Maná das
Alagoas
34
GUSTAVO MELO
ano VII / nº 20 / 2014
Ricardo Lêdo
TEXTO: LUÍS
Uma das mais típicas iguarias da gastronomia local, o sururu
que emerge dos manguezais maceioenses se configura como
principal meio de subsistência de centenas de famílias nas
áreas periféricas que margeiam as lagoas da capital, e há
gerações cristaliza um imaginário que o inscreve como um
dos mais representativos elementos de nossa cultura
Acervo: MISA
REPORTAGEM
35
ano VII / nº 22 / 2014
desde que nossos espertos
ancestrais descobriram que
o fogo também vinha bem a
calhar na hora de preparar os
animais abatidos durante a
caça, os saberes adquiridos e
as experiências gastronômicas
acumuladas ao longo da
história atravessaram séculos.
Tanto isso é verdade que
na gastronomia alagoana,
por exemplo, muitas das
mais tradicionais receitas
dentre as que herdamos
de nossos antepassados
indígenas, portugueses e
afrodescendentes, ainda
constam em nossa culinária
e refletem traços de nossa
identidade cultural. Sobre
essa relação entre hábitos
alimentares e identidade,
o antropólogo Raul Lody é
sintético em uma de suas
análises. “O próprio imaginário
popular já aponta e valoriza
a relação comida/identidade:
‘você é o que você come’, ou
‘dizei o que comes que te direi
quem és’, ou ‘papa-jerimum’,
para aqueles que nascem no
Rio Grande do Norte, e ainda
nesse estado os nativos são
chamados de potiguares,
derivado de potiguara, que quer
dizer ‘papa-camarões’; ‘papasururu’ para os que nascem em
Alagoas; ‘papa-goiaba’ para os
que nascem no estado do Rio de
Janeiro; ou ‘papa-hóstia’ para
as assíduas frequentadoras da
igreja, entre outras maneiras
de situar homem/comida e
lugar e também assim apoiar
Cena do documentário Cadeia
Produtiva do Sururu em Alagoas,
de João Schwartz: mapeamento
em torno do molusco
Ricardo Lêdo
odo trabalho do homem é
para sua boca...”, já advertia
o Eclesiástico, em uma de
suas passagens que surge
exatamente sob esse recorte no
texto de introdução do clássico
História da Alimentação
no Brasil, do pesquisador,
antropólogo e jornalista Luís da
Câmara Cascudo (1898-1986),
que abre seu estudo recorrendo
ainda a outra citação, esta
do alemão Friedrich Schiller:
“Toda a existência humana
decorre do binômio estômago
e sexo”. O velho Schiller
sabia mesmo das coisas. Mas
para além dessa inescapável
realidade apontada pelo notável
filósofo, além dos fatores
indiscutivelmente ligados às
necessidades primárias do
homem e à satisfação de seus
instintos básicos, o ato de se
alimentar também se relaciona
a aspectos de ordem social
e cultural. É também uma
questão de identidade.
Desde tempos imemoriais,
os mais sofisticados entre os
primitivos já encontravam na
experiência cotidiana métodos
criativos para transformar o
que extraíam da natureza em
alimento. E alguém duvida
que já naqueles tempos, em
meio a extenuante luta pela
sobrevivência, não houvesse
entre os antepassados
verdadeiros gênios da
gastronomia? A elevada
sabedoria dos antigos há muito
nos ensina que a necessidade
é a mãe da invenção. E
O sururu in natura, ainda na
casca: alimento que garante a
subsistência da população pobre
de Maceió
Com alto teor de proteína, o
sururu pode ser encontrado no
entorno da lagoa Mundaú
uma construção de pertença,
patrimonializando o que se
come enquanto uma atestação
de cultura e, por conseguinte,
de singularidade em contextos
tradicionais e alguns
globalizados”.
No livro Delícias da Cozinha
Alagoana – As Melhores
Receitas das Irmãs Rocha,
Maria Rocha Cavalcanti
Accioly relata as origens desse
imaginário representativo
na culinária nordestina,
chamando a atenção para o
fato de que aqui no Nordeste
a gastronomia mantém um
formidável equilíbrio entre o
legado europeu, o africano e o
indígena. “Só a Bahia guardou
uma culinária acentuadamente
africana. No início de nossa
colonização, aportavam no
Nordeste navios que traziam
de Portugal e das ilhas, azeite,
vinhos, bacalhau e muito
mais. Esses ingredientes
permitiram que os portugueses
mantivessem a cozinha de sua
terra natal nos engenhos de
açúcar e nas casas-grandes.
Com o passar do tempo, as
comidas africanas e indígenas
foram se impondo”, escreveu
Maria Rocha, que em seu texto
elege o sururu como o mais
alagoano dos pratos.
Alagoas é tão marcado pela
beleza de suas águas que o
próprio nome do estado reflete
o significado da importância
de suas inúmeras lagoas
para a composição desse
imaginário, cujo cenário
abriga em suas entranhas
a secular cultura do sururu.
Ainda que seja um produto
geograficamente vinculado às
áreas que circundam as lagoas
maceioenses, esse pequeno
molusco com nome científico
em latim (mytella charruana),
tem sua representação
simbólica tão atrelada à nossa
identidade cultural que a
própria composição geográfica
do território onde ele se
desenvolve foi identificada
esteticamente na obra do
autor Jorge de Lima, que, em
sua novela O Anjo, escreveu:
“Sururus existem em quase
todas as lagoas do Brasil. Porém
os desta lagoa (Mundaú), devido
a circunstâncias especiais
explicadas pelos naturalistas,
como mistura de água do
mar com águas dos rios que
deságuam na lagoa, e outras
causas, tornam-se como
que degenerados, pequenos,
gordinhos, gostosíssimos”.
Alimento que garante a
subsistência da população
humilde que há gerações habita
as áreas periféricas situadas
no entorno da lagoa Mundaú,
o sururu possui alto teor de
proteínas. A sabedoria popular
diz, inclusive, que o seu caldo
rico em fosfato é bom para o
cérebro. Em geral, ele prolifera
nas partes mais rasas da lagoa,
dentro da lama, onde vivem em
colônias. Ali, ele cresce, engorda
e sobrevive de acordo com o
teor de salinidade da água.
Sua mais tradicional forma de
Ricardo Lêdo
“T
REPORTAGEM
36
ano VII / nº 22 / 2014
37
ano VII / nº 22 / 2014
REPORTAGEM
um vasto complexo culinário
em torno do que o seu fruto
tem a oferecer. Originalmente
asiático, o coqueiro chegou a
Cabo Verde por intermédio dos
colonizadores portugueses,
e de lá veio para o Nordeste
brasileiro.
O autor relata ainda que entre
os séculos 17 e 18 os coqueirais
avançaram da orla baiana até
Pernambuco, se espalhando
por toda a costa nordestina,
onde foi aprimorada a técnica
de extração do leite do coco,
herdada da culinária dos
africanos orientais. A prática
consiste em ralar a polpa do
coco, que em seguida deve ser
molhada com água quente e
espremida em um pano até
liberar o suco. Daí é possível
compreender de onde vieram
todas aquelas laboriosas
receitas preparadas por nossas
avós, e a razão de a culinária
local ser tão característica
Ricardo Lêdo
preparo é o Sururu de Capote,
que é servido na casca. Uma
verdadeira raridade nos dias
de hoje. A iguaria pode ser
saboreada ainda com pirão
coberto, preparado de forma
híbrida com outros moluscos,
frito ou cozido ao coco, como
delicioso ensopado. “A culinária
nordestina em geral é muito
parecida, o que difere é que em
Alagoas usa-se o raspador para
ralar o coco, e extrair seu leite,
e o colorau para dar cor aos
pratos”, explica a chef Tatiana
Brasil, do buffet Gourmeteria.
Em sua composição de
cidade restinga, Maceió revela
nos seus vastos coqueirais
a vocação para a culinária à
base de coco. Segundo Câmara
Cascudo, o coqueiro fincou
raízes no litoral nordestino
desde meados do século 16.
Substituindo o cajueiro na
paisagem original do nosso
litoral, os coqueiros geraram
38
ano VII / nº 22 / 2014
quanto ao uso desse produto
– sobretudo, nos pratos que
levam o sururu.
PRIMÓRDIOS
Chegar a uma possível origem
da cultura do molusco nas
lagunas maceioenses talvez
signifique percorrer um
caminho obscuro que, segundo
o professor e antropólogo
Edson Bezerra, vai dar no
ambiente ancestral em que
viviam os povos da pré-história
brasileira, mas especificamente
os índios que habitaram
a região onde, durante o
processo de colonização,
diversas sociedades primitivas
foram devastadas e levadas à
extinção. “Se formos pensar
nos tempos imemoriais, o
que tínhamos por ali nos
entornos da Mundaú eram
os gentios, etnias que foram
O sururu inspira
os mais diferentes
modos de preparo.
Ao lado, cozido
no leite de coco e
servido no cocoverde
sendo dizimadas na medida
em que os colonizadores foram
se implantando em práticas de
extermínio. Todavia, roteiros
de povoamentos e marcos de
origem nas águas da Mundaú
abrigariam também os
camponeses desalojados das
antigas e seculares relações
sociais, quando da derrocada
dos engenhos, os quais, devido
a quebra dos antigos vínculos
das relações entre escravos e
senhores em decorrência da
emergência das usinas, foram
para as lagoas e as beiras
dos rios, que se tornaram
as moradas primitivas dos
migrantes. Nessas paragens,
camponeses e ex-escravos
ergueram mocambos e
arruados e, na reminiscência
das memórias coletivas dos
tempos rurais, transformaram
aqueles espaços em enclaves na
modernidade”.
Nesses espaços, o crescente
contingente de migrantes
desenvolveu um simulacro
de vida urbana, onde foram
erguidos pequenos povoados e
vilas. No entanto, em meio a esse
processo, o universo lagunar
só veio se consolidar de fato
entre o fim do século 19 e início
do século 20, com a crescente
densidade demográfica e o
desenvolvimento do comércio,
que emergia da necessidade
de trocas. Nessas condições,
como consequência de sua
posição central e da ausência
de estradas, as lagoas se
consolidaram como ponto
estratégico para o escoamento
da produção interna, pois era
através das lagoas e de seus
canais que trafegavam os
moradores e os comerciantes.
“O Theo Brandão, em
seu Folguedos Natalinos, é
bastante esclarecedor deste
deslocamento que vai se
dando entre os fins do século
19 e o início do século 20”, diz
o professor Edson Bezerra.
“No período de entressafra
da moagem, os senhores de
engenho se deslocavam dos
interiores trazendo juntamente
com eles um séquito de
trabalhadores e, dentre estes,
os seus brincantes, inclusos
aí os reisados, os cantadores
de coco etc. Penso então que
por aí se explica o imaginário
das lagoas em discursos,
imagens, fotografias, crônicas,
enunciados e notícias sobre
a cidade no decorrer das
primeiras décadas do século 20.
Marechal Deodoro, Santa Luzia
do Norte, Coqueiro Seco – eis
alguns exemplos de arruados,
povoados, vilas e cidades que
por ali germinaram no primitivo
de nossa colonização, entre
os séculos 17, 18 e 19. A cultura
do sururu é um complexo de
relações que sempre esteve ali
se retroalimentando, e se ela
é uma cultura que sobrevive
em meio à miséria que cerca
todo o entorno das geografias
lagunares, ela também contém
uma beleza imensa, uma
beleza que, todavia, permanece
escondida”, pondera.
39
CADEIA PRODUTIVA
Em contraste com a exuberante
imagem paisagística das
lagunas maceioenses, vivem
em situação de extrema
pobreza as humildes
populações ribeirinhas, que há
décadas compõem o cenário
das vilas e favelas formadas
nas áreas próximas aos
manguezais. O problema da
exclusão social no País, como
todos sabem, vem desde os
tempos das Colônias. É um
mal que nos acompanha
desde sempre e, no caso
específico das comunidades
marginalizadas que povoam a
região das duas grandes lagoas
– onde se dá o que antropólogos
e historiadores costumam
identificar como ciclo do sururu
–, leva muita gente a retirar da
lama o produto necessário para
a sua subsistência.
O ambiente das
lagoas, onde o sururu
é encontrado, só se
consolidou entre o
fim do século 19 e
início do século 20,
com o crescimento
populacional e o
avanço do comércio
ano VII / nº 22 / 2014
João Schwartz
João Schwartz
Ricardo Lêdo
REPORTAGEM
Diversas famílias vivem da extração do sururu. Ainda de madrugada, os pescadores mergulham na lagoa para retirar o
molusco da lama. A tarefa dura horas e é a mais desgastante de toda o processo. Depois, ainda na lagoa, fazem a prélavagem do sururu
A despinicagem consiste em retirar do molusco um tentáculo chamado bisso. Depois, o sururu ferve em latões, a altas
temperaturas, para que se desprenda da casca. Em seguida, é peneirado, e recolhidos os últimos fragmentos de concha
A movimentação dos
moradores no momento em que
muitos saem de madrugada
para “tirar” o sururu é uma
cena que se repete diariamente
há várias gerações. Todos os
dias, os pescadores partem
rumo à faixa onde o molusco
se cria, passando por entre
ilhotas onde, mesmo hoje,
ainda é possível contemplar o
impressionante visual da lagoa
Mundaú.
Embarcando em canoas,
o pessoal sai bem cedinho e
só volta à tardinha. Os barcos
seguem pela água quieta do
mangue. Alguns, tripulados
apenas por homens. Outros,
por adultos e adolescentes. A
maioria começa a trabalhar
desde criança. Normalmente
acompanhando os pais. As
difíceis condições de vida
obrigam o pessoal a pegar
no batente desde muito cedo.
sururu ainda na casca pesa,
aproximadamente, 16 kg, e o
pescador recebe em média R$
3,00 por cada uma.
Ao sair das embarcações, o
sururu é levado em carrinhos
de mão, por entre estreitas
passagens que dividem o
terreno entre um casebre e
outro para a despinicagem,
a etapa que ocupa o maior
número de pessoas ao longo
de todo o processo da atividade
da pesca e comercialização
do produto e que consiste em
retirar do molusco uma espécie
de pequeno tentáculo chamado
bisso. Essa tarefa é geralmente
exercida por mulheres. Em geral,
pelas esposas dos pescadores
que veem nesse trabalho a
possibilidade de contribuir
para o orçamento familiar.
Em mesinhas improvisadas,
posicionadas em frente de
cada casa, as marisqueiras
40
Assim, jovens e adultos saem
para encarar a labuta às
quatro da manhã. Geralmente,
só com um cafezinho na
barriga. Chegando aos locais
estratégicos onde costumam
encontrar o molusco em maior
quantidade, os pescadores
descem das canoas para
retirar o sururu da lama. É
quando tem início a etapa
mais desgastante de todo o
processo da cadeia produtiva
que envolve essa atividade.
Horas e horas dentro da lagoa,
mergulhando inúmeras vezes,
em movimentos contínuos de
agachamento, jogando o que
conseguem encontrar dentro
das rústicas embarcações.
Com as canoas carregadas
de balaios, latas ou caixotes
repletos de sururu, os
pescadores começam o
processo de “pré-lavagem” nas
águas da lagoa, ou dentro das
ano VII / nº 22 / 2014
embarcações, onde eles mexem
freneticamente as mãos e as
pernas de forma alternada
na água lodosa. Quase tão
extenuante quanto o trabalho
de mergulhar, o movimento
repetitivo durante essa etapa
resulta em inúmeras feridas na
sola dos pés e nas mãos, devido
ao contato com a casca fina
do molusco. E com o avançado
estado de degradação das
águas das lagoas Mundaú e
Manguaba, o trabalho nesses
mangues e lamaçais agrava
ainda mais a possibilidade de
contrair doenças.
Antigos pescadores garantem
que há mais de 30 anos, em
épocas de fartura, era comum
ver caminhões saindo com
até oitenta sacos de sururu.
Hoje, em um dia de pescaria,
uma canoa transporta mais
ou menos 30 latas com o
molusco. Uma lata cheinha de
despinicam cerca de quatro latas
de sururu por dia, e recebem, em
média, R$ 2,70 por cada lata.
Após ser despinicado, o
sururu vai para a fervura, onde
a elevada temperatura dos
latões faz com que a concha do
marisco se desprenda da carne.
Ali, os moradores cozinham
diariamente dezenas de latas, o
dia inteiro. Terminada a fase da
fervura, o sururu é peneirado
para, em seguida, serem
devidamente recolhidos os
últimos fragmentos de concha.
Após essa trabalheira toda, o
sururu é lavado novamente,
para depois ser embalado e
vendido no mercado. Segundo
a pesquisa realizada pelo
projeto de diagnóstico da cadeia
produtiva do sururu em Alagoas,
promovida pelo Instituto
Ambiental Brasil Sustentável
(IABS), um 1 kg de sururu
custa em média R$ 8,41. Nos
41
supermercados, o produto pode
chegar a R$ 30,00.
A pesca do sururu é uma
atividade que reúne famílias
inteiras. Em épocas em que
o molusco não é encontrado
em parte alguma das lagoas,
pescadores e marisqueiras
saem à procura de alternativas
para garantir o sustento, mas
o baixo grau de instrução
e a falta de capacitação
dificultam qualquer iniciativa
neste sentido. Ainda que o
histórico de miséria e fome
presente no dia a dia dessas
pessoas exponha de modo
tão brutal as discrepâncias
sociais do estado, a cultura que
emerge da cadeia produtiva
da pesca do sururu também
nos revela traços marcantes
da nossa identidade, que se
manifestam constantemente
nos mais diversos segmentos da
expressão artística.
ano VII / nº 22 / 2014
REPORTAGEM
Manifesto, música e cinema
João Schwartz
As traduções criativas da relação entre o sururu e a discussão sobre identidade
Com fama de afrodisíaco, o caldinho de sururu de capote raramente é
encontrado em Alagoas. O Bar do Pelado é um dos poucos lugares que servem
a iguaria
Enquanto símbolo que remete
aos valores culturais que
herdamos das comunidades
periféricas, o sururu também
inspirou a realização de
um corajoso manifesto que
reivindica o protagonismo
do legado afrodescendente
em Alagoas. Documento
de considerável impacto no
campo da representação
cultural no estado, o Manifesto
42
Sururu, escrito pelo professor
e antropólogo Edson Bezerra,
foi publicado originalmente
há dez anos, em um jornal
local. O texto, que desde o
primeiro momento abriu
espaço para muitas discussões,
colocou o dedo na ferida da
má consciência das elites, e
repercute até hoje. “Na verdade,
eu nunca pensei em escrever
um manifesto”, admite o autor.
ano VII / nº 22 / 2014
“A coisa me veio por partes e
a ideia me ocorreu aos poucos,
na medida em que eu estava
montando a minha tese de
doutorado. Em tudo que eu lia,
as imagens das águas era uma
presença constante e a coisa
foi então ganhando intensidade
e volume. Até parecia um
encosto”.
“Uma vez escrito o texto,
eu não sabia o que fazer.
Mostrava a um, mostrava a
outro e as pessoas ficavam
fascinadas. Mas, o que fazer
com a coisa feita? Foi então
que um dia, eu estava no bar
Engenho Jaraguá e conheci o
Ari Cipola [jornalista falecido
em 2004 e então editor-geral
do jornal Tribuna de Alagoas].
Conversa vai, conversa vem,
ele me perguntou: ‘Ô, rapaz,
tu escreves quando tu falas?
‘Escrevo’, respondi. ‘Então é o
seguinte: vou te encaminhar
para a minha editora de Cultura
[na época, a jornalista Clarissa
Veiga] para você escrever por
lá’”, lembra.
Passados alguns dias, a
editora de Cultura entra em
contato com Edson, propondo
a publicação do manifesto. “O
texto foi publicado e, a partir
daí, as pessoas se encantaram
Segundo Edson
Bezera, autor do
Manifesto Sururu, o
texto é “uma alegoria,
uma releitura da
cultura alagoana a
partir das culturas
populares afroalagoanas”
por ele. Mas tudo isso foi se
dando aos poucos, e muito
embora ainda não tenha sido
publicado em uma edição
específica para ele, o manifesto
tem sido objeto de citações em
várias teses de doutorado, foi
citado em ensaios, entrevistas.
Foi tema de alguns trabalhos
de conclusão de curso e,
recentemente, tema de uma
monografia, além de ser
utilizado em blogs. Todavia,
o maior elogio que recebi a
respeito do texto do manifesto
me veio de Mãe Miriam
[babalorixá]. Numa viagem a
Pernambuco, em um ônibus
repleto de religiosos de matriz
africana, depois do texto ser
passado em áudio, uma mulher
se levanta, vem na minha
direção e diz: ‘Meu filho, que
coisa linda, parece até que,
quando você escreveu, estava
possuído por uma entidade.’
Aquilo me deu uma alegria
que nunca esqueço. Fui às
lágrimas”, conta.
Ao longo dos últimos dez
anos, o Manifesto Sururu foi
muito discutido e analisado.
Em ensaio, o escritor alagoano
Dirceu Lindoso fez uma
longa reflexão sobre o texto,
chamando a atenção para o fato
de que não dá para simbolizar
nossa identidade cultural em
uma única imagem, uma vez
que nem todos os alagoanos
se identificam com a cultura
do sururu. Nesse sentido, o
manifesto buscou fazer um
recorte do imaginário popular
característico da região
lagunar?
“Sim”, admite o autor.
“Na verdade, a coisa da
‘alagoanidade’ a partir do
sururu é uma ficção, um
recorte. O Dirceu tem razão
e, antes dele, o Jurandir Bozo
[músico e fundador da extinta
banda Poeira Nordestina] já
havia me chamado a atenção
sobre isto. Todavia, o manifesto
é uma alegoria, uma releitura
da cultura alagoana a partir
das culturas populares afroalagoanas. Então, o Manifesto
Sururu é uma grande metáfora.
O ideal seria uma explosão de
manifestos (é possível isto?),
os quais pudessem alegorizar
as Alagoas através de seus
cenários geográficos”.
“Agora, é o seguinte: o
Manifesto Sururu é um texto
antropofágico, e a antropofagia,
como se sabe, é uma prática
de devorar os mais fortes.
43
Então a sua proposta é de
uma antropofagia das coisas
alagoanas a partir das culturas
populares de matriz afroalagoana. Ou seja, reinventar
Alagoas a partir de Palmares,
entende? E é neste sentido
que entra o sururu enquanto
uma metáfora de algo que
está enterrado na lama, de um
segredo a ser descoberto. De
reinventar um mundo alagoano
a partir das culturas populares.
De resto, um universo em todo
contrário à tristeza em que
hoje estamos enclausurados.
Em toda escrita do manifesto
existe algo como uma profecia
de algo que está por vir, mas
que poderá emergir através de
uma abertura às diferenças
somente possível mediante
a desconstrução de todo o
apartheid que nos cerca e que
nos devora”.
Engana-se, porém, quem
pensa que o sururu está
relacionado unicamente a uma
identificação de raiz. O pequeno
molusco, que muitos garantem
ser um formidável afrodisíaco,
está intrinsecamente ligado
à cultura contemporânea,
tanto que um festival de
cinema que há cinco anos atua
como principal plataforma
da produção audiovisual de
Alagoas leva o seu nome.
“A Mostra Sururu de
Cinema Alagoano foi criada
pela Associação Brasileira de
Documentaristas e CurtaMetragistas de Alagoas
(ABD&C/AL) na gestão de
ano VII / nº 22 / 2014
44
O cineasta Werner Salles, um dos criadores da Mostra Sururu de Cinema
Alagoano. “‘Sururu’ é uma metáfora da condição cultural alagoana”, explica
Experiente fotógrafo e
pesquisador da cultura popular
no Nordeste, como cineasta,
Celso Brandão é autor do
mais representativo conjunto
de imagens etnográficas de
Alagoas. Acompanhando
de perto as várias formas
de manifestação culturais
e o modo de vida do povo
nordestino nas últimas quatro
décadas, ele reuniu uma
filmografia com cerca de 40
filmes. Com direção, montagem,
argumento e produção do
próprio cineasta, Papa Sururu
acompanha a rotina dos
pescadores do molusco na
lagoa Mundaú. Registrado
de forma crua, apenas com
uma câmera na mão, o filme
de apenas sete minutos foi
rodado no final dos anos 80, e
é mais um exemplar do estilo
documental do realizador, que
consegue extrair poesia de
situações corriqueiras.
O filme de João Schwartz
ano VII / nº 22 / 2014
foi produzido a partir de
uma pesquisa realizada
na região, e é focado em
aspectos econômicos da
secular atividade da pesca
do molusco em Alagoas. O
documentário faz parte do
projeto de diagnóstico da
cadeia produtiva do sururu
em Alagoas, realizado pelo
Instituto Ambiental Brasil
Sustentável (IABS) com
financiamento da Agência
Espanhola de Cooperação para
o Desenvolvimento (AECID).
Através de uma pequena verba,
o instituto esteve presente
na comunidade durante seis
meses realizando entrevistas e
estudando a cadeia produtiva
do molusco em todas as suas
etapas. “Com um diagnóstico
preciso, fui convidado a
produzir o documentário cujo
objetivo principal é mostrar que
ali, de fato, existe uma enorme
cadeia de produção, envolvendo
famílias e que, nas condições
adequadas, possui um enorme
potencial econômico, além
disso, também mostrar as
condições que estas pessoas
trabalham e vivem, que não são
nada boas”, explica Schwartz.
João conta que para a
realização de Cadeia Produtiva
do Sururu em Alagoas não
foram necessárias mais que
três pessoas na equipe de
produção. Ele dirigiu, filmou
e editou o filme sozinho,
enquanto um amigo o ajudou
nas filmagens e o coordenador
do projeto deu assistência
conduzindo os entrevistados
na comunidade. “Foi uma
produção muito simples no fim
das contas, porém, amamos
o resultado final. Sempre
fomos bem recebidos lá pelos
moradores. Foram realizadas
duas idas à comunidade para
captar as imagens e realizar
as entrevistas, tinha no roteiro
também ir filmar a extração
do molusco na lagoa durante
a madrugada, mas faltaram
recursos”, confessa.
Segundo Schwartz, o
documentário levou um mês
e meio para ser realizado, ao
passo que a pesquisa prévia
elaborada pelo Instituto levou
seis meses para ser finalizada.
Para fazer o diagnóstico da
comunidade, a equipe de
pesquisa levantou dados
referentes à faixa etária, renda,
escolaridade, doenças, bem
como os números de produção
e remuneração de cada ator
da cadeia em sua respectiva
etapa. “É um documento
extenso e detalhado, tivemos
várias reuniões para selecionar
quais dados iriam aparecer no
vídeo”, esclarece João.
No texto que introduz o filme
Papa Sururu, de Celso Brandão,
a relação entre o molusco e
os aspectos sociais de sua
pesca é lembrada: “Centenas
de milhares de pessoas
beneficiam-se da abundância
local desse molusco. É uma
pena, portanto, que o quadro
atual de degradação do meio
ambiente da lagoa Mundaú
venha a ameaçá-lo”. A
reportagem quis saber de
João quais foram as suas
impressões durante o período
em que foram entrevistadas
todas aquelas famílias.
“A poluição da lagoa é um
dos principais problemas
enfrentados por eles, pois a
situação da comunidade já é
muito frágil (infraestrutura,
renda, saneamento etc.) e com
a poluição, a única renda deles,
obtida através da pesca, é
afetada”, pontua.
SOM DA CASCA
Na música, o sururu surge nos
versos de canções compostas
em diferentes épocas, cantadas
por artistas dos mais diversos
gêneros. Para pegar um
exemplo lá de trás, em meados
dos anos 1930, a marchinha
Sururu da Nega (de Aristóbolo
Cardoso e Pedro Nunes),
homenagem a uma conhecida
personagem da cultura
popular alagoana e dos antigos
carnavais de rua de Maceió, a
Identidade visual da Mostra Sururu de Cinema Alagoano, produzida pela
agência Núcleo Zero: inspiração no audiovisual, na música e no Manifesto
Sururu
Divulgação
Pedro da Rocha”, esclarece o
cineasta Werner Salles Bagetti,
um dos criadores do evento.
“O objetivo era abrir uma
janela para a produção local.
Já tínhamos uma quantidade
de produção significativa que
merecia uma mostra. Acho que
a Sururu terminou sendo um
importante panorama do que
estávamos produzindo, além de
ser um catalizador para novas
produções e novos produtores”.
“O nome saiu de um
brainstorm entre nós que
fazíamos a Associação na
ocasião. ‘Sururu’ é uma
metáfora da condição cultural
alagoana, submergindo da
lama, saindo da casca. Além de
dialogar com outros hipertextos:
O Manifesto Sururu, de Edson
Bezerra, a música Sururu
Fresco, da banda Xique e
Baratinho, o filme Papa Sururu,
do Celso Brandão, além do
sururu enquanto fonte de renda,
de sobrevivência... Enfim, é um
signo carregado de referências”,
explica o documentarista.
No panorama da produção
audiovisual alagoana, pelo
menos dois títulos, produzidos
em épocas distintas, trazem a
atividade da pesca do sururu
como tema. O primeiro deles
é o já citado Papa Sururu, de
Celso Brandão, filmado em 1989.
O outro, bem mais recente, é
um documentário de caráter
institucional, intitulado Cadeia
Produtiva do Sururu em
Alagoas (2013), dirigido por João
Schwartz.
Acervo pessoal
REPORTAGEM
45
ano VII / nº 22 / 2014
46
Nos anos 1930, o bloco Nêga Juju homenageia uma conhecida personagem
da cultura popular alagoana. Na marchinha Sururu da Nega, a referência ao
molusco
encerra o álbum e até batiza a
sua banda de apoio. Entre os
alagoanos que concentraram a
produção local, não poderíamos
esquecer o compositor Altair
Pereira, que, inspirado nos
ritmos do folclore alagoano e
com seu texto voltado para
questões sociais e ambientais,
cantava sua Mundaú, Grande
Bebedouro (“Mundaú, lagoa
grande bebedouro/ De muitas
bocas o sustento/ Tantas
vidas, o prazer/ És uma lagoa
bela/ Teus mangues abissais/
Cercada de mistérios/ O mar,
favelas coqueirais/ Olha o
sururu fresco...”), em marcantes
performances, usando um colar
de casca de sururu em volta do
pescoço.
Autor de mais de 500
músicas, o carismático cantor
ano VII / nº 22 / 2014
e compositor Gustavo Gomes,
não vê limites para a sua
verve criativa, ao transitar
sem medo pelos mais diversos
gêneros musicais. Em meados
de 2012, por exemplo, ele
editou quatro discos bastante
distintos entre si, de um fôlego
só, em uma série intitulada
Ilusão-Vitae Breve. Entre
esses lançamentos, o inquieto
músico gravou um álbum
composto apenas por números
instrumentais, dentre os quais
está Canto da Vendedora de
Sururu, faixa que conta com
a contribuição do tarimbado
guitarrista Tony Augusto.
Mas em se tratando de
temas musicais que colocam
o sururu no centro das
representações simbólicas do
nosso imaginário, a canção
Sururu de Cara, do cantor
Basílio Sé, certamente figura
entre as mais emblemáticas.
“A música Sururu de Cara
surgiu de uma cena comum em
Maceió, mas do ponto de vista
socioeconômico e filosófico
dialético”, explica o autor.
“Estava indo para o ensaio
quando uma preta, senhora
baixinha, magrelinha, surgiu
na minha frente com uma bacia
de sururu na cabeça cantando
em tom firme e afinado pelas
ruas do Farol o conhecido
pregão ‘sururu fresco’. Naquele
momento, aquela cena comum
parou o meu olhar de modo que
os sentidos foram a mil sem
saber o que fazer. Mas a cena
não era comum? Então qual o
porquê daquela inquietação?
A reação de imediato foi
escrever a melodia do jeito
que ela cantava e sugerir que
a abertura do show prestes
a acontecer fosse feita com
aquela melodia vocalizada”.
“Passado o evento, tal cena
martelava na minha cabeça,
porém, agora já se fazia claro o
motivo da perplexidade. Minhas
composições geralmente
estão atreladas a um fato
vivenciado, poucas são as
músicas em que não tenha um
fato histórico norteador. O fato
de a senhora estar vendendo
sururu anunciado por um texto
poeticamente cantante em
ruas nobres da cidade ligou,
na minha forma de observar
o mundo, ao modo de vida
dura que o alagoano menos
favorecido leva para sobreviver
honestamente e sem perder o
encantamento qual a própria
vida nos oferece. Por isso, a
O cantor e compositor Basílio Sé, autor da canção Sururu de Cara: inspiração
no pregão de uma vendedora de sururu que andava pelas ruas da cidade
música diz que o alagoano com
cara de sururu é um malandro
sarado, moleque atrevido /
‘arriscos’ e sem pressa na vida
que leva / um sábio guerreiro
atinado pra vida / o tipo de
pau que enverga, mas não
quebra. Alagoano com cara de
sururu / sai às ruas rimando
em acorde perfeito / mama
em onça parida pra espantar
a fome / dá pinotes do cão pra
viver honestamente / nasce na
Mundaú para o mundo em seu
capote. A questão ‘Sururu de
Cara’ diz respeito primeiro ao
fato de o molusco ser próprio
das nossas lagoas (Mundaú e
Manguaba) dando, por assim
dizer, caracterização do povo
alagoano. Depois quando se
diz de ‘cara’, artisticamente
falando, quer dizer puro,
enfrentar o mundo a palo seco”,
conclui.
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO
Acervo pessoal
Nega Juju, dizia em sua letra:
“É da favela não Nega Juju/
Nasceu num rancho na terra do
sururu/ Embebedou no Farol,
na Ponta Grossa/ Com o sururu
da nega, a folia é nossa...”.
Considerado um dos últimos
herdeiros de uma linhagem de
artistas populares que remonta
aos antigos cantadores das
feiras e praças do interior,
Jacinto Silva inscreveu-se
como um dos grandes talentos
da música nordestina por
sua excepcional capacidade
de improvisação, pela
inventividade de suas letras
e, principalmente, por seu
peculiar estilo de interpretação.
Em 1964, quando já vivia com
a família em Pernambuco e
corria o Nordeste com suas
animadas apresentações,
o cantor alagoano gravou a
música Saudade de Alagoas,
a primeira de uma série de
canções homenagens que ele
compôs. Na letra, o saudoso
embolador lembra bairros e
ruas de Maceió e canta: “Nunca
mais eu vi um sururuzeiro
entrar na lagoa e tirar sururu/
Pescar siri ou caranguejo-uçá/
Pescar carapeba, mandim ou
munçum...”.
Já estabelecido como um dos
mais inovadores talentos da
música popular brasileira, entre
a leva de artistas nordestinos
que despontou na segunda
metade da década de 70, em seu
terceiro disco, Alumbramento
(1980), Djavan gravou a canção
Sururu de Capote, faixa que
Divulgação
REPORTAGEM
47
No conjunto das atividades
que se inscrevem como
exemplos inequívocos de nossa
representatividade cultural,
é mesmo na culinária que o
delicioso molusco surge com
brilho na memória afetiva dos
alagoanos e no paladar dos
visitantes abertos a novas
experiências gastronômicas.
Em especial, pela forma como a
iguaria é preparada no estado.
Em seu ensaio sobre o
Manifesto Sururu, o historiador
Dirceu Lindoso escreveu: “O
ano VII / nº 22 / 2014
“O sururu é um
molusco proveniente
das lagoas e, como
no nosso estado elas
são abundantes, daí
a razão para o sururu
ter tanto destaque
e ser considerado o
mais alagoano dos
pratos”, diz Tatália
Montenegro
sururu deve ter o seu mistério.
Não é um molusco qualquer.
Tanto é que hoje destaca
uma cultura. Esta que Edson
Bezerra quer espalhar para toda
Alagoas. E produziu o maior dos
poetas neobarrocos do nosso
tempo, Jorge de Lima, e o maior
geógrafo lagunar alagoano,
Octavio Brandão. Não sei se os
negros quilombolas comiam
sururu. Sei que lá nos mangues
do norte alagoano não tem. O
sururu é uma especialidade
da cultura lagunar caeté.
(...) quando vim ainda moço
para Maceió, e aqui me casei,
aprendi com minha empregada
sururuzeira e mulata quase
branca a comer com as mãos,
chupando os dedos sujos de
pirão mexido, o saboroso e único
sururu de capote. Um prato que
me conciliou com a vida”.
48
“O sururu é um molusco
proveniente das lagoas e,
como no nosso estado elas são
abundantes, daí a razão para o
sururu ter tanto destaque e ser
considerado o mais alagoano
dos pratos, principalmente o
de capote”, assegura Maria
Euthalia Montenegro, que
durante alguns anos comandou
o Restaurante das Irmãs
Rocha, na capital alagoana, e
é sobrinha da culinarista Yeda
Rocha, dama da gastronomia
alagoana responsável por,
ao lado das irmãs, tornar o
sobrenome da família uma
das mais fortes referências na
tradicional cozinha alagoana.
“Sempre que chegava alguém
de fora, os chefs locais
levavam para o restaurante
para provarem a iguaria,
como foi o caso do Renato
Machado. O repórter amou o
sururu de capote e achou que
harmonizava muito bem com
vinho branco – fez até uma
matéria no jornal O Globo sobre
o assunto”, lembra.
A cultura da pesca do
sururu, como se sabe, decorre
principalmente do fator
natural da necessidade do
homem de se alimentar dos
produtos encontrados no seu
entorno. Mas já no início do
século 20, o molusco gozava
de grande popularidade e
era bastante consumido, não
apenas pelo povo humilde
que vive na beira das lagoas,
mas em todas as classes.
No livro Delícias da Cozinha
ano VII / nº 22 / 2014
Alagoana – As Melhores
Receitas das Irmãs Rocha,
há uma passagem onde elas
relatam que os antepassados
tinham o costume de enviar a
iguaria, através de navios, para
Salvador. “Sempre ouvi falar
nessa história que o sururu era
enviado aos parentes de nossa
avó Edith na Bahia, em latas
lacradas por funileiros – o que
devia ser um perigo!”, conta
Maria Euthalia.
Mas há que se saber apreciar
o molusco. A mais tradicional
receita é o saboroso sururu
de capote, que atualmente
anda meio ‘sumido’. “Na época
que tínhamos restaurante,
observamos que os turistas
ficavam um pouco receosos de
provarem a iguaria, mas depois
que oferecíamos de cortesia
uma porção, eles provavam
e até apreciavam. Mas nunca
pediam de primeira esse prato”,
confessa Tatália. “Atualmente,
o prato mais popular é o sururu
sem capote”, afirma a chef
Tatiana Brasil. “O capote está
ligado à tradição, à culinária
mais antiga, onde as mães
colocavam a mão na massa.
Acredito que ele tenha um peso
de memória afetiva”.
Pesquisando formas
criativas de harmonizar as
suas receitas com produtos
típicos da nossa região, o chef
Wanderson Medeiros busca na
tradição da cozinha nordestina
o melhor caminho para a sua
gastronomia. Nas viagens que
faz com frequência participando
Gastrô Comunicação
REPORTAGEM
O chef Wanderson Medeiros, do Picuí, que usa o sururu em quase todos os
eventos gastronômicos dos quais participa. Ele costuma criar sempre novas
receitas
de eventos gastronômicos por
todo o País, Wanderson faz
questão de divulgar a culinária
alagoana, e o molusco é um de
seus protagonistas. “O sururu
faz parte de todos os eventos
onde vou apresentar algum
menu com vários pratos. Essa
semana, embarco para o Rio de
Janeiro e o sururu é a entrada
que será servida durante três
dias no menu degustação
do restaurante La Sagrada
Família. Uma maneira de
deixar a preparação mais leve,
quando feita com leite de coco,
é finalizar o preparo colocando
água de coco. Isso deixa bem
mais suave. Pois, na verdade, o
que não agrada tanto a algumas
pessoas que provam o sururu,
não é o molusco, e sim o sabor
forte do leite de coco reduzido”,
ensina.
E quanto aos visitantes
estrangeiros e de outros
estados, eles aprovam a
iguaria? “Sim, adoram”, afirma
o chef. “Para eles, é uma
maneira totalmente diferente
de degustar o marisco servido
com um refogado de leite de
coco. Durante a semana em
que fui responsável pelo menu
49
servido no Restaurante Dalva e
Dito, do chef Alex Atala, muitos
estrangeiros provaram o
sururu, e todos elogiaram”.
As experimentações
com o molusco, segundo
os entrevistados, são
múltiplas. “Confesso que
as possibilidades para
utilização do sururu em
preparações mais ousadas
ou mais contemporâneas
são infinitas. A criatividade
de cada cozinheiro é que vai
determinar isso”, esclarece
o chef Wanderson Medeiros.
“Mas eu prefiro mostrar o
sururu em outros estados da
forma que ele é servido aqui
em Alagoas, normalmente
ao leite de coco. Assim, eles
provam o molusco da maneira
mais tradicional. A criatividade,
eu exerço principalmente na
composição do prato, aliando
outros ingredientes para
acompanhar o sururu, tais
como peixes, azeites e vários
tipos de farofas, como a de
castanhas brasileiras, coco
maduro e banana-passa. Uma
iguaria”.
“Há infinitas possibilidades,
é um alimento muito versátil”,
afirma a chef Tatiana Brasil.
“Eu, no Buffet Gourmeteria, por
exemplo, fiz um casamento
para uma noiva alagoana e
um noivo paulista, e preparei
um risoto de camarão com
sururu, curry e leite de coco. Os
paulistas amaram e acharam
que estavam comendo passas,”
conta.
ano VII / nº 22 / 2014
Download

Sururu