A DIMENSÃO SOCIAL NA NARRATIVA LITERÁRIA Nelly Medeiros de Carvalho (PPG Letras – UFPE) [email protected] Simone de Campos Reis (PPG Letras – UFPE) [email protected] INTRODUÇÃO A narrativa, em suas várias formas, é um fato de nossas vidas diárias, seja lendo, ouvindo ou contando histórias. Essas histórias – nossas ou sobre outras pessoas – “são uma forma de texto através do qual construímos, interpretamos e compartilhamos experiências” (HOFFNAGEL, 2010). As narrativas têm sido objeto de estudo de vários campos científicos. De acordo com Hoffnagel (2010), contar uma história permite que criemos um ‘mundo narrativo’ no qual podemos nos representar ou ver personagens representados culturalmente em um curso de ação típica. As narrativas servem não só para construir a identidade dos narradores, mas também, para construir a identidade do personagem principal da história, atribuindo aos demais participantes, identidades que podem ser positivas ou negativas. A construção e análise das identidades sociais feitas através da linguagem utilizada nas narrativas contribuem como instrumento para uma interpretação mais segura dos papéis dos personagens. “A língua é o suporte da dinâmica social e funciona como elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua” (Carvalho, 1991), e nela surgem os dialetos – variantes distintas – por operações de forças sociais, representantes de grupos étnicos, econômicos, políticos, regionais. Para William Bright, especialista norte – americano, o objetivo do estudo literário dos dialetos sociais é mostrar a relação entre língua e sociedade, que não é, de forma alguma, uma relação casual, mas sim uma variação sistemática da estrutura linguística e social e, talvez mesmo, um relacionamento causal em uma ou outra direção. Estas dimensões se encontrariam condicionadas aos vários fatores definidos socialmente com os quais a diversidade linguística se encontra correlacionada: a dimensão do emissor, a dimensão do receptor e a da situação social. Transpostas estas dimensões para a comunicação literária, teríamos, respectivamente, o autor, o leitor e a mensagem (a obra). RELAÇÃO ENTRE NARRATIVA (discurso) E HISTÓRIA (ação) Nas narrativas literárias, o autor/narrador, enquanto indivíduo empírica e historicamente existente é, sem dúvida, sob os pontos de vista ontológico e semiótico, o primeiro e primordial agente e sujeito da enunciação literária. Esta é considerada a operação individual através da qual o autor utiliza o sistema semiótico literário, atualizando-o em uma sequência de enunciados, que forma o texto literário. Ele assume a função de emissor que pressupõe a função de receptor (para quem). Este emissor pode estar ou não em relação de concordância, discordância ou mesmo de hostilidade com os valores prevalecentes na comunidade histórico-social em que vive. 1 Segundo a teoria da literatura, é preciso distinguir entre o autor-sujeito histórico e o emissor ou narrador, sujeito ficcional. Este seria um autor implícito, espécie de segundo ‘eu’: o narrador. Pode haver no texto, inclusive, vários narradores que assumam o estatuto de “narrationis personas”, principais ou secundários. Toda enunciação é realizada por um emissor que não pode manifestar-se gramaticalmente no enunciado produzido senão sob a forma de pronome de 1ª pessoa, configurando a egocentricidade da enunciação. A presença do autor textual ou do narrador manifesta-se nos dêiticos pessoais, demonstrativos temporais e espaciais em função (‘eu’, ‘aqui’, ‘agora’) não se referindo estes ao autor histórico. De acordo com Levinson (2007), se existe uma forma pela qual a relação entre língua e contexto reflete-se nas estruturas das línguas de modo mais evidente, esse fenômeno é a dêixis, termo emprestado da palavra grega que quer dizer ‘apontar’ ou ‘indicar’, diretamente ligada às circunstâncias da enunciação. O narrador (ou autor textual) pode ser classificado de acordo com sua ligação com a narrativa. Como o nível narrado é nomeado nível intradiegético, o narrador pode ser autodiegético – quando narra suas próprias experiências; heterodiegético – quando narra uma história à qual é estranho; homodiegético – quando narra informações advindas de sua própria experiência diegética. Difere do narrador autodiegético por não ser o protagonista da história, mas um personagem secundário. A presença do narrador é marcada no texto pela descrição dos ambientes, identificação dos personagens, resumos temporais, revelação das opiniões e sentimentos não expressos dos personagens, e finalmente, pela interpretação, julgamento e generalização. Estas marcas elencadas acima são um elemento precioso para uma análise do texto, demonstrando não só a ideologia do narrador (autor textual), como também do autor histórico. Para analisar o estatuto do narrador, Fowler (1988) utiliza outro esquema igualmente válido. Ele destaca quatro tipos: (1) narrador participante da história – limitado – baseado no personagem e mimético; (2) narrador participante, ilimitado e onisciente; (3) narrador desligado da história, impessoal, limitado, preciso (tipo dos narradores de Hemingway) e o (4) narrador desligado da história, limitado e alienado. O segundo pólo da comunicação referido por Dell Hymes (1972), e retomado no estudo da narrativa literária é o leitor, que também pode ser considerado como o leitor real e virtual. Enquanto o leitor real identifica-se em termos semióticos com o receptor, o leitor virtual é uma entidade projetada, patenteando as disposições históricas do público visado pelo autor, eventualmente distante do leitor ideal ambicionado pelo autor. O terceiro elemento, segundo o mesmo autor, adaptado para o estudo da narrativa, é a própria história ou a ação. Componente fundamental da estrutura da narrativa, a ação integra-se no domínio da história e remete a diversos outros conceitos dos quais o que mais nos interessa para a análise é o de personagem, categoria fundamental da narrativa. A relação entre a narrativa (o discurso) e a história (a ação) não permite entrever laços entre a estrutura narrativa e a estrutura social, mas é no plano semântico e lexical onde os interesses sociais se articulam de modo mais claro. A semântica estrutural de Greimas (1976) é uma das teorias que permitem descrever as ligações entre literatura e sociedade e definir a ideologia no nível discursivo. Para a caracterização dos personagens são importantes os índices ou informantes geralmente irrelevantes para a história. Estes detalhes apelam para o conhecimento do mundo ao compor o personagem que pode ser resumido em fatos e ideologias; ele nunca é real, 2 sempre alguma coisa escapa por falta de informação, interesse ou preconceito. Entender os personagens como signos corresponde a acentuar sua condição de unidade discreta, suscetível de delimitação no plano sintagmático e de integração, em uma rede de relações paradigmáticas. Seus processos de manifestação seriam: o nome próprio, a caracterização e o discurso, que configura sua semântica. O nome próprio é a etiqueta colada ao personagem. No romance moderno, a nãoidentificação, o auto-desconhecimento é refletido na ausência de nomes. Títulos, termos de parentesco, pronomes de tratamento, descrição definida para certos papéis sociais são formas de identificação do personagem que delimitam e norteiam seu tipo de fala. A caracterização é todo o processo descritivo que tem como objetivo a atribuição de características diferentes (semelhantes à experiência do real) aos integrantes da história. Existe a caracterização indireta que é dinâmica e dispersa, parte dos discursos dos personagens, dos seus atos e reações perante os outros, aos quais vão- se agregando características significativas, psicológicas, ideológicas, culturais e sociais. A dimensão contextual, pertinente as relações externas semântico-pragmáticas, representa a abertura do texto literário à historicidade do homem, da sociedade e do mundo, quer no momento de sua produção, quer nos diversos momentos de sua recepção. A teoria da estrutura do texto e da estrutura do mundo abrange o componente gramatical, o semântico, o léxico e o pragmático. O momento histórico é constitutivo do texto literário, mas transcende-o enquanto construção e objeto estético. Há uma analogia ou homologia estrutural entre os acontecimentos textuais e os fatos sociais, que não têm um caráter mecânico: é mediatizada por uma visão de mundo intercalada entre a realidade histórica e o universo. As contradições sociais e ideológicas são projetadas na literatura. Tudo o que contém a obra literária passa pela língua. Zima (1985) propõe a necessidade de se conhecer o tipo de sociedade em que a obra está inserida, detectando-se os valores culturais, morais, políticos e metafísicos destas sociedades. A forma de articular entre si os elementos da narrativa, ampliando-se os núcleos e apresentando-os ao leitor é através do discurso onde está a representação dos níveis de fala. O uso de variedades sociais ou outras variedades na literatura para caracterizar personagens ou indicar significados sociais é relativamente recente. Os autores aceitavam sua própria variedade como norma, raramente aparecendo indicadores linguísticos como indicadores sociais. Deve ser levado em consideração que a fala dos personagens vai variar de acordo com o grau de formalidade da situação e com o nível social dos mesmos (um diálogo entre um rei e um moleiro é sempre assimétrico). A representação escrita das diferentes variedades nem sempre se apresenta com fidelidade, criando-se estereótipos. A estrutura narrativa de um texto literário constitui um universo relativamente homogêneo e autônomo. Imita e reproduz a realidade e identifica-se, de maneira implícita ou explícita, com esta realidade que o narrador pretende representar em seu discurso. Esta pretensão desempenha um papel importante na co-ocorrência dos discursos e nos conflitos discursivos. Cada discurso sobre o real ou o não-real é apenas um discurso possível, havendo que destacar dois pontos: 1. Os valores sociais não existem independentes da linguagem. 3 2. As unidades lexicais, semânticas e sintáticas articulam interesses coletivos e podem se tornar o espaço de lutas sociais, econômicas e políticas. Esta articulação de interesses sociais coletivos na linguagem é representada com muita clareza na semântica e no vocabulário. Para estabelecer as ligações entre texto e contexto social, o universo social é representado por um conjunto de linguagens coletivas que aparecem na narrativa. O universo da ficção aparece como um processo intertextual; como uma absorção pelo texto literário dos dialetos e discursos e, a história e a sociedade são encaradas como textos em que o autor se insere escrevendo. O texto literário se coloca em uma situação social e linguística particular tal como foi vivida pelo autor e seu grupo social. A análise do dialeto social de um texto deve se restringir aos elementos que nele surgem como “pontas de iceberg”, como indicadores dos usos no contexto social. A variedade representada é o traço de união entre o narrador e a situação social. OS ÍNDICES SOCIAIS EM DOIS TIPOS DE NARRATIVA Entre os itens que merecem atenção especial na análise de qualquer narrativa sob a luz de conceitos sociais estão as formas de tratamento, grandes denunciadores das distâncias sociais. Para Levinson (2007: 110), a dêixis social diz respeito “aos aspectos das sentenças que refletem ou são determinados por certas realidades da situação social em que o ato de fala ocorre”. São aspectos da estrutura da língua que codificam as identidades sociais dos participantes, isto é, os titulares dos papéis de participantes, ou a relação social que existe entre eles a que se faz referência. As formas de tratamento em uma comunidade constituem assunto de especial interesse linguístico, pois envolvem um problema das relações entre os indivíduos através da linguagem, dependendo de certos matizes afetuosos ou não das palavras, indicando um maior ou menor grau de comunicabilidade e sociabilidade. Os romanos e gregos tratavam por ‘tu’ a todos, até imperadores e deuses. Cada cultura desenvolve formas diferentes de pronomes de tratamento, de acordo com a estratificação social vigente, rígida ou favorecedora de mobilidade social. Os escritores, em geral, atentos aos hábitos sociais, transcrevem o uso das formas de tratamento como elementos diferenciadores de classes, limitadores de relações entre indivíduos, sinais de respeito, afetividade, cerimônia ou distância social. Escolhemos dois contos de gêneros absolutamente desiguais para análise devido ao fato de que concordando com Heidmann (2010:63-64), reconhecemos que a noção de literatura não coincide nas línguas e culturas do mundo, com a mesma realidade sociodiscursiva. Para a autora, “comparar significa aproximar objetos de natureza diferente para extrair uma relação de igualdade e examinar as relações de semelhanças e dessemelhanças entre pessoas e coisas”. Ela propõe denominar este método de ‘análise comparada dos discurso’, uma vez que a realização de uma língua em um texto ou discurso é própria de seus jogos linguísticos, suas teorias suas culturas e suas formas de construir o mundo. Este reconhecimento da diferença é, muitas vezes, negligenciado em favor da pesquisa do semelhante, do ‘universal’, como por exemplo, as reescrituras dos mitos e dos contos são muito determinados pelo o que a autora chama de ‘universalizante’, pois tal tipo de comparação serve ao propósito de tentar estabelecer o ‘sentido’ universal de um mito ou protótipo de um conto. 4 Em concordância com a autora, comparar neste trabalho significa descobrir entre os dois textos escolhidos que são de natureza totalmente diferente um do outro, como se apresenta esta diferença em relação ao traço comum – os pronomes de tratamento – que pretendemos analisar, ou seja, uma comparação diferencial, pois conforme a autora, a ‘diferenciação é um princípio importante da gênese da língua’ (2010:65). Tal comparação objetiva não a uma universalização, mas, pelo contrário, ela almeja demonstrar a diferenciação das línguas, das literaturas e das culturas. Esta busca em construir o comparável através do diferente considera não só o traço comum que será analisado, mas também as divergências lingüísticas e literárias entre as línguas. Esta comparação tem também o caráter de uma comparação não hierárquica, pois estamos atribuindo a mesma importância e valor a ambos os textos, sem privilegiar ou qualificar um texto em detrimento do outro. Segundo Maingueneau (apud HEIDMANN, 2010:69), um texto é o produto de uma interação sociodiscursiva; é o “traço escrito e material da atividade de uma instância enunciativa social e historicamente determinada”. Na diversidade temporal e espacial, os discursos refletem a complexidade e a pluralidade das práticas sociais, inserindo-se nas línguas, culturas e gêneros diferentes. Sob a luz do método de comparação proposto por Heidmann (2010), os textos aproximam-se não pelas suas características estáticas, fórmulas fixas, tais como a presença de certos motivos, ideias, traços de gênero, mas como esses textos se realizam diferentemente em uma determinada língua, literatura e cultura. Isto nos mostra, como diz Borutti (apud HEIDMANN, 2010:90), que cada cultura “habita radicalmente sua própria língua, seus jogos linguísticos, suas teorias, e carrega em si as reificações, as ontologias, as formas de construção do mundo”. No conto, “Meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau”, Mário Dionísio, autor português, tece considerações a respeito do uso dos pronomes de tratamento. No conto, o autor aborda as formas de tratamento ‘lá fora’, colocando os estrangeiros como um termo de comparação superior aos portugueses. Há uma gradação que começa com a admiração pela objetividade francesa, passando pela limitação extrema do inglês até chegar ao espanhol – que recebe algumas referências irônicas. Segundo o autor, o falante de espanhol fica “escoiceando” o interlocutor na forma de tratamento. O povo português merece referências menores de uma imagem diminuída que o próprio povo tem de si mesmo. Analisando as formas de tratamento, o narrador considera “vós” untuoso e já ‘morto’. Cita “vocemecê”, forma já desaparecida no Brasil e menciona que a forma “você”, um tratamento comum, é considerado ofensivo e ‘recebido a patadas’. O pronome “tu” só pode ser usado em casos de extrema intimidade. “Menina” e “vossência” são também indicados como pronomes de tratamento. As diferenças entre ‘Senhora’, ‘Dona’ e ‘Senhora Dona’ revelam os estratos da sociedade contemporânea em Portugal: ‘Senhora’, usado para as mulheres mais humildes; ‘Dona’, uma prova de modesta distinção e, ‘Senhora Dona’, o mais alto tratamento dispensado a uma mulher. No decorrer da narrativa, o autor analisa as distinções: ‘sua esposa’ / ‘sua mulher’ / ‘sua senhora’ e suas gradações, assim como ‘esposo’ / ‘marido’ / ‘homem’. ‘Mulher / marido’ seriam as formas de tratamento social das altas rodas, que o artigo ‘a’, formando a crase diante de ‘sua mulher’, tornaria ainda mais íntimo (à sua mulher). ‘Senhora / homem’ seria a forma de tratamento das classes operárias. ‘Esposa /esposo’ é um par de termos usados apenas em ocasiões muito formais e em relações de muita cerimônia, de uso não aceitável no cotidiano. Mas, o centro da narrativa é o tratamento ‘doutor’ (Dr.) dispensado aos licenciados, tratamento desejado por todas as classes, mesmo 5 quando não merecem. O tratamento ‘doutor’, as suas exigências, revela as camadas sociais, seus preconceitos e seus procedimentos comportamentais. ‘Senhor’, ‘senhora’, ‘doutor’ e ‘senhor engenheiro’ são tratamentos que marcam a distância entre fidalgo e plebeu, embora muitos os ridicularizem por não tê-los e outros o usem sem merecê-lo. Também o ‘senhor engenheiro’ (pouco usado no Brasil) é interpretado como deferência. Para analisar o contos de Fadas foi escolhido o conto “Rumpelstiltskin”, dos Irmãos Grimm - na versão em língua inglesa. Diferentemente do conto analisado anteriormente, “Meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau”, do autor, Mário Dionísio, este possui como título um nome próprio, o qual, conforme Ullmann (1964: 148-165), está tão identificado com o proprietário que acaba por “representar a sua boa ou má reputação” (neste caso, embora a princípio pareça que se trata de alguém que vai ajudar por solidariedade, veremos que não é o caso) e, ainda, “identifica uma pessoa singularizando-a dentre as entidades semelhantes”. Como menciona o autor, embora os nomes próprios não tenham nenhum significado isoladamente, eles ‘conotarão’ muito se se aplicarem, em um contexto específico a uma pessoa (como na nossa história) ou a lugares particulares. E é só ao final da história que o nome próprio do nosso personagem aparece. ‘Rumpelstiltskin’ é quase universalmente conhecido em culturas que dependiam da fiação para as roupas que o povo usava. Segundo o filósofo alemão, Walter Benjamin (apud Tatar, 2004), a “fiação é também um celeiro de textos, ao criar aquela interminável extensão de tempo que requer o lenitivo da narrativa de histórias”. Durante todo o conto, só são mencionados os substantivos comuns atribuídos aos personagens, tais como: ‘miller’ (moleiro), ‘the miller’s daugther’ (a filha do moleiro), ‘the king’ (o rei), ‘the maiden’ (a jovem), ‘the servants’(os serviçais), ‘the Queen’s child’(o filho da rainha), entre outros. Quanto ao nosso foco, os pronomes de tratamento, é importante observar que, conforme Quirk (1974), os pronomes em inglês constituem um sistema fechado. Isto quer dizer que, de modo geral, eles não podem ser estendidos (aumentados) pela criação de outros pronomes adicionais. Muitos pronomes possuem algumas características morfológicas, tais como: contraste entre os pronomes pessoais e os objetivos (ex: I/me, He/him); distinção de pessoa (ex: 1ª [I], 2ª [you] e 3ª [he] pessoas; contraste de gênero (masculino [he], feminino [she] e neutro [it]); formas do plural sem nenhuma relação morfológica (ex: I/we, he/they). O pronome ‘you’, que pode ser traduzido tanto por ‘O senhor’, ‘Vós’, ‘Tu’, como por ‘Você’ são usados, pelos personagens do conto, sem indicação de notoriedade, distancia social ou deferência. Logo no início do conto, nosso ‘anti-herói’, usa a expressão, ‘Mistress miller’, que poderia ser traduzido como, ‘Senhorita moleiro’, ou como aparece em Tatar (2004), ‘Senhoritinha Moleiro’, podendo sinalizar certa deferência pela jovem filha do moleiro ou simplesmente porque o substantivo ‘miller’ é usado para ambos os sexos. Então, o uso de ‘mistress’ serviria para indicar que se trata de um personagem do sexo feminino. No último parágrafo da história, vemos o pronome adjetivo ‘your’(seu/sua/dele/dela/ e suas formas plurais) ser usado antes do substantivo majestade/alteza (Highness), de forma ambivalente porque não sabemos se o nosso ‘anti-herói’ está sendo irônico uma vez que é a terceira e última vez que a rainha tem para adivinhar o nome dele (ou então terá que entregar seu filho conforme havia prometido), ou como um sinal de deferência à posição social dela, uma vez que ‘agora’ a filha do moleiro é a esposa do rei, sua rainha (ex: “What’s my name, Your Highness? Qual é o meu nome, Vossa Majestade/Alteza?). Deste modo a tradução mais 6 apropriada seria ‘Vossa Majestade’, um honorífico, uma vez que tanto o pronome adjetivo quanto o substantivo estão escritos em letra maiúscula sinalizando o que Levinson (2007) chama de ‘receptores autorizados’, que incluem restrições à maioria dos títulos de tratamento. Ainda segundo o autor, falamos dos honoríficos quando a relação diz respeito ao nível hierárquico ou respeito relativos, mas outras qualidades de relações também podem ser gramaticalizadas, como por exemplo, as relações de parentesco, totêmicas, condições de membro de clã e outras. CONSIDERAÇÕES FINAIS A leitura de um texto literário pode ser aprofundada com os conhecimentos da sociolinguística porque os fundamentos teóricos fornecem vocabulário e metodologia os quais permitem estabelecer ligações entre aspectos sociais e a estrutura verbal. O conteúdo e a forma são questões de escolha favorecidos pelos componentes semânticos e pragmáticos da gramática. As escolhas do conteúdo envolvem as estruturas semânticas; as das expressões envolvem escolha de função pragmática e traços contextuais. No primeiro conto escolhido para análise, o autor se pergunta: “Se não há reino para que cavalo, sobretudo de pau?”, querendo dizer, ‘se não existe motivo para titulações, por que usá-las especialmente quando são falsas?’ Todavia, todos se esforçam por receber o tratamento como forma de distinção e assim o autor revela sua visão de uma sociedade que muda lentamente apegada às tradições e usos, às convenções vigentes que são mais fortes na província do que na cidade. Os estratos sociais permanecem e com eles a forma de tratar os que parecem ‘superiores’ representados pelas formas dos pronomes de tratamento na língua portuguesa. O autor mostra a submissão e o servilismo das classes dominantes representadas pelo motorista de táxi, na insistência do uso indevido do tratamento ‘doutor’, como adulação. No conto de fadas, em língua inglesa, compreendemos que as unidades de linguagem de uma língua possuem seus próprios sistemas de significado/sentido e estrutura que as relaciona não só com o mundo fora da linguagem, mas também com outras palavras dentro da língua (gem). A única vez que observamos o uso de um pronome de tratamento é quando o anti-herói refere-se à jovem como ‘Sua/Vossa Alteza’. A ausência de pronomes de tratamentos que possam efetivamente distinguir classes sociais é algo que a língua inglesa parece não sofrer nenhum prejuízo óbvio devido a tal falta. Como afirma Levinson (2007:116), isto se deve à estrutura do sistema linguístico da própria língua. Os estudos dos dialetos sociais tornam possível estabelecer a ligação entre os aspectos sociais e a estrutura verbal, respondendo, desta forma questões que ficariam ignoradas. A dêixis social interessa-se pelo significado e a gramática de certas expressões lingüísticas, enquanto a sociolinguística interessa-se em saber como esses índices são usados em contextos sociais relativos aos parâmetros do sistema social em questão. Quanto mais se analisa o sistema linguístico e suas implicações sociais, melhor se compreende a linguagem dos contos que fazendo combinações e escolhas, cria estruturas extremamente significativas nas suas narrativas, para expressar um aspecto fundamental ao ser humano: as suas relações sociais. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • CARVALHO, Nelly. As distâncias sociais e a linguagem: uma abordagem sóciolinguística de um conto de Mário Dionísio. In: Revista Internacional de Língua Portuguesa. Lisboa: Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Dezembro 1991. Nº 5/6. P. 203 – 209. • DIONÍSIO, Mário. O meu reino (se o tivesse) por um cavalo de pau. In: Monólogo a duas vozes. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1986. 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