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O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo (...)
Só que há pouca gente para dar por isso (...)
Óhóhóh, o vento lá fora
Álvaro de Campos, Poesia Completa, Ática, Lisboa
ANA TOSTÕES *
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Em direcção a uma estética industrial:
Zeitwill ou vontade de modernidade
reconhecidos pela historiografia como fonte inspiradora não só de for-
EM DIRECÇÃO A UMA ESTÉTICA INDUSTRIAL
Arte e técnica: objeto de uso e objeto artístico
mas mas sobretudo de conceitos e princípios projectuais que estiveram
Desde as origens da produção que não se distinguiam os critérios de
na génese da arquitectura do Movimento Moderno.1 Espírito da época
funcionalidade dos critérios de arte. A distinção entre o belo e o útil
industrial, estética da máquina e um novo programa a que era neces-
é própria da Idade Moderna quando se conceptualiza a relação
sário dar resposta, o industrial, tendem a conformar uma articulação
entre razão científica e razão artística. É no Renascimento que se con-
entre arte e técnica como uma“nova unidade”. Neste ensaio procuro
ceptualiza a relação entre Razão científica e Razão artística. Mas é
estabelecer essa relação e analisar como a arquitectura moderna por-
no século XVII que a distância entre a linguagem formal das gentes
tuguesa se baseou nos novos materiais e programas, com destaque para
cultas e a das classes inferiores se institucionaliza com a criação das
o industrial.
Academias, os organismos que vão estabelecer as regras do jogo
A matriz mecanicista e de um modo lato o universo industrial têm sido
Se a máquina –e a sua estética– alimentaram um pensamento racional apostado na eficácia de um princípio de funcionamento, o pro-
das então designadas “Belas-Artes”. Distinguindo-se as maiores e as
menores, cavando-se o impasse entre o belo e o útil.
grama da indústria –que afinal conformava a acção dessa máquina,
Opondo criatividade ao gesto mecânico, Alberti pratica a divisão
dos homens que a alimentavam e dos espaços que a organizavam–
do trabalho. Nas suas construções, que são puros objectos arquitec-
constituíu por excelência o campo experimental não só de uma con-
tónicos, “participa” apenas uma única mente criadora: o artista. Ao
cepção espacial inovadora mas também do risco que representava uti-
contrário, a realização das catedrais medievais exigiu que na sua
lizar novos materiais e estruturas. Primeiro o ferro e depois o betão
construção se associassem não só os mais diversos artesãos como
armado e o aço, materiais surgidos justamente das necessidades de
toda a comunidade. Do mesmo modo, no mundo grego ou romano
espaço dessa nova actividade, a indústria. E, com o recurso a também
o objecto artístico integrava-se no processo global da produção arte-
novos elementos estruturais acompanhado de uma inovadora con-
sanal. Não se distinguia o objecto de uso do objecto artístico.
cepção dos interiores. Por isso, se pode afirmar que a partir do século
Este conceito amplo de produção faz-nos recordar as palavras
XX se estabeleceram relações fundamentais entre “o mundo das fábri-
de Maiakowsky quando, no quadro das vanguardas soviéticas, dizia
cas e as expressões de uma nova arquitectura”.2
a propósito do trabalho que ele certamente classificava como a
Depois de justificada a tarefa de levantamento e a análise das cons-
tarefa revolucionária dessa mesma vanguarda: “Todo este trabalho
truções industriais e do pano de fundo social e cultural que as suportou
não tem para nós uma finalidade estética. É o laboratório que per-
no quadro das atribuições do DOCOMOMO Ibérico importa começar
mite exprimir, da melhor maneira, os factos do nosso tempo. Não
por clarificar em que medida o paradigma mecânico se converteu em
somos sacerdotes criadores, mas operários que executam uma orde-
signo de modernidade e por essa via, em indicação metafórica quer
nação social”.3
da organização espacial, quer da iconografia do construído, quer da
atitude projectual .
De facto, esta dicotomia arte/técnica, belo/útil, reflectia igualmente a oposição entre dois valores: o individual, condensado na
* IST-UTL, investigadora do ICIST
1 GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, Klinkhardt & Biermann, Leipzig, 1928.
2 PIZZA, António, “La Industria y su aportación a la arquitectura moderna”, en Arquitectura e Indústria Modernas 1900-1965, Actas Segundo
seminario DOCOMOMO Ibérico, Sevilla, 1999.
3 SETA, Cesare de, “O Objecto”, en Enciclopédia Einaudi, vol 3, IN-CM, Lisboa, 1984.
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Ferramentas
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Ponte romana
Alcântara
Foto: Ana Tostões
Vaso greco
Foto: Ana Tostões
Máquina,
en Adrian Forty, Objects of desire, London, Thames
and Hudson, 1995
tradição da grande arte de vocação elitista; e o universal, de que o
siderada com uma função social fundamental. E é justamente por
progresso era porta-voz, através de uma crescente industrialização
isso que ela passa a englobar todas as disciplinas (da pintura à arqui-
dirigida para uma massificação social no que ao consumo também
tectura, da escultura aos objectos utilitários) no quadro de um desen-
dizia respeito.
volvimento do maquinismo e da industrialização que, conjugados
Neste quadro importa referir a definição que Diderot fez da
com os progressos nas ciências aplicadas, conduziram a uma trans-
relação entre arte e utilidade social para explicar a dicotomia entre
formação completa do mundo. Como refere José-Augusto França,
as artes maiores e as artes mecânicas, estabelecendo um ponto de
“a grande glória da arquitectura do ferro” foi alcançada pela torre
situação “iluminado” que anunciava as transformações e invenções
de 300 m construída por Gustave Eiffel (1832-1923) para a exposição
prodigiosas e reflectia os avanços realizados entretanto no universo
universal de 1889 em Paris. Tornada emblema da própria cidade, o
das ciências exactas: “Se puserem numa balança, de um lado a uti-
facto da sua elegância formal depender da própria construção
lidade real das ciências mais sublimes, das artes mais nobres, e do
“numa afirmação ao mesmo tempo gratuita e utilitária”,7 confirmava
outro a utilidade das artes mecânicas, verão que os valores atingidos
a possibilidade do uso estético dos dados do progresso, no caso das
não foram estabelecidos segundo critérios que tivessem em conta os
novas potencialidades do uso do ferro. Após a apoteose da máquina
respectivos méritos, porque os homens empenhados em fazer-nos crer
com a exposição parisiense,8 os engenheiros arrogam-se o título de
que somos mais felizes conseguiram sempre mais louvores do que
criadores de beleza, ou melhor, “a palavra desaparece do vocabu-
aqueles que se esforçaram para que o fôssemos de facto”.4
lário deles para ser substituída pela de utilidade”.9 Como escrevia Paul
Com o aparecimento da máquina, ou mais exactamente da téc-
Souriau em 1904, “Qualquer coisa pode considerar-se perfeita quando
nica com as suas possibilidades de reprodutibilidade mecânica e
está conforme a sua utilidade”, porque na sua beauté rationelle “não
industrial, estabeleceram-se novas relações na civilização contem-
[podia] haver conflito entre o belo e o útil. O objecto adquire a sua
porânea entre as artes e as actividades técnicas. A relação arte/téc-
beleza no momento em que a sua forma é a expressão manifesta da
nica parecia então opôr sentimento e razão, e nesse sentido separar
sua função”.
10
função técnica da função estética. Partindo do princípio que no
É neste quadro que a procura de uma arquitectura moderna, ou
mundo moderno da mecanização é muito mais difícil sentir do que
melhor de uma arquitectura “para o nosso tempo”, para usar a feliz
pensar,5 Sigfried Giedion procurou resolver a questão entre razão e
metamorfose que Otto Wagner realizou de “moderno” para “nosso
sentimento.
tempo” entre 1896 e 1914,11 tende a perseguir a ideia resultante da
Essa ideia de oposição irremediável entre arte e indústria, nascida
articulação Arte e Técnica, considerando-se justamente que “não
em meados do século XIX apenas prolongava uma sensibilidade, uma
pode ser belo aquilo que não é útil”.12 Foi Gropius que enunciou cerca
susceptibilidade romântica que não abandonou o homem ociden-
de três décadas depois, com objectividade germânica, este binó-
tal até hoje confundindo “arte com a natureza e [reduzindo] a téc-
mio como condição da reposição da unidade perdida, declarando
nica à mecanização”.6 Encarando a arte simultaneamente como
“Arte e Técnica: uma nova unidade!”.13 Com o objectivo de ligar a
modo de compreensão e modo de acção, a arte só podia ser con-
tradição artística de uma obra total na esteira das Arts and Crafts,
4 DIDEROT, Denis, “Art”, en Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une societé de gens de lettres. Mis
en ordre et publié par M. Diderot (…) et quand à la Partie Mathématique, par M. d’Alembert (…), Briasson, David, Le Breton, Durand, Paris, 1751,
SETA, Cesare de, “O Objecto”, op. cit., pág. 99.
5 GIEDION, Sigfried, Arquitectura e Comunidade, Livros do Brasil, Lisboa, 1955.
6 FRANÇA, José-Augusto, “prefácio”, en FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Livros do Brasil, Lisboa, 1963 [1956].
7 FRANÇA, José-Augusto, História da Arte Ocidental, pág.116, Horizonte, Lisboa, 1987.
8 De todo o conjunto erguido destacava-se a Tour Eiffel, tornada ícone da modernidade no seu desafio da técnica, mas também monumento
europeu surgido no seio da cultura francesa, surgia como uma confirmação de que o futuro estava no velho continente. A magnífica Gallerie
des Machines assinalava as potencialidades de articulação espacial com o novo material, ferro, a vencer um inusitado vão livre sem recurso a
apoios verticais intermédios.
9 SOURIAU, Paul, La Beauté rationelle, Paris, 1904, citado por FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, op. cit., pág. 44.
10 idem, pág. 45.
11 É sintomático o facto de Moderne Architektur ter sido editado quatro vezes em 1896, 1898, 1902 e 1914, esta útima com uma mudança
significativa de nome. Die Baukunst unserer Zeit, WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, Croquis, Barcelona, 1993 [1896].
12 WAGNER, Otto, La Arquitectura de nuestro tiempo, op. cit.
13 GROPIUS, Walter, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et manifestes de l’architectura du xxème siècle, Ed. de La Villette, Paris, 1991 [1970].
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Galerie des Machines,
in Sigfried Giedion,
Bauen in Frankreich,
1928
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Fábrica AEG, 1908
Berlín
Peter Behrens
Foto: Ana Tostões
Silo americano reproduzido entre outros em Jahrbuch des
Deutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers une
Architecture, 1923 ; Werner Lindner, Industriebau, 1923 ; Adolph
Behne, Zweckbau, 1925.
Elevador de StªJusta, 1901
Lisboa
Archivo Fotográfico Municipal-CML
Sistema Hennebique,
in Rassegna, Milano, Anno XIV,
49/1, Marzo 1992
62
assim se demarcando da prática ecléctica e estilística das Beaux-
Depois da descoberta do edifício funcional modelar, o silo ame-
Arts, fazia justamente a ponte com a tradição racionalista helvética,
ricano para cereais amplamente difundido em fotografia a partir dos
de que Hannes Meyer ou Hans Schmidt seriam porta-voz no seu
anos dez,17 Le Corbusier retomava estas imagens na revista L’Esprit
esforço radical de subtrair o discurso estético da construção.14
nouveau, relevando claramente a forma e denunciando a importãn-
Assim se propunha ultrapassar a crise aberta em meados de sete-
coa do material. A tarefa do arquitecto moderno parecia consistir
centos, quando os valores de eficácia da engenharia pareciam ter
em deixar descobertos os valores integrais de beleza da construção
condenado irremediavelmente o conceito de belo a ficar separado
e dos materiais.18 Essa imanente beleza da forma-construção e o entu-
do útil. E a arquitectura como arte, reduzida entretanto a sinónimo
siasmo pelo sentido do utilitário19 reconhece-se quando Le Corbusier
de forma e ornamento, tinha passado a opôr-se à técnica, instru-
afirmou que “a casa é uma máquina de habitar”.20 Não só procla-
mento de progresso e nessa medida de bem-estar da civilização.
mou um princípio estético, como reconheceu, na sua admiração pela
O impasse entre o belo e o útil começava a esbater-se e a per-
engenharia,21 a integração indispensável dos sistemas na construção
der eficácia justamente no momento em que a revolução industrial
moderna. Desde a canalização à electrificação, da iluminação ao
transforma em perspectiva real a produção e reprodução de mate-
aquecimento, lâmpadas, radiadores, tomadas e grelhas tornaram-
riais, sistemas, objectos. Se no final do século XIX, William Morris (1834-
se aparatos não só visíveis mas sobretudo assumidos como protago-
1896) era capaz de defender o conceito da unidade das artes atra-
nistas de uma estética moderna.
vés da arquitectura,15 duas décadas depois De Stijl no seu manifesto
Esta revolução no domínio da construção, conquistado como
ampliava os factores desta função, entendida no sentido matemá-
fenómeno da modernidade para o campo da arquitectura,
tico declarando: “testámos a arquitectura como a unidade plástica
começava inclusivamente a contaminar a área clássica da história
das artes, da indústria e da técnica e estabelecemos que esta for-
da arte, estimulando jovens historiadores a abraçarem uma historio-
mação conduzirá à criação de um novo estilo”.16
grafia apostada num presente-futuro, entre crítica, divulgação e mani-
No pós-guerra a questão começa a ser actualizada através de
festo. Giedion, formado na escola Vienense de Jakob Burckhardt e
uma valorização das formas decorrentes dos programas industriais,
Heinrich Wöllflin, coloca esse enfoque na sua primeira obra Bauen in
isto é, aquelas que não resultam directamente da arquitectura da
frankreich. Oito décadas separam a construção do Palácio de Cris-
grande composição e que estimulam imagens valorizadoras da estru-
tal do aparecimento da obra de Giedion que exalta a inovação das
tura portante. A influência germânica tornava-se referência, se pen-
construções dos engenheiros, isto é das construções industriais. De
sarmos nas obras pioneiras de Behrens, a sua AEG de 1903, ou mesmo
facto é entre 1851 e 1928 que se constitui o período onde tem lugar
na fábrica Fagus realizada pelo jovem Gropius com um experimen-
o debate sobre o uso arquitectónico do ferro. Giedion propõe justa-
talismo que será a base da sua evolução posterior.
mente uma leitura onde o material tem um papel central na perio-
14 GUBLER, Jacques , «le belezza del cemento armato », in “Cemento armato : ideologie e forme da Hennebique a Hilberseimer”, in
Rassegna pág. 86, Milano, Anno XIV, 49/1, Marzo 1992.
15 “Penso que só por conveniência se separa a pintura e a escultura das artes aplicadas: porque o sinónimo de arte aplicada é a arquitectura (…) O produto completo da arte aplicada, a verdadeira unidade da arte é um edifício com todos os seus ornamentos e acessórios”, in
MORRIS, William, The Arts and Crafts today, 1889, Cf. por SETA, Cesare de, op. cit., pág. 112.
16 « De Stijl » Manifeste V:- [ ]+=R4, Paris, 1923, in CONRADS, Ulrich, Programmes et Manifestes de l’Architecture du XXème Siècle, Ed. de La
Villette, Paris,1991 [ed.original alemã 1970].
17 Reproduzida entre outros em Jahrbuch des Deutschen Werkbundes, 1913; Le Corbusier, Vers une Architecture, 1923 ; Werner Lindner,
Industriebau, 1923 ; Adolph Behne, Zweckbau, 1925.
18 NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe: La Palabra sin artifício, reflexiones sobre arquitectura, pág. 234, El Croquis, Madrid, 1995.
19 GEORGIADIS, Sokratis, “introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, Bauen in Eisen, bauen in Eisenbeton, op. cit, pág. 22.
20 LE CORBUSIER, Vers une Architecture, Flammarion, Paris, 1995 [1923].
21 Le Corbusier na sua apologia dos engenheiros refere: “sãos e viris, activos e úteis, morais e alegres, em face dos arquitectos
“desencatados e desocupados...os arquitectos hoje não realizam mais formas simples. Operando a partir do cálculo, os engenheiros usam
as formas geométricas, satisfazendo os nossos olhas pela geometria e o nosso espírito pela matemática; as suas obras estão no caminho da
grande arte”. Le Corbusier fez muito pelo reconhecimento da estética do engenheiro revelando a “harmonia de um silo, de um paquete,
de um avião, de um automóvel: “As criações da técnica maquinista são organismos que tendem à pureza e que estão submetidos às
mesmas regras evolutivas dos objectosda natureza que suscitam a nosas admiração. A harmonia está nas obras que saem do atelier ou da
fábrica. Não é Arte, não é a Sixtina, nem o Eréction; são as obras quotidianas de todo o universo que trabalha com consciência,
inteligência, precisão, com imaginação, audácia e rigor”. Cf Vers une Architecture, [1923].
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substitutiva só podia estar no novo universo criado a partir da revolução industrial. Por isso se pode dizer que as vanguardas se empenharam na tarefa de negar todos os aspectos da natureza, considerados antes imutáveis. Usando como suporte os novos dados descobertos pela ciência e as novas possibilidades da técnica, o mundo
industrial articulava a radicalização da noção de modernidade.
Máquina e modernidade: a produção em serie
e os seus efeitos
A modernidade tem sido definida como as experiências vitais compartilhadas por homens e mulheres de todo o mundo.25 Vitais, porque
convocam a experiência do tempo e do espaço. Uma relação no
espaço-tempo e uma percepção do espaço e do tempo transformados pela velocidade. A transformação pressupõe a introdução
Lisboa Filme,
in AA.VV., Lisboa Filme. Um Sonho Vencido,
Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1987
de um conceito novo, o da velocidade, inebriante e imparável.
Sendo a máquina o protagonista desta alteração possível no espaçotempo.26 Ser moderno, é encontrar-se num ambiente que promete
aventura, poder, alegria, evolução, autotransformação e transformação das coisas em redor. Ser moderno, é fazer parte de um universo em que “tudo o que é sólido se dissolve no ar”.
Esta vida moderna radica em diversas fonte, das quais a mais
importante é certamente a industrialização da produção como fac-
dização histórica da arquitectura moderna. Analisando a revolução
tor de transformação do conhecimento científico em tecnologia. De
operada pelo ferro, insiste na passagem de um modo de construir
tal modo, que os novos ambientes humanos se afirmam na relação
para outro, traduzindo-se na evolução em direcção ao betão
directa da destruição dos antigos. Goethe no seu Fausto revelou
armado: o material do século XX, apresentado como matéria funda-
impiedosamente essa crueza: reconhecido como expressão da pro-
mental da nova arquitectura. Recorrendo à noção de experiência,
cura espiritual moderna atinge a sua realização e simultâneamente
propõe uma nova metáfora para a invenção arquitectónica. A arqui-
a sua derrocada na transformação material da vida moderna. E é
tectura, a partir do momento que decorre de um processo experi-
certamente a industrialização que funciona como factor de acele-
mental, pode aproximar-se não só do progresso das técnicas, mas
ração do ritmo de vida, como geradora de novas formas de poder
também do trilho das ciências.22 Insistindo sobre o primado do mate-
institucional e de novas formas de luta de classes. Por seu turno a
rial sobre a forma, não hesita em colocar o betão armado como o
explosão demográfica afecta milhões de deslocados empurrando-
motor da revolução estética.
os em direcção a novas vidas, conduzindo a um rápido e catastró-
A cultura do progresso, e nessa medida da máquina, tinha em
fico crescimento urbano. Neste quadro, os sistemas de comunicação
vista melhorar, tornar mais racional, eficiente, legível e agradável o
de massas envolvem indivíduos e sociedades, ao mesmo tempo que
ambiente da vida quotidiana. Em simultâneo lançava-se uma com-
movimentos sociais de massas lutam paradoxalmente por obter algum
ponente eminentemente política porque se ocupava exclusivamente
controle sobre as suas vidas. Finalmente um mercado de sentido capi-
do objecto para as massas. Gropius vai ser o protagonista desta nova
talista mundial, flutuante, em permanente expansão, dirige e mani-
civilização de objectos: da colher à cidade.23 O salto qualitativo pro-
pula pessoas e instituições.
vocado pelo seu contributo fez com que a atenção aos mecanismos
Eis o paradoxo moderno: algo que se quer agarrar mas que pas-
industriais de produção de objectos se estendesse à construção civil
sou a estar em permanente transformação. A ideia que Marx já tinha
e ao urbanismo. Retomando a ideia exposta em “Arte e Técnica, uma
conceptualizado na poderosa imagem que literalmente e em todos
nova unidade”, podemos afirmar que a articulação da tradição das
os sentidos objectivava a desagregação da matéria, do referente
Arts and Crafts com o contributo da Werkbund encontram na teoria
mundo material, usando uma metáfora que buscava nas ciências
e na prática projectual de Gropius um momento de síntese.
mais exactas a força da sua imagem para contrapor o sentido de
Entretanto em 1908 o historiador da arte Wilhelm Worringer reconhecia que a arte já não representava a natureza, já não era, nem
puro e impuro: “tudo o que é sólido se dissolve no ar, tudo o que é
sagrado será profanado”.27
pretendia ser uma segunda natureza, finalmente já não retirava os
As polarizações básicas manifestam-se no início do século XX com
seus valores da referente natureza. Na sua obra denominada Abs-
as vanguardas, claramente com os futuristas, defensores apaixonados
24
o valor que Worringer dava à abstracção
da modernidade no desejo de fundir as suas energias com a tecnolo-
teria grande influência nos arquitectos de entre as guerras, e parti-
gia. O seu acrítico namoro com as máquinas conjugado com um pro-
cularmente nas vanguardas estéticas que explodiram na Europa. As
fundo distanciamento da humanidade ressurgiria depois da I Guerra
vanguardas vão trabalhar no sentido de demonstrar que a natureza
Mundial nas formas retiradas da estética da máquina e na tecnocrá-
já não tinha uso como categoria organizativa no pensamento artís-
tica e funcional construção da Arquitectura do Movimento Moderno.
traction und Einfuhlung
tico e arquitectónico. Partindo desse princípio de tábula rasa a fonte
Importa recordar que no século anterior, e por isso justamente
22 COHEN, Jean-Louis , “Avant-propos”, in GIEDION, Sigfried, Construire en France, construire en fer, construire en béton, pág. XI, Ed. de La
Villette, Paris, 2000.
23 Referência ao discurso de Mies van Der Rohe no aniversário de Gropius “A bauhaus é uma ideia”, Cf. NEUMEYER, Fritz, Mies van der Rohe,
Réflexions sur l’Art de bâtir, Paris, Moniteur, 1996.
24 Que me atrevo a traduzir por “Abstracção e Empatia”. Significativamente a versão francesa mantém o conceito, um pouco intraduzível, na
língua original. Cf. WORRINGER, Wilhelm, Abstraction et Einfuhlung, Kkincksieck, Paris, 1986 [ed. Original alemã 1908].
25 BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág.105, Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].
26 Em 1908 O matemático alemão Hermann Minkowsky revelava a sua teoria de espaço-tempo quadrimensional que Giedion virá adesignar
como “revolução óptica”. Cf. GIEDION, Sigfried, Space, Time and Architecture, The Growth of a new tradition, Harvard, 1941.
27 “Alles Ständische und stehende verkampft, alles heilige wird entweist”, Cf. MARX, Karl , Manifestes der Kommunistischen Partei, Leipzig, 1973
[1848] ; É este o tema, da visão diluidora e da sua dialética, que Marshall Berman usa como metáfora da modernidade, traduzindo por “All that
is solid melts in air, all that is holy is profaned”, cf. BERMAN, Marshall, Tudo o que é sólido se dissolve no ar, a aventura da modernidade, pág. 105,
Edições 70, Lisboa, 1990 [1981].
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num contexto dominado pelo romantismo oitocentista, certas ideias
expostas na literatura moderna afectaram a cultura em geral.28
A primeira ideia absorvida respeita ao conceito de belo,
avançando-se a ideia de que arte e fealdade não são exactamente
incompatíveis. A aceitação deste fenómeno vai estimular a aceitação de novas formas, tendencialmente abstractas. Mas mais do
que isso vai abrir o campo para a exploração dos estímulos plásticos
e cinéticos emanados do mundo da técnica numa época de crescente afirmação da máquina.
A segunda ideia podemos designá-la por um desejo de sinceridade. É certamente a influência literária mais subtil e talvez a mais
penetrante. Conduz-nos à noção de verdade, e por essa via à procura de objectividade, figura adoptada pelos arquitectos modernos.
E, transformada quantas vezes na ideia de funcionalismo, isto é, o que
objectivamente responde à função desejada. Finalmente a sinceridade como valor moral exerceu uma influência directa sobre o modo
Arsenal Alfeite,
in Arquitectos, nº3, 1938
Fábrica Lusitana
Porto
de encarar a arte e a técnica, integrando-se como factor da concepção arquitectónica através da ideia de que a construção deve-
64
ria expressar “sinceramente” a sua estrutura. Os materiais não deveriam portanto ser camuflados, mas assumidos na sua integridade, o
que conduziu lentamente primeiro e depois de modo amplo a assumir a crueza, ou se se preferir a verdade dos materiais, abrindo
caminho para descobrir a potência plástica da arquitectura industrial vista como acto de inovação capaz de ela própria poder con-
dissociava construção e fachada, verdade do material e ornamento
tribuir para alimentar a própria sobrevivência do processo moderno.
apenso. E, como se verá, a construção encarada como uma com-
Em terceiro lugar, decorrendo directamente das duas questões
posição em partes separadas e aparentemente autónomas que
anteriores abria-se o campo ao materialismo, e com ele ao raciona-
caracterizou o ecletismo de final de oitocentos não foi só caracterís-
lismo e ao funcionalismo. Racionalmente a forma podia finalmente
tico da “grande” arquitectura porque as próprias construções ditas
ser entendida como expressão da construção. A arquitectura
“ulilitárias” integraram igualmente essa dicotomia.
moderna concentra-se na expressão da construção e é também
O Elevador de Santa Justa, em Lisboa, projectado pelo engen-
nessa medida que luta contra o ornamento. Funcionalmente a uni-
heiro Raoul Mesnier du Ponsard em 1900 e inaugurado no ano
formização resultava da lógica optimização dos recursos quer ao nível
seguinte constitui a obra paradigmática do novo século. Utilizando,
da concepção espacial como da eleição de materiais, ou da
inicialmente, a energia de uma máquina de vapor celebrava as uto-
escolha dos sistemas e tecnologias para responder com eficácia à
pias urbanas finisseculares materializadas atravès das inovações da
questão colocada, em que o programa industrial constitui matriz
técnica. Estabelecendo uma comunicação entre a Baixa e o Carmo
incontornável.
assinalava-se escultoricamente na sua verticalidade como elemento
inovador da cidade, afinal a torre possível da marcação do progresso.
O ferro como novo material de construção era utilizado sem disfarce,
ARQUITECTURA MODERNA E INDÚSTRIA EM PORTUGAL
Experimentação de materiais e estructuras
mas expresso paradoxalmente numa linguagem revivalista gótica
A afirmação e desenvolvimento da arquitectura moderna portuguesa
que era ainda de oitocentos.
que buscava a sua adequação a um tempo e a uma mentalidade
faz-se ao ritmo da industrialização e da relação directa estabelecida
Desde meados de oitocentos que o ferro constituía uma inovação
com a produção dos novos materiais de construção. No início de
aplicada à construção das novas infraestruturas viárias. Empregue ini-
novecentos a cultura portuguesa, como aliás de um modo geral todo
cialmente no quadro da implementação dos caminhos de ferro e uti-
a cultura ocidental, debatia-se entre um desejo de modernização,
lizado pela primeira vez entre nós na ponte de Xabregas (1854), as
que se apoiava numa crença optimista nas potencialidades da
possibilidades estruturais do material ficariam ligadas duas décadas
máquina, e uma nostalgia de passado ameaçado que desprezava
depois às pontes D. Maria (1877) e D. Luís (1888) sobre o Douro, ex-
esse presente em acelerada mutação. O mundo da construção e da
libris não só portuenses mas de amplitude internacional como modelo
cidade reflectiam de algum modo a dicotomia desse momento de
de resolução de grandes e profundos vãos.31 A revelação mediática
transição, em que os valores artísticos da arquitectura eram con-
no ferro como material de construção ocorreu entre nós justamente
frontados com a eficácia da engenharia e as possibilidades dos novos
no Porto por ocasião da exposição Universal de 1865 que justificou o
materiais. Por outras palavras, a engenharia insinuava-se como a
Palácio de Cristal portuense.32
29
“nova arquitectura”. Ou melhor, no momento em que “a indústria
Diversas experiências com estruturas metálicas para além de reve-
substituía a arte”,30 tendia a cristalizar-se o debate arte-técnica. E
larem actualizadas possibilidades técnicas assinalavam transfor-
assim se separando em campos opostos o secular percurso comum
mações na conjuntura social que exprimiam o silogismo: programas
da arquitectura e da engenharia.
novos-materiais novos. Contudo, o academismo e a expressão de
Este afastamento disciplinar que demarcava a eficácia estrutu-
uma tradição construtiva feita gramática compositiva que domina-
ral do engenheiro da habilidade artística do arquitecto tinha a sua
vam a prática da arquitectura impediam culturalmente a assunção
correspondência no fenómeno epocal e revivalista romântico que
clara da verdade estrutural. Acantonados nos princípios clássicos, os
28 COLLINS, Peter, Los Ideales de la Arquitectura Moderna; su evolución (1750-1950), Gustavo Gili, Barcelona, 1998 [1968].
29 Sobre esta questão veja-se a discussão ocorrida no seio da cultura arquitectónica alemã ao longo de oitocentos, com destaque
para as posições de Gottfried Semper. Cf. GEORGIADIS, Sokratis, “Introduction”, in GIEDION, Sigfried, Bauen is Frankreich, Bauen in
Eisen, bauen in beton, Getty Center, Santa Monica, 1995 [1928].
30 FRANCASTEL, Pierre, Arte e Técnica, Lisboa, 1963 [1956].
31 FRAMPTON, Keneth, História Crítica da Arquitectua Moderna, pág. 35, Gustavo Gili, Barcelona, 1987.
32 Construído entre 1861 e 1865, apresentava uma cúpula de ferro e vidro a toda a extensão do edifício com uma altura de cerca de
18,90 m, Cf. Arquitectura de Engenheiros, séculos XIX e XX, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980.
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Fábrica Lusitana
Porto
Algarve Exportador
Matosinhos
Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
Rainha do Sado
Matosinhos
Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
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arquitectos posicionaram-se do lado da resistência à inovação.33 Na
duas décadas viria a substituir completamente o ferro usado estrutu-
verdade, a adesão à lógica da máquina e a uma racionalidade
ralmente– betão armado era utilizado pela primeira vez na cons-
construtiva decorrente da aplicação dos novos materiais, foi reser-
trução de uma grande obra pública: o edifício da Escola Médica de
vada inicialmente a edifícios de carácter eminentemente utilitário de
Lisboa onde foi usado na execução do tecto do átrio e pavimento
que a Fábrica de Moagem de Trigo do Caramujo (Almada, 1898)
do respectivo piso superior que foi relizado com o sistema Cottancin.
constitui paradigma em Portugal porque se trata da primeira cons-
A utilização das potencialidades do novo material, o betão armado,
trução em betão erguida entre nós.
não é, mais uma vez, assumida arquitectónicamente.
A construção deste programa industrial foi realizado entre 1897 e
Até 1910 há notícias de uma construção intensa em betão
1898, aplicando o sistema Hennebique quando o betão armado era
armado, particularmente pelos concessionários Hennebique, supor-
ainda uma novidade em Portugal34 e segundo alguns autores mesmo
tada pela matéria-prima fornecida pela primeira fábrica de cimento
no estrangeiro.35 A escolha deste sistema poderá relacionar-se direc-
artificial “Portland” em Alhandra que funciona a partir de 1894.37 Entre-
tamente com os riscos das construções tradicionais, nomeadamente
tanto em Lisboa fundava-se o Instituto Superior Técnico (à Boavista)
a sua fragilidade ao fogo, sentidos pelos industriais. Mas, muito para
e no Porto criava-se o “Laboratório de Resistência de Materiais” no
além disso o sistema patenteado por Hennebique com os seus repre-
quadro da mesma Universidade o que denunciava um crescente
sentantes em Portugal, permitia uma concepção estrutural de gran-
entendimento científico da questão que passava do quadro de
des espaços apenas pontuados pela rede de finos pilares que se con-
empresário-construtores, ao universo científico da engenharia. A
jugavam com lajes armadas capazes de suportar grandes sobrecar-
invenção de fórmulas matemáticas, os cálculos e a experimentação
gas, solução que respondia claramente aos requisitos funcionais de
de ruptura permitem introduzir o betão armado no ensino da cons-
uma grande laboração industrial. Para além disso, era ainda possível
trução. Tornado sistema o betão armado podia definir-se segundo
encontrar soluções inovadoras que aliavam a funcionalidade á téc-
normas legais de segurança. E em 1912 iniciava-se iniciava-se a cons-
nica construtiva e à manutenção do edifício: por exemplo a cober-
trução de um programa industrial totalmente desenvolvido em betão
tura em terraço adoptada servia simultaneamente de reservatório
armado: a Fábrica de cerveja Portugália em Lisboa de antónio Rodri-
de água (com capacidade para 20 m3), de isolamento térmico36 e
gues da Silva Júnior.
atrevemo-nos a pensar que também funcionando como neutraliza-
A cronologia justifica claramente a importância do ano 1918, no
dor das dilatações provocadas ao material pelas diferenças de tem-
imediato pós-guerra, com a publicação do primeiro regulamento do
peratura. Contudo, apesar das grandes inovações construtivas, a
betão armado, inspirado no francês e no alemão, e também com o
resolução da fachada, executada tradicionalmente com enchimento
projecto do engenheiro Osório de Rocha e Mello para a criação da
de tijolo, acabaria por expressar um desenho também ele tradicio-
Fábrica de Cimento Henrique Sommer, a Empresa de Cimentos de
nalmente “clássico” para este grande edifício de seis andares e que
Leiria, que hoje conhecemos como Cimenteira Liz. Cinco anos mais
interiormente apresentava vãos livres rectangulares entre pilares de
tarde, em 1923, inaugurava-se o primeiro forno rotativo moderno com
3,00 m por 5,35 m.
uma capacidade para 220 t por dia.38
Nesse mesmo ano 1898 o novíssimo material –que em menos de
33 HENRIQUES da SILVA, Raquel, Arquitectos e Engenheiros: a função de construir, texto proferido na Sessão inaugural da Licenciatura de
Arquitectura do Instituto Superior Técnico em Dezembro de 1998.
34 CARVALHO QUINTELA, António de, “Contribuição para a História do Betão Armado em Portugal: Primeiras Obras”, Revista Portuguesa de
Engenharia de Estruturas nº 30, pág. 10, Lisboa, Janeiro de 1990.
35 SANTOS SEGURADO, E. dos, Cimento Armado, Biblioteca de Formação profissional, Lisboa, Aillaud e Bertrand, s/d. António de Carvalho
Quintela situa a edição da obra cerca de 1920 justificando o facto de incluir o regulamento de betão armado de 1918 e do exemplar
netrado na Biblioteca do IST ter dado entrada em 1923, Cf. CARVALHO QUINTELA, António de, op. cit., pág. 15.
36 Ver SANTOS, António Maria A., “Betão Armado e Indústria”, in Arquitectura e Industria Modernas 1900-1965, Sevilla, Docomomo Ibérico,
1999, pág. 26; Para o Estudo da Arquitectura Industrial na região de Lisboa (1846-1918), Lisboa, Dissertação de Mestrado em História da Arte
Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa-FCSH, 1996.
37 VISEU, Joaquim C.S., História do betão Armado em Portugal, pág. 53, ATIC, Lisboa, 1993.
38 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002.
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Fábrica de fiação e tecidos
Vizela
in Fábrica de Fiação e Tecidos,
Comemoração 150 anos, Câmara
Municipal de Santo Tirso
Armazens frigiríficos do bacalhau
Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
Fábrica Martini
Victor Palla e Bento de Almeida
Binário nª1, Lisboa, Abril 1958
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Betão armado e efémero modernismo
construção singular a vários níveis: pelo programa misto que integra
De facto, a partir de meados dos anos vinte surge o primeiro ciclo do
o edifício da administração com desejado carácter de representação
betão armado que coincide com o ciclo da arquitectura modernista
e o corpo de oficinas que programaticamente se aproxima do carác-
apoiado já nas possibilidades estruturais e plásticas do betão armado.
ter utilitário; pelo empenho construtivo que uma obra desta importân-
E assim rompendo claramente com os sistemas oitocentistas. Por isso se
cia reclamou; finalmente pelo facto de revelar pioneiramente uma
pode afirmar que, após um período de “cristalização artística” e resistên-
abordagem inovadora que se afastava do quadro ortodoxo definido
cia ás inovações tecnológicas, os arquitectos descobrem o betão armado
pelo Movimento Moderno de estilo internacional, assim se aproxi-
depois dos engenheiros. A confissão do facto, ou a consciência deste
mando das experiências holandesas desenvolvidas em contextos não
atraso, constituirá a pedra de toque de um debate apaixonado que
radicais e menos divulgadas no nosso país.
envolverá a vanguarda europeia dos anos vinte: Gropius, Le Corbusier e
O conjunto edificado redesenha a forma rectangular do quar-
sobretudo Sigfried Giedion reconhecem e exaltam a “estética do engen-
teirão aberto no interior formando um extenso pátio. O edifício da
heiro”.39 Mas é sobretudo Auguste Perret que desenvolve desde os pri-
administração forma o topo norte ligando-se aos três corpos em U
meiros anos do século uma obra que postula a emergência de uma esté-
das oficinas através de dois corpos de passagem elevados sobre pilo-
tica a partir do uso do novo material. Por outras palavras, Perret formula
tis. A cobertura em terraço que remata todo o conjunto é ocasiona-
a sua doutrina arquitectónica baseada na ideia de que o betão armado
lemnte substituída em certas zonas fabris por uma cobertura em shed
possui uma qualidade estética própria.40
permitindo a entrada directa da luz norte, mas também por áreas de
Neste processo, o novo gosto geometrizado Art Déco evolui no
sentido de um despojamento formal, apoiado conscientemente na
terraço preenchidas pelo tijolo de vidro cilindrico, de utilização tâo
comum nas obras modernistas dos anos trinta.
valorizacão plástica da técnica, que constituirá a base de trabalho
Na defesa do projecto contra os detractores da arquitectura
do nosso modernismo experimental. Apoiados no cálculo e nas inves-
moderna42 o arquitecto reivindicou o “paradigma racional e a neces-
tigações de arrojados engenheiros, como Bellard da Fonseca, Espre-
sidade de o edifício responder á funcionalidade interior” que aca-
gueira Mendes, Arantes e Oliveira, entre outros, o novo sistema cons-
bou por ser aceite dado o carácter industrial do programa. Admi-
trutivo baseado no betão armado começava gradualmente a ser
tindo-se então que “os grandes panos de parede, a proporção larga
assumido pelos arquitectos que o passavam a reconhecer como feito
das janelas, a lisura da composição, são tudo feições adequadas aos
cultural significativo. Isto é, assiste-se ao progressivo desenvolvimento
edifícios fabris”.43 Marcação de um paradigma de qualidade na cons-
da ideia de tecnologia como padrão cultural, atribuindo-se á racio-
trução, revela o amadurecimento do expressionismo do autor na arti-
nalidade da construção o papel eminente de “gramática” da lin-
culação dos vários volumes que formam o quarteirão, assumidos com
guagem que se procura: coberturas em terraço, grandes vãos com
presença e funções diferentes e onde se destacam as duas entra-
extensos envidraçados, gosto pelas superfícies rebocadas e lisas e
das: monumentalizante no edifício da administração e, articulada
pelos volumes cúbicos e puros. Assim se constituindo como elemento
com outra liberdade, a entrada reentrante do corpo de gaveto das
“modelador” da forma e nessa medida dotado de uma autonomia
oficinas jogando com o relógio, o baixo-relevo, e o revestimento tex-
estética própria.
turado dos tijolos esmaltados de verde dos panos entre pilares.
A leitura de uma das mais singulares obras do primeiro moder-
No quadro industrial ainda decorrente dessa encomenda pública,
nismo, a casa da Moeda projectada em 1931 pelo arquitecto Jorge
o Arsenal do Alfeite projectado pelos irmãos Rebelo de Andrade
Segurado (1898-1990) e pelo engenheiro Espregueira Mendes,41 é
revela a importância dada à indústria naval agora com carácter
reveladora da evolução da década dos anos trinta e das situações
representação. O carácter representativo é aliás um dos temas reco-
levantadas no decorrer da obra pela procura de um racionalismo
rrentes também no programa industrial como é o caso da Firma
construtivo e de um funcionalismo programático. Trata-se de uma
Comercial Lusitana, um enorme espaço de produção textil construído
39 Veja-se por exemplo, GIEDION, Sigfried, Bauen in Frankreich, bauen in eisen, bauen in beton, op. cit.,
40 Cf. Edifício da rua Franklin em Paris (1903) à Igreja de Notre-Dame de Raincy (1924), a primeira obra de grande escala onde era possível
admirar o betão em todo o seu esplendor e beleza, ver COLLINS, Peter, Le Splendeur du béton, Hazan, Paris, 1995.
41 Que já havia surpreendido com o projecto estrutural da Estação Sul e Sueste em Lisboa projectado pelo arquitecto Cottinelli Telmo, Cf.
TOSTÕES, Ana, “Arquitectura da primeira metade do Século XX”, in PEREIRA, Paulo (Dir.), História da Arte Portuguesa, Círculo de Leitores,
Lisboa, 1995.
42 A este propósito veja-se por exemplo RIBEIRO COLAÇO, António, quando denunciava “os caixotes de Moscovo, de Munique, de toda a
parte menos de Portugal”, in Arquitectura Portuguesa nº38, Lisboa, maio de 1938.
43 Parecer do Conselho Central de Obras Públicas, Dezembro 1938.
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Saída de trabalhadores da Fábrica Mundet
& Cª, Seixal, 1953
Ecomuseo Municipal do Seixal/CDI-Mundet in
BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel,
ROLLO, Maria Fernanda, (coord.), Engenho e Obra,
Dom Quixote, Lisboa, 2002
Soda Póvoa. Póvoa de Santa Iria
Foto: Santos de Almeida, Arquivo de
Fotografia de Lisboa-CPF/MC
en BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR
Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),
Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
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no Porto com a crueza da arquitectura industrial onde é aposta um
de superar o estilo. Contudo, justificado por factores económicos,
pano de fachada de desenho classizante. Em Lisboa, o edifício do
adoptava-se ainda recorrentemente uma construção mista, em que
Diário de Notícias, uma indústria gráfica erguida na principal avenida
o betão armado era sobretudo utilizado nos elementos horizontais,
da capital, assume-se pelo contrário como paradigma urbano da
nas lajes, recorrendo-se ainda nos suportes verticais a paredes por-
modernidade. Também o novo programa da indústria do cinema se
tantes de alvenaria onde se integravam vigas de betão armado para
define de acordo com a expressão modernista decorrente da utili-
realizar aberturas mais amplas. Finalmente, quer a formação da pri-
zação do betão armado.
meira geração modernista no gosto das Beaux-Arts, quer a prepon-
No Porto, foi a encomenda privada que estimulou a emergência
derância de uma encomenda dirigida para um programa da obra
de obras descomprometidas com os códigos da monumentalidade
pública, focado numa monumentalidade capaz de simbolizar o
que caracterizavam a obra pública. Se a Garagem do Jornal O
regime, concorriam para fragilizar a aplicação dos pressupostos glo-
Comércio do Porto (1928) de Rogério de Azevedo combina um pro-
bais do Movimento Moderno no seu empenho em dar uma resposta
grama inédito de garagem e escritórios é justamente no programa
ampla ao desafio colocado pela modernidade.
industrial da Lota de Pescado de Massarelos que Januário Godinho
Afinal qual era o desafio que a modernidade podia colocar num
desenvolve a sua primeira obra de grande força expressiva conden-
país como o nosso, assente numa sociedade retrógrada e numa cul-
sando influências múltiplas (desde o expressionismo holandês ao neo-
tura marcadamente reaccionária que reflectia uma política econó-
plasticismo) e onde são as exigências funcionais que determinam a
mica assente numa estagnante e forte componente rural? Sem um
relação entre a espacialidade interna e o sistema estrutural. Em Mato-
efectivo desenvolvimento industrial, condição das transformações
sinhos, a indústria conserveira, com destaque para o Algarve expor-
bruscas do processo de modernização, os esforços desenvolvimentis-
tador de António Varela ou para o conjunto das conserveiras Rainha
tas de um engenheiro, Duarte Pacheco, não ultrapassavam a reforma
do Sado, constitui exemplo de uma construção de grande escala,
de umas obras públicas e o planeamento de uma capital do Império.
despojada, utilizando uma longa cobertura em shed e referenciada
Quando Salazar respondia aos industriais reunidos no seu I Congresso
linguísticamente a um gosto modernista. Ainda no Porto, o jovem Keil
em lisboa, em 1933: “Segui com o maior interesse as teses apresenta-
do Amaral desenha para um estreito lote da rua dos Clérigos as novas
das (…) Há certamente, entre elas algumas que podem chamar-se
instalações do Instituto Pasteur actualizando ineditamente uma
ambiciosas, programas vastos de mais para um futuro imediato, que
expressão claramente urbana.
passam além das possibilidades do momento (…)”44 Por outras palav-
Para além destes programas industriais de vocação eminentemente funcional a habitação constituíu igualmente matéria de expe-
ras, se o país não se modernizava, como podia a arquitectura fazê-lo
ou o urbanismo responder a problemas não colocados.
rimentação. Quer na surpreendente Casa de Serralves desenhada
Por outro lado, um gosto eclético e a sensibilidade naturalista cul-
em 1931 para o Conde de Vizela pelo veterano Marques da Silva,
turalmente dominantes, conjugadas com as condições materiais do
que introduz os códigos das Arts Déco temperando-os com um prag-
país, impediram que a máquina fosse entendida como elemento axial
matismo construtivo que lhe permite ultrapassar o sentido gráfico e
da revolução estética e social45. Finalmente a formação Beaux Arts
os aspectos mais decorativos do movimento francês, pela escala e
atraiçoava os arquitectos modernistas quer nos partidos adoptados,
pela pujança tectónica adoptadas. A referência linguística será aliás
recorrendo sistematicamente a uma simetria compositiva, mas que
estendida à frente da Fábrica de Fiação e Tecidos Vizela, do mesmo
também se mostravam inacapazes de lidar com uma implantação
encomendador, abrigando um extenso dispositivo de indústria têxtil
topográfica de um modo natural ou orgânico. Confirmando o mal
situado na região do rio Ave.
endémico formativo e geracional de que “desenhar sobre a pran-
Este primeiro ciclo do betão decorre sob um dos aspectos do
cheta era implantar o edifício sobre o terreno”.46
quadro estabelecido pelo programa moderno que confiava na equi-
O modernismo, que enquadrou o primeiro ciclo do betão entre
valência entre o processo técnico e o processo formal como modo
nós, foi um estilo que concorreu para suportar a novidade imagética
44 Oliveira salazar, “A acção governativa e a produção industrial”, Discursos, vol.I, 1928-1934, 4ªed., Coimbra, 1961. Cit. ROLLO, Maria Fernanda,
“Engenharia e história: percursos cruzados”, in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (Coord.), Engenho e Obra, op.
cit.
45 Se quisermos, Alberto Caeiro conhecia o Portugal profundo e por isso era capaz de responder com singela sabedoria ao espírito do tempo e da terra.
Enquanto que na sua admiração pelos prodígios exaltantes da máquina o engenheiro Álvaro de Campos só podia ter sido contaminado pelo vírus do
progresso no universo anglosaxónico, em Glasgow, onde hipoteticamente estudou.
46 RAMOS, Carlos, Palestra dedicada a todos os alunos da escola de Belas-Artes de Lisboa, 1935.
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Nitratos Portugal, grupo Sacor, 1956
Foto: Alstom
in BRANDÃO DE BRITO, José Maria,
HEITOR Manuel, ROLLO, Maria
Fernanda, (coord.), Engenho
e Obra, Dom Quixote, Lisboa.
Oliva
Linha do montagem das máquinas
de costura
Archivo Olivacast-Fundição
Ferrosa, SA,
in BRANDÃO DE BRITO, José Maria,
HEITOR Manuel, ROLLO, Maria
Fernanda, (coord.), Engenho e
Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
Secil, escola primária
Arquivo Keil do Amaral
desejada pelo Estado Novo na sua fase de implantação e marcou o
nar a sua produção a partir dos anos quarenta. E assim negando o
tempo das grandes obras públicas do regime, nesse paradoxo de
postulado moderno de que a determinante técnica levaria à erradi-
monumentalidade programática que atraiçoou qualquer veleidade
cação do estilo. Muitas das obras historicistas, modelarmente refe-
de uma modernidade radical que pudesse buscar a sua filiação no
renciadas à Praça do Areeiro do mesmo Cristino da Silva, são a con-
Movimento Moderno canonizado ortodoxamente pela historiogra-
firmação da utilização de uma sofisticada estrutura de betão armado
fia. Não foi um método de trabalho ou uma teoria projectual. Foi
mascarada exteriormente por uma fachada historicista e orna-
sim, mais um estilo, o modernista. Baseado numa forma que tendia
mentada, renegando o principio da verdade dos materiais. Esta
para a abstracção decorrente da utilização de volumes puros que
situação reflectia aliás o processo que acompanhou a ascensão
o betão armado agenciava a partir das lajes de cobertura em
das ditaduras europeias e que ficou bem patente em 1937 na Expo-
terraço ou de grandes vãos abertos e preenchidos com a trans-
sição Internacional de Paris. E que, entre nós, teria três anos depois
parência de longas superfícies de vidro. Cristino da Silva que mar-
paralelo “imperial” com a celebração política e ideológica que a
cou com o seu Cine-teatro Capitólio o momento de ruptura nos
Exposição dos Centenários significou. O próprio programa industrial
códigos formais afirmaria prosaicamente que “a arquitectura
se adaptou a esta imagem de regime patente sobretudo nos gran-
moderna surgiu por causa dos novos materiais”. A forma, transfor-
des empreendimentos da capital: Armazéns Frigoríficos do bacal-
mada técnicamente em verdade construtiva, justificava-se a partir
hau, standard Eléctrica, A Nacional ou na Fábrica de Cabos Eléc-
da função, num binómio tornado condição de racionalidade.
tricos Diogo de Ávila.
Invoca-se a funcionalidade como razão da utilidade dos usos, da
finalidade das coisas, da objectividade do que é essencial. Era jus-
Industrialização e modernização
tamente na questão da funcionalidade interna que os autores se
A situação de pós-guerra tende a conformar a ruptura moderna
refugiavam frequentemente para justificar os partidos adoptados.
entendida como o momento de fazer contas com a modernidade,
Se as grandes obras públicas colocavam em evidência tanto as
de dar atenção ao interrompido projecto moderno. As premissas do
componentes técnico-construtivas dessas obras como a comple-
movimento moderno, referenciadas claramente a Le Corbusier e,
mentaridade disciplinar entre engenheiros das várias especialidades
ainda por essa via, à potencial vitalidade da moderna arquitectura
e arquitectos de que o processo das Gares ou da Casa da Moeda
brasileira,47 adoptam-se de um modo ético e ideologicamente con-
constituem um modelo, é no quadro de uma iniciativa privada e nal-
victo que integrava o valor de uma função social. É o tempo da con-
guns programas industriais ou lúdicos que se assume o rasgo experi-
testação ao regime no contexto do Congresso heróico dos arqui-
mental de que a Garagem do Comércio do Porto ou a Lota do Pes-
tectos, o I Congresso Nacional de Arquitectura realizado em 1948.
cado de Massarelos constituem eloquentes exemplos.
Nesse momento de viragem na reconquista da liberdade de
A utilização do betão estende-se ao edifício corrente com Cas-
expressão dos arquitectos e simultâneamente do espaço para afir-
siano Branco a agenciar uma profunda renovação nas fachadas,
mar a inevitabilidade da arquitectura moderna, os arquitectos recla-
enquanto que a organização do fogo mantinha esquemas distribu-
mam a industrialização e a sua participação na resolução do pro-
tivos herdados de finais de oitocentos.
blema da habitação sem constrangimentos nem obrigatoriedades
Sem bases teóricas consistentes, sem o apoio de uma crítica efi-
de estilo. Reconhecendo que o “apetrechamento industrial do País
caz, a que se acrescentava uma formação revivalista e eclética,
está apenas no seu início”, Arménio Losa que já tinha construído a
assente na componente artística das Beaux-Arts oitocentista, a
Fábrica das Sedas confrontando-se com o programa industrial afir-
geração modernista dos anos vinte-trinta facilmente tornou possível
maria justamente que “o apetrechamento técnico e industrial
o seu próprio recuo historicista e tradicionalista que passou a domi-
impõem a profunda e consciente análise de todo o território para
47 Divulgada entre nós a partir da edição: GOODWIN, Philip , Brasil Builds, MOMA, New York, 1943
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melhor arrumação das indústrias, e das populações que fará deslo-
drar uma profissionalização crescente do sector da construção em
car ou concentrar. Impõem que se explorem as riquezas do país, se
que a criação do Laboratório Nacional de Engenharia Civil consti-
aproveitem todos os recursos naturais”.48 Reivindica-se a intervenção
tui o sinal mais claro. Ao longo do que podemos designar por
a uma outra escala que não a do edifício isolado, isto é, o direito à
segundo ciclo do betão armado58 a tentativa de desenvolvimento
escala da cidade. Citou-se Le Corbusier e a utopia da sua Ville
de sectores básicos levará a dar prioridade à infra-estrutura produ-
Radieuse. E, recorrentemente a Carta de Atenas 49 como dogma
tiva: das barragens às estradas, dos portos aos viadutos, dos aero-
urbanístico para situar a urgência de uma nova racionalidade urba-
portos aos silos.
nística e arquitectónica, com o sentido de manifesto e ortodoxia
A lei da electrificação definiu as grandes obras do regime con-
que comportam.50
centradas nas “obras de arte” da engenharia de estruturas, com des-
O pós-guerra marca o fim do ciclo das obras públicas e o início de
taque inaugural para as barragens. E todas as infraestruturas de apoio
uma nova etapa na política económica do Estado Novo. Se o pri-
onde os arquitectos são chamados a conceber as novas implan-
meiro, que designámos também como o primeiro período do ciclo
tações fazendo “as cidades para os homens” estendendo o ideário
do betão, foi dominado pela figura tutelar de Duarte Pacheco, a
moderno ao nordeste transmontano no quadro do aproveitamento
segunda etape que em paralelismo usamos a imagem do segundo
hidroelétrico do Douro Internacional liderado pelo engenheiro Arsé-
período do ciclo do betão seria referida à influência de Ferreira Dias.51
nio Nunes e pontuado pelos arquitectos Archer de Carvalho, Nunes
Este segundo ciclo caracteriza-se pela alteração profunda nas estru-
de Almeida e Rogério Ramos. Confirmando a potência criadora da
turas da economia pautada pelo arranque da electrificação e da
nova geração que então se definia, aí se ensaiaram novidades pro-
moderna industrialização do país a partir do final dos anos quarenta.52
gramáticas, investigação de soluções espaciais baseadas na célula
Os grandes objectivos da política económica são enquadrados nos
mínima assimiladas à resolução de organigramas como expressão
então chamados “planos de fomento” que procuravam, de acordo
matemática. Blocos repetidos, levantados em pilotis sobre platafor-
com as tendências gerais do capitalismo europeu fortemente influen-
mas verdes de nível confirmam a obsessão pela repetibilidade modu-
ciados pelo processo de “americanização”53, criar as condições para
lar mas também pela preocupação higienista com o sol e o espaço
um crescimento do sector industrial nacional.
verde abstracto.
De facto, a partir do pós-guerra, o protagonismo de Ferreira Dias
Anos antes a HICA-Hidroeléctrica do Cávado (HICA) iniciava o
com a publicação de Linha de Rumo54 confirmando as teses já
processo de aproveitamento hidroeléctrico do rio Cávado e do seu
expressas ao longo dos anos trinta, exorta a economia portuguesa
afluente Rabagão tendo Januário Godinho ficado responsável pela
para a necessidade de industrialização. Em 1945, a lei 200555 consti-
arquitectura de todo o complexo em estreita colaboração com os
tuíu o instrumento jurídico para o “fomento” e “reorganização indus-
Serviços Técnicos da Hica. Inaugurava-se um novo ciclo de colabo-
trial”, podendo ser considerada “o único verdadeiro projecto de
ração entre áreas disciplinares complementares na esteira da arti-
industrialização formulado durante toda a a vigência do Estado
culação da unidade procurada pelo Movimento Moderno entre o
Novo”56 onde se apontava claramente para uma visão “neofisiocrá-
binómio arte-técnica. Para o transporte da electricidade foi criada a
tica” transformadora do país baseada na industrialização. Defen-
Companhia Nacional de Electricidade59 com o objectivo de gerir a
dendo a distribuição da energia eléctrica como “uma obra de
rede eléctrica nacional tendo sido chamados dois arquitectos, Januá-
fomento ”contribui para uma nova estratégia do regime. É o
rio Godinho e Keil do Amaral, que fizeram, respectivamente no norte
momento de valorizar as obras industriais e de electrificação para
e no sul, a “arquitectura” da Companhia.
onde são preferencialmente canalizados os investimentos públicos.
Também a metalurgia e a metalomecânica, sector chave do
As grandes infraestruturas fundamentais ao desenvolvimento
desenvolvimento económico e industrial, viveu por essa altura uma
industrial tomavam o lugar ocupado nos anos trinta pela edificação
expansão conjuntural com a inauguração das instalações da Oliva,
das obras públicas que passam agora a um plano secundário. Basta
iniciando o fabrico de precisão em série e dando lugar a um actua-
recordar que no I Plano de Fomento (1953-1958) a dotação orça-
lizado complexo industrial projectado pelo grupo de arquitectos ARS.
mental era clara na revelação das grandes estratégias do regime,
Em 1957, as comunicações apresentadas no II Congresso da
com a atribuição de 34,6 % para obras de infra-estruturas e 32,1 %
Indústria Portuguesa davam conta da situação criada integrando
para transportes e comunicações,57 situação prolongada no quadro
como um dos temas em debate a questão da “Investigação Tecno-
do II Plano de Fomento (1959-1964).
lógica e Económica e a Indústria”. Apresentava-se como condição
O processo de industrialização então desencadeado vai enqua-
para o desenvolvimento da investigação “o reconhecimento de que
48 LOSA, Arménio, “A arquitectura e as novas fábricas”, I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional de
Arquitectos com o Patrocínio do Governo, Maio/Junho 1948.
49 O documento colectivo elaborado no quadro deste IV CIAM, que ficou conhecido como a Carta de Atenas, acabaria por ser
publicado dez anos depois por Le Corbusier, LE CORBUSIER, La Charte d’Athènes, travaux du 4ème CIAM, Plon, Paris, 1943. O seu impacto
foi enorme, tendo sido traduzido em oito línguas. A tradução para português foi publicada na revista Arquitectura, Lisboa, 2ª série, nº 20 a
27, 1948. Refira-se que as teorias da Ville Radieuse Corbusiana foram divulgadas em Portugal primeiro por Nuno Teotónio Pereira nas
páginas da revista Técnica- “A Arquitectura e a Engenharia na Construção”, Técnica nº 138, Instituto Superior Técnico, Lisboa, Maio 1942;
“As Necessidades Colectivas e a Engenharia”, Idem, nº 142, Dezembro 1943 e nº 143, Janeiro de 1944.
50 Ver TOSTÕES, Ana, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50, FAUP, Porto, 1997.
51 PORTAS, Nuno , “O Ciclo do betão em Portugal”, Arquitectura de Engenheiros, Lisboa, FCG, 1980.
52 ROLLO, Maria Fernanda, “A Industrialização e os seus impasses”, in MATTOSO, José (Dir.), História de Portugal, Sétimo Volume, pág. 450,
Lisboa, Círculo de Leitores, 1994.
53 A este propósito ver o número temático dedicado ao pós-guerra na Europa e à influência do Plano Marshall em diversos países, com
destaque para o excelente artigo sobre o processo Italiano. Cf. “The Reconstruction in Europe after Worl War”, Rassegna, Milano, ano XV,
54/2, June 1993.
54 FERREIRA DIAS, J. N., Linha de Rumo, notas de economia portuguesa, Liv. Clássica Ed., Lisboa, 1945.
55 Lei nº 2005 de 14 de Março de 1945.
56 BRANDÃO DE BRITO, José Maria, A Industrialização Portuguesa no pós-guerra (1948-1965), op. cit, pág. 320.
57 O I Plano de Fomento apontava como principais objectivos: o fomento da agricultura; aumento da produção de energia hidráulica;
conclusão das indústrias de base já em curso; instalação da siderurgia; desenvolvimento das vias de comunicação e meios de transporte;
desenvolvimento da refinação do petróleo, da produção de adubos e da marinha mercante, ver ROLLO, Maria Fernanda, op.cit., pág. 455
58 TOSTÕES, Ana, Cultura e Tecnologia da Arquitectura Moderna Portuguesa, Dissertação de Doutoramento, IST, Lisboa, 2002.
59 A Companhia Nacional de Electricidade (CNE) foi constituída por escritura pública em 14 de Abril de 1947, tendo por objectivo “o
estabelecimento e a exploração de linhas de transporte e subestações destinadas ao fornecimento de energia eléctrica aos
concessionários da grande distribuição, aos consumidores cujo abastecimento directo se justifique nos termos da base XIII da Lei nº2002,
bem como à ligação dos sistemas do Cávado e do Zêzere, entre si e com os sistemas existentes”. Cf. ROLLO, Maria Fernanda, BRANDÃO DE
BRITO, José Maria, “Ferreira Dias e a constituição da Companhia Nacional de Electricidade”, in Análise Social nº 136-137, pág. 343, 1996.
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CUF, construção armazém fosforite, 1907
Barreiro
Àquatro, Projectos de Engenharia SA,
in BRANDÃO DE BRITO, José Maria, HEITOR
Manuel, ROLLO, Maria Fernanda, (coord.),
Engenho e Obra, Dom Quixote, Lisboa, 2002
Siderurgia Nacional
Arquivo da Siderurgia Nacional
Foto: Henrique Ruas/IPPAR
Caves José Maria Fonseca
Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
a melhoria das condições de vida do Homem está directamente
recurso a diversos dispositivos funcionais que são usados plastica-
dependente da ciência e da Técnica”. Apontava-se a necessidade
mente: as grelhas de protecção da luminosidade ou de camuflagem
de banir a “ideia da virtude da ignorância” e a necessidade de gene-
das áreas de serviço, ou os processos de iluminação zenital dos gra-
ralizar “o reconhecimento da virtude do saber”.60
neds complexos industriais.
Tempo de ruptura, encara-se a mudança do mundo atravès da
Entretanto publicavam-se entre nós tabelas e ábacos como as
arquitectura e da mediação dos benefícios da máquina. Afirma-se
do engenheiro Fernando Vasco Costa61 e em obras de carácter
uma produção referenciada à arquitectura internacional que busca
excepcional, como foi a do aproveitamento Hidroeléctrico do
a sua essência num determinismo técnico decorrente dos sistemas
Cávado (HICA) iniciada em 1947 foi já usado o computador para os
de industrialização, baseados na virtude da repetitividade e na
cálculos62 de estruturas complexas como barragens abóbada ou pon-
crença no mundo industrial. A matriz mecanicista da ideologia
tes suspensas. Na arquitectura, o betão armado proporcionou cres-
moderna alimenta uma arquitectura de vocação política vinculada
centemente, graças também ao empenho técnico de muitos engen-
ao sistema económico no pressuposto da racionalização e da stan-
heiros e construtores, a realização de construções cada vez mais
dartização. Assume-se a sinceridade máxima da construção a partir
ousadas de que podemos destacar o silo de sulfato de amónio
do “módulo”. O sistema construtivo funciona como inspirador con-
erguido no grande complexo da CUF ou a monumental Aciairia da
ceptual e mote regrador da arquitectura. A estrutura torna-se soli-
Siderurgia Nacional construída totalmente a partir de peças de betão
dária da organização funcional e espacial. A utilização do betão ao
pré-moldado.
longo da primeira metade dos anos 50 generalizava-se numa cons-
Os anos sessenta marcam o início da ruptura e de uma crescente
trução porticada conjugando suportes verticais e lajes tornadas cada
“modernização” apoiada numa matriz industrial: o território trans-
vez mais leves com a introdução de elementos cerâmicos a defini-
forma-se com os grandes empreendimentos e a escala de inter-
rem rígidas modulações que eram encaradas plasticamente pelos
venção a altera-se. O “moderno” pela via imagética do Estilo Inter-
arquitectos como estímulo compositivo. Período de grande riqueza
nacional tende a banalizar-se. Uma construção apostada numa alta
plástica e gráfica o aprofundamento da renovada expressão do
tecnologia tende a ser experimentada nos grandes edifícios de ser-
moderno sob influência brasileira conjuga-se com o universo tecno-
viços surgindo os primeiros grandes edifícios em altura como é o caso
lógico da proposta corbusiana.
do Sheraton-Imaviz em Lisboa de Fernando Silva. É também por essa
A racionalidade da construção funciona como lógica estrutu-
altura que se experimenta um sistema de pre-fabricação a grande
rante da arquitectura e da cidade. As escalas contaminam-se cum-
escala aplicado auma urbanização privada (Stº. António dos Cava-
prindo o desiderato moderno do projecto global. Os projectos adqui-
leiros, nos subúrbios de Lisboa). É a época da “profissionalização”, da
rem um crescente detalhe de pormenorização revelador da intensi-
formação das grandes empresas de projectos e gestão de obra
dade colocada na concepção. A modulação estrutural e constru-
como a Firma Gefel que chamará a si a construção das grandes cen-
tiva é assumida plásticamente na imagem exterior das construções
trais cervejeiras: Unicer e Centralcer na metrópole e a Cuca em
e legitimado como alibi formal.
Angola. Com o final da década e a abertura “marcelista” a um capi-
Graças ao sistema de construção porticada as fachadas perde-
tal cada vez mais liberalizado surgem obras que ultrapassam crono-
ram a função de suporte sendo compostas modularmente com
logicamente o nosso inquérito e que apenas confirmam a abertura
60 ROCHA, Manuel, “A Investigação e a Indústria”, Comunicações apresentadas ao II Congresso da Indústria Portuguesa, pág. 10,
Ministério das Obras Públicas-Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 1957.
61 VASCO COSTA, Fernando, “Tabelas para o Cálculo do betão Armado”, in Técnica, Lisboa, 194.
62 Segundo refere Joaquim Vizeu, foi usada um IBM 704. Ver CORREIA de SOUSA, António, O Computador Científico 704 da IBM, CATEC
(Centro de Aperfeiçoamento Técnico dos Engenheiros da Hidroeléctrica do Cávado), Porto, 196.
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Kodak
Foto: Deolinda Folgado/IPPAR
Consórcio laneiro de Portugal
Archivo Nuno Teotónio Pereira
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do programa industrial a soluções inovadoras e qualificadas como é
o caso da JM Fonseca em Azeitão, de Raul Ceregeiro e Gomes da
Silva (1968-1969), ou da Kodak Portuguesa com projecto americano
adaptado pela Profabril.
A concepção das implantações industriais como uma arquitectura da relação precisa entre homens, máquinas e espaços seria
ainda objecto de uma concepção maior concebida no quadro do
Complexo Industrial de Sines (1971) a fundação da nova cidade de
Santo André. Pensada como uma área concentrada de indústrias
base com a petroquímica surgia como um novo marco na tardia
industrialização portuguesa.
Modelo cultural industrial e arquitectura
do Movimento Moderno
Modelo cultural industrial e arquitectura do Movimento Moderno constituem finalmente memória histórica e simbólica de uma quimera, a
quimera contemporânea. Que também era a vontade de mudar e
transformar o mundo. E é seguramente esta questão que diferencia
a arquitectura do Movimento Moderno. Isto é, o facto de ter assumido quase como manifesto essa tarefa, reclamando a capacidade
dos arquitectos de construírem um mundo melhor. De facto a felicidade como mito ou invenção contemporânea constitui uma das
metas e obsessões dos seres humanos que a modernidade converteu em exigência. Decorrente do fenómeno crescente de laicização
da sociedade moderna, a modernidade com a sua vitória sobre os
deuses, que o suporte da máquina apoiou, não podia deixar de exigir prometer a felicidade na terra.
No século XX os caminhos laicos em direcção a um final feliz alternam entre momentos em que a felicidade aparece como uma conquista colectiva (não era esta a mística da revolução?) e os momentos hedonistas de retorno aos valores da felicidade privada.
E aqui se coloca de algum modo a questão pessimista de que a
arquitectura tentou responder ao caos urbano e não antecipar com
as suas formas novas um mundo novo. Como justamente observou
Argan, Gropius apenas quis responder, com pragmatismo e funcionalidade, ao caos do mundo. E por momentos terá tido a ilusão que
o arquitecto seria capaz de o transformar.63 A história das marcas da
industrialização é também essa memória simbólica e tragicamente
potente.
63 ARGAN, Giulio Carlo , Gropius et le Bauhaus, Denöel/Gontier, Paris, 1979 [ed. original italiana, 1951].
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