NA GÊNESE DAS
RACIONALIDADES MODERNAS
Em torno de Leon Battista Alberti
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton
EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said
Conselho Editorial
Wander Melo Miranda (presidente)
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INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS TRANSDISCIPLINARES - IEAT
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Roberto Luís de Melo Monte-Mór
Carlos Antônio Leite Brandão
Pierre Caye
Francesco Furlan
Maurício Alves Loureiro
Organizadores
NA GÊNESE DAS
RACIONALIDADES MODERNAS
Em torno de Leon Battista Alberti
Belo Horizonte
Editora UFMG
2013
© 2013, Os autores
© 2013, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do
Editor.
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N147
Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Leon Battista Alberti /
Carlos Antônio Leite Brandão... [ et. al.], organizadores. – Belo Horizonte :
Editora UFMG, 2013.
549 p. : il. – (IEAT)
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0006-2
Outros organizadores: Pierre Caye, Francesco Furlan, Maurício Alves Loureiro.
Textos apresentados no Seminário & Colóquio Na gênese das racionalidades
modernas: em torno de Leon Battista Alberti, realizado em Belo Horizonte de 4 a 8 de
abril de 2011, na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
1. Alberti, Leon Battista,1404-1472. 2. Arquitetos italianos – Congressos.
3. Arquitetura – Congressos. 4. Renascença. 5. Arte e filosofia. I. Brandão, Carlos
Antônio Leite, 1958-. II. Caye, Pierre. III. Furlan, Francesco. IV. Loureiro, Maurício
Alves. V. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura. VI. Seminário
& Colóquio Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Leon Battista
Alberti (2011 : Belo Horizonte, MG). VII. Série.
CDD: 724.1
CDU: 72.03
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Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação
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COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo
ACOMPANHAMENTO EDITORIAL IEAT Marcos Fábio C. de Faria
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PREPARAÇÃO DE TEXTOS Corina Moreira, Juan Fiorini e Lourdes Nascimento
REVISÃO DE PROVAS Cláudia Campos e Flávia Caetano
PROJETO GRÁFICO DE CAPA Paulo Schmidt
PROJETO GRÁFICO DE MIOLO, FORMATAÇÃO E
MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro
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SUMÁRIO
EM TORNO DE ALBERTI: ontem e hoje
Carlos Antônio Leite Brandão
Francesco Furlan
Pierre Caye
Maurício Alves Loureiro
9
Parte I
DESCRIPTIO URBIS ROMAE
REPRESENTAÇÃO DA CIDADE DE ROMA
DESCRIPTIO URBIS ROMAE
Leonis Baptistae Alberti
25
REPRESENTAÇÃO DA CIDADE DE ROMA
Leon Battista Alberti
36
O MEDIA LAB DE ALBERTI
Mario Carpo
50
ARQUITETURA, TÉCNICA E DESENVOLVIMENTO DE
ALGUMAS IDEIAS ALBERTIANAS CAPAZES DE SUSCITAR
AMBIGUIDADES RELATIVAS AO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
Pierre Caye
67
REPRODUTIBILIDADE E TRANSMISSÃO DA
IMAGEM TÉCNICO-CIENTÍFICA NA OBRA DE
ALBERTI E EM SUAS FONTES
Mario Carpo
Francesco Furlan
82
Parte II
COLÓQUIO INTERNACIONAL
SOB O SIGNO DE JANO: a atualidade da arte
edificatória de Leon Battista Alberti
Mário Krüger
125
Primeira sessão
As palavras e as coisas
DO MÉTODO: filologia e epistemologia albertianas
Francesco Furlan
189
ÉTICA E TÉCNICA: ontem e hoje
Ivan Domingues
214
DA RAZÃO IRÔNICA
EM LEON BATTISTA ALBERTI
Philippe Guérin
227
PROJETO ARQUITETÔNICO E
PENSAMENTO CIENTÍFICO
Maria Lúcia Malard
259
Segunda sessão
Antropologia e técnica
Albertiana necnon Vitruviana
A QUESTÃO DA PROPORÇÃO: reflexões para
um humanismo do quadrivium
Pierre Caye
275
COMO PENSAR A CIDADE HOJE
Jupira Gomes de Mendonça
294
A RAZÃO DO DESENHO
Karim Basbous
300
Terceira sessão
Antropologia e espaço:
a res aedificatoria
FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS DA
ARQUITETURA ALBERTIANA
Carlos Antônio Leite Brandão
339
Quarta sessão
Família e cidade
DO PAI AO ICIARCA: a família no centro da
respublica albertiana
Nella Bianchi Bensimon
365
Quinta sessão
Ética, decoro & ORNAMENTA
ÉTICA E DÉCOR NAS OBRAS DE ALBERTI E
DE FILARETE
Thomas Golsenne
389
O DE PICTURA À LUZ DA ARTE MODERNA
E CONTEMPORÂNEA
Stéphane Huchet
407
Sexta sessão
Tradição, transmissão, tradução
QUAL(IS) VITRÚVIO(S)? O De architectura no
início do século XVI à luz da tradução de
Fabio Calvo para Rafael
Francesco Di Teodoro
419
“DEIXEI MEU TEODOLITO NO ALTO DO
CAMPANÁRIO”: sobre os Ex ludis rerum mathematicarum,
de Leon Battista Alberti, e o interesse que há em compará-los
com o Primeiro livro de arquitetura, de Sebastiano Serlio
Peter Hicks
444
APÊNDICE
A ARTE EDIFICATÓRIA: do saber útil ao
saber necessário
Vítor Murtinho
467
ALBERTI DIGITAL: investigando a influência de
Alberti na arquitetura portuguesa da Contrarreforma
José P. Duarte
Bruno Figueiredo
Eduardo Costa
Filipe Coutinho
Mário Krüger
488
CARLOS
ANTÔNIO LEITE BRANDÃO
FRANCESCO FURLAN
P I E R R E C AY E
MAURÍCIO ALVES LOUREIRO
EM TORNO DE ALBERTI
Ontem e hoje
INTRODUÇÃO
Desde os trabalhos de Pierre Duhem, sobre a cosmologia e
mais ainda sobre Leonardo da Vinci e sobre as fontes de seu
saber,1 existe uma tradição historiográfica contínua que faz do
Renascimento, em particular em sua relação com as ciências
matemáticas e físicas, a simples herdeira dos saberes medievais,
que negam nesse momento do pensamento e da cultura toda
verdadeira singularidade. Em sua admirável tese sobre La
théorie architecturale d’Alberti (1946), Vasilij P. Zubov, que
foi, no entanto, um dos primeiros a sublinhar a importância do
que ele chama de “a camada medieval do De re aedificatoria”,2
ressaltou os perigos e as derivas de semelhante interpretação,
ao deixar claro, com justíssima razão, que “o estudo das
fontes oculta as diferenças de princípios e de fundamentos ‘que
conduzem’ a uma criação qualitativamente nova”.3 Há, porém,
uma outra deriva da interpretação que, ao mesmo tempo que
reconhece a dimensão fundadora do Renascimento, se contenta
de fazer dela o simples ponto de partida da modernidade
científica, racional e laica, sem tomar o tempo de lembrar a
singularidade incomparável das experiências de pensamento
que sua cultura favoreceu. Seguramente, e tal é justamente o
título de nosso livro, o Renascimento está “na gênese das racionalidades modernas” em matéria de arte, política, moral, bem
como de ciências e técnicas, e não é absolutamente necessário
citar Petrarca, Alberti ou Nicolas de Cusa, Leonardo da Vinci,
Maquiavel ou Montaigne para justificar nosso propósito; mas
essa gênese renascentista do mundo moderno é um momento
à parte e perfeitamente autônomo, com suas próprias referências e seus próprios planos de ação, um momento que não se
dissolve em seu porvir. Pensamos, inclusive, que o Renascimento
indica à nossa modernidade cultural, científica e técnica e às
racionalidades que a servem uma via outra que a produtividade
e a vontade de poder que transformaram o mundo, segundo o
termo de Heidegger, em Gestell, i.e., em dispositivo de mobilização total ou de computação universal para a intensificação
de sua exploração; uma via outra, mas também tão racional, e
seguramente mais lúcida e preocupada com o porvir da humanidade, quanto a nossa.
Essa alteridade que o Renascimento põe no próprio seio da
identidade da racionalidade moderna e de seu devir produtivista,
Alberti a simboliza melhor que qualquer outro humanista ou
teórico dos séculos XV e XVI, por sua inventividade infinita
em matéria de saberes e de razões e também pela singularidade
de suas abordagens a cada vez desnorteantes para seus contemporâneos, bem como para nós. Não tinha ele, como o lembra
Policiano em seu prefácio à editio princeps florentina do De re
aedificatoria (1485), o domínio bem realizado de quase todas as
artes, quando raros são aqueles que dominam apenas uma?4 Não
há nada ou quase, de fato – literatura, artes, ciências, economia,
moral e política –, que Alberti não tenha tocado, e que ele não
tenha profundamente modificado pela leitura, cada vez singular,
delas realizada. De sorte que não somente a cultura, mas também
os modos da racionalidade puderam assumir novos traços que
o próprio termo “humanismo” não basta para circunscrever e
sobre os quais a era contemporânea tem, mais do que nunca,
interesse em meditar. Na realidade, Alberti não se contentou em
10
reorientar os grandes domínios do saber, mas na maioria das
vezes os refundou inteiramente, dando-lhes inclusive, às vezes,
simplesmente e quase subitamente, nascimento: assim é que, com
a teoria da arte – a um só tempo pintura, escultura e arquitetura
–, ele instituiu definitivamente, com um gesto desconcertante,
nossa relação com o mundo.
Não poderíamos neste livro abordar todas as dimensões de
seu gesto ao mesmo tempo excepcional e fundador, em vários
aspectos, da cultura mundial. Nós nos ativemos, pois, a tratar
mais particularmente quatro questões albertianas fundamentais:
a fundação de uma antropologia moderna e laica, a invenção do
projeto e a gênese da técnica moderna, a emergência da teoria
das artes e do disegno, a relação entre texto e imagem e suas
implicações epistemológicas e edóticas, além de trazer a primeira
tradução em português da Descriptio urbis Romae realizada a
partir da edição crítica publicada pela Société Internationale
Leon Battista Alberti.
O SEMINÁRIO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Este livro se divide, de fato, em duas partes. A primeira parte
contém a Descriptio urbis Romae/Representação da cidade de
Roma, de L. B. Alberti, cujo original em latim é acompanhado
da tradução em português. Essa primeira tradução em português, feita com base no texto latino estabelecido por Jean-Yves
Boriaud e Francesco Furlan, é aqui publicada para servir, antes
de tudo, como suporte para subsidiar os trabalhos apresentados
durante o Seminário e o Colóquio Internacional Na gênese das
racionalidades modernas: em torno de Alberti (Belo Horizonte,
Escola de Arquitetura da UFMG, 4 e 5 e 5 a 8 de abril de 2011).
Além desse texto, incluem-se aí as apresentações de Mario Carpo,
Pierre Caye e Francesco Furlan no Seminário realizado nos dias 4
e 5 de abril para o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
e Urbanismo da UFMG.
11
A Descriptio urbis Romae é um exemplo paradigmático da
relação entre o real, o texto e as imagens em Alberti, tema de
vários ensaios aqui publicados, a começar pelo primeiro deles, no
qual Mario Carpo nos apresenta um “Alberti digital”, expressão
que servirá também de título para o último capítulo deste livro.
Na transição entre a Idade Média e o mundo moderno, Alberti
descreve uma plataforma de tecnologias numéricas dedicada ao
registro e à transmissão da imagem de objetos tridimensionais
visando a digitalizá-los (scanning). Essa tecnologia existia desde
a Idade Clássica, e Alberti a utiliza e aperfeiçoa em várias oportunidades, como em seu livro sobre a escultura, o De statua.
Infelizmente, as “máquinas numéricas” albertianas foram mal
compreendidas ou esquecidas até recentemente, cumprindo-nos
recolocá-las em funcionamento.
Trabalhos como essa “digitalização” albertiana da imagem e
do real sugerem-nos a contemporaneidade do pensamento desse
humanista, o qual serviu como paradigma para o historiador
suíço Jacob Burckhardt considerar a cultura e a civilização do
Renascimento. Essa contemporaneidade pode ser acionada
diante de vários problemas de nosso mundo contemporâneo,
construído com base em técnicas que se desenvolvem com velocidade e ineditismo espantosos. Paradoxalmente, contudo, há
neste mundo uma crise do pensamento e do sentido da própria
técnica. Essa crise se aponta, por exemplo, nos problemas
ambientais e nos apelos por um desenvolvimento “sustentável”.
Este termo, no entanto, mais do que como um programa solidamente estruturado, é utilizado como um chavão ou palavra de
ordem. Ele envolve paradoxos complexos, os quais requerem
investigar os princípios originários do projeto moderno de planificar o mundo. Ao relacionar a tecnologia atual com a técnica
arquitetônica teorizada por Alberti no seu tratado maior, o De
re aedificatoria, Pierre Caye nos aponta elementos capazes de
conduzir a uma nova forma de pensar a técnica e de elaborar o
mundo que deixaremos para os que nos sucederão.
12
Em coautoria, Francesco Furlan e Mario Carpo encerram a
primeira parte destes anais estudando como se dão a reprodutibilidade e a transmissão das imagens técnico-científicas na obra
albertiana e nas suas fontes. Trata-se de um texto que serviu para
introduzir, em 2005 (em italiano) e em 2007 (em inglês), a edição
da Descriptio urbis Romae publicada pela Société Internationale
Leon Battista Alberti, e que aqui é revisto para se compreender
o problema das imagens, ou melhor, da ausência de imagens
nos escritos albertianos. Deliberar sobre isso é parte essencial
da estratégia retórica e metodológica de Alberti, como explicitado no De re aedificatoria. Num mundo tão inflacionado de
imagens e de publicidades, onde prepondera a superficialidade
com que as informações são construídas e absorvidas, inclusive
as da arte e da ciência, a opção albertiana soa com um frescor
que cumpre compreender.
O COLÓQUIO INTERNACIONAL
A segunda parte desta coletânea compreende alguns dos
trabalhos apresentados no Colóquio Internacional que sucedeu
ao Seminário, também voltado para investigar a gênese das
racionalidades modernas e a atualidade de Alberti.
Após a apresentação de músicas do Renascimento pela
Orquestra de Trombones da UFMG – inclusive com trechos de
Nuper rosarum flores, obra composta por Guillaume Dufay
para a inauguração da catedral de Santa Maria del Fiore, em
Florença, em 1436 (adaptação de um dos organizadores deste
evento, Maurício Alves Loureiro, e regência de Marcos Flávio
de Aguiar Freitas) –, Mário Krüger abriu o Colóquio com a
conferência “Sob o signo de Jano”, o deus romano dos inícios e
das passagens. Jano era representado com duas faces orientadas
em sentidos opostos e que vigiavam as entradas, as saídas e as
portas dos lugares e da cidade. Em seu estudo, Krüger circula
por trechos do De re aedificatoria e por algumas considerações
de arquitetos recentes, como Alvaro Siza, Le Corbusier e Robert
13
Venturi. Sete temas, que compreendem desde as invariantes
disciplinares e a relação edifício-corpo até o estudo dos conceitos
de delineamento (lineamentum) e concinidade (concinnitas) e
dos sistemas proporcionais utilizados por Alberti, são tomados
como focos em torno dos quais Alberti é compreendido sob
a luz dos nossos contemporâneos, e estes a partir do tratado
albertiano. Krüger nos mostra como nosso humanista abre as
portas da modernidade em arquitetura, pela forma inovadora
como sistematizou, compreendeu e transmitiu a “arte edificatória”, expressão esta que serve de título à recentíssima tradução
portuguesa, feita por Arnaldo Espírito Santo e com revisão e
notas do próprio Mário Krüger.
A primeira sessão do Colóquio intitulou-se “As palavras e as
coisas”. Em sua conferência de abertura, Francesco Furlan abordou a questão do método na filologia e na epistemologia albertianas. Alberti não se interessava pela especulação filosófica em
si mesma e refutava todo conhecimento estéril, que não servisse
a uma organização do saber orientada para o imanente. Partindo
disso, Furlan examina a multiforme obra do humanista com base
nas preocupações metodológicas, nas perspectivas intelectuais,
na concepção do saber e nas funções reservadas por Alberti aos
literatos, intelectuais e doutos. Fragmentário, mas sempre atual
e denso, o “discurso do método” albertiano antecipa o debate
científico e cultural que se desenvolverá na modernidade.
A mesa redonda seguinte foi aberta pelo estudo da relação
entre os estatutos da ética e da técnica, ontem e hoje. Ivan
Domingues compara as visões gregas e modernas da técnica,
começando por Aristóteles, passando por Kant e chegando a
Heidegger e aos impasses decorrentes da ampla invasão da
tecnologia em nosso cotidiano atual. Trata-se de examinar em que
medida e em que níveis os imperativos técnicos e instrumentais,
os imperativos hipotéticos relacionados ao bem-estar pessoal e
coletivo e os imperativos categóricos e morais limitam-se reciprocamente ou não. Domingues conclui seu texto apontando
três direcionamentos para se considerar a atual relação entre
14
a arte e a técnica e abrindo espaço para uma ética republicana
e para a decisão sobre a moralidade das aplicações atuais das
tecnociências com base em quatro princípios que bem agradariam a Alberti: consentimento, responsabilidade, precaução e
custo/benefício.
Philippe Guérin nos traz uma das características mais
marcantes da obra albertiana: a ironia. Embora Alberti nunca
dê uma definição estável do que ele entende por “razão”, seus
escritos permitem ver tratar-se de uma razão essencialmente
prática e quase sempre discursiva. Além disto, ela está sob a
ameaça constante de uma “antirrazão”, de uma loucura, de uma
stultitia, como evidenciado em obras como os Intercenales, o
Momus e o Theogenius. Mas há algo que a ameaça ainda mais:
desprovido de centro, o pensamento ausenta-se de si mesmo e
permite o advento de uma racionalidade contraditória capaz até
de negar a si própria, como se constata em algumas passagens
do Momus. Com surpreendente lucidez, Alberti expõe o inevitável fracasso da “razão retórica”, que sustentava o humanismo
renascentista, e a desconstrói por meio de uma implacável “razão
irônica” (e autoirônica).
Concluindo essa mesa e aplicando-se mais à especificidade da
atividade arquitetônica, Maria Lúcia Malard concebe-a como
predominantemente técnica e discute suas vizinhanças e distâncias frente às racionalidades, produtos e procedimentos próprios
à Ciência e à Arte. O pensamento científico descreve e explica
as coisas, mas não nos ajuda muito a concebê-las. Depois de o
homem viver milhares de anos sem ela, a Arquitetura nasceu
quando ele teve necessidade de criar um artefato para ser habitado, o que exigiu técnica e arte. Cabe ao arquiteto incorporar o
conhecimento científico em seu campo de ação, sabendo que ele
não precisa se tornar um cientista para exercer bem o seu ofício e
que seu objeto “serve” a uma necessidade humana, e não a uma
razão alheia a esta. Esquecer isso é frequente em projetistas que
pretendem alcançar uma racionalidade completamente “livre” e
que acabam por prescindir até mesmo de sua capacidade crítica.
15
“Antropologia e técnica” foi o tema da segunda sessão do
Seminário. Pierre Caye abre-o considerando a questão da proporção no humanismo do quadrivium e no século XVI. Certos
críticos consideram que o pioneirismo do humanismo renascentista em matéria de cultura e de saber desapareceu a partir
do século XVI, uma vez que aí o humanismo do trivium, mais
literário, cedeu passagem ao desenvolvimento do quadrivium e
à curiosidade mais propriamente científica e técnica. Certamente
as matemáticas, a cosmologia, a medicina, a arquitetura e os
saberes técnicos marcaram mais o humanismo do Cinquecento.
Contudo, a emergência e o desenvolvimento desses saberes não
devem servir para considerarmos desnecessárias a filologia e a
ação humanista anteriores. Ao contrário, estas ganham ainda
mais amplitude. As premissas da ciência moderna no Cinquecento
em nada são estranhas ao espírito do humanismo. Estudando a
teoria das proporções, Caye compreende como, simultaneamente,
constitui-se esse “humanismo matemático” do quadrivium e
quais as suas contribuições específicas para a humanitas.
Sendo objetivo do Colóquio entrelaçar Alberti e o Renascimento com o contexto atual, a intervenção de Jupira Gomes de
Mendonça expõe os desafios presentes nas metrópoles contemporâneas, caracterizadas pela fragmentação e segregação que
destroem o espírito igualitário de uma república que esteve
sempre distante da história da urbanização brasileira. Promover
o bene beateque vivendum albertiano antecipa, então, a necessidade presente de se fazer da justiça social, da democracia
participativa e dos direitos e responsabilidades dos cidadãos,
elementos fundamentais para pensar e transformar a cidade hoje.
Com o mesmo objetivo, Karim Basbous discorre sobre a
“razão do desenho”. A concepção dos edifícios atuais herda a
transformação do desenho e o renascimento do projeto proposto
no De re aedificatoria. Basbous ajuda-nos a compreender nesse
renascimento duas dimensões essenciais do disegno arquitetônico: o “espaço” mental e material no qual ele se realiza, e a
16
experiência singular do “tempo”, descoberta por Alberti durante
o processo de invenção e concepção dos edifícios.
Alberti abre caminho para se considerar antropologicamente
o espaço edificado e cívico. A conferência de Carlos Brandão
nucleou a sessão do Colóquio dedicada a esse tema. Ela começa
mostrando como a arte de edificar é feita por um ser humano
que, em toda a obra de Alberti, aparece como tendo uma natureza
“frágil”, “trágica”, “narcísica” e “estética”. Edificar a partir de
uma razão cívica, prudente e voltada para a permanência e para
o bene beateque vivendum é um modo de conferir ao ser humano
um instrumento para a virtù combater bem a fortuna. Se sujeito
apenas à sua natureza, o que o homem constrói dirige-se contra
a própria humanitas. É isso fundamentalmente o que opõe L. B.
Alberti a Albert Speer, arquiteto de Hitler, cujos procedimentos
e pensamentos em muito se assemelham aos predominantes em
um mundo voltado para a fragmentação e para a descontinuidade, como o atual.
“Família e cidade” foi a sessão reservada para se pensar tanto
o universo doméstico quanto o universo da polis e do Estado em
Alberti. Nella Bianchi-Bensimon aborda essa questão trazendo-nos à cena o De iciarchia. Aqui, o humanista confia no ideal
de um homem capaz de reger uma família ou uma cidade (tais
ambientes quase se confundem no século XV) com base na
virtude ética do pater familias. A imagem que emerge nesse último
diálogo escrito por Alberti não é a de um príncipe convocado
para governar conforme os critérios de um indispensável realismo
político, mas a do iciarco, um modelo de autoridade fundado
sobre a sabedoria, sobre a dottrina e sobre a profundidade dos
sentimentos. Trata-se de um arquétipo que não se encontrava
nem na realidade da época e nem na tradição precedente. O
neologismo cunhado por Alberti, iciarco, é requerido justamente
para bem compreender a originalidade desse novo modo de
conceber a ação de “governar”.
17
“Ética, decoro & ornamenta” foi o tema da quinta sessão.
No Quattrocento, a teoria do ornamento foi problematizada
tanto na Retórica quanto na Arquitetura. No centro dessas duas
abordagens, Thomas Golsenne verifica estar a noção de decor
articulada com a da “conveniência”. Isso nos indica que a teoria
do ornamento, ou do decor, comportava, simultaneamente, uma
ética e uma estética. Golsenne revela, contudo, uma contradição interna característica dessa teoria: o ornamento é tanto
necessário (pragmaticamente) quanto supérfluo (idealmente).
Analisando Cícero e o De re aedificatoria, pode-se identificar
como causa dessa contradição a mistura do platonismo com o
estoicismo. Um contemporâneo de Alberti, Antonio Averlino,
dito Filarete, nos fornecerá, então, uma teoria alternativa do
ornamento e da arquitetura, fundada principalmente sobre metáforas biológicas, sobre o desejo de produzir e sobre o prazer da
variedade. Assim separado da conveniência, o ornamento passa
a vincular-se somente aos limites da imaginação do arquiteto e
do dinheiro de quem o encomenda.
Stéphane Huchet conduzirá esse tema para a arte das performances e instalações contemporâneas, caracterizada por um
envolvimento maior do corpo e do espectador. Diante dessa
arte, temas desenvolvidos no De pictura, tais como a historia,
a organização das figuras, a “circunscrição” (circumscriptio)
e a “composição” (compositio) parecem não ter mais nada a
nos dizer. Recolocando Alberti como inaugurador do discurso
da autonomia produtiva e social da pintura, como inventor
da ciência das imagens e como criador da primeira gramática
das artes plásticas, Huchet demonstra a contemporaneidade
daqueles temas desenvolvidos no tratado albertiano sobre a
pintura e sua pertinência para se considerarem as performances,
as instalações e o pensamento da arte contemporânea, como o
de Ilya Kabakov sobre a teoria da “instalação”.
Francesco Paolo Di Teodoro, abrindo a última sessão,
pergunta-nos qual o Vitrúvio e qual o De architectura que eram
18
compreendidos no início do século XVI, especificamente, por
Fabio Calvo, ao fazer a tradução que lhe fora encomendada
por Rafael, arquiteto da nova Basílica de São Pedro, em 1514.
Fabio Calvo recorre a várias fontes e manuscritos do tratado
vitruviano. Na Idade Média e no Renascimento, contudo, tais
fontes e manuscritos baseavam-se em codices corrompidos e
excessivamente alterados, muito diferentes do original escrito
pelo arquiteto romano. Por um lado, o texto crítico moderno
tornou-se um instrumento privilegiado para o historiador da
arte antiga ou da arquitetura greco-romana e para aqueles que
estudam Vitrúvio enquanto tratadista e arquiteto. Por outro, o
mesmo não se dá para o historiador da arquitetura da Idade
Moderna, para o qual os erros da tradição (e que acabaram
por influenciar a arquitetura e as teorias dos tempos por ele
estudados) não têm muita relevância. Di Teodoro propõe que
só uma edição comparada de todos os testemunhos vitruvianos
conservados poderá nos fornecer, enfim, um instrumento capaz
de dar conta de alguns momentos-chaves em que a história da
arquitetura colocou o De architectura no centro de suas reflexões
e do impulso de mudança e de inovação.
Peter Hicks aborda os jogos ou exercícios matemáticos,
geométricos e mecânicos dos Ex ludis rerum mathematicarum,
escritos por Alberti na metade do século XV. Comparando-os
com o Geometria, primeiro livro do tratado de S. Serlio sobre
arquitetura (1545), Hicks demonstra que essa obra albertiana
não deve ser vista como algo profissional ou excessivamente
sério, mas como um passatempo mental. Discutindo isso,
Hicks nos revela um “Alberti burguês”, expressão que Pierre
Caye utiliza ao analisar as considerações econômicas albertianas, e conclui retomando a questão das imagens – ou da falta
de imagens – em Alberti, tema que Mario Carpo e Francesco
Furlan trataram no início deste livro: ao contrário das imagens
de Serlio, as imagens que encontramos nos Ludi mathematici
19
são facultativas e poderiam ser imaginadas mediante apenas a
leitura do texto.
Os apêndices de Vitor Murtinho e de José Pinto Duarte
concluem o Colóquio. Murtinho comenta as duas traduções
portuguesas do De re aedificatoria. A primeira seria a possível
tradução feita pelo humanista português André de Resende
(1500-1573), quando o tratado albertiano aparecia como “útil”
para a govenança de D. João III, apesar de não publicado. A
segunda tradução é a feita recentemente por Arnaldo Espírito
Santo, com as revisões e notas críticas de Mário Krüger. 5
Murtinho destaca a “necessidade” atual dessa edição e a novidade no tratamento de conceitos, como a concinnitas albertiana,
traduzida mediante a retomada de um termo antigo português,
“concinidade”, o que nos ajuda a ampliar o léxico disciplinar
contemporâneo.
“Alberti digital” refere-se a projeto atualmente desenvolvido
por José Pinto Duarte e outros. Utilizando meios computacionais,
esse projeto visa a dimensionar o impacto que o De re aedificatoria teve nas arquiteturas portuguesa, indiana e brasileira. A
influência de Alberti nessas arquiteturas tem sido apontada, mas
até agora não foi possível determinar com rigor sua extensão.
No seu artigo, Duarte apresenta o estado atual desse estudo, o
qual se dedica a decodificar o tratado albertiano e a inferir as
“gramáticas” nele encontradas e a serem posteriormente examinadas naquelas arquiteturas, como a planta dos templos de base
quadrangular e o sistema da coluna dórica.
! !
Tanto o Seminário quanto o Colóquio foram idealizados e
preparados em Paris por seus quatro organizadores, no bojo
dos trabalhos desenvolvidos pelo professor Carlos Brandão,
quando de seu estágio sênior pós-doutoral junto ao professor
Francesco Furlan. Esse estágio foi patrocinado pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a
20
partir de pesquisas sobre Alberti desenvolvidas pelo professor
Brandão junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e à Escola de Arquitetura da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esse estágio só
foi possível com o acolhimento e a confiança no trabalho a ser
realizado providenciado pelo professor Furlan e pelas instituições
parceiras a ele vinculadas: a Fondation de la Maison des Sciences
de l’Homme (FMSH/Paris), o Centre de Recherche sur les Arts
et le Langage (CRAL) da École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS/França) e a Société Internationale Leon Battista
Alberti (SILBA).
Para realizar o Seminário e o Colóquio, foi decisivo o reconhecimento de sua importância e da relevância de Alberti na
história do conhecimento transdisciplinar pelo Instituto de
Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT/UFMG), presidido
pelo professor Maurício Alves Loureiro, o qual não apenas
promoveu e apoiou tais eventos como também patrocina a
presente edição. Para possibilitar a realização do Seminário,
do Colóquio e desta publicação, novas instituições foram decisivas: o Centre “Jean Pépin” - UPR 76 do Centre National de
la Recherche Scientifique (CNRS, Villejuif) e o Groupement de
recherche international “Savoirs artistiques et traités d’Art de la
Renaissance aux Lumières” (GdRI-STAR), ambos sob a liderança
de Pierre Caye; o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
e Urbanismo (NPGAU/UFMG), coordenado por Jupira Gomes
de Mendonça e Fernanda Borges de Morais; a FMSH/Paris e a
SILBA, presidida por Francesco Furlan. Para operacionalizar tais
eventos, acolhidos no âmbito das Artes Renascentes: Serie Altera,
contamos com a preciosa colaboração do Grupo “Arquitetura,
Humanismo e República” (AHR/EA-UFMG), da diretoria da
Escola de Arquitetura e da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG.
A finalização dos originais deste livro foi feita pelos organizadores, sobretudo durante o mês de fevereiro de 2012, em Paris.
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Para tanto, contou-se também com o apoio financeiro e técnico
do CNPq, do GdRI-STAR e da equipe do IEAT.
A todas essas instituições e às pessoas envolvidas – em particular a Dominique Fournier, da FMSH/Paris, a Junia Mortimer,
do NPGAU, e a Marcos Fábio C. de Faria, do IEAT – deixamos
aqui expresso o nosso mais alto reconhecimento. Trata-se de
agradecer não apenas pelo que foi feito até a edição destes anais,
mas também pelas possibilidades abertas para a constituição de
um intercâmbio internacional e de pesquisas de que Alberti se
faz tão merecedor.
NOTAS
1
Pierre Duhem, Le système du monde: histoire des doctrines cosmologiques de
Platon à Copernic, Paris, Hermann, 1913-1959; Idem, Études sur Léonard de
Vinci: ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu, Paris, F. De Nobele, 1955.
2
Vasilij P. Zubov, Leon Battista Alberti (1404-1472) et les auteurs du Moyen
Âge, Medieval and Renaissance Studies, IV, 1958, p. 245-266.
3
Idem, Arhitekturnaâ teoriâ Al’berti [1946], Otvet stvenniâ redaktor: Dmitria
Bayûk, Sankt-Petersburg, Aleteia, 2001, p. 36, tr. fr. ed. por Françoise Choay,
Francesco Furlan e Pierre Souffrin, La théorie architecturale d’Alberti, Albertiana,
III, 2000, p. 27.
4
Cf. Angelus Politianus Laurentio Medici patrono suo s.d., em Leon Battista
Alberti, L’architettura [De re aedificatoria], testo latino e traduzione a cura di
Giovanni Orlandi, introduzione e note di Paolo Portoghesi, Milano, Il Polifilo,
1966, p. 3-5: 3: “Nullae quippe hunc hominem latuerunt qualibet remotae
litterae, quamlibet reconditae disciplines. (…) Optimus praeterea et pictor et
statuarius est habitus, cum tamen interim ita examussim teneret omnia, ut vix
pauxi singula” – tr. port. Arnaldo Monteiro do Espírito Santo, Da arte edificatória, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 135 s.: 136: “Não
houve conhecimentos literários, por mais remotos, nem disciplinas do saber, por
mais recônditas, que lhe escapassem. (…) Além disso, foi considerado excelente
pintor e escultor, dominando assim, na perfeição, todas as artes, como poucos
dominan cada uma em particular.”
5
Leon Battista Alberti, Da Arte Edificatória, tradução de Arnaldo Monteiro do
Espírito Santo, revisões e notas críticas de Mário Krüger, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2011.
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