A interferência de Madalena no universo de Paulo Honório: transformação e mobilidade Zuleide Duarte Profesora de Literaturas Lusófonas União das Escolas Superiores de Olinda (UNESF) Encontrei a paixão como meta da minha situação significati-va no mundo. Paixão em todas as direções e por todos os lados. (Santiago 1985:72) O presente trabalho, de cunho monográfico, enfoca a personagem Madalena, no romance São Bernardo, enfatizando a transformação promovida por ela na existência de Paulo Honório, mudança lenta e sofrida, que culmina com a imolação da mulher, para redimir aquele que tão bem definiu A. F. Schimidt como um triste hóspede da vida. (Schimidt, 1943;14). Ler esse romance, publicado na primeira metade deste século, é antes de tudo, acompanhar a trajetória do seu personagem principal, aliás narrador — personagem — na senda do amor e do ciúme, e das condições sociais de que a relação Paulo Honório e Madalena constitui representação. Sua caminhada de profunda luta consigo mesmo e com o meio leva-o para perdas irreparáveis que propiciam, no nível romanesco, o conflito e a tragicidade insuperáveis, centradas na sua difícil relação com Madalena. O papel redentor da Madalena, calcado em valores humanísticos a que Paulo Honório atribuía pouca relevância, custou-lhe a própria vida; sacrifício necessário — no nível ficcional — para ferir a dura cerviz de Paulo Honório. Laura Austregésilo afirma a esse respeito: Não usa o autor o processo de ir relatando fatos, ao trazer os personagens à vida. Não é somente depois do crime, da impossibilidade de serem felizes, que eles nascem. (Laura Austregésilo, 1943:81). A interferência de Madalena sobre Paulo Honório surge gradativamente e adensa-se após sua morte. Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste.(Ramos, 1978:92). Sua origem obscura, sua juventude incerta, convivendo com o crime, renderam-lhe um endurecimento de coração que o fez priorizar as transações comerciais, optando pela mais valia do ter, do apossar-se. Jules Michelet (1798-1874) citado pelo professor Zenir Campos Reis, no seu estudo Tempos Futuros (1993:31), publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 35, fez a oportuna afirmação que abaixo transcrevemos para ilustrar a elaboração do homem Paulo Honório. O homem constrói sua alma sobre a própria situação material: coisa estranha! há alma de pobre, alma de rico, alma de mercador... Parece que o homem não passa de acessório da fortuna. (Michelet apud Reis, 1993:31) Apresentando-se como o senhor, o dono de São Bernardo, Paulo Honório narra a luta que empreendeu para adquirir a fazenda onde foi simples empregado. São Bernardo exerceu, talvez, para o jovem Paulo Honório, o mesmo papel da dama dos cavaleiros andantes: pela sua posse ultrapassou todos os obstáculos, inclusive as convenções éticas e morais. Só que o individualismo de Paulo Honório sacrificava a todos. Carlos Nelson Coutinho, no livro Literatura e Humanismo (1967), publicado pela Paz e Terra e incluído na coleção Fortuna Crítica 2, volume dedicado a Graciliano Ramos, com seleção de textos de Sonia Brayner, explicita bem a atitude egoísta da personagem. "... Paulo Honório reduz tudo ao seu interesse egoísta: os homens não são, senão instrumentos de sua ambição, meios que ele utiliza para a obtenção do fim, da realização individual a que se propõe. A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira parte de São Bernardo. Note que Graciliano, ao contrário dos naturalistas, não nos apresenta um burguês acabado, estático e definido de uma vez por todas: ele narra a evolução psicológica de Paulo Honório, o desenvolvimento de sua violenta e apaixonada ambição em estreita ligação com a totalidade dos objetos que torna possível a realização de seus desejos. Esta desenfreada ambição capitalista é o conteúdo do "demonismo" de Paulo Honório. (Coutinho, 1967:87). Esta construção de um burguês aventada por Coutinho aparece no romance de Graciliano e é — desde sua origem — fadada à frustração e irrealização humanas. Pensando estar realizado e não precisar de mais nada nem ninguém, Paulo Honório surpreendeu-se um dia pensando em casar. No nível consciente da personagem, explicitado pela linguagem, ele quer apenas mais um objeto para seus bens. No nível romanesco, da formulação interna, surge o início da cisão de seu mundo com o aparecimento de Madalena. O homem da modernidade, dominado pelas forças produtivas do modo de produção capitalista, dissolve-se no anonimato, reduz-se ao nada, fetichiza-se." É desse nada que emerge Paulo Honório, com a força do proprietário todo-poderoso, tentando inscrever, a todo custo, sua passagem no contexto em que vive. Para isso, a simples posse de São Bernardo torna-se insignificante, uma vez conseguida. Ele quer, agora, eternizar-se através da descendência, daí, a idéia do casamento que lhe possibilitará uma situação social compatível com os padrões da época. O registro que Paulo Honório faz do novo projeto é bastante elucidativo: Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar. (op.cit.54). Da colocação de Paulo Honório, deduzimos dois elementos fundamentais: 1. o casamento representava um negócio e a mulher, segundo suas próprias palavras, um "bicho esquisito", faria parte de suas propriedades, submetendo-se, também ao seu governo. A zoomorfização aparece aí como se a mulher fosse mais um bicho procriador, que lhe renderá crias — o almejado herdeiro — inclusive, o elenco de vocábulos que ele usa revela seu universo de proprietário rural e seu raciocínio de criador. Não é à toa que ele sugere a D. Glória, criar galinhas ao invés de sobreviver do magro salário de Madalena, como professora. 2. as questões amorosas, amor, paixão, senti-mentos fundamentais de ligação com o sexo oposto que justificaria um casamento, não fazem parte dos planos de Paulo Honório. A presença da mulher na sua vida sempre se prendeu a necessidades práticas. A primeira cujo envolvimento registra, Germana, rendeu-lhe três anos, nove meses e quinze dias de cadeia, boa escola para ele que, entre outras lições, aprendeu, também, a deslocar o centro do seu interesse para a aquisição de dinheiro. Sobre esse aspecto, invocamos o testemunho de Hélio Pólvora: O erro de Paulo Honório é querer aplicar suas leis no campo das relações afetivas. Precisa de um herdeiro para a fazenda e pensa, por isso, em casar. Concebe o casamento em termos comerciais. Madalena, professora primária do interior, generosa e esclarecida, alude às diferenças entre ambos, mas prudente vence-lhe aos poucos a resistência: "Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio supimpa sou eu". Julga conhecer as mulheres: "Conheço o meu manual de zootécnica". (Pólvora, 1977:127). Essa transferência da lógica do mundo do capital para o mundo dos sentimentos é também em seu nascedouro, irrealizável sem conflitos. A figura de Paulo Honório, no tocante às mulheres, fugia do perfil comum aos proprietários rurais e donos de engenho, o que comprova que o projeto de autoria supera o estereótipo. Era corrente afirmar-se que aqueles senhores se consideravam donos absolutos de tudo o que estava sob a sua tutela e limites da propriedade, inclusive as mulheres. Entretanto, no afã de amealhar bens, aquele homem embrutecido, que disputava com a própria vida a fortuna, não tinha tempo para as grandes farras nos cabarés do interior, nem para transformar sua fazenda num simulacro de harém, onde todas as mulheres poderiam estar a seu serviço. Pela falta de prática em assuntos sentimentais, Paulo Honório dispunha de poucos ingredientes para fantasiar uma mulher inteira, que ele adquiriria pelo casamento, levaria para São Bernardo e faria procriar o necessário herdeiro. Sua imaginação caminhava pouco nesse assunto, mostrando os limites impostos a sua personalidade pelos valores mercantilistas em que acreditava. Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos – mas parei aí." (op.cit. 54). Incapaz da idealização, Paulo Honório visita mentalmente as moças casadoiras que conhecia. Como homem prático, investido de autoridade, ele não pensa nelas simplesmente, ele as revista; mais uma vez transfere para o mundo do sentimento a lógica do mundo do capital. ... e recomecei a elaborar mentalmente a mulher a que me referi no princípio deste capítulo. Revistei a Mendonça, a Gama, a irmã do Gondim (eu nem sabia como se chamava a Gondim) e dona Marcela do doutor Magalhães. Dona Marcela era um pancadão. Cada olho! O que tinha de ruim era usar muita tinta no rosto e muitos ss na conversa. Paciência. Perfeito só Deus."(op.cit. 57). Ainda citando Carlos Nelson Coutinho, (op. Cit.) a leitura que, como crítico, ele faz da intenção de matrimônio manifestada pelo proprietário de São Bernardo, condiz com o retrato pintado anteriormente, do burguês, no zelo pelo patrimônio: ... Levado ainda por uma finalidade egoísta, típica de um proprietário, Paulo Honório pretende se casar: é preciso ter um filho que seja o herdeiro das riquezas que ele acumulou. Não é o amor que o move, pois os egoístas não conhecem o amor, ele busca a mulher como quem busca um objeto, uma propriedade. (Coutinho, 1967:87, grifo nosso). Procurando uma mãe para o herdeiro de São Bernardo, Paulo Honório age como quem procede a uma pesquisa de mercado, avaliando as possíveis candidatas sem que nenhum sentimento o inclinasse para qualquer uma. Interessava-lhe uma procriadora saudável que gerasse um herdeiro forte. Seu distanciamento dos assuntos sentimentais era tal que ele, além de se confessar incompetente para a elaboração da candidata, cansa-se logo do assunto, ocupando-se de outros de maior relevância como é o caso do Pereira. A condição sine qua non para a futura dona de São Bernardo era ser sadia vez que se destinava a procriar. À redução de sua própria visão, segue-se a redução dos próprios níveis de desejo e imaginação relativos à mulher. O aparecimento de Madalena: Trans-formação e desconcerto. "... porque o Frecheiro cego me esperava, para que me tomasse descuidado, em vossos claros olhos escondido". (Camões,1970:15) Sem grande currículo amoroso, Paulo Honório foi surpreendido, desde o primeiro instante, por Madalena. Ela surgiu na sua vida anonimamente como "umas pernas e uns peitos: (op.cit.42), in-troduzida pelos freqüentadores de São Bernardo João Nogueira, Padilha e Azevedo Gondim. Por não cultivar tal gênero de interesse, Paulo Honório perguntou de quem eram as pernas mas seu interesse parou aí. O próprio João Nogueira, conhecendo os planos de Paulo Honório para a escola, sugere a aquisição de Madalena como se fosse um objeto e Azevedo Gondim corrobora tal idéia, encarecendo o efeito decorativo que Madalena poderia ocasionar na casa. O proprietário responde no mesmo espírito, dizendo não estar à procura de bibelôs. Esse diálogo reflete a idéia que o proprietário de São Bernardo fazia das mulheres e do casamento. E revela ao mesmo tempo, sua fama de homem de negócios, de golpes certeiros; registra-se, ainda, uma visão reducionista do casamento partilhada pelas personagens que vivem em São Bernardo. "... convide a Madalena, seu Paulo Honório. Excelente aquisição, mulher instruída." " – Até lhe enfeita a casa, seu Paulo, gritou Azevedo Gondim." " – Tolice. Ando lá procurando bibelôs?" (op.cit. p. 46). Decidir casar foi, para Paulo Honório uma decisão semelhante às muitas que tomou na gestão de sua fazenda. Tanto era um negócio para ele que, decidido a pedir a mão de Dona Marcela, revestiu a sua visita de um duplo propósito (pois talvez não fosse útil gastar uma viagem à cidade só para o pedido) assim, ele dividiu igualmente, os assuntos: a. resolver uma pendência na justiça (o caso do Pereira) e b. pedir a mão da filha do Juiz. Observamos que a expectativa em relação a Madalena, no início do livro é equiparada a um negócio prosaico. Entretanto, o plano de Paulo Honório é modificado a partir da visão daquela que ele apresenta como "... senhora moça loura e bonita". (op.cit. 59). A interferência de Madalena sobre Paulo Honório reflete-se na própria enunciação textual; surgem os diminutivos, a voz pausada, uma atenuação do ritmo narrativo e um juízo de valor positivo. A forma como Paulo Honório se refere a Madalena abranda-se desde as primeiras menções, fato que se pode destacar pelo uso do diminutivo e de adjetivos e pela atenção que lhe dirige, no tocante ao gestual. João Luiz Lafetá, no seu ensaio "O Mundo à Revelia", aponta para esse aspecto: A diferença de linguagem quando se refere a Madalena e quando a dona Marcela é significativa. O mais importante, entretanto, é que Madalena passa a ocupar, a partir deste instante, o lugar central dos acontecimentos: ‘como o silêncio se prolongasse, repliquei ao Nogueira quase me dirigindo a lourinha (...)’ E depois: ‘Percorri a cidade, bestando, impressionado com os olhos da mocinha loura e esperando um acaso que me fizesse saber o nome dela! (Lafetá, 1978:184). O narrador como que vigiava as atitudes de Madalena e seu interesse fê-lo registrar também o sorriso que mostrava os "dentinhos" brancos. Sem negar sua vocação de comerciante, Paulo Honório comparou as duas mulheres e declara uma redução de cinqüenta por cento na importância de sua visita. A visão de Madalena fê-lo desistir de dona Marcela e não só, levou-o também a refletir sobre as relações entre homem e mulher. Dizendo melhor, sobre "machos e fêmeas". Ele confessa que necessitou pensar, talvez despertando para a estranheza das relações entre as pessoas de sexo diferente e da encenação social exigida de ambas as partes: Dirijo-me a uma senhora e ela se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito eu está de fora jura que há safadeza no caso. (op.cit. 59). O ritmo da narrativa , mais atenuado e lento, enfoca a figura gradativamente importante de Madalena. Ignorando o nome de Madalena, Paulo Honório refere-se a ela como a loura, a lourinha ou a mocinha loura. Seu olhar vigilante observa quando ela faz um movimento para se levantar, a inclinação da cabeça, as mãos cruzadas e os grandes olhos azuis voltados para o grupo de homens. A construção das frases revela o que Paulo Honório confessa em seguida: De repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. Dona Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, um toutiço!(op.cit. 62). O contraste flagrante entre as duas moças faz avultar a impressão que Madalena causou em Paulo Honório. Ele ficou impressionado com os seus olhos e decidiu levantar as informações adequadas ao "negócio" que pretendia realizar. Foi rápido na definição dos seus propósitos com Madalena: "dar uma cabeçada séria". (op.cit. 64). Desde a primeira vez na casa do doutor Magalhães, Paulo Honório cortejou desajeitadamente, Madalena. Na sua forma econômica de dizer as coisas, ele, talvez picado já pelo germe do ciúme, teme tomar informações com João Nogueira que, na sua concepção, podia andar "também arrastando a asa para Madalena." (op.cit.60). O sentimento de ciúme é atrelado a uma certa falta de treino da personagem Paulo Honório para as coisas mais simples, como se suas habilidades e valores o despreparassem para a vida dos sentimentos verdadeiros. Interessa registrar terminologicamente o signi-ficado etimológico dos nomes de Madalena e Paulo Honório. Madalena significa, em princípio, pessoa originária de antiga cidade da Palestina, atual aldeia Medjel. Deriva do hebraico Migdal — e é igual a torre de Deus, cidade de Josué (Larrousse). Esta explicação é contestada pela Vulgata, discussão que não cabe aqui. Pretendeu-se, de fato, uma acepção para a palavra Madalena. O apêndice da vulgata registra o adjetivo magnífica e Saraiva dá a seguinte acepção: "a dos cabelos penteados". Já Paulo, do latim Paullus derivado de pouco, era termo que indicava pessoa de baixa estatura. Honório designaria "o que irá receber honras". Madalena, a professora de São Bernardo, de magnífico tinha o saber, os grandes olhos claros que impressionaram Paulo Honório, a cabecinha loura, as lindas mãos e os sentimentos humanitários que Paulo Honório desconhecia. Ele, Paulo Honório, se autoapresenta como um homem grande e desajeitado, não pequeno como indicaria o étimo de Paulo. Pequenas, sim, as honras que conseguiu. Pensei no meus 89 (oitenta e nove) quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mãos enormes, cabe-ludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. (op.cit.121). A auto-imagem de Paulo Honório entra em desacordo com a imagem que ele possui de Madalena; este é um momento indicial do conflito que, futuramente se adensará. A respeitabilidade, as honrarias, se as teve, foi a duras penas e com os elementos que ele enfatiza ao traçar seu perfil para o leitor: Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso 89 (oitenta e nove) quilos e completei 50 (cinquenta) anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo, têm me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidades, a consideração era menor. (opcit. 12). Aliás, ele, que não se ilude sobre respeitabilidade e honrarias diz sentir-se bem sabendo que seus empregados o temem e talvez o amém. ... E quando assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente eu nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes... (op.cit. 143). Madalena poderia ter representado para Paulo Honório o lugar da resistência, da busca de valores autênticos, num mundo dominado pela lógica imperativa do pragmatismo econômico, onde as relações verdadeiras amesquinham-se e a falência das utopias é decretada. O homem reificado, cujos gestos, intenções e atitudes foram banalizados pelas repetições ritualísticas da prática cotidiana, poderia encontrar, no amor de Madalena, os sinais vitais da condição humana. Infelizmente, a avidez de Paulo Honório ofereceu terreno fértil ao ciúme destruidor e o papel de redenção que Madalena poderia ter exercido na sua vida só foi possível com a sua morte. Salienta-se, aqui, a relevância da escolha do nome da personagem Madalena, a pecadora que ungiu os pés do Cristo e foi perdoada e redimida de suas falhas pelo Homem-Deus no Evangelho. Em São Bernardo dá-se o oposto: o criminoso atira-lhe as pedras, condena-a e empurra-a para a auto-imolação. Morta, Madalena ressurge com força total para conduzir Paulo Honório a um caminho mais humano, onde descobriu o amor. Observa-se que o autor evita o caminho fácil da harmonização das diferenças (caminho conservador) que conduziria à imobilidade das relações romanescas e sociais. Para Brecht: Os dominadores têm antipatia por mudanças acentuadas. Gostariam que tudo ficasse imutável, de preferência por mil anos. Seria melhor que a Lua ficasse parada e o Sol não estivesse em movimento. Neste caso, ninguém mais teria fome nem exigiria jantar. (Brecht, 1968:332). A generosidade com que ela tratava os empregados, a preocupação com cada um, era pessimamente tolerada por Paulo Honório que, além de considerá-la perdulária, não entendia as razões verdadeiramente humanitárias que moviam Madalena. A exposição das qualidades de Madalena é irritante para Paulo Honório porque expõe seu mundo. Mesmo em se tratando de mãe — Margarida, única mãe que o fazendeiro conheceu, a prodigalidade da professora não é vista com bons olhos. Estranho, nisso tudo é que, apesar de casada com Paulo Honório, e portanto meeira da propriedade, ele dizia que ela não mandava em nada. Laura Austregésilo, na homenagem a Graciliano Ramos, encarece a importância de Madalena para a transformação de Paulo Honório: Já quando triunfa, tendo conseguido São Bernardo, as terras que ambicionava, já quando se faz, pela sua posição econômica, respeitado, quando se torna importante na balança social da sua terra, é eu aparece a Paulo Honório a figura que o tirará do anonimato. Sem Madalena, sem os ciúmes primários que ela inspira (é tão diferente de tudo que ele então conhecera que lhe dá medo), sem o suicídio dela, não nasceria ele para a realidade do romance."(op.cit. 83). Infere-se a seriedade do projeto de autoria quando a modificação é inserida na formulação interna; o arrogante proprietário de São Bernardo transforma-se no homem infeliz e consciente dos valores que não soube (ou não pôde) conquistar. As condições objetivas que propiciaram o conflito não se prendem, apenas, a Paulo Honório. Para Carlos Nelson Coutinho: "... Ao tomar consciência do caráter ilusório de sua busca de realização humana, Madalena prefere o suicídio à conciliação com a inautenticidade; mas, como em todo grande romance, há também aqui uma evolução que a conduz, da falsa consciência inicial, à consciência de si como personagem trágica. Madalena, como dissemos acima, é a expressão extrema das possibilidades contidas em uma facção da classe média urbana, que tinha como ideologia um humanismo sincero, mas abstrato, e que — por sua própria condição de classe média desconhecia os meios de levar à prática os seus ideais de solidariedade e de fraternidade". (Coutinho, op.cit. 98). O romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, apresenta a uma leitura inicial uma relação conflituosa que atinge níveis intensos levando a uma solução trágica — o suicídio da personagem Madalena. Uma leitura mais atenta dessa relação permite-nos ver que ela representa, num nível da formulação externa, as condições sociais; e no nível da formulação interna um desacordo profundo entre seres imersos em valores e em condições opostas. O passo indicial para o desacordo ocorre com o surgimento da personagem Madalena no mundo reduzido e reducionista de Paulo Honório. A presença de Madalena vai, pouco a pouco cindindo o compacto universo da personagem Paulo Honório e os valores materiais que o subsidiam. Essa transformação gradativa ocorre nos níveis do enunciado e da enunciação. A própria linguagem da personagem Paulo Honório se modifica no contato cada vez mais próximo com a personagem Madalena. Como os dois universos se movem em lógicas absolutamente diferenciadas, em visões de mundos oponentes, percebe-se que o autor Graciliano Ramos de forma racional e consciente opta por não harmonizar os contrastes o que poderia conduzir a uma falsa e autoritária harmonia romanesca e social. O suicídio de Madalena e a desarticulação interna da personagem Paulo Honório que passa de proprietário rural arrogante a homem sofrido, constitui os sinais mais densos da interferência de Madalena e dos valores humanísticos que integram a sua personalidade no mundo reduzido de Paulo Honório. A nosso ver, o autor desenvolve uma atitude de cumplicidade com a personagem Madalena, atribuindo-lhe uma dimensão suficientemente forte para modificar os rumos da narrativa. A mobilidade da personagem Madalena no romance interfere nas várias imagens que a personagem Paulo Honório apresenta no discurso da narrativa: modificação e dinamismo, pois, passaram a ser o substrato final dessas personagens. BIBLIOGRAFIA BOSI, Alfredo. Céu, Inferno. Ensaios de Crítica, Literária e Ideológica, São Paulo, Editora Ática, 1988. BRAYNER, Sônia (org.) Graciliano Ramos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977. BRECHT, Berthold. Teatro Dialético. Rio. Civilização Brasileira, 1968. CAMÕES, Luís Vaz de. 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