Balcão de Redação − Tema 17 − 2010 Direitos individuais e expressão religiosa V | Período: 03 a 09 de agosto Orientações para o aluno No mês de julho, na França, a Assembleia Nacional (Câmara) aprovou a proibição do uso do chamado “véu integral” nos lugares públicos: ruas, hospitais, repartições, entre outros. O projeto seguiu para o Senado francês, onde é quase certa a aprovação até outubro deste ano. Isso provocou novamente a discussão sobre a burca e a representação da repressão feminina versus a liberdade de as pessoas se vestirem como bem entendem, bem como o direito de o Estado intervir em tal liberdade, ainda mais se ela envolve a cultura de um povo. Ao mesmo tempo, nos últimos dias, assistimos à polêmica entre Brasil e Irã em relação ao apedrejamento de uma mulher adúltera, lei naquele país, e o asilo oferecido pelo governo brasileiro a ela. Um Estado pode interferir em uma decisão de outro, mesmo que haja violação de direitos humanos? Nos dois casos, há uma discussão sobre a repressão à mulher, o mundo muçulmano e o choque cultural entre Oriente e Ocidente, além da importância dos direitos humanos. Reflita sobre os textos a seguir e redija um artigo de opinião sobre tal discussão. Margaret Toba. Texto 1 A burca não é só a burca Por que essa obsessão da França com a burca? Afinal, como o próprio governo francês reconheceu, somente 1900 mulheres usam no país o traje que cobre o corpo inteiro. Então, por que mais da metade das mulheres inquiridas em recentes pesquisas são a favor de uma proibição do seu uso? A resposta é simples. Não tem a ver com um modo errado de vestir, nem tampouco envolve os direitos da mulher. Trata-se de enviar uma mensagem aos muçulmanos. Preocupados com o número cada vez maior de muçulmanos que adotam um estilo de vida ortodoxo, ao mesmo tempo em que desfrutam dos privilégios da vida no Ocidente, os políticos e cidadãos franceses sentiram ser necessário restaurar o “espírito francês” nas suas ruas. O que eles querem dizer exatamente com isso não está claro, mas aparentemente há uma concordância no sentido de que o objetivo seria uma sociedade amplamente homogênea, ou, pelo menos, uma sociedade multicultural com os estrangeiros bem integrados nela. Seja esse tipo de sociedade desejável ou não, o fato é que a proibição da burca não é o meio para se chegar lá. Essa confusão está na raiz da decisão da comissão parlamentar francesa de recomendar a proibição parcial da burca. Ela seria proibida em hospitais, escolas, repartições do governo e no transporte público. As mulheres que descumprirem a lei não terão direito aos serviços públicos. Segundo o relatório da comissão, “o uso do véu islâmico integral é um desafio a nossa república. É inaceitável. Devemos condenar esse excesso”. Se menos de 2 mil mulheres muçulmanas podem representar um desafio para a república, então a França foi fundada sobre bases muito frágeis. Os proponentes da proibição alegam estar agindo em defesa da igualdade de direitos, pois a burca seria um símbolo da repressão contra as mulheres. O presidente Nicolas Sarkozy, que declarou publicamente que a vestimenta não é “bem-vinda na França”, dissera em 2007 que “a França não abandonará as mulheres condenadas à burca”. A ironia de combater a repressão com uma repressão parece latente. O que foi proposto é uma invasão grave da liberdade pessoal sem uma justificativa razoável. Claro que as liberdades individuais podem ser legalmente tolhidas quando circunstâncias como segurança, prevenção do crime ou violência justificam a medida. Mas as razões dadas para a res- trição das liberdades religiosas por meio da proibição do uso da burca – igualdade, repressão das mulheres, proteção dos valores culturais franceses – não parecem ter as mesmas bases. Em primeiro lugar, julgamentos sobre valores são muito subjetivos. Quem decide se elementos particulares de uma roupa combinam com os valores franceses? Podemos deixar que políticos e burocratas tomem essas decisões por nós? Em segundo, a decisão se limitará à burca? A proibição não pode se ampliar aos turbantes, quipás, saris, salwars e saias longas? Muitos grupos, incluindo grupos feministas, alegam que crucifixos e cruzes são exemplos de opressão patriarcal. Seria, então, justificada uma proibição pelo governo do uso de joias representando crucifixos? Estamos em um terreno escorregadio. Se apoiarmos a proibição da burca porque não gostamos da roupa, ou porque ela ofende nossa noção de liberdade, ou porque nos traz desconforto, então estaremos nos expondo a julgamentos envolvendo muitas escolhas pessoais impopulares que fazemos na nossa vida quotidiana. Uma sociedade civilizada é exatamente aquela em que temos a liberdade de fazer alguma coisa que pode ser impopular ou desagradável, mas é inofensiva e legal. Não podemos descartar esse fato levianamente. Proibições da burca vêm sendo consideradas em outros lugares. Recentemente no Egito, a Alta Corte Administrativa derrubou uma decisão que proibia o uso do niqab – véu que cobre o rosto inteiro, deixando aparecer só os olhos – pelas estudantes prestando exames na universidade. A corte decidiu que “o direito de uma jovem de se vestir da maneira que ela considera de acordo com suas crenças e seu ambiente social é um direito inabalável que não pode ser violado”. Mas a corte estabeleceu que a estudante que estiver usando o niqab terá de exibir o rosto quando isso for solicitado por razões de segurança. E muitos Estados islâmicos também exigem que as mulheres tirem o véu para fotos em carteira de identidade, testes profissionais e determinados procedimentos médicos. As preferências religiosas devem ser preteridas quando existe um interesse irrefutável do governo e no caso de uma acomodação não ser razoavelmente possível. As restrições à burca propostas na França não atendem a nenhum desses requisitos. Que interesse irrefutável tem o governo em banir a burca nos hospitais, nas repartições públicas, nos ônibus e trens? Quando houver preocupações justas com a segurança, pode-se exigir que as mulheres de burca sejam examinadas pelos funcionários da segurança. Da mesma maneira, banir a burca no exercício de algumas funções públicas também é aceitável. De qualquer modo, como essa proibição parcial será aplicada? Sua implementação será custosa e só vai tirar as mulheres de burca dos espaços públicos para empurrá-las ainda mais para as sombras. Se o objetivo da proibição é conferir mais direitos às mulheres, a medida é contraproducente. No final, a lei só servirá para expor a comunidade muçulmana ao escárnio e ao ridículo e realçar ainda mais as diferenças religiosas e étnicas na sociedade francesa. Em vez disso, a França deveria procurar convencer a comunidade muçulmana a abandonar o uso do véu voluntariamente. Uma combinação de educação compulsória, incentivos e acesso a oportunidades iguais é o melhor meio para isso. Proibições só geram ressentimento e discórdia. Sandeep Gopalan - Chefe do departamento jurídico na Universidade Nacional da Irlanda em Maynooth. O Estado de S. Paulo. Tradução de Terezinha Martino. <www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-burca-nao-e-so-aburca,504277,0.htm>. 31 jan. 2010. Balcão de Redação − Tema 17 − 2010 Direitos individuais e expressão religiosa V | Período: 03 a 09 de agosto Texto 2 Irã indica que rejeitará asilo de condenada à morte proposto por Lula O governo do Irã indicou nesta terça-feira que rejeitará a proposta do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva de conceder asilo político à Sakineh Mohammadi Ashtiani, 43, condenada à morte por adultério e suposto envolvimento na morte do marido, classificando a oferta como “emotiva e desinformada”. A República Islâmica suspendeu a sentença por apedrejamento ainda na semana passada, mas Ashtiani ainda pode ser executada por enforcamento. “Até onde sabemos, [Luiz Inácio Lula] da Silva é uma pessoa muito humana e emotiva que provavelmente não recebeu informações suficientes sobre o caso”, disse o porta-voz da chancelaria iraniana, Ramin Mehmanparast. Informações adicionais serão providenciadas para o presidente para esclarecer a situação sobre “uma pessoa que é uma criminosa condenada”, o porta-voz acrescentou. Sakineh já recebeu 99 chibatadas como punição por manter “relacionamento ilícito” com um homem. Demora De acordo com a apuração de Marcelo Ninio, correspondente da Folha de S.Paulo em Jerusalém, Lula foi alvo de críticas dos ativistas que atuam na campanha em defesa à mulher iraniana condenada à morte, para os quais a atuação do presidente brasileiro foi demorada. A iraniana Mina Ahadi, diretora da ONG que coordena a campanha em favor de Sakineh, disse que o apoio de Lula é importante, mas demorou. “Lula se diz próximo do presidente [do Irã] Mahmoud Ahmadinejad, a quem chama de irmão, mas jamais falou das violações de direitos humanos”, disse, da Alemanha, onde vive exilada. As críticas de Lula à pena de morte no Irã e a oferta de abrigar Sakineh no Brasil significaram uma reviravolta na posição do presidente. Dias antes, ele havia se negado a aderir à campanha pela libertação, dizendo ser “avacalhação” interferir em assuntos legais de outros países. No domingo, o jornal britânico Guardian noticiou que Sajjad, filho de Sakineh, recebeu um telefonema de autoridades iranianas pouco após o discurso de Lula. Segundo Sajjad, em tom ameno, indicaram que o caso da sua mãe seria tratado nesta semana. Na Argentina, o chanceler Celso Amorim disse ainda na segundafeira ter pedido há duas semanas ao seu homólogo iraniano, Manouchehr Mottaki, que o país persa perdoasse Sakineh. “Ele ouviu com atenção, não posso dizer que tenha concordado ou não. Em outras vezes que fiz a mesma coisa, houve resultados.” Em Washington, o porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, respaldou a ação brasileira e disse esperar que o Irã “a escute”. Apelo A declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de oferecer asilo à iraniana condenada à morte por apedrejamento fez o governo do Irã baixar o tom no contato com a família da acusada. Levou também esperança ao filho de Sakineh Ashtiani, que acredita que a influência de Brasil e Turquia pode ajudar a salvar a vida de sua mãe. Lula disse no sábado (31), em Curitiba (PR), que vai pedir ao líder do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que envie a iraniana ao Brasil, onde poderá receber asilo. “Se vale a minha amizade com o presidente do Irã e se ela [a mulher condenada] estiver causando incômodo lá, nós a receberemos no Brasil de bom grado”, disse Lula, acrescentando que iria telefonar para o iraniano e conversar sobre o assunto. Logo após a declaração de Lula, autoridades ligaram para Sajad e disseram que o caso de sua mãe seria analisado esta semana, informa o Guardian. “O tom deles foi mais educado que antes”, disse Sajjad. Fim do silêncio A declaração de Lula sobre o caso também pôs fim ao silêncio da imprensa iraniana sobre o caso. “Após o comentário do presidente Lula, pela primeira vez agências [de notícias] no Irã divulgaram o caso de apedrejamento de minha mãe, o que mostra como o Brasil é importante para o Irã”, disse o filho de Ashtiani. A agência semioficial Fars divulgou a proposta de Lula e falou sobre a sentença a morte por apedrejamento por causa de adultério – normalmente, a agência censura a palavra apedrejamento. Já a Jahan News, serviço de notícias ultraconservador e próximo à Guarda Revolucionária Iraniana, reagiu com tom crítico neste domingo, acusando o presidente brasileiro de estar “sob a influência da propaganda ocidental” e de tentar “uma clara interferência nos assuntos internos do Irã”, informa o jornal americano The New York Times. A Jahan News também afirmou que Ashtiani pode não ser apedrejada até a morte, já que seu caso está sendo revisto pela corte, e que ela poderia ser enforcada. Não houve nenhum comentário oficial do governo iraniano até o momento sobre a oferta brasileira. Entenda o caso Mãe de dois filhos, Ashtiani recebeu 99 chicotadas após ter sido considerada culpada, em maio de 2006, de ter uma “relação ilícita” com dois homens. Depois, foi declarada culpada de “adultério estando casada”, crime que sempre negou, e condenada a morte por apedrejamento. O anúncio de que a aplicação da pena poderia ser iminente despertou uma grande mobilização internacional, e países como França, Reino Unido, EUA e Chile expressaram suas críticas à decisão de Teerã. O governo islâmico disse então que suspenderia a pena, até segunda ordem. Lula sob pressão A declaração de Lula atende o movimento mundial que luta para salvar a vida da iraniana e livrá-la do apedrejamento. No Brasil, internautas criaram a campanha “Liga Lula” em uma tentativa de sensibilizar o presidente brasileiro a exortar o líder iraniano a libertar Ashtiani. O presidente brasileiro foi criticado ao chamar as tentativas de “avacalhação”. “Um presidente da República não pode ficar na internet atendendo todo o pedido que alguém pede de outro país [...] É preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes, daqui a pouco vira uma avacalhação”. Campanha Um abaixo-assinado aberto há cerca de um mês na internet deu impulso mundial à campanha pela libertação da iraniana. O documento conta com mais de 114 mil assinaturas, a maioria sem valor real, como pessoas identificadas apenas pelo primeiro nome, manifestações políticas como “E agora Lula?” e piadas como “Pica Pau”. A lista, contudo, tem também assinaturas verídicas de célebres brasileiros – Fernando Henrique Cardoso, Chico Buarque e Caetano Veloso. Farshad Hoseini, diretor do Comitê Internacional contra Lapidação e autor do documento, explica que a ideia é que a pressão internacional chegue ao governo iraniano. Associated Press. Folha OnLine. <www1.folha.uol.com.br/mundo/776930-ira-indica-que-rejeitaraasilo-de-condenada-a-morte-proposto-por-lula.shtml>. 03 ago. 2010. Balcão de Redação − Tema 17 − 2010 Direitos individuais e expressão religiosa V | Período: 03 a 09 de agosto Texto 3 Proibir expressões individuais, seja pelo motivo que for, é comportamento de países fundamentalistas e/ ou totalitários. Defender que determinada expressão individual, seja ela religiosa ou não, contraria os princípios do Estado e, portanto, deve ser banida, pode se tornar um escorregão para coisas muito perigosas. Valores são terrenos pantanosos. Se decidir proibir as burcas e os niqabs, a França pode estar se aproximando daquilo que tenta se afastar. Por outro lado, quais são os limites dos direitos individuais e da expressão religiosa? Haveria, por exemplo, o direito de ser oprimido? Ao defendermos a necessidade de respeitar as diferentes culturas e a complexidade do outro, estaríamos incorrendo em um relativismo cultural que só serve ao opressor? A mutilação genital, com a extirpação do clitóris, deve ser permitida porque é parte de uma determinada cultura? Ou o apedrejamento das adúlteras? Quais são os limites? E quem decide? Neste caso, poderia se argumentar que a burca não fere a integridade física de ninguém. Mas e a integridade psicológica, a saúde de uma mulher obrigada a ver o mundo por uma tela, teria menos valor? Não interferir não seria omissão em vez de respeito? E, como toda omissão, uma forma de apoio àquilo que degrada a dignidade humana? É complexo. Chego até aqui ainda com muitas perguntas. Tenho, porém, umas poucas convicções. Acredito que, se for aprovada, uma lei banindo burcas e niqabs vai servir para marginalizar ainda mais as mulheres islâmicas que usam os véus integrais, seja por imposição dos pais e maridos, seja por vontade própria. Acredito que vá acirrar ainda mais o sentimento de rejeição vivido por parte dos imigrantes muçulmanos. E não tenho dúvida de que será amplamente propagandeado pelos recrutadores do fundamentalismo, ao dizerem com a boca cheia: viram como eles não respeitam os sagrados ensinamentos do profeta, como riem de nossas crenças, como nos odeiam? É possível até que mulheres que rejeitavam secreta e silenciosamente seus véus passem a defendê-los, como forma de assegurar a única identidade que conhecem. Nada pior do que uma causa comum para aumentar o radicalismo e o número de adeptos. Nada pior para a construção de uma sociedade tolerante com as diferenças que tratar o outro como bizarro – e seu estar no mundo como bizarrice. Acredito que o melhor caminho para manter vivos os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade é sempre incluir – e não excluir. Não acho que a primeira estratégia do Estado deve ser criar mais uma lei. Nem me parece o modo mais inteligente de enfrentar a questão. Se o parlamento francês gastasse esse tempo e essa energia para assegurar educação e oportunidade para estas mulheres, para ampliar seu acesso à democracia, elas se sentiriam parte. E talvez, um dia, aquelas que não vestem as burcas e niqabs por vontade própria, conseguissem se sentir seguras e amparadas para tirar os véus por si mesmas. Eliane Blum. Revista Época. <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI11917915230,00-A+BURCA+A+FRANCA+E+TODOS+NOS.html>. 1° fev. 2010. www.sistemapoliedro.com.br