Os Programas Sociais de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil: abordagens teóricas e repercussões Eje temático 4: Economía Social y Solidaria Guilherme Dornelas Camara * Maria Ceci Misoczky** Palavras-chave: Programas Sociais de Combate à Pobreza. Argentina. Brasil. Superexploração do trabalho. Libertação. Está autorizada a publicação deste trabalho. Introdução O objetivo desse trabalho é indicar um referencial teórico, a partir do arcabouço conceitual do marxismo latino-americano, para a análise dos Programas Sociais de Combate à Pobreza em vigência na Argentina e no Brasil. Especificamente, são ponto de partida para esta proposta os seguintes Programas de Transferência Condicionada de Renda (PTCs): Plan Asignación Universal Por Hijos Para Protección Social (AUH) e Programa Bolsa Família (PBF); Programa de Geração de Trabalho Ingresso Social con Trabajo do Programa Argentina Trabaja; e Plano Brasil Sem Miséria (programa híbrido, que conjuga transferência de renda com qualificação profissional). A escolha desses Programas Sociais se justifica pela constatação de que os Governos Federais da Argentina e do Brasil têm desenvolvido uma série de iniciativas dessa natureza com o objetivo de superar a condição de miséria em que a maioria de seu povo vive. Nestes dois países, a articulação entre os PTCs e a inserção e a qualificação profissional constituem o que há de mais consolidado para o combate à pobreza, em confluência com as análises e recomendações de autores e organismos internacionais que são tidos como referências incontornáveis sobre o tema, em especial Amartya Sen, John Rawls, Milton Friedman, o Banco Mundial e o Programa das Nações * Aluno de Doutorado em Administração, na área de Organizações, no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS). Membro do Grupo de Pesquisa Organização e Práxis Libertadora. Endereço: Rua Washington Luiz, 855, Porto Alegre, RS. CEP 90010-460. Correio eletrônico: [email protected]. ** Professora da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (PPGA/UFRGS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Organização e Práxis Libertadora. Endereço: Rua Washington Luiz, 855, sala 427, Porto Alegre, RS. CEP 90010-460. Correio eletrônico: [email protected]. Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No entanto, ao mesmo tempo, incorporam elementos de crítica de outros autores, que discutem a questão social nesses. O texto a seguir possui a seguinte organização: na primeira seção, apresentamos os Programas de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil, bem como as definições de pobreza que subsidiam a sua implantação; na segunda revisamos as três principais abordagens sobre os Programas de Combate à Pobreza, ou seja, a perspectiva liberal das políticas sociais e do combate à pobreza, a perspectiva política na abordagem da questão social e a perspectiva do marxismo latinoamericano, com foco na filosofia da libertação e na teoria marxista da dependência; na terceira seção analisamos as repercussões dessas abordagens teóricas para a análise dos Programas e apresentamos a lista com as principais referências adotadas. 1 Programas Sociais de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil Na Argentina, o Programa de Transferência Condicionada de Renda em vigência, Plan Asignación Universal por Hijos para Protección Social (AUH), implementado a partir de 1º de novembro de 2009, compõe a parte não-contributiva do Regímen de Asignaciones Familiares (Regime de Benefícios Familiares). Destinado às mulheres grávidas, aos filhos menores de 18 anos ou portadores de deficiência, sem limite de idade, de trabalhadores desempregados que não estejam recebendo seguro desemprego ou de trabalhadores do mercado formal, informal ou domésticos que ganhem um salário mínimo, vital y móvil ($2.300,00, o que equivale a aproximadamente US$528,00) por mês ou menos. O financiamento do AUH é feito pelo Sistema Previdenciário Argentino e esse subsistema é administrado pela Administración Nacional de la Seguridad Social (ANSES). Para receber o benefício, os responsáveis devem ser residentes na República Argentina há pelo menos 3 anos e pertencer a grupos familiares que se encontram nas condições descritas acima. Os beneficiários do AUH têm direito a um valor único mensal de $270,00, por gestante ou filho menor de 18 anos; já os filhos portadores de deficiência recebem, sem limite de idade, $1.080,00 mensais. Contudo, o AUH apresenta como peculiaridade a divisão dos valores pagos: aqueles que têm direito a receber $270,00 por mês, recebem mensalmente $216,00, restando $54,00 mensais a serem pagos uma vez por ano, a partir da verificação do cumprimento das condicionalidades. Para os filhos portadores de deficiência, dos $1.080,00 mensais, $864,00 são pagos no mês e $216,00 uma vez por ano. Para o recebimento do valor acumulado ao longo do ano, as família/s beneficiárias devem comprovar o cumprimento das condicionalidades do AUH, ou seja, a frequência escolar e o calendário de vacinação para os menores de 18 anos, e acompanhamento médico para as gestantes. Outra característica do AUH é a vinculação do benefício ao desemprego e ao salário mínimo, de modo que a pobreza não é percebida como decorrente da renda auferida, mas da situação de vulnerabilidade causada pelo desemprego ou pelo trabalho precarizado. Visando diminuir a informalidade e o desemprego, o Governo Argentino criou o Plan Argentina Trabaja, em de agosto de 2009. Esse Programa está pautado por um conceito de trabalho que afirma: “o trabalho é um atividade chave na vida do ser humano tanto para o desenvolvimento de suas capacidades pessoais, quanto para o de sua família e de sua comunidade. No trabalho, as pessoas socializam e crescem com dignidade” (ARGENTINA, 2012). Tomando essa concepção de trabalho, o Governo da Nação criou cinco linhas de ação do Argentina Trabaja: Ingreso Social con Trabajo; Projetos Socioprodutivos 'Manos a la obra'; Marca Coletiva, Microcréditos; Monotributo Social. Dentre essas, o Ingreso Social con Trabajo se mostra como o Programa mais complexo, articulando geração de postos de trabalho, organização cooperativa dos trabalhadores e melhorias de infraestrutura urbana, valorização e revitalização de áreas coletivas nas comunidades onde suas ações são executadas. Em alguns documentos do próprio Ministerio de Desarrollo Social de la Nación, o nome do Ingreso Social com Trabajo é usado como sinônimo do Argentina Trabaja. Para a implementação deste Programa, o Ministério faz acordos com os Municípios e Províncias, através do Instituto Nacional de Associativismo e Economia Social (INAES). Este Instituto coordena a formação de cooperativas e a capacitação de cooperativados. As cooperativas são compostas por cerca de 60 trabalhadores. Os trabalhadores interessados em conseguir uma vaga no Ingreso Social con Trabajo devem cumprir os seguintes requisitos: pertencer a famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica e estar desempregados; residir nas localidades beneficiadas pelo Programa; não receber benefício monetário de outro programa ou plano social (exceto de alimentação ou AUH); não estar em atividade registrada como empregado, empregador monotributista ou outros, ser aposentado ou pensionista ou receber seguro desemprego; estar incluído em uma cooperativa de trabalho conveniada com o Programa. Após a formalização das cooperativas e o início dos trabalhos nas Províncias conveniadas com o Ministério, os cooperativados passam a receber uma renda mensal de $1.200,00 como antecipação de excedente e ao término da obra é distribuído o restante do produzido pela cooperativa. De acordo com o Ministerio de Desarrollo Social de la Nación (ARGENTINA, [s/d]), a oferta de trabalho é bastante desigual na Argentina. Para a identificação de zonas prioritárias para a implementação do Plano, o Ministério adotou um método que parte do conceito de Necessidades Básicas Insatisfeitas (NBI), isto é, da identificação de pessoas que vivem em uma das seguintes condições: em casa onde habitam mais de 3 pessoas por quarto; em peças de aluguel, construção precária ou outro tipo; em edificação sem banheiro; que tenha alguma criança de 6 a 12 anos fora da escola; que tenha 4 ou mais pessoas por trabalhador empregado, cujo chefe de família não tenha completado o terceiro ano da escola primária (ARGENTINA, [s/d]). No Brasil, o principal Programa Social de Combate à Pobreza é o Bolsa Família (PBF), criado pela Presidência da República em outubro de 2003. Ele destina-se à transferência de renda para a população extremamente pobre e pobre, com condicionalidades na saúde e na educação. O Governo Federal estabeleceu que as famílias extremamente pobres são aquelas que possuem renda mensal de até R$ 70,00 per capita; as famílias pobres são as que possuem renda mensal de R$70,01 a R$140,00 per capita. Para receber os valores pagos mensalmente, as famílias beneficiárias devem manter as crianças e os jovens em idade escolar frequentes às aulas; os menores devem cumprir com o calendário de vacinação e as gestantes devem fazer os exames e consultas de pré-natal. As informações sobre o cumprimento das condicionalidades são fornecidas pelas das Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde e de Educação para o Governo Federal. Todas as famílias interessadas em participar do PBF devem estar inscritas no CadÚnico, um banco de dados criado para centralizar e unificar os cadastros dos beneficiários do Governo Federal. As famílias extremamente pobres recebem um Benefício Básico no valor de R$ 70,00 mensais, que é pago mesmo que elas não tenham crianças, adolescentes ou jovens. Esse valor pode ser complementado por um Benefício Variável (BV) de R$ 32,00 mensais para cada filho, até o limite de cinco crianças e adolescentes até 15 anos. Para famílias com adolescentes de 16 e 17 anos, o Governo Federal paga o Benefício Variável Vinculado ao Adolescente (BVJ), de R$ 38,00, até o limite de dois jovens. Com base nesses parâmetros, o valor percebido por famílias extremamente pobres pode variar de R$ 70,00 a R$ 306,00. Para as famílias pobres, com renda entre R$ 70,01 e R$ 140,00 mensais por pessoa, o Governo Federal transfere apenas o Benefício Variável e o Benefício Variável Vinculado ao Adolescente. O PBF é financiado pelo Fundo Nacional de Assistência Social, a partir de dotação específica no Orçamento da União e, de acordo com a Lei 10.836, o Poder Executivo deve compatibilizar a quantidade de beneficiários do Programa com as dotações orçamentárias existentes. Em 2011, o Programa transferiu R$ 17.283.104.720,00 para cerca de 12,8 milhões de famílias (BRASIL, 2012). Além desse montante, uma parte dos recursos é destinada aos estados e municípios para apoio financeiro às ações de gestão e execução descentralizada do Programa (BRASIL, 2004). A Lei 10.836 determina que, preferencialmente, os benefícios sejam pagos às mulheres, responsáveis pela inclusão das famílias no CADUN e pelo cumprimento das condicionalidades. Em 2011, a focalização do PBF na população extremamente pobre, isto é, com renda per capita inferior a 70 reais mensais, foi fortalecida com o lançamento do Programa Brasil Sem Miséria, complementar ao Bolsa Família. Com esse novo Programa, o Governo visa alcançar de modo mais efetivo a população abaixo da linha de pobreza extrema, articulando a transferência de renda e o cumprimento de condicionalidades ao acesso à serviços públicos, como saúde e educação. O objetivo do Brasil Sem Miséria de aumentar o acesso das famílias extremamente pobres aos serviços públicos é realizado, mormente, com as visitas das Equipes de Saúde da Família nos domicílios, nas escolas e nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) dos municípios. Nesse sentido, a relação entre a transferência de renda e o acesso a esses serviços para os beneficiários do PBF é mediada pelo cumprimento das condicionalidades. Outro objetivo do Programa, a inclusão produtiva, é concebido como uma política transversal articulada a outras políticas setoriais de trabalho e de microcrédito executadas tanto pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, quanto por outros Ministérios com que ele se convenia. Nesse sentido, em outubro de 2011, o Governo Federal lançou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), vinculado ao Ministério da Educação, que prevê “uma série de subprogramas, projetos e ações de assistência técnica e financeira” com o “objetivo principal de expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de Educação Profissional e Técnica (EPT)” (BRASIL, 2012b). No âmbito dos Estados e das Municipalidades, os Governos e Prefeituras têm firmado convênios para oferecer cursos profissionalizantes para a população, privilegiando a inscrição de membros de famílias beneficiárias do PBF. Com a implementação dos Programas Plan Asignación Universal Por Hijos Para Protección Social (AUH) e Programa Bolsa Família, os Governos da Argentina e do Brasil precisaram estabelecer definições de pobreza visando a focalização. Nos dois países, foram identificadas linhas de pobreza e de pobreza extrema. Na Argentina, a pobreza extrema, ou indigência, está relacionada com a Canasta Básica de Alimentos (Cesta Básica de Alimentos), sendo extremamente pobres aqueles cuja renda familiar mensal não superam essa Cesta. A pobreza, por sua vez, está relacionada à Canasta Básica Total (Cesta Básica Total), que além da Cesta de Alimentos, inclui bens e serviços como vestimenta, transporte, educação e saúde, sendo considerados pobres aqueles cuja renda familiar mensal não alcança essa Cesta Total (INDEC, 2011). A partir dessa definição, é possível dizer que a pobreza e a indigência estão mais diretamente ligada à insatisfação das necessidades humanas do que à renda auferida pelas famílias, já que os valores das linhas de corte não são expressos monetariamente, mas oscilam de acordo com os preços dos itens que compõem a Cesta Básica de Alimentos e a Cesta Básica Total. No Brasil, o Governo adotou a mesma medida estabelecida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e fixou a linha de pobreza extrema, ou miséria, na renda mensal per capita de R$ 70,00, o que equivale a aproximadamente 1 dólar PPC por dia. A linha de pobreza, por sua vez, ficou estabelecida em uma renda familiar de R$ 140,00 mensais per capita. A adoção de uma linha dessa natureza focaliza os Programas naqueles extremamente pobres, ao mesmo tempo em que mantém um grande contingente em situação de vulnerabilidade similar à anterior, porém, ao ultrapassar essa linha, já não são considerados para fins estatísticos e de ação como extremamente pobres. O caráter contraditório desses Programas não se expressa apenas na sua aplicação, mas é inerente à própria fundamentação teórica que os embasa e a partir da qual eles são analisados. Essa não é coesa, mas apresenta tensões entre três abordagens: a liberal, a da questão social e a do marxismo latino-americano, as quais apresentamos na seção seguinte. 2 Abordagens Teóricas para Compreender os Programas Sociais de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil As interpretações liberais dos Programas Sociais de Combate à Pobreza compartilham diretrizes e concepções elaboradas pelo Banco Mundial e pelo PNUD para o tema e tomam como base, além das análises e relatórios dessas Instituições, as obras de John Rawls, Amartya Sen e Milton Friedman. A essas interpretações é circunscrito o tema do desenvolvimento, entendido como crescimento econômico, que pode ser associado a adjetivos variados, isto é, desenvolvimento mundial (WORLD BANK, 1978), desenvolvimento humano (PNUD, 1990) e desenvolvimento como liberdade (SEN, 2000). Autores ligados a essa concepção partem da ideia de que o crescimento econômico não gerou o fim da pobreza (FRIEDMAN, 1966; WORLD BANK, 1973; SEN, 1991, 2000, 2012) e que, portanto, é preciso ajudar os pobres a se ajudarem (WORLD BANK, 2011; SEN, 2012). Subjaz a esse imperativo moral uma noção de sociedade bem-ordenada, onde a liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade privada dos meios de produção e a família monogâmica são as instituições responsáveis pela distribuição dos direitos e deveres (RAWLS, 2008). Nessa sociedade, os indivíduos possuem capacidades e oportunidades desiguais, que tentam realizar por meio de funcionamentos valorizados individualmente. Aí reside a essência ideia de desenvolvimento como liberdade, isto é, na criação de oportunidades para que os indivíduos realizem as suas capacidades por meio de funcionamentos por eles valorizados (SEN, 1997; 2000). Sen (1997, p. 1) entende que as desigualdades entre os indivíduos podem ser prejudiciais para o funcionamento das sociedades, pois “a desigualdade é um ingrediente comum da rebelião, mas também é importante reconhecer que a percepção da desigualdade, e o conteúdo desse conceito, depende substancialmente das possibilidades de uma rebelião de fato”. A partir daí, é possível pensar em uma abordagem das desigualdades econômicas que seja capaz de minimizar as possibilidades de revolta popular. Nela, Sen (1997; 2000) propõe a adoção de mecanismos de distribuição de renda a partir de comparações entre indivíduos, visando reduzir as desigualdades. Com a distribuição de renda, os indivíduos podem recorrer ao mercado para alcançar estados e realizarem fazeres que valorizam individualmente. No mercado, as liberdades individuais se associam com as disposições sociais existentes, se reforçando mutuamente (SEN, 2000). Esse mecanismo opera uma distribuição de renda sem que haja qualquer alteração na distribuição das riquezas produzidas socialmente e, ao mesmo tempo, mitiga as possibilidades de rebelião popular. Desde a perspectiva liberal, os Programas Sociais de Combate à Pobreza podem operam em duas frentes. Em uma delas, esses Programas oferecem uma renda mensal para os pobres e miseráveis, seguindo a lógica de um imposto de renda negativo de Friedman (1966), isso é, oferecem um subsídio monetário para aqueles que não atingem determinada renda. Com isso, “se enfrenta diretamente o problema da pobreza. Ajudando o indivíduo na forma que mais lhe é útil, com dinheiro. É o modo mais geral e poderia substituir uma série de medidas existentes na atualidade. […] Cada dólar que se ganha significa mais dinheiro disponível para gastar (FRIEDMAN, 1966, p. 244). Na outra frente de combate à pobreza, os programas sociais devem investir em capital humano, com a intenção de aumentar a produtividade dos trabalhadores através de programas de qualificação profissional. Isso ocorre de dois modos: nos PTCs, a obrigatoriedade da frequência escolar como condicionalidade visa proporcionar uma educação básica, que torne as crianças “capazes de seguir instruções e terem controle” (SEN, 2012); nos programas de qualificação profissional, a educação profissional e o treinamento são advogados, pois segundo os autores de orientação liberal, aumentam a renda dos trabalhadores a partir do aumento da sua produtividade. Becker (1993, p. 15) entende como capital humano a “educação formal, um curso de informática, gastos com cuidados médicos, palestras sobre as virtudes da pontualidade e da honestidade, pois eles melhoram a saúde e aumentam os ganhos dos indivíduos”. Na perspectiva liberal, a pobreza é vista como um problema a ser tratado individualmente, com a inclusão dos indivíduos no mercado para terem a liberdade de escolher o que comprar. Desde aí, políticas de transferência de renda e de qualificação profissional proporcionam uma distribuição de dinheiro, de modo que o cumprimento de um imperativo moral gera, ao mesmo tempo, “escolhas e oportunidades para viver uma vida tolerável” (PNUD, 1997, p. 15), expandindo os mecanismos de mercado. Partindo de pressupostos diferentes da visão liberal, a interpretação dos Programas Sociais de Combate à Pobreza desde a abordagem da 'questão social' concebe a ampliação dos direitos sociais e o fortalecimento da cidadania como condição para a superação da pobreza. Os autores que tratam da questão social possuem em comum o pressuposto de que nos países da América Latina, o crescimento econômico orquestrado via desregulamentação do mercado exigiu o sacrifício da questão social (IVO, 2006; TELLES, 2006; SPOSATI, 2008; SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2011). Cabe ressaltar que a questão social não é, apesar disso, uma abordagem uníssona. Os autores vinculados a essa interpretação compartilham referenciais e o pressuposto da insuficiência do neoliberalismo para dar conta da questão social, mas essa própria questão surge das inquietações que vêm sendo formuladas de formas diversas por tantos quantos se debruçam sobre a realidade regional (TELLES, 2006, p. 53). Autores que partilham dessa abordagem compreendem que a pobreza é produzida socialmente (LEGUIZAMÓN, 2007), ao passo que a pobreza nos países latino-americanos decorre da globalização e da transformação neoliberal que o capitalismo mundial produziu ali. Para Leguizamón (2007, p 41), as causas da pobreza massiva na América Latina são: 1) “a impossibilidade de gerar renda pela via da condição de assalariado formal”; 2) “a reforma do mercado de trabalho, a flexibilização laboral e a falta de cobertura de direitos vinculados ao trabalho”, como a seguridade social; 3) a impossibilidade de acesso a outros meios de subsistência, como “o acesso à terra, à água ou ao crédito”. Como resultado desse processo de transformação das condições de reprodução social a sociedade não consegue traduzir direitos proclamados em parâmetros mais igualitários de ação. Para Telles (2006, p. 88), isso é sinal de uma população destituída de seus direitos. “A pobreza brasileira não deixa, de fato, de ser enigmática em uma sociedade que […] mal ou bem fez a sua entrada na modernidade e proclama, por isso mesmo, a universalidade da lei e dos direitos nela sacramentados”. Ainda de acordo com essa autora, a persistência da pobreza tem raízes seculares, mas apresenta também uma face contemporânea, registrada no empobrecimento dos trabalhadores urbanos integrados nos centros dinâmicos da economia do país. Os Programas de Transferência Condicionada de Renda são percebidos por esses autores como parte do substrato discursivo do desenvolvimento humano no marco da governabilidade neoliberal, que aparenta preocupação com os pobres, mas que não promove a mudança das estruturas sociais nem das relações que produzem e reproduzem a pobreza e a exclusão (LEGUIZAMÓN, 2011). Para Leguizamón (2005), os Programas são, na expressão proposta pela autora, focopolíticas, isto é, um modo de governar preocupado com a provisão de mínimos, que se traduzem em benefícios aos pobres, ao mesmo tempo em que reduzem os direitos sociais. A autora critica, ainda, a adoção da linha de pobreza extrema em 1 dólar PPC, ao invés das linhas de pobreza nacionais, pois se essa medida facilita as comparações entre países, ignora suas características peculiares e nivela por baixo a pobreza, pois diminui o número de miseráveis e indigentes, sem alterar substancialmente a situação de vulnerabilidade em que essas pessoas vivem. Os Programas de Transferência Condicionada de Renda também são analisados por Silva, Yazbek e Giovanni (2011) no contexto brasileiro. Os autores problematizam alguns pontos que consideram relevantes: a) a obrigatoriedade da frequência escolar não é suficiente para alterar o quadro educacional das gerações futuras e alterar a pobreza; b) há sérias dificuldades na articulação dos PTCs com outros programas sociais, pois, segundo os autores, “na maioria dos casos, as propostas não explicitam, nem as experiências se direcionam para criar condições concretas para que essa articulação se efetive” (SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2011, p. 210); c) há que se considerar que a causa fundamental da pobreza é a desigualdade na distribuição de renda e da riqueza socialmente produzida mais do que a incapacidade de geração de renda, portanto, o enfrentamento à pobreza requer uma “articulação de programas compensatórios com investimento social de médio e longo prazo” (SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2011, p. 211); d) um grande número de famílias pobres fica fora dos Programas, devido aos critérios restritivos de elegibilidade; e) devido à diversidade das realidades locais, a implementação do PTCs deve ser descentralizada, com liberdade das municipalidades definirem e adaptarem critérios para desenvolver controle sobre os Programas, seguindo diretrizes de uma Política Nacional; f) é necessária transparência tanto nos critérios de elegibilidade como nos critérios para desligamento, com um trabalho de preparação para esse desligamento; g) de um lado, estudos como o de Ferreira et al. (2006), IPEA (2010) e do Banco Mundial (2010) indicam um declínio de pobreza e da desigualdade social no Brasil, principalmente em 2004 e 2005, mas, de outro lado, estudos como o de Soares (2006) também demonstram que os PTCs têm sido capazes de melhorar a situação de vida dessas famílias, sem retirá-las do nível de pobreza em que se encontram; h) os PTCs assumiram esta dimensão que parece vir se constituindo em uma política pública e não apenas na política de um governo; i) aparentemente, ao colocar exigências de contrapartida, os Programas de Transferência de Condicionada de Renda estão condicionando também o direito à vida, mas, na verdade, as condicionalidades impostas por eles colocam, sobretudo, “o dever do Estado de oferecer serviços de educação, saúde e trabalho, de qualidade e de acesso democrático, a toda a população brasileira e, nesse caso, aos beneficiários dos Programas de Transferência de Renda” (SILVA, YAZBEK e GIOVANNI, 2011, p. 221). Para os autores vinculados a essa abordagem, o combate à pobreza deve ser situado desde uma perspectiva política, que critica a degradação dos serviços públicos, o desemprego e as relações trabalhistas fragilizadas, visando a ampliação dos direitos sociais e da cidadania. Para esses autores, os pobres são “os não-iguais, os que não estão credenciados à existência cívica justamente porque são privados de qualificação para o trabalho. São os pobres, figura clássica da destituição. Para eles, é reservado o espaço da assistência social, cujo objetivo não é elevar condições de vida mas minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na miséria” (TELLES, 2006, p. 94). Os autores vinculados a essa interpretação defendem a ampliação do acesso aos Programas Sociais e a sua melhoria a partir da inclusão de parcelas da sociedade no seu planejamento. Assim, mais do que focopolíticas ou instrumentos compensatórios que pouco alteram a situação de vulnerabilidade dos pobres, essas Políticas podem favorecer a constituição de uma cidadania ativa, isto é, o exercício dos poderes de ação de sujeitos comprometidos com a comunidade a que pertencem de modo que, pela sua ação organizada, consigam algum tipo de eficácia política (MISOCZKY, 2000). A terceira abordagem que compõe o marco teórico para a fundamentação e a análise dos Programas Sociais na Argentina e no Brasil é o marxismo latino-americano. Abordar os Programas Sociais de Combate à Pobreza desde essa perspectiva exige evidenciar a natureza relacional da produção social da pobreza, isto é, que a pobreza é o correspondente de um processo de acumulação de riqueza. Esse pressuposto surge da constatação das condições de vida de dois terços da população da América Latina, frente à pujança de uma minoria (DUSSEL, 2002, 2004; ZIBECHI, 2011). Assumir a relação entre pobreza e processo de acumulação de riqueza impõe a materialidade dessa relação para a análise dos Programas Sociais de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil, pois a indissociabilidade entre pobreza e riqueza remonta à origem do sistema do capital, ou melhor, ao processo de acumulação existente desde seu limiar. Nesse sentido, Marx, formulador da lei de acumulação geral capitalista, afirma que a “acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital” (MARX, 2009, p. 749). A descrição da lei geral de acumulação capitalista situa a pobreza desde a sua reprodução em escala mundial em uma dinâmica que engolfa gerações e aprofunda o seu caráter contraditório, pois a riqueza é criada pela trabalho humano, pelo trabalhador que, sem outra posse que não a sua força de trabalho, a vende para garantir a subsistência. Nos países latino-americanos, o processo contemporâneo de acumulação de riquezas tem como contexto a globalização das economias, que reforça a dependência desses países em relação aos centrais, e a orientação liberal dos governos que substituíram as ditaduras predominantes até a década de 1990. Nesse contexto, a Filosofia da Libertação se torna um fundamento epistemológicoaxiológico essencial para o marxismo latino-americano, pois essa Filosofia propõe uma práxis orientada pelo princípio universal da “produção e reprodução da vida de cada sujeito humano” (DUSSEL, 2002, p. 573), necessária “nesta época da história, no final do século XX e começo do III milênio, especialmente para as vítimas excluídas do atual processo de globalização do capitalismo mundial” (DUSSEL, 2002, p. 572). Dussel compreende filosoficamente a transferência de valor oriunda da exploração de uma classe sobre a outra, analisada por pensadores da Teoria Marxista da Dependência, como André Gunder Frank e Rui Mauro Marini. Essa transferência de valor começa a ganhar forma no processo produtivo, pois é na produção de mercadorias que se cria o valor que será transferido. Portanto, para que se possa compreender o modo como a transferência ocorre é necessário conhecer as peculiaridades em torno do trabalho nas economias periféricas. De acordo com Marini (2005, p. 143), essas economias são marcadas pela divisão internacional do trabalho, que determina o sentido do desenvolvimento da região. É desde aí que se configura a dependência, entendida como “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência”. Para o autor, a consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. De modo a tentar diminuir as perdas decorrentes desse mecanismo de transferência de valor, as nações desfavorecidas criam mecanismos de compensação visando o incremento do valor trocado. Para conseguir o aumento do valor produzido, os capitalistas das economias dependentes devem lançar mão de uma maior exploração da força de trabalho, “seja através do aumento de sua intensidade, seja mediante a prolongação da jornada de trabalho, seja finalmente combinando os dois procedimentos” (MARINI, 2005b, p. 153) O autor identifica três procedimentos operados pelos capitalistas nesse mecanismo interno de compensação das trocas desiguais. Em resumo, os três procedimentos identificados são a “intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho”. Nos dois primeiros casos o trabalhador é obrigado a um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, “provocando assim seu esgotamento prematuro”; no terceiro caso, é retirado do trabalhador a possibilidade de consumo do estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal. “Em termos capitalistas, esses mecanismos significam que o trabalho é remunerado abaixo de seu valor e correspondem, portanto a uma superexploração do trabalho” (MARINI, 2005, p. 156). Nesse sentido, o efeito das trocas desiguais entre as nações é o de exacerbar o afã do capitalista por lucro e aguçar os métodos de extração de trabalho excedente. A superexploração do trabalho decorre de articulações complexas entre os três procedimentos apontados e configura a base que as economias dependentes latino-americanas adotaram para seu regime de acumulação. Este, por sua vez, é o correspondente regional do processo de acumulação vigente nos países centrais que se realiza, em parte, pelas trocas desiguais entre esses países e os dependentes. 3 Repercussões das Abordagens Teóricas para a Implementação dos Programas Sociais de Combate à Fome na Argentina e no Brasil Em nosso entendimento, os Programas Sociais de Combate à Pobreza estão imbricados diretamente com a precarização das condições de produção e reprodução da vida do povo latinoamericano e, consequentemente, na reprodução ampliada da dependência desses países. Contudo, isso acontece de modo compósito. Apesar dos Programas oferecerem um incremento no orçamento familiar, capaz de suprir necessidades mais imediatas de alimentação e moradia, o valor do benefício não chega a alterar essencialmente as condições de vida dos beneficiários, mantendo-os em uma situação de vulnerabilidade similar à que estavam antes de serem incorporados aos Programas. Em uma análise preliminar dos Programas Sociais de Combate à Pobreza tomando como referência as perspectivas liberal, da questão social e do marxismo latino-americano, pode-se afirmar que na Argentina e no Brasil a pobreza não é decorrente de um problema individual de distribuição de renda, como afirmam o Banco Mundial e Friedman; nem da impossibilidade de realizar capacidades valorizadas, como propõe Sen; ou de desigualdades que não favorecem a todos, como na teoria da justiça de Rawls. Tampouco entendemos que a pobreza possa ser combatida com a ampliação dos direitos sociais e com a instituição da cidadania, como propõem os autores que tematizam a questão social. Nossa compreensão é que a reprodução da pobreza é correlata à acumulação de riqueza e que cabe à práxis popular romper com essa relação contraditória. Esses Programas ignoram os condicionantes da pobreza e a sua natureza relacional à produção de riqueza, encarando a pobreza como um problema técnico, a ser resolvido também tecnicamente. Os Programas focalizam um público-alvo e estipulam métricas a serem atingidas em prazos determinados. No âmbito dos Programas Sociais aqui referidos, a inclusão nos mecanismos de mercado surge como o oposto da pobreza, de modo que o objetivo que transparece nesses Programas é a transformação dos pobres em indivíduos que consomem, graças aos benefícios monetários e à qualificação para o trabalho que recebem. Com o exposto, é possível afirmar que no contexto do capitalismo latino-americano, em específico na Argentina e no Brasil, a dependência enreda as relações econômicas, sociais e políticas e, portanto, a pobreza se relaciona com o fenômeno da superexploração do trabalho. Nesse sentido, a dependência ocasiona a precarização da vida da classe trabalhadora - o não-ser dos trabalhadores, a negatividade que impede a realização do princípio ético-normativo da produção e reprodução da vida de todos os sujeitos humanos. Contraditoriamente ao proposto em sua formulação, os Programas de Combate à Pobreza reproduzem a pobreza ao consubstanciá-la à superexploração do trabalho, pois garantem a sobrevivência do exército industrial de reserva, contribuem para pressionar para baixo os salários, legitimam a precarização do trabalho e minimizam os riscos de revolta popular decorrente da insatisfação das necessidades. O objetivo, importante e socialmente relevante, de aliviar a pobreza e a miséria tem como sua outra face a individualização das necessidades da população e a transformação dos beneficiários em indivíduos habilitados a participar nos mecanismos de mercado. Os Programas Sociais de Combate à Pobreza mantêm, portanto, intocado o modelo de acumulação vigente no Brasil e na Argentina que, por sua vez, ocasionam a reprodução ampliada da dependência. Considerando as diferenças entre a implementação dos Programas Sociais de Combate à Pobreza nos centros urbanos e no interior da Argentina e do Brasil, a sua ocorrência de modo consubstanciado à superexploração do trabalho e o seu objetivo de incluir os indivíduos nos mecanismos de mercado, entendemos que os Programas de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil operam como mecanismos complementares à superexploração do trabalho no interior e nos centros urbanos e inserem-se, assim, no processo de reprodução ampliada da dependência nesses países. Principais Referências ARGENTINA. Ministerio de Desarrollo Social. Argentina Trabaja. Ingreso Social con Trabajo. Buenos Aires, 2011. Disponível em: <http://www.desarrollosocial.gob.ar/ingresosocialcontrabajo/114>. Acesso. 12 jan. 2012. ARGENTINA. 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