Prefácio Zona Autónoma Provisória AUTOR Hakim Bey TÍTULO ORIGINAL Temporary Autonomous Zone TRADUÇÃO a partir da edição original (Autonomedia, 1991) Anti-© 1999 Discordia! Apartado 2409, 4700 Braga [email protected] Envolto em grande mistério, o enigmático autor deste ensaio esconde-se sob o pseudónimo de Hakim Bey. Visionário, místico e sábio autodidacta, tem escrito diversos textos e manifestos que abrangem áreas tão distintas como o anarquismo, o paganismo, o primitivismo, a física especulativa, a linguística do caos, o Heretismo no Islão, a subversão no ciberespaço... Um largo espectro de interesses que enriquece qualitativamente as suas ideias e nos divulga importante informação através dos seus escritos. Inspirado por alguns anarquistas do passado, que se opunham a todos os regimes estabelecidos procurando incansavelmente um presente de acção e autonomia, Hakim Bey propõe o levantamento de zonas autónomas, que libertem uma área (de terra, tempo, ou imaginação) existindo provisoriamente, e que de seguida se dissolvam para voltar a reaparecer noutro lugar, noutra altura, antes que o estado as possa esmagar. A “Zona Autónoma Provisória” emerge espontaneamente, como uma insurreição mágica, cria-se para a realização dos seus objectivos e desaparece sem deixar vestígios. Hakim Bey não se reclama como autor da ideia, simplesmente tenta reunir algumas referências para definir um fenómeno que já existe: grupos de indivíduos que se associam por afinidade, para conseguirem um espaço real de liberdade, sem terem de esperar pela abstracção de uma utopia a acontecer num futuro pós-revolucionário. Significa interiorizar a revolta e reivindicar a autonomia, fazendo nascer a dissidência na prática, no dia-a-dia, recusar o domínio em todas as actividades da nossa existência como indivíduos. Muito nos desperta a possibilidade já confirmada do estabelecimento (ainda que temporário) de zonas autónomas ou espaços libertos do controlo político-legal, onde foram abolidos os valores 3 autoritários e a cultura da alienação. Veja-se o exemplo a nível mundial e já presente em Portugal da existência de centros sociais okupados, encontros anarquistas, festas livres, encontros de amantes da natureza, festas da rua, manifestações espontâneas e sem líderes... É o surgimento duma cultura libertária ainda não descrita nos estatutos previstos e afastada do mediatismo oferecido tanto pelos meios de comunicação e informação institucional, como por outras engenhosas formas de controlo e integração social. A sua existência é mantida através de redes marginais de fanzines, distribuidoras de arte subversiva, boletins contra-informativos, música anti-espectáculo e outras inteligentes formas de comunicação, escondidas da manipulação corrente. Sendo impossíveis de definir quer pela originalidade e autenticidade da sua existência, quer pela magia do acontecimento espontâneo e quase secreto, as experiências deste tipo possibilitam infinitas maneiras de superação e rotura com o mundo estabelecido. Com a edição deste livro, a Discordia! inicia a sua existência editorial, não se limitando contudo a este tipo de actividade. Como editora pretende editar livros muito maus, que façam mal e causem os maiores estragos aqueles que no dia-a-dia roubam as nossas vidas impondo-nos as suas leis, as suas mentiras e o seu miserável progresso. Pretende agitar as águas da discórdia, para que a união das unicidades discordantes destrua as figuras e imagens reais de constrangimento ao indivíduo. DISCÓRDIA! 4 «… porém, desta vez, venho como o vitorioso Dioniso, que transformará o mundo num feriado permanente… não que eu tenha muito tempo…» Nietzche na sua última carta “louca” a Cosima Wagner Utopias Piratas Os vagabundos do mar e corsários do século XVIII criaram uma “rede de informação” que percorria o planeta: ainda que primitiva e originariamente dedicada a negócios sujos, a rede funcionava admiravelmente. Espalhadas pelo globo estavam ilhas, esconderijos remotos onde os navios se podiam abastecer de água e outras provisões, onde os espólios de ataques se podiam trocar tanto por artigos de luxo como por bens de primeira necessidade. Algumas destas ilhas sustentavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que viviam resoluta e conscientemente fora do amplexo da lei, mesmo que a sua vida alegre fosse curta. Há algum tempo atrás andei a pesquisar material acessório sobre pirataria, esperando encontrar algum estudo sério sobre estes enclaves – aparentemente nenhum historiador achou este tópico digno de análise (William Burroughs já o mencionou, bem como o falecido anarquista Inglês Larry Law, mas nunca se conduziu nenhum estudo sistemático). Voltei às fontes iniciais e desenvolvi a minha própria teoria, sobre a qual discutirei alguns aspectos neste ensaio. Chamei a estas sociedades “Utopias Piratas”. 7 Recentemente, Bruce Sterling, um dos expoentes da ficção científica CyberPunk, publicou um romance localizado num futuro próximo que se baseia na seguinte premissa: a decadência dos sistemas políticos levar-nos-á a uma proliferação descentralizada de experiências sociais: gigantescas corporações geridas pelos seus trabalhadores, enclaves independentes dedicados à “pirataria de dados”, enclaves eco-social-democratas, enclaves onde o trabalho foi abolido1 , zonas anarquistas livres, etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é a Rede; os enclaves (tal como o título do livro) são Ilhas na Rede. Os Assassinos medievais fundaram um “Estado” que consistia numa rede de vales remotos e castelos, todos separados por milhares de quilómetros. Estrategicamente invulnerável a qualquer invasão, cujas ligações se efectuavam pelo fluxo de informação proveniente de agentes secretos, estava guerra com todos os governos e era dedicado apenas ao conhecimento. A tecnologia moderna, culminando no satélite-espião, transforma este género de autonomia num sonho romântico. Não haver mais ilhas piratas! No futuro, esta mesma tecnologia, liberta de todo o controlo político, poderia tornar possível todo um mundo de zonas autónomas. Por enquanto este conceito não é mais que ficção científica – especulação pura. Estaremos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca passear numa terra governada apenas pela liberdade, nem que seja por momentos? Estaremos limitados apenas a nostalgias do passado ou do futuro? Teremos que esperar até que o mundo inteiro se liberte do controlo político para que (nem que seja) um de nós possa afirmar um conhecimento da liberdade? A lógica e a emoção unem-se para condenar tais suposições. A razão postula que 1 ninguém pode lutar por aquilo que não conhece; e o coração revolta-se ao imaginar um universo tão cruel que permita perpetrar tais injustiças na nossa geração humana. Dizer “Não serei livre até que todos os seres humanos (ou criaturas com entendimento) o sejam” não é mais que ceder a um torpor abençoado, abdicar da nossa humanidade, definirmo-nos como derrotados. Creio que, ao efectuarmos extrapolações a partir de histórias passadas e futuras sobre “ilhas na Rede”, podemos colher provas de que um certo tipo de “enclave livre” não só é possível na nossa época, como também existe. Todas as minhas pesquisas e especulações se cristalizam no conceito da ZONA AUTÓNOMA PROVISÓRIA (a partir daqui referida pela sigla ZAP). Apesar da síntese que faz do meu pensamento, não pretendo que a ZAP seja tomada por mais do que um ensaio (“tentativa”), uma sugestão, quase um delírio poético. Apesar do entusiasmo por vezes exorbitante da minha linguagem, não tento construir um dogma político. De facto, evito deliberadamente definir a ZAP – contorno o assunto, disparando feixes de luz exploratória. Por fim, a ZAP explica-se a si própria. Se a expressão se tornasse algo corrente seria compreendida sem dificuldade… Compreendida em acção. Zerowork enclaves no original. 8 9 Jackboot no original. Nome das botas que calçavam os soldados nazis, em Inglês a palavra tornou-se sinónimo de fascismo e ditadura. leis da História. Se o Estado é História, como reclama, então a insurreição é o momento proibido, uma negação imperdoável da dialéctica – trepando pelo poste acima para sair do buraco fumarento, uma manobra xamânica executada num ângulo que parece “contradizer” o Universo. A História diz que a Revolução atinge “permanência”, ou pelo menos duração, enquanto que o levantamento é temporário. Desta forma, um levantamento é algo que atinge um auge, um extremo em comparação com os padrões habituais da consciência/experiência. Tal como os Festivais, os levantamentos não são uma coisa de todos os dias de outro modo, não transcenderiam a normalidade. Contudo, tais momentos de intensidade dão forma e significado a toda uma vida. O xamã regressa, porque não se pode ficar empoleirado no telhado para sempre, mas entretanto as coisas mudaram, houve deslocações e integração, ocorreu a diferença. Podem bem dizer que isto é a sabedoria do desespero. Então e o sonho anarquista, o Não-Estado, a Comuna, a Zona Autónoma com duração, uma sociedade livre, uma cultura livre? Teremos que abandonar essa esperança a troco de algum acte gratuit existencialista? Não interessa mudar a consciência, interessa mudar o mundo. Aceito esta crítica, é justa. Tenho contudo duas coisas a acrescentar; em primeiro lugar, a revolução ainda não chegou a lado nenhum no que toca à consecução destes sonhos. A visão ganha vida na altura do levantamento – mas assim que triunfa a “Revolução” e regressa o Estado, o sonho e o ideal já foram traídos. Não abdiquei da esperança nem deixei de esperar que ocorram mudanças – mas desconfio da palavra revolução. Em segundo lugar, mesmo que proponhamos em vez da atitude revolucionária uma ideia de insurreição que floresce espontaneamente como cultura anarquista, a nossa situação histórica não é propícia a tão vasta empresa. Nada, a não ser um martírio fútil, adviria de uma colisão frontal com o Estado em fase terminal, o Estado macrocapitalista ultra-informado, o império do 10 11 Aguardando a Revolução C omo é que o “mundo às avessas” consegue sempre endireitar-se? Porque é que a reacção segue sempre a revolução, como temporadas no inferno? Um Levantamento, ou a forma mais próxima do Latim, Insurreição, são palavras usadas pelos historiadores para rotular revoluções falhadas – movimentos que não coincidem com a curva esperada, a consensual revolução, reacção, traição, a criação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo – é o girar da roda, uma e outra vez, ao seu ponto mais alto: a bota militar 2 esmagando a face humana para sempre. Ao estabelecer uma recusa da curva, o Levantamento sugere a possibilidade de um movimento exterior à espiral Hegeliana desse “progresso” que subrepticiamente não é senão um ciclo fechado. Surgo – subir, erguer. Insurgo – levantar-se a si mesmo. Uma prova de força. Um adeus a essa paródia infeliz da roda Kármica, futilidade revolucionária exibida pela História. A palavra de ordem “Revolução!”, de toque de alarme, converteu-se em toxina, uma armadilha maligna e pseudoGnóstica do destino, um pesadelo em que não importa quanto lutemos, porque nunca escaparemos a essa Era malévola, esse íncubo, o Estado, um a seguir ao outro, todos os “céus” governados por mais um anjo maléfico. Se a História é “Tempo”, como se pretende, então o levantamento é um momento que transcende o tempo e viola as 2 espectáculo e do simulacro. Ele tem as armas apontadas para nós, ao passo que as nossas pistolinhas não encontram outro alvo que não uma histeria, uma vacuidade rígida, um espectro capaz de sufocar qualquer faísca num ectoplasma informativo, uma sociedade rendida, governada pela imagem do polícia e o olho absorvente do ecrã televisivo. Resumindo, não apresentamos a ZAP como fim em si própria, substituta de todas as outras formas de organização, tácticas, objectivos. Recomendamo-la porque pode providenciar as qualidades enriquecedoras que encontramos no levantamento sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A ZAP é como um levantamento que não entra em confronto directo com o Estado, uma operação guerrilheira que liberta uma área (física, temporal, imaginária) e em seguida dissolve-se para se materializar noutra altura, noutro lugar, antes que o Estado possa esmagá-la. Como o Estado está mais preocupado com simulacros do que com verdadeira substância, a ZAP pode “ocupar” estas áreas clandestinamente e prosseguir nos seus propósitos festivos durante algum tempo em paz relativa. Talvez algumas ZAPs pequeninas tenham durado vidas inteiras por ninguém reparar nelas, como enclaves de saloios 3 – porque nunca houve interacção com o Espectáculo, nunca emergiram dessa vida real que os agentes da Simulação não conseguem ver. A Babilónia toma essas abstracções por realidades; é precisamente dentro desta margem de erro que a ZAP pode existir. Dar à luz uma ZAP pode exigir tácticas de violência e de defesa, mas a sua maior força está na sua invisibilidade – o Estado não pode reconhecê-la porque a História nunca a definiu. Assim que a ZAP for categorizada (representada, mediada) deve desaparecer, e desaparecerá, deixando para trás uma casca vazia, para aparecer noutro lado qualquer, invisível uma vez mais, porque o Espectáculo não sabe defini-la com os seus termos limitados. A Zap é assim uma estratégia perfeita para uma era em que o Estado é omnipresente e todo-poderoso e ao mesmo tempo cheio de falhas e zonas obscuras. Como a ZAP é um microcosmos desse “sonho anarquista” que é uma cultura livre, não posso imaginar melhor táctica para começarmos a perseguir esse sonho, enquanto experimentamos alguns dos seus benefícios aqui e agora. Em suma, o realismo exige que desistamos não só de esperar pela “Revolução” como também de a querer. O “Levantamento”, sim – sempre que possível e mesmo que haja violência. Os “espasmos” do Estado serão “Espectaculares”, mas na maioria dos casos a melhor política, a mais radical, será a recusa de participar na violência espectacular, efectuando uma retirada da área do Espectáculo, do simulacro, desaparecer. A ZAP é um acampamento de guerrilheiros ontológicos: atacam e fogem. A tribo toda anda sempre em corropio, mesmo que a tribo seja composta de dados informáticos na rede. A ZAP deve ser capaz de se defender; só que tanto o “ataque” como a “defesa” devem, se possível, evitar a imitação da violência do Estado, que não tem significado nenhum. O ataque desencadeia-se sobre as estruturas do controlo, essencialmente sobre ideias; a defesa é a invisibilidade, que é uma arte marcial, e a “invulnerabilidade”, uma “arte oculta” entre as artes marciais. A Máquina de Guerra Nómada conquista sem que ninguém perceba e deixa o local antes que o mapa se ajuste à nova realidade. Quanto ao futuro – só os autónomos podem planear a autonomia, organizá-la, criá-la. É uma prova de força. O primeiro passo tem semelhanças com o satori 4 – a percepção de que a ZAP começa com um simples acto de consciência. 3 4 Hillbillies no original. Saloios americanos (N. do T.). 12 Relativo à filosofia Zen/Religião Budista. 13 O conceito da ZAP surge em primeiro lugar duma crítica da Revolução e dum apreço pela Insurreição. A primeira afirma que a última é um falhanço; porém, achamos que o Levantamento é uma possibilidade bem mais interessante, partindo do padrão de uma psicologia da libertação, do que todas as revoluções “bem sucedidas” da burguesia, dos comunistas, dos fascistas, etc. A Segunda força generativa que sustenta a ZAP, desenvolve-se a partir desse acontecimento histórico a que chamo “o fecho do mapa”. O último pedaço de terra não reclamado por qualquer Estado-Nação foi comido em 1899. O nosso é o primeiro século sem terra incognita, sem uma fronteira. A Nacionalidade é o mais alto princípio no governo do mundo, não há um penedo nos mares do Sul que ainda esteja aberto, não há um vale remoto, nem mesmo a lua ou os planetas estão livres. Esta é a apoteose dos gangsters do território. Não há um metro quadrado da Terra sem polícias ou impostos... Em teoria. O “mapa” é uma grelha política abstracta, uma vigarice gigantesca mantida pelo condicionamento do cavalo que segue a cenoura (condicionamento criado pelo Estado, que é um perito); até que o mapa se converta em território para a maioria das pessoas – acaba-se a “Ilha das Tartarugas”, que passa a ser “Estados Unidos”. Ainda assim, como o mapa é uma abstracção, não pode cobrir a terra com a precisão de 1:1. Nas complexidades fractais da verdadeira geografia o mapa só vislumbra grelhas dimensionais. Escondidas, imensidades inexploradas escapam às sondas. O mapa não é exacto porque o mapa não pode ser exacto. Assim, fica fechada a porta à Revolução, mas não à insurgência. Por enquanto, concentrar-nos-emos em emergências súbitas de energia, procurando não nos prender nas malhas das soluções permanentes. E o próprio mapa está fechado, mas a zona autónoma está em aberto. Metaforicamente, desdobra-se nas dimensões fractais que a Cartografia do Domínio não vê. Aqui devemos introduzir o conceito de psicotopologia ( e -topografia) como uma ciência alternativa a essa que o Estado tem ao reconhecer o terreno e fazer mapas, perpetuando um “imperialismo psíquico”. Só a psicotopografia pode desenhar mapas da realidade à escala 1:1, porque só a mente humana fornece complexidade suficiente para moldar o real. Mas um mapa nessa escala não pode “controlar” o seu território porque é virtualmente idêntico ao seu território. Apenas pode ser utilizado para sugerir, num certo sentido, apontar para certas características. Estamos à procura de “espaços” (geográficos, culturais, sociais, imaginários) com potencial bastante para florescerem como zonas autónomas – e procuramos tempos em que estes espaços estejam relativamente abertos, quer por negligência do Estado, quer por terem escapado à atenção dos cartógrafos; não importa realmente a razão. A Psicotopologia é a arte de procurar uma ZAP em potencial, como a arte do vedor (adivinho que pressente a água com um ramo de árvore bifurcado). Os fim da Revolução e do mapa não é mais que a fonte negativa da ZAP; ainda resta muito para ser dito sobre as inspirações positivas. A reacção só por si não consegue fornecer a energia necessária para “manifestar” uma ZAP. Um Levantamento tem que servir para qualquer coisa. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural da ZAP. A família é a unidade-base da sociedade consensual, mas não da ZAP (“Famílias! Como as detesto! Açambarcadoras do amor!” – Gide). A família nuclear, com as suas “neuras 14 15 A Psicotopologia da Vida Quotidiana edipianas” inerentes, parece ter sido inventada no Neolítico, como uma resposta à “revolução agrícola” com a sua escassez e hierarquia impostas. O modelo do Paleolítico é ao mesmo tempo mais essencial e mais radical: o bando. As sociedades típicas de caçadores/recolectores, nómadas ou semi--nómadas, são constituídas por bandos de cerca de 50 pessoas. No interior de sociedades tribais maiores a estrutura do bando é ocupada pelos clãs, ou por grupúsculos como sociedades secretas/ iniciáticas, sociedades caçadoras ou guerreiras, sociedades baseadas no sexo, “repúblicas infantis”, e por aí fora. Se a família nuclear é produto da escassez (daí o açambarcamento), o bando é resultado da abundância – tendo a generosidade por resultado. A família é fechada: pela genética, pela posse masculina da mulher e das crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. O bando está aberto – não a toda a gente, certamente, mas a quem sinta afinidades com ele, os iniciados que juraram preservar laços de amor. O bando não é parte de uma hierarquia maior, é antes integrante de um padrão horizontal gerado por costumes, parentescos alargados, contratos e alianças, afinidades espirituais, etc. (mesmo agora, as sociedades Índias da América preservam certos aspectos desta estrutura). Na nossa sociedade da Simulação pós-Espectacular, há forças operantes – a maioria invisíveis – tentando destruir a família para ressuscitar o bando. Abalos na estrutura do Trabalho ressoam na “estabilidade” arruinada da unidade-lar e da unidade-família. O “bando” de cada um, hoje em dia, inclui amigos, ex-esposos/as e amantes, pessoas que conhecemos em empregos e reuniões diferentes, grupos afins, redes de interesses especiais, redes de correspondência postal, etc. A família nuclear torna-se cada vez mais uma armadilha, um buraco na estrada cultural, uma implosão neurótica e secreta de átomos divididos – e a contra-estratégia mais óbvia emerge espontaneamente na redescoberta quase inconsciente da possibilidade mais arcaica e também mais pós-industrial do bando. 16 A ZAP como festival. Stephen Pearl Andrews ofereceu como imagem de uma sociedade anarquista o jantar de convívio, no qual todas as estruturas da autoridade se dissolvem na convivialidade e no festejo (ver Apêndice C). Aqui podemos também invocar Fourier com o seu conceito dos sentidos como bases do desenvolvimento social – “toque-rotina” e “gastrosofia”, e o seu elogio às implicações esquecidas do paladar e do olfacto. Os antigos conceitos de Jubileu e Saturnália 5 têm a sua origem numa intuição de que certos acontecimentos se colocam fora do alcance do “tempo profano”, a vara de medição do Estado e da História. Estes feriados ocupavam literalmente fissuras no calendário – intervalos intercalares. Por volta da Idade Média, perto de um terço do ano era para feriados. Talvez os motins contra a alteração do calendário tivessem menos a ver com os “onze dias a menos” do que com a percepção de que a ciência imperial conspirava para fechar estas fissuras no calendário, nas quais se tinha acumulado a liberdade das pessoas – um coup d´état, uma cartografia compulsiva do ano, a captura do próprio tempo, transformando o cosmos orgânico num Universo-relógio. A morte do festival. Os participantes na insurreição não podem deixar de notar nos seus aspectos festivos, mesmo no meio do perigo, do risco, da luta armada. O Levantamento é como uma Saturnália que se libertou (ou que foi forçada a desaparecer) do seu intervalo intercalar e agora tem toda a liberdade de aparecer como e quando lhe apetecer. Liberto de tempo e lugar, ainda assim possui um faro para a maturidade dos acontecimentos, e uma afinidade com o genius loci. A ciência da psicotopologia indica o “fluir de forças” e os “locais de poder” (para nos apro5 Festival de Saturno, de 17 a 24 de Dezembro. Trocavam-se presentes e os escravos gozavam de igualdade com os seus mestres. Este costume sobreviveu em variadas formas até à Idade Média. Em certas cortes Europeias coroava-se o bobo rei por um dia. 17 priarmos de algumas metáforas ocultistas) que localizam a ZAP no espaço e no tempo, ou que pelo menos nos ajudam a definir a sua relação com o tempo e o local. Os Media convidam-nos a “celebrar os momentos da nossa vida” com a unificação falsificada do bem de consumo e do espectáculo, o famoso Não-Acontecimento de pura representação. Como resposta a esta obscenidade temos, por um lado, o espectro da recusa (explorado pelos Situacionistas, por John Zerzan, Bob Black, etc.) – por outro lado, a emergência de uma cultura festiva retirada e até escondida daqueles que pretendem gerir o nosso lazer. “Fight for the right to party” (“Luta pelo direito a festejar”) não é realmente uma paródia das lutas radicais mas uma nova manifestação das mesmas, bem apropriada a uma era que oferece televisões e telefones como meio de “alcançar e tocar” outros seres humanos, maneiras de se estar presente... Pearl Andrews tinha razão: o jantar de convívio é já “a semente da nova sociedade que toma forma no casulo da velha”. A “reunião tribal” ao estilo da década de 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, os círculos gay… as festas no Harlem de 1920, casas nocturnas, banquetes, pic-nics libertários de outrora – devemo-nos dar conta de que estes espaços já são, de certa forma, zonas libertas, ou pelo menos ZAPs em potência. Quer esteja aberta a um grupo restrito de amigos, como o jantar, ou milhares de convivas, como numa Rave, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”; pode ser planificada, mas senão acontecer por acaso, é um falhanço. A espontaneidade é um elemento crucial. A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos conjugam esforços para atingir desejos comuns, quer sejam desejos de boa comida e alegria, dança, conversas, as artes da vida, quer seja o desejo erótico, ou o desejo de criar uma obra de arte comunal, ou chegar a um extâse bem-aventurado – resu- mindo, uma “união de egoístas”, como disse Stirner, na sua forma mais simples – ou então, nas palavras de Kropotkine, um impulso biológico básico de ajuda mútua (aqui também devíamos mencionar a “economia do excesso” de Bataille e a sua teoria da cultura do potlatch 6 ). De importância vital para a expressão da realidade da ZAP, é o conceito de nomadismo psíquico (ou como lhe chamamos por piada – “cosmopolitanismo sem raízes”). Aspectos deste fenómeno foram já discutidos por Deleuze e Guattari em Nomadology and the War Machine, por Lyotard em Driftworks e por outros autores na edição sobre o tema do “Oásis” da publicação Semiotext(e). Usamos o termo “nomadismo psíquico” em detrimento de “nomadismo urbano”, “nomadologia”, “trabalho de dispersão (driftwork)”, etc., apenas para que possamos reunir todas estas ideais num complexo vagamente estruturado, para ser estudado à luz da aparição da ZAP. “A Morte de Deus”, que de certo modo funcionou como uma descentralização do projecto civilizacional Europeu, gerou uma mundividência multi-perspectivada e pós-ideológica capaz de se movimentar sem estar presa às suas raízes entre filosofia e mito tribal, entre ciências da natureza e Taoísmo – possibilitando a capacidade de ver pela primeira vez como se através dos olhos de algum insecto dourado, cada faceta mostrando um mundo inteiramente diferente. Esta visão foi todavia conquistada, por vivermos numa época em que a velocidade e o “fetichismo do bem de consumo” criaram uma unidade falsa e tirânica que tende a diluir a diversidade cultural e individual, fazendo com que um lugar “seja tão bom como outro qualquer.” Este paradoxo cria “ciganos”, viajantes psíquicos impelidos pelo desejo ou pela curiosidade, 18 19 6 Potlatch: festa dos nativos americanos, com grande distribuição e destruição de presentes. vagabundos com lealdades pouco arreigadas (e verdadeiramente desleais ao “projecto Europeu”, que perdeu já todo o charme e vitalidade), não acorrentados a nenhum tempo ou local particulares, procurando diversidade e aventura… Esta descrição não cobre só a classe-X, que são os artistas e intelectuais, mas também os trabalhadores migrantes, os refugiados, os desalojados, os turistas, a cultura das roulottes – e ainda as pessoas que “viajam” pela Internet, que talvez nunca venham a sair dos seus quartos (ou aqueles que, como Thoreau, “viajaram muito – em Concord 7 ”); e por fim “toda a gente” está incluída, todos nós, que vivemos num percurso por automóveis, férias, televisões, livros, filmes, telefones, mudamos de emprego, de “estilo de vida”, religiões, dietas, etc., etc. O Nomadismo Psíquico como táctica, aquilo a que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam “a máquina de guerra”, transforma o paradoxo passivo num paradoxo activo e talvez até “violento”. As últimas agonias e estertores de “Deus” no seu leito de morte já se fazem ouvir há tanto tempo – materializados no Capitalismo, no Fascismo e no Comunismo, por exemplo – que ainda sobra muita “destruição criativa” a empreender por parte de comandos pós-Bakuninistas e Pós-Nietzcheanos ou apaches (literalmente “inimigos”) do velho consenso. Estes nómadas praticam a razzia, são corsários, são um vírus; desejam a ZAP e precisam dela, acampamentos de tendas negras debaixo das estrelas do deserto, interzonas, oásis secretos, fortificados, ligados por caravanas em rotas ocultas, pedacinhos de selva e terra-má “libertados”, zonas de acesso não recomendado 8 , mercados negros, bazares clandestinos. Estes nómadas cartografam as suas rotas olhando para estrelas bizarras, que podem ser cachos luminos de informação no ciberespaço, ou alucinações, quem sabe. Abram sobre a mesa um mapa da terra; sobreponham um mapa das mudanças políticas; por cima desse, um mapa da Rede, especialmente da Contra-Rede, com típico ênfase no tráfico de informação e logística clandestinas – e finalmente, cobrindo tudo, o mapa 1:1 da imaginação criativa, da estética, dos valores. A grelha resultante anima-se com explosões energéticas inesperadas, coágulos de luz, túneis secretos, surpresas. 7 Henry David Thoreau (1817 – 1862) nasceu em Concord, Massachusetts, e viajou muito por lá, mas não foi grande viajante “fisicamente”. 8 no-go areas no original. 20 21 e ambíguo que precisa de uma secção só para si. Já falámos da Rede, que se pode definir como a totalidade da transferência de informação e comunicação. Algumas destas transferências são privilegiadas e exclusivas de certas elites, o que dá à Rede um aspecto hierárquico. Outras transacções estão ao alcance de todos – por isso a Rede também tem um aspecto horizontal, não-hierárquico. Dados Militares e dos Serviços Secretos estão muito controlados, como a informação pertinente a operações bancárias e monetárias. Mas na maior parte dos casos, o telefone, o serviço postal, as bases de dados públicas, estão à mão de todos e de qualquer um. Por isso, no interior da Rede começou a emergir uma sombria Contra-Rede a que chamaremos a Teia – como se a Rede fosse uma rede de pesca e a Teia um monte de teias de aranha nos interstícios e nas falhas da Rede. Em geral usaremos o termo Teia para designar a estrutura alternativa/horizontal de transmissão de dados, a rede não-hierárquica, reservando o termo Contra-Rede para indicar o uso clandestino, ilegal e rebelde da Teia, incluindo a pirataria informática e outras formas de sugar os recursos da Rede. Rede, Teia e Contra-Rede são partes do mesmo complexo, do mesmo padrão – as suas fronteiras intersectam-se muitas vezes. Estas palavras não definem áreas, sugerem tendências.A título de digressão: antes de condenarem a Teia ou Contra-Rede pela sua natureza “parasitária”, o que nunca pode ser uma verdadeira força revolucionária, perguntem-se a si próprios em que é que consiste a “produção” na Era do Simulacro. Qual é a “classe produtiva”? Talvez sejam forçados a admitir que estes termos perderam o significado. Em qualquer caso, as respostas a tais perguntas são tão complexas que a ZAP tende a ignorá-las, aproveitando só aquilo que pode usar. “A Cultura é a nossa Natura” e nós somos as gralhas que roubam objectos brilhantes para os nossos ninhos, os caçadores-recolectores do mundo CommTech). As formas presentes da Teia não-oficial são ainda primitivas: redes marginais de fanzines, BBS, software pirata, hacking, brincadeiras com redes telefónicas, alguma influência na palavra escrita e na rádio, quando não há quase nenhuma nos outros media – nada de estações televisivas, nada de satélites, fibras ópticas, tv por cabo, etc., etc. Contudo, a própria Rede apresenta um padrão progressivo (e não estático) de relações entre sujeitos/utilizadores e objectos/dados. A natureza destas relações foi estudada profundamente, desde McLuhan até Virilio. Seriam necessárias páginas e páginas para “provar” o que neste momento já “toda a gente sabe”. Em vez de refrescar a memória de todos, interessa-me descobrir como é que estas relações evolutivas sugerem modos de implementação da ZAP. A ZAP tem um lugar temporário no espaço e no tempo, o que não a torna menos real. O que é óbvio é que ela também deve ter um lugar na Teia, sendo este lugar de natureza diferente, virtual e não real, instantâneo e não imediato. A Teia não só oferece apoio logístico à ZAP, como também a ajuda a realizarse; grosso modo, pode dizer-se que a ZAP existe no espaço da informação como existe no “mundo real”. A Teia pode compactar grandes porções de tempo, bem como de dados, num espaço infinitesimal. Já notámos que a ZAP, por ser temporária, está obrigada a prescindir das vantagens de uma liberdade duradoura e de morada fixa. Mas a Teia pode parcialmente substituir a duração e a morada – pode informar a ZAP desde o momento da concepção, com vastas quantidades de tempo e espaço compactados e “subtilizados” como informação. Neste momento da evolução da Rede, considerando a nossa exigência do “face-a-face”, do sensual, devemos considerar a Teia um sistema de suporte, capaz de assegurar o segui- 22 23 A Rede e a Teia O próximo factor que contribui para a ZAP é tão vasto mento de informação de uma ZAP a outra, de defender a ZAP, tornando-a invisível ou agressiva, conforme a situação exija. Mas mais do que isso, se a ZAP for um acampamento nómada, a Teia é que oferece os épicos, as canções, as genealogias e lendas da tribo; serve para delinear as rotas secretas das caravanas e os caminhos que sustentam o fluxo da economia tribal; até contém algumas das estradas a seguir, alguns dos sonhos que se transformam em sinais e augúrios. A Teia não precisa de nenhum computador para existir. Informação passada de boca em boca, correio, fanzines, “árvores telefónicas”, e outras coisas do género já bastam para construir uma rede informativa. A chave não é o tipo de tecnologia que se usa, mas sim a abertura e horizontalidade da estrutura. Ainda assim, a ideia da Rede implica o uso de computadores. Na imaginação da ficção científica a Rede encaminha-se para a condição do ciberespaço (como em Tron ou Neuromante ) e para a pseudo-telepatia da “realidade virtual”. Como fã da cena CyberPunk não posso senão visualizar o “hacking da realidade” a desempenhar um papel capital na criação de ZAPs. Tal como Sterling ou Gibson, parto do princípio de que a Rede oficial nunca conseguirá abolir a Teia ou a Contra-Rede – que a pirataria de dados, as transmissões não autorizadas e o livre trânsito de informação nunca entrarão numa Era Glacial (de facto, e tal como eu a entendo, a teoria do Caos prevê a impossibilidade de um sistema de controlo universal). Contudo, esquecendo agora tudo o que seja mera especulação sobre o futuro, há uma questão muito séria a resolver acerca da Teia e da tecnologia que esta requer. A ZAP deseja, acima de tudo, evitar a mediação, experimentar a sua existência imediatamente. A própria essência da ZAP é “peito-a-peito”, como dizem os Sufis 9 , ou face-a-face. Mas: a essência da Teia é a mediação. As máquinas são aqui uns embaixadores para nós – a carne é irrelevante, excepto como terminal, com todas as conotações sinistras que o termo sugere. A ZAP encontra mais facilmente o seu espaço próprio adoptando duas atitudes aparentemente contraditórias face à alta tecnologia e a sua apoteose, a Rede: (1) a posição a que chamaremos Quinto Estado/Posição Ultra-Verde, Neo-Paleolítica e Pós-Situacionista, que se apresenta como argumento Luddita 10 contra a mediação e logo contra a Rede; e (2) O Utopismo CyberPunk, o Futuro-Libertário, o Hacker da Realidade 11 e seus aliados que vêem a Rede como um passo necessário na evolução, assumindo que os efeitos nocivos da mediação venham a ser vencidos – pelos menos assim que estiverem libertos os meios de produção. A ZAP concorda com os Hackers porque quer existir (pelo menos em parte) através da Rede, até através da mediação da Rede. Mas também concorda com os Verdes porque retém uma intensa percepção de si mesma como corpo e não sente senão repulsa pela Ciber-gnose, a tentativa de transcender o corpo através da instantaneidade e da simulação. A ZAP tende a ver a dicotomia Tecnologia/Anti-Tecnologia como um debate tortuoso, como todas as outras dicotomias, nas quais os opostos se revelam como falsificações ou até alucinações causadas pela semântica. Isto é uma forma de dizer que a ZAP quer viver neste mundo, não na ideia de outro mundo, um mundo visionário nascido de uma unidade falsa (tudo verde ou tudo metal) que 10 fazer um trabalho de menor qualidade em relação ao trabalho manual. A palavra tornouse assim sinónimo de oposição ao progresso. 11 9 Luddita: movimento de trabalhadores Ingleses surgido no início do séc. XVIII. As suas actividades consistiam em destruir as novas máquinas industriais que eles consideravam Hacker/Reality Hacking: o hacker é aquele que entra ilegalmente nos sistemas informá- Os Sufis são os discípulos dos ensinamentos ocultos do profeta Mohammed. O Sufismo, em termos simples, pode ser definido como uma forma de misticismo e ascetismo Islâmico. ticos, para os alterar, destruir ou simplesmente explorar. Reality Hacking designa a aplicação 24 25 desta ideia à própria realidade. não satisfaz mais do que um raciocínio circular (como o ilustrou Alice, “compota ontem e compota amanhã, mas nunca hoje”). A ZAP é utópica no sentido em que visualiza uma intensificação da vida quotidiana, ou como poderiam ter dito os Surrealistas, a penetração da vida pelo Maravilhoso. Claro que não pode ser utópica no sentido literal da palavra, que é lugar nenhum ou lugar chamado Lugarnenhum 12 . A ZAP está algures por aí. Coloca-se na intersecção de muitas forças, como um poder pagão qualquer – no meio de misteriosos trilhos visíveis apenas ao adepto, em pedaços de terreno sem nenhuma ligação aparente, na paisagem, em fluxos de ar, de água, de animais. Mas as linhas não estão gravadas no tempo e no espaço. Algumas delas só existem no interior da Teia, mesmo que também intersectem locais e momentos existentes. Talvez algumas destas linhas sejam “extraordinárias” por não existir convenção que as quantifique. Estas linhas poderiam ser melhor estudadas à luz da ciência do Caos do que à luz da sociologia, da estatística, da economia, etc. Os padrões de poder que precipitam o nascimento da ZAP têm qualquer coisa em comum com os caóticos “magnetismos estranhos” que existem, por assim dizer, entre dimensões. A ZAP, dada a sua natureza, aproveita todos os meios de se criar – torna-se realidade tão depressa numa gruta como numa cidade do Espaço – mas, acima de tudo, viverá, agora ou muito brevemente (não importa se a forma é suspeita ou precária), de forma espontânea, sem contemplações para a ideologia ou mesmo para a anti-ideologia. Usará o computador porque o computador existe, mas também virá a usar poderes tão profundamente desligados da alienação ou da simulação que lhe garantem um certo paleolitismo psíquico, um espírito Xamânico-primordial que infecte a própria Rede (este é, na minha leitura, o verdadeiro significado do CyberPunk). Porque a ZAP é uma intensificação, um excedente, um excesso, um potlatch, é viver 12 em vez de meramente sobreviver, não pode ser definida nem pela Tecnologia nem pela Anti-tecnologia. Sincera e contraditória no seu desprezo pelos vis diabretes, deseja existir a despeito da perfeição, até ao fim. No trabalho de Mandelbrot, na sua expressão gráfica num computador, vemos num universo fractal, mapas que estão incrustados e até escondidos dentro de outros, mapas dentro de mapas dentro de mapas e por aí adiante, até aos limites do poder computacional. Para que serve este mapa de certo modo desenhado numa escala 1:1 na sua relação com a dimensão fractal? Que mais podemos fazer com ele para além de admirar a sua psicadélica elegância? Se imaginássemos um mapa da informação – uma projecção cartográfica da Rede na sua totalidade – incluiríamos nele características do caos, que já começaram a despontar, por exemplo, nas operações complexas de processamento paralelo, nas telecomunicações, nas transferências de “dinheiro” electrónico, vírus, hacking guerrilheiro e por aí fora. Cada uma destas áreas de caos podia ser representada topograficamente em trabalhos semelhantes ao de Mandelbrot, estando as “penínsulas” tão emaranhadas na complexidade do mapa que parecessem desaparecer. Esta “escrita” – partes da qual desaparecem, outras apagam-se a si próprias – representa o processo pelo qual a Rede já está caída em desgraça, incompleta na sua auto-imagem, em última análise, incontrolável. Por outras palavras, estes mapas semelhantes ao de Mandelbrot talvez revelassem alguma utilidade ao “delinear” a emergência da Contra-Rede como processo caótico, uma “evolução criativa”, para usar a expressão de Prigogine. Isto serve como metáfora explicativa da interacção da ZAP com a Rede - uma interacção que resulta no desaparecimento de informação. Todas as “catástrofes” na Rede representam uma recarga das baterias da Teia, a Contra-Rede. A Rede será prejudicada pelo Caos, a Teia multiplicar-se-á. Noplace Place no original. 26 27 Quer através da simples pirataria de dados, quer pelo desenvolvimento mais complexo da harmonia com o caos, o hacker da Teia, o cibernético da ZAP encontrará maneiras de tirar proveito de distúrbios, crashes e avarias na Rede (maneiras de transformar a “entropia” em informação). Como bricoleur, caçador furtivo de lascas de informação, contrabandista, chantagista, e quem sabe, ciberterrorista, o hacker da ZAP trabalhará a favor da evolução de ligações fractais clandestinas. Estas ligações, bem como a informação diferente que flui entre elas, formarão “tomadas de parede” onde a ZAP se irá ligar para começar a existir – como se fôssemos roubar electricidade ao monopólio para iluminar uma casa ocupada. Assim, a Teia, para poder produzir as condições necessárias ao nascimento de uma ZAP, será um parasita na Rede; mas também podemos descrever esta estratégia nestes termos: uma tentativa de construção de uma Rede alternativa e autónoma, “livre”, não mais parasitária, uma base estável para uma “nova sociedade emergindo do casulo da velha.” A Contra-Rede e a ZAP podem ser consideradas, em termos práticos, fins em si mesmas: embora na teoria possam ser vistas como formas de luta por uma realidade diferente. Tendo dito isto, é de admitir que restam algumas reservas sobre os computadores, algumas perguntas sem resposta, especialmente acerca do computador pessoal. A História das redes informáticas, das BBSs e de várias experiências de electro-democracia, tem ilustrado uma cultura do passatempo e pouco mais. Muitos anarquistas e libertários têm grande fé no PC como arma de libertação e de auto-libertação – só que não há provas disso, não há liberdade palpável. Tenho pouco interesse na emergência hipotética duma classe de indivíduos empreendedores, patrões de si mesmos, especializados no processamento de palavras e dados, capazes de manter uma indústria semi-artesanal ou de executar trabalhos maçadores por encomenda para várias corporações e burocra- cias. Para mais, não preciso de percepção extra-sensorial para prever a criação da “subclasse” desta classe: uma espécie de Yuppietariado: domésticas, por exemplo, que para garantir um rendimento extra, transformem as suas casas em electro-oficinas clandestinas, pequenas tiranias do Trabalho em que o patrão é uma rede informática. Também não estou impressionado pela informação e serviços que circulam pelas redes “radicais” de hoje em dia. Algures, dizem-me, existe uma “economia da informação”. Talvez seja assim; mas a informação que se oferece nos BBSs parece consistir inteiramente em conversas de fúteis e de tarados por máquinas. Será isto uma economia? Não será só um passatempo para entusiastas? Concordo se me disserem que os PCs criaram uma revolução idêntica à do surgimento da imprensa – e admito que os trabalhos marginais se estão a desenvolver na Rede - até posso falar com seis pessoas ao telefone ao mesmo tempo. Mas que diferença faz isto tudo na minha vida quotidiana? Francamente, eu já tinha muitos dados para enriquecer as minhas percepções, com livros, filmes, televisão, teatro, telefones, correios, estados alterados de consciência, e por aí adiante. Preciso realmente de um PC para obter mais dados desse género? Vocês oferecem-me informação secreta? Bem… reconheço uma certa tentação – mas quero segredos maravilhosos, não quero só números de telefone que não estão na lista, ou tretas sobre polícias e políticos. Acima de tudo quero que os computadores me forneçam informação ligada a bens reais – às coisas boas da vida. E já que acuso os hackers e os frequentadores dos BBSs, de indefinição intelectual irritante, devo descer à terra das barrocas nuvens da Teoria e da Crítica, para explicar o que quero dizer com “bens reais”. Vamos assumir que por razões políticas e pessoais eu desejo boa comida, comida melhor do que aquela que me é oferecida pelo Capitalismo – comida impoluta, ainda abençoada 28 29 com aromas fortes e naturais. Para complicar tudo imaginemos que aquilo que quero é ilegal nos Estados Unidos – leite por pasteurizar, ou o requintadíssimo fruto Cubano mamey, que não pode ser exportado para os Estados Unidos enquanto está fresco; tem sementes alucinogénicas, segundo me contam. Não sou um fazendeiro. Façamos de conta que sou um importador de perfumes raros e afrodisíacos, e para tornar a cena mais perigosa vou assumir que a maior parte do meu stock é ilegal. Talvez eu só queira trocar processamento de texto por nabos biológicos, e recuso-me a declarar a transacção ao IRS (a lei exige-o, acreditem ou não). Ou então, talvez queira encontrarme com outros seres humanos para actos sexuais consensuais mas ilegais na mesma (já se tentou, mas todas as BBSs ligadas ao sexo puro e duro foram detectadas e fechadas; de que nos serve um underground com péssima segurança?). Resumindo, partamos do princípio de que já estou cheio até aos cabelos de informação pura e simples, a alma da máquina. Na vossa opinião, os computadores já deviam ser capazes de gratificar os meus desejos de comida, sexo e fuga aos impostos. Então o que é que está mal? Porque é que ainda não aconteceu nada? A ZAP ocorreu, ainda ocorre, e há-de ocorrer com ou sem computadores, no entanto, para que atinja o máximo do seu potencial, deverá procurar ser mais uma “Ilha na Rede” do que uma combustão espontânea. A Rede, ou melhor, a Contra-Rede, assume a promessa de um aspecto integral da ZAP, uma adição que multiplique o seu potencial, um “salto quântico” (estranhamente, esta expressão veio a significar um grande salto) de complexidade e sentido. A ZAP deve agora existir num mundo de puro espaço, o mundo dos sentidos. Liminar e mesmo evanescente, a ZAP deve combinar informação e desejo para cumprir a sua aventura (a sua “ocorrência”), para se expandir até às fronteiras do seu destino, para se saturar com o seu próprio devir. Talvez a escola Neo-Paleolítica esteja correcta ao afirmar que todas as formas de alienação e mediação devem ser abandonadas para que atinjamos os nossos objectivos – ou talvez a verdadeira anarquia seja plausível somente no Espaço Exterior, como asseguram alguns Futuro-Libertários. Mas a ZAP pouco se importa com o “foi”, com “há-de ser”. Interessam-lhe resultados, ataques bem sucedidos à realidade do consenso, escaladas aos píncaros de uma vida mais intensa e mais abundante. Se não se pode utilizar o computador neste projecto, então o computador terá de ser vencido. A minha intuição sugere-me todavia que a Contra-Rede já começou a existir, talvez já exista mesmo – só não posso prová-lo. Baseei a teoria da ZAP principalmente nesta intuição. Claro que a Teia também implica redes não computacionais de intercâmbio tais como o mercado negro… mas o potencial completo da informação não-hierárquica leva logicamente ao computador como ferramenta par excellence. Agora só espero que os hackers provem que tenho razão. Onde estão os meus nabos? 30 31 “Idos para Croatan” Não desejamos definir a ZAP ou elaborar dogmas sobre como deve ser criada. Afirmamos que já foi criada, sê-lo-á, está a ser criada. Por isso mesmo seria de maior interesse olhar para algumas ZAPs passadas e presentes, e especular sobre manifestações futuras; evocando alguns protótipos podemos medir o alcance potencial do complexo e quem sabe até obter um vislumbre de um “arquétipo”. Em vez de tentar algum género de demonstração enciclopédica, vamos antes mandar uns tiros ao acaso, será um mosaico de visões momentâneas, começando muito arbitrariamente com os sécs.16-17 e a colonização do Novo Mundo. A abertura do “novo” mundo foi concebida desde o princípio como uma operação ocultista. O mago John Dee, conselheiro espiritual de Isabel I, parece ter inventado a ideia de “imperialismo mágico”, com que infectou toda uma geração. Halkyut e Raleigh caíram sob o seu feitiço, e Raleigh usou os seus laços com a “Escola da Noite” – um conselho de pensadores avançados, aristocratas e iluminados – para propagandear a necessidade de explorar, de colonizar e fazer mapas. A Tempestade 13 é um trabalho de propaganda a favor da nova ideologia, e a colónia de Roanoke foi a sua primeira experiência. A visão Alquímica do Novo Mundo associava-o à matéria-prima ou hyle, o “estado da Natureza”, a inocência e a possibilidade total (“Virgín-ia”), ou caos, um devir que o iluminado transmutaria em ouro, isto é, em perfeição espiritual bem como em abundância material. Mas a visão Alquímica é informada em parte por um fascínio evidente pelo devir, uma 13 de William Shakespeare. 32 simpatia traiçoeira pelo devir, um sentimento de esperança em algo que veio a projectar-se no “Índio”: o Homem no seu estado natural, ainda por corromper pelos sistemas de governo. Caliban, o homem selvagem, está alojado como um vírus na máquina do Imperialismo Oculto; a floresta, o animal e os humanos são investidos à partida com o poder mágico do marginal, do despresado, do proscrito. Por um lado, Caliban é feio, sendo a natureza uma “selva ululante” – por outro lado, Caliban é nobre, livre, a natureza é um Eden. Esta cisão na consciência Europeia é anterior à dicotomia Clássica/Romântica; está enraízada na Alta Magia da Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a Fonte da Juventude) cristalizou-a: daí uma precipitação nos planos de colonização. Na escola primária ensinaram-nos que as primeiras colónias em Roanoke falharam; os colonos desapareceram, deixando para trás não mais que um indecifrável “Idos para Croatan”. Relatos posteriores de Índios de olhos cinzentos foram considerados lendas. O facto incontestável, insinuava o manual escolar, era que os Índios tinham massacrado os colonos indefesos. Contudo, “Croatan” não era um Eldorado qualquer; era o nome de uma tribo vizinha e amistosa. Aparentemente a colónia só se deslocou da costa para o Grande Pântano Lúgubre para se integrar na tribo. Os Índios de olhos cinzentos existiam – ainda existem, e chamam-se Croatans a si próprios. Então – a primeiríssima colónia no Novo Mundo decidiu renunciar ao seu contrato com Prospero (Dee/Raleigh/O Império) e foi-se com os homens selvagens, com Caliban. Saíram de cena. Tornaram-se “Índios”, “Nativos”, escolheram o Caos em vez das misérias assustadoras da servidão aos plutocratas e intelectuais de Londres. A América formou-se onde outrora fora a “Ilha das Tartarugas”, e Croatan ficou na sua psique colectiva. Lá fora, para além da fronteira, o estado natural (Estado nenhum) prevalecia – e na consciência dos colonos havia sempre a escolha 33 subreptícia da vida selvagem, a tentação de desistir da Igreja, da fazenda, das letras, dos impostos – esses fardos todos da civilização – e de “ir para Croatan” de um modo ou de outro. Para mais, sendo a Revolução traída em Inglaterra, primeiro por Cromwell e em seguida pela Restauração, ondas de protestantes radicais fugiram/foram deportados para o Novo Mundo (que se tinha agora tornado uma prisão, um local de exílio). Antinomianistas, Familistas, Quakers, Levellers, Diggers e Ranters tomavam conhecimento da sombra oculta do mundo selvagem, acorrendo ao seu chamamento. Anne Hutchinson e os seus amigos eram tão somente os mais famosos (os de mais alta posição) dos Antinomianistas, tiveram o azar de ser apanhados pela política da Bay Colony, mas existiu claramente uma facção mais radical do movimento. Os incidentes que Nathaniel Hawthorne relata no seu conto The Maypole of Merry Mount são totalmente históricos; aparentemente, os extremistas tinham decidido renunciar à Cristandade e regressar ao paganismo. Se tivessem tido sucesso numa união completa com os seus aliados Índios o resultado seria uma Antinomia Céltica/Algonquim, uma religião sincrética, uma espécie de Santeria Norte-Americana do século XVII. Os Sectários encontraram melhores condições para prosperar debaixo das administrações corruptas das Caraíbas, onde muitos interesses Europeus rivais tinham deixado muitas ilhas por reclamar. As de Barbados e da Jamaica em particular devem ter recebido muitos extremistas, e acredito que influências dos Levellers e dos Ranters tenham contribuído para a utopia corsária de Tortuga. Aqui, pela primeira vez, e graças a Esquemelin, podemos com alguma profundidade estudar uma proto-ZAP do Novo Mundo. Fugindo de horrorosos “benefícios” do Imperialismo tais como a escravatura, a servidão, o racismo e a intolerância, da morte-em-vida das plantações, os corsários adoptaram os costumes dos Índios, casaram-se com Caribenhos/as, aceitaram negros e espanhóis como iguais, rejeitaram todas as nacionalidades, elegeram os seus capitães democraticamente, e regressaram ao “estado natural”. Tendo declarado guerra “a todo o mundo”, velejavam para saquear, seguindo contratos mútuos chamados “Artigos”, sendo estes tão igualitários que cada membro da tripulação recebia um quinhão igual, recebendo o capitão apenas 20% a 50% a mais. As chicotadas, bem como qualquer outra forma de castigo, foram abolidas – as querelas resolviam-se a votos ou em duelos. É simplesmente errado ilustrar os piratas como salteadores de estrada que se fizeram ao mar ou até proto-capitalistas, como fizeram certos historiadores. Em certo sentido, eles eram “bandidos sociais”, embora as suas comunidades-base não fossem sociedades agrárias tradicionais mas “utopias” criadas quase ex nihilo em terra incognita, enclaves de liberdade total ocupando lugares em branco no mapa. Após a queda de Tortuga, o ideal Flibusteiro permaneceu vivo durante a “época dourada” da Pirataria (por volta de 1660-1720), gerando comunidades de terra firme como Belize, por exemplo, um Estado fundado por piratas. Então, ao mudar-se o pólo de interesses vários para Madagáscar – uma ilha que nenhum poder imperial tinha ainda reclamado, governada apenas por um grupo heterogéneo de reis (chefes) nativos ansiosos por firmar alianças com os Piratas – a Utopia Pirata atingiu o auge. O relato de Daniel Defoe sobre o Capitão Mission e a fundação de Libertália 14 pode ser, como muitos historiadores afirmam, uma fraude literária que não pretendia senão propagandear as teorias radicais dos Whigs 15 – se bem que este relato 34 35 14 Libertatia no original. 15 Ala progressista do Parlamento Inglês responsável por algumas controvérsias na época de Daniel Defoe estivesse inserido em The General History of the Pyrates (1724 -28), obra aceite na maior parte pela sua correcção e veracidade. Para mais, a história do Capitão Mission não foi criticada aquando do aparecimento do livro e muitos trabalhadores de Madagáscar eram ainda vivos naquela altura. E parece que eles acreditaram, talvez por terem conhecido enclaves piratas muito semelhantes a Libertália. Mais uma vez, escravos resgatados, nativos e até inimigos tradicionais como os Portugueses eram convidados a unir-se numa atmosfera de igualdade (os ataques a navios negreiros eram uma grande preocupação da altura). A terra era propriedade comum, elegiam-se representantes (mas os mandatos eram curtos 16 ), partilhavam-se os despojos dos assaltos; doutrinas libertárias havia-as em circulação bem mais radicais do que aquelas em Common Sense 17 . Libertália esperava perdurar e Mission morreu defendendo-a. Contudo, a maioria das utopias piratas pretendiam-se temporárias; de facto, as verdadeiras “repúblicas” dos corsários eram os seus navios, que cortavam as águas regulados por Artigos, ao passo que os enclaves costeiros não conheciam lei alguma. O último exemplo clássico, que é Nassau, nas Bahamas, uma autêntica estância de praia composta de cabanas e tendas onde os habitantes dedicavam as suas atenções ao vinho, às mulheres (e aparentemente também aos mancebos, a julgar por Sodomy and Piracy de Birge), à música (os piratas eram grandes apreciadores de música e costumavam contratar bandas para levar nas suas longas viagens), bem como ao excesso perverso, Nassau que desapareceu da noite para o dia quando a frota Inglesa se fez ver na Baía. Barba Negra e “Calico Jack” Rackham e a sua tripulação de mulheres piratas deslocaram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis, ao mesmo tempo que outros aceitavam o Perdão real e se reabilitavam. 16 Uma tendência saudável. O pior do poder é que na sua cabeça parecem estar sempre os mesmos piolhos! 17 Livro de Thomas Paine que teima em não perder actualidade. 36 Mas a tradição Flibusteira perdurou, tanto em Madagáscar, onde as crianças de sangue misto dos piratas começaram a definir reinos seus, e nas Caraíbas, onde escravos fugidos bem como grupos mistos de pretos/brancos/vermelhos puderam florescer nas montanhas e no meio do mato para ficarem conhecidos como gente “Marrom” 18 . A comunidade Marrom na Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e muitos dos seus velhos costumes populares quando Zora Neale Hurston lá foi nos anos 20 (ver Tell my Horse). Os Marrom do Suriname ainda praticam o “paganismo” Africano. Durante o século XVIII, a América do Norte também produziu muitas comunidades desistentes/separatistas 19 , isoladas e tri-raciais (estes epítetos foram-lhes apostos pelo movimento Eugénico, que levou a cabo os primeiros estudos científicos destas sociedades. Infelizmente a “ciência” só serviu como desculpa para o ódio aos de “raça impura” e aos pobres, sendo a “solução” proposta para os “problemas” a esterilização compulsiva). Estes núcleos eram constituídos invariavelmente por escravos fugidos e trabalhadores quase-escravos, “criminosos” (indigentes), “prostitutas” (mulheres brancas casadas com não-brancos), e membros de várias tribos nativas. Em alguns casos, como aconteceu com os Seminoles e com os Cherokee, a estrutura tribal tradicional absorveu os recém-chegados; em outros, formaram-se novas tribos. Assim, temos os Marrom do Grande Pântano Sinistro, que se mantiveram em pé nos sécs. XVIII e XIX, adoptando escravos fugidos, funcionando como paragem temporária no Caminho de Ferro Clandestino, um centro religioso e ideológico para as revoltas de escravos. A religião era o Vodu/HooDoo/Vodun 20 , uma mistura de elementos nativos, Africanos e Cristãos, e de acordo com o historiador H. Leaming-Bey, os anciães dessa fé bem como os líderes dos Gran18 Maroons no original. 19 drop-out “tri-racial isolate communities” no original. 37 des e Sinistros Marrom eram conhecidos como The Seventh Finger High Glister. Os Ramapaughs, do norte de New Jersey, incorrectamente conhecidos como “Jackson Whites”, apresentam outra genealogia romântica composta dos seguintes arquétipos: escravos libertos de patrões Holandeses, vários clãs Delaware e Algonquin, as “prostitutas” do costume, os “Hessianos” (chavão designando mercenários Britânicos perdidos, Loyalists desertores, etc.), e bandos locais de bandidos sociais como o bando de Claudius Smith. Alguns grupos reclamam uma origem Afro-Islâmica, como é o caso dos Mouros de Delaware e os Ben Ishmaels, que migraram do Kentucky para o Ohio em meados do século XVIII. Os Ishmaels praticavam a poligamia, nunca bebiam álcool, ganhavam a vida como instrumentistas, casavam-se com Índios e adoptavam os seus costumes, estando tão entregues a uma vida nómada que já construiam as casas com rodas. A sua migração anual descrevia triângulos com vértices em cidades com nomes como Mecca e Medina. No século XIX alguns deles abraçaram ideais anarquistas, tornando-se alvos do movimento Eugénico para um programa particularmente cruel de salvação-pela-extinção. Algumas das primeiras leis Eugénicas escreveram-se em sua honra. Enquanto tribo, “desapareceram” nos anos 20, e o que é mais provável é que tenham feito engrossar as fileiras dos primeiros movimentos Islâmicos de Negros tal como o Moorish Science Temple. Eu próprio cresci a ouvir as lendas sobre os “Kallikaks” dos New Jersey Pine Barrens, que ficavam perto de mim (e cresci também com a presença de Lovecraft, um racista ferrenho que mesmo assim se deixava fascinar por aquelas comunidades isoladas). As lendas, afinal, não passam de recordações populares das calúnias da Eugenia, que tinha o seu quartel general em Vineland (New Jersey), a partir de onde se 20 Em Português grafa-se Vodu, em Inglês HooDoo e em Francês Vodun. O termo Voodoo é uma invenção de Hollywood. 38 lançaram as habituais “reformas” contra a “miscigenação” e a “debilidade mental” nos Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos Kallikaks, desastradamente retocadas para os fazer parecer monstros nascidos de cruzamentos bestiais). As “comunidades isoladas” – pelo menos, aquelas que preservam a sua identidade no século XX – recusam sistematicamente a absorção quer pela cultura do manistream oficial quer pela “subcultura” Negra na qual os sociólogos modernos preferem enfiálas. Na década de 70, inspirados pela Renascença do Americano Nativo, um certo número de grupos, incluindo os Ramapaughs e os Mouros, pediram ao o seu reconhecimento como tribos Índias. Obtiveram o apoio de activistas nativos mas foi-lhes recusado o status oficial. Afinal, se eles tivessem ganho, ter-se-ia estabelecido um precedente perigoso e favorável a toda a espécie de “desistentes”, desde os apreciadores brancos de Peyote e hippies aos nacionalistas negros, aos arianos, anarquistas e libertários – reservas para toda a gente! O “Projecto Europeu” não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem – o caos verde ainda é uma ameaça muito grande ao sonho imperial de ordem. Essencialmente, os Mouros e os Ramapaughs rejeitam a explicação “diacrónica” ou Histórica das suas origens, a favor duma explicação “sincrónica” da sua auto-imagem tendo como base o “mito” da adopção pelos Índios. Ou, melhor dizendo, eles nomearam-se Índios. Se todos os que quisessem ser Índios pudessem sê-lo através do simples acto da auto-definição como tal, imaginem que partida para Croatan não seria. Essa velha sombra oculta ainda assombra o que resta das nossas florestas (já que falamos nisso, estas até têm aumentado no Nordeste desde os séculos XVIII-XIX com o abandono de grandes extensões de terras de cultivo. Thoreau, no seu leito de morte, sonhava com o regresso de “…Índios… florestas…”, é o regresso do recalcamento). Os Mouros e os Rampaughs têm, é claro, boas razões materialistas para se julgarem Índios – afinal, alguns dos seus antepa- 39 ssados são-no – mas se virmos a sua auto-nomeação numa perspectiva ao mesmo tempo “mítica” e histórica aprenderemos mais coisas relevantes na nossa busca da ZAP. Dentro das sociedades tribais existe aquilo a que alguns antropólogos chamam mannenbunden: sociedades totémicas dedicadas a uma identificação com a “Natureza” através do acto da metamorfose, da transformação no animal-totem (lobisomens, xamãs-jaguar, homens-leopardo, bruxas-gato, etc.). No contexto de toda uma sociedade colonial (como o indica Taussig em Shamanism, Colonialism and the Wild Man), o poder metamórfico é visto como inerente à cultura nativa integral — assim, o sector mais reprimido da sociedade adquire um poder paradoxal graças a mitos sobre o seu conhecimento oculto, que o colono tanto teme como deseja. É óbvio que os nativos têm algum conhecimento oculto; mas em resposta à percepção Imperial da cultura nativa como espécie de “selva(jaria) espiritual”, os nativos tendem a ver-se cada vez mais e conscientemente no papel de “espiritualmente selvagens”. À medida em que são marginalizados, a própria Margem ganha uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram tão-somente tribos de pessoas; agora, tornaram-se “guardiães da Natureza”, habitantes do “Estado Natural”. Por fim, até o colono é seduzido por este “mito”. Quando um Americano quer “desistir” e regressar à Natureza, “torna-se um Índio”. Os democratas radicais do Massachusetts (descendentes espirituais dos Protestantes radicais) que organizaram a Tea Party 21 , que acreditavam literalmente na possibilidade de abolição dos governos (toda a região de Berkshire se declarou “em Estado Natural!”), disfarçaram-se de Mohawks. Assim, os colonos, que de súbito se viam marginalizados face à terra-mãe, adoptaram o papel 21 O motim do chá em Boston, como medida de protesto face à opressão de Inglaterra, que cobrava impostos às colónias Americanas sem todavia lhes conceder voz no parlamento da metrópole. 40 dos nativos marginalizados, por esse meio (mas só de certa forma) procurando partilhar do seu poder oculto, do seu brilho mítico. Desde os Mountain Men aos Escuteiros, o sonho da “transformação em Índio” flui como um rio subterrâneo em várias correntes da História, da cultura e da consciência Americanas. A panóplia de imagens associada aos grupos “tri-raciais” também confirma esta hipótese. Os “nativos” são obviamente imorais por sistema, mas os renegados raciais e os párias devem ser mesmo polimorfos, mesmo perversos. Os Corsários eram sodomitas, os Marrom e os Mountain Men eram dados à miscigenação, os “Jukes e os Kallikaks” regalavam-se com a fornicação e o incesto (levando a mutações como a polidactilia), os putos corriam por aí todos nus e masturbavam-se à vista de toda a gente, etc., etc. Aparentemente, com o “regresso à Natureza” começam a praticar-se toda a espécie de actos contranatura; pelo menos é isso que parece, a acreditar nos Puritanos e nos advogados da Eugenia. E já que muita gente em sociedades moralistas, racistas e opressoras nutre desejos secretos de fazer a mesma c o i s a , d e c i d e m p r o j e c t a r e s s a s a c ç õ e s n o s m a rg i n a i s , convencendo-se por esse meio de que continuam civilizados e puros. É um facto que algumas comunidades marginalizadas rejeitam a moralidade consensual – como no caso dos piratas! – e de facto concretizam alguns dos desejos reprimidos da civilização (não o farias tu também?). A transição para o “selvagem” é sempre um acto erótico, de nudez. Antes de abandonar o assunto dos “isolados tri-raciais”, gostaria de recordar o entusiasmo de Nietzche pela “mistura das raças”. Impressionado pelo vigor e pela beleza das culturas híbridas, ele oferecia a miscigenação não só como solução para o problema da raça mas também como princípio de uma nova humanidade liberta de chauvinismos étnicos e nacionais – talvez uma solução precursora do “nomadismo psíquico”. O sonho de Nietzche parece-nos tão remoto a nós como a ele. O chauvinis41 mo ainda se dá muito bem. Culturas mistas continuam submersas. Mas as zonas autónomas dos Marrom e dos Corsários, Ishmaels e Mouros, Ramapaughs e “Kallikaks” subsistem, ou pelos menos restam as suas histórias, como indicações daquilo a que Nietzche poderia ter chamado “ A vontade de poder como desaparecimento”. Devemos regressar a este tema. A Música como Princípio Organizacional 42 E ntretanto, focamos a história do anarquismo clássico à luz do conceito da ZAP. Antes do “fecho do mapa”, houve uma boa porção de energia anti-autoritária dirigida para comunas “evasivas” tal como a Modern Times 22 , os vários Falanstérios, e por aí adiante. É interessante notar que algumas delas não estavam destinadas a durar “para sempre”, só enquanto o projecto se mostrasse satisfatório. Pelos padrões Socialistas/Utópicos estas experiências foram “fracassos”, por isso, pouco sabemos do assunto. Quando a fuga para além-fronteiras se revela impossível, inaugura-se na Europa a era das comunas urbanas revolucionárias. As Comunas de Paris, Lião e Marselha não duraram bastante para adquirir traços de permanência, e perguntamo-nos se isso não seria propositado. Do nosso ponto de vista, o que é realmente fascinante é o espírito das comunas. Durante esses anos e mesmo posteriormente, os anarquistas adoptaram a prática do nomadismo revolucionário, vagueando de levantamento em levantamento, procurando manter viva em si a intensidade de espírito que haviam experimentado no momento da insurreição. De facto, alguns anarquistas Stirnerianos/Nietzcheanos vieram a encarar esta actividade como um fim em si, um modo de ocupar sempre uma zona autónoma, a interzona que se abre no meio da guerra e da revolução (ver a “zona” em Gravity’s Rainbow de Thomas Pynchon). Eles declararam que se alguma revolução socialista triunfasse, seriam os primeiros a virar-se contra ela. Não pensavam em parar muito antes de atingir a anarquia universal. Na Rússia, em 1917, saudaram os Sovietes livres com alegria: era este o objectivo deles. Mas assim que os Bolcheviques traíram a Revolução, os anarquistas individualistas foram os primeiros a pôr-se em pé de guerra. É claro que depois de Kronstadt todos os anarquistas condenaram a 22 Comunidade libertária formada nos Estados Unidos, em meados do séc. XIX, pelo anarquista Josiah Warren. 43 “União Soviética” (uma contradição nos termos) e partiram em busca de novas insurreições. A Ucrânia de Makhno e a Espanha anarquista pretendiam-se duradoiras, e apesar das exigências de uma guerra imparável ambas tiveram sucesso em certa medida: não que tenham durado “muito tempo”, mas a sua organização era boa e teriam perdurado não fosse a agressão do exterior. Portanto, dentre as experiências decorrentes entre as duas Guerras Mundiais, concentrar-me-ei na República leviana de Fiume, que é muito mal conhecida, e que ninguém estava interessado em fazer perdurar. Gabriele D’Anunzio, poeta Decadentista, artista, músico, esteta, leviano, aeronauta pioneiro e aventuroso, mago negro, génio e patife, saiu da Primeira Guerra Mundial um herói, com um pequeno exército às suas ordens: os “Arditi”. Sem aventuras que se lhe apresentassem, decidiu capturar a cidade de Fiume à Jugoslávia e dá-la à Itália. Após uma cerimónia necromântica com a sua amante num cemitério Veneziano, pôs-se a caminho de Fiume, conquistando-a sem dificuldades de maior. Mas a Itália recusou a sua generosa oferta; o primeiro ministro chamou-lhe doido. Num repente, D’Annunzio decidiu declarar a independência e ver quanto tempo se aguentaria. Escreveu a Constituição com um seu amigo anarquista, declarando a música como princípio central do Estado. A Marinha (composta de desertores e sindicalistas marítimos de Milão) tomou o nome de Uscochi, em honra dos piratas assim chamados que haviam vivido em ilhas da zona e atacavam navios Otomanos e Venezianos. Os novos Uscochi até realizaram alguns feitos espectaculares: vários navios mercantes italianos subitamente garantiam algum futuro para a República: há dinheiro nos cofres! Artistas, boémios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio correspondia-se com Malatesta), fugitivos e refugiados apátridas, homossexuais, dândis militares (o uniforme era negro com uma caveira e ossos cruzados em baixo – mais tarde o motivo foi roubado pelos SS) e fanáticos reformistas de todo o género (Budistas, Teósofos, Vedantistas) começaram a apinhar-se em Fiume. A festa nunca mais acabava. Todas as manhãs D’Annunzio lia poesia e manifestos da sua varanda; todas as noites havia um concerto, e depois fogos de artifício. Isto constituía toda a actividade do governo. 18 meses depois, já sem dinheiro e sem vinho, ninguém resistiu quando a frota Italiana apareceu – por fim! – e dispensou uns quantos tiros ao palácio municipal. D’Annunzio, como muitos outros anarquistas Italianos, inclinou-se mais tarde para o fascismo – na verdade, Mussolini (o ex-Sindicalista) em pessoa seduziu o poeta por forma a que ele tomasse esse caminho. Ao perceber que tinha errado, era tarde de mais para D’Annunzio, era já um velho doente. Mas o Duce matou-o na mesma, fê-lo cair de uma varanda, transformando-o num “mártir”. Quanto a Fiume, embora a experiência não fosse tão séria como as da Ucrânia e de Barcelona, pode provavelmente ensinar-nos mais sobre certos aspectos da nossa demanda. De certo modo, foi a última das utopias piratas (ou o seu único exemplo moderno) – e noutro sentido, quase chegou a ser a primeira ZAP moderna. Acredito que comparando Fiume com o levantamento Parisiense de 1968 (e com as insurreições urbanas na Itália do princípio dos anos setenta), bem como com as comunas contraculturais Americanas e as suas influências anarco-Nova Esquerda, notamos certas semelhanças, tais como: a importância da teoria estética (os Situacionistas) – também se vê aquilo a que se poderia chamar “economia pirata”, a boa vida sustentada pelo excedente da produção social até a popularidade de uniformes militares coloridos – o conceito da música como mudança social revolucionária - e finalmente, a atmosfera ubíqua de impermanência, a capacidade de deslocação, de mudar de forma, de encontrar lugar noutras universidades, cumes montanhosos, guetos, fábricas, bunkers, quintas abandonadas 44 45 – ou até outros planos da realidade. Ninguém estava interessado em impôr mais uma Ditadura Revolucionária quer em Fiume, quer em Paris ou Millbrook. O mundo muda ou não. Quer mude quer não mude, continuamos a movimentar-nos e a viver intensamente. O Soviete de Munique (ou “República de Conselho”) de 1919 exibia certos traços da ZAP, mesmo que, como acontece na maior parte das revoluções, o seu programa pretendesse ser algo mais que temporário. A participação de Gustav Landauer como Ministro da Cultura ao lado de Silvio Gesell como Ministro da Economia e outros socialistas libertários, anti-autoritários radicais tais como os poetas/dramaturgos Erich Mªhsam, Ernst Toller e Ret Marut (o romancista B. Traven), deu a este Soviete um sabor distintamente anarquista. Landauer, que tinha passado anos isolado a trabalhar na sua grandiosa síntese de Nietzche, Proudhon, Kropotkin, Stirner, Meister Eckhardt, dos místicos radicais e dos filósofos populares Românticos, sabia desde o princípio que o Soviete estava condenado ao fracasso; tudo o que ele esperava é que durasse tempo suficiente para que o entendessem. Kurt Eisner, fundador martirizado do Soviete, acreditava num sentido bem literal que os poetas e a poesia deviam formar a base da revolução. Puseram-se em marcha planos para criar numa parte da Baviera uma economia e uma comunidade anarco-socialistas. Landauer apresentou propostas de formação de um sistema escolar livre e um Teatro do Povo. A base de apoio do Soviete estava mais ou menos limitada aos bairros boémios e de classe trabalhadora mais pobres de Munique, e a grupos como o Wandervogel (o movimento juvenil neo-Romântico), radicais Judaicos (como Buber), os Expressionistas, e outros marginais. Por isso, os historiadores desdenham-no, chamando-lhe “A República dos Cafés”, e consideram-no de pequena importância em comparação com as participações Marxista e Spartakista na(s) revolução(ões) do pós-guerra Alemão. Ultrapassado em táctica pelos Comunistas e por fim assassinado por soldados debaixo da influência da sociedade Ocultista/Fascista Thule, Landauer merece ser recordado como um santo. Contudo, mesmo anarquistas de hoje tendem a compreedê-lo mal e a atacá-lo “por se ter vendido a um governo socialista”. Se o Soviete tivesse durado pelo menos um ano, choraríamos só de lembrar a sua beleza – mas ainda antes que murchassem as primeiras flores daquela Primavera, o geist e o espírito da poesia foram esmagados, e nós esquecemo-nos. Imaginem como não seria respirar o ar de uma cidade em que o ministro da cultura prevê que dentro em breve as crianças hão-de memorizar as palavras de Walt Whitman. Ah, quem nos dera uma máquina do tempo… 46 47 A Vontade de Poder como Desaparecimento Foucault, Baudrillard, e outros, discutiram extensamente vários modos de “desaparecimento”. Sugiro aqui que a ZAP é de certa forma, uma táctica de desaparecimento. Quando os teóricos falam do desaparecimento do Social estão a postular em parte a impossibilidade da “Revolução Social”, e em parte a impossibilidade do “Estado” – o abismo de poder, o fim do discurso do poder. A questão anarquista neste caso devia ser: porquê darmo-nos ao trabalho de enfrentar um “poder” que perdeu todo o significado e se tornou mera Simulação? Tais confrontos terão como único resultado feios e perigosos espasmos de violência por parte dos zombis-miolos-de-caca que herdaram as chaves dos arsenais e das prisões (talvez isto seja uma má interpretação Americana da sublime e subtil Teoria Franco-Germânica. Se é assim, está bem; quem disse que era preciso compreender uma ideia para a usar?). Partindo da leitura que faço sobre o “desaparecimento”, este parece-me uma opção muito lógica para o nosso tempo, não é nem morte nem catástrofe para o projecto radical. Ao contrário da interpretação mórbida e niilista da Teoria, a minha pretende miná-la para obter estratégias úteis na imparável “revolução da vida quotidiana”: a luta que não pode parar, mesmo em face do último falhanço da revolução política ou social, porque nada, a não ser o fim do mundo, pode deter a vida quotidiana, ou o nosso desejo de coisas boas, a nossa aspiração pelo Maravilhoso. E como disse Nietzche, se o mundo pudesse acabar, então, logicamente, já o teria feito; mas não o fez, por isso não acaba. E assim, como disse um dos sufis, não importa quantos tragos do vinho proibido possamos beber, para sempre carregaremos connosco esta sede furiosa. Zerzan e Black notaram independentemente certos “elementos de recusa” (a expressão é de Zerzan) que talvez possam ser vistos como sintomáticos de uma cultura radical do desaparecimento, parte consciente, parte inconsciente, que influencia mais gente do que qualquer ideia esquerdista ou anarquista. Estes gestos são contra as instituições, e nesse sentido são “negativos” – mas cada gesto negativo sugere uma táctica “positiva” para substituir, e não só recusar, a instituição desprezada 23 . Por exemplo, o gesto negativo contra a educação escolar é a “iliteracia voluntária”. Uma vez que não partilho da adoração liberal da literacia como ferramenta de melhoria social, não me identifico com os sobressaltos de receio que se fazem ouvir por todo o lado quando se trata deste fenómeno: até compreendo as criancinhas que recusam os livros e o lixo que está lá dentro. Mas há alternativas positivas que usam a mesma energia do desaparecimento. A educação em casa e a aprendizagem de ofícios manuais resultam numa ausência da prisão que é a escola. O “Hacking” é outra forma de educação com certas características de invisibilidade. Um gesto negativo em larga escala contra a política é simplesmente não votar. A “Apatia” (tédio salutar em relação ao Espectáculo fatigante) mantém meia nação longe das urnas: o anarquismo nunca conseguiu tanto! (E nem teve nada a ver com o falhanço do recente Censo) Mais uma vez, há paralelismos positivos: o estabelecimento de redes como alternativa à política é coisa que já se faz em muitos níveis sociais, e as organizações não-hierárquicas granjearam altos graus de popularidade mesmo fora do movimento anarquista, simplesmente porque funciona (Act Up e Earth First! são dois exemplos. Estranhamente, os Alcoólicos Anónimos também são). A recusa do trabalho pode tomar as formas de absentismo, de embriaguez no local de trabalho, de sabotagem, de total falta de atenção – como também pode dar origem a novas formas de rebelião: mais auto-emprego, participação na “economia negra” e “lavoro nero”, fraudes com o fundo de desemprego, outras opções criminosas, cultivar erva, etc. – tudo acções mais 48 49 23 Desprezemos então o IRS e substituamo-lo, sendo nós os receptores dos nossos impostos. É só uma ideia... ou menos invisíveis se comparadas com as tácticas tradicionais de confronto dos esquerdistas, como a greve geral. Recusar a igreja? Talvez aqui o gesto negativo seja… ver televisão. Mas as alternativas positivas incluem todas as formas não-autoritárias de espiritualidade, desde a cristandade “sem igreja” ao neo-paganismo. As “religiões livres”, como eu gosto de lhes chamar – pequenas, criadas por si próprias, metade a sério metade a brincar, influenciadas por cultos tão marginais como o Discordianismo e o Anarco-Taoísmo – encontram-se por toda essa América marginal, oferecendo uma “Quarta Via” florescente, alternativa às grandes igrejas, aos televangelistas fanáticos e à monotonia e consumismo da New Age. Pode-se também dizer que a grande recusa da ortodoxia consiste na construção de “moralidades privadas” no sentido Nietzcheano: a espiritualidade de “espíritos livres”. A recusa negativa do lar é ser-se um desalojado, que muitos consideram uma forma de se tornarem vítimas, não desejando abraçar a nomadologia pela força. Mas não ter um lar pode de certa forma ser uma virtude, uma aventura – pelo menos assim parece ao grande movimento internacional dos Squatters. A recusa negativa da Família é claramente o divórcio, ou outro qualquer sintoma de rotura. A alternativa positiva advém da conclusão de que a vida pode ser mais feliz sem a família nuclear, florescendo depois um milhar de novos rebentos: desde pais solteiros a casamentos grupais a grupos de afinidade erótica. O “Projecto Europeu” luta com unhas e dentes para defender a “Família” – há misérias Edipianas no coração do controlo. Existem alternativas – mas devem manter-se invisíveis, principalmente depois da Guerra Anti-Sexo das décadas de 80 e 90. O que é recusar a Arte? O gesto negativo não se encontra no niilismo pateta de uma “greve de Arte” ou na desfiguração de uma pintura famosa – vê-se bem nos olhos de peixe com que ficam as pessoas que tão-somente ouvem a palavra. Mas em que consistiria o gesto positivo? É possível imaginar uma estética que não se comprometa, que não se envolva, que se retire da História e mesmo do Mercado? Ou que pelo menos se dirija para aí? Que queira substituir a representação pela presença? Como se faz sentir a presença na representação ou através dela? A “Linguística do Caos” segue uma presença que está em contínuo desaparecimento de todas as ordens da linguagem e sistemas de significado; uma presença inapreensível, evanescente, latif (“subtil”, termo da alquimia Sufi) – o Magnetismo Estranho à volta do qual se congregam informações, formando caoticamente novas ordens espontâneas. Aqui temos uma estética da fronteira entre Caos e Ordem, a margem, a área de calamidade onde a avaria do sistema pode equivaler à iluminação. (para uma explicação da “Linguística do caos”, ver Apêndice A, e depois ler este parágrafo outra vez.) O desaparecimento do artista é “a supressão e a realização da arte”, em termos situacionistas. Mas desaparecemos de onde? E nunca mais damos notícias? Vamos para Croatan – qual o nosso destino? Toda a nossa arte não passa de um bilhete de despedida endereçado à História – “Idos para Croatan” – mas onde fica, e o que é que vamos lá fazer? Em primeiro lugar, não falamos aqui de um desaparecimento literal do mundo e do futuro; de uma fuga no tempo até uma “sociedade de lazer originária” do Paleolítico; de nenhuma utopia eterna, nenhum esconderijo numa montanha remota, nenhuma ilha; nem de uma utopia pós-Revolucionária – o mais provável é nem haver Revolução nenhuma! – nem de Vonu, nem de Estações Espaciais Anarquistas; nem aceitamos um desaparecimento “Baudrillardiano” no silêncio de uma hiperconformidade irónica. Não discordo com qualquer Rimbaud que escape à Arte fugindo para a Abissínia mais próxima. Mas não podemos construir uma estética, mesmo uma estética do desaparecimento, 50 51 sobre o simples acto de nunca mais voltar. Afirmando que não somos uma vanguarda e que não existe uma vanguarda, já escrevemos o nosso “Idos para Croatan”; a questão então é: como conceber a vida quotidiana em Croatan? Especialmente se não pudermos dizer que existe no Tempo (Idade da Pedra ou Pós-Revolução) ou no Espaço, quer como utopia, quer como cidadezinha esquecida do Midwest, quer como Abissínia? Onde e quando existe o mundo da criatividade sem mediação? Se pode existir, então existe – quiçá só como espécie de realidade alternativa que ainda não nos habituámos a perceber. Onde procurar as sementes (as ervas daninhas emergindo nas fendas das calçadas) daquele mundo, que pudéssemos plantar neste? As pistas, as indicações certas para a busca? Um dedo que aponte para a lua? Eu creio, ou pelo menos gostaria de propôr, que a única solução para a “supressão e realização” da Arte está na emergência da ZAP. Rejeito veementemente a crítica de que a ZAP não passa de uma obra de arte, embora possa ter alguns dos traços de uma. O que eu sugiro é que a ZAP é o único espaço-tempo em que a arte pode acontecer pelo puro prazer do jogo criativo, e como contribuição autêntica para as forças que permitem que a ZAP ganhe coerência e se manifeste. A Arte, no mundo da Arte, tornou-se um bem de consumo; mas mais fundo que esse problema, está o da própria re-presentação e a recusa de toda a mediação. Na ZAP será impossível a arte tornar-se um bem de consumo, será antes um pré-requisito para a vida. A mediação é mais difícil de vencer, mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e “utilizadores” da arte fará com que mais tarde ou mais cedo (como o disse A.K. Coomaraswamy) “O artista não seja um tipo especial de pessoa mas toda a pessoa seja um tipo especial de artista.” Em suma: o desaparecimento não é necessariamente uma catástrofe – excepto no sentido matemático de “mudança topológica súbita”. Todos os gestos positivos aqui esboçados parecem exigir diferentes graus de invisibilidade, mais do que o confronto revolucionário tradicional. A “Nova Esquerda”, a falar verdade, nunca acreditou que existia até se ver no noticiário da noite. A Nova Autonomia, em constraste, ou se vai infiltrar nos media e subvertê-los por dentro, ou nunca vai ser vista. A ZAP existe não só para além do Controlo como também para além das definições, para além do olhar e da nomeação como actos conducentes à escravatura, para além da compreensão do Estado, para além da capacidade de ver do Estado. 52 53 Tocas de Rato na Babilónia Informativa A ZAP como forma consciente de táctica radical terá a sua emergência nas seguintes condições: Libertação psicológica. Ou seja, devemos perceber os momentos e espaços nos quais a liberdade é não só possível como real. Devemos saber de que forma somos genuinamente oprimidos, e de que forma nos auto-reprimimos ou estamos emaranhados numa fantasia em que as ideias nos oprimem. O Trabalho, por exemplo, é uma fonte de infelicidade para muitos de nós, muito mais do que qualquer política legislativa. A alienação é para nós mais perigosa do que ideologias desdentadas, ultrapassadas, moribundas. Estar mentalmente viciado em “ideais” – que de facto não são senão meras projecções das nossas irritações e das nossas sensações de frustração – nunca há-de dar livre curso ao nosso projecto. A ZAP não serve de arauto a uma maravilhosa Utopia Socialista à qual devemos oferecer as nossas vidas em sacrifício para que os filhos dos nossos filhos possam respirar uma lufada de ar livre. A ZAP deve ser a cena da nossa autonomia presente, mas só pode existir na condição de nos sabermos seres livres. A Contra-Rede deve expandir-se. Por enquanto é mais uma abstracção do que uma realidade concreta. As Zines e as BBS trocam informação, o que é parte vital dos alicerces da ZAP, mas muito pouca desta informação se prende com bens e serviços concretos que são necessários à vida autónoma. Não vivemos no CiberEspaço; sonhar que sim é cair numa CiberGnose, a falsa transcendência do corpo. A ZAP é um lugar físico e ou lá estamos ou não. Todos os sentidos se devem empregar. A Teia é como um sexto sentido às vezes, mas deve-se usar em conjunto com todos os outros – os outros também não devem alienar-se dela, como numa paródia horrorosa do transe místico. Sem a Teia, a realização completa do complexo-ZAP seria impossível. Mas a Teia não é um fim em si, é uma arma. O aparelho de Controlo – o “Estado” – deve (assumamo-lo) continuar a deliquescer e a petrificar-se em simultâneo, deve continuar na presente rota, em que uma rigidez histérica serve só para mascarar uma vacuidade, um abismo de poder. À medida que o poder “desaparece”, a nossa vontade de poder deve ser o desaparecimento. Já lidámos com o facto de a ZAP ser vista, ou não, como “mera obra de arte”. Mas vocês também quererão saber se não passa de uma pobre toca de rato na Babilónia Informativa, ou antes um labirinto de túneis, mais e mais interligados, mas servindo apenas a causa do beco sem saída que é o parasitismo pirata? A minha resposta é: prefiro ser um rato por detrás da parede a ser um rato numa jaula – mas também devo insistir nisto: a ZAP transcende estas categorias. Um mundo no qual a ZAP consiga enraízar-se, pode-se parecer com o mundo visto por “P.M.” no seu romance de fantasia bolo’bolo. Talvez a ZAP seja um “proto-bolo”. Mas na medida em que a ZAP existe agora, representa muito mais do que uma negatividade mundana ou um estado de espírito de desistência contra-cultural. Já mencionámos o aspecto festivo do momento que não é controlado, que se auto-organiza espontaneamente, mesmo que dure pouco tempo. É uma espécie de epifania – um auge da experiência social e individual. A Libertação realiza-se com a luta: esta é a essência do “triunfo sobre nós mesmos” de Nietzche. A presente tese toma a vagabundagem de Nietzche como um sinal. É o conceito precursor da deriva, no sentido situacionista e da definição de Lyotard do trabalho-à-deriva. Podemos prever toda uma nova geografia, um possível mapa de peregrinações no qual os locais sagrados são substituídos por auges experienciais e ZAPs: uma verdadeira psicotopografia, a que pudéssemos chamar “geo-autonomia” ou “anarcomancia”. A ZAP pede alguma bestialidade, uma evolução, do domesticado ao selvagem, um “regresso” que também é um passo em frente. Pede também um “yoga” do caos, um projecto de “ordens mais altas” (de consciência, ou simplesmente da vida), do qual nos podemos aproximar “surfando na crista da onda do caos”, do dinamismo complexo. A ZAP é a arte da 54 55 vida em levantamento constante, selvagem mas gentil – sedutores sim, violadores não, contrabandistas em vez de piratas sanguinários, dançarinos em vez de escatologistas. Admitamos que temos ido a festas onde por uma noite breve se atingiu uma República de desejos satisfeitos. Não seremos forçados a confessar que a política dessa noite tinha mais realidade e força do que, vamos lá, o governo Americano inteiro? Algumas das “festas” que referimos duraram dois ou três anos. Não valerá a pena imaginar isto e lutar por isto? Estudemos a invisibilidade, a Teia, o nomadismo psíquico – e quem sabe aonde chegaremos? A Linguística do Caos Ainda não é uma ciência, mas é uma proposta: certos problemas da linguística podem ser resolvidos vendo a linguagem como um dinâmico “Campo Caótico”. De todas as respostas à Linguística de Saussure, duas têm aqui especial interesse: a primeira é a “Anti-Linguística”, cuja origem no período moderno se pode detectar na partida de Rimbaud para a Abissínia; na declaração de Nietzche: “receio bem que enquanto tivermos uma gramática não teremos bem morto Deus”; no movimento Dada; quando Korzybski diz que “o Mapa não é o Território”; na técnica dos cortes de W.S. Burroughs e a sua fabulosa “descoberta no Quarto Cinzento”; no Equinócio de Primavera, 1990 ataque de Zerzan à própria linguagem como representação e mediação. A segunda é a Linguística de Chomsky, com a sua crença numa “gramática universal” e os seus diagramas em árvore, representando, creio eu, uma tentativa de “salvar” a linguagem ao descobrir “invariáveis ocultas”, do mesmo modo que certos cientistas tentam agora “salvar” a Física da “irracionalidade” da Mecânica Quântica. Embora como anarquista fosse de esperar que Chomsky tomasse o partido dos niilistas, a verdade é que a sua bela teoria tem mais em comum com Platonismo ou Sufismo do que com Anarquismo. A metafísica tradicional descreve a linguagem como pura luz brilhando refractada pelo vidro colorido dos arquétipos; Chomsky fala de “gramáticas inatas”. As palavras são folhas, os ramos são frases, línguas-mãe são ramos mais grossos, famílias de línguas são troncos, as raízes…? … Estão no céu… ou no ADN. A isto eu chamo “Hermetalinguística” – é hermética e metafísica. O Niilismo (ou “Metalinguística Pesada”24 em honra de Burroughs) parece-me ter conduzido a linguagem a um beco sem saída, ameaçando torná-la “impossível” (um grande feito mas um tanto deprimente) – enquanto APÊNDICE A 24 No original está HeavyMetalinguistics, que é um trocadilho pura e simplesmente intraduzível. 56 57 que Chomsky sustenta a promessa e a esperança de conseguir que são “reais” mas só existem na medida em que manifestam sub- uma revelação de última hora, coisa que acho igualmente difícil de -padrões. Se o sentido/significado é difícil de definir, talvez o seja porque aceitar. Eu também gostaria de “salvar” a linguagem, mas sem a própria consciência e a linguagem em consequência, são fractais. recorrer a nenhuns “Papões” ou supostas regras imaginárias sobre Deus, dados e Universo 25 . Acho esta teoria mais satisfatoriamente anarquista do que a anti-Linguística ou do que o Chomskyanismo. Ela sugere que a lingua- Voltando a Saussure, mais os seus apontamentos póstumos gem pode vencer a representação e a mediação, não por ser inata, sobre os anagramas na poesia Latina, encontramos indícios de um mas por ser Caos. Assim poderíamos argumentar que toda a experi- processo que de certo modo escapa à dinâmica signo/significante. mentação dadaísta (Feyerabend descreve a sua escola de epistemo- Saussure teve de enfrentar a sugestão de uma espécie de “meta”- logia científica como “Dada anarquista”) com a poesia do som, com os -Linguística que ocorre no interior da linguagem em vez de ser imposta gestos, com os recortes, com as linguagens bestiais, etc., não se desti- como imperativo categórico do exterior. Logo que a linguagem começa nava a destruir ou descobrir significados mas a criá-los. O Niilismo a jogar, como faz nos poemas acrósticos que ele examinou, parece aponta tristemente para o facto da criação “arbitrária” do significado ressoar com uma complexidade que se aumenta a si própria. Saussure pela linguagem. A Linguística do Caos concorda com entusiasmo, acres- tentou quantificar os anagramas, mas os seus números fugiam-lhe cons- centando porém que a linguagem pode vencer-se a si mesma, que pode tantemente (como se estivessem envolvidas equações não-lineares). criar liberdade no meio da confusão e decadência da tirania semântica. E depois também começou a encontrar anagramas em todo o lado, mesmo na prosa Latina. Interrogou-se sobre a possibilidade de já estar a alucinar – ou se os anagramas não seriam um processo natural e inconsciente da parole26 . E abandonou o projecto. Pergunto-me: se processássemos muitos dados desta qualidade através de um computador, não seríamos capazes de construir modelos da linguagem em termos de sistemas dinâmicos complexos? As gramáticas não seriam então inatas, mas surgiriam do Caos como “ordens superiores” capazes de uma evolução espontânea, com um comportamento semelhante ao sentido que Prigogine dá à expressão “evolução criativa”. As gramáticas podiam ser pensadas como “magnetismos estranhos”, como o padrão oculto que daria origem aos anagramas-padrão 25 Deus joga aos dados com o Universo. 26 A parole Saussureana é a língua em acção, i.e., o uso que os falantes fazem das regras linguísticas que conhecem. Ver também A Gramática Generativa de Noam Chomsky para uma dicotomia semelhante à langue/parole de Saussure que é a de competência/desempenho (ou performance). 58 59 APÊNDICE B O Sheik Abu Sa’id do Khorassan Charles Fourier Brillat-Savarin O Hedonismo em Prática Rabelais Abu Nuwas Aga Khan II O grupo de Bonnot era constituído por vegetarianos que só bebi- R. Vaneigem am água. Conheceram um fim trágico, mesmo que pitoresco. Legumes Oscar Wilde e água, que por si só são coisas excelentes – puro zen, na verdade – Omar Khayyam não deviam tomar-se como forma de martírio, e sim como uma forma Sir Richard Burton de epifania. A negação do Eu como praxis radical, o impulso dos Emma Goldman Levellers, tem um gosto a depressão milenar – e esta corrente da Junta os teus preferidos à lista... Esquerda partilha da mesma fonte Histórica que o neo-puritanismo fundamentalista e a reacção moralizante da nossa década. A Nova ascese, quer seja praticada por tarados da saúde, sociólogos policiais de lábios finos, niilistas straight-edge da Baixa, fascistas Baptistas saloios, torpedos socialistas, Republicanos-livres-de-drogas… em todos os casos a força motivante é o ressentimento. Enfrentando a hipocrisia da anestesia contemporânea, vamos erigir uma galeria de “antepassados”, heróis que continuaram a lutar contra a má consciência mas que não deixavam de lado o espírito festivo, um grupo genético genial, uma categoria rara e difícil de definir, grandes cabeças não só para a verdade mas também para a verdade do prazer, sérios mas não sóbrios, gente cuja disposição luminosa não os torna lesmas mas autênticas lâminas cortantes, brilhantes sem estar atormentados. Imaginem um Nietzche sem problemas digestivos. Nem os tépidos Epicuristas nem os Sibaritas inchados. Um tipo de hedonismo espiritual, um Caminho do Prazer, a visão de uma boa vida que é nobre e possível, tendo as suas raízes num sentimento profundo da magnífica sobre-abundância da realidade. 60 61 APÊNDICE C A História, o materialismo, o monismo, o positivismo e todos os outros “ismos” do mundo estão velhos e ferrugentos como ferramentas Outras Citações de que já não preciso nem me lembro. O meu princípio é a vida, o meu fim é a morte. Quero viver a minha vida intensamente para tragicamente a aproveitar. Naquilo que nos toca, ele destacou-nos para sermos desempregados permanentes. Afinal, se nos quisesse para trabalhar, não teria criado tal vinho! Com um odre cheio dele, Senhor, correrias por aí a perpetrar Economia? Esperas pela revolução? A minha há muito que começou! Quando estiveres pronto (Caramba, como se espera!) não me importo de te fazer alguma companhia. Mas quando parares, continuarei no meu caminho louco e triunfal, que me leva à grande e sublime conquista do Nada! Qualquer sociedade que construas terá limites. Fora dos limites de toda Jalaloddin Rumi, Diwan-e Shams a sociedade os insubmissos e os heróicos vaguearão, com os seus pensamentos selvagens e virginais – esses que não conseguem viver sem planear terríveis deflagrações rebeldes! Eu lá estarei! E depois de mim, como antes de mim, haverá aqueles que aos seus pares dizem : “Olhai para vós em vez de olhardes para Deuses e ídolos. Descobri o que há de escondido em vós; exponde-o à luz: revelaivos!” Aqui, com um pão debaixo do ramo da Árvore, uma jarra de vinho, Porque toda a pessoa que procura na sua alma e de lá extrai o um livro de versos – e Tu que a meu lado cantas no bosque selvagem… que andava misteriosamente escondido, é uma sombra que causa um O bosque selvagem basta como Paraíso. Ah, Amor, enche o cálice que eclipse em qualquer forma de sociedade que exista debaixo do sol! lava o Hoje do arrependimento de Ontem, do medo de Amanhã – Ama- Todas as sociedades tremem quando a aristocracia escarninha dos vaga- nhã? – Ora, nessa altura posso estar com os Sete mil anos de Ontem. bundos, dos inacessíveis, dos únicos, dos governantes do ideal, dos Ah, Amor! Pudéssemos nós com o Destino conspirar para capturar o conquistadores do nada, avança resolutamente. triste Modelo de Todas as Coisas, para o partir em pedaços – e depois Vinde, iconoclastas! “Já os céus agoirentos se aquietam e escurecem!” refazê-lo, mais próximo dos desejos do coração! Omar Fitzgerald 62 Renzo Novatore Arcola, Janeiro de 1920 63 Divagação Pirata O Jantar de Convívio O Capitão Bellamy A mais alta ordem da sociedade humana encontra-se no salão. Daniel Defoe, com o pseudónimo de Capitão Charles Johnson, Nas reuniões elegantes e refinadas das classes aristocráticas não existe escreveu o primeiro texto de referência sobre os piratas, A General a interferência impertinente da legislação. Admite-se perfeitamente a History of the Robberies and Murders of the Most Notorious Pirates. De individualidade de cada um. Logo o interrelacionamento é perfeitamente acordo com o Jolly Roger de Patrick Pringle, o recrutamento de piratas livre. Conversa-se continuamente, brilhantemente, e de muita coisa. ocorria mais frequentemente entre desempregados, servos foragidos e Formam-se grupos de acordo com a atracção. Estes dispersam- criminosos aguardando a deportação. O alto mar imediatamente liquida- -se continuamente, e reformam-se debaixo da mesma influência subtil, va desigualdades de classe. Defoe conta-nos que um pirata chamado que tudo permeia. A deferência mútua permeia todas as classes, e a capitão Bellamy fez este discurso ao capitão de um navio mercante mais perfeita harmonia alguma vez atingida nas complexas relações que havia capturado. Este capitão recusara uma oferta para se juntar humanas, mantém-se nas mesmas circunstâncias que Legisladores e aos piratas. Homens de Estado temem como condições de inevitável anarquia e “Lamento imenso, mas não vos restituirei o vosso barco, pois detesto prejudicar alguém quando não há nisso vantagem para mim; confusão. Se há leis de etiqueta alguma, são meras sugestões de princípios interiorizados por cada mente individual. maldito seja, temos de afundá-lo, mesmo que vos seja útil. E vós sois É concebível que em todo o progresso futuro da humanidade, um cachorrinho sorrateiro, como são todos aqueles que se submetem com os inumeráveis elementos de desenvolvimento que se revelam às leis dos ricos, escritas para sua segurança, e nunca a dos outros. Os nesta época, a sociedade, em todas as suas relações, não atinja um poltrões não têm coragem de defender doutra maneira aquilo que obtive- grau de perfeição equivalente ao que certas porções de si mesma, em ram por vigarice; mas sede vós mesmos malditos com eles: malditos certas relações especiais, já atingiram? sejam eles, essa matilha de velhacos manhosos, e vós, que os servis, Suponhamos que as interacções verificadas no salão são regula- sois um bando de imbecis e miolos-de-galinha. Eles difamam-nos, oh das por legislação específica. Que o tempo que cada cavalheiro dispõe sim, quando a única coisa que nos distingue é que eles roubam os para falar a cada senhora é fixo por dada lei; que os seus lugares senta- pobres a coberto da Lei, nós saqueamos os ricos, protegidos só pela dos ou de pé são precisamente regulados; os assuntos de que podem nossa coragem. Não estaríeis melhor entre as nossas fileiras do que a falar, bem como o tom de voz e gestos de acompanhamento com que mendigar emprego junto desses vilões?” cada um deve ser tratado, são cuidadosamente definidos, e tudo isto E quando o capitão replicou que a sua consciência nunca lhe permitiria violar as leis de Deus e do homen, Bellamy prosseguiu: “Vós sois um patife de consciência infernal, eu sou um príncipe para prevenir a desordem e a violação dos direitos e privilégios dos outros. Poderíamos imaginar melhor maneira de converter a interacção social numa escravatura intolerável e uma confusão desesperante? livre, e tenho tanta autoridade para combater o mundo inteiro como aquele que possui cem velas no mar, mais um exército de cem mil S. Pearl Andrews, The Science of Society homens em terra; e é isto que me diz a minha consciência. Mas não se pode argumentar com tais cachorros ranhosos, que permitem aos seus superiores todos os pontapés que bem lhes apetecer.” 64 65 Índice Prefácio ........................................................................................... 3 Utopias Piratas ............................................................................... 7 Aguardando a Revolução ............................................................ 10 A Psicotopologia da Vida Quotidiana ....................................... 14 A Rede e a Teia ............................................................................ 22 “Idos para Croatan” ..................................................................... 32 A Música como Princípio Organizacional ................................ 43 A Vontade de Poder como Desaparecimento ............................ 48 Tocas de Rato na Babilónia Informativa ................................... 54 Apêndice A ................................................................................... 57 Apêndice B .................................................................................... 60 Apêndice C .................................................................................... 62 Se encontrares este livro à venda, por um valor superior a 400$, não o compres. 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