Rotunda4 abril 2006 CEPAB-IA UNICAMP Rotunda http://www.iar.unicamp.br/rotunda ©Centro de Pesquisa em História das Artes no Brasil (CEPAB), Instituto de Artes, UNICAMP, 2003-2006 ISSN – 1678–7692 Editores responsáveis: Lygia A. Eluf e Paulo M. Kühl Capa: Lygia A. Eluf Conselho Científico: Ana M. T. Cavalcanti Jorge Coli Maria Cecília França Lourenço Maria de Fátima M. Couto Mônica Zielinsky Paulo Mugayar Kühl Ricardo N. Fabbrini Universidade Estadual de Campinas – Reitor: Prof. Dr. José Tadeu Jorge Instituto de Artes – Diretor: Prof. Dr. José Roberto Zan CEPAB – Coordenador: Prof. Dr. Paulo M. Kühl Artigos, textos (com fontes e documentos) e resenhas para publicação devem ser enviados ao CEPAB e serão submetidos ao Conselho Científico; se aceitos, serão publicados nos próximos números. Endereço para correspondência: CEPAB – Instituto de Artes Cidade Universitária “Zeferino Vaz” C. P. 6159 - 13083-970 - Campinas - SP - Brasil fax: 19 - 3289 3140 / e-mail: [email protected] Os textos aqui publicados são propriedade intelectual de seus autores. A impressão da revista e sua distribuição, para fins acadêmicos, estão autorizadas e devem ser gratuitas; citações para fins acadêmicos estão autorizadas, desde que mencionada a fonte. Neste número estão reunidos artigos que tratam de assuntos variados, mas que se imbricam. Dois textos tratam das relações entre as artes plásticas e a literatura no Brasil, ainda que com objetos muito distintos. De qualquer modo, pode-se perceber a vastidão dos assuntos ainda a serem estudados, o que vem atraindo novos pesquisadores e novos esforços. Temas que envolvem a chegada da corte e a institucionalização da produção artística ao longo do século XIX no Brasil estão presentes nos outros artigos, revelando a pluralidade de problemas e abordagens e a necessidade constante de pesquisas. Dentro desse espírito, gostaríamos já de anunciar que o CEPAB prepara para 2008 um grande congresso sobre a produção artística em torno da chegada da corte portuguesa ao Brasil. Lygia A. Eluf Paulo M. Kühl Rotunda, n. 4, abril de 2006 Artigos PAULA F. VERMEERSCH. Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil. 5 ANDRÉ TAVARES. Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna. 15 E LAINE DIAS. Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na Academia Imperial de Belas-Artes (1834-1851). 43 PAULO M. KÜHL. A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro. 59 Fontes e Documentos FERNANDO PEREIRA BINDER. O Dossiê Neuparth. 71 Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil. Paula F. Vermeersch * Éden A cidade de São Paulo na América do Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história. Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo aviatório com os berros do invencível São Bento as baratas torvas da sala de jantar. Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar. Ainda está por ser escrita a história da recepção de Dante Alighieri no Brasil. Considerando-se que a presença de temas dantescos na literatura e artes plásticas brasileiras existe claramente desde a primeira metade do século XIX, e que a virada do mesmo século conheceu a grande empreitada de tradução de Joaquim Xavier Pinheiro da Divina Comédia em versos (publicada com grande alarde em periódicos importantes como a revista Kosmos), percebe-se que o tema, mais do que mera curiosidade, contém discussões importantes tanto para a historiografia artística quanto para a literária. De fato, a obra de Dante, fundamental para a constituição da poesia européia ocidental, aportou às terras brasileiras e aqui encontrou leitura, tradução, comentário e citação constantes (basta lembrar, a título de exemplo, as copiosas citações dantescas de Machado de Assis). Porém, além de todos esses debates, possíveis e necessários, é surpreendente, para muitos, pensar na existência de dois exemplares da obra maior do Doutoranda em Teoria e História Literária (IEL-UNICAMP), pesquisadora do CEPAB e do Projeto Temático Cicognara, Mestre em História da Arte e da Cultura e em Sociologia (IFCH-UNICAMP). * Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 5 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil poeta florentino, da época de sua maior glória, em acervos públicos brasileiros, ambos de importância incalculável e de histórias relevantes. O conjunto arquitetônico do Largo de São Francisco, no centro da cidade de São Paulo, divide-se em duas partes: a primeira, compreendendo duas igrejas, a de São Francisco de Assis da Venerável Ordem dos Frades Menores e a das Chagas do Seráfico Pai São Francisco da Penitência, e a segunda, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. As igrejas remontam ao ano de 1642, quando a Câmara doou um terreno para os “frades de Santo Antônio” construírem um templo. Em 1676, a Ordem Terceira, ao lado, funda uma capela; os dois edifícios conhecem sucessivas melhorias até a década de 1790, quando os frades dão ao conjunto seu aspecto atual. Segundo o guia Bens Culturais Arquitetônicos no Município e na Região Metropolitana de São Paulo1, “o resultado foi a criação do mais harmônico conjunto colonial de São Paulo que, felizmente, sobreviveu quase intacto”2, não fosse pela remodelação, em 1934, do antigo Largo, que perdeu seu adro devido à necessidade de aplainar a grande ladeira do Vale do Anhangabaú, e do contraste com o enorme prédio da Faculdade. O guia é impiedoso: “O prejuízo, na verdade, vem da enorme mole representada pela Faculdade de Direito, construída para substituir o antigo convento, já bastante alterado quando demolido em 1932. De um grandiloqüente neobarroco inspirado em Nasoni, com influências classicistas”3, o prédio da Faculdade teria quebrado a harmonia e a delicadeza da fachada das igrejas. O prédio da Faculdade, nesse estilo arquitetônico afetado (tão próprio da São Paulo rica com o café e recém-industrializada, como no caso do Teatro Municipal) guarda a simplicidade do convento franciscano apenas no pátio interno, com as arcadas lembrando o claustro, e abriga a primeira biblioteca paulista. Na seção de Obras Raras, figuram os livros do convento e aquisições feitas ao longo de dois séculos, e o maior destaque é, sem dúvida, o exemplar veneziano, de 1520, da 1Bens culturais arquitetônicos no município e na Região Metropolitana de São Paulo, São Paulo, Secretaria dos Negócios Metropolitanos, Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo S/A e Secretaria Municipal de Planejamento, 1984. 2idem, p. 164. 3idem, p. 165. 6 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil Comédia, a obra mais antiga do acervo, reimpressão da edição feita em 1512 por Bernardino Stagnino4 em Veneza. A origem do exemplar do Largo de São Francisco permanece, até o momento, um pequeno mistério. O livro é a obra impressa mais antiga dos acervos da Universidade de São Paulo, segundo o catálogo Bibliotheca Universitatis5, e está guardada na que foi a primeira biblioteca pública da cidade, fundada antes mesmo da constituição dos cursos jurídicos no Brasil, em 1828. Percorrer as trilhas que o livro encontrou em São Paulo é enveredar pelos documentos que atestam o desenvolvimento da biblioteca e da antiga Faculdade de Direito, centro da formação de várias gerações de dirigentes e intelectuais do país. Myriam Ellis, em 1957, trouxe à luz a série de documentos sobre a fundação da biblioteca.6 São Paulo ainda era uma cidade provinciana e pobre quando, em 1745, seu primeiro bispo, Dom Bernardo Rodrigues Nogueira, fez um projeto para o Palácio Episcopal, que contaria com uma biblioteca pública. O bispado de São Paulo havia sido criado por carta régia e confirmado por bula papal neste mesmo ano; o projeto de Dom Bernardo, porém, permaneceu no papel, mas atesta o desejo dos antigos paulistas em fundar na cidade uma biblioteca e cursos de formação universitária. O terceiro bispo paulistano, Dom Frei Manuel da Ressurreição, em 1776, enviou uma carta ao Marquês de Pombal, comunicando que tudo corria bem nas cercanias de São Paulo, e, tendo aberto ao público sua própria biblioteca, de aproximadamente dois mil volumes, requesitava ao Marquês que, quando de sua morte, esse acervo fosse para a Mitra, evitando que os cabidos o vendessem, o que era a prática usual e que contrariava o princípio que esses bens fossem do Estado português.7 4Os dados sobre as edições da Comédia foram retirados, primeiramente, do site Dante Renaissance in Print, http://www.italnet.nd.edu/Dante. 5 R. E. HORCH (coordenação técnica), M. ROSETTO (coordenação de equipe), E. COSTA RIBEIRO (pesquisa e normalização bibliográfica), Bibliotheca Universitatis. Livros Impressos dos séculos XV e XVI do Acervo Bibliográfico da Universidade de São Paulo, São Paulo, EDUSP e Imprensa Oficial, 2000. 6 M. E LLIS , Documentação sobre a primeira Biblioteca Pública Oficial de São Paulo, São Paulo, Separata da Revista de História, n. 30, 1957. Ellis publicou os documentos que encontrou no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, já que os que constavam na própria Biblioteca do Largo de São Francisco queimaram no incêndio que destruiu o arquivo da Faculdade e parte do acervo, em 1880. 7 É de se ressaltar que existe um retrato, a óleo, de Dom Frei Manuel da Ressureição, 3º Bispo de São Paulo, no Museu de Arte Sacra da cidade. Nesse belo retrato, Dom Frei Manuel é representado segurando delicadamente um crucifixo ao peito, à frente de um cortinado que, desvelado à direita, mostra uma estante de Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 7 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil Finalmente, em 1824, o primeiro presidente da província de São Paulo, Lucas Antônio Monteiro de Barros, Visconde de Congonhas do Campo, resolveu criar a primeira biblioteca pública de São Paulo, requisitando, por ofício ao Ministro do Império João Severiano Maciel da Costa, a compra da biblioteca do bispo da diocese paulistana Dom Matheus de Abreu Pereira, falecido naquele ano. O Visconde propôs que a biblioteca de Dom Matheus fosse anexada à do Convento de São Francisco, legada pelo bispo de Funchal Dom Luís Rodrigues Vilares ao proveito público; e no ofício afirmava claramente que tal operação permitiria, mais tarde, a criação de uma universidade em São Paulo. Um ano depois, no prédio do Convento, começou a funcionar a biblioteca. Nesta ocasião, foi nomeado bibliotecário o Padre José Antônio dos Reis, mais tarde aluno da Academia, membro do Conselho Geral da Província (contemporaneamente a Pa ula Sousa e ao Padre Feijó) e bispo de Cuiabá. A probidade do Padre Reis no cargo foi posta em dúvida e, para livrar-se das acusações de ingerência, o bibliotecário inventariou as obras e enviou a lista ao Visconde de Congonhas. Esse inventário, que Ellis também apresenta em sua publicação, feito provisoriamente, mas que divide as obras entre às pertencentes ao convento e ao acervo de Dom Matheus e outras aquisições, não indica o exemplar da Comédia de 1520.8 Os bibliotecários da Faculdade foram obrigados, por lei, a prestarem contas do acervo, registrando compras, doações, empréstimos, e catalogando todas as obras. Em 1844, o diretor interino da Faculdade, José Maria de Avelar Brotero, por problemas administrativos que transparecem na aflita correspondência entre o mesmo e os bibliotecários que se sucediam com rapidez, toma para si a tarefa da catalogação do acervo. Os livros foram declarados com o título em extenso, sobrenome do autor e número de volumes; Brotero não dividiu as obras por assunto. Na página 48, figura um “DantheOpere em quarto, hum volume”. Em 1865, em outro desses volumes de controle da livros, encadernados a couro e de lombadas vermelhas. O Museu de Arte Sacra de São Paulo, São Paulo, Banco Safra, 1983. 8 Ao total, o Padre Reis inventaria mil e cinqüenta e nove volumes, provenientes da “livraria” (como se dizia então) de Dom Matheus, e três mil e cento e sessenta e dois livros do Convento; em anexo, traz uma lista de preços de outras obras adquiridas depois da fundação. Os livros foram divididos por assuntos (Escritura Sagrada e Santos Padres, Liturgia, Teologia Natural Dogmática e Moral, Direito Canônico, entre outros) e as obras literárias figuram em Miscelânea, área que conta com 201 tomos. A Comédia de 1520 já seria uma obra antiga nesta ocasião, mas não consta na lista. Consultar M. E LLIS , op. cit. 8 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil biblioteca, assinado pelo ajudante-bibliotecário J. B. Cardoso Drummond, os livros finalmente foram divididos em seções, e em “Poesias Italianas” está um “Danthe, La Divina Comedia, 4 o, Veneza”.9 Em 1887, é publicado um catálogo da biblioteca10, organizado em 1884 pelos bibliotecários de então, Fernando Mendes de Almeida e seu assistente João Martins da Silva. O “Prefácio” ficou a cargo do Diretor da Faculdade de Direito entre 1883 e 1890, Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury.11 Pádua Fleury, responsável por grandes melhorias na Faculdade no final do Império12, explica que a divisão dos livros por assunto seguiu a mais moderna metodologia, e nessa divisão dos volumes em cinco classes (Teologia, Jurisprudência, Ciências e Artes, Belas-Artes e História e Geografia) ficou patente que a biblioteca da Faculdade encontrava-se desatualizada e sem as principais referências contemporâneas da área jurídica. A biblioteca, segundo Fleury, havia sido formada “sem gosto e sem escolha”, pelas antigas livrarias dos frades franciscanos, do bispo de Funchal e de Dom Matheus, e mais alguns volumes do primeiro diretor da Inventário Geral da Bibliotheca do Curso Jurídico da cidade de São Paulo. Assinado por José Maria Avelar Brotero, diretor interino, em São Paulo, a 3 de setembro de 1844. Manuscrito. Catálogo das Obras Existentes na Bibliotheca da Faculdade de Direito. Assinado por J. B. Cardoso Drummond, em São Paulo, a 29 de outubro de 1865. Manuscrito. Inventário dos móveis existentes na Faculdade de Direito de São Paulo. Secretaria da Faculdade de Direito de São Paulo, 13 de abril de 1883 (volume relativo aos anos 1883, 1899, 1905, 1907, 1908, 1910, 1918, 1921). Diário da Bibliotheca Pública da Cidade de São Paulo. São Paulo, 15 de junho de 1839. Assinado pelo Dr. Clemente Falcão de Souza. 10 Fernando Mendes de ALMEIDA (org.), Catalogo da Bibliotheca da Faculdade de Direito de São Paulo em 1887, São Paulo, Typographia a Vapor de Jorge Seckler & Companhia, 1887. 11 A identificação do diretor e demais informações sobre a Academia no final do Império foram obtidas em Everardo Vallim Pereira de SOUZA, Reminiscências Acadêmicas – 1887-1891. Metamorfose da Paulicéia Provinciana em grande metrópole. In C. E. M. de MOURA, Vida Cotidiana em São Paulo no século XIX- Memórias, Depoimentos, Evocações, São Paulo, Ateliê Editorial, Fundação Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado e Secretaria do Estado da Cultura, 1998. O mais importante memorialista da Academia de Direito é Spencer VAMPRÉ, Memórias para a História da Academia de São Paulo, São Paulo, Saraiva, 1924. 12 Conforme atestam Everardo Vallim Pereira de Souza, Spencer Vampré e a Princesa Isabel, em seu Diário da viagem a São Paulo, que empreendeu em 1884. Desiludida com um exame de final de curso e doutoramentos que assistiu na Faculdade, escreveu: “Outra desilusão: que salas para aulas, e me dizem que o Pádua Fleury tem melhorado muito! A sala para biblioteca ficará muito bela; achei por lá o Artidoro, no meio de sua carvoeira de papéis do Arquivo”. In Diário da Princesa Isabel – Excursão dos Condes D’Eu à Província de São Paulo em 1884, organizado por Ricardo Gumbleton Daunt, e prefaciado por J. F. Almeida Prado. In C. E. M. de MOURA, op.cit. 9 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 9 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil Faculdade, o General Arouche, e possuía livros antigos, concentrados principalmente em História e Geografia. Pádua Fleury observa que o mesmo “estado de penúria” era lamentado pelo Conselheiro Vicente Pires da Motta, em 1881, quando este era Diretor da Faculdade, e que existia em 1887 uma disparidade entre o “ótimo prédio” (reformado por ele) e o acervo, desatualizado e generalista. Tal estado de coisas fazia com que o Diretor reclamasse maior atenção ao Ministro do Império. Na 4a Classe do catálogo, “Bellas Letras”, figura, no número de 3118, o exemplar da Comédia de 1520 (este número está escrito no colofão).13 Os dois números anteriores são outros dois exemplares da Comédia, franceses, de 1768 e 184614, que igualmente se encontram no acervo da biblioteca, e que no primeiro catálogo também não constam. Em 1824, a Comédia renascentista provavelmente não se encontrava no Largo de São Francisco; em 1844, lá estava e era a obra mais antiga do acervo. Outra indicação sobre a origem do exemplar pode vir das marcas deixadas no livro: existem anotações com quatro caligrafias muito distintas, sendo que a última parece ser a de quem assina a primeira página: Dom Luys de Mendonça, em tinta avermelhada. A mesma letra, no final do exemplar, parece ter assinado algumas notas em italiano sobre a Comédia. Enfim, serão necessárias mais algumas pesquisas para se saber mais sobre a origem de tão bela obra nos acervos brasileiros. Infelizmente, não existem mais documentos que atestem a entrada do volume com maior exatidão: o Arquivo da Faculdade ficou totalmente destruído num incêndio, em 1887, de causa criminosa, mas nunca totalmente esclarecida. Depois de 1824, e antes de 1844, a Comédia renascentista entra na biblioteca nos tempos “heróicos” da Academia, quando Júlio Franck e Líbero Badaró lideravam os estudantes e os jovens poetas românticos cruzavam o pátio do São Francisco. Muitos nomes importantes das letras e políticas brasileiras passaram pelas Arcadas; foi o caso de Salvador de Mendonça, jovem fluminense que se tornaria, mais tarde, um diplomata de renome, e integrante da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira do F. M. de ALMEIDA (org.), op.cit., p. 265. Neste catálogo, todas as inscrições do volume foram transcritas no título. Naquela época, já era difícil ler o nome do editor; as letras estão desgastadas, e messer Bernardino virou, no catálogo paulista, miser Bernardino Stagnino da Crino de Monferra. 14 Dante A LIGHIERI, La divina Commedia, Paris, Apresso Marcello Prault, 1768, e La divine comédie, Traduit en français par Artaud de Montor, Paris, Librarie de Firmin Didot frères, 1846 . 13 10 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil patrono Joaquim Manuel de Macedo. Um dos redatores do Manifesto Republicano, em 1870, Mendonça deixaria de herança um outro exemplar renascentista da Comédia no Brasil.15 Salvador de Mendonça, depois de ter sido cônsul do Brasil em Baltimore e Nova York, foi ministro do país em Washington e Lisboa. Após sua morte, em 1913, sua biblioteca foi doada para a Biblioteca Nacional. Mas um livro raríssimo parou em outras mãos. Na Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, existe um exemplar da primeira edição florentina da Comédia, de 1481, com dezenove gravuras em cobre, sendo duas impressas no texto (ilustrações relativas aos Cantos I e II do Inferno), e outras dezessete impressas posteriormente e coladas no livro. O Catálogo da Biblioteca de Rui Barbosa16 destaca que o livro é um “Precioso incunábulo biblio-iconográfico. É a primeira edição do comentário de Cristophoro Landino e notável principalmente como paleotipo iconográfico. Depois da obra de Bettini da Siena, ‘Monte Sancto di Dio’, 1477, cujas figuras são dos mesmos artistas, e da ‘Cosmographia’ de Ptolomeu, 1478, com 27 cartas geográficas, gravadas sobre metal, é o mais antigo livro ilustrado com figuras em talho doce”. O Catálogo afirma que a autoria dessas gravuras é de Baccio Baldini, importante gravador florentino em atividade em Florença nas décadas de 1470, 80 e 90, autoria hoje contestada. O exemplar traz algumas notas feitas à mão, assinaturas de dois antigos proprietários, e uma indicação a lápis, em inglês, que parece ser de uma livraria. Os funcionários da biblioteca explicitam, no catálogo, a origem do livro, um presente dos herdeiros de Salvador de Mendonça a Rui Barbosa. Uma cópia datilografada de uma carta depositada nos Arquivos da instituição atesta essa origem; trata-se de uma carta de Valentina de Mendonça, filha do diplomata, a Americo Lacombe, diretor da Casa de Rui Barbosa em 1947. A seguir, a íntegra da carta17: J. GALANTE DE SOUSA, Salvador de Mendonça. In A. COUTINHO & J. GALANTE DE SOUSA. Enciclopédia de Literatura Brasileira, vol. II, São Paulo, Global, Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, 2001. 16 Catálogo da Biblioteca de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1951, vol. 2, pp. 295-296. 17 Carta de Valentina de Mendonça ao Diretor da Casa de Ruy Barbosa, datada de 14 de novembro de 1947. Arquivo Histórias da Casa, Fundação Casa de Rui Barbosa. Cópia datilografada pertencente à Biblioteca Fundação Casa de Rui Barbosa. 15 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 11 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil Embaixada Americana Rio de Janeiro 14 de novembro de 1947 Exmo. Snr. Americo Lacombe M. D. Director da Casa Ruy Barbosa. Prezado Snr: Quem lhe dirigi estas linhas é a filha de Salvador de Mendonça. Tendo lido ha dias no Jornal do Brazil, um artigo sobre a visita de Sua Excellencia o Presidente Dutra á Cas a Ruy Barbosa, e no qual menciona a edição rarissima de Il Dante, achei que V.S a. talvez se interessaria saber como o grande Mestre obteve esse folio, illustrado com gravuras de página inteira de Botticelli. Quando meu pae faleceu, em 1913, eu e meus irmãos resolvemos presentear o Dr. Ruy com uma obra, á sua escolha, dentre os livros que compunham a bibliotheca de Salvador de Mendonça. Enviamos-lhe o catálogo e Dr. Ruy escolheu esta edição do Dante. Mandamos o folio immediatamente á residencia delle. No dia seguinte D. Maria Augusta Ruy Barbosa veio á nossa casa na Gavea, trazendo o Dante de volta e dizendo que o Dr. Ruy não podia de modo algum aceitar uma obra daquelle valor. Respondemos que a escolha do Mestre era a nossa e que o Dante veiu somente dar um passeio na Gavea. Mais tarde, ao receber-nos em sua casa, Dr. Ruy nos conduziu primeiro á sala da bibliotheca principal, depois nos levou por um corredor aonde havia, uma coleção da Vida dos Presidentes dos Estados Unidos a elle presenteado por meu pae quando Ministro do Brazil em Washington. “Agora” disse, “aqui é o sanctuario” e lá nos mostrou o Dante, em uma vitrine do tamanho do grande folio aberto, mostrando uma das gravuras pagina inteira. Este folio, naquelle tempo, foi avaliado em 600 contos. Ficamos satisfeitos em saber que o livro estava em boas mãos, e agora, que ficou para o nosso Governo. Meu pae já havia doado mais de 4 mil livros raros á Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. Sem mais, Creia-me, Atenciosamente, Valentina de Mendonça. Para além do interesse no caso particular (um retrato um tanto quanto bemhumorado) de Rui Barbosa, é interessante registrar o desejo de uma integrante da família do diplomata em retificar a reportagem, por se tratar de tão raro exemplar. O livro está em excelente estado de conservação, e pode-se ler as linhas de Cristoforo Landino sem 12 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil nenhuma dificuldade. As gravuras coladas parecem ser fac-similares das produzidas na oficina florentina, mas seguem o padrão original. Giuliano Mambelli18 informa que esta edição, rara, sofreu com as precárias técnicas de seu tempo e com as vicissitudes do trabalho artístico: “L’edizione doveva avere un’incisione per ogni canto del poema e perciò al principio di ogni canto vi è uno spazio lasciato in bianco dove la incisione si doveva stampare. Il lavoro era stato commesso al Botticelli per il disegno e al Baldini per l’incisione. Ma procedendo gli artisti più lentamente che lo stampatore, ne avvenne che soltanto le prime due figure, per i primi due canti dell’Inferno, si poterono tirare sulla carta insieme al testo. Le altre vennero tirate a parte su altra carta, e si incollarono poi a proprio luogo suoi fogli già stampati. Questo spiega il perché non tutti gli esemplari abbiano lo stesso numero di incisioni”.19 O próprio Landino, ao oferecer o livro à Signoria de Florença, encomendou miniaturas para colar nos espaços em branco, e tal exemplar hoje pertence à Biblioteca Laurenziana. Mambelli lista as bibliotecas italianas, européias e norte-americanas que possuem a edição: a maior parte apresenta apenas as duas gravuras feitas no texto. Acompanhar a história das primeiras edições da Comédia é observar como a prensa, herança de Gutemberg, estabeleceu-se na Itália na segunda metade do Quattrocento e aos poucos dominou o mercado de livros. No caso de Dante, o fato de a primeira edição ser veneziana ocasionou, como se viu, grandes repercussões na terra natal do poeta, Florença; a resposta do círculo neoplatônico florentino não poderia ter sido mais espetacular, com gravuras sobre desenhos de Botticelli, o grande nome da pintura da cidade de então, e comentários de Landino e Ficino. Veneza, porém, contra-atacou em 1502, com a edição do célebre editor Aldus Manutius, que contava com o comentário do humanista e mais tarde Cardeal Pietro Bembo. Bembo propôs uma nova abordagem do poema dantesco, e, de posse de versões diferenciadas do poema, uma nova compreensão do italiano utilizado por Dante. Profundo conhecedor do latim e admirador sem reservas de Petrarca, Bembo retirou do texto de Dante impurezas, corruptelas que teriam sido criadas em dois séculos de cópias manuscritas. Para Bembo, a língua italiana seria uma ampliação e melhoramento do 18 19 Giuliano MAMBELLI, Gli annali delle edizioni dantesche, Bolonha, Nicola Zanichelli, 1931. MAMBELLI, op. cit., p. 18. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 13 Paula F. Vermeersch – Duas edições renascentistas da Divina Comédia no Brasil toscano; o debate lingüístico em torno da obra dantesca permaneceria um problema até o século da unificação da nação. 20 Bernardino Stagnino da Trino, de importante família de editores piemonteses, especializou-se em trazer ao público obras jurídicas, médicas e filosóficas, e estabeleceu-se em Veneza a partir de 1483, aproximadamente. Mas, em 1512, ofereceu ao público letrado italiano uma edição “mista”: o poema de Dante, estabelecido pela filologia de Bembo, foi editado com o comentário de Landino, aumentado e corrigido por Pietro Figino, “eccelente predicattore di ordine minori”. As anotações de Figino haviam sido retiradas da edição Benali/Codecà de 1492. Tal operação faz com que a edição de Stagnino possua algumas discrepâncias entre o texto e o comentário, nota o site Dante Renaissance on Print21, que ainda traz a seguinte observação: “Little care seems to have gone into Stagnino's editions of Dante, excepting the finely executed woodcuts”.22 Finalmente, sobre a edição de 1520, paulistana, Mambelli afirma que o in-fólio “in quarto”, com incisões em madeira, figura nas bibliotecas das cidades do norte da Itália e foi vendido, em 1927, por 1100 liras em Roma. Consultar o verbete BEMBO, PIETRO, em John HALE (ed.), Dicionário do Renascimento Italiano, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p. 51. 21 http://www.italnet.nd.edu/Dante. 22 Site citado acima. 20 14 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 5-14 Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna. André Tavares * 1. Introdução. [...] o desenho é, na realidade, mais uma caligrafia, mais um processo hieroglífico de expressar idéias e imagens, se ligando por isso muito estreitamente às artes da palavra, poesia e prosa. Mário de Andrade em Pintor Contista, 1939. 1 O texto que apresentamos nesta ocasião aos nossos leitores vem a propósito de delinear, de maneira mais precisa, porém sucinta, o âmbito de nossas investigações no âmbito do Centro de Estudos de História das Artes no Brasil e que constituem o objeto do doutoramento em Artes que levamos a cabo neste momento. Tratamos, aqui, das relações entre escritores e artes plásticas entre os anos 1890 e 1930. Essas, naturalmente, podem ser de variada natureza: o homem de letras crítico de arte, encarnado de modo perfeito, entre nós, na figura incontornável de Gonzaga-Duque; autores e literatos que, sem dedicar-se à crítica militante propriamente dita, ocupam-se, vez por outra, de traçar perfis de artistas de destaque ou de exposições de destaque no momento, como no caso de Coelho Netto; escritores que, combinando as habilidades, passam de um a outro campo deixando atrás de si um legado proteiforme e que, não raro, deixam entrever personalidades mais complexas * Doutor em Historia Social e Mestre em História da Arte e da Cultura (IFCH-UNICAMP). Pesquisador do Centro de Estudos de História das Artes no Brasil (CEPAB), IA-UNICAMP. 1 Mário de Andrade, O empalhador de passarinho, São Paulo, Martins Editora, 1972, p. 53. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 15 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna e facetadas. São estes últimos, os sacudidos pela indecisão da escolha dos meios expressivos, aqueles que nos interessam. Estes escritores-artistas, se não chegam a constituir uma grande tradição entre nós, são, por outro lado, uma recorrência no panorama cultural brasileiro. O rol dos que se dedicaram à expressão gráfica, à pintura, à caricatura, à ilustração esporádica ou, mesmo, à formação acadêmica propriamente dita, encontraria um bom nome para encabeçá-lo na figura de Aluísio Azevedo. O autor de O Cortiço, Casa de Pensão ou O Mulato, antes de dedicar-se às literatura, daria início a uma educação artística formal, transferindo-se do Maranhão natal para o Rio de Janeiro com o objetivo de matricular-se nos cursos oferecidos pela Academia Imperial de Belas-Artes. Segundo juízo de Brito Broca, Azevedo valia-se do desenho e das suas habilidades artísticas para esboçar e fixar, antes da organização do texto literário, os caracteres nascentes de seus personagens ou, mesmo, para apontar de modo um pouco mais preciso detalhes da sua composição. É dizer, o desenho funcionaria como instrumento auxiliar do escritor. Dos relacionamentos ou amizades iniciados neste período, talvez o de maior interesse seja, para nós, o laço que se forma entre Aluísio e Émile Rouède, o artista plástico francês lembrado por GonzagaDuque na Arte Brasileira como personalidade excêntrica, boêmia. E de fato, com Rouède passará o oposto, ou seja, de artista converte-se em crítico de arte, com artigos publicados no Brésil Républicain, em 1894, mas, antes disso, aparece sob a pele de autor teatral publicando, em parceria com Aluísio Azevedo textos dramáticos na década de 1880. Seguindo a linha do tempo, o próximo destaque de nossa lista de escritores-artistas seria, inevitavelmente, Raul Pompéia. As ilustrações delicadas e o traço leve das figuras que compõe para o Ateneu, publicado em 1888, são conhecidos de todos os interessados pela literatura brasileira do século XIX. Integrar os seus desenhos numa corrente geral de produção artística seria trabalho instigante, assim como o levantamento de suas caricaturas e ilustrações publicadas em diversos jornais e periódicos. À maneira de Aluísio Azevedo, em Raul Pompéia, a ilustração complementa a caracterização das personagens, mas, desta vez, o autor-desenhista, ele mesmo, estabelece a conexão das imagens e o fluxo da narrativa que compõe. No caso do Ateneu e de seu autor, de trágica biografia, os desenhos guardam certo caráter melancólico, típico, talvez, do tom de memória dolorida que perpassa toda a narrativa. Impossível esquecer a figura delicada que elabora para Ema ou o perfil autoritário do intransigente Aristarco. Há, nestas ilustrações, poder de sugestão que extrapola o do 16 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna desenhista de pretensões estritamente demonstrativas. A memória afetiva do autor parece comandar a sutileza do seu traço. Pelos anos 1920 aparecerá uma safra de brilhantes autores-artistas, de repertório visual renovado e com uma “agenda” diferenciada: a modernização do traço pela via “futurista” ou pelo apego a um primitivismo estilizado ganha campo, substituindo as tendências Art Nouveau e os últimos laivos de um Simbolismo que se manifestava em formas de extrema fluidez e temática mística. Desta nova safra, destacaríamos Pedro Nava, com ilustrações para Austen Amaro (Juiz de Fora, Poema Lírico, 1925) e para o Macunaíma (oito desenhos concluídos em setembro de 1929) de Mário de Andrade, Patrícia Galvão (Pagu), com suas irreverentes garatujas e charges de puro non-sense ou, figura que mereceria um estudo à parte pela extensão de suas atividades, Menotti del Picchia. Este último, além da pintura e do desenho, cultivaria a escultura como forma de manifestação artística. Menotti extrapola o limite da ilustração servil ou das prescrições de um texto qualquer que seja. Alcança uma autonomia que não veremos em Nava ou, mesmo, mais adiante, em Cecília Meireles, cuja obra de desenhista bissexta vai casar-se com seus interesses de folclorista ou de educadora das sensibilidades. Sua conhecida série de desenhos, alguns verdadeiramente brilhantes, inspirados nos costumes africanos dos negros cariocas é o exemplo definitivo deste impulso. Pedro Nava, pintor bissexto, para utilizarmos sua expressão, deixou, além dos trabalhos já mencionados e de telas executadas à imitação de seus artistas favoritos – Portinari ou De Chirico, por exemplo – ilustrações feitas para a Revista Estética, de 1924, e para o Roteiro Lírico de Ouro Preto, livro de Afonso Arinos de Mello Franco. Além disso, Nava organizou, através do desenho, um verdadeiro “inventário” da sua “matéria de memória”, desenhos de pessoas conhecidas, tipos curiosos e registro de ambientes marcados pelas suas expansões afetivas, que viria a servir como apoio na composição de seus livros, todos marcados pela minúcia na reconstituição do passado. Para suas obras, aliás, criou capas lançando mão de colagens fotográficas que foram cuidadosamente reproduzidas por seus editores. A mais recente edição de suas memórias, embora traga encadernações neutras, sem outro requinte discreto que o da tipografia em branco sobre o fundo em uma só cor (azul ou ferrugem, por exemplo) conserva, na parte interna das capas, uma reprodução fotográfica destas montagens originais, significativas para a compreensão da sensibilidade artística do autor. As Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 17 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna habilidades de Nava ilustrador mereceriam um capítulo de Monique Le Moing, quando a autora francesa organizou seu livro A Solidão Povoada2, sobre o memorialista mineiro. Além de Cecília ou de Menotti del Picchia, outro crítico e escritor passaria às artes plásticas com resultados de valor estético considerável: trata-se de Sérgio Milliet. Autor de obra vasta – seus dez volumes do diário crítico atestam sua envergadura como intérprete de seu ambiente cultural – Sérgio Milliet é autor de paisagens que, em muito, lembram os resultados obtidos pelos pintores do grupo Santa Helena. Do mesmo modo, poderíamos destacar Jorge de Lima, poeta e romancista de grande força criativa, que nos deixou, além de desenho e pintura, as famosas colagens fotográficas de sabor surrealista, além de um romance em que trataria das angústias dos jovens artistas de sua época: Guerra dentro do Beco. Nem sempre tocados por este impulso radical e algo marcado pela curiosidade experimental, alguns outros autores apresentariam tra balho artístico delicado e mais atento aos propósitos do texto e da ilustração como tradicionalmente compreendida. É o caso de Luís Jardim3, romancista pernambucano premiado por seu Maria Perigosa, mas famoso, também, como autor de livros infantis por ele mesmo ilustrados. Um exemplo extremo de escritor que se converte em artista, mas, neste caso, com implicações e motivações de natureza diversa, seria o de Lúcio Cardoso. O escritor vigoroso, criador das imagens de pesadelo de O Desconhecido , de A professora Hilda ou de Inácio revelar-se-ia um desenhista de linhas nervosas e um autor de paisagens que, arrancadas da memória do interior opressivo de Minas Gerais, viriam ajustar-se perfeitamente ao tom menor de suas narrativas e ao ritmo alucinante com que conduz o seu texto. Lúcio Cardoso desenhará por um longo período, deixando, principalmente, paisagens, mas, também, esquemas, esboços como o que fez para a Crônica da Casa Assassinada apresentando o cenário em que a narrativa deveria desenvolver-se. Como resultado, esta “planta” da Fazenda, cenário principal do romance, assemelha -se aos levantamentos e prospecções afetivas de Pedro Nava, que recolhia em cadernos reconstituições minuciosas, reduzidas por fim a desenho, de ambientes, mapas de trechos de bairros, imagens das casas que freqüentava, das pessoas que conhecia, tudo isto 2 Monique LE MOING, A Solidão Povoada – Uma biografia de Pedro Nava, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996. A esse respeito, ver o já mencionado artigo Pintor Contista, de onde retiramos nossa epígrafe, publicado por Mário de Andrade em 21/05/1939 e, mais tarde, incluído na coletânea O empalhador de passarinho, São Paulo, Martins Editora, 1972, pp. 53-57. 3 18 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna reutilizado, mais tarde, no grande mural formado pela sua obra memorialística. Em Lúcio, o impulso do catalogador é menos forte do que o desejo de sugerir o efeito do ambiente e a importância da descrições da paisagem deste interior mineiro desolado sobre o caráter de seus personagens e a condução da história para o desfecho muitas vezes trágico e inevitável. Sucedeu que, ao fim dos anos cinqüenta, o autor sofreria um derrame que o impossibilitaria de continuar a escrever. Deixará inconcluso o romance O viajante, uma continuação, ou, ao menos, um pendant à Crônica ... e passará a desenhar com mais freqüência. Com parte do corpo imobilizado, vemos a personalidade enérgica esforçar-se para transmitir aos seus desenhos, manchas em nanquim ou tinta a óleo, algo da energia que aplicara antes ao processo de criação literária. Esses desenhos, depositados junto ao acervo pessoal do autor no Museu da Casa de Rui Barbosa, são o testemunho trágico deste desenlace, da dissolução, não há outro termo, de uma das mais singulares individualidades artísticas do século XX no Brasil. Alguns desses desenhos tardios foram publicados, posteriormente, em edições do romance Maleita, o primeiro a ser escrito por Cardoso (1935), dadas a público pela Ediouro. São, porém, edições que, pelo pouco cuidado gráfico, retiram o potencial valor que estas ilustrações e desenhos, impregnados pela circunstância trágica que as engendrou, poderiam alcançar. É também de Lúcio Cardoso a capa para o Vol. 10 da Tragédia Burguesa de Otávio de Faria, o romance A sombra de Deus. Ligados por afinidades estilísticas e pelo tom confessional e subjetivo de seus romances, Cardoso, Faria e, também Cornélio Penna, centro de nossas atenções na análise que se segue, formariam o que seria a tríade máxima do romance de sondagem psicológica, ao menos até os anos quarenta, entre nós. Em Cornélio Penna, entretanto, a atividade de ilustrador antecederia a de romancista e, em alguns aspectos e temas, anteciparia as realizações da carreira literária, dando materialidade aos ambientes soturnos e às personagens enigmáticas que começariam a ser delineadas no primeiro romance, Fronteira, a partir de meados dos anos 30. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 19 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna 2. Os mundos de Cornélio Penna. Cornélio parecia um homem desembarcado por engano neste planeta. Num século que pretende nivelar em tom cinzento a indistinta massa humana, ele pertencia ao número dos que representam algo de excepcional. Murilo Mendes, em seus Retratos-Relâmpago. Nascido em Petrópolis no ano de 1896, Cornélio Penna seria, porém, marcado pelo ambiente espiritual mórbido e tradicional, místico e um pouco divorciado do mundo real que encontrou na infância em Itabira, Minas Gerais. Essa infância no interior da província é sempre lembrada como matriz das imagens, temas e mesmo personagens que viria a utilizar em algumas de suas realizações. Não há exagero em ressaltar este apego, como fazem Afrânio Peixoto ou Adonias Filho, ao espírito que o imantou na estadia mineira. Chega a dedicar Dois Romances de Nico Horta, o segundo livro que publicou, à cidade querida, apresentada como sua amiga mais cara na abertura da obra. O caso mais radical, porém seria mesmo Fronteira que teria seu tema extraído de uma história verdadeira passada em Itabira e que envolvia uma personagem inusitada, uma mística chamada Maria Santa. Sua educação é levada a cabo, em parte, no Colégio Culto à Ciência de Campinas (SP) onde veio viver a família em princípios do século XX. Diploma-se em Direito, como aluno medíocre, na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1919, mas passa a viver do jornalismo e da atividade de ilustrador e pintor. Trabalha, de volta ao Rio de Janeiro, como redator nos jornais Gazeta de Notícias, A Nação e O Jornal. Realiza a única exposição de seus trabalhos – pinturas desenhos e ilustrações – na Associação dos Empregados do Comércio, no Rio de Janeiro, em 1928. Publica seus livros, definindo uma nova área de interesses, entre 1935 e 1954, desenvolvendo e apurando o mecanismo da análise introspectiva e psicológica em cada uma de suas obras. Dos capítulos mais curtos e de sabor impressionista de Dois Romances de Nico Horta (1939) e Repouso (1948), vemos seu estilo desenvolver-se no sentido da expressão de ampla envergadura, culminando na metáfora da decadência e desagregação da sociedade aristocrática do interior fluminense representada por A Menina Morta (1954), sua realização maior e compêndio de seu processo criativo. Inacabado deixaria o romance Alma Branca, publicado como anexo à edição dos romances completos que mereceu da editora José Aguilar em 1958. Sob sua técnica e habilidades, 20 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna podemos lembrar o juízo de Afrânio Coutinho registrado na Enciclopédia da Literatura Brasileira: Dotado de singular capacidade de análise introspectiva, criou personagens de grande realismo e complexidade, situando-os, além do mais, em ambiente de densa atmosfera, soturnos, próprios ao desenrolar dos enredos e episódios que narra numa linguagem seca, objetiva e direta. Seus romances possuem grande significação simbólica, situando-se na zona de “fronteira” em que se procura fazer sondagens sobre o mistério da vida, das pessoas, dos 4 fatos. A atmosfera de sonho que se desprende de seus textos é apenas parte de um caráter complexo e marcado por força criativa excepcional. Sob a gênese de seus romances, assim se havia manifestado, em entrevista ao também escritor João Conde, publicada nos seus Arquivos Implacáveis: [...] desde que me conheço, ouvia histórias de Itabira, de Pindamonhangaba e das fazendas dos meus avós e tios, contadas de forma interrompida, desconexa, cercadas pela mais suave discrição que já me foi dado contar, contadas por minha mãe. Eu guardava tudo com avidez, sem demonstrar como era funda a emoção que me provocavam aqueles episódios sem uma 5 ligação evidente entre eles, que eu recolhia e depois ligava com um fio inventado por mim. Sua personalidade extravagante foi fixada através de séries de artigos ou referências literárias, unânimes ao destacar seu caráter arcaizante, sua paixão pelas relíquias familiares, móveis antigos ou seu intransigente apego ao passado, seja aquele da memória infantil, dominada pela lembrança de uma Itabira fantástica, matizada de cores afetivas, ou o da monarquia banida e à qual pertenceu fiel (“Era mesmo das baronesas”, como no Retrato elaborado por Murilo Mendes). Marques Rebelo, em seu conto A árvore, página em que evoca o bairro de Laranjeiras, o inclui entre os personagens típicos daquele canto do Rio de Janeiro, passeando “o quanto pode” pelas ruas do bairro, apoiando-se ao braço da mulher, 4 Afrânio COUTINHO (dir.), Enciclopédia de Literatura Brasileira (2 vols.), São Paulo, Global, 2001, Vol. 2, p.1234. ADONIAS F ILHO , Romances da Humildade, introdução aos Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, pp. XXXIX- XL. 5 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 21 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna companheira de toda a vida.6 A sua casa-mausoléu, espécie de cenário montado com o fim de reforçar esse caráter sombrio e original que o acompanhava, seria descrita por Lêdo Ivo com minúcia e sensibilidade num texto cujo efeito é o de um conto gótico ou das descrições soturnas de um Adelino Magalhães: A casa onde reside Cornélio Penna, em Laranjeiras, dá frente para a rua, e, com a sua alta porta de madeira pintada de escuro, cor de bronze antigo, lembra logo um pequeno convento. Para essa impressão, muito contribui o estar sempre de janelas cerradas, bem como o seu ar de recolhimento e de silêncio, no meio das outras residências ruidosas e muito abertas. O grande vitral que nos surge logo aos olhos, com duas figuras graves, de olhar sereno, aumenta a sensação de paz e de longitude, que os móveis sombrios, os papéis de cores discretas, a grande 7 quantidade de quadros de pinturas de tons velados e os enormes retratos de família acentuam. Mário de Andrade dedicaria a ele, mais especificamente na ocasião do lançamento de Dois Romances de Nico Horta, o artigo Romances de um antiquário.8 Também neste título transparece a figura do autor dedicado a revolver o passado, recolhido entre seus leques, relógios ou salvas de prata do tempo do rei. Este o perfil de Cornélio pelo autor de Macunaíma : Alma de colecionador vivendo no convívio de objetos velhos, Cornélio Penna sabe traduzir, como ninguém entre nós, o sabor de beleza misturado ao de segredo, de degeneração e mistério, que torna uma arca antiga, uma caixinha-de-música, um leque, tão evocativos, repletos de sobrevivência humana assombrada. Se sente que seus os romances são obras de um antiquário apaixonado, que em cada objeto antigo vê renascer uns dedos, uns braços, uma vida, 9 todo um passado vivo, que a seu modo e em seu mistério ainda manda sobre nós. 6 “Viam Cornélio Penna, enquanto pode, passeando ao sol com passos trôpegos, firmando-se no braço da esposa dedicada e na mão invisível do Salvador, que o empolgou, afinal, para tê-lo eternamente junto ao seu seio amantíssimo”. In Marques REBELO , A Árvore, incluído em Os Melhores Contos de Marques Rebelo, São Paulo, Global, 1984, pp. 122-123. 7 Depoimento a Lêdo Ivo publicado originalmente n’O Jornal, em 23 de maio de 1948 e mais tarde incluído nos Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, p. LIII. 8 O artigo de 24/09/1939 foi publicado, mais tarde, no volume O empalhador de passarinho, ed.cit.. 9 Mário de ANDRADE, op. cit., p. 124. 22 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna A estréia como romancista em 1935, com Fronteira, abre caminho para uma série de novos romances, inaugurando – ou, ao menos, reinventando – uma tradição que será desenvolvida até os limites da hipersensibilidade por Lúcio Cardoso (este também um envenenado pela influência má do passado e da bile negra dos mineiros), por Otávio de Faria e sua Tragédia Burguesa, mas, também, por personalidades menos lembradas como o Ascendino Leite de A Viúva Branca e Salto Mortal, Breno Accioly de João Urso ou Cogumelos e, mesmo, em certo clima sobrenatural que Antônio Olavo Pereira imprime ao fim de seu romance Marcoré. O clima opressivo do interior desolado do país, o peso da tradição e dos antepassados, a descrição impressionista e sugestiva dos ambientes, sua influência no caráter das personagens cujas vidas parecem conduzir-se por fios invisíveis podem ser identificados até em certos momentos da primeira Clarice Lispector, em obras como o Lustre ou Cidade Sitiada. Os adjetivos assombrado, misterioso ou nublado são recorrentes na descrição de seu estilo. O próprio autor, demonstrando possuir senso de auto-ironia e bom humor, assim diria a João Condé sobre este ponto: “Sobre Fronteira, alguém disse que era um romance de Boris Karloff, e eu achei que tinha razão”.10 A predileção pelos dramas de alma irreconciliáveis, pela análise psicológica ou pelas personagens tão ricas de vida interior quanto tocadas por lampejos de loucura são lembradas como essenciais na construção de suas narrativas, pontos distintivos, mas também, fonte de falhas estruturais, principalmente quando convertidos em fórmulas ou truques recorrentes: Não posso realmente concordar com o romancista no processo de repetir truques de mistério já usados no romance anterior. Em Fronteira surgia um viajante, ser misterioso que aparece e desaparece, espécie de símbolo intangível, que o romancista fez questão em não nos explicar quem era. [...] Da mesma forma, neste romance novo, surge a horas tantas uma Ela que aparece e desaparece, e não tem por onde se lhe pegue. [...] A mim me parecem truques de mau gosto, cujo valor poético relativo só serve para dispersar a intensidade nuclear dos seus 11 romances. 10 11 João CONDÉ, apud ADONIAS F ILHO , op.cit., p. XLI. Mário de ANDRADE, O empalhador de passarinho, ed. cit., pp. 123-124. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 23 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna Fronteira é baseado em caso real presenciado por Cornélio Penna durante sua estadia em Itabira do Mato Dentro durante a infância. Apesar de seus exageros e nebulosidades, apesar do seu gosto pelo estudo dos anormais e mesmo do metapsíquico, o princípio psicológico de que Cornélio Penna se utiliza vem lembrar aos nossos romancistas a hipótese riquíssima de dois e dois somarem cinco ou três. E esta me 12 parece a contribuição principal deste romancista. Ao texto inovador de Fronteira seguir-se-iam Dois Romances de Nico Horta e Repouso, etapas em que burilaria as histórias que colecionara em seu íntimo dando a elas a forma de romances escuros, até então organizados em capítulos curtos. Sua obra, máxima, porém, será A Menina Morta, obra-prima do gênero de romance fantasmagórico e noturno que refinou ao extremo. O insólito do tema – a desagregação de uma família aristocrática no Vale do Paraíba vista através da movimentação ao redor das exéquias de uma criança defunta – soma-se à história da criação do próprio romance: a inspiração derivava de um retrato de uma parenta (Zeferina, sua tia por parte de mãe) morta ainda menina e que o autor conservava em sua casa. Neste romance, Cornélio Penna expande seu texto, segurando por mais tempo, com mão de mestre, o leitor perplexo. A trama aparece adensada, os capítulos mais extensos. Ao comentar a intimidade do autor com os objetos antigos e ao culto do seu passado, assim escreve Murilo Mendes, não sem a habitual dose de humor soturno: O símbolo máximo era obviamente o quadro grande da menina morta (sua tia Zeferina), pintado no século passado por um francês residente no Brasil que lhe daria a matéria de um livro. A mudança de Cornélio para outra casa era sempre condicionada ao ajustamento desta tela à parede da sala de jantar. Vi-o rejeitar uma bela casa em Botafogo, onde o espaço é o primeiro elemento funcional, onde se contacta a natureza, onde os marginais recebem títulos de cidadania: desses sobrados com delicioso jardim e pomar, hoje extintos. Hélas! Não cabia na 13 sala o quadro favorito, objeto feérico de sua paixão. 12 13 Mário de ANDRADE, op. cit., p.123. Murilo MENDES, Retratos-Relâmpago. In Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2000, p. 1218. 24 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna A relíquia familiar deu ensejo à criação de sua obra mais significativa. Apesar do sucesso de seu procedimento e da acolhida favorável da crítica, Cornélio Penna sempre posicionou-se um pouco fora dos holofotes e das discussões mais aferradas. Assim contava a João Condé, respondendo a uma pergunta sobre o juízo que, eventualmente, faria do movimento de 22: Não julguei na época e não julgo hoje o modernismo, porque não conheço os movimentos literários e penso que eles agem e influem fora da literatura. [...] De resto, leio apenas para não 14 pensar, para esquecer a vida e não para refletir sobre a literatura e fazer juízos paralelos. O autor mereceu, em princípios da década de 1980, uma exposição intitulada “Os dois mundos de Cornélio Penna”, iniciativa da Fundação Casa de Rui Barbosa, depositária de seu acervo pessoal. O catálogo, assinado por Alexandre Eulálio, converteu-se na referência maior para a análise do trabalho de C. Penna como artista gráfico e pintor. Nesse texto, publicado posteriormente na Revista Discurso (FFLCH/USP, 1981) bem como no volume Escritos (Ed. UNICAMP), Alexandre Eulálio tratava de esclarecer possíveis fontes visuais, modelos de figuração, para o estilo fantástico das imagens elaboradas pelo autor de A Menina Morta. Seu parecer era de que em Cornélio Penna, pintura e literatura constituíram as formas artísticas que, nessa ordem, o criador relutante aceitou a assumir a fim de dar expressão a um mundo pessoal torturado e sombrio. Embora duvidasse muito da eficáci a da própria atitude, sempre a oscilar entre a inutilidade de cada gesto e o arrebatamento interior, o artista acaba por aceitar o caminho da 15 invenção. Se, ainda na faculdade de Direito, iniciara-se nas letras com pequenas lendas e narrativas curtas dentro de filiação simbolista, seria na imprensa que sua personalidade artística ganharia espessura. Nesta etapa, o artista gráfico passaria à frente do escritor, apurando sua técnica e definindo seu campo de interesse temático. A esta altura, 14 Ver ADONIAS F ILHO em Romances Completos, ed. cit., p. LII. Alexandre E ULÁLIO , Os dois mundos de Cornélio Penna. In Revista Discurso, São Paulo, FFLCH/USP, 1981, pp. 29-48. Esta citação, p. 29. 15 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 25 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna executa [...] caricaturas políticas, apontamentos esquemáticos, desenhos vários, em que o lado grotesco do dia-a-dia vence a anotação por vezes lírica apanhada ao vivo: cenas de rua, 16 comentários de porta de bar, ridículos e mesquinheza da pequena-burguesia. Sua ativida de, porém, foi além da caricatura e da ilustração de pequenas histórias publicadas nos jornais e revistas da moda. Trabalhou, ainda, como um proto-designer, compondo modelos tipográficos “modernos”, é dizer, com letras geometrizadas e arrojadas para letreiros de lojas que desejassem para si um perfil e imagem inovadores. A exposição de 1928 aparece como uma conseqüência natural do prestígio crescente que seus desenhos vinham alcançando. Os estímulos dos amigos e fãs dedicados acaba m entusiasmando o autor, o que é de causar espécie dado o caráter retraído que vinha cultivando até então: Já animado com o que me diziam alguns amigos, resolvi fazer uma exposição individual, o que realizei graças ao espírito empreendedor de Dona Nini Gronau, e o Sr. Teodoro Heubergerm que contou com o patrocínio do Ministro da Alemanha em nosso país, o Sr. Hubert Knipping, fizeram tudo para que esse desejo se tornasse uma realidade. Em 1928 foi inaugurada minha única exposição, e consegui vender alguns quadros [...]. O catálogo foi escrito pelo Sr. Augusto 17 Frederico Schmitd [...]. Em 1929, porém, mesmo após o sucesso de sua exposição e o continuado apoio manifestado pelos fãs de seu desenho nervoso e do cinismo sutil com que impregnava alguns de seus sketches mais bem-sucedidos, Cornélio Penna decide subordinar, pela deficiência na transmissão plena do conteúdo emocional que deseja comunicar, o desenho à escrita, publicando seu acerto pessoal de contas com o universo artístico e resolvendo, através da atitude radical, a indecisão, a dúvida na escolha exata do meio de expressão consoante com seu gênio, a que vinha se submetendo. Assim, atingindo um paroxismo insuportável para o mesmo artista, sem no entanto provocar no espectador a ânsia de absoluto que nele gostaria de incutir, Cornélio Penna julga frustrada a 16 Alexandre E ULÁLIO , op. cit, pp. 29-30. Depoimento a Lêdo Ivo, em A vida Misteriosa de Cornélio Penna, Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, p. LX. 17 26 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna própria obra, que passa a considerar um equívoco. [...] Procurando libertar-se com tristeza, mas de modo definitivo, de um sofrimento que parece não levar a coisa alguma, Penna assume para si mesmo que o abandono da pintura é a única solução para o dilema. A pintura deixará portanto (afirma) o principal meio de expressão do mundo interior dele. Em lugar adota a pintura – arte do tempo, não do espaço, arte que afinal constituía o seu outro mundo – , que a partir daí se torna o sangradouro dessa represa que ameaça aluir por excesso de tensão 18 dinâmica. O desenho parece ter sido, até aí, o veículo. Passando ao romance, adotaria um estilo sugestivo, marcado pelas impressões vagas e pelo discurso “a meia-luz” que associam-se com eficácia poética. A cisão entre o artista plástico e o romancista era, a esta altura, irreversível. Assim se manifesta C. Penna sobre os eventos posteriores à exposição e que culminaram na Declaração de Insolvência: [...] fizeram-me um convite para levar a exposição a Buenos Aires, a bordo do navio estrangeiro que inaugurava então linha de navegação de longo curso, para permanecer na capital argentina durante vinte dias, tudo à custa da empresa. Recusei, e pouco tempo depois, tendo desenhado um quadro que chamei Anjos Combatentes, verifiquei com tristeza, que não era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, apesar de ter feito capas e ilustrações para livros de 19 Moacyr de Almeida, Arnalfo Tabaiá, Rubey Wanderley e outros ... O momento de impasse em que se inscreve o Cornélio Penna artista gráfico – os anos 20 da definição militante do caráter nacional – pode ter atordoado, mais do que desafiado – como fez a tantos outros – o artista, precipitado num debate em que se via prostrado, incapaz de uma contribuição efetiva. Chegava mesmo a achar graça, a zombar de certa postura panfletária que percebia em certos grupos de artistas.20 O autor entendia 18 Alexandre E ULÁLIO , op.cit., p.38. Do depoimento a Lêdo Ivo, ed. cit., p. LX. 20 Assim escrevia, na Declaração de Insolvência, publicada originalmente no jornal A Ordem, do Rio de Janeiro, em 1929, sobre os que buscavam insistentemente a invenção de uma pintura “genuinamente” brasileira: “Muitas vezes, em minha miséria, procurei esse apoio negativo, e só encontrei quem procurasse, por sua vez, um pintor-cobaia ou um pintor-tabu; aqueles que pintam as idéias de seu grupo, ou aqueles que têm a propriedade exclusiva da seção de pintura, também de seu grupo. Ora não posso aceitar, nem compreender, sem rir, uma e outra dessas atitudes [...] E daí não poder escrever nunca sobre arte, porque em vez de me 19 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 27 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna que, a despeito dos cem anos de atividade da Academia e da renovação promovida pelas novas hordas de pintores, escultores ou desenhistas, o ambiente das artes plásticas padecia da falta de consistência e urdidura, inculcando nos que se dedicassem ao seu estudo mais dúvidas e acanhamento intelectual que segurança e desenvoltura artística. A preferência pela literatura, ao fim do balanço e da curva de vida representados pela Declaração, parece ter correspondido a uma busca por um campo mais preparado para as realizações artísticas, representado, entre nós, pela tradição literária. Uma postura como esta deduz-se imediatamente de opiniões como a que se segue: Uma vez que nosso adiantamento literário, as nossas livrarias e os nossos literatos, pelo menos em um pequeno agrupamento à parte, são muito mais interessantes, completos e avançados, como é natural, do que o nosso adiantamento artístico, as nossas galerias e os nossos artistas, dispersos e isolados moralmente, todo aquele que deseja conhecer e estudar só acha diante de si livros e teorias, e as viagens que faz, apressadas e como um coroamento do que já conseguiu, são antes um novo elemento de confusão e desvirtuamento. - Por quê? – interroga-nos, por sua vez Cornélio Penna – porque fazia literatura desenhada ... Minha intenção primitiva na pintura era significar alguma coisa, criando uma imagem que falasse longamente ao espírito, mesmo depois de esquecida a forma, o trabalho manual, a 21 representação em cores e linhas. Dessa dúvida e da escolha subseqüente nasceria um dos mais originais autores da primeira metade do século XX no Brasil. Estreando em um período em que os romances do novo regionalismo, representado por A Bagaceira de José Américo de Almeida, pelo Caetés de Graciliano Ramos, Cacau ou Suor de Jorge Amado, por exemplo, Cornélio Penna abriria uma vertente audaciosa, reaproveitando elementos folclóricos, superstições e densidade poética, indicando o caminho, v. g., ao Lúcio Cardoso de Maleita. Extrapola, por certos procedimentos na estruturação narrativa, como a composição livre e deliberada de cenas encerradas em si mesmo, como num sonho, as narrativas sombrias, porém marcadas pelo recurso a finais surpreendentes ou a codas monumentais, de um João do Rio ou, mais acudirem afirmações e doutrinas, brotam em mim, atropelando-se umas às outras, perguntas e dúvidas, criadas pela minha educação literária, monstruosa e vulgar”. Ver Romances Completos, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, p. 1350. 21 Cornélio PENNA, Declaração de Insolvência, op. cit., p. 1350. 28 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna próximo ainda do universo de Cornélio Penna, do Monteiro Lobato das Cidades Mortas ou dos contos dramáticos de Negrinha. Os quadros e outros trabalhos artísticos seriam depositados no desvão da escada da emblemática casa de Laranjeiras, no espaço a que o autor chamava – nada mais típico do espírito corneliano – Necrotério. A Lêdo Ivo confessou, por fim: – Não pintei mais – continuou o escritor, sem o menor sinal de emoção, na voz. Parecia falar de alguém indiferente, morto há vinte anos. – Acabou-se a dúvida, e, se não me convenci de 22 todo que sou escritor, pelo menos estou certo de que não sou pintor. 3. Cornélio Penna ilustrador. No Brasil, a arte é sobretudo um caso pessoal, e nós precisamos, primeiro da formação de artistas, mesmo que sejam cegos e surdos em nosso país, tão ruidoso e tão claro, para depois descobrir-se um nexo entre eles, e nascer uma vaga e confusa personalidade coletiva, que poderá ser estudada. 23 Cornélio Penna, Declaração de Insolvência (1929). Curiosamente, alguns dos trabalhos mais pungentes e concisos de Cornélio Penna viriam após a sua Declaração de Insolvência. De algum modo, ter-se desincumbido formalmente do papel de artista plástico ou da função de contribuir diretamente para a criação de uma arte brasileira genuína ao gosto dos debates da segunda metade dos anos 1920, parece ter dado asas à sua imaginação ou, ao menos, removido alguns pudores que o impedissem de se apropriar livremente das estilizações angulosas e fantasiosas, mais compactas e sem o peculiar ziguezaguear de linhas, que definem o seu estilo dos anos trinta. Continuou a executar desenhos a nanquim, ex-libris para amigos, capas e desenhos sem maior pretensão. Gravuras como Família de 1933 ou as quatro gravuras que elaborou 22 23 Cornélio Penna a Lêdo Ivo, op. cit., p. LXI. Romances Completos, ed. cit., p. 1349. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 29 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna para Fronteira indicam um artista em continuado desenvolvimento. Suas figuras e composições ganhavam em potência psicológica e o gosto anterior pela alegoria explícita cedia lugar a uma concisão de meios e a um uso mais eficiente das sombras e veios gravados. A fantástica capa, muito elogiada por Alexandre Eulálio, de Espelho d’Água – Jogos da Noite, livro de poemas de Onestaldo de Pennafort não data senão de 1931, assim como a ilustração de cariz medievalizante para O Príncipe Glorioso, conto de Estrela Azul, de Murilo Araújo, não viria antes de 1940, onze anos adiante da Declaração ... Este estilo inconfundível, porém, vinha sendo desenvolvido desde o início de sua carreira na imprensa. A sua capacidade estava pouco a pouco sendo expandida e, trabalho após trabalho era possível enxergar mudanças significativas. E, de fato, vemos a série de caboclos (1923), de caráter impreciso e anêmico ganhar em sentido, segurança de traço e profundidade de caráter a cada nova tentativa para culminar em novos e melhores resultados, desenvolvendo-se no que seria o seu estilo dos anos 30. O topo desta série estará, sem dúvida, em desenhos como aquele de 1924 depositado, hoje, no Museu de Arte Contemporânea. O que se passa com a série dos caboclos é significativo para compreendermos essa modificação no estilo e na maneira de o autor compreender as suas possibilidades plásticas e sua capacidade de expressão em um e outro meio. As telas francamente medíocres do início da década de vinte – como, por exemplo, O Homem – conviveram com gravuras macabras de sabor decadentista. Assim era Volúpia (1923), v. g., muito mais interessante como resultado plástico do que as telas e grisailles que vinha produzindo. Segundo Alexandre Eulálio, o interesse pela série Caboclos viria do tratamento original dedicado ao assunto. Assim, A insistência no tema indigenista, nos vastos sombreiros dos homens, nos bandós, coques e xales das mulheres, assim como o modo pouco ortodoxo de dispor a matéria na tela, provocou curiosidade no Primeiro Salão da Primavera inaugurado no Rio naquele ano. – 1923, lembremos, para continuar – Os trabalhos foram aí acolhidos com benévola curiosidade pelo júri, que pensou tratar-se da produção de pintor mexicano não se sabia se de passagem ou 24 estabelecido havia pouco no Brasil. 24 Alexandre E ULÁLIO , op.cit., p. 33. 30 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna O clima sombrio de trabalhos como os de Cornélio Penna podem ganhar significado mais amplo se comparados com a obra de artistas abertos ao mesmo gênero de preocupações metafísicas ou ao chamado inequívoco do lado mais turvo da alma. É o caso do pintor Roberto Rodrigues, que mais tarde sucumbiria ao ópio, difundido no Rio dos anos vinte, com suas cenas de loucura e seus desenhos de temática boêmia e macabra. Ganhariam, do mesmo modo, se cotejados com as Beatidudes de Cecíclia Meireles, indicando um caminho místico, derivado dos últimos laivos de Simbolismo que continuaria nutrindo, por muito tempo, alguns setores da cultura brasileira. Quando opta abertamente pela estilização, pelos temas obscuros e pelos desvãos de alma que tenta esquadrinhar, alcança estratos mais altos em sua produção. Não há o resultado final dos Caboclos do MAC-USP sem trabalhos como Piedade (1924), Conversa Afiada ou da série com temas macabros de 1924. Da mesma cepa dos Caboclos, a capa assinada “Penna”, em letra alongada como seus desenhos, para o romance João Miguel de Raquel de Queiroz editado por Schmitd. Sobre a relação entre o artista plástico e o escritor, a análise de Adonias Filho é das mais precisas: Nos quadros e desenhos, expostos no saguão da Associação dos empregados do Comércio, que oito anos depois Almeida Sales evocaria para explicar certos aspectos do romance Fronteira, uma personalidade singular observava o crítico, focaliza os seres e as coisas sob um prisma fantasmagórico. O painel embebido de mistério diluído, continua Almeida Sales, na descontinuidade dos contornos, o recorte humano das figuras, já Cornélio Penna estabelecia os dados imediatos da futura mensagem literária. Verificando o subjetivismo, o “desprendimento do mundo”, e no ensaio que escrevia sobre o pintor, o poeta Augusto Frederico Schmidt lembrava William Blake como ponto de referência para “a falta de prisão às coisas palpáveis”. E não subsistirá exagero se acrescentarmos que a mensagem do romancista começa no pintor 25 Cornélio Penna. A correlação, em verdade, é perfeita. A correspondência entre arte visual e literatura encontraria sua intersecção mais bem resolvida e equilibrada em Fronteira. Para Adonias Filho, a ligação entre os desenhos e pinturas dos anos 20 e a novidade da incursão literária era mais que evidente: 25 ADONIAS F ILHO , op. cit., p. XX. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 31 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna As atmosferas são idênticas e de tal modo se ajustam que os desenhos podem ilustrar os romances. O grande exemplo se encontra na edição de Fronteira: As ilustraçõ es que a enriquecem não contrariam os desenhos e os quadros porque, dispondo dos mesmos traços, oferecem o mesmo fundo. No pintor, e não viesse a ser escrita sua obra ficcional, já se encontravam os elementos da mensagem: o mundo sombrio, o fundo místico, em sangue a 26 conversão da angústia. A análise do autor das Memórias de Lázaro sobre Cornélio Penna seguia o seu percurso apontando as razões que, hipoteticamente, teriam conduzido nosso autor do desenho e da pintura ao romance. A idéia central é a de que os conteúdos intensos que Cornélio Penna já desenvolvia e apresentava em seu trabalho artístico revelariam in herba, a matéria literária solicitando, por desenvolvimento natural, os recursos infinitamente mais potentes do romance, grande painel em que não só poderia evocar as imagens que colecionava desde as narrativas que ouvira na infância mas, também, aproveitar as que reelaborara como ilustrador. Assim, é possível que, em conseqüência da força dessa mensagem – e mais literária que plástica – Cornélio Penna chegasse ao romance como veículo mais eficiente para exteriorizá-la. O romance, e não a pintura, era o veículo mais eficiente para explorá-la em todos os seus rumos e todas as conseqüências. Sua estrutura especulativa, complexa e poderosa, demonstrava menos 27 o pintor e mais o romancista. E este não tardaria em absorver aquele. A declaração de insolvência daria azo à criação de uma forma especial de romance ilustrado. O autor desejaria organizar uma forma híbrida e equilibrada em que narrativa e ilustração, elaboradas pelo mesmo artista, fosse combinada num possível modelo que lhe satisfizesse as pretensões em um e outro campo? É hipótese a ser verificada. 26 27 Idem.. ADONIAS F ILHO , op. cit., p. XX. 32 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna 4. Livros ilustrados na Coleção Cornélio Penna do IEL-UNICAMP como uma possível chave para a compreensão de sua arte. O catálogo de Alexandre Eulálio permanece o estudo mais completo e, mesmo, afetuoso, sobre a obra artística, e aqui falamos especificamente do mundo das expressões gráficas, de Cornélio Penna. Descreve e analisa, dispostas em ordem cronológica, suas séries de gravuras e obras avulsas, destacando-lhes o perfil geral da composição, a paleta melancólica e o efeito mórbido e fantasmagórico. Fornece os elementos que vão ajudar a definir e identificar o estilo do desenhista.28 Com a acuidade e a erudição que lhe são peculiares, com a pena leve e elegante do texto fluente, consegue traçar uma ampla genealogia de artistas que poderiam estar na gênese da “maneira” de Cornélio Penna, seus antepassados imediatos e também os antecessores menos óbvios. Fala de uma possível influência de pintores vitorianos (“Alma-Tadema, Frederick Leighton, Albert Moore, E. J. Poynter”29) a que o autor de Fronteira teria acesso pelas mãos de sua tia, Baronesa de Paraná.30 A. Eulálio destaca as ilustrações feitas para contos como o emblemático, em sua expressão, Anedota do Cabriolé de Machado de Assis, Las dos Sombras, de feições mouras, para o conto de mesmo nome do espanhol Pedro de Réspide, os orientalizantes desenhos algo à Bakst para Cleópatra (1909) e Xerazade (1916) que nosso crítico associa a Erté e aos figurinos de Poiret. Menciona, ainda, como êmulo, as ilustrações de Rivière elaboradas em 1896 para o álbum Images d’après Mallarmé. Não esquece, também, de situar Cornélio Penna no quadro dos seus contemporâneos nacionais com quem, mesmo guardando distância pelo zelo extremo com que conduzia sua vida pessoal, mantém evidentes relações formais. Inevitável lembrar Yan de Almeida Prado, Correia Dias, Di Cavalcanti (na capa de Estrela de 28 “[...] certa linha nervosa e trepidante [...] que avança em ziguezague irregular [...]”, escreve Eulálio, que, à mesma p. 33, fala de “expressividade simbolista”. Essa linha nervosa, adotada a partir de 1923, “permite a Penna expressar-se com absoluta economia e insuperável rigor. As conquistas dessa maneira ele as transpõe também para as aquarelas e têmperas então executadas em cores baixas – cinzas, ocres, roxos, rosa-pálido, cereja, castanhos, laranjas, amarelos e, mais raros, verdes-pálidos e púrpura –, obras em que a linha traveja a estrutura.” Op. cit., p. 33. 29 Alexandre E ULÁLIO : op. cit. , p. 30. 30 Segundo Eulálio, ele também “das baronesas”, como na expressão de Murilo Mendes, seria esta Baronesa de Paraná “autora de inverossímeis telas de tema antigo e afrescos em estilo pompeiano”, op. cit., p.30. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 33 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna Absinto, por exemplo), Paim, Ferrignac, J. Washt Rodrigues, entre outros tantos. A lista de artistas internacionais que nos poderia auxiliar a compreender a formação do estilo de Penna seria igualmente variada. Esta incluiria, além do William Blake sempre lembrado, assim como certos influxos derivados de Gustave Moreau, o holandês Jan Toorop, os belgas Charles Doudelet e Georges Minne, o austríaco Koloman Moser e, nos seus desenhos, o escultor italiano Adolfo Wildt. A eles [...], porém, [...] excetuados talvez Toorop e Moser, Cornélio não chegaria a conhecer, senão imperfeitamente, ao acaso de reproduções eventuais em revistas de arte ou algum livro avulso. Poder-s e-iam 31 citar ainda alguns outros nomes isolados ao lado destes. Além disso, uma possível simpatia pelo espírito da Wiener Secession é mencionada, assim como afinidades com Aubrey Beardsley e seus seguidores Charles Ricketts, Alaistair, E. B. Bird ou William Horton. Hubert Kipping, plenipotenciário da República de Weimar no Rio de Janeiro, teria sido atraído por este espírito e, entusiasta desta arte de reverberações sutis e íntimas, converteu-se num dos principais patrocinadores da exposição de Cornélio Penna, em 1928.32 A contribuição possível do nosso trabalho é o acréscimo, a esta lista de dados, nomes ainda não mencionados bem como realizações artísticas ainda não analisadas. Falamos dos artistas gráficos e ilustradores de livros que Cornélio Penna colecionava habitualmente. Nesta coleção vamos encontrar fontes visuais subsidiárias que, combinadas com a ampla análise conjuntural de Alexandre Eulálio n’Os dois mundos de Cornélio Penna, potencializam a possível crítica da obra do romancista como artista plástico, desenhista e pintor, possibilitando o surgimento de novas idéias sobre a natureza de seu caminho. Nossa hipótese é a de que o autor alimentava a integração das artes visuais à literatura, buscando meios de conjugar estes dois campos em proveito da comunicação dos conteúdos poéticos e emotivos de seu texto. O próprio texto de Alexandre Eulálio tangencia este caminho ao ocupar-se da análise do conto machadiano Anedota do Cabriolé, quando as imagens propostas por Penna, ao princípio e ao fim do texto, não mais seriam 31 32 Alexandre E ULÁLIO , op. cit., p. 41. Ver, sempre, A. E ULÁLIO , op. cit., p.41. 34 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna acessórias ao texto, mas, em sua expressão, o iluminariam, ganhando status de verdadeiro emblema. Das séries de livros conservados na Biblioteca Cornélio Penna, ganha destaque a coleção Le livre moderne illustré, editada em Paris por J. Ferenczi et fils Éditeurs, num período que cobre os anos 1923 e 1935. São volumes de tamanho médio contendo, além de bela capa padrão ornamentada com motivos, impressos a cor, um bom número de gravuras e vinhetas, apostas, em sua maioria, na abertura de cada um dos capítulos (gravuras maiores com cenas alusivas à narrativa ou à sua ambientação) ou no encerramento dos mesmos (pequenas imagens, vinhetas). Os gravados (“bois”, como é possível ler nas páginas iniciais de cada romance) possuem autores diversos e é possível detectar algumas variantes estilísticas ou momentos de exceção criativa num certo padrão que se estabelece ao longo da série. Imagino que, ao elaborar as quatro pranchas para a primeira edição do romance Fronteira, Cornélio Penna pudesse ter em mente séries de livros ilustrados como esta. As ilustrações de Vitor Marrey para o livro Bandadas do peruano Gonzalo Ulloa é outra referência importante, por certas consonância detectáveis no estilo de Cornélio Penna. Lembremos a confusão causada pela série dos Caboclos, quando pensava-se tratar Penna de um artista mexicano radicado no Brasil ... Este parentesco “hispano-americano” poderia ser evidenciado em um pequeno catálogo de ornamentação indígena peruana convertida em motivos decorativos para aplicação moderna que Cornélio Penna possuía em sua biblioteca. Os livros nacionais formam outro grupo de interesse destacado: formam o panorama do que deveria ser o mercado de livros ilustrados entre nós na década de 1920, possibilitam a compreensão mais apurada do que alimentava o autor e balizava suas pretensões como escritor-ilustrador. São, por assim dizer, a caixa de ressonância imediata para os que se lançassem, no período, a esse tipo de publicação. Paulo Torres e seu Balé Branco apresentam o ilustrador Angelus como um Aubrey Beardsley longevo e reduzido a essencialidades do traço fluido. A capa em azul celeste com tipografia sinuosa – alternada com ondas e formas curvas – em branco alcançam impacto visual inusitado. Mais discreto, o poeta Murilo Araújo desenharia, para a capa de seu Cidade de Ouro, as torres em azul de uma cidade de sonhos, cercadas por uma moldura oblonga e ovalada formada por estrelas em ouro envelhecido. Seu livro contaria, também com cliché artístico de Álvaro Souza e ilustrações internas de Nery. Mais próximo das realizações de Cornélio Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 35 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna seria a capa de Assombrações, livro de contos de suspense de Dionysio Garcia, elaborada por Fox. A marca da editora, no verso deste volume, seria desenhada pelo mesmo artista, inscrita numa pira cerimonial. Extrapolando a data limite proposta para este pequeno estudo, mas precioso pelas possíveis ligações que pode fazer supor, está A vida é o dia de hoje (1939), do escritor português Alberto de Serpa. Este pequeno volume, com dedicatória a Cornélio Penna e autógrafo do autor (no Porto em 1940), está ilustrado por Júlio, o dileto irmão mais novo do escritor José Régio, e vai publicado pela Editora Presença, fruto da conjunção de vontades de Régio, de Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões que, na Coimbra dos anos 1930, marcaram a emergência de um novo momento no curso do modernismo português. Uma possível ligação entre Cornélio Penna e o grupo de Presença, a ser investigada com maior cuidado e vagar, faria muito sentido, principalmente se pensamos no talhe da figura central de José Régio, ele também um católico marcado por misticismo profundo, colecionador de antigüidades que reunia em sua casa de Portalegre e, também, um desenhista “de domingo”, na sua própria expressão. Seu irmão Júlio, este, sim artista plástico, foi responsável pela ilustração de uma série de seus livros, entre os quais destacam-se o grande romance cíclico A Velha Casa (seis volumes) ou os famosos Poemas de Deus e do Diabo. Régio, um tanto mais novo, é, porém um bom êmulo para Cornélio Penna. Esperamos poder depurar um pouco mais esta hipótese que amplificaria o significado e a compreensão desta onda “neocatólica” que floresce na primeira metade do século XX e da qual, Conélio Penna e José Régio são pedra angulares. Sem grandes programas ou séries de ilustração, mas com cuidado gráfico apurado, poderiam se mencionadas a edição do Cobra Norato de Raul Bopp, com a “clássica” – e bela – capa de Flávio de Carvalho (São Paulo, Irmãos Ferraz, 1931, edição autografada e dedicatória a C. P.) ou Chuva de Pedra de Menotti del Picchia, de 1925. Este volume – cujo projeto gráfico refinado não tem seu autor identificado – embora não conte com pranchas ou gravuras, conta com letras capitais muito bem elaboradas e modelos tipográficos de grande interesse. O título do livro é repetido como uma vinheta em todas as páginas. A contracapa em verde e amarelo utiliza elementos vegetais nativos como inspiração. 36 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna 5. Uma pequena conclusão. As relações entre literatura e artes, entre escritores e artes plásticas, podem abrir aos interessados uma série de campos de estudo e um amplo espectro de debates, como é possível perceber. O estudo de Cornélio Penna é apenas uma etapa, inconclusa ela mesma, deste projeto que se vai delineando pouco a pouco. As próximas etapas no caminho de sua execução incluem a digitalização das imagens e ilustrações incluídas nos livros de sua biblioteca, assim como a identificação, quando possível, de cada um dos artistas identificados. A análise formal de cada exemplo e sua correspondência com a obra corneliana deverá ser evidenciada quando possível, criando uma rede de informações que se complementem de modo eficiente. Mas, é, apenas, um princípio. Aqui, apenas o esforço coletivo promoverá um resultado de maior expressão. Uma história dos livros ilustrados – que é rica ente nós – ainda deve ser feita, somando-se estudos já desenvolvidos sobre Oswaldo Goeldi, sobre as edições dos Cem Bibliófilos, sobre Axl Leskoschek ou Tomás Santa Rosa, para o que devemos contar com a colaboração dos pesquisadores interessados na história da gravura no Brasil. Nosso recorte temporal, lembramos, exaure-se ao redor dos anos 50. Além desse limite há outro universo a se explorar. A reedição ou a revalorização da obra crítica de autores hoje deixados um pouco de lado, como a do eclético romancista José Geraldo Vieira, ainda aguarda a análise cuidadosa de um interessado, assim como a de Coelho Neto (autor de alguns perfis de artistas em textos curtos e sugestivos), Ribeiro Couto ou a de Marques Rebelo. Este último, aliás, foi autor do texto do catálogo incluído no catálogo da retrospectiva de arte brasileira organizada pelo Museu de La Plata ao fim dos anos 40.33 Este catálogo, conservou-o Cornélio Penna entre seus volumes. A biblioteca de um escritor, a seleção que ele faz de seus livros é ajuda sem par no trabalho da compreensão de um período, identificando as nuances de uma personalidade artística ou reforçando ligações que passariam despercebidas numa análise menos profunda. Numa época de especializações esterilizantes, a análise dos esforços e das razões de artistas que, como Cornélio Penna, se revolvem diante da escolha 33 A Rotunda n. 3, pp. 13-21, inclui a transcrição por nós executada deste texto de Rebelo, antecedida por uma pequena análise de seu conteúdo. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 37 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna de um e outro meio de expressão, é um bom exercício para o pesquisador, uma maneira de, evitando as chaves generalizadoras e padronizações empobrecedoras, reconstruir percursos pessoais e reintroduzir tópicos que permanecem fora dos debates correntes. Nenhum destes autores e artistas merece nosso desfavor. 6. Levantamento: Literatura ilustrada e livros sobre artes e estética na Biblioteca Cornélio Penna (IEL-UNICAMP). A seguir, elencamos um balanço preliminar do material encontrado na biblioteca pessoal de Cornélio Penna, depositada no IEL-UNICAMP. Selecionamos exemplares que se encaixassem nos limites cronológicos fixados aos nossos propósitos, ou seja, do início das atividades do autor na imprensa em 1920 até o aparecimento do primeiro livro do autor, Fronteira, em 1935. Imaginamos que estes volumes tenham sido de alguma importância na formação não só da linguagem visual do autor e na fixação de sua identidade como ilustrador, mas, também, de um possível projeto de conexão literaturaimagem para as edições nacionais. Acrescentamos, porém, alguns exemplos que extrapolam a data indicada, uma vez que nossa intenção, a logo prazo, é o levantamento exaustivo de toda a literatura ilustrada incluída na Biblioteca Cornélio Penna. Este arrolamento e sua posterior catalogação sistemática, assim como o registro fotográfico de cada exemplo deverá compor um banco de dados que servirá não só a uma história dos livros ilustrados ligada à personalidade do autor, mas, do mesmo modo, a investigações desenvolvidas no âmbito do Centro de Pesquisa em Gravura (IA-UNICAMP), dando origem a um atelier de ilustração ou a um grupo dedicado ao estudo da História da Gravura. Além da seção de livros ilustrados, incluímos um rol obras cujo conteúdo seja o das artes plásticas, arquitetura ou estética – enumerados independentemente de limites cronológicos determinados para nosso trabalho, das vinculações diretas com a atividade de ilustrador de C. Penna ou com nossas hipóteses sobre este tópico – encontrados no acervo de Cornélio Penna. A publicação de textos sobre história das artes no Brasil encontradas no acervo Cornélio Penna começa pelas transcrições dos trabalhos de Mário Linhares e Marques Rebelo. O conjunto destes textos será oferecido aos leitores pelos editores da Rotunda. 38 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna Livros Ilustrados. ALVARENGA, Octávio Mello, Coletânea de Poesias, Belo Horizonte, 1954. Sem indicação de editora, com ilustrações de Maria Helena Andrés. Exemplar autografado em 07/11/1955 e dedicado “Ao grande escritor mineiro Cornélio Penna, com admiração”. ARAÚJO , Murilo, A cidade de Ouro, Rio de Janeiro, Empresa Brasil Editora, 1923. Exemplar autografado pelo autor, dedicado a “Cornélio Penna, cujo coração flameja estrelado. No Rio de Janeiro, dia de Nossa Senhora da Glória de 1925”. O desenho da capa é do autor, as ilustrações internas de Nery e o cliché artístico (design gráfico, como nós o entendemos?) de Álvaro Souza. BERNARD, Tristan, Les Moyens du Bord, Paris, Le Livre Moderne Illustré, Ferenczi et Fils Éditeurs, 1931. Ilustrações de Gérard Coché. BOPP, Raul, Cobra Norato, São Paulo, Irmãos Ferraz, 1931. Edição autografada com a bela capa de Flávio de Carvalho. BORDEAUX, Henri, La Maison, Paris, Le Livre de demain, Arthème Fayard e Cia. Éditeurs, 1927. Com 40 gravuras originais de Paul Boudier. CAPUS, Alfred, Annés d’Aventure, Paris, Colection Ilustrée, Pierre Lafitte e Cie., 1910. Ilustrações de Leonce Beuret. CHERAU , Gaston, Les Flambeaux des Riffault , Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1925. Ilustrações de Clemente Serveau. DELARUE-MADRUS, Lucie, Le Pain Blanc, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J.Ferenczi et Fils Éditeurs, 1924. Gravados de Jean Buhot. E LDER, Marc, La Passion de Vincent Vingeame, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1925. Ilustrações d e Gabriel Belot. FLEURIOT, Mlle. Zénaïde, Bouche en Coeur, Paris, Librairie Hachette et Cie., 1882. Com 45 gravuras de Toffani. GARCIA, Dionysio, Assombrações, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas A Noite, 1927. Capa e verso com desenhos de Fox. Livro autografado, dedicado “Ao talentoso amigo Cornélio Penna, rara inteligência para a arte criadora e cuja alma vibra ao ritmo das novas concepções. Rio, 18/10/27”. HERMANT , Abel, Les Noces Venetiennes, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1929. HIRSCH, Charles Henry, La Grande Capricieuse, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1927. Ilustrações de Gérard Cochets. I VO , Lêdo, Cântico, Rio de Janeiro, José Olympio, 1949. Exemplar autografado pelo autor e dedicado “ao casal Cornélio Penna”. Ilustrações do artista romeno Emeric Marcier. J ALOUX , Edmond, L’Amour de Cécile Fougers, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1923. Ilustrações com singular afinidade às de Cornélio Penna. Gravados de Clément Serveau. Letras capitais, vinhetas e demais ilustrações com temas macabros. LIMA, Jorge de, O Anjo, Rio de Janeiro, Ed. Cruzeiro do Sul, 1934. Exemplar autografado, datado de 28/03/34. Ilustrações de Thomaz Santa Rosa. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 15-42 39 André Tavares – Artes visuais e literatura: uma introdução à obra artística de Cornélio Penna MAURIAC, François, Trois Récits, Paris, Le livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1931. Gravuras de Clément Serveau. _______________ , Thérèse Desqueyroux, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1935. Ilustrações de L. J. Soulas. MAUROIS , André, Les Silences du Colonel Bramble, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1924. Ilustrações de Jacques Boullaire. ________________ , Meïpe ou La Déliverance, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi et Fils Éditeurs, 1926. Ilustrações de Émmanoel Poirier. NEMIROVSKY, Irène, L’Affaire Courilof , Paris, Le Livre Moderne Illustré, J.Ferenczi et Fils Éditeurs, 1936. Ilustrações de Constant Le Breton. PICCHIA, Menotti del, Chuva de pedra, São Paulo, Editorial Helios, 1925. Não há pran chas ou ilustrações, mas possui um belo projeto gráfico e letras capitais de desenho refinado, além de modelos tipográficos de interesse. O título do livro é repetido como uma vinheta em todas as páginas. A contracapa em verde e amarelo utiliza elementos tipicamente brasileiros como inspiração. Sem indicação de autoria para o projeto gráfico. RADIGUET, Raymond, Le Bal du Comte d’Orgel, Paris, Le Livre Moderne Illustré, J. Ferenczi e Fils Éditeurs, 1925. Gravuras de Pierre François. REIS, Fran Carlos, Mito e Presença, Massao Ohno, s.d. Trata-se de livro de poesias com ilustrações sem identificação aparente, que lembram Lívio Abramo. Exemplar autografado e datado de 18/11/1963, é dizer, além da data do falecimento de Cornélio Penna (1958). SERPA, Alberto de, A vida é o dia de Hoje, Porto, Edições Presença, 1939. Autografado pelo autor, no Porto. Ilustrações de Júlio, o irmão mais novo de José Régio. TORRES, Paulo, Bailados Brancos, poemas. Sem indicação de editora, contém belas ilustrações à Beardsley de Angelus e dedicatória com o seguinte texto: “Para o Penna, poeta trágico, o Paulo. Rio 1923”. ULLOA, Gonzalo, Bandada, Talleres de Litografia, Imprenta, Rayado Encuadernación, Fotografados T. Scheuch, Lima, Peru, 1925. Volume ilustrado por Victor Marrey, autografado pelo autor, no Rio de Janeiro, 1926. Livros sobre artes plásticas, arquitetura, estética ou história da arte. Art et Litteratures: Matériaux et techniques, volume da Encyclopédie Française, Tomo XVI, Paris, s. ed., 1935. BAYARD, Émile, L’Art de reconnaître les tableaux anciens e les styles de peinture, Paris, Roger et F. Chernoviz Librairies Éditeurs, 1921. BERGSON, Henri, L’Evolution Créatrice, Paris, Presses Universitaires de France, 1946. BORJA, Arturo Jiménez, Cuadernos de Dibujo Indo-Peruano, Lima, Actual, 1935. CARDOSO , Vicente Licínio, Philosophia da Arte, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio editora, 1935. 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Deseja, ao longo destes anos, fundar uma arte de status nacional, denominada por ele como “escola brasileira”, e estreitar as relações entre o artista, a sociedade e os órgãos públicos, ampliando os domínios do que era, até então, vinculado de modo restrito às encomendas do círculo oficial da corte e às instituições oficiais do governo. Nesta trajetória, Taunay dedica-se com esforço inegável, ao lado do arquiteto Grandjean de Montigny, à valorização da arquitetura e do profissional arquiteto formado * Este artigo é uma síntese de algumas idéias presentes na tese de doutorado já defendida, acerca da trajetória de Félix-Émile Taunay como pintor de paisagem e diretor da Academia Imperial de Belas-Artes. Constitui ainda uma reflexão sobre a temática da recepção da tradição clássica no Brasil, objeto do atual projeto de pósdoutorado desenvolvido na FAU-USP. A tese de doutorado intitula-se Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil, defendida no IFCH-UNICAMP, 2005. O projeto de pós-doutorado intitula-se “A Recepção da Tradição Clássica no Brasil: A Questão da Arquitetura nos Discursos de Félix-Émile Taunay na Academia Imperial de Belas -Artes”, em andamento. ** Doutora em História (IFCH-UNICAMP), pós-doutoranda em Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (FAU-USP). 1 Ata da Sessão Pública de 19/12/1840, Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 43 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) pela academia brasileira, dentro dos órgãos públicos nacionais. Quer inserir esse arquiteto em um espaço tradicionalmente ocupado pelos engenheiros militares. Além disso, Taunay acredita que cabe à Arquitetura, considerada por ele como a primeira das artes, o fortalecimento da Academia enquanto instituição produtiva ao governo imperial. Nesse sentido, junta-se a essa noção o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro através da aplicação dos princípios neoclássicos de beleza e harmonia na construção de edifícios e monumentos públicos, e ainda o planejamento urbano. Para desenvolver o ensino artístico a partir de regras ligadas à Academia Francesa e colocar em prática seu plano acerca do desenvolvimento da arquitetura e seu fortalecimento perante o governo, Taunay enfrentou grandes dificuldades. Os modelos a serem transpostos, vale dizer o ensino do desenho baseado no modelo vivo, nas aulas de anatomia e na estatuária antiga, a organização da Pinacoteca e a produção de catálogos, as exposições gerais, o Prêmio de Viagem, além da busca por empregos aos artistas recémformados, levariam alguns anos para, depois de aprovados, apresentarem resultados efetivos. Ainda assim, Taunay enfrenta seus percalços, tendo ao seu lado, como bem indicam os discursos proferidos pelo mesmo nas sessões públicas anuais da Academia de Belas-Artes, o prestigiado (na França) e isolado (no Brasil) arquiteto, Grandjean de Montigny. A herança francesa do ensino artístico brasileiro não se iniciou, no entanto, pelas mãos de Félix-Émile Taunay. Foi Joachim Le Breton, chefe da posteriormente denominada Missão Artística Francesa, o idealizador do projeto de uma escola de artes e ofícios baseado em modelos franceses, ainda em 1815, em Paris. Algumas correspondências trocadas entre ele e o Ministro dos Negócios do Império, o Cavaleiro de Brito, conservadas atualmente na Torre do Tombo, em Lisboa, evidenciam as primeiras negociações acerca do projeto. A idéia inteiramente concebida por Le Breton, como demonstram os documentos, ganha a confiança do Ministro português, que aprecia o desenvolvimento de um projeto de ensino relacionado à indústria e à arte, e contribui pessoalmente para a vinda dos artistas ao Rio de Janeiro. O Cavaleiro de Brito não só estabelece os contatos para a proteção do Rei D. João VI aos franceses, solicitando esta proteção ao Ministro Conde da Barca, na chegada ao Brasil, como ainda é o patrocinador da passagem dos artistas e de Le Breton.2 A história da Missão Artística Francesa contada através destes documentos conservados na Torre do Tombo, em Lisboa, é mais complexa. Os documentos nos indicam o caminho traçado por Le Breton para o convencimento da corte portuguesa no Brasil, sempre através das relações mantidas ainda em Paris com o 2 44 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) Esta é a primeira fonte documental sobre os primórdios da história do ensino artístico oficial no Brasil. Le Breton e seus artistas chegaram ao Rio de Janeiro em março de 1816. Alguns meses depois, o mesmo Le Breton apresenta ao protetor Conde da Barca um criterioso plano de ensino para a fundação de uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Jean-Baptiste Debret, em carta enviada a um amigo em Paris em novembro de 18163, relata os primeiros meses desses artistas aqui no Brasil, a realização do plano de Le Breton e sua nomeação como diretor da futura escola por D. João VI, além de relatar ao amigo uma série de intrigas estabelecidas no seio do grupo francês. Esse plano de ensino elaborado por Le Breton, hoje conservado nos Arquivos do Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro, constitui uma fonte preciosa para o entendimento dos primeiros passos tomados no Brasil, no que se refere à tentativa de inauguração do ensino artístico oficial.4 1. O Plano de Ensino de Le Breton. Le Breton concebe, em seu plano, ao lado da organização acadêmica do ensino das belas-artes, uma sessão destinada aos ofícios. Ponto central de seu projeto era a fundação de uma escola do desenho dentro dessa futura instituição, base para qualquer sistema de ensino artístico. Nesse sentido, Le Breton persegue um modelo didático comum a qualquer instituição acadêmica, cuja base convertia-se em um criterioso plano de ensino do desenho a partir dos princípios clássicos centrados no estudo da natureza. Le Breton, no entanto, tem em mente alguns modelos bem sucedidos de Paris para compor uma produtiva escola Cavaleiro de Brito, diplomata português. Embora não tenhamos tempo aqui para discutir profundamente esta questão, convém destacar a importância desses documentos que nos contam uma outra versão da chegada dos franceses no Brasil. Ver Elaine D IAS, Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil, Tese de Doutorado, IFCH-UNICAMP, 2005; e também o interessante artigo de Robert COUSTET, A Missão Francesa no Brasil. In Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 4, 2000. 3 A carta está conservada na Bibliothèque de l’Institut National d’Histoire de l’Art, Collections Jacques Doucet, em Paris. Ver também Elaine DIAS, Uma carta de Jean-Baptiste Debret ao “Camarade De La Fontaine” na Bibliothèque de l’INHA (França): novos relatos para a história da Missão Artística Francesa no Brasil. In Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 5, 2006. 4 O plano de Le Breton foi publicado, em português, por Mário BARATA, Manuscrito Inédito de Lebreton. Sobre o Estabelecimento de Dupla Escola de Artes no Rio de Janeiro, em 1816. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 14, 1959. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 45 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) destinada não só às artes mas também aos ofícios. Aproxima-se do modelo de ensino proposto pela École du Dessin fundada pelo pintor Bachelier em Paris5, em 1763, do qual era, o próprio Le Breton, membro de seu conselho de provimento como subscritor. A Escola de Bachelier era uma instituição do século XVIII que se relacionava diretamente a uma série de instituições francesas originadas ainda no século XVII, sobretudo pelas mãos do Ministro Colbert, as quais eram voltadas para o desenvolvimento dos ofícios na França. Ressalta-se ainda que, ao final do século XVIII e início do século XIX, segue-se na Europa a criação de inúmeras escolas relacionadas às artes e aos ofícios, como em Copenhague, Estocolmo, Madri e Nápoles, as quais tinham como metodologia primordial, assim como a escola de Bachelier, o modelo acadêmico francês, isto é, o estudo do desenho. Eram considerados, assim, os estudos da geometria e da perspectiva, de teorias artísticas dos grandes mestres e do modelo vivo. Como bem destaca Pevsner, em sua obra sobre as academias de arte, as escolas de ofícios usavam plenamente o estudo do desenho em sua metodologia, considerando que “a atividade do artista industrial não era mais do que o transplante de desenhos aos diferentes materiais com a ajuda de instrumentos”.6 Além do modelo advindo das academias francesas na composição da escola de ofícios, o qual também compunha toda a parte referente às belas-artes, o plano de Le Breton apresentava ainda uma eficaz e estratégica aproximação ao modelo preconizado por Alexander von Humboldt em seu Ensaio sobre a Nova Espanha.7 Em sua obra, Humboldt relatava a experiência mexicana da Academia de Los Nobles Artes, ulteriormente nomeada Academia de San Carlos, a qual simbolizava um sólido exemplo americano de desenvolvimento artístico e institucional. Ainda que Le Breton soubesse que no Brasil não havia um sistema tradicional tão forte quanto aquele já existente no México, o qual era ligado à tradição indígena e mestiça de vários séculos, ele procurava mostrar aos ministros portugueses a importância do desenvolvimento dos ofícios e da indústria num país como o Brasil, capital americana de um reino europeu, a exemplo do México. A idéia de Le Breton ligava-se ainda à questão do patriotismo e nacionalismo num reino recém-fundado que, embora sob o governo de um rei tradicionalmente absolutista, D. João VI, tendiam a se Cf. Paul MANTZ, L’Enseignement des arts industriels avant la Révolution. In Gazette des Beaux-Arts, Paris, 1865, mars, pp. 229-247. 6 Tradução livre do autor. Nikolaus PEVSNER, Academias de arte: Pasado y presente, Madri, Ediciones Cátedra, 1982, p.121 7 Alexander von HUMBOLDT , Essai Politique sur le Royaume de la Nouvelle Espagne, Paris, F. Schoell, 1811, 5 vol. 5 46 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) encaixar com os seus ideais políticos, agora no Brasil, espécie de extensão americana às suas atuações na França napoleônica. No Rio de Janeiro, ainda que a corte aqui instalada representasse a Le Breton o oposto de seu pensamento político centralizado na figura de Napoleão na Europa, parecia entrever no território americano novas possibilidades de desenvolvimento. Pensava que nesta terra quase ausente de progressos, poderiam ser aplicados recursos para a formação artística, viabilizando a criação de uma instituição de artes e ofícios, ao mesmo tempo em que abrigava os artistas exilados da Europa. Vejamos os fundamentos clássicos de Le Breton na elaboração de seu plano didático. Em seu programa, concebe a divisão hierárquica da pintura de história e gênero; o exercício do desenho e a realização de cópias a partir de modelos da estatuária antiga; as classes de modelo vivo; a organização de modelos de pintura a partir da classificação das telas presentes na coleção acadêmica em escolas artísticas e seus mestres, com a realização de cópias pelos alunos para o conhecimento artístico e o aprimoramento da técnica; a realização de concursos e exposições anuais para a apresentação de projetos e esboços dos alunos da classe de arquitetura, e o prêmio de viagem de aperfeiçoamento na Itália aos artistas de maior talento. No âmbito das belas-artes, Le Breton procurava dar continuidade à doutrina acadêmica européia, a qual incorporava também o estudo dos mestres, o desenho a partir do antigo e do modelo vivo para o estudo das proporções do corpo humano, privilegiando a pintura de história como primeiro gênero hierárquico.8 Tópico proeminente a Le Breton era também a efetiva atuação do artista na sociedade através de concursos para a realização de monumentos públicos, bustos, decorações e projetos arquitetônicos, empregando a temática nacional na execução artística, desenvolvendo o gosto através do contato do público com as artes realizadas em plano urbano. Formaria, dessa maneira, um corpus artístico nacional, ao mesmo tempo em que daria à sociedade a notável oportunidade de formação do gosto, possibilitando a constituição de acervos particulares ou da prática do colecionismo, hábito que se desenvolverá anos depois, ao final do século XIX. O projeto didático estaria, portanto, relacionado ao estabelecimento de uma escola de artes e ofícios, embora seu título incluísse as ciências, a lgo que não era descrito no plano apresentado ao Conde da Barca. Visava também o surgimento e avanço da “indústria” através da aplicação do desenho e o progresso das artes. Os planos de Le Breton, ainda que 8 Carl GOLDSTEIN, Teaching Art. Academies and Schools from Vasari to Albers, Cambridge University Press, 1996. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 47 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) constituíssem fontes fecundas das primeiras manifestações acadêmicas baseadas em princípios clássicos no Brasil, nunca foram colocados em prática. Uma série de documentos compostos por atas acadêmicas, ofícios, cartas, relatórios e, sobretudo, os trabalhos dos alunos da Academia Imperial de Belas-Artes demonstram que o desenvolvimento de uma metodologia próxima àquela de Le Breton no que se refere às belas-artes foi organizado e consolidado anos depois pelas mãos de Félix-Émile Taunay. 2. O sistema de ensino de Félix-Émile Taunay. Entre os pontos oriundos do programa proposto por Le Breton, como o estudo do modelo vivo, algo caro a Taunay durante toda a sua gestão, ganhava particular relevância em seu método didático a questão do aprendizado por meio das escolas artísticas e da tradução de obras didáticas internacionais, compostas de algumas das principais teorias acerca do tratamento da arte. Já em 1835, Taunay interessava-se pela formação de um acervo bibliográfico a ser oferecido aos alunos, inaugurando a Biblioteca da Academia e ampliando a formação dos artistas, instruindo-os e dando a eles a proximidade às leituras estrangeiras acerca das principais teorias artísticas presentes na história da arte. Além das obras elaboradas por Taunay para a metodologia de ensino, fez também algumas doações de obras teóricas importantes para a formação dos alunos, que igualmente demonstram o modelo levado a cabo pela Academia, referências estas encontradas nas atas da instituição. Algumas obras provinham ainda da Biblioteca Pública do Tesouro Nacional, que faziam parte da coleção em duplicata. Estavam presentes na coleção acadêmica, por exemplo, as obras de Jacopo Vignola, Sebastiano Serlio e André Félibien, Charles Percier e Pierre Fontaine, Leon Battista Alberti, a obra Antiquités de la France, o Traité de Construction de Pierre Bullet publicado em 1688, Aubin-Louis Millin e seu Dictionnaire de Beaux-Arts publicado em 1806, obras referentes ao ensino da perspectiva, estátuas antigas e coleções de diversos museus da Europa, entre outras.9 Dessa maneira, ampliavam-se os domínios teóricos dos seus alunos, oferecendo a eles os princípios clássicos da composição e da harmonia através dos principais tratados já publicados, seja nos domínios da pintura, escultura ou arquitetura. Cf. Guilherme SIMÕES GOMES Jr, Sobre Quadros e Livros. Rotinas Acadêmicas – Paris e Rio de Janeiro. Século XIX, Tese de Doutorado, ECA-USP, 2004. Ver, sobretudo, o capítulo “Biblioteca”. 9 48 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) Por outro lado, Taunay se encarregava de realizar, ele próprio, a tradução e organização de algumas obras didáticas para os alunos da Academia. A primeira obra didática traduzida por ele em 1836 reúne as noções de escolas artísticas e teoria. Intitula-se Arte de Pintar a óleo conforme a prática de Bardwell, baseada sobre o estudo e a imitação dos primeiros Mestres das escolas Italianas, Inglesa e Flamenga10, fundamentada na 13ª edição londrina (1832) de The Practice of Painting and Perspective Made Easy, do pintor inglês Thomas Bardwell, publicada pela primeira vez em 1756. A tradução mostrava aos alunos a maneira de execução das obras italianas, inglesa e flamenga, que poderiam ser ali mesmo visualizadas em razão do acervo trazido por Le Breton em 1816 e da coleção real de D. João VI. Desta maneira, Taunay segue alguns princípios já colocados nos planos de Le Breton de 1816, onde a importância das escolas artísticas era já indicada no manuscrito dirigido a Barca, ponto fundamental para a formação dos artistas na Escola que se inauguraria. A obra se uniria a outra medida então implantada, isto é, a catalogação das obras pertencentes à coleção acadêmica, também reunidas segundo o método das escolas artísticas, conforme veremos adiante. Em 1837, Taunay organiza uma nova obra para os alunos. Desta vez, trata-se de um compêndio de anatomia organizado a partir da tradução de alguns tratados e obras sobre o corpo humano. Intitula-se Epítome de Anatomia relativa às Belas-Artes seguido de um compêndio de fisiologia das paixões e de algumas considerações gerais sobre as proporções com as divisões do corpo humano; oferecido aos Alunos da Imperial Academia das Belas-Artes do Rio de Janeiro. Demonstra o conhecimento das teorias artísticas européias e a direção tomada na metodologia de ensino com a apropriação destas obras, indicando a retomada de uma tradição acadêmica do século XVII presente na Académie Royale de Peinture et Sculpture. O compêndio foi organizado a partir da tradução de obras diversas. Apresentava a tradução dos textos de Charles Lebrun, em sua Conférence sur l’expression générale et particulière, obra editada em 1668, para o tratamento acurado das expressões humanas; uma longa parte destinada à osteologia e miologia proveniente da obra Abrégé d’anatomie accomodé aux arts de peinture et de sculpture de Roger de Piles, publicado em 1667 juntamente com o artista francês François Tortebat; uma pequena parte da obra de Gérard Audran, Les Proportions du corps humain mesurées sur le plus belles figures de l’antiquité, publicada na França em 1683, o qual oferecia aos alunos da Existem dois exemplares desta obra editada em 1836 por Taunay na Seção de Obras Raras da Biblioteca da Escola de Belas-Artes, UFRJ. 10 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 49 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) Academia Francesa, precisas distâncias entre as partes do corpo humano11 na criação de belas figuras comparadas às estátuas antigas12; e ainda a tradução do verbete “Proportions”, do Dictionnaire des Beaux-Arts de Aubin Louis Millin, publicado em Paris em 1806. A obra de Taunay destinava-se, portanto, ao aperfeiçoamento do curso de desenho e modelo vivo, e também às aulas de anatomia que se iniciavam na Academia, demonstrando claramente os princípios do classicismo tomados na metodologia de ensino, seja através da perfeição do corpo humano ou destas relações mantidas, nesse mesmo sentido, com a estatuária antiga. As aulas de modelo vivo e de anatomia haviam sido aprovada s, respectivamente, em 1834 e 1837, mas seu aperfeiçoamento dar-se-ia somente depois de alguns anos. As aulas de modelo vivo não seriam, no entanto, uma novidade no ambiente carioca. Manuel Dias de Oliveira, conhecido como o Brasiliense ou Romano, teria sido o primeiro a implantar a classe em sua Aula Régia de Desenho e Figura, ainda que de forma precária, conforme nos relata a historiografia brasileira.13 Entretanto, a oficialidade do estudo na Academia veio apenas com Taunay que deparava-se, inicialmente, com a falta do profissional de modelo vivo na corte carioca. Ao mesmo tempo, quando se encontrava alguém que servisse adequadamente ao trabalho, este permanecia por pouco tempo em razão do precário pagamento e da falta de experiência para a manutenção de poses e eficácia das aulas, conforme nos indicam as atas e relatórios escritos por Taunay. Bem diferente da Academia Francesa, onde os modelos tinham tratamento diferenciado e eram bem pagos pelas sessões – ressaltando que no século XVIII os modelos eram tidos como petit fonctionnaire da A esse respeito, Pevsner destaca um fragmento da teoria de Sulzer em Allgemeine Theorie der bildenden Künste sobre a estrutura acadêmica ao final do século XVIII: “La academia debe estar bien equipada con los objetos necesarios para el aprendizaje del dibujo. Éstos son básicamente, siempre que haya la suficiente variedad, los siguientes: Libros de dibujo que muestren, en primer lugar, las partes separadas de las figuras, la forma y la proporción de las cabezas, de las narices, de las orejas, los labios, los ojos, etc., después, partes más grandes de figuras y figuras completas. La copia de ellas será la primera tarea de los principiantes; se continuará con dibujos de figuras tomadas de las más destacadas obras de arte, dibujos correctos de escultura clásica, figuras escogidas de los grandes mestres, de Rafael, de Miguel Ângel, los Carracci, etc. Al copiar estas figuras, el estudiante entra en contacto por primera vez con las altas esferas del arte.” Nikolaus PEVSNER, op. cit., p. 121. 12 Carl GOLDSTEIN, op. cit. 13Francisco Marques dos S ANTOS, O ambiente artístico fluminense à chegada da Missão Francesa em 1816. In Revista do SPHAN, 5, 1941; Manuel Araújo PORTO-ALEGRE, Memória sobre a Antiga Escola de Pintura Fluminense. In Revista do IHGB, 1841; Adolfo MORALES DE LOS RIOS Filho, O ensino artístico. Subsídio para a sua Historia. Um capítulo 1816-1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. 11 50 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) corte francesa, com direito a estadia no Louvre –, no Brasil, a situação era quase nula em termos de direitos.14 A transposição do modelo francês esbarrava numa poderosa barreira social, encontrando-se em face de uma sociedade que ainda respirava colonialismo. Com a falta de profissionais, a congregação acadêmica pensava primeiramente na contratação de um escravo negro para realizar o trabalho, uma vez que os anúncios colocados pela Academia nos jornais15 não apresentavam nenhuma eficácia. A opção do escravo negro também se revelou ineficaz. Todos aqueles mencionados nas atas como supostos pretendentes ao cargo não apareceram nas sessões para a análise dos professores. A congregação acadêmica volta-se, então, aos brancos. Alguns são dispensados em razão “da idade e estado de magreza”16, mas outros, mesmo apresentando alguma parte do corpo “mole e feminina”17, acabaram sendo contratados em razão da urgência para o início do curso. Passavam-se os anos e trocavam-se os modelos. Do “aguadeiro da Carioca, magro e de extremidades defeituosas”, contratava-se, em 1840, o “jovem estrangeiro professor de gymnastica, de formas sem comparação mais belas”.18 Em 1841 era o arqueiro do Paço, “apesar de não serem as formas de grande caráter” 19, e no ano seguinte, um modelo que apresentava “robustez, bello desenvolvimento dos músculos superiores do tronco e as articulações livres e sãs”20 , apresentado pelo professor substituto de arquitetura Job Justino d’Alcantara. Apesar das dificuldades, Taunay vencera a questão e as aulas foram iniciadas, sendo aperfeiçoadas ao longo dos anos. Para o estudo do desenho, além dos tratados organizados, da classe de modelo vivo e das aulas de anatomia, ampliava-se a coleção de estatuária Cf. O catálogo da exposição L’art du Nu au XIX e Siècle. Le Photophaphe et son modèle, Paris, Hazan, BNF, 1997. Os anúncios eram feitos no jornal Correio Oficial: “A Academia das Bellas Artes, para equiparar os meios de estudo, que ela oferece aos Alunos, como os das demais Academias da Europa, necessita de um homem Branco, Nacional ou Estrangeiro, robusto e jovem, que sirva de modelo. Quem estiver nas mencionadas circunstâncias pode-se dirigir á mesma Academia na travessa do Sacramento, das onze horas da manhã até ás duas da tarde, para tratar do ajuste, que será favorável”. Correio Oficial, n. 79, Rio de Janeiro, 10 de abril de 1834. Este artigo encontra-se na pesquisa de doutorado desenvolvida por Renato Palumbo DÓRIA, Entre o Belo e o Útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil do século XIX, Tese de Doutorado, FAU-USP, 2005. 16 Ata de 6/4/1835. Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ. 17 Ata de 23/7/1835. Idem. 18 Ata de 2/4/1840. Ibidem. 19 Ata de 15/2/1841. Ibidem. 20 Ata de 9/4/1842. Ibidem. 14 15 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 51 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) antiga, a qual ajudaria sobremaneira o desenvolvimento das artes inteiramente baseado nos princípios clássicos. Além disso, em seus discursos anuais proferidos no início do ano letivo e nas sessões públicas de fim de ano, é possível identificarmos também o predomínio do classicismo não somente na referência a artistas como Rafael, Michelangelo e Canova, mas também da teoria artística, destacando-se os escritos franceses, ingleses, alemães e italianos. Taunay faz referência, sobretudo, à obra de J. J. Winckelmann nas discussões acerca do modelo grego como exemplo de perfeição, das questões geográficas e climáticas que, segundo Taunay, igualmente eram presentes no Brasil e favoreciam o surgimento de uma escola artística, a exemplo do que acontecera na Grécia.21 Além da construção de uma metodologia de ensino baseada nas principais obras didáticas presentes nas academias européias, Taunay apresentava outros meios, também presentes nestas mesmas instituições, para a formação dos alunos. É conveniente colocarmos novamente em destaque o plano didático de Le Breton em 1816, o qual já apresentava em sua proposta a ampliação da formação dos alunos através da cópia das telas de diversas escolas artísticas européias, posteriormente retomada por Félix-Émile Taunay. Diz Le Breton a esse respeito: “É portanto necessário reunir quadros de diversas escolas, telas que possam servir às lições práticas, como demonstração, ao mesmo tempo em que guiem e mesmo inspirem os professores” . 22 Le Breton e Taunay aproximam-se da noção de escola artística presente nos escritos de Luigi Lanzi em sua Storia Pittorica della Italia, editada ao final do século XVIII. Esse era o mesmo princípio tomado para a formação de uma escola artística nacional no Brasil, portanto, a criação da escola brasileira. Com o escopo de formar um conjunto de modelos para o aprendizado dos alunos e a partir daí constituir a Pinacoteca da Escola de Ciências, Artes e Ofícios, Le Breton trouxe consigo sessenta telas, em sua maioria de discípulos de grandes mestres consagrados, quase todos italianos, compradas em Paris em 1815 do estabelecido marchand Maude Jean Baptiste Meunié. Além das obras vindas com Le Breton, faziam parte da coleção e se juntavam ao esquema classificatório as obras da coleção D. João VI, que também permaneciam na Academia para o aprendizado dos alunos. A análise dos catálogos das exposições gerais da Academia Imperial de Belas-Artes Cf. J. J. W INCKELMANN, Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en peinture et en sculpture, Paris, Jacqueline Chambon, 1991. 22 Plano de ensino de Joachim Le Breton, 1816. Arquivo do Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro. 21 52 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) realizadas a partir de 1840 permite-nos assimilar o caráter didático desta divisão proposta por Le Breton, ampliada pela coleção Real e concretizada por Taunay.23 Os catálogos das exposições demonstram que o emprego metodológico das escolas artísticas apresentou resultados favoráveis. Através deste tipo de classificação, os alunos tinham, desse modo, contato com os grandes mestres e seus discípulos, o uso da técnica e a realização de cópias para o aprendizado. As obras eram expostas nas primeiras salas da exposição para a apreciação do público. As exposições, além das obras originais dos alunos matriculados, mostravam também as cópias reproduzidas, como pinturas de história e quadros de temáticas bíblicas pastoris. No Museu D. João VI, no Rio de Janeiro, há ainda uma série de obras produzidas pelos alunos da Academia desde aquele período, onde podemos encontrar cópias das telas de Rafael, Charles Le Brun e Domenico Zampieri, e ainda diversas telas com temas voltados à mitologia e à Antigüidade clássica, à maneira do neoclassicismo francês, entre outros. As telas trazidas por Le Breton e por D. João, organizadas, portanto, de acordo com a classificação em escolas artísticas, permitiam ao aluno o estudo do desenho e da cor. Este reproduzia os originais para o aprendizado da técnica, inserindo a Academia Imperial de Belas-Artes nos fundamentos da tradição acadêmica.24 Taunay discute amplamente a questão referente às escolas artísticas em discurso de 1842, apresentando a importância das escolas florentina, italiana, veneziana, e outras, e a importância da coleção nacional da Academia. Para Taunay, a coleção seria futuramente ampliada pelas obras dos alunos, as quais comporiam a “verdadeira escola brasileira”, a partir dos modelos da estatuária antiga, das aulas de modelo vivo, isto é, através do aperfeiçoamento do curso do desenho e das cópias das telas que levariam o aluno à criação de sua própria escola. Esse conjunto de telas estrangeiras que formavam a Pinacoteca da Academia, associado às obras didáticas traduzidas e organizadas por Félix-Émile Taunay, cuja referência é explícita aos manuais de pintura e às escolas artísticas internacionais, e ainda ao tratamento da figura humana concentrado na fisiologia das paixões elaboradas por Lebrun e nas proporções de Audran, formava, portanto, um criterioso método de ensino artístico com ênfase no estudo do modelo vivo e no conhecimento anatômico. As aulas de modelo A esse respeito, ver Elaine D IAS, Les artistes français au Brésil au XIX e siècle : l’Académie des beaux-arts et la formation de la collection nationale de peintures de Rio de Janeiro. In Revolution, Politics, War and the Movement of Art 1789-1848, Collections Art et Societé, Paris, Presses Universitaires de Rennes (no prelo, 2006). 24 Carl GOLDSTEIN, op. cit. 23 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 53 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) vivo, que, como vimos, encontraram imensa dificuldade de consolidação na Academia após incansável busca de modelos numa sociedade carioca que não contava com esse tipo de profissão, constituíam um ponto fundamental ao sistema organizado por Taunay. Dessa maneira, o aluno obteria a base para a produção nas classes de pintura de história, paisagem e outros gêneros, que culminaria na formação de uma escola artística brasileira e de um corpus artístico nacional. Os discursos proferidos nas sessões do início do ano letivo e nas sessões públicas anuais demonstram a preocupação de Taunay na formação dessa base didática, de modo a frisar anualmente o valor inestimável das belas-artes de acordo com a tradição clássica, citando em numerosas linhas a importância dos modelos da Grécia e da Itália, da imitação e observação da natureza, da geometria e do desenho, e das escolas artísticas que, conjuntamente, contribuiriam para a inauguração de uma “escola brasileira”, na “eficácia da sua cooperação ativa na produção da glória nacional”.25 Taunay apresenta ainda outras inovações no sistema acadêmico no Brasil, como a reformulação do sistema de exposições a partir de 1840, onde ele propõe a participação dos alunos e também de outros artistas do Rio de Janeiro, brasileiros e estrangeiros. De certo modo, Taunay estimulava a emulação e a qualidade artística dos alunos, assim como conduziria o desenvolvimento da crítica de arte no Brasil e a formação do gosto na sociedade. Nessa mesma trajetória, a partir de 1845, a Academia começa a atribuir uma distinção aos trabalhos dos alunos inscritos, inserindo-os em um concurso acadêmico interno que designaria a melhor obra. O prêmio seria uma viagem a Roma, com a finalidade de aperfeiçoar os estudos clássicos. Instituía-se assim, o Prêmio de Viagem26, inovação de Taunay no Brasil que remete ao Prix de Rome, prêmio instituído na Academia Francesa ainda no século XVII, onde os artistas laureados passavam uma temporada na Academia Francesa em Roma. A resolução de Taunay e a aprovação do governo imperial estimulavam a formação do artista brasileiro nas instituições artísticas européias, inicialmente na Itália e depois na França, formando-se não só nos principais ateliês da Europa, mas aproximando-se diretamente das obras que compunham as mais diversas escolas artísticas. Taunay coloca em prática a medida que, já em 1816, fazia parte da sistematização didática proposta por Le Breton, segundo o modelo acadêmico francês. 25 26 Ata da Sessão Pública de 19/12/1840. Arquivo do Museu Dom João VI, Escola de Belas-Artes, UFRJ. Ata de 24/9/1845. Idem. 54 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) 3. Taunay e Grandjean: a Arquitetura aos arquitetos. O resultado positivo da implantação de todo esse sistema seria, conseqüentemente, o reconhecimento da Academia enquanto instituição pública de ensino. Para Taunay, esse reconhecimento dirigia-se a um nobre fim: emprego aos seus artistas bem formados. Essa busca, no entanto, centrava-se inicialmente na classe de Arquitetura: devendo notar-se que a arquitetura é um dos objetos que mais interessam o brio nacional: dela dependem os destinos da fama das sociedades humanas: por seus trabalhos duradouros, 27 quando já quaisquer outros vestígios desaparecerão, far-s e-á a apreciação do passado. Em seus discursos, Taunay pronunciou e enfatizou, durante mais de dez anos, a importância da arquitetura e sua base centrada no modelo grego, a insistência no estudo do desenho e o desenvolvimento da cidade. Para Taunay, o modelo grego era o exemplo primordial ao planejamento e progresso urbanos, assim como também o era para a metodologia de ensino na Academia. Utiliza exemplos históricos e considerações estéticas para promover e exaltar a Arquitetura, não deixando de citar exemplos além daquele da Grécia. Cita igualmente a Itália e a França como modelos bem-sucedidos de desenvolvimento da cidade e suas estreitas relações com a arquitetura empregada, sempre em função do mesmo modelo grego, natural e perfeito. Seus modelos são clássicos. Para a construção de sua base, Taunay refere-se, em princípio, à teoria albertiana, centrando seus discursos em seus tratados sobre arquitetura (De re aedificatoria,1452) e pintura (De Pictura, 1436), e por conseqüência a Vitrúvio, na concepção de seu modelo arquitetônico relativo às proporções e suas comparações com o corpo humano, passando posteriormente às concepções em torno do modelo grego exaltado por Winckelmann, como citamos anteriormente. Além disso, considera que no Rio de Janeiro existem condições climáticas e geográficas favoráveis à exaltação da beleza e, portanto, ao desenvolvimento artístico, a exemplo dos gregos e seguindo a teoria de Winckelmann. Para Taunay, caberia à Arquitetura a “introdução dos outros ramos das belas-artes”, isto é, a arquitetura abriria as portas para que as outras artes se desenvolvessem. Belos edifícios levariam e abrigariam necessariamente a produção de pinturas e esculturas. Almeja construir belos edifícios e grandes monumentos públicos na cidade do Rio de Janeiro, fazendo-a progredir nesse 27 Ata da Sessão Pública de 19 de dezembro de 1834. Ibidem. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 55 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) sentido, desenvolvendo o gosto não só através da cidade como também daqueles que a freqüentam. A beleza se uniria, assim, à utilidade pública, remontando não só a um discurso intensamente proferido por Alberti, e posteriormente por Vasari, mas também às questões comerciais e políticas a ele contemporâneas. Em princípio, Taunay buscava emprego aos seus arquitetos nas repartições de obras públicas do governo imperial. A importância de Grandjean de Montigny, nesse sentido, é notável. Além das classes de arquitetura e pouquíssimos projetos para o governo desde sua chegada ao Brasil em 1816, Grandjean era um arquiteto isolado. Ainda assim, sua presença é imperativa nos discursos de Taunay no tocante ao assunto da Arquitetura. Tentava-se mudar o rumo da arquitetura brasileira através dos artistas ali formados por Grandjean. Depois de muita insistência, Taunay consegue que alguns projetos da Repartição de Obras Públicas sejam repassados à Academia. E a aprovação acontece. Taunay recebe os projetos para a construção de uma Igreja em Maceió em 1838, projeto realizado por Grandjean que é colocado em prática em 1859; o pedido de análise de três projetos para a realização do monumento do Ipiranga, que embora seja analisado, acaba não ocorrendo; o reparo do plano do Chafariz da Carioca, entre outros projetos, todos enviados em 1838 e realizados por Grandjean. Ao mesmo tempo, o pedido de um lugar aos arquitetos acadêmicos na Repartição de Obras Públicas foi desejado e requerido durante anos e finalmente conquistado em 1843. Alguns meses depois desta data, o governo finalmente aprova a criação de dois lugares para a referida instituição, sendo escolhidos os arquitetos Antonio Baptista da Rocha e Miguel Francisco de Souza para o preenchimento das vagas, depois de um concurso realizado na própria Academia.28 Dois anos depois, no entanto, verificava-se que estes mesmos arquitetos eram “esquecidos” dentro daquela instituição, isto é, nenhum projeto passava pelas mãos dos arquitetos acadêmicos, para desgosto de Taunay. Novas reclamações são feitas ao governo, que repassa novos projetos a Academia, porém, sem avançar em muito a questão relativa aos empregos dos artistas. A discussão em torno dos projetos a serem realizados pelo governo imperial na cidade do Rio de Janeiro acaba atingindo um ponto mais espinhoso, qual seja, a disputa entre engenheiros da Repartição de Obras Públicas, tradicionais em suas funções, e os arquitetos de Grandjean e Taunay, que tentam mudar o rumo desta história: 28 Os nomes dos dois arquitetos são aprovados pelo governo imperial em 20/07/1844. Ata, ibidem. 56 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) Possa a construção de tantos palacetes e até de palácios ser entregue a mãos de artistas da boa e verdadeira escola! Só com tais arquitetos as outras artes liberais poderão medrar achando localidades preparadas para os seus produtos: a arquitetura paga as suas irmãs com usura o estro e a animação que delas recebe – Um movimento se prepara a favor das Belas-Artes no 29 Brasil, não desconheçais, srs., quanto convém que lhe não façais falta. A tentativa de valorização de seus artistas acadêmicos, principalmente os arquitetos já durava mais de dez anos, com pouco reconhecimento por parte do governo imperial. Em 1850, no entanto, Taunay perde o fôlego da disputa. Morria o arquiteto Grandjean, e com ele esvaiam-se todas as esperanças de Taunay para que se efetivassem estas mudanças: Aqui, porém, os curiosos, debaixo de toda a denominação, se tinham tão completamente apoderado da arquitetura que um dos maiores arquitetos da Europa existiu no Rio de Janeiro durante mais de um terço de século, sem poder alcançar outra entrada na sua profissão além da que foi estritamente necessária para envolvê-lo numa intriga da qual até a sua morte não houve poder que o desembaraçasse, e com a qual se vê hoje a braços a sua esco la. E a academia, contudo, não tem existência útil, e portanto duradoura, sem o exercício da arquitetura pelos arquitetos. A arquitetura ativa é que cumpre pagar na atualidade a pintura e escultura, cujos 30 produtos são valores nacionais a longos prazos. É sintomático, nesse sentido, o efeito da morte de Grandjean na atuação de FélixÉmile Taunay como diretor da Academia. Depois de dezessete anos à frente da instituição, responsável por uma série de medidas para o desenvolvimento do ensino artístico a partir de princípios clássicos, além da persistente tentativa de valorização do artista na sociedade, Taunay deixa, em 1851, a instituição de artes a qual dedicou boa parte de sua vida. A segunda metade do século XIX assistiria, no entanto, uma espécie de redenção aos arquitetos de Grandjean, com os trabalhos de Cypriano Carlos de Assis e Souza e Francisco Bittencourt da Silva que, nomeados adjuntos da Repartição das Obras Públicas em 1850, executam os trabalhos do atual Centro Cultural Banco do Brasil, o Educandário Santa Tereza, a Igreja Matriz de São João Batista e a continuidade das obras da Igreja da Candelária. Também se destacaram os trabalhos de José Maria Jacintho Rebello, projetista 29 30 Ata de 2/4/1849. Ibidem. Ata de 20/03/1851. Ibidem. Discurso de abertura do ano escolar e homenagem a Grandjean de Montigny. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 57 Elaine Dias – Félix-Émile Taunay e a recepção da tradição clássica na AIBA (1834-1851) do edifício da Procuradoria do Estado, do Palácio do Itamaraty entre 1851 e 1855, da ampliação da Casa de Misericórdia em 1865, do Palácio Universitário (atual UFRJ) junto a Domingos José de Souza Monteiro, do Palacete do Conde de Itamaraty, e, finalmente, João José Alves, responsável pelo atual Centro de Arte Hélio Oiticica, antigo Conservatório de Música, entre os anos de 1863 e 1872. 4. Conclusões. O aprimoramento da técnica do desenho, as aulas de modelo vivo, o correto uso da anatomia e a cópia dos grandes mestres de acordo com as regras artísticas já estabelecidas nos manuais, dariam ao aluno a concreta possibilidade de tornar-se um artista, indicando a ele o caminho para uma arte que lhe fosse própria, em estreito diálogo com a cultura de seu país. Taunay privilegia a instrução teórica com a tradução de obras didáticas, elemento essencial à Academia Francesa, juntamente aos exercícios da perspectiva e da expressão por meio das cópias e do modelo vivo, oferecendo os instrumentos para uma futura invenção brasileira. Torna-se clara a apropriação e a devida adaptação de modelos franceses para a estruturação da Academia Imperial de Belas-Artes, de modo a ampliar a formação do artista dentro da instituição a partir da organização de uma base de estudos fundamentalmente ligada ao modelo acadêmico parisiense. Cria, assim, um sólido sistema de exposições anuais que se prolonga por todo o século XIX, além de oferecer ao aluno a complementação de sua formação artística na Europa. Dá à Arquitetura um papel de destaque, como aquela que abrirá o caminho do progresso às demais artes, tentando, desta maneira, desenvolver o gosto na cidade do Rio de Janeiro a partir de modelos clássicos e valorizar o papel do artista na sociedade. Taunay deixa a Academia em 1851, após longos 17 anos de dedicação ao ensino artístico. Embora a história da arte brasileira não tenha destinado a Taunay um lugar de destaque no século XIX, convém aqui ressaltar sua importância como propulsor do desenvolvimento acadêmico e o fortalecimento da Academia enquanto instituição pública que, anos depois, terá, efetivamente, um papel de amplo destaque na sociedade carioca. 58 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 43-58 A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro. * Paulo M. Kühl** A partir de 1819, quando se tem notícia da primeira apresentação de uma ópera de Rossini no Rio de Janeiro – Tancredi1 - as obras do compositor passam a dominar a cena carioca. Obras de outros compositores continuam sendo encenadas, como as de Mayr, Puccittta, Generali, Gnecco e outros, mas em proporção diferente. Não se trata de um fenômeno isolado na história da ópera, uma vez que a recepção das obras de Rossini pode ser vista como uma seqüência de conquistas avassaladoras, e não são poucos os autores que classificaram o compositor de Pésaro como um Napoleão da ópera, tomando de assalto todas as terras onde chegava. Além da sedução do público, as obras de Rossini inseriam-se em um longo percurso da história da ópera, com suas diversas crises e possibilidades de solução. Assim, de maneira resumida, podemos afirmar que desde o modelo de ópera séria, concretizado nas obras de Metastasio, a rígida separação entre recitativo e os numeri chiusi (árias, coros, duetos) sempre foi um problema para músicos, libretistas e para o público. Para os * Este artigo foi originalmente apresentado no XI Congresso da Sociedade Italiana de Musicologia, em Lecce (Itália), 22 e 23 de outubro de 2004. Faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a ópera no Brasil, que foi financiad a pela FAPESP. ** Professor de História da Arte do Instituto de Artes, UNICAMP. Doutor em História Social da Cultura (FFLCH-USP), Mestre em História da Arte e da Cultura (IFCH-UNICAMP). 1 “As óperas italianas representam-nas de maneira toda especial. Assim, por exemplo, durante minha estada, foi levada muitas vezes a ópera Tancredo, mas eu mal a reconheci de tão mutilada e estropiada por uma péssima orquestra.” Cf LEITHOLD, Minha excursão ao Brasil ou Viagem de Berlim ao Rio de Janeiro e volta, Berlim, Maurer, 1820. In T. von LEITHOLD, & L. von RANGO , Rio de janeiro visto por dois prussianos em 1819, trad.: J. de S. Leão Filho, São Paulo, Nacional, 1966, p. 14. Apesar de não indicar a data, tendo chegado no Brasil em 07/10/1819 e partido em fevereiro do ano seguinte, supõe-se que esta ópera e as outras mencionadas pelo autor e por seu sobrinho, L. von Rango, foram apresentadas entre outubro e o final de dezembro de 1819. Na carta nº 21, do Rio de Janeiro, datada de 21/12/1819, Rango afirma: “Tancredo, um fragmento da Caça de Henrique IV, o Califa de Bagdad e outras óperas conhecidas são exibidas, mas mutiladas e desfiguradas.” Op. cit., p. 145. Para mais detalhes, cf. Paulo M. KÜHL, Cronologia da Ópera no Brasil (Rio de Janeiro – Século XIX), http://www.iar.unicamp.br/cepab/opera/cronologia.pdf. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 59 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro primeiros, por haver uma evidente ruptura entre o aspecto seco da declamação e as diversas possibilidades de criação para os números fechados, considerados como os propriamente musicais. Para os libretistas, um dos principais problemas era conciliar as recomendações da poética clássica com a estrutura do libreto, com as exigências dos cantores, músicos, empresários, etc. Desse modo, as três unidades (ação, tempo e lugar) não encontravam uma clara equivalência no modelo vigente dos libretos, com cesuras marcadas entre a ação (o recitativo) e os grandes momentos de suspensão (números fechados), em que a música dominava o espetáculo. Aliás, a concepção da ópera como um grande espetáculo, do qual participavam as diversas artes, entrava em confronto com a primazia do texto e das regras poéticas, gerando uma permanente insatisfação por parte dos teóricos. Finalmente, é importante lembrar que, para o público, a ópera no século XVIII era um espetáculo geralmente satisfatório. Certamente os recitativos eram considerados tediosos e a longa alternância entre esses e as árias podia conduzir a algum tipo de insatisfação, resolvida, contudo, através de diversos expedientes: a conversa, o flerte, o jogo de cartas, a refeição, tudo dentro do teatro. Sabe-se que este era um dos locais privilegiados da sociabilidade desde o século XVII; assim, as mais diversas atividades sociais aconteciam enquanto um espetáculo de ópera era desempenhado. Na história das insatisfações, diversas tentativas de “reformas” surgiram no século XVIII, manifestando-se através das variadas crises, especialmente no embate com a ópera francesa e o crescimento das óperas cômicas. De maneira geral, a ópera séria passou a assumir algumas características desses dois modelos: o uso de coros de modo mais consistente, a busca do recitativo accompagnato como alternativa à rígida separação recitativo/ária, conferindo continuidade (musical e dramática) à ação, o uso dos grupos finais. Note-se que tais soluções têm caráter diferenciado: se o accompagnato e os coros podem ser encarados como uma busca de coerência da ação e até mesmo de maior aderência à poética clássica, os grupos finais, vindos da ópera cômica, rompem com a possibilidade de compreensão clara do texto. De qualquer modo, percebe-se uma tendência geral em direção a uma continuidade musical dentro da ação dramática. É necessário lembrar que não se trata de uma transformação definitiva da ópera séria, e sim, de uma seqüência de tentativas com uma variedade de resultados. Nunca é demais lembrar que as óperas “reformadas” de Gluck nem sempre tiveram boa aceitação; do mesmo modo, as óperas de Mozart com texto de Da Ponte custaram a fixar-se no repertório dos teatros europeus. 60 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro Nessa seqüência de transformações, Rossini foi saudado como o portador de uma excelente solução para os perenes problemas da ópera. A primazia dos cantores ainda dominava o espetáculo, mas Rossini soube tomar partido do virtuosismo e do estrelismo para construir uma nova estrutura dramática. Mais do que isso, teria conseguido uma aproximação entre a música italiana e a germânica, dentro de uma disputa que tenderia a acentuar-se durante o século XIX, restituindo também à ópera aquilo que era considerado próprio da música italiana: o caráter melódico. Assim, segundo Carpani, a música de Rossini retomava a tradição italiana (a melodia), acrescentava a ela o sinfonismo germânico, insistia na expressividade da palavra, criando então uma música “européia”. Os valores da música de Rossini seriam na visão de Carpani, segundo P. Gallarati: a expressividade patética dos saltos de sétima, a ênfase alegre dos intervalos de oitava e de décima; o modo de conduzir a orquestra, no qual os instrumentos discorrem amavelmente entre si; o jogo da dinâmica e o espetacular efeito dos crescendo; e, em geral, a força energética 2 que essa música desencadeia. Contudo, também existiam críticas às diversas reformas do melodrama e nem sempre a solução encontrada por Rossini era vista como a melhor. C. Ritorni, por exemplo, nos seus Ammaestramenti, já em 1841, criticava a sinfonia introdutória (que retardaria a ação), a cavatina, a disparidade entre os cantabili e os recitativos e os finais.3 Além disso, é importante lembrar que a obra de Rossini, em seu conjunto, também apresenta diversas transformações, construídas ao longo do tempo e em uma seqüência determinada (veja-se a tabela no final). 2 P. G ALLARATI, Le Rossiniane di Carpani. In La Recezione di Rossini ieri e oggi. Convegno organizzato con la colaborazione della Accademia di Santa Cecilia, Fondazione Giorgio Cini, Fondazione Gioacchino Rossini, Società Italiana di Musicologia. Roma, 18-20 fevereiro de 1993, Roma, Accademia Nazionale dei Lincei, 1994, p. 77. 3 “Un finale che non è finale, perché posto sempre ammezzo l’azione, il quale corona così l’atto primo da introdurre nel mezzo di quella un’enorme divisione, e togliere ogn’addentellato per attacare con buona presa il secondo”. Ammaestramenti alla composizione d’ogni poema e d’ogni opera appartenente alla musica, Milão, Pirola, 1841, pp. 51-55. Citado em R. DI BENEDETTO, Poetiche e polemiche. In L. BIANCONI & G. PESTELLI (ed.), Storia dell'opera italiana – 6, Turim, EDT, 1988, pp. 56-57. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 61 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro O que nos interessa mais diretamente é a chegada das obras de Rossini no Rio de Janeiro e a maneira como foram percebidas. Em primeiro lugar, é necessário afirmar que elas surgem em um contexto completamente diferente daquele para o qual foram concebidas e compostas: outro público, outras tradições musicais, outros problemas e outras polêmicas. A ordem em que aparecem também revela um desmembramento de seu sentido primeiro. Veja-se a lista de obras de Rossini, na seqüência em que estrearam no Rio de Janeiro na década de 1820 (entre parênteses, a ordem na seqüência original em que foram criadas): Tancredi (10ª); La Cenerentola (20ª); Aureliano in Palmira (12ª); L'Italiana in Algeri (11ª); Elisabetta, Regina d'Inghilterra (15ª); Adelaide di Borgogna (23ª); L'inganno felice (4ª); Il Turco in Italia (13ª); La pietra del paragone (7ª); Adina (5ª); Otello (19ª). Já em um primeiro exame, é possível perceber que a ordem das apresentações no Rio de Janeiro nada tem a ver com a original. Ou seja, o conjunto das obras de Rossini apresentadas na cidade demonstra que elas não eram percebidas como uma progressiva consolidação de determinadas características formais e sim, como espetáculos variados. Outro elemento importante nas obras de Rossini são os empréstimos: o compositor usava sistematicamente trechos de óperas em outras, sem muita distinção entre os gêneros sério e cômico. A abertura do Aureliano é usada posteriormente na Elisabetta e depois no Barbeiro. Os exemplos multiplicam-se e, na velhice, o próprio Rossini dizia que “o tempo e o dinheiro que me davam eram tão homeopáticos, que eu mal tinha tempo para ler a assim chamada poesia para musicar”.4 Ou seja, o compositor, aparentemente, estava desligado das questões dramáticas dos libretos e mais preocupado em terminar suas composições. Como tal questão era percebida no Rio de Janeiro? Na verdade, não temos registros sobre isso. A dificuldade em encontrar uma crítica especializada sobre as obras também é reveladora: de um lado, percebe-se um incômodo geral em criticar os espetáculos; de outro, a impossibilidade de emitir um juízo específico sobre as obras de Rossini. As notícias ou críticas que se referem ao artista não vão além de qualificá-lo como célebre, insigne, grande, e sua música, bela, etc., como pode ser visto nos seguintes exemplos: [...] excelente composição do imortal Rossini, o Barbeiro de Sevilha, encantava os espectadores [...] (O Espelho, 05/11/1822) 4 Citado em F. PORTINARI, Pari siamo! Io la lingua, egli ha il pugnale. Storia del melodramma ottocentesco attraverso i suoi libretti, Turim, EDT, 1981, p. 25. 62 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro Representou a Companhia Italiana a Ópera Séria que tem por título Isabel de Inglaterra, com música do Pai da harmonia, o imortal Rossini [...] (O Espelho, 06/12/1822) A chegada de SS. MM. II. foi aplaudida de imensos vivas, tocando a orquestra o Hino Nacional, ao que se seguiu a representação da peça do insigne Rossini Tancredi [...] (O Spectador Brasileiro, 23/01/1826) A música do célebre Rossini continua a encantar o ilustre público, que pela sua atenção e aplausos se constitui conhecedor dos raros merecimentos deste célebre compositor [...] (O Spectador Brasileiro, 28/06/1826) [...] 1o. Ato da Ópera “O Barbeiro de Sevilha”, tão admirada atualmente em todas as cortes da Europa como uma das mais insignes composições do célebre Rossini. (Diário Fluminense, 09/09/1826). Não falta também quem diga que o fito de grande parte da companhia cantante é ver se torna aborrecidos tantas vezes em cena Aureliano em Palmira e Tancredi, único em que por hora entra Facciotti; se assim é, o que não acredito, perdem o seu tempo aqueles que pretenderem tornar insulsas as peças do grande Rossini [...] (Diário Fluminense, 08/11/1826) Em breve serão satisfeitos os desejos dos amadores de música, que tanto ambicionam tornar a ver em cena a peça de Rossini Cenerentola, música de reconhecido gosto e um dos chefes d’obra deste insigne professor. (O Spectador Brasileiro, 22/11/1826) Realizou-se como o anunciamos a abertura do teatro. A primeira representação teve lugar segunda-feira passada 16 do corrente, quando tivemos a satisfação de examinar a linda música de Rossini na sua Cenerentola [...]. (O Spectador Brasileiro, 20/04/1827) A terminologia aponta para uma falta de preparo dos críticos, os quais, em verdade, faziam a ressalva de que não eram especialistas em música.5 Desse modo, fica patente que o 5 Veja-se, por exemplo, o artigo publicado no Spectador de 19/06/1826, sobre a representação da Adelina, no qual o autor afirma: “Não dizemos nada da música e do canto dos atores, porque o nosso juízo, nesta matéria, não seria competente. Augusto de G. S.” Quanto à execução, V. Jacquemont referia-se a uma apresentação em 1828 da seguinte maneira: “a detestable Italian company, with a still more execrable orchestra, murder Rossini three times a week”. Letters from India, Londres, 1834, vol. I, pp. 40-41, citado em J. ROSSELLI, The Opera Business and the Italian Immigrant Community in Latin America, 1820–1930: the Example of Buenos Aires. In Past and Present, n. 127, 1990, p. 167. Para outras discussões sobre o caráter da crítica, veja-se L. A. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 63 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro público percebia a música, a ópera, o drama, etc., como espetáculo e não necessariamente como um conjunto de soluções para as crises do melodrama italiano. Contudo, o sucesso de Rossini no Rio de Janeiro também deve ser lido como o reconhecimento de algum fator de diferenciação, uma vez que o grande escolhido foi justamente o compositor de Pésaro e não um dos diversos músicos em atividade no período. A polêmica entre os partidários da música de Marcos Portugal (de matriz italiana) e a germânica e seus “seguidores” (José Maurício, Neukomm) passa ao largo do nome de Rossini. De algum modo, o compositor italiano agradava mais do que os outros, o que pode ser auferido no número de apresentações de suas óperas, até mesmo no período posterior ao incêndio do teatro S. João, em que as Academias de Música eram apresentadas, em geral, com trechos das óperas do compositor italiano. Nos jornais também é possível verificar a presença do nome de Rossini e do prazer suscitado pelas constantes apresentações: Apesar de termos muitas vezes ouvido dizer que os habitantes desta capital não tinham gosto pela música e cantoria, o concurso prodigioso que todos os dias de representação notamos é uma suficiente prova do contrário, e mostra claramente o auge a que está elevado o Imperial Teatro. Ontem, representou-se “Aureliano” pela décima sexta vez e contudo mereceu reiterados aplausos do respeitável público. (Spectador, 24/07/1826) Outra crítica ressente um pouco as diversas repetições de um mesmo espetáculo, mas, ainda assim, ressalta as qualidades de Rossini: Não falta também quem diga que o fito de grande parte da companhia cantante é ver se torna aborrecidos tantas vezes em cena Aureliano em Palmira e Tancredi, único em que por hora entra Facciotti; se assim é, o que não acredito, perdem o seu tempo aqueles que pretenderem tornar insulsas as peças do grande Rossini, executadas pelo célebre Facciotti e sua insigne irmã; e se é possível que as moléstias, fictícias ou verdadeiras, de outros atores nos tragam aqueles sempre à cena, Deus os conserve assim per omnia secula seculorum. – Um Amador. (Diário Fluminense, 08/11/1826) A ênfase das críticas está no desempenho dos cantores, enquanto atores, e, mais raramente, em suas qualidades vocais. Nunca se fala das óperas como um todo, da GIRON, Minoridade Crítica. A ópera e o teatro nos folhetins da corte – 1826-1861, Rio de Janeiro, Ediouro, São Paulo, EDUSP, 2004. 64 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro composição musical, nem mesmo da estrutura dramática. Através dos registros escritos, é difícil estabelecer os motivos de tal predileção, uma vez que os comentários são demasiado genéricos. Seguindo as idéias de Carpani, o apelo da obra de Rossini viria da melodia fácil e criativa, da novidade da composição (isto é, da capacidade de criar novas melodias e de surpreender o público6), da riqueza orquestral e da capacidade expressiva. Na verdade, todas essas qualidades soam genéricas demais para um leitor moderno, mesmo quando o autor tenta esclarecer o significado de cada uma delas. Mas, segundo Carpani, Rossini teria apresentado uma qualidade há muito esperada para resgatar a ópera italiana, sua obra sendo a manifestação do gênio e da natureza, e daí viria a aceitação universal.7 O próprio autor, contudo, aponta alguns defeitos do compositor: o abuso da prosódia, a confusão dos gêneros (cômico e sério), o estrepitar dos instrumentos, a prolixidade, o contra-senso no colorido das palavras, o excesso de repetições.8 Trata-se em verdade de críticas misturadas a elogios, já que boa parte dos defeitos estaria ligada às grandes qualidades do compositor. No Rio de Janeiro, pelo que se conhece, não haveria exatamente uma necessidade de redenção da ópera italiana; os espetáculos eram bem aceitos e apreciados e a obra de Rossini talvez tenha significado uma sedução ainda maior para o público. Pela comparação com as obras apresentadas anteriormente na cidade, durante a década de 1810, é difícil estabelecer traços gerais distintivos da obra de Rossini além daqueles apontados por Carpani. Se tomarmos como exemplo o Tancredi, grande sucesso na Europa, e a primeira ópera de Rossini apresentada no Brasil, temos a seguinte estrutura (com o final de Veneza): 6 G. CARPANI, Le Rossiniane ossia Lettere musico-teatrali [Pádua, Tipografia della Minerva, 1824], Bolonha, Forni, 1969, Carta VII, ed. cit., p. 153. 7 “La musica è fatta per tutti, ma non tutti amano la stessa musica. Eppure si dà una musica che a tutti piace; dunque essa non è la musica del capriccio, ma quella della natura, e perciò è intesa da tutti, e da tutti bene accolta, e quindi di tutte la migliore, la vera, la sola sicura. Dire che il mondo intero è in errore in fatto di sensazioni e di piaceri, è dire che la natura s’inganna, e mal sa che si voglia e c’inspiri”. Carta VII, ed. cit., pp. 148-149. 8 Carta VII, ed. cit., pp. 154-156. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 65 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro Ato I Sinfonia 1. Coro, Isaura, Argirio, Orbazzano 2. Coro e Cavatina (Amenaide) 3. Recitativo e Cavatina (Tancredi) 4. Accompagnato (Amenaide, Argirio) e ária de Arg. 5. Dueto de Amen. e Tanc. 6. Coro 7. Finale. Ato II 8. Recit. e Ária (Arg. e coro) 9. Ária de Isaura. 10. Cena e cavatina (Amen.) 11. Dueto (Tanc. e Arg.) 12. Ária (Amen. e Coro) 13. Coro 14. Dueto (Tanc. e Amen.) 15. Ária de Roggero. 16. Grande cena de Tancr.: Cavatina, coro, marcha e ária com coro, segundo finale. Tal estrutura pode ser encarada como uma duplicação das farsas que o compositor havia criado em Veneza.9 Ou seja, Rossini traz a agilidade das farsas para uma ópera séria e, no Rio de Janeiro, isso podia ser percebido como um espetáculo mais econômico, mais ligeiro e talvez mais prazeroso. Além disso, no dizer de Carpani, no Tancredi “há melodia [cantilena], e sempre melodia, e melodia bela, e melodia nova, e melodia mágica, e melodia rara”.10 Certamente tal afirmação deve ser lida na polêmica travada contra a música germânica, e talvez a “cantilena” tão louvada por Carpani não estivesse totalmente ausente dos palcos cariocas, uma vez que se via um constante desfilar de óperas italianas. Contudo, ainda segundo Carpani, faltavam aos compositores mais recentes as qualidades próprias de Rossini (note-se a equivalência de nomes com o caso brasileiro) : 9 Cf. os verbetes ROSSINI, G. e TANCREDI, no New Grove Dictionary of Opera, Londres, Macmillan, 1997. Carta IV, ed. cit., p. 74. 10 66 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro Muitos dos egrégios mestres do século passado não vivem mais; pouquíssimos dos restantes saudavam a luta teatral. Mudas estavam as cítaras de ouro de Paisiello, de Zingarell, de Fioravanti, de Salieri, de Paer, de [Marcos] Portugal. Winter, Weigel, Mayer caminhavam sozinhos entre os veteranos, mas com sorte dúbia, naquele estado em que tantos louros tinham colhido. Cherubini e Spontini haviam-se tornado franceses e estavam perdidos para a música italiana. Entre os jovens escritores monstravam-se de mérito um Pavesi, um Farinelli, um Generalli, um Coccia, um Nicolini, e alguns outros. Eles alimentavam nossas esperanças; mas, para dizer a verdade, não bastavam para nossas necessidades teatrais. [...] A ossatura, o andamento, a cor das árias, dos rondós, dos duetos e das peças concertadas eram então as 11 mesmas de quarenta anos antes. A afirmação pode ser lida apenas como um meio para construir a imagem do Rossini portador de novidade, em oposição à moribunda tradição italiana, mas pode igualmente ajudar a compreender a importância das obras do compositor e a maneira como chegaram ao Brasil. Certamente, Tancredi é a primeira grande obra de Rossini percebida como tal pelo público italiano, especialmente o de seu período veneziano. No Brasil, a seqüência de apresentações de suas obras revela um vai-e-vem no tempo, com apresentação de comédias, de óperas sérias com temas ingleses (tão em moda), e também das primeiras farsas. Ou seja, ainda que Tancredi possa ter sido percebido como uma novidade importante, o conjunto da obra do compositor passou a ser encarado como uma unidade, que não impediu a apresentação de obras de compositores como Puccitta, Mayer, Mozart, Gnecco, Mosca, Paer, etc. Grande parte da crítica que se avoluma sobre os espetáculos de ópera aparece na segunda metade da década de 1820 e os textos nos jornais nesse período constroem ataques, que são respondidos, criando diversas pequenas polêmicas. Como já foi visto, a crítica sobre as óperas, em geral, reportava-se ao desempenho dos cantores e da orquestra e não exatamente às composições e suas qualidades ou defeitos. Os autores das críticas invocam sua ignorância com relação a assuntos musicais para tratarem especificamente do desempenho dos cantores, de suas qualidades vocais, da capacidade de comoção e do desempenho no palco. Pode parecer surpreendente, mas o interesse maior das críticas estava nos balés, nos dançarinos e nas coreografias. Uma crítica comum ao teatro São Pedro dizia respeito aos constantes cancelamentos de espetáculos, por causa de cantores que, supostamente, estariam 11 Carta VII, ed. cit., pp. 137-138. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 67 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro adoentados e, conseqüentemente, impossibilitados de cantar. Além disso, havia também queixas quanto ao repertório, restrito e repetitivo; assim, um dos focos principais era contra a administração do teatro e pouco tratava da qualidade das obras apresentadas. Começa a surgir algum descontentamento com o repertório do teatro, apontando para a necessidade de mudanças. Uma correspondência enviada à Gazeta do Brasil e publicada em 30 de junho de 1827, afirmava: Priva a sociedade brasileira de um teatro nacional, que tão necessário é à perfeição dos costumes, tirando por este meio o pão aos nacionais, para dar aos estrangeiros. [...] É uma verdade que o Teatro Italiano nunca poderá substituir sem os auxílios poderosos e infalíveis; porém que necessidade temos nós de teatro italiano, quando não temos um 12 brasileiro? A insatisfação é então, aqui, de outra ordem: para que tantos gastos com um repertório estrangeiro de ópera, se não há nenhuma mobilização para a criação de um teatro brasileiro. Não se trata apenas de uma queixa de um “nacionalista”; é novamente a contradição entre um país tão necessitado e aquilo que parece supérfluo. Assim, o debate está fora da esfera artística ou estética, e é trazido para o âmbito social. A falta de um teatro nacional também era apontada pelo Espelho Diamantino de 01 de outubro de 182713 e será uma preocupação constante para diversos autores. Como é possível perceber pelo exposto acima, em certo sentido, no Brasil, permanece o relativo desinteresse pela reflexão específica sobre música. A ênfase esteve quase sempre na biografia dos músicos e no relato de seus grande feitos. O que resta, com segurança, é o sucesso das obras de Rossini, que pode ser verificado na constante reapresentação de suas óperas, mesmo que em uma seqüência que em nada se relaciona com as apresentações na Itália. 12 13 Assinado: O autor das cousas antigas. p. 28. 68 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro Óperas de Rossini em seqüência cronológica (LSC – Lisboa, Teatro São Carlos / PSJ – Porto, Teatro São João) Título Estréia Estréia em Portugal 14 Roma, 18/05/1812 LSC, 1816 Estréia no Rio de Janeiro 1 Demetrio e Polibio 2 La cambiale di matrimonio Veneza, 3/11/1810 3 L'equivoco stravagante Bolonha, 26/10/1811 4 L'inganno felice Veneza, 8/01/1812 5 Ferrara, ?14/03/1812 6 Ciro in Babilonia, ossia La caduta di Baldassare La scala di seta Veneza, 9/05/1812 LSC, 22/01/1825 7 La pietra del paragone Milão, 26/09/1812 PSJ, fev. 1821 8 L'occasione fa il ladro Veneza, 24/11/1812 LSC, 13/05/1824 9 Veneza, 27/01/1813 10 Il signor Bruschino, ossia Il figlio per azzardo Tancredi Veneza, 6/02/1813 LSC, 1815 /1819 11 L'Italiana in Algeri Veneza, 22/05/1813 LSC, 1815 31/08/1822 12 Aureliano in Palmira Milão 26/12/1813 LSC, 12/10/1824 13/05/1820 13 Il Turco in Italia Milão, 14/08/1814 LSC, 10/07/1820 10/07/1825 (final da ópera) 14 Sigismondo Veneza, 26/12/1814 LSC, 21/07/1823 15 Elisabetta, Regina d'Inghilterra Nápoles, 4/10/ 1815 LSC, 11/12/1820 16 Torvaldo e Dorliska Roma, 26/12/1815 LSC, 7/08/1820 17 Il barbiere di Siviglia Roma, 20/02/1816 LSC, 1819 18 La gazzetta Nápoles, 26/09/1816 (composta antes de 1809) LSC, 1817 15/09/1824 01/10/1826 01/12/1822 21/07/1821 14 Cf. D. CRANMER, Opera in Portugal 1793-1828: a study in repertoire and its spread, Ph.D. Dissertation, s/l, 1996, pp. 549-550. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 69 Paulo M. Kühl – A chegada das óperas de Rossini no Rio de Janeiro 19 Otello, ossia Il moro di Venezia Nápoles, 4/12/1816 LSC, 1820 12/07/1828 20 La Cenerentola Roma, 25/011817 LSC, 1819 26/02/1821 21 La gazza ladra Milão, 31/05/1817 LSC, 1819 03/10/1825 (final da ópera) 22 Armida Nápoles, 11/11/1817 23 Adelaide di Borgogna Roma, 27/12/1817 LSC, 25/10/1822 09/01/1823 24 Mosè in Egitto Nápoles, 5/03/1818 LSC, 26/02/1823 25 Adina 26 Ricciardo e Zoraide Lisboa, 12/06/1826; composta em 1818 Nápoles, 3/12/1818 27 Ermione Nápoles, 27/03/1819 28 Eduardo e Cristina Veneza, 24/04/1819 LSC, 13/12/1823 29 La donna del lago Nápoles, 24/10/1819 LSC, 22/01/1822 30 Bianca e Falliero ossia Il consiglio dei tre Maometto II Milão, 26/12/1819 LSC, 03/07/1824 Nápoles, 3/12/1820 LSC, 12/10/1826 31 32 14/02/1828 LSC antes de 1821 Roma, 24/02/1821 LSC, 30/05/1825 33 Matilde di Shabran, ossia Bellezza, e cuor di ferro Zelmira Nápoles, 16/02/1822 LSC, 13/05/1823 34 Semiramide Veneza, 3/02/1823 LSC, 12/12/1825 35 Il viaggio a Reims, ossia L'albergo del giglio d'oro Le Siège de Corinthe Paris, 19/06/1825 Moïse et Pharaon [revisão de Mosè in Egitto] Le Comte Ory Paris, 26/03/1827 Guillaume Tell Paris, 3/08/1829 36 [revisão de Maometto II] 37 38 [revisão parcial de Il viaggio a Reims] 39 70 Paris, 9/10/1826 Paris, 20/08/1828 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 59-70 O Dossiê Neuparth. Fernando Pereira Binder * Erdmann Neuparth foi um dos muitos músicos europeus que, no início do século XIX, se mudaram para o Rio de Janeiro. Estima -se que, nos treze anos de seu reinado, Dom João tenha contratados pelo menos 137 músicos, incluindo alguns castrati italianos (HAZAN, 1999, 60). Erdmann chegou ao Brasil em 1817 como mestre da banda de música formada para acompanhar a princesa Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I. Após sua chegada, o grupo foi convidado por Dom João a permanecer aqui. Leopoldina veio cercada de um séqüito numeroso, eram cerca de 1220 pessoas, vacas, bezerros, porcos, ovelhas, galinhas e patos. Para amenizar o tédio da viagem foi embarcada uma coleção de 600 canários e outros pássaros do Brasil e a banda de Neuparth. A comitiva era tão grande que o chanceler Metternich teria dito que a Arca de Noé “era um brinquedo de criança comparado ao navio de carreira João VI.” (WAGNER, BANDEIRA, 2000, vol I, p. 39). O hábito de ter uma banda de música espalhou-se pela aristocracia da Europa Central na segundo metade do século XVIII, quando os nobres “de muitos ou poucos meios, esforçaram-se para ter sua própria pequena banda de música particular para o entretenimento de sua corte ou simplesmente seu próprio prazer” (CAMUS, 1976, 30). Existem alguns registros desses conjuntos embarcados nos navios que traziam e levavam a aristocracia européia do Brasil para a Europa. Em 1808 teria vindo de Portugal junto com Dom João VI a Banda da Real Armada. Em 1816, no navio que trouxe o Conde de * Fernando Pereira Binder é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP, bolsista da FAPESP, e integrante do Grupo de Pesquisa Musicologia Histórica Brasileira. Atualmente pesquisa a atuação das Bandas de Música no Brasil durante o século XIX, em particular o processo de organização dos conjuntos musicais militares. É Bacharel em Composição e Regência pelo mesmo Instituto desde 2002. Foi bolsista da FAPESP e do CNPq desenvolvendo pesquisas no campo da musicologia histórica. Também atua como editor de música para gravações. Em 2003 foi editor no Projeto Acervo da Música Brasileira do Museu da Música de Mariana. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 71 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Luxemburgo ao Brasil, embaixador especial de Luís XVIII e encarregado de reestabelecer os laços diplomáticos da França com Portugal, havia uma banda a bordo, para a qual Sigismund Neukomm teria composto algumas marchas, uma valsa e outras obras (AZEVEDO, 1959, 475). A ausência do conjunto numa visita que o conde fizera a Dom João deixou o monarca português decepcionado (LIMA , 1996, 695). No ano seguinte pelo menos duas bandas chegaram ao Brasil, ambas na comitiva que acompanhava a princesa Leopoldina. Uma delas foi a banda de Neuparth, que veio na fragata Dom João VI, e que chegou ao Brasil em novembro de 1817. A outra veio a bordo da fragata Áustria, e que chegou aqui quase três meses antes, em 14 de julho de 1817. Nela vieram os naturalistas Mikan, Spix e Martius e o pintor Thomas Ender, além dos diplomatas austríacos. Certamente a razão para a banda ter sido embarcada: um príncipe, quatro condes e dois barões.2 A banda da fragata foi retratada por Ender em duas aquarelas hoje bastante famosas. Debret3 e Manuel Araújo Porto Alegre 4 escreverem sobre o conjunto dirigido por Erdmann, mas foi só em 1900 que Ernesto Vieira relacionou tal conjunto à banda criada por Dom João em novembro de 1817 como Banda das Reais Cavalariças (VIEIRA, 1899, 117-121). As informações saíram no verbete de seu Dicionário biográfico de músicos portugueses e foram obtidas na autobiografia que Erdmann escreveu em 1869, aos 85 anos de idade. É de se suspeitar que Vieira tenha conseguido a autobiografia com Augusto Neuparth, filho de Erdmann. Músico de renome em Portugal, Augusto pode ter sido professor de Vieira no Conservatório de Lisboa e seu colega no Teatro São Carlos. 2 Eram eles: príncipe Thurn und Taxis, os condes de Schönfeld, Palfly e Eltz; os barões Neveu von Windschlag, von Hügel. 3 Na descrição da Prancha 38, Vista do Largo do Palácio no Dia da Aclamação de Dom João VI, Debret cita uma “orquestra composta unicamente de músicos alemães que acompanharam a princesa durante a travessia” (DEBRET, 1975 [1834-1939], vol 2, p. 240) 4 “Na fragata que nos trouxe a arquiduquesa, primeira imperatriz do Brasil, veio uma banda de música digna de acompanhar e suavizar a longa viagem daquela saudosa princesa. José Maurício até então não havia visto essa precisão mecânica, essa igualdade de execução que é um dos privilégios dos compatriotas de Mozart e Beethoven, e nem tão pouco conhecia os novos instrumentos que ela trouxe. Tão enamorado ficou de ouvir aquela banda musical, que para ela improvisou doze divertimentos, que são doze peças de admirável inspiração. Durante os ensaios destas obras, o povo ia ouvi-los no Largo São Jorge, de fronte à casa de José Maurício” (PORTO ALEGRE, 1856, 361). 72 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth O trecho da autobiografia em que Neuparth relata sua estadia no Brasil, entre os anos de 1817 e 1821, foi parcialmente publicado duas vezes por Francisco Curt Lange. Ele soube da existência da obra através do dicionário de Vieira e localizou-a em Portugal em 1961, quando também a teria microfilmado. Em 1962 Lange publica o trecho brasileiro precedido de uma pequena introdução no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo (LANGE , 1962, 6). Em 1967, republica-o em alemão na revista Staden-Jahrbuch, do Instituto Hans Staden de São Paulo (LANGE, 1967, 163-175). As publicações de Vieira e Curt Lange sobre Neuparth e a Banda das Reais Cavalariças5 não tiveram maior repercussão na literatura musicológica. Ainda hoje, o conjunto é conhecido pelas informações dadas por Debret e Porto Alegre. Nem mesmo Ayres de Andrade, que encontrou no Arquivo Nacional a listagem dos músicos contratados por Dom João VI (ANDRADE, 1967, vol 1, p. 131), utilizou as informações já publicadas e sabidas sobre o conjunto. Não é de se estranhar esse desinteresse pela figura de Neuparth: o seu perfil – um músico de banda alemão – não se enquadrava bem nos objetos que a historiografia musical brasileira da década de 1960 estudava: grandes gênios brasileiros, compositores de música erudita, pretos e mulatos se possível, tais como o padre José Maurício e Lobo de Mesquita. As próprias palavras do Curt Lange na introdução à autobiografia de Neuparth revelam a inadequação da autobiografia de Neuparth a esse projeto: Neuparth interessava-me muito, devido á esperança de encontrar na sua autobiografia, cujas dimensões desconhecia, uma vivida descrição do Rio musical que atuou, [...]. Quando alguém se dispõe a escrever memórias, muitas vezes esquece da importância para a História, da menção de muitos fatos que ao autor podem parecer insignificantes. Escreve-se muito de si e pouco do meio social e artístico do tempo. Isto aconteceu com o filho do ilustre padre compositor, e, de forma igualmente lamentável, repete-se no caso de Eduardo Neuparth, homem simples, com uma concepção prática da vida, imposta pelas lutas que teve de sustentar na sua época como músico e regente. Carecia de condições intelectuais, embora para a sua memória sejam altamente honrosas as suas qualidades morais. Porém, frustrou-me a minha esperança de referências sobre a vida musical nos teatros onde ele teve atuação, ou ainda sobre figuras tão destacadas neste período, como as de Neukomm, 5 Lange apresenta alguns documentos relativos a José Kroner, outro músico da Banda das Reais Cavalariças. Francisco Curt LANGE, Pesquisas Luso-Brasileiras. In Barroco, Belo Horizonte, Conselho de Extensão da UFMG, 1980, v. 11, pp. 71-142. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 73 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth os irmãos Portugal, o Pe. José Maurício e outros músicos de importância que a história musical brasileira desconhece (LANGE, 1962, 6). Em 2002, soube da existência da autobiografia de Neuparth da mesma maneira que Lange, através do dicionário de Vieira. No final de 2003 consegui localizar em Lisboa o Sr. Júlio Neuparth, descendente de Erdmann que estava com autobiografia, agora publicada integralmente. Aproveitando a ocasião, incluí outros documentos relativos à Neuparth e às bandas em que ele tomou parte, os quais, embora não sejam inéditos, encontram-se dispersos em livros esgotados há muito tempo. São eles: um contrato de Neuparth como mestre de banda de um regimento militar português e o contrato de Neuparth como músico nas Reais Cavalariças, publicado por Ernesto Vieira no Dicionário Bibliográfico; alguns documentos sobre a contratação da banda que acompanhou a princesa Leopoldina publicados por Ângelo Pereira, o aviso publicado na Gazeta do Rio de Janeiro onde os músicos da banda tentam localizar o representante do comerciante Henrique Teixeira Sampaio, encarregado do pagamento dos músicos. A transcrição documentos que já se encontravam impressos procurou preservar a ortografia e pontuação registradas nas fontes consultadas. Na transcrição da biografia isso também foi observado. No entanto algumas intervenções foram realizadas: letras ou palavras escritas entre as linhas foram incorporadas ao texto corrido. Rasuras realizadas pela mão de Neuparth não forma transcritas. Estas peculiaridades são pontuais na biografia e não interferem na compreensão do texto. Para finalizar gostaria de agradecer ao Sr. Júlio Neuparth pela cordialidade com que me atendeu e pela autorização dada para a publicação do manuscrito. 74 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Bibliografia citada. ANDRADE, Ayres de, Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865 uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967. vol. 2 vols. AZEVEDO , Luis Heitor Correa, Sigimund Neukomm, an Austrian Composer in the New World. InThe Musical Quartely, vol. 45, n. 4, pp. 473-483, 1959. CAMUS, Raoul F., Military music of the American Revolution, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1976. DEBRET, Jean-Baptiste, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, São Paulo, Brasília, Martins Fontes, INL, 1975, 6.ed. HAZAN, Marcelo Campos, The sacred works of Francisco Manuel da Silva (1795 -1865), Ph.D. Department of Musicology - The Catholic University of America. United States, District of Columbia. 1999. LANGE, Francisco Curt, Erdmann Neuparth, ein deutscher Musiker im Brasilien. In Staden-Jahrbuch, São Paulo, 15, p. 163-175, 1967. ______, Musico alemão no Brasil de D. João VI. In O Estado de São Paulo, n. 295, 01 set. 1962, Suplemento literário, p. 6. LIMA, Oliveira, Dom João VI no Brasil, 3ª ed. Rio de Janeiro, Topbooks, 1996. PEREIRA, Ângelo, Os filhos de el-rei D. João VI, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1946. PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo, Apontamentos sobre a vida e a obra do Pe. José Maurício Nunes Garcia. In Revista do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Tomo XIX, n.23, p. 354-369, 1856. VIEIRA, Ernesto, Dicionário biográfico de músicos portugueses. História e bibliografia da música em português, Lisboa, Lambertini, 1899. vol. 2. W AGNER, Robert & B ANDEIRA, Júlio, A Noiva do Príncipe Herdeiro de Portugal Arquiduquesa Leopoldina. In Viagens ao Brasil nas Aquarelas de Tomas Ender: 1817 – 1818, Petrópolis, Kapa, 2000. vol. 1, pp. 33-40. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 75 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth 1. Contrato de Neuparth como mestre de Música do 4.º Regimento de Infantaria de Linha. Ernesto Vieira publicou este contrato em seu Dicionário Bibliográfico (VIEIRA , 1899, vol. II, 119-120). É de se suspeitar que Vieira o tenha conseguido com Augusto Neuparth, filho de Erdmann, seu colega no Teatro São Carlos, onde Vieira era clarinetista e Augusto, primeiro fagotista. Contrato que faz Erdmann Neuparth, Mestre de Musica no 4.º Regimento de Infantaria de Linha. 1. o – Fico engajado n’este Regimento, como Mestre de Musica, ganhando dezesseis tostoens por dia, principiando a nove de Maio do presente anno, athe nove do ditto mez de 1815 devendo receber a dita paga sem diminuição athe o fim do tempo do meu ajuste. 2. o – Serei somente obrigado a tocar no que pertence ao serviço militar. 3. o – No caso de adoecer ficarei recebendo o meu soldo pelo espaço de um mez. 4. o – O Regimento me fará pagamento de dez em dez dias. 5.º – Caso de eu querer me retirar, ou o Regimento me querer demitir, no enfim do meu ajuste, haverá um aviso recíproco d’hun mez antes. 6. o – Fico igualmente encarregado de fornecer ao Regimento Música Militar, a qual farei ensaiar e dar ao publico o mais ameudo que for possivel. 7. o – Serei obrigado a executar as ordens que receber do Comandante do Regimento e Capitão encarregado da Musica. 8. o – Será de minha obrigação ensinar a tocar qualquer instrumento aos Soldados do Regimento tirados para Musicos, dando-lhes liçoens e prestando todo o sentido e cuidado, a fim de os pôr perfeitos. –Quartel em Miret 9 de Maio de 1814. – (a)Armstrong Tenente Coronel Commandante. 76 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth 2. Contratos dos músicos para a banda que acompanharam a princesa Leopoldina.6 Ângelo Pereira (PEREIRA, 1946, 245-247) informa, em nota de rodapé à página 245, que “Todos os documentos transcritos sobre a comitiva da Arquiduqueza D. Maria Leopoldina, pertecem à Col. Do Autor”. À mesma página, no corpo do texto ele continua: “Tivemos a felicidade de adquirir recentemente o processo original, respeitante ao contrato da banda de música que embarcou na nau ‘D. João VI’, do qual copiamos os principais documentos”. Como deixa claro o próprio autor, o texto abaixo não contém todos os documentos. Por outro lado, ele não relaciona o conteúdo completo do “processo original”. Aparentemente, faltariam pelo menos três documentos do processo: 1) As ordens dadas por D. João, que se encontra mencionado logo na primeira linha da primeira carta, 2) A Portaria de 26 de Maio de 1817, expedida ao Marquês de Borba. 3) O Aviso n.º 3 dando ciência ao Henrique Teixeira de Sampaio arcar com as despesas. Senhor Continuando a informar a V. Mag. e sobre a execução das Reaes Ordens que V. Mag. e foi servindo mandar-nos expedir relativamente ao preparo da Esquadra destinada a conduzir a essa Corte a Senhora Archiduqueza Leopoldina, temos a honra de participar a V. Mag.e que, fazendo escolher, dos Muzicos que se achavam nesta Capital, os melhores, e mais proprios para compôrem a Banda de Muzica que V. Mag. e recomenda que se envie a bordo da – Nao D. João VI – em que deve embarcar Sua Alteza Imperial, fizemos nomear para este serviço os que constão da Lista que incluza transmittimos à presença de V. Mag.e debaixo do N.º 1.º, enviando igualmente com o N.º 2 as condições com que elles se ajustarão, assim como a Portaria em data de 26 do corrente mez que expedimos ao Marquez de Borba para ser satifeita, do modo que será constante a V. Mag. e pelas mesmas copias, a importancia da despeza que se fizer com este objecto do Real Serviço de V. Mag. e, o qual 6 Agradeço o colega Adriano Castro Meyer pela indicação do livro e do documento. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 77 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth assentámos por esse mais conveniente incumbir ao Negociante Henrique Teixeira de Sampaio, a quem por esse motivo fizemos expedir o Avizo constante da copia N. 3. Têmos mandado fornecer pelo Arsenal Real do Exercito o fardamento que nos pareceo proprio destinar para os referidos Muzicos, procurando que neste objecto, como em todos os mais relativos e esta expedição, se observe a decencia que compete ao interessante fim para que ella sê destina. A muito Alta e Muito Poderoza Pessoa de Vossa Magestade guarde Deos muitos annos como desejamos e havemos mister. Lisboa no Palacio do Governo, em 16 de Maio de 1817 ./. Marquez de Borba Principal Souza D. Miguel Pereira Forjaz N.º 1 – Para Henrique da Fonseca de Souza Prego. Sua Magestade manda remeter a VM. a Relação incluza dos Muzicos que devem embarcar a birdo da nau D. João Sexto, e juntamente a copia das condiçoens com que eles forão ajustados para esta viagem, as quaes V. S.ª fará executar na parte que lhe toca.O que participo a V.S.ª para sua inteligencia. Deos guarde a VS.ª Palacio do Governo, em 28 de Abril de 1817 D. Miguel Pereira Forjaz. RELAÇÃO DOS MUZICOS QUE SE ACHÃO NOMEADOS PARA EMBARCAREM NA NAU D. JOÃO SEXTO Director, Erdmann Neuparth, 1.º Clarinete, Gaspar Catelão, 2.º d.º Antonio Bulak, 2.º d.º João Vieira, Flautin Antonio Joze, D.º Joze Croner, 1.º Trompa, Antonio Carretero, 2.º d.º Joze Romano, 1.º Clarim, Francisco Roth, 2.º d.º Pedro Tevar, 1.º Fagote, Christiano Florick, 2.º d.º Romao Monteanos, Trompão, Leopoldo Smith, Bumbo, Joze Mural, Ruffo, Antonio Joaquim, Prateiro, Marçal Joze, D.º Manoel Ignacio * * NB. Em lugar deste, vai Luiz Kar. Lourenço Ant.º d’Araujo 78 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth N.º 2 CONDIÇÕES EM QUE SE AJUSTARAO OS MUZICOS, QUE DEVEM EMBARCAR A BORDO DA NÃO D. JOAO 6.º 1.ª Vencerá cada Muzico por dia o Ordenado constante da Lista abaixo transcrita, sendo satisfeito em metal, e desde o dia 1.º de Maio proximo futuro. 2.ª Depois da sua chegada ao Rio de Janeio será livre a cada hum o ficar na mesma Côrte, ou voltar para Lisboa, como mais conveniente lhe fôr. 3.ª Aquelle que pretenderem ficar, continuarão a vencer o mesmo Ordenado, só por mais hum mez, depois de chegarem á sobredita Côrte, em cujo tempo assim o deverão declarar ao correspondente Negociante Henrique Teixeira de S. Paio, na mesma Côrte, por meio do Director, para lhe ser suspenso desde então o respectivo vencimento; ajustando-lhes o mesmo Correspondente, segundo as Instrucções, que tiver recebido, o que ainda se estiver a dever a cada hum, na conformidade destas Condições. 4.ª Os que porem quizerem voltar para Lisboa, serão transportados á custa do Estado, vencendo o sobredito Ordenado até ao dia de sua chegada a este Porto, e sendo promovido o seu transporte pelo sobredito Correspondente, e com toda a brevidade possível em Navios de Commercio, quando Sua Magestade lhes não mande facilitar passagem em alguma Embarcação da Côroa. 5.ª Irão sujeitos immediatamente ao Commandante da Esquadra, sendo considerados como Muzica particular. 6.ª Dar-se-lhe-há de comer, em quanto estiverem a bordo, pela Ucharia. 7.ª O mesmo Negociante Sampaio satisfará aqui ás Familias de cada hum dos Muzicos, aquella parte dos seus Ordenados, que elles lhes quizerem deixar para seu sustento, a qual lhe será depois descontada no seu ajuste de Contas. 8.ª Conceder-se-lhe-há tres Mezes adiantados dos seus Ordenados, obrigando-se com tudo o Director a responder por elles. 9.ª Concerder-se-lhe-hão os Uniformes, que houverem de uzar a bordo. VENCIMENTOS QUE DEVEM TER POR DIA Hum Director, 1$600 Reis, 1.º Clarinete 1$200, 2.º Clarinete 1$200, 2.º D.º 1$200 Flautim 1$200, D.º 1$200, 1.ª Trompa 1$200, 2.ª D.ª 1$200, 1.º Clarim 1$200, 2.º Clarim 1$200, 1.º Fagote 1$200, 2.º Fagote 1$200, Trompão 1$200 , Bumbo 600, Rufo 600 Prateiro 480, D.º 480. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 79 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Palácio do Governo, em 26 de Abril de 1817 D, Miguel Pereira Forjaz – Lourenço Ant.º d’Araujo. 3. Aviso da Gazeta do Rio de Janeiro, n.º 96, Avisos 29 de novembro de 1817. Os Musicos, que tiverão a honra de accompanhar, desde a Europa a esta Corte, a S. A. R. a Serenissima Senhora Princeza Real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, annuncião ao corresppondente de Henrique Teixeira Sampaio, que necessitão falla-lhe, e por ignorarem o lugar de sua residencia, depois de bastantes indagações, lhe suplicão que se sirva mandar-lhes as suas ordens á rua do Conde N.o. 59, onde vivem. 4. Portaria contratando Neuparth para a Banda das Reais Cavalariças. Ernesto Vieira publicou esta portaria em seu Dicionário Bibliográfico.(VIEIRA, 1899, vol. II, 120). El Rey Nosso Senhor Faz Mercê a Eduardo Neuparth de o tomar por Musico das suas Reais Cavalariças com a qual ocupação vencerá o ordenado de duzentos sete mil trezentos noventa e seis reis por anno, com que o escrivão das ditas Cavalariças o lançará em Folha, com vencimento desde vinte e seis de novembro do corrente anno, e gosará dos privilégios e izençoens que tem e de que gosão os Musicos das referidas Cavallariças, e isto em quanto e Mesmo Senhor assim o houver por bem a não mandar o contrário. - Rio de Janeiro em dez de dezembro de mil oito centos e dezesete.-(a.) Conde de Paraty 80 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth 5. Biografia de Erdmann Neuparth. A autobiografia de Neuparth foi registrada em 24 páginas numeradas num pequeno livro de 14 x 21 cm. Atualmente encontra-se sob a guarda de Júlio Neuparth, que me forneceu uma cópia, a partir da qual foi realizada a transcrição. [rosto] Vida d'Eduardo Neuparth escrito por sua maõ, ate a idade de 85 annos [rosto verso] [p.1] Nacido no dia 6 de Janeiro 1784 no Principado Reis Greitz in Voigtlande na Saxoni a na villa chamada Poelwitz pertencendo ao Distrito de Zeulenrada. . Meu Pai chamava-se Michel Neuparth e a Minha Mae chamava-se Maria Dorothea. Meu Pae era Lavrador e Proprietario; Eu aprendi a ler e escrever na Escola que exestia neste tempo na villa, e depois ocupei-me nas travalhos de Campo com os meus Paes e o meo Irmão que meu Pai cultivaba. . Mas como ja de pequeno gostei muito de Musica e tinha muito vondade de aprender Algum Instrumento, com prei um Clarinette muito ordinario que tinha somente duas Chaves, e com este pricipiei a estudar sem mestre e aprendi a tocar algumas Valzas e Cantigas que eu ouvi, de que gostei muito, e tomei mais gosto p.ª a musica, e pedi ao meu Pae, que me mandasse dar leçoens de Musica, e elle consentio, que eu tomasse leço~ ens de Rebeca e Clarinetti; não tardou muito tempo que meo Mestre conheceo, que eu tinho algum geito p.ª a musica Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 81 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth meteo-me na Cabeça, de deidicar-me a Musica e deixase a ser Lavrador, Eu gostei e foi pedir ao meu pai que me deixase apprender Musica com o Musica d e Zeulenvadara o que meu elle de nem um modo quiz consentir, mas por fim concentia, e eu entrei de apprendiz, por o tempo de cinco annos, tinho eu feito entaõ 15 annos. Fiz os meus 5 annos [p.2] de aprendiz e o meu tempo estava acavado, então era prezisso de procurar a minha vida, porque na casa donde eu aprendi não podia ficar porque não prezisavam de mim, e p.ª a casa de meu Pai tambem naõ podia ir, porque ja naõ estava gostumado a travalhar no Campo. . foi então que achei um lugar na Capella de Principe de Lowenstein de 1. o Cla rinetti, era no anno 1804, em cuja Capella fiquei ate 1806. nomes de 9bro quando Napoleon 1. o Entrou na Prussia, e o Exercito de centro passou por aquella Cidade, e ruinou tudo como neste tempo se fazia a guera. . O Principe ficou ruinado e ja naõ podia sustendar a sua casa no mesmo splendor como d’antes, portanto era necessaria fazer économias e toucou a Musica de ser despidido. . Era portanto necessario procurar a vida; tinho eu 22 annos, achei um commodo so p.ª 3 meses p.ª passar o inverno em Werda, na Saxonia. A primaveira foi fazer uma viagem p.ª o Sul a Tranconia e achei ocupação em Marckbreit Sobre o Main, fiquei poco tempo porque la mi offereceo um Lugar na capella de Principado de Amorbach de de Clarinetti e Rebeca cujo lugar eu aceitei, mas como o Mestre da Cappella era muito mal creado, resolvi-me logo de não ficar muito tempo, e o acasso ajudou-me, porque encontrei na mesma Capella 3 Companheiros de Capella de Lowenstein, os meus amigos tambem não esta vam contendos por o mesmo motivo, nos estivemos 82 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth contratados por um anno; Resolvemos nos a não acabar o anno e aussensentar-nos sem Licença, nem Passorte [p.3] oque fizemos com efeito, com pocos meios de Dinheiro p.ª fazermos uma viagem de 150 Legoas, não nos faltou po rem nada, por o caminho arranjamos alguns Concertos que o producto d’elles chegou-nos p.ª a despeza de Viagem! Guando chegamos ao fim de nossa viagem, consultamos entre nos o que haviemos de fazer p.ª o futuro, e resol vemos a não nos separar e formar uma Banda so de Instrumentos de vento para harmonias e viajar, a Banda em poco tempo se completou, consis tia em 2 Clarinettes, 2 Fagottos, 2 Trompas e um que tocava Flauta e Oboe, total Sete em todo. . E como era necessario nomiar um director nomearam me a mim por esta lugar..Em pocos dias estava todo prompto, e principiou a nossa viagem, que ao prin cipio poco ganhamos, mas quando chegamos mais p.ª Sul principiou a ir melhor, e pode dizer-se que hia bem, mas levandou-se entre nos uma disunião que frustrou tudo. Os disunionistas eram 3. et de outra parte era mas 4. Guando chegamos a Freiburgo em Breisgau desfezse a nossa Banda, e os 3 forem outra vez p.ª sua Caza e nos ficamos em Freiburgo em cuja cidade estava um Rgto de guarnição de grande Duque d e Baden, cujo Regto precissava um Mestre de Musica, e como eu era o director da Banda cha maram me a mim, por ser o Mestre ganhanto 45. fl. por mes. . mas eu não quiz desamparar os meus Collegas, propoz ao Comandante de ficar com os quatro, mas respondeu-me que de [p.4] Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 83 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth boa vontade o faria mas não tendo mais Dinheiro de que o aquelle que estava distinado p.ª o mestre não podia despôr de mais nada; Consultamos entre nòs e resolveimos a ficar todos quatro apor os 45 florins eu de mestre recebendo 15 fl.os por mes e os compan heiros a 10 fl: cada um por mes; Era no mes de 10 bro de 1807. Ganavamos poco de Reg. to, mas os indereses par ticulares erem muitos, como havia pocos Musicos naquela Ci dade, chamavaõ nos por toda a parte, estava o Comandante muito contente, pª ver que seus Musicos estimados e tinhão muitos intreses, fora que o Rgto lhes dava. Mas durava poco, porque estivamos sò 8 meses, quando no mes Agosto de 1808. veio Ordem p.ª o Reg. to Marchar p.ª Strasburgo; Eu estava bastante doente O Comandante naõ quiz que eu fosse com o Reg. to mas como coria a voz que o Reg. to ficava de guarnição em Straburgo não quiz ficar no deposito e foi com elle; Mas no dia que chegamos a Strasburgo ja la estava a Ordem de marchar o dia Seguinte p.ª Epagna, não me sentia com forças de fazer aquella jornada, foi logo pedir o Comandante que me mandasse passar uma Guia p.ª ficar no Hospital Militar em Strasburgo, visto que minhas forças não permediaõ de Seguir o Reg. to o que logo, Entrei no Hospital no dia 26 de Agosto foi sempre bem tradado, dive varias Molestias uma atraz de outra, das quaes estive um paar de vezes a morte, o ultimo [p.5] ataque forte, os empregados de hospital furdarão me o que tinha, O Relogio, o poco Dinheiro que tinha e uma Sobre casaca, queixei-me ao fisicomor, que 84 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth me mandanse restuir o que tinhaõ roubado, a sobrecasaca foi a unica cousa que apareceo o resto estava perdido, eu estava sem vingtem, resolvi me então escrever aos meus Paes, que me mandassem algum dinheiro. Eu conservei ainda o meu uniforme que estava guartado, com este me remeidiei. . Por fim melhorei e cheigou o tempo de poder sahir de Hospital era no dia 26 de Fevereiro de 1809. esteve 6 meses completas. . Agora esteve eu totalmen te só, não conhecia nemquem, o meu Regto estava na Espagnha e eu em Strasburgo, eu nao podia fazer o caminho Sozinho p.ª ajuntar-me com o Regto., sem saver nem a lingoa Franceza nem a Espagnola, resolveome então abandonar o Reg. to. .Por acaso havia um comissinado que procurava Musicos por um Reg. to Francez que estava tambem em na Espagna que era 119. Regto de Ligne. Contracdei-me como musico por 72. francos por mes. os musicos contractados eram Sete e o Mestre. o Deposito estava em Dux ao pìe de Baiona, tinhamos que travessar toda a fran ça, e gastamos perto de 3 Meses; no Deposito poca demora divemos, um Destacamento comantado por um Capitaõ, foi para o Reg. to com cujo destacamento [p.6] fomos nos mandado no mesmo tempo, não havia grande novidade por o caminho que durou bastante tempo, mas em fim de muitas marchas e contramarchas chegamos ao Rgto. O Coronel e a Officialidade ficaraõ muito contendo com a chegada de Musica, mas não durou muito tempo, porque o mestre era um Bebado, e não tinha nem uma nota de musica, e não savia arranjar, portanto a nossa mu Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 85 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth sica era uma boracheira, eu estava enfastiado, poz me a tra valhar e arrangei p.ª a nossa musica Varias Valzes pas reduble e Marchas e outras cousas, que nos ensaiamos entre nos sem que o mestre o soubesse, quando estiverem esaido, eu lhes offereci o mestre p.ª as tocar en casa de Coronel, mas o mestre não quiz e ainda se sangou com migo por eu me atrever de arranjar e ensaiar musica sento elle o mestre; mas nos continuamos os nossos ensaios como dantes, um dia quando nos estivemos ensaiando, passou o Coronel e como ouvio Subio, e preguntou porque não se tocava aquella Musica em sua Casa, eu lhe diz então, que ja aquella Musica eu avia offerecido ao Mestre mas que elle não queria que se tocasse; O Coronel ordenou então, que a noite se havia de tocar aquella Musica em sua cassa com a mesma Gente e sem o Mestre, o mestre deve ordem de ficar em sua casa aquella noite, e nunca mas fez servir no Reg. to ficou doende e em pocas dias moreo; e eu fiquei entaõ de Mestre, e como tal fiz a guerra Pininsular, o meu soldo era de 150 fr e dois raçoens e raçaõ por o Cavalho quando tinha, O meu Reg. to estava neste Tempa na Provinzia [p.7] das Montanhas ao peè de Santander. .Entramos nas Astu rias sem grandas combates chegamos a Capital que he Oviedô de la foi o Reg. to de guarniçaõ pª a Gigon um pequeno bordo da mar, a villa forma uma peninsula; estivemos quasi 3 annos, nunca vi melhor gente que os Asturianos. . Estivemos muito socegado nas Asturias, quando inesperatamente caio o Raio sobre a nossa Divisão, Chegou Ordem p.ª nos ajundar mos nos com o Exercido de Marechal Marmon que estava na Castilha p.ª atacar o Lord Wellenton o que sucedeo no dia 22 de Julho de 1812. quando se dèo aquela granda Batalha chamada das arabilas ao peè de Salamanca, dondo os fran 86 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth zeses perderam tanta gente e tanta Artilharia. . a nossa retirada foi sobre Valadolid e Burgos, mas antes de de chegarmos a Burgos, chegou um Comandante novo ao Reg. to, quando elle tomou conta de Regto, viu elle que não podimos fazer serviço porque eramos so. 4. dos 28 que tinhamos chegado ao Reg. to, mandounos ao Deposido em Dax.. no memso instante sube que o Coronel que foi ferida na ulti ma Batalha, que estava curado e nomeado subrefeito na Alsacia e que devia partir em poco tempo p.ª o seu distino, e como o Reg. to devia 18 meses, eu fui logo pedir lhe que nos mandasse pagar antes de ausentar se, o que elle fez, passou logo uma ordem, de se nos pagar o que devia, o que logo foi feito sem a minima demora; [p.8] foi o primeiro Dinheiro que eu Recebi junto e que era meu erem 2.700 francos por o cambio de hoje 486$000 Rs. fiquei perto de um anno no deposito para arranjar a musica ate ao mes de Junho de 1813. Quando o novo Coro nel foi ao Regto e nos levou comsigo, chegamos ao Re gimento 15 dias antes de Batalha de Victoria, donde os Francezes soffrerem esta inorma perta; toda a Artilheria que tinham, e pode dizer-se que toda a Riqueza de Espaagnha esteve ali junta não escapou nada, os Portuguezes espagnoes e Engleses apanharem tudo..tambem eu perti por a terceira vez tudo quando posuia, ja tinha perdido por duas vezes tudo quando tinho. .felizmente não tinho trazido o meu Dinheiro que tinho recebido no deposito, tinha o deixado em frança Deposidada em casa de um amigo, que me o guardou fielmente. . A nossa retirada foi athe que passamos a raia de Espagnha; accampammos nos Pivoneos algums tres meses, houve varios attaques que sempre forem Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 87 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth infelizes p.ª os francezos; No principio de 10bro 181[3?] Ritiremos nôs p.ª Bayona no dia 13. de 10 bro havia um ataque a Bayona que durou todo o dia, nunca ouvi uma fusilhada e de Artilheria como na aquel dia. No dia seguinte, Retiramos sobre o cuminho de Touloces e ahinda avia um ataque ao pèe de Ortes que se perdeu e seguia a retirada ate a Toulose sem novidade, ao pèe de Toulose que foi a ultima Batalha que houve na Guerra Peninsolar, e seguiuse a Paz. . Depois de [p.9] Paz feita o meu Reg. to conservou-se ahinda por aquel les Sitios, mas o Reg. to ja naõ tinha Dinheiro p.ª pagar os Soldados nem a Musica ja me devião seis meses e naõ havia esperanças de receber vingtim, e vi que a cousa hia de mal p.ª peor, resolvi-me a abandonar os Francezes, o que fiz; algumas legoas de quel sitio estava o quarto Reg. to Portuguez que procurava um Mestre de Musica, deixei então os francezes e foi offerecer-me, foi logo aceito, e foi feito o contracto a 1$600 rs por dia, p.ª accompagnar o Reg. to Para Portugal; era no dia 9 de Maio de 1814. E ja no 14 de dito mes o Reg. to Marchou p.ª Portugal.. Gastamos tres meses e quatro dias p.ª o caminho, entramos em Lisboa no dia 18 de Agosto. .Este tem sido minha vida ate aos trente annos que tinha então.. Estando em Lisboa, no Reg. to tinha 10 moedas por mez e entrei logo no Theatro de Rua dos Condes, no qual continuei a tocar ate 1816. quando entrei no theatro de San Carlos, mas não estive muito tempo aberto, porque tinha morido no Rio de Janeiro a Rainha D. Maria 1.ª e fechou -se o theatro de S. n Carlos e mais todos os outros p.ª um anno. 88 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth fez nova contracta por mais um anno por 1$400 rs por dia porque abadia de minha vontade 200 rs por dia. . Athe aquelle tempo os Musicos de contrada forem pagos por o Reg. to, cada Official e cada soldade dava um dia de soldo para pagar a Musica. Havia então [p.10] muita ladroeira; com este pé davam licença aos Soldados e recolhião o prèe e o pão com desculpa que era p.ª pagar a musica.. Mas o Lord Bresforte, acabou com esta Ladroeira, Mandou fazer uma Ordem de Exercito em que determinou, que o Mestre de Musicca não receberia mais daqui adiante de que 920 Rs por dia e os Musicos de Contracta 370 Rs. Pruivido aos Com mandantes debaixa de severas penas não poder tar mas i nem menos de Sua Algibeira. Ainda hoje existe a mesma lei Era em 1816. eu fiz entaõ nova contacta comforma a nova lei por um anno. ate 1817, no mes de Junho, quando foi nomeado pela Regencia de Reino p.ª Mestre de Musica da Nau D. J. Sexto que estava p.ª ir p.ª Itália p.ª buscar a Ima D. Leopoldina ArquiDuqueza de Austria, p.ª a levar p.ª o Rio de Janeiro p.ª cazar com o Snr D. Pedro. . Sahimos de bara de Lisboa no dia 2. de Julho 1817. tivemos uma viagem feliz, gastamos 19. dias p.ª chegar a Livorno o nosso distino. Esperemos alguns dias até que chegou a a Princissa, ainda a Princessa se demôrou algums dias antes de embarcar, porfim embargou e sahimos d e Livorno, tivemos bom tempo ate perte de estreito de Gibraltar quanto nos assaltou uma Tempestade foriosa que durou dois dias, por fim podimos sahir de Estreido felizmente com um tempo exce lente nossa Direcçaõ foi p.ª a Ilha de Madeira, la ficamos dois d ias e seguemos o nosso caminho ate ao Rio de Janeiro Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 89 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth no dia 2. 9bro entremos nos na Barra de Rio. Gastamos quatro meses [p.11] Quando a Ima D.ª Leopoldina Desembargou mandou-me chamar e mandou entregarme 34. Peças nesste tempo de 6$400 rs. . ja quando tocamos a primeira vez em Li vorno no seo Palacio mandou entregarme 50 Ducatos p.ª repartir entre todos: Agora nos tinhamos comprido a nossa obrigaçaõ tinhamos chegado ao Rio de Janeiro com a I. ma D.ª Leopoldina estava a nossa contracta acabada faltava so a pagar nos e mandar nos p.ª Portugal a todos que era a nossa contracta. . A paga que divemos entanto que servimos na Nào, foi o Eu com mestre 1$600. por dia os Musicos todos egaes a 1$200 rs por dia e a Caixa Bombo e Pratos a 800 rs por dia, e muito bem tratado; a Ima D.ª Leopoldina desembargo e nos fi camos a Bordo a espera, o que avia de acondecer. não tar dou muito que nos mandarem desembarcar e levaraõnos a Snr Cristovam p.ª tocar diante delle Rei D. J 6to Agradou muito a nossa musica a Sua Magesdade. E mandounos pregun tar p.ª o Conde Paraty se queriamos ficar no Rio, mas de principio nemquem quiz ficar porque todos querião ir outra vez p.ª Por tugal. . mas eu entrei a pensar que tanto Estrangeiro era eu Portugal, como no Brail, e resolveiome a fica r, como os outros virem que eu ficava, forem ficando tambem fora um que não qiz ficar. O ordenado era de 207$680 rs. Eu não quiz ficar de mestre, por causa de alguns desgostos que tinho dido por o Caminho com algums musicos: como Musico estava muito mas livre que como mestre, porque tinho Theatro, tinha muitos funçoens [p.12] 90 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Egrexas; Tinha varios Regimentos p.ª tar musica e ensai ar, ganhava de cada Regimento 500 rs por dia, não tocava em nem um delles: Um dia encontrei um Musico de Camera que eu conhecio muito bem, chamava-se elle Valentim Ziegler que me parecia triste, eu lhe pergundei o que tinha por estar assim triste, contou-me entaõ, que tendo comprado por especu laçaõ uma caixa de Instrumentos musicos, e q.e passou letra de Campio a tres meses, pensando de fazer algum negocio entre tanto que coria a Letra, para poder pagar no dia de venci mento della, mas que a manhã era dia de vencimento e que elle naõ tinho Dinheiro p.a pagar lha; Eu lhe diz se não era mas que isto eu lhe podia adiantar o Dinheiro debaixa de condiçaõ, de que eu ficar em Sociedade com elle, que logo elle aceitou, e assim foi estabelezido a nossa Sociedade, sem escritura e outras cautelas nemgumas, si não esta, que elle avia de gi rar com o negocio, porque eu não tinha tempo por iste tinha muito que fazer com Theatro. funçoens d Egreja, Regimen tos e outros funçõens, Assim foi estabelicido a nossa Sociedade e a Letra que era de 800$000 Rs foi paga, tomamos numa casa no Rocio, no Rio de Janeiro e donde estabelecemos o nosso negocio o qual em poco tempo principiou a antar bem, e continuou a antar bem en todo o tempo que estivemos no Rio. No anno de 1819. cazeime com Henriqueta Carolina Ziegler filha de meo Companheiro e Socio de Negoio, fiquei no Rio ate ao dia 26 d´Abril 1821; Quando D. J. 6. to veio p. a Portogal com toda a sua familia, menos D. Pedro [p.13] e nos mandou que embargasemos com elle em na Nào p. a o acom panhar p.a Portogal, o meu socio ficou no Rio, p.a no anno seguinte seguir com o negocio. . A nossa Viagem de Rio p. a Lisboa foi feliz não aconteceo coussa remarquavle por o Caminho, Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 91 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Entramos na Barra de Lisboa no dia 2 de Julho no mesmo anno. O meu Socio no anno de 1822. veio com todo que existia no negocio. . Eu cheguei bastante Doende a Lisboa e no inverno seguinte passei muito mal, a minha mole stia era Cartialgia, e o Medico me diz que na Botica naõ avia remedio p .a mim, que erem as Caldas de Rainha que me haviam de curar, foi as Caldas no anno de 1822, e foi taõ feliz no 1.o anno que fiquei quasi bom de tudo, mas p.a ficar mais certa de cura foi mas os dois annos seguintes e fiquei radicalmente bom. . Em 1823 estabelecemos o nosso negocio em Lisboa, e fiquei eu encargado de girar com o negocio, no anno 1824. no mes de 7bro Moreo a a minha mulher de parto de uma creança morta esta morta deve consequencias muito tristes p. a mim, como ella moreo sem filhos vivos, forem os Paes herdeiros de sua filha, de minha casa pertencia lhes a metade o que eu possuia, e de Negocio pertencia lhes a metade como socio, e metade de minha metada como er deiros de sua filha, portanto tinha o meu socio de ne gocio tres quartas partes e eu so huma quarta par te, ficoume de minha parta em Instrumentos o va lor de 800$ e tantos mil Rs e o que ficou em casa. . [p.14] Os nossos partilhos fisemos Amigalvelmente, e fizemos uma quitação donde elles declararem que estavam satisfeito esta feito em Tabilhão. . Mas como eu não quiz continuar o Negocio em Sociedade e apardei-me p.a continuar sosinho, não gostou elle porque elle queria continuar em soci edade, o que não me fazia conta, eu queria fazer o meu ne gocio sosinho, foi este o motivo das perseguiçoens que depois me fez. com um Processo que demorou 6 annos e me custou-mi 92 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth mas que um Conto Rs. Por caussa de uma asneira asneira que eu fez de assingnar um papel que declarava que ficavem os ambos responsavel um a outro si em caso um ou outro divesemos esquecido alguma coussa a nosso perjuizo de o poder reclamar este foi feito ja depois que estivemos apardato um de outro. . E Sobre este papel elle formou o Prossesso, que perdi. No anna 1826. cazei-me segunda vez, com Margarida Boehmler de Reino de Witermberg (Almanha) no anno de 1827 defez s a nossa Banda, Entrei entaõ p. a Musico de Camera, neste mesmo anno estabeceo o meu negocio na Rua nova do Almada nõ 47 SobreLojem de donde esteve ate 1854. dahi se mutou por uma Lojem opce, N ono anno de 1828. Veio D. Miguel por Regente do Reino, todos savem os acontecimentos dos 5 annos que elle Gouvernou, as calami nidades que passou Portugal. . A minha segunda Mulher moreo em em 1831, tembem de consequencias de um parto e molestia de Figado que padecia, Dive della tres filhos Augusto. Leopoldina. e um outro Eduardo. e que [p. 15] moreo de pequeno. Os meos filhos estavam pequenos eu não quiz cazar terceira vez fiquei então com a mi nha cunhada Guilhermina Boehmler, que creou os meus filhos, e que tem sido sempre boa mae por elles e nunca dive queixa della e ainda hoja estava na minha casa e com panhia. .No mes de Julho de 1832. principiou a Guerra entre D. Pedro e D. Miguel que durou dois an nos, quando D. Miguel perdeo o Reino e foi banido de Por tugal; Com a Chegada de D. Pedro a Lisboa, Passamos de folha de Casa Real, p.a a folha de Thesoiro, e ficamos no The soiro ate ao anno de 1838. quando passamos outra vez p. a Caza Real, com a divida de 8 Meses, que o Thesoiro nos Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 93 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth ficou devendo. . Depois disto fiserem-se varias reduçoens, até que afinal fiquemos em 10$000. Rs por o mes. . Como o meo Negocio hia menos mal Comprei então uma Guinta e Casas em Sam Bar tolomeo da Charneca no anno de 1838 chamada dos Milagres; de qual ahinda hoje sou Donno, tenho ido todos os annos la p. a passar alguns meses por causa de minha Sauda p. a mudar de ar, como tambem a minha Familia. . Eu foi um dos 37 que fun darem o montepio Philarmonico que se estave leceo em 1837. e que existe, e de qual hojo sou Pensinista de 12$000. por mes. . Equalmente sou um dos fundadores de Montepio de Casa Real do que existe, p.a secorrer as familias dos empregados [p. 16] que morem e deixem Familia. . Um dia lembrei-me que tinha que reclamar a erança que me deixarem os meos Paes, O meo Negocio naõ ia mal, ganhava a minha vida e ficava todos os annos uma pequena quantia. . E como eu mandava vir Instrumentos tanto da Almanha como de frança, resolveome entaõ a mandar, vir de Alma nha um Sortimento de Instrumentos e mandar la pagar com o Dinheiro que tinho que receber de minha herança o que me pretencia 800 thaler mas destes fez de presente a meu Irmão 100 thaler e meo Patrinho 50 thaler. ficarem portan to liquido de 650 thaler: valor o cambio de hoje 468$000 Recebi total desta quantia em Instrumentos e Musica. No anno 1832. veio a Cholera assiatica p.a Potugal e atacou o Porto primeiro donde fez bastantos estragos nas Tropas de D. Pedro. . Em 1833, na primaveira atacou Lisboa com muita força, que morrerem diariamente tres 94 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth centos e mais Pessoas quando estava na sua maior força, durou quasi todo o veraõ; A segunda vez quando fez o giro de Globus não chegou a Portugal. A terceira vez em 1856 chegou a Lisboa mas muito benigno atacou poca gente, Em 1857. chegou a Fevre amarela que era differente de cholera que atacava mas a gente pouvre, mas a Fevra amarela atacava tanto o rico como o pouvre moreo imense gente, de maneira que todos que podiem fugir p. a fora de Lisboa. . As Molestias dos Vegitaes e arvores que tem habido em o Tempo q estou em Portugal.. [p. 17] A Molestia das Larangeiras que morerem em pocas annos quasi todos por todo o Reino pocas se salvarem a oliveiras tambem tiverão a Molestia da ferugem bastandas annos; Em no anno de 1852 veio a molestia das Vinhos, Odium Tucheri, que tem feito tantes perdas a Lavora e ahinde existe haja 17. annos mas com menos força, e com o remedio de enxofre vae minguando, A molestia das Batatas que esteve geral em toda a Eu. ropa. . Eu tenho vivido em uma Epocamuito Remarcabel e emportante que pode chamar-se a epoca das Emvençoens e Descubertas, no meu tempo se descubrio de aproveidar o Vapor p. a fazer andar Navios, e Locomotivos em Caminhos de ferro. . O aproveidamento de Gaz p.a Luz: a Chimica que estava na sua infancia e o que ella é hoje em dia, E a eletricidade p.a aproveidar p. a Telegraphos emvenção muito moderna os Instrumentos musicos que erem tão simples no meo primeiro tempo; e a perfeção em que estão hoje; tanto os de Latão como os de Madeira e a baratessa que he de Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 95 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth admirar. . Emfim eu não tenho bastantes conhecimen tos para mencionar todos os melhoramentos tanto em Artes como sciencias e Litradelatura que tem havido em o tempo de minha Vida. . Eu estabeleceo o meo Negocio, com forma eu ja diz em outra parte, no fim de 1824. Com que me ficou de negocio que tinho com meo Sogro; que foi o valor em [p. 18] Instrumentos de 800$600 rs com com 200$ e tantos mil Rs que me fiquarem de Partilha de minha casa, principiei o meu negocio Sozinho com o valor de um conto d Rs. A poca a poco foi me alarganto, como tinho o Theatro de san Carlos e o meu ordenado, me chegava p. a as despezas de casa, e ainda mais algums outras despezas: não precissava tirar nada de negocio, todo que entrava ficava. Mas quando veio D. Miguer p. a Vice-Rei mudou todo, naõ haia ja Theatro, e eu estava reduzido a meu Ordenado sò e pocas Funçãos de Igrejas e poco ne gocio; não pode adiandar poco a nada entre tanto que D. Miguel Gouvernou, porque não avia Theatros nem diver timento de qualidade nem um. . em 1831 no mes de April moreo a minha segunda Mulher, e como havia filhos era ne sesaria fazer um especio de enventario p. a ver quando avia en tão de valor em casa, exestia então um Conto e seiscentos mil rs; Conforme a lei partencia metade e aos meu filhos e metade a mim: e quando estevem maiores paguei a cada um a sua parte Mas guando veio o D. Pedro de Porto, e que principiou o Negocio a ir melhor, porque a maior parte dos Regimentos que vinhão com elle tinhão falta de Instrumentos e compra vem, e abriem-se os Theatros, e avia vida nova entre a gente Eu continuei o meo negocio na mesma Sobrelogem N. o 47 Rua nova do Almada e o meo negocio hia muito bem, tinha 96 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth muitas freguezias das Provincias de Lisboa. . Mas neste tempo, um certo Joaquim Canongio, abria uma Logem de mu sica e Instrumentos de Porta de Rua o que não tinha havido athe [p. 19] aquel tempo, eu não quiz imidar, aquel e conservei-me na minha Sobre Lojem, fiando-me na minha freguezia taõ mal fiz eu, porque de poco a poco as freguezas faltavam e o negocio diminuia, a cousa era clara, os meus frequezes a maior parte erem das Provinzias quando vinhaõ pa Lisboa vinhaõ dirigido a minha caza, mas quando iam procurar a minha casa passavam adianda de porta, de outra Logem que era logo o rez entravam e compravam o que queriem, e e eu perdio o freguez e o negocio, adourei um par de annos, atè que me resolvi a tomar tambem Lojem de Porta de Rua era em em 1854[7?] Mas neste tempo era ja muito dificuldoso em achar Lojem em aquela rua, e para alcançar uma Lojem de uma Portas paguei quarente moedas p. a o inclino sahir e largar a Lojem. mas não me repenti de o aver feito; porque hoje la esta uma Lojem que se pode ver; A Lojem he na mesma Rua nova do Almada nõ Entreguei a direço~ ens ao meu Filho, o negocio ia muito bem não dive que rependerme, meo Filho conti nuou a sua direção ate ao ano de 1859. Quando nos fize mos huma Escritura de trasspasso ou Venda, por elle negociar por sua conta, mas com contiçaõ de conservar sempre o o valor que eu lhe entreguei, p. a poder apresentar a todo o tem po quando for prezisso, e ficou Hypoticado todo o que ex iste na Lojem. . E outra escritura que me assegura certos inderessos que saõ necessarios em no meu es tada, O motivo porque eu fez esta escritura foi a fal ta de saude, eu tinho 75 annos naõ me achando ja com Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 97 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth [p.20] forças por este travalho sendo achacado como estou e tempo de descançar dos meus travalhos. . Eu mandei vir as minhas fazendas tanto d'Almanha como de Franza e Italia; tive credido de todas estas partes, por que compri sempre exatamente o que contradei com os meos correspondentes. . Uma vez tive uma perta de uma caixa de Instrumentos que viraõ de Itavre em um Navio francez que era de custo 800$ e tantos mil Rs; o Navio deo a Costa e se perdeo toda a carga, ou por melher dizer foi Rou bado toda a carga, eu gustumava sempre segurar em Por tugal, mas esta vez quando quiz segurar ja estava la a noticia que o navio tinha dado a Costa, e perdi todo. . Ressumo d e minhaVida como Musico.. Sahiou de casa de meus Paes aos quinze annos era no anno de 1799. em o mes de 9.bro para estudar Musica, fez os meos 5 annos de Estudo de aprendiz, acabou o meu tempo no mes de Abril de 1804. Sahia entaõ de casa de meo Mestre, e achei logo um lugar que estava vago na Capela de Principe de Lowenstein como 1. o Clarinette, servi lhe dois annos, ate a entrada dos francezes na Prussia em 180[6] quando o Principe nos despidio de seu Serviço era no mes de 9 bro foi então contradado como musico por 3 meses em um a Villa chamada Wertha so p. a passar o inverno. . Na Primavera de 1807. fez uma Viagem p.a o Sul de Almanha e achei ocupação em Markbreit sobre o Main, mas por poco tempo naõ fiquei mas que tres meses, quando eu [p.21] dive noticias, que a poca distancia dali havia um lugar na Capela de Principe de Amorbach o qual lugar eu aceitei, mas 98 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth tambem por poco tempo, Eu mais tres fomos p.a a Saxonia p. a arranjar uma Banda de Instrumentos de Vento p. a Harmoni as p. a viajar, o que consiguimos no tempo de hum mes; Eramos sete 2 Clarinettes. 2. Fagottos. 2 Trompas. e um que tocava Oboe e Flauta. A nossa viagem durou poca a Banda desunia-se e acabou. . Entrei de Mestre de Musica no 4 to Regimento de Linha de gran Duque de Baden em 10bro de 1807. o Regto recebeo ordem de marchar p.a Espagna no mes de Agosto de 1808. Eu estava bastant doente, e quando chegamos a Strasburgo tinha peorado, pedi ao Coronel p. a me mandar passar guia p.a Hospital Militar, o que logo me fez, fiquei 6 meses em [...] no Hospital; quando sahi de Hospital deixei o Regto, e foi o Contractar-me como musico em um Regto francez que procurava musicos que estava em na Espagna. O deposito de dito Regto estava em Dax ao pèe de Bayona a raia de Espagnha. . Travessamos toda frança p.a chegarmos o Deposito no qual demoremos poco tempo, fomos logo mandados com um Destacamento p. a o Regto que era o 119 de linha, dahi a dois meses passei a Mestre de musica com soldo de 150 francos por mes, e neste Qualidade fez toda a Campagnha Penissular athe a paz em 1814. no mes d'april, não querendo ficar mas com os francezes, contracteime como mestre de Musica no Regto nõ 4 de linha Portuguez chamado Gomes Freire; [p.22] com o qual eu entrei em Lisboa no 18 de Agosto 1814. servi no dito Regimento tres annos, ate que foi nomeado mestre de musica de Nào D. J. Sexto que ia p.a Livorno p.a busquar A S.a D,a Leopoldina, Archiduqueza de Austria p. a A levar p.a o Rio de Janeiro, p.a Cazar com D. Pedro o Principe Real. A Náo sahiou no dia 2. de Julho de 1817. Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 99 Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth e entramos no Rio de Janeiro no dia 2. de 9 bro no mesmo anno, gastamos 4 meses exactos. . Como D. J. 6 to gostou de nosso Musica, ficamos todas na Caza Real com o ordenado de 207$600 Rs por anno, Eu não quiz ficar de de Mestre por certos motivos. . Era no mesmo an no no mes de 10bro; ficamos no Rio de mes de 9 bro de 1817 ate ao dia 26 d'Abril de 1821 quando D. J. 6to se resolveo de vir p. a Portugal e nos levou comsigo na Náo. . Chegamos ao Tejo no dia 2 de Julho a nossa Bando ficou como estava estava ate ao anno de 1827 quando eu entrei de Musico de Real cammera com o mesmo ordenado que tinho na Banda: Eu toquei em varios Theatros quando a minha vista o permitiu. . Eu sempre deve uma molestia cronica nos Olhos, de qual eu tenho soffrido muito na minha Vida, este tem sido a caussa de eu largar o Theatro de S. n Carlos, e despois os outros. . O meu filho tem feito o serviço de Capela Real varios annos por mim; Requeri a minha reforma no Montepio Philarmonico em 1856, e foi reformado no mesmo anno, com 12$000 rs por mes: Depois deste reforma [p. 23] fiquei entaõ despençado de serviço, e haja varios an nos que ja naõ pego em Instrumento de qualidade algum. .Resumo das Testas Croadas que eu tenho servida.. 1 o Principe de Lobestein. .2.do Principe deAmorbach. . 3. o AO. Grand de Baden. .4. o A Napoleon 1.o . 5. o D.a Maria 1. a Portugal. .6. o A D. João Sexto. 7. a D.n Isabel Maia Regenta. .8. A D. Miguel. 9. o A. D. o Pedro 4. o. . .10. o A D.a Maria 2.da. o 11. D. Fernando. Regente. .12. A D. Pedro 5.do. 13. o A D. Louis 1.o o que hoje gouverno o Reino. . 100 Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 . . . . Fernando P. Binder – O Dossiê Neuparth Tenho vivido sempre socegado, nunca me meti com partido algum, sempre estava pela la li berdade; nunca foi incomodado por Pessoa al guma, nemquemse meteo com a minha vida em todo o tempo que estou em Portugal, que já p.a mim he segundo Patria adopdiva. . Eu tenho tres filhos vivos, um filho e duas filhas, todos tres cazados e estabelecidos e com Familias já não precisem de mim; O meu filho continua com o meu Negocio que eu estabelecira em 1824. . Tenho sido feliz, os filhos naõ me tem dado desgosto. tem se comportado bem; Particularmente o meu filho se portou comigo como bom Filho, o que lhe agradezo e Deus lhe queira remunerar e recompensar nos seus filhos, que elles lhe fazem o mesmo que elle me fez na minha avançada aidade. . [p.24] Este tem sido a minha Vida ate as 85 annos que tenho, Teixo isto escrito por minha mão ao meo Filho, se elle queiro continuar a fazer como eu a escrever a sua vida e recomendar ao Seus Filhos que fazem o mesmo, por em todo o tempo poderem ver e saver, donde virem e quem erem seus Avos e de que Naçaõ elles saõ decendentes. . Agora, e que Deos queiro que os meus decendentes sejem felizes e Hon, rados. Escrito no mes de maio de 1869 na aidade de 85 an nos e 5 meses, com a mão bastante tremula.. Lisboa 7. de maio de 1869. Eduardo. Neuparth. . Rotunda, Campinas, n. 4, abril 2006, pp. 71-101 101