Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa
Marcia Eliane Alves de Souza e MELLO
Universidade Federal do Amazonas
[email protected]
As Juntas das Missões Ultramarinas eram compostas pelos representantes de esferas de
poder diferentes, tanto civis – como a justiça e as finanças – quanto eclesiástico, todos
oriundos do Reino a serviço da Coroa1. A presidência da Junta era exercida pelo Governador
Geral do Estado, o que lhe conferiu e ampliou o seu caráter político. No século XVIII, as
Juntas passaram a funcionar como verdadeiras instituições políticas locais, sendo usadas
como instrumentos de poder para arbitrar a favor de demandas da elite colonial. Na Junta das
Missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará passavam todas as discussões a respeito das
estratégias de disciplinar os índios e de sujeitá-los ao trabalho. Como organismo de apoio ao
projeto colonial, a Junta das Missões, teve um papel fundamental na expansão e manutenção
dos espaços Amazônicos. Longe de ser um espaço privativo do poder dos colonos
missionários ou da defesa inflexível dos seus interesses, a Junta funcionou como fórum para
onde convergiam as demandas de todos os setores da sociedade colonial. E como tal, ela
atuou como mediadora em muitas causas que lhe foram apresentadas, na busca de conciliação
entre os interesses de colonos leigos e colonos missionários e da sustentação da política
metropolitana para aquela região.
O presente trabalho pretende discutir as ações da Junta, não somente como
dinamizadora local do projeto colonial de expansão, mas, observar como algumas decisões
importantes tomadas nas Juntas nos sugerem como podiam ser manejados os resultados a
favor de determinados interesses locais; bem como isto consolidava o desenvolvimento de
certos grupos sociais. Nosso postulado é que, embora a Junta funcionasse como um
organismo que zelasse pela liberdade do índio, ela também favorecia seus mecanismos de
controle e subordinação, de particular interesse dos colonos, auxiliando em atividades
necessárias para a manutenção e desenvolvimento econômico do espaço colonial. Emerge
assim a necessidade de compreender como se articulavam os diversos exercícios de poder que
buscavam a dominância e o controle dos indivíduos envolvidos.

Este trabalho recebeu auxilio do programa PAPE/ FAPEAM.
Faziam parte da Junta das Missões o Governador do Estado, o Ouvidor Geral, o Procurador da Fazenda, o Bispo
e os prelados superiores das ordens religiosas que tinham missão na região.
1
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
1
Marcia Eliane Alves de Souza e Mello
Embora consideremos relevante a atuação de todas as Juntas das Missões
Ultramarinas2, como inseridas na estrutura administrativa da Coroa portuguesa, temos
consciência de que elas atuaram de forma diferenciada e de acordo com algumas
condicionantes locais. A Junta das Missões do Estado do Maranhão enquanto arena dos
debates que envolveram as principais forças políticas — diante das tensões que à volta dela
foram geradas, ao peso relativo dos grupos sociais nela comprometidos, e aos valores sociais
dominantes — se destaca das demais Juntas Ultramarinas3. A Amazônia possuía algumas
singularidades que conferiu à região um modelo ímpar de colonização, a ponto de ser
considerada modernamente ―um Brasil diferente‖, uma colônia distinta na América
portuguesa. Desse modo, se faz necessário uma abordagem mais particularizada de suas
atividades.
Por ser uma região fortemente dependente da mão-de-obra indígena, que não podia
contar com comunidades estáveis e populosas que viabilizassem endogenamente o excedente
econômico e mão-de-obra abundante, precisou o poder metropolitano criar mecanismos
diferenciados para garantir o fornecimento e a reprodução da força de trabalho indígena,
peças importantes no processo de colonização. A disputa pelo acesso à mão-de-obra e seu
controle foi o tema mais recorrente na história da Amazônia colonial, notadamente a partir da
segunda metade do século XVII, chegando mesmo a envolver as incipientes estruturas do
poder local, bem como toda a complexa máquina administrativa metropolitana atuante na
região, o que significa dizer que a Junta das Missões não deixou de ser envolvida nessa
intricada dialética, agindo enquanto sujeito ativo e em nada neutro.
Uma vez que o acesso e domínio da mão-de-obra indígena eram vitais e perpassavam
toda a sociedade colonial, iremos utilizar neste ensaio como parâmetro de observação da
atuação da Junta das Missões perante as demandas da elite local, as duas formas distintas de
recrutamento da força de trabalho indígena: o descimento de índios livres4 e o resgate de
índios escravizados5.
Outro aspecto a ser destacado é o recorte temporal em que se delimita a ação aqui
analisada, que consiste na primeira metade do século XVIII; período em que estava em vigor
a legislação indigenista baseada em um novo sistema de governo dos índios, conhecido como
2
As primeiras Juntas das missões foram criadas pela Carta Régia de 7 de março de 1681, e funcionaram
primeiramente, em Goa, Angola, Maranhão, Rio de Janeiro e Pernambuco. Mais tarde foram também criadas na
Bahia (1688), Pará (1701) e São Paulo (1746).
3
A este respeito ver: Marcia Eliane A .S MELLO, Fé e Império. As Juntas das Missões nas conquistas
portuguesas, Manaus, Edua/Fapeam, 2009.
4
A forma de reunir os índios levando-os de suas aldeias de origem para os aldeamentos próximos aos núcleos
urbanos, persuadindo-os a descer pacificamente para os locais de domesticação.
5
Os resgates consistiam na compra pelos portugueses dos índios prisioneiros feitos em guerra entre as nações
indígenas.
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―Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará‖, instituído através da Lei de
21 de dezembro de 1686, na qual era concedida a administração temporal e espiritual dos
índios aldeados aos missionários6.
Da mesma forma, consistiam as sucessivas leis
complementares ao Regimento, como o Alvará de 1688 (Alvará dos Resgates) e as Provisões
de 1718 e 1728 (sobre os descimentos), como âmbito privilegiado da analise7.
Iniciamos nossa análise pelos descimentos, que eram ações importantes para a
(re)população dos aldeamentos de onde eram repartidos os índios entre os moradores e o
serviço da coroa8. Muito embora os descimentos fossem uma obrigação dos missionários,
estando as Tropas oficiais sob a sua responsabilidade, estes não eram suficientes para suprir
as demandas dos moradores, de forma que contínuas queixas chegaram ao reino informando
que se encontravam os aldeamentos diminutos por não descerem para eles os índios na
quantidade necessária.
A crescente demanda por mão-de-obra indígena por parte dos
moradores do Estado do Maranhão para trabalhar nas suas lavouras, enviar para as colheitas
das especiarias dos sertões, entre outros serviços, fez crescer os apelos ao rei de pedidos de
licença para que os moradores pudessem descer índios por conta própria. De forma que esta
modalidade de descimentos efetuados por particulares que constituirá o cerne de nossa
análise.
No intuito de regulamentar esse meio de arregimentar mão-de-obra indígena,
solicitaram vários moradores do Estado do Maranhão que lhes dessem o rei a administração
dos índios descidos tanto para eles quanto para os seus descendentes. Contudo, essa
administração particular violava o Regimento das Missões, não sendo, portanto, atendido o
pleito. Pelo que se mandou ordem expressa à Junta das Missões do Estado do Maranhão, em
21 de abril de 1702, para que não fossem os moradores agraciados com o título de
administradores dos índios por eles descidos9.
Entretanto, não proibia a carta régia que os moradores fossem às suas custas ao sertão,
buscar índios para trabalharem em suas propriedades, desde que fossem observadas algumas
condições que tornassem legítimos os descimentos feitos pelos moradores. Primeira condição:
6
Marcia Eliane A. S MELLO, ―O Regimento das Missões: poder e negociação na Amazônia portuguesa‖, Clio,
vol. 27, nº. 1 (2009), pp. 46-75.
7
O sistema implantado pelo Regimento das Missões vigorou até 1757, quando foi substituído pelo Diretório dos
Índios. Para maiores detalhes sobre a legislação ver: Rita Heloísa de ALMEIDA, O Diretório dos Índios. Um
projeto de ―civilização‖ no Brasil do século XVIII, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997.
8
Como exemplo, temos a informação de que o Pe. João da Silva, missionário jesuíta dos Ingaíbas, desceu no ano
de 1697 cerca de 250 índios para a missão de Araparipucú, praticou os Teyrós e desceu de 200 a 300 índios
para a mesma missão, no ano de 1698 desceu 270 índios e finalmente, no ano de 1699 desceu 204 índios (Pe.
João Filipe BETTENDORFF, Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus do Estado do Maranhão.
2ª ed.,Belém, FCPTN, 1990. p. 633.)
9
DGARQ/TT, Convento de St.º Ant.º dos Capuchos de Lisboa, maço 7, macete 7. Carta Régia de 21/04/1702.
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que quando fossem os índios descidos por pessoas particulares, deveriam ser trazidos para os
aldeamentos ou para junto deles, não para as suas fazendas ou propriedades. Segunda
condição: deveriam ser os índios trazidos por missionários do distrito onde se encontravam,
depois de ensinados e domesticados, estes religiosos deveriam examinar se os índios desciam
espontaneamente. Terceira condição: que os índios seriam considerados como livres e o
missionário encarregado de doutriná-los. Quarta condição: que as pessoas que fizessem os
descimentos particulares teriam como prêmio a repartição dos índios só com elas durante a
sua vida, isto é, sem condição de hereditariedade.
Finalmente, quinta condição: que a
repartição no que diz respeito ao tempo, aos salários e à utilização de alguns índios enquanto
outros ficavam cuidando do sustento da aldeia, seria na forma que determinavam as leis
régias. Competia à Junta das Missões cuidar para que a ordem fosse executada inteiramente,
comunicando ao rei se houvesse qualquer descuido na observação dessas condições10.
Pelos requerimentos e licenças expedidas para esses descimentos particulares que
pesquisamos, podemos observar que os requerentes eram, na sua esmagadora maioria,
proprietários de engenhos de açúcar, de plantações de cacau e tabaco, sendo assim, pessoas
que possuíam influência econômica e política. Como o capitão José Cunha Deça, proprietário
de um engenho real de açúcar11, que recebeu licença em 1702 para descer 60 casais de índios
forros12; José Portal de Carvalho, proprietário de uma fazenda com dez mil pés de cacau no
Pará, que recebeu licença para descer 20 casais de índios para poder continuar a cultura da
planta13; o coronel de ordenança Hilário Morais Bittencourt, senhor de um engenho e que
estava construindo outro no Pará, que recebeu licença em 1703 para descer 50 casais de
índios para o seu serviço14; o alferes da infantaria José Sanches Brito, proprietário no Pará de
uma grande lavoura de cana e de um engenho, recebeu licença em 1706 para descer
quatrocentos índios15; Manoel do Porto Freire, em 1713 recebeu licença para descer cem
índios para poder fabricar um engenho real16, e ainda o capitão-mor José Velho de Azevedo, o
sargento-mor Pedro da Costa Raiol, o alferes tenente Manoel Pestana de Vasconcelos, para
citar alguns exemplos.
Podemos notar, também, que em algumas licenças havia certa confusão com respeito à
terminologia empregada, chamando de ―escravos‖ os índios que deveriam descer como livres.
10
Carta régia de igual teor foi expedida também para os governadores do Estado do Brasil e do Maranhão.
Engenhos reais eram aqueles que tinham a ―realeza de moerem com água‖ diferente de outros ―que moem
com cavalos e bois, e são menos providos e aparelhados‖ segundo André João Antonil citado por Ernesto
CRUZ, História do Pará, Belém, Universidade do Pará, 1963, v. 1.
12
Anais da Biblioteca Nacional (ABN) 66, p. 217. Carta Régia de 17/4/1702.
13
ABN 66, p. 214. Carta Régia de 27/03/1702.
14
ABN 66, p. 242. Carta Régia de 16/2/1703.
15
ABN 66, p. 276. Carta Régia de 04/03/1706.
16
ABN 66, p. 114. Carta Régia de 25/03/1713.
11
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Outras vezes percebemos que a solicitação era para resgate, contudo, a licença usava a
fórmula que descrevia as condições do descimento, qual seja: o morador não terá o titulo de
administrador dos índios, que irão ficar em liberdade e que lhes será atribuído pagamento de
salário. Essa questão foi apontada em Junta das Missões, por onde passavam as citadas
licenças, e chamou a atenção do Governador João da Maia, que procurando evitar maiores
confusões entre o que se pedia e o que era concedido, solicitou ao rei que se declarasse nas
mercês que se fizesse que ― o que se concede
como cativos que são os resgatados
legitimamente na forma das leis de V. Majestade, e os que concede como forros para se
baixarem voluntários em sua liberdade”17. Em parecer posto à margem da carta, o Procurador
da Coroa declarou que reputava por supérfluas as declarações, não necessitando de
aditamento ou declaração alguma, e que qualquer dúvida que se tivesse sobre a interpretação
das leis régias poderia ser resolvida na mesma Junta18. Dessa feita, dando mais autoridade às
Juntas locais.
Ocorre que em um espaço em que a disputa pelo acesso à mão-de-obra indígena era
intensa, essa competência atribuída à Junta das Missões e o exercício de sua autoridade foram
cada vez mais sendo utilizados como um instrumento de poder pelos governadores. Isto para
colocar em prática algumas demandas locais, bem como empregar a Junta como mediadora
das políticas coloniais, assunto que trataremos adiante.
A forma dos descimentos admitida pela legislação vigente era que fossem os índios
descidos com brandura, voluntariamente e não contra a sua vontade. Contudo, nem sempre foi
essa circunstância obedecida pelos moradores, o que causava constantes críticas por parte dos
religiosos que julgavam a justiça dos descimentos. Na tentativa de se encontrar uma correção
desses atos, por volta de 1712, a Junta das Missões no Estado do Maranhão ponderou uma
proposta do jesuíta Inácio Ferreira, acerca dos descimentos dos índios e se seria lícito fazê-lo
com alguma violência. Os ministros da Junta foram de parecer que se fizessem os
descimentos nas duas formas apontadas, a saber, voluntariamente e por força, observando
algumas limitações. Em virtude do teor da proposta, que envolvia questões de fundo teológico
e jurídico, demorou alguns anos para baixar resoluta a proposta pelo rei. Foi primeiro
encaminhado o termo da Junta das Missões ao Conselho Ultramarino, que sobre ele fez
consulta em fevereiro de 171519, mas somente em 1718 foi tomada a resolução régia,
manifestada na Carta Régia de 9 de março de 171820.
17
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Pará, Cx. 10, doc. 941. Carta do governador de 29/09/1727.
AHU, Pará, Cx. 10, doc. 941. Parecer do Procurador da Coroa [ post. 09 /02/1728].
19
AHU, Conselho Ultramarino, Códice 274, p. 140 v-241. Consulta de 18/02/1715.
20
ABN 67, p. 153-54. Carta Régia de 09/03/1718.
18
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É importante observar que a nova lei de 1718 estabelecia que tanto os descimentos
voluntários quanto os forçados devessem ser praticados por missionários, acompanhados de
uma escolta de soldados para sua segurança, que encaminhariam os índios para os
aldeamentos de repartição. No entanto, não foi essa medida estendida aos moradores, que
seriam os maiores beneficiários desse modo de descer, seja porque assim não gastariam tanto
tempo e recursos nos sertões na prática pacífica do descimento voluntário, seja porque, desse
modo, poderiam justificar algumas atitudes mais extremadas para forçar o descimento dos
índios para o seu serviço.
Contudo, os interesses dos moradores não foram desprezados pelas autoridades locais,
sensibilizados pela experiência e maior contato com a realidade colonial, os governadores se
solidarizavam com as necessidades da elite local, passando a utilizar a Junta como espaço de apoio às
demandas dos moradores. Como primeiro exemplo, podemos citar a defesa feita pelo governador
Bernardo Pereira de Berredo na Junta de Missões do Pará reunida em 1719, que discorreu justamente
sobre a nova lei dos descimentos de 1718. Argumentou o governador que não se podia viver naquele
Estado sem índios, e que a população aldeada era insuficiente para a colheita do cacau e serviços
outros necessários tanto no Pará quanto no Maranhão; que os moradores, muitas vezes, para remediar
o dano, causavam desatinos e insolências entrando para o sertão e sendo difícil coibir totalmente tal
atitude. E ainda que os 19 engenhos de açúcar existentes na capitania estavam tão desprovidos de
gente para o trabalho, que somente cinco ou seis funcionavam medianamente, causando grandes
prejuízos aos proprietários como também à Fazenda Real21.
Motivados pelas palavras do governador, os deputados da Junta votaram
uniformemente que se os mencionados índios podiam descer com algum medo e força para as
aldeias, também poderiam descer da mesma forma para os engenhos e lavouras dos
moradores. Assim, poderia ser benéfico para os próprios índios ficarem em um só lugar,
podendo servir a um particular, mas resguardando o seu estatuto de liberto, recebendo bom
tratamento e pagamento como os aldeões. Nomeava-se um procurador geral para que fossem
os índios matriculados em um livro e inspecionados anualmente, não podendo ser vendidos
nem herdados por falecimento dos que gozassem esta mercê. Ficariam sempre sob a proteção
dos prelados das religiões de cujo distrito fossem descidos. Essa modificação apontada pela
Junta exemplifica como podiam os governadores utilizaram-se dela como um instrumento de
poder para viabilizar determinados interesses locais.
Entretanto, a mudança sugerida na Junta local carecia de autorização do rei para ser
colocada em prática, de forma que o governador encaminhou a proposta para o reino 22.
21
Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (BPADE), Códice CXV- 2-14 n.º 22 , fl.. 273-74. Termo de
Junta das Missões do Pará de 20/03/1719.
22
AHU, Maranhão, cx. 12, doc. 1260. Carta do governador de 05/04/1719.
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Avaliada pelos conselheiros régios, chegaram à conclusão que o governador havia suspendido
a ordem régia; por este motivo o governador foi advertido severamente pelo rei, ordenando
que desse cumprimento à ordem passada em 1718, no teor que nela estava contido23. O
governador se defendeu alegando que somente convocou a Junta para propor uma ampliação
da ordem régia de 1718, reiterando sua convicção de que a proposta encaminhada à
apreciação do rei era o meio mais seguro para se conseguir, além da utilidade pública, a
ampliação do rendimento dos dízimos da real Coroa e a garantia do aumento do Estado24.
Nos anos seguintes, a proposta da Junta de 1719 não foi esquecida. Ao contrário, a
câmara do Pará encaminhou petição ao rei para que se permitisse o descimento do ―gentio
bárbaro‖, na forma da ordem de 9 de março de 1718, não apenas para as Aldeias de
repartição, mas para todos os moradores
25
. E ainda o Procurador dos Povos do Maranhão,
Paulo Nunes da Silva, representando em Lisboa os interesses dos moradores daquele Estado,
alegava que por não se fazerem os descimentos e repartição dos índios como convinha,
faltavam aos moradores os índios para cuidar de suas lavouras e engenhos26.
Em abril de 1728, finalmente permitiu o rei que nos descimentos feitos na forma da lei
de 9 de março de 1718 pudessem os índios ser repartidos não só pelos aldeamentos, mas
também pelos senhores de engenhos e moradores. Entretanto, advertia que os descimentos
fossem feitos somente por autoridade pública, e ―de nenhum modo por pessoas
particulares‖27.
Apesar disso, ao assumir o Estado, em junho de 1728, o governador Alexandre de
Souza Freire fez divulgar a notícia de que trazia ordens de abrir os sertões para os moradores,
e assim apresentou a carta régia sobre os descimentos de 13 de abril de 1728 em Junta das
Missões na cidade de São Luís do Maranhão28. Muito embora a ordem fosse clara, proibindo
que se fizessem os descimentos pelos moradores, a Junta interpreta, sob os auspícios do
governador, que aos moradores estava facultado fazer os descimentos desde que reconhecidos
por autoridade pública. Dessa forma, contornava-se a proibição expressa pela nova lei e abriase uma possibilidade, ainda não experimentada pelos moradores, como veremos a seguir.
Conquanto a Junta não tivesse jurisdição para legislar por conta própria ou alterar
qualquer ordem emitida pelo poder central, algumas decisões tomadas pelas Juntas
23
ABN 67, p. 168. Carta Régia de 25/09/1719.
AHU, Maranhão, cx. 12, doc. 1260. Carta do governador de 20/06/1720.
25
AHU, Pará, cx. 7, doc. 618. Carta da Câmara do Pará de 30/08/1722.
26
BPADE, Códice CXV/2-15, p. 159. Documento aproximadamente de 1724.
27
ABN 67, p. 223. Carta Régia de 13/04/1728.
28
Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica, genealógica, nobiliária e
política do Império do Brasil, Rio de Janeiro, Tip. Americana, 1858, v. 4, p. 235. Termo de Junta das Missões
do Maranhão de 29/06/1728.
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ultramarinas causaram efeitos imediatos na política local de distribuição de mão-de-obra. Para
que se compreendam os desdobramentos advindos da decisão da Junta sobre a ordem régia de
abril de 1728, apontaremos em detalhes o conteúdo do seu assento.
Na reunião de 29 de junho de 1728 votaram os deputados da Junta o seguinte: todo
morador que quisesse prover-se dos índios deveria fazer uma petição ao Governador em que
declarasse quantos eram os que necessitava, afim de poder descer do sertão à sua custa. O
requerimento seria então examinado a respeito do número dos índios que fossem pedidos pela
junta de repartição, que lhes concederia um alvará de licença de descer os índios conforme à
necessidade que lhe fosse julgada, indo um missionário com a escolta de soldados. Ainda
podendo os moradores que fizeram as suas petições descerem do sertão os índios que se lhes
concederam, procedendo primeiro com suavidade para baixar os índios voluntariamente.
Sendo frustrados pela resistência, poderiam os mesmos moradores fazê-lo por coação, sem
fazerem mortes, exceto como ordena o rei na carta de 9 de março de 1718, em justa defesa
dos mesmos moradores a quem os índios quisessem ofender.
Chegadas as canoas dos moradores ao Pará, se apresentariam logo os índios ao
Governador e mais adjuntos para dois fins: 1] examinar se os moradores não haviam trazido
mais cabeças dos que as concedidas; 2] para se avaliar a idade de cada índio, afim de que até
aos 50 anos ficassem obrigados a servir aos moradores a quem tocar na repartição, fazendo
matrícula em livros da fazenda e do superior da missão.
Durante o tempo de ―servidão‖ os moradores deveriam tratar o índio como forros e
não como cativos, sustentando e pagando salários. Se durante este período fossem tratados
com injustiça, poderiam requerer à Junta por via do Procurador dos Índios. E uma vez
justificada a culpa dos patronos, lhes pudessem tirar os índios e distribuir para onde a Junta
arbitrasse. Por fim, advertia a Junta, que a lei de descimentos à força só era permitida para
aqueles cujo ―defeito‖ mencionava a lei29, e o missionário que fosse ao descimento
examinasse antes de o fazerem, se eram ou não os índios do tipo que mencionava a lei, e se
não fossem e se baixassem à força, incorreria em pena quem assim os trouxesse de se
repartirem pelos aldeamentos a quem pertencesse o distrito30.
Esse episódio ilustra perfeitamente como a Junta das Missões atuava como um
instrumento de poder intercessor no jogo de forças dos interesses coloniais. Algumas decisões
tomadas nas Juntas nos sugerem como podiam ser manejados os resultados a favor de
29
Não se aplicava a todas as nações indígenas, mas sim àqueles tapuias bravos, que andavam nus, não
reconheciam a autoridade nem do rei nem do governador, não viviam em forma de república, atropelavam as leis
da natureza, não fazendo diferença entre mães e filhas para satisfazer a sua lascívia e comiam uns aos outros em
ato de antropofagia.
30
Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., v. 4, pp.235.
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determinado grupo local, que embora não tivesse representantes diretos com assento na Junta,
dela se valia para transformar decisões a seu favor.
O resultado prático da decisão da Junta de 1728 foi a expedição indiscriminada de
várias licenças para particulares fazerem descimentos e resgates. No que diz respeito aos
descimentos, podemos citar amostras retiradas dos próprios termos das Juntas do Maranhão e
do Pará: a petição de João Frois de Brito, morador do Maranhão, em que pedia lhe concedesse
o poder descer 70 casais de índios dos que habitam entre o Miarim e o Pinaré por serem
conforme a ordem real de 1728 ―daqueles em que se acham os vícios de se comerem uns aos
outros‖ e os mais que na dita ordem continha. Foi deferida a petição em Junta no Maranhão
de 7 de julho de 1728, para que ―pudesse fazer os tais descimentos na forma dos editais
fechados na porta da Câmara e Alfândega‖31. No Pará, em reunião da Junta de 12 de
novembro de 1728 foram apresentadas algumas petições em que os moradores pediam licença
para descerem ―casais de gentios da terra‖, sendo deferidas32. As licenças continuaram a ser
expedidas aos moradores até 1747, quando foi ordenada a suspensão dos descimentos e
resgates feitos por moradores com licença concedidas pela Junta das Missões33.
Os moradores mais abastados solicitavam licenças, não apenas para descimentos de
índios forros, como analisamos anteriormente, mas também para resgates particulares de
índios cativos. Após analisar caso a caso, a Coroa concedia para uns poucos as licenças de
resgates privados. Entre essas exceções encontramos o registro daquele que talvez tenha sido
um dos primeiros colonos a conseguir tal mercê, José Sanches Brito, proprietário de uma
grande lavoura de cana e de um engenho de açúcar no rio Moju, capitania do Pará. Foi-lhe
concedida uma licença para resgatar 80 escravos às suas custas, ou seja, arcando com toda a
despesa e com os gastos relacionados às escoltas, bem como acompanhar a Tropa que
resgatava para os demais moradores, rateando a parte que lhe tocava34. Em 1709, o capitão
José da Cunha Deça, proprietário de um engenho de açúcar na capitania do Pará, consegue
uma licença semelhante para resgatar 120 escravos, nas mesmas condições já concedias a José
Sanches35.
As licenças de resgates particulares não eram concedidas indiscriminadamente para
todos os moradores, somente para aqueles em quem a Coroa percebia algum potencial e
capacidade para o desenvolvimento econômico da colônia. Assim sendo, os grandes
31
AHU, Maranhão, Cx. 16, doc. 1692. Termo de Junta das Missões do Maranhão de 07/07/1728.
Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 12/11/1728.
33
AHU, Pará, Cx. 29, doc. 2803. Carta Régia de 21/03/1747.
34
ABN 66, p. 277. Carta Régia de 04/03/1706.
35
ABN 67, p. 117. Carta Régia de 26/02/1709.
32
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proprietários eram os privilegiados. O próprio Alvará dos resgates de 1688 indicava a quem
se destinavam os resgates prioritariamente, afirmando que a repartição dos índios resgatados
seria entre aqueles ―que mais necessidade deles tiverem, por razão de suas fazendas,
granjearias & lavouras”36.
Por outro lado, as câmaras como legítimas representantes do poder local, se sentiam
excluídas da participação na Junta das Missões. Em 1705, as Câmaras de São Luís e Belém
enviaram várias petições para que um de seus oficiais participasse das Juntas das Missões
para que tivessem conhecimento do que nela se praticava e o que se resolvia a respeito dos
índios. O assento na Junta lhe foi negado, porém se confirmou a sua participação nas
decisões no envio de tropas de resgates e na repartição dos índios, que se faria com a
assistência do vereador mais velho e procurador da Câmara37. Ainda que esta decisão possa
ser encarada como apaziguadora, pois de certa forma, aliviava a pressão das câmaras e da elite
local que representavam em última instância, e que se viam tolhidas nos mecanismos de
acesso à mão de obra indígena, também é certo que resguardava a Junta de uma interferência
direta dos representantes locais. Somando-se a isso, destacamos o crescimento do poder da
Junta com a ampliação de suas atribuições, como por exemplo, em 1706, quando a nomeação
do cabo da tropa de resgates passou a ser pela junta e bem como o segundo exame dos índios
resgatados pela tropa para avaliar o seu legítimo cativeiro38.
Por conta disso, em 1707, a câmara do Pará voltava a se queixar ao rei que os
moradores necessitavam de mais índios para os seus serviços, porque a Junta das Missões
julgava a maior parte dos índios vindos nas Tropas de resgates como livres ficando o povo
sem repartição39. A resposta do rei foi imediata:
me pareceu dizer-vos que não costumo negar licença aos
moradores que tem possibilidade para descer os casais de índios que
quiserem
e que poder chegar os seus cabedais, com aquela
condições e clausulas que se exprimem nas ordens que se tem
passado a favor de muitas pessoas, e desta maneira se ocorre a
terem índios para o seu serviço e lograrem por este meio aquelas
conveniências que trazem consigo o uso delas... 40
Pelos registros das atas da Junta das Missões, observamos a partir da década de 1720
que aqueles moradores que recebiam provisões favoráveis do reino, apresentavam-se na Junta
36
BPADE, Códice CXV/2-12, p. 20-26.
ABN 66, p. 270. Carta régia ao Governador do Estado do Maranhão, de 06/12/1705.
38
ABN 66, p. 283-84. Carta Régia de 15/06/1706 e 15/07/1706.
39
Sendo os índios julgados forros eram entregues ao missionário da região de onde foram tirados para serem
aldeados nas missões.
40
ABN 67, p. 24. Carta Régia de 16/12/1707.
37
10 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa
das Missões para ratificar a licença. Numa reunião da Junta das Missões do Pará de 16 de
novembro de 1722, foi analisada a provisão de Pedro Mendes Tomás, antigo capitão-mor do
Pará, para resgatar 80 escravos conforme as condições expressas na provisão régia de 4 de
março de 1706, em que se concedeu a José Sanches resgate privado. Foi concedida a licença
para que os resgates fossem feitos pela tropa que partiria em breve41. Aliás, tais alusões a
concessões anteriores eram comumente utilizadas pelos peticionários, reforçando os pedidos e
ratificadas pelas permissões em cartas régias, declarando que era conforme havia sido
concedido a ―José Sanches Brito, José Velho de Azevedo e outros‖ 42.
Depois da epidemia de varíola ocorrida em 1724 e 1725, que causou uma grande
mortalidade entre os índios aldeados e escravos, podemos observar que aumentaram os
requerimentos para os resgates privados. Como por exemplo, temos o caso de Hierônimo Vaz
Vieira, morador da capitania do Pará, onde possuía um engenho real e outro de fazer
aguardente, com os quais afirmava ―dá grandes lucros‖ a fazenda real. E alegando que
mortalidade de mais de 50 servos operários dos citados engenhos, por causa do contágio,
solicitava poder fazer resgate a suas custas de 150 casais de gentios 43. Consideramos que
nessa década o sistema esteve em estruturação, possuindo alguns limites, como o reduzido
número de moradores agraciados com essas licenças e a falta de autonomia dos poderes locais
para autorizar indiscriminadamente as licenças. O que viria a ser modificado na década
seguinte, conforme iremos demonstrar.
Embora os resgates privados tivessem adquirido força no governo de João Maia da
44
Gama , ainda estavam condicionados a uma apreciação prévia na Corte, de modo que a Junta
não contava com autonomia para conceder independentemente as licenças para os resgates
privados. Partindo dessa premissa, a Junta reunida para analisar o caso de Antônio Furtado
assegurou que não podia o governador conceder a licença para resgatar os cem escravos que o
morador solicitava, mas, atendendo a sua urgente necessidade, essa Junta autorizava ao
governador conceder uma licença para um número menor de escravos que fossem suficientes
para remediar a sua necessidade. No despacho do governador à petição do morador fica
expresso o limite de sua atuação, que diz: ―concederei licença para os que forem precisos para
41
Arquivo Público Estadual do Pará, Códice 10. Termo de Junta das Missões do Pará de 16/11/ 1722.
AHU, Pará, cx. 7, doc. 593. Carta do governador de 10/08/1721.
43
AHU, Pará, cx. 8, doc. 739. Requerimento anterior a 22/01/1725.
44
Entre os anos de 1722 a 1728 foram registrados nos livros de receita dos tesoureiros da Fazenda Real dos
resgates, um total de 3.296 ―peças‖. Deste total, foram identificadas 3.023 ―peças‖ de pessoas particulares,
resgatadas debaixo de duas tropas de resgates expedidas para o Pará e outras para o Maranhão e vila de Vigia e
outras escoltas. Cf. Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., v. 4, pp.297
42
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
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Marcia Eliane Alves de Souza e Mello
remediar a sua necessidade, e para o maior numero que pede recorra novamente a S.
Majestade a quem dou conta com o translado do assento‖ 45.
Consideramos esse aspecto da limitação da autoridade local em conceder as licenças
aos moradores o fator impeditivo para que o novo sistema de escravizar pudesse se
desenvolver plenamente. Para tanto, seria necessária uma mudança significativa nos poderes
de concessão das licenças. Essa circunstância vai ser alterada no governo de Alexandre de
Souza Freire e ganhar amplitude nos governos seguintes.
Como já destacamos, a interpretação induzida pelo governador Alexandre de Souza
Freire da ordem régia de 1728 sobre os descimentos alterou o sentido das palavras e intenção
da provisão régia (que os descimentos fossem feitos somente por autoridade pública e não
pelos moradores). Passou-se a aplicar a autoridade de conceder licenças, em nome do rei, para
os particulares fazerem descimentos, dizendo que assim estava cumprida a formalidade de ser
por uma ―autoridade pública‖. Essa interpretação da lei foi aprovada sem contestação pelas
Juntas das Missões do Maranhão e do Pará46, que sancionaram com a sua autoridade um novo
estilo introduzido pelo governador, o de conceder licenças às pessoas particulares para irem
também aos resgates dos índios47. Nesse sentido, podemos ainda dizer que o governador
serviu-se da competência atribuída à Junta para firmar uma prática que atendia aos interesses
locais.
Além disso, o limite jurisdicional que antes era um fator impeditivo para o
desenvolvimento dos resgates privados foi contornado e favoreceu a expansão desse sistema
em conjunto com a escravização oficial, que teve o seu auge entre o final da década de 1730 e
meados da década de 1740.
O processo pelo qual eram concedidas as licenças demonstra que o governador não
agia autonomamente, mas de comum acordo com as decisões da Junta das Missões, pela qual
eram analisadas as petições encaminhadas pelos moradores ao governador. E, na Junta, depois
de examinados caso a caso, de acordo com as necessidades e capacidades do solicitante, se
determinava as modalidades da concessão, se para descimento ou resgate, além da quantidade
de índios permitidos ―baixar‖ em cada situação. Somente após a decisão da Junta é que o
governador despachava o alvará de licença, assinado por ele e pelo Bispo, autorizando o
morador a fazer o resgate.
45
AHU, Pará, cx. 10, doc. 941. Despacho de 30/09/1727.
A esse respeito é importante comentar que mais tarde quando os jesuítas passaram a contestar a modificação
da lei, colocando toda a culpa da alteração do sentido da ordem Régia na pessoa do governador. D. Lázaro
Leitão, conselheiro da Mesa de Consciência, deu seu parecer defendendo o governador. Argumentando que a
decisão também foi da Junta e tomada em assento uniformemente, e mesmo que governador entendesse o
contrário, não podia revogar por si só um assento da Junta.
47
AHU, Pará, Cx. 18, doc. 1641. Carta do desembargador sindicante Francisco Duarte dos Santos de
01/06/1735. Em que diz que se prova pelas suas devassas que o estilo foi introduzido pelo governador Alexandre
de Souza Freire.
46
12 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa
Notamos que nessa avaliação das petições dos moradores a Junta funcionava como um
crivo seletivo. Afinal, não autorizava todos os pedidos de resgates a ela encaminhados, tendo
em conta o caráter e as condições materiais do peticionário, e na maioria das vezes autorizava
o descimento, e não o resgate solicitado. Ou ainda, mesmo entre aqueles que alcançavam
permissão para os resgates, o número de índios permitidos pela Junta era, em muitos casos,
menor do que pretendiam os solicitantes, o que nos leva a acreditar que eram ainda nesse
período despachadas mais autorizações para descimentos do que para resgates privados48.
Podemos exemplificar essa prática com os dados da Junta reunida em 23 de setembro de 1729
no Pará, em que foram apreciadas as petições do capitão João Monteiro e de Brás da Silva,
em que pedia cada um, autorização para trazer 80 casais de índios, sendo 40 de resgatados e
40 de descidos49. A Junta não concedeu os resgates, somente os descimentos de apenas 20
casais nas condições do bando lançado pelo governador50. Os limites também podem ser
verificados no caso de Francisco de Portflix, morador e cidadão da cidade de Belém do Pará,
onde era proprietário de um engenho de açúcar, que em reunião da Junta de 12 de novembro
de 1728, recebeu parecer favorável da Junta para um alvará de licença para resgatar 60
índios51. Contudo, em 1732, quando ele solicitou que lhe concedessem licença para mais 50
índios além dos 60 anteriormente concedidos, a Junta somente autorizou que se passasse
alvará para 70 resgates, contando aí os 60 já concedidos52.
Nosso argumento sobre o incremento dos resgates privados somente a partir de
meados da década de 1730 é reforçado por alguns elementos apontados numa sessão da Junta
das Missões no Pará, em 1732, e pelos desdobramentos dela advindos, pelos quais se teria
invertido a proporção entre licenças para descimentos e resgates.
Novamente as modificações que podemos perceber nos mecanismos de acesso e
exploração da mão-de-obra indígena partiram de decisões tomadas no âmbito da Junta das
Missões local. Desta feita, no começo do governo de José Serra, em reunião realizada em 25
de outubro de 1732 na cidade de Belém, analisou-se um pedido da Câmara do Pará, no qual se
solicitava que fosse restituída a Tropa de resgates anual53. A novidade que vinha inserida no
48
Sue Gross considera que os descimentos efetuados por moradores foram mais utilizados e mais eficazes no
fornecimento de índios como mão-de-obra para os moradores do que os resgates. Sue Gross Apud Nádia
FARAGE, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a colonização, Rio de Janeiro, Paz e
Terra/Anpocs, 1991. p. 176.
49
Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 23/09/1729.
50
O governador mandou lançar um bando em execução ao assento da Junta das Missões. Bando de 23/07/1728.
In: Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., p. 258.
51
Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 12/11/1728.
52
AHU, Pará, Cx. 15, doc. 1428.Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732.
53
Já estavam a 4 ou 5 anos sem expedirem-se tropas de resgates em benefício dos moradores. In: AHU, Pará,
Cx. 15, doc. 1428. Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732.
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
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pedido dos oficiais do Senado da Câmara era que na tropa pudessem entrar os moradores a
fazer os resgates com igualdade, alegando que os resgates mandados por conta da Real
Fazenda não eram o suficiente para abranger os muitos moradores que a cidade comportava
naquela época54. Os deputados representantes das ordens religiosas da Piedade, de Santo
Antônio, do Carmo e das Mercês foram favoráveis à concessão dos resgates privados sob o
comando da mesma tropa. O Bispo, Frei Bartolomeu do Pilar, também votou favoravelmente
aos resgates, mas advertiu que fosse mais de um missionário para proceder ao exame dos
resgatados, visto que o número de resgatados seria maior com a concessão de irem os
moradores na Tropa. Nesse sentido, propôs o Bispo que não fossem só missionários da
Companhia de Jesus, mas também das outras religiões. Por sua vez, o deputado representante
da Companhia de Jesus, Padre José Vidigal, foi de parecer que se concedessem os resgates
desde que se observassem algumas questões que apontou em documento por escrito que foi
encaminhado à secretaria posteriormente.
As ponderações propostas pelo Padre Vidigal demonstram a amplitude que adquiriu
tal solicitação e a que ponto sua aceitação pela Junta envolvia modificações de determinados
privilégios, que convinha serem resguardados por aqueles que os detinham. A primeira
questão a considerar significava que o pedido da Câmara não implicava a concessão de
licenças para uns poucos moradores como já era comum, mas sim para um grande número de
moradores. E a segunda questão, derivada da primeira, implicava que uma vez concedidas
essas licenças, resultaria um grande número de resgatados. No entendimento do Provincial
jesuíta essas questões eram discutíveis e deveriam ser ponderadas, visto que não comportava a
tropa um grande contingente, nem se podiam fazer tantos resgates que fossem moralmente
aceitos conforme o alvará dos resgates de 1688. Seu parecer definiu, portanto, que não se
deviam conceder licenças para que fossem nem sob o comando de Tropa oficial nem fora
dela, um número excessivo de particulares, por entender ele ser isso contrário às leis do rei55.
Entretanto, de acordo com os pareceres, a Junta concordou em permitir os resgates aos
particulares na forma como a Câmara solicitava, transferindo para o governador o poder de
conceder o número de resgates aos que requisitassem, conforme a sua necessidade,
possibilidade e lavouras. E as condições para tais resgates seriam postas em Alvará dirigido a
cada pessoa56.
54
AHU, Pará, cx. 15, doc. 1428. Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732.
Razões apontadas pelo Pe. José Vidigal sobre o requerimento da Câmara do Pará de 28/10/1732. In: AHU,
Pará, cx. 15, doc. 1428.
56
O alvará era assinado pelo Governador e pelo Bispo, passado em nome do rei e depois, registrado na secretaria
de Estado.
55
14 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa
Podemos observar algumas mudanças significativas nessa primeira tropa de resgate do
Pará, expedida pelo governador José Serra. Primeiramente, a possibilidade de ir ao resgate
um maior número de moradores debaixo da tropa oficial com a autorização das autoridades
locais. Em segundo lugar, a nomeação de um militar como cabo da Tropa ao invés de um
paisano, foi uma tentativa do governador no sentido de minimizar as desordens causadas no
sertão pelos responsáveis de semelhantes tropas anteriores. Com esse intuito, nomeou o
capitão pago da infantaria Diogo Pinto da Gaya. Terceiro, firmava-se na Junta a autoridade
para mediar e resolver questões concernentes à expedição das Tropas oficiais de resgates.
Em 1737 a Junta das Missões ponderava algumas questões que envolviam o envio de
Tropas de resgates para a região do Rio Negro, que havia sido devastada pelas Tropas de
resgate e guerra comandadas por Belchior Mendes na década anterior. Os jesuítas eram de
opinião que os resgates fossem suspensos indefinidamente, enquanto outros deputados,
representantes das demais ordens religiosas, eram a favor de tornarem a mandar expedições
com indivíduos privados, que depois estariam sob a averiguação da Junta quando retornassem
para a cidade. Também o Bispo se posicionava a favor dos resgates, argumentando que era
uma necessidade para o desenvolvimento econômico da região57.
Estando de passagem pelo Pará, o capitão Lourenço Belfort58, morador do Maranhão,
enviou uma proposta para a Junta daquela cidade, na qual propunha o capitão financiar por
conta própria a Tropa a favor dos povos do Maranhão, correndo por sua conta e risco
qualquer perda que pudesse haver no dinheiro investido. Em troca, pedia ser nomeado cabo
dessa Tropa e poder trazer tantos índios quantos fossem necessários para ressarcir as suas
despesas. A Junta reunida em 26 de outubro de 1737 deliberou sobre a proposta de Belfort, e
os deputados votaram uniformemente que era justo e conveniente expedir-se a Tropa
requerida59.
Podemos observar nessa atitude da Junta uma maior condescendência para com os
interesses dos moradores, não somente por autorizar a expedição de uma Tropa de resgate
financiada por um particular, contrariando a lei de 1688 que determinava que o fossem apenas
57
Paul David WOJTALEWICZ, The “Junta de Missões”. The missions in the portuguese Amazon. Thesis de
Master of Arts. University of Minnesota, 1993, p. 40
58
De naturalidade irlandesa, nascido em 1708, Lourenço Belfort foi para Lisboa ainda jovem. Na década de
1730, viajou para o Maranhão, onde se fixou. Instalando-se na região do Itapecuru, fundou um engenho e se
dedicou a lavoura e produção de arroz e algodão. Mais tarde se tornou almotacé pela Câmara de São Luis, em
1744, 1750 e 1754, bem como vereador em 1753 e 1759. Em 1758 recebeu a mercê do hábito de cavaleiro da
Ordem de Cristo. Também enveredando pela carreira militar, chegou a mestre de campo (1768). Faleceu em
Lisboa em 1777. (Mílson COUTINHO, Fidaldos e Barões. Uma história da nobiliarquia luso-maranhense, São
Luís, Edições Geia, 2005, pp. 97-99.
59
AHU, Pará, Cx. 21, doc. 1967. Proposta e Lourenço Belfort de 21/10/1737; Termo de Junta das Missões do
Pará de 26/10/1737.
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011
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pela Fazenda Real, como também por permitir que se agregassem à Tropa outros moradores,
tanto do Pará quanto do Maranhão60. Oficializando a união entre os interesses particulares e
os das Tropas oficiais de resgates. Isto nos sugere que, a despeito das críticas quanto à
postura dos governadores do Estado feitas na maioria das vezes pelos religiosos jesuítas,
descarregando sobre eles toda a responsabilidade das mudanças promovidas, tais alterações
não ocorriam sem o consentimento da Junta, nem à sua revelia.
O fato de passar a Junta a favorecer o cativeiro privado, em vez de defender
incondicionalmente a liberdade indígena, não é de todo modo uma contradição aos seus
princípios de defesa da propagação da Fé. Havia toda uma argumentação de cunho teológicomoral que justificava o cativeiro, baseando-se na salvação das almas dos índios, que podemos
ver expresso pelo
Pe. Avogadri, missionário jesuíta da tropa de resgates comandada por
Belfort. Dizia ele que era errado "quando se desagrada a Deus por agradar aos homens", mas
não era errado "quando se agrada aos homens servindo a Deus‖ e que, portanto, não havia
maior serviço a Deus do que:
agradando aos homens resgatar estes tapuias do horrendo
cativeiro dos seus desumanos inimigos (...) verdade é que eles
ficam escravos; sim: Porem de católicos; e neste cativeiro, os
mais senão todos acham a verdadeira liberdade de Filhos de
Deus61.
Embora o número de autorizações para particulares não possa ser contabilizado no seu
total, temos informações seguras de que durante o governo de João de Abreu Castelo Branco
(1737-1747) esse sistema conheceu o seu apogeu e posterior declínio. Pelas declarações
contidas em reuniões específicas da Junta das Missões do Pará, realizadas no período
compreendido entre 1738 e 1745, temos indicações de que 301 colonos receberam licenças
para resgatar, que somavam os resgates para 9.920 pessoas62, sendo que o número de resgates
concedido para cada morador girava em torno de 20 a 40 índios. O perfil dos peticionários
também mudou, encontramos entre eles diversos atores sociais que iam desde capitão-mor,
sargento-mor, tenentes, senhores de engenhos, juízes, cabos de esquadra, passando por
padres, cônegos, escrivães, carpinteiros, serradores, soldados, ajudantes de infantaria de
guarnição da Praça do Pará, entre outros. Muitos deles sem grandes cabedais. Contudo,
60
Belfort relata entre outros exemplos, em carta enviada ao governador, que ―Amaro Gonçalves, hum dos
homens que agreguei a Tropa, leva em canoa sua, em companhia da de El Rey, vinte e duas pessas ‖. AHU,
Pará, Cx. 21, D. 1967. Carta de Lourenço Belfort ao governador João Abreu Castelo Branco de 29/06/1738.
61
AHU, Pará, cx. 21, doc. 1967. Cópia da Carta do Pe. Avogadri de 30 de junho de 1738.
62
Paul David WOJTALEWICZ, The “Junta de Missões . The missions in the portuguese Amazon, p. 41
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Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa
apenas quando estavam em condições de equipar as canoas e que alcançavam a licença para
despachá-las, às vezes mais de um ano depois de concedidos os resgates pela Junta63.
No entanto, tal sistema foi suspenso em 1747, quando o Conselho Ultramarino
deliberou sobre os problemas advindos dos resgates privados e depois de ponderados os
argumentos apresentados no Conselho, o rei encaminhou sua decisão ao governador de
interromper tal prática
64
. Na ordem régia eram declaradas como nulas todas as licenças
concedidas aos moradores pela Junta das Missões para fazerem descimentos. Ordenava ao
governador que advertisse os deputados da Junta das Missões para que não se excedessem nas
suas atribuições, por não constar que ela tivesse a faculdade de dar semelhantes licenças para
particulares, sem que para esse efeito houvesse antes determinação régia. Finalmente,
mandava que a Tropa de resgate que se achava há muitos anos no sertão, contrariando o que
dispunha a lei, se recolhesse. Em julho de 1748 reiterou o cumprimento da ordem passada no
ano anterior e novamente ordenou que não permitisse semelhantes cativeiros nem
descimentos que não fossem ―feitos por autoridade pública‖65.
Ao analisar as licenças de descimentos e resgates concedidas aos moradores na
primeira década do século XVII, alguns nomes aparecem recorrentemente citados como de
Manoel Pestana de Vasconcelos, José Sanches de Brito, José da Cunha Deça e José Velho de
Azevedo. Gostaríamos de finalizar este ensaio, traçando a trajetória de um destes moradores,
que consideramos representativos da pequena nobreza a qual ia se constituindo no espaço
amazônico nos primórdios do século XVIII.
Escolhemos comentar a experiência de José Sanches Brito, nascido em Lisboa, por
volta de 1667. Logo se fez embarcar para a ilha da Madeira, em 1680, acompanhando seu tio
João da Costa Brito escolhido como governador, e lá sentando praça de soldado. Em 1687,
viajou para o Maranhão na companhia do novo governador do Estado Artur de Sá e Menezes.
Fixando-se na capitania do Pará, onde casou com D. Clara Bittencourt, pertencente a um dos
grupos familiares mais antigos do Pará. Enquanto servia ao presídio como soldado da guarda,
dele se ausentava com permissão de seus superiores para poder cuidar de um engenho que
63
Efetivamente, não podemos dizer ao todo quantos foram os índios resgatados, em parte porque nos faltam os
livros de registros correspondentes, em parte, porque muito resgate se fez de forma clandestina. O certo é que
temos noticia apenas de um livro de registros dos índios resgatados, existente no Arquivo do Pará, que foram
feitos debaixo da tropa de resgates de Lourenço Belfort entre junho de 1745 e maio de 1747, e que contabilizam
1.377 índios, sendo 1.334 escravos e 34 forros. Arquivo Público do Pará, Códice 44.
64
AHU, Pará, cx. 29, doc. 2803. Carta Régia de 21/03/1747.
65
AHU, Conselho Ultramarino, Códice 271, pg. 132-132v. Carta Régia de 23/07/1748.
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havia erguido no rio Moju, próximo das terras de seus cunhados Hilário e Luis Morais
Bittencourt66.
Da produção de seu engenho se faz menção no Livro de receitas e despesas do
almoxarifado da Fazenda Real do Pará, por exemplo, sobre o imposto lançado nas
aguardentes em 1699-1700. Nele podemos constatar que Sanches Brito apresenta a maior
produção de aguardente entre os moradores — de 600 canadas67 — o que representava cerca
de 23% do total da produção local sob o qual incidiu o imposto68. Seu cunhado Hilário
Moraes Bittencourt, também aparece citado em sétimo lugar entre os moradores, com a
produção de 150 canadas. O fato é que para semelhante desempenho, necessitava Sanches
Brito de mão de obra; e na região, isto significava mais índios para o serviço, como veremos
nas suas demandas ao rei.
Em 1702, embarcou para o Reino onde ficou um ano de licença. O motivo de sua
viagem ainda é por nós desconhecido, mas, sabemos com certeza que durante a sua estadia em
Lisboa, se apresentou perante a mesa da inquisição em setembro de 1702 para falar de suas
―culpas‖. Entre elas, assumia que para escândalo de seus vizinhos no Rio Moju, fazia
trabalhar às vezes seus escravos nos domingos e dias santos, que eram de preceito da Igreja,
mas o fazia para poder aproveitar os dias, pois se dilatando a colheita, esta poderia se perder69.
Ainda em Lisboa, em 1703, fez pedido de licença para descer a sua custa 200 casais de
índios para servir deles na sua lavoura, alegando que assim o rei ―tem concedido a Manuel
Pestana de Vasconcelos e outras pessoas mais‖70. Teve seu pedido foi deferido, com o parecer
favorável do ex-governador Antonio de Albuquerque71, após consultar licença no Conselho
Ultramarino. Todavia a carta régia em que foi concedida a licença só foi expedida em 170672.
Retornando ao Maranhão, sua carreira militar começou a deslanchar. Em 1704, foi
promovido a alferes e também passou a capitão do fortim fronteiro à Fortaleza da Barra da
cidade de Belém, que havia sido ocupado por José da Cunha Deça (que foi promovido a
66
AHU, Pará, cx. 5, D. 404.
Antiga unidade de medida de coisas líquidas, como vinho, azeite, equivalia a quatro quartilhos, ou seja, 2,662
litros. ( Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Novo Aurélio século XXI. Dicionário da lingual portuguesa, 3ª
ed. , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. pg. 384.
68
Biblioteca Nacional da França, Manuscritos ocidentais, Fundo Portugal, portugais 39, fl. 69-69v. Agradeço
aqui a informação indicada pelo Prof. Rafael Chambouleyron, o qual generosamente cedeu uma transcrição do
manuscrito citado.
69
DGAQ/TT/TSO, Inquisição de Lisboa, caderno do promotor 273, fl. 292-296v. Apresentação feita em
20/09/1702.
70
De fato, um ano antes, Manuel Pestana de Vasconcelos, que era alferes tenente da fortaleza de Macapá,
encaminhou petição em que solicitava a concessão para administrar uns casais de indios que havia descido a
sua custa do sertão. Cf. AHU, Conselho Ultramarino, Códice 52 fl. 460. Consulta de 04/03/1702.
71
AHU, Conselho Ultramarino, Códice 52 fl. 41. Consulta de 16 de abril de 1703.
72
ABN 66, pg. 276. Carta Régia de 04/03/1706.
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capitão de infantaria) estando vago o posto73. Em 1705, recebeu do governador Rolim de
Moura a patente de Superintendente das Fortificações da cidade de Belém74. E foi no
exercício deste posto, conhecedor das condições precárias das fortificações do Pará, que
Sanches Brito propôs ao rei construir uma fortaleza real no lugar do forte velho, de acordo
com as plantas que havia feito anos antes pelo sargento-mor e engenheiro Jose Velho de
Azevedo75, solicitando em contrapartida o posto de loco tenente ou de capitão-mor da
capitania do Pará. O que foi em princípio analisado no reino e escusado, por entender os
conselheiros do rei que ―não tem lugar a sua proposta por ser mais da sua conveniência do
que do serviço real‖76.
Enquanto isso, Sanches Brito continuava seu trabalho no Fortim no qual era capitão,
empenhando-se em reconstruí-lo tendo em vista a ―necessidade que havia do dito forte para
defensa daquela barra‖. De acordo com certidão passada pelo governador Rolim de Moura, a
ajuda veio na forma de quatro canoas grandes para a condução dos materiais, de centenas de
peneiros de farinhas, na disponibilização de seus escravos para trabalharem na obra, além de
10 mil cruzados de donativo para a Fazenda Real, que foi utilizado no concerto do fortim e
para pagar os mais de 200 operários envolvidos na obra77.
Por conta disso, havia o
governador provido Sanches Brito no posto de capitão do fortim, em detrimento de Isidoro
Pestana Travasso que havia sido indicado para o posto pelo Loco-Tenente Fernão Carrilho,
por julgá-lo mais apto78.
Todavia, não havia Sanches Brito abandonado a idéia de construir um novo forte na
barra da cidade, voltando a propor novamente o serviço, em 1716, indicando construir um
forte de pedra sem cal (que tornava a obra mais barata) em três anos e solicitando em troca o
posto de Tenente General da Artilharia, que havia sido de José Velho de Azevedo, e vago por
este ter se tornado Capitão-mor do Pará79. A obra ficou estimada entre 20 mil e 35 mil
cruzados. O processo de avaliação do pedido levou três anos, enquanto eram trocadas cartas
entre o reino e o governo do Maranhão, até que em setembro de 1719 foi aprovado o pedido
de Sanches ―desde que cumprindo o prometido em quatro anos de construir em pedra sem cal,
o forte, lhe será concedida a mercê de Tenente General‖80.
73
O curioso era que Cunha Deça que havia construído por sua iniciativa o fortim de madeira. E em 1698
requereu patente de capitão do supracitado fortim.
74
AHU, Pará, vx. 5, doc. 404. Carta Patente de 13/03/1705.
75
AHU, Pará, vx. 4, doc. 322. Carta de 08/07/1695.
76
ABN 67, pg. 22. Carta Régia de 14/12 /1707.
77
AHU, Pará, cx. 5, doc. 404. Certidão de 14/03/ 1705.
78
AHU, Pará, cx. 5, doc. 439. 14/12/1709.
79
Alguns anos cntes, José Cunha Deça havia se tornado Capitão mor do Maranhão (1706-1710).
80
AHU, Pará, cx. 6, doc. 544.
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Marcia Eliane Alves de Souza e Mello
Enquanto isso, a atividade do engenho de açúcar continuava bem-sucedida e
demandando mão de obra. Como as tropas de resgates oficiais estavam interrompidas (desde
1714), Sanches Brito voltava a fazer novos pedidos de resgates, em 1720, justificando assim a
sua demanda:
ficando por esta falta com grande diminuição a fabrica do dito
engenho , e interesse que dele resultam a Fazenda Real em razão de
não haver naquela capitania lavradores de canas e na falta de lhe ser
muito dificultoso ao suplicante conservar a copiosa e singular lavoura
de canaviais, que fabrica ao mesmo passo dele serem necessários
muitos escravos para o trabalho do engenho que tem com toda a
fabrica dobrada81.
Infelizmente, José Sanches Brito, não viveu para terminar sua obra no Forte da Barra,
falecendo por volta de 1722. Por outro lado, seu engenho chamado de Marajatuba, continuou
em funcionamento e a ser mantido pelas suas filhas e herdeiras D. Mariana Bernarda
Bittencourt e D. Maria Margarida, que mesmo estando internas como religiosas em um
convento em Lisboa, continuavam com a posse do engenho e administrando seus bens com o
apoio de seu tio Hilário, uma vez que pertenciam a um poderoso grupo familiar, os Moraes
Bittencourt, estabelecidos na região desde a metade do século XVII82. As herdeiras
continuaram solicitando resgates para manutenção do engenho (1732)83 ou lutando para
manter as terras anexas ao engenho (1743)84. Dedicação que podemos verificar na petição que
encaminharam, em 1745, alegando a necessidade de índios para manter em funcionamento o
engenho, para tanto requeriam licença para descer 200 índios para esse trabalho85. Consultada
a petição em Junta das Missões de 23 de dezembro de 1745, decidiram os deputados que não
havia inconveniente em se conceder a licença para o descimento requerido86. Quando, em
finais de 1747, informava o governador ao rei que estavam prontos os preparativos para
efetuar o descimento e escolhido o missionário87, esse foi mandado suspender por força da
ordem régia de 21 de março de 174788. Ainda assim, a última notícia que temos das irmãs,
81
AHU, Pará, cx. 6, doc. 576.
Para maiores detalhes das alianças e desdobramentos do grupo familiar no século XVIII-XIX. Vide Patrícia
M. SAMPAIO. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Amazônia Colonial, Manaus, EDUA,
2011. p. 98-100.
83
AHU, Pará, cx. 14, doc. 1317.
84
AHU, Pará, cx. 26, doc. 2423.
85
AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Representação [ant. julho de 1745].
86
AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Termo de Junta das Missões do Pará de 23/12/1745.
87
AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Carta do governador de 13/11/1747.
88
AHU, Pará cx. 30, doc. 2813. Parecer do Procurador da Coroa [post. 22/03/1748].
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data de 1754, quando solicitaram 60 índios das aldeias de repartição para servirem no
engenho de açúcar que possuíam no Pará89.
Por fim, esperamos ter demonstrado como algumas decisões tomadas nas Juntas das
Missões do Estado do Maranhão assumiram a configuração de poder coletivo, que forçou o
estabelecimento de novas formas e regras de conduta, auxiliando no estabelecimento e
sobrevivência da elite colonial, como pudemos analisar na ação da Junta no que se refere aos
descimentos, no tocante à interpretação das ordens de 1718 e 1728. E ainda ao destacar a
trajetória pessoal de Sanches Brito, observar como determinado grupo de moradores foi se
tornado beneficiário direto das ações estimuladas pela Junta das Missões, como também,
através da rede social que se formava na região, ia construindo e consolidando seu poder
político.
89
AHU, Pará, cx. 37, doc. 3426.
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