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CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA
VESTÍGIOS RECUPERADOS: EXPERIÊNCIAS DA
COMUNIDADE NEGRA RURAL DE TIJUAÇU – BA
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
São Paulo
2006
2
Ficha Catalográfica
Miranda, Carmélia Aparecida Silva
M641 Vestígios recuperados: experiências da comunidade negra
rural de Tijuaçu – BA. / Carmélia Aparecida Silva Miranda. –
São Paulo, 2006.
201 f. : il.
Ficha Catalográfica
Orientadora: Yvone Dias Avelino
Tese (Doutorado em História Social)- Pontifícia
3
CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA
VESTÍGIOS RECUPERADOS: EXPERIÊNCIAS DA
COMUNIDADE NEGRA RURAL DE TIJUAÇU – BA
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em História
Social, sob orientação da Profa. Doutora Yvone Dias
Avelino.
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
São Paulo
2006
4
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_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
5
RESUMO
A presente investigação centra-se no estudo das experiências históricas da
comunidade negra rural do distrito de Tijuaçu, localizado no município de Senhor do
Bonfim, norte do estado da Bahia. São objetos de discussão as vivências cotidianas
dos seus moradores, as relações familiares, de trabalho e de subsistência, como
também a trajetória das famílias que secularmente habitam esse perímetro quilombola.
Os depoentes atribuem a fundação da comunidade a Mariinha Rodrigues – uma negra
fugida do recôncavo baiano – que, no início do século XIX, refugiou-se na região,
criando estratégias de ocupação naquele território. No processo de investigação
discutiu-se também sobre a construção da identidade cultural dos moradores de
Tijuaçu; o papel desempenhado pelas mulheres, a razão de algumas delas haver
conquistado o espaço da liderança e as manifestações culturais e religiosas, como a
festa de São Benedito e o Samba de Lata. Para tanto, foi consultada também a
documentação oficial do final do século XVIII e XIX sobre a região, objetivando
encontrar referências a ajuntamentos de negros e documentos que pudessem apontar
os possíveis proprietários dessas terras. Entretanto, a oralidade constituiu nossa fonte
principal. Através dela pôde-se entender as diversas experiências vivenciadas pelos
moradores de Tijuaçu. As lembranças sobre a ocupação do território e sobre os
primeiros moradores estão presentes na fala dos mais velhos integrantes da
comunidade quilombola, permitindo o mapeamento das experiências históricas
acumuladas.
Palavras-chave: história; oralidade; comunidade negra; afro-descendente; cultura.
6
ABSTRACT
This research focus on the studies of the historical experiences of the black rural
communities in the Tijuaçu district, located in the Senhor do Bomfin municipality, north
of Bahia state. The central subject of discussion are the quotidian life experiences of
their inhabitants, family, work and survival relationships, like also the trajectory of the
families which for more than a century have been living inside this quilombola
perimeter. The witness argued that the community was founded by Mariinha
Rodrigues – a runaway black slave from the Recôncavo baiano (Bahia Bay) – whom, in
the beginning of the 19th century, took refuge in Tijuaçu region, creating strategies of
occupation in this territory. Along the research process, it is also discussed the cultural
identity which is built among the inhabitants of Tijuaçu; the role played by women, the
reason why some of them have reached leadership and the cultural and religious
manifestations, like the São Benedito party and the Samba de Lata song. Then, it was
necessary to analyze the official documentation from late 18th to early 19th centuries
about the region, to find references of black communities and documents which could
point out the possible landlords of these lands. However, orality became our main
source. Throughout orality the distinct life experiences lived by the Tijuaçu inhabitants
could be understood. The memories about the occupation of the territory and about its
first inhabitants are present in the speech of the elder members of the quilombola
community allowed to map the accumulated historical experiences.
Key words: history, orality, black community, afro-descendent, culture.
7
Aos meus pais Arnaldo e Salvelina pela vida.
Aos meus filhos Igor, Ingrid e Indira
que deram mais sentido a minha vida.
8
AGRADECIMENTOS:
Neste espaço, quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para a
conclusão dessa caminhada, e, confesso, são muitas as dívidas que acumulei nesses
48 meses.
Primeiramente, agradeço a Deus pela força e pela coragem para que eu
enfrentasse todos os desafios dessa jornada. Nos momentos mais difíceis, segurava
em sua mão e seguia em frente. Durante o percurso, foram muitas as contribuições
para que eu chegasse à reta final. Pude contar com a colaboração da minha família e
dos meus amigos. Quero assinalar que não existe uma hierarquia de importância
nesses agradecimentos. Todos os que constam destas linhas foram relevantes para a
coroação desta caminhada.
Agradeço aos meus pais pela inegável contribuição e ao meu avô Luiz Alves
dos Santos (in memorian), responsável pela minha iniciação nos estudos da História
ao contar, com grande entusiasmo, os momentos históricos que vivenciou, seja na
perseguição a Lampião, seja participando da Revolução de 32, em São Paulo, ou na
Revolta do Pau de Colher, na Bahia. Como gostaria que estivesse presente,
comungando comigo desta etapa, pois sei que ficaria muito orgulhoso da minha
trajetória. A minha avó Cecília por tudo, pelo amor, pelo carinho e pela admiração.
Durante a pesquisa, várias visitas foram feitas à região de Tijuaçu. Nelas
consegui conquistar a amizade de muitas pessoas, que não se esquivavam de me
acompanhar ás diferentes fazendas e povoados. A qualquer hora e a qualquer
momento, estavam sempre solícitas. Esses amigos me ensinaram a fazer várias
reflexões sobre o ofício de pesquisador. Não poderia deixar de registrar aqui o apoio e
a contribuição de Ilca e de toda sua família. Sua casa constituiu um porto seguro nas
minhas visitas. Era nesse lar cheio de alegria e humildade que eu me dirigia quando
estava em Tijuaçu, tendo a certeza do apoio e da recepção cordial, caso Ilca não
estivesse, havia sempre algum membro de sua família disposto a me acompanhar.
Quero também agradecer a d. Dalva, Detinha, Dinha, dona Anísia, Antônio Marcos,
9
Suzana, Socorro, Nira, Marcelo, Joana e Joinha. Agradeço a todos os informantes,
que se mostraram disponíveis e foram invadidos no seu cotidiano pelas minhas
indagações.
Um agradecimento especial a Valmir, um dos meus primeiros informantes,
que abriu caminho para as minhas interrogações e que tem lutado com grande
veemência pelas causas de Tijuaçu.
Expresso meu reconhecimento às instituições que tornaram possíveis esta
pesquisa. Á CAPES, pela concessão da bolsa, sem a qual seria difícil cursar o
Doutorado numa Instituição particular, como também pela “bolsa sanduíche” –
Programa de Estágio no Exterior, através do qual tive uma experiência ímpar vivendo
por quatro meses em Portugal e pesquisando nos diferentes arquivos daquele país.
Agradeço também à Universidade do Estado da Bahia, especificamente a PPG, pela
concessão da bolsa PAC, que facilitou a compra de livros, material e as viagens de
campo, além de outras despesas.
Aos meus colegas da UNEB – Departamento de Ciências Humanas - Campus
IV – Jacobina, que tiveram a generosidade de me liberar da sala de aula para que eu
cursasse o Doutorado.
Agradeço ao pessoal do Arquivo Público do Estado da Bahia, do Arquivo dos
Franciscanos de Campo Formoso, do Centro de Estudos Baianos da Universidade da
Bahia, do Fórum de
Senhor do Bonfim, da Paróquia de Senhor do Bonfim, da
Biblioteca da Assembléia Legislativa da Bahia, da Biblioteca Nacional de Lisboa, do
Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, do Arquivo da Torre do Tombo, da
Biblioteca da Ajuda, da Biblioteca da Universidade de Coimbra e da Biblioteca
Municipal do Porto. Nessas instituições realizei minhas pesquisas sobre a região de
Senhor do Bonfim.
Um agradecimento especialíssimo à minha orientadora, Profa. Dra. Yvone
Dias Avelino, que confiou no meu talento e aceitou orientar o meu trabalho e cujo
incentivo e apoio me sensibilizaram. Com sua gentileza soube encarar com
serenidade os diferentes momentos. Estendo esse agradecimento ao Prof. Dr. Justino
Pereira Magalhães, meu orientador em Portugal, que foi muito presente, juntamente
com sua esposa Violante, nos meses em que residi naquele país, e que se tornou um
10
grande amigo, sendo uma presença constante na minha vida acadêmica. Obrigada
pela atenção, compreensão e confiança.
Aos professores Doutores Estefânia Fraga e José Adilson, que participaram
da banca examinadora de qualificação, fizeram críticas, deram sugestões e muito
contribuíram para as minhas reflexões.
Às professoras Doutoras Antonieta Antonacci, Heloisa de Faria Cruz, Maria
Odila Leite da Silva Dias e Yara Khoury pelo apoio e sugestões. As discussões
realizadas em sala de aula muito contribuíram para o meu caminhar intelectual.
Aos amigos Silvana Vieira, minha irmã na vida intelectual, presença constante
em várias etapas dessa jornada, a Ana Maria Aragão Ramos, amiga irmã, que, mesmo
distante, leu meu trabalho, dando valorosa contribuição. A Jô Conceição, que
participou de vários momentos dessa caminhada e que leu a redação final. Obrigada
pelo companheirismo, amizade e sinceridade. Jamais esquecerei que foi com vocês,
principalmente, que dividi as minhas angústias, inseguranças, descobertas e alegrias.
A Jane, minha grande amiga de todas as horas. A Cléa Inês, também grande
amiga de todos os momentos, que sempre se fez presente nesse cotidiano
acadêmico, encorajando-me nos momentos mais difíceis. A Rose minha amiga, pela
cumplicidade e por acreditar em mim.
Aos amigos e colegas do Doutorado, agradeço pelas vivências deste
percurso. A Ângela, João Gomes, Ana Magna, Marcelo, Brás, Telma, Amailton e
Cristina, que no
compartilhar das atribuições do doutorado foram, também,
companheiros na descontração e nos encontros sociais. A Ana Cláudia, que na
vivência do Doutorado tornou-se minha amiga, a essa pessoa generosa, boa
conselheira, amável e delicada, que compartilhou comigo das etapas desse caminho,
estando sempre disponível para resolver minhas pendências na PUC, a minha
gratidão.
Aos meus amigos de Portugal: Frank, Flaviane, Fabiane, dona Rosa,
Sayonara, pessoas muito presentes e que me permitiram encarar com alegria a
saudade do Brasil e dos meus filhos. Agradeço também a Miguel, Conceição e família
pelo apoio e assistência nas terras lusitanas e a Zé Oliveira, Isabel e Rita, amigos
portugueses, pela confiança e apoio.
11
A Raimilson e Sandra, que muito me ajudaram na pesquisa, dedicando suas
tardes ao meu trabalho e me acompanhando nas diferentes empreitadas, meu muito
obrigado.
Ao professor Ozelito, que intermediou minha entrada no Arquivo dos
Franciscanos, em Campo Formoso. Ao Senhor José Freitas pelas informações e pelas
longas horas de conversa sobre a História de Campo Formoso.
Aos professores Aluísio, Carlos José e Graça pela revisão final do texto.
Á professora Maria Alice Coelho, pelo apoio e compreensão.
Aos meus irmãos Carla, Carmem e Cássio pelo grande apoio e compreensão.
Ao meu filho Igor, que assumiu diferentes funções: fotógrafo em alguns
momentos, interlocutor em outros, e que, nos momentos de maior aflição parava para
ouvir alguns escritos da minha redação. À minha pequena Indira,que na difícil tarefa
de reorganizar o tempo de adolescente, soube dividir comigo muitos momentos dessa
trajetória e foi responsável pela diagramação da Tese. A Ingrid, que, com seu jeito
descontraído, muito contribuiu para a conclusão dessa etapa.
A Francisco, meu companheiro, pela compreensão e apoio, nunca se
esquivando de me apoiar nas minhas decisões profissionais. Enfim, dedico este título
a todos que contribuíram e estiveram ao meu lado.
12
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APEBa
Arquivo Público do Estado da Bahia
ADCT
Atos das Disposições Constitucionais e Transitórias
AHU
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
ANTT
Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa
BN
Biblioteca Nacional de Lisboa
BPMP
Biblioteca Pública Municipal do Porto
BGUC
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
POM
Coleção Pombalina, Biblioteca Nacional de Lisboa
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................13
CAPÍTULO
I
–
HISTÓRIAS
DO
DISTRITO
DE
TIJUAÇU,
RUÍDOS
DESCONHECIDOS......................................................................................................25
1.1
Fragmentos lembrados e narrados...................................................................26
1.2
Fuga e formação de quilombo ..........................................................................46
1.3
Proprietários
da
Fazenda
Lagarto
na
segunda
metade
do
século
XIX................................................................................................................... 50
1.4
Currais, gados e tropeiros: a trajetória da cidade de Senhor do Bonfim...........54
1.5
Identidade, reconhecimento e auto-estima.......................................................62
CAPÍTULO
II – AS MULHERES TIJUAÇUENSES E SUAS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS EM VARIADAS E DIFERENTES FUNÇÕES..............................................79
2.1
Luta, sobrevivência e cotidiano: mulheres em ação.........................................80
2.2
Personagens e trajetórias: contatos e oralidade..............................................94
2.2.1
Heroína
da
vida,
percussionista
da
alegria:
Marinalva
Silva
Santos...............................................................................................................94
2.2.2 Da arte de contar histórias a tecedora de significados: Maria Anísia
Rodrigues..........................................................................................................98
2.2.3 Guerreiras da comunidade: Dalva Odilon Santana e Ilca dos Santos
........................................................................................................................103
2.2.4 Lembranças sempre presentes de um tempo em continuidade – a alma
do Samba: Genoveva e Joana Rodrigues......................................................106
2.2.5 O canto a serviço de Deus: Valdelice da Silva......................................108
14
2.3
A arte da sobrevivência .................................................................................109
2.3.1 Imagens e personagens: o cotidiano de um viver rural .......................113
CAPÍTULO
III-
TIJUAÇU
FAZ
A
FESTA:
DEVOÇÃO
E
DIVERSÃO
NO
ENCONTRO DE SUA IDENTIDADE ........................................................................120
3.1
A reinvenção da festa no Brasil Colônia.........................................................121
3.2
“Samba crioula/Que o branco não vem cá/Se ele vier/Pau vai levar”: versos,
ritmos e diversão - o Samba de Lata de Tijuaçu............................................128
3.3
Batuque, roda e dança: outras manifestações culturais de Tijuaçu...............146
3.3.1 A solidariedade presente em diferentes espaços:
A Dança do
Parentesco......................................................................................................147
3.3.2 Cores e dança: a Roda do Arco-Íris......................................................148
3.3.3 O canto e o encanto das crianças.........................................................150
3.4
Fé e devoção: a festa de São Benedito..........................................................151
CONCLUSÃO.................................................................................................................164
FONTES .........................................................................................................................170
REFERÊNCIAS .............................................................................................................178
ANEXO............................................................................................................................193
15
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa nasceu do meu interesse em entender as experiências históricas
dos habitantes da comunidade negra rural de Tijuaçu, localizada no município de
Senhor do Bonfim1. Desde criança, residindo no referido município, fui testemunha
dos modos de vida e dos costumes dos moradores desse distrito e de suas andanças
pela cidade, como também observei o tratamento dado aos tijuaçuenses por parte da
população de Senhor do Bonfim. Cresci ouvindo pessoas da cidade emitirem
julgamentos preconceituosos e racistas sobre esses afro-descendentes. Muitos diziam
que “os negos” do Lagarto eram preguiçosos, consumidores de bebida alcoólica, não
gostavam de trabalhar e ficavam andando pelas ruas sem ocupação.
Na época das eleições, os políticos da região costumavam taxar os habitantes
de Tijuaçu como traidores, tendo em vista que os mesmos prometiam votar em um
candidato e no momento da eleição votavam em outro. Percebo hoje que essa postura
era uma estratégia de defesa utilizada por esses habitantes, pois votavam naqueles
que achavam merecedores dos seus votos, não naqueles que faziam promessas que
raramente eram cumpridas. Diferentemente da concepção que considera essa gente
como traidora, o que se evidenciou durante a investigação e a análise das narrativas
referentes a essa problemática, conforme observarei ao longo desse trabalho, foi que
essa postura revelava-se como uma estratégia de defesa e de resposta ao
comportamento desses políticos que só apareciam no distrito na época das eleições,
deixando à deriva os problemas que afetavam a população. Assim sendo, a postura
dessa gente era uma forma de protesto, de resistência e de insatisfação frente ao
descaso dos representantes políticos em relação ao distrito.
Tijuaçu, antiga fazenda Lagarto, é sede do distrito, tendo povoados e fazendas
ao seu redor, cujos habitantes comungam dos mesmos valores culturais, uma vez que
se dizem todos parentes, constituindo uma mesma família. Segundo os depoentes, as
primeiras famílias chegaram a esse território no início do século XIX. Sua população,
1
Senhor do Bonfim está localizado ao Norte da Bahia, pertence à Região Econômica do Piemonte da
Diamantina, sendo a 28ª. Região Administrativa.
16
predominantemente negra, vive da agricultura de subsistência, plantando pequenas
roças para o consumo. O que sobra dessa produção é vendido na feira de Senhor do
Bonfim. Essa é uma região seca e muito pobre, onde faltam serviços básicos, como
saúde, educação, creches, rede de esgoto, ruas calçadas e emprego. Entretanto, essa
situação de carência não abate a auto-estima da população, a qual se revela com
intensidade através das suas manifestações culturais, como será discutido no terceiro
capítulo desse trabalho.
Nas várias visitas empreendidas à comunidade, observei que a maioria dos
moradores possui sobrenomes comuns, dividindo-se nas seguintes parentelas: a dos
Rodrigues, dos Santanas, dos Damascenos, dos Fagundes e dos Santos. Segundo os
registros de terras da segunda metade do século XIX, Felipe Rodrigues da Silva e
Joaquim Manoel de Santana foram os antigos donos da Fazenda Lagarto. Assim
sendo, é possível levantar a hipótese de que esses sobrenomes advenham desses
primeiros proprietários2, o que contraria, em parte, alguns estudos recentes ao
afirmarem que:
A prática de adotar o sobrenome do antigo senhor, embora não rara, não
parece ter sido a mais usual entre os libertos. Na Bahia, pelo menos,
pesquisas recentes mostram uma preferência por sobrenomes portugueses
ligados a santos, símbolos, cerimônias ou festividades da Igreja Católica
(SILVA, 1997, p. 203).
No Brasil escravista, os assentos de batismo, casamentos e óbitos da Igreja
permitiram, em geral, uma identificação mais segura dos escravos. Para os livres
pobres, contudo, essa identificação é dificultada. Nessa documentação, não aparecem
registros de sobrenomes para os mesmos.
2
Essa questão é discutida por Reis (1986), quando afirma que, no Brasil escravista, era comum os exescravos adotarem o sobrenome dos seus antigos senhores. Na obra citada, encontram-se
referências sobre alguns libertos que adotaram o sobrenome dos seus ex-senhores. Outra referência
é a obra de Silva (1997, p. 37). Segundo o referido autor: “Cândido da Fonseca Galvão, ‘homem livre
e de cor’, seu pai, um africano da nação iorubá, recebeu o nome cristão de Benvindo ao chegar em
Salvador, como escravo. Quando foi libertado, em data desconhecida na primeira metade do século
XIX, adotou – como muitos libertos o fizeram – sobrenome de seu ex-senhor, um onomástico que
transmitia prestígio social, tanto em Salvador da Bahia como no Rio Grande do Norte, Pernambuco e
Alagoas”.
17
Os depoentes afirmam que Tijuaçu teve início quando negros fugidos do
recôncavo ocuparam o distrito no começo do século XIX. Já a documentação escrita,
conforme afirmei anteriormente, faz referência a essa localidade como originária dos
antigos proprietários da Fazenda Lagarto, Felipe Rodrigues da Silva e Joaquim
Manoel de Santana. Se os primeiros habitantes eram negros fugidos, não tinham
senhor nem dono, pois não eram cativos, viviam livres em Tijuaçu, daí porque não
teriam herdado os sobrenomes dos antigos proprietários. Assim sendo, a questão de
onde vêm esses sobrenomes permanece e se constitui num dos confrontos entre a
documentação escrita e a oralidade e num dos questionamentos do presente trabalho.
Com o objetivo de entender questões como a referida anteriormente, como
também compreender a construção da identidade cultural dos habitantes de Tijuaçu,
empreendi leituras sobre comunidades negras rurais da Bahia e do Brasil. Nesse
sentido, analisei a obra organizada por José Jorge de Carvalho (1995) que pesquisou
sobre quilombo dos Rios das Rãs, localizado no oeste da Bahia. A referida obra
apresenta a experiência histórica, social e cultural desse quilombo baiano, fundado na
primeira metade do século XIX, cujos descendentes travaram uma luta jurídica, em
nível federal, pela posse definitiva de suas terras. Fiz ainda a leitura do livro
organizado por Clóvis Moura (2001), que é um convite ao aprofundamento na
complexidade dos quilombos brasileiros, que, segundo o autor, constituem territórios
abertos aos excluídos da sociedade colonial. Também foi analisada a obra organizada
por Reis e Gomes (1996) a qual reúne artigos sobre quilombos situados em diversos
locais do nosso país, constituindo-se em amostra das várias maneiras como o tema
vem sendo tratado atualmente. Duas outras obras discutem sobre quilombos da região
de Jacobina. A primeira, de Pedro Tomás Pedreira (1973), faz o mapeamento dos
vários quilombos que existiram no Brasil e alguns que ainda subsistem; a segunda, de
Flávio Gomes (2005), discute sobre os diferentes quilombos do Brasil, inclusive, faz
algumas referências sobre os quilombos de Jacobina entre os séculos XVIII e XIX.
Outras obras consultadas aparecem ao longo dos capítulos. Essas leituras levaramme a algumas indagações sobre as tramas de Tijuaçu: o que levou os primeiros
habitantes a ocuparem essas terras? Como os valores culturais têm permanecido
secularmente? Qual a trajetória do Samba de Lata e das outras manifestações
18
culturais ali existentes? Qual o olhar da população sobre sua afrodescendência? E
qual a reação da população após o reconhecimento como remanescente de quilombo?
Essas questões mapearam tal investigação.
A comunidade negra rural de Tijuaçu a partir de 1998, passou pelo processo de
reconhecimento como remanescente de quilombo ainda seguindo as regras do Laudo
Antropológico. O reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo foi
publicado no Diário Oficial da União em fevereiro de 2000. Tijuaçu, como tantas outras
comunidades negras rurais do Brasil, vem lutando pelos seus direitos enquanto
comunidade quilombola e, especificamente, quanta à demarcação de suas terras, cujo
processo de legalização do seu território encontra-se ainda no INCRA.3
Acerca das considerações referentes ao conceito de quilombo, pode-se afirmar
que este tem passado atualmente por vários questionamentos, diferindo da idéia de
rebeldia, de fuga e de enfrentamento. Considero Tijuaçu um quilombo contemporâneo,
uma comunidade negra rural habitada por descendentes de escravos que mantêm
laços de parentesco e que vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em
terras, por eles, secularmente ocupadas. Diversos autores discutem sobre o conceito
de quilombo e sobre a história dos quilombos no Brasil, dentre os quais: Rodrigues
(1977), Carneiro (1988), Ramos (1979), Freitas (1973), Moura (1999, 2001), Reis e
Gomes (1996). A historiografia sobre escravidão tem apontado que muitas das
comunidades negras rurais do Brasil – consideradas quilombos contemporâneos - têm
trajetórias diferentes: algumas foram formadas por escravos (ou ex-escravos), após a
falência de uma fazenda ou plantação nas décadas anteriores à Abolição; outras são
frutos de doações de terras por senhores a ex-escravos; algumas, compradas por
escravos libertos (que, em alguns casos, haviam comprado sua própria liberdade);
outras, ainda, provêm de doações de terras a escravos que haviam servido ao exército
em tempo de guerra ou doações a escravos por ordens religiosas. O que essas
comunidades de diversas origens têm em comum, além da cor da pele de seus
habitantes, é uma resistência cultural de longas décadas, em um território explorado
3
Segundo o técnico do INCRA, senhor Genildo Carvalho – assegurador dos processos de
Regularização Fundiária –, o Projeto de Assentamento de Terras de Tijuaçu continua da mesma
forma que a Fundação Cultural Palmares entregou ao INCRA, vez que esse órgão se encontra ainda
se adaptando à nova realidade – o assentamento das terras quilombolas. Informação obtida dia 13 de
fevereiro de 2006 na sede do INCRA em Salvador.
19
geralmente pela caça, pesca e agricultura de subsistência, sem subdivisões e escritura
oficial (PRICE, 2000, p. 249).
Essas comunidades estão passando atualmente por um processo de
reconhecimento, no qual se inserem aspectos culturais, antropológicos, étnicos e
históricos. Algumas dessas comunidades4 foram reconhecidas pela Fundação Cultural
Palmares5, outras encontram-se ainda, em processo de reconhecimento.
Segundo a Fundação Cultural Palmares, o perímetro quilombola de Tijuaçu
abrange as seguintes localidades: Alto Bonito, Água Branca, Macaco, Lajinha,
Barreiras e Quebra Facão, tendo como sede o distrito de Tijuaçu. Presentemente, a
comunidade continua vivenciando relações de trabalho com atividades na agricultura
de subsistência. Tijuaçu por sua história e cultura, enquadra-se nos requisitos
expostos no Art. 62 do ADCT, que rege sobre à ocupação de terras por afrobrasileiros. Os costumes e as tradições de seus habitantes revelam que os mesmos se
fazem presente nessa região desde a primeira metade do século XIX. Daí pode-se
afirmar que essa comunidade negra rural pode ser considerada remanescente de
quilombo, segundo o que rege o referido artigo e as Disposições Gerais da
Constituição de 1988.
A partir da década de 90, várias comunidades negras rurais buscaram
reconhecimento como remanescente de quilombo. Segundo Price:
Foram estas comunidades – a maioria das quais sem tradições (seja em
documentos escritos ou testemunho oral) que as conectem diretamente com
os quilombos históricos – que, durante a década passada, entraram, em
muitos casos, na batalha jurídica como candidatos à inclusão no círculo
privilegiado de remanescentes de quilombos, embora, em 1995, quando o
primeiro encontro nacional de remanescentes de quilombos aconteceu em
Brasília, uma única destas comunidades tivesse sido reconhecida
formalmente pelo Estado. O movimento começou a adquirir sucesso
pequeno, porém simbolicamente importante, logo depois. Em 1996, um
inventário de comunidades potencialmente aptas a constar na lista incluía
mais de 500 e outro postulava ao menos 2.000 comunidades negras, no
4
5
Sobre o referido assunto ver: Carvalho (1995); Gusmão (2001) apud Moura 2001; Vogt; Fry (1996).
Entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei Federal n. 7668, de 22 de
agosto de 1988, tendo o seu Estatuto aprovado pelo Decreto n. 418, de 10 de janeiro de 1992, cuja
missão corporifica os preceitos constitucionais de reforços à cidadania, identidade, ação e memória
dos segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira, somando-se, ainda, o direito
de acesso à cultura e indispensável ação do Estado na preservação das manifestações afrobrasileiras.
20
Brasil hoje, que podem se dizer descendentes de grupos quilombolas (2000,
p. 249).
Assim sendo, Tijuaçu e outras comunidades travaram batalhas junto aos órgãos
competentes em busca de seu reconhecimento.
A presente investigação tem como proposta discutir sobre a história de Tijuaçu,
por meio dos testemunhos orais (de habitantes de Tjuaçu e de Senhor do Bonfim) e
pela documentação oficial, consultada em diferentes arquivos do Brasil e de Portugal.
Assim, a intenção é discutir a trajetória de sua população e o estudo das experiências
históricas e das relações sociais e de família, analisando os costumes, a religiosidade,
as tradições e as diferentes manifestações culturais desse perímetro quilombola.
Outras questões focalizam os seguintes tópicos: as relações de trabalho e de
compadrio; a identificação dos moradores enquanto quilombolas; os benefícios
chegados à população após o reconhecimento da comunidade como remanescente de
quilombo; a construção de sua identidade cultural; o papel desempenhado pelas
mulheres ao longo dos anos e como e por que essas mulheres conquistaram o espaço
da liderança.
Através da história oral, busquei localizar vestígios do passado que refletem no
presente e que constituem a história desse reduto rural. A investigação foi buscar nos
resquícios da memória as histórias ouvidas e recontadas pelos mais velhos e pelos
jovens habitantes de Tijuaçu.
Por ter nascido em Senhor do Bonfim e conhecer alguns moradores, a minha
entrada na comunidade como pesquisadora foi facilitada. Outro ponto que contribuiu
para minha aproximação diz respeito ao ofício de professora, pois, muitos profissionais
que lecionam no distrito, no Ensino Fundamental I e II, tinham sido meus alunos na
Universidade do Estado da Bahia – Campus VII. Através deles, pude obter
informações sobre as experiências de vida desses habitantes. A primeira pessoa, que
tive contato em Tijuaçu foi Antônio Marcos Rodrigues da Silva6, em 1998, que me
acompanhou pelas fazendas e povoados da região, apresentando-me aos mais
antigos moradores e aos contadores de histórias. Nesse dia (26 de dezembro de
6
Antônio Marcos Rodrigues é o atual presidente da Associação Quilombola Agropastoril de Tijuaçu e
Adjacências, biênio 2005-2007.
21
1998), conversamos com dona Anísia, dona Dalva e com o senhor Antônio Manoel de
Aquino (então com idade de 81 anos). A conversa com esse senhor aconteceu
embaixo de uma árvore chamada barriguda, típica da região, sob o sol escaldante do
verão. Nesse local, o depoente narrou suas vivências e as histórias ouvidas e dizia:
“eu nasci nas Barreiras (povoado próximo). Sabe de onde veio essa nação? Da África.
Essa nação da raça negra veio da África”. Esse primeiro contato constituiu-se em
grande valia para outras conversas posteriores, possibilitando-me conhecer outras
pessoas e ouvir outras histórias sobre a região. As constantes visitas tornaram
possível um ambiente de confiança. As pessoas sentiam uma grande satisfação em
falar sobre Tijuaçu e expressavam, com prazer, sobre as histórias contadas por seus
pais e avós.
Por conta das várias visitas realizadas ao distrito, aos poucos fui tendo
conhecimento do cotidiano desses habitantes e assim passei a participar das reuniões
da Associação, a conhecer os problemas que afligiam a população e até em alguns
momentos criava alternativas de solução. Dessa forma, estabeleci um vínculo de
amizade com o ex-presidente da Associação, Valmir do Santos, com Ilca Maria dos
Santos, atual vice-presidente, Detinha, zeladora da Igreja Católica, com D. Dalva, líder
do povoado Alto Bonito e com Suzana, Nira, Dinha e tantas outras amizades que
foram iniciadas durante a fase de pesquisa. Essas pessoas passaram a ser referência
para a essa investigação. Quando era preciso colher depoimentos dos diferentes
moradores, era a eles que eu recorria, principalmente a Ilca, minha referência maior.
Assim, na perspectiva de conhecer as vivências dos moradores dessa
comunidade negra rural, a História Oral entra como uma grande referência das tramas
da memória, das experiências de vida em um território no qual a oralidade predomina.
Dado às circunstâncias, portanto, os relatos orais tornaram-se as fontes principais
trabalhadas. Foram esses informantes que pontuaram as questões relativas à história
de vida, aos costumes, às tradições, às festas populares, enfim, ao cotidiano de um
viver rural.
Dessa forma, seguiu-se a viagem rumo à memória, passando entre as curvas
do esquecimento e o ponto de apoio das lembranças e tendo como direção as
narrações da população. O embarque levou na bagagem a cumplicidade e a confiança
22
dos depoentes em narrar suas experiências e a dos seus antepassados. O trabalho
com a memória teve como ferramenta principal as entrevistas com as pessoas mais
velhas e com os mais jovens moradores do distrito. Várias horas de conversa
ajudaram na reconstituição sobre a trajetória de Tijuaçu, a religiosidade, as relações
de trabalho, de família e de compadrio. .
A história oral, segundo Portelli (1997, p. 17-19), é como uma arte do indivíduo
que leva ao reconhecimento não só da diferença mas também da igualdade. Na
busca pela diferença, não se pode esquecer de que também se acalenta um sonho de
compartilhar, de participar, de comunicar-se e de dialogar. Nisso implica “o caráter
dialógico da história oral, bem como seu trabalho de campo: a fim de sermos
totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais se não formos
totalmente verdadeiros”, como sintoniza Portelli (1997, p. 17-19). Assim, o trabalho de
campo é, por necessidade, um experimento em igualdade, baseado na diferença.
Nessa linha de investigação, o espelho da memória vai refletindo lembranças
que narram sua história. Cada pedaço desse espelho vai se encaixando, segundo as
representações expressadas pelos habitantes de Tijuaçu sobre o surgimento do
território e suas vivências. Como discute Lowenthal (1998, p. 75): “Toda consciência
do passado está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos a
consciência dos acontecimentos anteriores e distinguimos o ontem do hoje”.
Assim, relembrar o passado é crucial para nosso sentido de identidade: saber o
que fomos confirma o que somos. Nossa identidade e continuidade dependem
inteiramente da memória, pois é ela que pontua o passado e busca os interstícios
pretéritos.
Nesse trabalho, utilizei também a documentação do Arquivo Público do Estado
da Bahia, referente à Vila de Jacobina7 e à Vila Nova da Rainha (atual cidade de
Senhor do Bonfim), do final do século XVIII e início do XIX. Nessa documentação,
encontram-se dados sobre a ocupação dessas duas vilas, que dão conta da presença
da escravidão nessas localidades.
7
Até a década de 80 do século XIX, a Vila Nova da Rainha atual cidade de Senhor do Bonfim, pertencia
à Comarca de Jacobina.
23
Em Senhor do Bonfim, analisei a documentação do Cartório de Registro de
Imóveis e Testamentos, encontrando documentos referentes ao século XIX, sobre a
propriedade da Fazenda Lagarto, que muito contribuíram para elucidação de alguns
enigmas sobre a ocupação de Tijuaçu. Outra visita foi feita ao Arquivo dos
Franciscanos, na cidade de Campo Formoso, no qual foram encontrados alguns
mapas com a divisão territorial da região, bem como alguns escritos sobre a presença
de negros escravos. Na Paróquia de Senhor do Bonfim, foram consultados os
registros de batismo, óbito e casamento referente aos séculos XIX e XX.
Através do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior, realizei
pesquisa em diferentes arquivos de Portugal. Consultei manuscritos no Arquivo da
Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, na Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, na Biblioteca Municipal do Porto e no Arquivo Histórico
Ultramarino. Nessas instituições, encontrei documentos sobre Senhor do Bonfim e
Jacobina, especificamente correspondências sobre fugas de negros do recôncavo
para o sertão dessa comarca; sobre negros fugidos, encontrados na região; sobre a
elevação do Arraial de Senhor do Bonfim; tive acesso a correspondências entre as
autoridades da época sobre diferentes assuntos e ao Mapa dos Terços das
Ordenanças. Isto me fez perceber que, no final do século XVIII e início do XIX, havia
uma grande preocupação dessas autoridades com as constantes fugas de escravos
do recôncavo para o “Sertão das Jacobinas”.
Além da documentação encontrada nos arquivos indicados, analisei, também, o
Relatório da Fundação Cultural Palmares, elaborado pelo antropólogo Osvaldo
Oliveira, em fevereiro de 2000, que constitui um trabalho etnográfico sobre a
comunidade. Outro documento analisado foi o Estatuto da Associação Quilombola de
Tijuaçu e Adjacências, fundada em abril de 2000. Tal documento possibilitou-me
perceber as propostas encabeçadas por essa instituição, as reivindicações e os
anseios da população. Também a postura política dos moradores do distrito frente a
essas mudanças. A participação de alguns membros da associação em diferentes
encontros sobre remanescentes de quilombo e o contato com outras comunidades e
com pessoas dos diferentes setores do Movimento Negro fizeram despertar a
cidadania. A partir de então, o grupo tem buscado seus direitos.
24
Com o propósito de fazer um diálogo entre a escrita e a imagem, focalizando
diferentes situações e vivências desses sujeitos sociais, utilizei, ainda, a fotografia,
seguindo orientação de Leite (2001, p. 36), quando discute sobre a importância do uso
da imagem fotográfica, considerando que muitas vezes as palavras parecem
inadequadas ou imprecisas para exprimir aparências visíveis. Muitas palavras não
descrevem, apenas abstraem. A utilização da fotografia tem como pressuposto mediar
e inquirir sobre os costumes e as tradições, constituindo uma imagem visual de uma
época e de um momento. A fotografia possibilita conhecer os costumes, os gostos, as
formas de trabalho e diferentes situações cotidianas. Para comprovar a importância
dessa fonte, vejamos a palavras de Arrigucci Jr8 sobre o uso da imagem fotográfica
para o historiador:
A fotografia deve ser submetida a uma abordagem crítica para que de fato se
revele, e o historiador veja a si mesmo envolto numa teia de equívocos se
não se ater obstinadamente ao rigor do método crítico de aproximação às
imagens que ao mesmo tempo pode muito dizer e calar.
De posse de todas essas fontes, o presente trabalho está organizado em três
capítulos, assim constituídos:
Capítulo primeiro, Histórias do distrito de Tijuaçu, ruídos reconhecidos, no
qual faço uma discussão sobre a história dessa localidade a partir das narrativas de
seus habitantes, imbricadas em suas memórias e lembranças. Através das falas
desses sujeitos sociais, reconstruí a história desse território, pontuando questões
relativas ao seu surgimento e aos povoados que o compõem, como também às
experiências vividas por esse povo ao longo dos anos. Outra questão discutida diz
respeito aos laços familiares, à importância da terra para seus moradores e como essa
comunidade porta-se diante de sua auto-imagem enquanto afro-descendente. Cada
membro da família possui uma parte de terra, que cultivam, unidos, possibilitando os
meios de subsistência do grupo. São comuns os casamentos dentro do grupo familiar
– estratégia utilizada por esses quilombolas para que a terra permaneça dentro da
família e pessoas estranhas não assumam a propriedade. Fiz, também, uma
discussão sobre os antigos proprietários da Fazenda Lagarto, em meados do século
8
Cf. ARRIGUCCI JR, In: prefácio, LEITE (2001. p. 12).
25
XIX, e sobre a história do município de Senhor do Bonfim, em sintonia com o que
apontava a documentação oficial. Nessa perspectiva, também abordei a questão da
identidade, discutindo sobre a percepção dos habitantes de Tijuaçu sobre seu
reconhecimento enquanto remanescentes e sua identidade como tal.
Capítulo segundo, As mulheres tijuaçuenses e suas representações sociais
em variadas e diferentes funções, em que faço uma abordagem sobre os diferentes
papéis das mulheres que compõem esta localidade. A intenção é discutir sobre os
diferentes papéis assumidos por essas mulheres dentro da comunidade. Seus
depoimentos constituem-se no mais verídico testemunho do passado e do presente.
São artesãs, vendedoras de iguarias (como acarajé, abará, milho assado),
domésticas, roceiras, lavadeiras, percussionistas, sambistas, lavradoras; mulheres que
têm a astúcia do camaleão, dos pequenos bichos que não pretendem vencer, pois já
foram vencidos. Mas a sua pretensão é viver e lutar pela sua sobrevivência e da sua
família, resguardando traços da sua cultura e enfrentando o seu dia-a-dia com
otimismo e esperança de dias melhores. Com simplicidade, humildade e serenidade,
mantêm o equilíbrio de sua casa. Têm consciência de suas dificuldades diárias, mas
não se desesperam jamais; seguem em frente na esperança de dias melhores. Para
essas mulheres guerreiras, todo dia é um eterno recomeço de labuta e de muito
trabalho.
Capítulo terceiro, intitulado Tijuaçu faz a festa: devoção e diversão no
encontro de sua identidade, em cuja abordagem privilegio as diferentes festas que
aconteceram no Brasil colonial, especialmente as proibições daquelas realizadas por
escravos. Num segundo momento, desse mesmo capítulo, examino as várias
manifestações, principalmente a devoção a São Benedito – padroeiro do distrito – e o
Samba de Lata, principal expressão cultural da comunidade. Assim, é possível
perceber como as diferentes manifestações culturais se apresentam e qual o seu
significado para os remanescentes. Trato, também, da trajetória dessas manifestações
no espaço e no tempo.
Nessa perspectiva, as lembranças do passado refletem-se através da oralidade,
anunciando as experiências vivenciadas por esses remanescentes. Os depoentes
lembram as histórias contadas sobre os fundadores e como tiveram início as tramas
26
do território. Dessa foram, verifica-se que lembrar é muito mais uma atividade do
presente do que deslocar, para o presente, fatos já vividos. Rememorar não é o
mesmo que viver novamente o passado, mas sim a releitura do sujeito que a produz,
numa sociedade que se diferencia daquela à qual a lembrança se refere. A memória
reescreve a realidade vivida pelo grupo e as lembranças são imagens construídas,
produzindo o conjunto das representações dos entrevistados e adquirindo caráter
coletivo.
CAPÍTULO I
27
HISTÓRIAS DO DISTRITO DE TIJUAÇU, RUÍDOS RECONHECIDOS
Foto n° 1- Crianças quilombolas
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. s/d.
A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de
forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão
dos homens (LE GOFF, 2003, p. 471).
1.1 Fragmentos lembrados e narrados
28
“Mariinha Rodrigue, moradeira do Lagarto, a dona do Lagarto, eu conheci
assim”. (Entrevista com Edista Maria de Jesus, realizada pela autora em 08 de
abr. de 2000, no povoado de Barreiras).
“Bisavó Mariinha, foi, foi a minha vó legítima, ela era a mãe da minha vó”
(Entrevista com Anísia Rodrigues, realizada pela autora em 19 nov. de 2003,
em Tijuaçu).
A memória é um celeiro de lembranças e reminiscências, um fenômeno
sempre atual, “um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 1994,
p. 39). Estes fragmentos constituem parte das lembranças que estão inseridas na
memória daqueles que vivem no distrito de Tijuaçu. Nos depoimentos colhidos,
principalmente os mais velhos, quando se reportam a um tempo anterior, fazem
comparação com o hoje, lembram que o ontem foi marcado com muito sofrimento e o
presente constitui-se como desafio, cuja natureza envolve luta, dor, mas também
vivências, tradições, festas e religiosidade - memória e história. Como observa
Gusmão (2001, p. 358):
Cada grupo social tem, assim, em seu seio, algo irredutível, só seu, que
consiste num investimento inicial de sua existência e de seu mundo, que nem
sempre é ditado por fatores reais, mas que dá a estes sua importância e lugar
.
As características específicas de diferentes grupos sociais permitem que os
mesmos se reconheçam, pois são estilos de vida, formas de ver o mundo, imbricados
nas experiências vivenciadas por si e seus ancestrais. Assim, a história de cada grupo
é só sua, ao mesmo tempo em que assemelha-se à história de muitos outros grupos
pelo Brasil afora, que lutam por direitos, em particular pelo direito à terra em que
habitam, trabalham e constroem suas vidas (GUSMÃO, 2001, p. 358).
Tijuaçu, distrito de Senhor do Bonfim, localizado cerca de 370 km de Salvador
é composto pelos seguintes povoados: Fazenda Alto, Olaria, Quebra-Facão, Água
Branca, Lajinha, Conceição, Macaco, Barreira, Queimada Grande e Fazenda Capim. A
maior parte desses povoados está localizada no município de Senhor do Bonfim,
enquanto uma menor parte encontra-se nos municípios de Filadélfia e de Antônio
Gonçalves.
Sobre a origem do nome – Tijuaçu – alguns depoentes dizem que, na língua
29
dos índios que viveram na região, significa “lagarto grande” e tem esse nome porque
na região existiam muitos lagartos.
O nome de Lagarto sabe por que? Porque aí na rua era só juazeiro que tinha,
e, quando era tempo da lagarta aquilo ficava assim... E depois deram o nome
de Tijuaçu que dizem que na língua dos índios quer dizer lagarto grande.
(Entrevista com Maria Bernardina, realizada pela autora em 08 de abril de
2001, em sua residência em Tijuaçu).
Até a segunda metade do século XX, essa comunidade era conhecida como
Lagarto e pertencia ao município de Campo Formoso, segundo Silva (1915, p. 72), o
povoado de Lagarto ao final do século XIX, possuía 25 casas, quase todas cobertas
de palha “com população de cor”, cerca de 25 famílias residentes. Em 1953, com a
divisão territorial e administrativa dos municípios da Bahia,9 o referido povoado passa
a pertencer ao município de Senhor do Bonfim.
A história da terra construída pelo homem é sua própria história. Aquela que
faz deste participante de um grupo social parte ativa do espaço em que convive. Para
os habitantes de Tijuaçu, a posse da terra constitui um mecanismo que faz surgir os
laços familiares e as relações que se desenvolvem no território, sendo responsável
pela permanência das pessoas na localidade. É dela e é nela que os moradores vivem
e lutam. Para esses moradores, a terra não é valor de troca, pois ela pertence ao
grupo e é dela que eles sobrevivem.10 Segundo Henriques (2004, p. 13), esta também
é a concepção que o povo angolano, concebe a terra:
Identifica-se por isso através da relação que sustenta com a história, e que se
exprime não só pela presença dos espíritos dos antepassados, mas pela
acumulação de sinais, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos
homens, outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade.
Assim os africanos definem sua identidade por meio de alguns suportes,
entre os quais o fato de pertencer a uma família, a qual está integrada num
clã, numa comunidade e numa nação.
Essa forma de cuidar da terra, o respeito e esse pertencimento também são
posturas comuns encontradas em outras comunidades quilombolas, pois a terra é o
único bem desses residentes. Os habitantes de Tijuaçu zelam pela terra e pela família,
9
Lei n. 168 de 30 de dezembro de 1953. Diário Oficial do Estado da Bahia. Salvador, 01 de janeiro de
1954.
10
Sobre essa questão cf. Henriques (2004). Esta obra fornece indicações sobre a questão da
identidade do povo angolano no final do século XIX e início do XX.
30
pois estas representam sua identidade. A família significa a própria reprodução dessa
memória e dessa existência, representando a célula mãe da permanência da própria
localidade; a terra concretiza as relações de trabalho e de sobrevivência e a tradição é
representada pelos laços culturais, pelas relações de trabalho e os modos de vida
desses afro-descendentes. A preservação do sistema de parentesco estabelece
relações hierarquizadas e ritualizadas, sob a autoridade dos mais velhos, permitindo a
continuidade dos costumes e das tradições.
Os depoentes vão relatando e tentam separar as teias da memória na tênue
sobrevivência da própria linguagem literária que a memória permite falar. Segundo
Bhabha (2003, p. 350), “o entretempo mantém viva a feitura do passado”. A oralidade
possibilita ao historiador um diálogo para construção do conhecimento histórico que
engloba
indeterminações,
representações
do
imaginário
e
dimensões
para
compreensão de uma realidade. A construção da memória através da oralidade, por
sua formação, manutenção e elaboração das identidades individuais e coletivas é
expressa pela experiência humana no tempo e dimensionada pela história.
As histórias sobre a comunidade negra rural de Tijuaçu estão presentes na
memória dos mais velhos, bons narradores da saga dos seus antepassados,
permitindo resgatar um passado nem sempre revelado nos documentos escritos.
Segundo Funes (1996, p. 467), uma memória que é referencial ao mesmo tempo de
ancestralidade e de identidade. Em seus depoimentos, esses sujeitos sociais mostram
histórias de vida que, ao serem buscadas, se transformam em rastros de suas
existências em lugares específicos, demarcando suas presenças e revelando uma
memória familiar sobre suas experiências de vida.
Através de sua religiosidade, do seu cotidiano e do modo de ser de seus
habitantes, esses moradores revelam sua identidade cultural. Assim, esses aspectos
são percebidos não apenas na cor da pele de sua gente, mas, sobretudo, na memória
dos mais velhos moradores de Tijuaçu, que narraram as histórias contadas por seus
avós, remetendo-as sempre a um outro passado, referente às experiências
vivenciadas por seus antepassados em relação à escravidão. Essas informações
sobre a identidade cultural dos moradores de Tijuaçu, confirmam a idéia de Funes,
quando o mesmo afirma que os aspectos acima caracterizam as comunidades
31
remanescentes de quilombo e revela:
(...) de forma clara, que nem todas as sociedades formadas pelos negros
fugidos da escravidão desapareceram com a extinção de seus respectivos
quilombos, como podem sugerir vários estudos historiográficos sobre esses
agrupamentos, ao analisá-los sob a óptica do binômio formação/destruição
(FUNES, 1996, p. 467).
As várias comunidades quilombolas existentes no Brasil comprovam tal idéia.
Elas têm resistido e dão continuidade as experiências históricas dos seus ancestrais.
Assim, os depoentes mais uma vez narram sobre a história de vida da fundadora
dessa localidade:
Os mais velhos contam que, no início de 1800, Mariinha Rodrigues passou a
viver em Tijuaçu e veio de muito longe (Entrevista com Valmir dos Santos, em
20 de abr. de 2001).
Papai falava prá gente que chegou essa Maria Rodrigues, pobrezinha, num
aflagelamento de gente, com os pés rachado, de preta diz que o cabelo era aquelas
bolotinha. Foram agazaiá por lá; agazaiaram e daí não sei como foi que, que foi
gerando gente dessa famia nossa todinha (risos). Nós somo da raça dessa Maria
Rodrigues. Dizem que veio de Salvador ou da África, desceram em Salvador e aqui
ficaram, e daí surgiu esse povo todo. Os nossos pais é descendente dela. Eles
arrumaram esses dessa origem de negros. Esses negros vieram da África. (Entrevista
realizada pela autora com Dalva Odilon de Santana, em 11 de jan.de 2002, na fazenda
Alto do Bonito – povoado de Tijuaçu).
Nessa perspectiva, a memória constitui-se como elemento de significativa
importância para a reconstituição do processo histórico desses remanescentes; é o
sujeito que lembra, escreve Halbwachs (1990). Memória e história conjugam-se,
também, para conferir identidade a quem recorda. Cada ser humano pode ser
identificado pelo conjunto de suas memórias, embora estas sejam sempre sociais,
embora um determinado conjunto de memórias só possa pertencer a uma única
pessoa. Somente a memória possui as faculdades de separar o eu dos outros, de
recuperar acontecimentos, pessoas, tempos, relações e sentimentos e de conferir-lhes
significados. Nas comunidades negras rurais, conforme já afirmei, a memória está
mais viva entre os velhos: netos e bisnetos dos primeiros habitantes, guardiões das
histórias que seus antepassados contavam-lhes. É a eles que se recorre, para ampliar
os horizontes da pesquisa sobre essas organizações sociais (FUNES, 1996 p. 468).
Essas falas constituem uma síntese da trajetória de muitos negros que, ao
32
fugirem da escravidão, buscaram nas diferentes matas do interior do Brasil o seu
refúgio. Os depoentes contam com veemência as histórias ouvidas sobre Mariinha
Rodrigues e confirma a sua ancestralidade ligada a essa escrava africana que fugiu de
Salvador para Tijuaçu.
É válido pontuar que a presença da mão-de-obra escrava, principalmente na
Bahia, bem como em outras partes do país durante a escravidão, foi absorvida em
diferentes setores de produção: nas fazendas, nas casas e no comércio. Escravos e
libertos, crioulos e negros africanos desempenhavam quase todas as funções da
economia urbana e rural, das mais especializadas às menos qualificadas: eram
carregadores, trabalhadores nos portos e nas oficinas, lavadeiras, quitandeiras,
domésticas, artesãos e lavradores. Escravos e negros livres transitavam com extrema
agilidade pelas ruas das cidades, chamando atenção por seus trejeitos, cores e sons,
contrastando com a reclusão e hábitos disciplinados das famílias senhoriais.11 Como
se observa através das imagens produzidas por Debret que registrou o cotidiano dos
escravos na primeira metade do século XIX. A imagem abaixo constitui uma fonte para
análise histórica mostrando a rotina de alguns escravos comercializando nos centros
urbanos.
11
A presença africana nos centros urbanos foi tema comum às diversas narrativas de viajantes
estrangeiros que aqui estiveram no século XIX. Destacam-se as gravuras de DEBRET (1949).
33
Foto n° 2 - J. B. Debret. Viagem Pitoresca e histórica do Brasil. Paris: Castro Maya Editor, 1954,
prancha 30. Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP),
apud JANCSÓ; István, KANTOR; Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo:
Hucitec, 2001. p. 359.
Em diferentes espaços, o escravo fez-se presente com o seu trabalho, seus
costumes e sua religiosidade, desempenhando desde os primeiros momentos da
colonização papel fundamental na formação étnico/cultural. Nesse processo, o
africano escravizado foi encontrando meios de superar as adversidades em uma nova
sociedade, tornando mais suportáveis seu cotidiano e a sua convivência. O escravo
africano, com exceção de inúmeros suicídios cometidos por homens e mulheres,
procurava alternativa de sobrevivência fugindo ou criando táticas de defesa para
dissimular a sua difícil condição. Segundo os depoentes, Tijuaçu constituiu-se como
um lugar de refúgio de negros, tal qual aconteceu com algumas localidades do Brasil
durante a escravidão.
Dona Maria Edista de Jesus (falecida em 2002) e dona Anísia Rodrigues,
ambas na faixa de 80 anos, primas em 1º grau, contaram com propriedade a história
de Tijuaçu. Quando perguntadas sobre os primeiros moradores da localidade,
responderam que foi Mariinha Rodrigues “uma negra fugida”, a desbravadora do
território, que residia no Alto Bonito e que, estrategicamente, povoou as terras de
34
Tijuaçu, pondo em cada localidade um filho, com o objetivo de tomar posse dessas
terras, pelo uso de ocupação. E assim narram sobre as terras que Mariinha possuía:
Agora depois da rama é que tão fazendo aquela enroça, adepois da rama,
mas, meu avô Astácio, essa, essa, essa, essas terra aqui minha fia, Lagarto,
Lajinha Barreira, o Fojo, tudo era dessa bisavó minha, mas, Mariinha, a mãe
do meu avô Astácio. Ela, ela não era escrava, e essa terra aqui era toda dela
e a geringonça dela, dela foi grande, foi grande... Esse terreno da Barreira
aqui era todo dela. Era tudo da família dela, de Jacobina até o Ricocho
(Entrevista com Edista,realizada pela autora em 08 de abr. de 2000, povoado
de Barreiras).
A informante Edista com muita desenvoltura confirma através de seu
depoimento a presença de Mariinha Rodrigues como fundadora e proprietária das
terras desse perímetro quilombola. Desde a primeira visita feita a Tijuaçu, ouviu-se de
Valmir dos Santos12 e de outras pessoas mais velhas que lá residiam que a localidade
teve início quando três escravas que estavam fugindo do cativeiro passaram a viver
em Tijuaçu. Apenas uma permaneceu, que foi Maria Rodrigues. A partir daí, toda
história relatada pelos depoentes tem como protagonista essa escrava fugida, que
constituiu família, criando laços de parentesco e solidariedade no referido território.
Nos diferentes quilombos existentes, a base da organização social era a família que
garantia o cultivo dos diferentes produtos. Segundo Kabenguele13, “o sistema de
parentesco é a referência fundamental do africano. Não é a profissão, a nacionalidade
ou a classe social”. Assim, a instituição familiar era a base da organização social dos
quilombos e uma garantia de perpetuação da família. Essa tradição familiar é
fortalecida na América portuguesa por esses descendentes de escravos africanos e
perpetua-se até os dias de hoje em Tijuaçu e em outras comunidades negras rurais.
Segundo Dias (2001, p. 864-865), os dois grandes blocos lingüístico-culturais
com os quais se distingue a massa de africanos deportados para o Brasil conheceram
12
Ex-presidente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, durante dois
mandatos consecutivos, ou seja, de 2000 a 2005.
13
Segundo Kabenguele (1986. p. 60-61), “em função do sistema de parentesco que se criou o que
alguns autores chamam de tribalismo, palavra feia, que não traduz a realidade africana. Nessa ordem
de idéias, duas vertentes subdividem a África de que tratamos: a matrilinearidade e patrilinearidade.
Quer dizer, pelo pai ou pela mãe, a criança liga-se a vários ancestrais situados evidentemente numa
mesma linha. Geralmente, os antepassados constituem um triângulo que se alarga a cada geração.
Os vivos são unidos aos mortos, porque é através desses que a força é transmitida. São unidos entre
eles, pois todos participam da mesma vida”.
35
condições bastante diferentes de fixação à terra, trabalho e contratos sociais com a
cultura hegemônica. Os bantos, pertencentes a várias etnias do Congo, de Angola e
de Moçambique, foram destinados, desde o século XVII, para o trabalho dos engenhos
de açúcar do Nordeste; no século XVIII, para a extração de ouro e diamantes das
Minas Gerais e, no século XIX, para a plantação e colheita do café no Sudeste. O
tráfico de sudaneses, provenientes dos territórios hoje ocupados pela Nigéria e pelo
Benin, aqui chamados de jejes e nagôs, intensificou-se ao final do século XVIII, tendo
como destino os trabalhos domésticos nas capitais do Nordeste e, em menor número,
nos engenhos e nas roças do Oeste e Sertão Baiano e nas grandes cidades do Rio
Grande do Sul.
Em suma, enquanto os bantos constituem, desde o primeiro século, o grosso
da mão-de-obra pesada na zona rural, os sudaneses tiveram vivência mais urbana,
suprindo a necessidade de serviços variados, surgida com o crescimento das cidades
(DIAS, 2001, p. 864-865). Nessa perspectiva, considerando as ponderações de Dias,
pode-se afirmar que os primeiros negros que passaram a habitar em Tijuaçu eram
descendentes dos bantos, pois estes habitaram a zona rural do Nordeste e foram
mandados posteriormente para região das minas. Isto vem confirmar as histórias
contadas sobre as três negras fugidas, consideradas as primeiras habitantes de
Tijuaçu.
Como discute Mattos (2000), os escravos vendidos para o interior tinham
conhecimento de que a sua ida representava o abandono de antigos hábitos e práticas
comuns à escravidão urbana, sobretudo no que diz respeito à relativa autonomia de
circulação, trabalho, entre outras atividades; significava uma série de mudanças contra
as quais, na maioria das vezes, os escravos rebelavam-se e resistiam o quanto
podiam. No caso em questão, segundo os depoentes, Mariinha Rodrigues e seus
companheiros ou companheiras não foram vendidos e sim estavam fugindo,
rebelando-se e resistindo contra o sistema escravista e sabiam dos desafios que os
esperavam. De acordo com o depoimento abaixo:
Essas negras que estavam fugindo do cativeiro aqui chegaram, quer dizer,
elas fugiram de lá, de Salvador, passaram determinado tempo a pé e aqui
ficaram. Enfrentaram a mata, pois aqui era uma mata fechada. Duas dessas
escravas voltaram, ninguém sabe para onde, só ficou uma e essa uma, o
nome dela era Maria Rodrigues, mais conhecida por Mariinha Rodrigues
36
(Entrevista com Valmir dos Santos, realizada pela autora em 22 de out. de
2000, em Tijuaçu).
Desse breve relato e de outros depoimentos colhidos, deduz-se que os
primeiros negros chegados à região passaram a viver em local de difícil acesso, sendo
inexato o momento de ocorrência dessa chegada. Alguns dizem que Mariinha
Rodrigues passou a residir em Tijuaçu no início do século XIX; outros falam que foi há
muito tempo atrás. Há de se considerar que, ao final do século XVIII e início do XIX, na
América portuguesa, há uma grande movimentação de escravos fugidos e a
conseqüente formação de quilombos14.
Segundo Reis (1996), um escravo podia buscar liberdade, sozinho ou
acompanhado de um ou mais parceiros. Porém, a fuga empreendida – quer por
membros de uma mesma família escrava (pai, mãe, filhos, irmãos, parentes), quer por
casais de escravos casados legalmente ou que mantinham relação consensual
(parceiros afetivos freqüentemente denominados nos anúncios como “amásios”,
“camaradas”) – representava o desejo de viver em liberdade, e esta incluía a
companhia dos seus.
Para Reis (1996), a fuga possibilitava aos escravos unir-se às famílias e
amizades separadas pela venda ou mudança de domicílio senhorial e outras
circunstâncias. Ele cita casos relacionados com fugas, parentesco e acoitamento no
quilombo do Oitizeiro, que ficam mais bem entendidos nos termos da época: um
quilombo, mas não como se acostumou a imaginar que fosse um quilombo. Era
formado por homens livres (negros, brancos e até um índio), seus próprios escravos e
os escravos alheios que acoitavam e que formavam uma importante parcela da
população adulta.
A historiografia15 sobre escravidão na Bahia pontua que, no início do século
XIX, a população escrava caracterizava-se pelo reduzido número de mulheres. Como
conseqüência, essa população renovava-se e ampliava-se principalmente através da
importação de africanos. Na virada do século XVIII para o XIX, quando um surto de
prosperidade tomou conta do recôncavo baiano, a importação de escravos foi
14
15
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 20 de abr. de 1799, documento n. 19.362.
Cf. Reis (1988); Reis e Gomes (1996); Oliveira (1995/1996).
37
intensificada para atender a demanda dos canaviais e das atividades urbanas, ambas
em expansão acelerada. O considerado número de africanos cresceu ainda mais e os
escravos novos originaram-se de novas “nações”, como aqui se denominavam, com
justiça, os grupos étnicos da África. A prosperidade do recôncavo e a descoberta de
ouro em Minas e no sertão da Bahia intensificaram o tráfico de escravos ao final do
século XVIII e início do XIX, ampliando o número de fugas e a formação de quilombos
na Bahia.
A partir desse contexto, é possível afirmar que Maria Rodrigues, a escrava
fugida, que os depoimentos se referem, transformou-se na grande provedora do
território:
Esta geração é todo mundo parente de Maria Rodrigues... Então, ela teve
vários filhos. Essas terras eram todas abandonadas. Então, ela para ter posse
das terras, pegava um filho e colocava, como no caso colocou em Quebra
Facão, colocou em Barreira, um aqui, um em Lajinha para ter posse da terra
(Entrevista realizada pela autora com Valmir dos Santos, em 20 de abril de
2001, em Tijuaçu).
De acordo com o que se pode inferir dos relatos de alguns depoentes,
Mariinha Rodrigues era uma mulher astuta, desbravadora e estrategista que
conseguiu prosperar e ser proprietária das terras de Tijuaçu. Para ocupá-las, uma vez
que eram verdadeiras matas, a estratégia utilizada, conforme já afirmei, foi distribuir
seus filhos pelo território. Assim, eles tomaram posse, impedindo que outros as
habitassem. Dessa forma, Mariinha Rodrigues conseguiu manter essas terras sob o
seu domínio.
Mariinha Rodrigues quando foi construindo família, ela fez uma estratégia
colocar um de seus filhos em cada ponto distante um do outro, para que
praqui fosse povoado e ela tomasse um, um domínio da grande área de terra,
ou seja, ela formasse um pedaço grande de terra. Foi de forma que ficou mais
ou menos assim, hoje tem as comunidades: Macacos, tem Barreira. Então ela
saiu circulando, Macaco, Barreiras, tem Quebra-Facão, Água Branca. Então
cada local desse foi colocado uma pessoa, um dos filho, um descendente
dela, para que esses lugares fosse crescendo e ficasse interligados um ao
outro, é como se demarcasse um perímetro e, na verdade, nós usamos hoje
esse, essa estratégia dela, nós temos essas marcas aqui e nós usamos como
perímetro quilombola. É, é, por exemplo: Água Branca, fica numa posição;
Macacos fica na outra, então nós fazemos esse círculo ai, que é, já foi medido
aproximadamente 2.700 e mais alguns m², então mais ou menos esse o
perímetro quilombola que nós temos. Devido ao relato contado por pessoas
idosas da comunidade, a exemplo de Dona Anísia que é minha vó, tem 88
anos e é uma das pessoas mais lúcidas dessa comunidade, conta histórias de
38
muitos anos, lucidez até hoje, várias outras pessoas como Dona?, também,
que já faleceu há pouco tempo, mas antes de falecer ela contou muitas coisas
que ajudaram muito também na questão da, da, da, do reconhecimento, e
outra, e outras pessoas mais né? (Entrevista realizada pela autora com
Antônio Marcos Rodrigues, em 2 fev. de 2005, em Tijuaçu).
O domínio e a posse da terra por ocupação foram à estratégia utilizada por
Mariinha Rodrigues. Ela soube delimitar o espaço e dominá-lo juntamente com os
membros de sua família. A atitude de Mariinha Rodrigues foi sábia e inteligente. A
família, nesse caso, foi predominantemente fator de integração social. No Brasil
escravista, ter muitos filhos significava uma segurança na velhice, “os filhos se
situavam na escala familiar com a mesma importância, não importando se fossem
naturais ou legítimos, desde que livres ou libertos (OLIVEIRA, 1988, p. 61)”. E
acrescenta:
Afora os motivos de ordem afetiva que sem dúvida atuavam de forma
incontestável, não se pode deixar de lado a motivação de ordem econômica
que levava os libertos, homens e mulheres, a comprar a alforria para os filhos
concebidos durante o período de cativeiro da mãe. Livres, esses iriam com
seu trabalho auxiliar na manutenção dos pais e na formação de um pecúlio
comum que permitiria uma vida melhor para todos (OLIVEIRA, 1988, p. 61).
Os filhos, para os libertos, representavam a prosperidade, pois todos unidos
trabalhando podiam gozar de uma vida melhor e de conforto junto com os seus pais.
Segundo os depoentes, os vários filhos de Mariinha Rodrigues possibilitaram-lhe
ocupar as terras de Tijuaçu. Essas terras transformaram-se, posteriormente, no atual
distrito e em pequenos povoados e fazendas. As vozes são unânimes no que se refere
à origem dessa comunidade: “é uma família só, tendo como matriarca Mariinha
Rodrigues”. Ao esboçar uma linha genealógica das famílias do presente, essas falas
traçam laços familiares, justificando as interligações de parentesco entre a população
de Tijuaçu e localidades vizinhas.
Segundo Funes (1996, p. 471), a constituição da família foi a primeira forma
encontrada pelo escravo, em seu universo social, para amenizar as adversidades,
pois, dentro do precário acordo que extraía dos seus senhores, o casar-se significava
ganhar mais controle sobre o espaço de moradia. O seio da família constituía o
espaço onde a autoridade independia, em grande parte, da presença do senhor. Os
laços matrimoniais davam certo tom de “autonomia” e “liberdade” para o escravo.
39
Vivendo perto dos seus, daqueles de quem gostava, que conhecia, tinha possibilidade
de viver uma vida menos infeliz, pois juntos podiam dividir a dor e a alegria, lutar pela
compra de alforria, praticar seus cultos religiosos e comungar dos mesmos costumes.
Em Salvador, no século XIX, Mattoso (1988, p. 111-117) assinala que a
família nuclear entre cativos era instituição não só rara, como essencialmente
incompleta ou parcial, uma vez que se moldava às próprias limitações impostas pelo
viver escravo. Essas limitações referem-se às atribulações vividas pelos escravos
dentro de uma sociedade altamente preconceituosa, na qual vivenciavam situações,
no contexto dos plantéis: a necessidade de escolha de parceiros preferenciais fora das
unidades senhoriais e os constrangimentos materiais colocados pelo sustento das
famílias que, mesmo quando possível de ser arcado por ganhadores, obstruíam as
possibilidades de alforria.
Sobre os forros, a autora nota a incidência significativa de famílias naturais,
com forte tendência endogâmica, acompanhando uma dupla direção pertinente à
sociedade baiana como um todo. Outras informações fazem referências aos quadros
da desagregação do sistema escravista e, especialmente entre os africanos, da
endogamia e dos casamentos consensuais que fortaleciam as redes de ajuda mútua e
solidariedade em face de um ambiente hostil.
Essa rede de ajuda mútua e de solidariedade, através do casamento e das
relações de parentesco, também se faz presente em Tijuaçu. São as mesmas famílias
vivendo nesse distrito secularmente, formando os laços matrimoniais entre parentes.
As seguintes famílias habitam essa localidade: os Rodrigues, os Santanas, os
Damascenos, os Fagundes e os Santos. “Termina todos sendo parentes aí em
Tijuaçu. É tudo parente; esse parentesco veio de longe. Então, todo mundo termina
sendo parente de Mariinha Rodrigues. É a Barreira, o Macaco, o Quebra Facão,
Lages, Fazenda Alto, uma família só. Tudo parente, sobrinho. Tudo primo, tudo.”
(Entrevista realizada pela autora com Dalva Santana, em 11 de jan. de 2002, na
Fazenda Alto Bonito – povoado de Tijuaçu). Esse parentesco é percebido nos
diferentes povoados e fazendas que compõem esse perímetro quilombola.
Segundo dados do IBGE, no distrito de Tijuaçu, vivem 292 famílias e cerca de
1.600 pessoas. No mapa a seguir, pode-se observar o perímetro quilombola,
40
composto pelo distrito, fazendas e povoados circunvizinhos:
Mapa n° 1 – Perímetro quilombola
Fonte: IBGE, BA, 1980.
A seguir apresentamos os diferentes povoados que compõem o perímetro
quilombola de Tijuaçu.
O povoado de Quebra Facão (nome originado de um tipo de árvore existente
nesta área) localiza-se à esquerda de Tijuaçu, indo em direção à Salvador, numa
planície, cuja vista é uma das mais belas da região. Pela sua localização, constitui um
cenário perfeito para as filmagens das diferentes manifestações culturais desse
41
perímetro quilombola. Cerca de 25 famílias (122 pessoas) residem nesse povoado e
se dizem descendentes de João Gregório e Anora (pais de Rosendo José dos Santos
– casado com Leonídia dos Santos, conhecida como Felipa)16. Seus moradores se
consideram da mesma família. Contíguo a esse povoado, tanto geograficamente
quanto pela proximidade dos laços de parentesco, encontra-se o povoado de Água
Branca, onde existem sete famílias e cerca de 42 pessoas. Em Lajinha, existem 12
famílias e cerca de 60 pessoas.
Em Barreiras, vivem 21 famílias e cerca de 92 pessoas morando em casas
que foram construídas de modo circular em torno de um campo de futebol. A maioria
das famílias residentes está ligada por meio de laços de parentesco ao senhor
Francisco Cassiano Rodrigues (79 anos), à sra. Maria Jovina dos Santos (87 anos –
irmã de Francisco) e à sra. Edista Maria de Jesus (90 anos – esposa de Francisco).
Os dois primeiros são netos de João Pedro Rodrigues (primeiro a ocupar à antiga área
da Barreira) e Edista que era nora do mesmo Pedro e, por outro lado, neta de Astácio
Rodrigues (filho de Mariinha Rodrigues)17.
Nessa localidade, parece que houve um verdadeiro encolhimento do território,
restando apenas pequenos espaços, pois grande parte das terras foi comprada ou
trocada por fazendeiros da região aos moradores de Barreiras na época das
estiagens. Dona Edista narrou as experiências vivenciadas por ela e seus familiares
na época das várias secas perpassadas. A fome e a falta de água forçavam os
moradores a trocarem partes de suas terras por um saco de farinha ou um pedaço de
bode. Muitos moradores contam que seus parentes nesse período se dirigiam para
outros lugares para não morrer de fome e, quando retornavam, suas terras tinham sido
invadidas. A ambição dos fazendeiros circunvizinhos e a falta de documentação legal
por parte de seus legítimos donos foram encolhendo a propriedade para as
proporções em que hoje se encontra. Muitos moradores reclamam da dimensão do
povoado que foi invadido pelas cercas dos fazendeiros e da pequena parte de terras
que possuem para cultivar.
16
Segundo os depoentes, esses são os moradores antigos. Essas informações foram obtidas através
de entrevistas com os moradores dessa localidade e, também, através de dados fornecidos pelo IBGE
–BA, 2001 e pelo relatório da Fundação Cultural Palmares.
17
Os moradores de Barreiras consideram-se descendentes diretos de Mariinha Rodrigues.
42
No povoado de Macaco (nome que se originou devido à presença, no
passado, desses animais, segundo alguns depoentes), subdividido, segundo a
terminologia local, em Macaco de Baixo, Macaco de Cima e Catuaba (ou Favela),
existem 65 famílias e cerca de 320 pessoas, descendentes dos antigos moradores. As
terras deste povoado pertencem aos municípios de Filadélfia e de Antônio Gonçalves.
Dessas 65 famílias, encontram-se 04 famílias vivendo em uma área de terras que
denominam de Queimada Grande. Um pouco mais adiante, em sentido norte, indo em
direção ao povoado de Macaco, está a denominada Fazenda Capim, na qual existem
apenas duas famílias e 14 pessoas. A maioria dos moradores desse território mudouse para Tijuaçu.
Em Conceição, se encontram 15 famílias e cerca de 60 pessoas. Apenas
duas delas têm suas origens ligadas aos primeiros moradores de Tijuaçu: a do senhor
Valdete Alves da Silva e a do senhor José Alves da Silva, que são netos de João
Modesto (filho de Modesto e neto de Feliciano Fagundes). Outras três famílias se
formaram pela incorporação de três jovens – cujos pais vieram do município de
Retirolândia.
Na Fazenda Alto moram cerca de 20 famílias e cerca de 130 pessoas.
Conforme os relatos, ali viveu Mariinha Rodrigues e os que permanecem no local
atualmente dizem ser seus descendentes. Foi nessa localidade também que o Samba
de Lata teve início, sendo posteriormente incorporado pelos habitantes de Tijuaçu. O
povoado de Olaria localiza-se próximo a Fazenda Alto, nessa localidade residem 11
famílias e 53 pessoas.
Observa-se, então, que os laços de parentesco18 estão bem presentes entre
os moradores, tornando-os da mesma descendência. Segundo Silva (2000, p. 272),
esses laços familiares caracterizam essas comunidades negras rurais:
O que particulariza as comunidades negras rurais é o processo através do
qual elas tomaram posse da área que hoje habitam, elemento fundamental
para se entender a formação do grupo, sobretudo as suas estratégias de
preservação no espaço territorial. É enquanto ocupante de um território que o
grupo se reproduz cultural, política e simbolicamente como organização
distinta no meio rural.
18
Segundo Augé (2003, p. 26), essa descendência unilinear denomina-se de Linhagem, grupo de
filiação em que todos os membros se consideram como descendentes.
43
A forma como o grupo se reproduz culturalmente é uma das características
das comunidades quilombolas. O trabalho coletivo e a solidariedade entre o grupo,
marcam as vivências dessas comunidades.
Outra questão levantada pelos moradores de Tijuaçu refere-se à prosperidade
de Mariinha Rodrigues. Segundo os depoentes, Maria Rodrigues sendo uma mulher
próspera, residia numa casa de palha. Alguns depoentes lembram da sua morada e
dão risada e se expressam com frases do tipo: “casa de paia19, currá na porta, risos ...
“20. Para estes moradores, é difícil imaginar a prosperidade de Mariinha Rodrigues:
tendo uma situação privilegiada, proprietária de gado e das terras desse território,
continuava morando numa casa de palha.
Por isso, quando o referido assunto é
discutido, os moradores dão risadas, demonstrando um certo deboche.
Sobre a vida de prosperidade e espírito empreendedor de algumas mulheres
negras, Mott sugere:
As mulheres nagôs e suas descendentes na Bahia tinham o mesmo espírito
empreendedor que as caracterizava na África. Vendiam no mercado e, boas
comerciantes, ganhavam dinheiro e mesmo enriqueciam, tornando-se
proprietárias de pequenas casas que chegavam a alugar a seus compatriotas
(1991, p. 38).
O espírito dinâmico e empreendedor da mulher africana e de seus
descendentes trouxeram uma grande contribuição à cultura brasileira. Durante o
período colonial, não houve trabalho que ela deixasse de executar.
Na faina agrícola, labutavam com a foice e a enxada, desde pequenas,
semeavam, catavam ervas daninhas, enfeixavam as canas. Nos engenhos,
eram encarregadas de moer as canas e cozer o melado, agrupadas em torno
de infernais panelões de cobre. Manufaturavam o açúcar, descaroçavam
algodão e descascavam mandioca, base de sua alimentação. Ocupavam-se
das tarefas domésticas na casa-grande, onde cozinhavam, lavavam, coziam e
arrumavam, assim como na senzala, onde se responsabilizavam pela
manutenção de maridos, companheiros e filhos. Também na senzala algumas
delas, graças aos inúmeros conhecimentos transmitidos oralmente – o
19
Vasconcelos (1941), afirma que, nos primeiros anos do século XVIII, as vilas eram simples aldeolas
com casas de sapé, capelinhas de palha, tudo muito precário. A palha continuou bastante empregada
em ranchos na zona rural, como acontece ainda hoje em algumas regiões do Brasil. Em Tijuaçu, a
palha ainda é muito utilizada nas casas localizadas nas roças. Ao referir-se ao século XVIII, o Códice
Costa Matoso diz que as capelas e ranchos eram cobertos de sapé, apud Scarano (2002, p. 85).
20
Fala de Abílio Fagundes, entrevistado pela autora em 26 de abril de 2001, em Tijuaçu.
44
chamado “saber fazer” – tornavam-se parteiras, benzedeiras e temidas
feiticeiras21.
Sobre a questão da prosperidade de mulheres negras, Paiva (2001, p. 507),
no seu estudo, cita Bárbara Gomes de Abreu e Lima, uma crioula que saiu escrava de
Sergipe Del-Rei em direção às Minas e experimentou dessa mobilidade com muita
perspicácia. Ela protagonizou um caso exemplar, parcialmente registrado em seu
testamento:
Corria o ano de 1735, quando Bárbara decidiu registrar em cartório seus
legados testamentais. Nesses papéis declarava que se havia forrado nas
Minas, aludindo à sua autocompra – por meio, possivelmente da coartação22 –
e que também havia comprado a casa onde morava, localizada no largo da
Igreja matriz da vila de Sabará, endereço nada modesto. Sua rede de
amizades era também notável: além de ampla, espalhava-se por várias
regiões das Gerais e pela Bahia. Ela tinha negócios distribuídos por toda essa
área, embora nenhuma palavra tenha sido dedicada a explicá-los. Para cuidar
dos seus negócios indicou doze homens de sua confiança como
testamenteiros. Mas o conjunto, pequenos bens materiais listados pela
testadora é o que chamava a atenção.
Outro estudo sobre a prosperidade dos escravos é apresentado por Mattoso
(1979, p. 35):
Desde o início do século temos antigos escravos que realmente se tornaram
homens abastados. Este é o caso, por exemplo, do barbeiro e músico
Francisco Nunes de Morais, falecido em 1811. Quando, em 1790, Francisco
fez seu testamento, possuía dois escravos que o ajudavam na sua arte de
músico. Em 1810, no codicilo que acrescentou, declara possuir uma
verdadeira orquestra, composta de cerca de doze escravos, o que prova certo
enriquecimento e, bastante rápido.
Segundo a autora, bastaria que os libertos pudessem viver por muito tempo,
possuíssem uma ocupação lucrativa, tivessem casado com mulheres remediadas ou
houvessem usufruído boas ajudas para ascender na escala social, pelo menos na
econômica.
Seguindo a trajetória de prosperidade de Mariinha Rodrigues, pode-se
21
22
Cf. Del Priore ( 2000. p. 18). Sobre o trabalho da mulher escrava, cf. também Russel-Wood (2001).
Segundo Paiva (1995, p. 49-57): a coartação foi prática recorrente em Minas e, resumidamente,
significava o pagamento parcelado da alforria, efetuado pelo próprio escravo. Tratava-se de acordo
estabelecido diretamente entre senhores e escravos. Cf. também sobre o assunto Souza (1999. p.
151-174).
45
observar como a mesma se empenhou e conseguiu criar estratégias para tornar-se
fazendeira, mulher rica e próspera. No segundo capítulo, veremos que outras
mulheres assim como Mariinha assumiram papel de destaque nessa localidade.
Além da história sobre a fundadora Mariinha Rodrigues, outras histórias são
contadas sobre antigos moradores de Tijuaçu, parentes próximos dessa matriarca,
entre quais: Feliciano Fagundes, apontado como um dos primeiros moradores, teria
vindo de um lugar chamado Ipêra e se casado com uma filha de Mariinha Rodrigues e
com ela constituiu família, cujos filhos eram: Ângelo, Sabino, Rosalvo (o Rosa) e
Leandro Fagundes.
Segundo a senhora Maria Bernardina, Ângelo Fagundes, neto de Mariinha
Rodrigues e seu avô materno, “tinha sangue nagô”. Em 1848, Francis Castelnau,
cônsul da França na Bahia, observou que: [...] os nagôs [...] formavam nove décimos
dos escravos da Bahia [...]”. Dentre os nagôs:
[...] foram os Ketu que implantaram com maior intensidade sua cultura na
Bahia, reconstituindo suas instituições e adaptando-as ao novo meio, com tão
grande fidelidade aos valores mais específicos de sua cultura de origem, que
ainda hoje eles constituem o baluarte dinâmico dos valores afro-brasileiros
(SANTOS, 1976, p. 28).
Segundo os estudos de Ramos (1979, p. 183-199): “Os negros nagôs foram
desde logo os preferidos, nos mercados de escravos da Bahia. Eram altos,
corpulentos, valentes, trabalhadores, de melhor índole e os mais inteligentes de todos.
Usavam tatuagens ’marcas de nação’, na face” 23.
Além dos nagôs, outro grupo que contraiu matrimônio com os descendentes
de Mariinha Rodrigues foi o dos congos, que habitavam na região do atual distrito de
23
Sobre a terminologia nagô como designativo de nação africana, Ramos (1979. p. 183-199) afirma:
“Desde os tempos coloniais até os nossos dias houve designações populares de Nagô, Mina, Angola,
Moçambique. O que indicava vagamente os pontos do continente africano de onde vieram os negros.
Mais comuns eram as designações gerais: ‘peça da Índia’. ‘preto da Guiné’, ‘negro da Costa’. Para o
branco senhor, não havia povos negros diversos, mas apenas o negro escravo”. Ainda sobre essa
questão, Artur Ramos apresenta um quadro dos padrões de culturas negras sobreviventes no Brasil:
a) Culturas sudanesas, representadas principalmente pelos povos Yorubá, da Nigéria (Nagô; Ijechá,
Eubá, ou Egbá, Ketu, Ibadan, Yebu ou Ijebu e grupos menores); pelos Daomeanos (grupo Gêge:
Ewe, Fon ou Efan, e grupos menores), entre outros.
46
Quicé, localidade próxima a Tijuaçu. Estes, segundo os depoentes, viviam no mato
como os Cariris (índios da região). Segundo dona Anísia, “os congos não eram saídos,
não. Viviam no mato fazendo suas roças e comendo besteiras de roça. Eles não
saíam assim pro mundo, não. Eram criados a base de beiju e de massa de mandioca
na roça”.
Os moradores mais velhos fazem, também, várias referências aos índios
Cariris (Caririzeiros), que contraíram matrimônio entre os descendentes de Mariinha
Rodrigues. Dizem que os Cariris viviam no mato, eram muito bravos e alimentavam-se
da caça. A senhora Maria Bernardina relata que seu avô José Pedro da Silva casou-se
com uma cabocla (índia), chamada Benta Maria de Jesus, que veio de Feira de
Santana para a região. Dizem que eram “índios mansos”, que passavam pelo local
para visitar os índios da Vila de Missão do Sahy e acabavam parando em Tijuaçu,
onde contraíram casamentos.
Pelos relatos acima, índios e negros se relacionavam harmoniosamente no
referido território, mantendo relações também conjugais. Os habitantes desse
perímetro quilombola, ainda conservam algumas tradições dos seus ancestrais, dos
brancos e também dos índios que viviam próximos a essa região.
Nessa perspectiva, nessa comunidade, encontra-se um hibridismo cultural
que emergiu no momento da colonização do Brasil. Há uma reinvenção das tradições
culturais, seja ela negra, branca ou indígena. Encontram-se esses elementos nas
diferentes relações que os habitantes se entrelaçam em Tijuaçu. O trabalho fronteiriço
da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de
passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradição
cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente
estético, ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que
inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da
necessidade e não da nostalgia de viver (BHABHA, 2003, p. 27).
É nesse mundo de “entre-lugares” deslizante que vivem os moradores de
Tijuaçu, dentro dessa junção de culturas que se mediaram no decorrer do tempo,
possibilitando a constituição de sujeitos culturais híbridos.
Esses narradores consideram-se descendentes diretos dos africanos nagôs.
47
Alguns depoentes narram que seus ancestrais foram cativos e quando chegaram em
Tijuaçu estavam fugindo da escravidão; tinham esperança de viver para sempre nesse
território, longe dos olhos do senhor. “A oralidade vai pontuando essas questões, uma
vez que a experiência nunca termina; é constantemente relembrada e retrabalhada”
(THOMSON, 1997, p. 63). Assim, a memória sobre suas vidas vai sendo construída a
partir de suas lembranças, pois a memória não é construída arbitrariamente, ela se
alimenta das experiências históricas e precisa ser contextualizada. Assim, analisando
os depoimentos colhidos, percebe-se que a identidade dos habitantes de Tijuaçu é
sedimentada na presença de Mariinha Rodrigues, que constitui o centro de toda
história desse território. Os laços familiares firmam-se e concretizam-se com a
presença dessa fundadora. A história contada tece questões referentes à memória, à
identidade, construção de solidariedade, pertencimento e tradição desse território.
Pelo seu significado, principalmente nas comunidades em que prevalece a
oralidade, a memória é acionada pelos narradores, ampliando horizontes sobre as
experiências históricas. Esses informantes são depositários de uma memória que,
mesmo narrada de forma individual, expressa lembranças coletivas (FUNES, 1996, p.
468). Através da tradição oral, o povo expressa sua vida social, seus valores e
pensamentos que são repassados pelos mecanismos informais - a família e aos
anciões. A tradição oral, por outro lado, desvenda a existência de uma literatura e de
uma filosofia que normatizam a via ao mesmo tempo em que registram a memória
(BAIOCCHI, 1999, p. 37-38).
1.2 Fuga e formação de quilombo
A documentação escrita consultada, também, apresenta indícios de fuga de
escravos para o sertão de Jacobina24 (comarca que englobava, até a segunda metade
24
Comumente conhecido, no séc. XVIII, como Comarca do Sul da Jacobina, território bastante extenso.
No mapa das Freguesias do Arcebispado da Baia datado de 1775, pertenciam a esta comarca os
seguintes oragos: Santo Antônio da Vila da Jacobina (atual cidade de Jacobina), Santo Antônio de
48
do século XIX, o território de Tijuaçu) e a formação de quilombo na região.25 Em 5 de
junho de 1799, o Governador D. Fernando José de Portugal enviou um ofício para D.
Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se refere à prisão de um grupo de homens,
capitaneado por João Nunes G. Pereira, refugiado no sertão de Carinhanha, e à
necessidade de se instalar Juízes de Fora nos sertões do São Francisco, assim como
um esquadrão de cavalaria paga, devido ao mau estado em que se encontrava a
cadeia da Vila de Jacobina. Foram presos no Arraial de Carinhanha vários pretos
forros e cativos que já estavam nas mãos de terceiros e que tinham sido vendidos por
Manoel de Jesus26.
Em 20 de abril de 1799, o Governador D. Fernando José de Portugal enviou
outro ofício a D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se referiu à destruição dos
mocambos ou quilombos, formados por escravos que fugiam dos seus senhores e que
se agrupavam e praticavam violências. Essa passagem está registrada no Arquivo
Histórico Ultramarino.27
Estes ajuntamentos que na frase do Juiz se chamam de Mocambos ou
Quilombos de que trata aquela petição, que me fizera Gaspar de Araújo, e
outros para se lhes necessitar auxílio militar, existiam há muitos anos nos
Sítios de Orobó e Andaraí28, constantemente distantes da Vila de Cachoeira, e
por conseqüência não perto desta cidade, os quais mandei destruir no ano de
1797, encarregando esta diligência ao Capitão mor de Assaltos Severino
Jacobina (atual cidade de Campo Formoso), Santo Antônio da Vila de Urubu, Santo Antônio da Vila
do Livramento de Nossa Senhora das Contas, Sant´Anna do Caetité, Santuse (hoje Sento Sé), Santo
Antônio do Pambu, Nossa Senhora do Bonsucesso, São Francisco na Vila da Barra do Rio Grande e
Nossa Senhora da Conceição do Rio Pardo. Além dessa extensão territorial, Jacobina constituía uma
região de mineração e para o referido território dirigiam-se diferentes pessoas, inclusive muitos
aventureiros que iam à procura de ouro e de enriquecimento, levando para essas terras muitos
escravos. (Mapa das Freguesias, que pertenceu ao Arcebispado da Bahia, 09 jan. 1775, Arquivo
Histórico Ultramarino, documento n. 8.750).
25
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Como esclarecem os ofícios a seguir: Ofício do Governador
D. Fernando José de Portugal para D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se refere à destruição dos
mocambos ou quilombos, formados por escravos fugidos dos seus senhores e que se agrupando
praticavam as maiores violências, 06 abr. 1798, documento n. 18.173; Ofício do Governador D.
Fernando José de Portugal para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, no qual participa a destruição dos
Quilombos ou Mocambos do Orobó e Andaray, no distrito de Vila de Cachoeira, 07 abr. 1807,
documento n. 29.815; Ofício do Governador Conde da Ponte para o Visconde de Anadia, no qual
informa das providências que tomara para destruir os Quilombos, formados pelos escravos fugidos
dos seus senhores.
26
Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania da Bahia, 05 jun. 1799, documento n. 19.401.
27
Capitania da Bahia, 1799, documento n. 19.362.
28
Os quilombos de Andaraí e Orobó pertenciam à Vila de Cachoeira. Arquivo Histórico Ultramarino,
Capitania da Bahia, 06 jan. 1798, documento n. 18.173. Na transcrição do referido documento,
atualizamos a grafia, exceto nomes próprios, e mantivemos a pontuação original.
49
Pereira, e outros acompanhados de alguns índios da Pedra Branca, e do
mesmo Gaspar de Araújo que não [...] pouco para a sua extinção em que tinha
interesse por ter fazenda de gado próxima aqueles lugares.29
No mesmo ofício, o Governador comunicou que enviou uma carta, em 6 de
abril do mesmo ano, esclarecendo sobre as ordens que deu aos seus subalternos para
que atacassem outro quilombo chamado de Topim (cf. mapa n°2 abaixo), na Comarca
de Jacobina.
Mapa n° 2 – Situação dos quilombos nos séculos XVIII e XIX.
Fonte: Pedreira, Pedro. 1973.
Nessa época, circulou notícias de que alguns negros fugidos estavam
aquilombados no Orobó e Andaraí e que também foram extintos, encontrando-se nele
quarenta e duas pessoas, entre adultos e crianças, as quais foram entregues aos seus
respectivos senhores30. Posteriormente, no mesmo ofício, o Governador faz uma
referência a outro quilombo, também na Comarca de Jacobina, em um lugar
denominado Ilha, onde foram encontrados vários negros refugiados:
[...] Autorizei para destruir este Quilombo, expedindo-lhe ordem para convocar
a este fim alguns Capitães do Mato, ou de Assaltos, e para se lhe prestar
algum socorro de Índios da Pedra Branca, o qual pretende fazer esta
diligencia no mês de julho próximo futuro.
29
30
Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania da Bahia, 20 abr. 1799, documento n. 19.362.
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Capitania da Bahia, 20 abr. 1799, documento n. 19.362.
50
A documentação analisada aponta ainda que, ao final do século XVIII31 e
início do século XIX, vários ajuntamentos de negros surgiram, formando mocambos,
não somente no sertão, mas em outros lugares da Capitania da Bahia32, inclusive em
Salvador33. Era uma preocupação constante para as autoridades da época o combate
à fuga de negros e a destruição dos mocambos. Nesse intuito, criaram-se várias leis.
O Alvará de 6 de março de 1741 determinou que os negros encontrados em
quilombos, estando neles voluntariamente, “se lhe ponha com fogo uma marca em
uma espádua com a Letra F e quando for executar esta pena, for achado já com a
mesma marca se lhe cortará uma orelha”
34
. Eram atitudes extremas as quais as
autoridades recorriam para dar conta do movimento de fugas de escravos e da
formação de quilombos nesse período na América portuguesa.
Outra atitude dos governantes da época era a concessão de patentes de
Capitão de Entradas e Assaltos35. D. João VI, em 07 de março de 1804, concedeu
patente a Antônio Afonso de Carvalho no posto de Capitão de Entrada e Assaltos do
distrito da Vila de Jacobina, com o intuito de capturar negros fugidos e destruir os
mocambos lá existentes36. A utilização sistemática de capitães-do-mato foi pensada
como uma maneira de conter os mocambos baianos – assim como de outras regiões
no Brasil Colônia – no início do século XVIII. Segundo Flávio Gomes (2005, p. 398),
seria essa a avaliação de uma ordem régia na ocasião:
31
Desde o final do século XVII era constante a luta travada pelas autoridades para dizimar os
quilombos. “Cerca de 1700, “quilombos” foram dizimados por forças sob o comando de Manuel
Botelho de Oliveira na região de Jacobina, Gameleira, Tucanos e Rio Peixe. E, nesse mesmo ano, O
Coronel Pedro Barbosa Leal – fundador das Vilas e Municípios de Jacobina e Rio de Contas –
recebeu do Governo da Capitania um regulamento especial para “fazer entradas nos mocambos de
negros fugidos”, segundo Pedreira (1973. p. 77).
32
Na região do recôncavo baiano no Brasil colonial, localizavam-se os engenhos de açúcar e nessas
terras havia uma grande quantidade de mão-de-obra escrava. Santo Amaro, no Oitocentos, era uma
das vilas mais populosas do Recôncavo Baiano. No início do século XIX, “corriam anos de
prosperidade no campo de cana, o que significava mais escravos importados que chegavam à Bahia,
numa média de oito mil anualmente. Cf. Reis (2001, p. 341).
33
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Capitania da Bahia, 7 abr. 1807, documentos n. 29.815, 16 jun.
1807, 29.893 e 13 e 08 jul. 1807, 29.913. Os referidos documentos fazem menção aos quilombos nas
Vilas de Cachoeira e de Santo Amaro da Purificação.
34
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Códice n. 707, fls. 33v.
35
Em 30 de abril de 1788, D. Fernando José de Portugal envia um ofício para Martinho de Mello e
Castro, no qual o informa acerca das funções que exerciam os Capitães de Entrada e Assaltos.
Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. Capitania da Bahia, 30 abr. 1788, documento n. 12.917.
36
IANTT, Chancelaria de D. João VI, Livro 8. Nesse mesmo livro tem referência a Patentes recebidas
por Capitães de Entrada e Assaltos para o distrito da Vila de Nossa Senhora da Purificação.
51
Examinando muito particularmente para que efeito se provem nesta Capitania
os postos de capitães-mores das entradas dos mocambos: achei, que desde
o princípio deste Governo Geral, se fizeram sempre semelhantes
provimentos, por serem totalmente precisos, para prender os negros que
fogem a seus senhores, e evitar, que não cheguem a juntar se em número
que possam fazer, nos matos para que se retiram os mocambos que
costumam, dos quais saem às estradas, a roubar, e matar aos passageiros,
atrevendo-se a tanto, que vêm muitas vezes às casas dos moradores, que no
recôncavo vivem mais retirados, a tirar delas as escravas, e o mais que
querem: e andam hoje tão insolentes os ditos negros, que em distância desta
cidade, pouco mais, de meia légua, se atreveram a formar uma companhia de
ladrões, que não só roubavam pelas estradas, senão também nas casas dos
moradores daquele lugar, prendendo-se parte destes negros, se fez, pela
justiça, execução em cinco, que mandou enforcar, e esquartejar (GOMES,
2005, p. 398).
Segundo a ordem régia, a função dos capitães-do-mato era prevenir as fugas
e não reprimir os escravos com enforcamento ou outros tipos de castigos. Outra
função desse cargo, tinha como pressuposto caçar escravo fugido e trazer vivos de
volta para os seus donos, o que nem sempre acontecia.
Em face dessa movimentação de escravos fugindo em direção à região de
Jacobina, pergunta-se: quais os
atrativos que motivavam os escravos a se
direcionarem para a região, fugindo do recôncavo para o sertão distante? Certamente
a mineração de ouro e de diamantes atraía esses escravos, que tinham esperança de
se livrar do cativeiro mediante o encontro de pedras e metais preciosos nos garimpos.
Outro atrativo de homens livres e escravos eram as pastagens de gado. Como sugere
o padre Antonil (1982, p. 157), a grande extensão de terras para pastos de gado que
existia no Brasil no século XVIII atraía homens livres e escravos que conduziam as
boiadas pelo sertão. Sobre as inúmeras fugas37 no período, Gomes (2005, p. 407)
esclarece que “o impacto do tráfico africano, por exemplo, pode ter refletido, de fato,
num aumento do índice de fugas e na formação de novos mocambos baianos”.
Os crimes, juntamente com as fugas, as rebeliões, a formação de quilombos e
os suicídios traduziam, simultaneamente, repúdio à escravidão e busca incessante da
liberdade. À luz desse raciocínio, esgotadas as estreitas possibilidades de
manumissão patrocinada – alforrias concedidas pelos senhores – aos escravos
restavam unicamente meios extremos que, uma vez concretizados, levá-los-iam para
37
Também sobre essa questão, ver Machado (1986, 1987).
52
fora do mundo da escravidão. Nessa perspectiva, a resistência escrava visava acima
de tudo à destruição do regime ou, nos limites de ação individual, à negação da
própria condição38. Essa era a luta empreendida pelo escravo e seu sonho - tornar-se
livre e viver perto dos seus. Muitos também alimentavam o sonho de retornar à sua
terra.
A discussão sobre a formação e a perseguição dos quilombos em Jacobina é
oportuna para conhecer e analisar a dinâmica da história dos escravos nessa região.
1.3 Proprietários da Fazenda Lagarto na segunda metade do século XIX
A documentação oficial esclarece que a Fazenda Lagarto, atual distrito de
Tijuaçu, teve vários proprietários. Os livros de registros de escravos apontam que nos
municípios de Senhor do Bonfim e Campo Formoso, nos séculos XVIII e XIX, havia um
grande número de escravos, agregados e libertos que viviam nas fazendas da região,
tendo permanecido após a Abolição. Na documentação analisada sobre compra e
venda de escravos, observa-se que aqueles residentes em Senhor do Bonfim, na
segunda metade do século XIX, em sua maioria, trabalhavam na lavoura e como
domésticos. De trinta e cinco registros encontrados do período de 1879 a 1888, vinte e
cinco, entre homens e mulheres, eram identificados como lavradores, seis escravas
trabalhavam no serviço doméstico e quatro não apresentaram a profissão, pois se
tratava de crianças39. No livro de Registros Eclesiásticos de Terras da Freguesia de
Jacobina,40 encontram-se algumas referências às terras da Fazenda Lagarto – atual
Tijuaçu. A seguir, referências de alguns proprietários dessas terras na segunda
38
Wissenbach (1998. p. 19) afirma: “A atribuição de um objetivo único e legítimo para a luta dos
escravos inscreveu-se, direta ou indiretamente, na concepção burguesa do direito de
autodeterminação dos indivíduos, direito esse violentado no processo de escravização.”
39
Escrituras de Compra e Venda de Escravos. Cartório do 2º. Tabelião da Vila Nova da Rainha, 14 de
outubro de 1880.
40
APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859.
53
metade do século XIX.
Eleutério Francisco de Freitas41 possuía uma Fazenda denominada Barreira.
Esta pertencia à Vila Velha de Santo Antônio, hoje município de Campo Formoso, no
ano de 185842. A Fazenda Barreiras constitui o atual povoado de Barreiras e está
dentro do perímetro quilombola traçado pela Fundação Cultural Palmares.
A Fazenda Lagarto, em 185843, teve como proprietários Felipe Rodrigues da
Silva e Manoel Francisco da Purificação, que tomaram posse de uma terra
denominada Lagarto (atual Tijuaçu), também distrito da Freguesia Velha de Santo
Antônio de Jacobina, e que foi herança de Manoel Rodrigues da Silva, no ano de
1858, tendo como limites: para o nascente – Fazendas Picada e Caldeirão; para o
poente, a Fazenda Curral. As outras referências do documento não estavam visíveis,
motivo pelo qual não foi possível fazer a leitura na íntegra.
Outro registro, também de 1858, faz referência às terras de Joaquim Manoel
de Sant’Anna44 que declara ser possuidor de uma fazenda denominada Lagarto, cujos
limites não coincidem com os da fazenda anterior com o mesmo nome: para o
nascente, a Lagoa do Cocho; para o norte, Riacho Grande e, para o sul, Mucunan.
Acredita-se que esta tenha sido outra área da fazenda, situada na parte sul. Joaquim
Manoel de Sant’Anna45 também registra, nessa mesma data, outra posse de terra
denominada Caldeirão. Isto leva a admitir que a Fazenda Caldeirão seja hoje a
localidade de Caldeirão do Mulato, povoado próximo a Tijuaçu.
Outro documento faz referência ao casal Umbuzeiro Angelim, que, em 1888,
41
APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859. Segundo
SILVA, (1998, p. 160-2), Eleutério Francisco de Freitas foi proprietário também da Fazenda Água
Branca, localizada no município de Antônio Gonçalves, considerado boiadeiro famoso no século XIX.
No referido século se estabeleceu nesse município com uma fazenda de gado e plantio de cana nas
margens do riacho Água Branca.
42
APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120,
n. 408.
43
APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120,
n. 101, n. 208.
44
APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120,
n. 76, n. 323.
45
Nos Livros de Notas do século XIX, em dois de setembro de 1881, Joaquim Manoel de Sant’Anna
aparece passando uma procuração a Leonel da Cunha Amorim com o objetivo de promover no Juízo
Municipal a execução da sentença contra Antônio Ferreira Guimarães nos autos de contas e
arrematação dos bens da Imagem de Nossa Senhora da Conceição que se acha depositada na
Capela de Santa Efigênia.
54
hipotecou a metade da Fazenda Lagarto para uma empresa com sede em Salvador,
mas no ano seguinte pagou a dívida e obteve de volta a área hipotecada. Nos
testamentos e inventários consultados do final do século XIX e início do Século XX,
não foi encontrado o testamento do casal Umbuzeiro Angelim46.
A documentação analisada demonstra a grande extensão da Fazenda Lagarto
no século XIX. Os limites que aparecem nos referidos documentos, como Picada,
Curral, Caldeirão, Riacho Grande e Mucunan eram antigas fazendas ainda existentes
e que continuam com as mesmas denominações. Alguns desses territórios
transformaram-se em pequenos povoados. A Lagoa Cocho, muito conhecida pelos
habitantes de Tijuaçu, garante até hoje o abastecimento de água para alguns
moradores. “É no Cocho”, como eles dizem, que os moradores de Tijuaçu pegavam
água para abastecer suas casas. São estas evidências que a documentação oficial
apresentou sobre a região.
O inventário post mortem de Manoel Joaquim Santana, de Felipe Rodrigues
da Silva e do casal Umbuzeiro Angelim foi procurado no Fórum de Senhor do Bonfim
em Livros de Notas e Escrituras, e no Arquivo Público do Estado da Bahia, onde se
poderia encontrar uma cópia do testamento, mesmo em se tratando de testamento
“fechado”. Infelizmente não foi encontrada a referida documentação, o que
impossibilitou comprovar alguma evidência sobre doação de terras aos habitantes de
Tijuaçu e outras informações sobre essa temática. Nos Registros Eclesiais de Terras,
no Arquivo Público do Estado da Bahia, foram encontradas referências sobre a região
a partir de 1850, entretanto, os documentos não estavam disponíveis para pesquisa,
pois se encontravam em processo de restauração. A análise de tais documentos
possibilitaria informações sobre os proprietários e suas respectivas terras bem como
compra e venda de escravos, testamentos e outras informações sobre os limites e as
características da terra. Com essa documentação em mãos, haveria condição de se
46
Fórum de Senhor do Bonfim, Livro de Notas n. 06, 1887-1890, fl. 109. O casal Angelim contraiu uma
dívida com a Companhia Moraes no valor de cinco contos e duzentos mil réis em 19 de dezembro de
1888 e deu como garantia além da Fazenda Lagarto, casas em Senhor do Bonfim e algumas cabeças
de gado. Em 24 de agosto de 1889, eles requerem o cancelamento da hipoteca e quitam a dívida. Em
Senhor do Bonfim, encontram-se muitos moradores com o sobrenome Angelim. Ao procurar os mais
velhos, os mesmos não conseguiram lembrar desse casal Umbuzeiro Angelim e quem são hoje seus
netos ou bisnetos.
55
traçar o perfil histórico oficial da referida comunidade.
O guia do desmembramento das comarcas e municípios da Bahia e as
coleções das leis da província, do século passado, sugerem que as terras de Tijuaçu
pertenciam à Freguesia Velha de Santo Antônio de Jacobina. Contudo, municípios
como Antônio Gonçalves, Pindobaçu e Filadélfia, foram desmembrados de Campo
Formoso e elevados a município no século XX. Parte das terras de Tijuaçu, a partir de
1954,47 com uma nova divisão dos municípios, passou a pertencer a Senhor do
Bonfim, como já comentado anteriormente. Outra parte passou a integrar os
municípios de Filadélfia e Antônio Gonçalves.
Outros proprietários com sobrenome Santana aparecem nos documentos
analisados, comprando e vendendo casas, roças e outras propriedades na região.
Destes, encontramos apenas um, que comprou uma escrava chamada Joana, parda,
com trinta anos de idade, solteira, empregada no serviço doméstico, natural de Monte
Santo (município próximo a Senhor do Bonfim). O comprador foi Joaquim Ferreira de
Sant’Anna, morador da Vila Nova da Rainha, que adquiriu a referida escrava
em
Monte Santo, distante da referida Vila cerca de 120 quilômetros, em 17 de março de
1880.
Fry e Vogt (1996) pesquisaram sobre o Cafundó e iniciaram sua pesquisa
ouvindo as falas dos moradores e, seguindo essas pistas, chegaram até a
documentação escrita. Partiram do pressuposto de doações de terras. Assim, eles
analisaram o Cafundó, enfatizando o papel estruturador da “língua africana” nas
relações sociais e no universo cultural de seus moradores e de outras comunidades
negras. Descreveram os procedimentos de pesquisa utilizados, os conflitos entre as
várias entidades e segmentos envolvidos com a comunidade e o fortalecimento
político e social, que para eles poderiam advir de sua atuação.
Na memória dos habitantes de Cafundó, estava claro o nome dos doadores
daquelas terras. Já em Tijuaçu, os moradores não fazem referência à doação e se
auto-definem como donos daquelas terras - seus únicos ocupantes.
As evidências encontradas na documentação escrita sobre os antigos
47
A Lei nº 168, de 30 de dezembro de 1953, fixou a divisão territorial e administrativa. Diário Oficial do
Estado da Bahia. Salvador, 01 de janeiro de 1954.
56
proprietários de Tijuaçu na segunda metade do século XIX e a indicação das
narrativas dos moradores sobre a propriedade dessas terras a Mariinha Rodrigues,
revelam diferentes possibilidades sobre a trajetória desse território.
1.4 Currais, gados e tropeiros: a trajetória da cidade de Senhor do Bonfim
A região que mais tarde veio constituir a cidade de Senhor do Bonfim – à qual
Tijuaçu pertence – já era conhecida desde o século XVII, quando padres franciscanos
fundaram, em 1697, a Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy48.
Posteriormente, essa localidade foi ocupada por outros moradores, tendo lugar a
fundação do arraial de Nossa Senhoras das Neves do Sahy, considerado um dos mais
antigos do Estado da Bahia. Ficaram incumbidos da sua administração os religiosos
de São Francisco, que construíram um convento sob a invocação de Nossa Senhora
das Neves. Desse antigo convento, ruínas ainda existem. O padre Antonil faz
referências sobre os lugares onde os condutores e acompanhantes das boiadas
costumavam passar e pousar pelo interior da Bahia:
Entende-se o sertão da Bahia até a barra do Rio São Francisco oitenta
léguas por conta e indo pelo rio acima até a barra que chama de Água
Grande; fica distante a Baía da dita barra cento e quinze léguas; de
Santunsé, cento e trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas, de
Jacobina (grifo nosso), noventa e, de Tucano, cinqüenta (ANTONIL, 1982, p.
157).
Quando Antonil faz referência à Jacobina,49 menciona à extensa região dessa
48
No Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, encontra-se uma correspondência datada de 25 de
novembro de 1803 do Ouvidor da Comarca de Jacobina, José da Silva Magalhães, para o
Governador da Bahia, na qual informa acerca dos índios que habitavam na Missão do Sahy, emitindo
algumas considerações sobre o comportamento dos mesmos. A referida correspondência dizia: “Há
uma povoação, denominada do Sahy e outra de Bom Jesus cujos habitantes são, minimamente
preguiçosos, ladrões e de contínuo embriagados, vivendo dispersos não só pelos motivos expostos,
mas também por fugirem ao Governo dos Missionários Franciscanos que os vem reger, porque estes
pela maior parte se vem aproveitar dos seus serviços braçais sem com eles repartirem coisa algumas
dos frutos, além de lhes prostituírem as mulheres e as filhas”. Parecer muito preconceituoso sobre o
modo de vida dos indígenas da região.
49
Segundo Vilhena (1969, p. 560-561): “A vila de Santo Antônio da Jacobina, distante 80 léguas da
cidade da Bahia, e vinte e tantas do rio de São Francisco, é a cabeça desta comarca, e residência do
Ouvidor. As vilas, e povoações mais consideráveis da sua dependência são a mencionada vila de
57
comarca: vilas e povoados que a ela pertenciam, inclusive a cidade de Senhor do
Bonfim. Os currais e fazendas de gado geralmente se situavam em campos largos,
com muitos pastos, próximos a lagos e rios.
Não somente a expansão dos currais impulsionou a conquista do sertão.
Desde os primórdios da colonização, a ambição de alcançar o Eldorado ou encontrar a
serra resplandecente alimentava o sonho de portugueses e mamelucos, aos quais os
índios transmitiam informações sobre a existência, nas proximidades das cabeceiras
do São Francisco, de serras onde havia metal amarelo cujos pedaços desciam para as
águas do rio ( BANDEIRA, 2001, p. 124-125).
As terras que constituem hoje a cidade de Senhor do Bonfim pertenceram à
Casa da Torre. De acordo com Bandeira (2001, p. 150), em 28 de abril de 1654, ainda
quando as forças da Companhia das Índias Ocidentais, derrotadas, retiravam-se do
Nordeste brasileiro, o padre Antônio Pereira recebeu de sesmaria toda a terra que se
encontrava da barra do rio Salitre, confluência com o São Francisco, acima e para a
banda do sul:
A largura que houver e couber a jurisdição desta capitania (Sergipe) até
próxima a da Bahia pelo rumo do Leste a Oeste que dividir uma da outra da
nascença do rio Real para o sertão com outro tanto comprimento acima e
abaixo, quanto o que tiver pelo rio São Francisco, incluindo-se também dentro
desta data a nascença do rio Tepecuru (Itapicuru) e as serras de Tigipilha e
Jacobina com as mais que lhe ficarem dentro desta data50. (Grifo da autora)
Segundo a documentação analisada, o que constituiu a cidade de Senhor do
Jacobina, a de N. S. do Livramento do Rio de Contas, a vila do Urubu de Cima junto à margem do rio
de São Francisco, distante 134 léguas da cidade da Bahia, a vila de São Francisco de Chagas situada
na barra do rio Grande, o qual entra por Leste naquele de São Francisco. Além destas há outras,
como a de Santa Ana de Caetité, vila de N. S. do Bom Sucesso, Santa Ana do Pambu, Santo Sé, e
algumas outras. O terreno desta comarca é vastíssimo composto de serras altíssimas, e extensas.
Nessas partes encontram-se planícies imensas, e terras menos altas que se ocupam, com fazendas
de criar gados, e plantar alguma mandioca, milho, algum arroz em partes, e alguns outros legumes
para sustento dos seus habitantes.“
50
Bandeira (2000. p. 150). Segundo o referido autor: apesar das ponderações ao procurador da Coroa,
Tomé Pinheiro da Veiga, advertindo o rei sobre a inconveniência de dar a uma pessoa eclesiástica,
por converter-se em uma grande capitania, a sesmaria foi confirmada. Carta de sua Majestade sobre
o padre Antônio Pereira para pedir confirmação de certas terras, Lisboa, 26 mar. 1656; resposta do
procurador da Coroa, Tomé Pinheiro Veiga, s/d, in Documentos Históricos (1651-1667). Cartas
Régias, vol. LXVI, p. 118 a 120, Registro de uma Carta de Sesmaria do padre Antônio Pereira, petição
que fez a este governo e confirmação dele. Doc. Históricos – 1606 a 1659 (Provisões, Alvarás e
Sesmarias), Vol. XIX, p. 447-449.
58
Bonfim no século XVIII era apenas uma rancharia51 de tropeiros, situada à margem da
estrada das boiadas, depois estrada real, à beira de uma aguada de muita duração,
que constituía uma grande lagoa52.
Em 1750, tendo já considerável número de
moradores, tomou oficialmente o nome de Arraial do Senhor do Bonfim da Tapera. No
ano de 1799, uma mobilização popular reivindicava que o referido arraial se tornasse
uma Vila53, justificando, inclusive, a grande distância entre o arraial e a Vila Nova de
Jacobina.
Os moradores do Arraial e Julgado do Senhor do Bonfim, comarca de
Jacobina abaixo, assinados, representam humildemente a V. Exa. Que sendo
o dito arraial uma das principais povoações da dita comarca, que contém um
número considerável de casas arruadas com Igreja e para cima de 600 almas
de confissão, se achava totalmente inabitável pelo grande número de vadios
e malfeitores, os quais juntando-se a toda parte por ser a estrada pública dos
sertões do Piauí, Longal e Maranhão e Rio São Francisco cometiam,
sucessivamente mortes e distúrbios andando publicamente armados com
bacamartes, espingardas, facas e catanas, de sorte que até o sacrifício da
missa assistiam nesta figura, mesma comarca Florêncio José de Moraes Cid
erigiu em Julgado o dito Arraial assinando-lhe termo, que compreende mais
de 5.000 habitantes, cuja providência foi V. Exa. servido confirmar na carta
dirigida ao dito Ministro a este respeito54.
A localização do referido Arraial facilitava a passagem e a permanência de
diferentes pessoas que vinham de diversos lugares. Tal movimento deixava os
moradores preocupados e apreensivos frente a alguns visitantes que chegavam ao
arraial armados fazendo arruaças e cometendo vários delitos. Essa situação levou os
moradores a suplicarem às autoridades para que o Arraial e Julgado do Senhor do
Bonfim fosse elevado a Vila, objetivando a centralização dos poderes e a vinda de
autoridades para poderem administrar os distúrbios que estavam acontecendo. Nesse
sentido, solicitaram que houvesse a eleição de Pelouros para Juízes e Procurador na
51
Segundo Scarano (2002. p. 88). Nos Setecentos, nas áreas de mineração e rurais de Minas Gerais, a
morada de negros de quase sempre chamadas de rancho ou rancharias diferem das senzalas e são
vistas como duas entidades diversas. Os ranchos perto das áreas de mineração, feitos para durar
pouco, eram mudados freqüentemente de lugar e não sobreviveram ao tempo. Eram as mais
precárias construções, foram utilizadas como habitação de pessoas livres e muito pobres.
51
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325.
52
Os ranchos ou rancharia que foram construídos próximos a Lagoa em Senhor do Bonfim, no século
XVIII eram construções provisórias e simples, constituía apenas um pouso, mas eram constantemente
utilizadas, servia como abrigo e descanso para aqueles homens que transportavam boiadas.
53
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325.
54
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325.
59
forma da lei, levantando Pelourinho e concluindo a construção da Casa Pública da
Cadeia. Com estes procedimentos, houve a regularização das providências
necessárias para a boa administração da Justiça.
Ao considerar os justos motivos alegados na dita representação, D. Fernando
José de Portugal, por carta ao ouvidor da vila de Jacobina, José da Silva Magalhães,
datada de 8 de julho de 1799, elevou o arraial do Senhor do Bonfim da Tapera à Vila,
a qual tomou o nome de Vila Nova da Rainha, tendo lugar a instalação em 1º de
Outubro de 1799, por este mesmo ouvidor e corregedor geral55.
Em 9 de agosto de 1802, D. José envia uma carta ao Governador e Capitão
General da Capitania da Bahia dando patente ao posto de Capitão-mor das
Ordenanças56 a José Pereira Guimarães57. Em 1804, o Capitão-mor da Vila Nova da
Rainha, José Ferreira Guimarães, elaborou o Mapa dos habitantes do Terço das
Ordenanças da Vila Nova da Rainha, tirado do resumo da relação dos distritos58.
A Vila Nova da Rainha, ao passar dos anos, vai se impondo com uma
administração centralizada e tendo no seu território a presença de bandeirantes e
tropeiros orientados pelo rio Itapicuru e pelos contrafortes do prolongamento da
Chapada Diamantina, que chegavam a essa região. Eram bandeirantes e tropeiros
que saíam do litoral em direção ao sertão baiano.
Desde o século XVII, com a criação da Missão do Sahy de Nossa Senhora
das Neves, transitavam pela região missionários e tropeiros, instalando missões ou
transportando gado, acompanhados de índios e escravos que ajudavam no trabalho
com a pecuária. Esse movimento de pessoas – índios, negros e brancos – indo e
voltando, fez com que alguns permanecessem nessas paragens, surgindo assim, ao
final do século XVIII, a Freguesia do Senhor do Bonfim da Vila Nova da Rainha, que
55
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 09 jul. 1797 e 30 out. 1799, documento n. 28.323. Ofício dos
Corregedores da Comarca da Jacobina Florêncio José de Moraes Cid e José da Silva Magalhães,
relativos a criação da Vila Nova da Rainha.
56
Eram milícias formadas pelos soldados e oficias “dados e pagos” pelas Câmaras e Conselhos,
diferentemente dos que integravam as tropas regulares, não recebiam soldo. A autora agradece ao
professor Bartolomeu Mendes as referidas informações.
57
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 06 ago. 1803, documento n. 28.325.
58
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1804, documento n. 28.327. Segundo o Mapa das
Ordenanças estes eram os distritos que pertencia a Vila Nova da Rainha em 1804: Distrito do Arraial
da Freguesia Velha (atual cidade de Campo Formoso), Cariacá, Lagoa Grande, Jagorari (atual cidade
de Jaguarari), Rio do Aipim e Água Branca.
60
aparece nos documentos oficiais da época como um centro no qual capelas, arraiais e
povoações estavam sob sua custódia.
Quadro do município da Villa Nova da Rainha, demonstrativo das Freguesias,
capellas, arraiais, povoações e distritos de paz contidos no dito município:
Freguesia do Senhor do Bonfim da Villa Nova da Rainha, São Gonçalo da
Serra de Itiúba, Nossa Senhora da Ponte de São Miguel, Nossa Senhora das
Neves da Missão do Sahy, Cachoeiririnha, Jaguarary, Barrocas, Socotó – a
beira do Rio Itapicuru, Canoa, Imburanas, Missão do Sahy dos Índios59.
Pela divisão eclesiástica, a Freguesia de Senhor do Bonfim60 era um centro,
ao qual os outros povoados estavam submetidos. Atualmente, algumas dessas
localidades tornaram-se cidades, outras permanecem ainda como distritos. Nessa
época, Tijuaçu não aparece nem como Vila nem povoado, mas sim como fazenda
Lagarto. Abaixo os limites da Vila Nova da Rainha:
Desta Villa Nova da Rainha o caminho de Juazeiro no lugar denominado =
Incruzilhada, e daqui rumo direto no lugar das Panellas subindo rio acima até
o lugar da Passagem do Sasg. E rumo ao poente dessa o São Francisco
extremando com a Fazenda Nicará de Jacobina Nova, e da [...] rumo no lugar
dos Angicos do Itapicuru, e daí rio abaixo até as Queimadas caminho da Bahia
até onde caem às águas do rio Jacarici, e desde rio acima da parte de cá (...)
a esta para até o lugar do Pimel, e desse cortando rumo disto no lugar da
Lagoa Caraíbas no caminho de Curaçá e da Lagoas da Caraíbas cortamos
rumo ao distrito de Pilar, e desse cortamos a mata que m. f. a Fazenda Água
Branca, e daí cortando direto no lugar da dita Incruzilhada do caminho de
Juazeiro, ficando todas as Fazendas declaradas quanto ao termo desta Vila61.
O perfil territorial da Freguesia de Senhor do Bonfim no século XIX é
demonstrado no referido documento com uma área de abrangência muito extensa,
chegando próxima à cidade de Juazeiro, distante cerca de 120 Km, Jacobina Nova,
105 km, e Lagoas Caraíbas, 70 km.
Com a fixação do povoamento de Senhor do Bonfim, fazendas e povoados
59
APEBa – Seção Provincial e Colonial, maço nº 5248 – Relação das Freguesias, Capelas, Arraiais,
Povoações e Distritos da Paz do Município de Villa Nova da Rainha.
60
A Vila Nova da Rainha (atual cidade de Senhor do Bonfim), foi criada em 1º de julho de 1797,
pertencia anteriormente a Jacobina Nova. Topônimos anteriores: Vila Nova da Rainha e Bonfim. Tem
como vilas: Carrapichel, Igara e Tijuaçu; limites: Antônio Gonçalves, Filadélfia, Jaguarari, Campo
Formoso, Itiúba e Andorinha. Dados do IBGE –BA, 2000.
61
APEBa – Seção Provincial e Colonial, maço nº 5248 – Relação das Freguesias, Capelas, Arraiais,
Povoações e Distritos da Paz da Villa Nova da Rainha.
61
vão surgindo em torno da cidade. Atualmente Senhor do Bonfim tem como distritos:
Carrapichel, Igara, Tijuaçu, Missão do Sahy, Caldeirão do Mulato. A cidade cresceu e
atualmente a população rural e urbana do município tem cerca de 80.000 habitantes.
Nas páginas seguintes podemos observar dois mapas: o primeiro n.3 – do
Estado da Bahia, onde se observa a divisão territorial do referido estado e a
localização do município de Senhor do Bonfim; o mapa n. 4 apresenta a divisão
territorial de Senhor do Bonfim, com suas vilas, povoados, limites, rodovia, entre
outros.
62
Mapa n°3 - O Estado da Bahia e o Município de Senhor do Bonfim
Fonte: IBGE – BA , 1998.
63
Mapa n° 4 - Localização do Município de Senhor do Bonfim. (Onde se lê Tiguaçu leia-se Tijuaçu).
Fonte: IBGE - BA, 1985.
1.5 Identidade, reconhecimento e auto-estima
64
Em 1988, com as comemorações do centenário da Abolição da escravatura e
a promulgação da Nova Constituição do Brasil, habitantes de várias comunidades
rurais negras passaram a se mobilizar e lutar em prol do direito à terra por eles
ocupadas. Diante de tal situação, os representantes do poder legislativo foram
pressionados a incluir alguns artigos na Constituição de 1988 que faziam referências
sobre as terras ocupadas por afro-descendentes. Com a promulgação da Constituição,
algumas entidades – principalmente ligadas a diferentes setores do Movimento Negro
–, organizações não governamentais, intelectuais e pesquisadores, em especial das
Ciências Humanas, passaram a defender os direitos das comunidades negras rurais
(SILVA, 2002). Nesse debate, Tijuaçu passou a receber visitas de diferentes setores,
que tinham como objetivo mobilizar os habitantes para defesa dos seus direitos
instituídos pela Constituição de 1988.
A população, informada dessa discussão, passou a mobilizar-se através,
principalmente, da visita de representantes do Movimento Negro Unificado e de
técnicos
da
Fundação
Cultural
Palmares,
que
iniciaram
um
trabalho
de
conscientização com os moradores. A partir dessas visitas, começou uma trajetória de
reivindicações e conscientização dos seus direitos, quando tem início, também, o
processo do reconhecimento do território como remanescente de quilombo,
sintonizado com o que instituía nossa Lei Maior.
A partir da Carta de 1988, os conflitos recrudescem e alcançam destaque
considerável na imprensa do Brasil e do exterior, pois a questão passa a ser
vinculada ao referido artigo, uma novidade constitucional já experimentada em
legislações federais de países como Jamaica e Colômbia (SILVA, 2000, p.
267).
A partir de então, as comunidades negras, até então tratada como questão
fundiária, assumem uma conotação mais ampla, compreendendo aspectos étnicos,
históricos, antropológicos e culturais. Em 1995, o Congresso Nacional resolve
regulamentá-las como pressuposto necessário à sua aplicação pelo Governo Federal,
indo de encontro à opinião de juristas e de organizações civis que entendiam ser o Art.
68, auto-aplicável (SILVA, 2000).
Esses segmentos defendem a abordagem que associa a reivindicação de
direito possessório àquele previsto no Art. 68, assim ampliando o rol de
65
argumentação exigido pelo Judiciário e as instituições governamentais afetas
ao problema. Por outro lado, a publicidade do debate enseja a arregimentação
de forças políticas contrárias às demandas das comunidades. A base das
argumentações para a não aplicação do Art. 68 retoma o arcabouço jurídico
colonial, que definia quilombo como grupo de escravos que, à margem das
leis existentes, fugiam e se embrenhavam nas matas para saquear, roubar e
matar administradores e proprietários de fazendas. Tal noção, ainda hoje,
baliza e estrutura os argumentos legais dos que advogam contra os interesses
das comunidades (SILVA, 2000, p. 268-269).
Entretanto, a conceituação de quilombo, segundo a legislação em voga, abriu
perspectiva para que os historiadores discutissem e apresentassem argumentações
acerca da aplicação da atual norma constitucional, segundo Silva (2000, p. 269).
Dentro dessa discussão, percebeu-se, então, que o reconhecimento dos direitos das
comunidades negras rurais às suas terras pressupõe a “revisão de procedimentos
técnicos e jurídicos dos órgãos afetos à questão do ordenamento jurídico agrário,
territorial e ambiental para reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais”
(SILVA, 2000, p. 269). É justamente nesse último aspecto que se encontra dificuldade
maior para assegurar os direitos das comunidades, pois a situação das terras implica
no reconhecimento da diferença racial como pressuposto para o estabelecimento de
direitos sociais específicos. Com base nessas discussões, estudiosos das Ciências
Humanas, passaram a definir o conceito de quilombo tendo como pressuposto a
resistência cultural dessas comunidades negras rurais, dando-os a nomenclatura de
quilombos contemporâneos. Segundo Moura (1999, p. 100), as comunidades rurais
negras são consideradas como quilombos contemporâneos dado à ancestralidade de
seus habitantes e às relações que essas populações travam no interior do território.
Sintonizados com o conceito abaixo, vários territórios negros passaram a serem
reconhecidos no Brasil, como comunidade remanescente de quilombo.
Podem-se definir quilombos contemporâneos como comunidades negras
rurais habitadas por descendentes de escravos que mantêm laços de
parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em terra
doada, comprada ou ocupada secularmente pelo grupo. Os negros dessas
comunidades valorizam as tradições culturais dos antepassados, religiosas ou
não, recriando-as no presente. Possuem uma história comum e têm normas
de pertencimento explícitas, com consciência de sua identidade étnica
(MOURA, 1999, p. 100).
Nessa perspectiva, a partir da segunda metade da década de 1990, foi
66
realizado o mapeamento de diversas comunidades negras rurais. É essa matriz
histórica dos quilombos que passou a ser reapropriada para referir-se, de um modo
geral, às comunidades rurais negras no Brasil.
No decorrer dessa discussão e tendo como pressuposto a aceleração do
processo de reconhecimento de Tijuaçu, técnicos da Fundação Cultural Palmares e
representantes do Movimento Negro, orientaram a população para que fosse criada
uma associação com o escopo de mobilizar e discutir a cultura, a história da
comunidade e a defesa dos direitos coletivos. Em abril de 2000, foi criada a
Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências. A referida comunidade
já tinha formado a Associação de Desenvolvimento Comunitário, uma organização dos
moradores com objetivo de, junto aos órgãos competentes, obter benefícios para a
comunidade, entretanto, estava restrito somente ao distrito, não abrangia os povoados
o perímetro quilombola. Segundo os moradores, era necessário criar uma associação
que tivesse representantes de todo perímetro quilombola, como forma de agregar todo
o grupo:
Digo adjacências porque na verdade, ela hoje não somente atua na sede de
Tijuaçu, e são dez comunidades juntas. Tijuaçu com mais nove comunidades
circunvizinhas, onde a associação atua desde 2000 quando foi fundada,
então, assim que foi reconhecida, o reconhecimento se deu no dia 28 de
fevereiro do ano 2000. O reconhecimento saiu e foi publicado no Diário Oficial,
e alguns dias depois, no dia 2 do mês 4, no começo de abril de 2000, também
nós fundamos a associação aqui em Tijuaçu. Mas uma associação que
abrange todo esse perímetro quilombola, que abrange cerca de 2.700 e mais
alguns quilômetros aqui em Tijuaçu. Eu fui eleito como o novo presidente, e
juntamente com as outras pessoas da diretoria, a Dona Ilca dos Santos, temos
a tesoureira que é Cássia Maria dos Santos, temos a vice que é Valdelice da
Silva, temos também a Natasha Fagundes que é a primeira secretária e temos
ainda a Vitoriana que é do povoado de Conceição, que faz parte da
associação, e a nossa segunda secretária. Temos outras pessoas que fazem
parte do conselho fiscal. Outra coisa que eu gostaria de frisar, que é de
grande importância, é que a associação é uma associação bastante unida, e
na verdade nós temos cerca de 50 pessoas trabalhando junto com a direção.
Agora, de que forma essas pessoas trabalham? Por exemplo, essas pessoas,
elas são conhecidas como lideranças dos povoados, lideranças das ruas
também, quer dizer, a associação hoje cresceu e já temos mais de 400 sócios,
então nós precisamos de um trabalho assim, fortalecido e unido (Entrevista
realizada pela autora com Antônio Marcos Rodrigues, atual presidente da
Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, em 02 de fev.
de 2005, em Tijuaçu).
A
Associação
Quilombola
tem
conquistado
espaço
enquanto
órgão
representativo, procurando atender às reivindicações da comunidade e defendendo os
67
direitos desses remanescentes. Nessa perspectiva é realizado um trabalho
comunitário sintonizado com a população. Para concretizar tais ações, são realizadas
reuniões periódicas com membros e representantes das diferentes comunidades
como: Fazenda Alto, Olaria, Quebra Facão, Água Branca, Lajinha, Conceição,
Macaco, Barreira, Queimada Grande e Fazenda Capim. Nessas reuniões, discutem-se
os problemas que afligem a população, os projetos que estão chegando a Tijuaçu,
como administrá-los, as informações oriundas da Fundação Cultural Palmares, da
Unegro e de outros órgãos que têm relação com a cultura afro-descendente. Dessa
forma, a Associação desenvolve o seu trabalho, conscientizando os participantes dos
seus direitos e deveres como cidadãos.
Recentemente, a Associação Agropastoril recebeu da Fundação Cultural
Palmares máquinas de costura industriais. A pretensão é criar em Tijuaçu um pólo de
confecção, dando oportunidade de emprego a muitos moradores. Atualmente, o
SEBRAE ministrou curso de corte e costura na sede da Associação, habilitando
diversas pessoas para a arte de cortar e confeccionar roupas.
Foram entregues,
também, alguns tratores para facilitar o trabalho no campo. Essas medidas têm como
meta criar outras perspectivas de sobrevivência à população.
Até a visita dos técnicos da Fundação Cultural Palmares, os moradores
desconheciam o significado da palavra quilombo. Eles tinham ouvido o referido
vocábulo, mas não sabiam de fato o seu significado, como também desconheciam o
que era ser remanescente de quilombo. Como podemos perceber através do
depoimento abaixo:
Olha, ser reconhecido como quilombo foi muito bom, a gente num sabia o que era
quilombo, hoje todo mundo ta sabendo o que é um quilombo, né, que foi aonde os
negros ficava naquela comunidade, e ali foi chamado remanescente de Quilombo.
(Fala de Ilca, entrevistada pela autora em 28 de out. de 2003, em Tijuaçu).
Para os moradores de Tijuaçu, o quilombo estava bem distante da sua
realidade. Mesmo tendo a pele escura, costumes e tradições afros, os habitantes de
Tijuaçu não se identificavam como afro-brasileiros; viviam imitando a cultura do
branco.
Eles
denominações,
definiam-se
mas
nunca
como:
como
moreno,
negros.
escurinho,
Tinham
moreninho
uma
ou
outras
auto-estima
baixa,
68
consideravam-se inferiores e fugiam de tal situação isolando-se pelos diferentes
povoados e roças de Tijuaçu, como se observa no depoimento abaixo:
Porque de primeiro, aqui os negros não eram considerados como gente e
hoje em dia está sendo, através do trabalho que a Associação vem
desenvolvendo (Entrevista com Juliana Rodrigues, realizada pela autora em 2
de fev. de 2005, em Tijuaçu).
Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural
qualquer, não despertava para essa questão de quilombo. Porque a gente no
estudo da história, na escola, os professores falam sobre o negro, mas de
uma maneira muito distante daqui do sertão. Então, por mais que a gente
tenha negro aqui no sertão, sempre você era levado a pensar que os negros
estavam apenas em Salvador, que foram para a zona da mata e o litoral
brasileiro, Rio de Janeiro, São Paulo, e que eles ficaram por aí e daí não
passaram. Agora, Tijuaçu por sua vez é visto como uma comunidade rural.
Quando começou a falar sobre a questão quilombola e se colocar algumas
questões da cultura de Tijuaçu em evidência aqui para a comunidade é que a
gente tá vendo o despertar para questão quilombola. Mas anterior, era uma
comunidade rural, era um lugar que, imaginem, ia até lá. Ninguém tinha
compromisso com Tijuaçu. De lá vem apenas à melancia, o feijão. Hoje as
pessoas já visitam Tijuaçu, porque foi um quilombo (Entrevista realizada pela
autora com Ivomar Gitânio dos Santos, em 2 de fev. de 2005, em Senhor do
Bonfim).
Segundo Hall (2001, p. 88-89), o que aconteceu com os africanos que vieram
para o Brasil tem como precedente a assimilação da cultura do branco sem perder, no
entanto, suas raízes. É o que o autor denomina de tradição e descreve como aquelas
formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais,
compostas por pessoas que foram dispersas para sempre de sua terra natal. Essas
pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem
a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas
culturas em que vivem, sem serem assimiladas por elas e sem perderem
completamente a identidade. Carregam os troncos das culturas, das tradições, das
linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que
elas
não
são
e
nunca
serão
unificadas
no
velho
sentido,
porque
são,
irrevogavelmente, o preceito de várias histórias e culturas internectadas, que
pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” e não a uma “casa” particular.
Hall (2001) afirma que as pessoas pertencentes a essas culturas híbridas (no caso,
consideradas as culturas dessas comunidades negras rurais) têm sido obrigadas a
renunciar a sonhos ou à condição de redescobrir qualquer tipo de pobreza cultural
69
“perdoada” ou de absolutismo étnico. Elas são irrevogavelmente traduzidas. Elas são
o produto das novas “diásporas”, criadas pelas migrações pós-coloniais e devem
aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a
traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos
de identidade, distintamente, produzidas na era da modernidade.
Certamente essa situação híbrida de fronteiras, de não reconhecimento de
sua cultura experimentou por muito tempo a população de Tijuaçu. O trabalho
realizado pela Fundação Cultural Palmares e pela UNEGRO despertou uma
conscientização e conseqüentemente a valorização desses remanescentes por sua
cultura. O termo fronteira é aqui utilizado, não no sentido de território, de espaço, mas
no sentido cultural.
Nessa perspectiva, fazemos as seguintes indagações: quais os caminhos
traçados após o reconhecimento? Como aconteceram os primeiros contatos? Em
meados da década de 90, a comunidade recebeu funcionários da Fundação Cultural
Palmares, como advogados, antropólogos e outros profissionais com o objetivo de
mapear os diferentes povoados cuja população fosse predominantemente negra e
traçar o Laudo Antropológico para que Tijuaçu, juntamente com as outras 2.000
comunidades existentes no Brasil, fosse reconhecida como remanescente de quilombo
e pudesse receber os benefícios que a lei instituía.
Os primeiros contatos dos membros da comunidade de Tijuaçu com pessoas
que estavam discutindo a questão das comunidades “remanescentes de quilombo”
ocorreram com os técnicos do Instituto de Terras da Bahia (INTERBA – órgão hoje
extinto), da Fundação Cultural Palmares e do Ministério da Cultura. Na época, esses
órgãos firmaram alguns convênios que tinham como proposta o reconhecimento e a
titulação das terras das comunidades negras rurais nos diferentes estados. Esses
técnicos fizeram várias reuniões com os membros da comunidade para provocar uma
primeira discussão sobre a questão de suas terras, tendo como meta a aplicação do
Ato da Disposição Constitucional Transitória (ADCT).
A participação de moradores de Tijuaçu no I Encontro Nacional das
Comunidades Negras Rurais Remanescentes de Quilombo, ocorrido em Salvador em
1994, iniciou o percurso do reconhecimento. Esse foi apenas o primeiro passo para
70
muitos outros que vieram. No referido evento, os participantes receberam informações
a respeito das experiências desenvolvidas em outras comunidades, como os
“remanescentes de quilombo de Rio das Rãs (Bom Jesus da Lapa/BA)”.
Antes do trabalho de campo etnográfico do antropólogo Osvaldo Martins
Oliveira, estiveram em Tijuaçu, em épocas diferentes – em 1998 e 1999 – dois outros
antropólogos e uma advogada da Fundação Cultural Palmares, para realizar coleta de
dados com o objetivo de elaborar relatórios encomendados pelo convênio dos órgãos
referidos acima.
Segundo o Relatório, a população, motivada por esse processo de
mobilização que se iniciava no dia 10 de agosto de 1998, e alguns representantes da
comunidade reuniram-se na Escola de Primeiro Grau de Tijuaçu e traçaram algumas
reivindicações. Entre estas estavam: água encanada para a sede do distrito e para os
povoados vizinhos; uma ambulância para ficar à disposição da comunidade; cursos de
corte e costura e uma fábrica de roupas, cuja instalação amenizaria o desemprego;
saneamento básico; criação de um projeto habitacional, visando construir casas para
os moradores; construção de uma escola de nível médio; iluminação pública em todas
as ruas da vila e eletrificação para as comunidades do Alto, Água Branca, Barreiras,
Olaria, Macaco, Lajinha, Conceição e Lagoa do Cocho; instalação de uma fábrica de
tijolos e outra de sandálias; restauração da cacimba, que se encontrava desativada;
recuperação da torre telefônica existente no local e reinstalação do posto telefônico,
que constantemente se encontrava com defeito e desativado, obrigando os moradores
a se deslocarem por cerca de 10 km para encontrar o posto telefônico mais próximo;
instalação de uma farmácia comunitária; atendimento médico e dentário; creche para
atender as crianças; incentivo e recursos financeiros para a prática da cultura negra
local; implantação de uma cooperativa comunitária; restauração e conservação dos
cemitérios da vila, de Barreira e do Quebra Facão; construção de quadras de esporte,
um campo de futebol para prática esportiva e lazer dos jovens da comunidade.
Os técnicos da Fundação Cultural Palmares fizeram várias reuniões e
começaram a traçar o Laudo Antropológico, procurando respostas para as seguintes
informações: localização, origem, relevância social, o que torna o espaço da
comunidade significativo para o impacto social. Também procuraram pessoas mais
71
velhas da comunidade que soubessem contar a história desses afro-descendentes.
Descrição rápida dos ritos ou atos da comunidade, código lingüístico e sua origem
(língua ou dialeto do local), a trama das relações dentro da comunidade e trabalhos
sociais realizado na área do perímetro quilombola, edificações ou monumentos
integrantes do espaço físico, marcas que identificavam o território como uma
comunidade remanescente de quilombo, tipos de vegetação, tipos de cultivo e número
de famílias residentes no território.
Observado os itens citados acima, em 18 de fevereiro de 2000, o antropólogo
da Fundação Cultural Palmares, Osvaldo Martins de Oliveira, concluiu o Relatório de
Identificação da Comunidade Negra de Tijuaçu, sendo Tijuaçu reconhecido como
território remanescente de quilombo, através de ato publicado no Diário Oficial da
União de 28 de fevereiro do mesmo ano. Para elaboração do referido relatório, o
antropólogo Osvaldo Martins de Oliveira permaneceu na comunidade, hospedado na
casa de Ilca, cerca de 15 dias, percorrendo povoados e fazendas, conversando e
entrevistando os moradores e levantando dados sobre a região. Desse documento,
constam o mapeamento do espaço e da população local; história contadas pelos mais
velhos sobre a ocupação da terra e a genealogia da comunidade; descrição de alguns
conflitos de terras com os fazendeiros da região; atividades produtivas, criatórias e
artesanais; atividades políticas e reivindicações; como a população se identifica como
afro-descendente e uma descrição das manifestações culturais.
O povo recebeu o reconhecimento como uma conquista. A partir de então,
tem se mobilizado com o objetivo de entender traços de sua cultura e, nesse percurso,
resgatar algumas manifestações culturais que estavam adormecidas e que foram
despertadas após o reconhecimento.
Ah! Eu acho muito bom ser remanescente de quilombo. Depois que a gente
descobrimos, que o Valmir discobriu, eu acho que modificou muito a vida da
gente aqui. Mudou, Ave Maria, 100%. Porque a gente era muito excluída. Eu
mermo já fui muito excluída.
Ah! Nós agora já sabe conversar. Que aqui antigamente tinha gente que não
conversava. Se tiver uma reunião, a gente ia pra reunião só ouvir, não podia
dar opinião, porque se nós assim, eu vou conversar a colega dizia não levanta
não que tu não sabe conversar. Aí agora aqui, aqui a gente ficava como
comandado, se a gente se levantava alguém dizia assim. Oh! É passado
assim. Não espera aí, é depois, deixa fulano conversar primeiro. Era outras
pessoas, porque eles dizia que a gente não sabia e aquilo ia passando, e hoje
não, a gente hoje, a gente vai pra uma reunião, a gente sai, a gente pode
72
conversar o que for na reunião, alguém quer falar, a gente já se levanta.
Qualquer pessoa se levanta e pergunta. Mutcha vezes a gente aqui nunca
andou, andava, a gente aqui, mas se tivesse uma reunião era reunião de
branco, se era reunião aqui, mas era branco, preto se ficasse olhando, tinha
que olhar de longe. Ai! acho que nós, que hoje nós somos mais homenageado
que, hoje a gente, até na radia, na radia Caraíba. Hoje tem uma pessoa de
Tijuaçu conversando, logo uma que aqui não tinha telefone e hoje já tem, mas
hoje já tem telefone, se a gente coisava [...] (Entrevista realizada pela autora
com Nira, em 5 de dez. de 2004, em sua residência em Tijuaçu).
Os afro-descendentes se auto-identificaram e passaram a reivindicar seus
direitos, porque anteriormente não se viam como cidadãos e sofriam muito com o
preconceito, como se pode perceber no depoimento abaixo:
A gente, eu mermo, no tempo de escola, já sofri muito. O povo, as professoras. A
professora gostava muito de chamar a gente de neguinha do cabelo duro, quando a
gente chegava, que as mães da gente penteava o cabelo da gente, não penteava na hora
da gente ir pra escola, não era como agora. Minha mãe, sempre penteava o cabelo da
gente de tarde que era pra gente ir pra escola no outro dia, aí a gente fazia aquelas
trancinhas, uma pegada na outra, quando a gente chegava, tinha vez, assim que a mãe
da gente não dava tempo pintiar, quando a gente fosse com aquele, com aquele cabelo
coisado, ela chegava e dizia: “é, tua mãe é porca, né, mais esses negos, gosta de ser
porco, não pentea nem os cabelos dos filhos”, eu já sofri muito... muito. (Entrevista
realizada pela autora com Nira, em 5 dez. 2004, em sua residência em Tijuaçu).
Diante dessas e outras situações, os moradores de Tijuaçu sentiam-se
acuados, excluídos, indignados pelo tratamento recebido por aqueles que se achavam
brancos e utilizavam palavras ofensivas com o intuito de humilhá-los. Não sabiam
como proceder diante das provocações; e tinham como alternativa se ausentar do
mundo do outro e isolar-se na sua comunidade.
Para Barth (apud POUTIGNAT ; STREIFF-FENART, 1998), a identidade é
construída e transformada na interação de grupos sociais, através de processos de
exclusão e inclusão que estabelecem limites entre diferentes grupos, definindo os que
os integram ou não. Essa identidade está sendo construída a partir das situações
vivenciadas por esses afro-brasileiros.
Hoje tão vendo a gente como gente, que antigamente, não todos né, aquelas
pessoas que a gente conhece, não conhecia a gente como gente não, né?
Não tratava a gente como, pelo nome, tratava com o apelido de nego. Nego
vem cá. Nego faz isso. Hoje, é, ta tratando a gente como gente (Fala de Ilca,
entrevistada pela autora em 14 de ag. de 2002, em sua residência em
Tijuaçu).
73
Outras vozes também se levantaram e concordaram com Nira e Ilca sobre o
benefício que o reconhecimento trouxe à população. Após o reconhecimento, alguns
depoentes pontuam que houve uma mudança de comportamento também por parte
dos habitantes de Senhor do Bonfim em relação à população de Tijuaçu. Houve uma
diminuição do preconceito. O que significa para população ser afro-descendente?
Afro-descendente significa pra mim uma coisa muito importante, porque a
gente, eu mermo não sabia que era afro, e agora estamos sabendo, e por isso
que é uma coisa muito importante pra mim.
Com o reconhecimento mudou muita coisa em Tijuaçu. O pessoal não usava
muita trança aqui, que disse que trança era coisa de gente tabaréu62, e hoje já
usa, então mudou 100%, em tudo por tudo.
Hoje, o povo de Bonfim nos recebe muito bem. Como eu terminei de falar
mermo nesse instante né? A gente chega lá, por exemplo, a gente chega na
loja né, eles já vão receber a gente cá na frente, atende super bem,
antigamente não, antigamente, eu merma fui uma das pessoas que teve uma
vez mermo que eu cheguei na loja né, procurei saber o tecido que eu ia
comprar, quanto era, o moço fez de conta que eu nem existia, de jeito
nenhum. Hoje, eu chego, já vou logo ser atendida. No Justino mermo, um
exemplo, eu fui comprar um bolo uma vez, lá no Justino, isso tem dois anos
atrás, quando cheguei lá, né, assim, atrás de mim chegou uma senhora, uma
senhora não, mais nova do que eu, e o rapaz que trabalhava lá atendeu ela
primeiro do que eu, e já tava com mais de meia hora que eu tava lá, e ele não
me atendeu. Foi atender a mulher. Por que? Porque a mulher era branca e eu
era negra. Quando ele veio procurar saber a mim o que era que tava
procurando saber, aí eu também desisti. Disse, ó, só num vou falar pro seu
patrão, que é seu Justino, porque se eu falar, acho que ele vai te botar pra
fora, e eu não quero isso. Aí saí. Não quis mais de jeito nenhum o bolo que eu
ia comprar (Entrevista realizada pela autora com Ilca, em 14 de ag. de 2002,
em sua residência em Tijuaçu).
A postura de certos moradores de Senhor do Bonfim deixava alguns
habitantes de Tijuaçu indignados. Várias foram às situações que demonstravam
atitudes preconceituosas. Entretanto, a afirmação de sua identidade cultural
possibilitou a conquista de um espaço, uma vez que esta é uma construção de coisa
comum que se afirma perante algo, é um fenômeno em mudança, não é um conceito
estático. Essa percepção enquanto afro-descendente estava adormecida e escondida
atrás do preconceito e do racismo sentido por esses moradores de Tijuaçu. A
identidade tornou-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente
62
O mesmo que matuto, caipira.
74
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam.
Para
Hall
(2001),
a
identidade
é
definida
historicamente,
e
não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos sem
unificá-las ao redor de um “eu” coerente. Dentro de cada um há, identidades
contraditórias, empurrando para diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. Á medida que os sistemas de
significação e representação cultural multiplicavam-se, haverá confrontos por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderiam identificar-se – ao menos temporariamente. Pois, escreve Barth
(1998), que os traços que se leva em conta não era a soma das diferenças objetivas,
mas unicamente aqueles que os próprios atores consideram como significativos63.
A identidade desses afro-brasileiros residentes em Tijuaçu foi construída a
partir da diferença. Para Souza (2002, p. 141-142), através das identificações
históricas e culturais, funda-se o conceito de etnia, que abarca os que supõe ter uma
ascendência comum, base da identidade do grupo e de sua distinção com relação à
sociedade abrangente.
Ademais, a identidade étnica é construída não pelas diferenças em si, mas
pela tomada de consciência delas, que ganham significados ao se inserirem em
sistemas sociais. Ao tomar conhecimento dessas diferenças, a população une-se em
prol da sua cultura e, evidentemente, de sua identidade. A etnicidade serve, portanto,
para pensar um novo tipo de sociedade, na qual convivem grupos de variadas origens
que se pautam por diferenciadas instituições sociais. Segundo Cunha (1985, p. 208):
Nesse novo tipo de sociedade, a coerência é dada pelo sistema multiétnico e
não mais pela cultura original”. Nesse contexto, os processos de constituição
étnica dão-se pela seleção de certos traços escolhidos como símbolos
privilegiados da identidade étnica e pelo esquecimento de outros:A memória e
63
Cf. Poutignat e Streiff-Fenart (1998. p. 11), afirmam que a etnicidade não é um conjunto intemporal,
imutável de “traços culturais” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de
polidez, práticas de vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de geração para
geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma
organização social que não cessa de evoluir.
75
o esquecimento histórico são assim comandados pela relevância do novo
sistema.
A população de Tijuaçu tem procurado cada vez mais se afirmar como um
grupo afro-descendente e tem conservado símbolos e significados dessa identidade
étnica. Primeiro, por uma fase de descoberta e, posteriormente, conhecimento da
cultura dos seus antepassados. Em seguida, descobriram um estágio de
conscientização e valorização dessa cultura. No último período, conheceram sua
história e a de seus antepassados e passaram a valorizar suas manifestações
culturais, suas relações de trabalho, sua religiosidade e seus traços físicos.
Nessa perspectiva, a população passou a emitir um outro olhar, autoidentificando-se enquanto afro-descendente. Dessa forma, tornaram-se mais visíveis
ao olhar do outro, pois não tinham mais receio de expressar seus laços culturais.
Projetos do Governo Federal passaram a chegar a Tijuaçu e as informações eram
divulgadas pelos meios de comunicação. Assim, Tijuaçu ficou visível aos diversos
olhares. Diante do exposto, vejamos o que dizem os habitantes de Senhor do Bonfim
sobre o reconhecimento:
Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural
qualquer; não se despertava pra essa questão de quilombo. Porque a gente
no estudo de história, na escola, eles nos leva à figura do negro muito distante
daqui do sertão, então por mais que a gente tenha negro aqui no sertão, no
alto sertão, sempre você é levado a pensar que os negros existem apenas em
Salvador, chegaram para a zona da mata e o litoral brasileiro, Rio de Janeiro,
Recife, São Paulo. Eles ficaram por aí né, ficaram por aí e daí não passaram.
Agora, Tijuaçu, por sua vez, é visto como uma comunidade rural, quando
começou a falar sobre a questão quilombola, é, e se colocar algumas
questões da cultura de Tijuaçu em evidência aqui pra comunidade é que a
gente ta vendo o despertar, pra questão do quilombo. Então as pessoas agora
já estão vendo Tijuaçu como quilombo, em Bonfim nos termos um quilombo, é
Tijuaçu. É, mas anterior era uma comunidade rural, é um lugar que ninguém ia
lá fazer nada, ninguém tinha compromisso com Tijuaçu, era apenas uma
comunidade rural, de lá apenas vem à melancia, de lá apenas vem o feijão, e
a gente não tinha a comunidade, o centro da cidade não tinha muita relação
com Tijuaçu. Hoje não, hoje as pessoas já tão vendo como quilombo, e até já
tão saindo da sede para visitar Tijuaçu, pra conhecer um quilombo
propriamente dito, hoje já tem um pensamento que está vindo a um quilombo,
é, é ao quilombo rural, vamos dizer assim (Entrevista realizada pela autora
com Ivomar Gitânio da Silva, em 02 de fev. de 2005, em Senhor do Bonfim).
Perguntou-se se a referida mudança era em decorrência do reconhecimento,
então Ivomar (fev. 2005) falou:
76
Ao reconhecimento, a divulgação da atividade da comunidade, da cultura da
comunidade, a partir daí, do reconhecimento dessa, do conjunto de atividade é
que as pessoas tão começando a despertar (Entrevistado pela autora em 2 de
fev. de 2005, em Senhor do Bonfim).
A identidade, então, surge não tanto da plenitude dela mesma, que já está
dentro de cada um como indivíduo, mas de uma falta de inteireza, que é “preenchida”
a partir do exterior, pelas formas através das quais se imagina ser visto por outros
(HALL, 2001, p. 39).
A possibilidade de uma identificação do povo de Tijuaçu vai aparecer a partir
da construção dessa identidade afro-brasileira assumida. A população não mais se
intimida em expressar seus costumes e sua cultura. Essa identidade foi formada, ao
longo do tempo, aliada as diferentes influências que a população comungou e que
agora, com a auto-estima elevada e sua auto-identificação enquanto afrodescendente, aparece com maior visibilidade e vigor.
Os costumes desses afrodescendentes são escancarados, não há mais
medo. Hoje Tijuaçu possui três Associações; os moradores fazem reuniões periódicas,
nas quais há uma participação significativa da população. O povo saiu às ruas, foi para
outros municípios apresentar suas danças, levando para outros lugares suas
experiências de vida. Agora essa pessoas não têm mais receio do preconceito.
Em decorrência desse processo de conscientização pelo qual a comunidade
vem passando ao longo desses anos, a população tem criado mecanismos para que
seus laços culturais sejam preservados, a exemplo do Samba de Lata (que é
considerado o cartão postal da comunidade e que será discutido no capítulo 3). Os
pais e avós já incluíram no referido samba os seus filhos e netos para que a tradição
tenha continuidade. Como se pode perceber na fala abaixo:
Inclusive a gente tá até ensinando já as crianças, né. Nosso samba pra
aquelas pessoas que estão mais velhas, que tão cansada, já essas pessoas
vai saindo e vai deixando aqueles meninos já de menor, aqueles mais novos
(Entrevista realizada pela autora com Nira, em 5 de dez. de 2004, em sua
residência em Tijuaçu).
A preocupação de manter a tradição também é extensiva a outras
manifestações que existiam na comunidade. Resgataram e recriaram ainda a Dança
do Parentesco e a Roda do Arco-Íris (que serão igualmente tratadas no capítulo 3).
77
Construíram em forma de mutirão a sede da Associação. São iniciativas que
demonstram a mobilização da comunidade e a elevação da auto-estima desses afrodescendentes. Nesse sentido, a população mais jovem está empenhada em manter
esse legado dos seus antepassados, criando perspectivas para manutenção das
tradições e de sua cultura:
Eu me sinto assim uma pessoa que pertence, que meus pais pertenceram, meus avós
pertenceram a uma raça mutcho linda, que tinha mutcha, mutcha, mutcha cultura, que
sofria mais que apesar de tudo, né? Cultivava sempre aquilo. Imagine se não tivesse
cultivado essa cultura linda que, que Tijuaçu tem hoje em dia? Como seria nós? Então
eu acho que eles, apesar de tanto sofrimento, que sofreram, eles, eles permaneceram
forte e cultivando sempre a sua cultura, então eu me acho hoje em dia não só como a
minha comunidade, uma pessoa assim forte na fé que Tijuaçu é forte mesmo na fé, e
uma pessoa realizada, e eu estou vendo os projetos de Tijuaçu ir à frente.
Interessante e muito bonita. Imagine se nós não tivesse essa história para contar né, e
para viver, que você um dia, estamos vivendo essa história. Quando eu falo vivendo,
não é vivendo no só, no sofrimento, mas sim voltado para a, a alegria está tendo, hoje
o pessoal abre a boca e diz, é, eu sou negro, sou negro e me, e me reconheço como
negro. Então é mutcho bonito, que de primeiro as pessoas tinham vergonha de abrir a
boca para se reconhecer como negro, e hoje em dia não, ele abre assim a boca e fala
com muita alegria, eu sou negro sim, e tenho valor. Acho mutcho bonito (Entrevista
realizada pela autora com Juliana Rodrigues, em 02 de fev. de 2005, em sua residência
em Tijuaçu).
Uma história transparente, porque todo mundo ta vendo, ta sendo reconhecido no país
todo, em toda nação, aí ela é transparente, pra mim ela ta transparente (Entrevista
realizada pela autora com Amauri da Silva Rodrigues que tem 16 anos, em 02 de fev.
de 2005, em sua residência em Tijuaçu).
Outras vozes também se levantaram em apoio ao legado histórico de Tijuaçu:
Ah, eu vejo, bem eu vejo... Eu acho que é uma história bonita, acho essa história
muito bonita, ai eu acho bom que a gente, o povo chega e procura a gente, como é a
história da gente, sabe contar, a gente não conta com os detalhes porque tem muita
coisa assim que a gente não sabe, que a gente, eu achava que aqui já podia ter assim
uma cartilha pra gente estudar porque como agora mesmo eles tão fazendo um curso
em Senhor do Bonfim pra fazer uma cartilha, e é bom a gente ter uma cartilha, porque
a gente, mutchas coisas a gente não sabe, quando o povo pergunta a gente procura o
seu Valmir: — Oh Valmir, como é isso assim? Assim o Valmir vai e dá aquela
explicação à gente, porque a gente não tem, a gente assiste a reunião, a gente grava
quando o Valmir, na hora que a gente sai, ele conta a história à gente, ó minha gente, é
passado assim, assim, assim ele sempre fala com a gente, ele diz, conta à história pra
gente, pra quando a gente chegar assim num lugar que o povo preguntar a gente saber
explica. (Entrevista realizada pela autora com Nira em 05 de dez. de 2005).
Situação semelhante vem passando outras comunidades negras rurais do
Brasil. Encontramos em Tijuaçu uma tradição oral articulada que se relaciona à
escravidão, em alguns momentos, havendo, em outros momentos, uma negação. Há
78
uma insistência reticente em não serem eles descendentes de escravos.
Nos termos do conceito de quilombo contemporâneo, como bem definiu, em
outubro de 1994, a Associação Brasileira de Antropologia, levou-se à reflexão que o
que se encontra em Tijuaçu esteja coadunado com o conceito abaixo:
[...] O termo Quilombo tem assumido novos significados na literatura
especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que
tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para
designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos do Brasil. Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se
refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de
comprovação biológica. Também não se trará de grupos isolados ou de uma
população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas,
sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de
resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida
característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses
grupos também não se define pelo tamanho e número de seus membros, mas
pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e
da continuidade enquanto grupo. Neste sentido, constituem grupos étnicos
conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que
confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar
afiliação ou exclusão (O’DWYER, 1995, p. 1).
Foi nessa perspectiva que se concebeu Tijuaçu como uma comunidade negra
rural, cujos moradores ali habitam há dois séculos, sobrevivendo da agricultura de
pequenos lotes de terra pertencentes as mesmas famílias. Assim, permanecendo há
várias gerações sem proceder à partilha. Possuem tradições culturais permanentes
que são valorizadas pela população. Portanto, considera-se esse território como
comunidade remanescente de quilombo, a partir da continuidade e da permanência de
seus costumes, de suas experiências enquanto um grupo que manteve as suas
tradições.
O referido capítulo discutiu sobre a história de Tijuaçu, sintonizada com o que
apontava a documentação escrita e as narrativas dos seus moradores sobre a
trajetória dessa localidade. Assim, pode-se perceber que sobre a trajetória de Tijuaçu
existem várias informações. Segundo informações contidas nos documentos escritos,
as terras de Tijuaçu na segunda metade do século XIX pertenciam a Felipe Rodrigues
da Silva e a Joaquim Manoel de Santana. Em 1888, essas terras eram propriedade do
casal Umbuzeiro Angelim.
Após 1888, a documentação escrita se cala, não
aparecendo nenhuma documentação que faça referência aos proprietários dessas
79
terras.
Por sua vez a oralidade aponta a propriedade dessas terras a Mariinha
Rodrigues, referenciada como fundadora desse território. Assim, concluímos que essa
é a história contada sobre esse povo negro, sobre uma mulher desbravadora e
corajosa que fundou Tijuaçu, diferente daquela contada a partir do olhar do
colonizador, que revela a submissão do povo negro. Essa é a história conhecida pelos
moradores de Tijuaçu, pois foi contada pelos mais velhos aos mais moços.
O reconhecimento de Tijuaçu como remanescente de quilombo pela
Fundação Cultural Palmares empreendeu uma valorização da cultura, como também,
a auto-identificação desses moradores como afro-descendentes. Nessa perspectiva,
várias mudanças foram implementadas em decorrência do reconhecimento, como: a
criação da Associação Quilombola, que passou a representar o perímetro quilombola
atingindo nove comunidades; algumas manifestações culturais foram resgatadas; a
comunidade passou a se mobilizar em prol dos seus direitos, passando a cobrar dos
órgãos competentes melhoria para o perímetro quilombola. Os penteados e as roupas
afros passaram a ser usadas freqüentemente. Alguns costumes foram resgatados e
reinventado por conta dessa auto-identificação.
80
CAPÍTULO II
AS MULHERES TIJUAÇUENSES E SUAS REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS EM VARIADAS E DIFERENTES FUNÇÕES
81
Foto n° 3 - Família de D. Ernestina Damasceno Santana
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
“Eu sou aquela mulher que fez a
escalada da montanha da vida removendo pedras
e plantando flores”.
(Cora Coralina)
2.1 Luta, sobrevivência e cotidiano: mulheres em ação
Sobreviver, nas duras condições do dia-a-dia, parecia tarefa insana, que se
realizava através de contatos mágicos e com intervenções sobrenaturais.
Opunham-se metáforas da fome e imagens de luta pela sobrevivência nas
figuras das velhas senhoras mandonas: o seu vulto esquálido, pescando no rio
de águas vazias; como assombrações, em caminhos ermos, debruçadas
sobre os feixes de lenha, que faziam e desfaziam, num encantamento
compulsivo e fatal; velhinhos que tiravam água do poço com uma corda
arrebentada64.
64
Bosi, prefácio in: Dias (1995. p. 8). A referida obra discute a reconstrução dos papéis sociais
82
Em diferentes espaços e épocas, vários estudos têm apontado a mulher em
distintos papéis, sejam os inerentes à natureza feminina – como a maternidade -, ou
determinados pelo momento histórico, econômico, político e social. A reconstrução dos
papéis sociais femininos, como mediações que possibilitem a sua integração na
globalidade das experiências históricas do seu tempo, parece um modo promissor de
lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos. O seu modo peculiar de
inserção no processo social pode ser captado por meio da reconstrução global das
relações sociais como um todo (DIAS, 1995, p. 13).
Nas últimas décadas, a historiografia tem favorecido uma história social das
mulheres que têm possibilitado diferentes pesquisas nesse campo, segundo Dias
(1995, p. 14), novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os
historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial
do cotidiano.
Em Tijuaçu, os caminhos trilhados por mulheres que viveram e outras que
vivem no referido território têm marcado a história, a memória, a identidade e o
cotidiano dessa comunidade negra rural. As experiências vivenciadas e a luta que
estas têm travado pela sua sobrevivência e dos seus familiares mostram a força e a
coragem para enfrentar as dificuldades cotidianas. O papel desempenhado pelas
mulheres da comunidade negra rural é visível em todos os setores. A figura feminina
sempre se fez presente desde os primeiros momentos do território, quando Mariinha
Rodrigues desbravou as matas de Tijuaçu, criando perspectivas de sobrevivência,
fazendo desse espaço a sua paragem e criando laços familiares e de solidariedade
(tema que foi discutido no capítulo 1).
Nessa tradição feminina, no labirinto da memória, as mulheres vão
aparecendo e deixando suas marcas, constituindo o principal foco enquanto
personagens das tramas locais. Constituiu-se pela memória e oralidade a trajetória de
femininos, como mediações que possibilitem a sua integração na globalidade do processo histórico de
seu tempo, parece um modo promissor de lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos. O
seu modo peculiar de inserção no processo social pode ser captado por meio da reconstrução global
das relações sociais como um todo.
83
uma comunidade que teve suas origens marcadas pela compleição de um
matriarcado, em contraponto ao patriarcado da tradição. Assim, elas estão visíveis,
destacando-se em setores como a educação, a religião, as manifestações culturais, a
gestão pública e política, e no comércio, conquistando um espaço expressivo e
consolidando-o cada vez mais. Espaço conquistado tendo como lastro a pobreza e a
luta pela sobrevivência da família.
Pela falta de oportunidade de freqüentar escola, poucos são os membros da
população que sabem ler. Dessa forma, temos, novamente, a oralidade como foco
principal e através desta que os ensinamentos são passados. Desde muito pequenos
seus habitantes aprendem com os mais velhos as relações de trabalho, as regras de
comportamento, os afazeres domésticos e as ações cotidianas. Os mais velhos
passam para os mais novos seus ensinamentos, que aprenderam, por sua vez, com
seus pais e seus avós. Esta constitui a dinâmica da aprendizagem dentro da
comunidade negra rural de Tijuaçu. A experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores (BENJAMIN, 1987, p. 198).
Essas representantes da tradição feminina, ao longo dos anos conquistaram
visibilidade, em decorrência da sua postura frente às diferentes situações vivenciadas.
E assim passaram a ser reconhecidas pela população, justamente pelo trabalho
prestado à comunidade. Vários são os exemplos de mulheres que têm seu espaço
respeitado. Nesta discussão, algumas delas foram selecionadas por conquistarem
respeitabilidade e visibilidade dentro da comunidade negra rural de Tijuaçu.
São vários os papéis assumidos por essas mulheres, percorrendo caminhos
que passam da cozinha à rua; da roça à igreja; de mãe a provedora do lar, fundadora
da comunidade, como Mariinha Rodrigues. A partir dessa representação feminina,
outras moradoras vão se destacando nas atividades religiosas, inclusive assumindo
papéis de liderança a exemplo de Detinha,65 que organiza as atividades da Igreja
Católica, principalmente nos preparativos da Festa de São Benedito; Ilca dos Santos,
líder da comunidade, atualmente vice-presidente da Associação dos Quilombolas e
65
Detinha é líder da Igreja Católica. Sob sua responsabilidade está a organização da igreja e os
eventos que acontecem nesta como, o coral e a procissão; é, também, agricultora, lavadeira, além de
desempenhar atividades domésticas.
84
Adjacências de Tijuaçu; Dalva, líder da comunidade da Fazenda Alto66; Anísia, exímia
contadora de histórias, que relatou com perspicácia a trajetória da comunidade;
Marinalva Santos da Silva (mais conhecida como Dinha), percussionista do Samba de
Lata67; Genoveva, a iniciadora, já falecida e Joana, sua filha, sambista que encanta a
todos com seus passos leves e graciosos. Esses papéis trazem no seu bojo resquícios
da cultura africana, onde, na ordem familiar matrilinear, embora matizada conforme a
região, entregava-se a casa da família ao controle total da mulher, o que viria explicar
a predominância dessas mulheres em Tijuaçu .
A intenção é discutir sobre o cotidiano, as vivências e funções que essas
mulheres desempenham dentro desse território. Seus depoimentos constituem o mais
verídico testemunho do passado e do presente. Essas artesãs, vendedoras de
iguarias, domésticas, roceiras, lavadeiras, percussionistas, sambistas, lavradoras “têm
astúcia de camaleão, de pequenos bichos, que não pretendem vencer, pois já foram
vencidos”68, mas viver e lutar pela sua sobrevivência e encarando o seu dia-a-dia com
otimismo e esperança. Foi este o olhar sentido nas várias visitas feitas a Tijuaçu. Com
sua simplicidade, humildade e serenidade esse grupo feminino mantêm o equilíbrio de
sua casa, da sua família e das vivências do cotidiano. Têm consciência de suas
dificuldades diárias, mas não se desesperam jamais, seguem em frente. Para elas,
todo dia é um eterno recomeço.
As dificuldades enfrentadas tornam-se evidentes quando elas percebem que
suas reivindicações não são atendidas ou quando as oportunidades de emprego, de
qualidade de vida são barradas pela falta de instrução oficial. Experientes da negação
dos seus direitos de cidadãs, elas respondem através da mobilização e organização
da Associação Quilombola, buscando o respeito e o cumprimento dos seus direitos.
Privadas do saber oficial da cultura letrada, restam a essas mulheres
tijuaçuenses a esperteza e a improvisação, o que não impede o seu caminhar nos
66
Povoado próximo a Tijuaçu que segundo a memória social foi no Alto Bonito que tudo começou.
Nessa localidade, residiu Mariinha Rodrigues e o samba de lata nasceu.
67
Modalidade de samba tradicional que toma o seu nome do emprego desse utensílio – a lata de zinco,
como instrumento de percussão.
68
Bosi, Prefácio, in: Dias (1995. p. 8).
85
diferentes lugares. Assim, Dalva conta sobre sua luta para organizar a comunidade do
Alto Bonito:
Nesses 58 anos de vida, posso dizer que eu ensinei esses mininos, ensinei os
cunhados a ler. Naquela época, há 50 anos atrás, eu saí da escola no 2º ano
primário, mas não é essa leitura de agora. Eu sabia muito há 50 anos atrás.
Esta luz quem puxou fui eu. Minina, eu já estou bem cansada e já tenho muito
fio. Eu pedi ao prefeito pra vim fazer um predinho aqui, pra vê se aqui fica
mais organizado. Pedi o Cândido (prefeito da época), ele prometeu e não veio;
pedi ao Zé Leite (prefeito posterior, hoje já falecido), ele fez a coletagem
minha, tomou meus dados, sei que ele me prometeu e fez (Fala de Dalva
Odilon Santana, entrevista realizada pela autora em 11 de jan. de 2002, em
sua residência na Fazenda Alto Bonito).
Dalva narra com perspicácia sua luta em benefício do povoado. Mesmo com
os seus poucos anos de freqüência à escola, conseguiu passar o pouco que aprendeu
para sua família e tem conhecimento da relevância do mundo letrado, o que justifica
sua luta pela construção da escola,69 já edificada num terreno doado pela sua família e
que funciona nos três turnos. Outra luta encabeçada por ela, foi a construção de um
tanque para armazenar água, cuja construção realizou-se no segundo semestre de
2002, com o objetivo de servir à população do povoado. Até então, as pessoas eram
obrigadas a andar longas distâncias para buscar água. A energia chegou à
comunidade também no segundo semestre de 2002. Dalva luta para trazer para a
Fazenda Alto as benesses dos diferentes setores da sociedade. A instalação do
tanque para a comunidade, por exemplo, Dalva conseguiu através da Igreja, mediante
o interesse de um padre, sensibilizado com a realidade da população.
As histórias dessas mulheres vão surgindo através das falas e dos silêncios
significativos, o que é um convite a esmiuçar suas lembranças e ouvir o que não foi
esquecido. Narram com espontaneidade suas experiências de vida.
Na foto abaixo, da esquerda para direita: Ilca, Dalva, nora de Dalva e seu
esposo Maurício Santana à porta da sua casa, no Alto Bonito. Podemos observar a
simplicidade da casa e das pessoas que nela habitam. A referida casa localiza-se num
69
A Escola Municipal Alto Bonito, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, em 2004, conta
com 63 alunos e três professores, funcionando nos três turnos, da 1ª a 4ª séries, do Ensino
Fundamental I.
86
ponto estratégico do povoado, em frente a entrada deste, sendo a mais visitada por
pesquisadores e pessoas interessadas na cultura de Tijuaçu.
Foto n° 4 - Integrantes da família de Dalva e Ilca.
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
Nessa perspectiva, de ida e volta à busca de lembranças, os depoentes
destrincham sua história e narram episódios do passado e do presente, permitindo
perceber as tramas da memória que é:
Historicamente condicionada, mudando de cor e forma de acordo com o que
emerge no momento; de modo que, longe de ser transmitida pelo modo
intemporal da “tradição” ela é progressivamente, alterada de geração em
geração. Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta
tenha sofrido. Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como
a história, a memória é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica
como quando parece permanecer igual (SAMUEL, 1997, p. 45-47).
Entretanto, ao considerar a memória como transição, ela muda de acordo com
o tempo, demonstra o momento e as experiências dos sujeitos sociais. Os habitantes
87
de Tijuaçu não estão imunes a esta transitoriedade quando relatam algumas de suas
experiências passadas e comparam como são percebidas hoje. Aos poucos, essa
memória vai escavando o passado e deixa transparecer aqui e acolá sutis cores de um
tempo não presente. As experiências vivenciadas vão se diversificando de geração a
geração, atendendo às necessidades vigentes.
Assim, a oralidade tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro
em que todos os pedaços são diferentes, porém forma um todo coerente depois de
reunidos – a menos que as diferenças entre elas sejam tão irreconciliáveis que talvez
cheguem a rasgar todo o tecido. Em última análise, essa também é uma
representação muito mais realista da sociedade, conforme é experimentada
(PORTELLI,1997, p. 16-17). Assim os depoentes narram suas experiências cotidianas:
A metade desse povo mais velho está aposentado, mas as coisa continua
ruim mermo. Essa metade desse povo que tem menos de 50 anos está
sofrendo um bando que eu tô vendo por aqui. Coitadinhos! Pegam aqui licuri,
maracujá e se intoca lá por Bonfim pra vender, pedir por lá. Sei quando chega
de tarde tomando seus pingos de água (risos).
Ó minha irmã, eu tenho muita vivência, criei meus fio graças a Deus. Esse
povo que já foram os mais véio daqui tudo me ajudaram a criar os meus fio.
Eu costurava muito, costurei 20 anos. Esse povo me ajudaram muito
(Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon Santana, em 11 de jan. de
2002, em sua residência na Fazenda Alto Bonito).
Todavia, o olhar de Dalva volta-se sobre o ontem e as relações que eram
travadas na comunidade: de solidariedade, compadrio e ajuda mútua, tão comum nas
comunidades rurais. Ela fala como mãe, como trabalhadora, como mulher que atua. O
vivido remete à ação, à concretude, às experiências de um indivíduo ou grupo social.
A prática constitui o substrato da memória, por meio de mecanismos variados,
seleciona e reelabora componentes da experiência (AMADO, 1995, p. 131).
Essas novas experiências históricas abrem espaço para uma história
microssocial e dão oportunidade de reconstruir vidas e profissões até então
descartadas pela documentação oficial e pelo olhar do historiador. Incorporar à história
tensões sociais de cada dia implica a reconstrução da organização de sobrevivência
88
de grupos marginalizados do poder e, às vezes, do próprio processo produtivo,
(DIAS,1995, p. 15).
Na relação entre história e memória há significados entre as experiências do
passado e as vivências do presente. As lembranças constituem a mola mestra na
construção de uma história através da oralidade, dando sentido às experiências.
Amado (1995, p. 132), fazendo uma discussão sobre a relação entre memória e
história comenta:
História e memória, entretanto, mantêm tantas relações entre si, que é até
difícil pensá-las separadamente: “recordar é viver”, como ensinava o antigo
samba. A memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes
significados. Ao trazer o passado até o presente, recria o passado, ao mesmo
tempo em que projeta no futuro; graças a essa capacidade da memória de
transitar livremente entre os diversos tempos, é que o passado se torna
verdadeiramente passado, e o futuro, futuro, isto é: dessa capacidade da
memória brota a consciência que nós, humanos, temos do tempo. Esta, por
sua vez, permite-nos compreender e combinar, de muitos modos, as fases em
que dividimos o tempo, possibilitando-nos, por exemplo, perceber o passado
diante de nós.
Na luta cotidiana em prol da sobrevivência da sua família, as mulheres de
Tijuaçu, em sua maioria, dirigem-se à cidade de Senhor do Bonfim para vender os
produtos que colhem e o artesanato que produzem. São quase anônimas no espaço
da cidade, improvisam a própria sobrevivência. A improvisação, no seu dia-a-dia,
envolvia e envolve uma contínua troca de informações, bate-papos e toda uma rede
de conhecimentos e favores pessoais, proteção, compadrio, concubinato, que
intercede por elas e que elas sabem avivar e pôr em uso.
As mulheres trabalham na roça, vendem frutas, milho assado e artesanatos,
trabalham em casa de família. Onde tiver trabalho elas estão enfrentando, a
fim de ganhar um dinheirinho, e poder garantir o sustento de sua família
(Entrevista com Detinha realizada pela autora em de 2 de nov. de 2001).
Essas mulheres não são refratárias ao trabalho, enfrentam-no com muita
coragem para poder garantir a sobrevivência de sua família. Quando há chuva, vão
para roça, plantam, colhem e vendem na feira livre de Senhor do Bonfim ou nas
esquinas da cidade. Quando a chuva não vem, trabalham no artesanato, como
89
domésticas, na lavagem de roupas ou em qualquer outro tipo de trabalho que
possibilite ganhar algum dinheiro. Quando chega a época de estiagem, quando a roça
não rende mais nada, os homens geralmente são obrigados a sair do distrito e
dirigem-se a outros municípios em busca de trabalho, principalmente na região de
Juazeiro e Petrolina70. Os que permanecem trabalham nas fazendas da região, outros
laboram como ajudantes de pedreiro ou outro tipo de trabalho.
Já se configura como tradição na feira de Senhor do Bonfim a venda de
produtos oriundos das pequenas roças de Tijuaçu e povoados vizinhos. Na roça,
trabalham mulheres, homens e toda a família:
[...] Quando aquele ano dar você tem, e aquele ano quando não dar você não
tem, né? E assim, a gente vai vender alguma coisa da roça lá no Bonfim.
Vender o imbu, vender o maxixe, vender melancia, vender cajá, vender o pau
de rato71. Tudo a gente faz isso aí. (Entrevista realizada pela autora com
Detinha, em 02 de nov. 2001, em sua residência em Tijuaçu).
Há uma variedade de produtos oriundos da roça que são vendidos nos
diferentes espaços de Senhor do Bonfim. O comércio desses produtos remonta aos
primeiros momentos de Tijuaçu, como uma forma de aquisição do rendimento familiar,
e assim o é até hoje. É através dessas vendas que eles conseguem o necessário para
subsistência da família. Homens e mulheres disputam o mercado de vendas,
negociando tudo o que conseguem de suas roças, de frutas a folhas medicinais.
Apesar do significado econômico da feira não podemos ignorar a sua importância na
vida cultural desses vendedores.72 É nesse espaço que várias experiências são
vivenciadas, a feira é o ponto de encontro, de venda, de diversão, de troca, de namoro
e de lazer.
A tradição de venda de produtos é uma herança do tempo da escravidão.
Vários autores73 têm discutido sobre os escravos de ganhos e os produtos que
vendiam nas ruas das cidades da América portuguesa. As novas tendências da
70
Região de agricultura de exportação, localizada à margem do Rio São Francisco.
Planta medicinal que segundo a sabedoria popular serve para curar dores intestinais.
72
Thompson (1987. p. 294). O referido autor esclarece que o significado econômico da feira típica do
século XVIII parece ainda ser grande – os arrendamentos anuais, as feiras de gado e de cavalos, a
venda de produtos variados – não podemos ignorar a sua importância na vida cultural dos pobres.
73
Sobre escravos de ganho em Salvador cf Tese de Doutorado Mattos (2000); Reis (1993. p. 8-27);
Mattoso (1992. p. 538).
71
90
historiografia sobre a escravidão têm apontado para a observação das várias práticas
que nutriam a vida cotidiana dos escravos: o cultivo das roças de subsistência, as
trocas e comercialização de objetos e gêneros necessários à vida, a produção
independente de artefatos, o conserto de moradias e a preparação dos alimentos
como pontos referenciais de extrema importância para a sobrevivência, que se
insinuava em padrões diferenciados, delimitados pelo regime de trabalho escravo:
uma outra forma de organização, um outro conceito e ritmo e, sobretudo, uma
orientação diversa.
Para os escravos, viabilizar a existência diária significava, da mesma forma,
dinamizar relações sociais que complementavam, nos termos da
sobrevivência material, sua vida cultural. Para além da relação básica da
sociedade – senhores e escravos – uma outra dimensão social desenvolviase, produzindo uma rede de conexões associativas veiculadas por laços
afetivos, cadeias hierárquicas e relações de vizinhança e de parentesco
(WISSENBACH, 1998, p. 28-29).
Segundo Gomes (1996, p. 275), poucas são as fontes disponíveis a respeito
das atividades econômicas das comunidades de fugitivos no Brasil. Mesmo
considerando os grandes mocambos dos séculos XVII e XVIII, as informações sobre a
economia apontam, tão-somente, para uma agricultura de subsistência acompanhada
pelo extrativismo, caça e pesca abundante. Sabe-se, contudo, que muitos quilombos
produziam, também, excedentes – a maior parte agrícolas – em pequena escala,
favorecendo trocas mercantis. Em muitos casos, a “rapinagem”, por meio de saques e
roubos, podia funcionar como complemento das atividades econômicas.
Em Tijuaçu, a economia é caracterizada pela agricultura de subsistência. O
excedente é vendido na feira da sede do município. As famílias possuem suas
próprias roças e nesses terrenos elas plantam e colhem os seus produtos,
principalmente milho, feijão e mandioca. Cada membro da família possui um pequeno
lote de terra, que ele próprio cultiva. Esses terrenos geralmente não possuem
91
registros. A garantia de posse provém da oralidade74, da ocupação e do cultivo do
mesmo.
A gente vende vários produtos em Bonfim. A gente vende aquele saco de
feijão na base, no mio, debuia lá pra quando comprar debuiado. Vende feijão
seco, abóbora, melancia, maxixe. E a mandioca a gente faz a farinha. A gente
pega aquele saco, aquela caixa de mandioca e quando acaba vende, faz a
farinha. Quando dá para vender a gente vende, quando sobra pouco à gente
fica pra comer (Entrevista realizada pela autora com Maria Vítor, em 11 de jan.
de 2002, em sua residência em Tijuaçu).
Essas mulheres trabalhadoras, negras e pobres espalham seus produtos no
centro de Senhor do Bonfim, onde seu espaço é delimitado. Algumas vendem acarajé
na Praça José Gonçalves, próxima ao Calçadão, ou na mesma praça, ao fundo da
sede do Correio; outras vendem milho assado pelo centro de Senhor do Bonfim;
outras ainda só vêm aos sábados, vender principalmente frutas, artesanato de palha.
Preferem os locais mais movimentados da cidade, onde podem oferecer aos
estudantes, aposentados e ao povo em geral suas iguarias. Há também as que se
empregam como domésticas.
No Brasil do século XIX,
como discute Wissenbach (1998, p. 187), Reis
(1993), o espaço das ruas estabelecia o esteio dos relacionamentos sociais
experimentados pelos trabalhadores negros, constituindo a principal dimensão de sua
interação com os demais grupos da sociedade e com o poder político da cidade, numa
escala de proximidade bastante intensa. Assim, se no cenário citadino a visibilidade
dos mesmos grupos, particularmente o do escravo, comprova o desfrutar da liberdade
de ir e vir, a existência de margens amplas de sociabilidade delineia também a série
de contrapartidas às quais, nessas circunstâncias, estavam sujeitos. Senhores das
ruas, escravos e libertos enfrentavam a atuação das rondas e dos sentinelas dos
chafarizes, conviviam com a intervenção dos agentes da ordem pública em suas
questões internas, como também eram facilmente identificados pelos testemunhos de
seus delitos.
74
Como já foi discutido, depois do reconhecimento, as referidas terras estão no processo de
legalização, aguardando documentação.
92
A rua constitui o espaço do trabalho e do “ganha pão”. É nela que as relações
mercantis são concretizadas por esses habitantes, nesses espaços são instalados
elos e códigos de convivência. Chegam pela manhã, carregados de cestos com milho,
massa de acarajé e outros utensílios e distribuem pelo centro da cidade, próximo aos
bancos e ao comércio. À tarde, juntam o que sobrou e retornam a Tijuaçu. Esse
vaivém marca a dura luta travada por homens e mulheres que batalham não só pela
sobrevivência individual como também familiar. Percorrem o espaço da cidade, que
contrasta com o espaço de Tijuaçu - casas pequenas, humildes, com pouco ou
nenhum conforto. Roceiras e vendedoras perambulam continuamente sob as vistas
das autoridades locais e sobrevivem da venda dos seus produtos.
Tem muita coisa que a gente planta e vende, é gergelim, é milho, é fruta, é
verdura, a gente planta depois colhe e vai vender em Bonfim. (Entrevista
realizada pela autora com Maria Vítor, em 11 de jan. 2002, em sua residência
em Tijuaçu).
Na foto da página seguinte observa-se alguns vendedores de milho assado,
comercializando seus produtos pelas ruas de Senhor do Bonfim.
Foto, n° 5 - Vendedores de milho assado – área comercial de Senhor do Bonfim.
Fotografo: Jonas, 2002.
93
Mott (1991, p. 24), chama atenção sobre o comércio no período colonial,
afirmando que o comércio urbano ambulante, a varejo, de alimentos e pequenos
objetos era de domínio feminino e negro. Impedia-se que homens comercializassem
com “doces, bolos, alféloa, frutos, melaço, hortaliças, queijos, leite, marisco, alho,
pomada, polvilhos, hóstias, obréias, mexas, agulhas, alfinetes, fatos velhos e usados”.
Proibia-se, a exemplo do que ocorreu durante o reinado de D. José I, que
“estrangeiros, vagabundos ou desconhecidos recebessem licença para venderem
pelas ruas principalmente ‘toda sorte de comestíveis pelo miúdo como também vinhos
e aguardentes, e muitas outras bebidas’, assim como alféloas, obréias, melaço e
azeitonas” (MOTT, 1991, p. 25).
Outra proibição foi baixada em 29 de Setembro de 1744, uma Provisão que
proibia negros e negras de vender tecidos pelas ruas75. O referido documento
argumentava que tal postura, era útil e conveniente ao povo e principalmente ao
comércio, para o mesmo não ter nenhum tipo de prejuízo. Tal procedimento tinha
como objetivo principal a eliminação de qualquer tipo de concorrência aos lojistas. E é
provável que esses tecidos vendidos por negros e negras tivesse um preço inferior ao
dos que eram vendidos nas lojas.
A tradição de mercancia vivenciada pelas mulheres de Tijuaçu remonta um
costume da época colonial, ganhadeiras76 negras se dedicavam principalmente a
mercadejar diversos gêneros secos e molhados (REIS, 1986. p. 8.). “E lá iam as
vendedoras de mingau, aberém, acaçá, caruru, vatapá
e outras delícias. E
conversavam sofre fatos da terra” (REIS, 1986, p. 14). O espaço público era ocupado
por ganhadores e ganhadeiras, escravos libertos que disputavam esse espaço para
vender seus produtos. Os senhores e senhoras de escravos ganhavam com esse
comércio, pois parte do dinheiro adquirido por esses escravos era entregue ao seu
senhor. As mulheres brancas, mesmo pobres possuíam alguns escravos de ganho,
que vendiam produtos pelas ruas dos povoados ou cidades da Colônia.
75
76
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Códice 707, fl. 80-80v.
Ganhadores e ganhadeiras dividiam a soberania das ruas. Apesar de não participarem dos cantos,
uma instituição masculina, as mulheres faziam parte da rede mais ampla de trabalhadores africanos
urbanos. Cf. Reis (1993. p.25).
94
O comércio exercido pelas mulheres negras, livres e libertas dava uma certa
autonomia. Muitas vezes, com o dinheiro adquirido com a venda de seus quitutes,
compravam alforria de seus filhos ou de algum parente. Algumas negras
transformaram-se em exímias comerciantes, inseriram-se em associações de brancos
e ocuparam cargos administrativos nas mesas diretoras das confrarias. Tal posição
demonstrava importância social e, mesmo quando entre iguais, demonstrava
ascendência no seio da comunidade77.
Algumas mulheres negras, durante o período colonial, conseguiram constituir
fortuna vendendo seus produtos na rua. Amas-de-leite, domésticas, vendedoras,
usuárias, prostitutas, ladras, parteiras, feiticeiras e mais uma gama de atividades
foram desempenhadas pelas mulheres que conseguiram acumular pecúlio e usaram
de artimanhas para conseguir sua liberdade.
A possibilidade de mulheres escravas adquirirem bens parece se confirmar
em Tijuaçu, em relação à figura de Mariinha Rodrigues. Na memória de seus
habitantes esta aparece como uma mulher que trabalhou demasiadamente e que
conseguiu riquezas, deixando uma extensa terra para seus descendentes.
Nessa perspectiva do imaginário social sobre possibilidades e prosperidades
de mulheres negras, Mariinha Rodrigues é um exemplo dessa realidade. Ela faz-se
presente enquanto administradora e detentora de um certo patrimônio material. Mas
não foi somente nesse aspecto que essa mulher conseguiu se sobressair. Parece ter
chamado para si as responsabilidades políticas, organizacionais e econômicas da
comunidade. Assim os depoentes falam sobre o espírito empreendedor de Mariinha
Rodrigues:
Como naquela época aqui era só mato fechado, Mariinha Rodrigues foi uma
mulher que teve muitos filhos, e cada filho ela foi colocando em diferentes
espaços. Lá eles plantavam suas roças e construíram suas casas que
posteriormente hoje se transformaram em povoados e vilas (Fala de Valmir
dos Santos, entrevista realizada pela autora em 22 de out. de 2000, na
residência de Ilca, em Tijuaçu).
Dizem que ela foi à primeira pessoa que veio residir aqui em Tijuaçu. Hum!
Era até fazendeira, mais a casa era de paia (palha) risos. Fazendeira de gado,
77
Sobre a prosperidade de algumas mulheres forras no século XVIII e que conseguiram ascender na
camada social cf. Furtado (2001).
95
ela tinha gado. É falam, também, que ela teve vários filhos, né? E que cada
filho ficou com um pedaço de terra, um em Barreiras, outro no Macaco, outro
no Quebra Facão. Entre estes filhos tem Astácio Rodrigues que era o avô de
Dona Anísia, é o Cidão, o Joaquim Peba (Entrevista realizada pela autora com
Bernardina, em 08 de ab. de 2001, em sua residência em Tijuaçu).
A visibilidade política, social e econômica, conquistada por essas mulheres,
mantém-se através de outras e de seus diferentes papéis. Com a simplicidade que
lhes é inerente, somada à humildade, as mulheres da comunidade negra rural de
Tijuaçu têm conseguido muitas conquistas, possibilitando uma melhoria da vida
familiar. “São as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de
vida e não absolutamente como autonômatas, mas criando elas mesmas o movimento
da história”.78
2.2 Personagens e trajetórias: contatos e oralidade
Na perspectiva de direcionar o olhar sobre essas mulheres e seus papéis,
pesquisamos suas atividades no tempo e no espaço. Quem são essas mulheres, o
que fazem e por que conquistaram seus espaços? De onde vem essa visibilidade
enquanto vendedoras de iguarias? Essas questões serão respondidas no decorrer
desse capítulo.
2.2.1 Heroína da vida, percussionista da alegria – Marinalva Silva Santos
A primeira mulher a ser apresentada no rol das que se destacam em Tijuaçu
pelas diferentes funções que exerce é a percussionista Marinalva Santos da Silva,
conhecida por Dinha. Tem 46 anos de idade e na luta pela sobrevivência assume
diferentes papéis a exemplo de merendeira (faz a merenda da escola do povoado
78
Cf. Perrot (1988. p. 187).
96
Quebra Facão), lavradora e vendedora de milho assado. Reside numa pequena casa
no povoado de Quebra Facão (cf. mapa da página 38), localizado cerca de 1,5 km de
Tijuaçu. Mulher forte, tanto fisicamente quanto interiormente, traz nas mãos e na pele
as marcas do trabalho árduo da roça e do sol escaldante do sertão. A vida dura e
recheada de dificuldades não conseguiu abater sua alegria e felicidade. Essa postura
ficou evidente e não passou desapercebido nos vários encontros que tivemos com a
mesma. Nesses eventos, mostrou-se muito feliz e satisfeita com a sua vivência
cotidiana. Desprendida de qualquer ambição, traz em seu interior a alegria e a
descontração.
No Samba de Lata, Marinalva é uma das mais alegres do grupo. Bem
disposta, está sempre com coragem para bater lata e dar início ao samba.
Percussionista dessa manifestação cultural desde os oito anos de idade, marca a
cadência do samba batendo com as mãos a lata de zinco (cf. foto n. 6, p. 107). Mãos
calejadas da roça, mãos que mexem a terra, que desembalam o milho, que preparam
a merenda e que dão ritmo ao Samba de Lata. Com a sua voz aguda, puxa os versos
e contagia a todos com sua alegria. Uma das músicas mais cantadas pelo grupo
chama-se “Tatu Verdadeiro”. Quando eles entoam esses versos à animação é
indescritível:
Tatu verdadeiro
Fui no mato caçar
Com o meu cachorro perdigueiro
Cachorro latiu (falou) acuado
Em cima do formigueiro.
Marchei pra lá era um tatu,
Tatu, tatu verdadeiro
Matei tatu e dei tatu
Mandei pro Rio de Janeiro
Ta com setenta e cinco anos senhor (a) fulano (a)
E ainda tem tatu no fumeiro!
97
Enveredar pelo mato, caçar tatu com cachorro perdigueiro e se alimentar da
caça faz parte do cotidiano de alguns habitantes de Tijuaçu. Quem é o cachorro
perdigueiro? Aquele que acompanha o caçador nas suas aventuras, levando-o até sua
presa, guiando o caçador a chegar à sua caça. Pequenas caças, além da agricultura
constituem meios de sobrevivência da população de Tijuaçu. Quando os referidos
versos são cantados, a alegria transborda e o samba entre num ritmo acelerado.
Interrogados sobre a autoria do referido canto, os depoentes responderam que foi
passado pelos mais velhos sambistas, sendo bastante antigo. No terceiro verso,
alguns dizem latiu, outros falam falou, e no penúltimo verso, eles sempre falam o
nome da pessoa homenageada, o dono da casa, da festa, ou alguém de certa posição
que esteja presente. E por que Rio de Janeiro? Não é somente este canto que
menciona esta cidade, outros também fazem referência a ela. A menção ao Rio de
Janeiro tem a ver com a migração de baianos desde o final do século XIX e início do
XX para a capital do Brasil. Tal migração vai perdurar até os anos sessenta. Com a
industrialização de São Paulo, nos fins dos anos cinqüenta, polarizou-se o eixo
migratório para São Paulo e Santos.
Na foto abaixo observa-se a apresentação do Samba de Lata, tendo ao centro
a percussionista Dinha, mostrando seus dotes artísticos. Com muita garra ela
consegue dar ritmo ao samba levando o grupo à animação e a alegria é contagiante.
Nesse momento, ela tira os versos e os outros componentes respondem em coro.79
79
Segundo Reis (1993. p. 12), dentro da tradição rítmica africana, havia o “puxador” do canto, a quem
os demais respondiam em coro.
98
Foto n. 6. Grupo do samba de lata, tendo ao centro Marinalva Santos da Silva. Apresentação realizada
no povoado de Quebra Facão.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003.
Marinalva dos Santos Silva, segura a lata com uma mão sobre o tórax,
enquanto bate a lata com a outra. Para conseguir que a lata emita som, é necessário
que tal instrumento esteja acoplada ao busto e que a pessoa que toca tenha
disposição e força para dar início ao samba. Dinha (como é conhecida na região),
consegue emitir um ritmo que marca o Samba de Lata. As mulheres reúnem-se, como
elas costumam falar: “ao redor do terreiro” e começam a sambar. Na roda de samba
todos participam, homem, criança, todos quantos queiram participar. O samba não tem
hora para findar, pois quando um se cansa têm outros para dar continuidade.
No samba só tem uma lata. A maioria das pessoas que dança o Samba de
Lata são mais mulher. Tem mais mulé do que home e naquela época tinha
home dançando (Fala de Marinalva dos Santos Silva, entrevistada pela autora
em 10 de jan. de 2002, em sua residência no povoado de Quebra Facão).
99
Em tempos anteriores, os homens faziam-se presentes em maior número,
tinham uma participação mais significativa, mas sempre a participação predominante
era das mulheres. Hoje, o grupo de mulheres do Samba de Lata deseja que pessoas
do sexo masculino participem com mais intensidade, pois a participação masculina é
reduzida.
Agora que a gente tá querendo botar aí mais uns dois home, pra vê se a coisa, se a
gente continua. Já contratamo esses home, mais dois pra colocar porque tem mais
mulé de que home e naquela época tinha muito home dançando. Um de meus tio que
dançava, ele dançava só no dedinho do pé, o samba. Esse aí já morreu, né? (Entrevista
realizada pela autora com Marinalva dos Santos, em 10 de jan. de 2002, em sua
residência no povoado de Quebra Facão).
Tá vendo o Samba de Lata, para mim tem grande valor. A cultura da gente
aqui e nós quer fazer uma cultura aqui no Lagarto (antigo nome de Tijuaçu),
da gente mesmo. Esse samba é um sonho, é um ouro para gente. O Samba
de Lata é hoje muito conhecido (Entrevista realizada pela autora com
Marinalva dos Santos, em 10 de jan. de 2002, em sua residência no povoado
de Quebra Facão).
Os componentes do Samba de Lata aprenderam a valorizá-lo e têm
consciência de que para dar continuidade a essa manifestação cultural, é necessário
que algumas inovações sejam feitas, como a entrada de um maior número de homens
na roda de samba, conforme acontecia anteriormente. Essas inovações contribuíram
para a continuidade dessa tradição, que tem permanecido pela inserção de novos
elementos80. Essas inserções são necessárias e importantes para sua continuidade.
Marinalva, juntamente com os componentes do Samba de Lata, trazem para a
população a alegria, o lazer e a descontração. Dessa forma, a cultura herdada dos
seus antepassados está representada num momento de união, de alegria e de
solidariedade dos seus componentes. Nesse momento, todos se reúnem para mostrar
seus dotes festivos e compartilhar a alegria. A dança, o ritmo e o gingado dos
participantes do Samba de Lata deram continuidade aos valores culturais herdados
dos ancestrais africanos, permanecendo através dos costumes e das manifestações
culturais.
80
Segundo Williams (1979. p. 119), a maioria das versões de “tradição” são radicalmente seletivas. De
toda uma possível área de passado e presente, numa cultura particular, certos significados e práticas
são escolhidos para ênfase e certos outros significados e práticas são postos de lado, ou
negligenciados.
100
2.2.2 Da arte de contar histórias a tecedora de significados – Maria Anísia
Rodrigues
Outra figura de destaque dentro desse perímetro quilombola é Anísia
Rodrigues, uma das mais antigas moradoras do lugar, exímia contadora de histórias
sobre a localidade. É referência para aqueles que querem conhecer a história de
Tijuaçu. Na sua tranqüilidade e simplicidade de mulher sertaneja, relatou histórias
sobre essa comunidade e buscou, no fundo da memória, o nome dos seus avós, pais,
tios, tias, filhos e netos. Entre uma lembrança e outra, episódios vão sendo contados
sobre sua família e sua vida, desde o seu nascimento até o momento atual: “O meu
nome é, é, é Maria Anísia Rudrigue”, assim a mesma se apresentou:
A minha idade é 86 ano81. Nasci no ano de 1917, um dia de domingo, do dia
do Santo Antônio – 13 de junho. Eu nasci meio dia em pino, minha mãe dizia,
eu choro quando penso assim na palavra que minha mãe disse: Não chore
não.
Ela disse não foi com orgulho não, ela disse meu pai, minha fia, ela disse
meu pai, meu pai malcriado você não vê naquele Arto (Alto)82 eu nasci ali
naquele localzinho. Eu nasci ali. Mas naquele tempo tinha uma tia minha que
vendia cachaça e eles tudo ia beber na casa dessa, da minha vó Jusefa. Aí a
minha vó era parteira, tava me pegando quando eu fui nascendo, uma tia dela
chegou assim, chamavam ela Zeu, Zeu, Zeu. Os menino tão brigando, tudo
brigando tão se matando, ela disse com a irmã dela: olha Aliça repara aí que
eu vou apartar isso, quando ela disse assim mamãe espiou, mamãe, eu já
tinha nascido em cima da cama de vara, caminha de vara minha fia, ela
disse: que olhou assim, quase caí, olhou assim,eheheheheh a bichinha é
feme, a bichinha se criar, se cria sem sorte, eu tenho um nervoso disso. Oh,
mamãe pra que, ela me contou depois de grande. Oh! minha fia, eu já li disse,
como é difici essa palavra eu, já vivi até hoje, minha fia, sempre como mermo
é escassa, mermo minha sorte. Agora logo agora, em dezembro não tive
abonu. Minha fia, tenho dois neto: essa menina aí, uma fia sem marido com
dois neto, já ficando homem, agora mermo vai fazer como é mermo, a
81
Em 2002, data da entrevista, d. Anísia tinha 86 anos de idade, no dia 13 de junho do ano em curso
completa 90 anos, mas continua lúcida.
82
Alto Bonito.
101
primeira não sei o que é, sim a primeira 16 anos ele (Entrevistada pela autora
em de 26 abr.de 2002, em sua residência em Tijuaçu).
Anísia destrinchou sua história de vida, contando episódios ouvidos sobre o
seu nascimento. Ao narrar sobre estes se emocionou e diz sentir uma tristeza
profunda ao rememorar algumas lembranças. “Os narradores gostam de começar sua
história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que
vão contar a seguir” (Benjamin, 1987, p. 205). Anísia, narrou com muita veemência as
histórias ouvidas sobre suas vivências passadas. Essa “contadora” de histórias relatou
o que sua memória guardara e selecionou o que ouviu dos mais velhos, lembrança e
esquecimento são mecanismos da memória. Assim, a motivação para narrar consiste
precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos: recordar e
contar já é “interpretar” (PORTELLI, 1996, p. 60).
A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem
o significado à própria experiência e identidade, constitui por si mesmo o argumento, o
fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse uma
fastidiosa interferência na objetividade factual do testemunho quer dizer, em última
instância, torcer o significado próprio dos fatos narrados (PORTELLI, 1996, p. 60-61).
Com idade de 86 anos (na data da entrevista), Anísia passa os seus dias,
sentada à porta de sua casa, olhando para o horizonte relembrando as histórias
ouvidas e as experiências vivenciadas. Constantemente é solicitada pela vizinhança
ou por pesquisadores para narrar histórias sobre Tijuaçu. Esse exercício de memória
tem possibilitado a rememoração e contribuído para que sua mente esteja sempre
ativa. Tal exercício lhe dá mais vitalidade, pois as impressões estão sempre em
evidência, trazendo para o presente os vários episódios de que foi testemunha. Assim,
as lembranças são sempre reativadas, não se perdendo no esquecimento. Segundo
Ecléa Bosi,83 o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a
qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar as águas
revoltas do presente, alargando suas margens. Não porque tenha uma especial
83
Cf: Bosi (1994. p. 82-89). Discute sobre a referida questão comentando: “Hoje a função da memória é
o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora
da civilização grega ela era vidência, êxtase. O passado revelado desse modo não é o antecedente
do presente, é a sua fonte”.
102
capacidade para isso: é seu interesse que se volta para o passado, que ele procura
interrogar cada vez mais para ressuscitar detalhes, discutir motivos, confrontar com a
opinião de amigos ou com velhos jornais e cartas em nosso meio.
O entrevistado dá conta de suas experiências subjetivas a respeito de
acontecimentos que tenha visto, escutado ou participado. Por sua vez, o
entrevistador deve estar atento ao propósito de não conduzir a entrevista aos
seus fins e também para os aspectos dados como importantes pelos
entrevistados, que podem ser indicadores do seu grau de compromisso com
a situação. Muitos fenômenos históricos são produzidos a partir de
compromisso com a situação. Muitos fenômenos históricos são produzidos a
partir da oralidade, veículo que nos ajuda a entender a importância do
acontecimento. Aliada ao vídeo, a palavra foi transformada em ato, dando às
declarações, aos discursos e as entrevistas um cunho que data os nossos
tempos de um presente pleno de “História” (DANTE, 1992). 84
Sob a ótica da oralidade, o historiador tem a possibilidade de estudar o
presente e sua dimensão, como também conhecer os diferentes universos da
experiência humana. A história de Anísia dá possibilidade de se ter o conhecimento
das experiências subjetivas, aquelas de que ela ouviu falar e outras que foram
vivenciadas. Nessa perspectiva, a entrevistada retoma suas vivências e reporta às
suas relações familiares e à sua história de vida e vai mapeando cada um desses
episódios com determinação e clareza, buscando na memória essas vivências, que o
momento retoma com muita perspicácia. Assim, a memória torna as experiências
inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer o passado até o presente, recria o
passado. Graças a essa capacidade da memória de transitar livremente entre os
diversos tempos, o passado torna-se verdadeiramente passado e o futuro, isto é,
dessa capacidade da memória brota a consciência que os humanos têm. Esta por sua
vez, permite compreender e combinar, de muitos modos, as fases em que se divide o
tempo, possibilitando, por exemplo, perceber “o passado diante de si”. Anísia continua
contando sua história, que fica a mercê de sua memória:
O nome do meu marido era Sinfrone Rudrigue. Nós era Primo. Primo, minha
fia. Quase que a gente não casa no civil, o padre não deu trabalho, mais o civil
ainda veio uma carta lá alegando que nos era irmão. A mãe dele era minha tia.
84
Dante (2001. p. 225).
103
Era minha tia e a mãe dele, do meu marido, chamava Ju, Jusefa, e e a minha
vó e a vó dele também daqui do Lagarto da mãe Jusefa.
Sim Rudrigue, o juiz olhou prá nós, peraí parece que vocês são irmão nu nu
vai dar certo aqui agora, eu eu dei pra chorar, minha fia, lá. Não dá certo não,
que aqui ta parecendo que vocês são irmãos, né não nos não somo irmãos,
minha duas vó, era Jusefa, Jusefa as minhas duas vó, a minha duas vó e o pai
dele Pedro e e meu pai Pedro. O mermo nome foi um gancho destinado,
minha fia.
O nome da minha mãe é Juliana Rodrigues. E a dele Timótia só tem uma
deferencinha essa. E a mãe dele se chamava Jusefa. A vó dele Jusefa e a
duas vó dele Jusefa, minha vó Jusefa. A mãe dele Timótia. É e a minha mãe
Juliana, Juliana. Uma vó é Josefa e a outra avó Zidora. O avô Antônio Militão
do Pindobaçu, minha vó era sotera, a minha vó no rio do Aipim, era sotera e
pariu desse cara e diziam minha mãe era branca, branca assim como você
mermo. Branca, branca. O pai dela, o cara diziam que era o Antônio Militão,
não, veio minha famia como é cismada.
Eu tive seis irmão e cinco ou sete irmão e seis, isso. Eu, graças a Deus, tem
três ano que morreu um, o derradeiro, só tem eu de irmão, mais tinha Adilon
que é fio de meu pai, é irmão né, só é fio de meu pai quando casou era viúvo.
Adilon, Bastião, José, Ana, Diolina, Amisa. Todos Rudrigues, e o Manel, o
Manel que morreu pequenininho mais era irmão de sangue, o Manel.
Eu tive dezesseis. Dos meus fios, olha eu tive 16, nasceu seis morto que nu
nu nu era só era só aquela, não batizou, não batizou, e dez que batizou, meus
fio é: José Rudrigue, Mila Rudrigue, Rodrigo Rudrigue, Erico Rudrigue,
Lourival Rudrigue, Margarida, você viu por lá de lá que é a rezadeira daqui,
Margarida Rudrigue, Maria Márcia e Raimundo, foi dez fio.
O Lele, Elias Rudrigue, Raimunda Rudriigue. Era criança, ô minha fia, quando
eu era nova como esta aí, é a nova inté, olha fia, se eu contar, você não diz
assim, você não diz que é mentira, porque você sabe quem é eu por dentro.
Olha eu só vadiei inté o dia vinte que interou, agora não sei como essa mulé,
essas mulé de hoje é por isso que elas não vive com os marido. Porque elas é
só em festa, eu nunca fui em uma festa e nem nunca pedi ele nem um nem
outo olhe ele ta fazendo treze ano de morto, êta ta fazendo treze ano agora no
dia vinte nove, eu andei muito. Vadiei muito, fazia, brincava roda, não gostava
de brincar de dança, não pegava as coisa de dança e fazia trucia, não gostava
de dança, agora roda eu gostava, e reza eu aprendi, eu tava dizendo toda
reza eu aprendi toda reza, minha fia. Eu tava dizendo a Margarida se fosse
mode de uma pessoa dizer assim, reza aí que é isso e aquilo, eu sei mais de
cinqüenta pedido, ele fala aí, a Mariana também é que a minha fia saiu aí,
Bendito aprendi muito era muito farrista, pra vadiar, era muito farrista.
(Entrevista com Anísia Rodrigues realizada pela autora em 24 de ab. de
2002).
Como uma boa memorialista, Anisia narrou as histórias sobre sua família,
citando o nome de toda a prole e ainda investiu contra o comportamento feminino
atual. São lembranças significativas que desenrolam fios de meadas diversas,
104
constituindo pontos de encontro de vários caminhos. Chamando a atenção, com igual
força para a sucessão de etapas da memória, que é dividida em marcos, pontos onde
a significação da vida se concentrou: nascimento, casamento, filhos, religiosidade,
festas e vida cotidiana. A sucessão de etapas no trato do passado é patente na
memória de dona Anísia. As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em
cada um dos seus membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e
diferenciada. Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam
vínculos difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se
desagregou o núcleo onde sua história teve origem (BOSI,1994, p. 423).
A rememoração também significa uma atenção precisa ao contemporâneo,
particularmente a essas estranhas ressurgências do pretérito no presente, pois não se
tratou somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o atual. A
fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente.
Nessa perspectiva, dona Anísia busca o passado, expressando diferentes passagens
e interferindo sobre o presente.
Em seus depoimentos esses sujeitos sociais mostram histórias de vida, que
ao serem buscadas, se transformam em rastros das suas existências em
lugares específicos, demarcando suas presenças e revelando uma memória
familiar sobre suas experiências de vida (AZEVEDO, 2001, p. 358).
Segundo Bosi (1994, p. 90), a sensibilidade de narrar é restrita àqueles que
transformam lembranças em narrativas emocionantes, transformando-os em artistas
do teatro da vida, levando o ouvinte a uma atenção dimensionada pelos vários
episódios narrados. Narrador e
ouvinte viajam juntos nas histórias contadas. E
acrescenta:
O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no
trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos
principados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das
coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da
Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim
transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (BOSI, 1994, p. 90).
105
Assim, Anísia com sua simplicidade e humildade, moradora da zona rural
destrincha
seu
passado,
buscando
na
memória
os
episódios
vivenciados,
transformando as histórias contadas em narrativas emocionantes.
2.2.3 Guerreiras da comunidade: Dalva Odilon Santana e Ilca dos Santos
Ilca e Dalva - guerreiras da comunidade, não precisaram submeter-se a uma
eleição para serem porta-vozes e representantes de Tijuaçu. Assumiram tal papel de
forma natural em decorrência das circunstâncias que vivenciaram. Essas duas
mulheres, com astúcia e perspicácia desempenharam em Tijuaçu um trabalho de
organização e conscientização dos moradores. Representantes, respectivamente, da
Fazenda Alto e do distrito de Tijuaçu – são mulheres lutadoras, que estão presentes,
encabeçando as reivindicações da comunidade. Com garra e muita vontade, elas
buscam melhorias para o seu território. Dalva conta sua história enquanto mãe,
mulher, professora leiga, roceira e lutadora em prol dos benefícios da Fazenda Alto
Bonito:
Minha fia, nesses 58 anos de vida, as coisas era mió pra mim. Eu ensinei
esses minino, ensinei os cunhado que não sabiam ler. Naquela época, há 50
anos atrás, eu saí no 2º ano primário, mas não era essa leitura de agora. Eu
sabia muito há 50 anos atrás. Essa luz aqui quem puxou fui eu.
No ano de 1973, eu comecei a cadastrar as pessoas que moram na Fazenda
Alto. Nós éramos todos unidos, andava na casa das outras. Digo, minina, eu já
tô bem cansada e já tenho muito fio de cabelo branco. Esse prédio aqui só foi
construído por que eu pedi o prefeito. E de lá pra cá tem um monte de gente
estudando. O tanque também foi através de mim que ele foi construído
(Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon de Santana, em 11 de jan.
de 2002, em sua residência, Fazenda Alto Bonito).
Em sua simplicidade, tanto Dalva quanto Ilca enveredaram pelo caminho do
bem-estar da comunidade, procurando suprir algumas lacunas que o poder público
deixou em aberto, na tentativa de trazer para a população os benefícios que lhes são
de direito. Para que estes cheguem até a comunidade, é necessário que alguém faça
106
o trabalho de intermediação e que tenha disponibilidade de fazer peregrinações nos
diferentes setores públicos. Nessa convivência com o grupo e fazendo parte deste,
elas conhecem as necessidades mais urgentes e se empenham para que estas sejam
atendidas. Sem muito alarde, com humildade e muita disposição, conseguem suprir
algumas carências da comunidade. Dalva propõe-se a dividir um pouco do
conhecimento adquirido, ensinando as pessoas do povoado do Alto Bonito a ler,
assumindo também o papel de professora. No depoimento abaixo, percebe-se a
trajetória de Ilca frente aos problemas da comunidade e a forma como foi construindo
a sua participação no meio social, politizando-se e buscando melhoria de vida para os
moradores de Tijuaçu:
Aos poucos eu fui tomando consciência da necessidade de trabalhar na
Associação, pois se a gente não participar e não lutar pelos nossos direitos, as
coisas não andam. Assim, venho participando de várias reuniões tanto aqui
quanto em Salvador sobre a situação dos remanescentes de quilombos.
Todos os encontros que tenho ido e quando tem as reuniões da Associação
eu passo para o pessoal o que foi discutido. É tanto que o pessoal da
Fundação Palmares quando chega aqui em Tijuaçu procuram logo eu e
Valmir. Nessa caminhada nós estamos tentando melhorar a vida dos
habitantes de Tijuaçu e a nossa vida também (Entrevista realizada pela autora
com Ilca dos Santos, em 28 de out. de 2003, em sua residência em Tijuaçu).
No depoimento acima, percebe-se uma postura politizada da informante. As
circunstâncias a fizeram líder da comunidade, o que a fez participar de vários
encontros e discussões sobre a temática quilombola. Nessa postura política, Ilca tem
assumido diferentes papéis na Associação Quilombola e Adjacências. Em anos
anteriores, assumiu o posto de secretária e no biênio 2005-2007, assumiu a vicepresidência. Recentemente, tem articulado, juntamente com o presidente da
Associação, a administração desta, dando continuidade aos trabalhos desenvolvidos
por seus antecessores. Sua postura política tem como precedente a conscientização
da população e o engajamento desta em busca dos seus direitos. Nessa perspectiva,
Ilca tem consciência do seu trabalho e de sua função, pois sabe que essa luta não é
somente sua, mas de todos os residentes em Tijuaçu. Clama para que os moradores
participem das discussões e que fiquem unidos em prol do fortalecimento da
Associação como órgão representativo da comunidade.
107
Essas duas mulheres, sem alarde, têm conseguido atingir seus objetivos.
Dalva, na Fazenda Alto, obteve junto à Igreja e aos poderes públicos melhoria para a
localidade, conseguindo a construção da escola e de um tanque que abastece a
localidade, como já foi comentado anteriormente. No momento, luta para que seja
construída uma Igreja Católica no povoado. Sua ação e luta para construção da Igreja
são antigas como sua preocupação em oferecer uma preparação religiosa aos
habitantes da Fazenda Alto. Para Dalva, a orientação religiosa é urgente na
comunidade, pois, segundo a depoente, temendo a Deus, a população vai se dedicar
mais à Igreja e às suas obras, o que pode diminuir o consumo de álcool, que é uma
das grandes preocupações dos pais residentes no povoado Alto Bonito, em Tijuaçu e
nos demais povoados da região. Nesse sentido, Dalva vem se movimentando,
juntamente com a professora da localidade, para que os órgãos públicos e outras
pessoas da comunidade ajudem na construção da referida igreja.
Doei esse terreno para a construção do prédio, lutei também para construção
do tanque para armazenar água. Quando o padre fez o tanque, disse: “o
tanque é aqui no terreno do seu Manoel (esposo de Dalva), ele vai ficar como
responsável, distribuindo água para vocês direitinho” (Entrevista realizada pela
autora com Dalva Odilon Santana, em 11 de jan. de 2002, em sua residência
na Fazenda Alto Bonito).
Percebe-se que as melhorias estão chegando em passos lentos ao distrito, as
mudanças ainda são bem tímidas, mas para a população essas inovações têm um
grande significado. É a escola que chegou, é o tanque que foi construído, é a
perspectiva da construção da igreja católica, são as máquinas de costura e outros
benefícios, que vão mudando o perfil do território e criando alternativas de trabalho e
de melhoria de vida. Apesar dos vários entraves, Dalva e Ilca, com paciência e
insistência, continuam o seu percurso para que outras reivindicações sejam atendidas.
Com essa postura, construíram uma referência dentro da comunidade. São as
mulheres tijuaçuenses conquistando seu espaço e enfrentando sua luta diária.
108
2.2.4 Lembranças sempre presentes de um tempo em continuidade – a alma do
samba – Genoveva e Joana Rodrigues
Outra figura de destaque que viveu em Tijuaçu foi Genoveva, que já faleceu.
Apesar de não mais conviver na comunidade, é personagem sempre lembrada como
iniciadora do Samba de Lata. Quando os habitantes falam do samba, ligam de
imediato à presença de Genoveva.
As pessoas aqui do Lagarto faziam aquela rodona aí essa muié chamada
Genoveva começava a contar história, a bater lata e as minina começando a
sambar. Que essa rama que participava, muitas delas já morreram. O Samba
de Lata foi feito pela Genoveva, foi ela quem formou o Samba de Lata aqui em
Tijuaçu (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon Santana, em 22 de
jan. de 2001, em sua residência fazenda Alto Bonito).
O depoimento acima abriu perspectivas sobre o início do Samba de Lata e as
circunstâncias do seu surgimento. Contam que o samba teve início quando Genoveva
estava desempenhando suas atividades domésticas, socando alimentos no pilão,
juntamente com outras pessoas. A mesma começava a contar histórias e a cantar,
fazendo a cadência com o pilão e os demais presentes acompanhavam com palmas,
sambando e cantando.
Joana, filha de Genoveva, considerada exímia sambista é personagem que
se destaca nas apresentações do Samba de Lata. Pelo seu jeito de dançar e de se
vestir, sempre com um turbante na cabeça, tem dado continuidade a essa tradição
iniciada por sua mãe. Joana veste-se de branco, põe um torço na cabeça, colares no
pescoço e vai fazer o que mais gosta – sambar. Para descontrair, ela gosta de beber
goles de pinga, o que aborrece alguns participantes, pois a bebida deixa-a muito
alegre. Na roda do samba, Joana mostra seus dotes artísticos, participando
intensamente, cantando e sambando. Reside no povoado Alto do Bonito,
esporadicamente vai à Tijuaçu, onde reside sua filha. Abaixo a foto de Joana com sua
fisionomia cansada de mulher sofrida, envelhecida pela dureza da vida e ressecada
pelo sol do dia-a-dia.
109
Foto n° 7 - Joana. A sambista
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
2.2.5 O canto a serviço de Deus : Valdelice da Silva
Mas nem só de samba vive a população de Tijuaçu. A religião católica, seus
rituais e seus santos também estão presentes. As mulheres também marcam
presença dentro dos rituais da Igreja Católica. Valdelice da Silva, mais conhecida por
Detinha, além de participar do Samba de Lata e da Associação de Moradores, também
zela pela Igreja de São Benedito e cuida dos preparativos para os festejos do referido
santo. Tal função constitui um trabalho voluntário, que segundo a depoente, é
realizado com muito prazer e dedicação.
Esse zelo pela igreja é uma vontade minha, é espontâneo. Porque eu gosto de
ver as coisas arrumadas. Só sinto que por sermos negros as autoridades não
nos dão a devida atenção. Quando vejo as ruas sem calçamento, tudo
desarrumado, penso que as autoridades poderia ter cuidado, e aqui é tudo
largado. Tá vendo essas árvores fui eu que plantei, gosto de ver minha rua
organizada. Tá vendo aquelas árvores perto da Igreja, também fui eu que
plantei. Gosto muito de planta (Entrevista realizada pela autora com Detinha,
em 02 de nov. de 2001, em sua residência em Tijuaçu).
110
No seu discurso, Detinha tem consciência da pouca assistência que as
autoridades públicas dão ao distrito e atribui tal descaso ao fato de a população de
Tijuaçu ser predominantemente negra, ou seja, ao preconceito racial. Mesmo
enfrentando tal situação, procura fazer o possível para viver melhor no seu espaço.
Consciente de que não pode esperar somente pelo poder público, vai criando
perspectivas de mudança para solucionar algumas questões que ela juntamente com
a população têm condição de resolver.
Nessa caminhada, ela tem inovado com algumas ações, como a criação do
coral da Igreja. Com o objetivo de embelezar as celebrações (já que os padres vão
para Tijuaçu periodicamente), ela mesmo, sem nenhum estudo sobre música, mas
apenas com sua voz e boa vontade, criou o coral que acompanha as missas e as
diferentes atividades da Igreja. O coral é formado, em sua maioria, por adolescentes
moradores da comunidade.
2.3 A arte da sobrevivência
O trabalho desempenhado por essas mulheres em diferentes setores, tem
contribuído para manter acesa a chama da fortaleza, da coragem e do enfrentamento.
Elas atuam no campo político, social, religioso e econômico, incorporando mudanças
na comunidade. Suas narrativas apresentam episódios do cotidiano e de suas
vivências. Com astúcia de narradoras, evidenciam seus costumes, sua religiosidade e
seu modo de vida. Não têm meias palavras, dúbias interpretações, falam realmente o
quê e como sentem. Assim, a narração constitui a própria vida do narrador. É através
de sua fala que se toma conhecimento da sua visão de mundo, dos seus desejos,
suas decepções e suas esperanças. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas
maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade
de quem as relata (Benjamin, 1987, p. 205). Toda narrativa, no entanto, possui uma
dose, maior ou menor, de criação, invenção, fabulação, isto é: uma dose de ficção
(AMADO, 1996).
Aqui e ali se percebe a presença dessas mulheres nesse espaço, com suas
111
funções delimitadas pelas vivências e necessidades cotidianas.
Outra preocupação inerente às mulheres tijuaçuenses diz respeito à limpeza
da casa e principalmente das panelas, como se observa na foto da página seguinte.
Mesmo com toda história da falta de água que sempre acompanhou o distrito, a
população sempre esteve atenta à limpeza de suas casas e principalmente em arear
os seus alumínios. É costume entre as donas de casa de Tijuaçu capricharem no
brilho de suas panelas e de outros utensílios. É um orgulho verem seus alumínios
brilhando como um espelho e expostos no quintal ou na porta de casa para secar.
Antigamente desempenhavam esse trabalho com produtos de limpeza da região,
esfregavam as panelas com areia fina (encontrada na região) e bucha vegetal (muito
encontrada nas várias roças). Hoje, elas aream seus alumínios com sabão e esponja
de aço compradas nos supermercados. A questão do arear as panelas é muito comum
em outras regiões do Brasil, principalmente entre as populações mais pobres. Os
alumínios brilhando constituem um prazer para essas donas-de-casa. É costume
reservar um dia da semana para executar o referido trabalho.
112
Foto n° 8 - Mulher areando alumínio.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
Essas mulheres são construtoras da história de sua comunidade. Em seus
diferentes papéis, consolidaram um viver recheado de trabalho, lazer, devoção e
solidariedade. A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e
atribuem significado à própria experiência e à própria identidade constitui por si
mesmo o argumento, o fim em si. Essas personagens, na sua dinamicidade
simplificada, trazem para a população o despertar de um viver mais digno, buscando
caminhos para atender a população nas suas necessidades básicas. Nessa
perspectiva, essas mulheres conquistaram diferentes espaços e são reconhecidas
pela luta em prol da comunidade. As funções femininas vão se alargando, dando
continuidade ao que foi iniciado por Mariinha Rodrigues.
A comunidade negra rural de Tijuaçu tem dinamizado o seu cotidiano, tendo
como exemplo a luta e o empenho das mulheres como foco principal. Percebe-se que
há um movimento, uma vontade de que os benefícios cheguem a Tijuaçu e as
113
condições de vida da população melhorem. Isso fica evidente nas ações
desempenhadas por essas moradoras.
Na encruzilhada de suas funções elas inventam e reinventam, improvisam
para dar conta das tarefas do dia-a-dia. Plantam, capinam, colhem, cortam com o
machado, usam a enxada, mas também cozinham, lavam e passam. Faz parte de
suas tarefas gerar, parir, cuidar e alimentar os filhos. Atividades que se acumulam
ultrapassando as barreiras da noção de “leves”, ganhando uma densa complexidade,
mas possível para essas mulheres, que na labuta do cotidiano, na luta pela
sobrevivência tornam-se fortes e independentes (PINTO, 1999, p. 118).
Na arte da sobrevivência, uma das alternativas utilizada é o tradicional
trabalho nos pequenos roçados – uma herança dos primeiros moradores que foi
passando de geração a geração. Esses afro-descendentes plantam principalmente
milho, feijão, melancia, maxixe, batata-doce, abóbora, umbu, feijão de corda, andu,
mandioca, mamona e palma. A palma é cultivada para ser vendida aos fazendeiros,
que a utilizam como ração para o gado na época da estiagem. A produção é feita em
pequena escala e tem dois destinos, uma parte atende suas necessidades de
subsistência e outra parte é vendida na feira de Senhor do Bonfim e no próprio
território. São produzidas frutas como caju, manga, banana, pinha, maracujá, cajá,
sirigüela, entre outras. A agricultura de subsistência é predominante, até porque as
condições financeiras não permitem uma produção em grande escala.
Outra forma de sobrevivência são as atividades externas realizadas nas
fazendas
vizinhas:
trabalho
sazonal,
contratados
permanentes,
diaristas.
A
instabilidade econômica a que estão sujeitos os habitantes de Tijuaçu direciona muitas
famílias e jovens a emigrar para outras cidades e regiões com esperança de melhores
dias. Outra fonte de renda é a aposentadoria recebida pelos mais velhos.
As propriedades rurais são constituídas por pequenas roças que possuem
construções de palhas e taipa e, raramente, uma casa de farinha. Outras apenas
possuem um terreno sem nenhum tipo de construção e somente a terra para plantar. A
maioria dos proprietários desses pequenos lotes reside no distrito de Tijuaçu ou em
povoados próximos e deslocam-se até a roça para plantar ou colher seus produtos.
114
Geralmente essas roças estão bem próximas de suas residências. Mulheres e
crianças, além de homens, trabalham na roça. Na época da plantação e da colheita,
todos dedicam-se a essa atividade.
Outro meio de subsistência é a criação de animais como: galinhas, porcos
(criados para o consumo familiar e comercialização), gado (criado apenas por alguns
moradores), caprinos e perus. Muitas vezes, trabalham como empregadas domésticas,
lavadeiras e faxineiras. Homens e mulheres vendem milho assado pelas esquinas da
cidade de Senhor do Bonfim. Fora dela, os tijuaçuenses trabalham como diaristas,
vendedores de acarajé e de abará (iguaria de origem africana, muito saboreada pelos
baianos), pelas ruas e praças de Senhor do Bonfim, como já foi discutido. Esse
comércio é realizado principalmente pelos homens. Segundo a depoente Luzia
Rodrigues85 (uma das primeiras vendedoras dessa iguaria) o acarajé chegou em
Tijuaçu através de d. Celina, uma cunhada desta senhora vinda de Salvador mostroulhe como fazia o acarajé. D. Celina aprendeu fazer a referida iguaria e passou a
comercializar esse alimento juntamente com d. Arlinda (todas nascidas em Tijuaçu)
em Senhor do Bonfim. Posteriormente d. Arlinda ensinou a d. Luzia, esta convidou sua
irmã Vanda para trabalhar com ela e assim outras pessoas da comunidade foram
aprendendo e ensinando, passando esse aprendizado de geração a geração. Muitas
famílias residentes em Tijuaçu vivem da venda de acarajé.
85
Entrevistada pela autora em 5 de dezembro de 2001, em sua residência em Senhor do Bonfim.
115
Foto n° 9 - Vendedora de acarajé-área comercial de Senhor do
Bonfim
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
2.3.1 Imagens e personagens: o cotidiano de um viver rural
Nesse subtítulo, a intenção é narrar algumas vivências cotidianas dos
moradores de Tijuaçu, perspectiva em que as casas, as ruas, as pessoas vão
aparecendo e emitindo significados. Observa-se o fazer desses sujeitos sociais em
diferentes momentos e espaços de sua vida diária.
Numa das muitas visitas realizadas a essa comunidade, ocorrido num
domingo, precisamente no dia 20 de abril de 2001, algumas entrevistas foram feitas.
No trajeto até lá, observava-se a paisagem, os morros, as roças, as pequenas casas,
gente na beira da estrada esperando um transporte, outros caminhando, afinal era
domingo e para quem mora na zona rural, esse é um dia de “descanso”, de festa, de
fazer visitas, de jogar bola e de outras atividades.
No domingo, as pessoas geralmente saem da rotina e fazem outras
atividades. Ao entrar em Tijuaçu, as casas já estavam abertas. Preparavam-se para
116
receber a luz do sol, que entrava pelas gretas do telhado e pelas velhas portas de
madeira. Muitas pessoas já se encontravam nas portas de suas casas, conversando
com o vizinho, varrendo sua área ou apenas observando o movimento de quem
passava.
Cada um no seu espaço desenvolvia suas atividades. Alguns cozinhando,
outros se penteando, fazendo trancinhas no cabelo, outros apenas conversando,
alguns jogando bola, outros preparando a massa de acarajé, outros ainda debulhando
feijão-verde para vender na segunda-feira, no centro de Senhor do Bonfim. Algumas
mulheres estavam nas portas de suas casas confeccionando esteiras, bolsas,
vassouras e outros utensílios. Outras se dirigiam ao tanque com uma lata de zinco
para pegar água e abastecer suas casas. Algumas ainda amamentavam seus filhos
em meio a outras pessoas. Os homens espalhavam-se pelos bares do distrito ou se
dirigiam às suas roças.
A estreiteza das ruas e o movimento de pessoas entrando e saindo, implicava
um ar dinâmico, uma movimentação: alguns indo, outros voltando, as ruas ocupadas
de adultos, crianças e animais. Pessoas humildes, casas pequenas, ruas sem
calçamento, somente a rua central e uma lateral são calçadas, uma rotina semelhante
a de outras comunidades rurais, onde as ações são realizadas dentro de um tempo
sem pressa.
No croqui n. 1 da página seguinte, observa-se a divisão espacial de Tijuaçu,
tendo como construção central a Igreja Católica. As casas e demais construções foram
sendo construídas em torno do referido prédio. Há uma praça principal e no centro
desta localiza-se a Igreja. As demais ruas foram surgindo posteriormente, seguindo a
mesma direção, ou seja, há uma praça principal e as demais ruas a circundam,
formando um círculo não muito definido. Segundo alguns moradores, a praça é
recente, o que existia anteriormente eram algumas casas espalhadas pela vila,
separadas umas da outras. Com a chegada de pessoas que moravam nas roças e
povoados vizinhos, os espaços vazios foram sendo ocupados com a construção
dessas novas casas.
117
Croqui n.1 - Divisão espacial de Tijuaçu.
Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005.
Nessa visita específica, observou-se, também, que, devido à proximidade das
casas entre si, das meias-paredes que as separavam86, fazia-se presente o olhar
devassador do vizinho. Na foto da página seguinte, observa-se a arquitetura das casas
e o espaçamento entre elas. Por conta desse espacejamento, os acontecimentos são
socializados com muita rapidez. A maioria das construções dessas propriedades é
86
Algranti (1997. p. 97).
118
simples, sem nenhum conforto e com pouca divisão interna. As casas são pequenas,
geralmente com uma janela e uma porta (foto abaixo). Possuem poucos móveis e
objetos: cama, colchão, utensílios de cozinha, uma mesa, algumas cadeiras, tendo por
vezes uma estante com uma televisão e sofá, uma cômoda, guarda roupa e um
armário de cozinha e fogão a lenha – este imprescindível –, algumas já possuem
fogão a gás; na parede algumas imagens de santos ou fotos dos pais.87 Geralmente
essas casas não são forradas, não têm piso, (apenas o chão batido), os quartos não
possuem portas, uma cortina de tecido estampado ocupa o espaço das portas, dandolhe uma certa privacidade. Algumas possuem uma cozinha pequena, que na maioria
das vezes localiza-se no quintal e muitas não possuem banheiro. Essas características
podem ser observadas, também, no croqui n. 2, a divisão do espaço da maioria das
casas existentes em Tijuaçu.
Foto n°10 - Casas de Tijuaçu e sua construção.
87
Cf. Perrot (1988). Na referida obra a autora discute sobre os operários, a moradia e a cidade de Paris
no século XIX.
119
Fotografo: MIRANDA, Igor. 20-12-2005.
Croqui n. 2 – Divisão interna das casas de Tijuaçu.
Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005.
Nesse território, as crianças de idades variadas passeiam e brincam
livremente pelas ruas e algumas andam nuas (os meninos), sem qualquer proteção88.
Os moradores têm uma capacidade surpreendente de aproveitar as potencialidades
da região, como local de trabalho, de diversão e descontração. Nas roças pode-se
88
É costume entre as crianças do sexo masculino, principalmente menores de três anos, andarem pelas
ruas sem roupas. Encontra-se muitos meninos acompanhados por suas mães, em casa ou pelas
ruas, sem nenhuma roupa.
120
caçar, buscar lenha e
frutas, no centro do distrito há bares freqüentados pelos
homens, além disso, o comum bate-papo e a conversa nas portas das casas são
atrativos desse cotidiano. Essa simplicidade e tranqüilidade tão característico da zona
rural, também é vivenciado pelos moradores de Tijuaçu. Perrot (1988, p. 122),
discutindo sobre a utilização livremente do espaço público pela população de Paris no
século XIX, ajuda a nossa reflexão, afirmando:
Circular livremente, parar em qualquer lugar, morar e trabalhar em qualquer
lado são condutas populares coletivas na Paris do século XIX. Dotadas de
uma espantosa capacidade de utilizar os terrenos baldios e os construídos,
as classes populares opõem uma resistência viva e surda contra a
especialização progressiva e a delimitação de espaços funcionais.
O espaço público é tomado pelos moradores. Muitas atividades são realizadas
na rua, nas portas, sob o olhar dos vizinhos. Esses moradores têm o sentimento muito
forte de que o espaço público lhe pertence. Tudo o que ele pede é poder utilizá-lo à
sua vontade, de modo indiferenciado, (PERROT, 1988, p. 124).
Apesar de todo esse movimento de aproveitamento do espaço público e da
continuidade de algumas tradições, o movimento de pessoas que migram para outros
locais e outras que retornam trazem algumas interferências no cotidiano desses
moradores. Os meios de comunicação e a modernidade também, interferem e mudam
alguns costumes, exercendo uma certa pressão sobre a oralidade e a cultura local.
Como exemplo dessas mudanças podemos citar a reinvenção de algumas
manifestações culturais; o aumento de pessoas que passaram a freqüentar a escola e
outras que chegaram a universidade; o abandono do trabalho na agricultura
principalmente dos mais jovens, que saem do distrito para outros lugares a procura de
outras alternativas de emprego. No século XVIII, o costume do povo inglês também foi
ameaçado por pressões para modificar a sua cultura:
O povo estava sujeito a pressões para ”reformar“ sua cultura segundo normas
vindas de cima, a alfabetização suplantavam a transmissão oral, e o
esclarecimento escorria dos estratos superiores aos inferiores – pelo menos
era o que se supunha (THOMPSON, 1998, p. 180).
Mas as pressões em favor da reforma sofriam uma resistência teimosa: e o
século XVIII viu abrir-se um hiato profundo, uma profunda alienação entre a
cultura patrícia e a plebe (THOMPSON, 1998, p. 180).
121
Observa-se que as práticas e as normas se reproduziam ao longo das
gerações na atmosfera diversificada dos costumes. Em Tijuaçu, as tradições
perpetuavam-se em grande parte mediante a transmissão oral e as narrativas. Nessa
perspectiva, as letras do Samba de Lata, o bendito de São Benedito são exemplos
dessa tradição oral, que foram passadas através da repetição e da oralidade, hoje já
se observa a sua substituição pela escrita. São as letras do Samba de Lata, da dança
do parentesco e de outras manifestações culturais que estão sendo escritas e
registradas. A população passou a freqüentar a escola, aprendeu ler e escrever, e
procuram exercitar essa nova experiência, escrevendo as letras dessas diferentes
manifestações culturais. Nota-se que aos poucos a tradição oral está perdendo a
improvisação. Algumas normas se mantêm e se reproduzem, mas outras sofrem
interferências.
O referido capítulo teve como intenção, recuperar o sentido dos costumes da
referida comunidade e de como estes têm resistido às mudanças não esquecendo de
sua historicidade e de como esses sujeitos sociais estão fazendo escolhas. Nessa
perspectiva, pode -se discutir sobre os diferentes papéis que as mulheres assumiram
em Tijuaçu e como as mesmas conquistaram esses diferentes espaços.
As relações de trabalho, familiares, de vizinhanças também foram aspectos
discutidos no referido capítulo que mostraram com as mulheres representam o
principal foco enquanto personagens dentro da trama do território, que teve sua
trajetória marcada pela constituição de um matriarcado em contrapartida ao
patriarcado da tradição. O homem não se esvai do seu papel como chefe de família,
como trabalhador, mas, as mulheres conquistaram um espaço expressivo, o qual tem
se consolidado com o passar do tempo. Mariinha é apenas a primeira entre outras
mulheres que têm se destacado nessa comunidade negra rural. As mulheres tornamse chefes de casas, cuidando tanto da criação dos filhos e netos como da manutenção
de sua família, mediante as feituras das roças de mandioca e, posteriormente, da
venda da farinha e demais atividades econômicas capazes de garantir o bem estar de
sua família. Tornam-se fortes bastantes e adquirem poderes a ponto de
transformaram-se em chefes de alguns povoados rurais (PINTO,1999, p. 213).
CAPÍTULO III
122
TIJUAÇU FAZ A FESTA: DEVOÇÃO E DIVERSÃO NO ENCONTRO DE
SUA IDENTIDADE
Foto nº 11– Apresentação do samba de lata no povoado de Quebra Facão.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003.
Sendo o batuque um “território livre” onde o indivíduo fala à
comunidade e da comunidade, seus pontos e modas têm sido desde
sempre o veículo ideal da crítica social e política (DIAS, 2001, p.
880).
3.1 A reinvenção da festa no Brasil Colônia
123
Onde tu vai mulher
Eu vou sambar, sambar
Se o samba não tiver bom
Eu vou e torno a voltar
Olé, olé mulher,
Olha o veado na roça
Farinha de cinco mil réis
o que fazer sem mandioca
(letra do Samba de Lata)
Uma das principais características da festa é a sociabilidade. É no espaço
das comemorações que as relações sociais se entrelaçam e se aguçam. O ambiente
festivo, de alegria e descontração, leva os participantes a terem tal comportamento.
Nesse espaço, também se encontra o sentido da religiosidade e da solidariedade e,
ainda, as demarcações de especificidades e diferenças entre os indivíduos e os
grupos.
A festa, representa comemoração, que pode estar ligada a ritos de colheitas,
ciclos de passagem, dia do padroeiro e outras ocasiões. Nesses dias, as pessoas em
geral param suas atividades cotidianas para comemorar e participar das festividades;
é uma ruptura da vida diária, um intervalo na ordem estabelecida, momento de
renovação das forças, desgastadas pela rotina do trabalho e pelo respeito às regras
permitindo que as tarefas habituais – posteriores – sejam retomadas com mais vigor. A
festa dá ensejo à ruptura total, a partir da suspensão temporária da ordem e da
instauração de uma nova, diferente da anterior, faz-se, então, uma tensão entre a
continuidade e a ruptura89. Durante os festejos, há um esquecimento temporário da
vida cotidiana e das preocupações familiares.
Os festejos geralmente são emaranhados de significados, representações e
simbologias. Como exemplo, os festejos juninos que aconteciam em Portugal, em
séculos anteriores, e que foram trazidos para o Brasil. Tinham o cunho de
agradecimento pela obtenção de uma boa safra. Festejava-se Santo Antônio, São
João e São Pedro, como acontece até hoje no Brasil, principalmente na região
Nordeste. Várias festas foram introduzidas pelos colonizadores portugueses, tanto as
89
Sobre o tema cf. Souza (2002); Matta (1979); Del Priore (1994). Ferlini (2001, p. 45); Reis, (2001).
124
cívicas como as populares. Durante o Império, eram muitas as ocasiões em que a
realeza se encontrava. Nas aparições públicas, nos cortejos reais, procissões e
comemorações cívicas – como a coroação, os festejos pela passagem do dia da
Independência ou da Maioridade, de aniversários ou de falecimentos da realeza. Por
outro lado, nas demais festas populares – como o Dia de Reis, do Divino, nas
Cavalhadas, Congadas e Batuques – reis e rainhas contavam histórias diferentes
dessa terra, de sua população e de seu destino. As “festas misturavam-se”: um ritual
oficial era logo acompanhado por um batuque, assim como uma encenação de
Cavalhadas. Em séculos anteriores, as festas populares realizadas principalmente por
negros cativos e forros chamavam atenção dos brancos e estes geralmente as
assistiam. Durante esses dias, as vilas eram invadidas pelos sons dos batuques, onde
se reuniam negros de diferentes etnias, vindos dos engenhos e povoados, a fim de
participar dos festejos.
A permissibilidade das festas em relação ao encontro, a visibilidade, a coesão
dentro de comemorações recriavam os padrões metropolitanos, dando a identidade
desejada e trazendo o descanso, os prazeres e a alegria. Dessa forma, ao incorporar
valores e normas da vida em grupo partilham-se sentimentos coletivos e
conhecimentos comunitários.90 Segundo Vainfas e Souza (2000, p. 58), se certas
manifestações negras causavam medo, suas festas eram, por vezes, consideradas
positivas no sentido de manter escravos e forros sob controle. No século XVII, o
jesuíta Antonil aconselhava aos senhores de escravos que tivessem tolerância com os
folguedos, bailes e reis negros de seus escravos. Segundo o jesuíta, negar-lhes o
momento de bailar e cantar proporcionar-lhes-ia melancolia. De sorte que o melhor era
deixá-los alegrarem-se em suas festas. As tentativas de proibição continuavam a
esbarrar como sempre na necessidade de manter a atenção dos negros distraída da
injustiça da sua condição servil. Nas representações, na interação entre as
autoridades coloniais, as festas tornavam-se um momento em que os negros
conseguiam fazer circular a forma como viam a si e a cultura que lhes tentavam impor.
Ainda segundo Vainfas e Souza (2000, p. 58):
Se as festas tinham caráter institucional, a ocupação do espaço público as
revestia de novo caráter, e usos diferenciados daí surgiam, reavivando a
90
Cf. Del Priore (1994), Ferlini (2001, p. 45).
125
preocupação da Igreja em controlar os excessos e ordenar os
comportamentos. O momento das festas era, muitas vezes, também o
momento de bebedeiras, de acertos de contas, de vinganças, de crimes em
que transpareciam as fraturas da comunidade. Mas não só com a violência e o
derramamento de sangue se profanava o espaço sagrado das festas. Havia
aqueles que não respeitavam o silêncio recomendado no interior dos templos,
usando-o, ao contrário, como lugar de encontros e negócios, inclusive
amorosos.
A festa se constituía num espaço em que tudo acontecia ou podia acontecer,
desde a alegria à tragédia. Muitas vezes as autoridades locais tinham que interferir
para controlar os excessos dos festeiros. As pessoas em geral consumiam muito
álcool e terminavam exagerando nas suas ações. Isto levava aos capitães das vilas e
os governadores das capitanias a justificar a proibição das festas realizadas por
negros, sob o argumento do consumo de bebida e da descontração exagerada dos
seus participantes91.
Em geral, a festa, seja de branco ou de negro, era imbuída do lado da alegria,
mas tinham aqueles que iam com intenção de brigar, surgindo daí desavenças. Podia
se transformar num espaço de acertos de contas de diferentes origens, como sugere
Del Priore:
A escolha do momento da festa para o acerto de contas não deixava dúvidas
quanto a mais esta função das atividades festivas. A festa media as relações
dos grupos sociais. Permitia que eles se solidarizassem mas também que
aparecessem as fraturas e as feridas da vida comunitária. A violência emergia
em vários níveis no interior da festa e era protagonizada por elementos de
variadas camadas sociais. Acertos entre os “grandes” abriam espaços para
acerto entre os “pequenos”. Escravos e acólitos, muitas vezes, resolviam com
seus desafetos pessoais as pendengas que em outras oportunidades
levariam a eles próprios para o aljube. Em meio ao tiroteio, à confusão da
festa, à correria e à gritaria, ninguém poderia afirmar quem atingira quem,
embora os mandantes fossem quase sempre visíveis para a maior parte da
população reunida na igreja ou na procissão (1994, p. 121).
Esse constituía mais um dos motivos para proibição de festas realizadas por
escravos. Os capitães das vilas argumentavam que temiam à desordem e ao
derramamento de sangue. Os escravos não se deixavam vencer pelas repressões as
suas festas. Resistiam e faziam seus batuques à noite, com portas fechadas. A festa
91
Cf. Reis (2001). No referido artigo o autor discute os batuques negros e as transformações e
continuidades quanto ao perfil dos participantes e atitudes de senhores e autoridades políticas e
policiais diante da festa negra, na Bahia, entre o final do século XVIII e meados do século XIX; Silva
(2001), examina formas de sociabilidades existentes entre corporações profissionais e comunidades
étnicas na capitania de Pernambuco entre 1776 e 1814.
126
constituía um grito desafiador contra as dificuldades do cotidiano, representando um
exutório para as tensões acumuladas contra as autoridades, fossem elas o senhor de
escravos, o funcionário metropolitano, o governo português ou a Igreja Católica,
conforme Del Priore (1994, p. 127).
Nesse novo mundo, desconhecido, com valores culturais bem diferentes dos
seus, os negros aos poucos se incorporaram a esse novo viver, principalmente através
da religião católica. Criaram Irmandades, confrarias, praticavam batuques noturnos,
procuravam alternativas de sobrevivência, na tentativa de viver melhor nessas terras
da América portuguesa. A incorporação dos negros ao culto católico tem início ainda
em Portugal, no século XVI e, posteriormente, é transplantada para a América
portuguesa92. A organização de africanos e seus descendentes em irmandades leigas
foi um dos padrões sociais comuns à vasta região que constituiu o universo de
relações escravistas e coloniais em torno do Oceano Atlântico. Eles criavam
perspectivas de sobrevivência e adaptação nesse mundo de além-mar.
Também conseguiram incorporar elementos da cultura do branco, criando e
recriando várias festas, que deram um toque de descontração e alegria à cultura
brasileira. A escolha de líderes entre as comunidades negras existia sob a forma de
eleição de reis ou governadores, festivamente, comemoradas com danças e ritmos
africanos, em diversas localidades das Américas. A necessidade de se organizarem
em associações étnicas e comemorarem festivamente a escolha de reis que detinham
autoridade sobre o grupo e serviam de intermediários entre esta e outras esferas da
sociedade colonial, foi por demais difundida como uma importação ou imposição dos
senhores.
Entretanto, várias foram as alternativas utilizadas pelos escravos para driblar
o olhar dos brancos em relação aos seus rituais, muitos desses não entendidos pelo
colonizador, o que dificultava a prática de seus valores culturais.
92
Saunders apud Souza (2002). Segundo Souza (2002 p. 160). “Foram os dominicanos que
promoveram, durante a Idade Média, a devoção a Nossa Senhora do Rosário e a recitação do terço.
A intensa ação evangelizadora dessa ordem religiosa é tida por quase todos os autores que
estudaram as irmandades do Rosário como fator de disseminação de tal invocação entre os africanos.
Além de um culto mariano associado às lutas travadas contra os pagãos, pois freqüentemente a
vitória portuguesa na batalha de Lepanto era associada a Nossa Senhora do Rosário, a escolha da
invocação remetia às características do rosário, elemento que ligava diretamente a Deus aquele que
pedia. O Rosário de Nossa Senhora simbolizaria a oração, meio de despachar as petições de Deus e
conceder o que lhes pediam”’.
127
As danças de terreiro dos escravos negros, designados batuques, são qualificadas
comumente como diversão desonesta, sobretudo pelos representantes do poder
político e religioso, manifestando-se o temor de que se tratassem de rituais pagãos e
atuassem como fermento de desordem social e revolta (DIAS, 2001, p. 859-860).
Esta constituía em mais uma das razões para proibição das festas de negros.
No pólo oposto situavam-se os festejos públicos dos reis congos (congadas),
considerados diversões honestas para os escravos e incentivada pelos senhores93.
Os negros reinventaram formas de expressar sua cultura, seja reverenciando
sua nobreza ancestral, perdida do outro lado do oceano, recompondo simbolicamente,
em terras da diáspora os elos de linhagem rompidos no cativeiro. Ou ainda faziam
seus batuques noturnos, com seus cultos afro-brasileiros – a religião ou seus sambas
de terreiro – sua tradição, onde continuavam a manter seus rituais sagrados e
profanos, reafirmando seus valores culturais e étnicos.
[...] A festa foi referência básica de identidade étnica e também escrava, desde
que se entenda que identidade não é ponto fixo da experiência de um grupo,
como não é do indivíduo. Identidade também muda e é múltipla. O que
permanece é seu sentido de alteridade e freqüentemente de oposição
conflituosa. Daí porque toda festa negra, embora umas mais que outras,
constituíram um meio de expressão da resistência escrava e negra, e,
portanto motivo de preocupação branca (REIS, 2001, p. 340).
A festa era o espaço das representações das diferentes culturas africana e
portuguesa e possibilitava a construção das diferenças de identidades culturais e
étnicas africanas, era um espaço de liberdade e de continuidade dos festejos
africanos. Entretanto, apesar das proibições, as festas dos africanos continuaram
dando um viés à cultura brasileira.
A permissão de tocar e cantar chegou com o reconhecimento de que, por um
lado, os escravos
tornavam-se mais produtivos se lhes fossem concedidos
desenvolver estas atividades lúdicas de tempos a tempos e de que, por outro lado,
através destas danças sexualmente muito estimulantes, os escravos procriar-se-iam
93
Para Dias (2001, p. 869), trata-se de dois aspectos complementares da festa negra no Brasil: no
terreiro a celebração intracomunitária recôndita, noturna, onde se reforçam, sem grande interferência
ou participação do branco, os valores de pertencimento a uma matriz cultural e religiosa africana; na
rua, a festa intracomunitária, em que o negro, por meio das danças de cortejo, busca inserir-se nas
festividades dos brancos e ganhar certa visibilidade social, mediante a adoção de valores religiosos e
morais da classe dominante.
128
com muita facilidade, aumentando a população escrava. A permissibilidade estava
ligada aos interesses dos senhores.
As opções pela permissão ou pela proibição de práticas sociais e culturais
identificadas com a comunidade negra e suas culturas de origem estavam intimamente
relacionadas com as situações nas quais os senhores se definiam por oposição aos
escravos. Em momentos de maior tranqüilidade nas relações entre senhores e
escravos, assim como nos espaços que permitiam formas pacíficas de convivência
como as irmandades, festas e batuques eram permitidos e mesmo estimulados, eram
entretanto, proibidos em outras conjunturas, de maior tensão e medo com relação as
sublevações.
Nessa conjuntura de proibições, ao final do século XVIII e início do XIX, para
que suas festas fossem realizadas, era necessário que os escravos solicitassem
permissão, por escrito, às autoridades locais. Foi o que ocorreu em 1786, com os
devotos de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Salvador que solicitaram licença
para realizar sua festa durante oito dias e para que pudessem dançar e cantar no
idioma de Angola:
Dizem os Pretos devotos da Gloriosa Senhora do Rosário da cidade da Bahia,
que antigamente lhes era permitido para MAIOR, e qual o aplauso da
festividade da mesma Senhora, máscaras, danças no idioma de Angola com
os instrumentos concernentes, cânticos e louvores; e porque se acham
privados; e em muitos países de Cristandade ainda se praticam e só neste
existe proibição: Rogam a V. Majestade e por sua Alta Piedade e Real
Grandeza, Serviço de Deus, e da mesma Senhora, se digne a conceder
Licença aos Superiores para os ditos festejos, em razão de parecer muito do
agrado94.
O receio de que essas festas se transformassem em sedição era uma
preocupação constante das autoridades, pois em tempos anteriores, a Colônia, havia
passado por tal experiência. Geralmente durante as celebrações públicas, os escravos
aproveitavam para se rebelar. Segundo Reis (1986, p. 87),
Ao contrário dos rebeldes modernos, que concentram seus protestos nos dias
de trabalho – a greve sendo o modelo típico -, os rebeldes escravos agiam
principalmente durante o tempo de lazer.
94
Arquivo Histórico do Conselho Ultramarino, Lisboa. Capitania da Bahia, 1786, documento n. 12.235.
Na transcrição do referido documento atualizou-se a grafia, exceto os nomes próprios e a
pontuação.
129
Esses dias eram os mais temidos pelas autoridades que sentiam temerosas
com a sedição, pois, para eles qualquer tipo de ajuntamento de negros era uma
ameaça à paz urbana. Em Pernambuco, em 1811, tal atitude chegou ao extremo
levando à proibição também das corporações profissionais e das comunidades étnicas
africanas da vila do Recife e da cidade de Olinda (SILVA, 2001, p.328).
Nesses cerceamentos ao mundo das representações religiosas negras que
viviam os africanos, sofrendo repressões das autoridades locais, o dançar e o folgar já
não era mais permitido. Senhores, capitães, governadores e reis consideravam as
festas realizadas pelos escravos de “desonesta”, (TINHORÃO, 1972, p. 126-127)95
intracomunitária e noturna. Em contrapartida, a festa dos Reis Congos era
considerada uma festa pública, extracomunitária, honesta e permitida pelas
autoridades políticas e eclesiásticas, estando sob o olhar do senhor e das diferentes
autoridades.
Nessas
festas,
os
senhores
contribuíam
fazendo
doações
e
acompanhando os cortejos.
Os batuques negros, tão proibidos pelas autoridades da época, deram origem,
de um lado, aos candomblés, grupos organizados de culto afro-brasileiro (religião), de
outro lado, aos batuques ou sambas de terreiro (tradição), como o Samba de Roda, o
Samba de Véio e o Samba de Lata de Tijuaçu. Segundo Dias (2001, p. 859), os
batuques de terreiro, que hoje se espalham pelo Brasil sob diferentes formas e estilos,
mantêm em certa medida muitas das funções sociais que assumiram no passado,
destacando-se o da crônica do “negro para o negro”, manifestada pela via de uma
poética
metafórica.
Todavia,
ao
longo
do
período
colonial,
percebe-se
a
marginalização dessas manifestações afro-descendentes de terreiro, nutrida, pelo
preconceito de setores hegemônicos da sociedade branca e suas instituições e pelo
resguardo que as próprias comunidades impõem às suas práticas, visando à
manutenção de códigos de compreensão interna ao grupo e à preservação de
segredos de ordem religiosa.
95
Segundo Tinhorão, (1972, p. 121-127), “a expressão dança desonesta significava – do ponto de vista
da boa moral estabelecida pelas elites do tempo – uma dança livre, desenvolta, propiciadora de
eventual contato direto entre dançarinos de sexos diferentes, e de coreografia à base de negaças,
volteios (como uma carrapeta”, dizia a Relação da Fofa), e acrescentada ainda que “diversos
movimentos do corpo”, conforme escrevia o Conde de Pavolide em sua descrição dos bailes de
pretos, que “dançam e fazem voltas como arlequins”.
130
Os negros inicialmente preferiram cultivar seus batuques no estilo das
diferentes nações africanas de onde se originavam. Quando, porém, os brancos
perceberam que muitos desses batuques não eram simples danças de diversão, mas
práticas rituais denominadas calundus, a perseguição a essas manifestações teve
início e os negros foram logicamente obrigados a adotar, pelo menos de forma
ostensiva, os gêneros de danças impostos pelos brancos.96
3.2 “Samba crioula/que branco não vem cá/se ele vier/pau vai levar”: Versos,
ritmos e diversão - o Samba de Lata de Tijuaçu
Na perspectiva de conceber a festa como um momento de confraternização e
de sociabilidade, o Samba de Lata de Tijuaçu surge, também, atendendo aos valores
sociais de solidariedade e de sobrevivência. Assim sendo, essa manifestação cultural
representa as marcas de um viver rural e de uma herança africana expressada através
da dança e dos ritmos presentes. Expõe e comunica um saber ao qual devem estar
sensíveis as gerações presentes e futuras, incitando o corpo a vibrar ao ritmo do
cosmos. A dança enseja uma meditação, que implica, ao mesmo tempo, corpo e
espírito, sobre o ser do grupo e do indivíduo, sobre arquiteturas essenciais da
condição humana e das experiências cotidianas dessa população (SODRÉ, 1988,
p.124).
O samba rompe o fluxo da normalidade, trazendo alegria e prazer para seus
participantes, e dá continuidade à herança deixada pelos ancestrais africanos.
Segundo Sodré (1988, p.123), a dança é um jogo de descentramento, uma
reelaboração simbólica do espaço.
O canto e a dança sempre estiveram presentes na natureza dos africanos em
diferentes momentos do seu cotidiano. Machado Filho (1943, p. 61)97, estudou
96
97
Machado Filho, apud Tinhorão (1972. p. 121).
Machado Filho, apud Tinhorão (1972. p. 150).
131
algumas sobrevivências de vissungos98 na área de São João da Chapada, município
de Diamantina (sua atenção foi despertada pelo fato de a maioria dos versos serem
cantados ainda com palavras africanas):
Os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Tinham cantos especiais para a
manhã, o meio dia e à tarde. Mesmo antes de o sol nascer, pois em regra
começava o serviço alta madrugada, dirigiam-se à lua, em uma cantiga de
evidente teor religioso.99
A utilização de palavras na língua africana representava a preocupação dos
escravos em ocultar o sentido de suas conversas cantadas, e durante o trabalho, a
necessidade de se comunicarem sem ser entendidos pelos brancos ou mesmo pelos
crioulos e mestiços libertos, num evidente desejo de preservação de seus costumes e
de sua cultura. A utilização do canto como meio de comunicação, demonstrava
diferentes momentos de sua vida cotidiana.
Quando perguntados sobre o Samba de Lata, os informantes expressaram
suas lembranças e falaram sobre essa manifestação e as condições de vida da
população de Tijuaçu no período das grandes estiagens. Narram que, com as secas
que se abateram sobre a região, o samba possibilitou alternativa de sobrevivência.
Nesse período, com as roças escassas ou quase inexistentes, sem nenhuma
produção, sem perspectivas de trabalho, pessoas morrendo de fome e de sede,
aqueles que ficaram em Tijuaçu o utilizaram como alternativa de sobrevivência.
Apresentavam-se à margem da estrada (BR entre Senhor do Bonfim e Salvador),
objetivando receber doações.
Os depoentes, em vários momentos narraram o seu sofrimento devido as
diversas secas que se assolaram sobre Tijuaçu, as quais foram contemporâneos e
contaram que na época de estiagem, alguns moradores eram obrigados a emigrar
para outras cidades ou outras regiões. Aqueles que permaneciam, faziam uso do
98
De acordo com Tinhorão (1972, p. 128): “O autor de O Negro e o Garimpo em Minas Gerais dá como
tradução de vissungo a palavra fundamento, que até hoje, no vocabulário da dança meio religiosa,
meio pagã do jongo, denomina o sentido oculto nos versos compostos sob a forma de metáforas.
Isso se explica pela necessidade que tinham os escravos de se comunicarem sem ser entendidos
pelos brancos ou mesmo pelos crioulos e mestiços libertos, num evidente desejo de preservação de
seus costumes e de sua cultura”.
99
Machado Filho apud Tinhorão (1972, p. 150).
132
samba como alternativa de sobrevivência. Assim, os depoentes costumam ligar o
início do Samba de Lata com a pobreza, a seca e a natureza:
O início do Samba de Lata, veio da pobreza. O povo mais véio cantano.
Quebravam licuri100, quebrano bago de mamona e acendiam fogo com
aquelas frecha de licurizeiro, com aqueles talo de mamona. Eles faziam
aquela rodona, aí essa muié que chamava Genoveva começava a contar
estória, começava a bater lata e as minina, começavam. Pegavam umas latas
e faziam esse samba foi gerado assim. Foi assim, quebrano mamoninhas
verdes, licurizinhos, com os filhos cantano, batendo lata, os meninos tudo…
Esse samba foi gerado assim, há mais de 60 anos. Essa rama que ta aí mais
elas tudo já morreram começaram da pobreza. Esse Samba de Lata de
Tijuaçu aqui do Alto (Fala de Dalva, entrevistada pela autora em 26 de dez. de
1998, em sua residência – Fazenda Alto Bonito).
O Samba de Lata está diretamente ligado às condições de vida da população,
pois os moradores relatam que fizeram uso de sua criatividade, dando-lhe uma nova
roupagem e utilizando-o como fonte de renda e de lazer. Narram que os primeiros
momentos do samba foram marcados como uma atividade espontânea, pois estavam
todos ocupados, cada um com seus afazeres na roça e no percurso para buscar água,
começaram a cantar e a bater palmas.
Muitas das festas que ocorreram durante o período colonial, estavam ligadas
ao universo da economia, tendo suas origens nos ritos que buscassem interferir nos
ciclos naturais para o provimento da subsistência. Eram momentos de agradecimento
ou de súplicas à natureza, elos de ligação entre o imponderável, visto como divino,
sagrado e o homem impotente (FERLINI, 2001, p. 449).
De que forma essa manifestação possibilitou angariar fundos para a
sobrevivência da população? Com a escassez de alimentos, um grupo de pessoas
formado por mulheres passou a reunir-se, e a cantar e dançar próximo à estrada velha
que fazia a ligação entre o distrito de Tijuaçu e Salvador. Esses cantos despertavam a
atenção de motoristas que trafegavam por ali, motivando a redução de velocidade de
seus veículos para oferecer algumas moedas e alimentos. Dessas doações, segundo
os narradores, muitos moradores conseguiram sobreviver às secas. Eles podiam
simplesmente ficar à margem da estrada e mendigar, como fizeram muitos, entretanto,
criaram alternativas de sobrevivência, utilizando o samba como meio de sobrevivência.
100
Ouricuri, planta típica da região.
133
O samba já existia em Tijuaçu muito antes dessas secas, como em outras
comunidades negras rurais. Com a estiagem uma outra função foi dada a essa
manifestação cultural e a mesma se fortaleceu e se concretizou enquanto principal
representação desse perímetro quilombola. Em Tijuaçu, as atividades cotidianas são
mescladas com a musicalidade. Como já foi discutido, no caminho da roça ou na ida
para pegar água na Lagoa do Cocho, grupos de mulheres quando se dirigiam pela
manhã para abastecer suas casas, paravam para descansar (já que a Lagoa do
Cocho ficava distante da localidade), e nas paradas para o descanso, faziam a roda do
samba, dançavam, tiravam versos e cantavam:
Amarra o bode, amarra o bode,
Na gaia (galha ou galho) do calumbí
Meia-noite, meia-noite
Não deixou ninguém dormir
Ô, pisa no milho
Peneraram ô xerém
Ô, pisa no milho
Peneraram ô xerém
Esse momento era de lazer, descontração, alegria e de descanso,
constituindo uma pausa das obrigações domésticas.
O Samba de Lata surgiu no tempo dos avós da gente. Quando eles iam assim,
no tempo da seca, iam para roça, para fonte. Eles iam aí no meio e depois
eles descansavam. Aí eles iam tirar um canto, aí começavam a bater lata e
cantavam. Aí de algum tempo para cá, acabou, o povo foi morreno, uns né?
Foi se liquidando outros. Aí um tempo esqueceram um pouquinho, depois a
gente foi resgatando esse negócio aí. Eu mesmo comecei a bater lata com
oito ano. (Fala de Marinalva Santos da Silva, entrevistada pela autora em de
10 jan.de 2002, em sua residência em Quebra Facão).
[...] As mulheres iam buscar água muito distante em cuias, potes, latas, e no
caminho elas começaram a cantar, um canto que de repente, este significava
o fortalecimento delas, a coragem. Elas cantavam dessa forma: “morreu
mano, correu, o galo de fama é nós mesmo”. E assim batiam as latas secas
que as mesmas levavam. Quando voltavam com as latas vazias cheias de
água (pegavam água num lugar bem distante), descansaram um pouco e
depois fizeram uma roda. Começaram a bater palmas juntamente com a lata.
Daí, houve o ritmo acelerado. Entrou um homem e uma mulher na roda,
dançando ritmo da lata e palmas. Tinha uma mulher pisando ouricuri no pilão
e aí foi à vez dos pés e ginga do corpo, as pancadas do pilão e o batimento da
lata. As pessoas dançavam com os pés batida certa, cada um tinha uma ginga
134
diferente, dando no mesmo ritmo, passo curto e o movimento do corpo. Isso
aconteceu e continua até os dias de hoje101.
O Samba de Lata está ligado às relações e ferramentas cotidianas,
simbolizando lutas e resistências desses afro-descendentes moradores da zona rural.
O samba construiu a mediação, a confraternização, laços de união e solidariedade
entre os seus componentes. Senhor Antero que também foi testemunha dessa
manifestação, emite o seguinte parecer:
Quando eu me intendi, já existia esse samba. Agora quem primeiro produziu o
Samba de Lata aqui, chamava-se Liberta. A Liberta no Macaco e a Genoveva
aqui no Alto. Foi o primeiro a começar o Samba de Lata.
Esse senhor, já com idade de 80 anos, narra que já conhecia o Samba de
Lata e as pessoas que iniciaram essa manifestação cultural. O que vem confirmar que
o samba chegou a Tijuaçu juntamente com os primeiros moradores. A solidariedade, o
partir e o partilhar com os seus companheiros faziam parte do espírito africano.102 Na
memória dos depoentes, Liberta e Genoveva, moradoras do Alto Bonito, foram as
iniciadoras do samba.
Para Eschwege103, o batuque, o samba, as variações do jongo são ritmos
incorporados dos africanos. Segundo Melo104 o samba:
[…] É caracteristicamente africano, sofreu desde logo o influxo português,
através do mulato, ganhando em languidez e perdendo em barbaria. Assim,
chulas, sambas, cocos, lundus, cateretês, tangos e as múltiplas variantes, tais
como mundinhos, choralinhos, caxambas, corta-jacas, congos, sarambiques,
cucumbis e quicumbes, alguns puramente negros, outros negro-portugueses
(mulatos), negro-indígenas (cafusos) e negro-espanhóis, como os lundus, os
tangos e as tiranas.
101
Relato local sobre o Samba de Lata. O referido relato documental encontra-se na sede da Associação
dos Quilombolas de Tijuaçu e Adjacências.
102
Não se pode esquecer que a questão das “nações” vai ser encarada com seriedade, uma vez que a
solidariedade tribal levava os escravos a protegerem seus conterrâneos, a conspirarem com eles e,
por outro lado, fazia com que grupos antagônicos se espionassem mutuamente. Isso impediu que
inúmeras revoltas tivessem êxito. Assim, o branco tinha um maior interesse de colocar pessoas de
diferentes etnias no mesmo espaço, a fim de proteger-se. Sobre nações, cf: Scarano (2002, p. 14);
Reis (2004); Ramos (1979).
103
O Barão W. L. von Eschwege, esteve no Brasil em 1809 a 1821, a serviço da Coroa para reorganizar
a mineração, publicou Pleito Brasilienze e outras obras, a maioria das quais sobre minerais, mas
também sobre os locais onde escreveu, apud Scarano (2002).
104
Mello apud Abreu (2001); Viana (1995); Mello (1908).
135
Esse espírito festivo dos africanos deu novo sabor à música popular brasileira.
O samba é uma invenção brasileira com uma forte influência africana. Como sugere
Sodré,105 “os diversos tipos de samba (samba de terreiro, samba duro, partido alto,
samba cantado, samba de salão e outros), são perpassados por um mesmo sistema
genealógico e semiótico: a cultura negra”. Foi graças a um processo dinâmico de
seleção de elementos negros que o samba se afirmou como gênero-síntese,
adequado à reprodução fonográfica e radiofônica, ou seja, à comercialização em
bases urbano-industriais.
A aculturação possibilitou ao samba um ritmo meio sensual, meio rebolado,
mais voltado ao jeito de ser do brasileiro. Os batuques ou sambas de terreiro106 cuja
existência é anterior à formação dos candomblés Congo-Angola seriam, pois,
representantes de antigas formas religiosas bantas no Brasil. Esses batuques
noturnos posteriormente originaram os vários sambas existentes hoje no Brasil.
Quando da realização do samba de terreiro, os escravos formavam um círculo
no qual saltavam e bamboleavam o corpo com um saracoteio dos quadris. No centro
desse círculo, encontrava-se um(a) dançarino(a) que, ao querer ser substituído(a),
convidava outro elemento do círculo a exibir-se no centro, dando-lhe a chamada
“umbigada” (contato dos dois ventres, umbigo contra umbigo). A essa arte de dança,
dava-se o nome de semba107, designação que é considerada antecedente ao termo
“samba”, este ainda em estado embrionário na época.
O Samba de Lata reacendeu os batuques das tradições e festas, que não
foram apagadas na diáspora africana, pois os batuques têm como característica
marcante à essencialidade que marca a poética afro-brasileira. O molejo, o gingado e
a alegria são características perceptíveis dos componentes do Samba de Lata. Dentro
105
Para Sodré (1998. p. 35). “O samba desenvolveu-se no Rio a partir de redutos negros (os baianos do
bairro da Saúde e da Praça Onze). Nas festas familiares, tocava-se e dançava-se o samba em seus
diversos estilos, para o divertimento dos presentes”.
106
Carneiro (1974), foi o primeiro autor a fazer uma abordagem classificatória das danças herdeiras do
Batuque Congo-Angolës, agrupando-as num grande complexo nacional dos Sambas de Umbigada.
A umbigada ou a menção desse gesto, característico de danças de lúdica amorosa banto-africanas
(por vezes associadas às cerimônias de noivado, o lembamento, seria o traço de união entre essas
manifestações geograficamente dispersas). O autor menciona trinta diferentes danças, em onze
estados brasileiros.
107
O termo brasileiro samba segundo Carneiro, talvez provenha da palavra semba com a qual se
designa, em Angola. Op., cit., p. 201.
136
desse universo marcado pela oralidade, o tempo da diversão não se deixa exaurir.
Nas letras dos seus cantos, falam de episódios e passagens de seu cotidiano e de
animais que habitam o seu universo,108 e de episódios do passado que são
desconhecidos por alguns festeiros, mas foram repassados pela oralidade e hoje é
cantada pelo grupo. Temos como exemplo a letra abaixo. Outras ainda pontuam o
perfil de vivências de um mundo rural, marcado pelas relações de trabalho, familiares
e de amizade.
Queima Mará
Queima Mará
Queima mará, queima
Mará queima, queima
Queima mará, queima
Fogo, no mará
Mará queimou
Segundo Ferreira, a palavra “mará vem do tupi “ma‘ra”, é uma vara que serve
para impelir a canoa, quando esta é posta em movimento, e também para prendê-la
no porto, fixando-a no chão”109. A referida letra revela vivências cotidianas de
povoações que viveram próximas à região litorânea ou a rios - onde se utilizava canoa
e o Mará - os referidos versos foram passados para o Samba de Lata, sendo uma das
letras mais cantadas pelo grupo.
Mas queimando o mará, o que será da canoa e das pessoas que estão dentro
dela? O mará é uma peça importante na função da canoa. Queimando-o, como se
pode fazer parar a canoa ou movimentá-la? Pressupõe-se que em algum momento,
por alguma disputa, os escravos necessitaram queimar o mará, surgindo daí esse
canto, que chegou ao Samba de Lata através dos primeiros habitantes. O que significa
108
Carneiro (1991.p. 209). Sugere que “os sambas nos revelam aspectos interessantíssimos da vida do
negro no Brasil. Antes de tudo, o mundo cultural limitadíssimo, ainda com vestígios da adoração das
árvores e dos animais (fitolatria, totemismo), como o coqueiro, a borboleta, a formiga, etc., e mesmo
da natureza exterior, dos elementos (o mar), lado a lado com a adoração fetichista da Senhora das
Candeias (identificada com a Oxum dos cultos afro-brasileiros) e o respeito pelo padre, que vem
realizar os casamentos, sem esquecer a parte da superstição (“a figa de Guiné”, contra o mauolhado). Por outro lado, como causa de tudo isso, vida material miserável. A pindaiba, isto é, a falta
de dinheiro, de possibilidades econômicas, a tanga mais absoluta, em contrate com a vida folgada
do senhor”.
109
Informação retirada de Ferreira (1975. p. 885).
137
para os participantes de Tijuaçu a palavra mará? O que está no seu imaginário?
Alguns atribuem o significado acima, outros apenas dizem que o canto sempre existiu
em Tijuaçu, que seus pais e avós já cantavam, não sabendo o seu significado.
Outros versos estão incorporados ao Samba de Lata e foram herança de seus
pais e de seus avós, outros são composições dos membros do grupo e que são
criadas no momento da apresentação do samba, memorizados através da repetição.
O estilo do canto é responsorial (alternando solo-coro)110, geralmente as letras formam
de pequenos versos, compostos de frases repetidas.
E assim eles cantam:
Aruê tá
Aruê tá
Aruê tá, aruê tá tá (bis)
Menino da calça verde me diga quem costurô
Aruê tá, aruê tá tá
Eu quero escrevê meu nome no retalho que sobrô
Aruê tá, aruê tá tá
Que céu tão estrelado com vontade de chovê
Aruê tá, aruê tá tá
Aqui está o meu benzinho somente para me vê
Procurei no ABC uma letra da minha paixão
Só achei a letra lê coloquei no coração
Menino da calça branca me diga quem costurô.
No período escravista, o espaço da liberdade que se criava com a dança no
terreiro representava o momento privilegiado para a comunicação interna da
comunidade cativa, veiculando-se todo tipo de mensagens, articulações, críticas e
reivindicações por meio da crônica social cantada. Segundo Dias (2001, p. 875).
Surge, assim, uma linguagem poética metafórica muito peculiar, que tira
partido, justamente da percepção de que a cultura hegemônica considerava os
110
Segundo Dias (2001, p. 865): “ a forma de compor e de cantar é o estilo do Jongo, que constitui
numa dança de roda, em alguns casos com par solista ao centro, cujos instrumentos são o tambu
(tambor maior e o candongueiro (tambor menor) e a inguaia (chocalho de cesto). Que continua a ser
dançado em ocasião de Treze de Maio ou de algumas festas do Catolicismo populares, destacandose as juninas e do Divino Espírito Santo”.
138
negros incapazes de maiores refinamentos de expressão. Metaforização do
discurso verbal, pela elaboração de uma linguagem dúbia construída com
imagens simples, tomadas à realidade imediata – a natureza, os animais e
plantas, o trabalho na roça – cuja decifração era restrita á comunidade que
festejava sob os olhos e ouvidos atentos dos intendentes. Ou mesmo dos
brancos que se aproximavam da roda com intenções de fruição. Ao passo que
algumas danças de escravos, como os lundus, ganham os salões da casagrande, do lado de fora continua a se desenvolver uma poética de
compreensão interna ao grupo, que ainda hoje se atualiza nos obscuros
pontos do candomblé e do jongo.
E porque não dizer o mesmo dos diferentes sambas existentes no Brasil,
ainda considerados dança de negro, e que continuam do lado de fora, nos terreiros,
distantes da casa-grande?
Com uma linguagem simplória, as vivências cotidianas são incorporadas às
letras das músicas do Samba de Lata. O cotidiano tem se revelado na história social
como área de improvisação de papéis informais novos e de potencialidade de conflitos
e confrontos, em que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se
de reavaliar o político no campo da história social do dia-a-dia.111 Nesse universo, as
letras falam de chuva, paixão, objetos conhecidos da população, temas amorosos ou
picantes ou associados à resistência, ao processo social e a natureza. Sobre a
continuidade cultural de comunidades aldeãs da Idade Moderna Burke (1998, p. 109),
emite o seguinte parecer:
Em comunidades aldeãs, onde a maioria das famílias ali permanecia ao longo
das gerações, vivendo nas mesmas casas dos pais e avós, lavrando o mesmo
solo, é razoável supor uma grande continuidade cultural. Nesse tipo de
comunidade, as tradições orais provavelmente eram estáveis e, assim,
constituem um guia mais confiável para o passado do que os historiadores
modernos se dispõem a admitir. Existem ainda hoje homens que moram nas
Terras Altas ocidentais, ocupando a mesma terra que ocupavam seus
antepassados no século XVII e possuindo tradições familiares que remontam
a essa mesma época.
Essa ligação familiar, a estabilidade das relações e a permanência no espaço
concorreram para uma continuidade cultural, muito presente em comunidades rurais. A
população de Tijuaçu vivencia essa continuidade cultural dado às circunstâncias das
111
Cf. Dias (1995. p. 15). Na referida obra, a autora fez um estudo do quotidiano dos escravos, tal
estudo vem desvendando uma experiência cumulativa de improvisação, aculturação e resistência ao
poder e vem transformar a historiografia social da escravidão.
139
relações familiares, de trabalho e à tradição oral. A roça faz parte da terra, a terra é a
casa do homem. A roça e o território confundem-se. A roça, como o território, é
administrada pelo grupo, integrada pela extensa família, cuja terra pertenceu aos seus
ancestrais (BAIOCCHI, 1999, p. 94).
As tradições orais mudam ao serem transmitidas. Incidentes ocorridos com
séculos de diferença podem combinar na mesma versão ou questões modernas
podem ser projetadas no passado112. Não há uma transmissão, nem um viver estático
sobre as vivências do ontem. Elas são incorporadas às necessidades do momento. A
transmissão da cultura e dos diversos fazeres da comunidade é passada para os mais
novos através das histórias contadas pelos mais velhos sobre suas vivências e sobre
as experiências de vida de outros que viveram no passado, constituindo-se assim
num aprendizado diário.
Segundo Burke (1989, p. 137), estudos modernos sobre os portadores de
tradição sugerem que alguns são “fiéis na incompreensão”, conservando frases que
não entendem, enquanto outros não são dominados pela tradição que conservam e
sentem-se livres para reinterpretá-las segundo suas preferências pessoais. Na maior
parte dos casos, eles não decoram a cantiga ou a estória, mas recriam-na a cada
apresentação, procedimento este que dá muito espaço para as inovações. Daí que,
como disse o folclorista Phillips Barry (1961), “existam textos, mas não o texto: árias,
mas não ária”113.
Outra especificidade da cultura de Tijuaçu e que está presente na linguagem
expressada pelos moradores e nas letras do Samba de Lata, diz respeito à forma de
pronunciar alguns vocábulos. A pronúncia de algumas palavras possui uma entonação
diferenciada. Esta é uma questão que precisa ser pesquisada por estudiosos da
Lingüística. Sua pronúncia é caracterizada pela oxitonização das palavras, ou seja,
costumam acentuar sempre a última sílaba, ex.: custurô, pegô, namorô, caminhô,
112
Burke (1989. p. 109-110). O autor comenta sobre as tradições orais em relação ao ofício do
historiador, afirmando: “Contudo o historiador que tem consciência de estar empregando uma
abordagem indireta lembrará de dar os descontos. Ele confiará no método regressivo mais para as
estruturas do que para os detalhes, mais para interpretação do que para definição das atitudes. Seu
problema básico continua a ser o de saber o quanto atribuir á transformação num caso qualquer, o
problema de fazer a ligação entre as duas abordagens”.
113
BARRY apud BURKE (1989. p. 137).
140
pegá, entre outras.114
Outra característica desse falar diz respeito à repetição da
primeira sílaba, ex.: do, dominado, ca, caminhando, entre outras palavras. Nas
diferentes entrevistas realizadas, percebe-se essa forma de falar da população,
principalmente dos mais jovens. A repetição da primeira sílaba e a pronúncia forte da
última sílaba.
Através da improvisação e da repetição, os componentes do Samba de Lata
incorporam seu aprendizado, criando rituais e reverências de acordo com o momento
vivido. E nas diversas apresentações eles cantam:
Ó no entrar da porta
Eu vi foi gente boa
Eu vi foi gente boa (bis).
Segundo Marcelo Santana115:
Cantiga essa que foi cantada no início do samba, quando os sambistas homenageavam
os senhores, dono da casa, ou dono do salão, eles louvavam com esse canto
(entrevistado pela autora em de 6 out. De 2005, em Senhor do Bonfim).
Outro verso cantado também pelo grupo, sendo o canto inicial, constitui um
pedido de licença ao dono da festa, ou alguém de posição, que esteja presente no
momento da apresentação. Para iniciar o samba os festeiros cantam:
No seu salão para eu vadiar (bis).
Ó dono da casa me dê licença
Outra característica marcante na construção das letras do samba, que
também se encontra no jongo e nos rituais do candomblé são os dois versos, um
cantado pelo solista e o outro pelo coro, que pauta pela economia de meios
expressivos, pela forma curta e pelo sentido concentrado. Sobre essa questão, Dias
(2001, p. 876) esclarece:
114
Cf. Carneiro (1991, p. 201-205) Nos versos analisados por este autor, sobre os diferentes sambas, o
mesmo chama atenção sobre a construção de algumas letras que apresentam também
oxitonização. Certamente essa pronúncia seja uma característica dos referidos sambas, que tem
como objetivo dar uma maior entonação as últimas sílabas.
115
Professor da Rede Pública do Município de Senhor do Bonfim e Filadélfia e aluno do Curso de
Formação de Professores da UNEB – Pedagogia para séries iniciais.
141
Esses traços aproximam o ponto da máxima, do provérbio, forma expressiva
que tão bem traduz o pensamento africano tradicional, síntese de uma
reflexão sobre um mundo estável e hierarquicamente ordenado. O hábito de
se exprimir por locuções proverbiais, caro aos griots, guardiães das tradições
orais na África, teria provavelmente influenciado, em terras de exílio, a poesia
dos terreiros e senzalas. Naturalmente, as novas condições de vida impõem
sentidos diferentes para os pontos, mas sobrevive a idéia básica da
formulação sintética e conotada.
O canto abaixo é comum nas rodas de samba no Brasil desde o período
colonial e é encontrado em diversas partes nos diferentes folguedos e festas de
reminiscências escravas, inclusive em Tijuaçu.
Samba crioula
Que o branco não vem cá
Se ele vier
Pau vai levar”,116
O referido canto integra uma forma de dizer ao branco que o espaço e aquele
momento pertencem somente ao negro e que este não vai tolerar qualquer tipo de
intromissão. Pode-se perceber também uma celebração de autonomia e de
delimitação de espaço, de cultura e de vivências. Graças às artimanhas próprias do
camaleão,117 a festa no terreiro garantia uma relativa privacidade à comunidade
escrava, configurando contexto propício ao fortalecimento dos valores de identidade –
o querer ser negro, manter-se negro dentro de uma sociedade dominada pelos
brancos. O desafio constitui a forma suprema de afirmação do poder do negro, numa
inversão simbólica da correlação de forças: desde os tempos da escravidão,
desprovido de bens materiais, ele foi capaz de triunfar sobre seus supostos
dominadores pela força da espiritualidade e da arte.
Nesse contexto, o negro escravizado conseguiu manter traços de sua cultura
e o fortalecimento de seus valores de identidade. Nas diversas entrevistas, os
depoentes fizeram referência às diferentes festas que aconteciam em Tijuaçu, das
quais não permitiam que os brancos participassem, conforme comunicam os versos
acima, como também as festas de branco, negro não participava. No terreiro onde
116
Segundo Dias (2001, p. 880), estes versos fazem parte do Candomblé da Irmandade do Rosário de
Jatobá. Encontra-se também no folguedo alagoano conhecido como quilombo e também no samba de
roda dos quilombolas do Rio das Rãs na Bahia, cf: Carvalho (1995. p. 55 e 65).
117
Na poética das senzalas, o termo camaleão designa o negro escravo que aprende a usar o recurso
de mudar de atitude, colorindo-se conforme o contexto.
142
dançaram seus avós, o negro é agente de sua história e senhor de uma cultura própria
e peculiar. O terreiro lhe pertence, não permitindo que pessoas estranhas comunguem
de suas manifestações culturais. Gestos, danças, cantos e expressões que não se
deixaram abater com a diáspora africana se fazem presentes no cotidiano desses afrodescendentes. Quando o grupo de festeiros “faz o samba” em Tijuaçu, o espírito
festivo e descontraído invade a praça principal da comunidade negra e não tem hora
para findar.
O Samba de Lata, por suas dificuldades cotidianas incorporou como
instrumento musical um instrumento de trabalho – a lata de zinco -, uma característica
que o diferencia de outros sambas. Enquanto nos diferentes sambas, encontram-se
como instrumentos musicais a viola, o chocalho de cesto, o violão, o cavaquinho, e o
tambor118. A lata de zinco, além de servir como instrumento musical, é usada também
para armazenar querosene, alimentos e transportar água. Como foi discutido
anteriormente, a incorporação da lata foi uma adaptação do objeto como instrumento
musical, dado a situação de pobreza da população que não tinha recurso para
confecção ou compra de um outro instrumento. E mesmo com o passar dos tempos, a
tradição continuou. Não houve incorporação de outros instrumentos, a lata continua
sendo o único instrumento musical utilizado pelos sambistas do Samba de Lata.
O Samba de Lata conquistou diferentes espaços, passando a representar a
principal manifestação cultural de Tijuaçu e de Senhor do Bonfim. Um grupo que antes
tinha o samba como uma brincadeira, uma forma de lazer e de diversão, passou a
constituir-se como grupo cultural. Assim, o grupo passou a se apresentar durante as
festas juninas do município de Senhor do Bonfim no início da década de 70 do século
passado.
Posteriormente, foi convidado para apresentação em outros eventos do
município – desfiles cívicos e escolas da região, por exemplo. Atualmente, são vários
118
Segundo Dias (2001, p. 869), ”na África tradicional, tambor é um vínculo a unir os homens entre si e
estes às divindades. Ponto focal das comunidades e suas forças, arauto de soberanos e orixás, ele
próprio é de essência divina. Tambor junta a força vital dos três reinos da natureza: a do animal, que
lhe dá o couro com a do vegetal, que lhe fornece a madeira, com a dos minerais metálicos que fixam
tudo no lugar: um ser de energia plena. Entre os grupos afro-descendentes da região Sudeste, como
os que praticam o jongo e o candomblé, um índice da importância que assumem os tambores
tradicionais e a utilização do termo ingoma – do banto ngoma, tambor para se referir tanto aos
instrumentos quanto ao evento musical e coreográfico que estes acompanham ou ao próprio grupo ou
comunidade dos dançantes, extensão semântica, aliás, corrente entre as culturas da África banta. Os
herdeiros dessas tradições consideram-se, pois, ‘comunidades do tambor’”.
143
os convites que recebem de diferentes órgãos e cidades. Dessa forma, no caminhar
das diferentes fronteiras, o grupo de sambistas, em sintonia com a demanda, vai
conquistando espaço enquanto principal manifestação cultural do município.
Essa nova situação gerou um repensar quanto à reestruturação e organização
do grupo, no sentido de que a partir de então, deveria exigir a cobrança de
determinada quantia para a apresentação do grupo. Isto pelo fato de se tratar de
trabalhadores rurais, que ficam prejudicados em seu orçamento quando se afastam do
trabalho.
Há uma visibilidade que passou a ser percebida, também, por outras cidades
e outros órgãos estaduais, como é o caso da TV Educativa do Estado da Bahia, que
em 2003 propõe ao grupo do Samba de Lata a gravação de algumas músicas e um
CD, dentro do projeto que a emissora estava desenvolvendo: “Bahia, Singular e
Plural”119. Também os repórteres da TV Regional “São Francisco”, com sede em
Juazeiro (BA), em várias oportunidades foram à Tijuaçu para gravar entrevistas com
os participantes do samba e fazer matérias sobre as manifestações culturais desse
distrito. A TV Bahia, através do “Programa na Carona”, em setembro de 2005, fez uma
reportagem sobre o município de Senhor do Bonfim, incorporando como destaque as
manifestações culturais de Tijuaçu, sendo o Samba de Lata a principal.
Como se dança o Samba de Lata? Como é o seu gingado?
Para dançá-lo, é preciso que a pessoa tenha molejo no corpo, saiba sambar,
cantar e tenha muita disposição para participar da roda do samba, são requisitos
básicos para participar do Samba de Lata. Era costume entre os moradores fazerem
roda de samba quando estavam desempenhando diferentes atividades, seja na roça,
nas festividades e comemorações. Em qualquer lugar, a qualquer momento, um grupo
de pessoas podia se reunir, fazer uma roda e começar a cantar e dançar. Não existia
um ritual rígido – o samba era uma atividade espontânea, como diziam os depoentes:
“uma brincadeira em que todos participavam”, ou ainda: “quando se começa a sambar
119
O Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, vinculados à Secretaria de Cultura e Turismo,
gravou vários CDs com músicas de diferentes manifestações culturais existentes no Estado da Bahia.
Estes contêm registros de vozes e sons produzidos por 476 artistas da cultura popular. No projeto
Bahia, Singular e Plural foram gravados oito CDs e há o registro de uma diversidade musical e
genuína de 26 municípios baianos das regiões Nordeste, Piemonte da Diamantina, Baixo Médio São
Francisco, Litoral Norte, Irecê, Oeste, Médio São Francisco, Recôncavo e Região Metropolitana de
Salvador.
144
não se quer mais parar, se amanhece o dia”. A percussionista inicia o samba dando
um toque na lata de zinco e a partir daí tem início a roda de samba. Os participantes,
com os pés fazem um passo curto que é acompanhado da ginga do corpo, do
movimento dos braços e do canto, e, marcado com as palmas e a batida da lata. Da
roda do samba, todos participam e funciona da seguinte forma: entra um componente
no círculo (que pode ser mulher ou homem), dançando no ritmo da percussão
marcado pela batida da lata e das palmas, depois de apresentar seus passos, tira um
festeiro da roda e o convida para ocupar o seu lugar.
O corpo constitui o alvo do ritmo e da própria dança. A percussionista tira os
versos e outros componentes fazem o coro. Dessa forma, homens, mulheres e
crianças cantam, dançam e fazem a festa. Dançam com os pés na batida certa, passo
curto, girando o corpo. Nesse momento, todos cantam, sambam e o grupo se diverte,
contagiando de alegria o ambiente120. A foto da página seguinte mostra o grupo em
movimento, fazendo uma das suas apresentações. Observando a referida foto tem-se
a impressão que os sambistas estão flutuando, embalados pelo ritmo da música.
Homens, mulheres e crianças reunidos numa roda de samba, ao ar livre, embaixo de
uma árvore, ao sol causticante de um sábado à tarde, não perdem a oportunidade de
fazer o que mais gostam - sambar. No ritmo do samba, no bater dos pés, a poeira
levanta, o suor escorre por seus corpos, mas eles não param, sambam no ritmo
frenético das palmas e da lata de zinco.
120
CF, Vainfas e Souza (2000. p. 56-57). Segundo os autores: “As danças, que também foram usadas
pelos jesuítas como instrumento de catequese dos índios e negros, reaparecem nas festas com
roupagem profana. Entre essas danças estavam a ‘chegança’ – que celebrava as lutas entre os
cristãos e mouros –, a ‘chula’, os ‘cocos’ – de influência africana, em que os dançarinos ficavam em
roda e um solista no centro fingia dar ou dava umbigadas em um parceiro escolhido –, os ‘congos’ –
bailado dramático que misturava tradições africanas e elementos ibéricos; entre todas, o que se pode
apontar de comum era a possibilidade que se abria aos populares de participar do culto católico,
dando a este um outro caráter que não o formal, pondo em risco a estética religiosa desejada. Não
raro essas danças foram consideradas imorais, pecaminosas, e a elas se quis normatizar”.
145
Foto n° 12. - Apresentação do Samba de Lata, no povoado de Quebra Facão.
Fotografo:OLIVEIRA, Nivaldo. Maio de 2003.
O depoimento abaixo descreve alguns percursos do samba:
No samba, a gente fazia a nossa diversão. A gente ia pro samba, aquilo era
diversão da gente mesmo. Quando tinha a época de São João, chamavam a
gente, para a gente bater o samba: fulano umbora acolá, numa festa de
reisado, umbora. A gente tocava parecendo um pifo, com vontade. Fazia um
samba de dança. Sei que a gente amanhecia o dia naquilo. Aí aquilo ali, eu
fui tomano jeito aí comecei a bater lata. Fui começano tomar conhecimento
com o pessoal, com o Marcelo, com esse povo aí, a gente começava a bater
lata (Fala de Marinalva dos Santos, mais conhecida na comunidade por
Dinha, entrevistada pela autora em 10 de jan. de 2002, em sua residência em
Tijuaçu).
Na dança, o corpo constitui o interlocutor, ele é o lugar de alegria e bem-estar.
Nele há uma revelação de musicalidade, de cadência, de ritmo e de movimento.
Nessa dimensão, os componentes criam novos passos e dançam dentro da roda do
samba. O corpo inscreve-se à perfeição em todas as tradições historiográficas que
buscam explicar cadeia de efeitos de causalidades exteriores à esfera do objeto
estudado, mas refletidos nesse último (DEL PRIORE, 1994).
No Samba de Lata a função de percussionista pertence ao feminino, são as
mulheres que utilizam a lata para iniciar o ritmo do samba. Atualmente quem exerce
essa função é a já citada Marinalva dos Santos. Entre os que já bateram lata, os
depoentes citam Ornélia (já falecida), Piu (falecida, cujo nome não lembram). Nas
146
lembranças dos depoentes, aparece à figura de um percussionista masculino – o
senhor Nanô (também falecido).
Nas várias apresentações testemunhadas, percebe-se que para bater lata é
necessário demasiada força nos braços e sabedoria musical para que o tocador possa
dar o toque na lata no momento certo e daí as palmas e os cantos fazerem o
acompanhamento. O som emitido pela lata dá ritmo ao samba. Esse ritmo é a mais
rica expressão de musicalidade exteriorizada pelos moradores de Tijuaçu, prodigiosa
pela riqueza rítmica e pela variedade de timbres.
Segundo os depoentes, quando o samba surgiu não havia preocupação com
o vestuário, pois o samba constituía uma manifestação espontânea e não obedecia a
nenhum ritual que exigisse roupas adequadas. Fazia parte do lazer dos habitantes de
Tijuaçu. Dançava-se no pátio, no quintal, em qualquer lugar e com qualquer roupa.
Antes, para a gente sambar não tinha uma determinada roupa. Sambava-se
do jeito que estava vestido. Se você estava com uma saia, com vestido ou de
calça, não importava. (Fala de Marinalva Santos da Silva, entrevistada pela
autora em 10 de jan. de 2002, em sua residência – povoado de Quebra
Facão).
Mas quando o Samba de Lata ultrapassou os limites de Tijuaçu e passou a se
apresentar em outros locais, o grupo sentiu necessidade de pensar num vestuário. A
partir de 1970, a Prefeitura Municipal de Senhor do Bonfim fez a doação de tecidos
para os diferentes grupos que se apresentaram durante as festas juninas incluindo o
Samba de Lata. A partir daí, o grupo passou a fazer apresentações com esse
vestuário, ficando a prefeitura responsável pelo financiamento da indumentária. A cor
branca foi a escolhida para confeccionar as roupas. As mulheres e crianças vestem-se
com um vestido branco, rodado, comprido. Por baixo do vestido, geralmente usam um
short. Cabelos entrançados, colares no pescoço e pés descalços. Assim, as mulheres
estão preparadas para “fazer o samba”. Os homens, por sua vez, vestem calça e
camisa branca e, também os pés descalços. Hoje também utilizam uma camisa branca
com a inscrição “Samba de Lata”. Na foto da página 143, pode-se observar o grupo
sambando, como também a roupa utilizada por homens e mulheres. As roupas
utilizadas pelas mulheres lembram o mesmo vestuário utilizado nos terreiros de
candomblé.
147
Esse mundo temporário e diverso trazido pelas situações festivas constitui
uma maneira capaz de satisfazer de algum modo o desejo de prestígio. Mesmo por
poucos momentos, é um modo de sobressair. O samba tem a função de manifestar
visivelmente a ruptura com a vida diária, o encontro com uma posição elevada e
distinta, acima das demais. Nesse momento, os sambistas sentem-se senhores de
si121, pois estão visíveis ao olhar do outro, mostrando o que mais sabem fazer –
sambar.
Com as experiências vivenciadas pela população de Tijuaçu, a partir do
processo de reconhecimento como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural
Palmares (assunto que já foi discutido no Capítulo 1), o Samba de Lata passou por
algumas mudanças. De manifestação espontânea, na qual todos podiam participar,
sem hora ou data e espaço delimitado, passou a ser uma manifestação de apenas um
grupo de moradores de Tijuaçu.
A partir de 1998, tem início um processo de visibilidade e algumas normas são
adotadas dentro do grupo do samba, dentre elas a de que as crianças devem ser
iniciadas no samba para que as gerações mais jovens aprendam a sambar e para que
haja uma continuidade dessa tradição. Assim, as crianças de diferentes idades
passaram a aprender a dançar o samba.
Nesse sentido para dar conta da demanda de convites, ocorreu o
cadastramento dos componentes, determinação de dias para o ensaio e cobrança de
valores pelas apresentações. Esse constituiu o grupo do Samba de Lata, seus
componentes que representam tal manifestação. Mas esse grupo fechado não impede
que outras pessoas da comunidade possam fazer sua roda de samba.
121
Sobre festas cf. Scarano (2002, 2004); Del Priore (1984), segundo a referida autora, as festas do
catolicismo, temperadas quase sempre com danças e cantos africanos, e que traziam muito
valorizadas oportunidades de exibir um valioso vestuário. Era o momento em que personagens fora
do comum e da realidade local tomavam corpo e participavam integralmente do dia-a-dia da
comunidade. Era a ruptura com o curso normal de trabalho e miséria esgotantes, de comida
repetitiva e monótona, de trajes pobres e indesejados.
148
3.3 Batuque, roda e dança: outras manifestações culturais de Tijuaçu
Outras danças de Tijuaçu também vêm conquistando seu espaço. Com o
movimento de valorização da cultura local, algumas manifestações foram recriadas e
reinventadas, como a Dança do Parentesco, Dança do Arco-Íris e a Latinha da
Mamãe. Segundo Del Priore (1994, p. 55):
As danças profanas invadiram as festas na Colônia porque permitiam
também à população autóctone participar do culto católico, mesmo que o
fazendo com duplo caráter ritual. Elas provocavam uma transformação formal
e estética, tanto nas festas quanto nas procissões, e permitiam, quer ao
negro, quer ao índio, identificar-se com o “outro”, o colonizador. Elas,
finalmente, incentivaram a canalização da capacidade de resposta das
culturas dominadas frente à situação de conflito criada com a escravidão
negra e o trabalho compulsório indígena.
A auto-identificação e valorização da cultura pelos moradores de Tijuaçu,
intensificaram a criação e resgate de algumas manifestações culturais. Principalmente
os mais jovens estão envolvidos nesse movimento. Algumas dessas manifestações
reinventadas têm permanecido enquanto outras não seguem esse mesmo caminho.
3.3.1 A solidariedade presente em diferentes espaços: A Dança do Parentesco
A Dança do Parentesco é uma manifestação cultural, criada em 1978 por
Marcelo Santana, que assim justifica sua reinvenção: “já que todos são parentes em
Tijuaçu, então criei a Dança do Parentesco”, e complementou:
O grupo inicialmente era formado por 28 pessoas. No meio destes, 28
componentes tinham oito irmãos, seis irmãs, sobrinhas, primos e tias. Por isso
se chamou Parentesco, porque os componentes eram todos parentes
próximos (Fala de Marcelo, entrevistado pela autora em 08 de ago. de 2004,
em Senhor do Bonfim).
149
Como os habitantes de Tijuaçu fazem parte de uma mesma família, a referida
dança foi criada como representação desses laços familiares. Esses moradores estão
sempre juntos, seja no trabalho realizado na roça, na escola e na diversão. Essa
manifestação foi criada tendo como objetivo mostrar a riqueza cultural existente em
Tijuaçu, levando os mais jovens a participar dessa cultura e mostrando seus dotes
artísticos, uma vez que o Samba de Lata era formado principalmente por adultos.
Segundo Marcelo, a Dança do Parentesco teve início no ano de 1978 e é um tipo de
quadrilha, apresentada durante as festas juninas em Senhor do Bonfim e em outras
comemorações. O ritmo da dança é uma mistura de ritmos afros, forró, reggae, frevo e
pagode. As letras, inicialmente, foram compostas por Marcelo, mas atualmente os
próprios componentes também passaram a compor, tendo hoje em torno de 20 letras
de vários autores tijuaçuenses.
Como os componentes da referida dança se vestem? Segundo Marcelo, é da
forma mais descontraída possível, “lembrando o tempo da escravidão, seus
componentes vestem-se como os escravos”. Assim, toda indumentária usada pelos
componentes da Dança do Parentesco rememora a época da escravidão.
As vestes retratam há um tempo anterior, no qual os negros viviam
descalços, sem camisa, cabelo baixo, rapado, sem chapéu e vestia tipo uma
calça curta folgada, feita de saco. Esta é a vestimenta dos homens. As
meninas usam uma saia bem curta e uma blusa tipo tomara que caía, curta.
A dança e toda a sua composição representam a cultura de Tijuaçu e da
região. Geralmente o grupo se apresenta nos festejos de São Benedito no distrito e
em Senhor do Bonfim, durante as festas juninas. Como toda manifestação cultural, a
Dança do Parentesco segue alguns rituais e obedecem algumas regras. Para fazer
parte do grupo, o candidato se submete a uma seleção que tem como pré-requisito
uma análise relativa as habilidades de dançarino ou dançarina. Outra avaliação diz
respeito à disponibilidade para participar dos ensaios. Dessa forma, a população tem
criado e reinventado suas tradições, dando assim continuidade à sua cultura.
150
3.3.2 Cores e Dança: A Roda do Arco-Íris
Essa manifestação é uma espécie de roda e tem como componentes
mulheres que residem no perímetro quilombola e que se vestem de roupas coloridas
de variadas cores, representando o arco-íris, daí vem o nome da dança.
Para apresentação da referida dança, os componentes formam uma grande
roda e vão tirando versos e fazendo coreografias. Essa manifestação também foi
criada por Marcelo e a maioria dos seus componentes reside no povoado de Quebra
Facão. A intenção, segundo Marcelo, era criar uma roda diferente das que existiam.
Assim surgiu a roda em 2000, justamente diante da animação que o povo de QuebraFacão apresentava. A comunidade se reuniu nessa localidade para dar início aos
primeiros ensaios.
Segundo Marcelo, depois de algum tempo, a roda foi se fragmentando, teve
pouco tempo de vida. Faltou empenho dos participantes e persistência. Na falta
dessas prerrogativas a Dança do Arco-íris deixou de existir. Apenas ficaram fotos e
relatos dessa manifestação cultural.
151
Foto n° 13 - Componentes da Dança do Arco- Íris.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. Maio de 2003.
Na foto acima, observa-se uma das apresentações da Dança do Arco-Íris que
aconteceu no povoado de Quebra Facão. O grupo é formado só por mulheres, com
idade acima de 30 anos, algumas já são avós. Os integrantes vestem-se com roupas
coloridas cada uma de cor diferente, representando as cores do arco-íris, são saias
rodadas que tem como propósito facilitar o movimento do corpo, sendo também
utilizado na cabeça um turbante da cor da roupa. Com toda vaidade inerente a alma
feminina elas se enfeitavam com brincos, pulseiras e colares para abrilhantarem ainda
mais as apresentações.
3.3.3 O canto e o encanto das crianças
152
A Latinha da Mamãe é outra manifestação cultural criada em Tijuaçu, por
conta do seu reconhecimento como território quilombola. Esse grupo é formado por
crianças entre 7 e 14 anos de idade, meninos e meninas que cantam e dançam,
constituindo um grupo musical, no qual cantam músicas de ritmos variados,
principalmente de pagode. Segundo os depoentes, essa manifestação teve início
quando um grupo formado por crianças passou a usar tampas e panelas de alumínio
de suas mães, e, em seguida, passaram a bater nestas em ritmo de pagode. A
iniciativa dessas crianças chamou atenção de alguns pais que começaram dar
incentivo às mesmas para que formassem um grupo musical.
O grupo Latinha da Mamãe é composto por 3 dançarinos (uma menina e dois
meninos), 2 vocalistas, 3 meninos que improvisaram uma bateria com tampas de
panela de alumínio, latas de tinta e de querosene e um tambor pintado de verde e
amarelo. Acompanha ainda o grupo um pandeiro. Segundo a mãe de dois
componentes, o grupo costuma se apresentar em aniversários de crianças (cobrando
um cachê para tais apresentações) e nos festejos que acontecem em Tijuaçu. Essas
crianças contagiam a todos com sua energia dançando e cantando nos diferentes
eventos.
Com graça e a ingenuidade inata das crianças, esse grupo, canta e encanta
aqueles que os assistem. Ensaiam duas ou três vezes por semana, mostrando com
brilho suas apresentações.
A Latinha da Mamãe é uma das manifestações que foi criada por conta do
reconhecimento de Tijuaçu. Essas crianças incentivadas por seus pais, dedicam-se
com vontade e compromisso as atividades do grupo e sonham em serem
reconhecidos pelo seu trabalho e poderem se apresentar em outros centros urbanos.
Assim, percebe-se que, o que possibilitou o resgate, a invenção e a
reinvenção dessas diferentes manifestações de Tijuaçu, foi principalmente o
movimento e visibilidade que esses moradores tiveram após o reconhecimento do
território como remanescente de quilombo. Tal movimento fez despertar nesses
quilombolas a valorização e a sua identidade cultural. Assim, seus moradores foram
criando manifestações, danças, ritmos e músicas para mostrar seus valores culturais..
153
3.4 Fé e devoção: a festa de São Benedito
Na foto abaixo se observa a imagem de São Benedito no altar central da
igreja de Tijuaçu. É este o santo mais venerado pela população. Em suas mãos, estão
todas as agruras de seus devotos, que aguardam com ansiedade o recebimento de
suas graças e zelam com grande fervor o seu altar, pondo flores, trocando as toalhas
e acendendo velas.
Scarano (2003, p. 115), aponta que nas Igrejas de irmandades negras, são
numerosas e ricas as representações dos patronos, os santos padroeiros, mas mesmo
em igrejas de brancos, eles são encontrados. As figuras esculpidas seguem o estilo
vigente e as roupagens e mantos desdobram-se em pregas e desenhos dourados,
como os dos demais. Alguém que merece a honra dos altares também merece trajes
de prestígio e posição majestática, como acontece com as representações dos exvotos.
154
Foto n° 14 - Altar de São Benedito.
Fotografo: MIRANDA, Carmélia. 2001.
Segundo Souza (2002, p. 152), os africanos etnicamente heterogêneos e com
estruturas sociais estraçalhadas pelo tráfico só se tornaram uma comunidade e
começaram a partilhar uma cultura no Novo Mundo quando eles próprios a criaram, a
partir das novas condições de vida. Assim, os valores e padrões culturais herdados da
África incorporaram-se aos padrões religiosos da América portuguesa (MIRANDA,
1999, p. 80). Eles trouxeram consigo informações, conhecimentos, crenças, música,
gestos e vivências, mas não havia condições materiais e humanas para que
reconstituíssem suas sociedades nas Américas. Assim, tiveram que se reorganizar e
155
criar instituições que respondessem às necessidades da vida cotidiana, sob as
limitadas condições impostas pela escravidão.
Mintz e Price (1976)122 argumentam que uma herança cultural africana
partilhada pelos povos trazidos para as colônias tem que ser definida menos com
relação à sobrevivência e retenções do que por meio de um princípio gramatical que
molda os comportamentos. Assim, orientações comuns relativas ao funcionamento do
universo (como crenças religiosas e explicações sobre a causalidade dos fenômenos
naturais) e pressupostos básicos acerca das relações sociais (como as motivações
que levam as pessoas a adotar determinados comportamentos) fizeram com que os
indivíduos vindos da mesma região da África reagissem de formas diferentes quanto
às soluções adotadas.
Tal argumentação distingue-se da defendida por Herskovits,123 que define a
identidade macrocultural entre as diferentes etnias africanas a partir de traços culturais
que aparecem recorrentemente, como certos comportamentos, objetos ou ritos, Mintz
e Price detectam essa mesma identidade a partir de uma gramática cultural comum
que leva à produção desses comportamentos, ritos e artefatos.
Assim, percebe-se que as diferentes nações oriundas da África, traziam
modos de vida também diferentes e assim reagiram de forma diversa frente as várias
situações vivenciadas. Nessa perspectiva, os habitantes de Tijuaçu, netos e bisnetos
de africanos, aprenderam a cultuar os santos da Igreja Católica e adotaram São
Benedito como protetor. A devoção a esse santo é secular, pois foram os seus
antepassados que a iniciaram e ela continua na contemporaneidade.
Durante o Brasil Colônia, a devoção a São Benedito, Nossa Senhora do
Rosário e Santa Efigênia foi introduzida pelos missionários e teve grande penetração
entre os escravos. Estes rearticularam suas crenças, reinterpretando os rituais de
devotamento ao rosário da Senhora. Em decorrência da cor da pele de alguns desses
santos, suas histórias de vida contribuíram para um despertar da devoção dos
africanos a eles. O santo mais popular entre os negros, São Benedito, tem como
atributo a humildade, docilidade, subserviência e submissão. Dessa forma é
122
123
Mintz; Price apud Souza (2002. p. 152-153).
Herskovits apud Souza (2002, p. 153 ).
156
apresentado como modelo a ser seguido124. Os referidos santos tiveram um grande
número de devotos negros cativos e forros na América portuguesa em decorrência de
suas histórias de vida e da cor de sua pele125. Os cativos e negros forros identificaramse com tais características, apresentadas por esses santos.
Segundo Vainfas e Souza (2000, p. 47), várias foram às irmandades de
negros consagradas à Nossa Senhora do Rosário na América portuguesa, o que,
aliás, faz pensar sobre o lugar central ocupado pelas irmandades no cotidiano religioso
no Brasil Colônia.
Em diferentes lugares da América portuguesa encontram-se irmandades de
São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, principalmente nas zonas de
mineração da Bahia, Minas Gerais e Goiás. Em Tijuaçu, os depoentes narram que a
devoção a São Benedito é herança de seus avós e por esse santo negro eles têm uma
grande estima. Identificam-se pela cor da pele e pela sua história de vida.
É no dia 1º de novembro que a população de Tijuaçu homenageia seu
padroeiro – São Benedito. Nos dias anteriores a essa data, há uma grande
movimentação no distrito, principalmente em relação aos preparativos para a festa,
com a arrumação da igreja e a organização da procissão. Os preparativos, na
verdade, têm início três meses antes, quando seus organizadores pedem contribuição
e donativos aos devotos e aos comerciantes de Tijuaçu e de Senhor do Bonfim, para
cobrir as despesas com flores, velas, arrumação do altar e outras gastos que venham
a ocorrer.
No período colonial a coleta de esmolas para os festejos dos santos era uma
prática comum das irmandades de “homens pretos”. Os membros das irmandades,
especialmente aqueles indicados para esse fim, percorriam as ruas ao som de música
e com estandartes, recolhendo dinheiro com vistas à realização de festas de santos
padroeiros. Era cena comum nas ruas das cidades coloniais, onde muitas vezes
danças e tambores africanos conviviam com as folias de origem portuguesa126.
124
Cf. Verger (1981. p. 28); Campos apud Miranda (1999, p. 81).
Para Campos apud Miranda (1999, p. 81), “São Benedito era de sangue mouro e não negro. Nasceu
na Sicília, em 1526, de pais escravos”.
126
Para maior esclarecimento sobre o referido tema, cf. Borges (1998, p.92-96).
125
157
O depoimento abaixo comenta a construção da Igreja de São Benedito em
Tijuaçu:
A igreja que hoje se encontra em Tijuaçu é uma nova construção, ou seja,
deve ter por volta de 50 anos. Existia uma anterior, que, segundo alguns
depoentes “estava muito velha” e derrubaram-na e construíram outra127. Esta
que os habitantes de Tijuaçu chamam de nova é uma pequena igreja, que
hoje está sendo ampliada. Senhor Antero, que nasceu em 1922, diz que: “sei
que alcancei a igreja aí quando eu me endendi. Rezava, orava, fazia
penitência e, e [...]” (Entrevista com o sr. Antero, realizada pela autora em 11
de jan. de 2002, em Tijuaçu).
Os depoentes sugerem que anterior a igreja atual, existia uma igreja pequena,
certamente uma capela para celebrações periódicas. A devoção do povo de Tijuaçu a
São Benedito é anterior à construção da igreja, que teve como objetivo a continuidade
da fé e devoção do povo a esse santo. Percebe-se que em alguns lugares do Brasil,
onde há devoção a São Benedito não existe uma data fixa no calendário cristão para
sua comemoração. Em Jacobina128, o dia de São Benedito é festejado após o
Pentecostes, na segunda-feira depois da festa do Divino Espírito Santo.
No Compromisso129 da Irmandade de São Benedito da Freguesia de Nossa
Senhora da Penha de Itapagipe, na Bahia, datada de 20 de agosto de 1777130, a festa
em homenagem ao referido santo ocorria na primeira oitava da Páscoa. Nesse dia,
havia uma missa cantada pelo vigário, sermão e música com o Santíssimo
Sacramento exposto e a posse dos novos oficiais da Mesa. Era um momento festivo.
Toda a despesa da festa era financiada pelo patrimônio da Irmandade. Durante os
127
Ao analisar os registros da Paróquia de Senhor do Bonfim e da Cúria de Salvador, não foi
encontrado o documento que autorizou a construção da referida igreja.
128
Cidade do interior da Bahia, que fica distante de Tijuaçu cerca de 125 km.
129
Segundo Boschi (1986) apud Souza 2002, p.184 a 185). As confrarias tinham como objetivo
uma série de ações voltadas para o bem-estar dos irmãos, servindo como associações de ajuda
mútua que permitiam o acesso a benefícios sociais, de outras formas inacessíveis, principalmente aos
escravos, forros e livres de origem africana. A preocupação com assistência aos irmãos era matéria
de seus compromissos, conjunto de regras calcado nas regulamentações das misericórdias
portuguesas, voltadas para a ajuda aos mais necessitados e com formas de organização bem
precisas. Esse compromisso definia o perfil dos irmãos a serem admitidas às regras de sua admissão,
as maneiras de contribuir para os fundos da irmandade, a composição e as formas de escolha da
mesa administrativa, as atribuições dos irmãos e dos administradores e o feitio da festa do orago. A
partir de 1765, os compromissos tinham que ser aprovados pela Coroa Portuguesa, que assim
mantinha certo controle sobre seu funcionamento.
130
Biblioteca Nacional de Lisboa, 20 ago. 1777, Códice 561.
158
festejos, eram celebradas outras missas em intenção dos irmãos vivos e para aqueles
que desapareceram131.
Segundo Souza (2002, p. 184), as irmandades foram elementos fundamentais
no exercício de uma religiosidade colonial e barroca, caracterizada pelo culto aos
santos, pelas devoções pessoais e pela pompa das procissões e festas, marcada pela
grandiosidade das manifestações exteriores da fé, na qual conviviam elementos
sagrados e profanos. Segundo Boschi (1986, p. 68):
Desde cedo as irmandades tornaram-se exclusivas de determinadas
categorias raciais e sociais, agrupando as pessoas conforme a cor de sua
pele e seu lugar na hierarquia social. As irmandades de “homens pretos”
foram, segundo o referido autor, as únicas instituições nas quais os negros
puderam se manifestar com relativa autonomia e liberdade. Entretanto eram,
contraditoriamente, agentes eficazes da colonização, “pois que apesar de ser
um local privilegiado da afirmação das identidades culturais, étnicas ou
sociais dos grupos integrantes”, também se identificavam com a política
européia colonizadora.
Uma justificativa costumeira para a criação das irmandades de “homens
pretos” era a de dar um enterro cristão a negros muitas vezes abandonados pelos
seus senhores na hora da morte. Assim, as pequenas contribuições pagas ao longo da
vida, na forma de anuidades, garantiam um enterro digno para aqueles que, muitas
vezes, se não contassem com o amparo da irmandade à qual pertenciam, seriam
jogados em alguma praia ou mato a serem devorados pelos animais. Imagine como foi
difícil para o africano aceitar essa triste realidade, ao imaginar que ao morrer seu
corpo seria jogado em qualquer lugar, sem nenhum ritual de passagem. Para os
africanos, a morte representa um rito de passagem e é simbolizada por vários rituais.
Estes rituais eram realizados ao som de muita música e dança. Para os escravos
africanos, a integração às irmandades possibilitou um morrer mais digno.
Em Tijuaçu, a festa de São Benedito possui o lado sagrado e o lado profano.
O sagrado é realizado no espaço da igreja, onde várias pessoas reúnem-se à noite
para rezar a novena. No dia 1º de novembro, à tarde, é realizado o ritual da Igreja
131
A Irmandade de São Benedito de Nossa Senhora da Penha de Itapagipe tinha entre seus membros
brancos, negros escravos e forros, o que esclarece no seu Capítulo 8, que não era apenas uma
Irmandade formada por negros. Um dos compromissos era que seus membros fossem pessoas
idôneas e honestas, principalmente aqueles que ocupavam os diferentes cargos. Biblioteca Nacional
de Lisboa, 20 ago. de 1777. Códice 561.
159
Católica com a celebração da missa e posteriormente a procissão (VAINFAS; SOUZA;
2000, p. 51)132. Esta constitui o ponto alto da festa, pois os devotos percorrem as ruas
da vila carregando o andor com a imagem de São Benedito, cantando e louvando o
referido santo. Os jesuítas, desde a época de Tomé de Souza, usaram as procissões
como parte de sua ação evangelizadora, quer junto aos índios, quer junto aos colonos,
apostando no seu potencial como recurso audiovisual. Publicações feitas na Época
Moderna, para orientar o clero na organização de procissões, deixavam entrever sua
função, para além de celebrativa, como tranqüilizadora.
As festas e as procissões foram comumente vistas pela historiografia como
provas da exterioridade da religiosidade colonial. O apego às exterioridades como
marca de nosso catolicismo, que se expressava na profusão de capelas, no aspecto
teatral, no culto a santos, na afeição maior ao externo, à imagem do que à coisa
figurada, ao espiritual, teve nas festas coloniais seu melhor exemplo. Dentro dessa
perspectiva, as festas e as procissões aconteciam na América portuguesa. A
procissão tinha o sentido de afirmar a fé cristã através das representações dos santos.
No dia de São Benedito, as pessoas que residem nas roças e povoados próximos
dirigem-se a Tijuaçu para participar das comemorações. Nesse dia, também são
realizados batizados e casamentos.
132
Segundo Vainfas e Souza, p.51, desde o governo de Tomé de Souza, no século XVI, foram
instituídas, aqui, as procissões, onde um cortejo de fiéis seguia os andores ou o pálio com o
sacerdote.
160
Foto n° 15– Igreja de São Benedito.
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
Na foto acima pode-se observar a Igreja de São Benedito, localizada ao
centro da praça principal.
O lado profano da festa em homenagem ao padroeiro de Tijuaçu, é realizado
fora do espaço da igreja, na praça Durval Juviniano dos Santos, localizada em frente a
esta. Nesse espaço os moradores armam barracas de bebidas e comidas para onde
se dirigem pessoas dos povoados e cidades vizinhas, como Senhor do Bonfim e
Filadélfia em busca de diversão. Arma-se também um palco no meio da praça, onde
cantores da região contratados pela prefeitura animam a festa durante os nove dias
que antecedem o dia 1º de novembro, data que se afirma o ponto alto da festa; é o dia
em que circula mais gente no distrito, pois geralmente a atração principal é um cantor
ou uma banda de grande fama na região, reunindo na praça um grupo maior de
161
pessoas à procura de lazer. Há também apresentações de grupos da cultura local,
como o Samba de Lata, a Dança do Parentesco, a Latinha da Mamãe, entre outras. As
emissoras de rádio e TV locais também participam dos festejos, fazendo entrevistas e
dando cobertura as festividades.
Os depoentes contam que, em tempos anteriores, a festa foi bem melhor.
Havia uma maior devoção por parte das pessoas do distrito. Nos dias que antecediam
o dia de São Benedito algumas pessoas visitavam a cidade de Monte Santo (lugar de
peregrinação), distante cerca 150 km. A saída da caravana que se dirigia à essa
cidade revestia-se de grande movimento no distrito e povoados de Tijuaçu. Muita
gente ia para as ruas assistir à saída dos peregrinos, havendo queima de fogos133 na
ida e no retorno. Os moradores contam que esse costume já não mais existe. Poucos
são os devotos que ainda se dirigem à cidade de Monte Santo. Durante o período das
comemorações em homenagem a São Benedito, era comum moradores que se
encontravam trabalhando ou residindo fora retornarem para participar dos festejos.
Atualmente,
novos
elementos
foram
incorporados
a
essa
festa,
transformando-a numa festa de largo, onde o lado profano ganhou mais visibilidade e
o lado sagrado ficou cada vez mais restrito à novena e à procissão. Para Scarano
(2002, p.31), ‘’o momento da festa é constituído de oportunidades de um agir social,
possibilitando encontrar pessoas, fazer e manter amizades, orar e também de divertirse”. Observa-se essas oportunidades durante os festejos que acontecem em Tijuaçu,
mas há uma predominância do lado profano.
Alguns depoentes justificam a sua devoção a história de vida de São
Benedito. E assim eles relatam as histórias ouvidas sobre o seu santo protetor: narram
que São Benedito foi um cozinheiro escravo que ajudava os pobres. Contam que
Benedito saía para buscar água, distante da casa de seu senhor, com um pote de
barro. Pelo caminho, ele encontrava os maltrapilhos (pobres e famintos), que lhe
pediam para que trouxesse comida. Comovia-se com tal situação, colocava a comida
dentro do pote e levava para esses famintos. Algumas pessoas vendo que Benedito
133
No Brasil Colônia o uso de fogos para abrir a festa constituía uma tradição que, ganhava dimensões
de propaganda governamental, ou de resistência das elites contra o mesmo governo. Mídia eficiente a
iluminar as noites escuras das vilas na Colônia, o foguetório tornava-se um instrumento caro, porém
eficaz, de poder, segundo Del Priore (1984. p. 40).
162
levava comida aos pobres disseram ao seu senhor: “Benedito está lhe roubando
mantimentos e levando dentro do pote para os pobres”. O senhor colocou-se a vigiálo. Certa vez, viu que Benedito vinha com o pote e lhe interrogou: “O que levas neste
pote?” Benedito respondeu: “Levo cravos, rosas e flores de laranjeira, meu senhor”. O
senhor pediu que ele mostrasse e assim ele fez. Ao descer o pote da cabeça e
apresentá-lo ao senhor, os alimentos que ali levava haviam se transformado em
cravos, rosas e flores de laranjeira. A partir desse fato, segundo dizem, surgiu a
devoção a São Benedito, considerado pelos devotos o protetor dos pobres e famintos.
A história, narrada pelos depoentes, foi ouvida e recontada. Sensibiliza a
população por várias questões: uma delas diz respeito à cor da pele de São Benedito
e também ao fato dele ter sido escravo; outra diz respeito à solidariedade do santo,
que enganava ao seu senhor para dar aos pobres. O santo é conhecido pelos seus
atributos. Quando perguntados por que escolheram São Benedito como padroeiro,
eles respondem: “é tudo negro, porque iria colocar um branco”. Para os depoentes,
São Benedito é o protetor dos pretos, por isso ele é o padroeiro de Tijuaçu. Nas
novenas, é costume os devotos rezarem o seguinte bendito:
Meu São Benedito, sua manga cheira, é cravo e rosa e é flor de laranjeira.
Que santo é aquele, que vem no seu andor, é São Benedito o nosso senhor.
Meu São Benedito, com Jesus menino, é santo de todos, do amor divino.
Meu São Benedito, é um santo de preto, o que fala na boca, responde no
peito.
Meu São Benedito, já foi cozinheiro, e hoje ele é santo, de Deus verdadeiro.
Meu São Benedito, estrela do norte, guiai-me meu santo, de Deus verdadeiro.
Meu santo é aquele, que vem lá de dentro? É São Benedito, que vem do
convento.
Que santo é aquele, que vem acolá? É São Benedito, que vai para o altar.
Que santo é aquele, que vem na estrada? É São Benedito, com sua jangada.
Que santo é aquele que vem na ladeira? É São Benedito com sua bandeira.
Meu São Benedito, vos peço também, que nos dê a glória para sempre.
Amém.
Esse bendito refere-se a vida humilde de São Benedito, constituindo uma
homenagem a esse santo. Segundo Brito (1999, p. 155),134 a disseminação de
134
Ainda segundo o referido autor, “Quanto ao conteúdo, seu repertório de temas inclui mandamentos e
sacramentos da religião católica, internalizados como normas de sociabilidade, idéias de inferno,
163
benditos está associada às Santas Missões dos capuchinhos, presentes no Nordeste
desde o século XIX. Conforme a história dos capuchinhos na Bahia, nas Santas
Missões (deslocamentos em que missionários, por 8 ou 10 dias, circulavam para
pregações e práticas piedosas em localidades do interior), os benditos ocuparam um
lugar de destaque: entremeando sermões, missas e procissões; seguindo exposição
do Santíssimo e bênção eucarística; aguardando a hora da confissão; pela manhã e à
tardinha, “o povo fazia orações e cantava o bendito”, segundo descrições e relatórios
de frades encarregados dessas missões (REGNI, apud BRITO, p. 155). Por ter uma
linguagem fácil, ritmada e repetitiva, todos poderiam aprendê-los e memorizá-los.
Assim, para os habitantes de Tijuaçu, a busca de melhores dias é
compartilhada coletivamente, com todos através da contrição de rezas e no fervor da
elocução de cânticos benditos e rezas.
A fé e a devoção à São Benedito representa
um sustentáculo, um porto seguro, pois na horas difíceis é a esse santo que os
moradores recorrem.
São Benedito é o grande homenageado da comunidade. Os devotos
costumam fazer promessas e acreditam que seus pedidos serão atendidos, cuja
prática é oriunda das especificidades do catolicismo colonial.
Ao catolicismo agregava-se um caráter prático e imediatista, que buscava
consolo e soluções para as questões do cotidiano, principalmente por meio da
interferência dos santos, aos quais eram dirigidas promessas, que eram cumpridas
mediante o alcance da graça pedida135. A falta de um conhecimento científico e as
tentativas de introduzir outras maneiras de pensar foram, portanto, prerrogativa de
determinados grupos e muito lentamente afetaram os menos cultos e mais simples.
Entretanto, mesmo pessoas de elevada categoria socioeconômica apelavam para
outras forças nos momentos de perigo, inclusive aquelas que pautavam suas vidas
pelos novos cânones.
Romarias, peregrinações, devoções são tradições que continuam com maior
força, principalmente no meio rural. Nesse espaço, inserem-se profundamente em um
mundo de uma religiosidade muito forte, de fé e devoção. Nessa perspectiva,
paraíso, Deus, pecado, castigo e perdão, próprios do imaginário popular nordestino; além de
homenagens e devoções ao Padre Cícero e a Nossa Senhora das Dores”.
135
Para maior esclarecimento sobre essa questão cf. Souza (1994); Souza (1986); Reis (1991).
164
prevalece o clamor aos santos, afinal, há de se perceber a própria condição em que
vivem as populações rurais, cujos recursos são mais escassos e inexistem
organizações capazes de socorrer as pessoas nos momentos de necessidade. Assim,
as promessas teriam que ser cumpridas para não comprometer as súplicas.
O suplicante crê na existência de uma entidade propiciadora e está certo de
que ouve seus pedidos e está disposta a responder-lhes. Admite, também, a
idéia de que a entidade deseja uma paga concreta que sirva para perpetuar o
benefício recebido. (SCARANO, 2004, p. 35).
Essa relação de pedido e pagamento de promessa é uma relação que foi
socializada com outras pessoas, pois aquele que recebeu o benefício vai falar para o
outro, e assim, ampliam-se as devoções. Ao divulgar o bom resultado da prece, o
santo torna-se conhecido e popular. Dessa forma, mesmo constituindo ação individual
ou de um pequeno grupo, a questão torna-se coletiva e abarca toda a comunidade. A
graça recebida beneficia alguém e constitui estímulo para que os membros do grupo
possam obter favor semelhante. O devoto divulga a fé, a crença no poder de Deus e
da oração.
Assim, os devotos de São Benedito procuram expandir sua devoção através
do pagamento de suas promessas. A festa de São Benedito constitui a mais
importante expressão de fé e de devoção. Nesse dia o distrito recebe pessoas dos
povoados e fazendas vizinhas que vão participar das diversas celebrações da Igreja,
como batismo, casamentos e os rituais da Igreja Católica.
A população se diz devota de São Benedito, expressando contrária a qualquer
tipo de culto afro. Nas várias entrevistas realizadas perguntava-se sobre os cultos
afros e a participação de alguns membros da comunidade. Os depoentes negavam
insistentemente qualquer ligação. Falavam que em tempos atrás algumas pessoas
participavam de alguns terreiros, mas fora da comunidade, e afirmavam que em
Tijuaçu nunca teve terreiro de candomblé. Dessa forma, nas várias visitas que fizemos
à comunidade percebemos que os cultos afros existem em localidades próximas à
Tijuaçu, que muitos moradores participam, mas de forma discreta, ou poderia dizer
escondida. As pessoas temem serem discriminadas, por isso negam. Esse símbolo
da herança africana – o candomblé – foi a mais perseguida por décadas no Brasil. E
165
em Tijuaçu essa tradição religiosa permanece escamoteada e escondida, mas
resistindo ao preconceito. O candomblé sempre cumpriu um papel de resistência
negra à opressão racial. Muitos dos quilombos foram ajudados pelas casas de
candomblé (ex.: Tambor de Mina no Maranhão e outros), que funcionavam como
abrigo para escravos fugitivos se esconderam da repressão, ora dos capitães-de-mato
ora da guarda imperial (DOMINGUES, 2004, p. 300-301).
Religião dos escravos africanos de origem nagô, também conhecido, como
iorubá, o candomblé, apesar das várias perseguições seja da Igreja Católica, seja das
autoridades conseguiu sobreviver e foi reinventado no Brasil, a princípio, no ambiente
escravista. Com o fim do cativeiro, essa religião se expandiu no ambiente urbano e
industrial do país.
Assim, essa tradição religiosa ainda sofre represálias em Tijuaçu, tanto que
seus cultos e adeptos são mantidos escondidos. Como a comunidade vive um
momento de resgate e valorização da sua cultura, certamente os cultos afros deverão
aparecer sem temência.
O referido capítulo discutiu sobre as manifestações culturais de Tijuaçu,
pontuando questões referentes a identidade cultural desse moradores, que foram
construídas ao longo dos anos. Algumas dessas manifestações foram resgatadas e
outras foram reinventadas, e outras ainda foram negadas como o candomblé. As
reinvenções se devem principalmente em decorrência do seu reconhecimento como
comunidade quilombola.
Durante as diferentes comemorações de Tijuaçu, percebe-se que a rotina
desse território é interrompida, pelos festejos que permitem o encontro, a visibilidade,
o pagamento das promessas feitas ao santo, o prazer, a alegria e a diversão.
CONCLUSÃO
Pesquisar
sobre
a
comunidade
negra
rural
de
Tijuaçu,
através,
principalmente, das memórias dos habitantes mais velhos, direcionou-me a
percepção nas entrelinhas das vivências cotidianas dessa população. A oralidade e a
166
documentação escrita constituíram as principais fontes dessa investigação. Os
depoimentos orais possibilitaram-me estar mais próximo dos narradores das tramas
de Tijuaçu e de conhecer os diferentes fazeres desta comunidade.
Ao debruçar-me sobre as diferentes fontes percebi que os primeiros
habitantes da antiga Fazenda Lagarto – atual distrito de Tijuaçu – estão na região
desde o início do século XIX, quando negros fugidos do recôncavo baiano passaram
a viver nessa localidade até então desabitada. A referida documentação ainda sugere
que, ao final do século XVII, missionários franciscanos passaram a viver na região,
onde fundaram a Missão de Nossa Senhora das Neves no atual distrito de Missão do
Sahy (hoje distrito de Senhor do Bonfim) e a Missão de Bom Jesus da Glória, na atual
cidade de Jacobina. A região das Jacobinas ou Comarca do Sul, como era conhecida
no século XVIII, constituía uma das mais importantes e extensas regiões da Província
da Bahia. Segundo o Mapa das Freguesias do Arcebispado da Bahia, de 1775, a
referida comarca abrangia 10 freguesias, que iam desde Santo Antônio da Vila de
Jacobina (atual cidade de Jacobina), atravessando a parte norte, nordeste, o Vale do
Rio São Francisco, seguindo até o sudoeste do atual Estado da Bahia, formando um
território muito extenso, que atraía pessoas de diferentes lugares, tropeiros e
aventureiros à procura de ouro e de pedras preciosas.
No século XVIII, nas terras da Vila de Santo Antônio de Jacobina foi
encontrado o metal mais cobiçado da época – “o ouro”. Tal acontecimento
determinou a estruturação do arraial e a criação da Vila de Santo Antônio de
Jacobina. Com a movimentação de pessoas, a descoberta do ouro, a Vila de Santo
Antônio
de
Jacobina
passou,
também,
a
atrair
negros
fugidos,
oriundos
principalmente da Comarca de Cachoeira, como sugerem documentos dos séculos
XVIII e XIX. As constantes fugas ocorridas nesse período levaram as autoridades da
época a tomarem uma série de medidas, entre as quais: destruição de quilombos,
proibição dos batuques negros, nomeação de capitães-mores de entradas e assaltos,
que tinham como função destruir quilombos e caçar escravos fugidos.
A oralidade aponta sobre os primeiros habitantes que passaram a habitar a
região de Tijuaçu, chegados no início do século XIX, que eram escravos fugidos do
recôncavo.
167
A identidade cultural dessa população está em construção, sobretudo após o
reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, o que possibilitou
a elevação da auto-estima dos moradores e sua auto-identificação enquanto afrodescendente. Dessa forma, os moradores passaram a valorizar as suas
manifestações culturais, festas e experiências cotidianas, dando maior visibilidade às
suas expressões culturais, reinventando e recriando outras atividades que estavam
adormecidas.
Porém, a documentação escrita não esclarece sobre a formação de quilombo
em Tijuaçu – concebido a partir do conceito de rebeldia e enfrentamento, como
também, de nenhum ajuntamento de negros nesse território. Entretanto, a oralidade
aponta o ajuntamento de negros fugidos na região desde o início do século XIX e que
tem permanecido até o momento, com seus costumes e tradições. Tendo em vista,
essas evidências, considero Tijuaçu um quilombo contemporâneo pela permanência
e a continuidade dos seus costumes e de suas tradições que têm resistido ao longo
desses dois séculos. Apresentando uma resistência cultural que se expressa através
dos modos de vida de seus habitantes.
Na memória dos depoentes estão imbricadas as histórias sobre os escravos
que fugiram e ocuparam essas terras. A oralidade emite parecer sobre a formação
histórica desse território, muito antes de se iniciar o processo de reconhecimento de
remanescentes de quilombo, afinal, tal concepção não foi criada para atender a
necessidade de garantir legado histórico e cultural a esta comunidade. Anterior a
essa discussão, a memória dos mais velhos moradores já narrava a história de
Mariinha Rodrigues - a escrava fugida iniciadora de toda essa trama.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), habitam
nessa região cerca de 9.000 pessoas, em condições de vida muito precária,
população bastante pobre que vive basicamente da agricultura. Poucas casas
possuem banheiro e em alguns povoados, a energia e água encanada, ainda não
chegaram. Há um grande número de analfabetos, muitas crianças pelas ruas e
famílias numerosas. Outro problema que tem preocupado os moradores é o grande
número de alcoólatras. Apesar das conquistas da Associação Agropastoril e os
168
benefícios que têm chegado através dos órgãos oficiais, principalmente da Fundação
Cultural Palmares, ainda muito precisa ser feito em prol da comunidade.
A região, na década de 50 do século passado, foi um pólo de plantação e
venda de mamona, que atraiu vários comerciantes, que passaram a residir em
Tijuaçu. Na ocasião, foram instalados pequenos comércios. A feira livre atraía
pessoas dos povoados e cidades vizinhas. Infelizmente o comércio de mamona
acabou devido as constantes secas que se abateram sobre a região e a feira não tem
o movimento de outrora, apenas pequenos comércios ainda permanecem com
vendas pacatas.
Nessa caminhada, observa-se o papel de destaque que as mulheres
conquistaram desde a figura de Mariinha Rodrigues, considerada fundadora do lugar,
passando por mulheres de hoje, que assumem variados papéis nos diferentes
setores da comunidade. Empenhadas em dirigir suas funções, elas contribuem para a
permanência das tradições culturais. O costume de morar um junto do outro e possuir
um quintal comum, colabora para que os laços familiares se fortifiquem. Filhos e
netos constroem suas casas vizinhas às de seus pais. Essa interação, esse
ajuntamento familiar, é outra característica dos moradores de Tijuaçu, que têm como
objetivo a permanência dos laços familiares. Estes se fortalecem através das
atividades cotidianas. Os membros estão juntos no trabalho, no lazer e nas
comemorações.
A seguir no croqui n. 3, podem-se observar como as diferentes famílias
residentes em Tijuaçu, mantém seus laços de parentesco no espaço físico. A casa da
matriarca localiza-se no meio e as casas dos filhos vão sendo construídas ao lado
desta, tendo um quintal comum, onde os membros da família, desenvolvem
diferentes atividades. O croqui abaixo representa a distribuição do espaço da família
de Ilca.
169
Croqui n. 3 - Representação das residências – vida em família.
Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005.
O texto implícito na narrativa mescla histórias dos primeiros habitantes da
região, do início do Samba de Lata, da festa de São Benedito e de vivências
cotidianas. Os versos do Samba de Lata rememoram episódios cotidianos, em que a
repetição é a característica principal. Assim, a cada representação do grupo, essas
170
representações são reinventadas. A memória possibilita essas intervenções e
algumas incorporações tanto através do esquecimento como da lembrança, como
afirma Williams (1979), toda tradição é seletiva. Ao mesmo tempo em que é revelada
pode também ser ocultada, pois a memória é a grande responsável pelas recriações.
Também podemos chamar essas manifestações de “tradição inventada”, que
segundo Hobsbawm (2002, p. 9):
Entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras
tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado.
A repetição estabelece uma continuidade com um passado histórico
apropriado, que contribui para a permanência da tradição. Em Tijuaçu, percebe-se tal
movimento nas diferentes manifestações lá existentes.
O Samba de Lata constitui a principal manifestação cultural da população,
estando presente em todas as comemorações da comunidade. No contexto da
religiosidade, São Benedito é o guardião da população: a ele são atribuídas as
graças recebidas e a proteção em todas as horas.
A grande contribuição que essa pesquisa traz para a historiografia
contemporânea é a recuperação dos vestígios das experiências vivenciadas pelos
moradores dessa comunidade negra rural e que foram despertadas pela memória.
Esse despertar criou possibilidades de remexer nas lembranças adormecidas, que
foram aos poucos conduzidas à rememoração.
Uma comunidade que continua
mantendo seus traços culturais através do casamento entre as mesmas famílias,
demonstrando também uma forma de resistência em vários sentidos. Creio que não é
possível responder a todas as questões pensadas inicialmente. Algumas foram mais
concretizadas e outras não, mas o que me conforta é saber que o ofício do historiador
é inacabado, não se têm respostas para todas as perguntas. Ficam aqui algumas
interrogações para que outros busquem respondê-las e possam alcançar outras
histórias com suas respostas. A História é um processo em constante mobilidade. Lá
adiante respostas serão dadas.
171
Não posso deixar de registrar a plena consciência de que aprendi muito com
esses homens e mulheres, moradores de Tijuaçu, nas suas lutas cotidianas, na forma
simples de viver e de encarar os desafios da vida. Essa visibilidade que a história
social tem possibilitado àqueles que a história oficial marginalizou é a grande
conquista desse trabalho, dar voz ao homem comum.
FONTES
I ORAIS:
172
a)
Relação dos entrevistados:
1 Abílio Fagundes, filho de Tijuaçu, aposentado, tem 91 anos de idade.
Entrevistado pela autora em 08/04/2001.
2 Amauri da Silva Rodrigues em 2005, tinha 16 anos, neto de D. Anísia.
Entrevistado pela autora em 02/02/2005.
3 Anísia Rodrigues, nasceu e sempre viveu em Tijuaçu, aposentada, tem 89
anos de idade. Entrevistada pela autora em 26/04/2002 e 19/11/2003.
4 Antero Dias Damasceno, filho de Tijuaçu, aposentado e tem 89 nos de
idade. Entrevistado pela autora em 11/01/2002 e 26/12/1998.
5 Antônio Manoel de Aquino, nasceu em Barreiras – povoado de Tijuaçu e é
trabalhador rural. Entrevistado pela autora em 26/12/1998.
6 Antônio Marcos Rodrigues da Silva, nasceu e sempre viveu em Tijuaçu, 30
anos de idade, atual presidente da Associação Quilombola. Entrevistado pela
autora em 28/01/2005.
7 Dalva Odilon Santana, nasceu na Fazenda Morro e depois que casou com o
senhor Maurício Odilon Santana passou a residir na Fazenda Alto; tem 66
anos de idade, é dona de casa, trabalhadora rural e ex- sambista.
Entrevistada pela autora em 26/12/1998 e 11/01/2002.
8 Edcarlos Dmasceno da Silva, é estudante
e tem 18 anos de idade.
Entrevistado pela autora em 02/02/2005.
9 Ilca dos Santos, nascida e criada em Tijuaçu, é trabalhadora rural,
atualmente é vice-presidente da Associação de Tijuaçu e tem 42 anos de
idade. Entrevistada pela autora em 22/10/2000, 14/08/2002 e 28/10/2003.
10 Iraildes Morito Santana, nasceu e sempre viveu na Fazenda Alto, é
também trabalhadora rural e tem 64 anos de idade. Entrevistada pela autora
em 26/12/1998.
11 Ivomar Gitânio dos Santos, filho de Senhor do Bonfim, faz um trabalho
assistencial e de pesquisa em Tijuaçu, atualmente é representante da Câmara
Municipal de Senhor do Bonfim. Entrevistado pela autora em 02/02/2005.
173
12 Joana Rodrigues, filha de Genoveva Rodrigues, iniciadora do Samba de
Lata; tem 60 anos de idade. Entrevistada pela autora em 03/02/2005.
13 Juliana Rodrigues, nasceu e viveu em Tijuaçu, professora primária, neta de
D. Anísia, tem 25 anos de idade. Entrevistada pela autora em 02/02/2005.
14 Marcelo Odilon Santana, filho de Dalva Odilon de Santana, é professor e
cursa Pedagogia. Entrevistado pela autora em 08/08/2003.
15 Maria Bernardina, nasceu e se criou no povoado de Barreiras, aposentada
como trabalhadora rural, tem 90 anos de idade. Entrevistada pela autora em
08/04/2001.
16 Maria Edista, moradora de Barreiras, faleceu em 2004. Entrevistada pela
autora em 08/04/2000.
17 Maria Vitor, moradora de Tijuaçu, trabalhadora rural, tem 45 anos de idade.
Entrevistada pela autora em 11/02/2002.
18 Maria Rodrigues é irmã de Iraildes Morito Santana, nunca saíram da
Fazenda Alto, tem 66 anos de idade. Entrevistada pela autora em 26/12/1998.
19 Marinalva Santos da Silva, nasceu e sempre viveu povoado de Quebra
Facão, é trabalhadora rural e vendedora de milho assado, é a percussionista
do Samba de Lata e tem 48 anos de idade. Entrevistada pela autora em
10/01/2002.
20 Maurício Santana é marido de Dalva Odilon Santana, trabalhador rural,
vive na Fazenda Alto e tem 65 anos de idade. Entrevistado pela autora em
11/01/2002.
21 Nira dos Santos, componente do Samba de Lata e agricultora. Entrevistada
pela autora em 05/12/2004.
22 Valdelice da Silva, mais conhecida por Detinha, atuante nos diferentes
setores da comunidade. Entrevistada pela autora em 02/11/2001.
23 Valmir dos Santos, nasceu em Tijuaçu é fiscal da limpeza pública e expresidente da Associação de Tijuaçu. Entrevistado pela autora em 22/10/2000
e 20/04/2001.
174
II ESCRITAS:
a.
ARQUIVOS BRASILEIROS
Arquivos Baianos
1 Arquivo Público do Estado da Bahia
Seção Colonial e Imperial:
Mapas de escravos e seus respectivos donos – 1872/1887
Mapas de escravos livres
Registros Eclesiásticos de Terras
Catálogo de Registro de Terras
Catálogo de Leis e Registros de Terras
Igreja Matriz – Vila Nova da Rainha – 1843/1867
Presidência da Província – Governo- Limites da Freguesia -1833/1882
2 Instituto Geográfico e Histórico
Diário Oficial da década de 50 sobre o mapeamento dos municípios.
3 Fórum de Senhor de Bonfim
Livros de Notas do final do século XIX;
Inventários e Testamentos de meados do século XIX até o século XX;
Livro de Registro de Compra e Venda de Escravos – final do Século XIX;
Livros de Carta de Alforria, final do século XIX.
4 Fundação Cultural Palmares
Relatório Antropológico sobre Tijuaçu
Mapa do perímetro quilombola
5 Associação Quilombola de Tijuaçu e Adjacências
Estatuto da Associação dos Moradores de Tijuaçu
175
Atas da reunião da Associação dos Moradores de Tijuaçu
6 Arquivo dos Franciscanos de Campo Formoso
Documentos e Mapas sobre a região
7 Paróquia de Senhor do Bonfim
Livros de Batismo, de Casamentos e de Óbitos do Município de Senhor do
Bonfim, Campo Formoso e Jacobina.
8 Centro de Estudos Baianos da Universidade da Bahia
Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de
quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais.
Arquivos Paulistas
1 Biblioteca da PUC
Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral.
Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de
quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais.
2 Biblioteca da USP
Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral.
Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de
quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais.
3 Biblioteca da UNICAMP
Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral.
Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de
quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais.
b . ARQUIVOS PORTUGUESES
176
1 Biblioteca Nacional de Lisboa - BN
Códice n. 7627, 11.08.1886 - Regimento do Ouvidor Geral do Brasil;
Códice n. 610, Relação do salitre;
Códice n. 599, cálculo estatístico do número de escravos existentes em
países cristãos em 1832. Efeitos da abolição da escravatura no Brasil; como
suprir a falta de braços;
Códice n. 746, dos diamantes e de outros contratos da extração deles dos
cofres de Lisboa para os países estrangeiros dos abusos em que todos
laborarão e das providências com que se lhe tem ocorrido até o ano de 1788;
Códice 457, coleção dos breves Pontifícios e Leis Régias desde o ano de
1741;
Códice 642. Carta Régia elevando à categoria de vilas as aldeias que eram
administradas por Jesuítas;
Códice 455, relação dos libertos do reino;
Códice 1680, Miscelânea - papéis vários;
Códice 8555, Breve reflexão acerca do tráfico de escravos;
Códice 8695, Escravatura - Abolição da escravatura -sua história desde 1784,
considerações várias (s.d.);
Códice 10.483 - Escravidão dos pretos.
2 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra -BGUC
Catálogo de Manuscritos:
Códice 706: Carta Régia de 11 de janeiro de 1690 sobre liberdade de uma
escrava (fls. 25); Aviso de 18 de março de 1601 sobre liberdade (fls.26);
Ordem de 20 de julho de 1772 sobre Direitos de Escravos (fls. 54); Sobre
Direitos de escravos (fls. 88v.); Provisão de 8 de fevereiro de 1790 sobre
Arrecadação de bens de Libertos . . . (fls. 93v a 95); Alvará que regula a
prisão dos escravos por fugidos (fls.128); Cópia da Provisão de 18 de outubro
de 1773 sobre direitos de escravos (fls. 31 e 32v.); Apontamentos relativos às
leis reguladoras do subsídio literário e à arrecadação da coleta (fls. 136);
Carta Régia ao Conde das Galveas, Vice-Rei e Capitão General de Mar e
177
Terra do Estado do Brasil sobre as comarcas onde deviam pôr as ações os
moradores das vilas incluídas no distrito da Relação da Baía (fls. 140v); Título
porque pertence ao Escrivão dos resíduos e capelas escrever na relação (fls.
141); Carta Régia de 30 de julho de 1766 sobre o contrato feito pelos donos
de engenhos e lavradores (fls.144v); Alvará régio regulando o cumprimento da
lei de 1º. de julho de 1730 sobre os navios que navegavam nos portos do
Brasil para a Costa da Mina (fls.157v); Alvará sobre a forma da venda de
escravos por arrematação (fls. 160);
Códice 707: Alvará que determinou que os negros que se achassem em
quilombos estando neles voluntariamente se lhe ponha com fogo uma marca
em uma espada com a letra F e sendo achado com esta M se lhe corte uma
orelha sem mais processo (fls.33v); Provisão que proibiu que os negros e
negras vendessem fazendas pelas ruas, e que nas Câmeras não pudessem
servir pessoas que tivessem lojas (fls.80);
Códice 708: Índice do Livro 1o. Registro da Relação da Baía (fls.1);
Códice 709: Carta Régia que proibiu ao provedor da Fazenda cobrar direitos
alguns dos escravos que as partes remetem para o Rio de Janeiro, dando os
compradores, ou vendedores, fiança de não irem para as Minas, tirando
somente as guias para este fim, sem despensa de mais despacho algum
(fls.300v);
Códice 710: Datada de 17 de julho de 1775 - Provisão para coibirem as
desordens dos negros fugidos suscitado à observação do parágrafo 3o. do
Regimento dos Capitães do Mato de 1724 para se darem prêmios de vinte
oitavos de cada negro quilombo, repetindo-se por quilombo toda a habitação
de negros chegando a cinco (fls.23);
Códice 567: Alvará regulando a vinda de escravos negros dos portos da
América, como marinheiros (fls.253v).
3 Arquivo da Torre do Tombo:
Papéis do Brasil:
Avulsos 3, Documentos 25 e 26: Mapas do Ouro que se fundiu nas Fundições
178
de Goiás e de São Félix;
Avulso 9, Maço 2;
Avulso 1, n. 22 - Resenha sobre o conteúdo de alguns alvarás regulando a
navegação entre o Brasil, Moçambique e a Índia;
Avulso 7, n. 05- Donativo imposto aguardente;
Códice 6: Provisões sobre matéria administrativa;
Códice 15: Jurisdição Eclesiástica no Brasil;
Capitanias do Brasil: 524 p.14, Livro 196: Livro do tesoureiro João Pinto
Pereira da casa de Fundição de Jacobina para se lançarem todos os cargos e
parcelas do seu rendimento do ouro e dos quintos reais; Livro 201, 1780:
Receitas que se fizeram dos remédios para os escravos e forçados das Galés
da Capitania da Bahia;
Chancelaria de D. João VI, Livro 8.
4 Arquivo Histórico Ultramarino
Capitania da Bahia:
Documento n. 8750, 09.11.1775;
Documento n. 19.401, 05.06.1799;
Documento n. 18.173, 06.01.1798;
Documento n. 19.362, 20.04.1799;
Documento n. 29.815, 07.04.1807;
Documento n. 29.893, 16.06.1807;
Documento n. 29.913, 13 e 08.07.1807;
Documento n. 12.917, 30.04.1786;
Documento n. 12.235, 1786;
Documento n. 6.966, 01.12.1765.
5 Arquivo da Biblioteca da Ajuda
Códice: 51-x – 30, fl. 67-70.
c. IBGE
179
Recenseamentos Gerais de 1990
Mapas do Estado da Bahia
Mapa do Município de Senhor do Bonfim
Mapa do distrito de Tijuaçu
d. Imagéticas
a)
Fotografias:
Dos diferentes fazeres da população de Tijuaçu
Do distrito de Tijuaçu
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194
ANEXO
195
196
Foto n° 1 – Mãe com o bebê no colo.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
197
Foto n° 2 - Apresentação do Samba de Lata.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2005.
Foto n° 3 – Vendedora de feijão verde acompanhada com seus filhos em Senhor do Bonfim.
Fonte: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
198
Foto n° 4 – Morador de Tijuaçu.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
199
Foto n° 5 – Pequeno açude onde alguns habitantes de Tijuaçu abastecem suas casas com água.
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
Foto n° 6 – Vida cotidiana na zona rural – família de d. Ernestina.
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
200
Foto n° 7 - Sede da Associação Quilombola.
Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005.
Foto n° 8 – Casal de Tijuaçu
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998.
201
Foto n. 9 – Apresentação da Roda do Arco-Íris.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003.
Foto n. 10 – A simpatia da vendedora de acarajé.
Fotografo: Jonas, 2002.
202
Foto n. 11 – Valmir dos Santos, ex-presidente da Associação quilombola.
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2005.
203
Foto n. 12 – Moradora de Tijuaçu
Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. s/d.
204
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CARMLIA APARECIDA SILVA MIRANDA