana Couceiro Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifros, a levantar de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era de mais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelistas ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa: mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos: tinha então adoecido; com o horror do hospital fora tratarse para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a última libra, chorou horas com a cabeça debaixo da roupa. Unidade 3 . Aula Ficou sempre adoentada desde então, perdeu toda a esperança de se estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa certeza dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se. Fonte: esses excertos foram retirados de: dominiopúblico.com.gov.br. III – Sobre Machado de Assis UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 299 Volume 4 299 25/07/2012 14:09:30 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 5) Leia os fragmentos a seguir, de Memórias póstumas de Brás Cubas. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - “ai, nhonhô”! - ao que eu retorquia: -“Cala a boca, besta! (p. 30-31). ______________________________ Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-as um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova. – Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! – Meu senhor! gemia o outro. – Cala a boca, besta! replicava o vergalho. Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele. – É, sim, nhonhô. – Fez-te alguma cousa? – É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber. – Está bom, perdoa-lhe, disse eu. – Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!”(p. 99-100). 300 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 300 EAD 25/07/2012 14:09:30 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas a) Filho de um pai negro, Machado de Assis chegou a ser criticado por não ter participado ativamente dos movimentos contra a escravidão, como fizeram alguns colegas seus. Os trechos citados revelam o equívoco cometido por quem assim pensava. Tomando-os como referência, descreva como podemos perceber a preocupação do escritor com o problema. atenção Machado de Assis faz referências constantes ao problema da escravidão em sua obra, como é o caso do romance Esaú e Jacó, e de contos como “O caso da vara”, “Pai contra mãe” e “Ma- b) Compare os papéis de Brás e Prudêncio em cada um dos episódios citados e elabore breve comentário a respeito. riana”. ao Com último, relação são dois contos com o mesmo título. Aqui se trata do que foi publicado primeiramente pelo Jornal das Famílias, em 6) Observe a seguinte descrição de Cotrim: 1871, e mais tarde no volume póstumo Contos avulsos, de 1966. em Memórias póstumas de Brás Cubas: UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 301 Volume 4 Unidade 3 . Aula 9 Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um carácter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o cusat. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a cusa-lo de bárbaro. O único facto alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e 301 25/07/2012 14:09:30 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito, de certo; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava, -- sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a ninguém (ASSIS, 1978, p. 99-100). na análise de Raymundo Faoro: Podemos afirmar que Cotrim enriquecera na Regência e consolidara sua fortuna no Segundo Reinado. Machado de Assis atribui-lhe todas as más tendências próprias a um homem de negócio, fingindo desculpá-lo e justificá-lo. Avarento, traficante de escravos, perverso com os negros cativos, negocista – tudo lhe enche a alma. Mas o romancista brinca de torná-lo inocente, realçando-lhe por efeito do humorismo, a hipocrisia e a maldade que preside todo o convívio do dinheiro com o lucro (FAORO, 2006, p. 252). a) Depois de comparar os dois textos, desenvolva comentário registrando suas conclusões. 302 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 302 EAD 25/07/2012 14:09:30 Realismo, Naturalismo, programas e rupturas RESUMINDO RESUMINDO RE ESU S Nesta aula, estudamos os principais aspectos do contexto histórico-cultural em que se desenvolveu a estética realista e naturalista em Portugal e no Brasil, destacando os autores Eça de Queirós e Machado de Assis, respectivamente. Ao reconhecermos as diferenças e aproximações entre eles, percebemos que foram de fundamental importância para a renovação literária em seus países e que, cada um a seu modo, continuam ser relevantes referências para a literatura contemporânea, inclusive para além das fronteiras portuguesas e brasileiras. REFERÊNCIAS REFE RE FER FE REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Obras completas. Vol. I Romance Urbano. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959. ASSIS, Machado de. Crítica literária. Rio de Janeiro: Jackson, 1955. 9 _____. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril, Unidade 3 . Aula 1978. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. vol 1. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de Janeiro: Globo, 2006. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 303 Volume 4 303 25/07/2012 14:09:30 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. PELLEGRINI, T. Realismo: postura e método. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, dezembro 2007, p. 137-155. REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Coimbra: Almedina, 1997. _____. Literatura portuguesa moderna e contemporânea. Lisboa: Universidade Aberta, 1990. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 9. ed. Europa-América: Lisboa, 1984. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura no Brasil. 8. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. 304 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 304 EAD 25/07/2012 14:09:31 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 305 25/07/2012 14:09:31 3ª unidade AULA 10 MODERNISMOS OBJETIVOS Compreender os principais fatores históricos que contextualizaram as mais expressivas criações literárias dos Modernismos português e brasileiro e seus respectivos autores. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 307 25/07/2012 14:09:31 Modernismos 1 INTRODUÇÃO Temos acompanhado a progressão da literatura em língua portuguesa, observando seu desenvolvimento no Brasil e em Portugal. Vimos que a incorporação de elementos paisagísticos e humanos moldou, aos poucos, a fisionomia das produções literárias daqui. Num primeiro momento, como reação de surpresa e admiração diante do homem e da natureza, refletindo a visão dos europeus diante de um mundo novo e exótico. Depois, as menções à natureza e ao índio passaram a expressar o sentimento de nativismo, porque surgiram no momento em que aumentava o desejo de autonomia. No estágio seguinte, as peculiaridades próprias do Brasil serviram de pretexto para a criação de símbolos nacionais e como traço de diferença, em consequência da emancipação. Como os vínculos culturais entre os dois países são profundos, as literaturas continuaram entrelaçadas, porque nossos escritores tomaram colegas portugueses como modelo durante o Romantismo, ou pelas semelhanças entre os projetos literários de Eça de Queirós e Machado de Assis. No século XX, a literatura em língua portuguesa ganhou UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 309 Volume 4 Unidade 3 . Aula 10 novos componentes devido à multiplicidade de direção das influências, com o fortalecimento da literatura brasileira e das literaturas africanas em nosso idioma, como você verá nas aulas seguintes. Nesta aula, vamos tratar especialmente das principais proposições estéticas dos Modernismos português e brasileiro, com ênfase sobre as expressões poéticas. 309 25/07/2012 14:09:31 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 2 DO SÉCULO XIX AO XX: TRANSFORMAÇÕES E saiba mais DESAFIOS As proposições estéticas dessas vanguardas foram fundamentais para a criação artística do século XX. Entretanto, precisamos destacar também a importância do Simbolismo em razão das mudanças que provocou na percepção do artista sobre o sentido da arte. O movimento simbolista tem no manifesto “Le Symbolisme”, publicado pelo francês Jean Moréas, em 1886, a sua certidão de nascimento. Baseandose na valorização de metáforas incomuns, num vocabulário aberto, de ritmo acentuado e de sonoridade forte, a tendência surgiu como reação às fórmulas estéticas do Parnasianismo. A literatura sempre empregou o símbolo como forma de expressão, no entanto a principal preocupação da época foi “instalar um credo estético baseado no subjetivo, no pessoal, na sugestão e no vago, no misterioso e ilógico, na expressão indireta e simbólica” (COUTINHO, 2004, p. 319). O precursor do simbolismo foi o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), um dos principais colabores do primeiro volume do Parnaspo contemporâneo (1866), em francês, Parnasse contemporain, antologia que permite perceber o início das inovações que só se completaramduas décadas mais tarde. O período entre o final do século XIX e o início do século XX caracterizou-se por acontecimentos que provocaram mudanças radicais na vida e na maneira de organização das sociedades. As alterações nos meios de produção, os avanços tecnológicos, o desenvolvimento das comunicações e dos transportes, a valorização do conhecimento científico são fenômenos que provocaram essas transformações. Conflitos sociais e crises políticas se somaram a tais acontecimentos, determinando que o mundo alterasse sua fisionomia rapidamente e em dimensões jamais vistas (CARDOSO, 2006). Inventos do período como o rádio, o telefone, o cinema, o automóvel e progressos em áreas como a química e a biologia se refletiram no âmbito da cultura. Por outro lado, a preocupação com as manifestações emocionais levou o austríaco Sigmund Freud a estabelecer os princípios da Psicologia, os quais alteraram a forma do homem encarar a si mesmo e o mundo, abrindo também um campo vasto para a criação artística. Os estados interiores dos indivíduos sempre fascinaram os artistas, mas essas pesquisas ampliaram o repertório para a abordagem de tais assuntos (MERQUIOR, 1996). Paralelamente, diversas manifestações culturais apareceram quase ao mesmo tempo em vários países da Europa, se espalhando em consequência do aperfeiçoamento dos meios de comunicação. Num período de cerca de quinze anos surgiram o Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1924), as expressões mais representativas dos movimentos conhecidos como vanguardas. Apesar de diferentes entre si, tinham em comum o posicionamento diante de um mundo em crise e a contestação à herança cultural que vinha do passado recente. 310 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 310 EAD 25/07/2012 14:09:31 Modernismos Nas palavras de Gilberto Mendonça Telles: [...] os movimentos de vanguarda na Europa podem ser ordenados em duas frentes opostas [a expressão ordenada ou caótica do universo] e, ao mesmo tempo, unidas por um princípio comum, o de renovação literária. Futurismo e Dadaísmo se aproximam, do mesmo modo que encontramos identidade entre expressionismo e cubismo (1986, p. 83). saiba mais Futurismo: surgiu em 1909 com a publicação do “Manifesto futurista” pelo poeta italiano Filippo Marinetti, que propunha o aproveitamento das inovações tecnológicas e da velocidade como fonte de criação. Expressionismo: surgiu na Alemanha com a pretensão de expressar o mundo dos sonhos, naquilo que escapa da compreensão lógica e a vida anterior dos indivíduos. Todas essas manifestações foram, de diferentes modos, incorporadas pelas proposições estéticas renovadoras dos Modernismos português e brasileiro, como veremos a seguir. Cubismo: o movimento tratava de formas da natureza por meio de figuras geométricas, com o propósito de representar as partes de um objeto em um mesmo plano, rompendo o compromisso com a aparência real das coisas. Dadaísmo: surgiu em Zurique, em manifesto apresenta- 3 OS MODERNISMOS do por Tristan Tzara, no ano de 1916 e tem como característica principal a oposição a qual- 3.1 O grupo Orpheu: heranças e rupturas quer tipo de equilíbrio, combinando pessimismo, ironia, ingenuidade, ceticismo com o Costuma-se marcar o início do Modernismo em Portugal com o lançamento da revista Orpheu, em 1915. Dela participaram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, além do brasileiro, Ronald de Carvalho, pois se tratava de uma publicação que ligava os intelectuais ilógico e o absurdo. Surrealismo: surgiu a partir da ruptura do Dadaísmo, tomando como base o mundo dos sonhos e as contradições com a realidade, o pensamento, e a loucura. dos dois países. Sobre o projeto e publicação da revista, assim se referiu Fernando Pessoa: UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 311 Volume 4 Para saber mais sobre as vanguardas europeias, sugerimos as seguintes leituras: HELENA, Lúcia. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo, Ática, 1996. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e mo- Unidade 3 . Aula Em princípios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luís de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha comigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a ideia de se fazer uma revista literária trimestral — ideia que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para colaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e 10 leitura recomendada dernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1986. 311 25/07/2012 14:09:31 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura a ideia do próprio título da revista — Orpheu. Acolhemos a ideia com entusiasmo [...]. Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o número de páginas [...]. E ficou igualmente assente que figurariam como directores Luís de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos — Ronald de Carvalho. (Disponível em: http://www.letras.puc-rio. br/catedra/revista/4Sem_16.html. Acesso em: dez./2011). Figura 3.10.1 - Orpheu, fascículo n.º 1, Janeiro–Fevereiro–Março de 1915. Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Revista_ Orpheu Entretanto, o projeto não se desenvolveu além do segundo número, mas foi suficiente para apresentar uma nova perspectiva para a arte portuguesa (e, sem dúvida, também para a arte brasileira, como vamos entender adiante). Para o responsável pela Introdução, Luís de Montalvor, a revista tinha por objetivos “formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamentos ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico (nosso) e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos” (apud VILA MAIOR, 1996, p. 77). Tratava-se, assim, de “revelar” novos pensamentos ou formas de arte, capazes de renovar o cenário artístico, sobretudo no campo da literatura, em Portugal. Para isso, a nova estética elege expressões e visões carregadas de absurdo, em que “a inovação semântica e vocabular é assumida como prática recorrente” (VILA MAIOR, 1996, p. 81). Para compreendermos melhor as proposições do modernismo lusitano, precisamos, porém, conhecer um pouco mais o cenário histórico e cultural em que ele se desencadeou. E um primeiro fato a considerar é que Portugal vivia os primeiros anos da sua recente vida republicana: proclamada em 1910, a República representava os setores médios da sociedade que estavam preocupados com “o atraso do país, o futuro das colônias, [eram] anticlericais e antimonárquicos, assim como geralmente se mostravam antissocialistas e nacionalistas ferrenhos” (MARQUES 312 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 312 EAD 25/07/2012 14:09:32 Modernismos apud ABDALA JÚNIOR, 1999, p. 133). Essa referência “ao futuro das colônias” relaciona-se à situação portuguesa à época da eclosão da Primeira Guerra Mundial, por sua vez ligada ao acontecimento do “Ultimato”, ocorrido em 1890. Esse ultimato foi dado pela Inglaterra quando Portugal ambicionou alargar suas possessões na África, ou seja, diante das pretensões lusitanas, a resposta inglesa foi a ameaça de um confronto direto. O governo monárquico de então recuou e esse recuo foi muito mal visto pela população, aumentando as fileiras dos republicanos. Já proclamada a República, o governo português tratou de se colocar ao lado dos Aliados na Primeira Guerra, visando, assim, ao menos manter suas colônias na África diante do interesse crescente das potências europeias pelo continente africano. Isso nos permite reconhecer o seguinte quadro (Quadro 1) para o contexto histórico-social e cultural saiba mais Do segundo número da revista (junho de 1915), dirigido por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, constam textos de Angelo de Lima, Mário de Sá-Carneiro, Eduardo Guimaraens, Raul Leal, Violante de Cysneiros, Luis de Montalvor, Fernando Pessoa e Álvaro de Campos. Esta edição conta ainda com a colaboração de Santa-Rita Pintor. O terceiro número da revista não passou, por falta de financiamento, da fase das provas de página. Para este número estavam previstos textos de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Albino Menezes, Augusto Ferreira Gomes, Almada Negreiros, Thomaz de Almeida, de C. Pacheco e de Castello Moraes. Para além da falta de dinheiro para a continuidade do projeto, o grupo do Orpheu em breve se vê desagregado, para o que contribuiu a morte de Mário de Sá-Carneiro, em 1916, de Santa-Rita Pintor e de Amadeo de Sousa Cardoso, em 1918, a ida de Côrtes-Rodrigues para os Açores, de onde era natural, e o afastamento de António Ferro para outros campos como o jornalismo e a política. Fonte: http://www.cfh.ufsc. br/~magno/orpheuufp.htm português quando teve início o Modernismo: 1911 UESC CULTURA/HISTÓRIA DE PORTUGAL CULTURA/HISTÓRIA MUNDIAL Lançamento da revista A Águia Revolução republicana de 5 de outubro/ Teófilo Braga – Presidente do Governo Provisório Republicano Kandisky pinta primeira aquarela abstrata/ Manifesto da Pintura Futurista/Freud funda a Sociedade Internacional de Psicanálise/Ford produz seu primeiro automóvel em série. T. de Pascoaes: Marânus Manuel de Arriaga: Primeiro Presidente da República Portuguesa/ Reforma do Ensino Primário e Secundário/ Separação da Igreja e do Estado Prêmio Nobel para Maeterlinck/ Roald Amundsen atinge o Pólo Sul/ Teoria Atômica de Rutheford/Morre Mahler Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 313 Volume 4 Unidade 3 . Aula 1910 LITERATURA PORTUGUESA 10 Quadro 1: Contexto histórico-cultural do Modernismo Português 313 25/07/2012 14:09:32 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura F. Pessoa publica artigos 1912 1913 1914 n’A Águia/ T. Pascoaes: O espírito lusitano e o Saudosismo/ Surge o grupo da Renascença Portuguesa Congresso do Partido Republicano Mário Sá-Carneiro escreve os poemas de Dispersão e a narrativa Confissões de Lúcio Almada Negreiros apresenta sua primeira exposição de desenhos e conhece Fernando Pessoa. F. Pessoa cria os heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis e rompe com A Águia/ Sá-Carneiro Fundação da União Operária Nacional regressa a Portugal e publica Dispersão e Confissões de Lúcio 1915 Lançamento da Revista Orpheu/Publicação de obras de Fernando Pessoa: O Marinheiro, Opiário, Ode Triunfal, Chuva Oblíqua, Ode Marítima 1916 Segall: Primeira Exposição de Pintura Moderna no Brasil/ Jung: Teoria do Inconsciente Coletivo/ Einstein: Teoria Geral da Relatividade Abertura do Canal do Panamá/ Assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, da Áustria/ Início da Primeira Guerra Mundial Luta republicana e vitória contra ditadura de Pimenta de Castro Mário de Sá-Carneiro Almada Negreiros publica o Manifesto Anti-Dantas Exposição Futurista em Paris/ Ravel: Daphne e Cloé/ Morre Strindberg/ Naufrágio do Titanic em sua viagem inaugural suicida-se em Paris/ Conturbações políticas: censura à imprensa Kafka: A metamorfose/ Formação do Círculo Linguístico de Moscou, dando início ao Formalismo Russo/Auge do New Orleans Jazz Publicação do Curso de Linguística Geral, de Saussure/ Exposições de Klee e Miró Revista Portugal Futurista/ 1917 1918 Almada Negreiros: Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX Morre Santa Rita Pintor Ditadura de Sidônio Pais/ Divulgação do fenômeno de Nª. Srª de Fátima Assassinato de Sidônio Pais/Beatificação de Nuno Álvares Pereira Revolução Russa – início da União Soviética T. Tzara: Manifesto Dada/ Fim da Primeira Guerra Mundial Fonte: Adaptado de VILA MAIOR, Dionísio. Introdução ao Modernismo. Coimbra: Almedina, 1996. 314 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 314 EAD 25/07/2012 14:09:32 Modernismos Trata-se de um período de grande agitação política e cultural, destacando-se o grupo Orpheu por sua inquietação intelectual e criatividade: “a revista Orpheu deveria se afirmar como ‘a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos’ europeus e portugueses, [servindo] de momento culminante [...] de todos os ideais e teorias que as duas figuras mais proeminentes do movimento – Fernando Pessoa e Sá-Carneiro – vinham ensaiando e desenvolvendo” (REIS, 1990, p. 168). São muito claras as palavras de Fernando Pessoa sobre as perspectivas do novo grupo: Não somos portugueses que escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que escrevem para a Europa, para toda a civilização; nada somos por enquanto, mas aquilo que agora fazemos será um dia universalmente conhecido e reconhecido. [...] Não pode ser de outra maneira, realizamos condições sociológicas cujo resultado é inevitavelmente esse. Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa e avançamos para o futuro (PESSOA, 1966, p. 121-122). Como podemos perceber nas colocações acima, o Modernismo visava a uma perspectiva internacionalista, baseada na ruptura com a cultura tradicional, voltando- Unidade 3 . Aula 10 se à renovação da arte em direção ao futuro. Nesse direcionamento, “os órficos [valorizavam] exclusivamente o raro e o insólito [e] gostavam de definir a sua estética de forma tão extravagante quanto enigmática” (REIS, 1990, p. 173). Desse momento criativo derivam muitos “ismos”, pois se tratava de postular várias frentes inovadoras para arte e a cultura de modo geral, como o Paulismo, o Sensacionismo e o Interseccionismo. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 315 Volume 4 315 25/07/2012 14:09:32 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Figura 3.10.2 - Folha de rosto “Orfeu”. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/05/Orpheu1915.jpg 316 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 316 EAD 25/07/2012 14:09:32 Modernismos saiba mais Paulismo: termo que deriva [da expressão “Pauis”, colocada no início do poema “Impressões do Crepúsculo” – ver a seguir] é uma invenção de Pessoa que consiste num refinamento dos processos simbolistas. [...] «Pauis» ilustra, bem melhor que a poesia saudosista, os caracteres que Pessoa atribuíra a esta num artigo d’A Águia: o vago, o complexo, o sutil [...] O estilo paúlico define-se pela voluntária confusão do subjetivo e do objetivo, pela «associação de ideias desconexas», pelas frases nominais, exclamativas, pelas aberrações da sintaxe («transparente de Foi, oco de ter-se»), pelo vocabulário expressivo de tédio, do vazio da alma, do anseio de «outra coisa», um vago «além» («ouro», «azul», «Mistério», pelo uso de maiúsculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras («Outros Sinos», «Hora») (COELHO, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA, Porto: Figueirinhas, 1979 – Disponível em: http:// faroldasletras.no.sapo.pt/paulismo.htm). IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO (excerto) Pauis de roçarem ânsias pela minh’ alma em ouro... Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’ alma... Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma! Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo Que não é aquilo que quero aquilo que desejo... [...] Sensacionismo: O sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação - que a sensação é a única realidade para nós. Partindo daí, o sensacionismo nota as duas espécies de sensações que podemos ter - as sensações aparentemente vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental - as sensações do abstracto. Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que ele não pode ser a organização das sensações do exterior, porque esse é o fim da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto. A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem. Mas a arte deve obedecer a condições de Realidade (isto é, deve produzir cousas que tenham, quanto possível, um ar concreto, visto que, sendo a arte criação, deve tentar produzir quanto possível uma impressão análoga à que as cousas exteriores produzem). A arte deve também obedecer a condições de Emoção porque deve produzir a impressão que os sentimentos exclusivamente interiores produzem, que é emocionar sem provocar à acção, os sentimentos de sonhos, entende-se, que são os sentimentos no seu mais puro estado. A arte, devendo reunir, pois, as três qualidades de Abstracção, Realidade e Emoção, não pode deixar de tomar consciência de si como sendo a concretização abstracta da emoção (a concretização emotiva da abstracção). Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, 10 mas sensações de emoção), mas a abstracção. Não a abstracção pura, que gera a metafísica, mas a abstracção criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que a filosofia é estática, a arte é dinâmica; Unidade 3 . Aula é mesmo essa a única diferença entre a arte e a filosofia (PESSOA, In: Obras de Fernando Pessoa, v. III, Porto> Lello & Irmão, 1986; disponível em: faroldasletras.no.sapo.pt/sensacionismo.htm). Interseccionismo: Processo típico da poesia do Modernismo, paralelo às sobreposições dinâmicas da pintura futurista, e de que Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis partes de “Chuva Oblíqua” [publicadas na revista Orpheu n.º 2, de 1915], uma demonstração brilhante de inteligência estética e de capacidade inovadora. Cruzam-se aí a paisagem presente e a ausente, o atual e o pretérito, o real UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 317 Volume 4 317 25/07/2012 14:09:33 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura e o onírico: ‘Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais...’. A alma está lucidamente dividida, a hora é ‘dupla’, o autor capta subtis correspondências de sensações: ‘Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...’ Mas Pessoa cedo poria de lado essa experiência lúdica, dos ‘arredores da sua sinceridade’ (COELHO, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA, Porto: Figueirinhas, 1979 – Disponível em: http://faroldasletras.no.sapo.pt/paulismo.htm). CHUVA OBLÍQUA – Fernando Pessoa [excerto] I Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma... De um modo geral, esses “ismos” se integram no “sensacionismo, afirmando-se mais enquanto modos dessa ‘corrente estranha’ – como diz Pessoa – a que pertencem a maioria das composições do Orpheu [...]” (REIS, 1990, p. 174). Antes de passarmos ao estudo de dois dos mais importantes autores desta geração, devemos colocar em relevo uma dimensão importante quando estudamos o Modernismo português: trata-se dos “diálogos” possíveis com o Modernismo brasileiro. A esse respeito, destacamos o seguinte: 318 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 318 EAD 25/07/2012 14:09:34 Modernismos Em 1973, em comunicação apresentada na Convenção Anual do MLA — Modern Language Association, em New York, intitulada ‘Sobre o Modernismo em Portugal e no Brasil: alguns problemas e clarificações’, lembrava Jorge de Sena: Ainda estão por estudar em extensão e em profundidade as relações das vanguardas de Portugal e do Brasil, não só em 191522, mas até aos anos 40, quando durante os anos 30 e 40 os modernistas brasileiros colaboravam nas revistas modernistas portuguesas e eram nelas criticados com especial relevo. Não se trata ou não deverá tratar-se de meramente atribuir influências ou precedências, ou discutir ridiculamente quem primeiro fez seja o que for, mas de ter presente que duas literaturas na mesma língua, cujos contactos mútuos e íntimos vinham desde as origens do Brasil, necessariamente não se ignoraram durante essas décadas. Fonte:http://www.letras.pucrio.br/catedra/revista/4Sem_16.html leitura recomendada Para aprofundar seus estudos sobre as relações entre o Modernismo Português e Brasileiro, recomendamos: MARTINHO, Fernando J. B. Modernismo Português e Modernismo Brasileiro: olhas e escritas cruzadas. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p. 189-208, 1º sem. 2003. Disponível em: http://www.ich.pucminas. br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta12/Conteudo/ N12_Parte02art02. SARAIVA, Arnaldo. O Mo- Por isso é importante conhecermos sempre mais a respeito de diferentes culturas e expressões literárias, tanto mais quando possuem afinidades e interesses que foram marcados por uma história e língua comuns. dernismo brasileiro e o Modernismo português - subsídios para o seu estudo e para a história das suas relações. Porto: Porto, 1986. 3.1.1 A poética de Fernando Pessoa e Mário de 10 Sá-Carneiro UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 319 Volume 4 Unidade 3 . Aula Não é objetivo desta aula aprofundar estudos sobre a poesia de Pessoa e Sá-Carneiro propriamente. Nossa proposta é que você reconheça as principais contribuições desses autores para o movimento modernista português. Entretanto, para isso, claro, precisaremos relembrar alguns dos mais famosos poemas desses dois importantes nomes da “Geração Orpheu”. 319 25/07/2012 14:09:34 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Inicialmente, vamos relembrar no que consiste o fenômeno pessoano da heteronímia: trata-se da criação de outros poetas que, não tendo existência física concreta, receberam, por parte do seu criador, Fernando Pessoa, traços estéticos e biografias próprias. Contam-se hoje mais de setenta heterônimos reconhecidos pelos estudiosos da poesia pessoana, mas os mais completos e importantes foram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. À voz poética de Fernando Pessoa, ao Fernando Pessoa ele mesmo como se costuma designar, chamamos de ortônimo. Sobre esse processo da heteronímia devemos compreender que: A configuração dos heterônimos e a elaboração de uma constelação poética assente no princípio de diversificação (de valores, de atitudes ideológicas, de estilos literários) é o contributo decisivo de Pessoa para o Modernismo português (REIS, 1990, p. 185). Não se trata, entretanto, de um processo desvinculado do contexto histórico-cultural de seu tempo: diante da crise das certezas do Positivismo, entram em crise, também, todas as certezas sobre o sujeito e a linguagem. No lugar de um todo coerente e fechado, o sujeito passa a ser encarado como múltiplo, multifacetado e tal configuração pluralizada vem acompanhada de inovações na linguagem, da compreensão e afirmação de que a arte poética é uma construção linguística, é uma criação, um fingimento. Essa poética do fingimento nos remete ao conhecido poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa (ortônimo): Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. 320 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 320 EAD 25/07/2012 14:09:34 Modernismos E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as dores que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. para conhecer “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus”. Alberto Caieiro [Fernando Pessoa], “Poemas inconjuntos” Figura 3.10.3 - Fernando Pessoa. Fonte: http://commons.wikimedia. org/wiki/Fernando_Pessoa FERNANDO ANTÓNIO NOGUEIRA PESSOA nascido a 13 de Junho de 1988, [...] com seis anos de idade, confronta-se com a morte do pai e um ano depois, com a morte do irmão [e é quando cria seu primeiro heterónimo, Chevalier de Pas]. [...] D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, sua mãe, [casa-se] com o comandante João Miguel Rosa, entretanto nomeado cônsul interino em Durban, casamento que se realiza por procuração em 1895. Depois do casamento, mãe e filho partem para Durban, África do Sul, onde Fernando Pessoa viverá até à data do seu regresso definitivo a Portugal, no ano de 1905. [...] Vive, pois, grande parte da infância e adolescência (cerca de 10 anos) [naquele] país, onde recebe uma educação inglesa. Os seus primeiros estudos e os seus primeiros textos 10 são feitos em inglês. Fernando Pessoa nunca abandonará a língua inglesa. É através dela que trabalhará, mais tarde, já em Lisboa, como «correspon- Unidade 3 . Aula dente comercial», [quando regressa aos dezessete anos]. A sua estreia literária realiza-se na revista A Águia, com a publicação de uma série de ensaios acerca da Nova Poesia Portuguesa. A colaboração com esta revista dura, contudo, pouco tempo. [...] Na companhia de amigos como Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, Fernando Pessoa ficará para sempre associado às novas correntes modernistas [...]. O isolamento e a solidão do poeta parecem ter marcado a maior parte da sua vida, ao longo da qual, todavia, foi criando, no sentido literal do termo, novos amigos [...] os mais conhecidos, entre 1912 e 1914, a que chamou UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 321 Volume 4 321 25/07/2012 14:09:34 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. [...] A atração pelo mistério, encaminha-o para campos ocultistas na busca de uma verdade e de um conhecimento espiritual, na busca da compreensão de si próprio e de um universo que transcende em muito o campo do imediatamente visível. [...] [Já sua reflexão sobre o Portugal] culmina em termos de produção literária, com a publicação, em 1934, da sua obra Mensagem. Aí temos presente, partindo da epopeia da diáspora de Portugal que deverá ser retomada e concluída, a vontade de regeneração de um país estagnado e a referência a mitologias diversas. [...] [Nunca casou e teve uma única namorada, conforme cartas trocadas com Ophélia Queirós] e, assim, Fernando Pessoa trocou a perspectiva de um amor e de uma família por um outro chamamento, seja ele o da missão a desempenhar seja o do compromisso com a sua própria identidade e com a humanidade. Abandonado a si mesmo, à sua vida intelectual e mística, ao seu isolamento, que, aliás, marcou toda a sua existência, é sozinho que Fernando Pessoa, já profundamente desgastado pela angústia que o mina, pela constante busca de si próprio, morre no dia 30 de novembro de 1935, com 47 anos de idade. Fonte: http://www.ufp.pt/ - Universidade Fernando Pessoa – Portugal. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/vidaeobradefernando pessoa.htm. Vamos estudar esse poema, mas deixamos a você a tarefa de pesquisar sobre o título: por que “Autopsicografia”? Façamos, primeiramente, uma leitura geral do texto poético: temos três estrofes de quatro versos (quartetos), com rimas alternadas (fingidor – A/completamente – B/dor – A/sente – B; e assim sucessivamente). Percebemos que não há a presença de um eu lírico no texto, mas uma reflexão sobre o fazer poético de modo geral, pois o primeiro verso apresenta a definição do que é um poeta (todo e qualquer poeta): “o poeta é um fingidor”. Para entendermos o sentido desse fingimento, precisamos saber que o verbo fingir deriva do latim fingire e que, dentre seus significados, está o de criar, inventar. Assim, vamos substituir, apenas a título de exercício de leitura, o verbo fingir pelo verbo criar: “O poeta é um criador. Cria tão completamente Que chega a fingir (ou a criar) a dor Que deveras sente” 322 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 322 EAD 25/07/2012 14:09:34 Modernismos É claro que o texto “joga” com o sentido de fingir como simulação, falsidade, mas se pensarmos que a poesia é criação e toda criação é uma invenção, de certo modo é um faz de conta (do mesmo modo que as crianças inventam o mundo do “faz de conta” quando brincam), então não tem a ver o sentido de mentira, falsidade para o caso da arte poética. A questão é que o poeta, como criador, não pode transpor para o poema a dor que “deveras sente” (que sente de verdade), porque essa não é “traduzível”. Ele apenas pode criar uma dor que se aproxima (ou seja, é fingida, criada) da que ele realmente sente. Vamos adiante: na segunda estrofe, o leitor é colocado na reflexão: “E os que leem o que escreve” (aqueles que leem o que o poeta – fingidor, criador – escreve), na dor que leem sentem bem “não as duas que ele teve” (quer dizer, a “verdadeira” e a criada poeticamente), mas “só a que eles não têm” (pois a dor de quem lê também não é “traduzível” – apenas pode se aproximar da dor do poeta). Então chegamos na terceira e última estrofe, que sintetiza o sentido do fazer poético para Fernando Pessoa, de acordo com as linhas gerais do Modernismo: “calhas de roda” são trilhos de trem; “comboio de corda”, é trenzinho de brinquedo, movido à corda, então: quem “gira a entreter a razão” é esse trenzinho de corda “que se chama coração”. Assim, o centro da criação poética é a razão, que é entretida pela emoção, pelo coração. Não há uma sem a outra, mas 10 o trabalho poético é criação pensada, refletida a partir da vivência emocional do poeta. Agora releia o poema e UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 323 Volume 4 Unidade 3 . Aula elabore uma paráfrase sobre ele (ou seja, reelabore em prosa explicativa esse texto poético). O importante é você compreender que assim como em “Autopsicografia”, toda a obra pessoana se vale de jogos de linguagem e de sentido que exigem uma “decifração” criativa; no lugar do leitor passivo, a arte modernista vai exigir um 323 25/07/2012 14:09:35 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura “colaborador” ativo, capaz de se arriscar em novas ideias e possibilidades poéticas. Então, você já tem propostas para o sentido, ou os sentidos, do título desse poema de Fernando Pessoa? Escreva aqui: _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ Isso é o que acontece também, ainda que de modo muito diferente, claro, com a poética de Mário de SáCarneiro: nesse caso, uma palavra-chave é dispersão: [Esse poeta] concluíra que o sujeito é uma entidade pulverizada, ambivalente e virtualmente plural; e que a perda da unidade se traduz em contradição [...]. A dispersão [resultante], Mário de Sá-Carneiro traduz num poema crucial, de afirmação [...] da Modernidade (REIS, 1990, p. 188). Vamos ler um trecho desse poema a seguir (você encontra a versão integral dessa obra em: http://purl. pt/240): VI – DISPERSÃO (excerto) Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto E hoje, quando me sinto. É com saudades de mim. Passei pela minha vida 324 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 324 EAD 25/07/2012 14:09:35 Modernismos Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem. para conhecer MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO nasceu em Lisboa no dia 19 de maio de 1890. Os primeiros anos de sua vida são marcados pela dor causada com a morte da mãe, em 1892, quando ele tinha apenas dois anos. Em 1911, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, no ano seguinte, transfere-se para Universidade de Paris para dar continuidade ao curso de Direito, que não chegou a concluir. Ainda em 1912, publica a peça teatral Amizade e o volume de novelas “Princípio”. Nessa época, começa a corresponder-se com Figura 3.10.4 - Mário de Sá-Carneiro. Fonte: http:// commons.wikimedia.org/wiki/ M%C3%A1rio_de_S%C3%A1Carneiro Fernando Pessoa e já se refletem, nas cartas, o agravamento dos seus problemas emocionais e as ideias de morte e suicídio. Em 1914, além de publicar as obras Dispersão e A confissão de Lúcio, Sá Carneiro intensifica sua correspondência com Fernando Pessoa, a quem envia seus poemas e projetos de obras, revelando crescentes sinais de pessimismo e desespero. Em 1915, como integrante do grupo modernista em Portugal, participa do lançamento da revista Orpheu. No segundo volume dessa revista publica o poema futurista “Manucure”, que, ao lado do poema “Ode triunfal” do heterônimo pessoano Álvaro de Campos, provocam impacto e polêmicas nos meios literários. Ainda em 1915, regressa à Paris, onde passa por constantes crises de depressões, 10 que são agravadas por causa das suas dificuldades financeiras. Em 1916, numa carta a Fernando Pessoa, anuncia a sua intenção de suicídio, o que Unidade 3 . Aula efetivamente ocorre no dia 26 de Abril, num quarto do Hotel Nice, em Paris. Fonte: http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=337. Para aprofundar estudos sobre a vida e obra desse poeta, consulte: httt://purl.pt/246/1/P39.html. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 325 Volume 4 325 25/07/2012 14:09:35 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura No excerto, já podemos perceber a angústia do poeta, marcada desde o início pela afirmação do eu lírico: “Perdi-me dentro de mim”; entretanto, a complexidade desse texto poético só é efetivamente compreendida quando fazemos a leitura de todos os demais poemas que compõem o livro Dispersão, palavra que também dá título ao sexto poema da obra. De um modo geral, entretanto, cabe-nos compreender que Mário de Sá-Carneiro captou plenamente o espírito de quase todas as sugestões e teorias formuladas por Fernando Pessoa, exercitando-as na obra de forma [...] original. Teve assim uma participação igualmente ativa e importante na formação da estética e mentalidade modernistas, embora a sua imensa criatividade tenha sido de natureza distinta, predominantemente poética e prática (REIS, 1990, p. 175). Assim, se esse poeta não teve o mesmo ímpeto de refletir teoricamente sobre as novas formas de arte, foi um criador de grande relevância para a renovação da poesia portuguesa. 3.2 A antropofagia brasileira: para além da Semana de 22 As transformações que estavam em curso nos países europeus se refletiam em outras partes do mundo. Aqui, também ocorreu uma sucessão de fatos significativos ao longo do período de transição entre os séculos XIX e XX. Os historiadores costumam situar essa etapa da nossa história entre 1889, ano da queda da monarquia com a implantação do regime republicano, e 1930, quando se encerrou a chamada República Velha com a revolução que levou Getúlio Vargas à presidência. Foi a partir de então que o poder político do país trocou de mãos, transferindo-se da oligarquia rural para a elite citadina (PRIORE; VENANCIO, 2010). 326 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 326 EAD 25/07/2012 14:09:35 Modernismos No campo da literatura, as mudanças não foram menos significativas, pois além de Machado de Assis publicar a maioria de seus romances mais importantes nesse período, surgiram escritores com grande disposição para inovar a literatura brasileira. É o caso de Lima Barreto (1881-1922), que tirou proveito dos “processos estilísticos do folhetim publicado em jornal, transformando-os em recurso para uma estética popular do romance” (SANTIAGO, 2000, p. 101), modernizando a linguagem do gênero e ampliando a faixa de leitores. Outro escritor importante da época foi Euclides da Cunha (1866-1909), porque embora tenha dito que Os sertões (1902) “a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos” (CUNHA, 1985, p. 85), a obra se transformou num marco cultural. Em outras palavras, não surgiu como criação artística, porém com o tempo se incorporou à literatura e acabou se tornando uma obra referencial, pois “sua sombra pairou sobre a literatura brasileira com uma intensidade que excedeu de muito a seu tempo” (GALVÃO, 2000, p. 17). Considerando-se o fato de que Euclides da Cunha precisou arcar com parte das despesas para a impressão, tal repercussão não era esperada pelo editor, que certamente se surpreendeu ao ver o esgotamento da tiragem inicial em poucos meses. Podemos mencionar ainda outros fatos que evidenciam a atmosfera de inquietação do período e uma das comprovações é o aparecimento de Canaã, de Graça Aranha, no mesmo ano, provocando grande alarde. Segundo Afrânio Coutinho “A razão do êxito excepcional explica-se: era um livro revolucionário no 10 quadro das letras nacionais, inclusive no sentido social” (2004, p. 496). Seu autor continuou desfrutando de prestígio nas décadas UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 327 Volume 4 Unidade 3 . Aula seguintes, chegando a ser apontado como um dos chefes do grupo que realizou a famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo (MARTINS, 1969), no entanto sua popularidade foi diminuindo, da mesma forma como os leitores de épocas posteriores deixaram de se interessar por sua obra. Na poesia, Olavo Bilac e Alberto Oliveira estavam no auge 327 25/07/2012 14:09:35 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura da consagração, principalmente o primeiro, cuja popularidade aumentou consideravelmente por conta de sua participação em campanhas de caráter cívico. O sucesso dos parnasianos e a submissão do rigor formal de seus versos ao cientificismo ofuscaram poetas como Cruz e Sousa, determinando que enfrentasse uma “atmosfera de oposição e hostilidade” criada pelo pensamento realista e positivista dominante desde 1870 (COUTINHO, 2004, p. 323). Augusto dos Anjos também é desse período, publicando Eu e outros poemas em 1912, seu único livro e um dos grandes êxitos da nossa literatura, uma vez que as edições se sucedem continuamente até os dias atuais. Essa pluralidade de tendências literárias era fruto de um ambiente em ebulição cultural, no qual se confrontavam forças antagônicas com alto poder de explosão, como é próprio dos períodos das grandes transições entre concepções de princípios estéticos. As novas correntes se apresentavam com energia avassaladora e as direcionavam violentamente contra forças remanescentes do século XIX que ainda preservavam grande vitalidade. Para completar, o confronto se dava num clima de tensões e radicalismos em todas as áreas, favorecendo os extremismos que redundaram na eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Esse clima de confrontos entre tendências estéticas serviu de fermentação para a realização da Semana de Arte Moderna de 1922, um dos movimentos culturais mais importantes do século XX no Brasil. Na opinião de Wilson Martins, “foi o coroamento de todo um processo intelectual” (1969, p. 16), que vinha em desenvolvimento nas décadas anteriores, do qual os escritores mencionados há pouco foram os precursores. O impacto inicial do evento foi muito mais em razão do caráter provocador que assumiu (MARTINS, 1969), porém, aos poucos, seus desdobramentos se fizeram perceber, de tal forma que ao longo dos anos subsequentes se espalharam pelo país inteiro. A Semana de 1922 “foi realmente o catalizador da nova literatura, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia 328 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 328 EAD 25/07/2012 14:09:35 Modernismos de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes da renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas” (CANDIDO, 1976, p. 117-118). Em outras palavras, foi um desaguadouro de correntes com grande potencial cujas dimensões só se revelaram nos anos subsequentes. O primeiro estágio foi o mais inovador, de posições mais radicais, de mudanças mais profundas, de experimentalismos mais revolucionários e teve na poesia a forma de expressão predominante. O segundo, que se iniciou por volta de 1930, foi muito menos ruidoso e, apesar de reafirmar os avanços do grupo precedente, recorreu a padrões de expressão tradicionais. Na poesia, estrearam Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Morais, entre tantos outros, enquanto Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Verissimo são apenas alguns dos nomes que atestam a boa safra de prosadores do período. Uma das características mais marcantes do grupo foi a preocupação com os problemas sociais do Brasil, na prosa, abordados dentro de uma perspectiva regional. O aparecimento desses escritores, a chamada geração de 1930, evidencia que a de 1922 havia consolidado suas conquistas estéticas e que a partir de então nunca mais se poderia fazer como no passado: Unidade 3 . Aula 10 Por isso que todos os escritores de trinta são modernistas, no sentido de que, por trás de seu expressionismo verbal, do diálogo ou do monólogo dos seus personagens rústicos, da invenção verbal ou do corte das cenas, se sente a lição de Mário e Oswald; mas também de todos os poetas e ensaístas que de vinte a trinta romperam a barreira a separar o discurso escrito do falado (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 523). O grupo que realizou a Semana de Arte Moderna representa o desaguadouro de um processo de renovação em germinação desde os anos anteriores. A forma articulada com que apresentou suas propostas e a ousadia de algumas delas UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 329 Volume 4 329 25/07/2012 14:09:35 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura garantiram aos paulistas certo protagonismo na modernização de nossa literatura, porém seus experimentalismos marcam o momento inicial do movimento. Logo em seguida, apareceram os sinais de estabilização e da busca de equilíbrio entre o novo e os modelos tradicionais, tanto na produção de participantes da Semana quanto pelo surgimento de nomes de igual importância que consolidariam as inovações, principalmente a partir de 1930. A consolidação das inovações proporcionou o aparecimento de um grupo de escritores de muito talento. Na poesia: Esta admirável safra lírica marca um divisor de águas, para cada um de seus autores e para a poesia brasileira. São a flor suprema da fase de guerra do Modernismo, a sua expressão mais madura e mais fecunda, depois da qual virão os frutos de um decênio excepcionalmente rico para aqueles autores, para outros poetas (neles inspirados, ou divergente em relação a eles), para toda a nossa poesia (CANDIDO; ADERALDO, 1997, p. 26). A continuidade do processo de renovação iniciado em 1922 trouxe benefícios semelhantes para o desenvolvimento do romance brasileiro, provocando: [...] grande surto do romance, tão brilhante quanto o que se verificou entre 1880 e 1910, e que apenas em pequena parte dependeu da estética modernista (CANDIDO; ADERALDO, 1997, p. 29). Entretanto, os mesmos críticos reconhecem que, “sem ela, e sobretudo sem o movimento que lhe correspondeu, os novos romancistas não teriam tido provavelmente a oportunidade de se exprimirem e serem aceitos, desde logo, com o maior entusiasmo (CANDIDO; ADERALDO, 1997, p. 29-30). De um modo geral, é consenso avaliar-se que as inovações 330 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 330 EAD 25/07/2012 14:09:35 Modernismos introduzidas a partir da Semana de Arte Moderna deixaram um legado consistente e um saldo altamente positivo, traduzidos em uma série de fatores. Num apanhado breve, Afrânio Coutinho (1986) faz um balanço que pode ser assim resumido: maturidade e integração da consciência de brasilidade com mudança de mentalidade em relação as nossas produções; atualização com o fim da defasagem cultural em relação a outras partes do mundo; libertação do colonialismo mental com o desenvolvimento de um modo próprio de criar sem a submissão a modelos importados; nacionalismo no sentido de redescoberta do Brasil, criando consciência sobre a realidade brasileira; revitalização do regionalismo, das tradições e das manifestações populares, com o aproveitamento de elementos das culturas indígenas e negras, da linguagem das populações simples e, por meio de investigação sobre o passado, a formação e a vida do homem brasileiro; em suma, afirma-se a autonomia da literatura brasileira. Mais importante do que o tratamento artístico desses elementos foi o reconhecimento de que a principal particularidade da cultura brasileira é o seu caráter multifacetado. Unidade 3 . Aula 10 O aproveitamento da vasta matéria oferecida pelas vertentes culturais do país em combinação com as influências externas foram decisivos para o amadurecimento da nossa literatura, contribuindo para que ela aflorasse com a força e a pluralidade que podemos perceber a partir de 1930. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 331 Volume 4 331 25/07/2012 14:09:36 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ATIVIDADES ATIVIDADES I – Sobre o Modernismo português Para os modernistas, [...] ter um pouco de Europa n’alma” – frase de Fernando Pessoa que Sá-Carneiro destaca entusiasticamente na sua correspondência -, funcionava praticamente como uma divisa orientadora de todos os actos estéticos. Este querer-ser europeu era também sinônimo de uma dupla meta, fundamental para a compreensão do Modernismo e do seu carácter vanguardista. Tratava-se do desejo de universalidade que impunha a superação das limitadas fronteiras portuguesas e, simultaneamente, de uma vontade de ruptura com a literatura do passado que sugeria uma viragem rumo ao futuro e despertava o fascínio por tudo quanto fosse inteiramente novo (REIS, 1990, p. 170). 1) Desenvolva um comentário sobre a citação acima, apontando os principais aspectos do Modernismo português: a) apresente uma síntese sobre o momento histórico-cultural vivido na Europa e em Portugal; b) explique a importância da revista Orpheu: 2) Aponte os principais sentidos do poema abaixo e, desse modo, explique as principais características da poética pessoana, considerando-se as conclusões apresentadas nesta aula sobre o poema “Autopsicografia”: ISTO Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. 332 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 332 EAD 25/07/2012 14:09:36 Modernismos Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço, Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê! II – Sobre o Modernismo brasileiro 1) Leia o “Prefácio interessantíssimo”, a seguir, e elabore comentário a respeito do que Mario de Andrade dizia sobre: a. Inspiração X poesia b. O passado c. A renovação literária Prefácio Interessantíssimo UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 333 Volume 4 Unidade 3 . Aula 10 Leitor: Está fundado o Desvairismo. Este prefácio, apesar de interessante, inútil. [...] Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei. E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem. 333 25/07/2012 14:09:36 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura [...] Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisa-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos. Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão. [...] O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que esta dissesse: “Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastarse idealmente dela, verá o impotente desenvolverse dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações. Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei imbricá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas, não convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho. [...] Harmonia: combinação de sons simultâneos. Exemplo: “Arroubos.. Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...” Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é fase, período elíptico, 334 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 334 EAD 25/07/2012 14:09:36 Modernismos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 335 Volume 4 Unidade 3 . Aula 10 reduzido ao mínimo telegráfico. Si pronuncio “Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faço adquirir significado e que não vem. “Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, - o verso harmônico. Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética. [...] Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras frequentam-me o livro é porque pense com elas escrever moderna, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser. Mas todo este prefácio, com todo a disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi “Paulicéia Desvairada” não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo! Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se Quem não souber cantar não leia Paisagem nº 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada. Sofre: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave. E está acabada a escola poética “Desvairismo”. Próximo livro fundarei outra. E não quero discípulos. Em arte: escola=imbecilidade de muitos para vaidade dum só. 335 25/07/2012 14:09:36 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”. Fonte: www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/ jogo/pauliceia.asp. Acesso ago. 2011. 2) Releia os versos iniciais de “Poética” e: a) Descreva como o eu lírico de Manuel Bandeira se posiciona em relação à poesia. b) Em versos como “Abaixo os puristas”, percebe-se uma atitude hostil em relação ao apego a fórmulas prontas de poesia, em particular ao soneto, tão ao gosto dos poetas parnasianos. Indique outro verso que remeta ao mesmo assunto e elabore comentário a respeito. c) Os versos mencionados também fazem referência ao gosto dos parnasianos por um vocabulário mais tradicional. Indique palavras da poesia de Manuel Bandeira que podem ser associadas à proposta de renovação da linguagem literária. d) Compare os aspectos destacados nas questões anteriores com a posição de Mario de Andrade sobre literatura e elabore comentário, apontando preocupações comuns aos dois autores; dessa maneira, redija uma síntese sobre os principais aspectos do Modernismo de 22. POÉTICA Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. 336 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 336 EAD 25/07/2012 14:09:36 Modernismos Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. RESUMINDO RES RE S RESUMINDO Nesta aula, estudamos as implicações da realidade histórico-cultural no surgimento das vanguardas europeias e de UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 337 Volume 4 Unidade 3 . Aula 10 que modo elas fundamentaram, de diferentes maneiras, novas perspectivas para a arte, que se fizeram sentir nos modernismos português e brasileiro. Vimos que, em Portugal, destacaramse, entre outros, os poetas Fernando Pessoa e Mário de SáCarneiro e que, no Brasil, os participantes da Semana de 22 foram importantes renovadores da literatura brasileira. 337 25/07/2012 14:09:36 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura REFERÊNCIAS REFE R RE EFE F R REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudo de teoria e história literária. 5. ed. revista. São Paulo: Nacional, 1976. ______; ADERALDO, J. Castelo. Presença da Literatura Brasileira: Modernismo. 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UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 339 Volume 4 339 25/07/2012 14:09:37 3ª unidade AULA 11 PERCURSOS CONTEMPORÂNEOS OBJETIVOS Reconhecer os principais aspectos das relações históricoculturais que contextualizaram as expressões literárias em língua portuguesa no decorrer do século XX, bem como as questões mais relevantes presentes nas produções contemporâneas das literaturas em estudo. LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 341 25/07/2012 14:09:37 Modernismos 1 INTRODUÇÃO As mudanças introduzidas com as diferentes expressões artístico-literárias modernistas foram tomando outras formas de acordo com os novos contextos histórico-culturais que surgiam, pois, como estamos demonstrando desde o início destas nossas aulas, a arte literária encontra-se profundamente ligada à realidade histórica das sociedades. Nos anos de 1930 e 1940, escritores do Brasil e de Portugal passaram a denunciar com mais força as injustiças sociais em seus países; a eclosão da Segunda Guerra Mundial e suas consequências provocaram grandes alterações no panorama político e a arte, em suas variadas formas, acompanhou as inquietações daquele tempo. Na década de 1960, eclodiram as lutas pela independência nos países africanos colonizados por Portugal que, entre outros aspectos, acabaram por enfraquecer o regime totalitário salazarista. No Brasil, nessa mesma época, instaura-se a ditadura militar. Já no final do século passado, outros contextos se afiguram e novas questões são trazidas à cena literária. Vamos, nesta aula, conhecer os aspectos mais relevantes desse percurso contemporâneo das literaturas escritas em língua portuguesa. 2 LITERATURA E ENGAJAMENTO Unidade 3 . Aula 11 2.1 Contextos conturbados O ano de 1945 costuma ser lembrado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, com a vitória das forças aliadas diante dos exércitos liderados pela Alemanha nazista. O triunfo militar representou muito mais, pois do ponto de vista geopolítico UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 343 Volume 4 343 25/07/2012 14:09:37 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura saiba mais Revolução dos Cravos é o nome dado ao golpe de estado militar que derrubou, num só dia, sem grande resistência das forças leais ao governo - que cederam perante a revolta das forças armadas - o regime político que vigorava em Portugal desde 1926. O levantamento, também conhecido pelos portugueses como 25 de Abril, foi conduzido em 1974 pelos oficiais intermédios da hierarquia militar (o MFA), na sua maior parte capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Considera-se, em termos gerais, que esta revolução trouxe a liberdade ao povo português (denominando-se “Dia da Liberdade” o feriado instituído em Portugal para comemorar a revolução). Fonte: http://www.enciclopedia. com.pt/articles.php?article_ id=1094. você sabia? À meia noite e vinte minutos do dia 25 de abril “foi dada a senha definitiva [para o início da Revolução dos Cravos], quando foi transmitida a leitura gravada da primeira estrofe da canção ‘Grândola Vila Morena’ de José Afonso, no programa independente Limite transmitido através da Rádio Renascença. A senha definitiva confirmava o início simultâneo das operações em todo o País e comanda o avanço das forças sobre os seus objetivos”. Fonte: http://www.enciclopedia. com.pt/articles.php?article_ id=1094. Procure na internet a letra completa dessa música, bem como informações sobre a vida e obra de José [Zeca] Afonso, grande nome da música popular portuguesa contemporânea. 344 consagrou a divisão do mundo em dois blocos, um em torno dos Estados Unidos e outro sob a influência da extinta União Soviética. Por conta disso, instalouse um clima permanente de disputa indireta entre ambos os países, conhecido como Guerra Fria, que perdurou até o início dos anos de 1990. A devastação provocada pela guerra desarticulou a economia dos principais países europeus, enquanto na mesma proporção fortaleceu todos os setores produtivos estadunidenses, com seus desdobramentos culturais, dos quais o cinema e a música funcionaram como veículos propagadores de uma maneira de vida e de bens de consumo. Em Portugal, a ditadura de António de Oliveira Salazar, iniciada nos anos de 1920, experimentava diferentes desdobramentos, ora afirmando seu lado mais truculento, ora sendo confrontada com valores democráticos, como os que prevaleceram após a vitória dos Aliados. Entretanto, as forças reacionárias do governo português foram finalmente derrotadas na década de 1970, com a Revolução dos Cravos (em 25 de abril de 1974). Há muitos estudos sobre esse período, mas vale destacar que a ditadura salazarista começou a enfraquecer com a chamada guerra colonial, nomeada como guerra pela independência nos países africanos de colonização portuguesa (os PALOP, conforme já estudamos), iniciada de modo mais sistemático na década de sessenta. Já em 1956, Amilcar Cabral havia fundado o Partido Africano de Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), cujas ações de guerrilha começaram em 1961. Em Angola, no mês de março de 1962, constituiu-se a Frente Nacional pela Libertação de Angola (FNLA), que mais tarde convergiu para o Movimento Pela Libertação de Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 344 EAD 25/07/2012 14:09:37 Modernismos Angola (MPLA) e, no mesmo ano, em junho, é criada a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Quando cai a ditadura de Salazar, com a vitória da Revolução dos Cravos, entre as iniciais medidas do novo governo português estava o reconhecimento das independências dos países africanos sob colonização portuguesa, o que ocorreu entre os anos de 1974 e 1975. No Brasil, o desfecho da Segunda Guerra decretou o fim da ditadura de Getúlio Vargas e acelerou o processo de industrialização que vinha em curso nos anos anteriores. No âmbito da literatura, a morte de Mário de Andrade foi um dos símbolos do encerramento das etapas de transformação introduzidas a partir de 1922, fechamento que ele próprio já havia anunciado (MARTINS, 1969). Ao chegar à metade do século XX, as feições do Brasil haviam se modificado drasticamente e isso também se fazia observar na literatura. A denúncia das mazelas sociais passa a vigorar como temática central do chamado “romance de 30”, quando são questionadas, entre outras problemáticas da vida brasileira, atenção Você deve entender que “a história da libertação dos povos africanos das colônias portuguesas tem raízes mais profundas do que aquelas que são manifestas na sua fase contemporânea: a luta armada que conduziu à conquista das independências. Ela aparece em suas diversas formas de resistência como a produção literária de protesto e denúncia escrita pelos intelectuais autóctones, movimentos diversos nativistas, movimentos profético- messiânicos, greves e desobediência civil. Os quatrocentos anos que marcam a presença colonial de Portugal em África são marcados pela luta permanente dos povos africanos”, conforme nos aleta Carlos Serrano no site da União dos Es- UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 345 Volume 4 critores Angolanos. Disponível em: http://www. ueangola.com/index. 11 php/criticas-e-ensaios. Unidade 3 . Aula [...] a ascensão e queda dos coronéis [de que são exemplos] Bangüê e Fogo morto, de José Lins do Rego; Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus, de Jorge Amado; e O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Estes relatos oscilam entre a saga (exaltação com traços épicos) e a crítica mais contundente, seja a ideológica (Jorge Amado), seja a ética (Erico Verissimo). No caso específico de José Lins do Rego, predomina um tom nostálgico e melancólico diante das ruínas dos engenhos. [Também são problematizados] os dramas dos trabalhadores rurais: Seara vermelha, de Jorge Amado; e Vidas secas, de Graciliano Ramos. Ambos correspondem a uma impugnação da realidade latifundiária nordestina; [outro enfoque foi] o confronto entre o Brasil rural e o Brasil urbano, visível no choque entre Paulo Honório e Madalena em São Bernardo, de Graciliano 345 25/07/2012 14:09:37 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Ramos. A obra sintetiza o descompasso entre a mentalidade patriarcal-latifundiária e a urbana modernizada. Também de Graciliano Ramos, Angústia revela a solidão e a destruição de Luís da Silva, descendente da oligarquia, na teia complexa das relações citadinas. Por outro lado, tanto em A bagaceira, de José Américo de Almeida, romance inaugural do ciclo de 1930, quanto em O quinze, de Rachel de Queiroz, os personagens principais, Lúcio e Conceição – embora filhos das velhas elites agrárias – foram modernizados pela escolarização na cidade. Por isso, acabam questionando o horror da seca, da miséria e o atraso do latifúndio (GONZAGA, disponível em: educaterra.terra.com.br/literatura/resumao/resumao_122. htm). A seguir, vamos estudar alguns aspectos principais da obra de dois autores cujas temáticas centrais renovaram as literaturas de seus países, incutindo na arte literária uma perspectiva de crítica política e de denúncia: o português Alves Redol, um dos nomes mais relevantes do Neorrealismo literário português, e a obra do baiano Jorge Amado, cuja importância ultrapassou em muito as nossas fronteiras nacionais. Assim, vamos conhecer as mais relevantes linhas de força das literaturas portuguesa e brasileira, em meados do século XX, no seu intento de se configurar com um espaço de luta contra a opressão e a injustiça. 2.2 O Neorrealismo e a obra de Alves Redol Falar sobre o Neorrealismo português, em termos globais, de acordo com Carlos Reis, em Textos teóricos do Neo-Realismo português, “implica a referência a uma dupla problemática: por um lado, às motivações históricas e socioculturais subjacentes ao movimento em questão; por outro lado, a uma dinâmica de inovação literária obviamente própria de um fenômeno artístico que se apresenta como novo” (1981, p.13). 346 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 346 EAD 25/07/2012 14:09:38 Modernismos Com base na segunda problemática, a dinâmica de inovação literária, podemos encarar a estética neorrealista como movimento de ruptura: além de se posicionar contrariamente às práticas literárias que lhe eram contemporâneas, como é o caso do Presencismo, ela não deve ser encarada como um prolongamento ou nova roupagem do Realismo que a antecedeu, pois o Neorrealismo se forja no embate com as diretrizes dessa escola literária, bem como as do Naturalismo. E quais eram, fundamentalmente, essas diretrizes a que se opunha o Neorrealismo? Eram as que se apoiavam no humanismo do século XIX, que encarava a evolução da sociedade como um caminho natural em direção à justiça social. Não era necessário, nem desejável, nenhum tipo de interferência revolucionária para a transformação social. Dessa forma, aos escritores realistas cabia reproduzirem fielmente a sociedade, da forma mais objetiva e distanciada possível, numa atitude passivamente reflexiva. Quanto aos naturalistas, seguidores das noções positivistas que viam no cientificismo o caminho de todo progresso material e social, tinham suas produções literárias ancoradas na concepção do determinismo evolucionista, de caráter fatalista; paradoxalmente, o homem seria um indivíduo determinado, mas não determinante. Com relação aos modernistas, tanto do movimento Orpheu (1915) quanto da Presença (1927), esses tinham preocupações estéticas voltadas ao intimismo de conotações românticas e psicológicas. Principalmente no caso do grupo Presencista, contra o qual mais diretamente se posicionou o movimento neorrealista, é importante salientarmos que possuía uma “concepção da atividade intelectual rigorosamente asséptica em relação a UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 347 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 compromissos político-sociais” (REIS, 1981, p. 20). Justamente em oposição a todas essas posturas estéticopolíticas, fundou-se o Neorrealismo, movimento literário advindo das concepções do Novo Humanismo, como acabou sendo designado o socialismo marxista em tempos de ditadura fascista. Explicita-se, então, aqui, a primeira problemática 347 25/07/2012 14:09:38 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura para conhecer António Alves Redol nasceu em 1911, em Vila Franca de Xira. Frequentou o Curso Comercial, que concluiu em 1927 e no ano seguinte partiu para Angola, onde ficou durante três anos. A sua passagem por Angola não é muito feliz, mas traz-lhe experiências que dão uma outra visão do mundo e lhe servirão mais tarde na sua atividade literária. Em 1936, torna-se colaborador do jornal O Diabo, para o qual escreve crónicas e contos ribatejanos. Mas Redol viria a destacar-se principalmente como romancista e dramaturgo, sendo considerado um dos grandes expoentes do neorrealismo literário português. O grande exemplo disso é o seu primeiro romance Gaibéus (1939) que nas palavras do autor “não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso será o que os outros entenderem”. Essa preocupação em não se limitar à ficção e partir da experiência vivida e documentada será um traço fundamental da sua obra. Como romancista Alves Redol destaca-se ainda pelas obras Marés (1941); Avieiros (1943); Fanga (1944); Reinegros (1945); Porto Manso (1946); Ciclo Port-Whine, composto de três romances escritos entre 1949 e 1953; A Barca dos Sete Lemes (1958); Uma Fenda na Muralha (1959) e Barranco de Cegos (1962), a sua obra-prima. Alves Redol morreu em Lisboa, em 1969. Fonte: http://www.citi. pt/cultura/artes_plasticas/ desenho/alvaro_cunhal/ redol.html 348 do Neorrealismo, já apontada por Carlos Reis (1981): a conjuntura histórica e sociocultural que subjaz a esse movimento, inaugurado em 1939 com o romance Gaibéus, de Alves Redol. Um dos temas mais caros ao Neorrealismo foi o da alienação social, entendida como a imposição de toda uma ordem de poder que impede aos homens o reconhecimento de sua efetiva condição na realidade em que estão inseridos. Romper com esse impedimento, revelando as contradições que sustentam a manutenção da desigualdade social, era uma das tarefas mais prementes para a arte comprometida como se definia a neorrealista. Não se pode perder de vista que o Neorrealismo deu seus primeiros passos em meio à Guerra Civil Espanhola, à ascensão do fascismo e à crise mundial que fará eclodir a II Guerra. Foi diante dessa conjuntura que os intelectuais polarizados em torno do ideário comunista começaram a questionar o então quadro artístico e cultural que vigorava em Portugal, no qual a Presença despontava como proposição estética mais afirmada, e à qual o Neorrealismo reputava a negativa proposição de se limitar à arte pela arte. Nesse clima de polêmica, Alves Redol publicou Gaibéus (1939), mas o movimento foi muitas vezes criticado por impor um peso político excessivo na arte. Sobre esse aspecto, anos mais tarde se pronunciou o autor, reconhecendo alguns excessos como legítima força de combate da juventude contra as injustiças sociais de seu tempo: O que pode suceder em dado momento, quando alguns insistem em traçar limites para a literatura, entendendo que lhes está vedado exprimir, por exemplo, os dramas quotidianos de um povo, é que outros reajam contra essa limitação, trazendo exactamente ao primeiro plano as alienações sociais de que é vítima o homem. Foi o que aconteceu aí por 38-39 com o neorealismo, que quis ser mudança de perspectiva na literatura e, portanto, uma nova experiên- Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 348 EAD 25/07/2012 14:09:38 Modernismos cia para o seu enriquecimento. Como, porém, esses outros escritores se vangloriavam de sua posição extrema de arte pela arte, desfigurandoa, a reacção operou-se também por outro excesso, fenómeno natural no jogo das contradições, principalmente quando vem de jovens que se supõem, e ainda bem, capazes de renovar o mundo, o homem e arte. O neo-realismo foi, assim, um sadio combate da juventude (REDOL, Prefácio da 6ª edição de Gaibéus, 1965, p. 32 a 36). O importante é assinalarmos que esse processo de autorreflexão foi uma constante do movimento que, num tempo de censura e opressão, reconhecia na arte um canal de conscientização e resistência. Isso significa que o propósito da arte, para os neorrealistas, era a crítica social capaz de desalienar o povo, estabelecendo, assim, a mais intrínseca conciliação da ética com a estética. Foi o que afirmou em conferência realizada em 1936, na sua província de Vila Franca de Xira, intitulada “Arte”: “A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social” (SALEMA, 1980, p. 28). Com essa premissa, mais do que fator de verossimilhança, a participação da História no mundo do romance neorrealista implicava a busca pela ampliação do conhecimento histórico. De tal sorte que procurava garantir à literatura a função de propiciar a transformação da sociedade. Para conhecermos um pouco mais a escrita redoliana, reproduzimos, abaixo, uma passagem de Gaibéus: O rancho esqueceu as cantigas e só sabe que a alguns passos dali o almoço magro ferve nas marmitas. O ceifeiro rebelde pensa que depois do almoço a faina 11 recomeça. E recomeça mais dura. E vai até o Sol morrer nos montes da Unidade 3 . Aula outra margem do Tejo. No outro dia, ao alvor, pegam de novo na foice. Dia a dia, todos os dias, a foice pesará mais. Podia servir para brinquedo de criança ou diadema de noiva - parece prata ao sol quando a compram pela primeira vez. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 349 Volume 4 349 25/07/2012 14:09:38 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura A cada nova hora, porém, a foice tem metamorfoses. Ora fica leve como pluma, ora carrega como barra de chumbo. Para o ceifeiro rebelde não passa de grilheta que o prende à terra, em cumprimento de pena por males que não fez. A caverna do peito é nave vazia onde se desdobram angústias. leitura recomendada No artigo de Maria de Fátima Vaz de Medeiros, “O Neo-realismo português e o romance de 30 do nordeste”, você importantes encontra abordagens sobre esse tema, como a citação do professor Carlos Reis (em “Evolução literária”, de Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, Lisboa, Seara Nova/Editorial Comunicações, 1981, p. 27): “o romance brasileiro nordestino [...], por razões culturais e até afectivas, representou, mais do que qualquer outro, o Vemos, nesse trecho, algumas características da escrita neorrealista: a dimensão do coletivo, os personagens que não são nomeados, mas representam um perfil social (como o “ceifeiro rebelde”), a crítica à situação de extrema penúria dos trabalhadores. Entretanto, nem todos os textos neorrealistas foram tão marcadamente dirigidos por uma perspectiva engajada de forma explícita. O próprio Alves Redol desenvolveu romances mais densos posteriormente, povoados de personagens complexos e que, sem abandonar a crítica social, conseguiam seu intento de forma mais equilibrada, afirmando a importância artística de suas obras. Um aspecto importante sobre o Neorrealismo é que esse movimento travou um diálogo muito próximo com o chamado “romance de 30” brasileiro, ou seja, os neorrealistas encontraram uma vertente importante de reflexão estética nos autores brasileiros também engajados em questionar e denunciar os problemas sociais de seu país. Dentre esses, destacamos, a seguir, a obra de Jorge Amado. modelo preferido pelos escritores neorrealistas” Além disso, pode-se reconhecer 2.3 A arte engajada de Jorge Amado a existência de uma “linguagem da geração [...] de códigos, quer de natureza estritamente literária (códigos estilísticos, técnico narrativos, etc.), quer paraliterários temáticos e (sobretudo ideológicos) [...].” (Grifos nossos). Disponível em: http://docs.paginas.sapo. pt/literatura_comparada/ medeiros1997.pdf 350 Os romances de Jorge Amado se igualam aos de outros escritores apontados como responsáveis pela renovação literária instaurada com o aparecimento da chamada segunda geração modernista, justificando a inclusão de seu nome na lista. A linguagem despojada e o estilo de “contador de histórias como gostava de dizer” (RISÉRIO, 2007) são apenas fatores que se somam a outros que determinaram Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 350 EAD 25/07/2012 14:09:38 Modernismos a receptividade que teve, certamente também influenciando a decisão de editores estrangeiros. A observação da tradição romanesca nacional revela que o autor baiano se inscreve na linha de sucessão iniciada por José de Alencar e que tem continuadores como Aluísio Azevedo, Lima Barreto, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, dentre tantos, pela contribuição para o abrasileiramento da paisagem literária. Prosseguindo na comparação com seus pares, seu nome é digno de ser colocado junto ao de Erico Verissimo, Machado de Assis, João Ubaldo Ribeiro, Josué Montello e outros que, de maneira diferente, apresentam excelentes painéis de momentos importantes da vida nacional. Todos os fatores apontados prestam-se como critérios para a aferição da relevância de um escritor, na opinião de Marisa Lajolo (2004), que também se refere à criação de símbolos, item no qual poucos podem ser equiparados a Jorge Amado. Afinal, é sua criação uma das figuras femininas mais representativas não só da literatura, mas de todo um imaginário criativo do país: Em uma de suas obras mais conhecidas – Gabriela cravo e canela (1958) –, mais uma vez o leitor encontra uma figura feminina no título da obra e pivô da narrativa. Como já sucedera em Iracema e Inocência, imagens fortes de mulher pontilham o romance brasileiro e se transformam em símbolos, como esta Gabriela que ganhou mundos (LAJOLO, 2004, p. 103-104). O parentesco dos romances de Jorge Amdo com as produções de cultores do gênero pode ser identificado 11 por outros caminhos, como a classe social e o espaço físico predominantes nas obras. Da mesma forma como na UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 351 Volume 4 Unidade 3 . Aula comparação pelas particularidades referidas, os ancestrais estão ligados à origem da forma no Brasil e a momentos marcantes do seu desenvolvimento. No caso de Tenda dos milagres, as personagens marginalizadas e o mesmo ambiente urbano 351 25/07/2012 14:09:38 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura para conhecer Jorge Leal Amado de Faria (Jorge Amado) nasceu a 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas, município de Itabuna, sul do Estado da Bahia. Filho do fazendeiro de cacau João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado. Com um ano de idade, foi para Ilhéus, onde passou a infância. Fez os estudos secundários no Colégio Antônio Vieira e no Ginásio Ipiranga, em Salvador. Neste período, co- Figura 3.11.1 - Jore Amado. Fonte: www.jorgeamado.org.br meçou a trabalhar em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores da Academia dos Rebeldes. Publicou seu primeiro romance, O país do carnaval, em 1931. Casou-se em 1933, com Matilde Garcia Rosa, com quem teve uma filha, Lila. Nesse ano publicou seu segundo romance, Cacau. Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935. Militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez longa viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se de Matilde Garcia Rosa. Em 1945, foi eleito membro da Assembleia Nacional Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo sido o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo. Jorge Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto religioso. Nesse mesmo ano, casou-se com Zélia Gattai. Em 1947, ano do nascimento de João Jorge, primeiro filho do casal, o PCB foi declarado ilegal e seus membros perseguidos e presos. Jorge Amado teve que se exilar com a família na França, onde ficou até 1950, quando foi expulso. Em 1949, morreu no Rio de Janeiro sua filha Lila. Entre 1950 e 1952, viveu em Praga, onde nasceu sua filha Paloma. De volta ao Brasil, Jorge Amado afastou-se, em 1955, da militância política, sem, no entanto, deixar os quadros do Partido Comunista. Dedicou-se, a partir de então, inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de 1961, para a cadeira de número 23, da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono José de Alencar e por primeiro ocupante Machado de Assis. A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema, teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de samba em várias partes do Brasil. Seus livros foram traduzidos para 49 idiomas, existindo também exemplares em braile e em formato de audiolivro. Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001. Foi cremado conforme seu desejo, e suas cinzas foram enterradas no jardim de sua residência na Rua Alagoinhas, no dia em que completaria 89 anos. A obra de Jorge Amado mereceu diversos prêmios nacionais e internacionais. [...] Jorge Amado orgulhava-se do título de Obá, posto civil que exercia no Ilê Axé Opô Afonjá, na Bahia. Fonte: http://www.jorgeamado.org.br 352 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 352 EAD 25/07/2012 14:09:39 Modernismos ocupado por elas também estão presentes em Memórias de um sargento de milícias e O cortiço, por exemplo, mas quando se abre a perspectiva para problemas sociais num sentido amplo, a lista aumenta consideravelmente. O tratamento literário de assuntos que remetem a questões do cotidiano, a segmentos da população menos favorecidos é recorrente em sua obra: Seu herói é mesmo o povo e disso o romancista faz uso constante e credo sincero, profundo e autêntico, conquanto se alternem maneirismos ou contrafações hostis. O romance amadoano atinge uma dupla acepção de ressonância coletiva, (disparada sem qualquer sutileza) no ir e vir das repercussões entre a criação e a leitura (ARAÚJO, 2008, p. 83). Manuel Antônio de Almeida e Aluísio Azevedo lidam apropriadamente com a temática social, entretanto suas personagens são tipos e as escolhas lexicais que fizeram passam longe da magnificência, sem que isso os diminua ou seja fundamental para uma avaliação favorável dos citados romances. A exemplos dos dois prosadores do passado, são outros os pontos de interesse nos escritos de Jorge Amado: 11 Há que distinguir três espécies de romancistas: o criador de tipos; o criador de linguagem e o que, ao gerar tipos, gera a linguagem. Ora, Jorge é um dos mais prodigiosos criadores de tipos da nossa literatura, e o seu estilo serve, propositadamente, a esse desígnio (NEJAR, 2007, p. 297). UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 353 Volume 4 Unidade 3 . Aula Por tudo isso, Jorge Amado encontra-se entre os mais importantes autores brasileiros de todos os tempos e seus livros ultrapassaram as nossas fronteiras, sendo justamente reconhecido como um dos autores brasileiros mais traduzidos no mundo. 353 25/07/2012 14:09:39 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura para conhecer Faça um passeio virtu- al pela Fundação Casa de Jorge Amado, onde você encontra peças do acervo do autor, exposições e outras relevantes informações sobre a vida e a obra de Jorge Amado. Disponível em: http://www.jorgeamado. dreamhosters.com/?page_ É importante sabermos que, do mesmo modo como o Neorrealismo português bebeu na fonte da literatura brasileira de engajamento social, a obra de autores como Jorge Amado também foram uma referência muito forte nos países africanos de língua portuguesa. Reproduzimos, a seguir, trechos de uma bonita palestra do escritor Mia Couto, apresentada em São Paulo, em 2008, por ocasião do relançamento de livros de Jorge Amado, em que esse autor moçambicano fala sobre a profunda impressão dos romances do escritor baiano na sua formação e, por extensão, na formação de muitos moçambicanos: id=75 Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte: Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na génese da literatura dos países africanos que falam português. [...] Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário colectivo. É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Raquel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos outros. [...] Neste breve depoimento eu gostaria de viajar em redor da seguinte interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por que esta adesão imediata e duradoura? [...] É evidente que a primeira razão é literária, e reside inteiramente na qualidade do texto de escritor baiano. [...] Jorge Amado soube tratar a literatura na dose certa, e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de histórias e um notável 354 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 354 EAD 25/07/2012 14:09:40 Modernismos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 355 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 criador de personagens. [...] Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa íntima, uma conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado, Jorge vai desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a nossa vida quotidiana. [...] Esta familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. Os seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos. [...] Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a África. Havia, pois, uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um espaço mágico onde nos renascíamos criadores de histórias e produtores de felicidade. Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio. Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a explicar porque Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros motivos, talvez mais circunstanciais. Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial. As obras de Jorge Amado eram objecto de interdição. Livrarias foram fechadas e editores foram perseguidos por divulgarem 355 25/07/2012 14:09:40 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura essas obras. O encontro com o nosso irmão brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da clandestinidade. A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da liberdade também contribuiu para a mística da escrita e do escritor. O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das grades uma carta em que pedia o seguinte: “Enviem o meu manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele consegue publicar lá, no Brasil...” Na realidade, os poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma bandeira. [...] E há, ainda, uma outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua. Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso. [...] Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge (COUTO, 2009, p. 61-67). O sonho de que fala Mia Couto, nesse relato tão emocionado e emocionante, continuou e continua a ecoar, de diferentes modos, em nossas literaturas. No tópico seguinte, vamos estudar as transformações que marcaram o final do século XX e o início do presente século e como essas mudanças repercutem nas atuais literaturas de língua portuguesa. 356 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 356 EAD 25/07/2012 14:09:40 Modernismos 3 NOVOS CENÁRIOS, NOVOS ATORES Na passagem do final do século XX ao século XXI, muitas são as mudanças mundiais. Como síntese dessas mudanças, podemos destacar: [...] as grandes movimentações e transformações históricas (de que a queda do Muro de Berlim se torna o acontecimento mítico); políticas (com Gorbachov dando início à queda do império soviético e do socialismo através da Glasnost, e os EUA tornando-se a nação hegemônica e, como tal, impondo-se ao mundo); geográficas (com as movimentações de fronteiras); econômicas (com a abertura da China ao capital estrangeiro e com a queda das barreiras ao leste europeu) [...] E, nisso tudo, o grande avanço tecnológico, sobretudo no que diz respeito às comunicações, inaugura a mundialização [globalização] [...], a beneficiar o avanço neoliberal, aprofundando as valas entre países ricos e pobres (TUTIKIAN, 2008, p. 42). Unidade 3 . Aula 11 Nesse novo cenário, prevalece o sentimento de certa instabilidade de sentidos para a vida social, com o processo de fragmentação do sujeito e a imposição de uma lógica individualista e de consumo. Contudo, não cessa a necessidade humana de ficcionalizar esses novos tempos e espaços, questionando, de maneiras diversas e por meio das mais variadas expressões artístico-culturais, o presente. Gêneros se fundem, linguagens se entrecruzam e, do mundo real ao mundo virtual, a literatura continua sendo um espaço importante para conhecermos e refletirmos sobre a nossa vida. UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 357 Volume 4 357 25/07/2012 14:09:40 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 3.1 Perspectivas contemporâneas na cena brasileira No Brasil, os anos de 1970 ficaram marcados por uma literatura de combate ao regime militar, de que são exemplo, entre outros, Mês de cães danados (Moacyr Scliar), Em câmara lenta (Renato Tapajós), Cabeça de papel (Paulo Francis), Galvez, o Imperador do Acre (Márcio Souza), Quatro-Olhos (Renato Pompeu), Essa terra (Antonio Torres), Incidente em Antares (Erico Verissimo), bem como a obra de Antônio Callado e Loyola Brandão. Os anos de 1980 iniciam com a tendência do autobiografismo relacionado com a ditadura, como é o caso de Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e outros. Isso abre caminho para derivações, como fizeram Eliane Maciel e Marcelo Rubens Paiva. Em meados dessa década, também se assistiu a um retorno de temas tradicionais sobre a fundação da nação, que se verifica em obras como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. A década de 1990 prenunciou aquilo que tem sido o século XXI: a convivência de tendências que adotam técnicas, estilos e formas de expressão diversas. Para Schollhammer (2010), nesse convívio destaca-se a permanência de elementos de décadas anteriores, como a retomada do conto, forma comum nos anos de 1970, que recobram força a partir de figuras como Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, expandindo-se na escrita de autores como Roberto Drummond e mais recentemente Patrícia Melo. Outros escritores em destaque na década final do século passado são Luiz Ruffato e Amilcar Betega Barbosa, que combinam os temas da realidade sem abrir mão do compromisso com a inovação das formas de expressão e das técnicas de escrita. Fenômeno recente é a literatura marginal, caracterizada por estabelecer o contato com a realidade brasileira sob perspectiva dos excluídos, marginalizados. Um marco é Estação Carandiru (2001), de Dráuzio Varela, sucedido por outros, como Cidade de Deus, de Paulo Lins. A literatura de caráter autobiográfico é uma forma de 358 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 358 EAD 25/07/2012 14:09:40 Modernismos expressão, por vezes nos limites extremos, como em O filho eterno (2007), de Cristovão Tezza. Há outros, porém, em que os sinais da pessoalidade são menos visíveis, como em Berkely em Belagio (2002) e Lorde (2004) de João Gilberto Noll. A metaficção reapareceu nos anos recentes e é do interesse de autores como Bernardo Carvalho com Nove noites (2002) e O sol se põe em São Paulo (2007); Adriana Lisboa, com Sinfonia em branco (2001) e Um beijo de Colombina (2003); Daniel Galera com Mãos de cavalo (2006) e A cordilheira (2008). Outro nome importante é o de Milton Hatoum, que passaremos a conhecer mais detidamente, como um dos exemplos de temática e de estratégias narrativas da literatura brasileira contemporânea. Milton Hatoum, escritor e professor de Literatura, filho de imigrantes libaneses, nascido em Manaus, em 1952, adota, como cenário significativo em suas obras, a cidade de seu nascimento. Nesse espaço, seus romances apresentam variadas temporalidades que, em diálogo com o presente, nos permitem (re)conhecer diferentes perspectivas da vida brasileira do passado e do presente. Em seu primeiro romance, de 1989, Relato de um certo Oriente, ganha destaque o trabalho com a memória, com as tensões da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos variados das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família central da trama narrativa, de origem libanesa, é um microcosmo em que essas tensões aparecem, a partir de uma composição do tecido narrativo em UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 359 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 que se complementam “versões” de diferentes vozes. Dois Irmãos (2000), segundo romance do autor, é outro drama familiar, em que a história apresenta como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana, também um casal de libaneses, que tem três filhos: Rania e os gêmeos Yaqub e Omar, os quais nunca se entendem e travam constantes disputas, numa inferência direta ao mito bíblico de Caim e Abel, somando- 359 25/07/2012 14:09:40 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura Essas considerações sobre a obra de Milton Hatoum, aqui sintetizadas, encontram-se no artigo “Fronteiras e(m) representação na obra de Milton Hatoum”, de RODRIGUES, I.; NIEDERAUER, S., publicado na revista Língua e Literatura, URI, F. Westphalen, v. 13., n. 20, ago/2011. Disponível em: http://www.fw.uri.br/ publicacoes/linguaeliteratura/artigos/art20_9. pdf. se a babélica situação de vozes que se desencontram. Mais do que desencontros, entretanto, a narrativa é marcada pela problematização do deslocamento enquanto situação daquele que vive entre mundos diferentes, por vezes próximos, por vezes distantes, e sempre provisórios. No romance Cinzas do Norte (2005), Milton Hatoum estabelece o entrecruzamento da História com a ficção partindo do ponto de chegada do romance anterior, ou seja, por intermédio das lembranças, principalmente, de dois personagens narradores, Lavo e Ranulfo, realizase o resgate crítico da época da ditadura militar, de 1964, até a década de 1980, no Brasil. Esse resgate denuncia os sofrimentos e as tragédias ocorridas durante aquele período tortuoso, duramente contestado pelo personagem Mundo, que não aceita o cerceamento da liberdade imposto pelo regime ditatorial, refletido na figura de seu pai, Jano. Como contraponto a Mundo, o comportamento de Lavo é o de um indivíduo conformado com o sistema. No quadro que compõem, os personagens estabelecem o testemunho de uma época, em que procurar um norte resulta no encontro de cinzas, permanecendo o tema do deslocamento, como aponta a epígrafe: “Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares” [João Guimarães Rosa]. Em Órfãos do Eldorado (2008), o autor retoma os principais conteúdos da sua ficção, em uma estratégia discursiva na qual enunciação e enunciado se entrelaçam e o Eldorado se revela e se esconde nas teias possíveis da interpretação. No posfácio, o autor (vamos chamá-lo assim, embora se possa entender que essa voz autoral também faz parte do jogo narrativo) relata que o livro foi escrito a partir de suas memórias sobre as histórias contadas por seu avô, seguindose os agradecimentos, no qual explica que, além desses relatos, também foram realizadas pesquisas no processo de construção ficcional. Nesses percursos da enunciação, (des) velam-se as malhas do enunciado que dão substância ao mito 360 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 360 EAD 25/07/2012 14:09:40 Modernismos – narrativa que vive na fronteira da realidade e da fabulação, do sono e da vigília. Entretanto, na novela de Hatoum, a miragem de um não lugar aponta para a impossibilidade da utopia e nos faz olhar criticamente para o presente. 3.2 As literaturas dos PALOP: problematizações da memória e da história A problematização da memória e de questões identitárias também está presente nas literaturas dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). A literatura, nesses países, como sabemos, foi espaço fundamental de luta contra a opressão e a dominação colonial, mas posteriormente às independências, se compõem de um panorama multifacetado de proposições temáticas e de linguagem. Apresentamos, a seguir, um panorama sintético sobre alguns dos principais nomes e composições literárias dos PALOP de meados do século passado até a atualidade. Começaremos pela literatura angolana que teve como destaque, entre outras, a obra de Agostinho Neto: Sagrada Esperança é uma “espécie de texto épico angolano social, cultural e político, sobre a exploração econômica, a repressão policial e política, a miséria e o analfabetismo [...], do amor e da esperança, do exílio e da nostalgia, da revolta e revolução” (PORTUGAL, 1999, p. 63). No período imediato à Independência, destacam-se, entre outros, Pepetela e Luandino Vieira. Sobre o primeiro, devemos saber que UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 361 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 Pepetela [é o], nome artístico de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941, [considerado] um dos maiores escritores angolanos, ligado a uma vertente ficcional que assume, por vezes deliberadamente, a função social da literatura. Seus vários romances registram a intenção de permanecer junto daqueles que ficaram do lado de 361 25/07/2012 14:09:40 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura fora na distribuição do “mel”, metáfora com que o autor, implícito no romance Jayme Bunda, agente secreto (PEPETELA, 2001, p. 85), alude à perversa divisão de renda e de direitos que o panorama do pós-independência angolano acentua. O escritor publicou três romances no período anterior à independência: As aventuras de Ngunga (1977), Muana Puó (1978) e Mayombe (1980). Os demais livros foram publicados após a independência, e neles pode ser identificada uma revisão melancólica da utopia revolucionária, como em A geração da utopia (1992), mas também se acentua a visão irônica sobre os desmandos da classe que assumiu os destinos da nova nação. O romance A gloriosa família (1997) faz uma incursão pela história de Angola e retoma dados importantes relativos aos interesses de diferentes poderes, expondo as armações necessárias à sustentação dos negócios gerenciados por aventureiros de várias nacionalidades durante o longo e lucrativo período do comércio de escravos (FONSECA; MOREIRA, disponível em:http:// www.ich.pucminas.br/posletras/ Nazareth_panorama.pdf.). . Outros nomes importantes são o de Ruy Duarte de Carvalho, Ana Paula Tavares, Manuel Rui, Agualusa, entre tantos autores e autoras de reconhecida importância no cenário atual das literaturas em língua portuguesa. Em Moçambique, “Craveirinha é, sem dúvida, o ‘poeta nacional’ por excelência, com tudo o que isso significa na consolidação e na referência de um sistema literário nacional [...]” (PORTUGAL, 1999, p. 94). Na prosa, destacou-se, em 1964, Eduardo Honwana com Nós matámos o cão tinhoso, e que vem desenvolvendo uma importante obra narrativa sobre os caminhos de seu país. A partir de 1975, podemos falar da consolidação dessa literatura, destacando o poeta Rui Nogar, os romancistas Ungulani Ba Ka Khosa, Nelson Saúte, Paulina Chiziane e o já citado Mia Couto, também poeta, que estreou em 1986, com Vozes anoitecidas e é considerado “um dos autores 362 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 362 EAD 25/07/2012 14:09:40 Modernismos mais inovadores da língua portuguesa, com uma obra ficcional cada vez mais consolidada (PORTUGAL, 1999, p. 95). Em Cabo Verde, foi na década de 1970 que se consolidou a sua literatura, com nomes como João Vário, Timóteo Tio Tiofe, Corsino Fortes e Teixeira de Sousa. Autores importantes que se destacam hoje, mas que vêm desenvolvendo sua obra desde o momento pós-independência, são Germano Almeida e Arménio Vieira, entre outros. Sobre a atual literatura de São Tomé e Príncipe e GuinéBissau, citamos a resposta da professora Inocência Mata, em uma entrevista à Revista Crioula (n. 5, de maio de 2009), quando foi questionada se já estão consolidados os sistemas literários desses países na atualidade: UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 363 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 Claro. A questão é que nós continuamos a pensar a África a partir do olhar da ex-metrópole. Estudar a África pelo prisma do excolonizador é um crime intelectual. O fato de um escritor não ser publicado em Portugal não quer dizer que ele não exista. [...] Existe pois, nestes países, um sistema consolidado com livros que estão publicados. [...] O que nós vemos, [entretanto] é que os escritores que não são publicados em Portugal não são estudados. Salvo raríssimas exceções. [...] é verdade que Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe não têm a produção que tem uma Angola. [Mas] é uma questão, enfim, de números. Em São Tomé são 160 mil e os angolanos são 14 milhões… No entanto, acho o seguinte: nós vivemos no mundo, dizem, das autoestradas da informação, da internet e as pessoas devem procurar saber, mesmo que não tenham acesso, o que saiu. A imprensa desses países faz-se também com jornais digitais. Esta informação está lá. A informação de que foi publicado um livro de Malé Madeçu, Retalhos do massacre de Batepá, a informação de que foi publicado um livro em Cabo Verde. [...] O que me incomoda muitas vezes é que nem sabem que existe. Por exemplo: Aíto Bonfim, escritor são-tomense, que não é um escritor tão jovem assim, tem 55 363 25/07/2012 14:09:40 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ou 53 anos. Muitos não o conhecem, mas é um escritor maravilhoso. É dramaturgo, tem três peças de teatro, tem dois livros de poesia, um romance. Um escritor, na minha perspectiva, um dos melhores. Pois não o conhecem. Agora, é realmente a literatura são-tomense uma literatura consolidada, é pena que não tenha a condição de uma Angola, que é uma das maiores produtoras. (Disponível em: http://www.fflch.usp. br/dlcv/revistas/crioula/edicao/05/ Entrevista%20-20Inocencia%20Mata.pdf) Portanto, seguindo as palavras de Inocência Mata, nos cabe conhecer cada vez mais essas literaturas que, abarcando uma realidade local, apontam para questões que nos dizem respeito, numa arquitetura renovadora de linguagens e de sentidos. 3.3 A literatura portuguesa entre a retomada da história e novos rumos Nas décadas de 1950 e de 1960, ganha terreno, após a Segunda Guerra e todos os seus tristes desdobramentos, uma perspectiva mais centrada no indivíduo, ainda que sem abrir mão de uma dimensão social crítica. A literatura portuguesa, com Vergílio Ferreira, sobretudo, conhece uma expressão artística centrada em traços do Existencialismo e o Neorrelismo vai perdendo espaço, ou por outra, vai se reconfigurando em outras modalidades de representação questionadora da realidade social. Na poesia, nomes importantes que chegaram à atualidade, são os de Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugênio de Andrade e António Ramos Rosa, Herberto Helder. Na ficção narrativa, são importantes as obras de Augustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho e, mais recentemente, Teolinda Gersão e Lidia Jorge. Destacam-se, também, na criação de romances, 364 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 364 EAD 25/07/2012 14:09:41 Modernismos José Cardoso Pires, António Lobo Antunes e o prêmio Nobel em língua portuguesa, José Saramago. Em comum, esses autores trataram de estabelecer, de modos muito diversos e não raro divergentes, um diálogo com a história de Portugal, de cunho mais alegórico ou mais “realista”, procurando problematizar versões do chamado discurso oficial. Ou seja, esses escritores e escritoras desenvolveram narrativas que com ironia, humor ou de forma muito incisivamente crítica apontam novas perspectivas para se pensar Portugal. Na verdade, é sempre muito difícil fazermos uma síntese de qualquer expressão literária de um país ou de uma determinada cultura ou sociedade. Essa advertência encontramos no site sobre a Literatura Portuguesa Contemporânea do Instituto Camões, que reproduzimos abaixo: para conhecer Sobre a obra de José Saramago, sua vida e importância de sua produção literária, você encontra muitas informações tantes na imporFundação José Saramago, acessível pelo site: http:// josesaramago.blogs. sapo.pt/95699.html. Visite! Unidade 3 . Aula 11 Muitos outros romancistas e poetas enriquecem a nossa literatura e tornam difícil a sua síntese. Os contemporâneos são isso mesmo: o excesso em relação ao olhar do crítico, o transbordar da vida e da sua continuidade inesgotável em relação ao crivo do historiador. Fiquemos, ainda, pois, com poetas como Egito Gonçalves, Nuno Júdice, Vasco Graça Moura, António Franco Alexandre, João Miguel Fernandes Jorge, Paulo Teixeira - e o mesmo diremos dos escritores de ficção: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Hélia Correia, Alexandre Pinheiro Torres, Eduarda Dionísio e tantos outros. São todos estes, aliás, aqueles de que não chegámos a falar e os que nem sequer nomeámos, que dão sentido [e nos fazem sentir] o quanto a literatura é viva e desmedida, porque ela é antes de mais leitura e tempo, e não fixidez, e não cabe afinal em nenhuma página (Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/literatura/contemporaneos.htm). Para finalizarmos, a certeza de que esse nosso percurso não se completa, pois, como parte da magia e da dimensão UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 365 Volume 4 365 25/07/2012 14:09:41 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura ética e crítica de toda a arte, as literaturas de língua portuguesa continuam inventando mundos, elaborando poemas, apresentando vozes e sentidos de nossa existência. Nesse incessante fazer, nos cabe, como leitores, mantermos acesa a nossa curiosidade por conhecer outros lugares e tempos e por viver outras vidas que nos são oferecidas pela criação literária – assim, quem sabe, conseguiremos atingir melhor esse infindável intento que é o de conhecermos melhor a nós mesmos. É o que lemos, de maneira tão bela e instigante, no poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar: Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte será arte? 366 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 366 EAD 25/07/2012 14:09:41 Modernismos ATIVIDADES ATIVIDADES 1. Em A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge Amado, (disponível em: http://veja.abril.com.br/150801/ quincas.html), encontramos uma dimensão crítica em relação à sociedade que é retratada na narrativa? Explique, elaborando uma síntese desse texto, no qual seja possível reconhecer os principais aspectos da obra de Jorge Amado. 2. Para responder a esta questão, você deverá realizar a leitura de três textos: do excerto do conto “As águas do tempo”, de Mia Couto (abaixo), do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa (disponível em: http://www. releituras.com/guimarosa_margem.asp) e do artigo “‘O mundo misturado’ de Guimarães Rosa e de Mia Couto”, de Vima Lia Martin, no qual a autora afirma: “Nos últimos anos, as obras de Guimarães Rosa e de Mia Couto têm sido aproximadas em vários trabalhos acadêmicos. O próprio autor moçambicano já declarou inúmeras vezes que há convergências significativas entre seus textos e os do escritor mineiro”. Após a leitura das narrativas literárias, explique, com exemplos de passagens dos textos, a seguinte afirmativa da professora Martin (2010, disponível em: http://setorlitafrica.letras.ufrj. br/mulemba/artigo.php?art=artigo_3_6.php): UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 367 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 Se ‘o sertão de Rosa é a própria travessia’, a savana de Mia Couto também o é. Isso significa que os seus textos, elaborados por meio de processos composicionais que misturam, em níveis diferenciados, aportes culturais de matriz oral e aportes culturais de matriz letrada, se configuram como desafios para os leitores que são impelidos a encontrar formas próprias de reflexão sobre a realidade. 367 25/07/2012 14:09:41 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura NAS ÁGUAS DO TEMPO – Mia Couto Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado. - Mas vocês vão aonde? Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem. - Voltamos antes de um agorinha, respondia. Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver. Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha, E eu lhe imitava. - Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem. Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Aquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas 368 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 368 EAD 25/07/2012 14:09:41 Modernismos UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 369 Volume 4 Unidade 3 . Aula 11 da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecia-mos perfeitos. De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por pinte, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano. - Você não vê lá, na margem? por trás do cacimbo? Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. - Não é lá. É lááá. Não vê o pano branco, a dançar-se? Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra. Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não-propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira: - Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte... O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar. Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra nãofirme. 369 25/07/2012 14:09:41 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura - Nunca! Nunca faça isso! O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou: - Neste lugar não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades. Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa. De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça. - Cumprimenta também, você! Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu: - Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu? Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim: nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos. - Me entende? Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou 370 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 370 EAD 25/07/2012 14:09:41 Modernismos 11 a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, bem o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada: - Fique aqui! E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco. Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões. Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando vislumbrar os brancos panos da out In: Estórias abenssonhadas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996. Unidade 3 . Aula 3. Leia O conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago (disponível em: http://www.releituras.com/jsaramago_ conto.asp) e responda: a) Qual é o tema (assunto) central desse conto? UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 371 Volume 4 371 25/07/2012 14:09:41 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura b) Apresente uma síntese sobre seus personagens principais (quem são, como são apresentados). c) Podemos dizer que, nessa narrativa, José Saramago desenvolve uma reflexão em que revisita o passado de Portugal (questionando a ideia de grandeza do império português) e, ao mesmo tempo, problematiza questões de nossa vivência existencial (quem somos, quais são nossos sonhos etc.)? Explique, elaborando um comentário sintético sobre as ideias mais importantes desse conto saramaguiano. [Uma dica: caso tenha problemas com o modo como o autor desenvolve o texto, em termos do estilo que emprega, faça uma leitura em voz alta. Verá então, que as falas trocam de personagem sempre que encontramos uma letra maiúscula antecedida por vírgula – aí fica fácil!]. 4. Com base no fragmento abaixo, do artigo de Rita Chaves “O Brasil na cena literária dos países africanos de língua portuguesa” (disponível em: bibliotecavirtual.clacso. org.ar/ar/libros/aladaa/chaves.rtfSimilares), elabore um texto sintético sobre a importância de conhecermos e colocarmos em diálogo as literaturas de língua portuguesa (complemente, desse modo, a visão da autora, incluindo a Literatura Portuguesa nessa perspectiva): [...] felizmente, inclusive para nossa autoestima, contrariando a perspectiva da metrópole, dentre os vários “brasis” que lá iam desembarcando, os escritores africanos souberam catalisar numa chave progressista as imagens que convidavam à mudança. E o seu impulso para a transformação permite, inclusive, compreender como a nossa realidade - povoada pelas injustiças e pelos preconceitos que conhecemos – acabou por se converter num vetor de mobilização para a consecução de um projeto conduzido pelo sentido da liberdade e outras utopias. 372 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 372 EAD 25/07/2012 14:09:42 Modernismos RESUMINDO R RE E RESUMINDO Estudamos, nesta aula, os principais aspectos das literaturas de língua portuguesa no decorrer do século XX ao século XXI, de maneira a entendermos as mais relevantes relações entre os contextos e os textos. Desse modo, conhecemos as referências mais importantes de obras e autores que marcaram e marcam a nossa contemporaneidade. REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS RE EFE F R ARAÚJO, Jorge de Souza. Floração de imaginários: o romance baiano no século 20. Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum, 2008. COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2009. FONSECA, M. N. S.; MOREIRA, T. T. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. Disponível em: http://www.ich.pucminas.br/posletras/Nazareth_ panorama.pdf. 11 LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 14 ed. São Paulo: Ática, 2004. Unidade 3 . Aula LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA. Instituto Camões. Disponível em: http://cvc.institutocamoes.pt/literatura/contemporaneos.htm. MARTINS, Wilson. O Modernismo. São Paulo: Cultrix, UESC Módulo 4 I LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 373 Volume 4 373 25/07/2012 14:09:42 Literatura de Língua Portuguesa - história, sociedade e cultura 1969. NEJAR, C. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Copesul; Telos, 2007. PORTUGAL, Francisco Salinas. Entre Próspero e Caliban: literaturas africanas de língua portuguesa. Galiza: Laiovento, 1999. REIS, Carlos. Textos teóricos do Neo-Realismo português. Lisboa: Comunicação / Seara Nova, 1981. RISÉRIO, A. A utopia brasileira e os movimentos negros. São Paulo: Editora 34, 2007. SALEMA, Álvaro. Alves Redol – a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1980. SCHOLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010. TUTIKIAN, Jane. Por uma Pasárgada caboverdeana. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 43, n. 4, p. 42-52, out./dez. 2008. 374 Letras Vernáculas LETRAS - MOD 4 - VOL 4 - Literatura de Língua Portuguesa - História, Sociedade e Cultura2.indd 374 EAD 25/07/2012 14:09:42 Suas anotações ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ......................................................................................................................... ........................................................................................................................ ........................................................................................................................ ......................................................................................................................... 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