1 CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA VESTÍGIOS RECUPERADOS: EXPERIÊNCIAS DA COMUNIDADE NEGRA RURAL DE TIJUAÇU – BA DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP São Paulo 2006 2 Ficha Catalográfica Miranda, Carmélia Aparecida Silva M641 Vestígios recuperados: experiências da comunidade negra rural de Tijuaçu – BA. / Carmélia Aparecida Silva Miranda. – São Paulo, 2006. 201 f. : il. Ficha Catalográfica Orientadora: Yvone Dias Avelino Tese (Doutorado em História Social)- Pontifícia 3 CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA VESTÍGIOS RECUPERADOS: EXPERIÊNCIAS DA COMUNIDADE NEGRA RURAL DE TIJUAÇU – BA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História Social, sob orientação da Profa. Doutora Yvone Dias Avelino. DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP São Paulo 2006 4 _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ _____________________________________________________________________ 5 RESUMO A presente investigação centra-se no estudo das experiências históricas da comunidade negra rural do distrito de Tijuaçu, localizado no município de Senhor do Bonfim, norte do estado da Bahia. São objetos de discussão as vivências cotidianas dos seus moradores, as relações familiares, de trabalho e de subsistência, como também a trajetória das famílias que secularmente habitam esse perímetro quilombola. Os depoentes atribuem a fundação da comunidade a Mariinha Rodrigues – uma negra fugida do recôncavo baiano – que, no início do século XIX, refugiou-se na região, criando estratégias de ocupação naquele território. No processo de investigação discutiu-se também sobre a construção da identidade cultural dos moradores de Tijuaçu; o papel desempenhado pelas mulheres, a razão de algumas delas haver conquistado o espaço da liderança e as manifestações culturais e religiosas, como a festa de São Benedito e o Samba de Lata. Para tanto, foi consultada também a documentação oficial do final do século XVIII e XIX sobre a região, objetivando encontrar referências a ajuntamentos de negros e documentos que pudessem apontar os possíveis proprietários dessas terras. Entretanto, a oralidade constituiu nossa fonte principal. Através dela pôde-se entender as diversas experiências vivenciadas pelos moradores de Tijuaçu. As lembranças sobre a ocupação do território e sobre os primeiros moradores estão presentes na fala dos mais velhos integrantes da comunidade quilombola, permitindo o mapeamento das experiências históricas acumuladas. Palavras-chave: história; oralidade; comunidade negra; afro-descendente; cultura. 6 ABSTRACT This research focus on the studies of the historical experiences of the black rural communities in the Tijuaçu district, located in the Senhor do Bomfin municipality, north of Bahia state. The central subject of discussion are the quotidian life experiences of their inhabitants, family, work and survival relationships, like also the trajectory of the families which for more than a century have been living inside this quilombola perimeter. The witness argued that the community was founded by Mariinha Rodrigues – a runaway black slave from the Recôncavo baiano (Bahia Bay) – whom, in the beginning of the 19th century, took refuge in Tijuaçu region, creating strategies of occupation in this territory. Along the research process, it is also discussed the cultural identity which is built among the inhabitants of Tijuaçu; the role played by women, the reason why some of them have reached leadership and the cultural and religious manifestations, like the São Benedito party and the Samba de Lata song. Then, it was necessary to analyze the official documentation from late 18th to early 19th centuries about the region, to find references of black communities and documents which could point out the possible landlords of these lands. However, orality became our main source. Throughout orality the distinct life experiences lived by the Tijuaçu inhabitants could be understood. The memories about the occupation of the territory and about its first inhabitants are present in the speech of the elder members of the quilombola community allowed to map the accumulated historical experiences. Key words: history, orality, black community, afro-descendent, culture. 7 Aos meus pais Arnaldo e Salvelina pela vida. Aos meus filhos Igor, Ingrid e Indira que deram mais sentido a minha vida. 8 AGRADECIMENTOS: Neste espaço, quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para a conclusão dessa caminhada, e, confesso, são muitas as dívidas que acumulei nesses 48 meses. Primeiramente, agradeço a Deus pela força e pela coragem para que eu enfrentasse todos os desafios dessa jornada. Nos momentos mais difíceis, segurava em sua mão e seguia em frente. Durante o percurso, foram muitas as contribuições para que eu chegasse à reta final. Pude contar com a colaboração da minha família e dos meus amigos. Quero assinalar que não existe uma hierarquia de importância nesses agradecimentos. Todos os que constam destas linhas foram relevantes para a coroação desta caminhada. Agradeço aos meus pais pela inegável contribuição e ao meu avô Luiz Alves dos Santos (in memorian), responsável pela minha iniciação nos estudos da História ao contar, com grande entusiasmo, os momentos históricos que vivenciou, seja na perseguição a Lampião, seja participando da Revolução de 32, em São Paulo, ou na Revolta do Pau de Colher, na Bahia. Como gostaria que estivesse presente, comungando comigo desta etapa, pois sei que ficaria muito orgulhoso da minha trajetória. A minha avó Cecília por tudo, pelo amor, pelo carinho e pela admiração. Durante a pesquisa, várias visitas foram feitas à região de Tijuaçu. Nelas consegui conquistar a amizade de muitas pessoas, que não se esquivavam de me acompanhar ás diferentes fazendas e povoados. A qualquer hora e a qualquer momento, estavam sempre solícitas. Esses amigos me ensinaram a fazer várias reflexões sobre o ofício de pesquisador. Não poderia deixar de registrar aqui o apoio e a contribuição de Ilca e de toda sua família. Sua casa constituiu um porto seguro nas minhas visitas. Era nesse lar cheio de alegria e humildade que eu me dirigia quando estava em Tijuaçu, tendo a certeza do apoio e da recepção cordial, caso Ilca não estivesse, havia sempre algum membro de sua família disposto a me acompanhar. Quero também agradecer a d. Dalva, Detinha, Dinha, dona Anísia, Antônio Marcos, 9 Suzana, Socorro, Nira, Marcelo, Joana e Joinha. Agradeço a todos os informantes, que se mostraram disponíveis e foram invadidos no seu cotidiano pelas minhas indagações. Um agradecimento especial a Valmir, um dos meus primeiros informantes, que abriu caminho para as minhas interrogações e que tem lutado com grande veemência pelas causas de Tijuaçu. Expresso meu reconhecimento às instituições que tornaram possíveis esta pesquisa. Á CAPES, pela concessão da bolsa, sem a qual seria difícil cursar o Doutorado numa Instituição particular, como também pela “bolsa sanduíche” – Programa de Estágio no Exterior, através do qual tive uma experiência ímpar vivendo por quatro meses em Portugal e pesquisando nos diferentes arquivos daquele país. Agradeço também à Universidade do Estado da Bahia, especificamente a PPG, pela concessão da bolsa PAC, que facilitou a compra de livros, material e as viagens de campo, além de outras despesas. Aos meus colegas da UNEB – Departamento de Ciências Humanas - Campus IV – Jacobina, que tiveram a generosidade de me liberar da sala de aula para que eu cursasse o Doutorado. Agradeço ao pessoal do Arquivo Público do Estado da Bahia, do Arquivo dos Franciscanos de Campo Formoso, do Centro de Estudos Baianos da Universidade da Bahia, do Fórum de Senhor do Bonfim, da Paróquia de Senhor do Bonfim, da Biblioteca da Assembléia Legislativa da Bahia, da Biblioteca Nacional de Lisboa, do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal, do Arquivo da Torre do Tombo, da Biblioteca da Ajuda, da Biblioteca da Universidade de Coimbra e da Biblioteca Municipal do Porto. Nessas instituições realizei minhas pesquisas sobre a região de Senhor do Bonfim. Um agradecimento especialíssimo à minha orientadora, Profa. Dra. Yvone Dias Avelino, que confiou no meu talento e aceitou orientar o meu trabalho e cujo incentivo e apoio me sensibilizaram. Com sua gentileza soube encarar com serenidade os diferentes momentos. Estendo esse agradecimento ao Prof. Dr. Justino Pereira Magalhães, meu orientador em Portugal, que foi muito presente, juntamente com sua esposa Violante, nos meses em que residi naquele país, e que se tornou um 10 grande amigo, sendo uma presença constante na minha vida acadêmica. Obrigada pela atenção, compreensão e confiança. Aos professores Doutores Estefânia Fraga e José Adilson, que participaram da banca examinadora de qualificação, fizeram críticas, deram sugestões e muito contribuíram para as minhas reflexões. Às professoras Doutoras Antonieta Antonacci, Heloisa de Faria Cruz, Maria Odila Leite da Silva Dias e Yara Khoury pelo apoio e sugestões. As discussões realizadas em sala de aula muito contribuíram para o meu caminhar intelectual. Aos amigos Silvana Vieira, minha irmã na vida intelectual, presença constante em várias etapas dessa jornada, a Ana Maria Aragão Ramos, amiga irmã, que, mesmo distante, leu meu trabalho, dando valorosa contribuição. A Jô Conceição, que participou de vários momentos dessa caminhada e que leu a redação final. Obrigada pelo companheirismo, amizade e sinceridade. Jamais esquecerei que foi com vocês, principalmente, que dividi as minhas angústias, inseguranças, descobertas e alegrias. A Jane, minha grande amiga de todas as horas. A Cléa Inês, também grande amiga de todos os momentos, que sempre se fez presente nesse cotidiano acadêmico, encorajando-me nos momentos mais difíceis. A Rose minha amiga, pela cumplicidade e por acreditar em mim. Aos amigos e colegas do Doutorado, agradeço pelas vivências deste percurso. A Ângela, João Gomes, Ana Magna, Marcelo, Brás, Telma, Amailton e Cristina, que no compartilhar das atribuições do doutorado foram, também, companheiros na descontração e nos encontros sociais. A Ana Cláudia, que na vivência do Doutorado tornou-se minha amiga, a essa pessoa generosa, boa conselheira, amável e delicada, que compartilhou comigo das etapas desse caminho, estando sempre disponível para resolver minhas pendências na PUC, a minha gratidão. Aos meus amigos de Portugal: Frank, Flaviane, Fabiane, dona Rosa, Sayonara, pessoas muito presentes e que me permitiram encarar com alegria a saudade do Brasil e dos meus filhos. Agradeço também a Miguel, Conceição e família pelo apoio e assistência nas terras lusitanas e a Zé Oliveira, Isabel e Rita, amigos portugueses, pela confiança e apoio. 11 A Raimilson e Sandra, que muito me ajudaram na pesquisa, dedicando suas tardes ao meu trabalho e me acompanhando nas diferentes empreitadas, meu muito obrigado. Ao professor Ozelito, que intermediou minha entrada no Arquivo dos Franciscanos, em Campo Formoso. Ao Senhor José Freitas pelas informações e pelas longas horas de conversa sobre a História de Campo Formoso. Aos professores Aluísio, Carlos José e Graça pela revisão final do texto. Á professora Maria Alice Coelho, pelo apoio e compreensão. Aos meus irmãos Carla, Carmem e Cássio pelo grande apoio e compreensão. Ao meu filho Igor, que assumiu diferentes funções: fotógrafo em alguns momentos, interlocutor em outros, e que, nos momentos de maior aflição parava para ouvir alguns escritos da minha redação. À minha pequena Indira,que na difícil tarefa de reorganizar o tempo de adolescente, soube dividir comigo muitos momentos dessa trajetória e foi responsável pela diagramação da Tese. A Ingrid, que, com seu jeito descontraído, muito contribuiu para a conclusão dessa etapa. A Francisco, meu companheiro, pela compreensão e apoio, nunca se esquivando de me apoiar nas minhas decisões profissionais. Enfim, dedico este título a todos que contribuíram e estiveram ao meu lado. 12 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APEBa Arquivo Público do Estado da Bahia ADCT Atos das Disposições Constitucionais e Transitórias AHU Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa BN Biblioteca Nacional de Lisboa BPMP Biblioteca Pública Municipal do Porto BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra POM Coleção Pombalina, Biblioteca Nacional de Lisboa 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................13 CAPÍTULO I – HISTÓRIAS DO DISTRITO DE TIJUAÇU, RUÍDOS DESCONHECIDOS......................................................................................................25 1.1 Fragmentos lembrados e narrados...................................................................26 1.2 Fuga e formação de quilombo ..........................................................................46 1.3 Proprietários da Fazenda Lagarto na segunda metade do século XIX................................................................................................................... 50 1.4 Currais, gados e tropeiros: a trajetória da cidade de Senhor do Bonfim...........54 1.5 Identidade, reconhecimento e auto-estima.......................................................62 CAPÍTULO II – AS MULHERES TIJUAÇUENSES E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM VARIADAS E DIFERENTES FUNÇÕES..............................................79 2.1 Luta, sobrevivência e cotidiano: mulheres em ação.........................................80 2.2 Personagens e trajetórias: contatos e oralidade..............................................94 2.2.1 Heroína da vida, percussionista da alegria: Marinalva Silva Santos...............................................................................................................94 2.2.2 Da arte de contar histórias a tecedora de significados: Maria Anísia Rodrigues..........................................................................................................98 2.2.3 Guerreiras da comunidade: Dalva Odilon Santana e Ilca dos Santos ........................................................................................................................103 2.2.4 Lembranças sempre presentes de um tempo em continuidade – a alma do Samba: Genoveva e Joana Rodrigues......................................................106 2.2.5 O canto a serviço de Deus: Valdelice da Silva......................................108 14 2.3 A arte da sobrevivência .................................................................................109 2.3.1 Imagens e personagens: o cotidiano de um viver rural .......................113 CAPÍTULO III- TIJUAÇU FAZ A FESTA: DEVOÇÃO E DIVERSÃO NO ENCONTRO DE SUA IDENTIDADE ........................................................................120 3.1 A reinvenção da festa no Brasil Colônia.........................................................121 3.2 “Samba crioula/Que o branco não vem cá/Se ele vier/Pau vai levar”: versos, ritmos e diversão - o Samba de Lata de Tijuaçu............................................128 3.3 Batuque, roda e dança: outras manifestações culturais de Tijuaçu...............146 3.3.1 A solidariedade presente em diferentes espaços: A Dança do Parentesco......................................................................................................147 3.3.2 Cores e dança: a Roda do Arco-Íris......................................................148 3.3.3 O canto e o encanto das crianças.........................................................150 3.4 Fé e devoção: a festa de São Benedito..........................................................151 CONCLUSÃO.................................................................................................................164 FONTES .........................................................................................................................170 REFERÊNCIAS .............................................................................................................178 ANEXO............................................................................................................................193 15 INTRODUÇÃO Esta pesquisa nasceu do meu interesse em entender as experiências históricas dos habitantes da comunidade negra rural de Tijuaçu, localizada no município de Senhor do Bonfim1. Desde criança, residindo no referido município, fui testemunha dos modos de vida e dos costumes dos moradores desse distrito e de suas andanças pela cidade, como também observei o tratamento dado aos tijuaçuenses por parte da população de Senhor do Bonfim. Cresci ouvindo pessoas da cidade emitirem julgamentos preconceituosos e racistas sobre esses afro-descendentes. Muitos diziam que “os negos” do Lagarto eram preguiçosos, consumidores de bebida alcoólica, não gostavam de trabalhar e ficavam andando pelas ruas sem ocupação. Na época das eleições, os políticos da região costumavam taxar os habitantes de Tijuaçu como traidores, tendo em vista que os mesmos prometiam votar em um candidato e no momento da eleição votavam em outro. Percebo hoje que essa postura era uma estratégia de defesa utilizada por esses habitantes, pois votavam naqueles que achavam merecedores dos seus votos, não naqueles que faziam promessas que raramente eram cumpridas. Diferentemente da concepção que considera essa gente como traidora, o que se evidenciou durante a investigação e a análise das narrativas referentes a essa problemática, conforme observarei ao longo desse trabalho, foi que essa postura revelava-se como uma estratégia de defesa e de resposta ao comportamento desses políticos que só apareciam no distrito na época das eleições, deixando à deriva os problemas que afetavam a população. Assim sendo, a postura dessa gente era uma forma de protesto, de resistência e de insatisfação frente ao descaso dos representantes políticos em relação ao distrito. Tijuaçu, antiga fazenda Lagarto, é sede do distrito, tendo povoados e fazendas ao seu redor, cujos habitantes comungam dos mesmos valores culturais, uma vez que se dizem todos parentes, constituindo uma mesma família. Segundo os depoentes, as primeiras famílias chegaram a esse território no início do século XIX. Sua população, 1 Senhor do Bonfim está localizado ao Norte da Bahia, pertence à Região Econômica do Piemonte da Diamantina, sendo a 28ª. Região Administrativa. 16 predominantemente negra, vive da agricultura de subsistência, plantando pequenas roças para o consumo. O que sobra dessa produção é vendido na feira de Senhor do Bonfim. Essa é uma região seca e muito pobre, onde faltam serviços básicos, como saúde, educação, creches, rede de esgoto, ruas calçadas e emprego. Entretanto, essa situação de carência não abate a auto-estima da população, a qual se revela com intensidade através das suas manifestações culturais, como será discutido no terceiro capítulo desse trabalho. Nas várias visitas empreendidas à comunidade, observei que a maioria dos moradores possui sobrenomes comuns, dividindo-se nas seguintes parentelas: a dos Rodrigues, dos Santanas, dos Damascenos, dos Fagundes e dos Santos. Segundo os registros de terras da segunda metade do século XIX, Felipe Rodrigues da Silva e Joaquim Manoel de Santana foram os antigos donos da Fazenda Lagarto. Assim sendo, é possível levantar a hipótese de que esses sobrenomes advenham desses primeiros proprietários2, o que contraria, em parte, alguns estudos recentes ao afirmarem que: A prática de adotar o sobrenome do antigo senhor, embora não rara, não parece ter sido a mais usual entre os libertos. Na Bahia, pelo menos, pesquisas recentes mostram uma preferência por sobrenomes portugueses ligados a santos, símbolos, cerimônias ou festividades da Igreja Católica (SILVA, 1997, p. 203). No Brasil escravista, os assentos de batismo, casamentos e óbitos da Igreja permitiram, em geral, uma identificação mais segura dos escravos. Para os livres pobres, contudo, essa identificação é dificultada. Nessa documentação, não aparecem registros de sobrenomes para os mesmos. 2 Essa questão é discutida por Reis (1986), quando afirma que, no Brasil escravista, era comum os exescravos adotarem o sobrenome dos seus antigos senhores. Na obra citada, encontram-se referências sobre alguns libertos que adotaram o sobrenome dos seus ex-senhores. Outra referência é a obra de Silva (1997, p. 37). Segundo o referido autor: “Cândido da Fonseca Galvão, ‘homem livre e de cor’, seu pai, um africano da nação iorubá, recebeu o nome cristão de Benvindo ao chegar em Salvador, como escravo. Quando foi libertado, em data desconhecida na primeira metade do século XIX, adotou – como muitos libertos o fizeram – sobrenome de seu ex-senhor, um onomástico que transmitia prestígio social, tanto em Salvador da Bahia como no Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagoas”. 17 Os depoentes afirmam que Tijuaçu teve início quando negros fugidos do recôncavo ocuparam o distrito no começo do século XIX. Já a documentação escrita, conforme afirmei anteriormente, faz referência a essa localidade como originária dos antigos proprietários da Fazenda Lagarto, Felipe Rodrigues da Silva e Joaquim Manoel de Santana. Se os primeiros habitantes eram negros fugidos, não tinham senhor nem dono, pois não eram cativos, viviam livres em Tijuaçu, daí porque não teriam herdado os sobrenomes dos antigos proprietários. Assim sendo, a questão de onde vêm esses sobrenomes permanece e se constitui num dos confrontos entre a documentação escrita e a oralidade e num dos questionamentos do presente trabalho. Com o objetivo de entender questões como a referida anteriormente, como também compreender a construção da identidade cultural dos habitantes de Tijuaçu, empreendi leituras sobre comunidades negras rurais da Bahia e do Brasil. Nesse sentido, analisei a obra organizada por José Jorge de Carvalho (1995) que pesquisou sobre quilombo dos Rios das Rãs, localizado no oeste da Bahia. A referida obra apresenta a experiência histórica, social e cultural desse quilombo baiano, fundado na primeira metade do século XIX, cujos descendentes travaram uma luta jurídica, em nível federal, pela posse definitiva de suas terras. Fiz ainda a leitura do livro organizado por Clóvis Moura (2001), que é um convite ao aprofundamento na complexidade dos quilombos brasileiros, que, segundo o autor, constituem territórios abertos aos excluídos da sociedade colonial. Também foi analisada a obra organizada por Reis e Gomes (1996) a qual reúne artigos sobre quilombos situados em diversos locais do nosso país, constituindo-se em amostra das várias maneiras como o tema vem sendo tratado atualmente. Duas outras obras discutem sobre quilombos da região de Jacobina. A primeira, de Pedro Tomás Pedreira (1973), faz o mapeamento dos vários quilombos que existiram no Brasil e alguns que ainda subsistem; a segunda, de Flávio Gomes (2005), discute sobre os diferentes quilombos do Brasil, inclusive, faz algumas referências sobre os quilombos de Jacobina entre os séculos XVIII e XIX. Outras obras consultadas aparecem ao longo dos capítulos. Essas leituras levaramme a algumas indagações sobre as tramas de Tijuaçu: o que levou os primeiros habitantes a ocuparem essas terras? Como os valores culturais têm permanecido secularmente? Qual a trajetória do Samba de Lata e das outras manifestações 18 culturais ali existentes? Qual o olhar da população sobre sua afrodescendência? E qual a reação da população após o reconhecimento como remanescente de quilombo? Essas questões mapearam tal investigação. A comunidade negra rural de Tijuaçu a partir de 1998, passou pelo processo de reconhecimento como remanescente de quilombo ainda seguindo as regras do Laudo Antropológico. O reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo foi publicado no Diário Oficial da União em fevereiro de 2000. Tijuaçu, como tantas outras comunidades negras rurais do Brasil, vem lutando pelos seus direitos enquanto comunidade quilombola e, especificamente, quanta à demarcação de suas terras, cujo processo de legalização do seu território encontra-se ainda no INCRA.3 Acerca das considerações referentes ao conceito de quilombo, pode-se afirmar que este tem passado atualmente por vários questionamentos, diferindo da idéia de rebeldia, de fuga e de enfrentamento. Considero Tijuaçu um quilombo contemporâneo, uma comunidade negra rural habitada por descendentes de escravos que mantêm laços de parentesco e que vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em terras, por eles, secularmente ocupadas. Diversos autores discutem sobre o conceito de quilombo e sobre a história dos quilombos no Brasil, dentre os quais: Rodrigues (1977), Carneiro (1988), Ramos (1979), Freitas (1973), Moura (1999, 2001), Reis e Gomes (1996). A historiografia sobre escravidão tem apontado que muitas das comunidades negras rurais do Brasil – consideradas quilombos contemporâneos - têm trajetórias diferentes: algumas foram formadas por escravos (ou ex-escravos), após a falência de uma fazenda ou plantação nas décadas anteriores à Abolição; outras são frutos de doações de terras por senhores a ex-escravos; algumas, compradas por escravos libertos (que, em alguns casos, haviam comprado sua própria liberdade); outras, ainda, provêm de doações de terras a escravos que haviam servido ao exército em tempo de guerra ou doações a escravos por ordens religiosas. O que essas comunidades de diversas origens têm em comum, além da cor da pele de seus habitantes, é uma resistência cultural de longas décadas, em um território explorado 3 Segundo o técnico do INCRA, senhor Genildo Carvalho – assegurador dos processos de Regularização Fundiária –, o Projeto de Assentamento de Terras de Tijuaçu continua da mesma forma que a Fundação Cultural Palmares entregou ao INCRA, vez que esse órgão se encontra ainda se adaptando à nova realidade – o assentamento das terras quilombolas. Informação obtida dia 13 de fevereiro de 2006 na sede do INCRA em Salvador. 19 geralmente pela caça, pesca e agricultura de subsistência, sem subdivisões e escritura oficial (PRICE, 2000, p. 249). Essas comunidades estão passando atualmente por um processo de reconhecimento, no qual se inserem aspectos culturais, antropológicos, étnicos e históricos. Algumas dessas comunidades4 foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares5, outras encontram-se ainda, em processo de reconhecimento. Segundo a Fundação Cultural Palmares, o perímetro quilombola de Tijuaçu abrange as seguintes localidades: Alto Bonito, Água Branca, Macaco, Lajinha, Barreiras e Quebra Facão, tendo como sede o distrito de Tijuaçu. Presentemente, a comunidade continua vivenciando relações de trabalho com atividades na agricultura de subsistência. Tijuaçu por sua história e cultura, enquadra-se nos requisitos expostos no Art. 62 do ADCT, que rege sobre à ocupação de terras por afrobrasileiros. Os costumes e as tradições de seus habitantes revelam que os mesmos se fazem presente nessa região desde a primeira metade do século XIX. Daí pode-se afirmar que essa comunidade negra rural pode ser considerada remanescente de quilombo, segundo o que rege o referido artigo e as Disposições Gerais da Constituição de 1988. A partir da década de 90, várias comunidades negras rurais buscaram reconhecimento como remanescente de quilombo. Segundo Price: Foram estas comunidades – a maioria das quais sem tradições (seja em documentos escritos ou testemunho oral) que as conectem diretamente com os quilombos históricos – que, durante a década passada, entraram, em muitos casos, na batalha jurídica como candidatos à inclusão no círculo privilegiado de remanescentes de quilombos, embora, em 1995, quando o primeiro encontro nacional de remanescentes de quilombos aconteceu em Brasília, uma única destas comunidades tivesse sido reconhecida formalmente pelo Estado. O movimento começou a adquirir sucesso pequeno, porém simbolicamente importante, logo depois. Em 1996, um inventário de comunidades potencialmente aptas a constar na lista incluía mais de 500 e outro postulava ao menos 2.000 comunidades negras, no 4 5 Sobre o referido assunto ver: Carvalho (1995); Gusmão (2001) apud Moura 2001; Vogt; Fry (1996). Entidade pública vinculada ao Ministério da Cultura, instituída pela Lei Federal n. 7668, de 22 de agosto de 1988, tendo o seu Estatuto aprovado pelo Decreto n. 418, de 10 de janeiro de 1992, cuja missão corporifica os preceitos constitucionais de reforços à cidadania, identidade, ação e memória dos segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira, somando-se, ainda, o direito de acesso à cultura e indispensável ação do Estado na preservação das manifestações afrobrasileiras. 20 Brasil hoje, que podem se dizer descendentes de grupos quilombolas (2000, p. 249). Assim sendo, Tijuaçu e outras comunidades travaram batalhas junto aos órgãos competentes em busca de seu reconhecimento. A presente investigação tem como proposta discutir sobre a história de Tijuaçu, por meio dos testemunhos orais (de habitantes de Tjuaçu e de Senhor do Bonfim) e pela documentação oficial, consultada em diferentes arquivos do Brasil e de Portugal. Assim, a intenção é discutir a trajetória de sua população e o estudo das experiências históricas e das relações sociais e de família, analisando os costumes, a religiosidade, as tradições e as diferentes manifestações culturais desse perímetro quilombola. Outras questões focalizam os seguintes tópicos: as relações de trabalho e de compadrio; a identificação dos moradores enquanto quilombolas; os benefícios chegados à população após o reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo; a construção de sua identidade cultural; o papel desempenhado pelas mulheres ao longo dos anos e como e por que essas mulheres conquistaram o espaço da liderança. Através da história oral, busquei localizar vestígios do passado que refletem no presente e que constituem a história desse reduto rural. A investigação foi buscar nos resquícios da memória as histórias ouvidas e recontadas pelos mais velhos e pelos jovens habitantes de Tijuaçu. Por ter nascido em Senhor do Bonfim e conhecer alguns moradores, a minha entrada na comunidade como pesquisadora foi facilitada. Outro ponto que contribuiu para minha aproximação diz respeito ao ofício de professora, pois, muitos profissionais que lecionam no distrito, no Ensino Fundamental I e II, tinham sido meus alunos na Universidade do Estado da Bahia – Campus VII. Através deles, pude obter informações sobre as experiências de vida desses habitantes. A primeira pessoa, que tive contato em Tijuaçu foi Antônio Marcos Rodrigues da Silva6, em 1998, que me acompanhou pelas fazendas e povoados da região, apresentando-me aos mais antigos moradores e aos contadores de histórias. Nesse dia (26 de dezembro de 6 Antônio Marcos Rodrigues é o atual presidente da Associação Quilombola Agropastoril de Tijuaçu e Adjacências, biênio 2005-2007. 21 1998), conversamos com dona Anísia, dona Dalva e com o senhor Antônio Manoel de Aquino (então com idade de 81 anos). A conversa com esse senhor aconteceu embaixo de uma árvore chamada barriguda, típica da região, sob o sol escaldante do verão. Nesse local, o depoente narrou suas vivências e as histórias ouvidas e dizia: “eu nasci nas Barreiras (povoado próximo). Sabe de onde veio essa nação? Da África. Essa nação da raça negra veio da África”. Esse primeiro contato constituiu-se em grande valia para outras conversas posteriores, possibilitando-me conhecer outras pessoas e ouvir outras histórias sobre a região. As constantes visitas tornaram possível um ambiente de confiança. As pessoas sentiam uma grande satisfação em falar sobre Tijuaçu e expressavam, com prazer, sobre as histórias contadas por seus pais e avós. Por conta das várias visitas realizadas ao distrito, aos poucos fui tendo conhecimento do cotidiano desses habitantes e assim passei a participar das reuniões da Associação, a conhecer os problemas que afligiam a população e até em alguns momentos criava alternativas de solução. Dessa forma, estabeleci um vínculo de amizade com o ex-presidente da Associação, Valmir do Santos, com Ilca Maria dos Santos, atual vice-presidente, Detinha, zeladora da Igreja Católica, com D. Dalva, líder do povoado Alto Bonito e com Suzana, Nira, Dinha e tantas outras amizades que foram iniciadas durante a fase de pesquisa. Essas pessoas passaram a ser referência para a essa investigação. Quando era preciso colher depoimentos dos diferentes moradores, era a eles que eu recorria, principalmente a Ilca, minha referência maior. Assim, na perspectiva de conhecer as vivências dos moradores dessa comunidade negra rural, a História Oral entra como uma grande referência das tramas da memória, das experiências de vida em um território no qual a oralidade predomina. Dado às circunstâncias, portanto, os relatos orais tornaram-se as fontes principais trabalhadas. Foram esses informantes que pontuaram as questões relativas à história de vida, aos costumes, às tradições, às festas populares, enfim, ao cotidiano de um viver rural. Dessa forma, seguiu-se a viagem rumo à memória, passando entre as curvas do esquecimento e o ponto de apoio das lembranças e tendo como direção as narrações da população. O embarque levou na bagagem a cumplicidade e a confiança 22 dos depoentes em narrar suas experiências e a dos seus antepassados. O trabalho com a memória teve como ferramenta principal as entrevistas com as pessoas mais velhas e com os mais jovens moradores do distrito. Várias horas de conversa ajudaram na reconstituição sobre a trajetória de Tijuaçu, a religiosidade, as relações de trabalho, de família e de compadrio. . A história oral, segundo Portelli (1997, p. 17-19), é como uma arte do indivíduo que leva ao reconhecimento não só da diferença mas também da igualdade. Na busca pela diferença, não se pode esquecer de que também se acalenta um sonho de compartilhar, de participar, de comunicar-se e de dialogar. Nisso implica “o caráter dialógico da história oral, bem como seu trabalho de campo: a fim de sermos totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais se não formos totalmente verdadeiros”, como sintoniza Portelli (1997, p. 17-19). Assim, o trabalho de campo é, por necessidade, um experimento em igualdade, baseado na diferença. Nessa linha de investigação, o espelho da memória vai refletindo lembranças que narram sua história. Cada pedaço desse espelho vai se encaixando, segundo as representações expressadas pelos habitantes de Tijuaçu sobre o surgimento do território e suas vivências. Como discute Lowenthal (1998, p. 75): “Toda consciência do passado está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos a consciência dos acontecimentos anteriores e distinguimos o ontem do hoje”. Assim, relembrar o passado é crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos. Nossa identidade e continuidade dependem inteiramente da memória, pois é ela que pontua o passado e busca os interstícios pretéritos. Nesse trabalho, utilizei também a documentação do Arquivo Público do Estado da Bahia, referente à Vila de Jacobina7 e à Vila Nova da Rainha (atual cidade de Senhor do Bonfim), do final do século XVIII e início do XIX. Nessa documentação, encontram-se dados sobre a ocupação dessas duas vilas, que dão conta da presença da escravidão nessas localidades. 7 Até a década de 80 do século XIX, a Vila Nova da Rainha atual cidade de Senhor do Bonfim, pertencia à Comarca de Jacobina. 23 Em Senhor do Bonfim, analisei a documentação do Cartório de Registro de Imóveis e Testamentos, encontrando documentos referentes ao século XIX, sobre a propriedade da Fazenda Lagarto, que muito contribuíram para elucidação de alguns enigmas sobre a ocupação de Tijuaçu. Outra visita foi feita ao Arquivo dos Franciscanos, na cidade de Campo Formoso, no qual foram encontrados alguns mapas com a divisão territorial da região, bem como alguns escritos sobre a presença de negros escravos. Na Paróquia de Senhor do Bonfim, foram consultados os registros de batismo, óbito e casamento referente aos séculos XIX e XX. Através do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior, realizei pesquisa em diferentes arquivos de Portugal. Consultei manuscritos no Arquivo da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, na Biblioteca da Ajuda, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, na Biblioteca Municipal do Porto e no Arquivo Histórico Ultramarino. Nessas instituições, encontrei documentos sobre Senhor do Bonfim e Jacobina, especificamente correspondências sobre fugas de negros do recôncavo para o sertão dessa comarca; sobre negros fugidos, encontrados na região; sobre a elevação do Arraial de Senhor do Bonfim; tive acesso a correspondências entre as autoridades da época sobre diferentes assuntos e ao Mapa dos Terços das Ordenanças. Isto me fez perceber que, no final do século XVIII e início do XIX, havia uma grande preocupação dessas autoridades com as constantes fugas de escravos do recôncavo para o “Sertão das Jacobinas”. Além da documentação encontrada nos arquivos indicados, analisei, também, o Relatório da Fundação Cultural Palmares, elaborado pelo antropólogo Osvaldo Oliveira, em fevereiro de 2000, que constitui um trabalho etnográfico sobre a comunidade. Outro documento analisado foi o Estatuto da Associação Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, fundada em abril de 2000. Tal documento possibilitou-me perceber as propostas encabeçadas por essa instituição, as reivindicações e os anseios da população. Também a postura política dos moradores do distrito frente a essas mudanças. A participação de alguns membros da associação em diferentes encontros sobre remanescentes de quilombo e o contato com outras comunidades e com pessoas dos diferentes setores do Movimento Negro fizeram despertar a cidadania. A partir de então, o grupo tem buscado seus direitos. 24 Com o propósito de fazer um diálogo entre a escrita e a imagem, focalizando diferentes situações e vivências desses sujeitos sociais, utilizei, ainda, a fotografia, seguindo orientação de Leite (2001, p. 36), quando discute sobre a importância do uso da imagem fotográfica, considerando que muitas vezes as palavras parecem inadequadas ou imprecisas para exprimir aparências visíveis. Muitas palavras não descrevem, apenas abstraem. A utilização da fotografia tem como pressuposto mediar e inquirir sobre os costumes e as tradições, constituindo uma imagem visual de uma época e de um momento. A fotografia possibilita conhecer os costumes, os gostos, as formas de trabalho e diferentes situações cotidianas. Para comprovar a importância dessa fonte, vejamos a palavras de Arrigucci Jr8 sobre o uso da imagem fotográfica para o historiador: A fotografia deve ser submetida a uma abordagem crítica para que de fato se revele, e o historiador veja a si mesmo envolto numa teia de equívocos se não se ater obstinadamente ao rigor do método crítico de aproximação às imagens que ao mesmo tempo pode muito dizer e calar. De posse de todas essas fontes, o presente trabalho está organizado em três capítulos, assim constituídos: Capítulo primeiro, Histórias do distrito de Tijuaçu, ruídos reconhecidos, no qual faço uma discussão sobre a história dessa localidade a partir das narrativas de seus habitantes, imbricadas em suas memórias e lembranças. Através das falas desses sujeitos sociais, reconstruí a história desse território, pontuando questões relativas ao seu surgimento e aos povoados que o compõem, como também às experiências vividas por esse povo ao longo dos anos. Outra questão discutida diz respeito aos laços familiares, à importância da terra para seus moradores e como essa comunidade porta-se diante de sua auto-imagem enquanto afro-descendente. Cada membro da família possui uma parte de terra, que cultivam, unidos, possibilitando os meios de subsistência do grupo. São comuns os casamentos dentro do grupo familiar – estratégia utilizada por esses quilombolas para que a terra permaneça dentro da família e pessoas estranhas não assumam a propriedade. Fiz, também, uma discussão sobre os antigos proprietários da Fazenda Lagarto, em meados do século 8 Cf. ARRIGUCCI JR, In: prefácio, LEITE (2001. p. 12). 25 XIX, e sobre a história do município de Senhor do Bonfim, em sintonia com o que apontava a documentação oficial. Nessa perspectiva, também abordei a questão da identidade, discutindo sobre a percepção dos habitantes de Tijuaçu sobre seu reconhecimento enquanto remanescentes e sua identidade como tal. Capítulo segundo, As mulheres tijuaçuenses e suas representações sociais em variadas e diferentes funções, em que faço uma abordagem sobre os diferentes papéis das mulheres que compõem esta localidade. A intenção é discutir sobre os diferentes papéis assumidos por essas mulheres dentro da comunidade. Seus depoimentos constituem-se no mais verídico testemunho do passado e do presente. São artesãs, vendedoras de iguarias (como acarajé, abará, milho assado), domésticas, roceiras, lavadeiras, percussionistas, sambistas, lavradoras; mulheres que têm a astúcia do camaleão, dos pequenos bichos que não pretendem vencer, pois já foram vencidos. Mas a sua pretensão é viver e lutar pela sua sobrevivência e da sua família, resguardando traços da sua cultura e enfrentando o seu dia-a-dia com otimismo e esperança de dias melhores. Com simplicidade, humildade e serenidade, mantêm o equilíbrio de sua casa. Têm consciência de suas dificuldades diárias, mas não se desesperam jamais; seguem em frente na esperança de dias melhores. Para essas mulheres guerreiras, todo dia é um eterno recomeço de labuta e de muito trabalho. Capítulo terceiro, intitulado Tijuaçu faz a festa: devoção e diversão no encontro de sua identidade, em cuja abordagem privilegio as diferentes festas que aconteceram no Brasil colonial, especialmente as proibições daquelas realizadas por escravos. Num segundo momento, desse mesmo capítulo, examino as várias manifestações, principalmente a devoção a São Benedito – padroeiro do distrito – e o Samba de Lata, principal expressão cultural da comunidade. Assim, é possível perceber como as diferentes manifestações culturais se apresentam e qual o seu significado para os remanescentes. Trato, também, da trajetória dessas manifestações no espaço e no tempo. Nessa perspectiva, as lembranças do passado refletem-se através da oralidade, anunciando as experiências vivenciadas por esses remanescentes. Os depoentes lembram as histórias contadas sobre os fundadores e como tiveram início as tramas 26 do território. Dessa foram, verifica-se que lembrar é muito mais uma atividade do presente do que deslocar, para o presente, fatos já vividos. Rememorar não é o mesmo que viver novamente o passado, mas sim a releitura do sujeito que a produz, numa sociedade que se diferencia daquela à qual a lembrança se refere. A memória reescreve a realidade vivida pelo grupo e as lembranças são imagens construídas, produzindo o conjunto das representações dos entrevistados e adquirindo caráter coletivo. CAPÍTULO I 27 HISTÓRIAS DO DISTRITO DE TIJUAÇU, RUÍDOS RECONHECIDOS Foto n° 1- Crianças quilombolas Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. s/d. A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (LE GOFF, 2003, p. 471). 1.1 Fragmentos lembrados e narrados 28 “Mariinha Rodrigue, moradeira do Lagarto, a dona do Lagarto, eu conheci assim”. (Entrevista com Edista Maria de Jesus, realizada pela autora em 08 de abr. de 2000, no povoado de Barreiras). “Bisavó Mariinha, foi, foi a minha vó legítima, ela era a mãe da minha vó” (Entrevista com Anísia Rodrigues, realizada pela autora em 19 nov. de 2003, em Tijuaçu). A memória é um celeiro de lembranças e reminiscências, um fenômeno sempre atual, “um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 1994, p. 39). Estes fragmentos constituem parte das lembranças que estão inseridas na memória daqueles que vivem no distrito de Tijuaçu. Nos depoimentos colhidos, principalmente os mais velhos, quando se reportam a um tempo anterior, fazem comparação com o hoje, lembram que o ontem foi marcado com muito sofrimento e o presente constitui-se como desafio, cuja natureza envolve luta, dor, mas também vivências, tradições, festas e religiosidade - memória e história. Como observa Gusmão (2001, p. 358): Cada grupo social tem, assim, em seu seio, algo irredutível, só seu, que consiste num investimento inicial de sua existência e de seu mundo, que nem sempre é ditado por fatores reais, mas que dá a estes sua importância e lugar . As características específicas de diferentes grupos sociais permitem que os mesmos se reconheçam, pois são estilos de vida, formas de ver o mundo, imbricados nas experiências vivenciadas por si e seus ancestrais. Assim, a história de cada grupo é só sua, ao mesmo tempo em que assemelha-se à história de muitos outros grupos pelo Brasil afora, que lutam por direitos, em particular pelo direito à terra em que habitam, trabalham e constroem suas vidas (GUSMÃO, 2001, p. 358). Tijuaçu, distrito de Senhor do Bonfim, localizado cerca de 370 km de Salvador é composto pelos seguintes povoados: Fazenda Alto, Olaria, Quebra-Facão, Água Branca, Lajinha, Conceição, Macaco, Barreira, Queimada Grande e Fazenda Capim. A maior parte desses povoados está localizada no município de Senhor do Bonfim, enquanto uma menor parte encontra-se nos municípios de Filadélfia e de Antônio Gonçalves. Sobre a origem do nome – Tijuaçu – alguns depoentes dizem que, na língua 29 dos índios que viveram na região, significa “lagarto grande” e tem esse nome porque na região existiam muitos lagartos. O nome de Lagarto sabe por que? Porque aí na rua era só juazeiro que tinha, e, quando era tempo da lagarta aquilo ficava assim... E depois deram o nome de Tijuaçu que dizem que na língua dos índios quer dizer lagarto grande. (Entrevista com Maria Bernardina, realizada pela autora em 08 de abril de 2001, em sua residência em Tijuaçu). Até a segunda metade do século XX, essa comunidade era conhecida como Lagarto e pertencia ao município de Campo Formoso, segundo Silva (1915, p. 72), o povoado de Lagarto ao final do século XIX, possuía 25 casas, quase todas cobertas de palha “com população de cor”, cerca de 25 famílias residentes. Em 1953, com a divisão territorial e administrativa dos municípios da Bahia,9 o referido povoado passa a pertencer ao município de Senhor do Bonfim. A história da terra construída pelo homem é sua própria história. Aquela que faz deste participante de um grupo social parte ativa do espaço em que convive. Para os habitantes de Tijuaçu, a posse da terra constitui um mecanismo que faz surgir os laços familiares e as relações que se desenvolvem no território, sendo responsável pela permanência das pessoas na localidade. É dela e é nela que os moradores vivem e lutam. Para esses moradores, a terra não é valor de troca, pois ela pertence ao grupo e é dela que eles sobrevivem.10 Segundo Henriques (2004, p. 13), esta também é a concepção que o povo angolano, concebe a terra: Identifica-se por isso através da relação que sustenta com a história, e que se exprime não só pela presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação de sinais, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade. Assim os africanos definem sua identidade por meio de alguns suportes, entre os quais o fato de pertencer a uma família, a qual está integrada num clã, numa comunidade e numa nação. Essa forma de cuidar da terra, o respeito e esse pertencimento também são posturas comuns encontradas em outras comunidades quilombolas, pois a terra é o único bem desses residentes. Os habitantes de Tijuaçu zelam pela terra e pela família, 9 Lei n. 168 de 30 de dezembro de 1953. Diário Oficial do Estado da Bahia. Salvador, 01 de janeiro de 1954. 10 Sobre essa questão cf. Henriques (2004). Esta obra fornece indicações sobre a questão da identidade do povo angolano no final do século XIX e início do XX. 30 pois estas representam sua identidade. A família significa a própria reprodução dessa memória e dessa existência, representando a célula mãe da permanência da própria localidade; a terra concretiza as relações de trabalho e de sobrevivência e a tradição é representada pelos laços culturais, pelas relações de trabalho e os modos de vida desses afro-descendentes. A preservação do sistema de parentesco estabelece relações hierarquizadas e ritualizadas, sob a autoridade dos mais velhos, permitindo a continuidade dos costumes e das tradições. Os depoentes vão relatando e tentam separar as teias da memória na tênue sobrevivência da própria linguagem literária que a memória permite falar. Segundo Bhabha (2003, p. 350), “o entretempo mantém viva a feitura do passado”. A oralidade possibilita ao historiador um diálogo para construção do conhecimento histórico que engloba indeterminações, representações do imaginário e dimensões para compreensão de uma realidade. A construção da memória através da oralidade, por sua formação, manutenção e elaboração das identidades individuais e coletivas é expressa pela experiência humana no tempo e dimensionada pela história. As histórias sobre a comunidade negra rural de Tijuaçu estão presentes na memória dos mais velhos, bons narradores da saga dos seus antepassados, permitindo resgatar um passado nem sempre revelado nos documentos escritos. Segundo Funes (1996, p. 467), uma memória que é referencial ao mesmo tempo de ancestralidade e de identidade. Em seus depoimentos, esses sujeitos sociais mostram histórias de vida que, ao serem buscadas, se transformam em rastros de suas existências em lugares específicos, demarcando suas presenças e revelando uma memória familiar sobre suas experiências de vida. Através de sua religiosidade, do seu cotidiano e do modo de ser de seus habitantes, esses moradores revelam sua identidade cultural. Assim, esses aspectos são percebidos não apenas na cor da pele de sua gente, mas, sobretudo, na memória dos mais velhos moradores de Tijuaçu, que narraram as histórias contadas por seus avós, remetendo-as sempre a um outro passado, referente às experiências vivenciadas por seus antepassados em relação à escravidão. Essas informações sobre a identidade cultural dos moradores de Tijuaçu, confirmam a idéia de Funes, quando o mesmo afirma que os aspectos acima caracterizam as comunidades 31 remanescentes de quilombo e revela: (...) de forma clara, que nem todas as sociedades formadas pelos negros fugidos da escravidão desapareceram com a extinção de seus respectivos quilombos, como podem sugerir vários estudos historiográficos sobre esses agrupamentos, ao analisá-los sob a óptica do binômio formação/destruição (FUNES, 1996, p. 467). As várias comunidades quilombolas existentes no Brasil comprovam tal idéia. Elas têm resistido e dão continuidade as experiências históricas dos seus ancestrais. Assim, os depoentes mais uma vez narram sobre a história de vida da fundadora dessa localidade: Os mais velhos contam que, no início de 1800, Mariinha Rodrigues passou a viver em Tijuaçu e veio de muito longe (Entrevista com Valmir dos Santos, em 20 de abr. de 2001). Papai falava prá gente que chegou essa Maria Rodrigues, pobrezinha, num aflagelamento de gente, com os pés rachado, de preta diz que o cabelo era aquelas bolotinha. Foram agazaiá por lá; agazaiaram e daí não sei como foi que, que foi gerando gente dessa famia nossa todinha (risos). Nós somo da raça dessa Maria Rodrigues. Dizem que veio de Salvador ou da África, desceram em Salvador e aqui ficaram, e daí surgiu esse povo todo. Os nossos pais é descendente dela. Eles arrumaram esses dessa origem de negros. Esses negros vieram da África. (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon de Santana, em 11 de jan.de 2002, na fazenda Alto do Bonito – povoado de Tijuaçu). Nessa perspectiva, a memória constitui-se como elemento de significativa importância para a reconstituição do processo histórico desses remanescentes; é o sujeito que lembra, escreve Halbwachs (1990). Memória e história conjugam-se, também, para conferir identidade a quem recorda. Cada ser humano pode ser identificado pelo conjunto de suas memórias, embora estas sejam sempre sociais, embora um determinado conjunto de memórias só possa pertencer a uma única pessoa. Somente a memória possui as faculdades de separar o eu dos outros, de recuperar acontecimentos, pessoas, tempos, relações e sentimentos e de conferir-lhes significados. Nas comunidades negras rurais, conforme já afirmei, a memória está mais viva entre os velhos: netos e bisnetos dos primeiros habitantes, guardiões das histórias que seus antepassados contavam-lhes. É a eles que se recorre, para ampliar os horizontes da pesquisa sobre essas organizações sociais (FUNES, 1996 p. 468). Essas falas constituem uma síntese da trajetória de muitos negros que, ao 32 fugirem da escravidão, buscaram nas diferentes matas do interior do Brasil o seu refúgio. Os depoentes contam com veemência as histórias ouvidas sobre Mariinha Rodrigues e confirma a sua ancestralidade ligada a essa escrava africana que fugiu de Salvador para Tijuaçu. É válido pontuar que a presença da mão-de-obra escrava, principalmente na Bahia, bem como em outras partes do país durante a escravidão, foi absorvida em diferentes setores de produção: nas fazendas, nas casas e no comércio. Escravos e libertos, crioulos e negros africanos desempenhavam quase todas as funções da economia urbana e rural, das mais especializadas às menos qualificadas: eram carregadores, trabalhadores nos portos e nas oficinas, lavadeiras, quitandeiras, domésticas, artesãos e lavradores. Escravos e negros livres transitavam com extrema agilidade pelas ruas das cidades, chamando atenção por seus trejeitos, cores e sons, contrastando com a reclusão e hábitos disciplinados das famílias senhoriais.11 Como se observa através das imagens produzidas por Debret que registrou o cotidiano dos escravos na primeira metade do século XIX. A imagem abaixo constitui uma fonte para análise histórica mostrando a rotina de alguns escravos comercializando nos centros urbanos. 11 A presença africana nos centros urbanos foi tema comum às diversas narrativas de viajantes estrangeiros que aqui estiveram no século XIX. Destacam-se as gravuras de DEBRET (1949). 33 Foto n° 2 - J. B. Debret. Viagem Pitoresca e histórica do Brasil. Paris: Castro Maya Editor, 1954, prancha 30. Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), apud JANCSÓ; István, KANTOR; Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 359. Em diferentes espaços, o escravo fez-se presente com o seu trabalho, seus costumes e sua religiosidade, desempenhando desde os primeiros momentos da colonização papel fundamental na formação étnico/cultural. Nesse processo, o africano escravizado foi encontrando meios de superar as adversidades em uma nova sociedade, tornando mais suportáveis seu cotidiano e a sua convivência. O escravo africano, com exceção de inúmeros suicídios cometidos por homens e mulheres, procurava alternativa de sobrevivência fugindo ou criando táticas de defesa para dissimular a sua difícil condição. Segundo os depoentes, Tijuaçu constituiu-se como um lugar de refúgio de negros, tal qual aconteceu com algumas localidades do Brasil durante a escravidão. Dona Maria Edista de Jesus (falecida em 2002) e dona Anísia Rodrigues, ambas na faixa de 80 anos, primas em 1º grau, contaram com propriedade a história de Tijuaçu. Quando perguntadas sobre os primeiros moradores da localidade, responderam que foi Mariinha Rodrigues “uma negra fugida”, a desbravadora do território, que residia no Alto Bonito e que, estrategicamente, povoou as terras de 34 Tijuaçu, pondo em cada localidade um filho, com o objetivo de tomar posse dessas terras, pelo uso de ocupação. E assim narram sobre as terras que Mariinha possuía: Agora depois da rama é que tão fazendo aquela enroça, adepois da rama, mas, meu avô Astácio, essa, essa, essa, essas terra aqui minha fia, Lagarto, Lajinha Barreira, o Fojo, tudo era dessa bisavó minha, mas, Mariinha, a mãe do meu avô Astácio. Ela, ela não era escrava, e essa terra aqui era toda dela e a geringonça dela, dela foi grande, foi grande... Esse terreno da Barreira aqui era todo dela. Era tudo da família dela, de Jacobina até o Ricocho (Entrevista com Edista,realizada pela autora em 08 de abr. de 2000, povoado de Barreiras). A informante Edista com muita desenvoltura confirma através de seu depoimento a presença de Mariinha Rodrigues como fundadora e proprietária das terras desse perímetro quilombola. Desde a primeira visita feita a Tijuaçu, ouviu-se de Valmir dos Santos12 e de outras pessoas mais velhas que lá residiam que a localidade teve início quando três escravas que estavam fugindo do cativeiro passaram a viver em Tijuaçu. Apenas uma permaneceu, que foi Maria Rodrigues. A partir daí, toda história relatada pelos depoentes tem como protagonista essa escrava fugida, que constituiu família, criando laços de parentesco e solidariedade no referido território. Nos diferentes quilombos existentes, a base da organização social era a família que garantia o cultivo dos diferentes produtos. Segundo Kabenguele13, “o sistema de parentesco é a referência fundamental do africano. Não é a profissão, a nacionalidade ou a classe social”. Assim, a instituição familiar era a base da organização social dos quilombos e uma garantia de perpetuação da família. Essa tradição familiar é fortalecida na América portuguesa por esses descendentes de escravos africanos e perpetua-se até os dias de hoje em Tijuaçu e em outras comunidades negras rurais. Segundo Dias (2001, p. 864-865), os dois grandes blocos lingüístico-culturais com os quais se distingue a massa de africanos deportados para o Brasil conheceram 12 Ex-presidente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, durante dois mandatos consecutivos, ou seja, de 2000 a 2005. 13 Segundo Kabenguele (1986. p. 60-61), “em função do sistema de parentesco que se criou o que alguns autores chamam de tribalismo, palavra feia, que não traduz a realidade africana. Nessa ordem de idéias, duas vertentes subdividem a África de que tratamos: a matrilinearidade e patrilinearidade. Quer dizer, pelo pai ou pela mãe, a criança liga-se a vários ancestrais situados evidentemente numa mesma linha. Geralmente, os antepassados constituem um triângulo que se alarga a cada geração. Os vivos são unidos aos mortos, porque é através desses que a força é transmitida. São unidos entre eles, pois todos participam da mesma vida”. 35 condições bastante diferentes de fixação à terra, trabalho e contratos sociais com a cultura hegemônica. Os bantos, pertencentes a várias etnias do Congo, de Angola e de Moçambique, foram destinados, desde o século XVII, para o trabalho dos engenhos de açúcar do Nordeste; no século XVIII, para a extração de ouro e diamantes das Minas Gerais e, no século XIX, para a plantação e colheita do café no Sudeste. O tráfico de sudaneses, provenientes dos territórios hoje ocupados pela Nigéria e pelo Benin, aqui chamados de jejes e nagôs, intensificou-se ao final do século XVIII, tendo como destino os trabalhos domésticos nas capitais do Nordeste e, em menor número, nos engenhos e nas roças do Oeste e Sertão Baiano e nas grandes cidades do Rio Grande do Sul. Em suma, enquanto os bantos constituem, desde o primeiro século, o grosso da mão-de-obra pesada na zona rural, os sudaneses tiveram vivência mais urbana, suprindo a necessidade de serviços variados, surgida com o crescimento das cidades (DIAS, 2001, p. 864-865). Nessa perspectiva, considerando as ponderações de Dias, pode-se afirmar que os primeiros negros que passaram a habitar em Tijuaçu eram descendentes dos bantos, pois estes habitaram a zona rural do Nordeste e foram mandados posteriormente para região das minas. Isto vem confirmar as histórias contadas sobre as três negras fugidas, consideradas as primeiras habitantes de Tijuaçu. Como discute Mattos (2000), os escravos vendidos para o interior tinham conhecimento de que a sua ida representava o abandono de antigos hábitos e práticas comuns à escravidão urbana, sobretudo no que diz respeito à relativa autonomia de circulação, trabalho, entre outras atividades; significava uma série de mudanças contra as quais, na maioria das vezes, os escravos rebelavam-se e resistiam o quanto podiam. No caso em questão, segundo os depoentes, Mariinha Rodrigues e seus companheiros ou companheiras não foram vendidos e sim estavam fugindo, rebelando-se e resistindo contra o sistema escravista e sabiam dos desafios que os esperavam. De acordo com o depoimento abaixo: Essas negras que estavam fugindo do cativeiro aqui chegaram, quer dizer, elas fugiram de lá, de Salvador, passaram determinado tempo a pé e aqui ficaram. Enfrentaram a mata, pois aqui era uma mata fechada. Duas dessas escravas voltaram, ninguém sabe para onde, só ficou uma e essa uma, o nome dela era Maria Rodrigues, mais conhecida por Mariinha Rodrigues 36 (Entrevista com Valmir dos Santos, realizada pela autora em 22 de out. de 2000, em Tijuaçu). Desse breve relato e de outros depoimentos colhidos, deduz-se que os primeiros negros chegados à região passaram a viver em local de difícil acesso, sendo inexato o momento de ocorrência dessa chegada. Alguns dizem que Mariinha Rodrigues passou a residir em Tijuaçu no início do século XIX; outros falam que foi há muito tempo atrás. Há de se considerar que, ao final do século XVIII e início do XIX, na América portuguesa, há uma grande movimentação de escravos fugidos e a conseqüente formação de quilombos14. Segundo Reis (1996), um escravo podia buscar liberdade, sozinho ou acompanhado de um ou mais parceiros. Porém, a fuga empreendida – quer por membros de uma mesma família escrava (pai, mãe, filhos, irmãos, parentes), quer por casais de escravos casados legalmente ou que mantinham relação consensual (parceiros afetivos freqüentemente denominados nos anúncios como “amásios”, “camaradas”) – representava o desejo de viver em liberdade, e esta incluía a companhia dos seus. Para Reis (1996), a fuga possibilitava aos escravos unir-se às famílias e amizades separadas pela venda ou mudança de domicílio senhorial e outras circunstâncias. Ele cita casos relacionados com fugas, parentesco e acoitamento no quilombo do Oitizeiro, que ficam mais bem entendidos nos termos da época: um quilombo, mas não como se acostumou a imaginar que fosse um quilombo. Era formado por homens livres (negros, brancos e até um índio), seus próprios escravos e os escravos alheios que acoitavam e que formavam uma importante parcela da população adulta. A historiografia15 sobre escravidão na Bahia pontua que, no início do século XIX, a população escrava caracterizava-se pelo reduzido número de mulheres. Como conseqüência, essa população renovava-se e ampliava-se principalmente através da importação de africanos. Na virada do século XVIII para o XIX, quando um surto de prosperidade tomou conta do recôncavo baiano, a importação de escravos foi 14 15 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 20 de abr. de 1799, documento n. 19.362. Cf. Reis (1988); Reis e Gomes (1996); Oliveira (1995/1996). 37 intensificada para atender a demanda dos canaviais e das atividades urbanas, ambas em expansão acelerada. O considerado número de africanos cresceu ainda mais e os escravos novos originaram-se de novas “nações”, como aqui se denominavam, com justiça, os grupos étnicos da África. A prosperidade do recôncavo e a descoberta de ouro em Minas e no sertão da Bahia intensificaram o tráfico de escravos ao final do século XVIII e início do XIX, ampliando o número de fugas e a formação de quilombos na Bahia. A partir desse contexto, é possível afirmar que Maria Rodrigues, a escrava fugida, que os depoimentos se referem, transformou-se na grande provedora do território: Esta geração é todo mundo parente de Maria Rodrigues... Então, ela teve vários filhos. Essas terras eram todas abandonadas. Então, ela para ter posse das terras, pegava um filho e colocava, como no caso colocou em Quebra Facão, colocou em Barreira, um aqui, um em Lajinha para ter posse da terra (Entrevista realizada pela autora com Valmir dos Santos, em 20 de abril de 2001, em Tijuaçu). De acordo com o que se pode inferir dos relatos de alguns depoentes, Mariinha Rodrigues era uma mulher astuta, desbravadora e estrategista que conseguiu prosperar e ser proprietária das terras de Tijuaçu. Para ocupá-las, uma vez que eram verdadeiras matas, a estratégia utilizada, conforme já afirmei, foi distribuir seus filhos pelo território. Assim, eles tomaram posse, impedindo que outros as habitassem. Dessa forma, Mariinha Rodrigues conseguiu manter essas terras sob o seu domínio. Mariinha Rodrigues quando foi construindo família, ela fez uma estratégia colocar um de seus filhos em cada ponto distante um do outro, para que praqui fosse povoado e ela tomasse um, um domínio da grande área de terra, ou seja, ela formasse um pedaço grande de terra. Foi de forma que ficou mais ou menos assim, hoje tem as comunidades: Macacos, tem Barreira. Então ela saiu circulando, Macaco, Barreiras, tem Quebra-Facão, Água Branca. Então cada local desse foi colocado uma pessoa, um dos filho, um descendente dela, para que esses lugares fosse crescendo e ficasse interligados um ao outro, é como se demarcasse um perímetro e, na verdade, nós usamos hoje esse, essa estratégia dela, nós temos essas marcas aqui e nós usamos como perímetro quilombola. É, é, por exemplo: Água Branca, fica numa posição; Macacos fica na outra, então nós fazemos esse círculo ai, que é, já foi medido aproximadamente 2.700 e mais alguns m², então mais ou menos esse o perímetro quilombola que nós temos. Devido ao relato contado por pessoas idosas da comunidade, a exemplo de Dona Anísia que é minha vó, tem 88 anos e é uma das pessoas mais lúcidas dessa comunidade, conta histórias de 38 muitos anos, lucidez até hoje, várias outras pessoas como Dona?, também, que já faleceu há pouco tempo, mas antes de falecer ela contou muitas coisas que ajudaram muito também na questão da, da, da, do reconhecimento, e outra, e outras pessoas mais né? (Entrevista realizada pela autora com Antônio Marcos Rodrigues, em 2 fev. de 2005, em Tijuaçu). O domínio e a posse da terra por ocupação foram à estratégia utilizada por Mariinha Rodrigues. Ela soube delimitar o espaço e dominá-lo juntamente com os membros de sua família. A atitude de Mariinha Rodrigues foi sábia e inteligente. A família, nesse caso, foi predominantemente fator de integração social. No Brasil escravista, ter muitos filhos significava uma segurança na velhice, “os filhos se situavam na escala familiar com a mesma importância, não importando se fossem naturais ou legítimos, desde que livres ou libertos (OLIVEIRA, 1988, p. 61)”. E acrescenta: Afora os motivos de ordem afetiva que sem dúvida atuavam de forma incontestável, não se pode deixar de lado a motivação de ordem econômica que levava os libertos, homens e mulheres, a comprar a alforria para os filhos concebidos durante o período de cativeiro da mãe. Livres, esses iriam com seu trabalho auxiliar na manutenção dos pais e na formação de um pecúlio comum que permitiria uma vida melhor para todos (OLIVEIRA, 1988, p. 61). Os filhos, para os libertos, representavam a prosperidade, pois todos unidos trabalhando podiam gozar de uma vida melhor e de conforto junto com os seus pais. Segundo os depoentes, os vários filhos de Mariinha Rodrigues possibilitaram-lhe ocupar as terras de Tijuaçu. Essas terras transformaram-se, posteriormente, no atual distrito e em pequenos povoados e fazendas. As vozes são unânimes no que se refere à origem dessa comunidade: “é uma família só, tendo como matriarca Mariinha Rodrigues”. Ao esboçar uma linha genealógica das famílias do presente, essas falas traçam laços familiares, justificando as interligações de parentesco entre a população de Tijuaçu e localidades vizinhas. Segundo Funes (1996, p. 471), a constituição da família foi a primeira forma encontrada pelo escravo, em seu universo social, para amenizar as adversidades, pois, dentro do precário acordo que extraía dos seus senhores, o casar-se significava ganhar mais controle sobre o espaço de moradia. O seio da família constituía o espaço onde a autoridade independia, em grande parte, da presença do senhor. Os laços matrimoniais davam certo tom de “autonomia” e “liberdade” para o escravo. 39 Vivendo perto dos seus, daqueles de quem gostava, que conhecia, tinha possibilidade de viver uma vida menos infeliz, pois juntos podiam dividir a dor e a alegria, lutar pela compra de alforria, praticar seus cultos religiosos e comungar dos mesmos costumes. Em Salvador, no século XIX, Mattoso (1988, p. 111-117) assinala que a família nuclear entre cativos era instituição não só rara, como essencialmente incompleta ou parcial, uma vez que se moldava às próprias limitações impostas pelo viver escravo. Essas limitações referem-se às atribulações vividas pelos escravos dentro de uma sociedade altamente preconceituosa, na qual vivenciavam situações, no contexto dos plantéis: a necessidade de escolha de parceiros preferenciais fora das unidades senhoriais e os constrangimentos materiais colocados pelo sustento das famílias que, mesmo quando possível de ser arcado por ganhadores, obstruíam as possibilidades de alforria. Sobre os forros, a autora nota a incidência significativa de famílias naturais, com forte tendência endogâmica, acompanhando uma dupla direção pertinente à sociedade baiana como um todo. Outras informações fazem referências aos quadros da desagregação do sistema escravista e, especialmente entre os africanos, da endogamia e dos casamentos consensuais que fortaleciam as redes de ajuda mútua e solidariedade em face de um ambiente hostil. Essa rede de ajuda mútua e de solidariedade, através do casamento e das relações de parentesco, também se faz presente em Tijuaçu. São as mesmas famílias vivendo nesse distrito secularmente, formando os laços matrimoniais entre parentes. As seguintes famílias habitam essa localidade: os Rodrigues, os Santanas, os Damascenos, os Fagundes e os Santos. “Termina todos sendo parentes aí em Tijuaçu. É tudo parente; esse parentesco veio de longe. Então, todo mundo termina sendo parente de Mariinha Rodrigues. É a Barreira, o Macaco, o Quebra Facão, Lages, Fazenda Alto, uma família só. Tudo parente, sobrinho. Tudo primo, tudo.” (Entrevista realizada pela autora com Dalva Santana, em 11 de jan. de 2002, na Fazenda Alto Bonito – povoado de Tijuaçu). Esse parentesco é percebido nos diferentes povoados e fazendas que compõem esse perímetro quilombola. Segundo dados do IBGE, no distrito de Tijuaçu, vivem 292 famílias e cerca de 1.600 pessoas. No mapa a seguir, pode-se observar o perímetro quilombola, 40 composto pelo distrito, fazendas e povoados circunvizinhos: Mapa n° 1 – Perímetro quilombola Fonte: IBGE, BA, 1980. A seguir apresentamos os diferentes povoados que compõem o perímetro quilombola de Tijuaçu. O povoado de Quebra Facão (nome originado de um tipo de árvore existente nesta área) localiza-se à esquerda de Tijuaçu, indo em direção à Salvador, numa planície, cuja vista é uma das mais belas da região. Pela sua localização, constitui um cenário perfeito para as filmagens das diferentes manifestações culturais desse 41 perímetro quilombola. Cerca de 25 famílias (122 pessoas) residem nesse povoado e se dizem descendentes de João Gregório e Anora (pais de Rosendo José dos Santos – casado com Leonídia dos Santos, conhecida como Felipa)16. Seus moradores se consideram da mesma família. Contíguo a esse povoado, tanto geograficamente quanto pela proximidade dos laços de parentesco, encontra-se o povoado de Água Branca, onde existem sete famílias e cerca de 42 pessoas. Em Lajinha, existem 12 famílias e cerca de 60 pessoas. Em Barreiras, vivem 21 famílias e cerca de 92 pessoas morando em casas que foram construídas de modo circular em torno de um campo de futebol. A maioria das famílias residentes está ligada por meio de laços de parentesco ao senhor Francisco Cassiano Rodrigues (79 anos), à sra. Maria Jovina dos Santos (87 anos – irmã de Francisco) e à sra. Edista Maria de Jesus (90 anos – esposa de Francisco). Os dois primeiros são netos de João Pedro Rodrigues (primeiro a ocupar à antiga área da Barreira) e Edista que era nora do mesmo Pedro e, por outro lado, neta de Astácio Rodrigues (filho de Mariinha Rodrigues)17. Nessa localidade, parece que houve um verdadeiro encolhimento do território, restando apenas pequenos espaços, pois grande parte das terras foi comprada ou trocada por fazendeiros da região aos moradores de Barreiras na época das estiagens. Dona Edista narrou as experiências vivenciadas por ela e seus familiares na época das várias secas perpassadas. A fome e a falta de água forçavam os moradores a trocarem partes de suas terras por um saco de farinha ou um pedaço de bode. Muitos moradores contam que seus parentes nesse período se dirigiam para outros lugares para não morrer de fome e, quando retornavam, suas terras tinham sido invadidas. A ambição dos fazendeiros circunvizinhos e a falta de documentação legal por parte de seus legítimos donos foram encolhendo a propriedade para as proporções em que hoje se encontra. Muitos moradores reclamam da dimensão do povoado que foi invadido pelas cercas dos fazendeiros e da pequena parte de terras que possuem para cultivar. 16 Segundo os depoentes, esses são os moradores antigos. Essas informações foram obtidas através de entrevistas com os moradores dessa localidade e, também, através de dados fornecidos pelo IBGE –BA, 2001 e pelo relatório da Fundação Cultural Palmares. 17 Os moradores de Barreiras consideram-se descendentes diretos de Mariinha Rodrigues. 42 No povoado de Macaco (nome que se originou devido à presença, no passado, desses animais, segundo alguns depoentes), subdividido, segundo a terminologia local, em Macaco de Baixo, Macaco de Cima e Catuaba (ou Favela), existem 65 famílias e cerca de 320 pessoas, descendentes dos antigos moradores. As terras deste povoado pertencem aos municípios de Filadélfia e de Antônio Gonçalves. Dessas 65 famílias, encontram-se 04 famílias vivendo em uma área de terras que denominam de Queimada Grande. Um pouco mais adiante, em sentido norte, indo em direção ao povoado de Macaco, está a denominada Fazenda Capim, na qual existem apenas duas famílias e 14 pessoas. A maioria dos moradores desse território mudouse para Tijuaçu. Em Conceição, se encontram 15 famílias e cerca de 60 pessoas. Apenas duas delas têm suas origens ligadas aos primeiros moradores de Tijuaçu: a do senhor Valdete Alves da Silva e a do senhor José Alves da Silva, que são netos de João Modesto (filho de Modesto e neto de Feliciano Fagundes). Outras três famílias se formaram pela incorporação de três jovens – cujos pais vieram do município de Retirolândia. Na Fazenda Alto moram cerca de 20 famílias e cerca de 130 pessoas. Conforme os relatos, ali viveu Mariinha Rodrigues e os que permanecem no local atualmente dizem ser seus descendentes. Foi nessa localidade também que o Samba de Lata teve início, sendo posteriormente incorporado pelos habitantes de Tijuaçu. O povoado de Olaria localiza-se próximo a Fazenda Alto, nessa localidade residem 11 famílias e 53 pessoas. Observa-se, então, que os laços de parentesco18 estão bem presentes entre os moradores, tornando-os da mesma descendência. Segundo Silva (2000, p. 272), esses laços familiares caracterizam essas comunidades negras rurais: O que particulariza as comunidades negras rurais é o processo através do qual elas tomaram posse da área que hoje habitam, elemento fundamental para se entender a formação do grupo, sobretudo as suas estratégias de preservação no espaço territorial. É enquanto ocupante de um território que o grupo se reproduz cultural, política e simbolicamente como organização distinta no meio rural. 18 Segundo Augé (2003, p. 26), essa descendência unilinear denomina-se de Linhagem, grupo de filiação em que todos os membros se consideram como descendentes. 43 A forma como o grupo se reproduz culturalmente é uma das características das comunidades quilombolas. O trabalho coletivo e a solidariedade entre o grupo, marcam as vivências dessas comunidades. Outra questão levantada pelos moradores de Tijuaçu refere-se à prosperidade de Mariinha Rodrigues. Segundo os depoentes, Maria Rodrigues sendo uma mulher próspera, residia numa casa de palha. Alguns depoentes lembram da sua morada e dão risada e se expressam com frases do tipo: “casa de paia19, currá na porta, risos ... “20. Para estes moradores, é difícil imaginar a prosperidade de Mariinha Rodrigues: tendo uma situação privilegiada, proprietária de gado e das terras desse território, continuava morando numa casa de palha. Por isso, quando o referido assunto é discutido, os moradores dão risadas, demonstrando um certo deboche. Sobre a vida de prosperidade e espírito empreendedor de algumas mulheres negras, Mott sugere: As mulheres nagôs e suas descendentes na Bahia tinham o mesmo espírito empreendedor que as caracterizava na África. Vendiam no mercado e, boas comerciantes, ganhavam dinheiro e mesmo enriqueciam, tornando-se proprietárias de pequenas casas que chegavam a alugar a seus compatriotas (1991, p. 38). O espírito dinâmico e empreendedor da mulher africana e de seus descendentes trouxeram uma grande contribuição à cultura brasileira. Durante o período colonial, não houve trabalho que ela deixasse de executar. Na faina agrícola, labutavam com a foice e a enxada, desde pequenas, semeavam, catavam ervas daninhas, enfeixavam as canas. Nos engenhos, eram encarregadas de moer as canas e cozer o melado, agrupadas em torno de infernais panelões de cobre. Manufaturavam o açúcar, descaroçavam algodão e descascavam mandioca, base de sua alimentação. Ocupavam-se das tarefas domésticas na casa-grande, onde cozinhavam, lavavam, coziam e arrumavam, assim como na senzala, onde se responsabilizavam pela manutenção de maridos, companheiros e filhos. Também na senzala algumas delas, graças aos inúmeros conhecimentos transmitidos oralmente – o 19 Vasconcelos (1941), afirma que, nos primeiros anos do século XVIII, as vilas eram simples aldeolas com casas de sapé, capelinhas de palha, tudo muito precário. A palha continuou bastante empregada em ranchos na zona rural, como acontece ainda hoje em algumas regiões do Brasil. Em Tijuaçu, a palha ainda é muito utilizada nas casas localizadas nas roças. Ao referir-se ao século XVIII, o Códice Costa Matoso diz que as capelas e ranchos eram cobertos de sapé, apud Scarano (2002, p. 85). 20 Fala de Abílio Fagundes, entrevistado pela autora em 26 de abril de 2001, em Tijuaçu. 44 chamado “saber fazer” – tornavam-se parteiras, benzedeiras e temidas feiticeiras21. Sobre a questão da prosperidade de mulheres negras, Paiva (2001, p. 507), no seu estudo, cita Bárbara Gomes de Abreu e Lima, uma crioula que saiu escrava de Sergipe Del-Rei em direção às Minas e experimentou dessa mobilidade com muita perspicácia. Ela protagonizou um caso exemplar, parcialmente registrado em seu testamento: Corria o ano de 1735, quando Bárbara decidiu registrar em cartório seus legados testamentais. Nesses papéis declarava que se havia forrado nas Minas, aludindo à sua autocompra – por meio, possivelmente da coartação22 – e que também havia comprado a casa onde morava, localizada no largo da Igreja matriz da vila de Sabará, endereço nada modesto. Sua rede de amizades era também notável: além de ampla, espalhava-se por várias regiões das Gerais e pela Bahia. Ela tinha negócios distribuídos por toda essa área, embora nenhuma palavra tenha sido dedicada a explicá-los. Para cuidar dos seus negócios indicou doze homens de sua confiança como testamenteiros. Mas o conjunto, pequenos bens materiais listados pela testadora é o que chamava a atenção. Outro estudo sobre a prosperidade dos escravos é apresentado por Mattoso (1979, p. 35): Desde o início do século temos antigos escravos que realmente se tornaram homens abastados. Este é o caso, por exemplo, do barbeiro e músico Francisco Nunes de Morais, falecido em 1811. Quando, em 1790, Francisco fez seu testamento, possuía dois escravos que o ajudavam na sua arte de músico. Em 1810, no codicilo que acrescentou, declara possuir uma verdadeira orquestra, composta de cerca de doze escravos, o que prova certo enriquecimento e, bastante rápido. Segundo a autora, bastaria que os libertos pudessem viver por muito tempo, possuíssem uma ocupação lucrativa, tivessem casado com mulheres remediadas ou houvessem usufruído boas ajudas para ascender na escala social, pelo menos na econômica. Seguindo a trajetória de prosperidade de Mariinha Rodrigues, pode-se 21 22 Cf. Del Priore ( 2000. p. 18). Sobre o trabalho da mulher escrava, cf. também Russel-Wood (2001). Segundo Paiva (1995, p. 49-57): a coartação foi prática recorrente em Minas e, resumidamente, significava o pagamento parcelado da alforria, efetuado pelo próprio escravo. Tratava-se de acordo estabelecido diretamente entre senhores e escravos. Cf. também sobre o assunto Souza (1999. p. 151-174). 45 observar como a mesma se empenhou e conseguiu criar estratégias para tornar-se fazendeira, mulher rica e próspera. No segundo capítulo, veremos que outras mulheres assim como Mariinha assumiram papel de destaque nessa localidade. Além da história sobre a fundadora Mariinha Rodrigues, outras histórias são contadas sobre antigos moradores de Tijuaçu, parentes próximos dessa matriarca, entre quais: Feliciano Fagundes, apontado como um dos primeiros moradores, teria vindo de um lugar chamado Ipêra e se casado com uma filha de Mariinha Rodrigues e com ela constituiu família, cujos filhos eram: Ângelo, Sabino, Rosalvo (o Rosa) e Leandro Fagundes. Segundo a senhora Maria Bernardina, Ângelo Fagundes, neto de Mariinha Rodrigues e seu avô materno, “tinha sangue nagô”. Em 1848, Francis Castelnau, cônsul da França na Bahia, observou que: [...] os nagôs [...] formavam nove décimos dos escravos da Bahia [...]”. Dentre os nagôs: [...] foram os Ketu que implantaram com maior intensidade sua cultura na Bahia, reconstituindo suas instituições e adaptando-as ao novo meio, com tão grande fidelidade aos valores mais específicos de sua cultura de origem, que ainda hoje eles constituem o baluarte dinâmico dos valores afro-brasileiros (SANTOS, 1976, p. 28). Segundo os estudos de Ramos (1979, p. 183-199): “Os negros nagôs foram desde logo os preferidos, nos mercados de escravos da Bahia. Eram altos, corpulentos, valentes, trabalhadores, de melhor índole e os mais inteligentes de todos. Usavam tatuagens ’marcas de nação’, na face” 23. Além dos nagôs, outro grupo que contraiu matrimônio com os descendentes de Mariinha Rodrigues foi o dos congos, que habitavam na região do atual distrito de 23 Sobre a terminologia nagô como designativo de nação africana, Ramos (1979. p. 183-199) afirma: “Desde os tempos coloniais até os nossos dias houve designações populares de Nagô, Mina, Angola, Moçambique. O que indicava vagamente os pontos do continente africano de onde vieram os negros. Mais comuns eram as designações gerais: ‘peça da Índia’. ‘preto da Guiné’, ‘negro da Costa’. Para o branco senhor, não havia povos negros diversos, mas apenas o negro escravo”. Ainda sobre essa questão, Artur Ramos apresenta um quadro dos padrões de culturas negras sobreviventes no Brasil: a) Culturas sudanesas, representadas principalmente pelos povos Yorubá, da Nigéria (Nagô; Ijechá, Eubá, ou Egbá, Ketu, Ibadan, Yebu ou Ijebu e grupos menores); pelos Daomeanos (grupo Gêge: Ewe, Fon ou Efan, e grupos menores), entre outros. 46 Quicé, localidade próxima a Tijuaçu. Estes, segundo os depoentes, viviam no mato como os Cariris (índios da região). Segundo dona Anísia, “os congos não eram saídos, não. Viviam no mato fazendo suas roças e comendo besteiras de roça. Eles não saíam assim pro mundo, não. Eram criados a base de beiju e de massa de mandioca na roça”. Os moradores mais velhos fazem, também, várias referências aos índios Cariris (Caririzeiros), que contraíram matrimônio entre os descendentes de Mariinha Rodrigues. Dizem que os Cariris viviam no mato, eram muito bravos e alimentavam-se da caça. A senhora Maria Bernardina relata que seu avô José Pedro da Silva casou-se com uma cabocla (índia), chamada Benta Maria de Jesus, que veio de Feira de Santana para a região. Dizem que eram “índios mansos”, que passavam pelo local para visitar os índios da Vila de Missão do Sahy e acabavam parando em Tijuaçu, onde contraíram casamentos. Pelos relatos acima, índios e negros se relacionavam harmoniosamente no referido território, mantendo relações também conjugais. Os habitantes desse perímetro quilombola, ainda conservam algumas tradições dos seus ancestrais, dos brancos e também dos índios que viviam próximos a essa região. Nessa perspectiva, nessa comunidade, encontra-se um hibridismo cultural que emergiu no momento da colonização do Brasil. Há uma reinvenção das tradições culturais, seja ela negra, branca ou indígena. Encontram-se esses elementos nas diferentes relações que os habitantes se entrelaçam em Tijuaçu. O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradição cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade e não da nostalgia de viver (BHABHA, 2003, p. 27). É nesse mundo de “entre-lugares” deslizante que vivem os moradores de Tijuaçu, dentro dessa junção de culturas que se mediaram no decorrer do tempo, possibilitando a constituição de sujeitos culturais híbridos. Esses narradores consideram-se descendentes diretos dos africanos nagôs. 47 Alguns depoentes narram que seus ancestrais foram cativos e quando chegaram em Tijuaçu estavam fugindo da escravidão; tinham esperança de viver para sempre nesse território, longe dos olhos do senhor. “A oralidade vai pontuando essas questões, uma vez que a experiência nunca termina; é constantemente relembrada e retrabalhada” (THOMSON, 1997, p. 63). Assim, a memória sobre suas vidas vai sendo construída a partir de suas lembranças, pois a memória não é construída arbitrariamente, ela se alimenta das experiências históricas e precisa ser contextualizada. Assim, analisando os depoimentos colhidos, percebe-se que a identidade dos habitantes de Tijuaçu é sedimentada na presença de Mariinha Rodrigues, que constitui o centro de toda história desse território. Os laços familiares firmam-se e concretizam-se com a presença dessa fundadora. A história contada tece questões referentes à memória, à identidade, construção de solidariedade, pertencimento e tradição desse território. Pelo seu significado, principalmente nas comunidades em que prevalece a oralidade, a memória é acionada pelos narradores, ampliando horizontes sobre as experiências históricas. Esses informantes são depositários de uma memória que, mesmo narrada de forma individual, expressa lembranças coletivas (FUNES, 1996, p. 468). Através da tradição oral, o povo expressa sua vida social, seus valores e pensamentos que são repassados pelos mecanismos informais - a família e aos anciões. A tradição oral, por outro lado, desvenda a existência de uma literatura e de uma filosofia que normatizam a via ao mesmo tempo em que registram a memória (BAIOCCHI, 1999, p. 37-38). 1.2 Fuga e formação de quilombo A documentação escrita consultada, também, apresenta indícios de fuga de escravos para o sertão de Jacobina24 (comarca que englobava, até a segunda metade 24 Comumente conhecido, no séc. XVIII, como Comarca do Sul da Jacobina, território bastante extenso. No mapa das Freguesias do Arcebispado da Baia datado de 1775, pertenciam a esta comarca os seguintes oragos: Santo Antônio da Vila da Jacobina (atual cidade de Jacobina), Santo Antônio de 48 do século XIX, o território de Tijuaçu) e a formação de quilombo na região.25 Em 5 de junho de 1799, o Governador D. Fernando José de Portugal enviou um ofício para D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se refere à prisão de um grupo de homens, capitaneado por João Nunes G. Pereira, refugiado no sertão de Carinhanha, e à necessidade de se instalar Juízes de Fora nos sertões do São Francisco, assim como um esquadrão de cavalaria paga, devido ao mau estado em que se encontrava a cadeia da Vila de Jacobina. Foram presos no Arraial de Carinhanha vários pretos forros e cativos que já estavam nas mãos de terceiros e que tinham sido vendidos por Manoel de Jesus26. Em 20 de abril de 1799, o Governador D. Fernando José de Portugal enviou outro ofício a D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se referiu à destruição dos mocambos ou quilombos, formados por escravos que fugiam dos seus senhores e que se agrupavam e praticavam violências. Essa passagem está registrada no Arquivo Histórico Ultramarino.27 Estes ajuntamentos que na frase do Juiz se chamam de Mocambos ou Quilombos de que trata aquela petição, que me fizera Gaspar de Araújo, e outros para se lhes necessitar auxílio militar, existiam há muitos anos nos Sítios de Orobó e Andaraí28, constantemente distantes da Vila de Cachoeira, e por conseqüência não perto desta cidade, os quais mandei destruir no ano de 1797, encarregando esta diligência ao Capitão mor de Assaltos Severino Jacobina (atual cidade de Campo Formoso), Santo Antônio da Vila de Urubu, Santo Antônio da Vila do Livramento de Nossa Senhora das Contas, Sant´Anna do Caetité, Santuse (hoje Sento Sé), Santo Antônio do Pambu, Nossa Senhora do Bonsucesso, São Francisco na Vila da Barra do Rio Grande e Nossa Senhora da Conceição do Rio Pardo. Além dessa extensão territorial, Jacobina constituía uma região de mineração e para o referido território dirigiam-se diferentes pessoas, inclusive muitos aventureiros que iam à procura de ouro e de enriquecimento, levando para essas terras muitos escravos. (Mapa das Freguesias, que pertenceu ao Arcebispado da Bahia, 09 jan. 1775, Arquivo Histórico Ultramarino, documento n. 8.750). 25 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Como esclarecem os ofícios a seguir: Ofício do Governador D. Fernando José de Portugal para D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual se refere à destruição dos mocambos ou quilombos, formados por escravos fugidos dos seus senhores e que se agrupando praticavam as maiores violências, 06 abr. 1798, documento n. 18.173; Ofício do Governador D. Fernando José de Portugal para D. Rodrigo de Sousa Coutinho, no qual participa a destruição dos Quilombos ou Mocambos do Orobó e Andaray, no distrito de Vila de Cachoeira, 07 abr. 1807, documento n. 29.815; Ofício do Governador Conde da Ponte para o Visconde de Anadia, no qual informa das providências que tomara para destruir os Quilombos, formados pelos escravos fugidos dos seus senhores. 26 Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania da Bahia, 05 jun. 1799, documento n. 19.401. 27 Capitania da Bahia, 1799, documento n. 19.362. 28 Os quilombos de Andaraí e Orobó pertenciam à Vila de Cachoeira. Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania da Bahia, 06 jan. 1798, documento n. 18.173. Na transcrição do referido documento, atualizamos a grafia, exceto nomes próprios, e mantivemos a pontuação original. 49 Pereira, e outros acompanhados de alguns índios da Pedra Branca, e do mesmo Gaspar de Araújo que não [...] pouco para a sua extinção em que tinha interesse por ter fazenda de gado próxima aqueles lugares.29 No mesmo ofício, o Governador comunicou que enviou uma carta, em 6 de abril do mesmo ano, esclarecendo sobre as ordens que deu aos seus subalternos para que atacassem outro quilombo chamado de Topim (cf. mapa n°2 abaixo), na Comarca de Jacobina. Mapa n° 2 – Situação dos quilombos nos séculos XVIII e XIX. Fonte: Pedreira, Pedro. 1973. Nessa época, circulou notícias de que alguns negros fugidos estavam aquilombados no Orobó e Andaraí e que também foram extintos, encontrando-se nele quarenta e duas pessoas, entre adultos e crianças, as quais foram entregues aos seus respectivos senhores30. Posteriormente, no mesmo ofício, o Governador faz uma referência a outro quilombo, também na Comarca de Jacobina, em um lugar denominado Ilha, onde foram encontrados vários negros refugiados: [...] Autorizei para destruir este Quilombo, expedindo-lhe ordem para convocar a este fim alguns Capitães do Mato, ou de Assaltos, e para se lhe prestar algum socorro de Índios da Pedra Branca, o qual pretende fazer esta diligencia no mês de julho próximo futuro. 29 30 Arquivo Histórico Ultramarino, Capitania da Bahia, 20 abr. 1799, documento n. 19.362. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Capitania da Bahia, 20 abr. 1799, documento n. 19.362. 50 A documentação analisada aponta ainda que, ao final do século XVIII31 e início do século XIX, vários ajuntamentos de negros surgiram, formando mocambos, não somente no sertão, mas em outros lugares da Capitania da Bahia32, inclusive em Salvador33. Era uma preocupação constante para as autoridades da época o combate à fuga de negros e a destruição dos mocambos. Nesse intuito, criaram-se várias leis. O Alvará de 6 de março de 1741 determinou que os negros encontrados em quilombos, estando neles voluntariamente, “se lhe ponha com fogo uma marca em uma espádua com a Letra F e quando for executar esta pena, for achado já com a mesma marca se lhe cortará uma orelha” 34 . Eram atitudes extremas as quais as autoridades recorriam para dar conta do movimento de fugas de escravos e da formação de quilombos nesse período na América portuguesa. Outra atitude dos governantes da época era a concessão de patentes de Capitão de Entradas e Assaltos35. D. João VI, em 07 de março de 1804, concedeu patente a Antônio Afonso de Carvalho no posto de Capitão de Entrada e Assaltos do distrito da Vila de Jacobina, com o intuito de capturar negros fugidos e destruir os mocambos lá existentes36. A utilização sistemática de capitães-do-mato foi pensada como uma maneira de conter os mocambos baianos – assim como de outras regiões no Brasil Colônia – no início do século XVIII. Segundo Flávio Gomes (2005, p. 398), seria essa a avaliação de uma ordem régia na ocasião: 31 Desde o final do século XVII era constante a luta travada pelas autoridades para dizimar os quilombos. “Cerca de 1700, “quilombos” foram dizimados por forças sob o comando de Manuel Botelho de Oliveira na região de Jacobina, Gameleira, Tucanos e Rio Peixe. E, nesse mesmo ano, O Coronel Pedro Barbosa Leal – fundador das Vilas e Municípios de Jacobina e Rio de Contas – recebeu do Governo da Capitania um regulamento especial para “fazer entradas nos mocambos de negros fugidos”, segundo Pedreira (1973. p. 77). 32 Na região do recôncavo baiano no Brasil colonial, localizavam-se os engenhos de açúcar e nessas terras havia uma grande quantidade de mão-de-obra escrava. Santo Amaro, no Oitocentos, era uma das vilas mais populosas do Recôncavo Baiano. No início do século XIX, “corriam anos de prosperidade no campo de cana, o que significava mais escravos importados que chegavam à Bahia, numa média de oito mil anualmente. Cf. Reis (2001, p. 341). 33 Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Capitania da Bahia, 7 abr. 1807, documentos n. 29.815, 16 jun. 1807, 29.893 e 13 e 08 jul. 1807, 29.913. Os referidos documentos fazem menção aos quilombos nas Vilas de Cachoeira e de Santo Amaro da Purificação. 34 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Códice n. 707, fls. 33v. 35 Em 30 de abril de 1788, D. Fernando José de Portugal envia um ofício para Martinho de Mello e Castro, no qual o informa acerca das funções que exerciam os Capitães de Entrada e Assaltos. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa. Capitania da Bahia, 30 abr. 1788, documento n. 12.917. 36 IANTT, Chancelaria de D. João VI, Livro 8. Nesse mesmo livro tem referência a Patentes recebidas por Capitães de Entrada e Assaltos para o distrito da Vila de Nossa Senhora da Purificação. 51 Examinando muito particularmente para que efeito se provem nesta Capitania os postos de capitães-mores das entradas dos mocambos: achei, que desde o princípio deste Governo Geral, se fizeram sempre semelhantes provimentos, por serem totalmente precisos, para prender os negros que fogem a seus senhores, e evitar, que não cheguem a juntar se em número que possam fazer, nos matos para que se retiram os mocambos que costumam, dos quais saem às estradas, a roubar, e matar aos passageiros, atrevendo-se a tanto, que vêm muitas vezes às casas dos moradores, que no recôncavo vivem mais retirados, a tirar delas as escravas, e o mais que querem: e andam hoje tão insolentes os ditos negros, que em distância desta cidade, pouco mais, de meia légua, se atreveram a formar uma companhia de ladrões, que não só roubavam pelas estradas, senão também nas casas dos moradores daquele lugar, prendendo-se parte destes negros, se fez, pela justiça, execução em cinco, que mandou enforcar, e esquartejar (GOMES, 2005, p. 398). Segundo a ordem régia, a função dos capitães-do-mato era prevenir as fugas e não reprimir os escravos com enforcamento ou outros tipos de castigos. Outra função desse cargo, tinha como pressuposto caçar escravo fugido e trazer vivos de volta para os seus donos, o que nem sempre acontecia. Em face dessa movimentação de escravos fugindo em direção à região de Jacobina, pergunta-se: quais os atrativos que motivavam os escravos a se direcionarem para a região, fugindo do recôncavo para o sertão distante? Certamente a mineração de ouro e de diamantes atraía esses escravos, que tinham esperança de se livrar do cativeiro mediante o encontro de pedras e metais preciosos nos garimpos. Outro atrativo de homens livres e escravos eram as pastagens de gado. Como sugere o padre Antonil (1982, p. 157), a grande extensão de terras para pastos de gado que existia no Brasil no século XVIII atraía homens livres e escravos que conduziam as boiadas pelo sertão. Sobre as inúmeras fugas37 no período, Gomes (2005, p. 407) esclarece que “o impacto do tráfico africano, por exemplo, pode ter refletido, de fato, num aumento do índice de fugas e na formação de novos mocambos baianos”. Os crimes, juntamente com as fugas, as rebeliões, a formação de quilombos e os suicídios traduziam, simultaneamente, repúdio à escravidão e busca incessante da liberdade. À luz desse raciocínio, esgotadas as estreitas possibilidades de manumissão patrocinada – alforrias concedidas pelos senhores – aos escravos restavam unicamente meios extremos que, uma vez concretizados, levá-los-iam para 37 Também sobre essa questão, ver Machado (1986, 1987). 52 fora do mundo da escravidão. Nessa perspectiva, a resistência escrava visava acima de tudo à destruição do regime ou, nos limites de ação individual, à negação da própria condição38. Essa era a luta empreendida pelo escravo e seu sonho - tornar-se livre e viver perto dos seus. Muitos também alimentavam o sonho de retornar à sua terra. A discussão sobre a formação e a perseguição dos quilombos em Jacobina é oportuna para conhecer e analisar a dinâmica da história dos escravos nessa região. 1.3 Proprietários da Fazenda Lagarto na segunda metade do século XIX A documentação oficial esclarece que a Fazenda Lagarto, atual distrito de Tijuaçu, teve vários proprietários. Os livros de registros de escravos apontam que nos municípios de Senhor do Bonfim e Campo Formoso, nos séculos XVIII e XIX, havia um grande número de escravos, agregados e libertos que viviam nas fazendas da região, tendo permanecido após a Abolição. Na documentação analisada sobre compra e venda de escravos, observa-se que aqueles residentes em Senhor do Bonfim, na segunda metade do século XIX, em sua maioria, trabalhavam na lavoura e como domésticos. De trinta e cinco registros encontrados do período de 1879 a 1888, vinte e cinco, entre homens e mulheres, eram identificados como lavradores, seis escravas trabalhavam no serviço doméstico e quatro não apresentaram a profissão, pois se tratava de crianças39. No livro de Registros Eclesiásticos de Terras da Freguesia de Jacobina,40 encontram-se algumas referências às terras da Fazenda Lagarto – atual Tijuaçu. A seguir, referências de alguns proprietários dessas terras na segunda 38 Wissenbach (1998. p. 19) afirma: “A atribuição de um objetivo único e legítimo para a luta dos escravos inscreveu-se, direta ou indiretamente, na concepção burguesa do direito de autodeterminação dos indivíduos, direito esse violentado no processo de escravização.” 39 Escrituras de Compra e Venda de Escravos. Cartório do 2º. Tabelião da Vila Nova da Rainha, 14 de outubro de 1880. 40 APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859. 53 metade do século XIX. Eleutério Francisco de Freitas41 possuía uma Fazenda denominada Barreira. Esta pertencia à Vila Velha de Santo Antônio, hoje município de Campo Formoso, no ano de 185842. A Fazenda Barreiras constitui o atual povoado de Barreiras e está dentro do perímetro quilombola traçado pela Fundação Cultural Palmares. A Fazenda Lagarto, em 185843, teve como proprietários Felipe Rodrigues da Silva e Manoel Francisco da Purificação, que tomaram posse de uma terra denominada Lagarto (atual Tijuaçu), também distrito da Freguesia Velha de Santo Antônio de Jacobina, e que foi herança de Manoel Rodrigues da Silva, no ano de 1858, tendo como limites: para o nascente – Fazendas Picada e Caldeirão; para o poente, a Fazenda Curral. As outras referências do documento não estavam visíveis, motivo pelo qual não foi possível fazer a leitura na íntegra. Outro registro, também de 1858, faz referência às terras de Joaquim Manoel de Sant’Anna44 que declara ser possuidor de uma fazenda denominada Lagarto, cujos limites não coincidem com os da fazenda anterior com o mesmo nome: para o nascente, a Lagoa do Cocho; para o norte, Riacho Grande e, para o sul, Mucunan. Acredita-se que esta tenha sido outra área da fazenda, situada na parte sul. Joaquim Manoel de Sant’Anna45 também registra, nessa mesma data, outra posse de terra denominada Caldeirão. Isto leva a admitir que a Fazenda Caldeirão seja hoje a localidade de Caldeirão do Mulato, povoado próximo a Tijuaçu. Outro documento faz referência ao casal Umbuzeiro Angelim, que, em 1888, 41 APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859. Segundo SILVA, (1998, p. 160-2), Eleutério Francisco de Freitas foi proprietário também da Fazenda Água Branca, localizada no município de Antônio Gonçalves, considerado boiadeiro famoso no século XIX. No referido século se estabeleceu nesse município com uma fazenda de gado e plantio de cana nas margens do riacho Água Branca. 42 APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120, n. 408. 43 APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120, n. 101, n. 208. 44 APEBa, Seção do Arquivo Colonial e Provincial, Série Governo da Província, 1857-1859, página 120, n. 76, n. 323. 45 Nos Livros de Notas do século XIX, em dois de setembro de 1881, Joaquim Manoel de Sant’Anna aparece passando uma procuração a Leonel da Cunha Amorim com o objetivo de promover no Juízo Municipal a execução da sentença contra Antônio Ferreira Guimarães nos autos de contas e arrematação dos bens da Imagem de Nossa Senhora da Conceição que se acha depositada na Capela de Santa Efigênia. 54 hipotecou a metade da Fazenda Lagarto para uma empresa com sede em Salvador, mas no ano seguinte pagou a dívida e obteve de volta a área hipotecada. Nos testamentos e inventários consultados do final do século XIX e início do Século XX, não foi encontrado o testamento do casal Umbuzeiro Angelim46. A documentação analisada demonstra a grande extensão da Fazenda Lagarto no século XIX. Os limites que aparecem nos referidos documentos, como Picada, Curral, Caldeirão, Riacho Grande e Mucunan eram antigas fazendas ainda existentes e que continuam com as mesmas denominações. Alguns desses territórios transformaram-se em pequenos povoados. A Lagoa Cocho, muito conhecida pelos habitantes de Tijuaçu, garante até hoje o abastecimento de água para alguns moradores. “É no Cocho”, como eles dizem, que os moradores de Tijuaçu pegavam água para abastecer suas casas. São estas evidências que a documentação oficial apresentou sobre a região. O inventário post mortem de Manoel Joaquim Santana, de Felipe Rodrigues da Silva e do casal Umbuzeiro Angelim foi procurado no Fórum de Senhor do Bonfim em Livros de Notas e Escrituras, e no Arquivo Público do Estado da Bahia, onde se poderia encontrar uma cópia do testamento, mesmo em se tratando de testamento “fechado”. Infelizmente não foi encontrada a referida documentação, o que impossibilitou comprovar alguma evidência sobre doação de terras aos habitantes de Tijuaçu e outras informações sobre essa temática. Nos Registros Eclesiais de Terras, no Arquivo Público do Estado da Bahia, foram encontradas referências sobre a região a partir de 1850, entretanto, os documentos não estavam disponíveis para pesquisa, pois se encontravam em processo de restauração. A análise de tais documentos possibilitaria informações sobre os proprietários e suas respectivas terras bem como compra e venda de escravos, testamentos e outras informações sobre os limites e as características da terra. Com essa documentação em mãos, haveria condição de se 46 Fórum de Senhor do Bonfim, Livro de Notas n. 06, 1887-1890, fl. 109. O casal Angelim contraiu uma dívida com a Companhia Moraes no valor de cinco contos e duzentos mil réis em 19 de dezembro de 1888 e deu como garantia além da Fazenda Lagarto, casas em Senhor do Bonfim e algumas cabeças de gado. Em 24 de agosto de 1889, eles requerem o cancelamento da hipoteca e quitam a dívida. Em Senhor do Bonfim, encontram-se muitos moradores com o sobrenome Angelim. Ao procurar os mais velhos, os mesmos não conseguiram lembrar desse casal Umbuzeiro Angelim e quem são hoje seus netos ou bisnetos. 55 traçar o perfil histórico oficial da referida comunidade. O guia do desmembramento das comarcas e municípios da Bahia e as coleções das leis da província, do século passado, sugerem que as terras de Tijuaçu pertenciam à Freguesia Velha de Santo Antônio de Jacobina. Contudo, municípios como Antônio Gonçalves, Pindobaçu e Filadélfia, foram desmembrados de Campo Formoso e elevados a município no século XX. Parte das terras de Tijuaçu, a partir de 1954,47 com uma nova divisão dos municípios, passou a pertencer a Senhor do Bonfim, como já comentado anteriormente. Outra parte passou a integrar os municípios de Filadélfia e Antônio Gonçalves. Outros proprietários com sobrenome Santana aparecem nos documentos analisados, comprando e vendendo casas, roças e outras propriedades na região. Destes, encontramos apenas um, que comprou uma escrava chamada Joana, parda, com trinta anos de idade, solteira, empregada no serviço doméstico, natural de Monte Santo (município próximo a Senhor do Bonfim). O comprador foi Joaquim Ferreira de Sant’Anna, morador da Vila Nova da Rainha, que adquiriu a referida escrava em Monte Santo, distante da referida Vila cerca de 120 quilômetros, em 17 de março de 1880. Fry e Vogt (1996) pesquisaram sobre o Cafundó e iniciaram sua pesquisa ouvindo as falas dos moradores e, seguindo essas pistas, chegaram até a documentação escrita. Partiram do pressuposto de doações de terras. Assim, eles analisaram o Cafundó, enfatizando o papel estruturador da “língua africana” nas relações sociais e no universo cultural de seus moradores e de outras comunidades negras. Descreveram os procedimentos de pesquisa utilizados, os conflitos entre as várias entidades e segmentos envolvidos com a comunidade e o fortalecimento político e social, que para eles poderiam advir de sua atuação. Na memória dos habitantes de Cafundó, estava claro o nome dos doadores daquelas terras. Já em Tijuaçu, os moradores não fazem referência à doação e se auto-definem como donos daquelas terras - seus únicos ocupantes. As evidências encontradas na documentação escrita sobre os antigos 47 A Lei nº 168, de 30 de dezembro de 1953, fixou a divisão territorial e administrativa. Diário Oficial do Estado da Bahia. Salvador, 01 de janeiro de 1954. 56 proprietários de Tijuaçu na segunda metade do século XIX e a indicação das narrativas dos moradores sobre a propriedade dessas terras a Mariinha Rodrigues, revelam diferentes possibilidades sobre a trajetória desse território. 1.4 Currais, gados e tropeiros: a trajetória da cidade de Senhor do Bonfim A região que mais tarde veio constituir a cidade de Senhor do Bonfim – à qual Tijuaçu pertence – já era conhecida desde o século XVII, quando padres franciscanos fundaram, em 1697, a Missão de Nossa Senhora das Neves do Sahy48. Posteriormente, essa localidade foi ocupada por outros moradores, tendo lugar a fundação do arraial de Nossa Senhoras das Neves do Sahy, considerado um dos mais antigos do Estado da Bahia. Ficaram incumbidos da sua administração os religiosos de São Francisco, que construíram um convento sob a invocação de Nossa Senhora das Neves. Desse antigo convento, ruínas ainda existem. O padre Antonil faz referências sobre os lugares onde os condutores e acompanhantes das boiadas costumavam passar e pousar pelo interior da Bahia: Entende-se o sertão da Bahia até a barra do Rio São Francisco oitenta léguas por conta e indo pelo rio acima até a barra que chama de Água Grande; fica distante a Baía da dita barra cento e quinze léguas; de Santunsé, cento e trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas, de Jacobina (grifo nosso), noventa e, de Tucano, cinqüenta (ANTONIL, 1982, p. 157). Quando Antonil faz referência à Jacobina,49 menciona à extensa região dessa 48 No Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, encontra-se uma correspondência datada de 25 de novembro de 1803 do Ouvidor da Comarca de Jacobina, José da Silva Magalhães, para o Governador da Bahia, na qual informa acerca dos índios que habitavam na Missão do Sahy, emitindo algumas considerações sobre o comportamento dos mesmos. A referida correspondência dizia: “Há uma povoação, denominada do Sahy e outra de Bom Jesus cujos habitantes são, minimamente preguiçosos, ladrões e de contínuo embriagados, vivendo dispersos não só pelos motivos expostos, mas também por fugirem ao Governo dos Missionários Franciscanos que os vem reger, porque estes pela maior parte se vem aproveitar dos seus serviços braçais sem com eles repartirem coisa algumas dos frutos, além de lhes prostituírem as mulheres e as filhas”. Parecer muito preconceituoso sobre o modo de vida dos indígenas da região. 49 Segundo Vilhena (1969, p. 560-561): “A vila de Santo Antônio da Jacobina, distante 80 léguas da cidade da Bahia, e vinte e tantas do rio de São Francisco, é a cabeça desta comarca, e residência do Ouvidor. As vilas, e povoações mais consideráveis da sua dependência são a mencionada vila de 57 comarca: vilas e povoados que a ela pertenciam, inclusive a cidade de Senhor do Bonfim. Os currais e fazendas de gado geralmente se situavam em campos largos, com muitos pastos, próximos a lagos e rios. Não somente a expansão dos currais impulsionou a conquista do sertão. Desde os primórdios da colonização, a ambição de alcançar o Eldorado ou encontrar a serra resplandecente alimentava o sonho de portugueses e mamelucos, aos quais os índios transmitiam informações sobre a existência, nas proximidades das cabeceiras do São Francisco, de serras onde havia metal amarelo cujos pedaços desciam para as águas do rio ( BANDEIRA, 2001, p. 124-125). As terras que constituem hoje a cidade de Senhor do Bonfim pertenceram à Casa da Torre. De acordo com Bandeira (2001, p. 150), em 28 de abril de 1654, ainda quando as forças da Companhia das Índias Ocidentais, derrotadas, retiravam-se do Nordeste brasileiro, o padre Antônio Pereira recebeu de sesmaria toda a terra que se encontrava da barra do rio Salitre, confluência com o São Francisco, acima e para a banda do sul: A largura que houver e couber a jurisdição desta capitania (Sergipe) até próxima a da Bahia pelo rumo do Leste a Oeste que dividir uma da outra da nascença do rio Real para o sertão com outro tanto comprimento acima e abaixo, quanto o que tiver pelo rio São Francisco, incluindo-se também dentro desta data a nascença do rio Tepecuru (Itapicuru) e as serras de Tigipilha e Jacobina com as mais que lhe ficarem dentro desta data50. (Grifo da autora) Segundo a documentação analisada, o que constituiu a cidade de Senhor do Jacobina, a de N. S. do Livramento do Rio de Contas, a vila do Urubu de Cima junto à margem do rio de São Francisco, distante 134 léguas da cidade da Bahia, a vila de São Francisco de Chagas situada na barra do rio Grande, o qual entra por Leste naquele de São Francisco. Além destas há outras, como a de Santa Ana de Caetité, vila de N. S. do Bom Sucesso, Santa Ana do Pambu, Santo Sé, e algumas outras. O terreno desta comarca é vastíssimo composto de serras altíssimas, e extensas. Nessas partes encontram-se planícies imensas, e terras menos altas que se ocupam, com fazendas de criar gados, e plantar alguma mandioca, milho, algum arroz em partes, e alguns outros legumes para sustento dos seus habitantes.“ 50 Bandeira (2000. p. 150). Segundo o referido autor: apesar das ponderações ao procurador da Coroa, Tomé Pinheiro da Veiga, advertindo o rei sobre a inconveniência de dar a uma pessoa eclesiástica, por converter-se em uma grande capitania, a sesmaria foi confirmada. Carta de sua Majestade sobre o padre Antônio Pereira para pedir confirmação de certas terras, Lisboa, 26 mar. 1656; resposta do procurador da Coroa, Tomé Pinheiro Veiga, s/d, in Documentos Históricos (1651-1667). Cartas Régias, vol. LXVI, p. 118 a 120, Registro de uma Carta de Sesmaria do padre Antônio Pereira, petição que fez a este governo e confirmação dele. Doc. Históricos – 1606 a 1659 (Provisões, Alvarás e Sesmarias), Vol. XIX, p. 447-449. 58 Bonfim no século XVIII era apenas uma rancharia51 de tropeiros, situada à margem da estrada das boiadas, depois estrada real, à beira de uma aguada de muita duração, que constituía uma grande lagoa52. Em 1750, tendo já considerável número de moradores, tomou oficialmente o nome de Arraial do Senhor do Bonfim da Tapera. No ano de 1799, uma mobilização popular reivindicava que o referido arraial se tornasse uma Vila53, justificando, inclusive, a grande distância entre o arraial e a Vila Nova de Jacobina. Os moradores do Arraial e Julgado do Senhor do Bonfim, comarca de Jacobina abaixo, assinados, representam humildemente a V. Exa. Que sendo o dito arraial uma das principais povoações da dita comarca, que contém um número considerável de casas arruadas com Igreja e para cima de 600 almas de confissão, se achava totalmente inabitável pelo grande número de vadios e malfeitores, os quais juntando-se a toda parte por ser a estrada pública dos sertões do Piauí, Longal e Maranhão e Rio São Francisco cometiam, sucessivamente mortes e distúrbios andando publicamente armados com bacamartes, espingardas, facas e catanas, de sorte que até o sacrifício da missa assistiam nesta figura, mesma comarca Florêncio José de Moraes Cid erigiu em Julgado o dito Arraial assinando-lhe termo, que compreende mais de 5.000 habitantes, cuja providência foi V. Exa. servido confirmar na carta dirigida ao dito Ministro a este respeito54. A localização do referido Arraial facilitava a passagem e a permanência de diferentes pessoas que vinham de diversos lugares. Tal movimento deixava os moradores preocupados e apreensivos frente a alguns visitantes que chegavam ao arraial armados fazendo arruaças e cometendo vários delitos. Essa situação levou os moradores a suplicarem às autoridades para que o Arraial e Julgado do Senhor do Bonfim fosse elevado a Vila, objetivando a centralização dos poderes e a vinda de autoridades para poderem administrar os distúrbios que estavam acontecendo. Nesse sentido, solicitaram que houvesse a eleição de Pelouros para Juízes e Procurador na 51 Segundo Scarano (2002. p. 88). Nos Setecentos, nas áreas de mineração e rurais de Minas Gerais, a morada de negros de quase sempre chamadas de rancho ou rancharias diferem das senzalas e são vistas como duas entidades diversas. Os ranchos perto das áreas de mineração, feitos para durar pouco, eram mudados freqüentemente de lugar e não sobreviveram ao tempo. Eram as mais precárias construções, foram utilizadas como habitação de pessoas livres e muito pobres. 51 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325. 52 Os ranchos ou rancharia que foram construídos próximos a Lagoa em Senhor do Bonfim, no século XVIII eram construções provisórias e simples, constituía apenas um pouso, mas eram constantemente utilizadas, servia como abrigo e descanso para aqueles homens que transportavam boiadas. 53 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325. 54 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1797, Capitania da Bahia, documentos n. 28.324 e 28.325. 59 forma da lei, levantando Pelourinho e concluindo a construção da Casa Pública da Cadeia. Com estes procedimentos, houve a regularização das providências necessárias para a boa administração da Justiça. Ao considerar os justos motivos alegados na dita representação, D. Fernando José de Portugal, por carta ao ouvidor da vila de Jacobina, José da Silva Magalhães, datada de 8 de julho de 1799, elevou o arraial do Senhor do Bonfim da Tapera à Vila, a qual tomou o nome de Vila Nova da Rainha, tendo lugar a instalação em 1º de Outubro de 1799, por este mesmo ouvidor e corregedor geral55. Em 9 de agosto de 1802, D. José envia uma carta ao Governador e Capitão General da Capitania da Bahia dando patente ao posto de Capitão-mor das Ordenanças56 a José Pereira Guimarães57. Em 1804, o Capitão-mor da Vila Nova da Rainha, José Ferreira Guimarães, elaborou o Mapa dos habitantes do Terço das Ordenanças da Vila Nova da Rainha, tirado do resumo da relação dos distritos58. A Vila Nova da Rainha, ao passar dos anos, vai se impondo com uma administração centralizada e tendo no seu território a presença de bandeirantes e tropeiros orientados pelo rio Itapicuru e pelos contrafortes do prolongamento da Chapada Diamantina, que chegavam a essa região. Eram bandeirantes e tropeiros que saíam do litoral em direção ao sertão baiano. Desde o século XVII, com a criação da Missão do Sahy de Nossa Senhora das Neves, transitavam pela região missionários e tropeiros, instalando missões ou transportando gado, acompanhados de índios e escravos que ajudavam no trabalho com a pecuária. Esse movimento de pessoas – índios, negros e brancos – indo e voltando, fez com que alguns permanecessem nessas paragens, surgindo assim, ao final do século XVIII, a Freguesia do Senhor do Bonfim da Vila Nova da Rainha, que 55 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 09 jul. 1797 e 30 out. 1799, documento n. 28.323. Ofício dos Corregedores da Comarca da Jacobina Florêncio José de Moraes Cid e José da Silva Magalhães, relativos a criação da Vila Nova da Rainha. 56 Eram milícias formadas pelos soldados e oficias “dados e pagos” pelas Câmaras e Conselhos, diferentemente dos que integravam as tropas regulares, não recebiam soldo. A autora agradece ao professor Bartolomeu Mendes as referidas informações. 57 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 06 ago. 1803, documento n. 28.325. 58 Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, 1804, documento n. 28.327. Segundo o Mapa das Ordenanças estes eram os distritos que pertencia a Vila Nova da Rainha em 1804: Distrito do Arraial da Freguesia Velha (atual cidade de Campo Formoso), Cariacá, Lagoa Grande, Jagorari (atual cidade de Jaguarari), Rio do Aipim e Água Branca. 60 aparece nos documentos oficiais da época como um centro no qual capelas, arraiais e povoações estavam sob sua custódia. Quadro do município da Villa Nova da Rainha, demonstrativo das Freguesias, capellas, arraiais, povoações e distritos de paz contidos no dito município: Freguesia do Senhor do Bonfim da Villa Nova da Rainha, São Gonçalo da Serra de Itiúba, Nossa Senhora da Ponte de São Miguel, Nossa Senhora das Neves da Missão do Sahy, Cachoeiririnha, Jaguarary, Barrocas, Socotó – a beira do Rio Itapicuru, Canoa, Imburanas, Missão do Sahy dos Índios59. Pela divisão eclesiástica, a Freguesia de Senhor do Bonfim60 era um centro, ao qual os outros povoados estavam submetidos. Atualmente, algumas dessas localidades tornaram-se cidades, outras permanecem ainda como distritos. Nessa época, Tijuaçu não aparece nem como Vila nem povoado, mas sim como fazenda Lagarto. Abaixo os limites da Vila Nova da Rainha: Desta Villa Nova da Rainha o caminho de Juazeiro no lugar denominado = Incruzilhada, e daqui rumo direto no lugar das Panellas subindo rio acima até o lugar da Passagem do Sasg. E rumo ao poente dessa o São Francisco extremando com a Fazenda Nicará de Jacobina Nova, e da [...] rumo no lugar dos Angicos do Itapicuru, e daí rio abaixo até as Queimadas caminho da Bahia até onde caem às águas do rio Jacarici, e desde rio acima da parte de cá (...) a esta para até o lugar do Pimel, e desse cortando rumo disto no lugar da Lagoa Caraíbas no caminho de Curaçá e da Lagoas da Caraíbas cortamos rumo ao distrito de Pilar, e desse cortamos a mata que m. f. a Fazenda Água Branca, e daí cortando direto no lugar da dita Incruzilhada do caminho de Juazeiro, ficando todas as Fazendas declaradas quanto ao termo desta Vila61. O perfil territorial da Freguesia de Senhor do Bonfim no século XIX é demonstrado no referido documento com uma área de abrangência muito extensa, chegando próxima à cidade de Juazeiro, distante cerca de 120 Km, Jacobina Nova, 105 km, e Lagoas Caraíbas, 70 km. Com a fixação do povoamento de Senhor do Bonfim, fazendas e povoados 59 APEBa – Seção Provincial e Colonial, maço nº 5248 – Relação das Freguesias, Capelas, Arraiais, Povoações e Distritos da Paz do Município de Villa Nova da Rainha. 60 A Vila Nova da Rainha (atual cidade de Senhor do Bonfim), foi criada em 1º de julho de 1797, pertencia anteriormente a Jacobina Nova. Topônimos anteriores: Vila Nova da Rainha e Bonfim. Tem como vilas: Carrapichel, Igara e Tijuaçu; limites: Antônio Gonçalves, Filadélfia, Jaguarari, Campo Formoso, Itiúba e Andorinha. Dados do IBGE –BA, 2000. 61 APEBa – Seção Provincial e Colonial, maço nº 5248 – Relação das Freguesias, Capelas, Arraiais, Povoações e Distritos da Paz da Villa Nova da Rainha. 61 vão surgindo em torno da cidade. Atualmente Senhor do Bonfim tem como distritos: Carrapichel, Igara, Tijuaçu, Missão do Sahy, Caldeirão do Mulato. A cidade cresceu e atualmente a população rural e urbana do município tem cerca de 80.000 habitantes. Nas páginas seguintes podemos observar dois mapas: o primeiro n.3 – do Estado da Bahia, onde se observa a divisão territorial do referido estado e a localização do município de Senhor do Bonfim; o mapa n. 4 apresenta a divisão territorial de Senhor do Bonfim, com suas vilas, povoados, limites, rodovia, entre outros. 62 Mapa n°3 - O Estado da Bahia e o Município de Senhor do Bonfim Fonte: IBGE – BA , 1998. 63 Mapa n° 4 - Localização do Município de Senhor do Bonfim. (Onde se lê Tiguaçu leia-se Tijuaçu). Fonte: IBGE - BA, 1985. 1.5 Identidade, reconhecimento e auto-estima 64 Em 1988, com as comemorações do centenário da Abolição da escravatura e a promulgação da Nova Constituição do Brasil, habitantes de várias comunidades rurais negras passaram a se mobilizar e lutar em prol do direito à terra por eles ocupadas. Diante de tal situação, os representantes do poder legislativo foram pressionados a incluir alguns artigos na Constituição de 1988 que faziam referências sobre as terras ocupadas por afro-descendentes. Com a promulgação da Constituição, algumas entidades – principalmente ligadas a diferentes setores do Movimento Negro –, organizações não governamentais, intelectuais e pesquisadores, em especial das Ciências Humanas, passaram a defender os direitos das comunidades negras rurais (SILVA, 2002). Nesse debate, Tijuaçu passou a receber visitas de diferentes setores, que tinham como objetivo mobilizar os habitantes para defesa dos seus direitos instituídos pela Constituição de 1988. A população, informada dessa discussão, passou a mobilizar-se através, principalmente, da visita de representantes do Movimento Negro Unificado e de técnicos da Fundação Cultural Palmares, que iniciaram um trabalho de conscientização com os moradores. A partir dessas visitas, começou uma trajetória de reivindicações e conscientização dos seus direitos, quando tem início, também, o processo do reconhecimento do território como remanescente de quilombo, sintonizado com o que instituía nossa Lei Maior. A partir da Carta de 1988, os conflitos recrudescem e alcançam destaque considerável na imprensa do Brasil e do exterior, pois a questão passa a ser vinculada ao referido artigo, uma novidade constitucional já experimentada em legislações federais de países como Jamaica e Colômbia (SILVA, 2000, p. 267). A partir de então, as comunidades negras, até então tratada como questão fundiária, assumem uma conotação mais ampla, compreendendo aspectos étnicos, históricos, antropológicos e culturais. Em 1995, o Congresso Nacional resolve regulamentá-las como pressuposto necessário à sua aplicação pelo Governo Federal, indo de encontro à opinião de juristas e de organizações civis que entendiam ser o Art. 68, auto-aplicável (SILVA, 2000). Esses segmentos defendem a abordagem que associa a reivindicação de direito possessório àquele previsto no Art. 68, assim ampliando o rol de 65 argumentação exigido pelo Judiciário e as instituições governamentais afetas ao problema. Por outro lado, a publicidade do debate enseja a arregimentação de forças políticas contrárias às demandas das comunidades. A base das argumentações para a não aplicação do Art. 68 retoma o arcabouço jurídico colonial, que definia quilombo como grupo de escravos que, à margem das leis existentes, fugiam e se embrenhavam nas matas para saquear, roubar e matar administradores e proprietários de fazendas. Tal noção, ainda hoje, baliza e estrutura os argumentos legais dos que advogam contra os interesses das comunidades (SILVA, 2000, p. 268-269). Entretanto, a conceituação de quilombo, segundo a legislação em voga, abriu perspectiva para que os historiadores discutissem e apresentassem argumentações acerca da aplicação da atual norma constitucional, segundo Silva (2000, p. 269). Dentro dessa discussão, percebeu-se, então, que o reconhecimento dos direitos das comunidades negras rurais às suas terras pressupõe a “revisão de procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos afetos à questão do ordenamento jurídico agrário, territorial e ambiental para reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais” (SILVA, 2000, p. 269). É justamente nesse último aspecto que se encontra dificuldade maior para assegurar os direitos das comunidades, pois a situação das terras implica no reconhecimento da diferença racial como pressuposto para o estabelecimento de direitos sociais específicos. Com base nessas discussões, estudiosos das Ciências Humanas, passaram a definir o conceito de quilombo tendo como pressuposto a resistência cultural dessas comunidades negras rurais, dando-os a nomenclatura de quilombos contemporâneos. Segundo Moura (1999, p. 100), as comunidades rurais negras são consideradas como quilombos contemporâneos dado à ancestralidade de seus habitantes e às relações que essas populações travam no interior do território. Sintonizados com o conceito abaixo, vários territórios negros passaram a serem reconhecidos no Brasil, como comunidade remanescente de quilombo. Podem-se definir quilombos contemporâneos como comunidades negras rurais habitadas por descendentes de escravos que mantêm laços de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de subsistência, em terra doada, comprada ou ocupada secularmente pelo grupo. Os negros dessas comunidades valorizam as tradições culturais dos antepassados, religiosas ou não, recriando-as no presente. Possuem uma história comum e têm normas de pertencimento explícitas, com consciência de sua identidade étnica (MOURA, 1999, p. 100). Nessa perspectiva, a partir da segunda metade da década de 1990, foi 66 realizado o mapeamento de diversas comunidades negras rurais. É essa matriz histórica dos quilombos que passou a ser reapropriada para referir-se, de um modo geral, às comunidades rurais negras no Brasil. No decorrer dessa discussão e tendo como pressuposto a aceleração do processo de reconhecimento de Tijuaçu, técnicos da Fundação Cultural Palmares e representantes do Movimento Negro, orientaram a população para que fosse criada uma associação com o escopo de mobilizar e discutir a cultura, a história da comunidade e a defesa dos direitos coletivos. Em abril de 2000, foi criada a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências. A referida comunidade já tinha formado a Associação de Desenvolvimento Comunitário, uma organização dos moradores com objetivo de, junto aos órgãos competentes, obter benefícios para a comunidade, entretanto, estava restrito somente ao distrito, não abrangia os povoados o perímetro quilombola. Segundo os moradores, era necessário criar uma associação que tivesse representantes de todo perímetro quilombola, como forma de agregar todo o grupo: Digo adjacências porque na verdade, ela hoje não somente atua na sede de Tijuaçu, e são dez comunidades juntas. Tijuaçu com mais nove comunidades circunvizinhas, onde a associação atua desde 2000 quando foi fundada, então, assim que foi reconhecida, o reconhecimento se deu no dia 28 de fevereiro do ano 2000. O reconhecimento saiu e foi publicado no Diário Oficial, e alguns dias depois, no dia 2 do mês 4, no começo de abril de 2000, também nós fundamos a associação aqui em Tijuaçu. Mas uma associação que abrange todo esse perímetro quilombola, que abrange cerca de 2.700 e mais alguns quilômetros aqui em Tijuaçu. Eu fui eleito como o novo presidente, e juntamente com as outras pessoas da diretoria, a Dona Ilca dos Santos, temos a tesoureira que é Cássia Maria dos Santos, temos a vice que é Valdelice da Silva, temos também a Natasha Fagundes que é a primeira secretária e temos ainda a Vitoriana que é do povoado de Conceição, que faz parte da associação, e a nossa segunda secretária. Temos outras pessoas que fazem parte do conselho fiscal. Outra coisa que eu gostaria de frisar, que é de grande importância, é que a associação é uma associação bastante unida, e na verdade nós temos cerca de 50 pessoas trabalhando junto com a direção. Agora, de que forma essas pessoas trabalham? Por exemplo, essas pessoas, elas são conhecidas como lideranças dos povoados, lideranças das ruas também, quer dizer, a associação hoje cresceu e já temos mais de 400 sócios, então nós precisamos de um trabalho assim, fortalecido e unido (Entrevista realizada pela autora com Antônio Marcos Rodrigues, atual presidente da Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, em 02 de fev. de 2005, em Tijuaçu). A Associação Quilombola tem conquistado espaço enquanto órgão representativo, procurando atender às reivindicações da comunidade e defendendo os 67 direitos desses remanescentes. Nessa perspectiva é realizado um trabalho comunitário sintonizado com a população. Para concretizar tais ações, são realizadas reuniões periódicas com membros e representantes das diferentes comunidades como: Fazenda Alto, Olaria, Quebra Facão, Água Branca, Lajinha, Conceição, Macaco, Barreira, Queimada Grande e Fazenda Capim. Nessas reuniões, discutem-se os problemas que afligem a população, os projetos que estão chegando a Tijuaçu, como administrá-los, as informações oriundas da Fundação Cultural Palmares, da Unegro e de outros órgãos que têm relação com a cultura afro-descendente. Dessa forma, a Associação desenvolve o seu trabalho, conscientizando os participantes dos seus direitos e deveres como cidadãos. Recentemente, a Associação Agropastoril recebeu da Fundação Cultural Palmares máquinas de costura industriais. A pretensão é criar em Tijuaçu um pólo de confecção, dando oportunidade de emprego a muitos moradores. Atualmente, o SEBRAE ministrou curso de corte e costura na sede da Associação, habilitando diversas pessoas para a arte de cortar e confeccionar roupas. Foram entregues, também, alguns tratores para facilitar o trabalho no campo. Essas medidas têm como meta criar outras perspectivas de sobrevivência à população. Até a visita dos técnicos da Fundação Cultural Palmares, os moradores desconheciam o significado da palavra quilombo. Eles tinham ouvido o referido vocábulo, mas não sabiam de fato o seu significado, como também desconheciam o que era ser remanescente de quilombo. Como podemos perceber através do depoimento abaixo: Olha, ser reconhecido como quilombo foi muito bom, a gente num sabia o que era quilombo, hoje todo mundo ta sabendo o que é um quilombo, né, que foi aonde os negros ficava naquela comunidade, e ali foi chamado remanescente de Quilombo. (Fala de Ilca, entrevistada pela autora em 28 de out. de 2003, em Tijuaçu). Para os moradores de Tijuaçu, o quilombo estava bem distante da sua realidade. Mesmo tendo a pele escura, costumes e tradições afros, os habitantes de Tijuaçu não se identificavam como afro-brasileiros; viviam imitando a cultura do branco. Eles denominações, definiam-se mas nunca como: como moreno, negros. escurinho, Tinham moreninho uma ou outras auto-estima baixa, 68 consideravam-se inferiores e fugiam de tal situação isolando-se pelos diferentes povoados e roças de Tijuaçu, como se observa no depoimento abaixo: Porque de primeiro, aqui os negros não eram considerados como gente e hoje em dia está sendo, através do trabalho que a Associação vem desenvolvendo (Entrevista com Juliana Rodrigues, realizada pela autora em 2 de fev. de 2005, em Tijuaçu). Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural qualquer, não despertava para essa questão de quilombo. Porque a gente no estudo da história, na escola, os professores falam sobre o negro, mas de uma maneira muito distante daqui do sertão. Então, por mais que a gente tenha negro aqui no sertão, sempre você era levado a pensar que os negros estavam apenas em Salvador, que foram para a zona da mata e o litoral brasileiro, Rio de Janeiro, São Paulo, e que eles ficaram por aí e daí não passaram. Agora, Tijuaçu por sua vez é visto como uma comunidade rural. Quando começou a falar sobre a questão quilombola e se colocar algumas questões da cultura de Tijuaçu em evidência aqui para a comunidade é que a gente tá vendo o despertar para questão quilombola. Mas anterior, era uma comunidade rural, era um lugar que, imaginem, ia até lá. Ninguém tinha compromisso com Tijuaçu. De lá vem apenas à melancia, o feijão. Hoje as pessoas já visitam Tijuaçu, porque foi um quilombo (Entrevista realizada pela autora com Ivomar Gitânio dos Santos, em 2 de fev. de 2005, em Senhor do Bonfim). Segundo Hall (2001, p. 88-89), o que aconteceu com os africanos que vieram para o Brasil tem como precedente a assimilação da cultura do branco sem perder, no entanto, suas raízes. É o que o autor denomina de tradição e descreve como aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem serem assimiladas por elas e sem perderem completamente a identidade. Carregam os troncos das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque são, irrevogavelmente, o preceito de várias histórias e culturas internectadas, que pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” e não a uma “casa” particular. Hall (2001) afirma que as pessoas pertencentes a essas culturas híbridas (no caso, consideradas as culturas dessas comunidades negras rurais) têm sido obrigadas a renunciar a sonhos ou à condição de redescobrir qualquer tipo de pobreza cultural 69 “perdoada” ou de absolutismo étnico. Elas são irrevogavelmente traduzidas. Elas são o produto das novas “diásporas”, criadas pelas migrações pós-coloniais e devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade, distintamente, produzidas na era da modernidade. Certamente essa situação híbrida de fronteiras, de não reconhecimento de sua cultura experimentou por muito tempo a população de Tijuaçu. O trabalho realizado pela Fundação Cultural Palmares e pela UNEGRO despertou uma conscientização e conseqüentemente a valorização desses remanescentes por sua cultura. O termo fronteira é aqui utilizado, não no sentido de território, de espaço, mas no sentido cultural. Nessa perspectiva, fazemos as seguintes indagações: quais os caminhos traçados após o reconhecimento? Como aconteceram os primeiros contatos? Em meados da década de 90, a comunidade recebeu funcionários da Fundação Cultural Palmares, como advogados, antropólogos e outros profissionais com o objetivo de mapear os diferentes povoados cuja população fosse predominantemente negra e traçar o Laudo Antropológico para que Tijuaçu, juntamente com as outras 2.000 comunidades existentes no Brasil, fosse reconhecida como remanescente de quilombo e pudesse receber os benefícios que a lei instituía. Os primeiros contatos dos membros da comunidade de Tijuaçu com pessoas que estavam discutindo a questão das comunidades “remanescentes de quilombo” ocorreram com os técnicos do Instituto de Terras da Bahia (INTERBA – órgão hoje extinto), da Fundação Cultural Palmares e do Ministério da Cultura. Na época, esses órgãos firmaram alguns convênios que tinham como proposta o reconhecimento e a titulação das terras das comunidades negras rurais nos diferentes estados. Esses técnicos fizeram várias reuniões com os membros da comunidade para provocar uma primeira discussão sobre a questão de suas terras, tendo como meta a aplicação do Ato da Disposição Constitucional Transitória (ADCT). A participação de moradores de Tijuaçu no I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Remanescentes de Quilombo, ocorrido em Salvador em 1994, iniciou o percurso do reconhecimento. Esse foi apenas o primeiro passo para 70 muitos outros que vieram. No referido evento, os participantes receberam informações a respeito das experiências desenvolvidas em outras comunidades, como os “remanescentes de quilombo de Rio das Rãs (Bom Jesus da Lapa/BA)”. Antes do trabalho de campo etnográfico do antropólogo Osvaldo Martins Oliveira, estiveram em Tijuaçu, em épocas diferentes – em 1998 e 1999 – dois outros antropólogos e uma advogada da Fundação Cultural Palmares, para realizar coleta de dados com o objetivo de elaborar relatórios encomendados pelo convênio dos órgãos referidos acima. Segundo o Relatório, a população, motivada por esse processo de mobilização que se iniciava no dia 10 de agosto de 1998, e alguns representantes da comunidade reuniram-se na Escola de Primeiro Grau de Tijuaçu e traçaram algumas reivindicações. Entre estas estavam: água encanada para a sede do distrito e para os povoados vizinhos; uma ambulância para ficar à disposição da comunidade; cursos de corte e costura e uma fábrica de roupas, cuja instalação amenizaria o desemprego; saneamento básico; criação de um projeto habitacional, visando construir casas para os moradores; construção de uma escola de nível médio; iluminação pública em todas as ruas da vila e eletrificação para as comunidades do Alto, Água Branca, Barreiras, Olaria, Macaco, Lajinha, Conceição e Lagoa do Cocho; instalação de uma fábrica de tijolos e outra de sandálias; restauração da cacimba, que se encontrava desativada; recuperação da torre telefônica existente no local e reinstalação do posto telefônico, que constantemente se encontrava com defeito e desativado, obrigando os moradores a se deslocarem por cerca de 10 km para encontrar o posto telefônico mais próximo; instalação de uma farmácia comunitária; atendimento médico e dentário; creche para atender as crianças; incentivo e recursos financeiros para a prática da cultura negra local; implantação de uma cooperativa comunitária; restauração e conservação dos cemitérios da vila, de Barreira e do Quebra Facão; construção de quadras de esporte, um campo de futebol para prática esportiva e lazer dos jovens da comunidade. Os técnicos da Fundação Cultural Palmares fizeram várias reuniões e começaram a traçar o Laudo Antropológico, procurando respostas para as seguintes informações: localização, origem, relevância social, o que torna o espaço da comunidade significativo para o impacto social. Também procuraram pessoas mais 71 velhas da comunidade que soubessem contar a história desses afro-descendentes. Descrição rápida dos ritos ou atos da comunidade, código lingüístico e sua origem (língua ou dialeto do local), a trama das relações dentro da comunidade e trabalhos sociais realizado na área do perímetro quilombola, edificações ou monumentos integrantes do espaço físico, marcas que identificavam o território como uma comunidade remanescente de quilombo, tipos de vegetação, tipos de cultivo e número de famílias residentes no território. Observado os itens citados acima, em 18 de fevereiro de 2000, o antropólogo da Fundação Cultural Palmares, Osvaldo Martins de Oliveira, concluiu o Relatório de Identificação da Comunidade Negra de Tijuaçu, sendo Tijuaçu reconhecido como território remanescente de quilombo, através de ato publicado no Diário Oficial da União de 28 de fevereiro do mesmo ano. Para elaboração do referido relatório, o antropólogo Osvaldo Martins de Oliveira permaneceu na comunidade, hospedado na casa de Ilca, cerca de 15 dias, percorrendo povoados e fazendas, conversando e entrevistando os moradores e levantando dados sobre a região. Desse documento, constam o mapeamento do espaço e da população local; história contadas pelos mais velhos sobre a ocupação da terra e a genealogia da comunidade; descrição de alguns conflitos de terras com os fazendeiros da região; atividades produtivas, criatórias e artesanais; atividades políticas e reivindicações; como a população se identifica como afro-descendente e uma descrição das manifestações culturais. O povo recebeu o reconhecimento como uma conquista. A partir de então, tem se mobilizado com o objetivo de entender traços de sua cultura e, nesse percurso, resgatar algumas manifestações culturais que estavam adormecidas e que foram despertadas após o reconhecimento. Ah! Eu acho muito bom ser remanescente de quilombo. Depois que a gente descobrimos, que o Valmir discobriu, eu acho que modificou muito a vida da gente aqui. Mudou, Ave Maria, 100%. Porque a gente era muito excluída. Eu mermo já fui muito excluída. Ah! Nós agora já sabe conversar. Que aqui antigamente tinha gente que não conversava. Se tiver uma reunião, a gente ia pra reunião só ouvir, não podia dar opinião, porque se nós assim, eu vou conversar a colega dizia não levanta não que tu não sabe conversar. Aí agora aqui, aqui a gente ficava como comandado, se a gente se levantava alguém dizia assim. Oh! É passado assim. Não espera aí, é depois, deixa fulano conversar primeiro. Era outras pessoas, porque eles dizia que a gente não sabia e aquilo ia passando, e hoje não, a gente hoje, a gente vai pra uma reunião, a gente sai, a gente pode 72 conversar o que for na reunião, alguém quer falar, a gente já se levanta. Qualquer pessoa se levanta e pergunta. Mutcha vezes a gente aqui nunca andou, andava, a gente aqui, mas se tivesse uma reunião era reunião de branco, se era reunião aqui, mas era branco, preto se ficasse olhando, tinha que olhar de longe. Ai! acho que nós, que hoje nós somos mais homenageado que, hoje a gente, até na radia, na radia Caraíba. Hoje tem uma pessoa de Tijuaçu conversando, logo uma que aqui não tinha telefone e hoje já tem, mas hoje já tem telefone, se a gente coisava [...] (Entrevista realizada pela autora com Nira, em 5 de dez. de 2004, em sua residência em Tijuaçu). Os afro-descendentes se auto-identificaram e passaram a reivindicar seus direitos, porque anteriormente não se viam como cidadãos e sofriam muito com o preconceito, como se pode perceber no depoimento abaixo: A gente, eu mermo, no tempo de escola, já sofri muito. O povo, as professoras. A professora gostava muito de chamar a gente de neguinha do cabelo duro, quando a gente chegava, que as mães da gente penteava o cabelo da gente, não penteava na hora da gente ir pra escola, não era como agora. Minha mãe, sempre penteava o cabelo da gente de tarde que era pra gente ir pra escola no outro dia, aí a gente fazia aquelas trancinhas, uma pegada na outra, quando a gente chegava, tinha vez, assim que a mãe da gente não dava tempo pintiar, quando a gente fosse com aquele, com aquele cabelo coisado, ela chegava e dizia: “é, tua mãe é porca, né, mais esses negos, gosta de ser porco, não pentea nem os cabelos dos filhos”, eu já sofri muito... muito. (Entrevista realizada pela autora com Nira, em 5 dez. 2004, em sua residência em Tijuaçu). Diante dessas e outras situações, os moradores de Tijuaçu sentiam-se acuados, excluídos, indignados pelo tratamento recebido por aqueles que se achavam brancos e utilizavam palavras ofensivas com o intuito de humilhá-los. Não sabiam como proceder diante das provocações; e tinham como alternativa se ausentar do mundo do outro e isolar-se na sua comunidade. Para Barth (apud POUTIGNAT ; STREIFF-FENART, 1998), a identidade é construída e transformada na interação de grupos sociais, através de processos de exclusão e inclusão que estabelecem limites entre diferentes grupos, definindo os que os integram ou não. Essa identidade está sendo construída a partir das situações vivenciadas por esses afro-brasileiros. Hoje tão vendo a gente como gente, que antigamente, não todos né, aquelas pessoas que a gente conhece, não conhecia a gente como gente não, né? Não tratava a gente como, pelo nome, tratava com o apelido de nego. Nego vem cá. Nego faz isso. Hoje, é, ta tratando a gente como gente (Fala de Ilca, entrevistada pela autora em 14 de ag. de 2002, em sua residência em Tijuaçu). 73 Outras vozes também se levantaram e concordaram com Nira e Ilca sobre o benefício que o reconhecimento trouxe à população. Após o reconhecimento, alguns depoentes pontuam que houve uma mudança de comportamento também por parte dos habitantes de Senhor do Bonfim em relação à população de Tijuaçu. Houve uma diminuição do preconceito. O que significa para população ser afro-descendente? Afro-descendente significa pra mim uma coisa muito importante, porque a gente, eu mermo não sabia que era afro, e agora estamos sabendo, e por isso que é uma coisa muito importante pra mim. Com o reconhecimento mudou muita coisa em Tijuaçu. O pessoal não usava muita trança aqui, que disse que trança era coisa de gente tabaréu62, e hoje já usa, então mudou 100%, em tudo por tudo. Hoje, o povo de Bonfim nos recebe muito bem. Como eu terminei de falar mermo nesse instante né? A gente chega lá, por exemplo, a gente chega na loja né, eles já vão receber a gente cá na frente, atende super bem, antigamente não, antigamente, eu merma fui uma das pessoas que teve uma vez mermo que eu cheguei na loja né, procurei saber o tecido que eu ia comprar, quanto era, o moço fez de conta que eu nem existia, de jeito nenhum. Hoje, eu chego, já vou logo ser atendida. No Justino mermo, um exemplo, eu fui comprar um bolo uma vez, lá no Justino, isso tem dois anos atrás, quando cheguei lá, né, assim, atrás de mim chegou uma senhora, uma senhora não, mais nova do que eu, e o rapaz que trabalhava lá atendeu ela primeiro do que eu, e já tava com mais de meia hora que eu tava lá, e ele não me atendeu. Foi atender a mulher. Por que? Porque a mulher era branca e eu era negra. Quando ele veio procurar saber a mim o que era que tava procurando saber, aí eu também desisti. Disse, ó, só num vou falar pro seu patrão, que é seu Justino, porque se eu falar, acho que ele vai te botar pra fora, e eu não quero isso. Aí saí. Não quis mais de jeito nenhum o bolo que eu ia comprar (Entrevista realizada pela autora com Ilca, em 14 de ag. de 2002, em sua residência em Tijuaçu). A postura de certos moradores de Senhor do Bonfim deixava alguns habitantes de Tijuaçu indignados. Várias foram às situações que demonstravam atitudes preconceituosas. Entretanto, a afirmação de sua identidade cultural possibilitou a conquista de um espaço, uma vez que esta é uma construção de coisa comum que se afirma perante algo, é um fenômeno em mudança, não é um conceito estático. Essa percepção enquanto afro-descendente estava adormecida e escondida atrás do preconceito e do racismo sentido por esses moradores de Tijuaçu. A identidade tornou-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente 62 O mesmo que matuto, caipira. 74 em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Para Hall (2001), a identidade é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos sem unificá-las ao redor de um “eu” coerente. Dentro de cada um há, identidades contraditórias, empurrando para diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Á medida que os sistemas de significação e representação cultural multiplicavam-se, haverá confrontos por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderiam identificar-se – ao menos temporariamente. Pois, escreve Barth (1998), que os traços que se leva em conta não era a soma das diferenças objetivas, mas unicamente aqueles que os próprios atores consideram como significativos63. A identidade desses afro-brasileiros residentes em Tijuaçu foi construída a partir da diferença. Para Souza (2002, p. 141-142), através das identificações históricas e culturais, funda-se o conceito de etnia, que abarca os que supõe ter uma ascendência comum, base da identidade do grupo e de sua distinção com relação à sociedade abrangente. Ademais, a identidade étnica é construída não pelas diferenças em si, mas pela tomada de consciência delas, que ganham significados ao se inserirem em sistemas sociais. Ao tomar conhecimento dessas diferenças, a população une-se em prol da sua cultura e, evidentemente, de sua identidade. A etnicidade serve, portanto, para pensar um novo tipo de sociedade, na qual convivem grupos de variadas origens que se pautam por diferenciadas instituições sociais. Segundo Cunha (1985, p. 208): Nesse novo tipo de sociedade, a coerência é dada pelo sistema multiétnico e não mais pela cultura original”. Nesse contexto, os processos de constituição étnica dão-se pela seleção de certos traços escolhidos como símbolos privilegiados da identidade étnica e pelo esquecimento de outros:A memória e 63 Cf. Poutignat e Streiff-Fenart (1998. p. 11), afirmam que a etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de “traços culturais” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir. 75 o esquecimento histórico são assim comandados pela relevância do novo sistema. A população de Tijuaçu tem procurado cada vez mais se afirmar como um grupo afro-descendente e tem conservado símbolos e significados dessa identidade étnica. Primeiro, por uma fase de descoberta e, posteriormente, conhecimento da cultura dos seus antepassados. Em seguida, descobriram um estágio de conscientização e valorização dessa cultura. No último período, conheceram sua história e a de seus antepassados e passaram a valorizar suas manifestações culturais, suas relações de trabalho, sua religiosidade e seus traços físicos. Nessa perspectiva, a população passou a emitir um outro olhar, autoidentificando-se enquanto afro-descendente. Dessa forma, tornaram-se mais visíveis ao olhar do outro, pois não tinham mais receio de expressar seus laços culturais. Projetos do Governo Federal passaram a chegar a Tijuaçu e as informações eram divulgadas pelos meios de comunicação. Assim, Tijuaçu ficou visível aos diversos olhares. Diante do exposto, vejamos o que dizem os habitantes de Senhor do Bonfim sobre o reconhecimento: Até algum tempo atrás, Tijuaçu era visto como uma comunidade rural qualquer; não se despertava pra essa questão de quilombo. Porque a gente no estudo de história, na escola, eles nos leva à figura do negro muito distante daqui do sertão, então por mais que a gente tenha negro aqui no sertão, no alto sertão, sempre você é levado a pensar que os negros existem apenas em Salvador, chegaram para a zona da mata e o litoral brasileiro, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo. Eles ficaram por aí né, ficaram por aí e daí não passaram. Agora, Tijuaçu, por sua vez, é visto como uma comunidade rural, quando começou a falar sobre a questão quilombola, é, e se colocar algumas questões da cultura de Tijuaçu em evidência aqui pra comunidade é que a gente ta vendo o despertar, pra questão do quilombo. Então as pessoas agora já estão vendo Tijuaçu como quilombo, em Bonfim nos termos um quilombo, é Tijuaçu. É, mas anterior era uma comunidade rural, é um lugar que ninguém ia lá fazer nada, ninguém tinha compromisso com Tijuaçu, era apenas uma comunidade rural, de lá apenas vem à melancia, de lá apenas vem o feijão, e a gente não tinha a comunidade, o centro da cidade não tinha muita relação com Tijuaçu. Hoje não, hoje as pessoas já tão vendo como quilombo, e até já tão saindo da sede para visitar Tijuaçu, pra conhecer um quilombo propriamente dito, hoje já tem um pensamento que está vindo a um quilombo, é, é ao quilombo rural, vamos dizer assim (Entrevista realizada pela autora com Ivomar Gitânio da Silva, em 02 de fev. de 2005, em Senhor do Bonfim). Perguntou-se se a referida mudança era em decorrência do reconhecimento, então Ivomar (fev. 2005) falou: 76 Ao reconhecimento, a divulgação da atividade da comunidade, da cultura da comunidade, a partir daí, do reconhecimento dessa, do conjunto de atividade é que as pessoas tão começando a despertar (Entrevistado pela autora em 2 de fev. de 2005, em Senhor do Bonfim). A identidade, então, surge não tanto da plenitude dela mesma, que já está dentro de cada um como indivíduo, mas de uma falta de inteireza, que é “preenchida” a partir do exterior, pelas formas através das quais se imagina ser visto por outros (HALL, 2001, p. 39). A possibilidade de uma identificação do povo de Tijuaçu vai aparecer a partir da construção dessa identidade afro-brasileira assumida. A população não mais se intimida em expressar seus costumes e sua cultura. Essa identidade foi formada, ao longo do tempo, aliada as diferentes influências que a população comungou e que agora, com a auto-estima elevada e sua auto-identificação enquanto afrodescendente, aparece com maior visibilidade e vigor. Os costumes desses afrodescendentes são escancarados, não há mais medo. Hoje Tijuaçu possui três Associações; os moradores fazem reuniões periódicas, nas quais há uma participação significativa da população. O povo saiu às ruas, foi para outros municípios apresentar suas danças, levando para outros lugares suas experiências de vida. Agora essa pessoas não têm mais receio do preconceito. Em decorrência desse processo de conscientização pelo qual a comunidade vem passando ao longo desses anos, a população tem criado mecanismos para que seus laços culturais sejam preservados, a exemplo do Samba de Lata (que é considerado o cartão postal da comunidade e que será discutido no capítulo 3). Os pais e avós já incluíram no referido samba os seus filhos e netos para que a tradição tenha continuidade. Como se pode perceber na fala abaixo: Inclusive a gente tá até ensinando já as crianças, né. Nosso samba pra aquelas pessoas que estão mais velhas, que tão cansada, já essas pessoas vai saindo e vai deixando aqueles meninos já de menor, aqueles mais novos (Entrevista realizada pela autora com Nira, em 5 de dez. de 2004, em sua residência em Tijuaçu). A preocupação de manter a tradição também é extensiva a outras manifestações que existiam na comunidade. Resgataram e recriaram ainda a Dança do Parentesco e a Roda do Arco-Íris (que serão igualmente tratadas no capítulo 3). 77 Construíram em forma de mutirão a sede da Associação. São iniciativas que demonstram a mobilização da comunidade e a elevação da auto-estima desses afrodescendentes. Nesse sentido, a população mais jovem está empenhada em manter esse legado dos seus antepassados, criando perspectivas para manutenção das tradições e de sua cultura: Eu me sinto assim uma pessoa que pertence, que meus pais pertenceram, meus avós pertenceram a uma raça mutcho linda, que tinha mutcha, mutcha, mutcha cultura, que sofria mais que apesar de tudo, né? Cultivava sempre aquilo. Imagine se não tivesse cultivado essa cultura linda que, que Tijuaçu tem hoje em dia? Como seria nós? Então eu acho que eles, apesar de tanto sofrimento, que sofreram, eles, eles permaneceram forte e cultivando sempre a sua cultura, então eu me acho hoje em dia não só como a minha comunidade, uma pessoa assim forte na fé que Tijuaçu é forte mesmo na fé, e uma pessoa realizada, e eu estou vendo os projetos de Tijuaçu ir à frente. Interessante e muito bonita. Imagine se nós não tivesse essa história para contar né, e para viver, que você um dia, estamos vivendo essa história. Quando eu falo vivendo, não é vivendo no só, no sofrimento, mas sim voltado para a, a alegria está tendo, hoje o pessoal abre a boca e diz, é, eu sou negro, sou negro e me, e me reconheço como negro. Então é mutcho bonito, que de primeiro as pessoas tinham vergonha de abrir a boca para se reconhecer como negro, e hoje em dia não, ele abre assim a boca e fala com muita alegria, eu sou negro sim, e tenho valor. Acho mutcho bonito (Entrevista realizada pela autora com Juliana Rodrigues, em 02 de fev. de 2005, em sua residência em Tijuaçu). Uma história transparente, porque todo mundo ta vendo, ta sendo reconhecido no país todo, em toda nação, aí ela é transparente, pra mim ela ta transparente (Entrevista realizada pela autora com Amauri da Silva Rodrigues que tem 16 anos, em 02 de fev. de 2005, em sua residência em Tijuaçu). Outras vozes também se levantaram em apoio ao legado histórico de Tijuaçu: Ah, eu vejo, bem eu vejo... Eu acho que é uma história bonita, acho essa história muito bonita, ai eu acho bom que a gente, o povo chega e procura a gente, como é a história da gente, sabe contar, a gente não conta com os detalhes porque tem muita coisa assim que a gente não sabe, que a gente, eu achava que aqui já podia ter assim uma cartilha pra gente estudar porque como agora mesmo eles tão fazendo um curso em Senhor do Bonfim pra fazer uma cartilha, e é bom a gente ter uma cartilha, porque a gente, mutchas coisas a gente não sabe, quando o povo pergunta a gente procura o seu Valmir: — Oh Valmir, como é isso assim? Assim o Valmir vai e dá aquela explicação à gente, porque a gente não tem, a gente assiste a reunião, a gente grava quando o Valmir, na hora que a gente sai, ele conta a história à gente, ó minha gente, é passado assim, assim, assim ele sempre fala com a gente, ele diz, conta à história pra gente, pra quando a gente chegar assim num lugar que o povo preguntar a gente saber explica. (Entrevista realizada pela autora com Nira em 05 de dez. de 2005). Situação semelhante vem passando outras comunidades negras rurais do Brasil. Encontramos em Tijuaçu uma tradição oral articulada que se relaciona à escravidão, em alguns momentos, havendo, em outros momentos, uma negação. Há 78 uma insistência reticente em não serem eles descendentes de escravos. Nos termos do conceito de quilombo contemporâneo, como bem definiu, em outubro de 1994, a Associação Brasileira de Antropologia, levou-se à reflexão que o que se encontra em Tijuaçu esteja coadunado com o conceito abaixo: [...] O termo Quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trará de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses grupos também não se define pelo tamanho e número de seus membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo. Neste sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão (O’DWYER, 1995, p. 1). Foi nessa perspectiva que se concebeu Tijuaçu como uma comunidade negra rural, cujos moradores ali habitam há dois séculos, sobrevivendo da agricultura de pequenos lotes de terra pertencentes as mesmas famílias. Assim, permanecendo há várias gerações sem proceder à partilha. Possuem tradições culturais permanentes que são valorizadas pela população. Portanto, considera-se esse território como comunidade remanescente de quilombo, a partir da continuidade e da permanência de seus costumes, de suas experiências enquanto um grupo que manteve as suas tradições. O referido capítulo discutiu sobre a história de Tijuaçu, sintonizada com o que apontava a documentação escrita e as narrativas dos seus moradores sobre a trajetória dessa localidade. Assim, pode-se perceber que sobre a trajetória de Tijuaçu existem várias informações. Segundo informações contidas nos documentos escritos, as terras de Tijuaçu na segunda metade do século XIX pertenciam a Felipe Rodrigues da Silva e a Joaquim Manoel de Santana. Em 1888, essas terras eram propriedade do casal Umbuzeiro Angelim. Após 1888, a documentação escrita se cala, não aparecendo nenhuma documentação que faça referência aos proprietários dessas 79 terras. Por sua vez a oralidade aponta a propriedade dessas terras a Mariinha Rodrigues, referenciada como fundadora desse território. Assim, concluímos que essa é a história contada sobre esse povo negro, sobre uma mulher desbravadora e corajosa que fundou Tijuaçu, diferente daquela contada a partir do olhar do colonizador, que revela a submissão do povo negro. Essa é a história conhecida pelos moradores de Tijuaçu, pois foi contada pelos mais velhos aos mais moços. O reconhecimento de Tijuaçu como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares empreendeu uma valorização da cultura, como também, a auto-identificação desses moradores como afro-descendentes. Nessa perspectiva, várias mudanças foram implementadas em decorrência do reconhecimento, como: a criação da Associação Quilombola, que passou a representar o perímetro quilombola atingindo nove comunidades; algumas manifestações culturais foram resgatadas; a comunidade passou a se mobilizar em prol dos seus direitos, passando a cobrar dos órgãos competentes melhoria para o perímetro quilombola. Os penteados e as roupas afros passaram a ser usadas freqüentemente. Alguns costumes foram resgatados e reinventado por conta dessa auto-identificação. 80 CAPÍTULO II AS MULHERES TIJUAÇUENSES E SUAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM VARIADAS E DIFERENTES FUNÇÕES 81 Foto n° 3 - Família de D. Ernestina Damasceno Santana Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. “Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores”. (Cora Coralina) 2.1 Luta, sobrevivência e cotidiano: mulheres em ação Sobreviver, nas duras condições do dia-a-dia, parecia tarefa insana, que se realizava através de contatos mágicos e com intervenções sobrenaturais. Opunham-se metáforas da fome e imagens de luta pela sobrevivência nas figuras das velhas senhoras mandonas: o seu vulto esquálido, pescando no rio de águas vazias; como assombrações, em caminhos ermos, debruçadas sobre os feixes de lenha, que faziam e desfaziam, num encantamento compulsivo e fatal; velhinhos que tiravam água do poço com uma corda arrebentada64. 64 Bosi, prefácio in: Dias (1995. p. 8). A referida obra discute a reconstrução dos papéis sociais 82 Em diferentes espaços e épocas, vários estudos têm apontado a mulher em distintos papéis, sejam os inerentes à natureza feminina – como a maternidade -, ou determinados pelo momento histórico, econômico, político e social. A reconstrução dos papéis sociais femininos, como mediações que possibilitem a sua integração na globalidade das experiências históricas do seu tempo, parece um modo promissor de lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos. O seu modo peculiar de inserção no processo social pode ser captado por meio da reconstrução global das relações sociais como um todo (DIAS, 1995, p. 13). Nas últimas décadas, a historiografia tem favorecido uma história social das mulheres que têm possibilitado diferentes pesquisas nesse campo, segundo Dias (1995, p. 14), novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do cotidiano. Em Tijuaçu, os caminhos trilhados por mulheres que viveram e outras que vivem no referido território têm marcado a história, a memória, a identidade e o cotidiano dessa comunidade negra rural. As experiências vivenciadas e a luta que estas têm travado pela sua sobrevivência e dos seus familiares mostram a força e a coragem para enfrentar as dificuldades cotidianas. O papel desempenhado pelas mulheres da comunidade negra rural é visível em todos os setores. A figura feminina sempre se fez presente desde os primeiros momentos do território, quando Mariinha Rodrigues desbravou as matas de Tijuaçu, criando perspectivas de sobrevivência, fazendo desse espaço a sua paragem e criando laços familiares e de solidariedade (tema que foi discutido no capítulo 1). Nessa tradição feminina, no labirinto da memória, as mulheres vão aparecendo e deixando suas marcas, constituindo o principal foco enquanto personagens das tramas locais. Constituiu-se pela memória e oralidade a trajetória de femininos, como mediações que possibilitem a sua integração na globalidade do processo histórico de seu tempo, parece um modo promissor de lutar contra o plano dos mitos, normas e estereótipos. O seu modo peculiar de inserção no processo social pode ser captado por meio da reconstrução global das relações sociais como um todo. 83 uma comunidade que teve suas origens marcadas pela compleição de um matriarcado, em contraponto ao patriarcado da tradição. Assim, elas estão visíveis, destacando-se em setores como a educação, a religião, as manifestações culturais, a gestão pública e política, e no comércio, conquistando um espaço expressivo e consolidando-o cada vez mais. Espaço conquistado tendo como lastro a pobreza e a luta pela sobrevivência da família. Pela falta de oportunidade de freqüentar escola, poucos são os membros da população que sabem ler. Dessa forma, temos, novamente, a oralidade como foco principal e através desta que os ensinamentos são passados. Desde muito pequenos seus habitantes aprendem com os mais velhos as relações de trabalho, as regras de comportamento, os afazeres domésticos e as ações cotidianas. Os mais velhos passam para os mais novos seus ensinamentos, que aprenderam, por sua vez, com seus pais e seus avós. Esta constitui a dinâmica da aprendizagem dentro da comunidade negra rural de Tijuaçu. A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores (BENJAMIN, 1987, p. 198). Essas representantes da tradição feminina, ao longo dos anos conquistaram visibilidade, em decorrência da sua postura frente às diferentes situações vivenciadas. E assim passaram a ser reconhecidas pela população, justamente pelo trabalho prestado à comunidade. Vários são os exemplos de mulheres que têm seu espaço respeitado. Nesta discussão, algumas delas foram selecionadas por conquistarem respeitabilidade e visibilidade dentro da comunidade negra rural de Tijuaçu. São vários os papéis assumidos por essas mulheres, percorrendo caminhos que passam da cozinha à rua; da roça à igreja; de mãe a provedora do lar, fundadora da comunidade, como Mariinha Rodrigues. A partir dessa representação feminina, outras moradoras vão se destacando nas atividades religiosas, inclusive assumindo papéis de liderança a exemplo de Detinha,65 que organiza as atividades da Igreja Católica, principalmente nos preparativos da Festa de São Benedito; Ilca dos Santos, líder da comunidade, atualmente vice-presidente da Associação dos Quilombolas e 65 Detinha é líder da Igreja Católica. Sob sua responsabilidade está a organização da igreja e os eventos que acontecem nesta como, o coral e a procissão; é, também, agricultora, lavadeira, além de desempenhar atividades domésticas. 84 Adjacências de Tijuaçu; Dalva, líder da comunidade da Fazenda Alto66; Anísia, exímia contadora de histórias, que relatou com perspicácia a trajetória da comunidade; Marinalva Santos da Silva (mais conhecida como Dinha), percussionista do Samba de Lata67; Genoveva, a iniciadora, já falecida e Joana, sua filha, sambista que encanta a todos com seus passos leves e graciosos. Esses papéis trazem no seu bojo resquícios da cultura africana, onde, na ordem familiar matrilinear, embora matizada conforme a região, entregava-se a casa da família ao controle total da mulher, o que viria explicar a predominância dessas mulheres em Tijuaçu . A intenção é discutir sobre o cotidiano, as vivências e funções que essas mulheres desempenham dentro desse território. Seus depoimentos constituem o mais verídico testemunho do passado e do presente. Essas artesãs, vendedoras de iguarias, domésticas, roceiras, lavadeiras, percussionistas, sambistas, lavradoras “têm astúcia de camaleão, de pequenos bichos, que não pretendem vencer, pois já foram vencidos”68, mas viver e lutar pela sua sobrevivência e encarando o seu dia-a-dia com otimismo e esperança. Foi este o olhar sentido nas várias visitas feitas a Tijuaçu. Com sua simplicidade, humildade e serenidade esse grupo feminino mantêm o equilíbrio de sua casa, da sua família e das vivências do cotidiano. Têm consciência de suas dificuldades diárias, mas não se desesperam jamais, seguem em frente. Para elas, todo dia é um eterno recomeço. As dificuldades enfrentadas tornam-se evidentes quando elas percebem que suas reivindicações não são atendidas ou quando as oportunidades de emprego, de qualidade de vida são barradas pela falta de instrução oficial. Experientes da negação dos seus direitos de cidadãs, elas respondem através da mobilização e organização da Associação Quilombola, buscando o respeito e o cumprimento dos seus direitos. Privadas do saber oficial da cultura letrada, restam a essas mulheres tijuaçuenses a esperteza e a improvisação, o que não impede o seu caminhar nos 66 Povoado próximo a Tijuaçu que segundo a memória social foi no Alto Bonito que tudo começou. Nessa localidade, residiu Mariinha Rodrigues e o samba de lata nasceu. 67 Modalidade de samba tradicional que toma o seu nome do emprego desse utensílio – a lata de zinco, como instrumento de percussão. 68 Bosi, Prefácio, in: Dias (1995. p. 8). 85 diferentes lugares. Assim, Dalva conta sobre sua luta para organizar a comunidade do Alto Bonito: Nesses 58 anos de vida, posso dizer que eu ensinei esses mininos, ensinei os cunhados a ler. Naquela época, há 50 anos atrás, eu saí da escola no 2º ano primário, mas não é essa leitura de agora. Eu sabia muito há 50 anos atrás. Esta luz quem puxou fui eu. Minina, eu já estou bem cansada e já tenho muito fio. Eu pedi ao prefeito pra vim fazer um predinho aqui, pra vê se aqui fica mais organizado. Pedi o Cândido (prefeito da época), ele prometeu e não veio; pedi ao Zé Leite (prefeito posterior, hoje já falecido), ele fez a coletagem minha, tomou meus dados, sei que ele me prometeu e fez (Fala de Dalva Odilon Santana, entrevista realizada pela autora em 11 de jan. de 2002, em sua residência na Fazenda Alto Bonito). Dalva narra com perspicácia sua luta em benefício do povoado. Mesmo com os seus poucos anos de freqüência à escola, conseguiu passar o pouco que aprendeu para sua família e tem conhecimento da relevância do mundo letrado, o que justifica sua luta pela construção da escola,69 já edificada num terreno doado pela sua família e que funciona nos três turnos. Outra luta encabeçada por ela, foi a construção de um tanque para armazenar água, cuja construção realizou-se no segundo semestre de 2002, com o objetivo de servir à população do povoado. Até então, as pessoas eram obrigadas a andar longas distâncias para buscar água. A energia chegou à comunidade também no segundo semestre de 2002. Dalva luta para trazer para a Fazenda Alto as benesses dos diferentes setores da sociedade. A instalação do tanque para a comunidade, por exemplo, Dalva conseguiu através da Igreja, mediante o interesse de um padre, sensibilizado com a realidade da população. As histórias dessas mulheres vão surgindo através das falas e dos silêncios significativos, o que é um convite a esmiuçar suas lembranças e ouvir o que não foi esquecido. Narram com espontaneidade suas experiências de vida. Na foto abaixo, da esquerda para direita: Ilca, Dalva, nora de Dalva e seu esposo Maurício Santana à porta da sua casa, no Alto Bonito. Podemos observar a simplicidade da casa e das pessoas que nela habitam. A referida casa localiza-se num 69 A Escola Municipal Alto Bonito, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, em 2004, conta com 63 alunos e três professores, funcionando nos três turnos, da 1ª a 4ª séries, do Ensino Fundamental I. 86 ponto estratégico do povoado, em frente a entrada deste, sendo a mais visitada por pesquisadores e pessoas interessadas na cultura de Tijuaçu. Foto n° 4 - Integrantes da família de Dalva e Ilca. Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. Nessa perspectiva, de ida e volta à busca de lembranças, os depoentes destrincham sua história e narram episódios do passado e do presente, permitindo perceber as tramas da memória que é: Historicamente condicionada, mudando de cor e forma de acordo com o que emerge no momento; de modo que, longe de ser transmitida pelo modo intemporal da “tradição” ela é progressivamente, alterada de geração em geração. Ela porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem, estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a memória é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece permanecer igual (SAMUEL, 1997, p. 45-47). Entretanto, ao considerar a memória como transição, ela muda de acordo com o tempo, demonstra o momento e as experiências dos sujeitos sociais. Os habitantes 87 de Tijuaçu não estão imunes a esta transitoriedade quando relatam algumas de suas experiências passadas e comparam como são percebidas hoje. Aos poucos, essa memória vai escavando o passado e deixa transparecer aqui e acolá sutis cores de um tempo não presente. As experiências vivenciadas vão se diversificando de geração a geração, atendendo às necessidades vigentes. Assim, a oralidade tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os pedaços são diferentes, porém forma um todo coerente depois de reunidos – a menos que as diferenças entre elas sejam tão irreconciliáveis que talvez cheguem a rasgar todo o tecido. Em última análise, essa também é uma representação muito mais realista da sociedade, conforme é experimentada (PORTELLI,1997, p. 16-17). Assim os depoentes narram suas experiências cotidianas: A metade desse povo mais velho está aposentado, mas as coisa continua ruim mermo. Essa metade desse povo que tem menos de 50 anos está sofrendo um bando que eu tô vendo por aqui. Coitadinhos! Pegam aqui licuri, maracujá e se intoca lá por Bonfim pra vender, pedir por lá. Sei quando chega de tarde tomando seus pingos de água (risos). Ó minha irmã, eu tenho muita vivência, criei meus fio graças a Deus. Esse povo que já foram os mais véio daqui tudo me ajudaram a criar os meus fio. Eu costurava muito, costurei 20 anos. Esse povo me ajudaram muito (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon Santana, em 11 de jan. de 2002, em sua residência na Fazenda Alto Bonito). Todavia, o olhar de Dalva volta-se sobre o ontem e as relações que eram travadas na comunidade: de solidariedade, compadrio e ajuda mútua, tão comum nas comunidades rurais. Ela fala como mãe, como trabalhadora, como mulher que atua. O vivido remete à ação, à concretude, às experiências de um indivíduo ou grupo social. A prática constitui o substrato da memória, por meio de mecanismos variados, seleciona e reelabora componentes da experiência (AMADO, 1995, p. 131). Essas novas experiências históricas abrem espaço para uma história microssocial e dão oportunidade de reconstruir vidas e profissões até então descartadas pela documentação oficial e pelo olhar do historiador. Incorporar à história tensões sociais de cada dia implica a reconstrução da organização de sobrevivência 88 de grupos marginalizados do poder e, às vezes, do próprio processo produtivo, (DIAS,1995, p. 15). Na relação entre história e memória há significados entre as experiências do passado e as vivências do presente. As lembranças constituem a mola mestra na construção de uma história através da oralidade, dando sentido às experiências. Amado (1995, p. 132), fazendo uma discussão sobre a relação entre memória e história comenta: História e memória, entretanto, mantêm tantas relações entre si, que é até difícil pensá-las separadamente: “recordar é viver”, como ensinava o antigo samba. A memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer o passado até o presente, recria o passado, ao mesmo tempo em que projeta no futuro; graças a essa capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos tempos, é que o passado se torna verdadeiramente passado, e o futuro, futuro, isto é: dessa capacidade da memória brota a consciência que nós, humanos, temos do tempo. Esta, por sua vez, permite-nos compreender e combinar, de muitos modos, as fases em que dividimos o tempo, possibilitando-nos, por exemplo, perceber o passado diante de nós. Na luta cotidiana em prol da sobrevivência da sua família, as mulheres de Tijuaçu, em sua maioria, dirigem-se à cidade de Senhor do Bonfim para vender os produtos que colhem e o artesanato que produzem. São quase anônimas no espaço da cidade, improvisam a própria sobrevivência. A improvisação, no seu dia-a-dia, envolvia e envolve uma contínua troca de informações, bate-papos e toda uma rede de conhecimentos e favores pessoais, proteção, compadrio, concubinato, que intercede por elas e que elas sabem avivar e pôr em uso. As mulheres trabalham na roça, vendem frutas, milho assado e artesanatos, trabalham em casa de família. Onde tiver trabalho elas estão enfrentando, a fim de ganhar um dinheirinho, e poder garantir o sustento de sua família (Entrevista com Detinha realizada pela autora em de 2 de nov. de 2001). Essas mulheres não são refratárias ao trabalho, enfrentam-no com muita coragem para poder garantir a sobrevivência de sua família. Quando há chuva, vão para roça, plantam, colhem e vendem na feira livre de Senhor do Bonfim ou nas esquinas da cidade. Quando a chuva não vem, trabalham no artesanato, como 89 domésticas, na lavagem de roupas ou em qualquer outro tipo de trabalho que possibilite ganhar algum dinheiro. Quando chega a época de estiagem, quando a roça não rende mais nada, os homens geralmente são obrigados a sair do distrito e dirigem-se a outros municípios em busca de trabalho, principalmente na região de Juazeiro e Petrolina70. Os que permanecem trabalham nas fazendas da região, outros laboram como ajudantes de pedreiro ou outro tipo de trabalho. Já se configura como tradição na feira de Senhor do Bonfim a venda de produtos oriundos das pequenas roças de Tijuaçu e povoados vizinhos. Na roça, trabalham mulheres, homens e toda a família: [...] Quando aquele ano dar você tem, e aquele ano quando não dar você não tem, né? E assim, a gente vai vender alguma coisa da roça lá no Bonfim. Vender o imbu, vender o maxixe, vender melancia, vender cajá, vender o pau de rato71. Tudo a gente faz isso aí. (Entrevista realizada pela autora com Detinha, em 02 de nov. 2001, em sua residência em Tijuaçu). Há uma variedade de produtos oriundos da roça que são vendidos nos diferentes espaços de Senhor do Bonfim. O comércio desses produtos remonta aos primeiros momentos de Tijuaçu, como uma forma de aquisição do rendimento familiar, e assim o é até hoje. É através dessas vendas que eles conseguem o necessário para subsistência da família. Homens e mulheres disputam o mercado de vendas, negociando tudo o que conseguem de suas roças, de frutas a folhas medicinais. Apesar do significado econômico da feira não podemos ignorar a sua importância na vida cultural desses vendedores.72 É nesse espaço que várias experiências são vivenciadas, a feira é o ponto de encontro, de venda, de diversão, de troca, de namoro e de lazer. A tradição de venda de produtos é uma herança do tempo da escravidão. Vários autores73 têm discutido sobre os escravos de ganhos e os produtos que vendiam nas ruas das cidades da América portuguesa. As novas tendências da 70 Região de agricultura de exportação, localizada à margem do Rio São Francisco. Planta medicinal que segundo a sabedoria popular serve para curar dores intestinais. 72 Thompson (1987. p. 294). O referido autor esclarece que o significado econômico da feira típica do século XVIII parece ainda ser grande – os arrendamentos anuais, as feiras de gado e de cavalos, a venda de produtos variados – não podemos ignorar a sua importância na vida cultural dos pobres. 73 Sobre escravos de ganho em Salvador cf Tese de Doutorado Mattos (2000); Reis (1993. p. 8-27); Mattoso (1992. p. 538). 71 90 historiografia sobre a escravidão têm apontado para a observação das várias práticas que nutriam a vida cotidiana dos escravos: o cultivo das roças de subsistência, as trocas e comercialização de objetos e gêneros necessários à vida, a produção independente de artefatos, o conserto de moradias e a preparação dos alimentos como pontos referenciais de extrema importância para a sobrevivência, que se insinuava em padrões diferenciados, delimitados pelo regime de trabalho escravo: uma outra forma de organização, um outro conceito e ritmo e, sobretudo, uma orientação diversa. Para os escravos, viabilizar a existência diária significava, da mesma forma, dinamizar relações sociais que complementavam, nos termos da sobrevivência material, sua vida cultural. Para além da relação básica da sociedade – senhores e escravos – uma outra dimensão social desenvolviase, produzindo uma rede de conexões associativas veiculadas por laços afetivos, cadeias hierárquicas e relações de vizinhança e de parentesco (WISSENBACH, 1998, p. 28-29). Segundo Gomes (1996, p. 275), poucas são as fontes disponíveis a respeito das atividades econômicas das comunidades de fugitivos no Brasil. Mesmo considerando os grandes mocambos dos séculos XVII e XVIII, as informações sobre a economia apontam, tão-somente, para uma agricultura de subsistência acompanhada pelo extrativismo, caça e pesca abundante. Sabe-se, contudo, que muitos quilombos produziam, também, excedentes – a maior parte agrícolas – em pequena escala, favorecendo trocas mercantis. Em muitos casos, a “rapinagem”, por meio de saques e roubos, podia funcionar como complemento das atividades econômicas. Em Tijuaçu, a economia é caracterizada pela agricultura de subsistência. O excedente é vendido na feira da sede do município. As famílias possuem suas próprias roças e nesses terrenos elas plantam e colhem os seus produtos, principalmente milho, feijão e mandioca. Cada membro da família possui um pequeno lote de terra, que ele próprio cultiva. Esses terrenos geralmente não possuem 91 registros. A garantia de posse provém da oralidade74, da ocupação e do cultivo do mesmo. A gente vende vários produtos em Bonfim. A gente vende aquele saco de feijão na base, no mio, debuia lá pra quando comprar debuiado. Vende feijão seco, abóbora, melancia, maxixe. E a mandioca a gente faz a farinha. A gente pega aquele saco, aquela caixa de mandioca e quando acaba vende, faz a farinha. Quando dá para vender a gente vende, quando sobra pouco à gente fica pra comer (Entrevista realizada pela autora com Maria Vítor, em 11 de jan. de 2002, em sua residência em Tijuaçu). Essas mulheres trabalhadoras, negras e pobres espalham seus produtos no centro de Senhor do Bonfim, onde seu espaço é delimitado. Algumas vendem acarajé na Praça José Gonçalves, próxima ao Calçadão, ou na mesma praça, ao fundo da sede do Correio; outras vendem milho assado pelo centro de Senhor do Bonfim; outras ainda só vêm aos sábados, vender principalmente frutas, artesanato de palha. Preferem os locais mais movimentados da cidade, onde podem oferecer aos estudantes, aposentados e ao povo em geral suas iguarias. Há também as que se empregam como domésticas. No Brasil do século XIX, como discute Wissenbach (1998, p. 187), Reis (1993), o espaço das ruas estabelecia o esteio dos relacionamentos sociais experimentados pelos trabalhadores negros, constituindo a principal dimensão de sua interação com os demais grupos da sociedade e com o poder político da cidade, numa escala de proximidade bastante intensa. Assim, se no cenário citadino a visibilidade dos mesmos grupos, particularmente o do escravo, comprova o desfrutar da liberdade de ir e vir, a existência de margens amplas de sociabilidade delineia também a série de contrapartidas às quais, nessas circunstâncias, estavam sujeitos. Senhores das ruas, escravos e libertos enfrentavam a atuação das rondas e dos sentinelas dos chafarizes, conviviam com a intervenção dos agentes da ordem pública em suas questões internas, como também eram facilmente identificados pelos testemunhos de seus delitos. 74 Como já foi discutido, depois do reconhecimento, as referidas terras estão no processo de legalização, aguardando documentação. 92 A rua constitui o espaço do trabalho e do “ganha pão”. É nela que as relações mercantis são concretizadas por esses habitantes, nesses espaços são instalados elos e códigos de convivência. Chegam pela manhã, carregados de cestos com milho, massa de acarajé e outros utensílios e distribuem pelo centro da cidade, próximo aos bancos e ao comércio. À tarde, juntam o que sobrou e retornam a Tijuaçu. Esse vaivém marca a dura luta travada por homens e mulheres que batalham não só pela sobrevivência individual como também familiar. Percorrem o espaço da cidade, que contrasta com o espaço de Tijuaçu - casas pequenas, humildes, com pouco ou nenhum conforto. Roceiras e vendedoras perambulam continuamente sob as vistas das autoridades locais e sobrevivem da venda dos seus produtos. Tem muita coisa que a gente planta e vende, é gergelim, é milho, é fruta, é verdura, a gente planta depois colhe e vai vender em Bonfim. (Entrevista realizada pela autora com Maria Vítor, em 11 de jan. 2002, em sua residência em Tijuaçu). Na foto da página seguinte observa-se alguns vendedores de milho assado, comercializando seus produtos pelas ruas de Senhor do Bonfim. Foto, n° 5 - Vendedores de milho assado – área comercial de Senhor do Bonfim. Fotografo: Jonas, 2002. 93 Mott (1991, p. 24), chama atenção sobre o comércio no período colonial, afirmando que o comércio urbano ambulante, a varejo, de alimentos e pequenos objetos era de domínio feminino e negro. Impedia-se que homens comercializassem com “doces, bolos, alféloa, frutos, melaço, hortaliças, queijos, leite, marisco, alho, pomada, polvilhos, hóstias, obréias, mexas, agulhas, alfinetes, fatos velhos e usados”. Proibia-se, a exemplo do que ocorreu durante o reinado de D. José I, que “estrangeiros, vagabundos ou desconhecidos recebessem licença para venderem pelas ruas principalmente ‘toda sorte de comestíveis pelo miúdo como também vinhos e aguardentes, e muitas outras bebidas’, assim como alféloas, obréias, melaço e azeitonas” (MOTT, 1991, p. 25). Outra proibição foi baixada em 29 de Setembro de 1744, uma Provisão que proibia negros e negras de vender tecidos pelas ruas75. O referido documento argumentava que tal postura, era útil e conveniente ao povo e principalmente ao comércio, para o mesmo não ter nenhum tipo de prejuízo. Tal procedimento tinha como objetivo principal a eliminação de qualquer tipo de concorrência aos lojistas. E é provável que esses tecidos vendidos por negros e negras tivesse um preço inferior ao dos que eram vendidos nas lojas. A tradição de mercancia vivenciada pelas mulheres de Tijuaçu remonta um costume da época colonial, ganhadeiras76 negras se dedicavam principalmente a mercadejar diversos gêneros secos e molhados (REIS, 1986. p. 8.). “E lá iam as vendedoras de mingau, aberém, acaçá, caruru, vatapá e outras delícias. E conversavam sofre fatos da terra” (REIS, 1986, p. 14). O espaço público era ocupado por ganhadores e ganhadeiras, escravos libertos que disputavam esse espaço para vender seus produtos. Os senhores e senhoras de escravos ganhavam com esse comércio, pois parte do dinheiro adquirido por esses escravos era entregue ao seu senhor. As mulheres brancas, mesmo pobres possuíam alguns escravos de ganho, que vendiam produtos pelas ruas dos povoados ou cidades da Colônia. 75 76 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Códice 707, fl. 80-80v. Ganhadores e ganhadeiras dividiam a soberania das ruas. Apesar de não participarem dos cantos, uma instituição masculina, as mulheres faziam parte da rede mais ampla de trabalhadores africanos urbanos. Cf. Reis (1993. p.25). 94 O comércio exercido pelas mulheres negras, livres e libertas dava uma certa autonomia. Muitas vezes, com o dinheiro adquirido com a venda de seus quitutes, compravam alforria de seus filhos ou de algum parente. Algumas negras transformaram-se em exímias comerciantes, inseriram-se em associações de brancos e ocuparam cargos administrativos nas mesas diretoras das confrarias. Tal posição demonstrava importância social e, mesmo quando entre iguais, demonstrava ascendência no seio da comunidade77. Algumas mulheres negras, durante o período colonial, conseguiram constituir fortuna vendendo seus produtos na rua. Amas-de-leite, domésticas, vendedoras, usuárias, prostitutas, ladras, parteiras, feiticeiras e mais uma gama de atividades foram desempenhadas pelas mulheres que conseguiram acumular pecúlio e usaram de artimanhas para conseguir sua liberdade. A possibilidade de mulheres escravas adquirirem bens parece se confirmar em Tijuaçu, em relação à figura de Mariinha Rodrigues. Na memória de seus habitantes esta aparece como uma mulher que trabalhou demasiadamente e que conseguiu riquezas, deixando uma extensa terra para seus descendentes. Nessa perspectiva do imaginário social sobre possibilidades e prosperidades de mulheres negras, Mariinha Rodrigues é um exemplo dessa realidade. Ela faz-se presente enquanto administradora e detentora de um certo patrimônio material. Mas não foi somente nesse aspecto que essa mulher conseguiu se sobressair. Parece ter chamado para si as responsabilidades políticas, organizacionais e econômicas da comunidade. Assim os depoentes falam sobre o espírito empreendedor de Mariinha Rodrigues: Como naquela época aqui era só mato fechado, Mariinha Rodrigues foi uma mulher que teve muitos filhos, e cada filho ela foi colocando em diferentes espaços. Lá eles plantavam suas roças e construíram suas casas que posteriormente hoje se transformaram em povoados e vilas (Fala de Valmir dos Santos, entrevista realizada pela autora em 22 de out. de 2000, na residência de Ilca, em Tijuaçu). Dizem que ela foi à primeira pessoa que veio residir aqui em Tijuaçu. Hum! Era até fazendeira, mais a casa era de paia (palha) risos. Fazendeira de gado, 77 Sobre a prosperidade de algumas mulheres forras no século XVIII e que conseguiram ascender na camada social cf. Furtado (2001). 95 ela tinha gado. É falam, também, que ela teve vários filhos, né? E que cada filho ficou com um pedaço de terra, um em Barreiras, outro no Macaco, outro no Quebra Facão. Entre estes filhos tem Astácio Rodrigues que era o avô de Dona Anísia, é o Cidão, o Joaquim Peba (Entrevista realizada pela autora com Bernardina, em 08 de ab. de 2001, em sua residência em Tijuaçu). A visibilidade política, social e econômica, conquistada por essas mulheres, mantém-se através de outras e de seus diferentes papéis. Com a simplicidade que lhes é inerente, somada à humildade, as mulheres da comunidade negra rural de Tijuaçu têm conseguido muitas conquistas, possibilitando uma melhoria da vida familiar. “São as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida e não absolutamente como autonômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história”.78 2.2 Personagens e trajetórias: contatos e oralidade Na perspectiva de direcionar o olhar sobre essas mulheres e seus papéis, pesquisamos suas atividades no tempo e no espaço. Quem são essas mulheres, o que fazem e por que conquistaram seus espaços? De onde vem essa visibilidade enquanto vendedoras de iguarias? Essas questões serão respondidas no decorrer desse capítulo. 2.2.1 Heroína da vida, percussionista da alegria – Marinalva Silva Santos A primeira mulher a ser apresentada no rol das que se destacam em Tijuaçu pelas diferentes funções que exerce é a percussionista Marinalva Santos da Silva, conhecida por Dinha. Tem 46 anos de idade e na luta pela sobrevivência assume diferentes papéis a exemplo de merendeira (faz a merenda da escola do povoado 78 Cf. Perrot (1988. p. 187). 96 Quebra Facão), lavradora e vendedora de milho assado. Reside numa pequena casa no povoado de Quebra Facão (cf. mapa da página 38), localizado cerca de 1,5 km de Tijuaçu. Mulher forte, tanto fisicamente quanto interiormente, traz nas mãos e na pele as marcas do trabalho árduo da roça e do sol escaldante do sertão. A vida dura e recheada de dificuldades não conseguiu abater sua alegria e felicidade. Essa postura ficou evidente e não passou desapercebido nos vários encontros que tivemos com a mesma. Nesses eventos, mostrou-se muito feliz e satisfeita com a sua vivência cotidiana. Desprendida de qualquer ambição, traz em seu interior a alegria e a descontração. No Samba de Lata, Marinalva é uma das mais alegres do grupo. Bem disposta, está sempre com coragem para bater lata e dar início ao samba. Percussionista dessa manifestação cultural desde os oito anos de idade, marca a cadência do samba batendo com as mãos a lata de zinco (cf. foto n. 6, p. 107). Mãos calejadas da roça, mãos que mexem a terra, que desembalam o milho, que preparam a merenda e que dão ritmo ao Samba de Lata. Com a sua voz aguda, puxa os versos e contagia a todos com sua alegria. Uma das músicas mais cantadas pelo grupo chama-se “Tatu Verdadeiro”. Quando eles entoam esses versos à animação é indescritível: Tatu verdadeiro Fui no mato caçar Com o meu cachorro perdigueiro Cachorro latiu (falou) acuado Em cima do formigueiro. Marchei pra lá era um tatu, Tatu, tatu verdadeiro Matei tatu e dei tatu Mandei pro Rio de Janeiro Ta com setenta e cinco anos senhor (a) fulano (a) E ainda tem tatu no fumeiro! 97 Enveredar pelo mato, caçar tatu com cachorro perdigueiro e se alimentar da caça faz parte do cotidiano de alguns habitantes de Tijuaçu. Quem é o cachorro perdigueiro? Aquele que acompanha o caçador nas suas aventuras, levando-o até sua presa, guiando o caçador a chegar à sua caça. Pequenas caças, além da agricultura constituem meios de sobrevivência da população de Tijuaçu. Quando os referidos versos são cantados, a alegria transborda e o samba entre num ritmo acelerado. Interrogados sobre a autoria do referido canto, os depoentes responderam que foi passado pelos mais velhos sambistas, sendo bastante antigo. No terceiro verso, alguns dizem latiu, outros falam falou, e no penúltimo verso, eles sempre falam o nome da pessoa homenageada, o dono da casa, da festa, ou alguém de certa posição que esteja presente. E por que Rio de Janeiro? Não é somente este canto que menciona esta cidade, outros também fazem referência a ela. A menção ao Rio de Janeiro tem a ver com a migração de baianos desde o final do século XIX e início do XX para a capital do Brasil. Tal migração vai perdurar até os anos sessenta. Com a industrialização de São Paulo, nos fins dos anos cinqüenta, polarizou-se o eixo migratório para São Paulo e Santos. Na foto abaixo observa-se a apresentação do Samba de Lata, tendo ao centro a percussionista Dinha, mostrando seus dotes artísticos. Com muita garra ela consegue dar ritmo ao samba levando o grupo à animação e a alegria é contagiante. Nesse momento, ela tira os versos e os outros componentes respondem em coro.79 79 Segundo Reis (1993. p. 12), dentro da tradição rítmica africana, havia o “puxador” do canto, a quem os demais respondiam em coro. 98 Foto n. 6. Grupo do samba de lata, tendo ao centro Marinalva Santos da Silva. Apresentação realizada no povoado de Quebra Facão. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003. Marinalva dos Santos Silva, segura a lata com uma mão sobre o tórax, enquanto bate a lata com a outra. Para conseguir que a lata emita som, é necessário que tal instrumento esteja acoplada ao busto e que a pessoa que toca tenha disposição e força para dar início ao samba. Dinha (como é conhecida na região), consegue emitir um ritmo que marca o Samba de Lata. As mulheres reúnem-se, como elas costumam falar: “ao redor do terreiro” e começam a sambar. Na roda de samba todos participam, homem, criança, todos quantos queiram participar. O samba não tem hora para findar, pois quando um se cansa têm outros para dar continuidade. No samba só tem uma lata. A maioria das pessoas que dança o Samba de Lata são mais mulher. Tem mais mulé do que home e naquela época tinha home dançando (Fala de Marinalva dos Santos Silva, entrevistada pela autora em 10 de jan. de 2002, em sua residência no povoado de Quebra Facão). 99 Em tempos anteriores, os homens faziam-se presentes em maior número, tinham uma participação mais significativa, mas sempre a participação predominante era das mulheres. Hoje, o grupo de mulheres do Samba de Lata deseja que pessoas do sexo masculino participem com mais intensidade, pois a participação masculina é reduzida. Agora que a gente tá querendo botar aí mais uns dois home, pra vê se a coisa, se a gente continua. Já contratamo esses home, mais dois pra colocar porque tem mais mulé de que home e naquela época tinha muito home dançando. Um de meus tio que dançava, ele dançava só no dedinho do pé, o samba. Esse aí já morreu, né? (Entrevista realizada pela autora com Marinalva dos Santos, em 10 de jan. de 2002, em sua residência no povoado de Quebra Facão). Tá vendo o Samba de Lata, para mim tem grande valor. A cultura da gente aqui e nós quer fazer uma cultura aqui no Lagarto (antigo nome de Tijuaçu), da gente mesmo. Esse samba é um sonho, é um ouro para gente. O Samba de Lata é hoje muito conhecido (Entrevista realizada pela autora com Marinalva dos Santos, em 10 de jan. de 2002, em sua residência no povoado de Quebra Facão). Os componentes do Samba de Lata aprenderam a valorizá-lo e têm consciência de que para dar continuidade a essa manifestação cultural, é necessário que algumas inovações sejam feitas, como a entrada de um maior número de homens na roda de samba, conforme acontecia anteriormente. Essas inovações contribuíram para a continuidade dessa tradição, que tem permanecido pela inserção de novos elementos80. Essas inserções são necessárias e importantes para sua continuidade. Marinalva, juntamente com os componentes do Samba de Lata, trazem para a população a alegria, o lazer e a descontração. Dessa forma, a cultura herdada dos seus antepassados está representada num momento de união, de alegria e de solidariedade dos seus componentes. Nesse momento, todos se reúnem para mostrar seus dotes festivos e compartilhar a alegria. A dança, o ritmo e o gingado dos participantes do Samba de Lata deram continuidade aos valores culturais herdados dos ancestrais africanos, permanecendo através dos costumes e das manifestações culturais. 80 Segundo Williams (1979. p. 119), a maioria das versões de “tradição” são radicalmente seletivas. De toda uma possível área de passado e presente, numa cultura particular, certos significados e práticas são escolhidos para ênfase e certos outros significados e práticas são postos de lado, ou negligenciados. 100 2.2.2 Da arte de contar histórias a tecedora de significados – Maria Anísia Rodrigues Outra figura de destaque dentro desse perímetro quilombola é Anísia Rodrigues, uma das mais antigas moradoras do lugar, exímia contadora de histórias sobre a localidade. É referência para aqueles que querem conhecer a história de Tijuaçu. Na sua tranqüilidade e simplicidade de mulher sertaneja, relatou histórias sobre essa comunidade e buscou, no fundo da memória, o nome dos seus avós, pais, tios, tias, filhos e netos. Entre uma lembrança e outra, episódios vão sendo contados sobre sua família e sua vida, desde o seu nascimento até o momento atual: “O meu nome é, é, é Maria Anísia Rudrigue”, assim a mesma se apresentou: A minha idade é 86 ano81. Nasci no ano de 1917, um dia de domingo, do dia do Santo Antônio – 13 de junho. Eu nasci meio dia em pino, minha mãe dizia, eu choro quando penso assim na palavra que minha mãe disse: Não chore não. Ela disse não foi com orgulho não, ela disse meu pai, minha fia, ela disse meu pai, meu pai malcriado você não vê naquele Arto (Alto)82 eu nasci ali naquele localzinho. Eu nasci ali. Mas naquele tempo tinha uma tia minha que vendia cachaça e eles tudo ia beber na casa dessa, da minha vó Jusefa. Aí a minha vó era parteira, tava me pegando quando eu fui nascendo, uma tia dela chegou assim, chamavam ela Zeu, Zeu, Zeu. Os menino tão brigando, tudo brigando tão se matando, ela disse com a irmã dela: olha Aliça repara aí que eu vou apartar isso, quando ela disse assim mamãe espiou, mamãe, eu já tinha nascido em cima da cama de vara, caminha de vara minha fia, ela disse: que olhou assim, quase caí, olhou assim,eheheheheh a bichinha é feme, a bichinha se criar, se cria sem sorte, eu tenho um nervoso disso. Oh, mamãe pra que, ela me contou depois de grande. Oh! minha fia, eu já li disse, como é difici essa palavra eu, já vivi até hoje, minha fia, sempre como mermo é escassa, mermo minha sorte. Agora logo agora, em dezembro não tive abonu. Minha fia, tenho dois neto: essa menina aí, uma fia sem marido com dois neto, já ficando homem, agora mermo vai fazer como é mermo, a 81 Em 2002, data da entrevista, d. Anísia tinha 86 anos de idade, no dia 13 de junho do ano em curso completa 90 anos, mas continua lúcida. 82 Alto Bonito. 101 primeira não sei o que é, sim a primeira 16 anos ele (Entrevistada pela autora em de 26 abr.de 2002, em sua residência em Tijuaçu). Anísia destrinchou sua história de vida, contando episódios ouvidos sobre o seu nascimento. Ao narrar sobre estes se emocionou e diz sentir uma tristeza profunda ao rememorar algumas lembranças. “Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir” (Benjamin, 1987, p. 205). Anísia, narrou com muita veemência as histórias ouvidas sobre suas vivências passadas. Essa “contadora” de histórias relatou o que sua memória guardara e selecionou o que ouviu dos mais velhos, lembrança e esquecimento são mecanismos da memória. Assim, a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos: recordar e contar já é “interpretar” (PORTELLI, 1996, p. 60). A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse uma fastidiosa interferência na objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos narrados (PORTELLI, 1996, p. 60-61). Com idade de 86 anos (na data da entrevista), Anísia passa os seus dias, sentada à porta de sua casa, olhando para o horizonte relembrando as histórias ouvidas e as experiências vivenciadas. Constantemente é solicitada pela vizinhança ou por pesquisadores para narrar histórias sobre Tijuaçu. Esse exercício de memória tem possibilitado a rememoração e contribuído para que sua mente esteja sempre ativa. Tal exercício lhe dá mais vitalidade, pois as impressões estão sempre em evidência, trazendo para o presente os vários episódios de que foi testemunha. Assim, as lembranças são sempre reativadas, não se perdendo no esquecimento. Segundo Ecléa Bosi,83 o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar as águas revoltas do presente, alargando suas margens. Não porque tenha uma especial 83 Cf: Bosi (1994. p. 82-89). Discute sobre a referida questão comentando: “Hoje a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega ela era vidência, êxtase. O passado revelado desse modo não é o antecedente do presente, é a sua fonte”. 102 capacidade para isso: é seu interesse que se volta para o passado, que ele procura interrogar cada vez mais para ressuscitar detalhes, discutir motivos, confrontar com a opinião de amigos ou com velhos jornais e cartas em nosso meio. O entrevistado dá conta de suas experiências subjetivas a respeito de acontecimentos que tenha visto, escutado ou participado. Por sua vez, o entrevistador deve estar atento ao propósito de não conduzir a entrevista aos seus fins e também para os aspectos dados como importantes pelos entrevistados, que podem ser indicadores do seu grau de compromisso com a situação. Muitos fenômenos históricos são produzidos a partir de compromisso com a situação. Muitos fenômenos históricos são produzidos a partir da oralidade, veículo que nos ajuda a entender a importância do acontecimento. Aliada ao vídeo, a palavra foi transformada em ato, dando às declarações, aos discursos e as entrevistas um cunho que data os nossos tempos de um presente pleno de “História” (DANTE, 1992). 84 Sob a ótica da oralidade, o historiador tem a possibilidade de estudar o presente e sua dimensão, como também conhecer os diferentes universos da experiência humana. A história de Anísia dá possibilidade de se ter o conhecimento das experiências subjetivas, aquelas de que ela ouviu falar e outras que foram vivenciadas. Nessa perspectiva, a entrevistada retoma suas vivências e reporta às suas relações familiares e à sua história de vida e vai mapeando cada um desses episódios com determinação e clareza, buscando na memória essas vivências, que o momento retoma com muita perspicácia. Assim, a memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer o passado até o presente, recria o passado. Graças a essa capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos tempos, o passado torna-se verdadeiramente passado e o futuro, isto é, dessa capacidade da memória brota a consciência que os humanos têm. Esta por sua vez, permite compreender e combinar, de muitos modos, as fases em que se divide o tempo, possibilitando, por exemplo, perceber “o passado diante de si”. Anísia continua contando sua história, que fica a mercê de sua memória: O nome do meu marido era Sinfrone Rudrigue. Nós era Primo. Primo, minha fia. Quase que a gente não casa no civil, o padre não deu trabalho, mais o civil ainda veio uma carta lá alegando que nos era irmão. A mãe dele era minha tia. 84 Dante (2001. p. 225). 103 Era minha tia e a mãe dele, do meu marido, chamava Ju, Jusefa, e e a minha vó e a vó dele também daqui do Lagarto da mãe Jusefa. Sim Rudrigue, o juiz olhou prá nós, peraí parece que vocês são irmão nu nu vai dar certo aqui agora, eu eu dei pra chorar, minha fia, lá. Não dá certo não, que aqui ta parecendo que vocês são irmãos, né não nos não somo irmãos, minha duas vó, era Jusefa, Jusefa as minhas duas vó, a minha duas vó e o pai dele Pedro e e meu pai Pedro. O mermo nome foi um gancho destinado, minha fia. O nome da minha mãe é Juliana Rodrigues. E a dele Timótia só tem uma deferencinha essa. E a mãe dele se chamava Jusefa. A vó dele Jusefa e a duas vó dele Jusefa, minha vó Jusefa. A mãe dele Timótia. É e a minha mãe Juliana, Juliana. Uma vó é Josefa e a outra avó Zidora. O avô Antônio Militão do Pindobaçu, minha vó era sotera, a minha vó no rio do Aipim, era sotera e pariu desse cara e diziam minha mãe era branca, branca assim como você mermo. Branca, branca. O pai dela, o cara diziam que era o Antônio Militão, não, veio minha famia como é cismada. Eu tive seis irmão e cinco ou sete irmão e seis, isso. Eu, graças a Deus, tem três ano que morreu um, o derradeiro, só tem eu de irmão, mais tinha Adilon que é fio de meu pai, é irmão né, só é fio de meu pai quando casou era viúvo. Adilon, Bastião, José, Ana, Diolina, Amisa. Todos Rudrigues, e o Manel, o Manel que morreu pequenininho mais era irmão de sangue, o Manel. Eu tive dezesseis. Dos meus fios, olha eu tive 16, nasceu seis morto que nu nu nu era só era só aquela, não batizou, não batizou, e dez que batizou, meus fio é: José Rudrigue, Mila Rudrigue, Rodrigo Rudrigue, Erico Rudrigue, Lourival Rudrigue, Margarida, você viu por lá de lá que é a rezadeira daqui, Margarida Rudrigue, Maria Márcia e Raimundo, foi dez fio. O Lele, Elias Rudrigue, Raimunda Rudriigue. Era criança, ô minha fia, quando eu era nova como esta aí, é a nova inté, olha fia, se eu contar, você não diz assim, você não diz que é mentira, porque você sabe quem é eu por dentro. Olha eu só vadiei inté o dia vinte que interou, agora não sei como essa mulé, essas mulé de hoje é por isso que elas não vive com os marido. Porque elas é só em festa, eu nunca fui em uma festa e nem nunca pedi ele nem um nem outo olhe ele ta fazendo treze ano de morto, êta ta fazendo treze ano agora no dia vinte nove, eu andei muito. Vadiei muito, fazia, brincava roda, não gostava de brincar de dança, não pegava as coisa de dança e fazia trucia, não gostava de dança, agora roda eu gostava, e reza eu aprendi, eu tava dizendo toda reza eu aprendi toda reza, minha fia. Eu tava dizendo a Margarida se fosse mode de uma pessoa dizer assim, reza aí que é isso e aquilo, eu sei mais de cinqüenta pedido, ele fala aí, a Mariana também é que a minha fia saiu aí, Bendito aprendi muito era muito farrista, pra vadiar, era muito farrista. (Entrevista com Anísia Rodrigues realizada pela autora em 24 de ab. de 2002). Como uma boa memorialista, Anisia narrou as histórias sobre sua família, citando o nome de toda a prole e ainda investiu contra o comportamento feminino atual. São lembranças significativas que desenrolam fios de meadas diversas, 104 constituindo pontos de encontro de vários caminhos. Chamando a atenção, com igual força para a sucessão de etapas da memória, que é dividida em marcos, pontos onde a significação da vida se concentrou: nascimento, casamento, filhos, religiosidade, festas e vida cotidiana. A sucessão de etapas no trato do passado é patente na memória de dona Anísia. As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um dos seus membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada. Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam vínculos difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou o núcleo onde sua história teve origem (BOSI,1994, p. 423). A rememoração também significa uma atenção precisa ao contemporâneo, particularmente a essas estranhas ressurgências do pretérito no presente, pois não se tratou somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o atual. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. Nessa perspectiva, dona Anísia busca o passado, expressando diferentes passagens e interferindo sobre o presente. Em seus depoimentos esses sujeitos sociais mostram histórias de vida, que ao serem buscadas, se transformam em rastros das suas existências em lugares específicos, demarcando suas presenças e revelando uma memória familiar sobre suas experiências de vida (AZEVEDO, 2001, p. 358). Segundo Bosi (1994, p. 90), a sensibilidade de narrar é restrita àqueles que transformam lembranças em narrativas emocionantes, transformando-os em artistas do teatro da vida, levando o ouvinte a uma atenção dimensionada pelos vários episódios narrados. Narrador e ouvinte viajam juntos nas histórias contadas. E acrescenta: O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos principados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (BOSI, 1994, p. 90). 105 Assim, Anísia com sua simplicidade e humildade, moradora da zona rural destrincha seu passado, buscando na memória os episódios vivenciados, transformando as histórias contadas em narrativas emocionantes. 2.2.3 Guerreiras da comunidade: Dalva Odilon Santana e Ilca dos Santos Ilca e Dalva - guerreiras da comunidade, não precisaram submeter-se a uma eleição para serem porta-vozes e representantes de Tijuaçu. Assumiram tal papel de forma natural em decorrência das circunstâncias que vivenciaram. Essas duas mulheres, com astúcia e perspicácia desempenharam em Tijuaçu um trabalho de organização e conscientização dos moradores. Representantes, respectivamente, da Fazenda Alto e do distrito de Tijuaçu – são mulheres lutadoras, que estão presentes, encabeçando as reivindicações da comunidade. Com garra e muita vontade, elas buscam melhorias para o seu território. Dalva conta sua história enquanto mãe, mulher, professora leiga, roceira e lutadora em prol dos benefícios da Fazenda Alto Bonito: Minha fia, nesses 58 anos de vida, as coisas era mió pra mim. Eu ensinei esses minino, ensinei os cunhado que não sabiam ler. Naquela época, há 50 anos atrás, eu saí no 2º ano primário, mas não era essa leitura de agora. Eu sabia muito há 50 anos atrás. Essa luz aqui quem puxou fui eu. No ano de 1973, eu comecei a cadastrar as pessoas que moram na Fazenda Alto. Nós éramos todos unidos, andava na casa das outras. Digo, minina, eu já tô bem cansada e já tenho muito fio de cabelo branco. Esse prédio aqui só foi construído por que eu pedi o prefeito. E de lá pra cá tem um monte de gente estudando. O tanque também foi através de mim que ele foi construído (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon de Santana, em 11 de jan. de 2002, em sua residência, Fazenda Alto Bonito). Em sua simplicidade, tanto Dalva quanto Ilca enveredaram pelo caminho do bem-estar da comunidade, procurando suprir algumas lacunas que o poder público deixou em aberto, na tentativa de trazer para a população os benefícios que lhes são de direito. Para que estes cheguem até a comunidade, é necessário que alguém faça 106 o trabalho de intermediação e que tenha disponibilidade de fazer peregrinações nos diferentes setores públicos. Nessa convivência com o grupo e fazendo parte deste, elas conhecem as necessidades mais urgentes e se empenham para que estas sejam atendidas. Sem muito alarde, com humildade e muita disposição, conseguem suprir algumas carências da comunidade. Dalva propõe-se a dividir um pouco do conhecimento adquirido, ensinando as pessoas do povoado do Alto Bonito a ler, assumindo também o papel de professora. No depoimento abaixo, percebe-se a trajetória de Ilca frente aos problemas da comunidade e a forma como foi construindo a sua participação no meio social, politizando-se e buscando melhoria de vida para os moradores de Tijuaçu: Aos poucos eu fui tomando consciência da necessidade de trabalhar na Associação, pois se a gente não participar e não lutar pelos nossos direitos, as coisas não andam. Assim, venho participando de várias reuniões tanto aqui quanto em Salvador sobre a situação dos remanescentes de quilombos. Todos os encontros que tenho ido e quando tem as reuniões da Associação eu passo para o pessoal o que foi discutido. É tanto que o pessoal da Fundação Palmares quando chega aqui em Tijuaçu procuram logo eu e Valmir. Nessa caminhada nós estamos tentando melhorar a vida dos habitantes de Tijuaçu e a nossa vida também (Entrevista realizada pela autora com Ilca dos Santos, em 28 de out. de 2003, em sua residência em Tijuaçu). No depoimento acima, percebe-se uma postura politizada da informante. As circunstâncias a fizeram líder da comunidade, o que a fez participar de vários encontros e discussões sobre a temática quilombola. Nessa postura política, Ilca tem assumido diferentes papéis na Associação Quilombola e Adjacências. Em anos anteriores, assumiu o posto de secretária e no biênio 2005-2007, assumiu a vicepresidência. Recentemente, tem articulado, juntamente com o presidente da Associação, a administração desta, dando continuidade aos trabalhos desenvolvidos por seus antecessores. Sua postura política tem como precedente a conscientização da população e o engajamento desta em busca dos seus direitos. Nessa perspectiva, Ilca tem consciência do seu trabalho e de sua função, pois sabe que essa luta não é somente sua, mas de todos os residentes em Tijuaçu. Clama para que os moradores participem das discussões e que fiquem unidos em prol do fortalecimento da Associação como órgão representativo da comunidade. 107 Essas duas mulheres, sem alarde, têm conseguido atingir seus objetivos. Dalva, na Fazenda Alto, obteve junto à Igreja e aos poderes públicos melhoria para a localidade, conseguindo a construção da escola e de um tanque que abastece a localidade, como já foi comentado anteriormente. No momento, luta para que seja construída uma Igreja Católica no povoado. Sua ação e luta para construção da Igreja são antigas como sua preocupação em oferecer uma preparação religiosa aos habitantes da Fazenda Alto. Para Dalva, a orientação religiosa é urgente na comunidade, pois, segundo a depoente, temendo a Deus, a população vai se dedicar mais à Igreja e às suas obras, o que pode diminuir o consumo de álcool, que é uma das grandes preocupações dos pais residentes no povoado Alto Bonito, em Tijuaçu e nos demais povoados da região. Nesse sentido, Dalva vem se movimentando, juntamente com a professora da localidade, para que os órgãos públicos e outras pessoas da comunidade ajudem na construção da referida igreja. Doei esse terreno para a construção do prédio, lutei também para construção do tanque para armazenar água. Quando o padre fez o tanque, disse: “o tanque é aqui no terreno do seu Manoel (esposo de Dalva), ele vai ficar como responsável, distribuindo água para vocês direitinho” (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon Santana, em 11 de jan. de 2002, em sua residência na Fazenda Alto Bonito). Percebe-se que as melhorias estão chegando em passos lentos ao distrito, as mudanças ainda são bem tímidas, mas para a população essas inovações têm um grande significado. É a escola que chegou, é o tanque que foi construído, é a perspectiva da construção da igreja católica, são as máquinas de costura e outros benefícios, que vão mudando o perfil do território e criando alternativas de trabalho e de melhoria de vida. Apesar dos vários entraves, Dalva e Ilca, com paciência e insistência, continuam o seu percurso para que outras reivindicações sejam atendidas. Com essa postura, construíram uma referência dentro da comunidade. São as mulheres tijuaçuenses conquistando seu espaço e enfrentando sua luta diária. 108 2.2.4 Lembranças sempre presentes de um tempo em continuidade – a alma do samba – Genoveva e Joana Rodrigues Outra figura de destaque que viveu em Tijuaçu foi Genoveva, que já faleceu. Apesar de não mais conviver na comunidade, é personagem sempre lembrada como iniciadora do Samba de Lata. Quando os habitantes falam do samba, ligam de imediato à presença de Genoveva. As pessoas aqui do Lagarto faziam aquela rodona aí essa muié chamada Genoveva começava a contar história, a bater lata e as minina começando a sambar. Que essa rama que participava, muitas delas já morreram. O Samba de Lata foi feito pela Genoveva, foi ela quem formou o Samba de Lata aqui em Tijuaçu (Entrevista realizada pela autora com Dalva Odilon Santana, em 22 de jan. de 2001, em sua residência fazenda Alto Bonito). O depoimento acima abriu perspectivas sobre o início do Samba de Lata e as circunstâncias do seu surgimento. Contam que o samba teve início quando Genoveva estava desempenhando suas atividades domésticas, socando alimentos no pilão, juntamente com outras pessoas. A mesma começava a contar histórias e a cantar, fazendo a cadência com o pilão e os demais presentes acompanhavam com palmas, sambando e cantando. Joana, filha de Genoveva, considerada exímia sambista é personagem que se destaca nas apresentações do Samba de Lata. Pelo seu jeito de dançar e de se vestir, sempre com um turbante na cabeça, tem dado continuidade a essa tradição iniciada por sua mãe. Joana veste-se de branco, põe um torço na cabeça, colares no pescoço e vai fazer o que mais gosta – sambar. Para descontrair, ela gosta de beber goles de pinga, o que aborrece alguns participantes, pois a bebida deixa-a muito alegre. Na roda do samba, Joana mostra seus dotes artísticos, participando intensamente, cantando e sambando. Reside no povoado Alto do Bonito, esporadicamente vai à Tijuaçu, onde reside sua filha. Abaixo a foto de Joana com sua fisionomia cansada de mulher sofrida, envelhecida pela dureza da vida e ressecada pelo sol do dia-a-dia. 109 Foto n° 7 - Joana. A sambista Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 2.2.5 O canto a serviço de Deus : Valdelice da Silva Mas nem só de samba vive a população de Tijuaçu. A religião católica, seus rituais e seus santos também estão presentes. As mulheres também marcam presença dentro dos rituais da Igreja Católica. Valdelice da Silva, mais conhecida por Detinha, além de participar do Samba de Lata e da Associação de Moradores, também zela pela Igreja de São Benedito e cuida dos preparativos para os festejos do referido santo. Tal função constitui um trabalho voluntário, que segundo a depoente, é realizado com muito prazer e dedicação. Esse zelo pela igreja é uma vontade minha, é espontâneo. Porque eu gosto de ver as coisas arrumadas. Só sinto que por sermos negros as autoridades não nos dão a devida atenção. Quando vejo as ruas sem calçamento, tudo desarrumado, penso que as autoridades poderia ter cuidado, e aqui é tudo largado. Tá vendo essas árvores fui eu que plantei, gosto de ver minha rua organizada. Tá vendo aquelas árvores perto da Igreja, também fui eu que plantei. Gosto muito de planta (Entrevista realizada pela autora com Detinha, em 02 de nov. de 2001, em sua residência em Tijuaçu). 110 No seu discurso, Detinha tem consciência da pouca assistência que as autoridades públicas dão ao distrito e atribui tal descaso ao fato de a população de Tijuaçu ser predominantemente negra, ou seja, ao preconceito racial. Mesmo enfrentando tal situação, procura fazer o possível para viver melhor no seu espaço. Consciente de que não pode esperar somente pelo poder público, vai criando perspectivas de mudança para solucionar algumas questões que ela juntamente com a população têm condição de resolver. Nessa caminhada, ela tem inovado com algumas ações, como a criação do coral da Igreja. Com o objetivo de embelezar as celebrações (já que os padres vão para Tijuaçu periodicamente), ela mesmo, sem nenhum estudo sobre música, mas apenas com sua voz e boa vontade, criou o coral que acompanha as missas e as diferentes atividades da Igreja. O coral é formado, em sua maioria, por adolescentes moradores da comunidade. 2.3 A arte da sobrevivência O trabalho desempenhado por essas mulheres em diferentes setores, tem contribuído para manter acesa a chama da fortaleza, da coragem e do enfrentamento. Elas atuam no campo político, social, religioso e econômico, incorporando mudanças na comunidade. Suas narrativas apresentam episódios do cotidiano e de suas vivências. Com astúcia de narradoras, evidenciam seus costumes, sua religiosidade e seu modo de vida. Não têm meias palavras, dúbias interpretações, falam realmente o quê e como sentem. Assim, a narração constitui a própria vida do narrador. É através de sua fala que se toma conhecimento da sua visão de mundo, dos seus desejos, suas decepções e suas esperanças. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata (Benjamin, 1987, p. 205). Toda narrativa, no entanto, possui uma dose, maior ou menor, de criação, invenção, fabulação, isto é: uma dose de ficção (AMADO, 1996). Aqui e ali se percebe a presença dessas mulheres nesse espaço, com suas 111 funções delimitadas pelas vivências e necessidades cotidianas. Outra preocupação inerente às mulheres tijuaçuenses diz respeito à limpeza da casa e principalmente das panelas, como se observa na foto da página seguinte. Mesmo com toda história da falta de água que sempre acompanhou o distrito, a população sempre esteve atenta à limpeza de suas casas e principalmente em arear os seus alumínios. É costume entre as donas de casa de Tijuaçu capricharem no brilho de suas panelas e de outros utensílios. É um orgulho verem seus alumínios brilhando como um espelho e expostos no quintal ou na porta de casa para secar. Antigamente desempenhavam esse trabalho com produtos de limpeza da região, esfregavam as panelas com areia fina (encontrada na região) e bucha vegetal (muito encontrada nas várias roças). Hoje, elas aream seus alumínios com sabão e esponja de aço compradas nos supermercados. A questão do arear as panelas é muito comum em outras regiões do Brasil, principalmente entre as populações mais pobres. Os alumínios brilhando constituem um prazer para essas donas-de-casa. É costume reservar um dia da semana para executar o referido trabalho. 112 Foto n° 8 - Mulher areando alumínio. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. Essas mulheres são construtoras da história de sua comunidade. Em seus diferentes papéis, consolidaram um viver recheado de trabalho, lazer, devoção e solidariedade. A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem significado à própria experiência e à própria identidade constitui por si mesmo o argumento, o fim em si. Essas personagens, na sua dinamicidade simplificada, trazem para a população o despertar de um viver mais digno, buscando caminhos para atender a população nas suas necessidades básicas. Nessa perspectiva, essas mulheres conquistaram diferentes espaços e são reconhecidas pela luta em prol da comunidade. As funções femininas vão se alargando, dando continuidade ao que foi iniciado por Mariinha Rodrigues. A comunidade negra rural de Tijuaçu tem dinamizado o seu cotidiano, tendo como exemplo a luta e o empenho das mulheres como foco principal. Percebe-se que há um movimento, uma vontade de que os benefícios cheguem a Tijuaçu e as 113 condições de vida da população melhorem. Isso fica evidente nas ações desempenhadas por essas moradoras. Na encruzilhada de suas funções elas inventam e reinventam, improvisam para dar conta das tarefas do dia-a-dia. Plantam, capinam, colhem, cortam com o machado, usam a enxada, mas também cozinham, lavam e passam. Faz parte de suas tarefas gerar, parir, cuidar e alimentar os filhos. Atividades que se acumulam ultrapassando as barreiras da noção de “leves”, ganhando uma densa complexidade, mas possível para essas mulheres, que na labuta do cotidiano, na luta pela sobrevivência tornam-se fortes e independentes (PINTO, 1999, p. 118). Na arte da sobrevivência, uma das alternativas utilizada é o tradicional trabalho nos pequenos roçados – uma herança dos primeiros moradores que foi passando de geração a geração. Esses afro-descendentes plantam principalmente milho, feijão, melancia, maxixe, batata-doce, abóbora, umbu, feijão de corda, andu, mandioca, mamona e palma. A palma é cultivada para ser vendida aos fazendeiros, que a utilizam como ração para o gado na época da estiagem. A produção é feita em pequena escala e tem dois destinos, uma parte atende suas necessidades de subsistência e outra parte é vendida na feira de Senhor do Bonfim e no próprio território. São produzidas frutas como caju, manga, banana, pinha, maracujá, cajá, sirigüela, entre outras. A agricultura de subsistência é predominante, até porque as condições financeiras não permitem uma produção em grande escala. Outra forma de sobrevivência são as atividades externas realizadas nas fazendas vizinhas: trabalho sazonal, contratados permanentes, diaristas. A instabilidade econômica a que estão sujeitos os habitantes de Tijuaçu direciona muitas famílias e jovens a emigrar para outras cidades e regiões com esperança de melhores dias. Outra fonte de renda é a aposentadoria recebida pelos mais velhos. As propriedades rurais são constituídas por pequenas roças que possuem construções de palhas e taipa e, raramente, uma casa de farinha. Outras apenas possuem um terreno sem nenhum tipo de construção e somente a terra para plantar. A maioria dos proprietários desses pequenos lotes reside no distrito de Tijuaçu ou em povoados próximos e deslocam-se até a roça para plantar ou colher seus produtos. 114 Geralmente essas roças estão bem próximas de suas residências. Mulheres e crianças, além de homens, trabalham na roça. Na época da plantação e da colheita, todos dedicam-se a essa atividade. Outro meio de subsistência é a criação de animais como: galinhas, porcos (criados para o consumo familiar e comercialização), gado (criado apenas por alguns moradores), caprinos e perus. Muitas vezes, trabalham como empregadas domésticas, lavadeiras e faxineiras. Homens e mulheres vendem milho assado pelas esquinas da cidade de Senhor do Bonfim. Fora dela, os tijuaçuenses trabalham como diaristas, vendedores de acarajé e de abará (iguaria de origem africana, muito saboreada pelos baianos), pelas ruas e praças de Senhor do Bonfim, como já foi discutido. Esse comércio é realizado principalmente pelos homens. Segundo a depoente Luzia Rodrigues85 (uma das primeiras vendedoras dessa iguaria) o acarajé chegou em Tijuaçu através de d. Celina, uma cunhada desta senhora vinda de Salvador mostroulhe como fazia o acarajé. D. Celina aprendeu fazer a referida iguaria e passou a comercializar esse alimento juntamente com d. Arlinda (todas nascidas em Tijuaçu) em Senhor do Bonfim. Posteriormente d. Arlinda ensinou a d. Luzia, esta convidou sua irmã Vanda para trabalhar com ela e assim outras pessoas da comunidade foram aprendendo e ensinando, passando esse aprendizado de geração a geração. Muitas famílias residentes em Tijuaçu vivem da venda de acarajé. 85 Entrevistada pela autora em 5 de dezembro de 2001, em sua residência em Senhor do Bonfim. 115 Foto n° 9 - Vendedora de acarajé-área comercial de Senhor do Bonfim Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 2.3.1 Imagens e personagens: o cotidiano de um viver rural Nesse subtítulo, a intenção é narrar algumas vivências cotidianas dos moradores de Tijuaçu, perspectiva em que as casas, as ruas, as pessoas vão aparecendo e emitindo significados. Observa-se o fazer desses sujeitos sociais em diferentes momentos e espaços de sua vida diária. Numa das muitas visitas realizadas a essa comunidade, ocorrido num domingo, precisamente no dia 20 de abril de 2001, algumas entrevistas foram feitas. No trajeto até lá, observava-se a paisagem, os morros, as roças, as pequenas casas, gente na beira da estrada esperando um transporte, outros caminhando, afinal era domingo e para quem mora na zona rural, esse é um dia de “descanso”, de festa, de fazer visitas, de jogar bola e de outras atividades. No domingo, as pessoas geralmente saem da rotina e fazem outras atividades. Ao entrar em Tijuaçu, as casas já estavam abertas. Preparavam-se para 116 receber a luz do sol, que entrava pelas gretas do telhado e pelas velhas portas de madeira. Muitas pessoas já se encontravam nas portas de suas casas, conversando com o vizinho, varrendo sua área ou apenas observando o movimento de quem passava. Cada um no seu espaço desenvolvia suas atividades. Alguns cozinhando, outros se penteando, fazendo trancinhas no cabelo, outros apenas conversando, alguns jogando bola, outros preparando a massa de acarajé, outros ainda debulhando feijão-verde para vender na segunda-feira, no centro de Senhor do Bonfim. Algumas mulheres estavam nas portas de suas casas confeccionando esteiras, bolsas, vassouras e outros utensílios. Outras se dirigiam ao tanque com uma lata de zinco para pegar água e abastecer suas casas. Algumas ainda amamentavam seus filhos em meio a outras pessoas. Os homens espalhavam-se pelos bares do distrito ou se dirigiam às suas roças. A estreiteza das ruas e o movimento de pessoas entrando e saindo, implicava um ar dinâmico, uma movimentação: alguns indo, outros voltando, as ruas ocupadas de adultos, crianças e animais. Pessoas humildes, casas pequenas, ruas sem calçamento, somente a rua central e uma lateral são calçadas, uma rotina semelhante a de outras comunidades rurais, onde as ações são realizadas dentro de um tempo sem pressa. No croqui n. 1 da página seguinte, observa-se a divisão espacial de Tijuaçu, tendo como construção central a Igreja Católica. As casas e demais construções foram sendo construídas em torno do referido prédio. Há uma praça principal e no centro desta localiza-se a Igreja. As demais ruas foram surgindo posteriormente, seguindo a mesma direção, ou seja, há uma praça principal e as demais ruas a circundam, formando um círculo não muito definido. Segundo alguns moradores, a praça é recente, o que existia anteriormente eram algumas casas espalhadas pela vila, separadas umas da outras. Com a chegada de pessoas que moravam nas roças e povoados vizinhos, os espaços vazios foram sendo ocupados com a construção dessas novas casas. 117 Croqui n.1 - Divisão espacial de Tijuaçu. Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005. Nessa visita específica, observou-se, também, que, devido à proximidade das casas entre si, das meias-paredes que as separavam86, fazia-se presente o olhar devassador do vizinho. Na foto da página seguinte, observa-se a arquitetura das casas e o espaçamento entre elas. Por conta desse espacejamento, os acontecimentos são socializados com muita rapidez. A maioria das construções dessas propriedades é 86 Algranti (1997. p. 97). 118 simples, sem nenhum conforto e com pouca divisão interna. As casas são pequenas, geralmente com uma janela e uma porta (foto abaixo). Possuem poucos móveis e objetos: cama, colchão, utensílios de cozinha, uma mesa, algumas cadeiras, tendo por vezes uma estante com uma televisão e sofá, uma cômoda, guarda roupa e um armário de cozinha e fogão a lenha – este imprescindível –, algumas já possuem fogão a gás; na parede algumas imagens de santos ou fotos dos pais.87 Geralmente essas casas não são forradas, não têm piso, (apenas o chão batido), os quartos não possuem portas, uma cortina de tecido estampado ocupa o espaço das portas, dandolhe uma certa privacidade. Algumas possuem uma cozinha pequena, que na maioria das vezes localiza-se no quintal e muitas não possuem banheiro. Essas características podem ser observadas, também, no croqui n. 2, a divisão do espaço da maioria das casas existentes em Tijuaçu. Foto n°10 - Casas de Tijuaçu e sua construção. 87 Cf. Perrot (1988). Na referida obra a autora discute sobre os operários, a moradia e a cidade de Paris no século XIX. 119 Fotografo: MIRANDA, Igor. 20-12-2005. Croqui n. 2 – Divisão interna das casas de Tijuaçu. Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005. Nesse território, as crianças de idades variadas passeiam e brincam livremente pelas ruas e algumas andam nuas (os meninos), sem qualquer proteção88. Os moradores têm uma capacidade surpreendente de aproveitar as potencialidades da região, como local de trabalho, de diversão e descontração. Nas roças pode-se 88 É costume entre as crianças do sexo masculino, principalmente menores de três anos, andarem pelas ruas sem roupas. Encontra-se muitos meninos acompanhados por suas mães, em casa ou pelas ruas, sem nenhuma roupa. 120 caçar, buscar lenha e frutas, no centro do distrito há bares freqüentados pelos homens, além disso, o comum bate-papo e a conversa nas portas das casas são atrativos desse cotidiano. Essa simplicidade e tranqüilidade tão característico da zona rural, também é vivenciado pelos moradores de Tijuaçu. Perrot (1988, p. 122), discutindo sobre a utilização livremente do espaço público pela população de Paris no século XIX, ajuda a nossa reflexão, afirmando: Circular livremente, parar em qualquer lugar, morar e trabalhar em qualquer lado são condutas populares coletivas na Paris do século XIX. Dotadas de uma espantosa capacidade de utilizar os terrenos baldios e os construídos, as classes populares opõem uma resistência viva e surda contra a especialização progressiva e a delimitação de espaços funcionais. O espaço público é tomado pelos moradores. Muitas atividades são realizadas na rua, nas portas, sob o olhar dos vizinhos. Esses moradores têm o sentimento muito forte de que o espaço público lhe pertence. Tudo o que ele pede é poder utilizá-lo à sua vontade, de modo indiferenciado, (PERROT, 1988, p. 124). Apesar de todo esse movimento de aproveitamento do espaço público e da continuidade de algumas tradições, o movimento de pessoas que migram para outros locais e outras que retornam trazem algumas interferências no cotidiano desses moradores. Os meios de comunicação e a modernidade também, interferem e mudam alguns costumes, exercendo uma certa pressão sobre a oralidade e a cultura local. Como exemplo dessas mudanças podemos citar a reinvenção de algumas manifestações culturais; o aumento de pessoas que passaram a freqüentar a escola e outras que chegaram a universidade; o abandono do trabalho na agricultura principalmente dos mais jovens, que saem do distrito para outros lugares a procura de outras alternativas de emprego. No século XVIII, o costume do povo inglês também foi ameaçado por pressões para modificar a sua cultura: O povo estava sujeito a pressões para ”reformar“ sua cultura segundo normas vindas de cima, a alfabetização suplantavam a transmissão oral, e o esclarecimento escorria dos estratos superiores aos inferiores – pelo menos era o que se supunha (THOMPSON, 1998, p. 180). Mas as pressões em favor da reforma sofriam uma resistência teimosa: e o século XVIII viu abrir-se um hiato profundo, uma profunda alienação entre a cultura patrícia e a plebe (THOMPSON, 1998, p. 180). 121 Observa-se que as práticas e as normas se reproduziam ao longo das gerações na atmosfera diversificada dos costumes. Em Tijuaçu, as tradições perpetuavam-se em grande parte mediante a transmissão oral e as narrativas. Nessa perspectiva, as letras do Samba de Lata, o bendito de São Benedito são exemplos dessa tradição oral, que foram passadas através da repetição e da oralidade, hoje já se observa a sua substituição pela escrita. São as letras do Samba de Lata, da dança do parentesco e de outras manifestações culturais que estão sendo escritas e registradas. A população passou a freqüentar a escola, aprendeu ler e escrever, e procuram exercitar essa nova experiência, escrevendo as letras dessas diferentes manifestações culturais. Nota-se que aos poucos a tradição oral está perdendo a improvisação. Algumas normas se mantêm e se reproduzem, mas outras sofrem interferências. O referido capítulo teve como intenção, recuperar o sentido dos costumes da referida comunidade e de como estes têm resistido às mudanças não esquecendo de sua historicidade e de como esses sujeitos sociais estão fazendo escolhas. Nessa perspectiva, pode -se discutir sobre os diferentes papéis que as mulheres assumiram em Tijuaçu e como as mesmas conquistaram esses diferentes espaços. As relações de trabalho, familiares, de vizinhanças também foram aspectos discutidos no referido capítulo que mostraram com as mulheres representam o principal foco enquanto personagens dentro da trama do território, que teve sua trajetória marcada pela constituição de um matriarcado em contrapartida ao patriarcado da tradição. O homem não se esvai do seu papel como chefe de família, como trabalhador, mas, as mulheres conquistaram um espaço expressivo, o qual tem se consolidado com o passar do tempo. Mariinha é apenas a primeira entre outras mulheres que têm se destacado nessa comunidade negra rural. As mulheres tornamse chefes de casas, cuidando tanto da criação dos filhos e netos como da manutenção de sua família, mediante as feituras das roças de mandioca e, posteriormente, da venda da farinha e demais atividades econômicas capazes de garantir o bem estar de sua família. Tornam-se fortes bastantes e adquirem poderes a ponto de transformaram-se em chefes de alguns povoados rurais (PINTO,1999, p. 213). CAPÍTULO III 122 TIJUAÇU FAZ A FESTA: DEVOÇÃO E DIVERSÃO NO ENCONTRO DE SUA IDENTIDADE Foto nº 11– Apresentação do samba de lata no povoado de Quebra Facão. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003. Sendo o batuque um “território livre” onde o indivíduo fala à comunidade e da comunidade, seus pontos e modas têm sido desde sempre o veículo ideal da crítica social e política (DIAS, 2001, p. 880). 3.1 A reinvenção da festa no Brasil Colônia 123 Onde tu vai mulher Eu vou sambar, sambar Se o samba não tiver bom Eu vou e torno a voltar Olé, olé mulher, Olha o veado na roça Farinha de cinco mil réis o que fazer sem mandioca (letra do Samba de Lata) Uma das principais características da festa é a sociabilidade. É no espaço das comemorações que as relações sociais se entrelaçam e se aguçam. O ambiente festivo, de alegria e descontração, leva os participantes a terem tal comportamento. Nesse espaço, também se encontra o sentido da religiosidade e da solidariedade e, ainda, as demarcações de especificidades e diferenças entre os indivíduos e os grupos. A festa, representa comemoração, que pode estar ligada a ritos de colheitas, ciclos de passagem, dia do padroeiro e outras ocasiões. Nesses dias, as pessoas em geral param suas atividades cotidianas para comemorar e participar das festividades; é uma ruptura da vida diária, um intervalo na ordem estabelecida, momento de renovação das forças, desgastadas pela rotina do trabalho e pelo respeito às regras permitindo que as tarefas habituais – posteriores – sejam retomadas com mais vigor. A festa dá ensejo à ruptura total, a partir da suspensão temporária da ordem e da instauração de uma nova, diferente da anterior, faz-se, então, uma tensão entre a continuidade e a ruptura89. Durante os festejos, há um esquecimento temporário da vida cotidiana e das preocupações familiares. Os festejos geralmente são emaranhados de significados, representações e simbologias. Como exemplo, os festejos juninos que aconteciam em Portugal, em séculos anteriores, e que foram trazidos para o Brasil. Tinham o cunho de agradecimento pela obtenção de uma boa safra. Festejava-se Santo Antônio, São João e São Pedro, como acontece até hoje no Brasil, principalmente na região Nordeste. Várias festas foram introduzidas pelos colonizadores portugueses, tanto as 89 Sobre o tema cf. Souza (2002); Matta (1979); Del Priore (1994). Ferlini (2001, p. 45); Reis, (2001). 124 cívicas como as populares. Durante o Império, eram muitas as ocasiões em que a realeza se encontrava. Nas aparições públicas, nos cortejos reais, procissões e comemorações cívicas – como a coroação, os festejos pela passagem do dia da Independência ou da Maioridade, de aniversários ou de falecimentos da realeza. Por outro lado, nas demais festas populares – como o Dia de Reis, do Divino, nas Cavalhadas, Congadas e Batuques – reis e rainhas contavam histórias diferentes dessa terra, de sua população e de seu destino. As “festas misturavam-se”: um ritual oficial era logo acompanhado por um batuque, assim como uma encenação de Cavalhadas. Em séculos anteriores, as festas populares realizadas principalmente por negros cativos e forros chamavam atenção dos brancos e estes geralmente as assistiam. Durante esses dias, as vilas eram invadidas pelos sons dos batuques, onde se reuniam negros de diferentes etnias, vindos dos engenhos e povoados, a fim de participar dos festejos. A permissibilidade das festas em relação ao encontro, a visibilidade, a coesão dentro de comemorações recriavam os padrões metropolitanos, dando a identidade desejada e trazendo o descanso, os prazeres e a alegria. Dessa forma, ao incorporar valores e normas da vida em grupo partilham-se sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários.90 Segundo Vainfas e Souza (2000, p. 58), se certas manifestações negras causavam medo, suas festas eram, por vezes, consideradas positivas no sentido de manter escravos e forros sob controle. No século XVII, o jesuíta Antonil aconselhava aos senhores de escravos que tivessem tolerância com os folguedos, bailes e reis negros de seus escravos. Segundo o jesuíta, negar-lhes o momento de bailar e cantar proporcionar-lhes-ia melancolia. De sorte que o melhor era deixá-los alegrarem-se em suas festas. As tentativas de proibição continuavam a esbarrar como sempre na necessidade de manter a atenção dos negros distraída da injustiça da sua condição servil. Nas representações, na interação entre as autoridades coloniais, as festas tornavam-se um momento em que os negros conseguiam fazer circular a forma como viam a si e a cultura que lhes tentavam impor. Ainda segundo Vainfas e Souza (2000, p. 58): Se as festas tinham caráter institucional, a ocupação do espaço público as revestia de novo caráter, e usos diferenciados daí surgiam, reavivando a 90 Cf. Del Priore (1994), Ferlini (2001, p. 45). 125 preocupação da Igreja em controlar os excessos e ordenar os comportamentos. O momento das festas era, muitas vezes, também o momento de bebedeiras, de acertos de contas, de vinganças, de crimes em que transpareciam as fraturas da comunidade. Mas não só com a violência e o derramamento de sangue se profanava o espaço sagrado das festas. Havia aqueles que não respeitavam o silêncio recomendado no interior dos templos, usando-o, ao contrário, como lugar de encontros e negócios, inclusive amorosos. A festa se constituía num espaço em que tudo acontecia ou podia acontecer, desde a alegria à tragédia. Muitas vezes as autoridades locais tinham que interferir para controlar os excessos dos festeiros. As pessoas em geral consumiam muito álcool e terminavam exagerando nas suas ações. Isto levava aos capitães das vilas e os governadores das capitanias a justificar a proibição das festas realizadas por negros, sob o argumento do consumo de bebida e da descontração exagerada dos seus participantes91. Em geral, a festa, seja de branco ou de negro, era imbuída do lado da alegria, mas tinham aqueles que iam com intenção de brigar, surgindo daí desavenças. Podia se transformar num espaço de acertos de contas de diferentes origens, como sugere Del Priore: A escolha do momento da festa para o acerto de contas não deixava dúvidas quanto a mais esta função das atividades festivas. A festa media as relações dos grupos sociais. Permitia que eles se solidarizassem mas também que aparecessem as fraturas e as feridas da vida comunitária. A violência emergia em vários níveis no interior da festa e era protagonizada por elementos de variadas camadas sociais. Acertos entre os “grandes” abriam espaços para acerto entre os “pequenos”. Escravos e acólitos, muitas vezes, resolviam com seus desafetos pessoais as pendengas que em outras oportunidades levariam a eles próprios para o aljube. Em meio ao tiroteio, à confusão da festa, à correria e à gritaria, ninguém poderia afirmar quem atingira quem, embora os mandantes fossem quase sempre visíveis para a maior parte da população reunida na igreja ou na procissão (1994, p. 121). Esse constituía mais um dos motivos para proibição de festas realizadas por escravos. Os capitães das vilas argumentavam que temiam à desordem e ao derramamento de sangue. Os escravos não se deixavam vencer pelas repressões as suas festas. Resistiam e faziam seus batuques à noite, com portas fechadas. A festa 91 Cf. Reis (2001). No referido artigo o autor discute os batuques negros e as transformações e continuidades quanto ao perfil dos participantes e atitudes de senhores e autoridades políticas e policiais diante da festa negra, na Bahia, entre o final do século XVIII e meados do século XIX; Silva (2001), examina formas de sociabilidades existentes entre corporações profissionais e comunidades étnicas na capitania de Pernambuco entre 1776 e 1814. 126 constituía um grito desafiador contra as dificuldades do cotidiano, representando um exutório para as tensões acumuladas contra as autoridades, fossem elas o senhor de escravos, o funcionário metropolitano, o governo português ou a Igreja Católica, conforme Del Priore (1994, p. 127). Nesse novo mundo, desconhecido, com valores culturais bem diferentes dos seus, os negros aos poucos se incorporaram a esse novo viver, principalmente através da religião católica. Criaram Irmandades, confrarias, praticavam batuques noturnos, procuravam alternativas de sobrevivência, na tentativa de viver melhor nessas terras da América portuguesa. A incorporação dos negros ao culto católico tem início ainda em Portugal, no século XVI e, posteriormente, é transplantada para a América portuguesa92. A organização de africanos e seus descendentes em irmandades leigas foi um dos padrões sociais comuns à vasta região que constituiu o universo de relações escravistas e coloniais em torno do Oceano Atlântico. Eles criavam perspectivas de sobrevivência e adaptação nesse mundo de além-mar. Também conseguiram incorporar elementos da cultura do branco, criando e recriando várias festas, que deram um toque de descontração e alegria à cultura brasileira. A escolha de líderes entre as comunidades negras existia sob a forma de eleição de reis ou governadores, festivamente, comemoradas com danças e ritmos africanos, em diversas localidades das Américas. A necessidade de se organizarem em associações étnicas e comemorarem festivamente a escolha de reis que detinham autoridade sobre o grupo e serviam de intermediários entre esta e outras esferas da sociedade colonial, foi por demais difundida como uma importação ou imposição dos senhores. Entretanto, várias foram as alternativas utilizadas pelos escravos para driblar o olhar dos brancos em relação aos seus rituais, muitos desses não entendidos pelo colonizador, o que dificultava a prática de seus valores culturais. 92 Saunders apud Souza (2002). Segundo Souza (2002 p. 160). “Foram os dominicanos que promoveram, durante a Idade Média, a devoção a Nossa Senhora do Rosário e a recitação do terço. A intensa ação evangelizadora dessa ordem religiosa é tida por quase todos os autores que estudaram as irmandades do Rosário como fator de disseminação de tal invocação entre os africanos. Além de um culto mariano associado às lutas travadas contra os pagãos, pois freqüentemente a vitória portuguesa na batalha de Lepanto era associada a Nossa Senhora do Rosário, a escolha da invocação remetia às características do rosário, elemento que ligava diretamente a Deus aquele que pedia. O Rosário de Nossa Senhora simbolizaria a oração, meio de despachar as petições de Deus e conceder o que lhes pediam”’. 127 As danças de terreiro dos escravos negros, designados batuques, são qualificadas comumente como diversão desonesta, sobretudo pelos representantes do poder político e religioso, manifestando-se o temor de que se tratassem de rituais pagãos e atuassem como fermento de desordem social e revolta (DIAS, 2001, p. 859-860). Esta constituía em mais uma das razões para proibição das festas de negros. No pólo oposto situavam-se os festejos públicos dos reis congos (congadas), considerados diversões honestas para os escravos e incentivada pelos senhores93. Os negros reinventaram formas de expressar sua cultura, seja reverenciando sua nobreza ancestral, perdida do outro lado do oceano, recompondo simbolicamente, em terras da diáspora os elos de linhagem rompidos no cativeiro. Ou ainda faziam seus batuques noturnos, com seus cultos afro-brasileiros – a religião ou seus sambas de terreiro – sua tradição, onde continuavam a manter seus rituais sagrados e profanos, reafirmando seus valores culturais e étnicos. [...] A festa foi referência básica de identidade étnica e também escrava, desde que se entenda que identidade não é ponto fixo da experiência de um grupo, como não é do indivíduo. Identidade também muda e é múltipla. O que permanece é seu sentido de alteridade e freqüentemente de oposição conflituosa. Daí porque toda festa negra, embora umas mais que outras, constituíram um meio de expressão da resistência escrava e negra, e, portanto motivo de preocupação branca (REIS, 2001, p. 340). A festa era o espaço das representações das diferentes culturas africana e portuguesa e possibilitava a construção das diferenças de identidades culturais e étnicas africanas, era um espaço de liberdade e de continuidade dos festejos africanos. Entretanto, apesar das proibições, as festas dos africanos continuaram dando um viés à cultura brasileira. A permissão de tocar e cantar chegou com o reconhecimento de que, por um lado, os escravos tornavam-se mais produtivos se lhes fossem concedidos desenvolver estas atividades lúdicas de tempos a tempos e de que, por outro lado, através destas danças sexualmente muito estimulantes, os escravos procriar-se-iam 93 Para Dias (2001, p. 869), trata-se de dois aspectos complementares da festa negra no Brasil: no terreiro a celebração intracomunitária recôndita, noturna, onde se reforçam, sem grande interferência ou participação do branco, os valores de pertencimento a uma matriz cultural e religiosa africana; na rua, a festa intracomunitária, em que o negro, por meio das danças de cortejo, busca inserir-se nas festividades dos brancos e ganhar certa visibilidade social, mediante a adoção de valores religiosos e morais da classe dominante. 128 com muita facilidade, aumentando a população escrava. A permissibilidade estava ligada aos interesses dos senhores. As opções pela permissão ou pela proibição de práticas sociais e culturais identificadas com a comunidade negra e suas culturas de origem estavam intimamente relacionadas com as situações nas quais os senhores se definiam por oposição aos escravos. Em momentos de maior tranqüilidade nas relações entre senhores e escravos, assim como nos espaços que permitiam formas pacíficas de convivência como as irmandades, festas e batuques eram permitidos e mesmo estimulados, eram entretanto, proibidos em outras conjunturas, de maior tensão e medo com relação as sublevações. Nessa conjuntura de proibições, ao final do século XVIII e início do XIX, para que suas festas fossem realizadas, era necessário que os escravos solicitassem permissão, por escrito, às autoridades locais. Foi o que ocorreu em 1786, com os devotos de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Salvador que solicitaram licença para realizar sua festa durante oito dias e para que pudessem dançar e cantar no idioma de Angola: Dizem os Pretos devotos da Gloriosa Senhora do Rosário da cidade da Bahia, que antigamente lhes era permitido para MAIOR, e qual o aplauso da festividade da mesma Senhora, máscaras, danças no idioma de Angola com os instrumentos concernentes, cânticos e louvores; e porque se acham privados; e em muitos países de Cristandade ainda se praticam e só neste existe proibição: Rogam a V. Majestade e por sua Alta Piedade e Real Grandeza, Serviço de Deus, e da mesma Senhora, se digne a conceder Licença aos Superiores para os ditos festejos, em razão de parecer muito do agrado94. O receio de que essas festas se transformassem em sedição era uma preocupação constante das autoridades, pois em tempos anteriores, a Colônia, havia passado por tal experiência. Geralmente durante as celebrações públicas, os escravos aproveitavam para se rebelar. Segundo Reis (1986, p. 87), Ao contrário dos rebeldes modernos, que concentram seus protestos nos dias de trabalho – a greve sendo o modelo típico -, os rebeldes escravos agiam principalmente durante o tempo de lazer. 94 Arquivo Histórico do Conselho Ultramarino, Lisboa. Capitania da Bahia, 1786, documento n. 12.235. Na transcrição do referido documento atualizou-se a grafia, exceto os nomes próprios e a pontuação. 129 Esses dias eram os mais temidos pelas autoridades que sentiam temerosas com a sedição, pois, para eles qualquer tipo de ajuntamento de negros era uma ameaça à paz urbana. Em Pernambuco, em 1811, tal atitude chegou ao extremo levando à proibição também das corporações profissionais e das comunidades étnicas africanas da vila do Recife e da cidade de Olinda (SILVA, 2001, p.328). Nesses cerceamentos ao mundo das representações religiosas negras que viviam os africanos, sofrendo repressões das autoridades locais, o dançar e o folgar já não era mais permitido. Senhores, capitães, governadores e reis consideravam as festas realizadas pelos escravos de “desonesta”, (TINHORÃO, 1972, p. 126-127)95 intracomunitária e noturna. Em contrapartida, a festa dos Reis Congos era considerada uma festa pública, extracomunitária, honesta e permitida pelas autoridades políticas e eclesiásticas, estando sob o olhar do senhor e das diferentes autoridades. Nessas festas, os senhores contribuíam fazendo doações e acompanhando os cortejos. Os batuques negros, tão proibidos pelas autoridades da época, deram origem, de um lado, aos candomblés, grupos organizados de culto afro-brasileiro (religião), de outro lado, aos batuques ou sambas de terreiro (tradição), como o Samba de Roda, o Samba de Véio e o Samba de Lata de Tijuaçu. Segundo Dias (2001, p. 859), os batuques de terreiro, que hoje se espalham pelo Brasil sob diferentes formas e estilos, mantêm em certa medida muitas das funções sociais que assumiram no passado, destacando-se o da crônica do “negro para o negro”, manifestada pela via de uma poética metafórica. Todavia, ao longo do período colonial, percebe-se a marginalização dessas manifestações afro-descendentes de terreiro, nutrida, pelo preconceito de setores hegemônicos da sociedade branca e suas instituições e pelo resguardo que as próprias comunidades impõem às suas práticas, visando à manutenção de códigos de compreensão interna ao grupo e à preservação de segredos de ordem religiosa. 95 Segundo Tinhorão, (1972, p. 121-127), “a expressão dança desonesta significava – do ponto de vista da boa moral estabelecida pelas elites do tempo – uma dança livre, desenvolta, propiciadora de eventual contato direto entre dançarinos de sexos diferentes, e de coreografia à base de negaças, volteios (como uma carrapeta”, dizia a Relação da Fofa), e acrescentada ainda que “diversos movimentos do corpo”, conforme escrevia o Conde de Pavolide em sua descrição dos bailes de pretos, que “dançam e fazem voltas como arlequins”. 130 Os negros inicialmente preferiram cultivar seus batuques no estilo das diferentes nações africanas de onde se originavam. Quando, porém, os brancos perceberam que muitos desses batuques não eram simples danças de diversão, mas práticas rituais denominadas calundus, a perseguição a essas manifestações teve início e os negros foram logicamente obrigados a adotar, pelo menos de forma ostensiva, os gêneros de danças impostos pelos brancos.96 3.2 “Samba crioula/que branco não vem cá/se ele vier/pau vai levar”: Versos, ritmos e diversão - o Samba de Lata de Tijuaçu Na perspectiva de conceber a festa como um momento de confraternização e de sociabilidade, o Samba de Lata de Tijuaçu surge, também, atendendo aos valores sociais de solidariedade e de sobrevivência. Assim sendo, essa manifestação cultural representa as marcas de um viver rural e de uma herança africana expressada através da dança e dos ritmos presentes. Expõe e comunica um saber ao qual devem estar sensíveis as gerações presentes e futuras, incitando o corpo a vibrar ao ritmo do cosmos. A dança enseja uma meditação, que implica, ao mesmo tempo, corpo e espírito, sobre o ser do grupo e do indivíduo, sobre arquiteturas essenciais da condição humana e das experiências cotidianas dessa população (SODRÉ, 1988, p.124). O samba rompe o fluxo da normalidade, trazendo alegria e prazer para seus participantes, e dá continuidade à herança deixada pelos ancestrais africanos. Segundo Sodré (1988, p.123), a dança é um jogo de descentramento, uma reelaboração simbólica do espaço. O canto e a dança sempre estiveram presentes na natureza dos africanos em diferentes momentos do seu cotidiano. Machado Filho (1943, p. 61)97, estudou 96 97 Machado Filho, apud Tinhorão (1972. p. 121). Machado Filho, apud Tinhorão (1972. p. 150). 131 algumas sobrevivências de vissungos98 na área de São João da Chapada, município de Diamantina (sua atenção foi despertada pelo fato de a maioria dos versos serem cantados ainda com palavras africanas): Os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Tinham cantos especiais para a manhã, o meio dia e à tarde. Mesmo antes de o sol nascer, pois em regra começava o serviço alta madrugada, dirigiam-se à lua, em uma cantiga de evidente teor religioso.99 A utilização de palavras na língua africana representava a preocupação dos escravos em ocultar o sentido de suas conversas cantadas, e durante o trabalho, a necessidade de se comunicarem sem ser entendidos pelos brancos ou mesmo pelos crioulos e mestiços libertos, num evidente desejo de preservação de seus costumes e de sua cultura. A utilização do canto como meio de comunicação, demonstrava diferentes momentos de sua vida cotidiana. Quando perguntados sobre o Samba de Lata, os informantes expressaram suas lembranças e falaram sobre essa manifestação e as condições de vida da população de Tijuaçu no período das grandes estiagens. Narram que, com as secas que se abateram sobre a região, o samba possibilitou alternativa de sobrevivência. Nesse período, com as roças escassas ou quase inexistentes, sem nenhuma produção, sem perspectivas de trabalho, pessoas morrendo de fome e de sede, aqueles que ficaram em Tijuaçu o utilizaram como alternativa de sobrevivência. Apresentavam-se à margem da estrada (BR entre Senhor do Bonfim e Salvador), objetivando receber doações. Os depoentes, em vários momentos narraram o seu sofrimento devido as diversas secas que se assolaram sobre Tijuaçu, as quais foram contemporâneos e contaram que na época de estiagem, alguns moradores eram obrigados a emigrar para outras cidades ou outras regiões. Aqueles que permaneciam, faziam uso do 98 De acordo com Tinhorão (1972, p. 128): “O autor de O Negro e o Garimpo em Minas Gerais dá como tradução de vissungo a palavra fundamento, que até hoje, no vocabulário da dança meio religiosa, meio pagã do jongo, denomina o sentido oculto nos versos compostos sob a forma de metáforas. Isso se explica pela necessidade que tinham os escravos de se comunicarem sem ser entendidos pelos brancos ou mesmo pelos crioulos e mestiços libertos, num evidente desejo de preservação de seus costumes e de sua cultura”. 99 Machado Filho apud Tinhorão (1972, p. 150). 132 samba como alternativa de sobrevivência. Assim, os depoentes costumam ligar o início do Samba de Lata com a pobreza, a seca e a natureza: O início do Samba de Lata, veio da pobreza. O povo mais véio cantano. Quebravam licuri100, quebrano bago de mamona e acendiam fogo com aquelas frecha de licurizeiro, com aqueles talo de mamona. Eles faziam aquela rodona, aí essa muié que chamava Genoveva começava a contar estória, começava a bater lata e as minina, começavam. Pegavam umas latas e faziam esse samba foi gerado assim. Foi assim, quebrano mamoninhas verdes, licurizinhos, com os filhos cantano, batendo lata, os meninos tudo… Esse samba foi gerado assim, há mais de 60 anos. Essa rama que ta aí mais elas tudo já morreram começaram da pobreza. Esse Samba de Lata de Tijuaçu aqui do Alto (Fala de Dalva, entrevistada pela autora em 26 de dez. de 1998, em sua residência – Fazenda Alto Bonito). O Samba de Lata está diretamente ligado às condições de vida da população, pois os moradores relatam que fizeram uso de sua criatividade, dando-lhe uma nova roupagem e utilizando-o como fonte de renda e de lazer. Narram que os primeiros momentos do samba foram marcados como uma atividade espontânea, pois estavam todos ocupados, cada um com seus afazeres na roça e no percurso para buscar água, começaram a cantar e a bater palmas. Muitas das festas que ocorreram durante o período colonial, estavam ligadas ao universo da economia, tendo suas origens nos ritos que buscassem interferir nos ciclos naturais para o provimento da subsistência. Eram momentos de agradecimento ou de súplicas à natureza, elos de ligação entre o imponderável, visto como divino, sagrado e o homem impotente (FERLINI, 2001, p. 449). De que forma essa manifestação possibilitou angariar fundos para a sobrevivência da população? Com a escassez de alimentos, um grupo de pessoas formado por mulheres passou a reunir-se, e a cantar e dançar próximo à estrada velha que fazia a ligação entre o distrito de Tijuaçu e Salvador. Esses cantos despertavam a atenção de motoristas que trafegavam por ali, motivando a redução de velocidade de seus veículos para oferecer algumas moedas e alimentos. Dessas doações, segundo os narradores, muitos moradores conseguiram sobreviver às secas. Eles podiam simplesmente ficar à margem da estrada e mendigar, como fizeram muitos, entretanto, criaram alternativas de sobrevivência, utilizando o samba como meio de sobrevivência. 100 Ouricuri, planta típica da região. 133 O samba já existia em Tijuaçu muito antes dessas secas, como em outras comunidades negras rurais. Com a estiagem uma outra função foi dada a essa manifestação cultural e a mesma se fortaleceu e se concretizou enquanto principal representação desse perímetro quilombola. Em Tijuaçu, as atividades cotidianas são mescladas com a musicalidade. Como já foi discutido, no caminho da roça ou na ida para pegar água na Lagoa do Cocho, grupos de mulheres quando se dirigiam pela manhã para abastecer suas casas, paravam para descansar (já que a Lagoa do Cocho ficava distante da localidade), e nas paradas para o descanso, faziam a roda do samba, dançavam, tiravam versos e cantavam: Amarra o bode, amarra o bode, Na gaia (galha ou galho) do calumbí Meia-noite, meia-noite Não deixou ninguém dormir Ô, pisa no milho Peneraram ô xerém Ô, pisa no milho Peneraram ô xerém Esse momento era de lazer, descontração, alegria e de descanso, constituindo uma pausa das obrigações domésticas. O Samba de Lata surgiu no tempo dos avós da gente. Quando eles iam assim, no tempo da seca, iam para roça, para fonte. Eles iam aí no meio e depois eles descansavam. Aí eles iam tirar um canto, aí começavam a bater lata e cantavam. Aí de algum tempo para cá, acabou, o povo foi morreno, uns né? Foi se liquidando outros. Aí um tempo esqueceram um pouquinho, depois a gente foi resgatando esse negócio aí. Eu mesmo comecei a bater lata com oito ano. (Fala de Marinalva Santos da Silva, entrevistada pela autora em de 10 jan.de 2002, em sua residência em Quebra Facão). [...] As mulheres iam buscar água muito distante em cuias, potes, latas, e no caminho elas começaram a cantar, um canto que de repente, este significava o fortalecimento delas, a coragem. Elas cantavam dessa forma: “morreu mano, correu, o galo de fama é nós mesmo”. E assim batiam as latas secas que as mesmas levavam. Quando voltavam com as latas vazias cheias de água (pegavam água num lugar bem distante), descansaram um pouco e depois fizeram uma roda. Começaram a bater palmas juntamente com a lata. Daí, houve o ritmo acelerado. Entrou um homem e uma mulher na roda, dançando ritmo da lata e palmas. Tinha uma mulher pisando ouricuri no pilão e aí foi à vez dos pés e ginga do corpo, as pancadas do pilão e o batimento da lata. As pessoas dançavam com os pés batida certa, cada um tinha uma ginga 134 diferente, dando no mesmo ritmo, passo curto e o movimento do corpo. Isso aconteceu e continua até os dias de hoje101. O Samba de Lata está ligado às relações e ferramentas cotidianas, simbolizando lutas e resistências desses afro-descendentes moradores da zona rural. O samba construiu a mediação, a confraternização, laços de união e solidariedade entre os seus componentes. Senhor Antero que também foi testemunha dessa manifestação, emite o seguinte parecer: Quando eu me intendi, já existia esse samba. Agora quem primeiro produziu o Samba de Lata aqui, chamava-se Liberta. A Liberta no Macaco e a Genoveva aqui no Alto. Foi o primeiro a começar o Samba de Lata. Esse senhor, já com idade de 80 anos, narra que já conhecia o Samba de Lata e as pessoas que iniciaram essa manifestação cultural. O que vem confirmar que o samba chegou a Tijuaçu juntamente com os primeiros moradores. A solidariedade, o partir e o partilhar com os seus companheiros faziam parte do espírito africano.102 Na memória dos depoentes, Liberta e Genoveva, moradoras do Alto Bonito, foram as iniciadoras do samba. Para Eschwege103, o batuque, o samba, as variações do jongo são ritmos incorporados dos africanos. Segundo Melo104 o samba: […] É caracteristicamente africano, sofreu desde logo o influxo português, através do mulato, ganhando em languidez e perdendo em barbaria. Assim, chulas, sambas, cocos, lundus, cateretês, tangos e as múltiplas variantes, tais como mundinhos, choralinhos, caxambas, corta-jacas, congos, sarambiques, cucumbis e quicumbes, alguns puramente negros, outros negro-portugueses (mulatos), negro-indígenas (cafusos) e negro-espanhóis, como os lundus, os tangos e as tiranas. 101 Relato local sobre o Samba de Lata. O referido relato documental encontra-se na sede da Associação dos Quilombolas de Tijuaçu e Adjacências. 102 Não se pode esquecer que a questão das “nações” vai ser encarada com seriedade, uma vez que a solidariedade tribal levava os escravos a protegerem seus conterrâneos, a conspirarem com eles e, por outro lado, fazia com que grupos antagônicos se espionassem mutuamente. Isso impediu que inúmeras revoltas tivessem êxito. Assim, o branco tinha um maior interesse de colocar pessoas de diferentes etnias no mesmo espaço, a fim de proteger-se. Sobre nações, cf: Scarano (2002, p. 14); Reis (2004); Ramos (1979). 103 O Barão W. L. von Eschwege, esteve no Brasil em 1809 a 1821, a serviço da Coroa para reorganizar a mineração, publicou Pleito Brasilienze e outras obras, a maioria das quais sobre minerais, mas também sobre os locais onde escreveu, apud Scarano (2002). 104 Mello apud Abreu (2001); Viana (1995); Mello (1908). 135 Esse espírito festivo dos africanos deu novo sabor à música popular brasileira. O samba é uma invenção brasileira com uma forte influência africana. Como sugere Sodré,105 “os diversos tipos de samba (samba de terreiro, samba duro, partido alto, samba cantado, samba de salão e outros), são perpassados por um mesmo sistema genealógico e semiótico: a cultura negra”. Foi graças a um processo dinâmico de seleção de elementos negros que o samba se afirmou como gênero-síntese, adequado à reprodução fonográfica e radiofônica, ou seja, à comercialização em bases urbano-industriais. A aculturação possibilitou ao samba um ritmo meio sensual, meio rebolado, mais voltado ao jeito de ser do brasileiro. Os batuques ou sambas de terreiro106 cuja existência é anterior à formação dos candomblés Congo-Angola seriam, pois, representantes de antigas formas religiosas bantas no Brasil. Esses batuques noturnos posteriormente originaram os vários sambas existentes hoje no Brasil. Quando da realização do samba de terreiro, os escravos formavam um círculo no qual saltavam e bamboleavam o corpo com um saracoteio dos quadris. No centro desse círculo, encontrava-se um(a) dançarino(a) que, ao querer ser substituído(a), convidava outro elemento do círculo a exibir-se no centro, dando-lhe a chamada “umbigada” (contato dos dois ventres, umbigo contra umbigo). A essa arte de dança, dava-se o nome de semba107, designação que é considerada antecedente ao termo “samba”, este ainda em estado embrionário na época. O Samba de Lata reacendeu os batuques das tradições e festas, que não foram apagadas na diáspora africana, pois os batuques têm como característica marcante à essencialidade que marca a poética afro-brasileira. O molejo, o gingado e a alegria são características perceptíveis dos componentes do Samba de Lata. Dentro 105 Para Sodré (1998. p. 35). “O samba desenvolveu-se no Rio a partir de redutos negros (os baianos do bairro da Saúde e da Praça Onze). Nas festas familiares, tocava-se e dançava-se o samba em seus diversos estilos, para o divertimento dos presentes”. 106 Carneiro (1974), foi o primeiro autor a fazer uma abordagem classificatória das danças herdeiras do Batuque Congo-Angolës, agrupando-as num grande complexo nacional dos Sambas de Umbigada. A umbigada ou a menção desse gesto, característico de danças de lúdica amorosa banto-africanas (por vezes associadas às cerimônias de noivado, o lembamento, seria o traço de união entre essas manifestações geograficamente dispersas). O autor menciona trinta diferentes danças, em onze estados brasileiros. 107 O termo brasileiro samba segundo Carneiro, talvez provenha da palavra semba com a qual se designa, em Angola. Op., cit., p. 201. 136 desse universo marcado pela oralidade, o tempo da diversão não se deixa exaurir. Nas letras dos seus cantos, falam de episódios e passagens de seu cotidiano e de animais que habitam o seu universo,108 e de episódios do passado que são desconhecidos por alguns festeiros, mas foram repassados pela oralidade e hoje é cantada pelo grupo. Temos como exemplo a letra abaixo. Outras ainda pontuam o perfil de vivências de um mundo rural, marcado pelas relações de trabalho, familiares e de amizade. Queima Mará Queima Mará Queima mará, queima Mará queima, queima Queima mará, queima Fogo, no mará Mará queimou Segundo Ferreira, a palavra “mará vem do tupi “ma‘ra”, é uma vara que serve para impelir a canoa, quando esta é posta em movimento, e também para prendê-la no porto, fixando-a no chão”109. A referida letra revela vivências cotidianas de povoações que viveram próximas à região litorânea ou a rios - onde se utilizava canoa e o Mará - os referidos versos foram passados para o Samba de Lata, sendo uma das letras mais cantadas pelo grupo. Mas queimando o mará, o que será da canoa e das pessoas que estão dentro dela? O mará é uma peça importante na função da canoa. Queimando-o, como se pode fazer parar a canoa ou movimentá-la? Pressupõe-se que em algum momento, por alguma disputa, os escravos necessitaram queimar o mará, surgindo daí esse canto, que chegou ao Samba de Lata através dos primeiros habitantes. O que significa 108 Carneiro (1991.p. 209). Sugere que “os sambas nos revelam aspectos interessantíssimos da vida do negro no Brasil. Antes de tudo, o mundo cultural limitadíssimo, ainda com vestígios da adoração das árvores e dos animais (fitolatria, totemismo), como o coqueiro, a borboleta, a formiga, etc., e mesmo da natureza exterior, dos elementos (o mar), lado a lado com a adoração fetichista da Senhora das Candeias (identificada com a Oxum dos cultos afro-brasileiros) e o respeito pelo padre, que vem realizar os casamentos, sem esquecer a parte da superstição (“a figa de Guiné”, contra o mauolhado). Por outro lado, como causa de tudo isso, vida material miserável. A pindaiba, isto é, a falta de dinheiro, de possibilidades econômicas, a tanga mais absoluta, em contrate com a vida folgada do senhor”. 109 Informação retirada de Ferreira (1975. p. 885). 137 para os participantes de Tijuaçu a palavra mará? O que está no seu imaginário? Alguns atribuem o significado acima, outros apenas dizem que o canto sempre existiu em Tijuaçu, que seus pais e avós já cantavam, não sabendo o seu significado. Outros versos estão incorporados ao Samba de Lata e foram herança de seus pais e de seus avós, outros são composições dos membros do grupo e que são criadas no momento da apresentação do samba, memorizados através da repetição. O estilo do canto é responsorial (alternando solo-coro)110, geralmente as letras formam de pequenos versos, compostos de frases repetidas. E assim eles cantam: Aruê tá Aruê tá Aruê tá, aruê tá tá (bis) Menino da calça verde me diga quem costurô Aruê tá, aruê tá tá Eu quero escrevê meu nome no retalho que sobrô Aruê tá, aruê tá tá Que céu tão estrelado com vontade de chovê Aruê tá, aruê tá tá Aqui está o meu benzinho somente para me vê Procurei no ABC uma letra da minha paixão Só achei a letra lê coloquei no coração Menino da calça branca me diga quem costurô. No período escravista, o espaço da liberdade que se criava com a dança no terreiro representava o momento privilegiado para a comunicação interna da comunidade cativa, veiculando-se todo tipo de mensagens, articulações, críticas e reivindicações por meio da crônica social cantada. Segundo Dias (2001, p. 875). Surge, assim, uma linguagem poética metafórica muito peculiar, que tira partido, justamente da percepção de que a cultura hegemônica considerava os 110 Segundo Dias (2001, p. 865): “ a forma de compor e de cantar é o estilo do Jongo, que constitui numa dança de roda, em alguns casos com par solista ao centro, cujos instrumentos são o tambu (tambor maior e o candongueiro (tambor menor) e a inguaia (chocalho de cesto). Que continua a ser dançado em ocasião de Treze de Maio ou de algumas festas do Catolicismo populares, destacandose as juninas e do Divino Espírito Santo”. 138 negros incapazes de maiores refinamentos de expressão. Metaforização do discurso verbal, pela elaboração de uma linguagem dúbia construída com imagens simples, tomadas à realidade imediata – a natureza, os animais e plantas, o trabalho na roça – cuja decifração era restrita á comunidade que festejava sob os olhos e ouvidos atentos dos intendentes. Ou mesmo dos brancos que se aproximavam da roda com intenções de fruição. Ao passo que algumas danças de escravos, como os lundus, ganham os salões da casagrande, do lado de fora continua a se desenvolver uma poética de compreensão interna ao grupo, que ainda hoje se atualiza nos obscuros pontos do candomblé e do jongo. E porque não dizer o mesmo dos diferentes sambas existentes no Brasil, ainda considerados dança de negro, e que continuam do lado de fora, nos terreiros, distantes da casa-grande? Com uma linguagem simplória, as vivências cotidianas são incorporadas às letras das músicas do Samba de Lata. O cotidiano tem se revelado na história social como área de improvisação de papéis informais novos e de potencialidade de conflitos e confrontos, em que se multiplicam formas peculiares de resistência e luta. Trata-se de reavaliar o político no campo da história social do dia-a-dia.111 Nesse universo, as letras falam de chuva, paixão, objetos conhecidos da população, temas amorosos ou picantes ou associados à resistência, ao processo social e a natureza. Sobre a continuidade cultural de comunidades aldeãs da Idade Moderna Burke (1998, p. 109), emite o seguinte parecer: Em comunidades aldeãs, onde a maioria das famílias ali permanecia ao longo das gerações, vivendo nas mesmas casas dos pais e avós, lavrando o mesmo solo, é razoável supor uma grande continuidade cultural. Nesse tipo de comunidade, as tradições orais provavelmente eram estáveis e, assim, constituem um guia mais confiável para o passado do que os historiadores modernos se dispõem a admitir. Existem ainda hoje homens que moram nas Terras Altas ocidentais, ocupando a mesma terra que ocupavam seus antepassados no século XVII e possuindo tradições familiares que remontam a essa mesma época. Essa ligação familiar, a estabilidade das relações e a permanência no espaço concorreram para uma continuidade cultural, muito presente em comunidades rurais. A população de Tijuaçu vivencia essa continuidade cultural dado às circunstâncias das 111 Cf. Dias (1995. p. 15). Na referida obra, a autora fez um estudo do quotidiano dos escravos, tal estudo vem desvendando uma experiência cumulativa de improvisação, aculturação e resistência ao poder e vem transformar a historiografia social da escravidão. 139 relações familiares, de trabalho e à tradição oral. A roça faz parte da terra, a terra é a casa do homem. A roça e o território confundem-se. A roça, como o território, é administrada pelo grupo, integrada pela extensa família, cuja terra pertenceu aos seus ancestrais (BAIOCCHI, 1999, p. 94). As tradições orais mudam ao serem transmitidas. Incidentes ocorridos com séculos de diferença podem combinar na mesma versão ou questões modernas podem ser projetadas no passado112. Não há uma transmissão, nem um viver estático sobre as vivências do ontem. Elas são incorporadas às necessidades do momento. A transmissão da cultura e dos diversos fazeres da comunidade é passada para os mais novos através das histórias contadas pelos mais velhos sobre suas vivências e sobre as experiências de vida de outros que viveram no passado, constituindo-se assim num aprendizado diário. Segundo Burke (1989, p. 137), estudos modernos sobre os portadores de tradição sugerem que alguns são “fiéis na incompreensão”, conservando frases que não entendem, enquanto outros não são dominados pela tradição que conservam e sentem-se livres para reinterpretá-las segundo suas preferências pessoais. Na maior parte dos casos, eles não decoram a cantiga ou a estória, mas recriam-na a cada apresentação, procedimento este que dá muito espaço para as inovações. Daí que, como disse o folclorista Phillips Barry (1961), “existam textos, mas não o texto: árias, mas não ária”113. Outra especificidade da cultura de Tijuaçu e que está presente na linguagem expressada pelos moradores e nas letras do Samba de Lata, diz respeito à forma de pronunciar alguns vocábulos. A pronúncia de algumas palavras possui uma entonação diferenciada. Esta é uma questão que precisa ser pesquisada por estudiosos da Lingüística. Sua pronúncia é caracterizada pela oxitonização das palavras, ou seja, costumam acentuar sempre a última sílaba, ex.: custurô, pegô, namorô, caminhô, 112 Burke (1989. p. 109-110). O autor comenta sobre as tradições orais em relação ao ofício do historiador, afirmando: “Contudo o historiador que tem consciência de estar empregando uma abordagem indireta lembrará de dar os descontos. Ele confiará no método regressivo mais para as estruturas do que para os detalhes, mais para interpretação do que para definição das atitudes. Seu problema básico continua a ser o de saber o quanto atribuir á transformação num caso qualquer, o problema de fazer a ligação entre as duas abordagens”. 113 BARRY apud BURKE (1989. p. 137). 140 pegá, entre outras.114 Outra característica desse falar diz respeito à repetição da primeira sílaba, ex.: do, dominado, ca, caminhando, entre outras palavras. Nas diferentes entrevistas realizadas, percebe-se essa forma de falar da população, principalmente dos mais jovens. A repetição da primeira sílaba e a pronúncia forte da última sílaba. Através da improvisação e da repetição, os componentes do Samba de Lata incorporam seu aprendizado, criando rituais e reverências de acordo com o momento vivido. E nas diversas apresentações eles cantam: Ó no entrar da porta Eu vi foi gente boa Eu vi foi gente boa (bis). Segundo Marcelo Santana115: Cantiga essa que foi cantada no início do samba, quando os sambistas homenageavam os senhores, dono da casa, ou dono do salão, eles louvavam com esse canto (entrevistado pela autora em de 6 out. De 2005, em Senhor do Bonfim). Outro verso cantado também pelo grupo, sendo o canto inicial, constitui um pedido de licença ao dono da festa, ou alguém de posição, que esteja presente no momento da apresentação. Para iniciar o samba os festeiros cantam: No seu salão para eu vadiar (bis). Ó dono da casa me dê licença Outra característica marcante na construção das letras do samba, que também se encontra no jongo e nos rituais do candomblé são os dois versos, um cantado pelo solista e o outro pelo coro, que pauta pela economia de meios expressivos, pela forma curta e pelo sentido concentrado. Sobre essa questão, Dias (2001, p. 876) esclarece: 114 Cf. Carneiro (1991, p. 201-205) Nos versos analisados por este autor, sobre os diferentes sambas, o mesmo chama atenção sobre a construção de algumas letras que apresentam também oxitonização. Certamente essa pronúncia seja uma característica dos referidos sambas, que tem como objetivo dar uma maior entonação as últimas sílabas. 115 Professor da Rede Pública do Município de Senhor do Bonfim e Filadélfia e aluno do Curso de Formação de Professores da UNEB – Pedagogia para séries iniciais. 141 Esses traços aproximam o ponto da máxima, do provérbio, forma expressiva que tão bem traduz o pensamento africano tradicional, síntese de uma reflexão sobre um mundo estável e hierarquicamente ordenado. O hábito de se exprimir por locuções proverbiais, caro aos griots, guardiães das tradições orais na África, teria provavelmente influenciado, em terras de exílio, a poesia dos terreiros e senzalas. Naturalmente, as novas condições de vida impõem sentidos diferentes para os pontos, mas sobrevive a idéia básica da formulação sintética e conotada. O canto abaixo é comum nas rodas de samba no Brasil desde o período colonial e é encontrado em diversas partes nos diferentes folguedos e festas de reminiscências escravas, inclusive em Tijuaçu. Samba crioula Que o branco não vem cá Se ele vier Pau vai levar”,116 O referido canto integra uma forma de dizer ao branco que o espaço e aquele momento pertencem somente ao negro e que este não vai tolerar qualquer tipo de intromissão. Pode-se perceber também uma celebração de autonomia e de delimitação de espaço, de cultura e de vivências. Graças às artimanhas próprias do camaleão,117 a festa no terreiro garantia uma relativa privacidade à comunidade escrava, configurando contexto propício ao fortalecimento dos valores de identidade – o querer ser negro, manter-se negro dentro de uma sociedade dominada pelos brancos. O desafio constitui a forma suprema de afirmação do poder do negro, numa inversão simbólica da correlação de forças: desde os tempos da escravidão, desprovido de bens materiais, ele foi capaz de triunfar sobre seus supostos dominadores pela força da espiritualidade e da arte. Nesse contexto, o negro escravizado conseguiu manter traços de sua cultura e o fortalecimento de seus valores de identidade. Nas diversas entrevistas, os depoentes fizeram referência às diferentes festas que aconteciam em Tijuaçu, das quais não permitiam que os brancos participassem, conforme comunicam os versos acima, como também as festas de branco, negro não participava. No terreiro onde 116 Segundo Dias (2001, p. 880), estes versos fazem parte do Candomblé da Irmandade do Rosário de Jatobá. Encontra-se também no folguedo alagoano conhecido como quilombo e também no samba de roda dos quilombolas do Rio das Rãs na Bahia, cf: Carvalho (1995. p. 55 e 65). 117 Na poética das senzalas, o termo camaleão designa o negro escravo que aprende a usar o recurso de mudar de atitude, colorindo-se conforme o contexto. 142 dançaram seus avós, o negro é agente de sua história e senhor de uma cultura própria e peculiar. O terreiro lhe pertence, não permitindo que pessoas estranhas comunguem de suas manifestações culturais. Gestos, danças, cantos e expressões que não se deixaram abater com a diáspora africana se fazem presentes no cotidiano desses afrodescendentes. Quando o grupo de festeiros “faz o samba” em Tijuaçu, o espírito festivo e descontraído invade a praça principal da comunidade negra e não tem hora para findar. O Samba de Lata, por suas dificuldades cotidianas incorporou como instrumento musical um instrumento de trabalho – a lata de zinco -, uma característica que o diferencia de outros sambas. Enquanto nos diferentes sambas, encontram-se como instrumentos musicais a viola, o chocalho de cesto, o violão, o cavaquinho, e o tambor118. A lata de zinco, além de servir como instrumento musical, é usada também para armazenar querosene, alimentos e transportar água. Como foi discutido anteriormente, a incorporação da lata foi uma adaptação do objeto como instrumento musical, dado a situação de pobreza da população que não tinha recurso para confecção ou compra de um outro instrumento. E mesmo com o passar dos tempos, a tradição continuou. Não houve incorporação de outros instrumentos, a lata continua sendo o único instrumento musical utilizado pelos sambistas do Samba de Lata. O Samba de Lata conquistou diferentes espaços, passando a representar a principal manifestação cultural de Tijuaçu e de Senhor do Bonfim. Um grupo que antes tinha o samba como uma brincadeira, uma forma de lazer e de diversão, passou a constituir-se como grupo cultural. Assim, o grupo passou a se apresentar durante as festas juninas do município de Senhor do Bonfim no início da década de 70 do século passado. Posteriormente, foi convidado para apresentação em outros eventos do município – desfiles cívicos e escolas da região, por exemplo. Atualmente, são vários 118 Segundo Dias (2001, p. 869), ”na África tradicional, tambor é um vínculo a unir os homens entre si e estes às divindades. Ponto focal das comunidades e suas forças, arauto de soberanos e orixás, ele próprio é de essência divina. Tambor junta a força vital dos três reinos da natureza: a do animal, que lhe dá o couro com a do vegetal, que lhe fornece a madeira, com a dos minerais metálicos que fixam tudo no lugar: um ser de energia plena. Entre os grupos afro-descendentes da região Sudeste, como os que praticam o jongo e o candomblé, um índice da importância que assumem os tambores tradicionais e a utilização do termo ingoma – do banto ngoma, tambor para se referir tanto aos instrumentos quanto ao evento musical e coreográfico que estes acompanham ou ao próprio grupo ou comunidade dos dançantes, extensão semântica, aliás, corrente entre as culturas da África banta. Os herdeiros dessas tradições consideram-se, pois, ‘comunidades do tambor’”. 143 os convites que recebem de diferentes órgãos e cidades. Dessa forma, no caminhar das diferentes fronteiras, o grupo de sambistas, em sintonia com a demanda, vai conquistando espaço enquanto principal manifestação cultural do município. Essa nova situação gerou um repensar quanto à reestruturação e organização do grupo, no sentido de que a partir de então, deveria exigir a cobrança de determinada quantia para a apresentação do grupo. Isto pelo fato de se tratar de trabalhadores rurais, que ficam prejudicados em seu orçamento quando se afastam do trabalho. Há uma visibilidade que passou a ser percebida, também, por outras cidades e outros órgãos estaduais, como é o caso da TV Educativa do Estado da Bahia, que em 2003 propõe ao grupo do Samba de Lata a gravação de algumas músicas e um CD, dentro do projeto que a emissora estava desenvolvendo: “Bahia, Singular e Plural”119. Também os repórteres da TV Regional “São Francisco”, com sede em Juazeiro (BA), em várias oportunidades foram à Tijuaçu para gravar entrevistas com os participantes do samba e fazer matérias sobre as manifestações culturais desse distrito. A TV Bahia, através do “Programa na Carona”, em setembro de 2005, fez uma reportagem sobre o município de Senhor do Bonfim, incorporando como destaque as manifestações culturais de Tijuaçu, sendo o Samba de Lata a principal. Como se dança o Samba de Lata? Como é o seu gingado? Para dançá-lo, é preciso que a pessoa tenha molejo no corpo, saiba sambar, cantar e tenha muita disposição para participar da roda do samba, são requisitos básicos para participar do Samba de Lata. Era costume entre os moradores fazerem roda de samba quando estavam desempenhando diferentes atividades, seja na roça, nas festividades e comemorações. Em qualquer lugar, a qualquer momento, um grupo de pessoas podia se reunir, fazer uma roda e começar a cantar e dançar. Não existia um ritual rígido – o samba era uma atividade espontânea, como diziam os depoentes: “uma brincadeira em que todos participavam”, ou ainda: “quando se começa a sambar 119 O Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, vinculados à Secretaria de Cultura e Turismo, gravou vários CDs com músicas de diferentes manifestações culturais existentes no Estado da Bahia. Estes contêm registros de vozes e sons produzidos por 476 artistas da cultura popular. No projeto Bahia, Singular e Plural foram gravados oito CDs e há o registro de uma diversidade musical e genuína de 26 municípios baianos das regiões Nordeste, Piemonte da Diamantina, Baixo Médio São Francisco, Litoral Norte, Irecê, Oeste, Médio São Francisco, Recôncavo e Região Metropolitana de Salvador. 144 não se quer mais parar, se amanhece o dia”. A percussionista inicia o samba dando um toque na lata de zinco e a partir daí tem início a roda de samba. Os participantes, com os pés fazem um passo curto que é acompanhado da ginga do corpo, do movimento dos braços e do canto, e, marcado com as palmas e a batida da lata. Da roda do samba, todos participam e funciona da seguinte forma: entra um componente no círculo (que pode ser mulher ou homem), dançando no ritmo da percussão marcado pela batida da lata e das palmas, depois de apresentar seus passos, tira um festeiro da roda e o convida para ocupar o seu lugar. O corpo constitui o alvo do ritmo e da própria dança. A percussionista tira os versos e outros componentes fazem o coro. Dessa forma, homens, mulheres e crianças cantam, dançam e fazem a festa. Dançam com os pés na batida certa, passo curto, girando o corpo. Nesse momento, todos cantam, sambam e o grupo se diverte, contagiando de alegria o ambiente120. A foto da página seguinte mostra o grupo em movimento, fazendo uma das suas apresentações. Observando a referida foto tem-se a impressão que os sambistas estão flutuando, embalados pelo ritmo da música. Homens, mulheres e crianças reunidos numa roda de samba, ao ar livre, embaixo de uma árvore, ao sol causticante de um sábado à tarde, não perdem a oportunidade de fazer o que mais gostam - sambar. No ritmo do samba, no bater dos pés, a poeira levanta, o suor escorre por seus corpos, mas eles não param, sambam no ritmo frenético das palmas e da lata de zinco. 120 CF, Vainfas e Souza (2000. p. 56-57). Segundo os autores: “As danças, que também foram usadas pelos jesuítas como instrumento de catequese dos índios e negros, reaparecem nas festas com roupagem profana. Entre essas danças estavam a ‘chegança’ – que celebrava as lutas entre os cristãos e mouros –, a ‘chula’, os ‘cocos’ – de influência africana, em que os dançarinos ficavam em roda e um solista no centro fingia dar ou dava umbigadas em um parceiro escolhido –, os ‘congos’ – bailado dramático que misturava tradições africanas e elementos ibéricos; entre todas, o que se pode apontar de comum era a possibilidade que se abria aos populares de participar do culto católico, dando a este um outro caráter que não o formal, pondo em risco a estética religiosa desejada. Não raro essas danças foram consideradas imorais, pecaminosas, e a elas se quis normatizar”. 145 Foto n° 12. - Apresentação do Samba de Lata, no povoado de Quebra Facão. Fotografo:OLIVEIRA, Nivaldo. Maio de 2003. O depoimento abaixo descreve alguns percursos do samba: No samba, a gente fazia a nossa diversão. A gente ia pro samba, aquilo era diversão da gente mesmo. Quando tinha a época de São João, chamavam a gente, para a gente bater o samba: fulano umbora acolá, numa festa de reisado, umbora. A gente tocava parecendo um pifo, com vontade. Fazia um samba de dança. Sei que a gente amanhecia o dia naquilo. Aí aquilo ali, eu fui tomano jeito aí comecei a bater lata. Fui começano tomar conhecimento com o pessoal, com o Marcelo, com esse povo aí, a gente começava a bater lata (Fala de Marinalva dos Santos, mais conhecida na comunidade por Dinha, entrevistada pela autora em 10 de jan. de 2002, em sua residência em Tijuaçu). Na dança, o corpo constitui o interlocutor, ele é o lugar de alegria e bem-estar. Nele há uma revelação de musicalidade, de cadência, de ritmo e de movimento. Nessa dimensão, os componentes criam novos passos e dançam dentro da roda do samba. O corpo inscreve-se à perfeição em todas as tradições historiográficas que buscam explicar cadeia de efeitos de causalidades exteriores à esfera do objeto estudado, mas refletidos nesse último (DEL PRIORE, 1994). No Samba de Lata a função de percussionista pertence ao feminino, são as mulheres que utilizam a lata para iniciar o ritmo do samba. Atualmente quem exerce essa função é a já citada Marinalva dos Santos. Entre os que já bateram lata, os depoentes citam Ornélia (já falecida), Piu (falecida, cujo nome não lembram). Nas 146 lembranças dos depoentes, aparece à figura de um percussionista masculino – o senhor Nanô (também falecido). Nas várias apresentações testemunhadas, percebe-se que para bater lata é necessário demasiada força nos braços e sabedoria musical para que o tocador possa dar o toque na lata no momento certo e daí as palmas e os cantos fazerem o acompanhamento. O som emitido pela lata dá ritmo ao samba. Esse ritmo é a mais rica expressão de musicalidade exteriorizada pelos moradores de Tijuaçu, prodigiosa pela riqueza rítmica e pela variedade de timbres. Segundo os depoentes, quando o samba surgiu não havia preocupação com o vestuário, pois o samba constituía uma manifestação espontânea e não obedecia a nenhum ritual que exigisse roupas adequadas. Fazia parte do lazer dos habitantes de Tijuaçu. Dançava-se no pátio, no quintal, em qualquer lugar e com qualquer roupa. Antes, para a gente sambar não tinha uma determinada roupa. Sambava-se do jeito que estava vestido. Se você estava com uma saia, com vestido ou de calça, não importava. (Fala de Marinalva Santos da Silva, entrevistada pela autora em 10 de jan. de 2002, em sua residência – povoado de Quebra Facão). Mas quando o Samba de Lata ultrapassou os limites de Tijuaçu e passou a se apresentar em outros locais, o grupo sentiu necessidade de pensar num vestuário. A partir de 1970, a Prefeitura Municipal de Senhor do Bonfim fez a doação de tecidos para os diferentes grupos que se apresentaram durante as festas juninas incluindo o Samba de Lata. A partir daí, o grupo passou a fazer apresentações com esse vestuário, ficando a prefeitura responsável pelo financiamento da indumentária. A cor branca foi a escolhida para confeccionar as roupas. As mulheres e crianças vestem-se com um vestido branco, rodado, comprido. Por baixo do vestido, geralmente usam um short. Cabelos entrançados, colares no pescoço e pés descalços. Assim, as mulheres estão preparadas para “fazer o samba”. Os homens, por sua vez, vestem calça e camisa branca e, também os pés descalços. Hoje também utilizam uma camisa branca com a inscrição “Samba de Lata”. Na foto da página 143, pode-se observar o grupo sambando, como também a roupa utilizada por homens e mulheres. As roupas utilizadas pelas mulheres lembram o mesmo vestuário utilizado nos terreiros de candomblé. 147 Esse mundo temporário e diverso trazido pelas situações festivas constitui uma maneira capaz de satisfazer de algum modo o desejo de prestígio. Mesmo por poucos momentos, é um modo de sobressair. O samba tem a função de manifestar visivelmente a ruptura com a vida diária, o encontro com uma posição elevada e distinta, acima das demais. Nesse momento, os sambistas sentem-se senhores de si121, pois estão visíveis ao olhar do outro, mostrando o que mais sabem fazer – sambar. Com as experiências vivenciadas pela população de Tijuaçu, a partir do processo de reconhecimento como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (assunto que já foi discutido no Capítulo 1), o Samba de Lata passou por algumas mudanças. De manifestação espontânea, na qual todos podiam participar, sem hora ou data e espaço delimitado, passou a ser uma manifestação de apenas um grupo de moradores de Tijuaçu. A partir de 1998, tem início um processo de visibilidade e algumas normas são adotadas dentro do grupo do samba, dentre elas a de que as crianças devem ser iniciadas no samba para que as gerações mais jovens aprendam a sambar e para que haja uma continuidade dessa tradição. Assim, as crianças de diferentes idades passaram a aprender a dançar o samba. Nesse sentido para dar conta da demanda de convites, ocorreu o cadastramento dos componentes, determinação de dias para o ensaio e cobrança de valores pelas apresentações. Esse constituiu o grupo do Samba de Lata, seus componentes que representam tal manifestação. Mas esse grupo fechado não impede que outras pessoas da comunidade possam fazer sua roda de samba. 121 Sobre festas cf. Scarano (2002, 2004); Del Priore (1984), segundo a referida autora, as festas do catolicismo, temperadas quase sempre com danças e cantos africanos, e que traziam muito valorizadas oportunidades de exibir um valioso vestuário. Era o momento em que personagens fora do comum e da realidade local tomavam corpo e participavam integralmente do dia-a-dia da comunidade. Era a ruptura com o curso normal de trabalho e miséria esgotantes, de comida repetitiva e monótona, de trajes pobres e indesejados. 148 3.3 Batuque, roda e dança: outras manifestações culturais de Tijuaçu Outras danças de Tijuaçu também vêm conquistando seu espaço. Com o movimento de valorização da cultura local, algumas manifestações foram recriadas e reinventadas, como a Dança do Parentesco, Dança do Arco-Íris e a Latinha da Mamãe. Segundo Del Priore (1994, p. 55): As danças profanas invadiram as festas na Colônia porque permitiam também à população autóctone participar do culto católico, mesmo que o fazendo com duplo caráter ritual. Elas provocavam uma transformação formal e estética, tanto nas festas quanto nas procissões, e permitiam, quer ao negro, quer ao índio, identificar-se com o “outro”, o colonizador. Elas, finalmente, incentivaram a canalização da capacidade de resposta das culturas dominadas frente à situação de conflito criada com a escravidão negra e o trabalho compulsório indígena. A auto-identificação e valorização da cultura pelos moradores de Tijuaçu, intensificaram a criação e resgate de algumas manifestações culturais. Principalmente os mais jovens estão envolvidos nesse movimento. Algumas dessas manifestações reinventadas têm permanecido enquanto outras não seguem esse mesmo caminho. 3.3.1 A solidariedade presente em diferentes espaços: A Dança do Parentesco A Dança do Parentesco é uma manifestação cultural, criada em 1978 por Marcelo Santana, que assim justifica sua reinvenção: “já que todos são parentes em Tijuaçu, então criei a Dança do Parentesco”, e complementou: O grupo inicialmente era formado por 28 pessoas. No meio destes, 28 componentes tinham oito irmãos, seis irmãs, sobrinhas, primos e tias. Por isso se chamou Parentesco, porque os componentes eram todos parentes próximos (Fala de Marcelo, entrevistado pela autora em 08 de ago. de 2004, em Senhor do Bonfim). 149 Como os habitantes de Tijuaçu fazem parte de uma mesma família, a referida dança foi criada como representação desses laços familiares. Esses moradores estão sempre juntos, seja no trabalho realizado na roça, na escola e na diversão. Essa manifestação foi criada tendo como objetivo mostrar a riqueza cultural existente em Tijuaçu, levando os mais jovens a participar dessa cultura e mostrando seus dotes artísticos, uma vez que o Samba de Lata era formado principalmente por adultos. Segundo Marcelo, a Dança do Parentesco teve início no ano de 1978 e é um tipo de quadrilha, apresentada durante as festas juninas em Senhor do Bonfim e em outras comemorações. O ritmo da dança é uma mistura de ritmos afros, forró, reggae, frevo e pagode. As letras, inicialmente, foram compostas por Marcelo, mas atualmente os próprios componentes também passaram a compor, tendo hoje em torno de 20 letras de vários autores tijuaçuenses. Como os componentes da referida dança se vestem? Segundo Marcelo, é da forma mais descontraída possível, “lembrando o tempo da escravidão, seus componentes vestem-se como os escravos”. Assim, toda indumentária usada pelos componentes da Dança do Parentesco rememora a época da escravidão. As vestes retratam há um tempo anterior, no qual os negros viviam descalços, sem camisa, cabelo baixo, rapado, sem chapéu e vestia tipo uma calça curta folgada, feita de saco. Esta é a vestimenta dos homens. As meninas usam uma saia bem curta e uma blusa tipo tomara que caía, curta. A dança e toda a sua composição representam a cultura de Tijuaçu e da região. Geralmente o grupo se apresenta nos festejos de São Benedito no distrito e em Senhor do Bonfim, durante as festas juninas. Como toda manifestação cultural, a Dança do Parentesco segue alguns rituais e obedecem algumas regras. Para fazer parte do grupo, o candidato se submete a uma seleção que tem como pré-requisito uma análise relativa as habilidades de dançarino ou dançarina. Outra avaliação diz respeito à disponibilidade para participar dos ensaios. Dessa forma, a população tem criado e reinventado suas tradições, dando assim continuidade à sua cultura. 150 3.3.2 Cores e Dança: A Roda do Arco-Íris Essa manifestação é uma espécie de roda e tem como componentes mulheres que residem no perímetro quilombola e que se vestem de roupas coloridas de variadas cores, representando o arco-íris, daí vem o nome da dança. Para apresentação da referida dança, os componentes formam uma grande roda e vão tirando versos e fazendo coreografias. Essa manifestação também foi criada por Marcelo e a maioria dos seus componentes reside no povoado de Quebra Facão. A intenção, segundo Marcelo, era criar uma roda diferente das que existiam. Assim surgiu a roda em 2000, justamente diante da animação que o povo de QuebraFacão apresentava. A comunidade se reuniu nessa localidade para dar início aos primeiros ensaios. Segundo Marcelo, depois de algum tempo, a roda foi se fragmentando, teve pouco tempo de vida. Faltou empenho dos participantes e persistência. Na falta dessas prerrogativas a Dança do Arco-íris deixou de existir. Apenas ficaram fotos e relatos dessa manifestação cultural. 151 Foto n° 13 - Componentes da Dança do Arco- Íris. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. Maio de 2003. Na foto acima, observa-se uma das apresentações da Dança do Arco-Íris que aconteceu no povoado de Quebra Facão. O grupo é formado só por mulheres, com idade acima de 30 anos, algumas já são avós. Os integrantes vestem-se com roupas coloridas cada uma de cor diferente, representando as cores do arco-íris, são saias rodadas que tem como propósito facilitar o movimento do corpo, sendo também utilizado na cabeça um turbante da cor da roupa. Com toda vaidade inerente a alma feminina elas se enfeitavam com brincos, pulseiras e colares para abrilhantarem ainda mais as apresentações. 3.3.3 O canto e o encanto das crianças 152 A Latinha da Mamãe é outra manifestação cultural criada em Tijuaçu, por conta do seu reconhecimento como território quilombola. Esse grupo é formado por crianças entre 7 e 14 anos de idade, meninos e meninas que cantam e dançam, constituindo um grupo musical, no qual cantam músicas de ritmos variados, principalmente de pagode. Segundo os depoentes, essa manifestação teve início quando um grupo formado por crianças passou a usar tampas e panelas de alumínio de suas mães, e, em seguida, passaram a bater nestas em ritmo de pagode. A iniciativa dessas crianças chamou atenção de alguns pais que começaram dar incentivo às mesmas para que formassem um grupo musical. O grupo Latinha da Mamãe é composto por 3 dançarinos (uma menina e dois meninos), 2 vocalistas, 3 meninos que improvisaram uma bateria com tampas de panela de alumínio, latas de tinta e de querosene e um tambor pintado de verde e amarelo. Acompanha ainda o grupo um pandeiro. Segundo a mãe de dois componentes, o grupo costuma se apresentar em aniversários de crianças (cobrando um cachê para tais apresentações) e nos festejos que acontecem em Tijuaçu. Essas crianças contagiam a todos com sua energia dançando e cantando nos diferentes eventos. Com graça e a ingenuidade inata das crianças, esse grupo, canta e encanta aqueles que os assistem. Ensaiam duas ou três vezes por semana, mostrando com brilho suas apresentações. A Latinha da Mamãe é uma das manifestações que foi criada por conta do reconhecimento de Tijuaçu. Essas crianças incentivadas por seus pais, dedicam-se com vontade e compromisso as atividades do grupo e sonham em serem reconhecidos pelo seu trabalho e poderem se apresentar em outros centros urbanos. Assim, percebe-se que, o que possibilitou o resgate, a invenção e a reinvenção dessas diferentes manifestações de Tijuaçu, foi principalmente o movimento e visibilidade que esses moradores tiveram após o reconhecimento do território como remanescente de quilombo. Tal movimento fez despertar nesses quilombolas a valorização e a sua identidade cultural. Assim, seus moradores foram criando manifestações, danças, ritmos e músicas para mostrar seus valores culturais.. 153 3.4 Fé e devoção: a festa de São Benedito Na foto abaixo se observa a imagem de São Benedito no altar central da igreja de Tijuaçu. É este o santo mais venerado pela população. Em suas mãos, estão todas as agruras de seus devotos, que aguardam com ansiedade o recebimento de suas graças e zelam com grande fervor o seu altar, pondo flores, trocando as toalhas e acendendo velas. Scarano (2003, p. 115), aponta que nas Igrejas de irmandades negras, são numerosas e ricas as representações dos patronos, os santos padroeiros, mas mesmo em igrejas de brancos, eles são encontrados. As figuras esculpidas seguem o estilo vigente e as roupagens e mantos desdobram-se em pregas e desenhos dourados, como os dos demais. Alguém que merece a honra dos altares também merece trajes de prestígio e posição majestática, como acontece com as representações dos exvotos. 154 Foto n° 14 - Altar de São Benedito. Fotografo: MIRANDA, Carmélia. 2001. Segundo Souza (2002, p. 152), os africanos etnicamente heterogêneos e com estruturas sociais estraçalhadas pelo tráfico só se tornaram uma comunidade e começaram a partilhar uma cultura no Novo Mundo quando eles próprios a criaram, a partir das novas condições de vida. Assim, os valores e padrões culturais herdados da África incorporaram-se aos padrões religiosos da América portuguesa (MIRANDA, 1999, p. 80). Eles trouxeram consigo informações, conhecimentos, crenças, música, gestos e vivências, mas não havia condições materiais e humanas para que reconstituíssem suas sociedades nas Américas. Assim, tiveram que se reorganizar e 155 criar instituições que respondessem às necessidades da vida cotidiana, sob as limitadas condições impostas pela escravidão. Mintz e Price (1976)122 argumentam que uma herança cultural africana partilhada pelos povos trazidos para as colônias tem que ser definida menos com relação à sobrevivência e retenções do que por meio de um princípio gramatical que molda os comportamentos. Assim, orientações comuns relativas ao funcionamento do universo (como crenças religiosas e explicações sobre a causalidade dos fenômenos naturais) e pressupostos básicos acerca das relações sociais (como as motivações que levam as pessoas a adotar determinados comportamentos) fizeram com que os indivíduos vindos da mesma região da África reagissem de formas diferentes quanto às soluções adotadas. Tal argumentação distingue-se da defendida por Herskovits,123 que define a identidade macrocultural entre as diferentes etnias africanas a partir de traços culturais que aparecem recorrentemente, como certos comportamentos, objetos ou ritos, Mintz e Price detectam essa mesma identidade a partir de uma gramática cultural comum que leva à produção desses comportamentos, ritos e artefatos. Assim, percebe-se que as diferentes nações oriundas da África, traziam modos de vida também diferentes e assim reagiram de forma diversa frente as várias situações vivenciadas. Nessa perspectiva, os habitantes de Tijuaçu, netos e bisnetos de africanos, aprenderam a cultuar os santos da Igreja Católica e adotaram São Benedito como protetor. A devoção a esse santo é secular, pois foram os seus antepassados que a iniciaram e ela continua na contemporaneidade. Durante o Brasil Colônia, a devoção a São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia foi introduzida pelos missionários e teve grande penetração entre os escravos. Estes rearticularam suas crenças, reinterpretando os rituais de devotamento ao rosário da Senhora. Em decorrência da cor da pele de alguns desses santos, suas histórias de vida contribuíram para um despertar da devoção dos africanos a eles. O santo mais popular entre os negros, São Benedito, tem como atributo a humildade, docilidade, subserviência e submissão. Dessa forma é 122 123 Mintz; Price apud Souza (2002. p. 152-153). Herskovits apud Souza (2002, p. 153 ). 156 apresentado como modelo a ser seguido124. Os referidos santos tiveram um grande número de devotos negros cativos e forros na América portuguesa em decorrência de suas histórias de vida e da cor de sua pele125. Os cativos e negros forros identificaramse com tais características, apresentadas por esses santos. Segundo Vainfas e Souza (2000, p. 47), várias foram às irmandades de negros consagradas à Nossa Senhora do Rosário na América portuguesa, o que, aliás, faz pensar sobre o lugar central ocupado pelas irmandades no cotidiano religioso no Brasil Colônia. Em diferentes lugares da América portuguesa encontram-se irmandades de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, principalmente nas zonas de mineração da Bahia, Minas Gerais e Goiás. Em Tijuaçu, os depoentes narram que a devoção a São Benedito é herança de seus avós e por esse santo negro eles têm uma grande estima. Identificam-se pela cor da pele e pela sua história de vida. É no dia 1º de novembro que a população de Tijuaçu homenageia seu padroeiro – São Benedito. Nos dias anteriores a essa data, há uma grande movimentação no distrito, principalmente em relação aos preparativos para a festa, com a arrumação da igreja e a organização da procissão. Os preparativos, na verdade, têm início três meses antes, quando seus organizadores pedem contribuição e donativos aos devotos e aos comerciantes de Tijuaçu e de Senhor do Bonfim, para cobrir as despesas com flores, velas, arrumação do altar e outras gastos que venham a ocorrer. No período colonial a coleta de esmolas para os festejos dos santos era uma prática comum das irmandades de “homens pretos”. Os membros das irmandades, especialmente aqueles indicados para esse fim, percorriam as ruas ao som de música e com estandartes, recolhendo dinheiro com vistas à realização de festas de santos padroeiros. Era cena comum nas ruas das cidades coloniais, onde muitas vezes danças e tambores africanos conviviam com as folias de origem portuguesa126. 124 Cf. Verger (1981. p. 28); Campos apud Miranda (1999, p. 81). Para Campos apud Miranda (1999, p. 81), “São Benedito era de sangue mouro e não negro. Nasceu na Sicília, em 1526, de pais escravos”. 126 Para maior esclarecimento sobre o referido tema, cf. Borges (1998, p.92-96). 125 157 O depoimento abaixo comenta a construção da Igreja de São Benedito em Tijuaçu: A igreja que hoje se encontra em Tijuaçu é uma nova construção, ou seja, deve ter por volta de 50 anos. Existia uma anterior, que, segundo alguns depoentes “estava muito velha” e derrubaram-na e construíram outra127. Esta que os habitantes de Tijuaçu chamam de nova é uma pequena igreja, que hoje está sendo ampliada. Senhor Antero, que nasceu em 1922, diz que: “sei que alcancei a igreja aí quando eu me endendi. Rezava, orava, fazia penitência e, e [...]” (Entrevista com o sr. Antero, realizada pela autora em 11 de jan. de 2002, em Tijuaçu). Os depoentes sugerem que anterior a igreja atual, existia uma igreja pequena, certamente uma capela para celebrações periódicas. A devoção do povo de Tijuaçu a São Benedito é anterior à construção da igreja, que teve como objetivo a continuidade da fé e devoção do povo a esse santo. Percebe-se que em alguns lugares do Brasil, onde há devoção a São Benedito não existe uma data fixa no calendário cristão para sua comemoração. Em Jacobina128, o dia de São Benedito é festejado após o Pentecostes, na segunda-feira depois da festa do Divino Espírito Santo. No Compromisso129 da Irmandade de São Benedito da Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Itapagipe, na Bahia, datada de 20 de agosto de 1777130, a festa em homenagem ao referido santo ocorria na primeira oitava da Páscoa. Nesse dia, havia uma missa cantada pelo vigário, sermão e música com o Santíssimo Sacramento exposto e a posse dos novos oficiais da Mesa. Era um momento festivo. Toda a despesa da festa era financiada pelo patrimônio da Irmandade. Durante os 127 Ao analisar os registros da Paróquia de Senhor do Bonfim e da Cúria de Salvador, não foi encontrado o documento que autorizou a construção da referida igreja. 128 Cidade do interior da Bahia, que fica distante de Tijuaçu cerca de 125 km. 129 Segundo Boschi (1986) apud Souza 2002, p.184 a 185). As confrarias tinham como objetivo uma série de ações voltadas para o bem-estar dos irmãos, servindo como associações de ajuda mútua que permitiam o acesso a benefícios sociais, de outras formas inacessíveis, principalmente aos escravos, forros e livres de origem africana. A preocupação com assistência aos irmãos era matéria de seus compromissos, conjunto de regras calcado nas regulamentações das misericórdias portuguesas, voltadas para a ajuda aos mais necessitados e com formas de organização bem precisas. Esse compromisso definia o perfil dos irmãos a serem admitidas às regras de sua admissão, as maneiras de contribuir para os fundos da irmandade, a composição e as formas de escolha da mesa administrativa, as atribuições dos irmãos e dos administradores e o feitio da festa do orago. A partir de 1765, os compromissos tinham que ser aprovados pela Coroa Portuguesa, que assim mantinha certo controle sobre seu funcionamento. 130 Biblioteca Nacional de Lisboa, 20 ago. 1777, Códice 561. 158 festejos, eram celebradas outras missas em intenção dos irmãos vivos e para aqueles que desapareceram131. Segundo Souza (2002, p. 184), as irmandades foram elementos fundamentais no exercício de uma religiosidade colonial e barroca, caracterizada pelo culto aos santos, pelas devoções pessoais e pela pompa das procissões e festas, marcada pela grandiosidade das manifestações exteriores da fé, na qual conviviam elementos sagrados e profanos. Segundo Boschi (1986, p. 68): Desde cedo as irmandades tornaram-se exclusivas de determinadas categorias raciais e sociais, agrupando as pessoas conforme a cor de sua pele e seu lugar na hierarquia social. As irmandades de “homens pretos” foram, segundo o referido autor, as únicas instituições nas quais os negros puderam se manifestar com relativa autonomia e liberdade. Entretanto eram, contraditoriamente, agentes eficazes da colonização, “pois que apesar de ser um local privilegiado da afirmação das identidades culturais, étnicas ou sociais dos grupos integrantes”, também se identificavam com a política européia colonizadora. Uma justificativa costumeira para a criação das irmandades de “homens pretos” era a de dar um enterro cristão a negros muitas vezes abandonados pelos seus senhores na hora da morte. Assim, as pequenas contribuições pagas ao longo da vida, na forma de anuidades, garantiam um enterro digno para aqueles que, muitas vezes, se não contassem com o amparo da irmandade à qual pertenciam, seriam jogados em alguma praia ou mato a serem devorados pelos animais. Imagine como foi difícil para o africano aceitar essa triste realidade, ao imaginar que ao morrer seu corpo seria jogado em qualquer lugar, sem nenhum ritual de passagem. Para os africanos, a morte representa um rito de passagem e é simbolizada por vários rituais. Estes rituais eram realizados ao som de muita música e dança. Para os escravos africanos, a integração às irmandades possibilitou um morrer mais digno. Em Tijuaçu, a festa de São Benedito possui o lado sagrado e o lado profano. O sagrado é realizado no espaço da igreja, onde várias pessoas reúnem-se à noite para rezar a novena. No dia 1º de novembro, à tarde, é realizado o ritual da Igreja 131 A Irmandade de São Benedito de Nossa Senhora da Penha de Itapagipe tinha entre seus membros brancos, negros escravos e forros, o que esclarece no seu Capítulo 8, que não era apenas uma Irmandade formada por negros. Um dos compromissos era que seus membros fossem pessoas idôneas e honestas, principalmente aqueles que ocupavam os diferentes cargos. Biblioteca Nacional de Lisboa, 20 ago. de 1777. Códice 561. 159 Católica com a celebração da missa e posteriormente a procissão (VAINFAS; SOUZA; 2000, p. 51)132. Esta constitui o ponto alto da festa, pois os devotos percorrem as ruas da vila carregando o andor com a imagem de São Benedito, cantando e louvando o referido santo. Os jesuítas, desde a época de Tomé de Souza, usaram as procissões como parte de sua ação evangelizadora, quer junto aos índios, quer junto aos colonos, apostando no seu potencial como recurso audiovisual. Publicações feitas na Época Moderna, para orientar o clero na organização de procissões, deixavam entrever sua função, para além de celebrativa, como tranqüilizadora. As festas e as procissões foram comumente vistas pela historiografia como provas da exterioridade da religiosidade colonial. O apego às exterioridades como marca de nosso catolicismo, que se expressava na profusão de capelas, no aspecto teatral, no culto a santos, na afeição maior ao externo, à imagem do que à coisa figurada, ao espiritual, teve nas festas coloniais seu melhor exemplo. Dentro dessa perspectiva, as festas e as procissões aconteciam na América portuguesa. A procissão tinha o sentido de afirmar a fé cristã através das representações dos santos. No dia de São Benedito, as pessoas que residem nas roças e povoados próximos dirigem-se a Tijuaçu para participar das comemorações. Nesse dia, também são realizados batizados e casamentos. 132 Segundo Vainfas e Souza, p.51, desde o governo de Tomé de Souza, no século XVI, foram instituídas, aqui, as procissões, onde um cortejo de fiéis seguia os andores ou o pálio com o sacerdote. 160 Foto n° 15– Igreja de São Benedito. Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. Na foto acima pode-se observar a Igreja de São Benedito, localizada ao centro da praça principal. O lado profano da festa em homenagem ao padroeiro de Tijuaçu, é realizado fora do espaço da igreja, na praça Durval Juviniano dos Santos, localizada em frente a esta. Nesse espaço os moradores armam barracas de bebidas e comidas para onde se dirigem pessoas dos povoados e cidades vizinhas, como Senhor do Bonfim e Filadélfia em busca de diversão. Arma-se também um palco no meio da praça, onde cantores da região contratados pela prefeitura animam a festa durante os nove dias que antecedem o dia 1º de novembro, data que se afirma o ponto alto da festa; é o dia em que circula mais gente no distrito, pois geralmente a atração principal é um cantor ou uma banda de grande fama na região, reunindo na praça um grupo maior de 161 pessoas à procura de lazer. Há também apresentações de grupos da cultura local, como o Samba de Lata, a Dança do Parentesco, a Latinha da Mamãe, entre outras. As emissoras de rádio e TV locais também participam dos festejos, fazendo entrevistas e dando cobertura as festividades. Os depoentes contam que, em tempos anteriores, a festa foi bem melhor. Havia uma maior devoção por parte das pessoas do distrito. Nos dias que antecediam o dia de São Benedito algumas pessoas visitavam a cidade de Monte Santo (lugar de peregrinação), distante cerca 150 km. A saída da caravana que se dirigia à essa cidade revestia-se de grande movimento no distrito e povoados de Tijuaçu. Muita gente ia para as ruas assistir à saída dos peregrinos, havendo queima de fogos133 na ida e no retorno. Os moradores contam que esse costume já não mais existe. Poucos são os devotos que ainda se dirigem à cidade de Monte Santo. Durante o período das comemorações em homenagem a São Benedito, era comum moradores que se encontravam trabalhando ou residindo fora retornarem para participar dos festejos. Atualmente, novos elementos foram incorporados a essa festa, transformando-a numa festa de largo, onde o lado profano ganhou mais visibilidade e o lado sagrado ficou cada vez mais restrito à novena e à procissão. Para Scarano (2002, p.31), ‘’o momento da festa é constituído de oportunidades de um agir social, possibilitando encontrar pessoas, fazer e manter amizades, orar e também de divertirse”. Observa-se essas oportunidades durante os festejos que acontecem em Tijuaçu, mas há uma predominância do lado profano. Alguns depoentes justificam a sua devoção a história de vida de São Benedito. E assim eles relatam as histórias ouvidas sobre o seu santo protetor: narram que São Benedito foi um cozinheiro escravo que ajudava os pobres. Contam que Benedito saía para buscar água, distante da casa de seu senhor, com um pote de barro. Pelo caminho, ele encontrava os maltrapilhos (pobres e famintos), que lhe pediam para que trouxesse comida. Comovia-se com tal situação, colocava a comida dentro do pote e levava para esses famintos. Algumas pessoas vendo que Benedito 133 No Brasil Colônia o uso de fogos para abrir a festa constituía uma tradição que, ganhava dimensões de propaganda governamental, ou de resistência das elites contra o mesmo governo. Mídia eficiente a iluminar as noites escuras das vilas na Colônia, o foguetório tornava-se um instrumento caro, porém eficaz, de poder, segundo Del Priore (1984. p. 40). 162 levava comida aos pobres disseram ao seu senhor: “Benedito está lhe roubando mantimentos e levando dentro do pote para os pobres”. O senhor colocou-se a vigiálo. Certa vez, viu que Benedito vinha com o pote e lhe interrogou: “O que levas neste pote?” Benedito respondeu: “Levo cravos, rosas e flores de laranjeira, meu senhor”. O senhor pediu que ele mostrasse e assim ele fez. Ao descer o pote da cabeça e apresentá-lo ao senhor, os alimentos que ali levava haviam se transformado em cravos, rosas e flores de laranjeira. A partir desse fato, segundo dizem, surgiu a devoção a São Benedito, considerado pelos devotos o protetor dos pobres e famintos. A história, narrada pelos depoentes, foi ouvida e recontada. Sensibiliza a população por várias questões: uma delas diz respeito à cor da pele de São Benedito e também ao fato dele ter sido escravo; outra diz respeito à solidariedade do santo, que enganava ao seu senhor para dar aos pobres. O santo é conhecido pelos seus atributos. Quando perguntados por que escolheram São Benedito como padroeiro, eles respondem: “é tudo negro, porque iria colocar um branco”. Para os depoentes, São Benedito é o protetor dos pretos, por isso ele é o padroeiro de Tijuaçu. Nas novenas, é costume os devotos rezarem o seguinte bendito: Meu São Benedito, sua manga cheira, é cravo e rosa e é flor de laranjeira. Que santo é aquele, que vem no seu andor, é São Benedito o nosso senhor. Meu São Benedito, com Jesus menino, é santo de todos, do amor divino. Meu São Benedito, é um santo de preto, o que fala na boca, responde no peito. Meu São Benedito, já foi cozinheiro, e hoje ele é santo, de Deus verdadeiro. Meu São Benedito, estrela do norte, guiai-me meu santo, de Deus verdadeiro. Meu santo é aquele, que vem lá de dentro? É São Benedito, que vem do convento. Que santo é aquele, que vem acolá? É São Benedito, que vai para o altar. Que santo é aquele, que vem na estrada? É São Benedito, com sua jangada. Que santo é aquele que vem na ladeira? É São Benedito com sua bandeira. Meu São Benedito, vos peço também, que nos dê a glória para sempre. Amém. Esse bendito refere-se a vida humilde de São Benedito, constituindo uma homenagem a esse santo. Segundo Brito (1999, p. 155),134 a disseminação de 134 Ainda segundo o referido autor, “Quanto ao conteúdo, seu repertório de temas inclui mandamentos e sacramentos da religião católica, internalizados como normas de sociabilidade, idéias de inferno, 163 benditos está associada às Santas Missões dos capuchinhos, presentes no Nordeste desde o século XIX. Conforme a história dos capuchinhos na Bahia, nas Santas Missões (deslocamentos em que missionários, por 8 ou 10 dias, circulavam para pregações e práticas piedosas em localidades do interior), os benditos ocuparam um lugar de destaque: entremeando sermões, missas e procissões; seguindo exposição do Santíssimo e bênção eucarística; aguardando a hora da confissão; pela manhã e à tardinha, “o povo fazia orações e cantava o bendito”, segundo descrições e relatórios de frades encarregados dessas missões (REGNI, apud BRITO, p. 155). Por ter uma linguagem fácil, ritmada e repetitiva, todos poderiam aprendê-los e memorizá-los. Assim, para os habitantes de Tijuaçu, a busca de melhores dias é compartilhada coletivamente, com todos através da contrição de rezas e no fervor da elocução de cânticos benditos e rezas. A fé e a devoção à São Benedito representa um sustentáculo, um porto seguro, pois na horas difíceis é a esse santo que os moradores recorrem. São Benedito é o grande homenageado da comunidade. Os devotos costumam fazer promessas e acreditam que seus pedidos serão atendidos, cuja prática é oriunda das especificidades do catolicismo colonial. Ao catolicismo agregava-se um caráter prático e imediatista, que buscava consolo e soluções para as questões do cotidiano, principalmente por meio da interferência dos santos, aos quais eram dirigidas promessas, que eram cumpridas mediante o alcance da graça pedida135. A falta de um conhecimento científico e as tentativas de introduzir outras maneiras de pensar foram, portanto, prerrogativa de determinados grupos e muito lentamente afetaram os menos cultos e mais simples. Entretanto, mesmo pessoas de elevada categoria socioeconômica apelavam para outras forças nos momentos de perigo, inclusive aquelas que pautavam suas vidas pelos novos cânones. Romarias, peregrinações, devoções são tradições que continuam com maior força, principalmente no meio rural. Nesse espaço, inserem-se profundamente em um mundo de uma religiosidade muito forte, de fé e devoção. Nessa perspectiva, paraíso, Deus, pecado, castigo e perdão, próprios do imaginário popular nordestino; além de homenagens e devoções ao Padre Cícero e a Nossa Senhora das Dores”. 135 Para maior esclarecimento sobre essa questão cf. Souza (1994); Souza (1986); Reis (1991). 164 prevalece o clamor aos santos, afinal, há de se perceber a própria condição em que vivem as populações rurais, cujos recursos são mais escassos e inexistem organizações capazes de socorrer as pessoas nos momentos de necessidade. Assim, as promessas teriam que ser cumpridas para não comprometer as súplicas. O suplicante crê na existência de uma entidade propiciadora e está certo de que ouve seus pedidos e está disposta a responder-lhes. Admite, também, a idéia de que a entidade deseja uma paga concreta que sirva para perpetuar o benefício recebido. (SCARANO, 2004, p. 35). Essa relação de pedido e pagamento de promessa é uma relação que foi socializada com outras pessoas, pois aquele que recebeu o benefício vai falar para o outro, e assim, ampliam-se as devoções. Ao divulgar o bom resultado da prece, o santo torna-se conhecido e popular. Dessa forma, mesmo constituindo ação individual ou de um pequeno grupo, a questão torna-se coletiva e abarca toda a comunidade. A graça recebida beneficia alguém e constitui estímulo para que os membros do grupo possam obter favor semelhante. O devoto divulga a fé, a crença no poder de Deus e da oração. Assim, os devotos de São Benedito procuram expandir sua devoção através do pagamento de suas promessas. A festa de São Benedito constitui a mais importante expressão de fé e de devoção. Nesse dia o distrito recebe pessoas dos povoados e fazendas vizinhas que vão participar das diversas celebrações da Igreja, como batismo, casamentos e os rituais da Igreja Católica. A população se diz devota de São Benedito, expressando contrária a qualquer tipo de culto afro. Nas várias entrevistas realizadas perguntava-se sobre os cultos afros e a participação de alguns membros da comunidade. Os depoentes negavam insistentemente qualquer ligação. Falavam que em tempos atrás algumas pessoas participavam de alguns terreiros, mas fora da comunidade, e afirmavam que em Tijuaçu nunca teve terreiro de candomblé. Dessa forma, nas várias visitas que fizemos à comunidade percebemos que os cultos afros existem em localidades próximas à Tijuaçu, que muitos moradores participam, mas de forma discreta, ou poderia dizer escondida. As pessoas temem serem discriminadas, por isso negam. Esse símbolo da herança africana – o candomblé – foi a mais perseguida por décadas no Brasil. E 165 em Tijuaçu essa tradição religiosa permanece escamoteada e escondida, mas resistindo ao preconceito. O candomblé sempre cumpriu um papel de resistência negra à opressão racial. Muitos dos quilombos foram ajudados pelas casas de candomblé (ex.: Tambor de Mina no Maranhão e outros), que funcionavam como abrigo para escravos fugitivos se esconderam da repressão, ora dos capitães-de-mato ora da guarda imperial (DOMINGUES, 2004, p. 300-301). Religião dos escravos africanos de origem nagô, também conhecido, como iorubá, o candomblé, apesar das várias perseguições seja da Igreja Católica, seja das autoridades conseguiu sobreviver e foi reinventado no Brasil, a princípio, no ambiente escravista. Com o fim do cativeiro, essa religião se expandiu no ambiente urbano e industrial do país. Assim, essa tradição religiosa ainda sofre represálias em Tijuaçu, tanto que seus cultos e adeptos são mantidos escondidos. Como a comunidade vive um momento de resgate e valorização da sua cultura, certamente os cultos afros deverão aparecer sem temência. O referido capítulo discutiu sobre as manifestações culturais de Tijuaçu, pontuando questões referentes a identidade cultural desse moradores, que foram construídas ao longo dos anos. Algumas dessas manifestações foram resgatadas e outras foram reinventadas, e outras ainda foram negadas como o candomblé. As reinvenções se devem principalmente em decorrência do seu reconhecimento como comunidade quilombola. Durante as diferentes comemorações de Tijuaçu, percebe-se que a rotina desse território é interrompida, pelos festejos que permitem o encontro, a visibilidade, o pagamento das promessas feitas ao santo, o prazer, a alegria e a diversão. CONCLUSÃO Pesquisar sobre a comunidade negra rural de Tijuaçu, através, principalmente, das memórias dos habitantes mais velhos, direcionou-me a percepção nas entrelinhas das vivências cotidianas dessa população. A oralidade e a 166 documentação escrita constituíram as principais fontes dessa investigação. Os depoimentos orais possibilitaram-me estar mais próximo dos narradores das tramas de Tijuaçu e de conhecer os diferentes fazeres desta comunidade. Ao debruçar-me sobre as diferentes fontes percebi que os primeiros habitantes da antiga Fazenda Lagarto – atual distrito de Tijuaçu – estão na região desde o início do século XIX, quando negros fugidos do recôncavo baiano passaram a viver nessa localidade até então desabitada. A referida documentação ainda sugere que, ao final do século XVII, missionários franciscanos passaram a viver na região, onde fundaram a Missão de Nossa Senhora das Neves no atual distrito de Missão do Sahy (hoje distrito de Senhor do Bonfim) e a Missão de Bom Jesus da Glória, na atual cidade de Jacobina. A região das Jacobinas ou Comarca do Sul, como era conhecida no século XVIII, constituía uma das mais importantes e extensas regiões da Província da Bahia. Segundo o Mapa das Freguesias do Arcebispado da Bahia, de 1775, a referida comarca abrangia 10 freguesias, que iam desde Santo Antônio da Vila de Jacobina (atual cidade de Jacobina), atravessando a parte norte, nordeste, o Vale do Rio São Francisco, seguindo até o sudoeste do atual Estado da Bahia, formando um território muito extenso, que atraía pessoas de diferentes lugares, tropeiros e aventureiros à procura de ouro e de pedras preciosas. No século XVIII, nas terras da Vila de Santo Antônio de Jacobina foi encontrado o metal mais cobiçado da época – “o ouro”. Tal acontecimento determinou a estruturação do arraial e a criação da Vila de Santo Antônio de Jacobina. Com a movimentação de pessoas, a descoberta do ouro, a Vila de Santo Antônio de Jacobina passou, também, a atrair negros fugidos, oriundos principalmente da Comarca de Cachoeira, como sugerem documentos dos séculos XVIII e XIX. As constantes fugas ocorridas nesse período levaram as autoridades da época a tomarem uma série de medidas, entre as quais: destruição de quilombos, proibição dos batuques negros, nomeação de capitães-mores de entradas e assaltos, que tinham como função destruir quilombos e caçar escravos fugidos. A oralidade aponta sobre os primeiros habitantes que passaram a habitar a região de Tijuaçu, chegados no início do século XIX, que eram escravos fugidos do recôncavo. 167 A identidade cultural dessa população está em construção, sobretudo após o reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, o que possibilitou a elevação da auto-estima dos moradores e sua auto-identificação enquanto afrodescendente. Dessa forma, os moradores passaram a valorizar as suas manifestações culturais, festas e experiências cotidianas, dando maior visibilidade às suas expressões culturais, reinventando e recriando outras atividades que estavam adormecidas. Porém, a documentação escrita não esclarece sobre a formação de quilombo em Tijuaçu – concebido a partir do conceito de rebeldia e enfrentamento, como também, de nenhum ajuntamento de negros nesse território. Entretanto, a oralidade aponta o ajuntamento de negros fugidos na região desde o início do século XIX e que tem permanecido até o momento, com seus costumes e tradições. Tendo em vista, essas evidências, considero Tijuaçu um quilombo contemporâneo pela permanência e a continuidade dos seus costumes e de suas tradições que têm resistido ao longo desses dois séculos. Apresentando uma resistência cultural que se expressa através dos modos de vida de seus habitantes. Na memória dos depoentes estão imbricadas as histórias sobre os escravos que fugiram e ocuparam essas terras. A oralidade emite parecer sobre a formação histórica desse território, muito antes de se iniciar o processo de reconhecimento de remanescentes de quilombo, afinal, tal concepção não foi criada para atender a necessidade de garantir legado histórico e cultural a esta comunidade. Anterior a essa discussão, a memória dos mais velhos moradores já narrava a história de Mariinha Rodrigues - a escrava fugida iniciadora de toda essa trama. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), habitam nessa região cerca de 9.000 pessoas, em condições de vida muito precária, população bastante pobre que vive basicamente da agricultura. Poucas casas possuem banheiro e em alguns povoados, a energia e água encanada, ainda não chegaram. Há um grande número de analfabetos, muitas crianças pelas ruas e famílias numerosas. Outro problema que tem preocupado os moradores é o grande número de alcoólatras. Apesar das conquistas da Associação Agropastoril e os 168 benefícios que têm chegado através dos órgãos oficiais, principalmente da Fundação Cultural Palmares, ainda muito precisa ser feito em prol da comunidade. A região, na década de 50 do século passado, foi um pólo de plantação e venda de mamona, que atraiu vários comerciantes, que passaram a residir em Tijuaçu. Na ocasião, foram instalados pequenos comércios. A feira livre atraía pessoas dos povoados e cidades vizinhas. Infelizmente o comércio de mamona acabou devido as constantes secas que se abateram sobre a região e a feira não tem o movimento de outrora, apenas pequenos comércios ainda permanecem com vendas pacatas. Nessa caminhada, observa-se o papel de destaque que as mulheres conquistaram desde a figura de Mariinha Rodrigues, considerada fundadora do lugar, passando por mulheres de hoje, que assumem variados papéis nos diferentes setores da comunidade. Empenhadas em dirigir suas funções, elas contribuem para a permanência das tradições culturais. O costume de morar um junto do outro e possuir um quintal comum, colabora para que os laços familiares se fortifiquem. Filhos e netos constroem suas casas vizinhas às de seus pais. Essa interação, esse ajuntamento familiar, é outra característica dos moradores de Tijuaçu, que têm como objetivo a permanência dos laços familiares. Estes se fortalecem através das atividades cotidianas. Os membros estão juntos no trabalho, no lazer e nas comemorações. A seguir no croqui n. 3, podem-se observar como as diferentes famílias residentes em Tijuaçu, mantém seus laços de parentesco no espaço físico. A casa da matriarca localiza-se no meio e as casas dos filhos vão sendo construídas ao lado desta, tendo um quintal comum, onde os membros da família, desenvolvem diferentes atividades. O croqui abaixo representa a distribuição do espaço da família de Ilca. 169 Croqui n. 3 - Representação das residências – vida em família. Fonte: SANTOS, Ivomar Gitânio dos. 2005. O texto implícito na narrativa mescla histórias dos primeiros habitantes da região, do início do Samba de Lata, da festa de São Benedito e de vivências cotidianas. Os versos do Samba de Lata rememoram episódios cotidianos, em que a repetição é a característica principal. Assim, a cada representação do grupo, essas 170 representações são reinventadas. A memória possibilita essas intervenções e algumas incorporações tanto através do esquecimento como da lembrança, como afirma Williams (1979), toda tradição é seletiva. Ao mesmo tempo em que é revelada pode também ser ocultada, pois a memória é a grande responsável pelas recriações. Também podemos chamar essas manifestações de “tradição inventada”, que segundo Hobsbawm (2002, p. 9): Entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. A repetição estabelece uma continuidade com um passado histórico apropriado, que contribui para a permanência da tradição. Em Tijuaçu, percebe-se tal movimento nas diferentes manifestações lá existentes. O Samba de Lata constitui a principal manifestação cultural da população, estando presente em todas as comemorações da comunidade. No contexto da religiosidade, São Benedito é o guardião da população: a ele são atribuídas as graças recebidas e a proteção em todas as horas. A grande contribuição que essa pesquisa traz para a historiografia contemporânea é a recuperação dos vestígios das experiências vivenciadas pelos moradores dessa comunidade negra rural e que foram despertadas pela memória. Esse despertar criou possibilidades de remexer nas lembranças adormecidas, que foram aos poucos conduzidas à rememoração. Uma comunidade que continua mantendo seus traços culturais através do casamento entre as mesmas famílias, demonstrando também uma forma de resistência em vários sentidos. Creio que não é possível responder a todas as questões pensadas inicialmente. Algumas foram mais concretizadas e outras não, mas o que me conforta é saber que o ofício do historiador é inacabado, não se têm respostas para todas as perguntas. Ficam aqui algumas interrogações para que outros busquem respondê-las e possam alcançar outras histórias com suas respostas. A História é um processo em constante mobilidade. Lá adiante respostas serão dadas. 171 Não posso deixar de registrar a plena consciência de que aprendi muito com esses homens e mulheres, moradores de Tijuaçu, nas suas lutas cotidianas, na forma simples de viver e de encarar os desafios da vida. Essa visibilidade que a história social tem possibilitado àqueles que a história oficial marginalizou é a grande conquista desse trabalho, dar voz ao homem comum. FONTES I ORAIS: 172 a) Relação dos entrevistados: 1 Abílio Fagundes, filho de Tijuaçu, aposentado, tem 91 anos de idade. Entrevistado pela autora em 08/04/2001. 2 Amauri da Silva Rodrigues em 2005, tinha 16 anos, neto de D. Anísia. Entrevistado pela autora em 02/02/2005. 3 Anísia Rodrigues, nasceu e sempre viveu em Tijuaçu, aposentada, tem 89 anos de idade. Entrevistada pela autora em 26/04/2002 e 19/11/2003. 4 Antero Dias Damasceno, filho de Tijuaçu, aposentado e tem 89 nos de idade. Entrevistado pela autora em 11/01/2002 e 26/12/1998. 5 Antônio Manoel de Aquino, nasceu em Barreiras – povoado de Tijuaçu e é trabalhador rural. Entrevistado pela autora em 26/12/1998. 6 Antônio Marcos Rodrigues da Silva, nasceu e sempre viveu em Tijuaçu, 30 anos de idade, atual presidente da Associação Quilombola. Entrevistado pela autora em 28/01/2005. 7 Dalva Odilon Santana, nasceu na Fazenda Morro e depois que casou com o senhor Maurício Odilon Santana passou a residir na Fazenda Alto; tem 66 anos de idade, é dona de casa, trabalhadora rural e ex- sambista. Entrevistada pela autora em 26/12/1998 e 11/01/2002. 8 Edcarlos Dmasceno da Silva, é estudante e tem 18 anos de idade. Entrevistado pela autora em 02/02/2005. 9 Ilca dos Santos, nascida e criada em Tijuaçu, é trabalhadora rural, atualmente é vice-presidente da Associação de Tijuaçu e tem 42 anos de idade. Entrevistada pela autora em 22/10/2000, 14/08/2002 e 28/10/2003. 10 Iraildes Morito Santana, nasceu e sempre viveu na Fazenda Alto, é também trabalhadora rural e tem 64 anos de idade. Entrevistada pela autora em 26/12/1998. 11 Ivomar Gitânio dos Santos, filho de Senhor do Bonfim, faz um trabalho assistencial e de pesquisa em Tijuaçu, atualmente é representante da Câmara Municipal de Senhor do Bonfim. Entrevistado pela autora em 02/02/2005. 173 12 Joana Rodrigues, filha de Genoveva Rodrigues, iniciadora do Samba de Lata; tem 60 anos de idade. Entrevistada pela autora em 03/02/2005. 13 Juliana Rodrigues, nasceu e viveu em Tijuaçu, professora primária, neta de D. Anísia, tem 25 anos de idade. Entrevistada pela autora em 02/02/2005. 14 Marcelo Odilon Santana, filho de Dalva Odilon de Santana, é professor e cursa Pedagogia. Entrevistado pela autora em 08/08/2003. 15 Maria Bernardina, nasceu e se criou no povoado de Barreiras, aposentada como trabalhadora rural, tem 90 anos de idade. Entrevistada pela autora em 08/04/2001. 16 Maria Edista, moradora de Barreiras, faleceu em 2004. Entrevistada pela autora em 08/04/2000. 17 Maria Vitor, moradora de Tijuaçu, trabalhadora rural, tem 45 anos de idade. Entrevistada pela autora em 11/02/2002. 18 Maria Rodrigues é irmã de Iraildes Morito Santana, nunca saíram da Fazenda Alto, tem 66 anos de idade. Entrevistada pela autora em 26/12/1998. 19 Marinalva Santos da Silva, nasceu e sempre viveu povoado de Quebra Facão, é trabalhadora rural e vendedora de milho assado, é a percussionista do Samba de Lata e tem 48 anos de idade. Entrevistada pela autora em 10/01/2002. 20 Maurício Santana é marido de Dalva Odilon Santana, trabalhador rural, vive na Fazenda Alto e tem 65 anos de idade. Entrevistado pela autora em 11/01/2002. 21 Nira dos Santos, componente do Samba de Lata e agricultora. Entrevistada pela autora em 05/12/2004. 22 Valdelice da Silva, mais conhecida por Detinha, atuante nos diferentes setores da comunidade. Entrevistada pela autora em 02/11/2001. 23 Valmir dos Santos, nasceu em Tijuaçu é fiscal da limpeza pública e expresidente da Associação de Tijuaçu. Entrevistado pela autora em 22/10/2000 e 20/04/2001. 174 II ESCRITAS: a. ARQUIVOS BRASILEIROS Arquivos Baianos 1 Arquivo Público do Estado da Bahia Seção Colonial e Imperial: Mapas de escravos e seus respectivos donos – 1872/1887 Mapas de escravos livres Registros Eclesiásticos de Terras Catálogo de Registro de Terras Catálogo de Leis e Registros de Terras Igreja Matriz – Vila Nova da Rainha – 1843/1867 Presidência da Província – Governo- Limites da Freguesia -1833/1882 2 Instituto Geográfico e Histórico Diário Oficial da década de 50 sobre o mapeamento dos municípios. 3 Fórum de Senhor de Bonfim Livros de Notas do final do século XIX; Inventários e Testamentos de meados do século XIX até o século XX; Livro de Registro de Compra e Venda de Escravos – final do Século XIX; Livros de Carta de Alforria, final do século XIX. 4 Fundação Cultural Palmares Relatório Antropológico sobre Tijuaçu Mapa do perímetro quilombola 5 Associação Quilombola de Tijuaçu e Adjacências Estatuto da Associação dos Moradores de Tijuaçu 175 Atas da reunião da Associação dos Moradores de Tijuaçu 6 Arquivo dos Franciscanos de Campo Formoso Documentos e Mapas sobre a região 7 Paróquia de Senhor do Bonfim Livros de Batismo, de Casamentos e de Óbitos do Município de Senhor do Bonfim, Campo Formoso e Jacobina. 8 Centro de Estudos Baianos da Universidade da Bahia Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais. Arquivos Paulistas 1 Biblioteca da PUC Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral. Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais. 2 Biblioteca da USP Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral. Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais. 3 Biblioteca da UNICAMP Teses e dissertações sobre escravidão, memória e história oral. Historiografia sobre escravidão, famílias escravas, remanescentes de quilombo, mulheres escravas e manifestações culturais. b . ARQUIVOS PORTUGUESES 176 1 Biblioteca Nacional de Lisboa - BN Códice n. 7627, 11.08.1886 - Regimento do Ouvidor Geral do Brasil; Códice n. 610, Relação do salitre; Códice n. 599, cálculo estatístico do número de escravos existentes em países cristãos em 1832. Efeitos da abolição da escravatura no Brasil; como suprir a falta de braços; Códice n. 746, dos diamantes e de outros contratos da extração deles dos cofres de Lisboa para os países estrangeiros dos abusos em que todos laborarão e das providências com que se lhe tem ocorrido até o ano de 1788; Códice 457, coleção dos breves Pontifícios e Leis Régias desde o ano de 1741; Códice 642. Carta Régia elevando à categoria de vilas as aldeias que eram administradas por Jesuítas; Códice 455, relação dos libertos do reino; Códice 1680, Miscelânea - papéis vários; Códice 8555, Breve reflexão acerca do tráfico de escravos; Códice 8695, Escravatura - Abolição da escravatura -sua história desde 1784, considerações várias (s.d.); Códice 10.483 - Escravidão dos pretos. 2 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra -BGUC Catálogo de Manuscritos: Códice 706: Carta Régia de 11 de janeiro de 1690 sobre liberdade de uma escrava (fls. 25); Aviso de 18 de março de 1601 sobre liberdade (fls.26); Ordem de 20 de julho de 1772 sobre Direitos de Escravos (fls. 54); Sobre Direitos de escravos (fls. 88v.); Provisão de 8 de fevereiro de 1790 sobre Arrecadação de bens de Libertos . . . (fls. 93v a 95); Alvará que regula a prisão dos escravos por fugidos (fls.128); Cópia da Provisão de 18 de outubro de 1773 sobre direitos de escravos (fls. 31 e 32v.); Apontamentos relativos às leis reguladoras do subsídio literário e à arrecadação da coleta (fls. 136); Carta Régia ao Conde das Galveas, Vice-Rei e Capitão General de Mar e 177 Terra do Estado do Brasil sobre as comarcas onde deviam pôr as ações os moradores das vilas incluídas no distrito da Relação da Baía (fls. 140v); Título porque pertence ao Escrivão dos resíduos e capelas escrever na relação (fls. 141); Carta Régia de 30 de julho de 1766 sobre o contrato feito pelos donos de engenhos e lavradores (fls.144v); Alvará régio regulando o cumprimento da lei de 1º. de julho de 1730 sobre os navios que navegavam nos portos do Brasil para a Costa da Mina (fls.157v); Alvará sobre a forma da venda de escravos por arrematação (fls. 160); Códice 707: Alvará que determinou que os negros que se achassem em quilombos estando neles voluntariamente se lhe ponha com fogo uma marca em uma espada com a letra F e sendo achado com esta M se lhe corte uma orelha sem mais processo (fls.33v); Provisão que proibiu que os negros e negras vendessem fazendas pelas ruas, e que nas Câmeras não pudessem servir pessoas que tivessem lojas (fls.80); Códice 708: Índice do Livro 1o. Registro da Relação da Baía (fls.1); Códice 709: Carta Régia que proibiu ao provedor da Fazenda cobrar direitos alguns dos escravos que as partes remetem para o Rio de Janeiro, dando os compradores, ou vendedores, fiança de não irem para as Minas, tirando somente as guias para este fim, sem despensa de mais despacho algum (fls.300v); Códice 710: Datada de 17 de julho de 1775 - Provisão para coibirem as desordens dos negros fugidos suscitado à observação do parágrafo 3o. do Regimento dos Capitães do Mato de 1724 para se darem prêmios de vinte oitavos de cada negro quilombo, repetindo-se por quilombo toda a habitação de negros chegando a cinco (fls.23); Códice 567: Alvará regulando a vinda de escravos negros dos portos da América, como marinheiros (fls.253v). 3 Arquivo da Torre do Tombo: Papéis do Brasil: Avulsos 3, Documentos 25 e 26: Mapas do Ouro que se fundiu nas Fundições 178 de Goiás e de São Félix; Avulso 9, Maço 2; Avulso 1, n. 22 - Resenha sobre o conteúdo de alguns alvarás regulando a navegação entre o Brasil, Moçambique e a Índia; Avulso 7, n. 05- Donativo imposto aguardente; Códice 6: Provisões sobre matéria administrativa; Códice 15: Jurisdição Eclesiástica no Brasil; Capitanias do Brasil: 524 p.14, Livro 196: Livro do tesoureiro João Pinto Pereira da casa de Fundição de Jacobina para se lançarem todos os cargos e parcelas do seu rendimento do ouro e dos quintos reais; Livro 201, 1780: Receitas que se fizeram dos remédios para os escravos e forçados das Galés da Capitania da Bahia; Chancelaria de D. João VI, Livro 8. 4 Arquivo Histórico Ultramarino Capitania da Bahia: Documento n. 8750, 09.11.1775; Documento n. 19.401, 05.06.1799; Documento n. 18.173, 06.01.1798; Documento n. 19.362, 20.04.1799; Documento n. 29.815, 07.04.1807; Documento n. 29.893, 16.06.1807; Documento n. 29.913, 13 e 08.07.1807; Documento n. 12.917, 30.04.1786; Documento n. 12.235, 1786; Documento n. 6.966, 01.12.1765. 5 Arquivo da Biblioteca da Ajuda Códice: 51-x – 30, fl. 67-70. c. IBGE 179 Recenseamentos Gerais de 1990 Mapas do Estado da Bahia Mapa do Município de Senhor do Bonfim Mapa do distrito de Tijuaçu d. Imagéticas a) Fotografias: Dos diferentes fazeres da população de Tijuaçu Do distrito de Tijuaçu REFERÊNCIAS ABREU, Marta. Histórias da música popular brasileira: uma análise da produção sobre o período colonial. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001. AGUIAR, Durval Vieira. Descrições Práticas da Província da Bahia. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1979. ALBERTI, Verena. História Oral: A Experiência do Centro de Pesquisa e Documentação de História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1989. 180 ALGRANTI, Leila Mezan. Família e Vida Doméstica. In: História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa/organizado por Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História oral. Revista de História da Universidade Estadual Paulista, v. 14, São Paulo, UNESP, 1995. p. 125-136. ______ . Região, Sertão. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, FGV, 1995. p. 145-151. AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. (coord.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. AMARAL, Brás do. Memórias históricas e políticas. Bahia: Imprensa Oficial, 1940. ANDRADE, Maria José de Souza. A Mão de Obra Escrava em Salvador 1811-1860. Salvador: Corrupio, 1988. ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil. 3a. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982. ARAÚJO, Nelson de. Pequenos mundos: um panorama da cultura popular da Bahia. Tomo I, Salvador: Universidade do Estado da Bahia (EMAC), Fundação Jorge Amado, 1986. AUGÉ, Marc (Dir.). Os domínios do parentesco. Filiação, aliança matrimonial, residência. Lisboa, Edições 70, 2003. AVELINO, Yvone Dias. Experiências e Trajetórias de Vida. As tramas da memória universitária a partir de depoimentos orais. Projeto História, São Paulo, n. 22, 2001. p. 223-238. AZEVEDO, Amailton Magno. No ritmo do rap: música, oralidade e sociabilidade dos rappers. Projeto História, São Paulo, n. 22, 2001. p. 357-376. AZEVEDO, Célia M.M. de. Onda Negra, Medo Branco. São Paulo: Paz e Terra, 1987. BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. Tradução Xina Smith de Vasconcelos. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2003. BAHBHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. BAIOCCHI, Mari de Nasaré. Kalunga: povo da terra. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 1999. 181 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de F. Rabelais. São Paulo: Hucitec, Brasília: UNB, 1987. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. BARROS, Francisco Borges. Bandeirantes e Sertanistas Baianos. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1920. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo, Pioneira, 1971. ______________. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Anhembi, 1959. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. BORGES, Célia Aparecida Resende Maia. Devoção branca de homens negros. As irmandades do Rosário em Minas Gerais no século XVIII. Niterói:Departamento de História da UFF, 1998. Tese (Doutorado). BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A festa do Santo Preto. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1985. _______ . O Divino, o Santo e a Senhora. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978. BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Org.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. BRITO, Gilmário Moreira. Pau de colher na letra e na voz. São Paulo: EDUC, 1999. BRUNO, Ernani Silva. História do Brasil Geral e Regional. São Paulo: Cultrix, s/d. BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 182 ______ . A cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CAMPOS, João da Silva. Procissões Tradicionais da Bahia. Salvador: Secretaria de Educação e Saúde, 1941. CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CARNEIRO, Edison. O quilombo de Palmares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. ______ . Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1952. ______ . Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. ______ . Religiões negras e negros bantos. São Paulo: Civilização Brasileira, 1991. CARVALHO, José Jorge de (Org.). O Quilombo do Rio das Rãs: Histórias, Tradições e Lutas. Salvador: EDUFBA, 1995. CASTRO, Hebe M. de Matos. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa/organizado por Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. ______ . A cultura no plural.Campinas: Papirus, 1995. CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. CHALHOUB, Sidney. Os mitos da Abolição. Revista Trabalhadores – escravos, nº 1, Campinas: Secretaria Municipal de Cultura de Campinas, 1989. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. CHAUÍ, Marilena. O que Comemorar? Projeto História. São Paulo: EDUC, 2000. ______ . Compromisso e resistência, aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. 183 COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. ______ . A Abolição. 3a. edição. São Paulo: Global, 1986. CUNHA, Manoela Carneiro de. Negros Estrangeiros – os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985. DANTE, M. Claramonte Gallian. Pedaços da Guerra: experiências com História Oral de Vida de Tobarrenhos. São Paulo: FFLCH, USP, 1992. Dissertação (Mestrado). DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo. São Paulo: Paz e Terra, 1990. DEL PRIORE, Mary. A história do corpo e a Nova História: uma autópsia. Revista USP. São Paulo: USP, n. 23, Setembro/Outubro/Novembro 94. 49-61. DIAS, Paulo. A outra festa negra. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001. DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1949. DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil Colonial. São Paulo: Contexto, 2000. ______ . Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1984. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. DOMINGUES, Petrônio. Uma cultura de matriz africana em São Paulo: o terreiro de candomblé Ile Iya Mi Osun Muiywa. Projeto História, São Paulo, n. 22, 2004. p. 283302. ELÍADE, Mircea. O mito do eterno retorno: arquétipos e repetições. Lisboa: Edições 70,1988. FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres Forras – Riqueza e estigma social”. Revista Tempo n. 9. Rio de Janeiro:7 Letras, 2000. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Folguedos, feiras e feriados: aspectos sócio-econômicos das festas no mundo dos engenhos. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001. FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Dominus, 1965. 184 ______ . O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: DIFEL, 1972. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Entre-vistas abordagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1994. FIGUEREDO, Luciano. O avesso da memória. Cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Brasília: Edunb; Rio de Janeiro: José Olypio, 1993. FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4a. ed., São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. FREITAS, Décio. Palmares: Guerra dos Escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala (1933). 19a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. ______ . Sobrados e Mocambos. Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano. 2a. ed., Rio de Janeiro/ São Paulo: José Olympio Editora, 1951. FUNES, Eurípedes A . “Nasci nas matas, nunca tive senhor: história e memória dos mocambos do Baixo Amazonas”. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FURTADO, Júnia Ferreira. “Transitoriedade da vida, eternidade da morte”. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. GENOVESE, Eugene D. Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global Editora, 1983. GINZBURG, Carlo. A Micro-História e outros Ensaios. Lisboa: DIFEL, 1991. GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil, (Século XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP, 2005. GOMES, Flávio dos Santos. “Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX.” In: REIS, 185 João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. GORENDER, Jacob. Questionamentos sobre a Teoria Econômica do Escravismo Colonial. Estudos Econômicos, IPE/USP, vol. 13, nº 1, 1983. GOULART, José Apolônio. Da Palmatória ao Patíbulo. Rio de Janeiro: Conquista, 1971. GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Herança quilombola: negros, terras e direitos. In: MOURA, Clóvis. (org.). Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Maceió: UFAL, 2001. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro- 6ª. Ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2001. ______ . Da diáspora: Identidade e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardiã Resende ... (et al). Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: 2003. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. HENRIQUES, Isabel Castro. Território e Identidade: a construção da Angola Colonial (c.1872-c.1926) Lisboa: Centro de História de Lisboa, 2004. HENRIQUES, Isabel Castro. (Org.). Escravatura e transformações culturais: África – Brasil – Caraíbas. Actas do Colóquio Internacional. Évora: Vulgata, 2001. HERSKOVITS, Melville. The myth of the negro past. Boston: Beacon Press, first edited, 1941, 1990. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 14a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JANCSO, István; KANTOR Íris, (orgs.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa, Vol. II São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. KABENGUELE, Munanga. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986. LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 186 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993. LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.) História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Org.) História: Novas Abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (org.) História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. ______ . História e memória. Tradução Bernardo Leitão ... (et al.). – 5ª. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. LEITE, Miriam Moreira. A Condição Feminina no Rio de Janeiro. S/P Brasília: HUCITEC, Pró Memória, 1984. ______ . Retratos de família: leitura da fotografia histórica. 3ª. ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. LEITE, Serafim de Faria. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1938. LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Tradução: Lúcia Haddad, Revisão Técnica Marina Maluf. In:Projeto História, n. 17. São Paulo, nov. 1998. pp. 63201. LUCENA, Célia Toledo. Memórias de famílias migrantes: imagens do lugar de origem. Projeto História, n. 17. São Paulo: EDUC, nov. 1998. pp. 397-428. ______ . Refazendo trajetórias:memórias de migrantes mineiros em São Paulo (Jardim Barbacena, 1960-1995). São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC – SP, 1997. Tese (Doutorado em História Social). MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas. 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. ______ . O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. São Paulo-Rio de Janeiro, Edusp-UFRJ, 1994. MAGALHÃES, Basílio de. Expansão Geográfica do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1945. MARQUES, Sílvia Corrêa. História e Memória do Jaó – um bairro rural de negros. São Paulo: FFLCH, USP, 2001. Dissertação (Mestrado em História Social). 187 MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro .Rio de Janeiro: Zahar, 1979. MATTOS, Wilson Roberto de .Negros contra a ordem: resistências e práticas negras de territorialização no espaço da exclusão social – Salvador/BA (1850-1888). São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC – SP, 2000. Tese (Doutorado em História Social). MATTOSO, Kátia Maria de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio, 1988. ______ . Bahia – Século XIX, Uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ______ . Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2001. ______ . Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX: uma fonte para o estudo das mentalidade. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Centro de Estudos Baianos, 1979. MIRANDA, Carmélia A. S. Festas e comemorações: versos, danças e memória – a Festa da Marujada em Jacobina. Projeto História, n. 28, São Paulo: EDUC, 2004. p. 451-458. ______ . Reminiscências que se fazem presentes. In: ALMEIDA, Rose Mary. (org.). E Tu me Amas? (Encontro de leitores e enamorados da cidade de Senhor do Bonfim). Senhor do Bonfim: Decalck, 2001. ______ . Um olhar sobre a festa da Marujada de Jacobina. São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC-SP, 1999. Dissertação (Mestrado em História Social). MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa por Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______ . Terror na Casa da Torre: tortura de escravo no Brasil Colônia. In: REIS, João José. (Org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988. MOTT, Maria Lúcia de Barros. Submissão e Resistência: a mulher na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1991. MOURA Glória. “Os Quilombos Contemporâneos e a Educação”. Humanidades, n. 47, novembro de 1999. Brasília: Editora UNB, 1999. Revista 188 MOURA, Clóvis. Quilombos e a Rebeldia Negra. São Paulo: Brasiliense, 1981. ______ . O Negro, de bom escravo a mau Cidadão? Rio de Janeiro: Conquista, 1977. ______ . Rebeliões da Senzala: Quilombo, Insurreições, Guerrilhas. 3a. ed., São Paulo: Livraria Ciências Humanas, 1981. ______ . Os quilombos na dinâmica social do Brasil: Maceió: EDUFAL, 2001. NEVES, Erivaldo Fagundes. Dimensão histórico-cultural: Chapada Diamantina. Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável. Salvador: Cia. de Desenvolvimento Regional e Ação Regional – CAR, 1997. ______ . Uma Comunidade Sertaneja – da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local) Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia; Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 1998. ______ . Sampuleiros Traficantes: Comércio de escravos do Sertão da Bahia para o Oeste Cafeeiro Paulista. s.d. (texto mimeografado). NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Documentos sobre Escravidão no Brasil. 2a. edição . São Paulo: Contexto, 2001. NORA, Pierre. Entre mémorie et historie. In: NORA, Pierre (org.). Les Lieux de Mémorie. Paris: Glimardi, 1984. O’DWYER, E. C. (Org.) Terra de quilombos. Rio de Janeiro: ABA, 1995. ______ . “Remanescentes de quilombos” na fronteira Amazônica: a etnicidade como instrumento de luta pela terra. In: Os quilombos na dinâmica social do Brasil: Maceió: EDUFAL, 2001. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. O Liberto: o seu mundo e os outros – Salvador, 1790-1890. Salvador: Corrupio, 1988. ______ . Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo, n. 28, dezembro/fevereiro 95/96. p. 174-193. OLIVEIRA, Osvaldo Martins de. Relatório Parcial de identificação da comunidade negra de Tijuaçu. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2000. (texto mimeografado). PAIVA, Eduardo França. Coartações e alforrias nas Minas Gerais do Século XVIII: as possibilidades de libertação escrava no principal centro colonial. Revista de História, USP- SP: EDUSP, 1995. p. 49-57. ______ . Um aspecto pouco conhecido das alforrias: a coartação em Minas Gerais no século XVIII, In: Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. p. 47-53. 189 ______ . Celebrando a alforria: amuletos e práticas culturais entre as mulheres negras e mestiças do Brasil. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001 PEDREIRA, Pedro Tomás. Os quilombos brasileiros. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, Departamento de Cultura da SMEC, 1973. PERROT, Michele. Os excluídos da História. São Paulo: Paz e Terra, 1988. PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Nas Veredas da Sobrevivência: Memória, Gênero e Símbolos de poder feminino em Povoados Amazônicos de Antigos Quilombolas. São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC – SP, 1999. Dissertação (Mestrado em História Social). PORTELLI, Alessandro. O Massacre de Civitella Val de Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaína e FERREIRA Marieta Moraes (coord.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Cultural Getúlio Vargas, 1996. ______ . Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História, São Paulo, n. 15, 1997. p. 13-47. ______ . História Oral como Gênero. Projeto História n.22. São Paulo, 2001. p. 9-36. ______ . Forma e significado na História Oral. A pesquisa como experimento de igualdade. Projeto História, n. 14, São Paulo, 1997. p. 7-24. ______ . O que faz a História Oral diferente. Projeto História, n. 14, São Paulo, 1997, p. 25-39. ______ . Sonhos ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, n. 10, São Paulo, 1993. p. 41-58. ______ . A Filosofia e os Fatos. Tempo, n. 2, Rio de Janeiro, 1996. p. 59-72. PORTO, Liliane de Mendonça. A reapropriação da Tradição a partir do presente: um estudo sobre a Festa de N. Sra. do Rosário da Chapada do Norte –MG. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). POUTIGNAT Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Tradução de Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998. PRICE, Richard. Reinventando a história dos quilombos: rasuras e confabulações. Afro-Ásia, Salvador: EDUFBA, n.23, 2000. p. 241-265. 190 RAMOS, Arthur. O Negro na Civilização Brasileira. São Paulo: Livraria Editora do Estudante do Brasil, 1956. ______ . As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Companhia Nacional, 1979. REIS, Isabel Cristina dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001. ______ . “Uma negra que fugio, e consta que já tem dous filhos”: fuga e família entre escravos na Bahia oitocentista”. Salvador: Afro-Ásia, N.23, 2000. p. 29-48. REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ______ . Rebelião Escrava no Brasil: A História do levante dos Malês. (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986. ______ . Batuque negro: repressão e permissão na Bahia Oitocentista. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001. ______ . Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo: EDUSP, 95/96. n. 28. p. 176. ______ . A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, São Paulo, USP, 1993. p. 8-29. ______ . Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro – Bahia, 1806. In: REIS, João José; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. REIS, João José; Silva, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. REIS, João José. (Org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988. REIS, João José; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 7a. ed., São Paulo: Nacional; Brasília: EDUNB, 1988. 191 ROLNIK, Raquel. História Urbana, história da cidade?, Cidade e história. Salvador: UFBA/Faculdade de Arquitetura, Anpur, 1992. RUSSEL-WOOD, A. J.R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem. Vol. 6, n. 12, Dez. 2001 – Rio de Janeiro: Sete Letras, 2001. Tempo/ Revista do Departamento de História da UFF. p. 11-50. SAFFIOTI, Heleieth. J. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. 2a. ed. Petrópolis, Vozes, 1979. SAMUEL, Raphael. “Teatros da Memória”. Projeto História, n. 14. São Paulo: EDUC, 1997. p. 41-81. SANTOS, Juana Elbein. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia: traduzido pela Universidade da Bahia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986. SCARANO, Julita. Negros nas terras do ouro: cotidiano e solidariedade século XVIII. 2ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002. ______ . Fé e Milagre: Ex-votos Pintados em Madeira: Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Edusp, 2004. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. _______ . Cantos e Quilombos numa conspiração de escravos huassás, Bahia, 1814. In: Reis, João José. Liberdade por um fio: São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SLENES, Robert. Senhores e Subalternos no Oeste Paulista. In: História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Português por Laura de Mello e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SILVA, Eduardo. Dom Oba II d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SILVA, Ignácio de Cerqueira. Memórias Históricas da Bahia. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1940. SILVA, José Freitas da. Intendentes e Coronéis da Vila de Campo Formoso. Campo Formoso: 1998. SILVA, Lourenço Pereira. Memória Histórica e Geográfica sobre a Comarca de Senhor do Bonfim. Salvador: Lutho Typo e Encadernação Reid & Cia. 1915. ______ . O Município de Senhor do Bonfim. Salvador: Tipografia da Bahia, 1906. 192 SILVA, Luiz Geraldo. Da festa à sedição: sociabilidades, etnia e controle social na América Portuguesa, (1776-1814). In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (Org.). Cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec, Imprensa Oficial, 2001. SILVA, Maria Nizza (Org.). Brasil: Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. SILVA, Valdélio. Rio das Rãs a luz da noção de quilombo: de uma comunidade remanescente de quilombo. Afro-Ásia, EDUFBA, Salvador: 2000, n. 23. p. 267-295 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. ______ . O Terreiro e a cidade: a formação social negro-brasileira. Rio de Janeiro, Petrópolis, RJ: 1988. SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro. 2a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. ______ . Norma e conflito: aspectos da História de Minas Gerais no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 1999. 151-174. SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros: cantos, danças e folguedos. São Paulo: Art Editora, 1988. ______ . Música popular de índios, negros e mestiços. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972. THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______ . A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. _______ . Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992. THOMSON, Alistair. Anzac Memories. Austrália: Oxford University Press, 1984. ______ . Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história oral e memória. Revista Projeto História, Ética e História Oral. São Paulo: EDUC, 1997. VAINFAS Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. VASCONCELOS, Salomão. Os primeiros aforamentos e os primeiros ranchos de Ouro 193 Preto. In: RSPHAN, 1941, N. 5. VELH0, Gilberto. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 4a. edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. VERGER, Pierre. Notícias da Bahia. Salvador: Corrupio, 1981. ______ . O fumo da Bahia e tráfico dos escravos do Golfo de Benin. Salvador: Centro de Estudos Afro-Oriental da UFBA, 1996. VIANA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia: Um estudo clássico sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. VIANNA, Urbino. Bandeiras e Sertanistas Baianos. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935. VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1921. ______ . A Bahia no Século XVIII. Bahia: Editora Itapuã, 1969. VOGT, Carlos; FRY; Peter. Cafundó: A África no Brasil: Linguagem e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. WILLEKE, Frei Venâncio. Missões Franciscanas no Brasil (1500-1975). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1974. WILLIAMS, R. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. _______ . Cultura. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998. ZALUAR, Alba. Os homens de Deus – Um estudo dos Santos e das Festas no Catolicismo Popular. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 194 ANEXO 195 196 Foto n° 1 – Mãe com o bebê no colo. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 197 Foto n° 2 - Apresentação do Samba de Lata. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2005. Foto n° 3 – Vendedora de feijão verde acompanhada com seus filhos em Senhor do Bonfim. Fonte: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 198 Foto n° 4 – Morador de Tijuaçu. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 199 Foto n° 5 – Pequeno açude onde alguns habitantes de Tijuaçu abastecem suas casas com água. Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. Foto n° 6 – Vida cotidiana na zona rural – família de d. Ernestina. Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. 200 Foto n° 7 - Sede da Associação Quilombola. Fotografo: MIRANDA, Igor. 2005. Foto n° 8 – Casal de Tijuaçu Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 1998. 201 Foto n. 9 – Apresentação da Roda do Arco-Íris. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2003. Foto n. 10 – A simpatia da vendedora de acarajé. Fotografo: Jonas, 2002. 202 Foto n. 11 – Valmir dos Santos, ex-presidente da Associação quilombola. Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. 2005. 203 Foto n. 12 – Moradora de Tijuaçu Fotografo: OLIVEIRA, Nivaldo. s/d. 204