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Nas grandes cidades, é muito comum as pessoas se deslocarem para o litoral, para
seus sítios o chácaras. Em São Paulo, embora existam os mais variados entretenimentos,
como cinemas, teatros, casas noturnas, parques aquáticos, bibliotecas, museus, centros
culturais, shows gratuitos e o maior centro gastronômico da América do sul, vinte por cento
da população se utilizam das seis rodovias que ligam a terceira maior cidade do mundo as
demais cidades do Brasil e nelas sofrem engarrafamentos e ficam com os nervos a flor da
pele, quando sob forte calor, levam horas para chegarem aos seus destinos, além dos riscos
que correm quando alguns irresponsáveis usam as estradas para dar vazão as suas
frustrações.
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Eu particularmente não gosto desse tipo de programa; prefiro mais
alguma coisa que torne meu fim-de-semana agradável e relaxante.
Era um lindo dia de verão paulista e os paulistanos, em numero
superior a quinhentos mil, enfileiravam-se em seus automóveis pela Rodovia
dos Imigrantes, rumo ao litoral sul.
Eu um tanto contrariado fazia parte daquela monstruosa fila que se
arrastava em meio a um calor que já incomodava, principalmente dentro de
um carro. cuja ventilação era precária, mas como já havíamos alugado
apartamento no Guarujá para 10 dias e como o pessoal já estava curtindo
essa viagem já a algum tempo, resolvi participar, sem demonstrar a
irritação, o que já fazia parte de mim, principalmente por estar sob um sol
de mais de 38 graus.
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Programa de índio, capaz de tirar o humor de qualquer cidadão, por mais
pacifico que seja.
Eu não via a hora de chegar, pegar o guarda-sol do condomínio, cadeira de
alumínio e sentar-me bem de frente a uma barraca cujo dono já era nosso
conhecido e pedir uma batida de coco, mas iria demorar um pouco ainda, pois
chegando a Santos, teríamos que fazer a travessia de balsa, pois a estrada
Bertioga-Guarujá estava impedida, em virtude de deslizamentos de
barreiras provocados pelas chuvas de verão.
A fila era quilométrica, isso porque o numero de carros que chegavam
de São Paulo e que entravam na fila eram infinitamente superior ao
numero de veículos transportados pela balsa.
O sol a pino de quase meio-dia fazia com que saíssemos do carro e
procurássemos abrigo nas sombras das árvores e aproveitando,
tomássemos água, refrigerantes, cerveja ou até chupássemos um picolé
que eram vendidos por ambulantes que percorriam aquela fila absurda de
carros.
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Enquanto conversava com meu pessoal e com algumas outras famílias dos
carros vizinhos, observei um mendigo esquálido, maltrapilho, barbado, cabeludo e
com uma aparência muito suja. Esse homem que estava sentado na mureta tinha
na mão direita um chapéu virado de cabeça para baixo, onde eram recolhidas as
esmolas oferecidas e nesse chapéu para minha curiosidade, tinha um emblema
da UNEF - Força de Emergência das Nações Unidas e a meia lua com fundo verde,
escrito em amarelo ouro Brasil, emblema que os pracinhas de Suez usavam no
braço direito.
Discretamente pedi licença para as pessoas com quem eu conversava e fui
em direção àquele homem e ao chegar cumprimentei:
-Bom Dia
Ele apenas levantou a cabeça, olhou-me nos olhos, mas nada respondeu,
depois voltou a baixar a cabeça, olhou para o interior do chapéu, virou o rosto
para a direita e por alguns segundos olhou o mar, no seu infinito, como quem
esperasse aparecer de lá, alguma coisa muito importante:
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- Senhor, que emblema é esse ai ? Apontei para o emblema da força da ONU e
ele me respondeu em inglês:
-United Nations Emergency Force - Batalhão Suez. Você sabe o que e isso ?
Eu me assustei, fiquei perplexo e nada respondi, mas ele continuou:
- Você não sabe de nada, ninguém sabe de nada; aliás, ninguém viu o que
passamos, portanto jamais conseguirão sentir na pele o sofrimento de um Boina
Azul, de um Soldado do Exército Brasileiro que esteve naquele fim-de-mundo.
Olha lá, olha lá; olha o Soares Dutra, esta indo para o Egito, cheio de recruta!
Apontava nervosamente com o dedo indicador trêmulo, para um navio
cargueiro como se fosse o navio militar que transportou nossos heróis para a
missão no Oriente Médio.
Nesse momento, meus olhos encheram-se d'água e eu não pude conter a
emoção.
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Eu já nem sabia onde estava meu carro, tinha certeza que alguém o
estava conduzindo rumo a balsa, mas eu estava tão envolvido com aquele
pobre homem que naquele momento, o carro era o que menos estava me
interessando.
Não sei porque, mas eu não queria me identificar, pelo menos naquele
momento: eu queria ter certeza, embora tudo o que ele contava, foi o que
realmente aconteceu, principalmente no período em que estive lá.
Além das informações precisas, ele falava muito bem, apenas perdia em
alguns momentos a lucidez como foi o caso do navio cargueiro que ele viu
como se fosse o Soares Dutra.. Não satisfeito eu insisti:
- Vamos colega, conte um pouco mais da sua história e ele respondeu:
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- Colega?
Ele mediu-me dos pés a cabeça e depois de olhar-me nos olhos,
- Colega ! Esse tamanho e esses olhos verdes...
Como quem estivesse tentando encobrir alguma coisa, ele mudou rapidamente
o tom da voz e procurou mostrar a sua indignação pela falta de reconhecimento de
todo o empenho e dos bons serviços prestados pelos soldados, àquele povo sofrido.
- Saiba meu caro, que quem foi para o Egito perdeu sua mocidade, ficou com
seu coração endurecido, aprendeu a ser um revoltado diante de tanta desgraça,
ficou com a pele morena, castigada por aquele sol inclemente.
A única coisa boa que tinha naquele fim-de-mundo era as cartas que chegavam dos
nossos familiares, das madrinhas de campanha, aliás, eu tinha algumas
namoradinhas de correspondência, mas por outro lado, tinha um compromisso sério
aqui no Brasil: eu vivia maritalmente com Atice, uma criatura maravilhosa que me
deu um filho.
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- Sabe moço, quando fui para o Egito, meu filhote tinha cinco meses e o
Exército não sabia, senão eles não deixariam que eu fosse e o dinheiro que eu iria
ganhar no ano que eu passaria separado de minha família, fazia parte de um
plano que eu tinha para o futuro.
- Meu filho morreu, meu senhor, três meses após a minha chegada no Oriente
Médio. Meu filho morreu de Meningite e durante dez meses, as cartas nada
falavam e só tive a noticia quando cheguei no Rio de Janeiro, no dia 24 de junho
de 1959.
Estava confirmado... Ele era realmente um ex-integrante da UNEF e sem
dúvidas do 3º Contingente, o mesmo contingente do qual fiz parte. Ele deveria ser
uma pessoa bem próxima de mim, pois as madrinhas de campanha que ele se
referia, foi eu quem as descobriu num jornal carioca que me foi enviado pela
minha mãe.
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A emoção tomou conta de todo o meu ser, mas eu sabia que as lágrimas não
poderiam sair de meus olhos naquele momento e a proporção que eu tentava
evitar, um nó atravessava minha garganta, não deixando que qualquer som
passasse para fora a não ser algum soluço. Eu não queria que as pessoas me
vissem emocionado; elas não entenderiam o porque dessa emoção como também
não devem ter entendido o fato de eu as ter deixado para ficar tanto tempo
conversando com um mendigo. Eu disfarçava usando um lenço branco como se
estivesse enxugando o suor e rapidamente passava-o pelos olhos evitando assim
que as lágrimas descessem pelo rosto.
De súbito pareceu-me que o mendigo sabia que eu era seu colega e queria
me gozar, mas por outro lado, a tristeza que tomava conta daqueles olhos azuis, e
o tremor dos seus lábios grossos quando falava de sua permanência no Egito,
faziam-me acreditar que ali estava apenas um homem sofrido, vitima de um
sistema cruel que prefere premiar, homenagear, garantir a sobrevivência e
amparar um Soldado da Guerra e transformar num mendigo, um Soldado da Paz.
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Para completar a minha emoção e talvez quem sabe, uma forma de dizer que
me reconheceu, ele cantou uma música que eu fiz, num momento de profunda
solidão:
O Navio apitou,
Meu bem embarcou,
Navio se afastou com o Batalhão
Ai, Ai
Levando um pedacinho de meu coração
Quando será que o navio
Voltará a esse porto outra vez
Trazendo o meu grande amor
Que foi para o Canal de Suez
No peito tanta dor
Meu Deus tem dó de mim
Saudades do meu amor
Saudades que não tem fim
Ai, Ai.
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Correndo desesperadamente, minha filha vinha me avisar que o carro ia
entrar na balsa e puxando-me pela mão me afastava daquele colega que
acabei por não identificar. Eu andava para frente e ao mesmo tempo me virava
na tentativa de me despedir dele. Acenei com o lenço que estava na minha
mão, do mesmo modo que nossos familiares fizeram na partida do Rio e me
despedi gritando:
-Até um dia, boa sorte !
Ele respondeu também gritando:
-Até breve, escreva um livro..., embora não tenha valido a pena, você sabe
que a história é bonita.
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Eu não sabia se corria atendendo aos puxões da mão da minha filha, se
parava ou se voltava para abraçar aquele homem que lutou pela paz e que não
conseguiu ter a paz suficiente para viver em paz e com isso, quase perdi a
balsa.
O dia todo e durante toda a madrugada que passei em claro, permaneci
quieto, procurando lembrar da fisionomia dos colegas que estiveram mais
próximos de mim lá no Egito para que eu pudesse associa-lo a um deles, mas
nada, eu realmente não consegui identifica-lo.
O curioso é que todos os meus familiares perguntavam de quem se
tratava e eu só sabia dizer que era um colega de Suez, mais nada.
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No dia seguinte, logo cedo voltei ao local onde estava o mendigo e nem sinal
daquele homem; perguntei aos ambulantes que vendiam água, refrigerantes,
cervejas e picolés e nada sabiam dizer: informaram apenas que, naquele dia o
mendigo não apareceu por aquelas imediações. Voltei por volta do meio-dia e à
tardinha e nem uma pista daquela figura triste, que embora suja, babada, com
grosso bigode e longo cavanhaque tinha expressivos olhos azuis. Perguntei aos
colegas que freqüentavam o Guarujá e ninguém percebeu a existência mendigo
ao longo da fila de espera das balsas.
Sem dúvidas eu fui reconhecido e o que deve ter acontecido é que
envergonhado pelo seu estado, ele procurou, sem muito sucesso, demonstrar o
contrário. Somente na hora do meu afastamento é que ele, deve ter tido vontade
de revelar tudo, de me abraçar e até de chorar: sinceramente eu não sei como
conseguiu agüentar tanto tempo sem se emocionar, aliás, eu não notei qualquer
tipo de emoção, apenas seus olhos brilhavam como se estivessem umedecidos,
mas, nem uma lágrima foi derramada.
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Eu que na época já era Presidente da Associação Brasileira das Forças
de Paz (SP) e que procurava fazer com que as autoridades brasileiras
reconhecessem o valor dos integrantes do Batalhão Suez, virei as costas
para um colega que realmente estava carente de tudo, especialmente de
atenção, de carinho e de respeito. Eu não sei o que realmente aconteceu
comigo naquele verão de 1989.
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