O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani A crise mundial e a economia brasileira1 Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani2 Resumo Este artigo tem como principal objetivo discutir se a economia brasileira tem instrumentos para fazer frente a uma crise de envergadura mundial. Na primeira parte, são retomados os aspectos mais relevantes do funcionamento do capitalismo das últimas décadas, com ênfase no papel desempenhado pelo capital fictício, e são lembrados os desdobramentos da crise no momento atual. Na segunda e terceira partes, dedicadas ao Brasil, são descritas as políticas anticíclicas realizadas pelo governo brasileiro em 2009 e discutido até que ponto o Brasil pode fazer frente, isoladamente, a uma nova retração da demanda e da liquidez mundial. Entre outros aspectos, é dada especial atenção à exposição da economia ao movimento dos capitais, com seus desdobramentos, tanto no câmbio, como no balanço de pagamentos e nas finanças das empresas. Palavras chave: crise mundial; capital fictício; Brasil; economia brasileira. Apresentação Diferentemente3 do que ocorreu ao final de 2008 e início de 2009, o governo Dilma considera que o agravamento da situação da economia mundial pode ter consequências negativas para o Brasil e que é preciso construir um esforço conjunto, principalmente dos países tidos como mais desenvolvidos, para impedir que a crise se alastre e golpeie as diferentes nações4. Nesse momento, as estimativas indicam que a economia norteamericana está em franco arrefecimento, bancos importantes desse país tiveram suas classificações de risco rebaixadas, como o Bank of America que passou A2 para Baa15 segundo a Moody's. A situação da zona do euro se agrava com a não resolução do endividamento do estado grego e com as dificuldades enfrentadas pelos diferentes países, especialmente por Portugal, Espanha e Itália. A crise, embora não tenha data para acontecer, é uma certeza para todos aqueles que acompanham o desenrolar da situação econômica mundial. 1 Texto preparado para a reunião da Red de Estudios de la Economía Mundial (REDEM), em 13 e 14 de outubro, em Santiago do Chile. 2 Professora titular do Departamento de Economia e do Programa pós-graduado em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP). 3 Na época, no dizer do presidente Lula, o impacto da crise seria de apenas uma “marolinha”. 4 “Como outros países emergentes, o Brasil tem sido, até agora, menos afetado pela crise mundial. Mas sabemos que nossa capacidade de resistência não é ilimitada.” (ROUSSEF, 2011). 5 Para a Weiss rating, o quadro é muito pior para 12 dentre os maiores bancos americanos, todos classificados entre D- e D+, entre eles estão o JP Morgan Chase Bank, o Bank of America e o Wells Fargo, todos com ativos de mais de um trilhão de dólares. (WEISS, 2011). O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani Não se trata de uma nova crise. O que estamos assistindo é o desdobramento de uma crise há muito vivida pelo capitalismo, mas que havia ficado mais evidente em 2008 / 2009, porque dessa vez havia afetado mais profundamente a principal economia mundial, isto é, a norte-americana. O principal objetivo deste artigo é analisar se a economia brasileira apresenta condições de fazer frente à crise esperada por todos. Para isso, na primeira parte, são apresentados os traços mais marcantes do funcionamento do capitalismo contemporâneo, especialmente o crescimento e o papel determinante do capital fictício na determinação das relações econômicas e sociais. Ainda nessa primeira parte, é lembrado como as políticas assumidas por alguns governos, especialmente pelos Estados Unidos e pelos países da zona do euro, foram responsáveis pela manutenção e pelo aprofundamento das contradições presentes na crise de 2008 / 2009. Na segunda e terceira parte, são analisadas as políticas anticíclicas realizadas pelo governo Lula em 2009 e discutido até que ponto o Brasil está preparado para enfrentar uma nova retração da demanda e da liquidez mundial. Entre outros aspectos, é dada especial atenção à exposição da economia ao movimento dos capitais, com seus desdobramentos, tanto no câmbio, como no balanço de pagamentos e nas finanças das empresas. A crise no capitalismo contemporâneo A maioria da mídia, alguns economistas e as principais lideranças do mundo seguem considerando que a crise atual do capitalismo, completamente escancarada em 2008, é de natureza financeira, a qual teria contaminado o lado real da economia, e que as dívidas européias e dos Estados Unidos se resolvem com cortes do gasto público, principalmente do gasto social. Essa interpretação decorre da não compreensão da natureza do processo vivenciado pelo capitalismo nas últimas décadas, quando o capital portador de juros (também chamado de capital financeiro), mas mais particularmente em sua forma de capital fictício, passou a estar no centro das relações sociais e econômicas do mundo contemporâneo (CHESNAIS, 2005). A possibilidade do capital portador de juros assumir a liderança na determinação das relações econômicas, e em decorrências das relações sociais, esteve colocada desde que moeda tornou-se equivalente geral. É nesse momento que, de uma maneira invertida, a moeda passa a ser vista como o próprio valor e não mais como sua representação. E quando um grupo de capitalistas se dedicou a emprestar dinheiro para os demais, o dinheiro, agora como capital, assumiu nova propriedade, a de se valorizar, sem passar, como dizia Marx, pelas agruras da produção. O capital fictício, como resultante do desdobramento da forma capital portador de juros e como expressão de sua forma mais acabada, representa a forma mais fetichizada e acabada do capital (MARX, 1980). Dessa forma, a dominância do capital portador de juros, particularmente do capital fictício, não constitui uma distorção ou anomalia e sim o desenvolvimento lógico da busca de valorização desse capital, mesmo que essa valorização constitua uma valorização fictícia, sem contrapartida em produção de mais valia, e funcione de forma especulativa e parasitária (CARCANHOLO e NAKATANI, 1999). Essa valorização fictícia é, no entanto, bem real para aqueles que a desfrutam e, por isso, O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani anima sua crescente expansão. Se a dominância financeira não constitui a tônica em todos os momentos do capitalismo é porque se colocaram obstáculos a seu desenvolvimento, fruto de configurações históricas e econômicas bem específicas. Exemplo disso foi o período de trinta anos que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. A crise atual é, portanto, uma crise do capital e não uma crise provocada por uma anomalia qualquer, ou pela desregulamentação, ou pela ganância dos banqueiros e especuladores ou pela incompetência dos governos. Mais ou menos a partir do final dos anos 1970, quando se criaram as condições para o retorno da dominância do capital portador de juros e para o desenvolvimento hipertrofiado do capital fictício – houve, do ponto de vista do capital, uma fuga para frente. Desde o final dos anos 1960, nos Estados Unidos, e a metade dos anos 1970, na Europa, a forma específica de acumulação do capital engendrada no pós-guerra, chamada de fordista pela escola da Regulação, tinha esgotado sua capacidade de assegurar uma taxa de lucro crescente. Como resposta a essa situação, o capital se vale de várias estratégias6 para recompor a evolução de sua taxa de lucro: precarização do trabalho, redução dos salários, introdução acelerada de novas tecnologias, transferência de plantas para onde os salários sejam menores, entre outras. Apesar disso, somente em meados de 1980, e apenas as 500 maiores empresas mundiais, conseguiram retomar a expansão de sua taxa de lucro em relação ao período dos trinta anos do pós-guerra. Ademais, parte desse lucro tinha origem na esfera financeira (HUSSON, 2006). Em realidade, com o retorno do capital portador de juros no centro das determinações da reprodução do capital, a distinção entre capital industrial, comercial e a juros ficou restrita à teoria, pois, na prática, houve um crescente entrelaçamento entre eles: hoje em dia, as grandes empresas, sejam elas preferencialmente industriais ou comerciais, não só aplicam em diferentes ativos financeiros, como assumem funções antes restritas aos bancos, quando elas próprias não têm seu banco. Um exemplo disso no Brasil são os bancos ou braços financeiros das montadoras como a Volkswagen, a Fiat, a Mercedes Benz, Ford, Honda, etc, que oferecem crédito para a compra de seus produtos. O desenvolvimento de várias funções, aparentemente alheias ao objetivo primeiro das empresas7, deve-se à imposição da lógica do capital fictício: buscar a maior rentabilidade possível, em curto espaço de tempo8. É assim que parte do capital das empresas se dirige para atividades financeiras de todo o tipo, de forma que fica muito difícil saber, sem as informações detalhadas dos resultados apresentados em seus balanços, qual a origem dos lucros apresentados. Em geral, apenas quando uma aplicação é má sucedida, resultando em 6 Isso foi apoiado em uma correlação de forças favoráveis ao capital, propiciada por derrotas históricas aos trabalhadores, tal como aconteceu com os aeroviários nos Estados Unidos e com os mineiros, na Inglaterra. Mais tarde, essa correlação de forças se aprofundou com a queda do Muro de Berlim e com a dissolução da União Soviética. Para completar esse quadro, que colocou os trabalhadores pela primeira vez em verdadeira concorrência mundial, a China entrou na Organização Mundial do Comércio em 2001. 7 A rigor não é alheia, pois o objetivo de qualquer empresa, seja ela industrial, comercial ou bancária, é o lucro, não importando a forma com que ele é obtido. 8 Segundo Plihon (2005), a rentabilidade mínima de 15% do setor financeiro passou a ser a norma das empresas, adotada para todas as filiais e para todos os departamentos ou setores, o que compromete o investimento e o P & D. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani problemas para a empresa, é que essas operações vêm à luz. Esse foi o caso da indústria de papel e celulose Aracruz e da Sadia, no Brasil, em 2008, que apostaram na queda do dólar e quase foram à falência, sendo incorporadas pela Votorantim e Perdigão, respectivamente. Para que o capital portador de juros retomasse seu papel preponderante e para que se desenvolvesse a hipertrofia do capital fictício, foi necessário desmontar todas as instituições, políticas e instrumentos criados ao final da segunda guerra, que cerceavam ou restringiam sua atividade. E isso foi feito capitaneado pelos Estados Unidos e Inglaterra, mediante a desregulamentação monetária e financeira, a descompartimentalização dos mercados financeiros nacionais e a desintermediação bancária. Ao mesmo tempo, e como condição para a plena aplicação dessas medidas, a maioria das funções do Estado desenvolvidas no pós-guerra foram rechaçadas e o mercado foi alçado ao locus ideal, onde tanto os resultados econômicos como os sociais ótimos seriam garantidos. É assim que, em nome de uma liberdade abstrata, o capital obteve “licença” para fazer valer todas as formas possíveis de obtenção de lucro, não importando se isso correspondia a uma piora das condições de trabalho ou se a rentabilidade era fruto de meros papéis de aposta em um resultado futuro e, por isso, incerto. Nas principais economias do mundo, o desemprego, antes apenas uma lembrança de um período anterior longínquo, voltou a fazer parte do cotidiano dos trabalhadores, em parte provocado pela transferência de atividades para o Leste Europeu e para China. Ao mesmo tempo, as condições de trabalho se deterioraram (aumento da intensidade, introdução de trabalho noturno e de contratos por tempo determinado ou parcial, ausência de direitos trabalhistas ou sociais, deslocalização das empresas), os salários, com honrosas exceções, registraram perdas reais e os sindicatos viram cair o número de seus sindicalizados expressivamente (MATTOSO, 1994). Fica claro, portanto, que o capital buscou fazer frente à desaceleração de sua taxa de lucro aumentando tanto a extração da mais valia, como redirecionando parte de seu capital para ativos financeiros de todos os tipos, principalmente junto ao mercado secundário, quando se trata de ações, ou em derivativos, nos demais casos. Assim, o retorno do capital portador de juros e o desenvolvimento hipertrofiado do capital fictício - que foi muito mais intenso e complexo do que aqueles do final do século XIX até 1929 - foram acompanhados pela construção de uma nova relação entre os diferentes componentes do capital (portador de juros, industrial e comercial) e por uma nova correlação de forças entre o capital e o trabalho, desfavorável a este último. Expressiva parte do capital portador de juros que foi criado a partir dos anos 1980 é fictícia, referindo-se à negociação de ações e títulos públicos ou privados que, no caso das ações e dos títulos privados, não guardam mais nenhuma relação com sua origem, sendo negociadas várias vezes no mercado secundário. Quando a crise ficou evidente nos Estados Unidos em 2008, a verdadeira natureza do capital hoje dominante veio à tona: trata-se de um capital que garante altas taxas de rentabilidade e garantias, até que suas bases, assentadas em material podre, começam a desmantelar a intrincada relação de cobertura criada nessas últimas décadas, denunciando que se trata de uma crise de superprodução. Por exemplo, na esfera real, “A indústria de autos nos EUA tinha capacidade de produzir 18,3 milhões de carros em 2008. Em 2009, foram produzidos apenas 11 milhões. No mundo, O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani havia uma capacidade de produção de 90 milhões de automóveis, mas foram produzidos somente 66 milhões.” (GOLDSTEIN, 2011, p. 08). Mas a crise de superprodução não se manifesta somente em termos de ampliação da capacidade ociosa industrial. Além de criar milhões de novos desempregados, o capital excedente na forma de capital monetário ou fictício acumula-se na esfera financeira tendo como contrapartida o crescimento do valor acionário, da dívida pública e dos derivativos. Segundo Chesnais (2010, p. 45), a dívida dos bancos e governos da Grécia era de 236 bilhões de dólares, de Portugal, 286 bilhões, da Irlanda, 867 bilhões, da Espanha, 1,1 trilhão e da Itália, 1,4 trilhão, todas convertidas em dólares. Para o Bank for International Settlements (BIS), os dados disponíveis dos bancos e instituições financeiras de 43 países indicavam ativos totais de 35,3 trilhões de dólares, em março de 2011, dos quais, 31,4 trilhões eram externos (BIS, 2011, p. A7). As dívidas em títulos emitidas pelos governos, instituições financeiras e corporações desses países, em junho de 2011, eram de 29,6 trilhões de dólares, dos quais, 371,4 bilhões de dólares pertenciam à Grécia, 191,8 bilhões à Portugal, 1.245 bilhões à Irlanda, 1.625,2 bilhões à Espanha e 1.249,9 bilhões à Itália (Op. Cit., p. A113). No mesmo relatório, o BIS (p. A131) registra que o montante nacional de derivativos nos contratos de balcão (OTC derivatives), era de 601,05 trilhões de dólares em dezembro de 2010. Esse é, em grande parte, o resultado das políticas efetuadas pelo Banco da Inglaterra, Banco Central Europeu, Banco do Japão e pelo Federal Reserve (Fed), entre outros bancos centrais, para salvar os grandes bancos. “Mesmo antes da recessão, o Fed mantinha entre US$ 700 – 800 bilhões em Notas do Tesouro em seu balanço patrimonial, variando a quantidade para ajustar a oferta de moeda. No final de novembro de 2008, o Fed começou a comprar US$ 600 bilhões em MBS. Em março de 2009, detinha US$ 1,75 trilhão de dólares de dívida bancária, MBS e Notas do Tesouro, de forma que esse passivo do FED atingiu um pico de US$ 2,1 trilhões em junho de 2010”. (AMADEO, 2011). Medidas semelhantes foram adotadas pela maior parte dos bancos centrais, expandindo a base monetária e obrigando os bancos a elevarem seus empréstimos a governos 9 e suas aplicações sob a forma de capital fictício. O Brasil na crise de 2008 / 2009 Os efeitos diretos da crise de 2008 / 2009 na economia brasileira ocorreram basicamente através de três canais: a) forte queda dos preços das commodities; b) retração da demanda internacional; e c) redução expressiva do fluxo de capitais estrangeiros. Internamente, rapidamente o crédito se contraiu, o ritmo da produção se reduziu, o desemprego aumentou e a demanda interna caiu. Para fazer frente à crise, o governo brasileiro adotou uma série de medidas anticíclicas, tais como: a) estímulo ao crédito 9 “Enquanto a crise do subprime eclodia nos Estados Unidos, os empréstimos aumentavam ainda mais fortemente (33%) entre junho de 2007 e o Verão de 2008 (de 120.000 para 160.000 milhões de dólares), para em seguida, serem mantidos num nível muito alto (cerca de 120.000 milhões de dólares). Isto significa que os bancos privados na Europa Ocidental usaram o dinheiro que lhes emprestavam, com abundância e a baixo custo, o Banco Central Europeu e a Reserva Federal dos Estados Unidos para aumentar os seus empréstimos a países como a Grécia.” (TOUSSAINT, 2011). O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani bancário; b) reestruturação bancária a fim de se precaver contra a insolvência de alguns bancos mais frágeis ou menores; c) estímulo à demanda através da renúncia fiscal e mudança no imposto de renda para pessoas físicas; e d) apoio aos desempregados, mediante ampliação do seguro desemprego. Apesar dessas medidas, em 2009, o PIB se retraiu em 0,2%, com uma queda da produção industrial de 5,5% e do setor agropecuário de 5,2%; as exportações se reduziram em 10,3%. E esse resultado só não foi pior porque a economia brasileira apresentou claros sinais que iria se recuperar já no segundo trimestre do ano (a recuperação, ocorreu, de fato, a partir do segundo semestre – BCB, 2009), quando o preço das commodities começou novamente seu movimento ascendente e quando as estimativas da recessão nos Estados Unidos indicavam que ela não seria tão acentuada como era esperada no início, muito embora a crise do subprimes e as falências e dificuldades de importantes bancos e instituições financeiras norte-americanos continuassem a acontecer. Nos últimos meses de 2008 e no início de 2009, as medidas realizadas pelo governo Lula não foram suficientes para mudar o quadro negativo provocado pelos impactos da crise sobre a economia brasileira, apesar de terem conseguido amenizar seus efeitos. Retomar essas medidas e seus efeitos é um exercício necessário para se poder discutir se o país tem condições de, isoladamente, enfrentar a uma crise maior, provocada por uma redução acentuada da demanda e da liquidez internacionais. Uma das conclusões que se pode chegar, a partir do comportamento da economia brasileira durante o final de 2008 e o ano de 2009, é que o país está extremamente vulnerável aos humores do capital (seja na forma de investimento estrangeiro direto (IDE), seja na forma de capital especulativo e parasitário de curto prazo) e ao comportamento das economias centrais, particularmente dos Estados Unidos. Assim, embora as medidas realizadas pelo governo Lula tenham sido importantes, a retomada do ritmo de atividade somente ocorreu quando as expectativas com relação ao desdobramento da crise nos Estados Unidos melhoraram, de forma que uma crise de envergadura maior passou a ser descartada no cenário imediato10. Crédito e “blindagem” das instituições financeiras em dificuldade Para manter o mercado líquido, isto é, para fazer frente às dificuldades de captação de recursos no exterior e para manter o crédito interno, o governo Lula se valeu de várias medidas. Essas tiveram início em setembro de 2008 e prosseguiram durante o ano de 2009. Entre elas se destacam: leilões de moeda, com o compromisso ou não de sua recompra futura; oferta de empréstimos em moeda estrangeira, garantida por títulos soberanos ou por cambiais de exportação destinada a financiar exportações; diminuição do compulsório dos bancos; linha de crédito para os exportadores, a partir da utilização de reservas internacionais do Banco Central do Brasil (BCB); ampliação da linha de financiamento para o as exportações pré-embarque do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES); autorização para que o BCB comprasse as carteiras dos bancos que apresentassem dificuldades; autorização para que os bancos públicos, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o 10 Nesse momento, a profundidade da crise na Europa ainda não tinha se revelado. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani Banco do Brasil (BB), adquirissem participações financeiras no país (seguradoras, instituições previdenciárias, empresas de capitalização, etc,) sem passar por licitação; antecipação da concessão do crédito agrícola previsto; aumento da exigibilidade de aplicação no setor agrícola de recursos captados pelos depósitos à vista; criação de linha de crédito para os produtores rurais através do BB; permissão para que os bancos em dificuldade vendessem, além de sua carteira de crédito e títulos dos seus fundos de investimento, seus títulos e valores mobiliários de renda fixa, adiantamentos e outros créditos de pessoas físicas e jurídicas não-financeiras e os depósitos interfinanceiros com garantia de ativos; criação de linha de crédito de capital de giro junto a CEF para as empresas da construção civil e para as empresas em geral pelo BNDES e BB; mudança na forma de recolhimento do compulsório de 100% em títulos públicos para 30% em títulos e 70% em espécie; autorização para que o BCB disponibilizasse parte das reservas internacionais, por meio dos bancos, para as empresas que precisassem rolar financiamentos feitos no exterior; aumento da disponibilidade do BNDES. Ao mesmo tempo, o governo reduziu a taxa de juros SELIC (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) de 13,75% (dezembro de 2008) para 8,75% (de julho a dezembro de 2009). Apesar dos esforços do governo em incentivar o crédito não estatal, esse se retraiu nos meses de crise, o que resultou em aumento da participação do setor estatal (BNDES, BB e CEF) no total da carteira do sistema financeiro. Entre 2008 e 2009, essa participação aumentou de 36,3% para 41,5%, respectivamente. Entre os créditos direcionados, o destaque ficou por conta do BNDES, que aumentou o crédito concedido em 35,3% em 2009, o que significou 61,6% do total do crédito direcionado realizado no ano, representando 9% do PIB (BCB, 2009, p 55). Nesse último ano, os desembolsos realizados pelo BNDES aumentaram em 50%. Esses dados mostram como é importante a existência de um setor bancário estatal no Brasil, especialmente do BNDES. Apesar das privatizações e das mudanças realizadas pelo neoliberalismo no país, a permanência dessas instituições constituem um importante instrumento de intervenção estatal no mercado de crédito, seja para as empresas como para as famílias. Renúncia fiscal, consumo, produção e balanço de pagamentos Na tentativa de aumentar o consumo interno e diminuir, portanto, o impacto da retração das exportações sobre o nível de atividade, o governo Lula adotou um conjunto de medidas que envolviam renúncia fiscal. Esse foi o caso da isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) na compra de carros populares e eletrodomésticos; na redução do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na compra de motocicletas por pessoa física; redução para zero do IOF de aplicação no mercado de capitais e operação de empréstimos e financiamentos externos; redução do imposto de renda sobre aplicações financeiras para a pessoa física; e criação de mais duas faixas de renda para o cálculo do imposto de renda, tornando esse imposto um pouco mais progressivo. Apesar dessas medidas, o consumo das famílias expandiu-se apenas 4,1%, em 2009, frente a um crescimento de 7% e de 6,1% em 2008 e 2007, respectivamente. Assim mesmo, foi esse desempenho que, juntamente com o consumo do governo (3,7% de O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani crescimento anual), sustentou o resultado de -0,2% do PIB, pois a formação bruta do capital caiu 9,9% e as exportações 10,3%. A queda das exportações afetou particularmente o setor manufatureiro, com destaque para a retração da quantidade de veículos automotores, reboques e carrocerias de 40,9. Mas as medidas realizadas pelo governo para expandir o mercado interno permitiu em grande parte compensar essa retração, de modo que a indústria automobilística produziu apenas 1% menos do que em 2008. No ano, na indústria em geral, como seria de esperar, os setores que mais sofreram foram a indústria de transformação (-7%) e a construção civil (-6,3%). A queda das exportações foi acompanhada de uma redução acentuada das importações (11,4%), o que permitiu à balança comercial apresentar um superávit 2,07% superior ao de 2008. Em função desse resultado e da diminuição da conta rendas, a conta de transações correntes registrou um déficit de US$ 24,3 bilhões (1,55% do PIB), inferior ao do ano anterior (1,72% do PIB) em 13,7%. Além disso, a retomada do fluxo de entrada de capitais permitiu que o país obtivesse seu nono resultado positivo na conta capital e financeira, embora o resultado entre transações correntes e o fluxo líquido de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED), de US$ 1,6 bilhão (0,1% do PIB), fosse bastante inferior aos US$ 16,9 bilhões (1,03% do PIB, de 2008). A Bolsa, o mercado de câmbio e nível de reservas No início da crise, em outubro de 2008, o valor das ações negociadas na principal Bolsa do país – Bovespa – registrou forte queda, de 60% no acumulado entre maio e outubro daquele ano. Desde 1994 não havia tido uma queda tão expressiva, em um curto espaço de tempo. No total do ano, a cotação das ações fechou com uma redução de 41,7%. Iniciado 2009, houve valorização de 4,6% em janeiro, seguida de perda de 2,84%, em fevereiro, recuperando-se em abril (15,5%) e em maio (5,1%). Nos meses seguintes, com exceção do ocorrido em 14 de julho, a trajetória foi ascendente, fechando o ano com valorização expressiva, de 82,7%. Em relação ao câmbio, primeiramente houve uma rápida desvalorização do real de agosto em diante, (valorização do dólar em 43,75%). Para isso contribuiu o aumento da demanda por dólares das empresas que queriam zerar suas posições em derivativos cambiais (responsáveis pelas perdas das empresas que apostaram na manutenção da apreciação do real, como as empresas Sadia, Votorantin e Aracruz; e o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, a Previ); a retração do crédito externo; a venda de ativos no país, principalmente da Bolsa, de investidores estrangeiros para cobrir prejuízos no exterior e também a busca de ativos tidos como mais seguros, tal como os títulos do Tesouro norteamericano, entre outros fatores. Nos dois primeiros meses de 2009, o prosseguimento dessas restrições levou ao BCB a vender divisas no mercado à vista (US$ 3,4 bilhões). Mas, a partir do momento que a incerteza quanto à profundidade da crise mundial diminui, houve o retorno dos fluxos de investimentos estrangeiros direcionados às aplicações de renda fixa e, em particular, à renda variável, de modo que o BCB pode realizar, a partir de maio, compra no mercado spot, que totalizaram US$ 27,5 bilhões, até o final do ano (BCB, op. cit.). Desse modo, o câmbio O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani voltou a cair, chegando a ser negociado a R$ 1,90 (fechou o ano com R$ 1, 74). Ao final de 2009, o nível de reservas internacionais estava em US$ 238,5 bilhões, 23,13% maior do que no ano anterior. A execução orçamentária, o superávit primário e o déficit público O superávit primário11 foi de 2,06% do PIB em 2009. Em relação à Lei de Diretrizes Orçamentárias que regiam a execução orçamentária para 2009, portanto, antes da crise, houve uma redução de 1,74 ponto percentual. Esse resultado foi fruto da redução do nível de atividade (o que afetou a arrecadação de impostos e contribuições sociais), da renúncia fiscal e do aumento do consumo do governo, como mencionado anteriormente. Por sua vez a dívida líquida do setor público atingiu 42,8% do PIB em 2009 (38,4% em 2008) e a divida mobiliária passou de 40,9% do PIB (2008) para 45,3% (2009). O Brasil frente à ameaça de uma crise maior Ao final de setembro e início de outubro de 2011, quando este artigo estava sendo redigido, o aprofundamento da crise fiscal de países da zona do euro (especialmente a Grécia) e os rebaixamentos feitos por agências avaliadoras a bancos norte-americanos (depois de ter rebaixado do rating a dívida estadunidense) e à Itália e à Espanha têm aprofundado a convicção de que uma crise maior está sendo gestada. Ao mesmo tempo, a volatilidade do mercado de capitais tem se acentuado, ampliando os movimentos especulativos. No Brasil, tal como assistimos nos últimos dias de setembro de 2011, os movimentos especulativos foram dirigidos especialmente para o mercado do câmbio, desvalorizando o real rapidamente e forçando as autoridades monetárias a ofertar US$ 5,5 bilhões em swap cambial, o que resultou na venda de US$ 2,75 bilhões de dólares em 23 de setembro12. Em 3 de outubro, o governo precisou realizar outro leilão, ofertando US$ 4,5 bilhões e vendendo US$ 1,65 bilhão. Nota-se que a taxa de câmbio foi estabilizada através da venda de derivativos e não de moeda efetiva. Isso indica que a pressão de desvalorização não foi decorrente, ainda, da fuga de capitais, mas sim na mudança nas apostas sobre o futuro dessa taxa. Entretanto, de acordo com o relatório do banco JPMorgan, parte da pressão contra o real deveu-se também à ação de fundos do Japão, que estão se desfazendo de suas aplicações em moedas do Brasil13, da África do Sul e da Austrália (MINSTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011). 11 Superávit primário consolidado, considerando o governo central, as empresas estatais federais e os governos regionais. 12 Para fazer frente ao movimento anterior, que levou à valorização significativa do real, o governo passou a cobrar 1% de imposto sobre as Operações Financeiras (IOF) sobre a diferença entre a posição vendida e comprada das empresas (essa alíquota pode ser aumentada até 25%). Segundo o Ministro da Fazenda - Guido Mantega -, estavam sendo negociados diariamente no mercado futuro entre US$ 23 e US$ 24 bilhões, o que reflete a intensidade do movimento especulativo. Ao mesmo tempo, como várias empresas estavam antecipando liquidações de operações de crédito tomadas no exterior (com prazo acima de 720 dias) para fugir do IOF, passou a incidir 6% desse imposto sobre essas operações (ESTADO DE SÃO PAULO, 2011). O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani Mas para além dos impactos de curto prazo, produto da volatilidade do mercado atual, é preciso se analisar mais atentamente a situação da economia brasileira para se verificar o quanto o país é capaz de fazer frente a uma crise mundial de maior envergadura do que a de 2008 / 2009. Os efeitos de uma crise seriam sentidos imediatamente nas exportações (queda do preço das commodities e retração da demanda), na conta rendas, devido à antecipação de remessa de lucros e dividendos; na redução do fluxo de entrada nas contas investimento direto e investimento em carteira; bem como no movimento de saída dessas duas últimas contas. Gráfico 1 – Participação das exportações no PIB - Brasil Fonte: IBGE. Elaboração própria. Na média dos últimos cinco anos, as exportações brasileiras têm representado 12,7% do PIB. Essa relação tem caído, tal como se pode ver no Gráfico 1. Por sua vez a participação dos produtos básicos nas exportações tem aumentado, passando de 29,23% em 2006, para 44,58% em 2010 (Tabela 1). A crescente presença desses produtos na pauta de exportação brasileira evidencia o que é chamado de reprimarização, mesmo que em parte esse aumento se deva aos preços alcançados pelas commodities. Por outro lado, como esses preços são mais voláteis dos que os dos outros componentes exportados, nos momentos iniciais de crise, sua redução tem efeito negativo sobre a economia brasileira antes mesmo que a demanda por esses produtos apresentem queda. Em relação ao destino das exportações, em 2010, pode-se dizer que o Brasil é fornecedor de produtos de baixo valor agregado para a Ásia e de alto valor para a América Latina e Caribe. Dada as implicações dessa “especialização” de destino, qualquer proposta de aprofundamento da integração na região da América Latina precisa levar em conta essa 13 De acordo com esse banco, em setembro, esses fundos tinham aplicados no Brasil US$ 44 bilhões; segundo a agência Bloomberg News, investidores japoneses têm US$102 bilhões em ativos brasileiros. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani realidade. Os produtos básicos são 45% exportados para os países asiáticos14, 23,7% para a União Européia, 9,5% para a América Latina e Caribe, 6,7% para os Estados Unidos e 15,1% para os demais países. Quanto aos produtos semimanufaturados, 35,3% destinam-se à Ásia, 21,7% à União Européia, 11,3% aos Estados Unidos, 6,3% à América Latina e Caribe e 25,4% para os demais países. Por último, 47,3% dos produtos manufaturados foram exportados para a América Latina e o Caribe (principalmente para a Argentina), 19,4% para a União Européia, 12,7% para os Estados Unidos, 7,2% para a Ásia e 13,4% para os demais países. Tabela 1 - Participação relativa dos componentes da Exportação FOB - Brasil 2006 2007 2008 2009 2010 Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Produtos básicos 29,23 32,12 36,89 40,50 44,58 Produtos industrializados 68,60 65,82 60,50 57,42 53,37 semimanufaturados 14,17 13,57 13,68 13,40 13,97 manufaturados 54,44 52,25 46,82 44,02 37,42 Operações especiais 2,16 2,06 2,61 2,08 2,05 Fonte: MDIC/Sedex. Elaboração própria. A crescente participação dos investimentos diretos e em carteira na composição do passivo externo brasileiro tem se expressado em aumento das remessas relativas a lucros e dividendos, de forma que a conta de rendas tem apresentado crescimento nos últimos anos. Na hipótese de uma crise, essas rendas podem ser antecipadas, pressionando a moeda do país. Mas mais importante do que isso, é a evolução recente da conta investimentos direto no país e do passivo da conta investimentos em carteira. A primeira aumentou de US$ 18,82 bilhões, em 2006, para US$ 48,44 bilhões em 2010 (segundo o Banco Central, o estoque total de investimento direto em dezembro de 2010 era estimado em US$ 472,60 bilhões (BCB, 2010)); a segunda passou de US$ 9,08 bilhões, para US$ 67,80 bilhões. A piora das condições da economia internacional pode rapidamente, mudar a direção desses recursos, pressionando a moeda brasileira a se desvalorizar, apesar do nível das reservas internacionais serem bastante elevadas (US$ 349,0 bilhões, em 06 de outubro de 2011). O Gráfico 2 apresenta o total dos investimentos diretos no país, o passivo dos investimentos em carteira e o passivo dos derivativos. 14 Das exportações de produtos básicos para a Ásia, 63,5% destinam-se à China. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani Gráfico 2 – Investimentos diretos no país, investimentos em carteira (passivo) e derivativos (passivo) – Brasil – US$ milhões Fonte: BCB, 2007, 2009 e 2010. O grau de exposição da economia brasileira ao movimento do capital internacional pode ser dimensionado pelo volume de negócios (entrada mais saída) de capitais especulativos parasitários (investimentos em carteira mais derivativos): US$ 534,6 bilhões em 2008 (nível máximo atingido), US$ 343,2 bilhões em 2009 e US$ 295,1 bilhões em 2010 (mais de um bilhão de dólares por dia útil). Em 2011, entre janeiro e agosto, esse volume de negócios atingiu US$ 172,9 bilhões, gerando uma remessa de rendas para o exterior de US$ 13,6 bilhões (BCB, 2011b). A economia brasileira conta com um estoque impressionante de capitais estrangeiros. Segundo os dados do Banco Central, o passivo na Posição de Internacional de Investimentos que era de US$ 343,4 bilhões em dezembro de 2002, saltou para mais de US$ 1,4 trilhão em junho de 2011, um crescimento de mais de 300% nos últimos dez anos. Deste total, US$ 534,0 bilhões são investimentos estrangeiros diretos, US$ 682,0 bilhões são investimentos em carteira e derivativos e US$ 187,0 em outros investimentos. Na última década, o crescimento dos capitais especulativos foi de quase 400%. (BCB, 2011c). Confrontando esses números com o montante das reservas acumuladas pelo Brasil, a fragilidade da economia brasileira torna-se evidente. Além disso, as grandes empresas brasileiras de capital aberto estão relativamente expostas à variação do dólar, pois recorrentemente tomam recursos emprestados nessa moeda (entre outros motivos, para se beneficiarem da diferença entre a taxa de juros externa e interna). Segundo estimativas do mercado, uma desvalorização do real de 17% resultaria em um aumento da dívida bruta das quinze maiores empresas tomadoras em R$ 30 bilhões. As empresas que enfrentariam maior dificuldade seriam a Vale, Braskem, Fibria, Marfrig, Suzano, Usiminas e TAM (VALOR ECONÕMICO, 2011). Por último, é importante destacar que o Brasil, ao contrário do que acontece em outros países, tem um segmento bancário estatal significativo, que se manteve apesar da O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani onda neoliberal privatizante que assolou o país principalmente nos anos 1990. Esse segmento, formado pelo BNDES, pela CEF e pelo BB, tem capacidade de ampliar sua participação no crédito do país em momentos de crise, tal como se evidenciou em 2008 / 2009. A eficácia desse envolvimento em uma crise de mais longa duração dependerá, no entanto, de quanto se retrai o crédito (livre ou direcionado) dos demais bancos nacionais e estrangeiros. Considerações Finais Em 2008 / 2009, as medidas anti-crise tomadas pelo governo conseguiram impedir que a economia brasileira sofresse uma grave queda na produção, que houvesse aumento no desemprego e que o impacto fosse maior nas contas externas. Elas foram suficientes, no entanto, apenas para evitar a queda do consumo, que ocorreria sem aquelas medidas. Mas é preciso se destacar que o desempenho observado na economia brasileira em 2009 também se deveu à condição particular da China e Índia, entre outros países, que mantiveram elevadas taxas de crescimento. Além disso, as medidas adotadas pelos governos dos Estados Unidos e Europa, para salvarem os grandes bancos, geraram um excesso de capital monetário, que se dirigiu ao Brasil buscando suas elevadas taxas de juros, ao contrário do que ocorreu nos países centrais, onde as taxas se tornaram negativas. Cabe perguntar, no caso de novo agravamento da crise mundial, quais seriam as medidas disponíveis de política econômica e quais seriam seus impactos sobre a economia brasileira. Nos últimos anos, mesmo com a eleição de Dilma Roussef para presidente da república, tanto as políticas monetárias, quanto as fiscais e sociais não sofreram mudanças importantes, o mesmo ocorrendo com as equipes de governo no Ministério da Fazenda e no Banco Central. Isso sem contar que os pilares da política macroeconômica continuam sendo o tripé constituído pela taxa de câmbio flutuante (com livre mobilidade dos capitais internacionais), metas de inflação e metas de superávit primário. Assim, o que se pode esperar do governo seriam medidas anti-crise semelhantes às tomadas em 2008/2009: 1) apoio e proteção ao sistema bancário para estimular e evitar uma queda do crédito pessoal e empresarial; 2) utilização dos bancos públicos para a expansão do crédito ao consumo; 3) aumento da disponibilidade do BNDES; 4) isenção ou redução de impostos para estimular o consumo interno; 5) medidas de estímulo às exportações dos produtos cujos mercados não tenham sofrido graves impactos da crise. O Banco Central conta com recursos na forma de depósitos compulsórios, sobre depósitos à vista, depósitos de poupança e depósitos a prazo, que passou de R$ 193,6 bilhões, em dezembro de 2009, para R$ 420,8 bilhões em agosto de 2011 (BCB, 2011a). Como em 2008/2009, uma parte expressiva desses depósitos poderia ser liberada para expandir o crédito e o consumo. Entretanto, essas operações enfrentam os seguintes problemas: 1) a maior parte desses depósitos, mais de 80%, já é remunerada pela SELIC ou pela taxa das cadernetas de poupança; 2) só haveria interesse dos bancos expandirem os empréstimos se obtivessem taxas de juros superiores às que já recebem nas aplicações em títulos; 3) sobre os empréstimos já realizados, os bancos cobravam taxas de juros exorbitantes (média de 30,9% ao ano para pessoas jurídicas e 46,2% para pessoas físicas O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani sobre o crédito livre) em agosto de 2011. Para pessoas físicas, a taxa média de juros sobre o cheque especial era de 187,6%, de 49,6% para o crédito pessoal (inclusive o crédito consignado), 29,4% para aquisição de veículos e 55,5% para outros tipos de empréstimo. (BCB, 2011a); 4) os tomadores de empréstimos, pessoas físicas e jurídicas, precisam estar dispostos a se endividarem às taxas cobradas pelos bancos do Brasil, em um momento de acirramento da crise. Além disso, é necessário considerar que parte das famílias comprometeu suas rendas futuras ao elevarem seu nível de endividamento em 2009, seja na compra de veículos ou na compra de imóveis15. No que se refere às relações internacionais, não é de se esperar iniciativas substantivas, que alterem o grau de exposição ao movimento do capital internacional. Já foram adotadas algumas medidas que inibem o ingresso dos capitais especulativos como a cobrança do IOF, o que não impediu a continuidade do ingresso e saída dos capitais especulativos parasitários. Para enfrentar os ataques especulativos que devem fragilizar a economia, o governo poderia ou deveria adotar as medidas que já vem sendo defendidas de controle dos movimentos de capitais e não só a taxação parcial desse fluxo. Ou seja, a livre mobilidade no movimento de capitais, além da desnacionalização da economia, transfere ao exterior o comando e as decisões sobre atividades e setores importantes da economia e reduz a capacidade de controle e intervenção estatal, e isso pode tornar-se um limitante à capacidade de resposta aos impactos da crise. De qualquer modo, não é de se esperar uma fuga maciça dos capitais especulativos parasitários com o acirramento da crise. Principalmente porque o Brasil tem oferecido uma altíssima rentabilidade à esses capitais e o governo têm assegurado tanto essa remuneração através da taxa básica quanto uma relativa segurança executando a política fiscal e monetária de acordo com o tripé da política macroeconômica e com os interesses das finanças nacionais e internacionais. O maior risco com que a economia brasileira se defronta, em termos de seu desenvolvimento capitalista, é decorrente de sua própria posição subordinada e dependente do sistema capitalista mundial. Nela, o Brasil coloca-se como um dos maiores fornecedores de insumos produzidos ou extraídos dos enormes recursos naturais que dispõe, tem sido um importante receptor de capitais estrangeiros na esfera produtiva e tornou-se também um grande receptor de capitais especulativos. Nessa articulação, o Brasil tornou-se igualmente um grande produtor de juros, lucros e ganhos de capital tanto para os investimentos estrangeiros diretos quanto para aos capitais especulativos. Em um momento de crise, para manter o envio de excedentes para o exterior e, assim, amenizar os efeitos da crise sobre a rentabilidade do capital, colocar-se-á, tal como na crise dos anos 1980, o aumento da exploração da força de trabalho. Se isso ocorrerá ou não depende da capacidade de resistência que os trabalhadores brasileiros possam oferecer. A experiência da zona do euro indica que o capital não vê nenhum óbice às formas mais elementares de aumento da taxa de exploração, seja reduzindo salários, seja reduzindo direitos sociais. 15 Das 576 mil unidades habitacionais financiadas em 2009, 276 foram feitas no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani Referências AMADEO, Kimberly. What is Quantitative Easing? 2011. Disponível em: http://useconomy.about.com/od/glossary/g/Quantitative-Easing.htm. Acesso em 8 de outubro de 2011 ANFAVEA – Associação Nacional dos Veículos Automotores. Carta da Anfavea, n° 273, fevereiro de 2009. São Paulo, Anfavea. BCB Banco Central do Brasil. Relatório 2010. Disponível http://www.bcb.gov.br/?BOLETIM2010 . Acesso em 7 de outubro de 2009. em BCB – Banco Central do Brasil. Relatório 2009. Disponível http://www.bcb.gov.br/?BOLETIM2009 . Acesso em 6 de outubro de 2009. em BCB – Banco Central do Brasil. Relatório 2007. Disponível em http://www.bcb.gov.br/pec/boletim/banual2007/rel2007cap5p.pdf. Acesso em 9 de outubro de 2011. BCB – Banco Central do Brasil. Nota para a imprensa, política monetária e operações de crédito do SFN, setembro 2011a. Acessível em http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM. Acesso em 8 de outubro de 2011 BCB – Banco Central do Brasil. Nota para a imprensa, setor externo, setembro 2011b. http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPEXT. Acesso em 8 de outubro de 2011. BCB – Banco Central do Brasil. Posição Internacional de Investimentos, http://www.bcb.gov.br/?SERIEPIIH. Acesso em 8 de outubro de 2011. 2011c. BIS – BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS. . Quarterly Review, September 2011. Statistical Annex. Acessível em http://www.bis.org/ statistics/secstats.htm. Acesso em 8 de outubro de 2011. CARCANHOLO, Reinaldo e NAKATANI, Paulo. O Capital especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 20, n.1, p. 284-304, 1999. CHESNAIS, F. "O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos", In Chesnais F (Org.). A finança mundializada, raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. Boitempo, São Paulo, 2005. CHESNAIS, F. La dette publique, question névralgique de la lutte de classes em Europe. Carré Rouge, 44, novembro 2010, p. 37-48. http://www.carrerouge.org/spip.php?article345. Acesso 07 de outubro de 2010. GOLDSTEIN, Fred. Capitalism at a dead end. The Era of Job Destruction. A marxist view. XVI Encontro Nacional de Política Social. Vitória, 2011. (mimeo) MARX. K. O Capital. Livro III, volume IV. São Paulo, Civilização Brasileira, 1980. MATTOSO, J. E. L. “O novo e inseguro mundo do trabalho nos países avançados”. In: Oliveira, C. A. B. (org). O mundo do trabalho - crise e mudança no final do século. São Paulo, Editora Página Aberta, 1994. MINISTÉRIO DAS RELAÇOES EXTERIORES. Disponível em http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/10/5/dolar-cai-com-leilaodo-bc-e-ajuste-no-mercado-futuro . Acesso em 5 de outubro de 2011. O ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em http://economia.estadao.com.br. Acesso em 7 de outubro de 2011. O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011. Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani PLIHON, D. As Grandes empresas fragilizadas pela finança. In Chesnais F (Org.). A finança mundializada, raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. Boitempo, São Paulo, 2005. ROUSSET, Dilma. Discurso na ONU. Acessível em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/ +discurso+de+Dilma+na+Assembleia+da+ONU.html. Acesso em 8 de outubro de 2011. TOUSSAINT, Eric. Grécia, símbolo da dívida http://vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=146488&id_secao=2. outubro de 2011. ilegítima. Acesso em 2011. 07 de VALOR ECONÕMICO. Impacto do dólar chega aos balanços, 28 de setembro de 2011. Disponível em http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/9/26/impacto-do-dolarchega-aos-balancos. Acesso em 9 de outubro de 2011. WEISS, Martin. 12 Giants U.S. Banks Vulnerable to Disaster. Acessível http://www.moneyandmarkets.com/12-giant-u-s-banks-vulnerable-to-disaster-47357. Acesso em 8 de outubro de 2011 em: