P4 paladar %HermesFileInfo:P-4:20111103: O ESTADO DE S. PAULO 3 A 9 DE NOVEMBRO DE 2011 BOLO QUE NÃO É BOLO É PÃO Parece bolo, assa como bolo... e não é bolo. Acertou quem disse cuca, um pão doce perfumado, molhadinho e recheado trazido por imigrantes alemães no século 19. O segredo do sucesso? Simplicidade e carinho de vovó Deixe a cuca fresca Ela tem cara de bolo, vai ao forno em assadeira de bolo e até seu nomevem da palavra alemã para bolo,Kuchen.Tecnicamente,porém, cuca não é bolo, e sim um tipo de pão. Um pão doce. Quem mora no Sul do país deveestarestranhandotantaexplicação para uma receita que em mesas gaúchas, catarinenses e paranaenses dispensa apresentações. Cuca lá é comida de infância, reconfortante e nostálgica. Um pão doce macio e úmido, caracterizado pela cobertura farofenta, um crumble feito com manteiga, farinha e açúcar. Só estamos entrando em tantosdetalhesporqueareceitatrazida por imigrantes alemães é pouco conhecida nas outras regiões do Brasil – a não ser quando algum descendente de ale- ● mão “se perde” por lugares como o bairro paulistano de Santo Amaro, onde saborosas cucas são vendida todos os dias (página à direita). No Sul, ao contrário, as crianças são educadas desde cedo a não terem medo da cuca... E o pão doce é levado tão a sério que uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santa Cruz do Sul, quer criar um selo deorigem semelhanteaodosdoces de Pelotas (leia abaixo). Lá a preferida é a tradicional, a Streuselkuchen, que leva apenas uma farofinhadoceporcima.Há também as clássicas, de maçã, framboesa e ameixa. Mas quando a receita chegou aqui os brasileiros logo a adaptaramàabundânciadefrutaslocais como jabuticaba e goiaba, e até ao doce de leite. “A cuca é o alemão no Brasil. Ele encontrou o coco, as frutas daqui e combinou comastécnicasdepanificaçãodeles”,dizachefboulangèreAnaZitaFerreira,donadaBarbarellaBakery,emPortoAlegre.“Éoencontro da matéria-prima daqui com a cultura do pão de fora. Nós não tínhamos pão nem fermento.” Eporfalar nisso,porquecucaé pão, e não bolo? “Bolo leva fermentoquímico ecucaéfeitacom fermento biológico, como um pão. É um pão molhadinho, bem recheado, rico.” Bom, se você não mora no Sul e não tem intimidade com a cuca, pode começar aprendendo a identificar uma cuca boa no quadro abaixo. O Paladar não quer que você tenha medo da cuca. Deixa ela te pegar, deixa? Delíxia Em 2010, Carolina Grossenbacher resolveu levar a sério o ofício de “cuqueira”. Vende por encomenda e para a Quinta dos Pães (R. Pirapora, 197, Paraíso, 3884-6944) nos sabores abacaxi, coco, morango, maçã e banana (foto). É umida e de recheio que parece mingau de tão cremoso ● Casa Santa Luzia MARGHI Cuca, só, não: cuca D.O.C. Não há festa de aniversário em Santa Cruz do Sul, a 150 km de Porto Alegre, sem uma cuca na mesa. Parece pouco? Pois a cidade faz também uma festa anual em homenagem ao doce de origem alemã. A Festa das Cucas, nos primeiros dias do mês de julho,fazparte docalendário oficial da cidade desde 2001. O povo da cidade tem tanto orgulho de sua cuca que resolveu fazer o mesmo que pelotenses fizeram com seus doces: criar um selo de origem.Ainiciativapartiudaassociação de panificadoras da cidade e teve o respaldo da prefeitura e do Sebrae. Uma comissão técnica, formada por especialistas em panificação, nutricionistas e representantes do Ministério da Agricultura está elaborando as normasdepreparodacucadeSanta Cruz do Sul. Uma das idealizadoras do selo FOTOS: FELIPE RAU/AE O mercado fabrica suas próprias cucas (Al. Lorena, 1471, 3897-5000), sempre no sabor tradicional de maçã. A textura é de bolo, mas a farofa doce por cima ainda evoca as cucas feitas no Sul ga, em vez de banha.” Na Casa de Cucas Waechter, que faz o doce desde 1965, à receita original foram acrescidas frutas. Ali tem cuca de morango, uva, laranja, banana,framboesa,maçã,abacaxi,figo, pêssego e pera. Natural de Santa Cruz do Sul, a ‘cuca D.O.C’, a empresária Augus- professora Lissi Bender Azambuta Kessler, diz que a intenção é va- ja, doutoranda em antropologia lorizara identidade regional etor- cultural e autora de dois livros sonar as cucas da cidade conhecidas bre a cuca (leia entrevista abaixo), nacionalmente. “É importem seus truques para pretantequetodososingreparar o doce. “Deixo dientes sejam ligacresceresovonovadosàregião,dafarimente. Depois de nha até as frutas”, assar, borrifo “Deixe crescer, sove de mel diluído em diz Augusta. O que torna novo e, depois de assar, um pouco de tão especial a borrife mel diluído em água, ou espacuca de Santa lho manteiga água ou espalhe Cruz do Sul? Caderretida”. manteiga derretida” da cuqueiro tem A pesquisadosua explicação. Mararessaltaquequanthias Beltram, da Lisado aportou em terras ruth Cucas, diz que a difebrasileiras, a cuca enconrençaestánamassa,maciaedoce. trou nas frutas disponíveis um no“Para cada quilo de farinha, uso vo mundo de possibilidades. “O 200g de açúcar”, diz. Para Ubira- curiosoéquehoje,existememSantan Pereira, da Casa de Cucas taCruzcucascomfrutasdesconheWaechter,osegredoestánaquali- cidas dos alemães, e na Alemanha dade dos ingredientes. “Usamos outras com frutas desconhecidas frutafresca eamassalevamantei- dos santa-cruzenses”, diz. Dica Cuca de maçã ! 4 cucas 1 hora fácil ● Ingredientes Massa base: 385g de manteiga; 250g de açúcar; 10g de açúcar baunilha; cascas de 1 limão; 2 ovos; 1 gema; 100 ml de leite; 500g de farinha de trigo; 3 colheres (chá) de fermento químico; 1/2 colher (chá) de sal. Farofa: 250g de manteiga; 350g de farinha de trigo; 250g de açúcar; 20g de açúcar baunilha. Recheio: 400g de maçãs picadas e refogadas. ● Preparo Bata os ingredientes da massa na batedeira em velocidade baixa. Unte quatro formas redondas pequenas, despeje a massa, cubra com maçãs e sobre elas a farofa (peneire farinha com açúcar, três vezes, misture à manteiga gelada, até obter grumos). Asse a 170 ˚ por 45 min. Mandamentos da cuca Forma Tradicionalmente,acucaéfeita em tabuleiro e cortada em formato retangular. Mas no Paraná e em São Paulo não é raroencontrar versõesredondas do pão doce alemão Sabor Pouco açúcar é a regra número um do sabor da cuca, seja ela pura ou recheada. Alemão gosta de cortar o doce da massa com a acidez de frutas usadas no recheio Cobertura Acrosta adocicada,feitade farinha, manteiga e açúcar, é atestado de identidade da cuca, indispensável. Mas ela deveseraomesmotempocrocante e macia Entrevista Textura Por fora ela é crocante sem ser rígida. Por dentro, macia. Eis o segredo de uma boa cuca. Os truques? A massa fica macia com banha e boa sova. A crosta leva mais farinha e manteiga e menos açúcar Recheio Rechear a cuca não é regra. As receitas tradicionais dispensam frutas, geleias ou canela. Mas tanto no Brasil como na Alemanha, há cucas de frutas, especialmente maçãs, ameixas e framboesas As origens Lissi Bender Azambuja, professora Nem precisa ser a cuca de sua avó alemã, a melhor que a professora gaúcha Lissi Bender Azambuja já provou, mas cada mordida no pão doce famoso em sua cidade, Santa Cruz do Sul (RS), traz de volta o gosto da infância. Doutora em antropologia cultural, Lissi trata a cuca como um legado precioso de seus antepassados e se dedica a protegê-lo, passando a tradição às novas gerações. Com essa ideia, já lançou dois livros de receitas bilíngues (em português e alemão) Forno e Fogão – Como no Tempo de Nossos Avós e Forno e Fogão – Para os Dias Festivos, publicados pela Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul. Em entrevista ao Paladar, Lissi compartilha a cultura da cuca e fala sobre sua “história de amor” com o doce. ● Como começou a se interessar pelas cucas a ponto de escrever um livro sobre o doce? Cuca faz parte da minha vida. É ● Qual é a importância da cuca nas mesas do Sul do País? Gosto de mergulhar no meu passado e reviver momentos bons – e a cuca coroou muitos deles. Participou de todos os meus aniversários na infância. Em nossa família não havia o hábito de festa, mas nunca faltou uma deliciosa cuca. E também estava sempre sobre a mesa na ceia de Natal. ● Qual foi a melhor cuca que já experimentou? DIVULGAÇÃO A melhor é a da oma, sem nenhuma dúvida o elo com as gerações que me antecederam. E à medida que cultivarmos essa preciosidade, ela permanecerá presente na mesa das futuras gerações. Por meio dos livros tento recuperar, valorizar e fixar um pouco dessa memória viva. Hum… a que a minha avó fazia. Cada cuca que saboreio, lembro da minha infância, da minha wowa (avó). ● Cuca se come quente ou fria? É uma questão de gosto. Para mim, quanto mais fresquinha, melhor. Adoro quando ainda está morna, bem fofinha, recémsaída do forno. ● E ela tem companhia ideal? Cuca não se come para matar a fome e sim para coroar um momento feliz. Prefiro a cuca acompanhada de um café passado na hora, com leite bem quentinho e sem açúcar – basta o doce da própria cuca. Foi na antiga região da Silésia (cujo território hoje compreende partes da Polônia, República Checa e Alemanha) que a cuca nasceu. Depois, chegou à vizinha Prússia, de onde saíram muitos dos alemães que imigraram para o Rio Grande do Sul, a partir de 1849. O pão doce chegou simples ao Brasil, mas por aqui, com a disponibilidade de frutas frescas, acabou inspirando novas versões. Hoje, em cidades do Sul do país, como a gaúcha Santa Cruz do Sul, se faz tanto a receita tradicional a streuselkuchen, quanto as que levam frutas, especialmente as ácidas maçãs verdes, framboesa e ameixa