A presença e o impacto da
porcelana chinesa na Europa
medieval e renascentista. A
tecnologia da porcelana de “azul
e branco”
HISTÓRIA DAS PORCELANAS
CHINESAS NA EUROPA (sécs.
XIII-XVI)
SOBRE OS OBJETOS DE PORCELANA
• Até ao início do séc. XVI os europeus acreditavam que as
porcelanas eram feitas de cascas de ovos, conchas de
moluscos e terra:
– A porcelana fazia-se “de búzios moídos, de casca de ovos e claras, e outros
materiais, de que se faz uma massa que lançam debaixo da terra por espaço
de tempo (…) lavram-na de muitas maneiras e feições, delas grossas, outras
finas, e depois de feitas as vidram e pintam”
(Duarte Barbosa, Descriçam das Terras da Índia, c.1516).
Cofre. Guzarate, c.1600. 15,5x23,5x11,5cm. Madrepérola e prata dourada. Colecções Alfredo
Guimarães e Arthur de Sandão. CML, leilão 130, lote 504, 27 de Setembro de 2011. Estimativas:
60.000 / 90.000. Martelo : 165.000€.
SOBRE O TERMO “PORCELANA”
• Até ao séc. XVI os europeus chamavam «porcelana» a este tipo de
cerâmica, mas também às vasilhas preciosas incrustadas de madrepérola ou
de vidros coloridos, bem como ao interior polido das conchas.
• Nos finais de XIII, no relato de Marco Polo, Rustichello de Pisa utiliza o
termo italo-francês “porcelaine” (em italiano “porcellana”) para:
– identificar um tipo de conchas (cauris) usadas como moeda na China (e
tb na África Oriental e na Ásia), obtido nas Maldivas
– identificar um tipo de cerâmica fina.
• A etimologia do termo aponta para o tipo de concha (cauri – Cypraea
moneta) indicado, mas também para “porquinho”. Desde o séc. XIII que as
cauris são identificadas como “porcellana” na Europa.
• A cerâmica lustrosa, com superfície branca e que se quebra com fraturas
idênticas às das conchas permite a associação entre ambas.
QUALIDADES
• Em comparação com as demais cerâmicas, a porcelana possui
características muito superiores (impermeabilidade,
vitrificação, ressonância, translucidez, brancura, facilidade
de limpeza).
• Durante muito tempo permaneceu um segredo chinês, sendo
quebrado no séc. XV pela Coreia, no séc. XVII pelo Japão
(1610) e no séc. XVIII pela Europa (1709).
• Na Europa, até c.1600, foi comum montarem-se peças de
porcelana em estruturas de ourivesaria, sublinhando a sua
raridade e valor, pensando-se, em certos casos, que era feita a
partir de uma pedra semi-preciosa.
Taça. Porcelana de vidrado branco,
Ming, reinado Jiajing (1522-66), com
montagens maneiristas em ourivesaria
(Londres, 1569-70). Conhecida como
“Lennard Cup”, pois pertenceu a Samuel
Lennard (1553-1618).
Decoração exterior apresenta o motivo
do lótus inciso. No interior há uma lebre
branca representada num fundo azul
(rocha, pinheiro, bambu).
A decoração maneirista apresenta frutas,
troféus e animais (castor, salamandra,
insetos, cobra, raposa, coelho, etc).
Londres, Percival David Foundation of
Chinese Art.
Taça.
Porcelana de vidrado branco, Ming, reinado Jiajing
(1522-66), com montagens maneiristas em prata
dorada (Colónia?, c.1583).
Conhecida como “Von Mandersheidt Cups”, pois são
um par de taças que pertenceu ao Conde Eberhart
von Mandersheidt (1542-1608/10).
A taça em porcelana foi adquirida na Turquia pelo
Conde Eberhart von Mandersheidt em 1583, no
regresso de uma viagem de peregrinação à Terra
Santa.
Decoração exterior é mais rica do que as peças que
normalmente chegavam ao Ocidente: no interior é
uma peça azul e branca, com uma gola azul e um
medalhão com um crisântemo, enquanto no exterior
tem esmalte vermelho e aplicação de folha de ouro
com adesivo de laca (estilo kinran-de).
V&A (M.16-1970).
Taça para vinho com tampa. Porcelana de azul e
branco (interior) e esmalte vermelho, com montagens em
prata dourada pelo ourives Affabel Partridge (c.1551–
1580), realizada c.1565.(18.7 x 13.3 x 13.3 cm, 443g).
(MET 68.141.125a, b).
Decoração original do tardoz em kinran-de, “brocado de
ouro”, entretanto desaparecida.
Jarro em porcelana azul e branca. Ming,
reinado Wanli (1573-1620).
Base e tampa em prata relevada: Londres
(1585-86).
Bico e gola em prata: séc. XVII (Inglaterra).
A forma do jarro deriva de modelos persas de
jarros em metal dos sécs. XIII-XV.
Motivo tipicamente chinês: alusão aos filhos
e daí, à boa fortuna.
A prataria maneirista
folhagens e animais.
V&A (7915-1862).
apresenta
frutos,
TECNOLOGIA DAS
PORCELANAS CHINESAS
TECNOLOGIA I - CERÂMICA
• Existem muitas divergências quanto às características técnicas que
definem a porcelana, pelo que uns consideram que foi criada no
séc. II, outros no séc. VIII e outros só no séc. X. Os chineses
tendem a classificar como porcelana peças que os ocidentais
classificam como grés.
• Terracota: barros modestos cozidos até c. 800º-900º; porosa;
opaca; normalmente de cor castanho-amarelada; pode ser
revestida, ou não de vidrado.
• Grés: recorre a barros mais elaborados cozidos a 1100º-1200º;
vitrificado; opaco; ressonante; normalmente de cor cinzentoclara.
TECNOLOGIA II - PORCELANA
• A porcelana (vitrificada, branca, translúcida) caracteriza-se, em geral:
1. pelo tipo de materiais, derivados do granito, que são utilizados no
seu fabrico:
•
•
caulino (“argila chinesa”), uma argila branca, pouco plástica, usada numa
percentagem de 30-60%. [Vem misturada com quartzo e mica, que têm de
ser retirados por lavagem ].
petuntsé (“pedra chinesa”), pedra feldspática rica em óxidos de alumínio e
em sílica, mais plástica, e que atua como um fluxo. A forte presença da sílica
permite criar peças que vitrificam naturalmente no forno. [A pedra
“petuntsé” era pulverizada e refinada para poder ser utilizada. Depois de
seca era cortada em pequenos tijolos brancos = petuntsé].
2. pela cozedura a temperaturas muito elevadas (>1300º). Apesar
da vitrificação da pasta começar aos 1100º, a brancura e translucidez
só se atingem a partir dos 1300º
3. pela atmosfera redutora (i.e. pobre em oxigénio e com elevado
nível de dióxido e monóxido de carbono), que permite obter uma
gama diferente de cores.
TECNOLOGIA III – PORCELANA “DE AZUL E BRANCO”
• A porcelana de “azul e branco” é realizada com óxido de cobalto, usado
inicialmente na cerâmica da Pérsia (extraindo-se em Kashan), 100 anos antes
de ser usado na porcelana da China.
• Esta porcelana desenvolveu-se na dinastia Yuan a partir de c.1320-30 na
região de Jiangxi, especificamente em Jingdezhen.
• A pintura fazia-se sobre o corpo da peça, depois de moldado e seco. A
superfície da peça absorvia e fixava o pigmento facilmente, pelo que não
havia possibilidade de arrependimentos e correções na pintura. Nesta fase o
pigmento é cinzento-preto, só depois de vidrado e cozido é que fica azul.
• Sobre a pintura aplicava-se o vidrado, normalmente por imersão, e a peça era
depois levada ao forno, a temperaturas de 1300º, vitrificando o corpo da peça
junto com a pintura e o vidrado. Portanto, a porcelana de azul e branco tem
apenas uma cozedura.
• O vidrado, transparente, era preparado a partir de uma mistura de feldspato
(rocha constituída por silicato de potássio e alumínio), chumbo e sais.
PORCELANA
• Só com frei Gaspar da
Cruz, que visitou Cantão
em 1556 (e publicou em
1569 o Tratado em que se
contam muito por estenso as
cousas da China), é que se
explica aos europeus os
materiais e o modo de
produção das porcelanas.
A MAIOR INDÚSTRIA DO MUNDO (até c.1750):
• As porcelanas foram bens produzidos de forma semi-industrial ou mesmo
industrial, feitas em massa, tendo um valor económico pelo volume da
produção. No essencial, são peças de loiça.
• No século XI já existiam fornos com mais de 80 metros de comprimento
com capacidade para produzir mais de 10.000 peças numa só fornada.
• Na dinastia Ming as porcelanas atingem todas as classes sociais, ainda que
as peças tivessem graus diferentes de qualidade:
– peças de luxo – guan yao (cerâmica imperial), produzidas para a corte imperial e que
teoricamente não saíam do âmbito da corte a não ser como oferendas. Para se ter uma
ideia da dimensão industrial desta produção, no século XVI em Jingdezhen o número
de peças produzidas como tributo para a corte chegava às 100.000 peças por ano.
Desde a dinastia Song (960-1279) que determinados fornos foram nacionalizados e
administrados diretamente pela corte (fornos “oficiais” - guan).
– peças para exportação – maioritariamente de qualidade inferior, mas até ao reinado
de Wanli havia também muitas de alto nível, sobretudo quando dirigidas para Ásia
Central e do Sudoeste (em vez da Ásia do Sudeste). Porém, com o reinado de Wanli há
um aumento do volume de peças de exportação de qualidade mais grosseira.
– peças para utilização corrente na China - min yao (cerâmica do povo), usadas no
quotidiano por todas as classes sociais, por norma inferiores às de exportação.
PORCELANA DE EXPORTAÇÃO
• Desde o neolítico que a China exporta sedas e cerâmicas.
• No período do Império Romano / Dinastia Han o interesse europeu
residia, sobretudo, nas sedas.
• O desenvolvimento das porcelanas durante a dinastia Tang, criando
peças dificilmente imitáveis, teve um grande sucesso internacional,
encontrando-se cerâmicas ou porcelanas Tang, por exemplo, em
escavações arqueológicas realizadas no Quénia ou no Egipto.
• Rotas de exportação (centenárias ou mesmo milenares):
– Rota do Norte, para a Rússia via Mongólia;
– Rota da Seda, para a Ásia Central e ocidente via Turquistão;
– Rota Meridional e Marítima, que seguia tanto para a Ásia Oriental e do Sudeste, como
para a Ásia Ocidental através do Índico
PORCELANA DE EXPORTAÇÃO
• Apesar de a porcelana de “azul e branco” ter começado a ser
produzida apenas c.1325, poucas décadas depois, ainda na dinastia
Yuan, já estava a ser exportada para a Ásia Central e a Ásia do
Sudoeste, sobretudo por via marítima.
• Certas tipologias, como os grandes pratos e taças (c.50 cm), eram
feitas exclusivamente para o mercado de exportação.
• Nos finais do séc. XIV já se produziam réplicas de porcelana de
“azul e branco” na Síria, na Pérsia e no Egito, e no segundo quartel
do séc. XV a cerâmica deste estilo já era muito comum, inclusive em
azulejos. Durante a 2ª met. do séc. XV, começa a produção deste
tipo de cerâmicas em Iznik (Imp. Otomano).
• O grande volume de importação para a Europa começa no final do
séc. XVI, com o início do reinado de Wanli, mas multiplica-se no
século seguinte, com os holandeses.
PORCELANAS EM COLEÇÕES
EUROPEIAS MEDIEVAIS
Vaso/Jarro Gaigniéres-Fonthill, Yuan, c.1300-1340. Museu Nacional da
Irlanda. Porcelana qingbai (branco-azulado límpido – pode ter, ou não,
decoração incisa ou moldada). Este tipo de porcelana era produzido em
larga escala para uso quotidiano. Foi substituído pela porcelana azul e
branca na dinastia Ming.
O chamado vaso Gaigniéres-Fonthill é considerado
como uma das mais antigas e melhor documentadas
peças de porcelana a entrar na Europa na IM.
É um vaso da dinastia Yuan de inícios do século XIV,
com um vidrado branco-azulado (qingbai).
Na primeira metade do século XX pensava-se que
tinha chegado à Europa como oferta diplomática de
cristãos nestorianos chineses ao rei Luís da Hungria,
que visitaram o papa Bento XII em 1338. O vaso teria
sido foi montado numa estrutura de prataria e
esmaltes, sendo transformado em jarro, e oferecido a
Carlos III na sequência da sua subida ao trono em
Nápoles 1381. Porém, a análise da heráldica angevinanapolitana e húngara e a inscrição demonstram que a
montagem foi feita para a rainha Joana II de
Nápoles (1414-1435).
O desenho foi feito por Gaigniéres em 1713 (Paris,
Bibliotheque Nationale). O vaso estava na coleção de
William Beckford em Fonthill Abbey, tendo sido
vendido em 1822-23. Daí terá entrado na coleção
Hamilton, vendida em 1882.
O vaso, sem a montagem em prata, foi comprado pelo
Museu Nacional da Irlanda em 1882.
Taça. Porcelana celadon, Ming, fins
sécs XIV / inícios séc. XV, com
montagens em ourivesaria (c.1434-53).
Conde Filipe de Katzenelnbogen, terá
adquirido a peça numa viagem à Terra
Santa em 1433-34. Num inventário de
1483, a peça é identificada como sendo
feita em «Terra da Índia».
Em 1577,
corretamente
porcelana.
noutro inventário, é
identificada
como
A montagem de ourivesaria é anterior a
1453.
Kassel, Landesmuseum.
Mantegna, Adoração dos Magos, c.1497-1500. Mago mais velho oferece uma taça (de porcelana) com
moedas de ouro. Los Angeles, J. P Getty Museum. Têmpera sobre tela.
Giovanni Bellini, Festim dos Deuses, 1514. Washington, National Gallery. Óleo sobre tela. Pintura tem 3 grandes taças de
porcelana, eventualmente copiadas/inspiradas em peças oferecidas a Veneza pelo sultão do Egipto.
Documentação
•
•
•
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Duque Luís de Anjou (c.1365): 1 taça de grandes dimensões
descrita em 1379-80 como uma «escuelle pour fruiterie». Porcelana
azul e branca, Yuan. Montagem em prataria e esmaltes. Na sua
posse desde c.1365.
Duque de Berry tinha 5 peças (inventários de 1401 e 1416):
«un pot de pourcellaine (…); un autre pot de pourcellaine (…)» (ambas
com montagens em prata, provavelmente porcelana Yuan azul
e branca); «une aiguiere de pourcellaine ouvree» (portanto, um jarro
moldado, provavelmente qingbai)
A rainha de Navarra, Jeanne d’Evreux (c.1380-81): «un pot a
eaux de pierre de purcelleine».
Os poderes islâmicos do Próximo Oriente possuíam grandes
quantidades de porcelanas. A sua distribuição para a Europa,
porém, era feita apenas como oferendas diplomáticas, daí o seu
reduzido número.
Documentação
•
•
•
Dezenas de entradas nos registos da República de Veneza (séc. XV): peças
recebidas de governantes egípcios como oferendas diplomáticas. Ex. em 1461 o
sultão do Egito oferece ao Doge veneziano 20 peças de porcelana.
51 peças no tesouro dos Médici em Florença (fins séc. XV): «una choppa de porcellana
leghata in oro». Destas, c.20, foram ofertas diplomáticas do sultão do Egipto. Em
1553 um inventário de Cosimo I regista 400 peças (azul e branca e celadon).
Rei Carlos V de França: inventário do tesouro regista 10 peças de porcelana
Bibliografia específica:
• Eva Ströber, “The earliest documented Ming porcelain in Europe: a gift of Chinese
porcelain from Ferdinando de’Medici (1549-1609) to the Dresden court”, in
International Ceramics Fair and Seminar Handbook, Londres, 2004, pp. 26-35.
• Karl-Heinz Spiess, “Asian objects and Western European european court culture in
the Middle Ages”, in M. North (ed.), Artistic and Cultural Exchanges between Europe and
Asia, 1400-1900, Ashgate, 2010, pp. 9-28.
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porcelana - Prof. Luís Urbano Afonso