PEREGRINAÇÃO (HAJJ) ISLÂMICA – DIÁLOGOS ANTROPOLÓGICOS SOBRE PRÁTICAS NATIVAS PARA COMPREENSÃO DA COMUNIDADE RELIGIOSA MUÇULMANA Dra. Maria Patrícia Lopes Goldfarb1 Vanessa Karla Mota de Souza Lima2 Resumo: O termo Islã (اإلسالم, transl. al-Islā) provem do árabe Islām, que por sua vez deriva da quarta forma verbal da raiz slm, aslama, e significa "submissão” (a Deus) ou “submissão à vontade de Deus”. A teologia islâmica se divide em duas categorias de pensamento principais: crenças (o Iman) e práticas (o Din ou Pilares da Fé), ambas fundantes do que constitui o ser muçulmano. A peregrinação anual dos revertidos muçulmanos à Meca na Arábia Saudita (Hajj) é um dos pilares da fé islâmica. Esse artigo visa discutir de que modo essa peregrinação ritual, possibilita e amplia os significados da religião islâmica para o/a peregrino/a, de modo a conduzir os indivíduos para uma noção de identidade comunal, que se expressa em seus discursos e práticas cotidianas. Propomos ainda, refletir de que modo a identidade religiosa comunal e a peregrinação islâmica, empreendida por muçulmanos brasileiros, da comunidade sunita pessoense, contribuem para a afirmação da identidade religiosa e o fortalecimento da comunidade religiosa local. Para isso, escolhemos dialogar com alguns autores como Gluckman, Turner, Geertz, Barth, James Clifford, Asad, Barbosa-Ferreira, Pinto, Mawdudi, Hall, Anderson, Karam, dentre outros. Entendemos que o ritual de peregrinação islâmico é um mecanismo de reafirmação da fronteira religiosa para além das diversas identidades étnicas locais e transnacionais. Os laços que unem os peregrinos são distintos da consangüinidade ou do partilhar de um território, mas, se firmam no sentido e nas fronteiras de significados presentes no discurso de unidade moral, ideológica, política e obviamente religiosa, entre os muçulmanos de todas as partes do mundo. Palavras-chave: Islamismo; etnicidade; antropologia da religião; comunidade; peregrinação. 1 Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] 2 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] 1 O termo Islã (اإلسالم, transl. al-Islā) provem do árabe Islām, que por sua vez deriva da quarta forma verbal da raiz slm, aslama, e significa "submissão” (a Deus) ou “submissão à vontade de Deus” (MONTENEGRO, 2000, p. 19). “No dicionário árabeportuguês, de Helmi Nasr, Islam significa entrega, obediência completa a Deus, além de A religião do islã e Islamismo”. E destaca: “(...) faço uso do termo entrega, não apenas porque se trata da tradução correta (...) mas também por considerar que há uma entrega desse muçulmano que professa a sua religião.” Barbosa-Ferreira (2007, p.19) O Islã é definido não apenas como um sistema de crenças, ao qual o fiel se submete, mas, como uma postura da vida. O termo adquire significados mais profundos quando analisado na perspectiva teológica dos adeptos da religião. Para a teologia islâmica, a religião muçulmana é “eterna”, ou seja, é a verdadeira religião, dada desde os primórdios por Deus aos homens. O islã seria, portanto, a religião “natural” da humanidade3; a manifestação final e última da vontade de Allah aos homens. Essa concepção recorrente no discurso dos fiéis é, conforme define Eliade (2012, p. 17), o ganz andere4, que se revela “como nunca antes”, de acordo com o conceito de verdade, arrogado pelas religiões. A religião por sua vez, é abordada nesse artigo a partir dos ensinamentos de Durkheim (1989), que a define como um processo dual entre sagrado (ritos religiosos, extraordinário, experiências do crente com o sobrenatural) e o profano (a vida pública diária, o cotidiano); categorizada como produto da sociedade e seus processos coletivos: (...) a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos reunidos e que são destinados a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais desses grupos. “Mas então, se as categorias são de origem religiosa, elas devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos: elas também devem ser coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. (DURKHEIM, 1989, p. 212). O indivíduo, então, organiza sua vida e ideias a partir das crenças religiosas. “Mas as festas, os ritos, em uma palavra o culto, não constituem toda a religião. Esta não é apenas um sistema de práticas, é também um sistema de ideias, cujo objetivo é exprimir o mundo” (DURKHEIM, 1989, p. 211). Ou seja, a religião seria uma das principais fontes de coesão social, de manutenção do poder e da ordem. 3 4 PHILIPS, 2008:78-79. ELÍADE, 2010:12. 2 Destacamos também o pensamento de Geertz (2011, p. 66), que define a religião como “(...) um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”. Segundo Geertz, “o homem é um animal simbolizante” (SOUZA, 2005, p. 71) e desse modo, a religião fornece símbolos, unifica a conduta e a cognição dos povos. Para Asad (2010, p. 263), o símbolo, portanto, teria significância intelectual e emocional, sempre condicionado pelas relações sociais, por isso representa um importante objeto de investigação antropológica. A visão de mundo e o ethos seriam responsáveis pela “legalidade” religiosa, mantendo a coesão social. A fé é justificada por meio da objetividade da práxis teológica das crenças. Desse modo, "em todo lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas induz a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional" (GEERTZ, 2011:93). Como nos mostra Kemp, a lógica religiosa possui centralidade e faz com que os indivíduos concebam sua participação no grupo social como algo regido por mecanismos coletivistas (KEMP, apud DAMASCENO, 2010:72). No caso da religião islâmica, é a aceitação da Ummah como uma comunidade universal para além das fronteiras étnicas ou geográficas5 quem define essa identidade comunal6. Sendo assim, esse artigo visa discutir de que modo a Hajj (peregrinação anual dos revertidos à Meca), possibilita e amplia esses significados e de que modo conduz os indivíduos à noção de identidade comunal, que se expressa em seus discursos e práticas cotidianas. Para isso, propomos dialogar com alguns autores da teoria antropológica como Gluckman, Turner, Geertz, Barth, James Clifford, dentre outros. A Ummah – O ser muçulmano e a comunidade imaginada islâmica 5 Para um muçulmano, o vínculo fundamental não é a Watan (terra natal), mas sim Ummah, ou comunidade de fiéis, em que todos são iguais em submissão perante Allah (LIMA, 2012, 44). 6 A construção da identidade coletiva segundo a identificação com as normas oriundas da lei de Deus, interpretadas por uma autoridade definida que atua como intermediária entre Deus e a humanidade. (Castells, 2010:29). 3 Um árabe, nem um não-árabe tem qualquer superioridade sobre um árabe; o branco não tem superioridade sobre o negro, nem o negro é superior ao branco; ninguém é superior, exceto pela piedade e boas ações. Aprendam que todo muçulmano é irmão de todo muçulmano e que os muçulmanos constituem uma irmandade. (...) Lembrem que um dia se apresentarão perante Deus e responderão pelos seus atos. Então fiquem atentos e não se desviem do caminho da retidão após eu partir. (Muhammad , em seu discurso de despedida)7. O Islamismo hoje é praticado por cerca de 1,57 bilhões de muçulmanos, ou seja, quase 25% da população mundial (RIBEIRO, 2012, p. 108.), distribuídos na sua maioria entre a Ásia, Oriente Médio e África, conforme ilustrado nas figuras abaixo. A maioria dos muçulmanos não é árabe. Segundo dados da Folha de S. Paulo8, publicados em 2009, o Islamismo apesar de ser uma religião em crescente expansão, ainda é minoria na Europa e Américas mesmo com o amplo contingente migratório. Os maiores grupos de muçulmanos estão localizados em regiões como Ásia, Oriente Médio e África (LIMA, 2012, p.22). A teologia islâmica se divide em duas categorias de pensamento principais: crenças (o Iman) e práticas (o Din), ambas fundantes do que constitui o ser muçulmano. O Iman é compreendido como as principais crenças do Islamismo, as quais são: Allah, os profetas, os livros sagrados, a predestinação ou decretos de Deus, o juízo final, o paraíso, e a salvação. O Din é o que confere a religião o status de um modo de vida, é composto por: a Asháhda ou Kalimat at-Tawhid (Philips, 2008:77), a Salat9, o Zakat , o Ramadã, a Hajj, o Alcorão, a Sunna, o Haddith, o Ijmá, a Sharia e o Jihad10. Essas são as crenças e práticas, que também outorgam aos fiéis a convicção de serem todos os muçulmanos, pertencentes a uma mesma irmandade, a “Ummah”, cabendo a eles, distribuídos em todo o mundo, promover a união da Dal-Islam (Casa do Islã). Uma união tanto no aspecto confessional, como social e político-econômico. No Islamismo, a religião é a essência da vida; é inarredável o ritual religioso da vida cotidiana. 7 Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/523/ Acesso em: 26/12/2014 Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u635475.shtml Acessado: 05/11/2012. 9 Aliado ao jejum, a Hajj e a Zakat são os chamados Atos de Adoração. 10 Para uma melhor compreensão acerca das crenças e práticas islâmicas, sugiro consulta a LIMA, 2012:88 pgs. 8 4 O Islamismo já afirmou Geertz,11 não é uma religião homogênea. Ao se expandir, o islamismo conquistou diversos territórios ao longo de sua trajetória nos últimos catorze séculos. Nesse processo, viu sua unificação a traços culturais específicos e distintos. E, portanto, é importante destacar que as “culturas muçulmanas são múltiplas e diversificadas” (SOUZA LIMA, 2012, p.22). No entanto, há um ethos que os crentes discursam quanto ao seu poder de lhes conferir coesão e um partilhar comunal, esse ethos pode ser definido como “[...] o tom, o caráter, e a qualidade da sua vida, seu estilo, e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – um quadro que faz do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre ordem de um povo, seus símbolos sagrados” (GEERTZ, 1978, p. 93). Portanto, compreendemos que “o Islã não é um fenômeno ligado a uma única civilização, pois há uma diversidade e complexidade que permeia o mundo muçulmano” (RAMOS, 2003: 19). Conforme destaca Barbosa-Ferreira (2007, p. 21) “o universo islâmico ainda que marcado por um cotidiano de práticas religiosas, é muito mais complexo do que as simples emissão e recepção dos seus preceitos”. No estabelecimento da nova religião, Muhammad anunciava à Ummah à vontade Deus sendo, portanto, uma forma teocrática de governo porque Deus dirigia a Ummah. A Ummah, em Medina se consolida; esta era a comunidade de crentes fiéis a Deus ligados não mais pelo sangue, mas sim pela fé. O indivíduo não queria mais se submeter às leis e costumes tribais administrados pelos chefes das tribos. Em outras palavras, sua lealdade suprema não pertencia mais à tribo, mas à nova identidade islâmica. (ALAHSAN, 1992, p. 19.) A Ummah está diretamente relacionada com a experiência da partilha comunitária do ser muçulmano (BARBOSA-FERREIRA, 2010,216). Esse indivíduo que quer esteja próximo ou distante de um contexto de maioria islâmica, consegue se identificar e construir uma nova forma de pensar, e, portanto, de ser e agir. Por conseguinte, as fronteiras que marcam as diferenças religiosas evocam um sentido de particularidade da fé, cuja vivência também se dá em sua aceitação na comunidade islâmica global. É preciso diferenciar, no entanto as comunidades locais, as quais nós compreendemos como “uma comunidade de pertencimento e de sentido, uma comunidade étnico-religiosa (MARQUES, 2008), cujos membros se sentem pertencentes a uma determinada doutrina, história ou estilo de vida” (WEBER, 1994). 11 GEERTZ, 2004. 5 Esse pertencimento é subjetivamente construído, através da partilha de crenças e valores coletivamente elaborados e da “imaginação” comunal dos adeptos da religião islâmica12. É a partir dessa “imaginação comunal” que os adeptos transcendem o espaço geográfico e partilhado e evocam a comunidade imaginada13, a Ummah. Para o muçulmano, a nacionalidade é uma ficção forjada pela tradição do colonizador europeu. Todos estão unidos em Deus. Se Deus é uno, una deve ser a comunidade, em comunhão com Allah (Tawhid). Logo, na concepção muçulmana, os desígnios de Deus manifestam-se nesse espaço de convivência entre os muçulmanos e não muçulmanos, ou seja, é nele que a justiça de Deus (Adallah) se faz presente. Inerentemente à Ummah, existe a ideia de responsabilidade republicana istikhlaf (responsabilidade pessoal e comum), do dever de um cidadão sobre a manutenção da vida digna do seu concidadão (VIEIRA, 2011, 195). [...] no Islã, não existe distinção entre muçulmanos em função da nacionalidade, a comunidade e seus agregados (baleghs e dhimmis) estão unidos, universalmente (Tawhid), em um único povo de Deus. (VIEIRA: 2011,202). Uma das maiores realizações, e historicamente única, do profeta foi sua habilidade em prover para seus seguidores árabes uma nova e única identidade (HASSAN apud SANTOS, 2011, 177). A Ummah islâmica, portanto, tem especificidades, cujos sinais diacríticos como a língua e escrita sagradas, vestes, narrativas históricas e rituais, dentre outros, conferem ao/a fiel uma nova identidade religiosa “[...] para muitos ativistas islâmicos, a noção de Ummah é parte integral da moderna consciência muçulmana.” (SANTOS: 2011, 182). Esse é o discurso da unicidade entre os fieis e, portanto, o que conectaria todos entre si: Um só deus (Allah é único, absoluto e revelado em sua unicidade aos homens), uma só religião (na perspectiva islâmica, as religiões monoteístas como judaísmo e cristianismo são estágios da revelação final de deus aos homens, o próprio Islã) e, 12 Marques, 2008, p.6 Benedict Anderson (2008) discute as questões relacionadas ao nacionalismo (sua análise histórica) e como a ideia de unificação territorial fez ressurgir politicamente o que denomina de “comunidades imaginadas” (p.32), elaboradas a partir do advento do capitalismo, da imprensa, da narrativa “histórica”, alicerçada e legitimada por meio dos museus, mapas, e censos, mas, cuja realidade nada mais é do que esforços para uma construção identitária comum aos povos. A imaginação que adjetiva a essas “nações”, todavia, não pressupõe falseamento (p.33). Outras características marcariam essa nação “imaginada”: Ela é limitada (p.33), é soberana (p.34) e é uma comunidade (p.34). As relações de solidariedade “horizontais” (p. 34) que tendem a agregar os sujeitos em uma só comunidade são fundadas, portanto, em laços flexíveis, diversificados e não restritos a fronteiras geográficas. Para o autor, essa concepção já era encontrada em comunas religiosas, inclusive no modelo de Ummah islâmica, cujas textualizações dessas comunidades, se davam, principalmente, nas peregrinações (pgs. 92-93). Portanto, no que diz respeito à comunidade imaginada islâmica, ela se funda não apenas no discurso dos fieis, mas na própria narrativa histórica, na institucionalização da “comunidade” islâmica já no novo cenário que se estabeleceu com a hegemonia do Islã entre as tribos da Arábia. 13 6 finalmente, uma só comunidade (a comunidade de pertencimento, a Ummah islâmica). Ser muçulmano é ser Ummah. No discurso do fiel muçulmano, a Ummah adquire status de pertença e sentido e é no partilhar da memória coletiva, dos sinais diacríticos, das querelas políticas14 e das celebrações do calendário muçulmano que todos se encontram, seja no mesmo tempo ritual ou no espaço da sacralidade, unidos pela performance da fé, pelos sentidos corporais e/ou pelo sentimento de irmandade. É ali que, para cada crente, todos se tornam um só, tendo Allah por Senhor absoluto e guia das suas ações. Para o fiel, é a plenitude da unicidade. HAJJ - A peregrinação dos muçulmanos à cidade sagrada de Meca A Hajj é a peregrinação anual à cidade sagrada dos muçulmanos, Meca. Deve ser realizada pelo menos uma vez na vida, por todo fiel que estiver em condições físicas e financeiras. A peregrinação acontece durante o décimo segundo mês islâmico (dhu al-hijjia)15 e o objetivo é unir a Ummah em um ritual comum a todos, num mesmo espaço sagrado e tempo não ordinário. Há dois tipos de peregrinação: a Omra: Pequena Peregrinação (3 ou 4 dias) e a Hajj, a grande peregrinação, mais meritória. As peregrinações a Meca eram uma atividade comum já na Arábia pré-islâmica, quando, sendo considerada a prática religiosa mais importante entre as tribos que habitavam aqueles territórios, eram empreendidas peregrinações para os denominados haram, santuário. (SOUZA LIMA, 2012, p. 18). Dentre esses santuários, o mais importante da época era a Caaba (Pedra Negra), localizada em Meca, ela abrigava mais de 360 ídolos de toda a Arábia. A Caaba era resguardada pelo clã dos Coraixitas, proeminentes membros da sociedade de Meca, e de onde adveio o profeta Muhammad. A tradição islâmica atribui a origem da Caaba a uma construção erguida por Adão. Posteriormente, Allah teria ordenado a Abraão que 14 É por meio dessa identificação transnacional, através da assimilação das ideologias, do pensamento político e práticas sociais pertinentes aos muçulmanos que assuntos como a questão palestina, as revoluções árabes, guerras e conflitos civis em países de maioria muçulmana, as restrições religiosas impostas às minorias muçulmanas em países como a França, por exemplo, além das demandas territoriais e as querelas internacionais envolvendo o ato de extremistas islâmicos, tornam-se questões das comunidades muçulmanas locais por todo o mundo, interferindo diretamente em suas maneiras de vivenciarem a fé. 15 BARBOSA-FERREIRA, Francirosy Campos. Hajj, Umrah: uma peregrinação num espaço energizado e concêntrico, Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 31, p. 891-913, jul./set. 2013 – ISSN 2175-5841, p. 901. 7 convocassem todos os homens a visitarem o local16. Com o advento do Islamismo, o retorno e conquista de Muhammad da cidade de Meca depois sete anos exílio em Medina, a peregrinação em torno da Caaba foi mantida, mas a adoração passou a ser restrita a um único deus, Allah17. “Como bem afirma Pace (2005 p. 144), Meca celebra a unidade da comunidade dos crentes e, portanto, é um lugar de afirmação da identidade muçulmana. Não só a Pedra Negra, mas o núcleo histórico da cidade é considerado sagrado: al-haram. O perímetro sagrado se estende por cinco quilômetros de largura, contados a partir do templo onde se guarda a Pedra Negra (o Cubo, a Caaba)18” Barbosa-Ferreira destaca ainda: O Hajj é um ritual marcado por uma série de regras e comportamentos que devem ser seguidos à risca pelos peregrinos. Uma das determinações é que o peregrino deve empreender o Hajj com dinheiro lícito, sem dívidas, e após ter suprido as necessidades da sua família pelo período equivalente ao que irá ficar fora, devido à peregrinação. Os rituais da peregrinação baseiam-se em atos praticados pela família do Profeta Abraão, quando foi incumbido por Deus de reconstruir a Caaba, juntamente com o seu filho Ismael. Segundo os muçulmanos, a peregrinação é um atendimento ao chamamento que o Profeta Abraão dirigiu a todos os homens, obedecendo à ordem de Deus. Não basta mudar de roupa, como assim o fazem homens e mulheres que adotam a vestimenta branca, como modo de estar igual a todos, perante Deus. É necessária uma maior introspecção neste período, que dura cinco dias, quando as pessoas não podem se preocupar com questões que não sejam referentes a Deus. A vestimenta masculina deixa a descoberto o braço direito. Este ato de mudança de roupa e de comportamento é chamado al ihram, e,durante a viagem, o muçulmano repete várias vezes: labayakaallahumma (“Eis-me aqui, ó Deus, estou pronto, estou a teu serviço”). (2013, 901-902). Quando chega a Meca, o peregrino veste um traje Ihram, que simboliza o inicio de sua consagração, vai a Masjid AL-Haram, para percorrer sete voltas e tocar eventualmente a Pedra Negra, depois bebe água do poço de Zenzem, que representa a nascente que jorrou dos pés de Agar, mãe de Ismael e vai até o Monte Arafat, onde apanha do chão algumas pedras para lançar na estrela que representa Satã, esse é o último dos rituais obrigatórios durante a peregrinação19. “Conheça o Islam e os muçulmanos”. Livreto do Departamento Islâmico da Embaixada da Arábia Saudita – Washington D.C 17 Para uma melhor compreensão do período pré-islâmico na região da Arábia Saudita, ver LIMA, 2012. 18 BARBOSA-FERREIRA, 2013, p. 901-902. 19 Sugiro a leitura de BARBOSA-FERREIRA, 2013 e para mais informações sobre os rituais durante a peregrinação islâmica, ver ilustração disponível em: http://www.chicagohajj.com/blog/ 16 8 Hajj e Ummah islâmicas – Diálogos antropológicos sobre práticas nativas para compreensão da identidade religiosa muçulmana Fiz o Hajj no ano de 2011. O Hajj só realizei uma vez. Fiz Umhra no Ramadan de 2014. Compreendo que o hajj para um muçulmano é um grande privilégio concedido por Allah (swt), para o cumprimento sagrado deste pilar, que é visitar a Casa Sagrada, pois muitos muçulmanos desejam participar do hajj e não recebem a oportunidade, mesmo possuindo todas as condições para dele participar. Enfim, ser um Hajj é ser convidado de Allah (swt), com o intuito de verdadeiramente efetivar, pela infinita graça do Todo-Poderoso, uma mudança radical em sua vida. Para mim foi uma experiência singular. Por ser novo revertido, não me encontrava preparado para tão grandiosa experiência. No Ramadan de 2011, resolvi durante todo o mês, por incentivo de uma leitura que fiz de um livro, pedir a Allah(swt) que me concedesse o privilégio de estar em Meca participando do Hajj. Mas não esperava que os irmãos que fazem o CDIAL – Centro de Divulgação do Islam para a América Latina fossem me incluir no grupo dos hajjs daquele ano. Ao me deparar com a majestosa visão da Caaba, conhecedor de parte da historicidade daquele lugar, veio a mim o que aprendi no Colégio Estadual de Santa Rita, minha cidade natal, sobre a Casa construída pelo profeta Abraão e seu filho Isague, que a paz e bênçãos de Allah sejam com eles. Ao contemplar a religiosidade de 2 milhões de peregrinos (número anunciado dos hajjs daquele ano), beber das águas da fonte que saciou a sede do filho de Sara e de Abraão, só pude me derramar em lágrimas e agradecer a Deus por tamanho privilégio. É algo que as palavras não conseguem relatar... Tudo mudou. Todos os temores caíram por terra. Meus valores mudaram. Meu alvo agora estava devidamente fixado na vida futura. Voltei como uma criança recém-nascida que chega ao mundo pura e isenta de todo e qualquer pecado. Aprendi a verdadeiramente crer que Allah (swt) é o Senhor da nossa história e o que Ele predestinou, seja de bem ou de mal para seus servos, ninguém poderá modificar. Compreendi que verdadeiramente esta vida é o grande teste que enfrentamos para definir como será nossa vida futura. Alhamdulillah! ... É sonho de quem visitou a Casa de Allah voltar a estar naquele esplendoroso lugar, onde se respira paz e tranquilidade a todo o momento. Já voltei uma vez na Umhra, mas sonho em ali está outras vezes, principalmente realizando o Hajj, pois cada evento nos transporta desta vida para a compreensão da plenitude de vida que Deus tem reservado para quem não lhe atribui parceiros e crer de forma correta em sua Unicidade. (Depoimento de João de Deus Cabral (Ibrahim) do Centro Islâmico em João Pessoa). O antropólogo britânico-sulafricano Max Gluckman, fundador da escola de Manchester (antropologia britânica), desenvolveu um interesse particular pela temática da mudança e do conflito social. Para Gluckman a mudança era imprevisível, tendo em vista que seria resultado das variações e complexidades das relações sociais20 . Embora sua teoria fosse marcadamente influenciada pelo pensamento marxista, Gluckman via o conflito como algo dinâmico. 20 Eriksen, Thomas Hylland; Nielsen, Finn Sivert, 2010, p. 109. 9 “um processo que por fim levava á integração [...] a integração social sempre implicava em encontrar um equilíbrio entre interesses de grupos: conflitos podiam ser subcomunicados através de acordos entre líderes políticos, ou as tensões subjacentes da sociedade podiam ser canalizadas através de uma “válvula de segurança” para uma saída inofensiva, como acusações de feitiçarias (GLUCKMAN, 1956) – reduzindo assim a pressão sem provocar o sistema. [...] Gluckman tinha consciência aguda da natureza conflituosa da maioria das sociedades, que só se mantinham unidas imperfeitamente e através de muito trabalho”. (Eriksen, Thomas Hylland; Nielsen, Finn Sivert, 2010, p. 109. Grifo meu). O ritual passa a ter então, proeminência nas pesquisas de campo de Gluckman, tendo em vista o seu interesse pela teoria do conflito. Já influenciado pelo pensamento durkheraimiano que via o ritual como capaz de “abrandar o conflito e fortalecer a coesão social” 21, Gluckman de modo inovador frente às perspectivas teóricas da Escola de Manchester, teoriza sobre o ritual como um “processo social dinâmico”22. A tensão social se tornava, portanto, uma característica relevante da organização social. Em seu texto, Rituais de Rebelião no Sudeste da África, o autor destaca os esquemas tradicionais sagrados, questionando a distribuição de poder ao invés da estrutura do sistema. Para Gluckman, ao contrário da ênfase que é posta por Frazer nos “padrões intelectuais por trás dos costumes”,23 deve ser substituído por analisar os papeis cerimoniais “das pessoas, categorias de pessoas e grupos de pessoas, uns em relação aos outros.24” Para Gluckman esses rituais se propunham então a revelar as tensões sociais entre os grupos. Sendo assim, os rituais de rebelião “seguem esquemas tradicionais estabelecidos e sagrados nos quais são questionadas as distribuições particulares de poder e não a própria estrutura do sistema. Isso permite o protesto institucionalizado, além de renovar a unicidade do sistema de várias e complexas maneiras” (1974, p. 6). Ele passa então a dar dois exemplos do que seriam esses rituais de rebelião entre os zulus e de que modo poderiam ser caracterizados como um protesto “institucionalizado” em relação ao status quo dos papéis sociais dos sujeitos (mulheres e rei) frente à sociedade local. “...representar os conflitos, seja diretamente, seja inversamente, seja de maneira simbólica, destaca sempre a coesão social dentro da qual existem os conflitos. Todo sistema social é um campo de tensões, cheio de ambivalências, cooperações e lutas 21 Idem., p. 109. Ibidem, p. 110. 23 GLUKMAN, Max. 1974, p. 3 24 Idem. 22 10 contrastantes [...] a ordem social sempre contém uma divisão de direitos e deveres e de privilégios e poderes, que contrastam com seus opostos, o desempenho cerimonial dessa ordem afirma a sua natureza em toda a sua legitimidade.” (GLUCKMAN, 1974, p.24). E continua: “... sugiro que talvez os rituais de rebelião sejam confinados a situações nas quais fortes tensões são despertadas pelo conflito entre diferentes princípios estruturais, que não são controlados por instituições seculares distintas”. (1974, p. 33) A despeito de serem os Rituais de Rebelião categorizados como rituais que criticam a ordem constituída, nos dispomos a categorizar a Hajj como um Ritual de Rebelião, dando ênfase ao ponto de vista da coesão social, subjacente a tais práticas. Do ponto de vista de Neto (2004:137) “os rituais de rebelião podem ser interpretados a partir da nossa sociedade como mantenedores da coesão social. Ao extravasar suas tensões as pessoas não precisam buscar formas de romper determinas regras da cultura, pois a satisfação das ansiedades humanas compensa os níveis frustração”. Portanto, entendemos o ritual religioso da Hajj, como doador de significados aos seus participantes, sendo um instrumento de fortalecimento da identidade religiosa comunal e suas fronteiras imaginadas. A Hajj pode ser, portanto, entendida como um mecanismo de coesão social, onde os indivíduos evocam para si mesmos e, conseqüentemente, para os Outros (os não participantes da comunidade de fé), as categorias de “espaço” e “tempo” sagrados25. Essas categorias são compreendidas como instrumentos que lhes outorgam um lugar (a Ummah) e, consequentemente, um sentido e uma identidade religiosa por meio de uma inserção na comunidade. Para refletirmos um pouco mais sobre essas questões, passamos a analisar as reflexões sobre a teoria do ritual do antropólogo escocês Victor Turner (1920-1983), para quem o ritual é um processo social26,”altamente complexo e intrincado que, em vez de ser algo mecanicamente rotineiro, tende a incorporar ações, inversões e contestações à ordem estabelecida”. Sendo assim, o ritual é constituído de valor simbólico e ressignificações, seja no âmbito da construção da identidade pessoal do peregrino ou do ponto de vista do pertencimento a comunidade imaginada. 25 26 TURNER, VICTOR. Peregrinações como processos sociais. EDUFF:2008, p. 193. O‟NEILL, Brian Juan. Os rituais como expressões multiculturais , p. 62s. 11 O momento em que o fiel se transforma num hajji ou hajja é também marcado pela sua experiência de liminaridade, e posteriormente, de valoração religiosa e de status entre os seus parceiros de crença. É o ápice e o testemunho de que ele/ela é participante da Communitas27muçulmana28, que também são definidas como communitas antiestruturais (2008:40), caracterizadas por um “vínculo que une [...] pessoas além e acima de qualquer vínculo social formal” (2008:40). Turner lança mão do seu conceito de drama social para analisar o rito e outras transformações sociais (JÚNIOR, 2008:1). Para ele, o drama social “[...] são, portanto, unidades do processo anarmônico ou desarmônico que surgem em situações de conflito” (2008:33). É possível pensar então, o ritual como um processo de reintegração dos grupos, depois de uma ação de ruptura (TURNER, 2008:37), bem como especificamente no caso da peregrinação à Meca, como um exemplo de comunidade antiestrutural (2008:40). Como bem definiu Anderson: “o antropólogo Victor Turner é muito elucidativo ao escrever sobre „a jornada‟ – entre tempos, condições e lugares, como uma experiência que cria significados” (2008, p. 92). Turner, portanto, compreende os rituais como “[...] um processo social altamente complexo e intrincado que, em vez de ser algo mecanicamente rotineiro, tende a incorporar ações, inversões e contestações à ordem estabelecida” (O‟NEILL:62), onde “a communitas [...] só pode ser evocada com facilidade quando existem várias ocasiões fora do ritual nas quais se tenha alicerçado a communitas” (2008:50). Para ele, as peregrinações seriam caracterizadas pela communitas normativa29 (2008:158) e assinaladas como fenômenos liminares30 (2008:156), dramas e 27 TURNER, Victor. Communitas: modelo e processo, in: O processo ritual – Estrutura e antiestreutura. Editora Vozes (Coleção Antropologia), pgs. 127-154 28 “[...] conceito de communitas, ou um estado de espírito extraordinário ou transcendental, sentido de modo transitório pelos participantes em rituais, e que lhes fornece uma sensação de pertença especial”. (O‟NEILL, p. 62). 29 “(...)embora as peregrinações tendam para a communitas universal, elas ainda estão, no fim das contas, ligadas à estrutura dos sistemas religiosos dentro dos quais são geradas e perduram” (TURNER,2008: 191) 30 “(...) um intervalo entre dois períodos distintos de envolvimento intensivo na existência social estruturada, fora da qual uma pessoa escolhe cumprir seus deveres de peregrino” (TURNER, 2008:163). 12 empreendimentos sociais (2008:156), símbolo31 e obrigação (2008:165), uma nova ordem de fraternidade32. Os lugares para onde o peregrino se dirige, teriam sido espaços de teofania (2008:176), transformando-se, posteriormente, em um campo econômico e político (2008:209), a exemplo de Meca e das demais “religiões tradicionais” e os seus “centros de peregrinação33” (2008:209). Geertz, por sua vez, interpreta os rituais a partir da “teia de significados34” que denomina “cultura”, onde o etnógrafo tem por vocação “decifrar os códigos” exercer o papel de um “crítico literário”, elaborar uma “descrição densa” (2011: 6). Sendo assim, o etnógrafo acaba por ser um interprete das interpretações, cuja função desemboca em buscar o significado. Para ele, “a cultura não é um poder, algo do qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade”35. É uma evidente diferenciação entre a antropologia francesa e britânica praticada naquele período; Geertz é diretamente influenciado pelo conceito de ação social weberiano, onde a etnografia se propõe a observar e interpretar os sentidos e significados das ações dos indivíduos. A religião para Geertz é uma forma dos indivíduos compreenderem o mundo36, “pois é da natureza da fé reivindicar a soberania efetiva sobre o comportamento humano” e ressalta: “o foco [...] está nos sistemas de significação socialmente disponíveis – crenças, ritos, objetos significativos – em termos dos quais a vida subjetiva é ordenada, e o comportamento exterior orientado” (2008,117; 103). A religião também compõe essa rede de significados que permeia toda a vida social, constituindo a cultura propriamente dita (Velho apud GEERTZ: 2008,8). 31 “O peregrino torna-se, ele mesmo, um símbolo total, de fato, um símbolo de totalidade (...) a própria paisagem se codifica em unidades simbólicas repletas de significado cosmológico e teológico” (Turner, 2008: 193; 195) 32 “O outro se torna um “irmão”, a fraternidade específica se estende a todos que compartilham um sistema de crenças”. (TURNER, 2008:174). 3333 “Um centro de peregrinação, do ponto de vista do ator crente, também representa um limiar, um local e um momento „dentro e fora do tempo‟, e este ator – conforme atesta o testemunho de diversos peregrinos de várias religiões diferentes – espera ter lá uma experiência direta de ordem sagrada, invisível e sobrenatural, seja sob o aspecto material da cura milagrosa, seja sob o aspecto imaterial da transformação íntima do espírito e da personalidade (...) a viagem do peregrino se torna um paradigma para outros tipos de comportamento, sejam eles éticos, políticos e outros” (TURNER, 2008:184). 34 GEERTZ, Clifford. 2011, p.4. 35 ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 127. 36 Idem. 13 “A fé religiosa, mesmo quando derivada de uma fonte comum, é tanto uma força particularizante quanto generalizante; e de fato, qualquer que seja a universalidade atingida por uma dada tradição religiosa, ela surge de sua capacidade de envolver um conjunto cada vez mais amplo de concepções de vida individuais e mesmo indiossincráticas, e, de alguma forma, de sua aptidão para sustentar e elaborar todas elas”. (GEERTZ, 2008: 17). Desse modo, o ritual do ponto de vista da teoria interpretativa americana é um evento que deve ser “lido” a partir não apenas das performances dos fieis, como atores, mas, da própria significação atribuída por estes, enquanto leitores de suas ações37. Portanto, caberia ao etnólogo buscar a interpretação das interpretações, as “piscadelas, de piscadelas, de piscadelas...”. (2011:6). No texto Um jogo absorvente: Notas sobre a briga de galos balinesa (2011,p.185s), Geertz destaca o valor simbólico presente nas rinhas e nas “ações dos homens”. “O ritual sustenta o moral geral, especialmente em tempos tensos, afirmando e demonstrando a interdependência entre os homens, a necessidade adaptativa da vida social”. (2004:100). E nesse sentido, nos questionamos de que modo a Hajj pode ser um mecanismo ao qual se apropriam os fieis como forma de reafirmar a irmandade de modo que a vida cotidiana seja diretamente influenciada por essa coesão social e as práticas e ideologias individuais, ressignificadas mediante os princípios e valores da comunidade de fé universal. Fredrik Barth (22 de dezembro de 1928), antropólogo norueguês, inaugura uma nova fase na teoria antropológica na contramão da compreensão das sociedades a partir de estruturas ou teias de significados38. “Barth (...) demoliu o conceito de estrutura social e postulou que formas sociais estáveis eram resultado de escolha individual, isto foi (num sentido) um argumento desconstrutivo muito semelhante à desconstrução dos conceitos boasianos e geertzianos de todos culturais integrados levada à efeito pelos pós-modernistas”. (ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 180) Mas, a ênfase da pesquisa de Barth se dá no conceito de etnicidade entendido como “um fenômeno social e político, não cultural” 39. Para Barth é “a fronteira étnica que define o grupo, não o material cultural que ele contém” (Barth, apud ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 154). 37 ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 127 BARTH, Fredrik. Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades. Em: O guru e o iniciador e outras variações antropológicas. RJ: Contra Capa, 2000: 167-186 39 ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 154 38 14 “Em outras palavras, é a relação entre grupos, não a cultura de grupos, que lhes dá significado (...) Barth desviou assim o foco dos estudos de etnicidade da ideia de que a identidade étnica é um aspecto da cultura, história e território próprios de um grupo, para um conceito mais processual de manutenção da fronteira” (ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 154) Em seu texto Por um maior naturalismo na conceptualização da sociedade, Barth propõe a compreensão da sociedade como “sistemas desordenados, caracterizados pela ausência de fechamento” (BARTH, 2000: p. 172), onde as interações entre os indivíduos devem ser analisadas a partir dos eventos (eventos externos, dados mensuráveis) e atos (significado intencional - que não é apenas o fator consciente - e interpretação dos significados – que podem ser contestáveis e os resultados reescritos) (BARTH, 2000:173;176). A sociedade é definida, como um contexto de ações e resultados de ações (BARTH, 2000:186). A cultura, segundo Barth, é comunicação e transmissão de conhecimento. E é a identidade étnica presumida que determina o pertencimento dos indivíduos a determinados grupos40. Desse ponto de vista, de que modo podemos pensar os muçulmanos como pertencentes a uma identidade distinta da sua “cultura” local, tendo em vista que defendem para si uma origem espiritual comum e um destino compartilhados?41 Sendo assim, a tarefa do antropólogo na perspectiva de Barth “...é a identificação das dinâmicas contrastantes que geram características convergentes em cada área ou região”. (BARTH, 2000:164). Para Barth, “todos os grupos étnicos são definidos por um tipo universal de comportamento étnico” 42 , expressando assim a sua “posição formalista”. O mais célebre texto43 de Barth inspirou a teoria antropológica sobre etnicidade ao longo da segunda metade do século XX, não deixando de ter sua importância nas análises atuais. Para ele, grupo étnico é um grupo político, socialmente organizado, o que desmontou a teoria eugenista, refutando qualquer tipo de relação entre biologia e raça. O que constitui um grupo étnico é a diferença. Sua ênfase, portanto, está na interação 40 BARTH, Fredik. O guru e o iniciador: transações de conhecimento e moldagem da cultura no sudeste da Ásia e na Melanésia. In Fredrik Barth (compilação de Tomke Lask), O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: 2000, Contra Capa Livraria. 41 O‟DWYER, Eliane Cantarino: 2001, MANA, 7:169. 42 ERIKSEN, Thomas Hylland; NIELSEN, Finn Sivert, 2010, p. 154. 43 BARTH, Fredrik. Ethnic Groups and Boudaries. The Social Organization of Culture Difference. Brown, 1969 - Ethnic groups - 153 pages. 15 social: são os sujeitos que dão sentido e atribuem as suas próprias fronteiras étnicas religiosas. Barth faz uma diferenciação entre sociedade e cultura. Para ele, essas são duas dimensões diferentes da vida social, ao mesmo tempo em que são dois vetores que se perpassam. Sendo assim, os grupos étnicos estariam dentro da organização social. E a cultura seria um agregado de experiências sobre as quais elaboramos o sentido; o cultural é resultado das diferenças produzidas na organização social. No texto Etnicidade e o Conceito de cultura (2005), Barth faz distinção entre etnicidade e cultura, trata da relação entre grupos étnicos distintos e afirma que para os participantes desses grupos o estigma é fonte de orgulho, o que nos leva a refletir sobre o discurso das mulheres do centro islâmico pessoense sobre o hijab (véu islâmico) e como o seu uso as faz sentirem-se honradas diante da comunidade religiosa. A etnicidade é, portanto, definida por critérios sociais (interação, poder, economia, trabalho), na crença subjetiva de uma origem comum; é um constructo social44. A cultura é um estado de fluxo e são as experiências distintas em contextos distintos que possibilitam modos diferentes de acionar as identidades. A cultura é uma continuidade complexa e padronizada, é distribuída por pessoas e entre pessoas, como resultado das experiências, é um fluxo constante (2005, p.17). Os grupos étnicos são, desse modo, unidades sociais , “não é uma unidade de reprodução de uma cultura compartilhada, mas, ao contrário, é uma combinação de diferenças, contrastes e conflitos culturais”(BARTH, 2005, 21). Barth destaca ainda a necessidade de se desenvolver uma antropologia crítica, dando voz aos conceitos, motivações e significados dos atores sem, contudo, tomar os seus discursos como hegemônicos. É preciso fazer distinção ente as motivações dos atores e as conseqüências não previstas dos seus atos (2000:162). “(...) os efeitos inadivertidos e acumulativos de atividades que os atores são levados a empreender em função da percepção que têm necessidades ou vantagens ligadas a outros aspectos das mesmas atividades. (...) Para nós, na qualidade de antropólogos sociais, é importante e interessante perceber esses efeitos cumulativos sobre o conteúdo e a forma da tradição regional, para que sejamos capazes de dar um pequeno passo no sentido de uma compreensão generalizante da dinâmica da cultura”. (2000: 162-163). 44 PALITOT, Estevão Martins. 2014. Discussão em aula na disciplina Dinâmica territorial, memória e processos identitários. 16 Ele defende o ponto de vista de que a antropologia deve reconhecer “a multiplicidade e multivocalidade que caracterizam as realidades em que vivemos (...) cada visão é necessariamente posicionada, e que nenhuma „verdade‟ final pode ser encontrada (...) devemos reconfigurar nossos conceitos de modo que possamos buscar determinadas formas e conexões em outros e novos lugares”. (BARTH, 2000:163). Desse ponto de vista, a antropologia crítica pós-moderna podemos destacar as premissas de Clifford (1998) de que a autoridade etnográfica deve se caracterizar por uma polifonia, o que para Rosaldo (1991) apesar de ideal é utópico. Ambos concordam com Barth de que as modernas interpretações antropológicas possuem um caráter totalizante. Rosaldo, por exemplo, critica Geertz e o seu “balinês” que é descrito como uma unidade de análise universal. Para estes autores, a autoria da produção do conhecimento antropológico estaria diretamente relacionada a quem são os autores da etnografia. A complexidade da análise deve ser então, de pertinência do leitor (ROSALDO, 1991). Clifford faz sua crítica ao dialogismo do pensamento de Rosaldo e destaca que a escrita é uma interpretação das interpretações dos nativos. Assim, de que trata a interpretação antropológica? Onde consiste a sua autoridade? Essas são questões pertinentes para a análise da peregrinação muçulmana na investigação antropológica, tendo em vista que, como não muçulmanas, não nos é permitido estar lá. Os discursos dos atores e fontes bibliográficas são o material que podemos utilizar para a pesquisa da peregrinação, ao contrário de outros pesquisadores, que em alguns casos podem, até mesmo tomar parte nas peregrinações, ao mesmo tempo em que tem contato com os peregrinos. Sendo assim, a “interpretação das interpretações” é posta desde o momento em que nos propusemos a descrever e ir à busca da análise antropológica da Hajj. Considerações Finais De que modo então, podemos lidar com essas falas? É possível fazer o trabalho do antropólogo sem passar pelos estados de liminaridade e estranhamento, propostos pelos autores da antropologia? Mas, embora essas sejam questões que perpassam a experiência da pesquisa, é, sobretudo, o sentido que estes atores dão quanto ao seu pertencimento na comunidade de fé a partir da sua experiência enquanto peregrino, que procuramos compreender. 17 No caso da peregrinação islâmica, entendemos que essas identidades são acionadas a partir do discurso dos fieis muçulmanos peregrinos (hajj/hajja) que narram às mudanças de pensamento e o caráter sobrenatural das experiências, e assim, não apenas evocam para si a identidade islâmica universal, mas, igualmente, o seu lugar na comunidade muçulmana de fé (Ummah). O ritual de peregrinação islâmico é um mecanismo de reafirmação da fronteira religiosa para além das diversas identidades étnicas locais e transnacionais. Os laços que unem os peregrinos são distintos da consangüinidade ou do partilhar de um território, mas, se firmam no sentido e nas fronteiras de significados presentes no discurso de unidade moral, ideológica, política e obviamente religiosa, entre os muçulmanos de todas as partes do mundo. REFERÊNCIAS ALCORÃO. EL Nobre Coran y su traduccion-comentario em lengua española. Abdel Ghani Melara Navio. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ASAD, Talal. The Idea of an Anthropology of Islam. Washington: Georgetown University, 1986. BARBOSA-FERREIRA, Francirosy Campos. Hajj, Umrah: uma peregrinação num espaço energizado e concêntrico, Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 31, p. 891-913, jul./set. 2013 – ISSN 2175-5841, p. 891-913. 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