ROBERT KELLY FROM HERE TO THERE
Tal como um pedreiro ao construir um muro, meu trabalho parece estar fundado em
um processo passo a passo de composição de quebra-cabeças formais. Eu tenho
afeição pelo instrumental da linha, da forma e da cor e dos abundantes recursos de
suas justaposições, sem a necessidade de referências ou alusões simbólicas outras
para lhes dar significado.
ROBERT KELLY
FROM HERE TO THERE
Robert Kelly
Nascido em Santa Fé, Novo México, em 1956, Robert Kelly reside e trabalha em Nova
York desde que se formou em 1978, na prestigiosa Harvard University, Cambridge,
MA. Antes de se dedicar inteiramente à pintura, em 1982, trabalhou como fotógrafo
comercial para a Polaroid. Desde então, tem realizado exposições individuais nos mais
diversos centros de arte ao redor do mundo como: São Francisco, Copenhagen, Turim,
Santa Fé, Monterey, Houston, Vancouver, Nova York e agora apresenta seus novos
trabalhos no Rio de Janeiro.
As obras de Robert Kelly se inscrevem na ampla tradição construtiva moderna,
linhagem de artistas que abrange alguns dos nomes mais importantes do modernismo.
O holandês Piet Mondrian, do De Stijl e o suprematista russo Kazimir Malevich são dois
dos artistas, de primeira hora, que influenciaram Kelly. A eles se somam os artistas e
setembro 2015 | september 2015
professores da Bauhaus, no que poderíamos chamar de a primeira grande geração
de artistas construtivistas. Mas as influências são mais abrangentes, tanto temporal
quanto geograficamente, não se restringido ao momento inaugural do construtivismo.
Igualmente importantes são artistas que gravitam, com maior ou menor proximidade, à
volta do núcleo construtivista: o escultor romeno Constantin Brancusi, o pintor uruguaio
Joaquin Torres-Garcia, o escultor americano Alexander Calder, Tony Smith com suas
estruturas pré-minimalistas, artistas alemães de diferentes gerações, os modernos
Kurt Schwitters e Hans Arp e o contemporâneo Blinky Palermo. As influências de Kelly
são extensas e abrangentes, quase sempre relacionadas com as formas geométricas
do construtivismo, mas guardando lugar para alguns artistas que escapam a essa
designação: Bill Traylor, Louise Bourgeois, Philip Guston e Richard Diebenkorn.
Mais recentemente, a partir dos anos 1990, quando sua produção artística já estava
bem consolidada, Kelly travou contato e se aproximou da obra de alguns dos nossos
cimas das outras, em um lento e meticuloso trabalho de estratificação. São o tempo e a
principais artistas construtivos e neoconcretos, notadamente Sergio Camargo, Lygia
vida que lentamente se depositam na superfície das obras, uma localização geográfica
Clark e Hélio Oiticica. A corrente de influência que se verifica na arte brasileira, até
obtida através de uma língua estrangeira, uma referência temporal no estilo da
então predominantemente uma via de mão única e no sentido norte-sul, na obra de
diagramação de um impresso, uma carta, um selo, uma data. Particularidades, o mundo
Robert Kelly, inverte a direção tornando suas obras particularmente interessantes para
das contingências, as vidas individuais se impregnando e deixando os rastros do seu
o público brasileiro.
dia a dia. As camadas de tinta deixam perceber tenuamente a sua existência, marcas
quase apagadas, o tempo esmaecendo as definições das coisas, a memória que só
Não obstante o contato tardio, a influência das obras dos artistas brasileiros se faz notar
retém os traços gerais. O mundo da vida, os fenômenos cotidianos enterrados por
pela convergência dos processos de construção das formas, não determinadas por
camadas de tinta e esquecimento. Reinando por sobre este mundo a forma geométrica,
um axioma, mas geradas a partir do próprio processo de seu aparecimento. Não há
autônoma, pura, não contaminada pelas contingências fenomenais. Em sua limpidez
um princípio racional anterior, gerador da forma, que venha a guiar as ações do artista.
se sobrepõe aos fenômenos impondo sua presença. Articula-se com o mundo da vida,
Kelly afirma: “eu não quero pintar algo, eu quero deixar a pintura ser ela mesma”. O
mas dele não depende. Insere-se na matéria, mas tem sua existência garantida como
processo é predominante na construção da forma fazendo com que a dinâmica da
ente da razão. Flutua para além do material e do temporal. Qual a relação entre esses
pintura estabeleça o que é pintado.
dois estratos da realidade. A filosofia sempre se esforçou por articulá-los, mas só a arte
foi capaz de fazê-los conviver.
Por vezes o processo se torna perceptível na maneira como as formas de uma obra
anterior geram descendências. Formas que nascem de outras formas, em uma série
As obras de Robert Kelly fazem parte das coleções de alguns dos museus e instituições
de variações que se autoengendram, sem, no entanto, estarem regida por nenhuma lei
culturais mais prestigiosos da Europa e dos Estados Unidos, entre eles: The Whitney
detectável ou fórmula redutiva. As formas são claras e simples, sem serem simplistas,
Museum of American Art, New York, Nova York; The Brooklyn Museum, Brooklyn,
como demanda o entendimento. Em um elegante e refinado jogo de variações formais,
Nova York; The Museum of Fine Arts, Santa Fé, Novo México; Milwaukee Art Museum,
a superfície da pintura é acionada e os limites da tela são ativados nas tangências de
Milwaukee; WI; Smith College Art Museum, Northampton MA; Jane Voorhees Zimmerli
um círculo ou na contiguidade de um retângulo. Os limites entre o dentro e o fora são
Art Museum, Rutger’s University, Nova Jérsei: Montgomery Museum of Fine Arts,
questionados tensionando as relações entre o mundo da arte e o mundo da vida.
Montgomery; The Fogg Museum, Cambridge, MA; The Margulies Collection, Miami; and
the McNay Art Museum, San Antonio, Texas.
Vez por outra uma transparência deixa entrever uma espacialidade nova aos cânones
concretos, o que em outro momento histórico poderia parecer uma heresia, se mostra
na tela perfeitamente coerente e assimilável, e assim como nas sobreposições, a ordem
Jorge Sayão1
sensível da forma se sobrepõe à ordem dos axiomas racionais. A autonomia da forma
Rio de Janeiro, 2015
é reafirmada, e com ela é enfatizada nestas telas sua independência, tanto de um
mundo referencial sensível, como de um mundo puramente racional. As formas valem
por si próprias no seu modo de vir ao mundo como obras. “Não quero me ver tanto
nas pinturas”, declara ele, “tanto quanto quero que as pinturas assumam sua própria
autoridade”.
A emblemática conjunção entre o construtivista russo Malevich e o existencialista
argelino-francês, Albert Camus, é a síntese da obra de Robert Kelly. Em seu processo
de construção, o artista deita camadas de papéis impressos, envelopes de cartas,
pôsteres, manuscritos que servem como uma base para a recepção das elegantes
formas geométricas. Camadas de existência são pacientemente adicionadas, umas por
Jorge Sayão é formado em Filosofia pelo I IFCS/UFRJ e recebeu o título de doutor em História da Arte pela PUCRio. Escreveu sobre Eduardo Sued e sobre Morandi. Foi Visiting Scholar na Brown University, Providence, EUA,
e no Dipartimento di Arti Visive da Universidade de Bolonha, Itália. É curador independente e professor na EAV /
Parque Lage.
1
Jester, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
183 x 137cm
Circulo (LUNA III), 2015 óleo e técnica mista sobre painel
Oil and mixed media on panel
43 x 35.56 cm
Circulo (LUNA I), 2013 óleo e técnica mista sobre painel
Oil and mixed media on panel
43 x 35.56 cm
Circulo (luna II), 2013 óleo e técnica mista sobre painel
Oil and mixed media on panel
43 x 35.56 cm
Indigo Fold, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
183 x 147.3 cm
maduro Nocturne I, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
91.4 x 73.7 cm
maduro Nocturne II, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
91.4 x 73.7 cm
From Here to There I, 2014 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
45.7 x 162.6 cm
Tropos VAgabunden XXIII, 2007 óleo e técnica mista sobre painel
Oil and mixed media on panel
55.9 x 43 cm
Rita Mercedes III, 2014 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
183 x 142 cm
calvino I, 2015 óleo e técnica mista sobre linho
Oil and mixed media on linen
66.04 x 54.61cm
mies II, 2015 óleo e técnica mista sobre linho
Oil and mixed media on linen
66.04 x 54.61cm
Invisible Cities XXIV, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
91.4 x 72.4 cm
EL SENOR III, 2015 óleo e técnica mista sobre linho
Oil and mixed media on linen
66.04 x 54.61cm
EL SENOR I, 2015 óleo e técnica mista sobre linho
Oil and mixed media on linen
66.04 x 54.61cm
EL SENOR II, 2015 óleo e técnica mista sobre linho
Oil and mixed media on linen
66.04 x 54.61cm
FROM THERE TO THERE II, 2015 óleo e técnica mista sobre tela
Oil and mixed media on canvas
183 x 142 cm
ROBERT KELLY FROM HERE TO THERE
Much like a stonemason building a wall, my recent work seems to be anchored in a stepby-step process of composing formal puzzles. I have grown fond of the pared-down
tools of line, form and color and the bountiful yield of their juxtapositions, without the
need of references or symbolic otherness to give them meaning.
Robert Kelly
Born in Santa Fe, New Mexico, in 1956, Robert Kelly has lived and worked in New York
since graduating from Harvard University in 1978. Before dedicating himself entirely to
painting in 1982, Robert Kelly worked as a commercial photographer for Polaroid. Since
then, solo exhibitions of his work have been displayed in centers for art around the world,
including San Francisco, Copenhagen, Turin, Santa Fe, Monterey, Houston, Vancouver,
New York, and is now bringing his new work to Rio de Janeiro.
Robert Kelly’s work sits within the broad tradition of Constructivism – a lineage of artists
that encompasses some of the most important names in Modernism. The Dutch Piet
Mondrian, part of the De Stijl movement, and the Russian Suprematist Kazimir Malevich
are two of the artists who influenced Kelly from the outset. Also on the list are the Bauhaus
artists and teachers, forming we could call the first great generation of Constructivist
artists. But Kelly’s influences are wider still, both temporally as geographically, and are not
restricted to the first wave of Constructivism. Equally important are the artists who have
gravitated – some nearer and some further away – around the Constructivist nucleus: the
Romanian sculptor Constantin Brancusi, the Uruguayan painter Joaquin Torres-Garcia,
the American sculptor Alexander Calder, Tony Smith with his pre-minimalist structures,
several generations of German artists, the Modernists Kurt Schwitters and Hans Arp,
and, the contemporary, Blinky Palermo. Kelly’s influences range far and wide, and are
almost always linked to the geometric shapes of Constructivism, while still allowing room
for a handful artists who do not fit that mold, such as Bill Traylor, Louise Bourgeois, Philip
Guston and Richard Diebenkorn.
From the 1990s, and with an already consolidated artistic output, Kelly came across and
drew closer to the work of some of our most important Constructivist and Neo-Concrete
artists, notably Sergio Camargo, Lygia Clark and Hélio Oiticica. The mainstream of
influence apparent in Brazilian art, traditionally a one-way direction from North to South,
behind traces of their day-to-day. The layers of paint allow us to just about make out their
is inverted in Robert Kelly’s work, making his art particularly interesting to the Brazilian
existence – marks that are almost erased, time blurring the outlines of things, memory
public.
that retains general traces only. The real world; daily events buried by layers of paint and
oblivion. And ruling over this world is the geometrical forms, autonomous and pure and
Despite having come into contact with them relatively late, the influence of the Brazilian
uncontaminated by phenomenological contingency. In its limpidity it superimposes itself
artists is present in the convergence of the processes of the creation of forms, determined
on the phenomena of the day to day. It engages with the real world, but does not depend
not by an axiom, but generated from and through the very process of their materialization.
on it. It inserts itself in matter, but has its existence guaranteed as a being of reason. It
There is no anterior rational principle guiding the actions of artist. In Kelly’s own words:
floats beyond the material and the temporal. What is the relationship between these two
“I don’t want to paint something; I want to let a painting become itself”. The process
strata of reality. Philosophy has always attempted to articulate them both, but only art has
is predominantly in the creation of the form, allowing the dynamic of the painting to
allowed them to co-exist.
establish what is painted.
Robert Kelly’s work is included in the collections of some of the most prestigious
Sometimes the process becomes visible in the way in which the forms of an earlier
museums and cultural institutions in Europe and the United States, among them:The
work give birth to new ones. Forms that are born from other forms, in a series of self-
Whitney Museum of American Art, New York, New York; The Brooklyn Museum, Brooklyn,
engendering variations, yet are not ruled by any discernible law or reductive formula.
New York; The Museum of Fine Arts, Santa Fe, NM; Milwaukee Art Museum, WI; Smith
The forms are clear and simple – without being simplistic – as understanding requires. In
College Art Museum, Northampton MA; Jane Voorhees Zimmerli Art Museum, Rutger’s
an elegant and refined game of formal variations, the surface of the painting is actioned
University, NJ; Montgomery Museum of Fine Arts, Montgomery; The Fogg Museum,
and the limits of the canvas are activated in the tangents of a circle or the contiguity
Cambridge, MA; The Margulies Collection, Miami, FL; and the McNay Art Museum, San
of a rectangle. The limits between inside and out are questioned, in a projection of the
Antonio, TX.
relationship between the sphere of art and the sphere of life.
Here and there, a transparency allows us to make out a spatiality new to the canon of the
Jorge Sayão1
Concrete movement. In some other moment in history this may have been considered
Rio de Janeiro, 2015
heretical, but today it reveals itself perfectly coherent and assimilable on the canvas –
and, just like in the overlaps of the work itself, the form’s sensitive order is superimposed
on the rational order. The autonomy of the form is reaffirmed, and with it, its independence
emphasized, as much in the referential world of the senses, as in the purely rational
world. The forms derive meaning from their mode of coming to be in the world, as works
of art. “I don’t so much want to remember myself in the painting,” Kelly states, “as I want
the painting to assume its own authority.”
The emblematic conjunction of the Russian Constructivist Malevich and the FrenchAlgerian existentialist, Albert Camus, is the synthesis of Robert Kelly’s work. In the process
of creation, Kelly lays down layers of printed sheets, envelopes, posters, and manuscripts
that serve as a base for the elegant geometric forms. Layers of existence are patiently
added, one on top of another, in a slow and meticulous task of stratification. Time and life
are gradually deposited on the surface of the work: a geographical location is signaled
through a foreign language, a temporal reference revealed through typesetting, or in a
letter, a stamp, a date. Specificities, the world of contingencies, individual lives leaving
Jorge Sayão has a degree in Philosophy by IFCS/UFRJ and a PhD in Art History by PUC-Rio. He wrote about
Eduardo Sued and about Morandi. He was Visiting Scholar at Brown University, Providence, USA, and at the
Dipartimento di Arti Visive, Bologna University, Italy. He’s an independent curator and professor at the EAV /
Parque Lage.
1
concepção e coordenação | concept and coordination
Mercedes Viegas
produção executiva | executive production
Ana Lobato
montagem de exposição | exhibition setup
Everton de Souza
fotografia | photography
Robert Kelly
texto crítico | critical text
Jorge Sayão
revisão de texto | proofreading
Rosalina Gouveia
tradução | translation
Ana Fletcher
projeto gráfico | graphic design
Adriana Braga
Bel Augusta
tratamento de imagens | image processing
Andrea Chlad | Altaimage Corp.-NYC
molduras | frames
Pamela Morgan Framing
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