Reciclagem. Hora de senta-se à mesa e discutir seriamente
Por Rosângela Lotfi
Do minério de ferro veio ao aço voltará. O equivalente automotivo da citação bíblica é
uma realidade em vários mercados mundo afora. Países onde a reciclagem de veículos,
desmontagem e reuso de diversos materiais atingem 95% dos veículos em desuso. No
Brasil, o Sindipeças estima que a frota circulante em 2010 era de 32,5 milhões de
veículos, desse total 1,3 milhão de unidades, ou 4% têm mais de 20 anos, mas apenas
1,5% dessa frota sai de circulação e vão para a reciclagem, o resto fica “vagando” pelas
ruas, pátios de Detrans, terrenos, represas, rios.
O tamanho da frota é uma avaliação do Sindicato Nacional da Indústria de
Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças), mas não uma convicção, apesar
do levantamento anual minucioso da entidade que considera um índice médio de
mortalidade de 1,5% ao ano para a linha leve: 1% por perda total em acidentes e 0,5%
por roubo sem recuperação. É que há no Brasil uma frota marginal, irregular (estimada
em 12% do total) sem licenciamento, documentação, que não paga impostos ou multas,
a maioria sem condições mínimas para circular. Esta seria a frota alvo para a
reciclagem. Seria na forma condicional por que, segundo Elias Bueno, secretárioexecutivo do Sindicato das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (Sindinesfa), falta de um
Programa de Renovação da Frota. “Veículos em condições precárias continuam
circulando, outros acabam sendo descartados em desmanches e depósitos de ferros
velhos, ficam na posse de seguradoras, Detrans que não têm espaço físico para
acondicionar carros recolhidos e/ou apreendidos, ou são abandonados em vias públicas
causando sérios problemas para população.”
O Programa de Renovação da Frota é um assunto que esteve na pauta diversas vezes.
No fim da década de 1990 as montadoras defendiam a inspeção veicular ambiental,
técnica e a reciclagem. O objetivo era aumentar a venda de veículos 0 km já que o
mercado interno registrava quedas acentuadas. Foi considerado até um bônus, um valedesconto de R$ 1,8 mil como incentivo. A ideia não era original e funciona em alguns
países, quando uma pessoa troca o carro, ela obtém um desconto se entregar o veículo
no ato da compra ou recebe um bônus que pode ser usado para a compra de um carro 0
km ou com idade menos avançada. A irregularidade dos veículos, muitas vezes o bônus
era inferior às pendências financeiras dos carros, e a falta de legislação específica de
abrangência nacional possibilitando o desembaraço e a baixa nos órgãos competentes,
entre outros fatores, fez com que o Programa não saísse do papel.
Questões ambientais
Há pelo menos dois motivos para a reciclagem, o econômico e a questão ambiental.
Elias Bueno lista alguns dos benéficos ambientais: preservação das reservas minerais;
economia de energia e água (veja quadro abaixo); aumento da vida útil dos lixões e
aterros com desoneração dos municípios; combate aos focos transmissores de doenças,
provocadas com acúmulo de materiais que poderiam ser reciclados em locais não
apropriados; redução dos índices de poluição do ar; geração de novos postos de trabalho
com inclusão social; evita e/ou diminui a evasão de divisas com possíveis importações
da matéria prima. “Quando o aço é produzido inteiramente a partir da sucata há uma
redução da poluição do ar da ordem de 85% e de 76% no consumo de água, eliminando
quase todos os impactos decorrentes da atividade de mineração. O Brasil recicla 95%
das latinhas de alumínio e cada tonelada de alumínio reciclado poupa a degradação do
ambiente com a retirada de cinco toneladas de bauxita. A economia de energia equivale
à de um televisor em uso pelo período de três horas para cada lata de alumínio
reciclada.”, exemplifica Bueno.
O aço também é um dos produtos mais recicláveis que existe, cerca de 40% da produção
mundial são feitos a partir da sucata ferrosa. “Derivados de minério de ferro, como aço
vão muito além da carroçaria, são os elementos predominantes em um carro, cerca de
57% do total de materiais. Alumínio 8%, e com a busca por menor peso para reduzir
consumo de combustível e emissões de poluentes, esse percentual tende a aumentar.
Plásticos e borracha, cerca de 14%, vidros 3%.”, explica Francisco Satkunas,
conselheiro da SAE Brasil. Satkunas afirma que a indústria automobilística há anos
projeta veículos para a reciclagem. “Na Europa, por lei, as montadoras têm de reutilizar
95% do carro. No Japão, 70% dos materiais dos veículos serão recicláveis. Aqui entre
80 e 90%, são de materiais que podem ser reciclados. A indústria está criando os
fundamentos para que os veículos que saem da natureza voltem para a natureza.”
O mundo recicla
Entre outras atitudes, a indústria faz isso evitando a “hibridização” de peças. Em uma
peça de plástico, por exemplo, só vai plástico mesmo nos locais de encaixe e até
pequenas porcas e parafusos de metal foram eliminados. A presença de diferentes
materiais pode impedir a reutilização ou, pelo menos, aumentar os custos da reciclagem
pela necessidade de separação dos materiais. “Antigamente, os vidros de para-brisa
eram puros, infinitamente mais recicláveis do hoje. Para evitar que estilhassem em caso
de colisão, machucando os ocupantes, os vidros são um sanduiche com uma película
plástica no „recheio‟. Vários materiais danosos foram banidos dos automóveis como o
amianto, o cádmio e o zinco. O chumbo ainda não foi possível eliminar das baterias,
mas a tendência é que os carros se tornem mais orgânicos, mais recicláveis.”, explica o
executivo. Em 2009 o Cesvi Brasil fez um estudo para identificar as melhores práticas
mundo afora. Eduardo Santos, gerente institucional do Cesvi Brasil, conta a experiência
da Argentina. Lá o mercado de autopeças reaproveitadas e a reciclagem de carros é cada
vez maior. A maior recicladora é uma divisão do Cesvi que desde 2005 desmonta e
reaproveita peças a partir do desmanche legalizado de automóveis. “Peças de segurança
não são reaproveitadas. O governo estava próximo e fez uma lei (Lei do Desmanche),
havia o apoio de montadoras, das concessionárias e redes de revenda que queriam
combater os desmanches ilegais. As peças são avaliadas, há transparência nesse
comércio.” Nos EUA a política de reciclagem é “triturar” os veículos em uma máquina
chamada Shredders que além de triturar, limpa a sucata que entra na máquina com cerca
de 30% de impurezas. No processo de limpeza, metais não-ferrosos, como alumínio,
cobre e bronze, são separados. A sucata sai do Shredder em pedaços de 10 a 15
centímetros, completamente limpa e esse insumo volta para os fornos. Antes, algumas
peças são colocadas à venda para colecionadores, restauração de veículos ou para
tunning.
Falta política
“Em Portugal há desmontadoras que compram sucata fora do país para reciclagem,
transformam em dinheiro e insumo. Na Espanha existe uma prática e uma lei. Na
Argentina, na Alemanha, as práticas vão se modificando, mas existem leis que regem o
assunto. Aqui não tem política para a reciclagem e por isso o volume é pequeno. Há um
monte de detalhes a serem pensados, regras claras a serem estabelecidas. Mas quem esta
interessado nisso? Quase nem se discute o assunto.”, explica Santos. Um dos pontos
mais polêmicos e o reaproveitamento de peças. “É um bom negócio [a venda de peças
para reutilização] desde que sejam estabelecidas regras, peças identificadas, cadastradas
em sistemas e desmontadoras autorizadas a trabalhar com isso.”, pondera o gerente
institucional do Cesvi. “As montadoras possuem tecnologia de ponta e altamente
avançada capaz de inspecionar as peças minuciosamente e teriam que certificar-se da
possibilidade do reuso com segurança e durabilidade para satisfação do consumidor. A
reutilização de peças automotivas é assunto que deve ser tratado com seriedade e requer
análise e certificação por parte de indústrias, fabricantes e órgãos competentes, além do
acompanhamento e fiscalização governamental.”, defende Bueno do Sindinesfa.
Francisco Satkunas com a experiência de quem trabalhou 40 anos em montadora
resume: “O ciclo de produção, de montagem de um carro é entre 15 e 25 horas, com
pessoal qualificado. O de desmontagem, que não exige nenhuma qualificação é de
quatro horas e meia. Quem garante que as peças não voltarão ao mercado sem serem
remanufaturadas? A remanufatura é uma atividade legítima que garante a integridade e
qualidade de produto. Estabelecidos parâmetros de procedência, integridade com
garantia associada à mesma. É legítimo.”
Viável economicamente.
Na Europa além da falta de espaço para colocar o ferro-velho, há preocupações com a
contaminação do solo pelos resíduos líquidos (combustível, óleo lubrificante, fluidos de
freio e embreagem, líquidos de bateria, gás CFC do ar condicionado, etc.), com a
destinação correta e deposito do lixo em locais apropriados. Outro problema é a falta de
matéria prima e do alto custo dela. “Até 1975, na Suécia, os carros em desuso eram
jogados no mar. Eles retiravam os líquidos e os esqueletos no mar se transformam em
recifes artificiais, repletos de corais que atraem vida marinha, transformando-se em
miniecossistemas. Isso foi proibido e eles desmontam para usar tudo que for
possível.”,conta Satkunas. O executivo fez um levantamento sobre desmontagem e
reciclagem: “Na Itália existe 4.500 desmontadores com alguma automação e 16
trituradores (Shredders). Na Coréia do Sul, que também não tem abundância de matéria
prima há 255 desmontadores e oito trituradores. Na Austrália, apesar da extensão do
território também não há matéria-prima suficiente e existem 1.700 desmontadores e dois
trituradores. No Japão tem 4.000 desmontadores e 140 trituradores. No Brasil só há os
dois Shredders da Gerdau. Vendido como peça, desmontado e com materiais separados
o „carro‟ vale R$ 250,00. E como há abundância de minério de ferro no Brasil,
economicamente e sob o ponto de vista da indústria automobilística não é um bom
negócio, não para as montadoras.” Satkunas defende a desmontagem e reciclagem de
tudo que for possível e lembra dos pneus. Há uma legislação que rege o destino dos
inservíveis. Reciclar é uma obrigação dos fabricantes de pneus. A resolução do Conama
(Conselho Nacional do Meio Ambiente) exige que a cada quatro unidades fabricadas,
cinco inservíveis tem de ser reaproveitados.
Precisa começar
Da resolução surgiu a Reciclanip ligada à Associação Nacional da Indústria de
Pneumáticos (Anip) que, entre outras ações, instala pontos de coleta nas cidades e
transporta o material para usinas de trituração. A borracha em pó é usada na produção
de asfalto, na indústria de cimento e como matéria-prima de tapetes de borracha,
incluindo os de automóveis. “Há vantagens econômicas que justificam a reciclagem de
veículos é um negócio para siderurgias e o governo poderia incentivar lugares para a
desmontagem.”, afirma Satkunas. Elias Bueno afirma que há anos o comércio atacadista
de resíduos e sucatas metálicas atuam na coleta, seleção e preparação de sucata ferrosa e
não ferrosa. “Essas empresas investem em logística, tecnologia, práticas de gestão
ambiental e no aumento da capacidade operacional e estão prontas para maximizar a
produção e estabelecer parcerias, dando destinação ambientalmente correta aos
materiais metálicos recicláveis.” Associação Brasileira de Engenharia Automotiva
(AEA) já entregou um estudo sobre a reciclagem de veículos para o Ministério das
Cidades. Idem o Cesvi para o governo do Estado de São Paulo. Para Eduardo Santos em
uma sociedade democrática todos os players devem sentar à mesa e discutir, com
garantias para todos os lados. “É preciso uma lei e esta deve evoluir, assim como a
sociedade.”, afirma Eduardo Santos. Ele defende a criação de um projeto piloto,
começar a fazer e ir aprendendo quais as melhores práticas para o país.
ECONOMIA DE ENERGIA ELÉTRICA COM A RECICLAGEM
MATERIAIS
%
Sucata de Alumínio
95
Cobre Reciclado
85
Plástico Reciclado
80
Aço Reciclado
74
Papel Reciclado
65
Chumbo
65
Zinco
60
Fonte: Cempre
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