O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
A crise mundial e a economia brasileira1
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani2
Resumo
Este artigo tem como principal objetivo discutir se a economia brasileira tem instrumentos
para fazer frente a uma crise de envergadura mundial. Na primeira parte, são retomados os
aspectos mais relevantes do funcionamento do capitalismo das últimas décadas, com ênfase
no papel desempenhado pelo capital fictício, e são lembrados os desdobramentos da crise no
momento atual. Na segunda e terceira partes, dedicadas ao Brasil, são descritas as políticas
anticíclicas realizadas pelo governo brasileiro em 2009 e discutido até que ponto o Brasil
pode fazer frente, isoladamente, a uma nova retração da demanda e da liquidez mundial.
Entre outros aspectos, é dada especial atenção à exposição da economia ao movimento dos
capitais, com seus desdobramentos, tanto no câmbio, como no balanço de pagamentos e nas
finanças das empresas.
Palavras chave: crise mundial; capital fictício; Brasil; economia brasileira.
Apresentação
Diferentemente3 do que ocorreu ao final de 2008 e início de 2009, o governo Dilma
considera que o agravamento da situação da economia mundial pode ter consequências
negativas para o Brasil e que é preciso construir um esforço conjunto, principalmente dos
países tidos como mais desenvolvidos, para impedir que a crise se alastre e golpeie as
diferentes nações4. Nesse momento, as estimativas indicam que a economia norteamericana está em franco arrefecimento, bancos importantes desse país tiveram suas
classificações de risco rebaixadas, como o Bank of America que passou A2 para Baa15
segundo a Moody's. A situação da zona do euro se agrava com a não resolução do
endividamento do estado grego e com as dificuldades enfrentadas pelos diferentes países,
especialmente por Portugal, Espanha e Itália. A crise, embora não tenha data para
acontecer, é uma certeza para todos aqueles que acompanham o desenrolar da situação
econômica mundial.
1
Texto preparado para a reunião da Red de Estudios de la Economía Mundial (REDEM), em 13 e
14 de outubro, em Santiago do Chile.
2
Professora titular do Departamento de Economia e do Programa pós-graduado em Economia
Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor do Departamento de Economia e do
Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Presidente da
Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP).
3
Na época, no dizer do presidente Lula, o impacto da crise seria de apenas uma “marolinha”.
4
“Como outros países emergentes, o Brasil tem sido, até agora, menos afetado pela crise
mundial. Mas sabemos que nossa capacidade de resistência não é ilimitada.” (ROUSSEF, 2011).
5
Para a Weiss rating, o quadro é muito pior para 12 dentre os maiores bancos americanos,
todos classificados entre D- e D+, entre eles estão o JP Morgan Chase Bank, o Bank of America e o Wells
Fargo, todos com ativos de mais de um trilhão de dólares. (WEISS, 2011).
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Não se trata de uma nova crise. O que estamos assistindo é o desdobramento de
uma crise há muito vivida pelo capitalismo, mas que havia ficado mais evidente em 2008 /
2009, porque dessa vez havia afetado mais profundamente a principal economia mundial,
isto é, a norte-americana.
O principal objetivo deste artigo é analisar se a economia brasileira apresenta
condições de fazer frente à crise esperada por todos. Para isso, na primeira parte, são
apresentados os traços mais marcantes do funcionamento do capitalismo contemporâneo,
especialmente o crescimento e o papel determinante do capital fictício na determinação das
relações econômicas e sociais. Ainda nessa primeira parte, é lembrado como as políticas
assumidas por alguns governos, especialmente pelos Estados Unidos e pelos países da zona
do euro, foram responsáveis pela manutenção e pelo aprofundamento das contradições
presentes na crise de 2008 / 2009.
Na segunda e terceira parte, são analisadas as políticas anticíclicas realizadas pelo
governo Lula em 2009 e discutido até que ponto o Brasil está preparado para enfrentar uma
nova retração da demanda e da liquidez mundial. Entre outros aspectos, é dada especial
atenção à exposição da economia ao movimento dos capitais, com seus desdobramentos,
tanto no câmbio, como no balanço de pagamentos e nas finanças das empresas.
A crise no capitalismo contemporâneo
A maioria da mídia, alguns economistas e as principais lideranças do mundo seguem
considerando que a crise atual do capitalismo, completamente escancarada em 2008, é de
natureza financeira, a qual teria contaminado o lado real da economia, e que as dívidas
européias e dos Estados Unidos se resolvem com cortes do gasto público, principalmente do
gasto social. Essa interpretação decorre da não compreensão da natureza do processo
vivenciado pelo capitalismo nas últimas décadas, quando o capital portador de juros
(também chamado de capital financeiro), mas mais particularmente em sua forma de capital
fictício,
passou
a
estar
no
centro
das
relações
sociais
e
econômicas
do
mundo
contemporâneo (CHESNAIS, 2005).
A possibilidade do capital portador de juros assumir a liderança na determinação das
relações econômicas, e em decorrências das relações sociais, esteve colocada desde que
moeda tornou-se equivalente geral. É nesse momento que, de uma maneira invertida, a
moeda passa a ser vista como o próprio valor e não mais como sua representação. E quando
um grupo de capitalistas se dedicou a emprestar dinheiro para os demais, o dinheiro, agora
como capital, assumiu nova propriedade, a de se valorizar, sem passar, como dizia Marx,
pelas agruras da produção. O capital fictício, como resultante do desdobramento da forma
capital portador de juros e como expressão de sua forma mais acabada, representa a forma
mais fetichizada e acabada do capital (MARX, 1980). Dessa forma, a dominância do capital
portador de juros, particularmente do capital fictício, não constitui uma distorção ou
anomalia e sim o desenvolvimento lógico da busca de valorização desse capital, mesmo que
essa valorização constitua uma valorização fictícia, sem contrapartida em produção de mais
valia, e funcione de forma especulativa e parasitária (CARCANHOLO e NAKATANI, 1999).
Essa valorização fictícia é, no entanto, bem real para aqueles que a desfrutam e, por isso,
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
anima sua crescente expansão. Se a dominância financeira não constitui a tônica em todos
os momentos do capitalismo é porque se colocaram obstáculos a seu desenvolvimento, fruto
de configurações históricas e econômicas bem específicas. Exemplo disso foi o período de
trinta anos que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. A crise atual é, portanto, uma
crise do capital e não uma crise provocada por uma anomalia qualquer, ou pela
desregulamentação, ou pela ganância dos banqueiros e especuladores ou pela incompetência
dos governos.
Mais ou menos a partir do final dos anos 1970, quando se criaram as condições para
o retorno da dominância do capital portador de juros e para o desenvolvimento hipertrofiado
do capital fictício – houve, do ponto de vista do capital, uma fuga para frente. Desde o final
dos anos 1960, nos Estados Unidos, e a metade dos anos 1970, na Europa, a forma
específica de acumulação do capital engendrada no pós-guerra, chamada de fordista pela
escola da Regulação, tinha esgotado sua capacidade de assegurar uma taxa de lucro
crescente. Como resposta a essa situação, o capital se vale de várias estratégias6 para
recompor a evolução de sua taxa de lucro: precarização do trabalho, redução dos salários,
introdução acelerada de novas tecnologias, transferência de plantas para onde os salários
sejam menores, entre outras. Apesar disso, somente em meados de 1980, e apenas as 500
maiores empresas mundiais, conseguiram retomar a expansão de sua taxa de lucro em
relação ao período dos trinta anos do pós-guerra. Ademais, parte desse lucro tinha origem
na esfera financeira (HUSSON, 2006). Em realidade, com o retorno do capital portador de
juros no centro das determinações da reprodução do capital, a distinção entre capital
industrial, comercial e a juros ficou restrita à teoria, pois, na prática, houve um crescente
entrelaçamento entre eles: hoje em dia, as grandes empresas, sejam elas preferencialmente
industriais ou comerciais, não só aplicam em diferentes ativos financeiros, como assumem
funções antes restritas aos bancos, quando elas próprias não têm seu banco. Um exemplo
disso no Brasil são os bancos ou braços financeiros das montadoras como a Volkswagen, a
Fiat, a Mercedes Benz, Ford, Honda, etc, que oferecem crédito para a compra de seus
produtos. O desenvolvimento de várias funções, aparentemente alheias ao objetivo primeiro
das empresas7, deve-se à imposição da lógica do capital fictício: buscar a maior rentabilidade
possível, em curto espaço de tempo8. É assim que parte do capital das empresas se dirige
para atividades financeiras de todo o tipo, de forma que fica muito difícil saber, sem as
informações detalhadas dos resultados apresentados em seus balanços, qual a origem dos
lucros apresentados. Em geral, apenas quando uma aplicação é má sucedida, resultando em
6
Isso foi apoiado em uma correlação de forças favoráveis ao capital, propiciada por derrotas
históricas aos trabalhadores, tal como aconteceu com os aeroviários nos Estados Unidos e com os
mineiros, na Inglaterra. Mais tarde, essa correlação de forças se aprofundou com a queda do Muro de
Berlim e com a dissolução da União Soviética. Para completar esse quadro, que colocou os trabalhadores
pela primeira vez em verdadeira concorrência mundial, a China entrou na Organização Mundial do
Comércio em 2001.
7
A rigor não é alheia, pois o objetivo de qualquer empresa, seja ela industrial, comercial ou
bancária, é o lucro, não importando a forma com que ele é obtido.
8
Segundo Plihon (2005), a rentabilidade mínima de 15% do setor financeiro passou a ser a
norma das empresas, adotada para todas as filiais e para todos os departamentos ou setores, o que
compromete o investimento e o P & D.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
problemas para a empresa, é que essas operações vêm à luz. Esse foi o caso da indústria de
papel e celulose Aracruz e da Sadia, no Brasil, em 2008, que apostaram na queda do dólar e
quase foram à falência, sendo incorporadas pela Votorantim e Perdigão, respectivamente.
Para que o capital portador de juros retomasse seu papel preponderante e para que
se desenvolvesse a hipertrofia do capital fictício, foi necessário desmontar todas as
instituições, políticas e instrumentos criados ao final da segunda guerra, que cerceavam ou
restringiam sua atividade. E isso foi feito capitaneado pelos Estados Unidos e Inglaterra,
mediante a desregulamentação monetária e financeira, a descompartimentalização dos
mercados financeiros nacionais e a desintermediação bancária. Ao mesmo tempo, e como
condição para a plena aplicação dessas medidas, a maioria das funções do Estado
desenvolvidas no pós-guerra foram rechaçadas e o mercado foi alçado ao locus ideal, onde
tanto os resultados econômicos como os sociais ótimos seriam garantidos. É assim que, em
nome de uma liberdade abstrata, o capital obteve “licença” para fazer valer todas as formas
possíveis de obtenção de lucro, não importando se isso correspondia a uma piora das
condições de trabalho ou se a rentabilidade era fruto de meros papéis de aposta em um
resultado futuro e, por isso, incerto. Nas principais economias do mundo, o desemprego,
antes apenas uma lembrança de um período anterior longínquo, voltou a fazer parte do
cotidiano dos trabalhadores, em parte provocado pela transferência de atividades para o
Leste Europeu e para China. Ao mesmo tempo, as condições de trabalho se deterioraram
(aumento da intensidade, introdução de trabalho noturno e de contratos por tempo
determinado ou parcial, ausência de direitos trabalhistas ou sociais, deslocalização das
empresas), os salários, com honrosas exceções, registraram perdas reais e os sindicatos
viram cair o número de seus sindicalizados expressivamente (MATTOSO, 1994). Fica claro,
portanto, que o capital buscou fazer frente à desaceleração de sua taxa de lucro aumentando
tanto a extração da mais valia, como redirecionando parte de seu capital para ativos
financeiros de todos os tipos, principalmente junto ao mercado secundário, quando se trata
de ações, ou em derivativos, nos demais casos.
Assim, o retorno do capital portador de juros e o desenvolvimento hipertrofiado do
capital fictício - que foi muito mais intenso e complexo do que aqueles do final do século XIX
até 1929 - foram acompanhados pela construção de uma nova relação entre os diferentes
componentes do capital (portador de juros, industrial e comercial) e por uma nova correlação
de forças entre o capital e o trabalho, desfavorável a este último.
Expressiva parte do capital portador de juros que foi criado a partir dos anos 1980 é
fictícia, referindo-se à negociação de ações e títulos públicos ou privados que, no caso das
ações e dos títulos privados, não guardam mais nenhuma relação com sua origem, sendo
negociadas várias vezes no mercado secundário. Quando a crise ficou evidente nos Estados
Unidos em 2008, a verdadeira natureza do capital hoje dominante veio à tona: trata-se de
um capital que garante altas taxas de rentabilidade e garantias, até que suas bases,
assentadas em material podre, começam a desmantelar a intrincada relação de cobertura
criada nessas últimas décadas, denunciando que se trata de uma crise de superprodução.
Por exemplo, na esfera real, “A indústria de autos nos EUA tinha capacidade de produzir 18,3
milhões de carros em 2008. Em 2009, foram produzidos apenas 11 milhões. No mundo,
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
havia uma capacidade de produção de 90 milhões de automóveis, mas foram produzidos
somente 66 milhões.” (GOLDSTEIN, 2011, p. 08).
Mas a crise de superprodução não se manifesta somente em termos de ampliação da
capacidade ociosa industrial. Além de criar milhões de novos desempregados, o capital
excedente na forma de capital monetário ou fictício acumula-se na esfera financeira tendo
como contrapartida o crescimento do valor acionário, da dívida pública e dos derivativos.
Segundo Chesnais (2010, p. 45), a dívida dos bancos e governos da Grécia era de 236
bilhões de dólares, de Portugal, 286 bilhões, da Irlanda, 867 bilhões, da Espanha, 1,1 trilhão
e da Itália, 1,4 trilhão, todas convertidas em dólares. Para o Bank for International
Settlements (BIS), os dados disponíveis dos bancos e instituições financeiras de 43 países
indicavam ativos totais de 35,3 trilhões de dólares, em março de 2011, dos quais, 31,4
trilhões eram externos (BIS, 2011, p. A7). As dívidas em títulos emitidas pelos governos,
instituições financeiras e corporações desses países, em junho de 2011, eram de 29,6
trilhões de dólares, dos quais, 371,4 bilhões de dólares pertenciam à Grécia, 191,8 bilhões à
Portugal, 1.245 bilhões à Irlanda, 1.625,2 bilhões à Espanha e 1.249,9 bilhões à Itália (Op.
Cit., p. A113). No mesmo relatório, o BIS (p. A131) registra que o montante nacional de
derivativos nos contratos de balcão (OTC derivatives), era de 601,05 trilhões de dólares em
dezembro de 2010.
Esse é, em grande parte, o resultado das políticas efetuadas pelo Banco da
Inglaterra, Banco Central Europeu, Banco do Japão e pelo Federal Reserve (Fed), entre
outros bancos centrais, para salvar os grandes bancos. “Mesmo antes da recessão, o Fed
mantinha entre US$ 700 – 800 bilhões em Notas do Tesouro em seu balanço patrimonial,
variando a quantidade para ajustar a oferta de moeda. No final de novembro de 2008, o Fed
começou a comprar US$ 600 bilhões em MBS. Em março de 2009, detinha US$ 1,75 trilhão
de dólares de dívida bancária, MBS e Notas do Tesouro, de forma que esse passivo do FED
atingiu um pico de US$ 2,1 trilhões em junho de 2010”. (AMADEO, 2011). Medidas
semelhantes foram adotadas pela maior parte dos bancos centrais, expandindo a base
monetária e obrigando os bancos a elevarem seus empréstimos a governos 9 e suas
aplicações sob a forma de capital fictício.
O Brasil na crise de 2008 / 2009
Os efeitos diretos da crise de 2008 / 2009 na economia brasileira ocorreram
basicamente através de três canais: a) forte queda dos preços das commodities; b) retração
da demanda internacional; e c) redução expressiva do fluxo de capitais estrangeiros.
Internamente, rapidamente o crédito se contraiu, o ritmo da produção se reduziu, o
desemprego aumentou e a demanda interna caiu. Para fazer frente à crise, o governo
brasileiro adotou uma série de medidas anticíclicas, tais como: a) estímulo ao crédito
9
“Enquanto a crise do subprime eclodia nos Estados Unidos, os empréstimos aumentavam
ainda mais fortemente (33%) entre junho de 2007 e o Verão de 2008 (de 120.000 para 160.000
milhões de dólares), para em seguida, serem mantidos num nível muito alto (cerca de 120.000 milhões
de dólares). Isto significa que os bancos privados na Europa Ocidental usaram o dinheiro que lhes
emprestavam, com abundância e a baixo custo, o Banco Central Europeu e a Reserva Federal dos
Estados Unidos para aumentar os seus empréstimos a países como a Grécia.” (TOUSSAINT, 2011).
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
bancário; b) reestruturação bancária a fim de se precaver contra a insolvência de alguns
bancos mais frágeis ou menores; c) estímulo à demanda através da renúncia fiscal e
mudança no imposto de renda para pessoas físicas; e d) apoio aos desempregados,
mediante ampliação do seguro desemprego.
Apesar dessas medidas, em 2009, o PIB se retraiu em 0,2%, com uma queda da
produção industrial de 5,5% e do setor agropecuário de 5,2%; as exportações se reduziram
em 10,3%. E esse resultado só não foi pior porque a economia brasileira apresentou claros
sinais que iria se recuperar já no segundo trimestre do ano (a recuperação, ocorreu, de fato,
a partir do segundo semestre – BCB, 2009), quando o preço das commodities começou
novamente seu movimento ascendente e quando as estimativas da recessão nos Estados
Unidos indicavam que ela não seria tão acentuada como era esperada no início, muito
embora a crise do subprimes e as falências e dificuldades de importantes bancos e
instituições financeiras norte-americanos continuassem a acontecer.
Nos últimos meses de 2008 e no início de 2009, as medidas realizadas pelo governo
Lula não foram suficientes para mudar o quadro negativo provocado pelos impactos da crise
sobre a economia brasileira, apesar de terem conseguido amenizar seus efeitos. Retomar
essas medidas e seus efeitos é um exercício necessário para se poder discutir se o país tem
condições de, isoladamente, enfrentar a uma crise maior, provocada por uma redução
acentuada da demanda e da liquidez internacionais.
Uma das conclusões que se pode
chegar, a partir do comportamento da economia brasileira durante o final de 2008 e o ano de
2009, é que o país está extremamente vulnerável aos humores do capital (seja na forma de
investimento estrangeiro direto (IDE), seja na forma de capital especulativo e parasitário de
curto prazo) e ao comportamento das economias centrais, particularmente dos Estados
Unidos. Assim, embora as medidas realizadas pelo governo Lula tenham sido importantes, a
retomada do ritmo de atividade somente ocorreu quando as expectativas com relação ao
desdobramento da crise nos Estados Unidos melhoraram, de forma que uma crise de
envergadura maior passou a ser descartada no cenário imediato10.
Crédito e “blindagem” das instituições financeiras em dificuldade
Para manter o mercado líquido, isto é, para fazer frente às dificuldades de captação
de recursos no exterior e para manter o crédito interno, o governo Lula se valeu de várias
medidas. Essas tiveram início em setembro de 2008 e prosseguiram durante o ano de 2009.
Entre elas se destacam: leilões de moeda, com o compromisso ou não de sua recompra
futura; oferta de empréstimos em moeda estrangeira, garantida por títulos soberanos ou por
cambiais de exportação destinada a financiar exportações; diminuição do compulsório dos
bancos; linha de crédito para os exportadores, a partir da utilização de reservas
internacionais do Banco Central do Brasil (BCB); ampliação da linha de financiamento para o
as exportações pré-embarque do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES);
autorização para que o BCB comprasse as carteiras dos bancos que apresentassem
dificuldades; autorização para que os bancos públicos, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o
10
Nesse momento, a profundidade da crise na Europa ainda não tinha se revelado.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Banco do Brasil (BB), adquirissem participações financeiras no país (seguradoras, instituições
previdenciárias, empresas de capitalização, etc,) sem passar por licitação; antecipação da
concessão do crédito agrícola previsto; aumento da exigibilidade de aplicação no setor
agrícola de recursos captados pelos depósitos à vista; criação de linha de crédito para os
produtores rurais através do BB; permissão para que os bancos em dificuldade vendessem,
além de sua carteira de crédito e títulos dos seus fundos de investimento, seus títulos e
valores mobiliários de renda fixa, adiantamentos e outros créditos de pessoas físicas e
jurídicas não-financeiras e os depósitos interfinanceiros com garantia de ativos; criação de
linha de crédito de capital de giro junto a CEF para as empresas da construção civil e para as
empresas em geral pelo BNDES e BB; mudança na forma de recolhimento do compulsório de
100% em títulos públicos para 30% em títulos e 70% em espécie; autorização para que o
BCB disponibilizasse parte das reservas internacionais, por meio dos bancos, para as
empresas
que
precisassem
rolar
financiamentos
feitos
no
exterior;
aumento
da
disponibilidade do BNDES. Ao mesmo tempo, o governo reduziu a taxa de juros SELIC
(Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) de 13,75% (dezembro de 2008) para 8,75%
(de julho a dezembro de 2009).
Apesar dos esforços do governo em incentivar o crédito não estatal, esse se retraiu
nos meses de crise, o que resultou em aumento da participação do setor estatal (BNDES, BB
e CEF) no total da carteira do sistema financeiro. Entre 2008 e 2009, essa participação
aumentou de 36,3% para 41,5%, respectivamente. Entre os créditos direcionados, o
destaque ficou por conta do BNDES, que aumentou o crédito concedido em 35,3% em 2009,
o que significou 61,6% do total do crédito direcionado realizado no ano, representando 9%
do PIB (BCB, 2009, p 55).
Nesse último ano, os desembolsos realizados pelo BNDES
aumentaram em 50%. Esses dados mostram como é importante a existência de um setor
bancário estatal no Brasil, especialmente do BNDES. Apesar das privatizações e das
mudanças realizadas pelo neoliberalismo no país, a permanência dessas instituições
constituem um importante instrumento de intervenção estatal no mercado de crédito, seja
para as empresas como para as famílias.
Renúncia fiscal, consumo, produção e balanço de pagamentos
Na tentativa de aumentar o consumo interno e diminuir, portanto, o impacto da
retração das exportações sobre o nível de atividade, o governo Lula adotou um conjunto de
medidas que envolviam renúncia fiscal. Esse foi o caso da isenção do Imposto sobre Produto
Industrializado (IPI) na compra de carros populares e eletrodomésticos; na redução do
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na compra de motocicletas por pessoa física;
redução para zero do IOF de aplicação no mercado de capitais e operação de empréstimos e
financiamentos externos; redução do imposto de renda sobre aplicações financeiras para a
pessoa física; e criação de mais duas faixas de renda para o cálculo do imposto de renda,
tornando esse imposto um pouco mais progressivo.
Apesar dessas medidas, o consumo das famílias expandiu-se apenas 4,1%, em 2009,
frente a um crescimento de 7% e de 6,1% em 2008 e 2007, respectivamente. Assim
mesmo, foi esse desempenho que, juntamente com o consumo do governo (3,7% de
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
crescimento anual), sustentou o resultado de -0,2% do PIB, pois a formação bruta do capital
caiu 9,9% e as exportações 10,3%. A queda das exportações afetou particularmente o setor
manufatureiro, com destaque para a retração da quantidade de veículos automotores,
reboques e carrocerias de 40,9. Mas as medidas realizadas pelo governo para expandir o
mercado interno permitiu em grande parte compensar essa retração, de modo que a
indústria automobilística produziu apenas 1% menos do que em 2008. No ano, na indústria
em geral, como seria de esperar, os setores que mais sofreram foram a indústria de
transformação (-7%) e a construção civil (-6,3%).
A queda das exportações foi acompanhada de uma redução acentuada das
importações (11,4%), o que permitiu à balança comercial apresentar um superávit 2,07%
superior ao de 2008. Em função desse resultado e da diminuição da conta rendas, a conta de
transações correntes registrou um déficit de US$ 24,3 bilhões (1,55% do PIB), inferior ao do
ano anterior (1,72% do PIB) em 13,7%. Além disso, a retomada do fluxo de entrada de
capitais permitiu que o país obtivesse seu nono resultado positivo na conta capital e
financeira, embora o resultado entre transações correntes e o fluxo líquido de Investimentos
Estrangeiros Diretos (IED), de US$ 1,6 bilhão (0,1% do PIB), fosse bastante inferior aos US$
16,9 bilhões (1,03% do PIB, de 2008).
A Bolsa, o mercado de câmbio e nível de reservas
No início da crise, em outubro de 2008, o valor das ações negociadas na principal
Bolsa do país – Bovespa – registrou forte queda, de 60% no acumulado entre maio e
outubro daquele ano. Desde 1994 não havia tido uma queda tão expressiva, em um curto
espaço de tempo. No total do ano, a cotação das ações fechou com uma redução de 41,7%.
Iniciado 2009, houve valorização de 4,6% em janeiro, seguida de perda de 2,84%, em
fevereiro, recuperando-se em abril (15,5%) e em maio (5,1%). Nos meses seguintes, com
exceção do ocorrido em 14 de julho, a trajetória foi ascendente, fechando o ano com
valorização expressiva, de 82,7%.
Em relação ao câmbio, primeiramente houve uma rápida desvalorização do real de
agosto em diante, (valorização do dólar em 43,75%). Para isso contribuiu o aumento da
demanda por dólares das empresas que queriam zerar suas posições em derivativos
cambiais (responsáveis pelas perdas das empresas que apostaram na manutenção da
apreciação do real, como as empresas Sadia, Votorantin e Aracruz; e o fundo de pensão dos
funcionários do Banco do Brasil, a Previ); a retração do crédito externo; a venda de ativos no
país, principalmente da Bolsa, de investidores estrangeiros para cobrir prejuízos no exterior e
também a busca de ativos tidos como mais seguros, tal como os títulos do Tesouro norteamericano, entre outros fatores.
Nos dois primeiros meses de 2009, o prosseguimento dessas restrições levou ao BCB
a vender divisas no mercado à vista (US$ 3,4 bilhões). Mas, a partir do momento que a
incerteza quanto à profundidade da crise mundial diminui, houve o retorno dos fluxos de
investimentos estrangeiros direcionados às aplicações de renda fixa e, em particular, à renda
variável, de modo que o BCB pode realizar, a partir de maio, compra no mercado spot, que
totalizaram US$ 27,5 bilhões, até o final do ano (BCB, op. cit.). Desse modo, o câmbio
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
voltou a cair, chegando a ser negociado a R$ 1,90 (fechou o ano com R$ 1, 74). Ao final de
2009, o nível de reservas internacionais estava em US$ 238,5 bilhões, 23,13% maior do que
no ano anterior.
A execução orçamentária, o superávit primário e o déficit público
O superávit primário11 foi de 2,06% do PIB em 2009. Em relação à Lei de Diretrizes
Orçamentárias que regiam a execução orçamentária para 2009, portanto, antes da crise,
houve uma redução de 1,74 ponto percentual. Esse resultado foi fruto da redução do nível de
atividade (o que afetou a arrecadação de impostos e contribuições sociais), da renúncia fiscal
e do aumento do consumo do governo, como mencionado anteriormente.
Por sua vez a dívida líquida do setor público atingiu 42,8% do PIB em 2009 (38,4%
em 2008) e a divida mobiliária passou de 40,9% do PIB (2008) para 45,3% (2009).
O Brasil frente à ameaça de uma crise maior
Ao final de setembro e início de outubro de 2011, quando este artigo estava sendo
redigido, o aprofundamento da crise fiscal de países da zona do euro (especialmente a
Grécia) e os rebaixamentos feitos por agências avaliadoras a bancos norte-americanos
(depois de ter rebaixado do rating a dívida estadunidense) e à Itália e à Espanha têm
aprofundado a convicção de que uma crise maior está sendo gestada. Ao mesmo tempo, a
volatilidade do mercado de capitais tem se acentuado, ampliando os movimentos
especulativos.
No Brasil, tal como assistimos nos últimos dias de setembro de 2011, os movimentos
especulativos foram dirigidos especialmente para o mercado do câmbio, desvalorizando o
real rapidamente e forçando as autoridades monetárias a ofertar US$ 5,5 bilhões em swap
cambial, o que resultou na venda de US$ 2,75 bilhões de dólares em 23 de setembro12. Em 3
de outubro, o governo precisou realizar outro leilão, ofertando US$ 4,5 bilhões e vendendo
US$ 1,65 bilhão. Nota-se que a taxa de câmbio foi estabilizada através da venda de
derivativos e não de moeda efetiva. Isso indica que a pressão de desvalorização não foi
decorrente, ainda, da fuga de capitais, mas sim na mudança nas apostas sobre o futuro
dessa taxa. Entretanto, de acordo com o relatório do banco JPMorgan, parte da pressão
contra o real deveu-se também à ação de fundos do Japão, que estão se desfazendo de suas
aplicações em moedas do Brasil13, da África do Sul e da Austrália (MINSTÉRIO DAS
RELAÇÕES EXTERIORES, 2011).
11
Superávit primário consolidado, considerando o governo central, as empresas estatais
federais e os governos regionais.
12
Para fazer frente ao movimento anterior, que levou à valorização significativa do real, o
governo passou a cobrar 1% de imposto sobre as Operações Financeiras (IOF) sobre a diferença entre a
posição vendida e comprada das empresas (essa alíquota pode ser aumentada até 25%). Segundo o
Ministro da Fazenda - Guido Mantega -, estavam sendo negociados diariamente no mercado futuro entre
US$ 23 e US$ 24 bilhões, o que reflete a intensidade do movimento especulativo. Ao mesmo tempo,
como várias empresas estavam antecipando liquidações de operações de crédito tomadas no exterior
(com prazo acima de 720 dias) para fugir do IOF, passou a incidir 6% desse imposto sobre essas
operações (ESTADO DE SÃO PAULO, 2011).
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Mas para além dos impactos de curto prazo, produto da volatilidade do mercado
atual, é preciso se analisar mais atentamente a situação da economia brasileira para se
verificar o quanto o país é capaz de fazer frente a uma crise mundial de maior envergadura
do que a de 2008 / 2009. Os efeitos de uma crise seriam sentidos imediatamente nas
exportações (queda do preço das commodities e retração da demanda), na conta rendas,
devido à antecipação de remessa de lucros e dividendos; na redução do fluxo de entrada nas
contas investimento direto e investimento em carteira; bem como no movimento de saída
dessas duas últimas contas.
Gráfico 1 – Participação das exportações no PIB - Brasil
Fonte: IBGE. Elaboração própria.
Na média dos últimos cinco anos, as exportações brasileiras têm representado 12,7%
do PIB. Essa relação tem caído, tal como se pode ver no Gráfico 1. Por sua vez a participação
dos produtos básicos nas exportações tem aumentado, passando de 29,23% em 2006, para
44,58% em 2010 (Tabela 1). A crescente presença desses produtos na pauta de exportação
brasileira evidencia o que é chamado de reprimarização, mesmo que em parte esse aumento
se deva aos preços alcançados pelas commodities. Por outro lado, como esses preços são
mais voláteis dos que os dos outros componentes exportados, nos momentos iniciais de
crise, sua redução tem efeito negativo sobre a economia brasileira antes mesmo que a
demanda por esses produtos apresentem queda.
Em relação ao destino das exportações, em 2010, pode-se dizer que o Brasil é
fornecedor de produtos de baixo valor agregado para a Ásia e de alto valor para a América
Latina e Caribe. Dada as implicações dessa “especialização” de destino, qualquer proposta de
aprofundamento da integração na região da América Latina precisa levar em conta essa
13
De acordo com esse banco, em setembro, esses fundos tinham aplicados no Brasil US$ 44
bilhões; segundo a agência Bloomberg News, investidores japoneses têm US$102 bilhões em ativos
brasileiros.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
realidade. Os produtos básicos são 45% exportados para os países asiáticos14, 23,7% para a
União Européia, 9,5% para a América Latina e Caribe, 6,7% para os Estados Unidos e 15,1%
para os demais países. Quanto aos produtos semimanufaturados, 35,3% destinam-se à Ásia,
21,7% à União Européia, 11,3% aos Estados Unidos, 6,3% à América Latina e Caribe e
25,4% para os demais países. Por último, 47,3% dos produtos manufaturados foram
exportados para a América Latina e o Caribe (principalmente para a Argentina), 19,4% para
a União Européia, 12,7% para os Estados Unidos, 7,2% para a Ásia e 13,4% para os demais
países.
Tabela 1 - Participação relativa dos componentes da Exportação FOB - Brasil
2006
2007
2008
2009
2010
Total
100,00
100,00
100,00
100,00
100,00
Produtos básicos
29,23
32,12
36,89
40,50
44,58
Produtos industrializados
68,60
65,82
60,50
57,42
53,37
semimanufaturados
14,17
13,57
13,68
13,40
13,97
manufaturados
54,44
52,25
46,82
44,02
37,42
Operações especiais
2,16
2,06
2,61
2,08
2,05
Fonte: MDIC/Sedex. Elaboração própria.
A crescente participação dos investimentos diretos e em carteira na composição do
passivo externo brasileiro tem se expressado em aumento das remessas relativas a lucros e
dividendos, de forma que a conta de rendas tem apresentado crescimento nos últimos anos.
Na hipótese de uma crise, essas rendas podem ser antecipadas, pressionando a moeda do
país. Mas mais importante do que isso, é a evolução recente da conta investimentos direto
no país e do passivo da conta investimentos em carteira. A primeira aumentou de US$ 18,82
bilhões, em 2006, para US$ 48,44 bilhões em 2010 (segundo o Banco Central, o estoque
total de investimento direto em dezembro de 2010 era estimado em US$ 472,60 bilhões
(BCB, 2010)); a segunda passou de US$ 9,08 bilhões, para US$ 67,80 bilhões. A piora das
condições da economia internacional pode rapidamente, mudar a direção desses recursos,
pressionando a moeda brasileira a se desvalorizar, apesar do nível das reservas
internacionais serem bastante elevadas (US$ 349,0 bilhões, em 06 de outubro de 2011). O
Gráfico 2 apresenta o total dos investimentos diretos no país, o passivo dos investimentos
em carteira e o passivo dos derivativos.
14
Das exportações de produtos básicos para a Ásia, 63,5% destinam-se à China.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Gráfico 2 – Investimentos diretos no país, investimentos em carteira (passivo) e
derivativos (passivo) – Brasil – US$ milhões
Fonte: BCB, 2007, 2009 e 2010.
O grau de exposição da economia brasileira ao movimento do capital internacional
pode ser dimensionado pelo volume de negócios (entrada mais saída) de capitais
especulativos parasitários (investimentos em carteira mais derivativos): US$ 534,6 bilhões
em 2008 (nível máximo atingido), US$ 343,2 bilhões em 2009 e US$ 295,1 bilhões em 2010
(mais de um bilhão de dólares por dia útil). Em 2011, entre janeiro e agosto, esse volume de
negócios atingiu US$ 172,9 bilhões, gerando uma remessa de rendas para o exterior de US$
13,6 bilhões (BCB, 2011b). A economia brasileira conta com um estoque impressionante de
capitais estrangeiros. Segundo os dados do Banco Central, o passivo na Posição de
Internacional de Investimentos que era de US$ 343,4 bilhões em dezembro de 2002, saltou
para mais de US$ 1,4 trilhão em junho de 2011, um crescimento de mais de 300% nos
últimos dez anos. Deste total, US$ 534,0 bilhões são investimentos estrangeiros diretos, US$
682,0 bilhões são investimentos em carteira e derivativos e US$ 187,0 em outros
investimentos. Na última década, o crescimento dos capitais especulativos foi de quase
400%.
(BCB, 2011c). Confrontando esses números com o montante das reservas
acumuladas pelo Brasil, a fragilidade da economia brasileira torna-se evidente.
Além disso, as grandes empresas brasileiras de capital aberto estão relativamente
expostas à variação do dólar, pois recorrentemente tomam recursos emprestados nessa
moeda (entre outros motivos, para se beneficiarem da diferença entre a taxa de juros
externa e interna). Segundo estimativas do mercado, uma desvalorização do real de 17%
resultaria em um aumento da dívida bruta das quinze maiores empresas tomadoras em R$
30 bilhões. As empresas que enfrentariam maior dificuldade seriam a Vale, Braskem, Fibria,
Marfrig, Suzano, Usiminas e TAM (VALOR ECONÕMICO, 2011).
Por último, é importante destacar que o Brasil, ao contrário do que acontece em
outros países, tem um segmento bancário estatal significativo, que se manteve apesar da
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
onda neoliberal privatizante que assolou o país principalmente nos anos 1990. Esse
segmento, formado pelo BNDES, pela CEF e pelo BB, tem capacidade de ampliar sua
participação no crédito do país em momentos de crise, tal como se evidenciou em 2008 /
2009. A eficácia desse envolvimento em uma crise de mais longa duração dependerá, no
entanto, de quanto se retrai o crédito (livre ou direcionado) dos demais bancos nacionais e
estrangeiros.
Considerações Finais
Em 2008 / 2009, as medidas anti-crise tomadas pelo governo conseguiram impedir
que a economia brasileira sofresse uma grave queda na produção, que houvesse aumento no
desemprego e que o impacto fosse maior nas contas externas. Elas foram suficientes, no
entanto, apenas para evitar a queda do consumo, que ocorreria sem aquelas medidas. Mas é
preciso se destacar que o desempenho observado na economia brasileira em 2009 também
se deveu à condição particular da China e Índia, entre outros países, que mantiveram
elevadas taxas de crescimento. Além disso, as medidas adotadas pelos governos dos Estados
Unidos e Europa, para salvarem os grandes bancos, geraram um excesso de capital
monetário, que se dirigiu ao Brasil buscando suas elevadas taxas de juros, ao contrário do
que ocorreu nos países centrais, onde as taxas se tornaram negativas.
Cabe perguntar, no caso de novo agravamento da crise mundial, quais seriam as
medidas disponíveis de política econômica e quais seriam seus impactos sobre a economia
brasileira. Nos últimos anos, mesmo com a eleição de Dilma Roussef para presidente da
república, tanto as políticas monetárias, quanto as fiscais e sociais não sofreram mudanças
importantes, o mesmo ocorrendo com as equipes de governo no Ministério da Fazenda e no
Banco Central. Isso sem contar que os pilares da política macroeconômica continuam sendo
o tripé constituído pela taxa de câmbio flutuante (com livre mobilidade dos capitais
internacionais), metas de inflação e metas de superávit primário. Assim, o que se pode
esperar do governo seriam medidas anti-crise semelhantes às tomadas em 2008/2009: 1)
apoio e proteção ao sistema bancário para estimular e evitar uma queda do crédito pessoal e
empresarial; 2) utilização dos bancos públicos para a expansão do crédito ao consumo; 3)
aumento da disponibilidade do BNDES; 4) isenção ou redução de impostos para estimular o
consumo interno; 5) medidas de estímulo às exportações dos produtos cujos mercados não
tenham sofrido graves impactos da crise.
O Banco Central conta com recursos na forma de depósitos compulsórios, sobre
depósitos à vista, depósitos de poupança e depósitos a prazo, que passou de R$ 193,6
bilhões, em dezembro de 2009, para R$ 420,8 bilhões em agosto de 2011 (BCB, 2011a).
Como em 2008/2009, uma parte expressiva desses depósitos poderia ser liberada para
expandir o crédito e o consumo. Entretanto, essas operações enfrentam os seguintes
problemas: 1) a maior parte desses depósitos, mais de 80%, já é remunerada pela SELIC ou
pela taxa das cadernetas de poupança; 2) só haveria interesse dos bancos expandirem os
empréstimos se obtivessem taxas de juros superiores às que já recebem nas aplicações em
títulos; 3) sobre os empréstimos já realizados, os bancos cobravam taxas de juros
exorbitantes (média de 30,9% ao ano para pessoas jurídicas e 46,2% para pessoas físicas
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
sobre o crédito livre) em agosto de 2011. Para pessoas físicas, a taxa média de juros sobre o
cheque especial era de 187,6%, de 49,6% para o crédito pessoal (inclusive o crédito
consignado), 29,4% para aquisição de veículos e 55,5% para outros tipos de empréstimo.
(BCB, 2011a); 4) os tomadores de empréstimos, pessoas físicas e jurídicas, precisam estar
dispostos a se endividarem às taxas cobradas pelos bancos do Brasil, em um momento de
acirramento da crise. Além disso, é necessário considerar que parte das famílias
comprometeu suas rendas futuras ao elevarem seu nível de endividamento em 2009, seja na
compra de veículos ou na compra de imóveis15.
No que se refere às relações internacionais, não é de se esperar iniciativas
substantivas, que alterem o grau de exposição ao movimento do capital internacional. Já
foram adotadas algumas medidas que inibem o ingresso dos capitais especulativos como a
cobrança do IOF, o que não impediu a continuidade do ingresso e saída dos capitais
especulativos parasitários. Para enfrentar os ataques especulativos que devem fragilizar a
economia, o governo poderia ou deveria adotar as medidas que já vem sendo defendidas de
controle dos movimentos de capitais e não só a taxação parcial desse fluxo. Ou seja, a livre
mobilidade no movimento de capitais, além da desnacionalização da economia, transfere ao
exterior o comando e as decisões sobre atividades e setores importantes da economia e
reduz a capacidade de controle e intervenção estatal, e isso pode tornar-se um limitante à
capacidade de resposta aos impactos da crise.
De qualquer modo, não é de se esperar uma fuga maciça dos capitais especulativos
parasitários com o acirramento da crise. Principalmente porque o Brasil tem oferecido uma
altíssima rentabilidade à esses capitais e o governo têm assegurado tanto essa remuneração
através da taxa básica quanto uma relativa segurança executando a política fiscal e
monetária de acordo com o tripé da política macroeconômica e com os interesses das
finanças nacionais e internacionais.
O maior risco com que a economia brasileira se defronta, em termos de seu
desenvolvimento capitalista, é decorrente de sua própria posição subordinada e dependente
do sistema capitalista mundial. Nela, o Brasil coloca-se como um dos maiores fornecedores
de insumos produzidos ou extraídos dos enormes recursos naturais que dispõe, tem sido um
importante receptor de capitais estrangeiros na esfera produtiva e tornou-se também um
grande receptor de capitais especulativos. Nessa articulação, o Brasil tornou-se igualmente
um grande produtor de juros, lucros e ganhos de capital tanto para os investimentos
estrangeiros diretos quanto para aos capitais especulativos. Em um momento de crise, para
manter o envio de excedentes para o exterior e, assim, amenizar os efeitos da crise sobre a
rentabilidade do capital, colocar-se-á, tal como na crise dos anos 1980, o aumento da
exploração da força de trabalho. Se isso ocorrerá ou não depende da capacidade de
resistência que os trabalhadores brasileiros possam oferecer. A experiência da zona do euro
indica que o capital não vê nenhum óbice às formas mais elementares de aumento da taxa
de exploração, seja reduzindo salários, seja reduzindo direitos sociais.
15
Das 576 mil unidades habitacionais financiadas em 2009, 276 foram feitas no âmbito do
Programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
Referências
AMADEO,
Kimberly.
What
is
Quantitative
Easing?
2011.
Disponível
em:
http://useconomy.about.com/od/glossary/g/Quantitative-Easing.htm. Acesso em 8 de
outubro de 2011
ANFAVEA – Associação Nacional dos Veículos Automotores. Carta da Anfavea, n° 273,
fevereiro de 2009. São Paulo, Anfavea.
BCB
Banco
Central
do
Brasil.
Relatório
2010.
Disponível
http://www.bcb.gov.br/?BOLETIM2010 . Acesso em 7 de outubro de 2009.
em
BCB
–
Banco
Central
do
Brasil.
Relatório
2009.
Disponível
http://www.bcb.gov.br/?BOLETIM2009 . Acesso em 6 de outubro de 2009.
em
BCB
–
Banco
Central
do
Brasil.
Relatório
2007.
Disponível
em
http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual2007/rel2007cap5p.pdf. Acesso em 9 de outubro
de 2011.
BCB – Banco Central do Brasil. Nota para a imprensa, política monetária e operações de
crédito do SFN, setembro 2011a. Acessível em http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM. Acesso
em 8 de outubro de 2011
BCB – Banco Central do Brasil. Nota para a imprensa, setor externo, setembro 2011b.
http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPEXT. Acesso em 8 de outubro de 2011.
BCB – Banco Central do Brasil. Posição Internacional de Investimentos,
http://www.bcb.gov.br/?SERIEPIIH. Acesso em 8 de outubro de 2011.
2011c.
BIS – BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS. . Quarterly Review, September 2011.
Statistical Annex. Acessível em http://www.bis.org/ statistics/secstats.htm. Acesso em 8 de
outubro de 2011.
CARCANHOLO, Reinaldo e NAKATANI, Paulo. O Capital especulativo parasitário: uma
precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, Porto
Alegre, v. 20, n.1, p. 284-304, 1999.
CHESNAIS, F. "O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos
econômicos e políticos", In Chesnais F (Org.). A finança mundializada, raízes sociais e
políticas, configuração, conseqüências. Boitempo, São Paulo, 2005.
CHESNAIS, F. La dette publique, question névralgique de la lutte de classes em Europe.
Carré
Rouge,
44,
novembro
2010,
p.
37-48.
http://www.carrerouge.org/spip.php?article345. Acesso 07 de outubro de 2010.
GOLDSTEIN, Fred. Capitalism at a dead end. The Era of Job Destruction. A marxist view. XVI
Encontro Nacional de Política Social. Vitória, 2011. (mimeo)
MARX. K. O Capital. Livro III, volume IV. São Paulo, Civilização Brasileira, 1980.
MATTOSO, J. E. L. “O novo e inseguro mundo do trabalho nos países avançados”. In:
Oliveira, C. A. B. (org). O mundo do trabalho - crise e mudança no final do século. São
Paulo, Editora Página Aberta, 1994.
MINISTÉRIO
DAS
RELAÇOES
EXTERIORES.
Disponível
em
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/10/5/dolar-cai-com-leilaodo-bc-e-ajuste-no-mercado-futuro . Acesso em 5 de outubro de 2011.
O ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em http://economia.estadao.com.br. Acesso em 7 de
outubro de 2011.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani
PLIHON, D. As Grandes empresas fragilizadas pela finança. In Chesnais F (Org.). A finança
mundializada, raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. Boitempo, São Paulo,
2005.
ROUSSET, Dilma. Discurso na ONU. Acessível em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/
+discurso+de+Dilma+na+Assembleia+da+ONU.html. Acesso em 8 de outubro de 2011.
TOUSSAINT,
Eric.
Grécia,
símbolo
da
dívida
http://vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=146488&id_secao=2.
outubro de 2011.
ilegítima.
Acesso em
2011.
07 de
VALOR ECONÕMICO. Impacto do dólar chega aos balanços, 28 de setembro de 2011.
Disponível
em
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/9/26/impacto-do-dolarchega-aos-balancos. Acesso em 9 de outubro de 2011.
WEISS, Martin. 12 Giants U.S. Banks Vulnerable to Disaster. Acessível
http://www.moneyandmarkets.com/12-giant-u-s-banks-vulnerable-to-disaster-47357.
Acesso em 8 de outubro de 2011
em:
Download

A crise mundial e a economia brasileira