MINISTÉRIO DA SAÚDE VOLUME 2 HISTÓRIAS DE LUTA CONTRA A AIDS As múltiplas visões que venceram o desconhecimento, a desinformação e o preconceito Brasília - DF 2015 1 Ministério da saúde Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais HISTÓRIAS DE LUTA CONTRA A AIDS As múltiplas visões que venceram o desconhecimento, a desinformação e o preconceito VOLUME 2 Brasília - df 2015 2015 Ministério da Saúde. Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>. Tiragem: 1ª edição – 2015 – 6.000 exemplares Edição Dario Noleto Elaboração, distribuição e informações MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais SAF Sul Trecho 2, Bloco F, Torre 1, Ed. Premium CEP 70.070-600 - Brasília, DF Site: http://www.aids.gov.br E-mail: [email protected] / [email protected] Revisão Angela Gasperin Martinazzo Grace Perpetuo Diretor do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais Fábio Mesquita Assessora de Comunicação do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais Jennifer Toledo Autores dos artigos Marta Suplicy Euclydes Aires de Castilho Daniel de Souza Ilustração Masanori Ohashy e Pedro Francisco Bezerra Tavares Idade da Pedra Produções Gráficas Fotografias Banco de imagens do Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais Projeto gráfico e diagramação Fernanda Dias Almeida Mizael Normalização Luciana Cerqueira Brito – Editora MS/CGDI Organização dos artigos e entrevistas André Gustavo Stumpf Alves de Souza Impresso no Brasil / Printed in Brazil Ficha Catalográfica Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Histórias da luta contra a AIDS / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. – Brasília : Ministério da Saúde, 2015. 10 v. : il. color. Conteúdo: Histórias da luta contra a AIDS; v.1 A união de todos os atores para o enfrentamento da AIDS v. 2. As múltiplas visões que venceram o desconhecimento, a desinformação e o preconceito. v. 3. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 4. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 5. xxxxxxxxxxxxxx. v. 6. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 7. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 8. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 9. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. v. 10. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx. ISBN CDU 616.98:578.828 Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 2015/0146 Títulos para indexação Em inglês: Histories of the fight against AIDS; v.1 The union of all actors to fight against AIDS Em espanhol: Historias de la lucha contra la SIDA; v.1 La unión de todos los actores para la lucha contra la SIDA SUMÁRIO UM NOVO DESAFIO: INFORMAR A GERAÇÃO QUE NÃO TEM MEDO DA AIDS................................................................................................................. 07 Marta Suplicy OBRIGADO, LAIR, OBRIGADO, GUERREIRA!..........................................................................................11 Euclides Ayres de Castilho ATÉ O DIA DA CURA..................................................................................................................................... 17 Daniel de Souza UM NOVO DESAFIO: INFORMAR A GERAÇÃO QUE NÃO TEM MEDO DA AIDS Marta Suplicy Sexóloga e ex-prefeita da cidade de São Paulo (2001 - 2005) O combate ao avanço da AIDS no Brasil que se tratava de uma doença de grupos de risco, passa pelo combate ao preconceito, à exclusão, explicando que na verdade estava ligada a pessoas ao machismo e até mesmo à religiosidade versus que tinham um comportamento de risco, não foi pesquisas científicas. A AIDS assustou a geração tarefa fácil. Mostrar a mães aflitas que essa não que nasceu num momento de celebração das era a “doença dos gays”, como muitos diziam, conquistas de direitos sexuais nos anos 70, e que e assistir a um rosário de opiniões destilando começou a viver a própria sexualidade na década preconceito e intolerância, condenando antes de de 80. Foi em meados dos 80 que começaram a qualquer argumento razoável o amor entre pessoas aparecer os casos mais evidentes de manifestação do mesmo sexo, foi um aprendizado para toda a dos sintomas que diagnosticavam, até então, uma minha vida. Ao mesmo tempo me sensibilizava, “obscura” doença. Lembro-me bem dessa época, e me marcou como militante da causa gay, a pois estava à frente do programa TV Mulher na angústia e sofrimento dos homossexuais por Rede Globo – depois também na TV Manchete não terem condição de se assumir nem para as –, no qual respondia e orientava telespectadores próprias famílias. sobre comportamento sexual durante os anos de Como estudiosa da sexologia, eu não tinha as 1980 a 1986. A nova epidemia matava rapidamente respostas para todas as perguntas, principalmente e, de início, apenas homens jovens, com idade quando ainda não eram conhecidas todas as inferior a 30 anos. Desmistificar a “pecha” de informações sobre a forma de contágio. Alertar 7 para os perigos sem amedrontar ou reforçar a chamada “prova de amor”, que entre outras preconceitos eram os grandes desafios. Tinha coisas queria dizer: amar o parceiro confiando também em mente a dificuldade enfrentada por cegamente na sua história sexual pregressa e, gerações para conseguir a liberdade sexual, e o dessa forma, dispensando a camisinha. Além, é perigo de a sexualidade ser transformada em algo claro, das senhoras com casamentos longevos que “letal” a ser evitado. A proposta de ensinar o sexo se sentiam seguras. com responsabilidade e a não extinção do “farol Creio que trabalhamos muito bem. Lembro do prazer” para o ser humano eram objetivos a que, como prefeita de São Paulo, no início de 2004, ser alcançados. participei da reunião do Comitê Gestor do Grupo Mas o tempo passou e avançamos com de Coalizão Global para Mulheres e AIDS, em coragem, com campanhas de esclarecimento, com Londres, como convidada pela Organização das políticas públicas e pesquisas que nos tornaram Nações Unidas (ONU). Éramos destaque porque um país de referência no estudo e na prevenção da havíamos treinado os obstetras da rede municipal AIDS, reconhecido mundialmente. E passamos a para a prevenção da transmissão vertical, de mãe falar da AIDS com mais leveza, deixando para trás para filho. O índice de infecção caiu de 34 (2001) a mística da “sentença de morte” diagnosticada para 25 (2003) a cada 100 mil habitantes, e a junto com o exame de HIV, para mostrar que transmissão vertical, de 75 para 43 casos ao ano. com tratamento adequado a AIDS se tornava uma No mesmo período, a taxa de mortalidade recuou doença crônica e que, mesmo infectado, o paciente de 12% para 9%. Aumentamos a distribuição soropositivo poderia viver com qualidade de vida de preservativos de 1 milhão para 10 milhões e e se relacionar sexualmente sem medo, sem culpa, também a de seringas descartáveis, investindo sem dor e sem desamor. na redução de danos para usuários de drogas Apesar das vitórias, não foi fácil constatar, a injetáveis e enfrentando o debate sobre esse tema partir de 2000, o boom do avanço da doença numa no intuito de salvar vidas. Tínhamos uma equipe parcela da população com mais de 60 anos, que de profissionais muito competentes e dedicados, crescia e continua crescendo em nosso país e que como é até hoje o infectologista Fábio Mesquita, usufrui de plena saúde física e sexual, mas foi que atuou em nosso programa de combate à atingida pelo contágio da AIDS justamente por AIDS. acreditar que, se tivesse que ser contaminada, já É certo que as pesquisas e os serviços o teria sido quando jovem. Ainda presenciamos melhoraram, assim como o atendimento aos o machismo forte e declarado nas histórias doentes de AIDS. Entretanto, não nos demos contadas por jovens mulheres, que, ao invés de conta de que a propaganda oficial e as aulas dar ao companheiro a “prova da virgindade”, de prevenção nas escolas não estavam mais ultrapassada para os tempos modernos, ofereciam acontecendo. As mortes, hoje evitáveis, não 8 provocam mais os cuidados de prevenção, e imensas conquistas que nos fizeram chegar até esse vazio, acoplado ao sucesso de sobrevida dos aqui, utilizando a linguagem do século XXi. soropositivos, nos leva agora a novo momento de avaliação. Por todas essas razões, e para garantir a consolidação de outros 30 anos de história de um trabalho forte e eficaz realizado pelo Programa nacional de dst/aids no Brasil, é hora de fazer uma reflexão tão madura como os já conquistados 30 anos merecem. é hora de discutir por que a geração que nasceu fruto dos jovens da década de 80 descarta a camisinha, encara a aids como uma doença corriqueira e aposta na máxima de sempre: “não vai acontecer comigo!”. é hora de conversarmos com esse público e, para isso, é necessário que estejamos habituados à linguagem tecnológica que eles escolheram para se comunicar, e explicar à chamada “Geração Y” que viver com a aids pode não ser mais fatal, mas é importantíssimo que se compreendam todas as dificuldades do viver com ela. E, para isso, há que se ter respeito ao próprio corpo e ao corpo do parceiro. Compreender o hiato que se formou entre a geração que nasceu com medo da aids e uma outra, que parece ignorar a delicadeza dos desdobramentos de se enfrentar cotidianamente uma doença desse porte, tem que ser uma política de estado. Política que deve ser encarada com a mesma franqueza com a qual todos nós, que ousávamos falar do assunto na década de 80, a encaramos. tenho orgulho do trabalho por nós realizado. é hora de começar de novo, desta vez mais seguros e amparados pelas 9 OBRIGADO, LAIR OBRIGADO, GUERREIRA! Euclides Ayres de Castilho Professor Sênior do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e Monitor de Pesquisa do Instituto Adolfo Lutz hoje Muitos acham que Lair é médica; ela, porém, Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais formou-se Biologia pela Universidade Federal de é também a fascinante e corajosa história de uma Pernambuco, mas também concluiu especialização mulher, nordestina e não médica, que criou o em Administração de Saúde Pública e Doenças “Ministério da AIDS”: Lair Guerra de Macedo Sexualmente Transmissíveis pelos Centers for Rodrigues. Disease Control (CDC). A história dos primórdios do As lembranças, fatos e casos a seguir, sem a Recém-chegada de Atlanta, Estados Unidos, pretensão de constituir um resgate detalhado e Lair passou a flertar com o desafio de estruturar preciso da memória da política do combate à AIDS o que viria a ser o programa de combate à AIDS no Brasil (até porque muitos já o fizeram), devem no Brasil, quando José Sarney era o presidente da ser lidos como o que são de fato – uma singela República; o baiano Carlos Sant’anna, ministro da homenagem à Lair, essa rara figura pública. Saúde; e Maria Leide Wan Del Rey de Oliveira, De início, refiro-me ao “Ministério da AIDS” não para remoer o termo que pejorativamente diretora da Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. era empregado por alguns para desdenhar do Antes de Lair, Maria Leide e Fabiola Nunes, programa, mas com a intenção de remeter aos poucos talvez saibam, viabilizaram a primeira esforços excepcionais que foram empreendidos por campanha nacional, um vídeo curto e folhetos Lair e por sua equipe. com a participação de Sócrates (jogador de futebol 11 que também era médico), dizendo como se pega e que repercutia a “peste gay”, assim batizada nos como não se pega AIDS. Estados Unidos no início da epidemia. Em 1986, quando outro baiano, Roberto O clamor das pessoas afetadas encontrou eco Santos, assumiu o Ministério da Saúde, já com na disposição de técnicos comprometidos com Lair Guerra à frente, foi oficialmente implantado o a saúde pública e partícipes do então vigoroso Programa Nacional de Prevenção de DST/AIDS. movimento da Reforma Sanitária, que desaguaria Essa foi a criação de fato, pois no papel o “PN” no direito à saúde inscrito na Constituição de havia sido instituído em 2 de maio de 1985 (Portaria 1988. Assim, foi criado o primeiro programa MS 236) – quando também se tornou obrigatória governamental de combate à AIDS, em 1983, pelo no país a notificação dos casos de AIDS. Secretário da Saúde, João Yunes, liderado por Paulo Sedutora, determinada, Lair logo cercou-se de Teixeira (Teixeira, 2003). gente que estava igualmente comprometida com Esse pioneirismo, reconhecido por Lair, os desafios impostos pela AIDS. Convidou para influenciou positivamente as primeiras medidas e trabalhar no PN, ou assessorá-la, Pedro Chequer, ações do programa nacional, que contava com a Luiz Loures, Bernardo Galvão, Antonio Gerbase, participação e colaboração de tantos paulistas que Celso Ramos Filho e eu, entre outros, tendo como nem é possível enumerá-los, sob o risco de cometer secretária a eficiente Ieda Fornazier. injustiças. É importante destacar a postura da Lair Lair conseguiu superar a troca de Ministros da Saúde, o que era em si um obstáculo a planejamentos de sempre trabalhar dialogando com a comunidade acadêmica e os movimentos sociais. de médio e longo prazo. Do final de 1987 até o Logo no início, Lair propôs a criação da início de 1990, nos curtos mandatos dos ministros Comissão Nacional de AIDS – CNAIDS, em Luiz Carlos Borges da Silveira e, em seguida, de 1986, que tem como objetivos assessorar o Seigo Tsuzuki, o programa de AIDS deu seus Ministério da Saúde na definição de mecanismos primeiros passos e assistiu ao nascimento do SUS. técnico-operacionais para controle da AIDS, Lair, desde logo, tomou como meta a consonância coordenar a produção de documentos técnicos e do PN com o SUS. científicos e auxiliar o Ministério na avaliação das Lair reconhecia o pioneirismo de São Paulo. ações de controle da epidemia. Sempre estiveram Assim que os primeiros casos de AIDS no Brasil representados na CNAIDS o governo, as ONG, tornaram-se públicos, no ano de 1983, começou- os trabalhadores, a comunidade científica e os se a organizar, a partir da ação de militantes do organismos internacionais, dentre outros. movimento homossexual, uma reação comunitária Lair era tida como “áspera” no trato com a preocupada com a nova doença e indignada sociedade civil, mas o fato é que, desde seu início, o com o quase silêncio do poder público e com o Programa foi receptivo às reivindicações das ONG preconceito e a desinformação da mídia brasileira, e pessoas vivendo com HIV e AIDS. 12 Presentes no acompanhamento dos primeiros organismos internacionais, quebra do diálogo com anos do programa estavam, além do movimento a sociedade civil e com a academia, centralização homossexual atuante, os serviços de apoio e lançamento de campanhas de AIDS desastrosas, existentes, a exemplo da Casa Brenda Lee, criada baseadas no terror e no preconceito contra as em 1984, em São Paulo, para assistir homossexuais pessoas que viviam com HIV. e travestis vivendo com HIV; o Grupo de Apoio Lair voltou suas atividades para a UnB e, ao e Prevenção à AIDS (GAPA), fundado em 1985; assumir o Ministério da Saúde, já em clima de a ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar impeachment de Collor, em 1992, Adib Jatene a de AIDS, criada em 1986; além dos Grupos chamou de volta, e ela recompôs sua equipe. Pela Vidda do Rio e de São Paulo e do GAPA/ Havia muito por fazer: reconstruir as pontes RS, criados em 1989. Lair apoiou fortemente, em destruídas, retomar a prevenção e o apoio às ONG, 1988, a manifestação das ONG no Congresso avançar na descentralização do programa para Nacional contra a comercialização de sangue não estados e municípios, incorporar na rede pública testado. Chamada “Salve o Sangue Brasileiro”, a os primeiros medicamentos antirretrovirais. Nessa mobilização tinha à frente Betinho e a ABIA, o que época, a Lair empenhava-se em levar adiante as contribuiu para inserir na Constituição a proibição iniciativas para o primeiro Acordo de Empréstimo do comércio de sangue e seus derivados. com o Banco Mundial. O Programa Nacional também apoiou, logo Sob a batuta de Lair, Adib assumiu o depois da Conferência Internacional de AIDS de orçamento para as primeiras compras e distribuição 1989 em Montreal, Canadá, o primeiro encontro de AZT, com a aquisição inicial feita pelo Alcenir nacional de grupos de luta contra a AIDS, em Guerra. Lair incentivou programas de prevenção Porto Alegre (RS), ocasião em que foi redigida nas empresas, apoiou a pioneira política de redução a Declaração dos Direitos Fundamentais da de danos e troca de seringas em Santos, com David Pessoa Portadora do Vírus da AIDS, documento Capistrano. A Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da imediatamente integrado às diretrizes do PN. O baque viria no governo Collor, durante Saúde (Lei 8.080/90) que a ela se seguiu eram a gestão de Alcenir Guerra no Ministério da sempre citadas por Lair. Toda vez que uma ideia Saúde, de março de 1990 a janeiro de 1992. “Saí ou ação proposta causava no governo federal em prantos, pois tinha certeza de que não havia estranhamento pela magnitude ou pelo custo concluído meu trabalho”, diria Lair em depoimento financeiro, Lair retrucava que nada mais fazia do tempo depois (Pompeu, 2006). Afastada de suas que buscar assegurar o direito à saúde, respaldada funções, Lair, como tantos de nós, assistiu com pelos fundamentos do Sistema Único de Saúde. enorme preocupação a esse período de retrocessos, No começo dos anos 1990, novos desafios: o marcado pela suspensão das relações com perfil epidemiológico da AIDS no Brasil começou 13 a mudar, com o avanço da epidemia em direção que comprometia a compra de medicamentos, e ao interior do país e às periferias das grandes a burocracia nas compras e a demora na liberação cidades. Passou também a concentrar-se em outras de verbas, que levaram à falta do medicamento ddI populações vulneráveis, além dos homossexuais, (didanosina) em vários pontos do país, em 1994, o como os usuários de drogas injetáveis, os que gerou justos protestos por parte das ONG, com profissionais do sexo e as mulheres. grande repercussão nos meios de comunicação. Em junho de 1992, Lair apoiou a criação do Lair articulou politicamente (isso ela sabia Comitê de Vacinas, estabelecido com a função de fazer, e como!) e conseguiu, em março de 1995, assessorar o Programa Nacional de DST/AIDS fazer editar a Portaria Ministerial 21, que regulava a implementar pesquisas sobre vacinas contra a a compra e a distribuição de medicamentos para o AIDS. tratamento do HIV e da AIDS. Em 1994, concretiza-se o Acordo entre o Mas foi o ano de 1996, o último de plena Brasil e o Banco Mundial para o combate à AIDS, atividade de Lair, que foi assinalado por com empréstimo de 160 milhões de dólares inúmeras conquistas, todas elas com sua marca e na época, sendo que 90 milhões constituíam a sua participação direta ou indireta. contrapartida do governo federal. Na qualidade Lair convocou nesse ano e coordenou ela de membro da equipe do Banco Mundial – por mesma a primeira reunião do Grupo Assessor para isso, a Lair dizia que eu tinha dupla personalidade Terapia Antirretroviral de Adultos e Adolescentes, – tive a oportunidade de testemunhar o papel composto por especialistas para discutir a glorioso da Lair no estabelecimento das metas e incorporação no Brasil dos avanços terapêuticos atividades, nas várias reuniões com o grupo do após o advento dos inibidores da protease. Até Banco. A Maureen Lewis, do Banco Mundial, 1996, as recomendações eram baseadas apenas na opinava que a Lair deveria contar com um gerente monoterapia inicial com zidovudina ou na terapia para o “Acordo”. Mas ela retrucava: “Oxente! Não com dois medicamentos: zidovudina combinada vou ser a Rainha Elizabeth, não!” Os recursos com didanosina ou com zalcitabina. permitiram a capacitação de recursos humanos em O primeiro “consenso brasileiro”, como estados e municípios, o planejamento de metas e passou a ser chamado o documento, foi divulgado a avaliação de programas, e também possibilitou por Lair e elogiado na 7ª Conferência Internacional que as organizações da sociedade civil passassem sobre AIDS, em Vancouver, Canadá. a receber financiamento, por meio de editais e Lair empenhou-se, em seguida, na aprovação concorrência pública, para executar projetos de da Lei Federal 9.313, de iniciativa do Senador José prevenção, assistência, assessoria jurídica, entre Sarney, que levou o SUS a fornecer os antirretrovirais outros (Parker, 2003). e a atualizar periodicamente o consenso terapêutico. Os momentos difíceis não foram poucos, tais A Lei 9.313 foi imediatamente regulamentada como o corte de verbas do Ministério da Saúde, pela Portaria Ministerial 2.334/96, agora já com 14 o fantástico empenho do Pedro Chequer. A Lei em estado gravíssimo na UTI, o que lhe trouxe 9.313 também refletiu a luta dos grupos e pessoas sequelas até hoje enfrentadas por ela com a garra, com HIV, que passaram a mover processos contra a coragem e a luta pela vida que sempre lhe foram estados e municípios para garantir o acesso aos peculiares. antirretrovirais e aos medicamentos para tratar doenças oportunistas (Passarelli & Terto Jr., 2002). Obrigado, Lair, obrigado, guerreira! Também de 1996 é a Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentou Referências as pesquisas envolvendo seres humanos no país, processo que contou com a participação de várias GRANGEIRO, A.; SILVA L., L.; TEIXEIRA, P. ONG/AIDS e também do próprio PN, que R. Resposta à AIDS no Brasil: contribuições dos acompanhava atentamente os ensaios clínicos com movimentos sociais e da reforma sanitária. Rev. Panam. os novos antirretrovirais no Brasil, alguns deles Salud. Pública, s.l., v. 26, n. 1, p. 87-94, 2009. com registro de problemas éticos. JATENE, A. A atuação de Lair contra a AIDS. Folha Conforme escreveu o então Ministro e professor Adib Jatene: de S. Paulo, s.l., p. A3, 1 dez. 2002. PARKER, Richard. Construindo os alicerces para a “O nome de Lair deve ser exaltado resposta ao HIV/AIDS no Brasil: o desenvolvimento de porque foi sua capacidade de propor, sua políticas sobre o HIV/AIDS, 1982 – 1996. Divulgação coragem de defender e sua eficiência em em Saúde Para Debate, Rio de Janeiro, v. 27, ago. 2003. executar que nos colocaram na direção correta, consolidada por tantos que, com PASSARELLI, C. A. F.; TERTO JR., V. As organizações não governamentais e o acesso aos tratamentos competência e dedicação, mantiveram as antirretrovirais no Brasil. Divulgação em Saúde Para ações em crescendo, garantindo, em área tão Debate, Rio de Janeiro,.v. 27, ago 2003. sensível, o reconhecimento de uma liderança que partiu de Lair” (Jatene, 2002). POMPEU, F. Lair Guerra de Macedo. In: CHARF, C. (coord.). Brasileiras guerreiras da paz: projeto 1.000 mulheres. São Paulo: Contexto, 2006. Foi uma data de enorme tristeza para a história da AIDS no Brasil o dia 26 de agosto de 1996, quando Lair Guerra foi vítima de grave acidente TEIXEIRA, P. R., VITÓRIA, M. A. A.; BARCAROLO, J. The Brazilian experience in providing universal access to antiretroviral therapy. In: ANRS, ed. Economics of de carro em Recife. Ela ia de carro para o centro de AIDS and access to HIV/AIDS care in developing convenções em Olinda, onde todos a aguardavam countries. Issues and challenges. Paris: ANRS, 2003, p. para uma mesa-redonda sobre os rumos do 69-88. Programa Nacional de AIDS. Lair permaneceu 15 16 ATÉ O DIA DA CURA Daniel de Souza Mobilizador social, filho de Hebert de Souza A AIDS faz parte da minha vida desde 1985. perspectiva de sua morte imediata refundou a Naquele ano, infectou meu pai e dois tios de nossa relação pai e filho, que havia sofrido com a separação imposta pela clandestinidade e exílio uma vez. Os três (e boa parte dos hemofílicos do país) durante a ditadura militar. Havíamos voltado ao receberam transfusões contaminadas pelo HIV Brasil com a Anistia de 1979, mas parecia que o numa época em que o sangue era comercializado, Atlântico ainda nos separava. Ironicamente, foi a ou seja, era uma fonte de renda para muitos AIDS que nos reaproximou. brasileiros. Num caso que ficou célebre, um Acompanhei de perto sua luta diária contra homem necessitando de dinheiro foi a três o tempo e contra a doença. As lutas paralelas, bancos de sangue consecutivos, e na saída do contra a fome e tantas outras, davam àquele corpo terceiro desmaiou com anemia... Foi socorrido e magro e franzino força e resistência inesgotáveis, precisou receber uma transfusão de emergência, que a doença só conseguiu derrubar muitos anos provavelmente de seu próprio sangue. depois. Dos três irmãos, Henfil faleceu primeiro, em Poucos dias antes de ele falecer, vivemos 1988, com 43 anos. Foi seguido, apenas três meses uma situação engraçada no meio de tanta depois, pelo Chico Mário, com 40 anos. Pela lógica tristeza. Betinho estava internado há semanas fria da probabilidade, meu pai, o Betinho, então na Beneficência Portuguesa do Rio, e eu e Maria com 53 anos, não demoraria a ser o próximo. A nos revezávamos para dormir no seu quarto. 17 Na minha última noite ele não dormiu, nem me mulheres, ricos e pobres, negros e brancos, deixou dormir, enquanto eu não lhe trouxesse celebridades e anônimos, crianças e adultos. uma cerveja gelada. Não preciso dizer quão O Brasil (e o mundo) enfrentava um problema contraindicado isso era, não só pela quantidade novo, desconhecido, que não desafiava apenas a de remédios que ele tomava, mas também porque medicina, mas também os nossos medos, tabus e o Betinho já estava em estágio terminal. Mas às valores, e forçava uma discussão profunda sobre seis da manhã, assim que abriu o botequim da direitos humanos, políticas públicas, legislação Rua Santo Amaro, lá estava eu comprando duas e, principalmente, sobre solidariedade. Acredito cervejas geladas. Poucas vezes na vida vi uma que foi esse valor universal, a solidariedade, que pessoa beber uma cerveja com tanto gosto e conseguiu mobilizar toda a sociedade para agir. alegria. Se o céu existe, deve ser assim. O inferno E ela agiu. A minha participação no enfrentamento foi explicar aos médicos aquelas garrafas e copos vazios no quarto do hospital. da doença se deu no campo da comunicação. Betinho se reencontrou com os irmãos no dia Convidei artistas que nunca haviam participado 9 de agosto de 1997, doze anos após sua “provável” de campanhas contra a AIDS, como o Chico morte. Partiu cercado de amigos e família, na sua Buarque, Sandy & Júnior, Gabriel o Pensador, casa, e sem dor, como ele queria. Por capricho do Ivete Sangalo, Rodrigo Santoro, Luciano Huck calendário, naquele ano o dia 9 de agosto caiu no e muitos outros. Foi um momento especial em dia dos pais. que celebridades, atletas, formadores de opinião, Algumas semanas depois fui chamado produtoras, publicitários, roteiristas, diretores, a Brasília pelo Dr. Pedro Chequer, então emissoras de TV e rádios fizeram a sua parte, coordenador do Programa Nacional de DST viabilizando muitas campanhas que inundaram a e AIDS, do Ministério da Saúde. Pedro me mídia e a consciência dos brasileiros. Ninguém se convidou, ou melhor, me convocou para enfrentar recusava a participar. A sociedade, que perdia seus a epidemia numa guerra de duas frentes: contra cidadãos, enfrentava a epidemia com o governo a doença e contra o preconceito. Câncer gay ou e as ONG. Esse tripé foi fundamental para o praga gay eram alguns dos nomes usados naquela sucesso do programa brasileiro. época para denominar a AIDS, que atingiu em Campanhas de massa nas TVs e rádios têm cheio os homossexuais. Para uma parcela boçal, alcance nacional. São rápidas, diretas, impessoais, porém significativa, da população brasileira, os publicitárias na linguagem e no formato para gays eram pecadores que recebiam o castigo de atingir todo o país, mas dificilmente criam Deus. Depois perguntam por que sou ateu... uma relação direta com o público. Pensando A verdade é que a AIDS, ao contrário de nisso, criamos ações que pudessem estabelecer nós, não tem preconceito, e atinge homens e uma ponte direta com a população, quase um 18 corpo a corpo. Abaixo destaco algumas dessas do militar e da dona de casa muitas vezes eram experiências. bem aceitas, assim como as do travesti. Foi um laboratório humano tão catalizador de debates Cena no fórum internacional que, a partir de um determinado momento, O I Fórum da América Latina e Caribe tivemos que anunciar pelo sistema de som do em HIV/AIDS e DST aconteceu no Riocentro Riocentro que havia cinco atores presentes entre e contou com a participação de centenas de os participantes do Fórum. Ou seja, revelar a pessoas de vários países. Com a ajuda de Luiz encenação. Esse formato foi repetido em outros Fernando Lobo, diretor de teatro e cinema, eventos e ocasiões, sempre com o mesmo efeito. ensaiamos atores que se caracterizaram como cinco personagens: uma dona de casa, um padre, Jogo seguro um militar, uma travesti e um gari. A dona de Na época em que o campeonato carioca era casa era uma mulher típica de classe média, com sério e, portanto, lotava os 180 mil lugares do opiniões conservadoras e preconceituosas sobre Maracanã, propus fazer uma ação de prevenção a AIDS. O padre era (e ainda é!) contra o uso antes dos clássicos entre Flamengo, Vasco, do preservativo e do sexo antes do casamento. Fluminense e Botafogo. Distribuímos 15 mil O militar era machista e homofóbico. O gari folhetos e preservativos em cada uma das 16 tinha um monólogo em que reclamava do preço partidas. Torcidas antagônicas se uniram antes do preservativo e da impossibilidade de poder e depois dos jogos pela prevenção da AIDS e comprá-lo com o seu salário mínimo. A travesti uma faixa era mostrada no gramado no início era a travesti, e de forma irreverente puxava as de cada jogo. Os principais jogadores dos quatro discussões que aconteceriam entre os cinco e o times entraram na campanha. Assistimos, com público. Durante o Fórum, esses personagens alegria, dois fatos importantes naquela ação: 1) os circularam, misturando-se com os participantes. preservativos e os folhetos eram guardados pelos Quando viam um grupo, aproximavam-se e torcedores, não virando lixo ou balão durante o começavam a conversar, cada um de acordo jogo; 2) o Flamengo foi campeão naquele ano. com seus personagens. Rapidamente outras Livro AIDS e Teatro pessoas entravam, criando conversas e discussões Pensando em viabilizar instrumentos de memoráveis, algumas bastante intensas e outras conscientização para o teatro, criamos o livro até preocupantes. O monólogo do gari fez com que AIDS e Teatro – 15 Dramaturgias de Prevenção. ele fosse retirado pelos seguranças do Riocentro Com o prefácio de Dráuzio Varella, dramaturgias mais de 11 vezes. No terceiro dia da experiência, de Aberbal Freire, Flavio Marinho, Karen Acioly, o padre era vaiado aonde quer que fosse. O Tim Rescala e mais 11 autores, o livro é um manual interessante é que as opiniões conservadoras de prevenção. Todos os textos não têm restrição 19 de uso, reprodução ou direito autoral. Estão à data, ações de prevenção no Rock In Rio. A disposição de atores, diretores, grupos e trupes primeira atividade foi na edição de 2001, em que profissionais e/ou amadores que queiram encená- distribuímos 120 mil preservativos. Em 2011 los nas ruas, escolas, teatros, praças, prisões, a ação foi maior, com veiculação de filmes em etc. Os três mil livros foram distribuídos para animação nos telões, distribuição de preservativos ONG, associações de moradores, os Ministérios e realização de flash mobs em todos os dias da Cultura e da Saúde, companhias e trupes de do festival. Complementando essas ações, o teatro pelo Brasil, e para todos os países da CPLP Programa Nacional realizou a testagem rápida do – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, HIV. O nosso slogan foi uma adaptação do deles: priorizando os países africanos. “Por um mundo sem AIDS”. Tudo acertado, Um dos desdobramentos foi o Festival AIDS mas quanto mais perto chegávamos do início do e Teatro, em parceria com o SESC/RJ, com a festival, mais crescia o medo dos organizadores montagem das peças e apresentação no SESC quanto à reação das pessoas diante de um possível Tijuca. resultado positivo no exame realizado durante o Rock In Rio. A testagem quase foi cancelada na Fique Sabendo no Rock In Rio véspera, mas a Roberta, mesmo sofrendo forte Num determinado momento, ficou clara pressão, bancou a realização do Fique Sabendo. para o Programa Nacional de DST e AIDS a Sou muito grato a ela por isso. A testagem foi necessidade de uma campanha nacional para um enorme sucesso. Com alegria, víamos filas convocar as pessoas a fazer o teste de AIDS. enormes, da manhã ao final da tarde, com jovens, Apenas um terço dos 600 mil soropositivos adultos, casais, pais com filhos, todas as tribos e brasileiros tinham consciência de ser portadores idades, fazendo o exame. Nos momentos de pico, do vírus. Essa campanha começou com um a espera na fila era de mais de uma hora. É justo concurso da logomarca, e é conhecida como Fique dizer que o dia que teve mais testes realizados foi Sabendo. O conceito e o formato final geraram o do heavy metal - não me perguntem a razão. O muitas discussões e debates, mas essa campanha flash mob, com 10 bailarinos vestidos de camisinha, talvez tenha sido uma das mais importantes fazia intervenções pelo festival convocando desses 30 anos, pelo fato de quebrar o medo e a as pessoas para o teste, e depois distribuía resistência que as pessoas tinham de fazer o teste. preservativos. O Fique Sabendo realizou 1.068 Com o Fique Sabendo, muitos eventos de massa testes, dos quais nove deram positivo. Desses como o Carnaval, São João, shows, desfiles de nove, seis já sabiam de sua condição e os três que moda e festivais passaram a incorporar o teste de não sabiam agradeceram por saber. AIDS, que apresenta o resultado em 15 minutos. Propus a Roberta Medina, amiga de longa Ações como essas, que estabelecem um contato direto com a população, nos ajudaram a ouvir, o que, na luta contra a aids, às vezes é mais importante do que falar. a minha contribuição nessas três décadas é modesta, mas só termina no dia da cura. Ao Betinho, Henfi l e Chico Mário, um abraço e muita saudade. ao Márcio tadeu, dr. Pedro, Mariângela, alexandre Magno, Myllene Müller, Mauro siqueira, dario noleto, leonardo tanabe, leonardo lincoln, Cristina Pimenta, Veriano, roberto Pereira e muitos outros que estou, injustamente, esquecendo, um muito obrigado. sem vocês eu não teria feito muito. Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde www.saude.gov.br/bvs