As coisas incríveis do futebol As melhores crônicas de Mário Filho José Trajano Apresentação Francisco Michielin Organização ᴇᴅᴛᴏᴀ ᴇ ᴍᴀᴄᴀ ᴏ ᴘᴀᴜᴌᴏ_ᴍᴍᴠ Copyright desta edição © Editora Ex Machina 2014 Copyright © Espólio de Mário Rodrigues Filho 2014 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Coordenação editorial Bruno Costa Edição Leonardo Prado e Leonel Calixto Capa Pedro Matallo_Estúdio Luzia Imagem de capa Praia de Copacabana, Thomaz Farkas (1947)/ Acervo Instituto Moreira Salles Diagramação Bruno Oliveira Assistência editorial Bruno Oliveira Revisão Bruno Costa e Bruno Oliveira Agradecimentos A Francisco Michielin, pelo trabalho incansável de recuperação da nossa memória esportiva. A Mário Neto, Cacilda Fernandes de Souza e Maria Célia Rodrigues, pelo carinho e auxílio inestimáveis. A Alberto Helena Jr. e José Trajano, que engrandeceram a edição com seus textos e conselhos. Aos meus queridos “Leos”, zaga e ataque impecáveis deste time. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M624 Michielin, Francisco, Org. As coisas incríveis do futebol: as melhores crônicas de Mário Filho. / Organização de Francisco Michielin. — São Paulo: Ex Machina, 2014. Il. 200 p. ISBN 978-85-67773-00-1 1. Literatura Brasileira. 2. Crônicas. 3. Futebol. 4. História do Futebol no Brasil. 5. Mário Filho (1908–1966). 6. Jornalismo Esportivo. . Título. . As melhores crônicas de Mário Filho. . Rodrigues Filho, Mário (1908–1966). ᴠ. Michielin, Francisco, Organizador. CDU 821.134.3(81) CDD B869.3 Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino Todos os direitos desta edição reservados à ᴇᴅᴛᴏᴀ ᴇ ᴍᴀᴄᴀ Rua Dr. Rafael Correia nº 65 cj. 05 05043-050 São Paulo ᴘ Brasil +55 11 96075 9395 [email protected] Sumário Apresentação, por José Trajano . . . . . . . . . . . . . . . 11 As coisas incríveis do futebol 15 O abrasileiramento do futebol . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Sururu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 História de um frango . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Legendas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 O individualismo no futebol brasileiro . . . . . . . . . . 46 O mordedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 A paixão do futebol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 O poeta e o passado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Dicionário das arquibancadas . . . . . . . . . . . . . . . 73 O sabido no futebol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82 Os juízes também são gente . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Guerra de nervos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 A evolução do escrúpulo no futebol . . . . . . . . . . . . 102 Apogeu e declínio do capitão do time . . . . . . . . . . . 110 Religião e futebol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 O torcedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126 História de uma frase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 A superstição no futebol . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 A evolução do treino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146 Os pernetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 O repertório do jogador . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 O torcedor de rádio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168 O grande jogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Para um dicionário das arquibancadas . . . . . . . . . . . 180 Notas para uma biografia de Domingos da Guia . . . . . 185 Posfácio, por Francisco Michielin . . . . . . . . . . . . . 194 Legendas das fotos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 Apresentação Eᴌᴇ ᴏ ᴍᴀᴏ de todos. Nenhum de nós, jornalistas esportivos, somos capazes de engraxar os seus sapatos. Não me venham de Armando Nogueira, João Saldanha, Thomas Mazzoni ou Nelson Rodrigues, irmão dele, todos sensacionais e de se tirar o chapéu. Perto de Mário Filho eles estão distantes anos luz. O menino que foi de Recife para o Rio começou cedo no jornalismo ao lado do pai. Mas, aos poucos, ganhou destaque com textos sobre futebol. Conseguiu prestígio e dinheiro e virou dono de jornal. Primeiro, veio Mundo Sportivo, de curta duração, depois o Jornal dos Sports, o famoso cor-de-rosa. Mário Filho foi de um tempo em que a palavra escrita — jornal e revista — disputava com a palavra falada — rádio — a primazia da informação e do conteúdo. Televisão não havia. Muito menos, é claro, o enxame de badulaques de hoje em dia — celular, internet, Facebook, Google etc. Portanto, textos de Mário Filho nos anos 40 e 50, como os que vocês terão a satisfação de ler neste livro, faziam um barulho danado e eram motivo de conversa nas repartições públicas, nos cafés, nas escolas, nas fábricas, nos estádios. É certo dizer que Mário Filho exagerava nas crônicas. Firulava um pouco, driblando aqui e ali números, estatísticas e inventando frases espetaculares. Era o seu lado escritor. Assim, Mário foi em frente. Criou concurso de torcidas, que incentivou o torcedor a levar música tocada por charangas, e portar bandeiras, serpentinas, faixas e outros adereços para dentro dos estádios. Cunhou a expressão Fla-Flu. O Fla dele e o Flu do · 11 · · Apresentação · irmão Nelson, aproveitando-se talvez do nome de uma peça de teatro revista do grupo Tro-lo-ló, em 1925. Mário Filho, apelidado por Nelson Rodrigues de “criador de multidões” foi o maior defensor da construção do Maracanã, ali onde ele sempre foi. Travou intenso debate com Carlos Lacerda, vereador na época, em 1949, que lutava para o estádio ser erguido na distante Jacarepaguá. Os artigos de Mário levaram o prefeito e a Câmara de Vereadores a dar razão ao homem que mais tarde se tornou nome do mesmo estádio — naquela ocasião, o maior do mundo. Mas não foi só como jornalista em O Globo, Globo Sportivo e nos diários de sua propriedade que Mário se destacou. Como escritor deixou o livro mais importante até hoje da literatura esportiva: O negro no futebol brasileiro. Obra que, para o futebol, tem a relevância e importância de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre — que fez o prefácio para Mário —, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, que nos fazem entender a formação de nossa gente, da nossa mestiçagem. Mário escreveu outros livros. Um sobre Pelé, outro sobre a Copa de 62 e uma história do seu time do coração, o Flamengo. E se atreveu a escrever sobre a infância de Cândido Portinari, um dos maiores pintores brasileiros. Quase dez anos após a morte de Mário Filho, com apenas 58 anos, em 1966, trabalhei por duas vezes como chefe de redação do Jornal dos Sports. Eu era um jovem jornalista, mas conhecia a história do fundador do jornal que, além de esportes, trazia um suplemento escolar que alavancava a venda do matutino, principalmente aos domingos. Havia ainda resquícios e lembranças de Mário Filho no acanhado edifício da rua Tenente Possolo, na Lapa: placas de bronze com o nome dele, afixadas em alguns pontos do prédio, e fotos penduradas nas paredes do arquivo. E o conhecia · 12 · · José Trajano · de vista. Quando comecei em 1963, no Jornal do Brasil, tive a chance de vê-lo na Tribuna de imprensa do Maracanã, sempre elegante, de terno, fumando imensos charutos. Mas a melhor imagem que guardo de Mário Filho é a dos desfiles de abertura dos Jogos Infantis e Jogos da Primavera, competições que ele criou e das quais participei pelo meu clube, o América. Ele assistia à passagem da meninada da tribuna do estádio de São Januário. Parecia que era Getúlio Vargas, que, daquele local, saudava os trabalhadores no 1º de maio, dizendo a sua frase mais famosa: “Trabalhadores do Brasil”. Os fãs de futebol, os jornalistas esportivos, os leitores de uma maneira geral irão se deliciar com as crônicas selecionadas. Que venham mais edições com outros textos de Mário Filho. Para mim, lê-las traz a mesma emoção de um gol. Mário Filho foi um verdadeiro craque! José Trajano · 13 · As coisas incríveis do futebol O abrasileiramento do futebol Nᴜᴄᴀ ᴜᴍ ᴌ seria capaz disso — nem o inglês da anedota, nem o inglês de carne e osso. É verdade que há coisas que o inglês faz, está cansado de fazer, e que a gente nem desconfia. Por exemplo: eu, outro dia, vi um jornal de cinema. No meio apareceu um “short” de um match pela Taça da Inglaterra. Pois bem: de repente eu arregalei os olhos, espantado. Um jogador inglês tinha dado uma bicicleta. Avaliem só: uma bicicleta, igualzinha às de Leônidas, uma bicicleta que todo mundo achava a coisa menos inglesa do futebol. E eu vi, uma vez, duas vezes, ligeiramente desconfiado de que podia ser ilusão dos sentidos. Não tinha sido nada disso. O jogador do Arsenal dera a bicicleta. De qualquer maneira, mesmo dando bicicletas, um inglês não faria o que Domingos fez: parar a bola na boca do gol e chamar todo o time do outro lado para depois desafiar as sociais do Fluminense: “Vaiem agora, se são capazes”. Domingos, aliás, quando soletrou as primeiras letras do futebol, não conheceu inglês nenhum nem teve Harry Welfare para ensinar-lhe coisa alguma. Se tivesse, não deixaria de ser brasileiro. Veja-se o caso de Fortes. Fortes foi o discípulo predileto de Welfare. Welfare abriu-se com Fortes, explicando tudo direitinho. Fortes compreendia muito bem as lições de Welfare. Traduzia-as, porém, não para o português, traduzia-as para o brasileiro e, mais ainda, para o carioca. Assim, os truques de Fortes não lembra· 17 · · O abrasileiramento do futebol · vam Welfare. Tanto não lembravam que muita gente pensava que Fortes aprendera tudo aquilo sozinho ou, por outra, que nascera sabendo. Uma modinha popular avisava que quem era bom já nascia feito. Não adiantava quebrar a cabeça, aprender. Fortes, também, só mais tarde espalhou a história. Quem podia desconfiar? Ser inglês era ser grave, cerimonioso, não pode para cá, não pode para lá. Um inglês moleque, pintando o diabo em campo, não entrava na cabeça de ninguém. Talvez Welfare, sem falar português direito, obrigasse Fortes a traduções livres, como aquela do “meta o dedo”. Ah! se o jogador devia meter o dedo, Fortes tratou de meter o dedo onde calhasse. Há um detalhe importante em que poucos repararam: a tendência fortíssima, desde os primeiros tempos, do abrasileiramento do futebol. O êxito do “charles” foi uma consequência disso. Finalmente o futebol brasileiro se encontrava. O “charles” valia como uma metáfora, como uma flor de retórica, tão do agrado brasileiro. Charles Miller, inglês, compreenderia o erro cometera, como inglês. Já Edwin Cox, brasileiro, embora educado lá fora, deu para fazer visagens em campo, escandalizando o velho Cox. Charles Miller poderia deixar de dar “charles”, o velho Cox poderia ficar em casa, em sinal de protesto, o futebol se abrasileiraria cada vez mais. Pouco importava o nome inglês do drop-kick. O drop-kick era tão bonito, tão vistoso, que só podia ser brasileiro, brasileirinho da silva. Mal a bola tocava no chão o beque mandava-a para a frente. A bola descrevia um semicírculo, lembrava uma linha de arco-íris, todo mundo ficava olhando embevecido para a bola. O drop-kick, assim, substituiria o chute a Maranhão, também brasileiro, com um sabor de festa junina. A cabeçada de testa foi abrasileirada por Chico Netto. Chico Netto rodava o corpo no ar, dava a cabeçada de lado, a bola batia na cabeça de Chico Netto, a cabeleira de poeta de Chico Netto caía para trás como uma juba de leão, orgulhosamente. Era gostoso ver uma cabeçada de Chico Netto. Nem · 18 ·