Prefácio
Zona Autónoma Provisória
AUTOR
Hakim Bey
TÍTULO ORIGINAL
Temporary Autonomous Zone
TRADUÇÃO
a partir da edição original
(Autonomedia, 1991)
Anti-© 1999
Discordia!
Apartado 2409, 4700 Braga
[email protected]
Envolto em grande mistério, o enigmático autor deste ensaio
esconde-se sob o pseudónimo de Hakim Bey. Visionário, místico
e sábio autodidacta, tem escrito diversos textos e manifestos que
abrangem áreas tão distintas como o anarquismo, o paganismo, o
primitivismo, a física especulativa, a linguística do caos, o Heretismo no Islão, a subversão no ciberespaço... Um largo espectro de
interesses que enriquece qualitativamente as suas ideias e nos
divulga importante informação através dos seus escritos.
Inspirado por alguns anarquistas do passado, que se opunham a todos os regimes estabelecidos procurando incansavelmente
um presente de acção e autonomia, Hakim Bey propõe o levantamento de zonas autónomas, que libertem uma área (de terra, tempo,
ou imaginação) existindo provisoriamente, e que de seguida se
dissolvam para voltar a reaparecer noutro lugar, noutra altura, antes
que o estado as possa esmagar.
A “Zona Autónoma Provisória” emerge espontaneamente,
como uma insurreição mágica, cria-se para a realização dos seus
objectivos e desaparece sem deixar vestígios. Hakim Bey não se
reclama como autor da ideia, simplesmente tenta reunir algumas
referências para definir um fenómeno que já existe: grupos de
indivíduos que se associam por afinidade, para conseguirem um
espaço real de liberdade, sem terem de esperar pela abstracção de
uma utopia a acontecer num futuro pós-revolucionário. Significa
interiorizar a revolta e reivindicar a autonomia, fazendo nascer a
dissidência na prática, no dia-a-dia, recusar o domínio em todas
as actividades da nossa existência como indivíduos.
Muito nos desperta a possibilidade já confirmada do estabelecimento (ainda que temporário) de zonas autónomas ou espaços
libertos do controlo político-legal, onde foram abolidos os valores
3
autoritários e a cultura da alienação. Veja-se o exemplo a nível
mundial e já presente em Portugal da existência de centros sociais
okupados, encontros anarquistas, festas livres, encontros de amantes da natureza, festas da rua, manifestações espontâneas e sem
líderes... É o surgimento duma cultura libertária ainda não descrita nos estatutos previstos e afastada do mediatismo oferecido tanto
pelos meios de comunicação e informação institucional, como por
outras engenhosas formas de controlo e integração social. A sua
existência é mantida através de redes marginais de fanzines, distribuidoras de arte subversiva, boletins contra-informativos, música
anti-espectáculo e outras inteligentes formas de comunicação,
escondidas da manipulação corrente.
Sendo impossíveis de definir quer pela originalidade e
autenticidade da sua existência, quer pela magia do acontecimento
espontâneo e quase secreto, as experiências deste tipo possibilitam
infinitas maneiras de superação e rotura com o mundo estabelecido.
Com a edição deste livro, a Discordia! inicia a sua existência editorial, não se limitando contudo a este tipo de actividade.
Como editora pretende editar livros muito maus, que façam mal e
causem os maiores estragos aqueles que no dia-a-dia roubam as
nossas vidas impondo-nos as suas leis, as suas mentiras e o seu
miserável progresso. Pretende agitar as águas da discórdia, para
que a união das unicidades discordantes destrua as figuras e imagens reais de constrangimento ao indivíduo.
DISCÓRDIA!
4
«… porém, desta vez, venho como o vitorioso
Dioniso, que transformará o mundo num feriado
permanente… não que eu tenha muito tempo…»
Nietzche na sua última carta “louca” a Cosima Wagner
Utopias Piratas
Os vagabundos do mar e corsários do século XVIII
criaram uma “rede de informação” que percorria o planeta:
ainda que primitiva e originariamente dedicada a negócios
sujos, a rede funcionava admiravelmente. Espalhadas pelo
globo estavam ilhas, esconderijos remotos onde os navios se
podiam abastecer de água e outras provisões, onde os espólios
de ataques se podiam trocar tanto por artigos de luxo como
por bens de primeira necessidade. Algumas destas ilhas sustentavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que viviam
resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei, mesmo
que a sua vida alegre fosse curta.
Há algum tempo atrás andei a pesquisar material acessório sobre pirataria, esperando encontrar algum estudo sério
sobre estes enclaves – aparentemente nenhum historiador achou
este tópico digno de análise (William Burroughs já o mencionou, bem como o falecido anarquista Inglês Larry Law, mas
nunca se conduziu nenhum estudo sistemático). Voltei às fontes
iniciais e desenvolvi a minha própria teoria, sobre a qual discutirei alguns aspectos neste ensaio. Chamei a estas sociedades
“Utopias Piratas”.
7
Recentemente, Bruce Sterling, um dos expoentes da
ficção científica CyberPunk, publicou um romance localizado
num futuro próximo que se baseia na seguinte premissa: a
decadência dos sistemas políticos levar-nos-á a uma proliferação
descentralizada de experiências sociais: gigantescas
corporações geridas pelos seus trabalhadores, enclaves
independentes dedicados à “pirataria de dados”, enclaves eco-social-democratas, enclaves onde o trabalho foi abolido1 , zonas
anarquistas livres, etc. A economia de informação que sustenta
esta diversidade é a Rede; os enclaves (tal como o título do
livro) são Ilhas na Rede.
Os Assassinos medievais fundaram um “Estado” que
consistia numa rede de vales remotos e castelos, todos separados por milhares de quilómetros. Estrategicamente invulnerável
a qualquer invasão, cujas ligações se efectuavam pelo fluxo de
informação proveniente de agentes secretos, estava guerra com
todos os governos e era dedicado apenas ao conhecimento. A
tecnologia moderna, culminando no satélite-espião, transforma
este género de autonomia num sonho romântico. Não haver
mais ilhas piratas! No futuro, esta mesma tecnologia, liberta
de todo o controlo político, poderia tornar possível todo um
mundo de zonas autónomas. Por enquanto este conceito não é
mais que ficção científica – especulação pura.
Estaremos nós, que vivemos no presente, condenados a
nunca experimentar a autonomia, nunca passear numa terra
governada apenas pela liberdade, nem que seja por momentos?
Estaremos limitados apenas a nostalgias do passado ou do
futuro? Teremos que esperar até que o mundo inteiro se liberte
do controlo político para que (nem que seja) um de nós possa
afirmar um conhecimento da liberdade? A lógica e a emoção
unem-se para condenar tais suposições. A razão postula que
1
ninguém pode lutar por aquilo que não conhece; e o coração
revolta-se ao imaginar um universo tão cruel que permita perpetrar tais injustiças na nossa geração humana. Dizer “Não serei
livre até que todos os seres humanos (ou criaturas com entendimento) o sejam” não é mais que ceder a um torpor abençoado,
abdicar da nossa humanidade, definirmo-nos como derrotados.
Creio que, ao efectuarmos extrapolações a partir de
histórias passadas e futuras sobre “ilhas na Rede”, podemos
colher provas de que um certo tipo de “enclave livre” não só é
possível na nossa época, como também existe. Todas as minhas
pesquisas e especulações se cristalizam no conceito da ZONA
AUTÓNOMA PROVISÓRIA (a partir daqui referida pela sigla
ZAP).
Apesar da síntese que faz do meu pensamento, não pretendo que a ZAP seja tomada por mais do que um ensaio
(“tentativa”), uma sugestão, quase um delírio poético. Apesar
do entusiasmo por vezes exorbitante da minha linguagem, não
tento construir um dogma político. De facto, evito deliberadamente definir a ZAP – contorno o assunto, disparando feixes
de luz exploratória. Por fim, a ZAP explica-se a si própria. Se
a expressão se tornasse algo corrente seria compreendida sem
dificuldade… Compreendida em acção.
Zerowork enclaves no original.
8
9
Jackboot no original. Nome das botas que calçavam os soldados nazis, em Inglês a palavra
tornou-se sinónimo de fascismo e ditadura.
leis da História. Se o Estado é História, como reclama, então a
insurreição é o momento proibido, uma negação imperdoável
da dialéctica – trepando pelo poste acima para sair do buraco
fumarento, uma manobra xamânica executada num ângulo que
parece “contradizer” o Universo. A História diz que a Revolução atinge “permanência”, ou pelo menos duração, enquanto
que o levantamento é temporário. Desta forma, um levantamento é algo que atinge um auge, um extremo em comparação com
os padrões habituais da consciência/experiência. Tal como os
Festivais, os levantamentos não são uma coisa de todos os dias
de outro modo, não transcenderiam a normalidade. Contudo,
tais momentos de intensidade dão forma e significado a toda
uma vida. O xamã regressa, porque não se pode ficar
empoleirado no telhado para sempre, mas entretanto as coisas
mudaram, houve deslocações e integração, ocorreu a diferença.
Podem bem dizer que isto é a sabedoria do desespero.
Então e o sonho anarquista, o Não-Estado, a Comuna, a Zona
Autónoma com duração, uma sociedade livre, uma cultura
livre? Teremos que abandonar essa esperança a troco de algum
acte gratuit existencialista? Não interessa mudar a consciência,
interessa mudar o mundo.
Aceito esta crítica, é justa. Tenho contudo duas coisas a
acrescentar; em primeiro lugar, a revolução ainda não chegou
a lado nenhum no que toca à consecução destes sonhos. A visão
ganha vida na altura do levantamento – mas assim que triunfa a
“Revolução” e regressa o Estado, o sonho e o ideal já foram
traídos. Não abdiquei da esperança nem deixei de esperar que
ocorram mudanças – mas desconfio da palavra revolução. Em
segundo lugar, mesmo que proponhamos em vez da atitude
revolucionária uma ideia de insurreição que floresce espontaneamente como cultura anarquista, a nossa situação histórica
não é propícia a tão vasta empresa. Nada, a não ser um martírio
fútil, adviria de uma colisão frontal com o Estado em fase terminal, o Estado macrocapitalista ultra-informado, o império do
10
11
Aguardando a Revolução
C omo é que o “mundo às avessas” consegue sempre
endireitar-se? Porque é que a reacção segue sempre a revolução, como temporadas no inferno?
Um Levantamento, ou a forma mais próxima do Latim,
Insurreição, são palavras usadas pelos historiadores para rotular
revoluções falhadas – movimentos que não coincidem com a
curva esperada, a consensual revolução, reacção, traição, a
criação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo – é o
girar da roda, uma e outra vez, ao seu ponto mais alto: a bota
militar 2 esmagando a face humana para sempre.
Ao estabelecer uma recusa da curva, o Levantamento
sugere a possibilidade de um movimento exterior à espiral Hegeliana desse “progresso” que subrepticiamente não é senão um
ciclo fechado. Surgo – subir, erguer. Insurgo – levantar-se a si
mesmo. Uma prova de força. Um adeus a essa paródia infeliz
da roda Kármica, futilidade revolucionária exibida pela História.
A palavra de ordem “Revolução!”, de toque de alarme,
converteu-se em toxina, uma armadilha maligna e pseudoGnóstica do destino, um pesadelo em que não importa quanto
lutemos, porque nunca escaparemos a essa Era malévola, esse
íncubo, o Estado, um a seguir ao outro, todos os “céus”
governados por mais um anjo maléfico.
Se a História é “Tempo”, como se pretende, então o
levantamento é um momento que transcende o tempo e viola as
2
espectáculo e do simulacro. Ele tem as armas apontadas para
nós, ao passo que as nossas pistolinhas não encontram outro
alvo que não uma histeria, uma vacuidade rígida, um espectro
capaz de sufocar qualquer faísca num ectoplasma informativo,
uma sociedade rendida, governada pela imagem do polícia e o
olho absorvente do ecrã televisivo.
Resumindo, não apresentamos a ZAP como fim em si
própria, substituta de todas as outras formas de organização,
tácticas, objectivos. Recomendamo-la porque pode providenciar
as qualidades enriquecedoras que encontramos no levantamento
sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A ZAP é
como um levantamento que não entra em confronto directo com
o Estado, uma operação guerrilheira que liberta uma área (física,
temporal, imaginária) e em seguida dissolve-se para se materializar noutra altura, noutro lugar, antes que o Estado possa esmagá-la. Como o Estado está mais preocupado com simulacros
do que com verdadeira substância, a ZAP pode “ocupar” estas
áreas clandestinamente e prosseguir nos seus propósitos festivos
durante algum tempo em paz relativa. Talvez algumas ZAPs
pequeninas tenham durado vidas inteiras por ninguém reparar
nelas, como enclaves de saloios 3 – porque nunca houve interacção com o Espectáculo, nunca emergiram dessa vida real que
os agentes da Simulação não conseguem ver.
A Babilónia toma essas abstracções por realidades; é
precisamente dentro desta margem de erro que a ZAP pode
existir. Dar à luz uma ZAP pode exigir tácticas de violência e
de defesa, mas a sua maior força está na sua invisibilidade – o
Estado não pode reconhecê-la porque a História nunca a definiu.
Assim que a ZAP for categorizada (representada, mediada) deve
desaparecer, e desaparecerá, deixando para trás uma casca
vazia, para aparecer noutro lado qualquer, invisível uma vez
mais, porque o Espectáculo não sabe defini-la com os seus
termos limitados. A Zap é assim uma estratégia perfeita para
uma era em que o Estado é omnipresente e todo-poderoso e ao
mesmo tempo cheio de falhas e zonas obscuras.
Como a ZAP é um microcosmos desse “sonho
anarquista” que é uma cultura livre, não posso imaginar melhor
táctica para começarmos a perseguir esse sonho, enquanto
experimentamos alguns dos seus benefícios aqui e agora.
Em suma, o realismo exige que desistamos não só de
esperar pela “Revolução” como também de a querer. O
“Levantamento”, sim – sempre que possível e mesmo que haja
violência. Os “espasmos” do Estado serão “Espectaculares”,
mas na maioria dos casos a melhor política, a mais radical, será
a recusa de participar na violência espectacular, efectuando uma
retirada da área do Espectáculo, do simulacro, desaparecer.
A ZAP é um acampamento de guerrilheiros ontológicos:
atacam e fogem. A tribo toda anda sempre em corropio, mesmo
que a tribo seja composta de dados informáticos na rede. A
ZAP deve ser capaz de se defender; só que tanto o “ataque”
como a “defesa” devem, se possível, evitar a imitação da violência do Estado, que não tem significado nenhum. O ataque
desencadeia-se sobre as estruturas do controlo, essencialmente
sobre ideias; a defesa é a invisibilidade, que é uma arte marcial,
e a “invulnerabilidade”, uma “arte oculta” entre as artes
marciais. A Máquina de Guerra Nómada conquista sem que
ninguém perceba e deixa o local antes que o mapa se ajuste à
nova realidade. Quanto ao futuro – só os autónomos podem
planear a autonomia, organizá-la, criá-la. É uma prova de força.
O primeiro passo tem semelhanças com o satori 4 – a percepção
de que a ZAP começa com um simples acto de consciência.
3
4
Hillbillies no original. Saloios americanos (N. do T.).
12
Relativo à filosofia Zen/Religião Budista.
13
O conceito da ZAP surge em primeiro lugar duma crítica
da Revolução e dum apreço pela Insurreição. A primeira afirma
que a última é um falhanço; porém, achamos que o Levantamento é uma possibilidade bem mais interessante, partindo do
padrão de uma psicologia da libertação, do que todas as revoluções “bem sucedidas” da burguesia, dos comunistas, dos fascistas, etc.
A Segunda força generativa que sustenta a ZAP, desenvolve-se a partir desse acontecimento histórico a que chamo
“o fecho do mapa”. O último pedaço de terra não reclamado
por qualquer Estado-Nação foi comido em 1899. O nosso é o
primeiro século sem terra incognita, sem uma fronteira. A
Nacionalidade é o mais alto princípio no governo do mundo,
não há um penedo nos mares do Sul que ainda esteja aberto,
não há um vale remoto, nem mesmo a lua ou os planetas estão
livres. Esta é a apoteose dos gangsters do território. Não há
um metro quadrado da Terra sem polícias ou impostos... Em
teoria.
O “mapa” é uma grelha política abstracta, uma vigarice
gigantesca mantida pelo condicionamento do cavalo que segue
a cenoura (condicionamento criado pelo Estado, que é um
perito); até que o mapa se converta em território para a maioria
das pessoas – acaba-se a “Ilha das Tartarugas”, que passa a ser
“Estados Unidos”. Ainda assim, como o mapa é uma abstracção,
não pode cobrir a terra com a precisão de 1:1. Nas complexidades fractais da verdadeira geografia o mapa só vislumbra grelhas
dimensionais. Escondidas, imensidades inexploradas escapam
às sondas. O mapa não é exacto porque o mapa não pode ser
exacto.
Assim, fica fechada a porta à Revolução, mas não à insurgência. Por enquanto, concentrar-nos-emos em emergências
súbitas de energia, procurando não nos prender nas malhas das
soluções permanentes.
E o próprio mapa está fechado, mas a zona autónoma
está em aberto. Metaforicamente, desdobra-se nas dimensões
fractais que a Cartografia do Domínio não vê. Aqui devemos
introduzir o conceito de psicotopologia ( e -topografia) como
uma ciência alternativa a essa que o Estado tem ao reconhecer
o terreno e fazer mapas, perpetuando um “imperialismo
psíquico”.
Só a psicotopografia pode desenhar mapas da realidade
à escala 1:1, porque só a mente humana fornece complexidade
suficiente para moldar o real. Mas um mapa nessa escala não
pode “controlar” o seu território porque é virtualmente idêntico
ao seu território. Apenas pode ser utilizado para sugerir, num
certo sentido, apontar para certas características. Estamos à
procura de “espaços” (geográficos, culturais, sociais, imaginários) com potencial bastante para florescerem como zonas autónomas – e procuramos tempos em que estes espaços estejam
relativamente abertos, quer por negligência do Estado, quer
por terem escapado à atenção dos cartógrafos; não importa realmente a razão. A Psicotopologia é a arte de procurar uma ZAP
em potencial, como a arte do vedor (adivinho que pressente a
água com um ramo de árvore bifurcado).
Os fim da Revolução e do mapa não é mais que a fonte
negativa da ZAP; ainda resta muito para ser dito sobre as inspirações positivas. A reacção só por si não consegue fornecer a
energia necessária para “manifestar” uma ZAP. Um Levantamento tem que servir para qualquer coisa.
Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia
natural da ZAP. A família é a unidade-base da sociedade consensual, mas não da ZAP (“Famílias! Como as detesto! Açambarcadoras do amor!” – Gide). A família nuclear, com as suas “neuras
14
15
A Psicotopologia da Vida Quotidiana
edipianas” inerentes, parece ter sido inventada no Neolítico,
como uma resposta à “revolução agrícola” com a sua escassez
e hierarquia impostas. O modelo do Paleolítico é ao mesmo
tempo mais essencial e mais radical: o bando. As sociedades
típicas de caçadores/recolectores, nómadas ou semi--nómadas,
são constituídas por bandos de cerca de 50 pessoas. No interior
de sociedades tribais maiores a estrutura do bando é ocupada
pelos clãs, ou por grupúsculos como sociedades secretas/
iniciáticas, sociedades caçadoras ou guerreiras, sociedades
baseadas no sexo, “repúblicas infantis”, e por aí fora. Se a
família nuclear é produto da escassez (daí o açambarcamento),
o bando é resultado da abundância – tendo a generosidade por
resultado. A família é fechada: pela genética, pela posse
masculina da mulher e das crianças, pela totalidade hierárquica
da sociedade agrícola/industrial. O bando está aberto – não a
toda a gente, certamente, mas a quem sinta afinidades com ele,
os iniciados que juraram preservar laços de amor. O bando não
é parte de uma hierarquia maior, é antes integrante de um padrão
horizontal gerado por costumes, parentescos alargados, contratos e alianças, afinidades espirituais, etc. (mesmo agora, as
sociedades Índias da América preservam certos aspectos desta
estrutura).
Na nossa sociedade da Simulação pós-Espectacular,
há forças operantes – a maioria invisíveis – tentando destruir a
família para ressuscitar o bando. Abalos na estrutura do Trabalho ressoam na “estabilidade” arruinada da unidade-lar e da
unidade-família. O “bando” de cada um, hoje em dia, inclui amigos, ex-esposos/as e amantes, pessoas que conhecemos em
empregos e reuniões diferentes, grupos afins, redes de interesses
especiais, redes de correspondência postal, etc. A família
nuclear torna-se cada vez mais uma armadilha, um buraco na
estrada cultural, uma implosão neurótica e secreta de átomos
divididos – e a contra-estratégia mais óbvia emerge espontaneamente na redescoberta quase inconsciente da possibilidade
mais arcaica e também mais pós-industrial do bando.
16
A ZAP como festival. Stephen Pearl Andrews ofereceu
como imagem de uma sociedade anarquista o jantar de convívio,
no qual todas as estruturas da autoridade se dissolvem na convivialidade e no festejo (ver Apêndice C). Aqui podemos também
invocar Fourier com o seu conceito dos sentidos como bases
do desenvolvimento social – “toque-rotina” e “gastrosofia”, e
o seu elogio às implicações esquecidas do paladar e do olfacto.
Os antigos conceitos de Jubileu e Saturnália 5 têm a sua origem
numa intuição de que certos acontecimentos se colocam fora
do alcance do “tempo profano”, a vara de medição do Estado e
da História. Estes feriados ocupavam literalmente fissuras no
calendário – intervalos intercalares. Por volta da Idade Média,
perto de um terço do ano era para feriados. Talvez os motins
contra a alteração do calendário tivessem menos a ver com os
“onze dias a menos” do que com a percepção de que a ciência
imperial conspirava para fechar estas fissuras no calendário,
nas quais se tinha acumulado a liberdade das pessoas – um coup
d´état, uma cartografia compulsiva do ano, a captura do próprio
tempo, transformando o cosmos orgânico num Universo-relógio. A morte do festival.
Os participantes na insurreição não podem deixar de
notar nos seus aspectos festivos, mesmo no meio do perigo, do
risco, da luta armada. O Levantamento é como uma Saturnália
que se libertou (ou que foi forçada a desaparecer) do seu
intervalo intercalar e agora tem toda a liberdade de aparecer
como e quando lhe apetecer. Liberto de tempo e lugar, ainda
assim possui um faro para a maturidade dos acontecimentos, e
uma afinidade com o genius loci. A ciência da psicotopologia
indica o “fluir de forças” e os “locais de poder” (para nos apro5
Festival de Saturno, de 17 a 24 de Dezembro. Trocavam-se presentes e os escravos
gozavam de igualdade com os seus mestres. Este costume sobreviveu em variadas formas
até à Idade Média. Em certas cortes Europeias coroava-se o bobo rei por um dia.
17
priarmos de algumas metáforas ocultistas) que localizam a ZAP
no espaço e no tempo, ou que pelo menos nos ajudam a definir
a sua relação com o tempo e o local.
Os Media convidam-nos a “celebrar os momentos da
nossa vida” com a unificação falsificada do bem de consumo e
do espectáculo, o famoso Não-Acontecimento de pura representação. Como resposta a esta obscenidade temos, por um lado,
o espectro da recusa (explorado pelos Situacionistas, por John
Zerzan, Bob Black, etc.) – por outro lado, a emergência de
uma cultura festiva retirada e até escondida daqueles que
pretendem gerir o nosso lazer. “Fight for the right to party”
(“Luta pelo direito a festejar”) não é realmente uma paródia
das lutas radicais mas uma nova manifestação das mesmas, bem
apropriada a uma era que oferece televisões e telefones como
meio de “alcançar e tocar” outros seres humanos, maneiras de
se estar presente...
Pearl Andrews tinha razão: o jantar de convívio é já “a
semente da nova sociedade que toma forma no casulo da velha”.
A “reunião tribal” ao estilo da década de 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane idílico dos neo-pagãos, as
conferências anarquistas, os círculos gay… as festas no Harlem
de 1920, casas nocturnas, banquetes, pic-nics libertários de
outrora – devemo-nos dar conta de que estes espaços já são, de
certa forma, zonas libertas, ou pelo menos ZAPs em potência.
Quer esteja aberta a um grupo restrito de amigos, como o jantar,
ou milhares de convivas, como numa Rave, a festa é sempre
“aberta” porque não é “ordenada”; pode ser planificada, mas
senão acontecer por acaso, é um falhanço. A espontaneidade
é um elemento crucial.
A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos conjugam esforços para atingir desejos comuns, quer sejam
desejos de boa comida e alegria, dança, conversas, as artes da
vida, quer seja o desejo erótico, ou o desejo de criar uma obra
de arte comunal, ou chegar a um extâse bem-aventurado – resu-
mindo, uma “união de egoístas”, como disse Stirner, na sua
forma mais simples – ou então, nas palavras de Kropotkine, um
impulso biológico básico de ajuda mútua (aqui também devíamos mencionar a “economia do excesso” de Bataille e a sua
teoria da cultura do potlatch 6 ).
De importância vital para a expressão da realidade da
ZAP, é o conceito de nomadismo psíquico (ou como lhe chamamos por piada – “cosmopolitanismo sem raízes”). Aspectos
deste fenómeno foram já discutidos por Deleuze e Guattari em
Nomadology and the War Machine, por Lyotard em Driftworks
e por outros autores na edição sobre o tema do “Oásis” da
publicação Semiotext(e). Usamos o termo “nomadismo psíquico” em detrimento de “nomadismo urbano”, “nomadologia”,
“trabalho de dispersão (driftwork)”, etc., apenas para que possamos reunir todas estas ideais num complexo vagamente estruturado, para ser estudado à luz da aparição da ZAP.
“A Morte de Deus”, que de certo modo funcionou como
uma descentralização do projecto civilizacional Europeu, gerou
uma mundividência multi-perspectivada e pós-ideológica capaz
de se movimentar sem estar presa às suas raízes entre filosofia
e mito tribal, entre ciências da natureza e Taoísmo – possibilitando a capacidade de ver pela primeira vez como se através
dos olhos de algum insecto dourado, cada faceta mostrando
um mundo inteiramente diferente.
Esta visão foi todavia conquistada, por vivermos numa
época em que a velocidade e o “fetichismo do bem de consumo”
criaram uma unidade falsa e tirânica que tende a diluir a diversidade cultural e individual, fazendo com que um lugar “seja tão
bom como outro qualquer.” Este paradoxo cria “ciganos”,
viajantes psíquicos impelidos pelo desejo ou pela curiosidade,
18
19
6
Potlatch: festa dos nativos americanos, com grande distribuição e destruição de presentes.
vagabundos com lealdades pouco arreigadas (e verdadeiramente
desleais ao “projecto Europeu”, que perdeu já todo o charme e
vitalidade), não acorrentados a nenhum tempo ou local particulares, procurando diversidade e aventura… Esta descrição não
cobre só a classe-X, que são os artistas e intelectuais, mas
também os trabalhadores migrantes, os refugiados, os desalojados, os turistas, a cultura das roulottes – e ainda as pessoas
que “viajam” pela Internet, que talvez nunca venham a sair dos
seus quartos (ou aqueles que, como Thoreau, “viajaram muito
– em Concord 7 ”); e por fim “toda a gente” está incluída, todos
nós, que vivemos num percurso por automóveis, férias, televisões, livros, filmes, telefones, mudamos de emprego, de “estilo
de vida”, religiões, dietas, etc., etc.
O Nomadismo Psíquico como táctica, aquilo a que
Deleuze e Guattari metaforicamente chamam “a máquina de
guerra”, transforma o paradoxo passivo num paradoxo activo
e talvez até “violento”. As últimas agonias e estertores de
“Deus” no seu leito de morte já se fazem ouvir há tanto tempo
– materializados no Capitalismo, no Fascismo e no Comunismo,
por exemplo – que ainda sobra muita “destruição criativa” a
empreender por parte de comandos pós-Bakuninistas e Pós-Nietzcheanos ou apaches (literalmente “inimigos”) do velho
consenso. Estes nómadas praticam a razzia, são corsários, são
um vírus; desejam a ZAP e precisam dela, acampamentos de
tendas negras debaixo das estrelas do deserto, interzonas, oásis
secretos, fortificados, ligados por caravanas em rotas ocultas,
pedacinhos de selva e terra-má “libertados”, zonas de acesso
não recomendado 8 , mercados negros, bazares clandestinos.
Estes nómadas cartografam as suas rotas olhando para
estrelas bizarras, que podem ser cachos luminos de informação
no ciberespaço, ou alucinações, quem sabe. Abram sobre a mesa
um mapa da terra; sobreponham um mapa das mudanças políticas; por cima desse, um mapa da Rede, especialmente da
Contra-Rede, com típico ênfase no tráfico de informação e logística
clandestinas – e finalmente, cobrindo tudo, o mapa 1:1 da imaginação criativa, da estética, dos valores. A grelha resultante anima-se
com explosões energéticas inesperadas, coágulos de luz, túneis
secretos, surpresas.
7
Henry David Thoreau (1817 – 1862) nasceu em Concord, Massachusetts, e viajou
muito por lá, mas não foi grande viajante “fisicamente”.
8
no-go areas no original.
20
21
e ambíguo que precisa de uma secção só para si. Já falámos da
Rede, que se pode definir como a totalidade da transferência
de informação e comunicação. Algumas destas transferências
são privilegiadas e exclusivas de certas elites, o que dá à Rede
um aspecto hierárquico. Outras transacções estão ao alcance
de todos – por isso a Rede também tem um aspecto horizontal,
não-hierárquico. Dados Militares e dos Serviços Secretos estão
muito controlados, como a informação pertinente a operações
bancárias e monetárias. Mas na maior parte dos casos, o telefone, o serviço postal, as bases de dados públicas, estão à mão
de todos e de qualquer um. Por isso, no interior da Rede começou a emergir uma sombria Contra-Rede a que chamaremos a
Teia – como se a Rede fosse uma rede de pesca e a Teia um
monte de teias de aranha nos interstícios e nas falhas da Rede.
Em geral usaremos o termo Teia para designar a estrutura
alternativa/horizontal de transmissão de dados, a rede não-hierárquica, reservando o termo Contra-Rede para indicar o
uso clandestino, ilegal e rebelde da Teia, incluindo a pirataria
informática e outras formas de sugar os recursos da Rede. Rede,
Teia e Contra-Rede são partes do mesmo complexo, do mesmo
padrão – as suas fronteiras intersectam-se muitas vezes. Estas
palavras não definem áreas, sugerem tendências.A título de
digressão: antes de condenarem a Teia ou Contra-Rede pela
sua natureza “parasitária”, o que nunca pode ser uma verdadeira
força revolucionária, perguntem-se a si próprios em que é que
consiste a “produção” na Era do Simulacro. Qual é a “classe
produtiva”? Talvez sejam forçados a admitir que estes termos
perderam o significado. Em qualquer caso, as respostas a tais
perguntas são tão complexas que a ZAP tende a ignorá-las,
aproveitando só aquilo que pode usar. “A Cultura é a nossa
Natura” e nós somos as gralhas que roubam objectos brilhantes
para os nossos ninhos, os caçadores-recolectores do mundo
CommTech).
As formas presentes da Teia não-oficial são ainda primitivas: redes marginais de fanzines, BBS, software pirata, hacking,
brincadeiras com redes telefónicas, alguma influência na palavra
escrita e na rádio, quando não há quase nenhuma nos outros
media – nada de estações televisivas, nada de satélites, fibras
ópticas, tv por cabo, etc., etc. Contudo, a própria Rede apresenta um padrão progressivo (e não estático) de relações entre
sujeitos/utilizadores e objectos/dados. A natureza destas relações foi estudada profundamente, desde McLuhan até Virilio.
Seriam necessárias páginas e páginas para “provar” o que neste
momento já “toda a gente sabe”. Em vez de refrescar a memória
de todos, interessa-me descobrir como é que estas relações
evolutivas sugerem modos de implementação da ZAP.
A ZAP tem um lugar temporário no espaço e no tempo,
o que não a torna menos real. O que é óbvio é que ela também
deve ter um lugar na Teia, sendo este lugar de natureza diferente, virtual e não real, instantâneo e não imediato. A Teia não só
oferece apoio logístico à ZAP, como também a ajuda a realizarse; grosso modo, pode dizer-se que a ZAP existe no espaço da
informação como existe no “mundo real”. A Teia pode compactar grandes porções de tempo, bem como de dados, num espaço
infinitesimal. Já notámos que a ZAP, por ser temporária, está
obrigada a prescindir das vantagens de uma liberdade duradoura
e de morada fixa. Mas a Teia pode parcialmente substituir a
duração e a morada – pode informar a ZAP desde o momento
da concepção, com vastas quantidades de tempo e espaço
compactados e “subtilizados” como informação.
Neste momento da evolução da Rede, considerando a
nossa exigência do “face-a-face”, do sensual, devemos considerar a Teia um sistema de suporte, capaz de assegurar o segui-
22
23
A Rede e a Teia
O próximo factor que contribui para a ZAP é tão vasto
mento de informação de uma ZAP a outra, de defender a ZAP,
tornando-a invisível ou agressiva, conforme a situação exija.
Mas mais do que isso, se a ZAP for um acampamento nómada,
a Teia é que oferece os épicos, as canções, as genealogias e
lendas da tribo; serve para delinear as rotas secretas das caravanas e os caminhos que sustentam o fluxo da economia tribal;
até contém algumas das estradas a seguir, alguns dos sonhos
que se transformam em sinais e augúrios.
A Teia não precisa de nenhum computador para existir.
Informação passada de boca em boca, correio, fanzines,
“árvores telefónicas”, e outras coisas do género já bastam para
construir uma rede informativa. A chave não é o tipo de tecnologia que se usa, mas sim a abertura e horizontalidade da estrutura. Ainda assim, a ideia da Rede implica o uso de computadores.
Na imaginação da ficção científica a Rede encaminha-se para a
condição do ciberespaço (como em Tron ou Neuromante ) e para
a pseudo-telepatia da “realidade virtual”. Como fã da cena
CyberPunk não posso senão visualizar o “hacking da realidade” a
desempenhar um papel capital na criação de ZAPs. Tal como
Sterling ou Gibson, parto do princípio de que a Rede oficial
nunca conseguirá abolir a Teia ou a Contra-Rede – que a pirataria
de dados, as transmissões não autorizadas e o livre trânsito de
informação nunca entrarão numa Era Glacial (de facto, e tal como
eu a entendo, a teoria do Caos prevê a impossibilidade de um
sistema de controlo universal).
Contudo, esquecendo agora tudo o que seja mera especulação sobre o futuro, há uma questão muito séria a resolver
acerca da Teia e da tecnologia que esta requer. A ZAP deseja,
acima de tudo, evitar a mediação, experimentar a sua existência
imediatamente. A própria essência da ZAP é “peito-a-peito”,
como dizem os Sufis 9 , ou face-a-face. Mas: a essência da Teia
é a mediação. As máquinas são aqui uns embaixadores para
nós – a carne é irrelevante, excepto como terminal, com todas
as conotações sinistras que o termo sugere.
A ZAP encontra mais facilmente o seu espaço próprio
adoptando duas atitudes aparentemente contraditórias face à
alta tecnologia e a sua apoteose, a Rede: (1) a posição a que
chamaremos Quinto Estado/Posição Ultra-Verde, Neo-Paleolítica e Pós-Situacionista, que se apresenta como argumento Luddita 10 contra a mediação e logo contra a Rede; e (2)
O Utopismo CyberPunk, o Futuro-Libertário, o Hacker da
Realidade 11 e seus aliados que vêem a Rede como um passo
necessário na evolução, assumindo que os efeitos nocivos da
mediação venham a ser vencidos – pelos menos assim que
estiverem libertos os meios de produção.
A ZAP concorda com os Hackers porque quer existir
(pelo menos em parte) através da Rede, até através da mediação
da Rede. Mas também concorda com os Verdes porque retém
uma intensa percepção de si mesma como corpo e não sente
senão repulsa pela Ciber-gnose, a tentativa de transcender o
corpo através da instantaneidade e da simulação. A ZAP tende
a ver a dicotomia Tecnologia/Anti-Tecnologia como um debate
tortuoso, como todas as outras dicotomias, nas quais os opostos
se revelam como falsificações ou até alucinações causadas pela
semântica. Isto é uma forma de dizer que a ZAP quer viver
neste mundo, não na ideia de outro mundo, um mundo visionário
nascido de uma unidade falsa (tudo verde ou tudo metal) que
10
fazer um trabalho de menor qualidade em relação ao trabalho manual. A palavra tornouse assim sinónimo de oposição ao progresso.
11
9
Luddita: movimento de trabalhadores Ingleses surgido no início do séc. XVIII. As suas
actividades consistiam em destruir as novas máquinas industriais que eles consideravam
Hacker/Reality Hacking: o hacker é aquele que entra ilegalmente nos sistemas informá-
Os Sufis são os discípulos dos ensinamentos ocultos do profeta Mohammed. O Sufismo,
em termos simples, pode ser definido como uma forma de misticismo e ascetismo Islâmico.
ticos, para os alterar, destruir ou simplesmente explorar. Reality Hacking designa a aplicação
24
25
desta ideia à própria realidade.
não satisfaz mais do que um raciocínio circular (como o ilustrou
Alice, “compota ontem e compota amanhã, mas nunca hoje”).
A ZAP é utópica no sentido em que visualiza uma intensificação da vida quotidiana, ou como poderiam ter dito os Surrealistas, a penetração da vida pelo Maravilhoso. Claro que não
pode ser utópica no sentido literal da palavra, que é lugar
nenhum ou lugar chamado Lugarnenhum 12 . A ZAP está algures
por aí. Coloca-se na intersecção de muitas forças, como um
poder pagão qualquer – no meio de misteriosos trilhos visíveis
apenas ao adepto, em pedaços de terreno sem nenhuma ligação
aparente, na paisagem, em fluxos de ar, de água, de animais.
Mas as linhas não estão gravadas no tempo e no espaço. Algumas delas só existem no interior da Teia, mesmo que também
intersectem locais e momentos existentes. Talvez algumas destas
linhas sejam “extraordinárias” por não existir convenção que
as quantifique. Estas linhas poderiam ser melhor estudadas à
luz da ciência do Caos do que à luz da sociologia, da estatística,
da economia, etc. Os padrões de poder que precipitam o nascimento da ZAP têm qualquer coisa em comum com os caóticos
“magnetismos estranhos” que existem, por assim dizer, entre
dimensões.
A ZAP, dada a sua natureza, aproveita todos os meios
de se criar – torna-se realidade tão depressa numa gruta como
numa cidade do Espaço – mas, acima de tudo, viverá, agora ou
muito brevemente (não importa se a forma é suspeita ou precária), de forma espontânea, sem contemplações para a ideologia
ou mesmo para a anti-ideologia. Usará o computador porque o
computador existe, mas também virá a usar poderes tão profundamente desligados da alienação ou da simulação que lhe garantem um certo paleolitismo psíquico, um espírito Xamânico-primordial que infecte a própria Rede (este é, na minha leitura,
o verdadeiro significado do CyberPunk). Porque a ZAP é uma
intensificação, um excedente, um excesso, um potlatch, é viver
12
em vez de meramente sobreviver, não pode ser definida nem pela
Tecnologia nem pela Anti-tecnologia. Sincera e contraditória no
seu desprezo pelos vis diabretes, deseja existir a despeito da
perfeição, até ao fim.
No trabalho de Mandelbrot, na sua expressão gráfica num
computador, vemos num universo fractal, mapas que estão
incrustados e até escondidos dentro de outros, mapas dentro
de mapas dentro de mapas e por aí adiante, até aos limites do
poder computacional. Para que serve este mapa de certo modo
desenhado numa escala 1:1 na sua relação com a dimensão
fractal? Que mais podemos fazer com ele para além de admirar
a sua psicadélica elegância?
Se imaginássemos um mapa da informação – uma projecção cartográfica da Rede na sua totalidade – incluiríamos nele
características do caos, que já começaram a despontar, por
exemplo, nas operações complexas de processamento paralelo,
nas telecomunicações, nas transferências de “dinheiro” electrónico, vírus, hacking guerrilheiro e por aí fora. Cada uma destas
áreas de caos podia ser representada topograficamente em trabalhos semelhantes ao de Mandelbrot, estando as “penínsulas” tão
emaranhadas na complexidade do mapa que parecessem desaparecer. Esta “escrita” – partes da qual desaparecem, outras
apagam-se a si próprias – representa o processo pelo qual a Rede
já está caída em desgraça, incompleta na sua auto-imagem, em
última análise, incontrolável. Por outras palavras, estes mapas
semelhantes ao de Mandelbrot talvez revelassem alguma utilidade
ao “delinear” a emergência da Contra-Rede como processo
caótico, uma “evolução criativa”, para usar a expressão de
Prigogine. Isto serve como metáfora explicativa da interacção da
ZAP com a Rede - uma interacção que resulta no desaparecimento
de informação. Todas as “catástrofes” na Rede representam uma
recarga das baterias da Teia, a Contra-Rede. A Rede será prejudicada pelo Caos, a Teia multiplicar-se-á.
Noplace Place no original.
26
27
Quer através da simples pirataria de dados, quer pelo desenvolvimento mais complexo da harmonia com o caos, o hacker
da Teia, o cibernético da ZAP encontrará maneiras de tirar proveito
de distúrbios, crashes e avarias na Rede (maneiras de transformar
a “entropia” em informação). Como bricoleur, caçador furtivo de
lascas de informação, contrabandista, chantagista, e quem sabe,
ciberterrorista, o hacker da ZAP trabalhará a favor da evolução
de ligações fractais clandestinas. Estas ligações, bem como a
informação diferente que flui entre elas, formarão “tomadas de
parede” onde a ZAP se irá ligar para começar a existir – como se
fôssemos roubar electricidade ao monopólio para iluminar uma casa
ocupada.
Assim, a Teia, para poder produzir as condições necessárias ao nascimento de uma ZAP, será um parasita na Rede; mas
também podemos descrever esta estratégia nestes termos: uma
tentativa de construção de uma Rede alternativa e autónoma,
“livre”, não mais parasitária, uma base estável para uma “nova
sociedade emergindo do casulo da velha.”
A Contra-Rede e a ZAP podem ser consideradas, em
termos práticos, fins em si mesmas: embora na teoria possam
ser vistas como formas de luta por uma realidade diferente.
Tendo dito isto, é de admitir que restam algumas reservas sobre
os computadores, algumas perguntas sem resposta, especialmente acerca do computador pessoal.
A História das redes informáticas, das BBSs e de várias
experiências de electro-democracia, tem ilustrado uma cultura
do passatempo e pouco mais. Muitos anarquistas e libertários
têm grande fé no PC como arma de libertação e de auto-libertação – só que não há provas disso, não há liberdade
palpável. Tenho pouco interesse na emergência hipotética duma
classe de indivíduos empreendedores, patrões de si mesmos,
especializados no processamento de palavras e dados, capazes
de manter uma indústria semi-artesanal ou de executar trabalhos
maçadores por encomenda para várias corporações e burocra-
cias. Para mais, não preciso de percepção extra-sensorial para
prever a criação da “subclasse” desta classe: uma espécie de
Yuppietariado: domésticas, por exemplo, que para garantir um
rendimento extra, transformem as suas casas em electro-oficinas
clandestinas, pequenas tiranias do Trabalho em que o patrão é
uma rede informática.
Também não estou impressionado pela informação e
serviços que circulam pelas redes “radicais” de hoje em dia.
Algures, dizem-me, existe uma “economia da informação”.
Talvez seja assim; mas a informação que se oferece nos BBSs
parece consistir inteiramente em conversas de fúteis e de tarados
por máquinas. Será isto uma economia? Não será só um passatempo para entusiastas? Concordo se me disserem que os PCs
criaram uma revolução idêntica à do surgimento da imprensa –
e admito que os trabalhos marginais se estão a desenvolver na
Rede - até posso falar com seis pessoas ao telefone ao mesmo
tempo. Mas que diferença faz isto tudo na minha vida quotidiana?
Francamente, eu já tinha muitos dados para enriquecer
as minhas percepções, com livros, filmes, televisão, teatro, telefones, correios, estados alterados de consciência, e por aí
adiante. Preciso realmente de um PC para obter mais dados
desse género? Vocês oferecem-me informação secreta? Bem…
reconheço uma certa tentação – mas quero segredos maravilhosos, não quero só números de telefone que não estão na lista,
ou tretas sobre polícias e políticos. Acima de tudo quero que
os computadores me forneçam informação ligada a bens reais
– às coisas boas da vida. E já que acuso os hackers e os frequentadores dos BBSs, de indefinição intelectual irritante, devo
descer à terra das barrocas nuvens da Teoria e da Crítica, para
explicar o que quero dizer com “bens reais”.
Vamos assumir que por razões políticas e pessoais eu
desejo boa comida, comida melhor do que aquela que me é
oferecida pelo Capitalismo – comida impoluta, ainda abençoada
28
29
com aromas fortes e naturais. Para complicar tudo imaginemos
que aquilo que quero é ilegal nos Estados Unidos – leite por
pasteurizar, ou o requintadíssimo fruto Cubano mamey, que não
pode ser exportado para os Estados Unidos enquanto está
fresco; tem sementes alucinogénicas, segundo me contam. Não
sou um fazendeiro. Façamos de conta que sou um importador
de perfumes raros e afrodisíacos, e para tornar a cena mais
perigosa vou assumir que a maior parte do meu stock é ilegal.
Talvez eu só queira trocar processamento de texto por nabos
biológicos, e recuso-me a declarar a transacção ao IRS (a lei
exige-o, acreditem ou não). Ou então, talvez queira encontrarme com outros seres humanos para actos sexuais consensuais
mas ilegais na mesma (já se tentou, mas todas as BBSs ligadas
ao sexo puro e duro foram detectadas e fechadas; de que nos
serve um underground com péssima segurança?). Resumindo,
partamos do princípio de que já estou cheio até aos cabelos de
informação pura e simples, a alma da máquina. Na vossa
opinião, os computadores já deviam ser capazes de gratificar
os meus desejos de comida, sexo e fuga aos impostos. Então o
que é que está mal? Porque é que ainda não aconteceu nada?
A ZAP ocorreu, ainda ocorre, e há-de ocorrer com ou
sem computadores, no entanto, para que atinja o máximo do
seu potencial, deverá procurar ser mais uma “Ilha na Rede”
do que uma combustão espontânea. A Rede, ou melhor, a
Contra-Rede, assume a promessa de um aspecto integral da
ZAP, uma adição que multiplique o seu potencial, um “salto
quântico” (estranhamente, esta expressão veio a significar um
grande salto) de complexidade e sentido. A ZAP deve agora
existir num mundo de puro espaço, o mundo dos sentidos. Liminar e mesmo evanescente, a ZAP deve combinar informação e
desejo para cumprir a sua aventura (a sua “ocorrência”), para
se expandir até às fronteiras do seu destino, para se saturar
com o seu próprio devir.
Talvez a escola Neo-Paleolítica esteja correcta ao afirmar
que todas as formas de alienação e mediação devem ser abandonadas para que atinjamos os nossos objectivos – ou talvez a
verdadeira anarquia seja plausível somente no Espaço Exterior,
como asseguram alguns Futuro-Libertários. Mas a ZAP pouco
se importa com o “foi”, com “há-de ser”. Interessam-lhe resultados, ataques bem sucedidos à realidade do consenso, escaladas
aos píncaros de uma vida mais intensa e mais abundante. Se
não se pode utilizar o computador neste projecto, então o
computador terá de ser vencido.
A minha intuição sugere-me todavia que a Contra-Rede
já começou a existir, talvez já exista mesmo – só não posso
prová-lo. Baseei a teoria da ZAP principalmente nesta intuição.
Claro que a Teia também implica redes não computacionais de
intercâmbio tais como o mercado negro… mas o potencial
completo da informação não-hierárquica leva logicamente ao
computador como ferramenta par excellence. Agora só espero
que os hackers provem que tenho razão. Onde estão os meus
nabos?
30
31
“Idos para Croatan”
Não desejamos definir a ZAP ou elaborar dogmas sobre
como deve ser criada. Afirmamos que já foi criada, sê-lo-á, está
a ser criada. Por isso mesmo seria de maior interesse olhar para
algumas ZAPs passadas e presentes, e especular sobre manifestações futuras; evocando alguns protótipos podemos medir o
alcance potencial do complexo e quem sabe até obter um vislumbre de um “arquétipo”. Em vez de tentar algum género de
demonstração enciclopédica, vamos antes mandar uns tiros ao
acaso, será um mosaico de visões momentâneas, começando
muito arbitrariamente com os sécs.16-17 e a colonização do
Novo Mundo.
A abertura do “novo” mundo foi concebida desde o princípio como uma operação ocultista. O mago John Dee, conselheiro espiritual de Isabel I, parece ter inventado a ideia de
“imperialismo mágico”, com que infectou toda uma geração.
Halkyut e Raleigh caíram sob o seu feitiço, e Raleigh usou os
seus laços com a “Escola da Noite” – um conselho de pensadores avançados, aristocratas e iluminados – para propagandear
a necessidade de explorar, de colonizar e fazer mapas. A Tempestade 13 é um trabalho de propaganda a favor da nova ideologia, e a colónia de Roanoke foi a sua primeira experiência.
A visão Alquímica do Novo Mundo associava-o à
matéria-prima ou hyle, o “estado da Natureza”, a inocência e
a possibilidade total (“Virgín-ia”), ou caos, um devir que o
iluminado transmutaria em ouro, isto é, em perfeição espiritual
bem como em abundância material. Mas a visão Alquímica é
informada em parte por um fascínio evidente pelo devir, uma
13
de William Shakespeare.
32
simpatia traiçoeira pelo devir, um sentimento de esperança em
algo que veio a projectar-se no “Índio”: o Homem no seu estado
natural, ainda por corromper pelos sistemas de governo.
Caliban, o homem selvagem, está alojado como um vírus na
máquina do Imperialismo Oculto; a floresta, o animal e os humanos são investidos à partida com o poder mágico do marginal,
do despresado, do proscrito. Por um lado, Caliban é feio, sendo
a natureza uma “selva ululante” – por outro lado, Caliban é
nobre, livre, a natureza é um Eden. Esta cisão na consciência
Europeia é anterior à dicotomia Clássica/Romântica; está enraízada na Alta Magia da Renascença. A descoberta da América
(o Eldorado, a Fonte da Juventude) cristalizou-a: daí uma precipitação nos planos de colonização.
Na escola primária ensinaram-nos que as primeiras colónias em Roanoke falharam; os colonos desapareceram, deixando
para trás não mais que um indecifrável “Idos para Croatan”.
Relatos posteriores de Índios de olhos cinzentos foram considerados lendas. O facto incontestável, insinuava o manual escolar, era que os Índios tinham massacrado os colonos indefesos.
Contudo, “Croatan” não era um Eldorado qualquer; era o nome
de uma tribo vizinha e amistosa. Aparentemente a colónia só
se deslocou da costa para o Grande Pântano Lúgubre para se
integrar na tribo. Os Índios de olhos cinzentos existiam – ainda
existem, e chamam-se Croatans a si próprios. Então – a primeiríssima colónia no Novo Mundo decidiu renunciar ao seu
contrato com Prospero (Dee/Raleigh/O Império) e foi-se com os
homens selvagens, com Caliban. Saíram de cena. Tornaram-se
“Índios”, “Nativos”, escolheram o Caos em vez das misérias
assustadoras da servidão aos plutocratas e intelectuais de
Londres.
A América formou-se onde outrora fora a “Ilha das
Tartarugas”, e Croatan ficou na sua psique colectiva. Lá fora,
para além da fronteira, o estado natural (Estado nenhum) prevalecia – e na consciência dos colonos havia sempre a escolha
33
subreptícia da vida selvagem, a tentação de desistir da Igreja,
da fazenda, das letras, dos impostos – esses fardos todos da
civilização – e de “ir para Croatan” de um modo ou de outro.
Para mais, sendo a Revolução traída em Inglaterra, primeiro
por Cromwell e em seguida pela Restauração, ondas de protestantes radicais fugiram/foram deportados para o Novo Mundo
(que se tinha agora tornado uma prisão, um local de exílio).
Antinomianistas, Familistas, Quakers, Levellers, Diggers e
Ranters tomavam conhecimento da sombra oculta do mundo
selvagem, acorrendo ao seu chamamento.
Anne Hutchinson e os seus amigos eram tão somente os
mais famosos (os de mais alta posição) dos Antinomianistas,
tiveram o azar de ser apanhados pela política da Bay Colony,
mas existiu claramente uma facção mais radical do movimento.
Os incidentes que Nathaniel Hawthorne relata no seu conto The
Maypole of Merry Mount são totalmente históricos; aparentemente, os extremistas tinham decidido renunciar à Cristandade
e regressar ao paganismo. Se tivessem tido sucesso numa união
completa com os seus aliados Índios o resultado seria uma Antinomia Céltica/Algonquim, uma religião sincrética, uma espécie
de Santeria Norte-Americana do século XVII.
Os Sectários encontraram melhores condições para prosperar debaixo das administrações corruptas das Caraíbas, onde
muitos interesses Europeus rivais tinham deixado muitas ilhas
por reclamar. As de Barbados e da Jamaica em particular devem
ter recebido muitos extremistas, e acredito que influências dos
Levellers e dos Ranters tenham contribuído para a utopia corsária de Tortuga. Aqui, pela primeira vez, e graças a Esquemelin,
podemos com alguma profundidade estudar uma proto-ZAP do
Novo Mundo.
Fugindo de horrorosos “benefícios” do Imperialismo tais
como a escravatura, a servidão, o racismo e a intolerância, da
morte-em-vida das plantações, os corsários adoptaram os costumes dos Índios, casaram-se com Caribenhos/as, aceitaram
negros e espanhóis como iguais, rejeitaram todas as nacionalidades, elegeram os seus capitães democraticamente, e regressaram
ao “estado natural”. Tendo declarado guerra “a todo o mundo”,
velejavam para saquear, seguindo contratos mútuos chamados
“Artigos”, sendo estes tão igualitários que cada membro da
tripulação recebia um quinhão igual, recebendo o capitão apenas
20% a 50% a mais. As chicotadas, bem como qualquer outra
forma de castigo, foram abolidas – as querelas resolviam-se a
votos ou em duelos.
É simplesmente errado ilustrar os piratas como salteadores de estrada que se fizeram ao mar ou até proto-capitalistas,
como fizeram certos historiadores. Em certo sentido, eles eram
“bandidos sociais”, embora as suas comunidades-base não
fossem sociedades agrárias tradicionais mas “utopias” criadas
quase ex nihilo em terra incognita, enclaves de liberdade total
ocupando lugares em branco no mapa.
Após a queda de Tortuga, o ideal Flibusteiro permaneceu
vivo durante a “época dourada” da Pirataria (por volta de
1660-1720), gerando comunidades de terra firme como Belize,
por exemplo, um Estado fundado por piratas. Então, ao
mudar-se o pólo de interesses vários para Madagáscar – uma
ilha que nenhum poder imperial tinha ainda reclamado, governada apenas por um grupo heterogéneo de reis (chefes) nativos
ansiosos por firmar alianças com os Piratas – a Utopia Pirata
atingiu o auge.
O relato de Daniel Defoe sobre o Capitão Mission e a
fundação de Libertália 14 pode ser, como muitos historiadores
afirmam, uma fraude literária que não pretendia senão propagandear as teorias radicais dos Whigs 15 – se bem que este relato
34
35
14
Libertatia no original.
15
Ala progressista do Parlamento Inglês responsável por algumas controvérsias na época
de Daniel Defoe
estivesse inserido em The General History of the Pyrates (1724 -28), obra aceite na maior parte pela sua correcção e veracidade.
Para mais, a história do Capitão Mission não foi criticada
aquando do aparecimento do livro e muitos trabalhadores de
Madagáscar eram ainda vivos naquela altura. E parece que eles
acreditaram, talvez por terem conhecido enclaves piratas muito
semelhantes a Libertália. Mais uma vez, escravos resgatados,
nativos e até inimigos tradicionais como os Portugueses eram
convidados a unir-se numa atmosfera de igualdade (os ataques
a navios negreiros eram uma grande preocupação da altura). A
terra era propriedade comum, elegiam-se representantes (mas
os mandatos eram curtos 16 ), partilhavam-se os despojos dos
assaltos; doutrinas libertárias havia-as em circulação bem mais
radicais do que aquelas em Common Sense 17 .
Libertália esperava perdurar e Mission morreu defendendo-a. Contudo, a maioria das utopias piratas pretendiam-se
temporárias; de facto, as verdadeiras “repúblicas” dos corsários
eram os seus navios, que cortavam as águas regulados por Artigos, ao passo que os enclaves costeiros não conheciam lei
alguma. O último exemplo clássico, que é Nassau, nas Bahamas,
uma autêntica estância de praia composta de cabanas e tendas
onde os habitantes dedicavam as suas atenções ao vinho, às
mulheres (e aparentemente também aos mancebos, a julgar por
Sodomy and Piracy de Birge), à música (os piratas eram grandes
apreciadores de música e costumavam contratar bandas para
levar nas suas longas viagens), bem como ao excesso perverso,
Nassau que desapareceu da noite para o dia quando a frota
Inglesa se fez ver na Baía. Barba Negra e “Calico Jack”
Rackham e a sua tripulação de mulheres piratas deslocaram-se
para costas mais selvagens e destinos mais cruéis, ao mesmo
tempo que outros aceitavam o Perdão real e se reabilitavam.
16
Uma tendência saudável. O pior do poder é que na sua cabeça parecem estar sempre os
mesmos piolhos!
17
Livro de Thomas Paine que teima em não perder actualidade.
36
Mas a tradição Flibusteira perdurou, tanto em Madagáscar, onde
as crianças de sangue misto dos piratas começaram a definir
reinos seus, e nas Caraíbas, onde escravos fugidos bem como
grupos mistos de pretos/brancos/vermelhos puderam florescer
nas montanhas e no meio do mato para ficarem conhecidos como
gente “Marrom” 18 . A comunidade Marrom na Jamaica ainda
retinha um certo grau de autonomia e muitos dos seus velhos
costumes populares quando Zora Neale Hurston lá foi nos anos
20 (ver Tell my Horse). Os Marrom do Suriname ainda praticam
o “paganismo” Africano.
Durante o século XVIII, a América do Norte também
produziu muitas comunidades desistentes/separatistas 19 , isoladas e tri-raciais (estes epítetos foram-lhes apostos pelo
movimento Eugénico, que levou a cabo os primeiros estudos
científicos destas sociedades. Infelizmente a “ciência” só serviu
como desculpa para o ódio aos de “raça impura” e aos pobres,
sendo a “solução” proposta para os “problemas” a esterilização
compulsiva).
Estes núcleos eram constituídos invariavelmente por
escravos fugidos e trabalhadores quase-escravos, “criminosos”
(indigentes), “prostitutas” (mulheres brancas casadas com não-brancos), e membros de várias tribos nativas. Em alguns casos,
como aconteceu com os Seminoles e com os Cherokee, a estrutura tribal tradicional absorveu os recém-chegados; em outros,
formaram-se novas tribos. Assim, temos os Marrom do Grande
Pântano Sinistro, que se mantiveram em pé nos sécs. XVIII e
XIX, adoptando escravos fugidos, funcionando como paragem
temporária no Caminho de Ferro Clandestino, um centro
religioso e ideológico para as revoltas de escravos. A religião
era o Vodu/HooDoo/Vodun 20 , uma mistura de elementos nativos, Africanos e Cristãos, e de acordo com o historiador H.
Leaming-Bey, os anciães dessa fé bem como os líderes dos Gran18
Maroons no original.
19
drop-out “tri-racial isolate communities” no original.
37
des e Sinistros Marrom eram conhecidos como The Seventh
Finger High Glister.
Os Ramapaughs, do norte de New Jersey, incorrectamente conhecidos como “Jackson Whites”, apresentam outra genealogia romântica composta dos seguintes arquétipos: escravos
libertos de patrões Holandeses, vários clãs Delaware e
Algonquin, as “prostitutas” do costume, os “Hessianos” (chavão
designando mercenários Britânicos perdidos, Loyalists desertores, etc.), e bandos locais de bandidos sociais como o bando de
Claudius Smith.
Alguns grupos reclamam uma origem Afro-Islâmica,
como é o caso dos Mouros de Delaware e os Ben Ishmaels,
que migraram do Kentucky para o Ohio em meados do século
XVIII. Os Ishmaels praticavam a poligamia, nunca bebiam
álcool, ganhavam a vida como instrumentistas, casavam-se com
Índios e adoptavam os seus costumes, estando tão entregues a
uma vida nómada que já construiam as casas com rodas. A sua
migração anual descrevia triângulos com vértices em cidades
com nomes como Mecca e Medina. No século XIX alguns deles
abraçaram ideais anarquistas, tornando-se alvos do movimento
Eugénico para um programa particularmente cruel de
salvação-pela-extinção. Algumas das primeiras leis Eugénicas
escreveram-se em sua honra. Enquanto tribo, “desapareceram”
nos anos 20, e o que é mais provável é que tenham feito engrossar
as fileiras dos primeiros movimentos Islâmicos de Negros tal como
o Moorish Science Temple. Eu próprio cresci a ouvir as lendas
sobre os “Kallikaks” dos New Jersey Pine Barrens, que ficavam
perto de mim (e cresci também com a presença de Lovecraft, um
racista ferrenho que mesmo assim se deixava fascinar por aquelas
comunidades isoladas). As lendas, afinal, não passam de
recordações populares das calúnias da Eugenia, que tinha o seu
quartel general em Vineland (New Jersey), a partir de onde se
20
Em Português grafa-se Vodu, em Inglês HooDoo e em Francês Vodun. O termo Voodoo é
uma invenção de Hollywood.
38
lançaram as habituais “reformas” contra a “miscigenação” e a
“debilidade mental” nos Barrens (incluindo a publicação de
fotografias dos Kallikaks, desastradamente retocadas para os fazer
parecer monstros nascidos de cruzamentos bestiais).
As “comunidades isoladas” – pelo menos, aquelas que preservam a sua identidade no século XX – recusam sistematicamente a absorção quer pela cultura do manistream oficial quer pela
“subcultura” Negra na qual os sociólogos modernos preferem enfiálas. Na década de 70, inspirados pela Renascença do Americano
Nativo, um certo número de grupos, incluindo os Ramapaughs e
os Mouros, pediram ao o seu reconhecimento como tribos Índias.
Obtiveram o apoio de activistas nativos mas foi-lhes recusado o
status oficial. Afinal, se eles tivessem ganho, ter-se-ia estabelecido
um precedente perigoso e favorável a toda a espécie de
“desistentes”, desde os apreciadores brancos de Peyote e hippies
aos nacionalistas negros, aos arianos, anarquistas e libertários –
reservas para toda a gente! O “Projecto Europeu” não pode
reconhecer a existência do Homem Selvagem – o caos verde ainda
é uma ameaça muito grande ao sonho imperial de ordem.
Essencialmente, os Mouros e os Ramapaughs rejeitam a
explicação “diacrónica” ou Histórica das suas origens, a favor duma
explicação “sincrónica” da sua auto-imagem tendo como base o
“mito” da adopção pelos Índios. Ou, melhor dizendo, eles nomearam-se Índios. Se todos os que quisessem ser Índios pudessem
sê-lo através do simples acto da auto-definição como tal, imaginem
que partida para Croatan não seria. Essa velha sombra oculta ainda
assombra o que resta das nossas florestas (já que falamos nisso,
estas até têm aumentado no Nordeste desde os séculos XVIII-XIX
com o abandono de grandes extensões de terras de cultivo.
Thoreau, no seu leito de morte, sonhava com o regresso de
“…Índios… florestas…”, é o regresso do recalcamento).
Os Mouros e os Rampaughs têm, é claro, boas razões materialistas para se julgarem Índios – afinal, alguns dos seus antepa-
39
ssados são-no – mas se virmos a sua auto-nomeação numa perspectiva ao mesmo tempo “mítica” e histórica aprenderemos mais
coisas relevantes na nossa busca da ZAP. Dentro das sociedades
tribais existe aquilo a que alguns antropólogos chamam
mannenbunden: sociedades totémicas dedicadas a uma identificação com a “Natureza” através do acto da metamorfose, da
transformação no animal-totem (lobisomens, xamãs-jaguar,
homens-leopardo, bruxas-gato, etc.). No contexto de toda uma
sociedade colonial (como o indica Taussig em Shamanism,
Colonialism and the Wild Man), o poder metamórfico é visto
como inerente à cultura nativa integral — assim, o sector mais
reprimido da sociedade adquire um poder paradoxal graças a
mitos sobre o seu conhecimento oculto, que o colono tanto
teme como deseja. É óbvio que os nativos têm algum conhecimento oculto; mas em resposta à percepção Imperial da cultura
nativa como espécie de “selva(jaria) espiritual”, os nativos
tendem a ver-se cada vez mais e conscientemente no papel de
“espiritualmente selvagens”.
À medida em que são marginalizados, a própria Margem
ganha uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram
tão-somente tribos de pessoas; agora, tornaram-se “guardiães
da Natureza”, habitantes do “Estado Natural”. Por fim, até o
colono é seduzido por este “mito”. Quando um Americano quer
“desistir” e regressar à Natureza, “torna-se um Índio”. Os
democratas radicais do Massachusetts (descendentes espirituais
dos Protestantes radicais) que organizaram a Tea Party 21 , que
acreditavam literalmente na possibilidade de abolição dos governos (toda a região de Berkshire se declarou “em Estado Natural!”), disfarçaram-se de Mohawks. Assim, os colonos, que de
súbito se viam marginalizados face à terra-mãe, adoptaram o papel
21
O motim do chá em Boston, como medida de protesto face à opressão de Inglaterra, que
cobrava impostos às colónias Americanas sem todavia lhes conceder voz no parlamento da
metrópole.
40
dos nativos marginalizados, por esse meio (mas só de certa forma)
procurando partilhar do seu poder oculto, do seu brilho mítico.
Desde os Mountain Men aos Escuteiros, o sonho da
“transformação em Índio” flui como um rio subterrâneo em várias
correntes da História, da cultura e da consciência Americanas.
A panóplia de imagens associada aos grupos “tri-raciais”
também confirma esta hipótese. Os “nativos” são obviamente
imorais por sistema, mas os renegados raciais e os párias devem
ser mesmo polimorfos, mesmo perversos. Os Corsários eram
sodomitas, os Marrom e os Mountain Men eram dados à miscigenação, os “Jukes e os Kallikaks” regalavam-se com a fornicação e o incesto (levando a mutações como a polidactilia), os
putos corriam por aí todos nus e masturbavam-se à vista de
toda a gente, etc., etc.
Aparentemente, com o “regresso à Natureza” começam
a praticar-se toda a espécie de actos contranatura; pelo menos
é isso que parece, a acreditar nos Puritanos e nos advogados
da Eugenia. E já que muita gente em sociedades moralistas,
racistas e opressoras nutre desejos secretos de fazer a mesma
c o i s a , d e c i d e m p r o j e c t a r e s s a s a c ç õ e s n o s m a rg i n a i s ,
convencendo-se por esse meio de que continuam civilizados e
puros. É um facto que algumas comunidades marginalizadas
rejeitam a moralidade consensual – como no caso dos piratas!
– e de facto concretizam alguns dos desejos reprimidos da
civilização (não o farias tu também?). A transição para o “selvagem” é sempre um acto erótico, de nudez.
Antes de abandonar o assunto dos “isolados tri-raciais”,
gostaria de recordar o entusiasmo de Nietzche pela “mistura
das raças”. Impressionado pelo vigor e pela beleza das culturas
híbridas, ele oferecia a miscigenação não só como solução para
o problema da raça mas também como princípio de uma nova
humanidade liberta de chauvinismos étnicos e nacionais – talvez
uma solução precursora do “nomadismo psíquico”. O sonho de
Nietzche parece-nos tão remoto a nós como a ele. O chauvinis41
mo ainda se dá muito bem. Culturas mistas continuam submersas. Mas as zonas autónomas dos Marrom e dos Corsários,
Ishmaels e Mouros, Ramapaughs e “Kallikaks” subsistem, ou
pelos menos restam as suas histórias, como indicações daquilo
a que Nietzche poderia ter chamado “ A vontade de poder como
desaparecimento”. Devemos regressar a este tema.
A Música como Princípio Organizacional
42
E ntretanto, focamos a história do anarquismo clássico
à luz do conceito da ZAP.
Antes do “fecho do mapa”, houve uma boa porção de
energia anti-autoritária dirigida para comunas “evasivas” tal
como a Modern Times 22 , os vários Falanstérios, e por aí adiante.
É interessante notar que algumas delas não estavam destinadas
a durar “para sempre”, só enquanto o projecto se mostrasse
satisfatório. Pelos padrões Socialistas/Utópicos estas experiências foram “fracassos”, por isso, pouco sabemos do assunto.
Quando a fuga para além-fronteiras se revela impossível,
inaugura-se na Europa a era das comunas urbanas revolucionárias. As Comunas de Paris, Lião e Marselha não duraram bastante para adquirir traços de permanência, e perguntamo-nos se
isso não seria propositado. Do nosso ponto de vista, o que é
realmente fascinante é o espírito das comunas. Durante esses
anos e mesmo posteriormente, os anarquistas adoptaram a
prática do nomadismo revolucionário, vagueando de levantamento em levantamento, procurando manter viva em si a intensidade de espírito que haviam experimentado no momento da
insurreição. De facto, alguns anarquistas Stirnerianos/Nietzcheanos vieram a encarar esta actividade como um fim em si, um
modo de ocupar sempre uma zona autónoma, a interzona que
se abre no meio da guerra e da revolução (ver a “zona” em
Gravity’s Rainbow de Thomas Pynchon). Eles declararam que
se alguma revolução socialista triunfasse, seriam os primeiros
a virar-se contra ela. Não pensavam em parar muito antes de
atingir a anarquia universal. Na Rússia, em 1917, saudaram os
Sovietes livres com alegria: era este o objectivo deles. Mas assim
que os Bolcheviques traíram a Revolução, os anarquistas individualistas foram os primeiros a pôr-se em pé de guerra. É claro
que depois de Kronstadt todos os anarquistas condenaram a
22
Comunidade libertária formada nos Estados Unidos, em meados do séc. XIX, pelo
anarquista Josiah Warren.
43
“União Soviética” (uma contradição nos termos) e partiram em
busca de novas insurreições.
A Ucrânia de Makhno e a Espanha anarquista pretendiam-se duradoiras, e apesar das exigências de uma guerra
imparável ambas tiveram sucesso em certa medida: não que
tenham durado “muito tempo”, mas a sua organização era boa
e teriam perdurado não fosse a agressão do exterior. Portanto,
dentre as experiências decorrentes entre as duas Guerras Mundiais, concentrar-me-ei na República leviana de Fiume, que é
muito mal conhecida, e que ninguém estava interessado em fazer
perdurar.
Gabriele D’Anunzio, poeta Decadentista, artista, músico,
esteta, leviano, aeronauta pioneiro e aventuroso, mago negro,
génio e patife, saiu da Primeira Guerra Mundial um herói, com
um pequeno exército às suas ordens: os “Arditi”. Sem aventuras
que se lhe apresentassem, decidiu capturar a cidade de Fiume à
Jugoslávia e dá-la à Itália. Após uma cerimónia necromântica
com a sua amante num cemitério Veneziano, pôs-se a caminho
de Fiume, conquistando-a sem dificuldades de maior. Mas a
Itália recusou a sua generosa oferta; o primeiro ministro
chamou-lhe doido.
Num repente, D’Annunzio decidiu declarar a independência e ver quanto tempo se aguentaria. Escreveu a Constituição com um seu amigo anarquista, declarando a música como
princípio central do Estado. A Marinha (composta de desertores e sindicalistas marítimos de Milão) tomou o nome de
Uscochi, em honra dos piratas assim chamados que haviam vivido em ilhas da zona e atacavam navios Otomanos e Venezianos.
Os novos Uscochi até realizaram alguns feitos espectaculares:
vários navios mercantes italianos subitamente garantiam algum
futuro para a República: há dinheiro nos cofres! Artistas, boémios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio correspondia-se
com Malatesta), fugitivos e refugiados apátridas, homossexuais,
dândis militares (o uniforme era negro com uma caveira e ossos
cruzados em baixo – mais tarde o motivo foi roubado pelos SS)
e fanáticos reformistas de todo o género (Budistas, Teósofos,
Vedantistas) começaram a apinhar-se em Fiume. A festa nunca
mais acabava. Todas as manhãs D’Annunzio lia poesia e manifestos da sua varanda; todas as noites havia um concerto, e depois
fogos de artifício. Isto constituía toda a actividade do governo. 18
meses depois, já sem dinheiro e sem vinho, ninguém resistiu quando
a frota Italiana apareceu – por fim! – e dispensou uns quantos tiros
ao palácio municipal.
D’Annunzio, como muitos outros anarquistas Italianos,
inclinou-se mais tarde para o fascismo – na verdade, Mussolini
(o ex-Sindicalista) em pessoa seduziu o poeta por forma a que
ele tomasse esse caminho. Ao perceber que tinha errado, era
tarde de mais para D’Annunzio, era já um velho doente. Mas o
Duce matou-o na mesma, fê-lo cair de uma varanda, transformando-o num “mártir”. Quanto a Fiume, embora a experiência
não fosse tão séria como as da Ucrânia e de Barcelona, pode
provavelmente ensinar-nos mais sobre certos aspectos da nossa
demanda. De certo modo, foi a última das utopias piratas (ou o
seu único exemplo moderno) – e noutro sentido, quase chegou
a ser a primeira ZAP moderna.
Acredito que comparando Fiume com o levantamento
Parisiense de 1968 (e com as insurreições urbanas na Itália do
princípio dos anos setenta), bem como com as comunas contraculturais Americanas e as suas influências anarco-Nova Esquerda, notamos certas semelhanças, tais como: a importância da
teoria estética (os Situacionistas) – também se vê aquilo a que
se poderia chamar “economia pirata”, a boa vida sustentada
pelo excedente da produção social até a popularidade de
uniformes militares coloridos – o conceito da música como
mudança social revolucionária - e finalmente, a atmosfera
ubíqua de impermanência, a capacidade de deslocação, de mudar
de forma, de encontrar lugar noutras universidades, cumes
montanhosos, guetos, fábricas, bunkers, quintas abandonadas
44
45
– ou até outros planos da realidade. Ninguém estava interessado
em impôr mais uma Ditadura Revolucionária quer em Fiume,
quer em Paris ou Millbrook. O mundo muda ou não. Quer mude
quer não mude, continuamos a movimentar-nos e a viver
intensamente.
O Soviete de Munique (ou “República de Conselho”) de
1919 exibia certos traços da ZAP, mesmo que, como acontece
na maior parte das revoluções, o seu programa pretendesse ser
algo mais que temporário. A participação de Gustav Landauer
como Ministro da Cultura ao lado de Silvio Gesell como Ministro da Economia e outros socialistas libertários, anti-autoritários radicais tais como os poetas/dramaturgos Erich Mªhsam,
Ernst Toller e Ret Marut (o romancista B. Traven), deu a este
Soviete um sabor distintamente anarquista. Landauer, que tinha
passado anos isolado a trabalhar na sua grandiosa síntese de
Nietzche, Proudhon, Kropotkin, Stirner, Meister Eckhardt, dos
místicos radicais e dos filósofos populares Românticos, sabia
desde o princípio que o Soviete estava condenado ao fracasso;
tudo o que ele esperava é que durasse tempo suficiente para
que o entendessem. Kurt Eisner, fundador martirizado do
Soviete, acreditava num sentido bem literal que os poetas e a
poesia deviam formar a base da revolução.
Puseram-se em marcha planos para criar numa parte da
Baviera uma economia e uma comunidade anarco-socialistas.
Landauer apresentou propostas de formação de um sistema
escolar livre e um Teatro do Povo. A base de apoio do Soviete
estava mais ou menos limitada aos bairros boémios e de classe
trabalhadora mais pobres de Munique, e a grupos como o
Wandervogel (o movimento juvenil neo-Romântico), radicais
Judaicos (como Buber), os Expressionistas, e outros marginais.
Por isso, os historiadores desdenham-no, chamando-lhe “A
República dos Cafés”, e consideram-no de pequena importância
em comparação com as participações Marxista e Spartakista na(s)
revolução(ões) do pós-guerra Alemão. Ultrapassado em táctica
pelos Comunistas e por fim assassinado por soldados debaixo
da influência da sociedade Ocultista/Fascista Thule, Landauer
merece ser recordado como um santo. Contudo, mesmo
anarquistas de hoje tendem a compreedê-lo mal e a atacá-lo “por
se ter vendido a um governo socialista”. Se o Soviete tivesse
durado pelo menos um ano, choraríamos só de lembrar a sua
beleza – mas ainda antes que murchassem as primeiras flores
daquela Primavera, o geist e o espírito da poesia foram
esmagados, e nós esquecemo-nos. Imaginem como não seria
respirar o ar de uma cidade em que o ministro da cultura prevê
que dentro em breve as crianças hão-de memorizar as palavras
de Walt Whitman. Ah, quem nos dera uma máquina do tempo…
46
47
A Vontade de Poder como Desaparecimento
Foucault, Baudrillard, e outros, discutiram extensamente
vários modos de “desaparecimento”. Sugiro aqui que a ZAP é de
certa forma, uma táctica de desaparecimento. Quando os teóricos
falam do desaparecimento do Social estão a postular em parte a
impossibilidade da “Revolução Social”, e em parte a
impossibilidade do “Estado” – o abismo de poder, o fim do discurso
do poder. A questão anarquista neste caso devia ser: porquê
darmo-nos ao trabalho de enfrentar um “poder” que perdeu todo
o significado e se tornou mera Simulação?
Tais confrontos terão como único resultado feios e
perigosos espasmos de violência por parte dos zombis-miolos-de-caca que herdaram as chaves dos arsenais e das prisões
(talvez isto seja uma má interpretação Americana da sublime e
subtil Teoria Franco-Germânica. Se é assim, está bem; quem
disse que era preciso compreender uma ideia para a usar?).
Partindo da leitura que faço sobre o “desaparecimento”,
este parece-me uma opção muito lógica para o nosso tempo,
não é nem morte nem catástrofe para o projecto radical. Ao
contrário da interpretação mórbida e niilista da Teoria, a minha
pretende miná-la para obter estratégias úteis na imparável
“revolução da vida quotidiana”: a luta que não pode parar,
mesmo em face do último falhanço da revolução política ou
social, porque nada, a não ser o fim do mundo, pode deter a
vida quotidiana, ou o nosso desejo de coisas boas, a nossa
aspiração pelo Maravilhoso. E como disse Nietzche, se o mundo
pudesse acabar, então, logicamente, já o teria feito; mas não o
fez, por isso não acaba. E assim, como disse um dos sufis, não
importa quantos tragos do vinho proibido possamos beber, para
sempre carregaremos connosco esta sede furiosa.
Zerzan e Black notaram independentemente certos “elementos de recusa” (a expressão é de Zerzan) que talvez possam ser
vistos como sintomáticos de uma cultura radical do desaparecimento, parte consciente, parte inconsciente, que influencia mais
gente do que qualquer ideia esquerdista ou anarquista. Estes gestos
são contra as instituições, e nesse sentido são “negativos” – mas
cada gesto negativo sugere uma táctica “positiva” para substituir,
e não só recusar, a instituição desprezada 23 .
Por exemplo, o gesto negativo contra a educação escolar é
a “iliteracia voluntária”. Uma vez que não partilho da adoração
liberal da literacia como ferramenta de melhoria social, não me
identifico com os sobressaltos de receio que se fazem ouvir
por todo o lado quando se trata deste fenómeno: até compreendo as criancinhas que recusam os livros e o lixo que está lá
dentro. Mas há alternativas positivas que usam a mesma energia
do desaparecimento. A educação em casa e a aprendizagem de
ofícios manuais resultam numa ausência da prisão que é a escola.
O “Hacking” é outra forma de educação com certas características de invisibilidade.
Um gesto negativo em larga escala contra a política é
simplesmente não votar. A “Apatia” (tédio salutar em relação
ao Espectáculo fatigante) mantém meia nação longe das urnas:
o anarquismo nunca conseguiu tanto! (E nem teve nada a ver
com o falhanço do recente Censo) Mais uma vez, há paralelismos positivos: o estabelecimento de redes como alternativa à
política é coisa que já se faz em muitos níveis sociais, e as
organizações não-hierárquicas granjearam altos graus de
popularidade mesmo fora do movimento anarquista,
simplesmente porque funciona (Act Up e Earth First! são dois
exemplos. Estranhamente, os Alcoólicos Anónimos também
são).
A recusa do trabalho pode tomar as formas de absentismo, de embriaguez no local de trabalho, de sabotagem, de total
falta de atenção – como também pode dar origem a novas formas
de rebelião: mais auto-emprego, participação na “economia
negra” e “lavoro nero”, fraudes com o fundo de desemprego,
outras opções criminosas, cultivar erva, etc. – tudo acções mais
48
49
23
Desprezemos então o IRS e substituamo-lo, sendo nós os receptores dos nossos impostos.
É só uma ideia...
ou menos invisíveis se comparadas com as tácticas tradicionais de
confronto dos esquerdistas, como a greve geral.
Recusar a igreja? Talvez aqui o gesto negativo seja…
ver televisão. Mas as alternativas positivas incluem todas as
formas não-autoritárias de espiritualidade, desde a cristandade
“sem igreja” ao neo-paganismo. As “religiões livres”, como eu
gosto de lhes chamar – pequenas, criadas por si próprias, metade
a sério metade a brincar, influenciadas por cultos tão marginais
como o Discordianismo e o Anarco-Taoísmo – encontram-se
por toda essa América marginal, oferecendo uma “Quarta Via”
florescente, alternativa às grandes igrejas, aos televangelistas
fanáticos e à monotonia e consumismo da New Age. Pode-se
também dizer que a grande recusa da ortodoxia consiste na
construção de “moralidades privadas” no sentido Nietzcheano:
a espiritualidade de “espíritos livres”.
A recusa negativa do lar é ser-se um desalojado, que
muitos consideram uma forma de se tornarem vítimas, não
desejando abraçar a nomadologia pela força. Mas não ter um
lar pode de certa forma ser uma virtude, uma aventura – pelo
menos assim parece ao grande movimento internacional dos
Squatters.
A recusa negativa da Família é claramente o divórcio,
ou outro qualquer sintoma de rotura. A alternativa positiva
advém da conclusão de que a vida pode ser mais feliz sem a
família nuclear, florescendo depois um milhar de novos rebentos: desde pais solteiros a casamentos grupais a grupos de
afinidade erótica. O “Projecto Europeu” luta com unhas e dentes
para defender a “Família” – há misérias Edipianas no coração
do controlo. Existem alternativas – mas devem manter-se invisíveis, principalmente depois da Guerra Anti-Sexo das décadas
de 80 e 90.
O que é recusar a Arte? O gesto negativo não se encontra
no niilismo pateta de uma “greve de Arte” ou na desfiguração
de uma pintura famosa – vê-se bem nos olhos de peixe com que
ficam as pessoas que tão-somente ouvem a palavra. Mas em
que consistiria o gesto positivo? É possível imaginar uma estética que não se comprometa, que não se envolva, que se retire
da História e mesmo do Mercado? Ou que pelo menos se dirija
para aí? Que queira substituir a representação pela presença?
Como se faz sentir a presença na representação ou através dela?
A “Linguística do Caos” segue uma presença que está
em contínuo desaparecimento de todas as ordens da linguagem
e sistemas de significado; uma presença inapreensível,
evanescente, latif (“subtil”, termo da alquimia Sufi) – o Magnetismo Estranho à volta do qual se congregam informações,
formando caoticamente novas ordens espontâneas. Aqui temos
uma estética da fronteira entre Caos e Ordem, a margem, a
área de calamidade onde a avaria do sistema pode equivaler à
iluminação. (para uma explicação da “Linguística do caos”, ver
Apêndice A, e depois ler este parágrafo outra vez.)
O desaparecimento do artista é “a supressão e a realização da arte”, em termos situacionistas. Mas desaparecemos de
onde? E nunca mais damos notícias? Vamos para Croatan – qual
o nosso destino? Toda a nossa arte não passa de um bilhete de
despedida endereçado à História – “Idos para Croatan” – mas
onde fica, e o que é que vamos lá fazer?
Em primeiro lugar, não falamos aqui de um desaparecimento literal do mundo e do futuro; de uma fuga no tempo até
uma “sociedade de lazer originária” do Paleolítico; de nenhuma
utopia eterna, nenhum esconderijo numa montanha remota,
nenhuma ilha; nem de uma utopia pós-Revolucionária – o mais
provável é nem haver Revolução nenhuma! – nem de Vonu, nem
de Estações Espaciais Anarquistas; nem aceitamos um desaparecimento “Baudrillardiano” no silêncio de uma hiperconformidade irónica.
Não discordo com qualquer Rimbaud que escape à Arte
fugindo para a Abissínia mais próxima. Mas não podemos construir uma estética, mesmo uma estética do desaparecimento,
50
51
sobre o simples acto de nunca mais voltar. Afirmando que não
somos uma vanguarda e que não existe uma vanguarda, já escrevemos o nosso “Idos para Croatan”; a questão então é: como
conceber a vida quotidiana em Croatan? Especialmente se não
pudermos dizer que existe no Tempo (Idade da Pedra ou Pós-Revolução) ou no Espaço, quer como utopia, quer como
cidadezinha esquecida do Midwest, quer como Abissínia? Onde
e quando existe o mundo da criatividade sem mediação? Se
pode existir, então existe – quiçá só como espécie de realidade
alternativa que ainda não nos habituámos a perceber. Onde
procurar as sementes (as ervas daninhas emergindo nas fendas
das calçadas) daquele mundo, que pudéssemos plantar neste?
As pistas, as indicações certas para a busca? Um dedo que
aponte para a lua?
Eu creio, ou pelo menos gostaria de propôr, que a única
solução para a “supressão e realização” da Arte está na
emergência da ZAP. Rejeito veementemente a crítica de que a
ZAP não passa de uma obra de arte, embora possa ter alguns
dos traços de uma. O que eu sugiro é que a ZAP é o único
espaço-tempo em que a arte pode acontecer pelo puro prazer
do jogo criativo, e como contribuição autêntica para as forças
que permitem que a ZAP ganhe coerência e se manifeste.
A Arte, no mundo da Arte, tornou-se um bem de
consumo; mas mais fundo que esse problema, está o da própria
re-presentação e a recusa de toda a mediação. Na ZAP será
impossível a arte tornar-se um bem de consumo, será antes um
pré-requisito para a vida. A mediação é mais difícil de vencer,
mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e
“utilizadores” da arte fará com que mais tarde ou mais cedo
(como o disse A.K. Coomaraswamy) “O artista não seja um
tipo especial de pessoa mas toda a pessoa seja um tipo especial
de artista.”
Em suma: o desaparecimento não é necessariamente uma
catástrofe – excepto no sentido matemático de “mudança
topológica súbita”. Todos os gestos positivos aqui esboçados
parecem exigir diferentes graus de invisibilidade, mais do que
o confronto revolucionário tradicional. A “Nova Esquerda”, a
falar verdade, nunca acreditou que existia até se ver no noticiário da noite. A Nova Autonomia, em constraste, ou se vai infiltrar nos media e subvertê-los por dentro, ou nunca vai ser vista.
A ZAP existe não só para além do Controlo como também para
além das definições, para além do olhar e da nomeação como
actos conducentes à escravatura, para além da compreensão
do Estado, para além da capacidade de ver do Estado.
52
53
Tocas de Rato na Babilónia Informativa
A ZAP como forma consciente de táctica radical terá a
sua emergência nas seguintes condições:
Libertação psicológica. Ou seja, devemos perceber os
momentos e espaços nos quais a liberdade é não só possível
como real. Devemos saber de que forma somos genuinamente
oprimidos, e de que forma nos auto-reprimimos ou estamos
emaranhados numa fantasia em que as ideias nos oprimem. O
Trabalho, por exemplo, é uma fonte de infelicidade para muitos
de nós, muito mais do que qualquer política legislativa. A
alienação é para nós mais perigosa do que ideologias desdentadas, ultrapassadas, moribundas. Estar mentalmente viciado em
“ideais” – que de facto não são senão meras projecções das
nossas irritações e das nossas sensações de frustração – nunca
há-de dar livre curso ao nosso projecto. A ZAP não serve de
arauto a uma maravilhosa Utopia Socialista à qual devemos
oferecer as nossas vidas em sacrifício para que os filhos dos
nossos filhos possam respirar uma lufada de ar livre. A ZAP
deve ser a cena da nossa autonomia presente, mas só pode existir
na condição de nos sabermos seres livres.
A Contra-Rede deve expandir-se. Por enquanto é mais
uma abstracção do que uma realidade concreta. As Zines e as
BBS trocam informação, o que é parte vital dos alicerces da
ZAP, mas muito pouca desta informação se prende com bens e
serviços concretos que são necessários à vida autónoma. Não
vivemos no CiberEspaço; sonhar que sim é cair numa CiberGnose, a falsa transcendência do corpo. A ZAP é um lugar físico
e ou lá estamos ou não. Todos os sentidos se devem empregar.
A Teia é como um sexto sentido às vezes, mas deve-se usar em
conjunto com todos os outros – os outros também não devem
alienar-se dela, como numa paródia horrorosa do transe místico.
Sem a Teia, a realização completa do complexo-ZAP seria impossível. Mas a Teia não é um fim em si, é uma arma.
O aparelho de Controlo – o “Estado” – deve (assumamo-lo) continuar a deliquescer e a petrificar-se em simultâneo,
deve continuar na presente rota, em que uma rigidez histérica
serve só para mascarar uma vacuidade, um abismo de poder. À
medida que o poder “desaparece”, a nossa vontade de poder deve
ser o desaparecimento.
Já lidámos com o facto de a ZAP ser vista, ou não, como
“mera obra de arte”. Mas vocês também quererão saber se não
passa de uma pobre toca de rato na Babilónia Informativa, ou
antes um labirinto de túneis, mais e mais interligados, mas
servindo apenas a causa do beco sem saída que é o parasitismo
pirata? A minha resposta é: prefiro ser um rato por detrás da
parede a ser um rato numa jaula – mas também devo insistir
nisto: a ZAP transcende estas categorias.
Um mundo no qual a ZAP consiga enraízar-se, pode-se
parecer com o mundo visto por “P.M.” no seu romance de fantasia bolo’bolo. Talvez a ZAP seja um “proto-bolo”. Mas na medida em que a ZAP existe agora, representa muito mais do que
uma negatividade mundana ou um estado de espírito de desistência contra-cultural. Já mencionámos o aspecto festivo do
momento que não é controlado, que se auto-organiza espontaneamente, mesmo que dure pouco tempo. É uma espécie de
epifania – um auge da experiência social e individual.
A Libertação realiza-se com a luta: esta é a essência do
“triunfo sobre nós mesmos” de Nietzche. A presente tese toma
a vagabundagem de Nietzche como um sinal. É o conceito precursor da deriva, no sentido situacionista e da definição de Lyotard
do trabalho-à-deriva. Podemos prever toda uma nova geografia,
um possível mapa de peregrinações no qual os locais sagrados
são substituídos por auges experienciais e ZAPs: uma verdadeira
psicotopografia, a que pudéssemos chamar “geo-autonomia” ou
“anarcomancia”.
A ZAP pede alguma bestialidade, uma evolução, do
domesticado ao selvagem, um “regresso” que também é um
passo em frente. Pede também um “yoga” do caos, um projecto
de “ordens mais altas” (de consciência, ou simplesmente da
vida), do qual nos podemos aproximar “surfando na crista da
onda do caos”, do dinamismo complexo. A ZAP é a arte da
54
55
vida em levantamento constante, selvagem mas gentil – sedutores sim, violadores não, contrabandistas em vez de piratas
sanguinários, dançarinos em vez de escatologistas.
Admitamos que temos ido a festas onde por uma noite
breve se atingiu uma República de desejos satisfeitos. Não seremos forçados a confessar que a política dessa noite tinha mais
realidade e força do que, vamos lá, o governo Americano
inteiro? Algumas das “festas” que referimos duraram dois ou
três anos. Não valerá a pena imaginar isto e lutar por isto?
Estudemos a invisibilidade, a Teia, o nomadismo psíquico – e
quem sabe aonde chegaremos?
A Linguística do Caos
Ainda não é uma ciência, mas é uma proposta: certos
problemas da linguística podem ser resolvidos vendo a linguagem
como um dinâmico “Campo Caótico”. De todas as respostas à
Linguística de Saussure, duas têm aqui especial interesse: a primeira
é a “Anti-Linguística”, cuja origem no período moderno se pode
detectar na partida de Rimbaud para a Abissínia; na declaração de
Nietzche: “receio bem que enquanto tivermos uma gramática não
teremos bem morto Deus”; no movimento Dada; quando Korzybski
diz que “o Mapa não é o Território”;
na técnica dos cortes de W.S.
Burroughs e a sua fabulosa “descoberta no Quarto Cinzento”; no
Equinócio de Primavera, 1990
ataque de Zerzan à própria linguagem como representação e
mediação.
A segunda é a Linguística de Chomsky, com a sua crença numa
“gramática universal” e os seus diagramas em árvore, representando,
creio eu, uma tentativa de “salvar” a linguagem ao descobrir “invariáveis
ocultas”, do mesmo modo que certos cientistas tentam agora “salvar” a
Física da “irracionalidade” da Mecânica Quântica. Embora como anarquista fosse de esperar que Chomsky tomasse o partido dos niilistas, a
verdade é que a sua bela teoria tem mais em comum com Platonismo
ou Sufismo do que com Anarquismo. A metafísica tradicional descreve
a linguagem como pura luz brilhando refractada pelo vidro colorido dos
arquétipos; Chomsky fala de “gramáticas inatas”. As palavras são folhas,
os ramos são frases, línguas-mãe são ramos mais grossos, famílias de
línguas são troncos, as raízes…? … Estão no céu… ou no ADN. A isto
eu chamo “Hermetalinguística” – é hermética e metafísica. O Niilismo
(ou “Metalinguística Pesada”24 em honra de Burroughs) parece-me ter
conduzido a linguagem a um beco sem saída, ameaçando torná-la
“impossível” (um grande feito mas um tanto deprimente) – enquanto
APÊNDICE A
24
No original está HeavyMetalinguistics, que é um trocadilho pura e simplesmente
intraduzível.
56
57
que Chomsky sustenta a promessa e a esperança de conseguir
que são “reais” mas só existem na medida em que manifestam sub-
uma revelação de última hora, coisa que acho igualmente difícil de
-padrões. Se o sentido/significado é difícil de definir, talvez o seja porque
aceitar. Eu também gostaria de “salvar” a linguagem, mas sem
a própria consciência e a linguagem em consequência, são fractais.
recorrer a nenhuns “Papões” ou supostas regras imaginárias sobre
Deus, dados e Universo
25
.
Acho esta teoria mais satisfatoriamente anarquista do que a
anti-Linguística ou do que o Chomskyanismo. Ela sugere que a lingua-
Voltando a Saussure, mais os seus apontamentos póstumos
gem pode vencer a representação e a mediação, não por ser inata,
sobre os anagramas na poesia Latina, encontramos indícios de um
mas por ser Caos. Assim poderíamos argumentar que toda a experi-
processo que de certo modo escapa à dinâmica signo/significante.
mentação dadaísta (Feyerabend descreve a sua escola de epistemo-
Saussure teve de enfrentar a sugestão de uma espécie de “meta”-
logia científica como “Dada anarquista”) com a poesia do som, com os
-Linguística que ocorre no interior da linguagem em vez de ser imposta
gestos, com os recortes, com as linguagens bestiais, etc., não se desti-
como imperativo categórico do exterior. Logo que a linguagem começa
nava a destruir ou descobrir significados mas a criá-los. O Niilismo
a jogar, como faz nos poemas acrósticos que ele examinou, parece
aponta tristemente para o facto da criação “arbitrária” do significado
ressoar com uma complexidade que se aumenta a si própria. Saussure
pela linguagem. A Linguística do Caos concorda com entusiasmo, acres-
tentou quantificar os anagramas, mas os seus números fugiam-lhe cons-
centando porém que a linguagem pode vencer-se a si mesma, que pode
tantemente (como se estivessem envolvidas equações não-lineares).
criar liberdade no meio da confusão e decadência da tirania semântica.
E depois também começou a encontrar anagramas em todo o lado,
mesmo na prosa Latina. Interrogou-se sobre a possibilidade de já estar
a alucinar – ou se os anagramas não seriam um processo natural e
inconsciente da parole26 . E abandonou o projecto.
Pergunto-me: se processássemos muitos dados desta qualidade
através de um computador, não seríamos capazes de construir modelos
da linguagem em termos de sistemas dinâmicos complexos? As gramáticas não seriam então inatas, mas surgiriam do Caos como “ordens
superiores” capazes de uma evolução espontânea, com um comportamento semelhante ao sentido que Prigogine dá à expressão “evolução
criativa”. As gramáticas podiam ser pensadas como “magnetismos estranhos”, como o padrão oculto que daria origem aos anagramas-padrão
25
Deus joga aos dados com o Universo.
26
A parole Saussureana é a língua em acção, i.e., o uso que os falantes fazem das regras
linguísticas que conhecem. Ver também A Gramática Generativa de Noam Chomsky para
uma dicotomia semelhante à langue/parole de Saussure que é a de competência/desempenho
(ou performance).
58
59
APÊNDICE B
O Sheik Abu Sa’id do Khorassan
Charles Fourier
Brillat-Savarin
O Hedonismo em Prática
Rabelais
Abu Nuwas
Aga Khan II
O grupo de Bonnot era constituído por vegetarianos que só bebi-
R. Vaneigem
am água. Conheceram um fim trágico, mesmo que pitoresco. Legumes
Oscar Wilde
e água, que por si só são coisas excelentes – puro zen, na verdade –
Omar Khayyam
não deviam tomar-se como forma de martírio, e sim como uma forma
Sir Richard Burton
de epifania. A negação do Eu como praxis radical, o impulso dos
Emma Goldman
Levellers, tem um gosto a depressão milenar – e esta corrente da
Junta os teus preferidos à lista...
Esquerda partilha da mesma fonte Histórica que o neo-puritanismo
fundamentalista e a reacção moralizante da nossa década. A Nova
ascese, quer seja praticada por tarados da saúde, sociólogos policiais
de lábios finos, niilistas straight-edge da Baixa, fascistas Baptistas
saloios, torpedos socialistas, Republicanos-livres-de-drogas… em todos
os casos a força motivante é o ressentimento.
Enfrentando a hipocrisia da anestesia contemporânea, vamos
erigir uma galeria de “antepassados”, heróis que continuaram a lutar
contra a má consciência mas que não deixavam de lado o espírito festivo, um grupo genético genial, uma categoria rara e difícil de definir,
grandes cabeças não só para a verdade mas também para a verdade
do prazer, sérios mas não sóbrios, gente cuja disposição luminosa não
os torna lesmas mas autênticas lâminas cortantes, brilhantes sem estar
atormentados. Imaginem um Nietzche sem problemas digestivos. Nem
os tépidos Epicuristas nem os Sibaritas inchados. Um tipo de hedonismo
espiritual, um Caminho do Prazer, a visão de uma boa vida que é nobre
e possível, tendo as suas raízes num sentimento profundo da magnífica
sobre-abundância da realidade.
60
61
APÊNDICE C
A História, o materialismo, o monismo, o positivismo e todos os
outros “ismos” do mundo estão velhos e ferrugentos como ferramentas
Outras Citações
de que já não preciso nem me lembro. O meu princípio é a vida, o meu
fim é a morte. Quero viver a minha vida intensamente para tragicamente
a aproveitar.
Naquilo que nos toca, ele destacou-nos para sermos desempregados permanentes. Afinal, se nos quisesse para trabalhar, não teria criado
tal vinho! Com um odre cheio dele, Senhor, correrias por aí a perpetrar
Economia?
Esperas pela revolução? A minha há muito que começou! Quando estiveres pronto (Caramba, como se espera!) não me importo de te
fazer alguma companhia. Mas quando parares, continuarei no meu caminho louco e triunfal, que me leva à grande e sublime conquista do Nada!
Qualquer sociedade que construas terá limites. Fora dos limites de toda
Jalaloddin Rumi, Diwan-e Shams
a sociedade os insubmissos e os heróicos vaguearão, com os seus
pensamentos selvagens e virginais – esses que não conseguem viver
sem planear terríveis deflagrações rebeldes!
Eu lá estarei!
E depois de mim, como antes de mim, haverá aqueles que aos
seus pares dizem : “Olhai para vós em vez de olhardes para Deuses e
ídolos. Descobri o que há de escondido em vós; exponde-o à luz: revelaivos!”
Aqui, com um pão debaixo do ramo da Árvore, uma jarra de vinho,
Porque toda a pessoa que procura na sua alma e de lá extrai o
um livro de versos – e Tu que a meu lado cantas no bosque selvagem…
que andava misteriosamente escondido, é uma sombra que causa um
O bosque selvagem basta como Paraíso. Ah, Amor, enche o cálice que
eclipse em qualquer forma de sociedade que exista debaixo do sol!
lava o Hoje do arrependimento de Ontem, do medo de Amanhã – Ama-
Todas as sociedades tremem quando a aristocracia escarninha dos vaga-
nhã? – Ora, nessa altura posso estar com os Sete mil anos de Ontem.
bundos, dos inacessíveis, dos únicos, dos governantes do ideal, dos
Ah, Amor! Pudéssemos nós com o Destino conspirar para capturar o
conquistadores do nada, avança resolutamente.
triste Modelo de Todas as Coisas, para o partir em pedaços – e depois
Vinde, iconoclastas!
“Já os céus agoirentos se aquietam e escurecem!”
refazê-lo, mais próximo dos desejos do coração!
Omar Fitzgerald
62
Renzo Novatore Arcola, Janeiro de 1920
63
Divagação Pirata
O Jantar de Convívio
O Capitão Bellamy
A mais alta ordem da sociedade humana encontra-se no salão.
Daniel Defoe, com o pseudónimo de Capitão Charles Johnson,
Nas reuniões elegantes e refinadas das classes aristocráticas não existe
escreveu o primeiro texto de referência sobre os piratas, A General
a interferência impertinente da legislação. Admite-se perfeitamente a
History of the Robberies and Murders of the Most Notorious Pirates. De
individualidade de cada um. Logo o interrelacionamento é perfeitamente
acordo com o Jolly Roger de Patrick Pringle, o recrutamento de piratas
livre. Conversa-se continuamente, brilhantemente, e de muita coisa.
ocorria mais frequentemente entre desempregados, servos foragidos e
Formam-se grupos de acordo com a atracção. Estes dispersam-
criminosos aguardando a deportação. O alto mar imediatamente liquida-
-se continuamente, e reformam-se debaixo da mesma influência subtil,
va desigualdades de classe. Defoe conta-nos que um pirata chamado
que tudo permeia. A deferência mútua permeia todas as classes, e a
capitão Bellamy fez este discurso ao capitão de um navio mercante
mais perfeita harmonia alguma vez atingida nas complexas relações
que havia capturado. Este capitão recusara uma oferta para se juntar
humanas, mantém-se nas mesmas circunstâncias que Legisladores e
aos piratas.
Homens de Estado temem como condições de inevitável anarquia e
“Lamento imenso, mas não vos restituirei o vosso barco, pois
detesto prejudicar alguém quando não há nisso vantagem para mim;
confusão. Se há leis de etiqueta alguma, são meras sugestões de princípios interiorizados por cada mente individual.
maldito seja, temos de afundá-lo, mesmo que vos seja útil. E vós sois
É concebível que em todo o progresso futuro da humanidade,
um cachorrinho sorrateiro, como são todos aqueles que se submetem
com os inumeráveis elementos de desenvolvimento que se revelam
às leis dos ricos, escritas para sua segurança, e nunca a dos outros. Os
nesta época, a sociedade, em todas as suas relações, não atinja um
poltrões não têm coragem de defender doutra maneira aquilo que obtive-
grau de perfeição equivalente ao que certas porções de si mesma, em
ram por vigarice; mas sede vós mesmos malditos com eles: malditos
certas relações especiais, já atingiram?
sejam eles, essa matilha de velhacos manhosos, e vós, que os servis,
Suponhamos que as interacções verificadas no salão são regula-
sois um bando de imbecis e miolos-de-galinha. Eles difamam-nos, oh
das por legislação específica. Que o tempo que cada cavalheiro dispõe
sim, quando a única coisa que nos distingue é que eles roubam os
para falar a cada senhora é fixo por dada lei; que os seus lugares senta-
pobres a coberto da Lei, nós saqueamos os ricos, protegidos só pela
dos ou de pé são precisamente regulados; os assuntos de que podem
nossa coragem. Não estaríeis melhor entre as nossas fileiras do que a
falar, bem como o tom de voz e gestos de acompanhamento com que
mendigar emprego junto desses vilões?”
cada um deve ser tratado, são cuidadosamente definidos, e tudo isto
E quando o capitão replicou que a sua consciência nunca lhe
permitiria violar as leis de Deus e do homen, Bellamy prosseguiu:
“Vós sois um patife de consciência infernal, eu sou um príncipe
para prevenir a desordem e a violação dos direitos e privilégios dos
outros. Poderíamos imaginar melhor maneira de converter a interacção
social numa escravatura intolerável e uma confusão desesperante?
livre, e tenho tanta autoridade para combater o mundo inteiro como
aquele que possui cem velas no mar, mais um exército de cem mil
S. Pearl Andrews, The Science of Society
homens em terra; e é isto que me diz a minha consciência. Mas não se
pode argumentar com tais cachorros ranhosos, que permitem aos seus
superiores todos os pontapés que bem lhes apetecer.”
64
65
Índice
Prefácio ........................................................................................... 3
Utopias Piratas ............................................................................... 7
Aguardando a Revolução ............................................................ 10
A Psicotopologia da Vida Quotidiana ....................................... 14
A Rede e a Teia ............................................................................ 22
“Idos para Croatan” ..................................................................... 32
A Música como Princípio Organizacional ................................ 43
A Vontade de Poder como Desaparecimento ............................ 48
Tocas de Rato na Babilónia Informativa ................................... 54
Apêndice A ................................................................................... 57
Apêndice B .................................................................................... 60
Apêndice C .................................................................................... 62
Se encontrares este livro à venda, por um valor superior a
400$, não o compres.
Rouba-o!
Download

Zona Autónoma Provisória