NA GÊNESE DAS RACIONALIDADES MODERNAS Em torno de Leon Battista Alberti UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG Diretor Wander Melo Miranda Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said Conselho Editorial Wander Melo Miranda (presidente) Ana Maria Caetano de Faria Flavio de Lemos Carsalade Heloisa Maria Murgel Starling Márcio Gomes Soares Maria das Graças Santa Bárbara Maria Helena Damasceno e Silva Megale Roberto Alexandre do Carmo Said INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS TRANSDISCIPLINARES - IEAT Diretor Maurício Alves Loureiro Comitê Diretor Eliana Regina de Freitas Dutra Francisco Antônio Rodrigues Barbosa José Nagib Cotrim Árabe Roberto Luís de Melo Monte-Mór Carlos Antônio Leite Brandão Pierre Caye Francesco Furlan Maurício Alves Loureiro Organizadores NA GÊNESE DAS RACIONALIDADES MODERNAS Em torno de Leon Battista Alberti Belo Horizonte Editora UFMG 2013 © 2013, Os autores © 2013, Editora UFMG Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. ______________________________________________________________________________________________ N147 Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Leon Battista Alberti / Carlos Antônio Leite Brandão... [ et. al.], organizadores. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2013. 549 p. : il. – (IEAT) Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-423-0006-2 Outros organizadores: Pierre Caye, Francesco Furlan, Maurício Alves Loureiro. Textos apresentados no Seminário & Colóquio Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Leon Battista Alberti, realizado em Belo Horizonte de 4 a 8 de abril de 2011, na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. 1. Alberti, Leon Battista,1404-1472. 2. Arquitetos italianos – Congressos. 3. Arquitetura – Congressos. 4. Renascença. 5. Arte e filosofia. I. Brandão, Carlos Antônio Leite, 1958-. II. Caye, Pierre. III. Furlan, Francesco. IV. Loureiro, Maurício Alves. V. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura. VI. Seminário & Colóquio Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Leon Battista Alberti (2011 : Belo Horizonte, MG). VII. Série. CDD: 724.1 CDU: 72.03 ______________________________________________________________________________________________ Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação Biblioteca Universitária da UFMG COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo ACOMPANHAMENTO EDITORIAL IEAT Marcos Fábio C. de Faria COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro PREPARAÇÃO DE TEXTOS Corina Moreira, Juan Fiorini e Lourdes Nascimento REVISÃO DE PROVAS Cláudia Campos e Flávia Caetano PROJETO GRÁFICO DE CAPA Paulo Schmidt PROJETO GRÁFICO DE MIOLO, FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac EDITORA UFMG Av. 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O De architectura no início do século XVI à luz da tradução de Fabio Calvo para Rafael Francesco Di Teodoro 419 “DEIXEI MEU TEODOLITO NO ALTO DO CAMPANÁRIO”: sobre os Ex ludis rerum mathematicarum, de Leon Battista Alberti, e o interesse que há em compará-los com o Primeiro livro de arquitetura, de Sebastiano Serlio Peter Hicks 444 APÊNDICE A ARTE EDIFICATÓRIA: do saber útil ao saber necessário Vítor Murtinho 467 ALBERTI DIGITAL: investigando a influência de Alberti na arquitetura portuguesa da Contrarreforma José P. Duarte Bruno Figueiredo Eduardo Costa Filipe Coutinho Mário Krüger 488 CARLOS ANTÔNIO LEITE BRANDÃO FRANCESCO FURLAN P I E R R E C AY E MAURÍCIO ALVES LOUREIRO EM TORNO DE ALBERTI Ontem e hoje INTRODUÇÃO Desde os trabalhos de Pierre Duhem, sobre a cosmologia e mais ainda sobre Leonardo da Vinci e sobre as fontes de seu saber,1 existe uma tradição historiográfica contínua que faz do Renascimento, em particular em sua relação com as ciências matemáticas e físicas, a simples herdeira dos saberes medievais, que negam nesse momento do pensamento e da cultura toda verdadeira singularidade. Em sua admirável tese sobre La théorie architecturale d’Alberti (1946), Vasilij P. Zubov, que foi, no entanto, um dos primeiros a sublinhar a importância do que ele chama de “a camada medieval do De re aedificatoria”,2 ressaltou os perigos e as derivas de semelhante interpretação, ao deixar claro, com justíssima razão, que “o estudo das fontes oculta as diferenças de princípios e de fundamentos ‘que conduzem’ a uma criação qualitativamente nova”.3 Há, porém, uma outra deriva da interpretação que, ao mesmo tempo que reconhece a dimensão fundadora do Renascimento, se contenta de fazer dela o simples ponto de partida da modernidade científica, racional e laica, sem tomar o tempo de lembrar a singularidade incomparável das experiências de pensamento que sua cultura favoreceu. Seguramente, e tal é justamente o título de nosso livro, o Renascimento está “na gênese das racionalidades modernas” em matéria de arte, política, moral, bem como de ciências e técnicas, e não é absolutamente necessário citar Petrarca, Alberti ou Nicolas de Cusa, Leonardo da Vinci, Maquiavel ou Montaigne para justificar nosso propósito; mas essa gênese renascentista do mundo moderno é um momento à parte e perfeitamente autônomo, com suas próprias referências e seus próprios planos de ação, um momento que não se dissolve em seu porvir. Pensamos, inclusive, que o Renascimento indica à nossa modernidade cultural, científica e técnica e às racionalidades que a servem uma via outra que a produtividade e a vontade de poder que transformaram o mundo, segundo o termo de Heidegger, em Gestell, i.e., em dispositivo de mobilização total ou de computação universal para a intensificação de sua exploração; uma via outra, mas também tão racional, e seguramente mais lúcida e preocupada com o porvir da humanidade, quanto a nossa. Essa alteridade que o Renascimento põe no próprio seio da identidade da racionalidade moderna e de seu devir produtivista, Alberti a simboliza melhor que qualquer outro humanista ou teórico dos séculos XV e XVI, por sua inventividade infinita em matéria de saberes e de razões e também pela singularidade de suas abordagens a cada vez desnorteantes para seus contemporâneos, bem como para nós. Não tinha ele, como o lembra Policiano em seu prefácio à editio princeps florentina do De re aedificatoria (1485), o domínio bem realizado de quase todas as artes, quando raros são aqueles que dominam apenas uma?4 Não há nada ou quase, de fato – literatura, artes, ciências, economia, moral e política –, que Alberti não tenha tocado, e que ele não tenha profundamente modificado pela leitura, cada vez singular, delas realizada. De sorte que não somente a cultura, mas também os modos da racionalidade puderam assumir novos traços que o próprio termo “humanismo” não basta para circunscrever e sobre os quais a era contemporânea tem, mais do que nunca, interesse em meditar. Na realidade, Alberti não se contentou em 10 reorientar os grandes domínios do saber, mas na maioria das vezes os refundou inteiramente, dando-lhes inclusive, às vezes, simplesmente e quase subitamente, nascimento: assim é que, com a teoria da arte – a um só tempo pintura, escultura e arquitetura –, ele instituiu definitivamente, com um gesto desconcertante, nossa relação com o mundo. Não poderíamos neste livro abordar todas as dimensões de seu gesto ao mesmo tempo excepcional e fundador, em vários aspectos, da cultura mundial. Nós nos ativemos, pois, a tratar mais particularmente quatro questões albertianas fundamentais: a fundação de uma antropologia moderna e laica, a invenção do projeto e a gênese da técnica moderna, a emergência da teoria das artes e do disegno, a relação entre texto e imagem e suas implicações epistemológicas e edóticas, além de trazer a primeira tradução em português da Descriptio urbis Romae realizada a partir da edição crítica publicada pela Société Internationale Leon Battista Alberti. O SEMINÁRIO DE PÓS-GRADUAÇÃO Este livro se divide, de fato, em duas partes. A primeira parte contém a Descriptio urbis Romae/Representação da cidade de Roma, de L. B. Alberti, cujo original em latim é acompanhado da tradução em português. Essa primeira tradução em português, feita com base no texto latino estabelecido por Jean-Yves Boriaud e Francesco Furlan, é aqui publicada para servir, antes de tudo, como suporte para subsidiar os trabalhos apresentados durante o Seminário e o Colóquio Internacional Na gênese das racionalidades modernas: em torno de Alberti (Belo Horizonte, Escola de Arquitetura da UFMG, 4 e 5 e 5 a 8 de abril de 2011). Além desse texto, incluem-se aí as apresentações de Mario Carpo, Pierre Caye e Francesco Furlan no Seminário realizado nos dias 4 e 5 de abril para o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG. 11 A Descriptio urbis Romae é um exemplo paradigmático da relação entre o real, o texto e as imagens em Alberti, tema de vários ensaios aqui publicados, a começar pelo primeiro deles, no qual Mario Carpo nos apresenta um “Alberti digital”, expressão que servirá também de título para o último capítulo deste livro. Na transição entre a Idade Média e o mundo moderno, Alberti descreve uma plataforma de tecnologias numéricas dedicada ao registro e à transmissão da imagem de objetos tridimensionais visando a digitalizá-los (scanning). Essa tecnologia existia desde a Idade Clássica, e Alberti a utiliza e aperfeiçoa em várias oportunidades, como em seu livro sobre a escultura, o De statua. Infelizmente, as “máquinas numéricas” albertianas foram mal compreendidas ou esquecidas até recentemente, cumprindo-nos recolocá-las em funcionamento. Trabalhos como essa “digitalização” albertiana da imagem e do real sugerem-nos a contemporaneidade do pensamento desse humanista, o qual serviu como paradigma para o historiador suíço Jacob Burckhardt considerar a cultura e a civilização do Renascimento. Essa contemporaneidade pode ser acionada diante de vários problemas de nosso mundo contemporâneo, construído com base em técnicas que se desenvolvem com velocidade e ineditismo espantosos. Paradoxalmente, contudo, há neste mundo uma crise do pensamento e do sentido da própria técnica. Essa crise se aponta, por exemplo, nos problemas ambientais e nos apelos por um desenvolvimento “sustentável”. Este termo, no entanto, mais do que como um programa solidamente estruturado, é utilizado como um chavão ou palavra de ordem. Ele envolve paradoxos complexos, os quais requerem investigar os princípios originários do projeto moderno de planificar o mundo. Ao relacionar a tecnologia atual com a técnica arquitetônica teorizada por Alberti no seu tratado maior, o De re aedificatoria, Pierre Caye nos aponta elementos capazes de conduzir a uma nova forma de pensar a técnica e de elaborar o mundo que deixaremos para os que nos sucederão. 12 Em coautoria, Francesco Furlan e Mario Carpo encerram a primeira parte destes anais estudando como se dão a reprodutibilidade e a transmissão das imagens técnico-científicas na obra albertiana e nas suas fontes. Trata-se de um texto que serviu para introduzir, em 2005 (em italiano) e em 2007 (em inglês), a edição da Descriptio urbis Romae publicada pela Société Internationale Leon Battista Alberti, e que aqui é revisto para se compreender o problema das imagens, ou melhor, da ausência de imagens nos escritos albertianos. Deliberar sobre isso é parte essencial da estratégia retórica e metodológica de Alberti, como explicitado no De re aedificatoria. Num mundo tão inflacionado de imagens e de publicidades, onde prepondera a superficialidade com que as informações são construídas e absorvidas, inclusive as da arte e da ciência, a opção albertiana soa com um frescor que cumpre compreender. O COLÓQUIO INTERNACIONAL A segunda parte desta coletânea compreende alguns dos trabalhos apresentados no Colóquio Internacional que sucedeu ao Seminário, também voltado para investigar a gênese das racionalidades modernas e a atualidade de Alberti. Após a apresentação de músicas do Renascimento pela Orquestra de Trombones da UFMG – inclusive com trechos de Nuper rosarum flores, obra composta por Guillaume Dufay para a inauguração da catedral de Santa Maria del Fiore, em Florença, em 1436 (adaptação de um dos organizadores deste evento, Maurício Alves Loureiro, e regência de Marcos Flávio de Aguiar Freitas) –, Mário Krüger abriu o Colóquio com a conferência “Sob o signo de Jano”, o deus romano dos inícios e das passagens. Jano era representado com duas faces orientadas em sentidos opostos e que vigiavam as entradas, as saídas e as portas dos lugares e da cidade. Em seu estudo, Krüger circula por trechos do De re aedificatoria e por algumas considerações de arquitetos recentes, como Alvaro Siza, Le Corbusier e Robert 13 Venturi. Sete temas, que compreendem desde as invariantes disciplinares e a relação edifício-corpo até o estudo dos conceitos de delineamento (lineamentum) e concinidade (concinnitas) e dos sistemas proporcionais utilizados por Alberti, são tomados como focos em torno dos quais Alberti é compreendido sob a luz dos nossos contemporâneos, e estes a partir do tratado albertiano. Krüger nos mostra como nosso humanista abre as portas da modernidade em arquitetura, pela forma inovadora como sistematizou, compreendeu e transmitiu a “arte edificatória”, expressão esta que serve de título à recentíssima tradução portuguesa, feita por Arnaldo Espírito Santo e com revisão e notas do próprio Mário Krüger. A primeira sessão do Colóquio intitulou-se “As palavras e as coisas”. Em sua conferência de abertura, Francesco Furlan abordou a questão do método na filologia e na epistemologia albertianas. Alberti não se interessava pela especulação filosófica em si mesma e refutava todo conhecimento estéril, que não servisse a uma organização do saber orientada para o imanente. Partindo disso, Furlan examina a multiforme obra do humanista com base nas preocupações metodológicas, nas perspectivas intelectuais, na concepção do saber e nas funções reservadas por Alberti aos literatos, intelectuais e doutos. Fragmentário, mas sempre atual e denso, o “discurso do método” albertiano antecipa o debate científico e cultural que se desenvolverá na modernidade. A mesa redonda seguinte foi aberta pelo estudo da relação entre os estatutos da ética e da técnica, ontem e hoje. Ivan Domingues compara as visões gregas e modernas da técnica, começando por Aristóteles, passando por Kant e chegando a Heidegger e aos impasses decorrentes da ampla invasão da tecnologia em nosso cotidiano atual. Trata-se de examinar em que medida e em que níveis os imperativos técnicos e instrumentais, os imperativos hipotéticos relacionados ao bem-estar pessoal e coletivo e os imperativos categóricos e morais limitam-se reciprocamente ou não. Domingues conclui seu texto apontando três direcionamentos para se considerar a atual relação entre 14 a arte e a técnica e abrindo espaço para uma ética republicana e para a decisão sobre a moralidade das aplicações atuais das tecnociências com base em quatro princípios que bem agradariam a Alberti: consentimento, responsabilidade, precaução e custo/benefício. Philippe Guérin nos traz uma das características mais marcantes da obra albertiana: a ironia. Embora Alberti nunca dê uma definição estável do que ele entende por “razão”, seus escritos permitem ver tratar-se de uma razão essencialmente prática e quase sempre discursiva. Além disto, ela está sob a ameaça constante de uma “antirrazão”, de uma loucura, de uma stultitia, como evidenciado em obras como os Intercenales, o Momus e o Theogenius. Mas há algo que a ameaça ainda mais: desprovido de centro, o pensamento ausenta-se de si mesmo e permite o advento de uma racionalidade contraditória capaz até de negar a si própria, como se constata em algumas passagens do Momus. Com surpreendente lucidez, Alberti expõe o inevitável fracasso da “razão retórica”, que sustentava o humanismo renascentista, e a desconstrói por meio de uma implacável “razão irônica” (e autoirônica). Concluindo essa mesa e aplicando-se mais à especificidade da atividade arquitetônica, Maria Lúcia Malard concebe-a como predominantemente técnica e discute suas vizinhanças e distâncias frente às racionalidades, produtos e procedimentos próprios à Ciência e à Arte. O pensamento científico descreve e explica as coisas, mas não nos ajuda muito a concebê-las. Depois de o homem viver milhares de anos sem ela, a Arquitetura nasceu quando ele teve necessidade de criar um artefato para ser habitado, o que exigiu técnica e arte. Cabe ao arquiteto incorporar o conhecimento científico em seu campo de ação, sabendo que ele não precisa se tornar um cientista para exercer bem o seu ofício e que seu objeto “serve” a uma necessidade humana, e não a uma razão alheia a esta. Esquecer isso é frequente em projetistas que pretendem alcançar uma racionalidade completamente “livre” e que acabam por prescindir até mesmo de sua capacidade crítica. 15 “Antropologia e técnica” foi o tema da segunda sessão do Seminário. Pierre Caye abre-o considerando a questão da proporção no humanismo do quadrivium e no século XVI. Certos críticos consideram que o pioneirismo do humanismo renascentista em matéria de cultura e de saber desapareceu a partir do século XVI, uma vez que aí o humanismo do trivium, mais literário, cedeu passagem ao desenvolvimento do quadrivium e à curiosidade mais propriamente científica e técnica. Certamente as matemáticas, a cosmologia, a medicina, a arquitetura e os saberes técnicos marcaram mais o humanismo do Cinquecento. Contudo, a emergência e o desenvolvimento desses saberes não devem servir para considerarmos desnecessárias a filologia e a ação humanista anteriores. Ao contrário, estas ganham ainda mais amplitude. As premissas da ciência moderna no Cinquecento em nada são estranhas ao espírito do humanismo. Estudando a teoria das proporções, Caye compreende como, simultaneamente, constitui-se esse “humanismo matemático” do quadrivium e quais as suas contribuições específicas para a humanitas. Sendo objetivo do Colóquio entrelaçar Alberti e o Renascimento com o contexto atual, a intervenção de Jupira Gomes de Mendonça expõe os desafios presentes nas metrópoles contemporâneas, caracterizadas pela fragmentação e segregação que destroem o espírito igualitário de uma república que esteve sempre distante da história da urbanização brasileira. Promover o bene beateque vivendum albertiano antecipa, então, a necessidade presente de se fazer da justiça social, da democracia participativa e dos direitos e responsabilidades dos cidadãos, elementos fundamentais para pensar e transformar a cidade hoje. Com o mesmo objetivo, Karim Basbous discorre sobre a “razão do desenho”. A concepção dos edifícios atuais herda a transformação do desenho e o renascimento do projeto proposto no De re aedificatoria. Basbous ajuda-nos a compreender nesse renascimento duas dimensões essenciais do disegno arquitetônico: o “espaço” mental e material no qual ele se realiza, e a 16 experiência singular do “tempo”, descoberta por Alberti durante o processo de invenção e concepção dos edifícios. Alberti abre caminho para se considerar antropologicamente o espaço edificado e cívico. A conferência de Carlos Brandão nucleou a sessão do Colóquio dedicada a esse tema. Ela começa mostrando como a arte de edificar é feita por um ser humano que, em toda a obra de Alberti, aparece como tendo uma natureza “frágil”, “trágica”, “narcísica” e “estética”. Edificar a partir de uma razão cívica, prudente e voltada para a permanência e para o bene beateque vivendum é um modo de conferir ao ser humano um instrumento para a virtù combater bem a fortuna. Se sujeito apenas à sua natureza, o que o homem constrói dirige-se contra a própria humanitas. É isso fundamentalmente o que opõe L. B. Alberti a Albert Speer, arquiteto de Hitler, cujos procedimentos e pensamentos em muito se assemelham aos predominantes em um mundo voltado para a fragmentação e para a descontinuidade, como o atual. “Família e cidade” foi a sessão reservada para se pensar tanto o universo doméstico quanto o universo da polis e do Estado em Alberti. Nella Bianchi-Bensimon aborda essa questão trazendo-nos à cena o De iciarchia. Aqui, o humanista confia no ideal de um homem capaz de reger uma família ou uma cidade (tais ambientes quase se confundem no século XV) com base na virtude ética do pater familias. A imagem que emerge nesse último diálogo escrito por Alberti não é a de um príncipe convocado para governar conforme os critérios de um indispensável realismo político, mas a do iciarco, um modelo de autoridade fundado sobre a sabedoria, sobre a dottrina e sobre a profundidade dos sentimentos. Trata-se de um arquétipo que não se encontrava nem na realidade da época e nem na tradição precedente. O neologismo cunhado por Alberti, iciarco, é requerido justamente para bem compreender a originalidade desse novo modo de conceber a ação de “governar”. 17 “Ética, decoro & ornamenta” foi o tema da quinta sessão. No Quattrocento, a teoria do ornamento foi problematizada tanto na Retórica quanto na Arquitetura. No centro dessas duas abordagens, Thomas Golsenne verifica estar a noção de decor articulada com a da “conveniência”. Isso nos indica que a teoria do ornamento, ou do decor, comportava, simultaneamente, uma ética e uma estética. Golsenne revela, contudo, uma contradição interna característica dessa teoria: o ornamento é tanto necessário (pragmaticamente) quanto supérfluo (idealmente). Analisando Cícero e o De re aedificatoria, pode-se identificar como causa dessa contradição a mistura do platonismo com o estoicismo. Um contemporâneo de Alberti, Antonio Averlino, dito Filarete, nos fornecerá, então, uma teoria alternativa do ornamento e da arquitetura, fundada principalmente sobre metáforas biológicas, sobre o desejo de produzir e sobre o prazer da variedade. Assim separado da conveniência, o ornamento passa a vincular-se somente aos limites da imaginação do arquiteto e do dinheiro de quem o encomenda. Stéphane Huchet conduzirá esse tema para a arte das performances e instalações contemporâneas, caracterizada por um envolvimento maior do corpo e do espectador. Diante dessa arte, temas desenvolvidos no De pictura, tais como a historia, a organização das figuras, a “circunscrição” (circumscriptio) e a “composição” (compositio) parecem não ter mais nada a nos dizer. Recolocando Alberti como inaugurador do discurso da autonomia produtiva e social da pintura, como inventor da ciência das imagens e como criador da primeira gramática das artes plásticas, Huchet demonstra a contemporaneidade daqueles temas desenvolvidos no tratado albertiano sobre a pintura e sua pertinência para se considerarem as performances, as instalações e o pensamento da arte contemporânea, como o de Ilya Kabakov sobre a teoria da “instalação”. Francesco Paolo Di Teodoro, abrindo a última sessão, pergunta-nos qual o Vitrúvio e qual o De architectura que eram 18 compreendidos no início do século XVI, especificamente, por Fabio Calvo, ao fazer a tradução que lhe fora encomendada por Rafael, arquiteto da nova Basílica de São Pedro, em 1514. Fabio Calvo recorre a várias fontes e manuscritos do tratado vitruviano. Na Idade Média e no Renascimento, contudo, tais fontes e manuscritos baseavam-se em codices corrompidos e excessivamente alterados, muito diferentes do original escrito pelo arquiteto romano. Por um lado, o texto crítico moderno tornou-se um instrumento privilegiado para o historiador da arte antiga ou da arquitetura greco-romana e para aqueles que estudam Vitrúvio enquanto tratadista e arquiteto. Por outro, o mesmo não se dá para o historiador da arquitetura da Idade Moderna, para o qual os erros da tradição (e que acabaram por influenciar a arquitetura e as teorias dos tempos por ele estudados) não têm muita relevância. Di Teodoro propõe que só uma edição comparada de todos os testemunhos vitruvianos conservados poderá nos fornecer, enfim, um instrumento capaz de dar conta de alguns momentos-chaves em que a história da arquitetura colocou o De architectura no centro de suas reflexões e do impulso de mudança e de inovação. Peter Hicks aborda os jogos ou exercícios matemáticos, geométricos e mecânicos dos Ex ludis rerum mathematicarum, escritos por Alberti na metade do século XV. Comparando-os com o Geometria, primeiro livro do tratado de S. Serlio sobre arquitetura (1545), Hicks demonstra que essa obra albertiana não deve ser vista como algo profissional ou excessivamente sério, mas como um passatempo mental. Discutindo isso, Hicks nos revela um “Alberti burguês”, expressão que Pierre Caye utiliza ao analisar as considerações econômicas albertianas, e conclui retomando a questão das imagens – ou da falta de imagens – em Alberti, tema que Mario Carpo e Francesco Furlan trataram no início deste livro: ao contrário das imagens de Serlio, as imagens que encontramos nos Ludi mathematici 19 são facultativas e poderiam ser imaginadas mediante apenas a leitura do texto. Os apêndices de Vitor Murtinho e de José Pinto Duarte concluem o Colóquio. Murtinho comenta as duas traduções portuguesas do De re aedificatoria. A primeira seria a possível tradução feita pelo humanista português André de Resende (1500-1573), quando o tratado albertiano aparecia como “útil” para a govenança de D. João III, apesar de não publicado. A segunda tradução é a feita recentemente por Arnaldo Espírito Santo, com as revisões e notas críticas de Mário Krüger. 5 Murtinho destaca a “necessidade” atual dessa edição e a novidade no tratamento de conceitos, como a concinnitas albertiana, traduzida mediante a retomada de um termo antigo português, “concinidade”, o que nos ajuda a ampliar o léxico disciplinar contemporâneo. “Alberti digital” refere-se a projeto atualmente desenvolvido por José Pinto Duarte e outros. Utilizando meios computacionais, esse projeto visa a dimensionar o impacto que o De re aedificatoria teve nas arquiteturas portuguesa, indiana e brasileira. A influência de Alberti nessas arquiteturas tem sido apontada, mas até agora não foi possível determinar com rigor sua extensão. No seu artigo, Duarte apresenta o estado atual desse estudo, o qual se dedica a decodificar o tratado albertiano e a inferir as “gramáticas” nele encontradas e a serem posteriormente examinadas naquelas arquiteturas, como a planta dos templos de base quadrangular e o sistema da coluna dórica. ! ! Tanto o Seminário quanto o Colóquio foram idealizados e preparados em Paris por seus quatro organizadores, no bojo dos trabalhos desenvolvidos pelo professor Carlos Brandão, quando de seu estágio sênior pós-doutoral junto ao professor Francesco Furlan. Esse estágio foi patrocinado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a 20 partir de pesquisas sobre Alberti desenvolvidas pelo professor Brandão junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esse estágio só foi possível com o acolhimento e a confiança no trabalho a ser realizado providenciado pelo professor Furlan e pelas instituições parceiras a ele vinculadas: a Fondation de la Maison des Sciences de l’Homme (FMSH/Paris), o Centre de Recherche sur les Arts et le Langage (CRAL) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/França) e a Société Internationale Leon Battista Alberti (SILBA). Para realizar o Seminário e o Colóquio, foi decisivo o reconhecimento de sua importância e da relevância de Alberti na história do conhecimento transdisciplinar pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT/UFMG), presidido pelo professor Maurício Alves Loureiro, o qual não apenas promoveu e apoiou tais eventos como também patrocina a presente edição. Para possibilitar a realização do Seminário, do Colóquio e desta publicação, novas instituições foram decisivas: o Centre “Jean Pépin” - UPR 76 do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Villejuif) e o Groupement de recherche international “Savoirs artistiques et traités d’Art de la Renaissance aux Lumières” (GdRI-STAR), ambos sob a liderança de Pierre Caye; o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU/UFMG), coordenado por Jupira Gomes de Mendonça e Fernanda Borges de Morais; a FMSH/Paris e a SILBA, presidida por Francesco Furlan. Para operacionalizar tais eventos, acolhidos no âmbito das Artes Renascentes: Serie Altera, contamos com a preciosa colaboração do Grupo “Arquitetura, Humanismo e República” (AHR/EA-UFMG), da diretoria da Escola de Arquitetura e da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG. A finalização dos originais deste livro foi feita pelos organizadores, sobretudo durante o mês de fevereiro de 2012, em Paris. 21 Para tanto, contou-se também com o apoio financeiro e técnico do CNPq, do GdRI-STAR e da equipe do IEAT. A todas essas instituições e às pessoas envolvidas – em particular a Dominique Fournier, da FMSH/Paris, a Junia Mortimer, do NPGAU, e a Marcos Fábio C. de Faria, do IEAT – deixamos aqui expresso o nosso mais alto reconhecimento. Trata-se de agradecer não apenas pelo que foi feito até a edição destes anais, mas também pelas possibilidades abertas para a constituição de um intercâmbio internacional e de pesquisas de que Alberti se faz tão merecedor. NOTAS 1 Pierre Duhem, Le système du monde: histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, Paris, Hermann, 1913-1959; Idem, Études sur Léonard de Vinci: ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu, Paris, F. De Nobele, 1955. 2 Vasilij P. Zubov, Leon Battista Alberti (1404-1472) et les auteurs du Moyen Âge, Medieval and Renaissance Studies, IV, 1958, p. 245-266. 3 Idem, Arhitekturnaâ teoriâ Al’berti [1946], Otvet stvenniâ redaktor: Dmitria Bayûk, Sankt-Petersburg, Aleteia, 2001, p. 36, tr. fr. ed. por Françoise Choay, Francesco Furlan e Pierre Souffrin, La théorie architecturale d’Alberti, Albertiana, III, 2000, p. 27. 4 Cf. Angelus Politianus Laurentio Medici patrono suo s.d., em Leon Battista Alberti, L’architettura [De re aedificatoria], testo latino e traduzione a cura di Giovanni Orlandi, introduzione e note di Paolo Portoghesi, Milano, Il Polifilo, 1966, p. 3-5: 3: “Nullae quippe hunc hominem latuerunt qualibet remotae litterae, quamlibet reconditae disciplines. (…) Optimus praeterea et pictor et statuarius est habitus, cum tamen interim ita examussim teneret omnia, ut vix pauxi singula” – tr. port. Arnaldo Monteiro do Espírito Santo, Da arte edificatória, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 135 s.: 136: “Não houve conhecimentos literários, por mais remotos, nem disciplinas do saber, por mais recônditas, que lhe escapassem. (…) Além disso, foi considerado excelente pintor e escultor, dominando assim, na perfeição, todas as artes, como poucos dominan cada uma em particular.” 5 Leon Battista Alberti, Da Arte Edificatória, tradução de Arnaldo Monteiro do Espírito Santo, revisões e notas críticas de Mário Krüger, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. 22