Abandonados
Apoio social. Misericórdia
CÉU NEVES
Faz hoje um mês que o homicida
de Beja morreu na prisão, em Lisboa, por enforcamento. Duas idosas das Mercês foram encontradas mortas há 40 dias. Ninguém
reclamou os corpos e será a Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa
(SCML) a organizar os funerais.
Estes casos, bem como os de idosos, de deficientes e de doentes
com sida a seu cargo, constituem
a maioria das cerimónias fúnebres que a instituição realizou na
capital- 315 em 2011. Os chamados indigentes são menos de um
terço, mas, de alguma forma, todos foram abandonados.
Os doentes com sida acompanhados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa representaram
39,4% dos funerais realizados no
ano passado. Alguns não têm fa-
mília, há outros que a têm e a
quem os técnicos da instituição
fazem questão de acompanhar
até ao último momento. Também
há casos de sem-abrigo,
cujas más
até na morte
de Lisboa faz três centenas de funerais por ano, menos de um terço são de indigentes
condições de vida determinam
que a doença seja mortal e não
crónica.
Aliás, foi com os doentes de VIH
que a instituição começou a fazer
de uma forma mais organizada os
funerais dos cidadãos que de alguma forma estavam abandonados na capital. Ana Campos, fundadora da Casa Amarela, há 23
anos, passou a acompanhar os
seus doentes, concluindo que o
deveria fazer para toda a comunidade sem família apoiada pela
SCML, a que juntou mais tarde o
gentes, que representaram 28%
dos funerais realizados pela SCML
no ano passado (ver gráfico).
O número de funerais realizados pela SCML tem-se mantido
estável, na ordem das três centenas por ano, e incluem os utentes
de lares a quem recorrem por falta de vagas nos lares das Misericórdias, crianças e nados-mortos,
cujos pais abandonaram ou não
têm recursos económicos.
São poucas as pessoas que assistem a tais funerais. As voluntárias da Irmandade de São Roque e
grupo dos sem-abrigo.
Foi há oito anos e os enterros
dos que perderam a família são
organizadas pela Irmandade da
Misericórdia de São Roque, de
uma técnica da SCML
quem a enfermeira é uma das voluntárias.
A maioria das pessoas que
acompanham na morte têm um
nome e uma morada, sendo sepultadas no cemitério da sua residência. Os outros vão para o de
Benfica. São sobretudo os indi-
um funeral de um sem-abrigo,
e, não raras
vezes, quem se encontra no cemitério junto à campa de um familiar.
Já
aconteceu à instituição
pagar
cuja família apareceu depois para
reclamar roupas e haveres, roupas
e haveres doados pela própria instituição. Ou de familiares que pediram para o funeral ser realizado
ao sábado para poderem compa-
recer, o que nao aconteceu.
A Santa Casa da Misericórdia
Quem são as pessoas a quem
a Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa (SCML) organiza e paga
os funerais?
São residentes na cidade que
não trabalharam, ou se trabalharam não realizaram descontos para a Segurança Social, e
que não têm direito ao subsí>
de
Lisboa substitui-se ao Estado na
capital. No resto do País podem ser
também as misericórdias, se a pessoa estiver a seu cargo
seja num
lar, centro de acolhimento ou albergue ou a Segurança Social
se, por exemplo, a pessoa morre na
rua ou num hospital -, explica Carlos Andrade, vice-presidenta da
União das Misericórdias Portuguesas, que tem a seu cargo os serviços da ação social. Acrescenta
que há cada vez mais famílias sem
-
-
-
dio por morte. A instituição
acompanha os funerais dos
utentes sem família ou cuja família alega não ter possibilidades económicas.
> Qual é o montante do subsí-
disponibilidade financeira para
comparticipar no funeral, mas só
uma análise mais alargada no
tempo poderá explicar os efeitos
da crise. A enfermeira Ana Campos Reis entende, também, que é
cedo para fazer a avaliação.
Verdadeiramente por identifi-
dio?
O valor depende do vencimento do defunto e corresponde à
remuneração mensal média dos
dois melhores dos últimos cinco
anos de trabalho. Não pode ser
inferior a seis vezes o lAS
(Indexante de Apoios Sociais,
419,22 euros): 2515 euros.
> A quem é entregue o subsídio?
Aos familiares diretos ou a
quem provar ter a pessoa a seu
cargo no momento da morte.
> Chamam-se funerais sociais?
Não, o funeral social é a desi-
car ficaram quatro dezenas de casos no ano passado em Lisboa, a
que se juntaram 13 da região Nor-
te e um da região centro, totalizando 54 em todo o País, segundo dados do Instituto de Medicina Legal. Ou seja, a grande maioria são
de pessoas identificadas, mas cujas famílias desapareceram ou não
têm recursos. Ou dizem não ter.
gnação que se aplica ao pacote mais económico do serviço
fúnebre, que acaba por ser o
que paga a instituição. Os funerais da SCML são de acordo
P&R
PERFIL
Motivada e com uma força de
viver contagiantes, ninguém
desconfia que sobreviveu tragédia: a um cancro e à morte de um
filho. Acompanha os funerais da
Misericórdia desde 2004, ano
em que decidiu que devia estar
presente no último momento
dos doentes com sida que acompanhava, alguns dos quais abandonados. Daí até se preocupar
com todos os abandonados da
capital físicos, emocionais e
económicos-, foi um passo.
Sempre com um lema: não julgar ninguém. "Não sou o
Ministério Público", justifica.
>
ANA CAMPOS REIS
>
Preside
à
à Inserção
>
>
Direção de Apoio
da SCML
e Bem-Estar
Tem 59 anos, é enfermeira
Fundou em 1989 a Casa Amarela
(doentes com sida)
É voluntária da Irmandade da
>
Misericórdia
e de São Roque
-
com o caderno de encargos.
Quem acompanha os funerárias de quem morre na rua,
num hospital ou numa prisão?
A Irmandade da Misericórdia
de São Roque de Lisboa faz os
funerais de quem em vida não
esteve a cargo da Santa Casa.
A Irmandade foi instituída em
Lisboa em 1506, contando
atualmente com 167 voluntários. É uma organização católica e todas as cerimónias são
segundo este rito, a não ser
que haja uma indicação em
contrário.
> Quanto custa um funeral?
Segundo a Servilusa, a agência
funerária que trabalha com a
SCML, custa 295 euros.
> Quem realiza estes funerais no
>
resto do País?
Os funerais de quem se desconhece a família ou esta não tem
financeiras são
possibilidades
da responsabilidade do Estado,
que em Lisboa transitou para a
SCML. Fora da capital, as misericórdias organizam os enterros dos utentes dos lares, das
unidades hospitalares e dos albergues a seu cargo. Os restantes ficam por conta do Instituto
de Segurança Social.
Queria o nome de solteira na campa
Asenhora tinha mais de
50 anos, não tinha meios de subsistências, morreu num hospital
de Lisboa, sem família. O funeral
saiu do estabelecimento hospitalar para o Cemitério da Ajuda, onde a mulher residia. Além de Ana
Campos Reis, apenas a advogada
da defunta acompanhou o corpo
na cerimónia fúnebre.
A advogada era "uma senhora
simpática, afável e de um grande
rigor profissional", descreve a enHISTÓRIA
fermeira. O profissionalismo
da
jurista levou-a a ponto de se certificar de que a senhora seria sepultada com o nome de solteira, um
último desejo de quem não acreditava em Deus nem na vida eterna.
O processo de divórcio foi penoso
e muito longo. O ex- marido, pessoa com meios financeiros, tinhaa deixado só, com uma mãe velhinha no lar, "sem nenhum recurso
económico, sem nenhum afeto."
É uma das cinco histórias que
Ana Campos Reis tem escritas, de
cidadãos sem família ou amigos a
acompanhá-los nos últimos dias
de vida ou no enterro. Um processo iniciado e que não sabe quando
irá acabar ou mesmo se o acabará.
Explica porque começou a escrever algumas histórias: "Gostaria de saber sempre o nome de
quem vou enterrar, mas há muitos
que não têm nome. Quando tenho
possibilidade, vou tentar saber a
história de vida, tentando personalizar o momento, homenageando a memória do corpo que está
presente."
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