1 LENDAS: PROCESSO DE FOLKCOMUNICAÇÃO Rúbia Lóssio Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco e Coordenadora do Centro de Estudos Folclóricos Mário souto Maior A cultura popular tem como essência o imaginário, que configura uma riqueza imprescindível. É nesse campo fértil que o imaginário popular atua, revelando sentimentos que desabrocham em lendas, mitos, contos, crendices, superstições e em outras belezas que retratam a nossa cultura. Há de se considerar, que as lendas são narrativas que enfeitam e caracterizam o lugar, acompanhadas de mistérios, assombrações e medo. Não se sabe ao certo como nasceram e criaram as lendas. Elas acompanham fatos e acontecimentos comuns, ilustrada por cenários exóticos e de curta extensão. Muitas vezes são fatos verídicos acrescentados de novos dados ou até mesmo recriados. Podendo ser muito confundida com os mitos. Para Paulo de Carvalho Neto: “ Mito – Narrativa da ação de um ser inexistente. É a representação mental e irreal de um elemento com formas humanas, de astros, de peixes, de outros animais ou qualquer coisa, cuja ação em geral causa medo. (p.146) Lenda – É uma narrativa imaginária que possui raízes na realidade objetiva. É sempre localizável, isto é, ligada ao lugar geográfico determinado. (p.132) Conto – Narrativa ficcional, em prosa ou em prosa e verso, com começo, clímax e final, com a finalidade explícita de entretenimento. (p. 57) Caso – É a narrativa de um fato, às vezes com origem em acontecimento real, com a finalidade explícita de entretenimento”. 1 ( p. 42) 1 Dicionário de Teoria Folclórica, Guatemala: Editorial Universitária, Universidade de São Carlos de Guatemala.1977) 2 Por ser uma narrativa, a lenda no processo de folckcomunicação2, inserida nos dias atuais, resgata os fatos históricos de um lugar ou local ou surge com certas alterações que demonstram os acontecimentos do momento diante da nova realidade. Portanto, a folkcomunicação, “é um processo de intercâmbio de informações e manifestações de opiniões, idéias e atitudes da massa através de agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore” (Beltrão, 1967; apud Benjamim, 2001:12). De projeção folclórica, a lenda recebe um tratamento diferenciado no seu aproveitamento. Seja do tipo catequético, educativo, de caráter humorístico, narrativas medicantes, algumas vezes dolorosas ou de caráter picaresco como expressão de comunicação, a lenda segundo Paulo de Carvalho-Neto vem chamando-a de invenção do folclore que: “consiste na elaboração de peças pretensamente folclóricas, às quais se dá um colorido local, se desenham personagens ‘autóctones’, se narram episódios ‘tradicionais’ e até se indicam nomes de ‘área’ e ‘informantes’.”3 Dessa maneira, a folkcomunicação nos dias atuais é de intensa importância para estudos na cultura popular e na cultura de massa. Essa relação entre cultura popular e cultura de massa, são apropriados na produção e efeitos das mensagens. Segundo Néstor García Canclini: “Portanto, o popular não deve por nós ser apontado como um conjunto de objetos ( peças de artesanato ou danças indígenas) mas sim uma posição prática. Ele não pode ser fixado num tipo particular de produtos e mensagens, porque o sentido de ambos é constantemente 2 Segundo Luiz Beltrão, “A vinculação estreita entre folclore e comunicação popular, registrada na colheita dos dados inspirou o autor na nomenclatura desse tipo cismático de transmissão de notícias e expressão do pensamento e das vindicações coletivas” Folkcomunicação – é um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Tese de Doutoramento, Brasília: UNB. 1967), apud, BENJAMIM, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação no contexto da massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Editora Universitária/UFRN,Pg.11, 2001. 3 BARRETO, Luiz Antonio apud BENJAMIM, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação no contexto da massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Editora Universitária/UFRN,Pg.42 e 43, 2001. 3 alterado pelos conflitos sociais. Nenhum objeto tem seu o seu caráter popular garantido pelo povo ou porque este consome com avidez, o sentimento de valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais. É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práticas ou representações populares, que confere sua identidade.”4 Lenda é uma “narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética.”.5 A lenda também é entendida no sentido figurado como mentira, narração enfadonha, que também é conhecida como lengalenga. É na folkcomunicação que a lenda torna-se matéria viva para estudos e pesquisas. Pois, diante de sua narração o autor, fazedor de idéias, transfere todo o seu potencial do imaginário e transforma em realidade maravilhosa, os fatos da sua estória. Acredito que as idéias sejam retiradas da visão de mundo de cada narrador. De certa forma o narrador quanto o receptor, sente-se encantados com a narração de uma lenda. O fato narrativo que a lenda exerce, faz-se instrumento real da folkcomunicação. A cada narrativa o emissor transfere suas idéias e constrói sua estória enfeitando-a de maneira peculiar. Com o isso, cada pessoa que narra aumenta o fato de acordo com seus conhecimentos e seu imaginário. A lenda é transmitida de pessoa para pessoa, mesmo que a pessoa não acredite na lenda ela divulga a sua maneira. A maior característica da lenda é a maneira de sua narração, encantadora, fascinante e inventiva. Portanto, a lenda na sua forma oral, faz um passeio no imaginário popular, levando os fatos históricos em deformação. Essa deformação, depara-se na folkcomunicação, como instrumento favorável de mudanças e transformações. Assim, faz-se presente na lenda a folkcomunicação, que mistura a tradição popular, acontecimentos históricos com o contexto massivo. Para Susana Chertudi6, a Internacional Society for FolK-Narrative Research, na reunião de outubro de 1963, realizada na cidade de Budapest, Hungria, aprovou a seguinte classificação para as lendas: 4 CANCLINI, Néstor García. As Culturas Populares no Capitalismo. Ed. Brasiliense. p.135 In: Dicionário Aurélio Buarque de Holanda p. 835 6 CHERTUDI, Susana. La Leyenda FolKloórica en la argentina. In. Introducción al Foklore, 1978. P. 165 -173 5 4 I Lendas etiológicas e escatológicas II Lendas históricas e lendas histórico-cultirais a) b) c) d) e) f) origem de lugares e bens culturais; lendas relativas a localidades; lendas concernentes à pré-história e à história dos primeiros tempos; guerras e catástrofes; personalidades destacadas; infração de uma ordem. III Seres e forças sobrenaturais: lendas míticas a) o destino; b) a morte e mortos; c) lugares encantados e aparecimentos de fantasmas; d) procissões e lutas de fantasmas; e) estada em outro mundo; f) espíritos da natureza; g) espíritos de ambientes culturais; h) seres metamorfoseados; i) o diabo; j) demônio da doença e das enfermidades; k) pessoas que possuem dons e forças sobrenaturais/mágicos; l) animais e plantas míticos; m) tesouros. IV Lendas religiosas: mitos de deuses e heróis O que é considerado mito em uma cultura, pode ser lenda, ou conto, ou caso em outras culturas. Vale ressaltar que os portadores de folclore não estão preocupados em estabelecer esta diferenciação, muito embora demonstrem uma certa consciência em relação às características que têm sido levantadas pelos pesquisadores. Assim, no mito e na lenda há uma carga emocional da crença prevalecendo sobre a preocupação de natureza estética, onde entretenimento. Para Luís da Câmara Cascudo: “ As lendas são episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral e popular, localizável no espaço e no tempo. De origem letrada, lenda, legenda, “legere” possui características de fixação geográfica e pequena deformação e conserva-se as quatros características do conto popular: antigüidade, persistência, anonimato e oralidade. É muito confundido com o mito, dele se distância pela função e confronto. O mito pode ser um 5 sistema de lendas, gravitando ao redor de um tema central com área geográfica mais ampla e sem exigências de fixação no tempo e no espaço...”.7 Afonso Arinos entende lenda como: “ Lenda vem de ‘ler’, como ‘legenda’ vem do latim ‘legere’ ; e o que deve ser lido. Era de costume nos conventos e mosteiros, desde os primeiros tempos da era cristã, fazer cada dia, à hora das refeições em comum nos vastos refeitórios, a leitura da vida do santo que dava o nome ao dia. Daí o chamar-se ‘lenda’ o trecho à ser lido. A lenda era pois, a biografia dos santos e bem aventurados, feita, ouvida e criada piedosamente como fossem diárias as leituras e pudessem faltar as biografias, foram sendo compostas ou acrescentadas com as ações que a fé ardente dos autores atribuía a seus heróis. Não pode haver lenda sem sinceridade e simpleza no coração. Em todos os casos, ainda quando reconhecida depois como fabulosa, a lenda foi sempre na sua origem - e não podia deixar de sê-lo – a expressão naquilo que ele julga sinceramente a verdade. Mas, uma vez que o nome ‘lenda’ se aplicou por extensão às narrativas onde houvesse algo maravilho, ela existe em todas as partes onde o homem se agregou em sociedade mais ou menos organizada, que exige tão imperiosamente quanto o organismo exige a nutrição. Sendo no fundo essencialmente religiosa, vamos encontrar na base de todas as religiões as grandes lendas cosmogónicas. E, nesse sentido, os escritos das crenças humanas, são em conjunto de lendas...Como pois estudar as lendas sem conhecer bem o cancioneiro, a música popular e as danças, uma vez que tantas lendas estão em autos, isto é, são representadas cantadas e dançadas?”. 8 Afonso Arinos também classifica as lendas em três tipos: a) lendas de fundo europeu; b) lendas de fundo indígena; c) lendas de fundo africano. 7 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. Brasília: J. Olympio, , INL, 1976. P. . 348 8 ARINOS, Afonso. Lendas e Tradições Brasileiras. 2º ed. Rio de Janeiro: Ed. Briguiet e Cia, 1937. P.12 - 13 6 Especificamente o que se quer compreender, são as lendas no processo de folkcomunicação, diante da contemporaneidade. Recentemente saiu no Jornal do Comércio9 que circula em Pernambuco, uma pequena nota dizendo: Buuuuuuuuuuu! Os vigilantes dos parques das ruínas, no Rio de Janeiro, vêm se queixando aos chefes de que têm vistos vultos no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, o belo casarão que desponta no verde do terreno. Acham que é o fantasma de Laurinha. E é pontual. Aparece sempre entre 18h e 18h30. Como vemos as lendas estão bem vivas. Temos atualmente, como lenda urbana na cidade do Recife, a lenda do Palhaço que rouba crianças, conta a lenda, que um homem se veste de palhaço e com pirulito ou bombom, seduz à criança para poder levá-la dentro de um automóvel. Algumas pessoas dizem, que ele leva as crianças para tirarem seus órgãos e venderem. Essa lenda vem mudando os hábitos de algumas escolas primárias do subúrbio, que passaram a colocar cadeados nos portões com receio do palhaço. Entretanto, escolhemos esta lenda, por encontrarmos vestígios de um mito mais antigo, o “papa-figo”, um homem muito feio e pálido de orelhas enormes, que roubava às crianças para comer o seu fígado. Assim, com as transformações ocorridas no mundo e com o avanço da tecnologia, o mito do “Papa-Figo” vem sofrendo alterações, passando então a ser conhecido como a “lenda do Palhaço que rouba criancinhas” . O “papa-figo” é um “homem muito feio de orelhas enormes que mata crianças para comer o seu fígado. No dicionário de Câmara Cascudo papa-figo é uma pessoa que mata crianças para comer o fígado, curando-se da lepra ou mórfeia. Crêem que a lepra é degenerescência do sangue. Mal de Sangue, mal de fígado. Recupera-se a pureza sanguínea obtendo-se de um novo fígado que o gera. “E havia o papa-figo, homem que comia fígado de menino. Ainda hoje se afirma em Pernambuco que certo ricaço, não podendo se alimentar senão de fígados de crianças, tinha seus negros por toda parte pegando menino num saco de estopa”. Gilberto Freire, em seu livro Casa Grande Senzala, 368, Rio de Janeiro, 1933. Convergia a figura para o Negro Velho, o Homem do Saco. Lobisomem, todo o ciclo do pavor infantil. Quando a comissão Rockfeller, no combate a febre amarela, 9 Jornal do Comércio. Recife, 30 de Outubro de 2002. Segunda Capa. 7 mandara retirar parte do fígado para a verificação, dizia-se ser um fornecimento em massa aos leprosos ricos e nunca uma exigência da análise. Pederasta ativo”.10 Encontramos também no livro “Geografia dos Mitos Brasileiros”, “o papa-figo como o lobisomem da cidade, que não muda de forma, sendo alto e magro. Diz-se que é um velho negro, sujo, vestido de farrapos, com um saco ou sem ele, ocupando-se em raptar crianças para comer-lhes o fígado ou vendê-lo aos leprosos ricos. Em outras regiões é muito pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. Saí à noite, às tardes ou ao crepúsculo. Aproveita para as saídas das escolas, os jardins onde as amas se distraem com os namorados, os parques assombrados. Atrai as crianças com momices ou mostrando brinquedos, dando falsos recados ou prometendo levá-las para um local onde há muita coisa bonita. Então, o temperamento de cada um de nós dependia do fígado. Homem de maus fígados era o colérico porque o humor fora invadido pela bílis. A atrabílis, bílis negra, explicava o melancólico. Sendo o fígado a maior das vísceras, era naturalmente, a mais importante e decisiva. Como origem do sangue, dizia-se “inimigo figadal” significando alguém cujo o ódio tinha raízes profundas no próprio organismo e sede de vida, o fígado, fonte do sangue. Do fígado nascia a rêima, rheuma, os humores da complexa que tanto assunto fornecem aos sertanejos. A rêima justifica a força, o ímpeto, a própria masculinidade. Nascia da “maçã do fígado”, dum lóbulo hepático”.11 Segundo Cascudo, o mito do papa-figo, nunca desapareceu, diminui a intensidade ficando um estado latente, aguardando um clima para exteriorizar. Assim outras histórias de papa-figos apareceram, principalmente na zona rural. O fato ocorreu durante os funcionários do governo enquanto trabalhavam no mapeamento regional em 1/250.000 da Folha de Patos- Paraíba, interior do Brasil no ano de 1963, na região de Desterro-Cacimba da Areia-Passagem. As fotos aéreas que usávamos eram antigas e algumas das estradas indicadas não davam para passar porque tinham sido abandonadas. Por outro lado, algumas variantes não estavam registradas nas fotos, dificultando a localização dessas novas estradas. Tínhamos que ir rotineiramente marcando a lápis as estradas que permitam acesso nas fotos aéreas. O jeito era sempre perguntar para 10 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Ed.4º, Edições melhoramentos em Convênio com o Instituto Nacional do livro. Ministério da Educação e Cultura. São Paulo, 1979. P.576 e 577 11 CASCUDO, Luís da Câmara Cascudo. Geografia do Mitos Brasileiros. ed.2º. Coleção Documentos Brasileiros. Livraria José Olympio Editora/MEC. Rio de Janeiro, 1976. P..206 e 207 8 saber qual o melhor caminho. Estranhamente, porém, já há vários dias, não vínhamos ninguém nas casa que pareciam abandonadas. Um dia aconteceu um lance esquisito: uma mulher ia na estrada e, ao nos ver descer da rural12 para estudar um afloramento, pegou o filho pequeno debaixo do braço e puxou o outro maiorzinho pela mão e escafedeu-se no meio das brenhas do mato como se tivesse visto o diabo. Ficamos com medo, e um belo dia à noitinha, tentando, sem sucesso, obter informações de qual a melhor estrada para voltarmos a Patos interior da Paraíba, onde eles estavam hospedados no Hotel JK quando, perto de uma encruzilhada, já no lusco-fusco do anoitecer, vimos distante a luz de uma lamparina de uma casa. Ao chegarem na casa a cerca de 100 metros uma funcionário gritou __ Oh!! de casa!!, e como resposta disseram que éramos gente ruim e papa-figos. Para compreender por que foram chamados de papa-figos, eles descobriram que a lenda do papa-figo, surgiu com o pessoal do Ministério da Saúde, quando um surto epidêmico da doença de Chagas exigiu um monitoramento da população infectada pelo inseto do barbeiro conhecido como chupão ( Tripanossomo Cruzii), que provoca inchaço de baço e fígado e, muitas vezes a morte. Para bem diagnosticar os focos da infeção, os agentes de saúde promoviam a necropsia das pessoas que morriam na região, fazendo a punção do fígado das pessoas mortas dentre as quais predominavam crianças. A falta de esclarecimento da população deve ter originado a crença de que essas pessoas que vinham com carro preto (os agentes da saúde pública) queriam era comer o fígado das criancinhas.13 Encontra-se, no livro “Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre, que o papa-figo é um homem rico e doente que estava dando para lobisomem, alarmando a população. Empalidecendo, amarelecendo, perdendo toda a cor de saúde, como em geral os homens que dão para lobisomem. Tornando-se mais bicho do mato do que homem do sobrado. Desesperado de encontrar cura ou alívio para seu mal na ciência dos doutores recorrera o ricaço ao saber misterioso dos negros velhos. Um dos quais depois de bem examinar o doente rico dissera à família: “Ioiô só fica bom comendo figo de menino”. “Figo” no português significa fígado. Diz-se que o próprio negro velho se encarregou de sair pelos arredores do Recife com um saco ou surrão às costas. Ia recolhendo menino no saco dizendo que era osso para refinar açúcar. Mas era menino. Carne de menino e não osso de boi ou carneiro. Quanto mais corado e gordo o meninozinho, melhor. 12 13 tipo de automóvel parecido com um jipe na cor preta Retirado do site http://www.unb.br/ig/causos/papafig2.htm 9 Desses meninos sussurra a lenda que o africano, protegido pelo branco opulento, arrancava-se em casa os fígados para a estranha dieta do doente. Só assim evitou-se, diz a lenda que parece ser muito recifence que o argentário continuasse a alarmar a população sob a forma de terrível lobisomem. Curou-se de modo sinistro14. Entretanto, o papa-figo, é um mito conhecido e falado até hoje pelas pessoas mais antigas. Para às crianças de hoje, o papa-figo, cobriu sua palidez com tinta, pintando o rosto como um palhaço. Estudar as lendas e mitos urbanos da cidade de Recife, é um desafio muito interessante, pelo fato de que o imaginário das pessoas, surgem para resgatar e criar argumentos esquecidos diante da contemporaneidade. Essa constante representação simbólica e o constante consenso entre a cultura popular e a cultura hegemônica, reflete no imaginário do povo, transformando um fato histórico em lenda. Assim, faz-se presente na lenda a folkcomunicação, que mistura a tradição popular, acontecimentos históricos com o contexto massivo. As lendas e mitos que perduram até hoje encontrada na cidade do Recife, segundo pesquisas do professor Roberto Benjamin, atual presidente da Comissão Nacional de Folclore, são: o Papa-figo, a Menina Sem Nome, a Mulher de Branco, Comadre Florzinha, e o boato da Perna Cabeluda e recentemente a lenda do palhaço que rouba criancinhas. O fato de que na lenda o homem se veste de palhaço para seduzir e atrair às crianças, pode ser atribuída a campanha do Detran (Departamento de Trânsito) do Governo do Estado de Pernambuco no combate aos acidentes e atropelamentos com os pedestres. Nas faixas de pedestres, mais movimentadas dos cidade, há sempre um homem vestido de palhaço para educar os pedestres na hora de atravessar a rua. Diante da vestimenta dos educadores de trânsito, podemos questionar, por que esse homem que rouba crianças se veste de palhaço??? E para prevenir que o palhaço não se aproxime das escolas, os seus portões são fechados com cadeados. 14 FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. ed.2º. Editora Livraria José Olimpyo. Rio de Janeiro, 1970. P. 61 10 Assim, mitos e lendas do Recife como: cabra-cabriola, a Cruz do Patrão, papa-figo, a lenda do Riacho do Prata, a Emparedada da Rua Nova, Cemitério dos Carros, Boca-deouro, A velha Branca e o bode vermelho entre outras construíram a história do Recife. As lendas estão por toda parte do mundo. O mistério, bem como o desconhecido tornam-se lendas e mitos que se espalham pelo imaginário popular. Para Braulio Nascimento, “É inegável portanto que as diversas formas de comportamento social, a estrutura mesma da sociedade, estão inseridas no texto da narrativa popular, não como meros ornamentos ou referentes vagos, mas como iniludíveis representações do real, uma vez que cada texto constitui um pequeno universo, uma sociedade em miniatura, um corte no espaço e no tempo, com os conflitos e problemas humanos a nível individual e comunitário."15 Segundo Gilberto Freyre em seu livro Assombrações do Recife Velho diz que: “Os mistérios que se prendem à história do Recife são muitos: sem eles o passado recifensse tomaria o frio aspecto de uma história natural. E pobre da cidade ou do homem cuja história seja só história natural”.16 Por isso, para conhecermos bem um lugar é necessário conhecemos suas lendas e os seus mitos. É no processo de folkcominicação que as lendas continuam e se desenvolvem, o narrador por sua vez vai podando os fatos em ritmo de medo, mistérios e assombrações. Diante da lenda do palhaço que rouba crianças, sob a luz da folkcomunicação encontramos vários aspectos semelhantes com a lenda do papa-figo. PAPA-FIGO 15 PALHAÇO QUE ROUBA CRIANÇAS NASCIMENTO, Braulio, falando sobre O conto Popular no Encontro Regional de Literatura Oral e Popular, realizado em Salvador-BA, em novembro de 1992 apud BENJAMIM, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação no contexto da massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Editora Universitária/UFRN,Pg. 43, 2001 16 FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. 3 ed. Rio de Janeiro, J, Olympio; Brasília, INL, 1974. P. 5 11 É um homem na sua maioria rico, pálido, de É um homem que na sua maioria tem orelhas enormes, doente que se alimenta de dinheiro, se veste de palhaço para seduzir às fígado de crianças. O papa-figo anda num carro preto, ou a pé. crianças e retirar seus órgãos. O palhaço anda de combi branca e depois Gosta de crianças. Come fígados de crianças É feio e pálido Seduz às crianças oferecendo bombons e utiliza um carro preto de quatro portas. Gosta de crianças. Vende órgãos das crianças É alegre e pintado Seduz às crianças oferecendo bolas enganando-as. coloridas, pirulitos e bombons Ao analisarmos, a lenda do palhaço que rouba crianças com o mito do papa-figo, encontramos muitos aspectos que se desenvolveram com o avanço da tecnologia. Mesmo com uma forte existência do papa-figo nos dias atuais, acredita-se que ele vem se adaptando aos acontecimentos da contemporaneidade. Nos vídeos-games e nas televisões às crianças não se assustam com os desenhos animados cheios de figuras de monstros. Portanto o papa-figo seria enfrentado e encarado sem problemas para as crianças de hoje, por ser um homem com característica de monstro e lobisomem. O palhaço com seu semblante animador, conquista às crianças, não para elas rirem mas para depois chorarem . Percebemos também que com o aumento de transplantes de órgãos e os altos preços pagos para conseguir um órgão, levou ao objetivo primordial da lenda que é venda de órgãos. Esse novo papa-figo, reaparece em novo contexto social, com a imagem de palhaço, para facilitar o acesso ao produto, que são às crianças. Com a globalização, o papa-figo, assume além de sua característica tradicional dimensões novas no contexto social e global. Se a lenda surge através das deformações de um fato histórico, a lenda do palhaço é bastante interessante no processo de folkcomunicação diante da cultura massiva. Esse consenso hegemônico entre as culturas, e no contexto social, fascina o imaginário do povo, que constrói suas lendas, adaptando-as ao sistema capitalista. 12 Por certo o papa-figo deve estar contente com o aparecimento de um concorrente que é o palhaço, só que eles vão ter que negociar seus interesses na repartição dos órgãos. Além do que, o papa-figo se atualizou, e não se faz mais fígado saudável como antigamente. Referências: ARINOS, Afonso. Lendas e Tradições Brasileiras. 2º ed. Rio de Janeiro: Ed. Briguiet e Cia, 1937. P.12 - 13 13 BENJAMIM, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação no contexto da massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Editora Universitária/UFRN,Pg.11, 2001. BARRETO, Luiz Antonio apud BENJAMIM, Roberto Emerson Câmara. Folkcomunicação no contexto da massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Editora Universitária/UFRN,Pg.42 e 43, 2001. CANCLINI, Néstor García. As Culturas Populares no Capitalismo. Ed. Brasiliense. p.135 In: Dicionário Aurélio Buarque de Holanda p. 835 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. Brasília: J. Olympio, INL, 1976. P. .348 CHERTUDI, Susana. La Leyenda FolKloórica en la argentina. In. Introducción al Foklore, 1978. P. 165 –173 Dicionário de Teoria Folclórica, Guatemala: Editorial Universitária, Universidade de São Carlos de Guatemala.1977) FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. ed.2º. Editora Livraria José Olimpyo. Rio de Janeiro, 1970. P. 61 Jornal do Comércio. Recife, 30 de Outubro de 2002. Segunda Capa. Retirado do site http://www.unb.br/ig/causos/papafig2.htm hora: 12:30 dia 8/11/2002 NASCIMENTO, Braulio, falando sobre O conto Popular no Encontro Regional de Literatura Oral e Popular, realizado em Salvador-BA, em novembro de 1992