Faculdade de Medicina da Universidade
do Porto
Serviço de Fisiologia
Aula Teórico-Prática
DETERMINANTES DA FUNÇÃO
CARDÍACA SISTÓLICA
Prof. Doutor Adelino Leite Moreira
Porto, Ano Lectivo 2001 / 02
INTRODUÇÃO
O rendimento do músculo cardíaco isolado é influenciado por quatro factores principais:
1. A pré-carga, que consiste na tensão exercida sobre o músculo antes deste se começar
a contrair. Determina o estiramento passivo do músculo.
2. A pós-carga, que consiste na tensão exercida sobre o músculo depois deste se começar a
contrair, ou seja, a soma das cargas contra as quais o músculo tem de se encurtar.
3. A contractilidade, ou inotropismo, que é traduzida pela velocidade e capacidade de
encurtamento muscular a níveis determinados de pré-carga e de pós-carga.
4. A frequência de contracção, que afecta a função muscular pela relação
força-frequência.
Estes factores são também os principais determinantes da função do ventrículo intacto
e embora sejam descritos isoladamente por conveniências pedagógicas, estão intimamente
relacionados. A abordagem do modo como eles influenciam a função cardíaca constitui o
tema principal desta apresentação. Vamos, no entanto, iniciá-la com uma revisão sumária do
ciclo cardíaco e dos métodos de avaliação da contractilidade ventricular.
CICLO CARDÍACO
O ciclo cardíaco corresponde ao período compreendido entre um determinado
fenómeno e a sua repetição no ciclo cardíaco seguinte. Encontra-se ilustrado nas figuras 1 e 2,
as quais servirão de base à descrição que se segue. Embora estejam apenas representados os
fenómenos respeitantes às câmaras cardíacas esquerdas, é de referir que nas cavidades direitas
os fenómenos são qualitativamente semelhantes. A diferença entre os dois lados do coração
manifesta-se apenas por pressões mais baixas à direita e por um desfasamento temporal
fisiológico. A figura 1 consiste numa representação esquemática das fases e eventos do ciclo
cardíaco, onde se mostram, em função do tempo, as variações das pressões ventricular
esquerda, auricular esquerda e aórtica, do fluxo aórtico, do volume ventricular esquerdo e do
electrocardiograma. Na figura 2 estão representados os traçados da pressão e sua derivada, da
espessura da parede e dos diâmetros ântero-posteriores externo e interno do ventrículo
2
___________________________________________________________________________
esquerdo do coelho, registados com o intuito de avaliar a função cardíaca, no decurso de um
trabalho experimental.
Contracção isovolumétrica
O início da contracção ventricular coincide com o pico da onda R do
electrocardiograma, manifestando-se na curva de pressão ventricular por um aumento de
pressão a seguir à contracção auricular. A válvula mitral encerra e a pressão ventricular
aumenta progressivamente. Uma vez que a válvula aórtica também está encerrada o volume
intraventricular mantém-se constante. A fase de contracção isovolumétrica corresponde assim
ao intervalo compreendido entre o encerramento da válvula mitral e a abertura da válvula
aórtica. Apesar de não haver variação de volume, esta fase não é verdadeiramente isométrica
uma vez que algumas fibras musculares se alongam enquanto outras se encurtam, devido a
alterações da forma ventricular. Logo após o início da contracção ventricular, o encerramento
da válvula mitral e o seu abaulamento para o interior das aurículas provoca um aumento
transitório da pressão auricular, que se manifesta pela onda "c" na curva de pressão auricular
(figura 1).
Fase de ejecção
Inicia-se com a abertura da válvula aórtica, quando a pressão no interior do ventrículo
esquerdo excede a pressão no interior da aorta. Pode ser subdividida numa fase mais precoce
e mais curta de ejecção rápida e numa fase mais tardia e mais longa de ejecção lenta. A fase
de ejecção rápida, que corresponde aproximadamente ao primeiro terço da fase de ejecção,
distingue-se da fase de ejecção lenta, que corresponde aos restantes dois terços, pelo facto de:
1. as pressões intraventricular esquerda e aórtica aumentarem mais rapidamente;
2. o volume intraventricular esquerdo diminuir mais abruptamente;
3. o fluxo aórtico ser maior e aumentar progressivamente;
4. o gradiente de pressão ventrículo-aórtico ser positivo, ou seja, a pressão
intraventricular esquerda ser superior à aórtica.
A inversão do gradiente de pressão ventrículo-aórtico, na presença de um fluxo
sanguíneo contínuo do ventrículo esquerdo para a aorta (provocado pelo momento do fluxo),
fica a dever-se ao armazenamento de energia potencial nas paredes estiradas das artérias, o
que provoca uma diminuição da velocidade do fluxo. O pico da curva de fluxo coincide com
o ponto de inversão dos gradientes de pressão, ou seja, o ponto em que a curva de pressão
3
Figura 1. Fases e eventos do ciclo cardíaco, onde se mostram, em função do tempo, as
variações das pressões ventricular esquerda, auricular esquerda e aórtica, do
fluxo aórtico, do volume ventricular esquerdo e do electrocardiograma (ECG).
4
aórtica intersecta a curva de pressão ventricular. A manutenção deste gradiente de pressão
invertido faz com que o fluxo aórtico continue a diminuir durante a fase de ejecção lenta.
Durante a fase de ejecção, a espessura da parede ventricular aumenta
progressivamente e os diâmetros ventriculares diminuem (figura 2), à medida que as fibras
musculares se encurtam. Para a ejecção ventricular contribuem fundamentalmente as fibras
musculares circunferenciais, sendo a contribuição das fibras longitudinais bastante mais
modesta. É por este motivo que são os pequenos eixos ventriculares (ântero-posterior e
septo-lateral) aqueles que diminuem mais durante a fase de ejecção. Na verdade, enquanto os
pequenos eixos diminuem aproximadamente 25%, contribuindo para 80-90% do volume de
ejecção, o grande eixo ventricular (ápico-basal) diminui apenas cerca de 9%.
A pressão auricular, por sua vez, diminui imediatamente após o início da ejecção
ventricular em virtude da descida da base ventricular e do consequente estiramento das
aurículas. Durante o restante tempo da fase de ejecção, a pressão auricular aumenta
progressivamente à medida que o sangue retorna às aurículas.
No final da fase de ejecção um determinado volume de sangue (volume residual)
permanece na cavidade ventricular esquerda.
Relaxamento isovolumétrico
O relaxamento isovolumétrico corresponde ao período compreendido entre o
encerramento da válvula aórtica e a abertura da válvula mitral. Caracteriza-se por uma queda
acentuada da pressão ventricular sem alterações concomitantes do volume. O encerramento
da válvula aórtica origina a incisura no ramo descendente da curva de pressão aórtica
(figura 1) e algumas vibrações na curva de pressão auricular. A pressão auricular continua a
aumentar durante esta fase, dando origem à onda "v" (figura 1).
Fase de enchimento rápido
O enchimento rápido inicia-se com a abertura da válvula mitral, quando a pressão no
ventrículo esquerdo se torna inferior à pressão na aurícula esquerda, sendo responsável pela
maior parte do enchimento ventricular. É interessante verificar que durante a parte inicial
desta fase a pressão no ventrículo diminui apesar do seu volume aumentar. Este facto, fica a
dever-se ao relaxamento miocárdico ainda em curso e ao recuo elástico (elastic recoil) da
contracção que o precede, estando na base do fenómeno fisiológico conhecido por sucção
5
Pressão VE(mmHg)
dP/dt (mmHg/s)
120
A
80
40
0
6000
B
3000
0
-3000
Diâm. Int. VE(mm) Esp. parede VE(mm) Diâm. Ext. VE(mm)
-6000
18,5
C
17,0
15,5
5,0
D
3,5
2,0
13,0
E
9,5
6,0
0
200
400
600
Tempo (ms)
Figura 2. Traçados em função do tempo de 3 ciclos cardíacos consecutivos obtidos no decurso de
um trabalho experimental realizado no coelho, com o intuito de avaliar a função cardíaca.
A. Pressão ventricular esquerda (Pressão VE).
B. Derivada da pressão ventricular esquerda em função do tempo (dP/dt).
C. Diâmetro externo ântero-posterior do ventrículo esquerdo (Diâm. Ext. VE).
D. Espessura da parede anterior do ventrículo esquerdo (Esp. parede VE).
E. Diâmetro interno ântero-posterior do ventrículo esquerdo (Diâm. Int. VE).
6
ventricular. A contribuição do recuo elástico para o enchimento rápido é contudo modesta em
condições basais, tornando-se mais evidente quando a contractilidade miocárdica está
aumentada e o volume telessistólico diminuído.
Diástase
Durante este período, as pressões auricular e ventricular são praticamente iguais, o
que determina uma diminuição acentuada do fluxo aurículo-ventricular. O fluxo, que apesar
de tudo subsiste, fica a dever-se à energia cinética criada pelo retorno venoso da circulação
sistémica no caso do ventrículo direito e da circulação pulmonar no caso do ventrículo
esquerdo. Este aumento relativamente lento do volume ventricular determina um aumento
igualmente lento das pressões auricular e ventricular.
Contracção auricular
A contracção auricular segue-se à onda P do electrocardiograma, a qual representa a
despolarização das aurículas. É responsável pelo aumento da pressão auricular e
consequentemente por um segundo período de enchimento rápido. Apesar de não existirem
válvulas na junção das veias cavas com a aurícula direita, nem na junção das veias
pulmonares com a aurícula esquerda, a maior parte do sangue é bombeado, em condições
normais, para os ventrículos, uma vez que a inércia provocada pelo retorno venoso se opõe ao
movimento retrógrado do sangue para as veias cavas ou pulmonares.
Em condições basais, a contracção auricular não é indispensável ao enchimento
ventricular. Pode assumir, no entanto, crucial importância em condições patológicas e durante
o exercício físico. Manifesta-se pela onda "a" na curva de pressão auricular.
Ansa (loop) pressão-volume
A curva, ou mais precisamente a ansa (loop), pressão-volume constitui uma forma
alternativa de representar as alterações de pressão e de volume ventriculares durante o ciclo
cardíaco. Nesta representação a variável tempo não é considerada. Obtém-se traçando
graficamente em cada instante o valor da pressão em função do valor correspondente do
volume. A leitura desta ansa é feita em sentido anti-horário, da forma que passaremos a
explicar com referência à figura 3:
7
Figura 3. Ansa (loop) pressão-volume. As setas
indicam o sentido de leitura da curva.
A - abertura da válvula mitral;
B - pressão ventricular mínima;
C - encerramento da válvula mitral;
D - abertura da válvula aórtica;
E - pressão ventricular máxima;
F - encerramento da válvula aórtica.
1. Enchimento ventricular:
Inicia-se em A, com a abertura da válvula mitral, e termina em C, com o seu
encerramento. Na fase inicial do enchimento ventricular (de A a B) a pressão
ventricular diminui apesar do volume aumentar, pelas razões acima referidas. Durante
o restante tempo do enchimento ventricular (de B a C) a pressão aumenta à medida
que o volume também aumenta, a uma velocidade que depende fundamentalmente das
propriedades elásticas passivas do músculo.
2. Contracção isovolumétrica:
Inicia-se em C e termina em D. Durante esta fase a pressão aumenta abruptamente sem
alterações do volume intraventricular.
3. Fase de ejecção:
Inicia-se em D, com a abertura da válvula aórtica, e termina em F, com o encerramento
da mesma. Este ponto F está localizado no canto superior esquerdo da ansa
pressão-volume e é por vezes considerado como identificador do fim da sístole, uma
vez que coincide com o ponto em que termina a ejecção ventricular. Na fase inicial,
ou de ejecção rápida (de D a E), a diminuição do volume ventricular está associada a
um aumento continuado da pressão ventricular. Segue-se a fase ejecção lenta (de E a
F) durante a qual a diminuição do volume ventricular está associada a uma queda
ligeira da pressão.
4. Relaxamento isovolumétrico:
Inicia-se em F e termina em A. Durante esta fase a pressão cai abruptamente sem
alterações do volume intraventricular.
8
As ansas pressão-volume permitem ilustrar de forma relativamente clara os efeitos, na
função cardíaca, de alterações da pré-carga, da pós-carga e do inotropismo, como veremos
adiante. Estas ansas permitem ainda determinar com relativa facilidade alguns índices da
função cardíaca sistólica, nomeadamente:
1. Volume de ejecção ou sistólico, cujo valor é igual à largura da ansa pressão-volume.
Num ciclo cardíaco isovolumétrico, onde não existe ejecção ventricular e a variação
de volume é nula, a relação pressão-volume é representada por um segmento de recta
vertical e não propriamente por uma ansa.
2. Trabalho de ejecção ou sistólico, cujo valor é igual à área limitada pela ansa. Num
ciclo cardíaco isovolumétrico, o trabalho de ejecção é, portanto, nulo.
Em determinadas circunstâncias, substitui-se o registo do volume ventricular pelo
registo de uma ou mais dimensões ventriculares. Na figura 2 ilustrou-se o diâmetro interno
ântero-posterior e a espessura da parede anterior do ventrículo esquerdo. As técnicas
disponíveis para o registo deste tipo de dimensões são mais precisas do que as técnicas
normalmente utilizadas para o registo do volume, daí que no animal de experiência sejam
utilizadas mais frequentemente. Quando se registam simultaneamente pressões e dimensões
ventriculares é possível construir ansas (loops) pressão-dimensão. Na figura 4 representou-se
graficamente a ansa pressão-diâmetro interno de um dos ciclos cardíacos ilustrados na figura
2. A leitura desta curva é semelhante à da ansa pressão-volume, acima descrita.
Figura 4. Ansa (loop) pressão-diâmetro interno. As
setas indicam o sentido de leitura da curva.
Pressão (mmHg)
120
E
D
F
A - abertura da válvula mitral;
B - pressão ventricular mínima;
C - encerramento da válvula mitral;
D - abertura da válvula aórtica;
E - pressão ventricular máxima;
F - encerramento da válvula aórtica.
80
40
0
A
6
B
C
10
14
Diâmetro Interno (mm)
9
AVALIAÇÃO DA CONTRACTILIDADE VENTRICULAR
Têm sido propostos e utilizados vários índices para a avaliação da contractilidade, os
quais são de crucial importância não só para os fisiologistas, mas também para os
cardiologistas clínicos. Como regra geral, um índice é tanto melhor quanto maior a sua
sensibilidade e especificidade. Assim, um bom índice de contractilidade deve mostrar-se
altamente sensível a alterações da contractilidade ou inotropismo e ser o menos possível
afectado por factores extrínsecos ao coração, nomeadamente por variações da carga.
Classicamente, os índices de contractilidade derivam da fase de contracção isovolumétrica ou
da fase de ejecção. Os primeiros, tais como dP/dtmax e (dP/dt/P)max, revelam-se bastante
sensíveis a alterações da contractilidade e, devido à sua natureza, insensíveis a alterações da
pós-carga. São, contudo, altamente influenciados por variações da pré-carga. Os segundos,
derivados da fase de ejecção, como por exemplo a fracção de ejecção, o volume de ejecção e
o débito cardíaco, mostram-se sensíveis a alterações quer da pré-carga, quer da pós-carga.
Deve, por isso, ser-se particularmente crítico quando se avaliar a contractilidade com
qualquer um destes índices. Os estudos experimentais realizados até ao momento sugerem
que a relação pressão-volume telessistólica é bastante sensível a alterações da contractilidade
e muito pouco afectada por variações da carga. Iremos, portanto, dar particular atenção a este
índice nesta apresentação.
Relação pressão-volume telessistólica
Como foi acima referido, o ciclo cardíaco pode ser descrito, de uma forma
independente do tempo, pela ansa pressão-volume. Referiu-se também que o fim da sístole
coincide com o canto superior esquerdo da ansa pressão-volume (ponto F, figura 3) enquanto
o fim da diástole coincide com o canto inferior direito da mesma (ponto C, figura 3). Se
fizermos variar a carga, obteremos ciclos cardíacos com pressões e volumes telediastólicos e
telessistólicos diferentes, por razões que adiante discutiremos. Na figura 5 estão
representadas as ansas pressão-volume de quatro ciclos cardíacos a diferentes níveis de
pré-carga e de pós-carga. Como se pode ver, é possível traçar uma linha recta que una os
valores da pressão e do volume no final da sístole de cada ciclo cardíaco. Esta linha recta
10
constitui a relação pressão-volume telessistólica, sendo caracterizada por um declive e por
uma intersecção no eixo das ordenadas. O declive desta relação, designado Emax ("maximal
elastance"), constitui um índice de contractilidade relativamente independente da carga, uma
vez que por definição o seu cálculo é efectuado a vários níveis de carga.
Figura 5. Ansas pressão-volume de quatro ciclos cardíacos a diferentes
níveis de carga e respectivas relações pressão-volume
telediastólica e telessistólica.
Além da relação pressão-volume telessistólica, a figura 5 ilustra a relação
pressão-volume telediastólica obtida pela união dos pontos que representam os valores da
pressão e do volume no final da diástole de cada ciclo cardíaco. A relação pressão-volume
telediastólica é exponencial e permite derivar índices que caracterizam as propriedades
passivas do ventrículo esquerdo, nomeadamente a sua rigidez, complacência e
distensibilidade. A abordagem do relaxamento e da diástole ventriculares estão, no entanto,
fora do âmbito desta apresentação.
11
PRÉ-CARGA
Músculo cardíaco isolado
No músculo cardíaco isolado, a pré-carga pode ser definida como a tensão exercida
sobre o músculo antes deste se começar a contrair, determinando por isso o seu estiramento
passivo. A relação entre a pré-carga e o estiramento muscular, vulgarmente designada por
relação tensão passiva-comprimento (figura 6), é exponencial. Este facto evita um
estiramento muscular excessivo, uma vez que, a partir de determinada altura, um aumento
ainda que pequeno do comprimento muscular provoca um grande aumento da sua tensão
passiva.
Figura 6. Relação tensão passiva-comprimento
no músculo cardíaco isolado.
As alterações do comprimento muscular reflectem em grande parte alterações do
comprimento do sarcómero. Estudos ultra-estruturais e funcionais revelaram que quando o
comprimento do sarcómero é de 2,20 µm, a disposição dos filamentos de actina e miosina é
tal que, a possibilidade de se formarem pontes cruzadas é máxima e, consequentemente, a
tensão desenvolvida pelo músculo também é máxima. Quando o comprimento do sarcómero
é menor que 2,20 µm a tensão desenvolvida decresce, provavelmente porque a afinidade da
troponina C para o cálcio diminui e os miofilamentos de actina perdem a sua relação ideal
com as cabeças de miosina, comprometendo assim a formação de pontes cruzadas. Os
miofilamentos de actina passam a ocupar a parte central do sarcómero (zona H) quando o
comprimento deste diminui até 2,00 µm e entrecruzam-se quando esse comprimento se torna
inferior a 2,00 µm. A tensão desenvolvida também diminui quando o comprimento do
sarcómero excede os 2,20 µm. Este fenómeno fica a dever-se a uma menor sobreposição dos
miofilamentos de actina e miosina, o que acarreta uma diminuição da capacidade de formar
pontes cruzadas. É importante notar, que no músculo cardíaco, ao contrário do que acontece
no músculo esquelético, o comprimento do sarcómero dificilmente excede os 2,20 µm, uma
vez que a rigidez muscular aumenta bastante quando o comprimento do sarcómero atinge este
valor, devido ao perfil exponencial da relação tensão passiva-comprimento. Além disso,
observou-se experimentalmente o aparecimento de lesão miocárdica na sequência de um
estiramento muscular excessivo. Com base nestas explicações, é fácil compreender a razão
pela qual aumentos até um determinado nível da pré-carga, e consequentemente do
comprimento muscular, provocam um aumento da tensão desenvolvida (contracções
isométricas) ou do encurtamento muscular (contracções isotónicas). Pelo contrário, aumentos
da pré-carga acima desse nível provocam um declínio da tensão desenvolvida ou do
encurtamento. Este fenómeno é descrito pela relação tensão activa-comprimento (figura 7).
Figura 7. Relações tensão passiva-comprimento
e tensão activa-comprimento no
músculo cardíaco isolado.
O comprimento muscular em repouso que determina uma tensão desenvolvida ou um
encurtamento máximos é designado por Lmax e corresponde a um comprimento do sarcómero
de 2,20 µm. A figura 7 evidencia a dificuldade em estirar o músculo cardíaco acima de Lmax,
devido ao aumento exponencial da sua rigidez a partir deste comprimento.
13
Coração intacto
Avaliação da pré-carga
No coração intacto a pré-carga ventricular deveria ser, por definição, quantificada pela
tensão telediastólica da parede ventricular, a qual determina o comprimento das fibras
musculares em repouso. A medição da tensão da parede coloca, contudo, algumas
dificuldades de ordem prática, uma vez que a geometria ventricular não é definida com
exactidão por nenhum modelo matemático. Para contornar estas dificuldades é costume usar
modelos simplificados do ventrículo esquerdo, assumindo que este possui uma forma
elipsóide, ou mais simplesmente esférica. De acordo com a lei de Laplace, a tensão da parede
de uma cavidade é directamente proporcional ao seu diâmetro interno e à pressão no seu
interior e inversamente proporcional à espessura da sua parede. Assim, o cálculo da tensão da
parede ventricular implica o registo simultâneo da pressão, da espessura da parede e de um ou
mais diâmetros ventriculares. Por isso, é comum na prática avaliar a pré-carga a partir da
pressão telediastólica ou do volume telediastólico, uma vez que, caso não haja alterações
profundas da geometria ventricular, estes índices estão intimamente relacionados com o
comprimento telediastólico das fibras musculares da parede ventricular e consequentemente
com a pré-carga.
Efeitos da pré-carga
A importância da pré-carga na modulação da função cardíaca foi amplamente
difundida e passou a receber particular atenção por parte da comunidade científica
internacional a partir dos estudos de Starling e colaboradores publicados em 1914, ainda que
anteriormente outros investigadores tivessem chamado a atenção para este fenómeno. De
facto, já em 1884, Howell e Donaldson tinham observado que um aumento do retorno venoso
provocava um aumento da pressão auricular direita e do débito cardíaco, numa preparação de
coração-pulmão. Em 1895, Frank, utilizando o coração isolado de rã, observou que um
aumento da pressão e do volume telediastólicos provocava um aumento da pressão
desenvolvida e do volume de ejecção ventricular. Em 1914, ano em que Starling e
colaboradores publicaram os seus resultados, tanto Wiggers como Straub efectuaram
independentemente observações semelhantes. Foram, no entanto, os resultados de Starling os
mais difundidos, particularmente nos países de língua inglesa. Starling e colaboradores
utilizaram uma preparação de coração-pulmão para investigar os efeitos da tensão e do
comprimento musculares pré-contrácteis na função ventricular. Concluíram que “a energia
mecânica libertada na passagem do estado de repouso ao estado contráctil depende da área
das superfícies activas, ou seja, do comprimento das fibras musculares”. Este princípio geral
é conhecido por lei de Frank-Starling do coração.
A lei de Frank-Starling traduz, portanto, a influência da pré-carga na função
ventricular e pode ser definida da seguinte forma: um aumento do volume ventricular
telediastólico provoca um aumento do volume de ejecção ou da pressão isovolumétrica
máxima desenvolvida. Este princípio está ilustrado na figura 8, onde se representam as ansas
pressão-volume de seis ciclos cardíacos a diferentes níveis de pré-carga, juntamente com as
respectivas relações pressão-volume telediastólica e telessistólica. Dos ciclos cardíacos
representados, três possuem fase de ejecção (ciclos 1, 3 e 5) e três não (ciclos
isovolumétricos: 2, 4 e 6).
Figura 8. Ansas pressão-volume de seis ciclos cardíacos a diferentes
níveis de pré-carga e respectivas relações pressão-volume
telediastólica e telessistólica.
15
O aumento da pré-carga, traduzido por pressões e volumes telediastólicos crescentes,
provocou nos ciclos cardíacos 1, 3 e 5 um aumento do volume de ejecção apesar das pressões
e volume telessistólicos se manterem constantes. Nas ansas pressão-volume, o aumento das
pressões e volumes telediastólicos traduz-se por um deslocamento para cima e para a direita
do seu canto inferior direito, o aumento do volume de ejecção traduz-se por um aumento da
sua largura, enquanto a manutenção da pressão e volume telessistólicos se traduz pela
sobreposição do canto superior esquerdo dos três ciclos cardíacos. Aumentos semelhantes da
pré-carga nos ciclos cardíacos isovolumétricos correspondentes provocaram um aumento da
pressão isovolumétrica desenvolvida. É de notar que os pontos correspondentes às pressões e
volumes telessistólicos dos seis ciclos cardíacos representados se sobrepõem na mesma
relação pressão-volume telessistólica.
Com base nos princípios acima descritos para o músculo isolado é possível interpretar
em termos actuais a lei de Frank-Starling e compreender os mecanismos subjacentes à
modulação da função cardíaca pela pré-carga. Assim, o aumento da capacidade de
desenvolver pressão sob condições isovolumétricas no ventrículo intacto, em resposta a um
aumento da pressão e volume telediastólicos, pode ser comparado ao maior desenvolvimento
de tensão nas contracções isométricas do músculo cardíaco isolado, em resposta a um
aumento da pré-carga. Por outro lado, nos ciclos cardíacos com ejecção ventricular, o
aumento do volume de ejecção, provocado pelo aumento da pressão e do volume
telediastólicos, é comparável ao aumento do encurtamento muscular, provocado pelo
aumento da pré-carga, nas contracções isotónicas do músculo cardíaco isolado. Os
mecanismos subjacentes aos efeitos da pré-carga no coração intacto são também semelhantes
aos acima descritos para o músculo isolado, ou seja, um aumento da afinidade da troponina C
para o cálcio e uma configuração mais favorável da relação entre a actina e a miosina,
permitindo assim a formação de um maior número de pontes cruzadas. Ainda à semelhança
do músculo isolado, não foi possível demonstrar uma diminuição da função cardíaca por mais
que se elevasse a pré-carga. Este facto fica provavelmente a dever-se à grande rigidez da
parede ventricular a partir de determinados valores. Estudos ultra-estruturais demonstraram
que mesmo quando a pressão intraventricular telediastólica era aumentada para valores da
ordem dos 100 mm Hg, o comprimento do sarcómero dificilmente excedia os 2,20 µm.
Importância fisiológica e controle da pré-carga no coração intacto
O mecanismo de Frank-Starling (pré-carga) actua ciclo a ciclo controlando a função
das quatro câmaras cardíacas. Ao mecanismo de Frank-Starling também se chama por vezes
auto-regulação heterométrica do coração, uma vez que se trata de um mecanismo de
regulação intrínseca, mediado por alterações do comprimento muscular. No coração intacto,
os principais determinantes da pré-carga são o retorno venoso, o volume total de sangue e sua
distribuição, a função cardíaca diastólica e a actividade auricular.
A importância da pré-carga na regulação da função cardíaca manifesta-se em várias
situações, nomeadamente:
1. Em resposta a uma alteração do retorno venoso.
Uma alteração do retorno venoso provoca uma variação da pré-carga, a qual determina
uma modificação da função cardíaca no mesmo ciclo em que ocorre a perturbação.
Isto acontece, por exemplo, quando há alterações da postura, do volume de sangue,
das resistências vasculares periféricas, bem como com os movimentos respiratórios.
2. No equilíbrio do débito dos dois ventrículos.
Quando existe uma alteração no volume de ejecção de um dos ventrículos, o retorno
venoso ao ventrículo contralateral é alterado no mesmo sentido após alguns ciclos
cardíacos. Este facto, leva a que o débito cardíaco de um ventrículo se ajuste, à custa
do mecanismo de Frank-Starling, a qualquer alteração que tenha ocorrido no
ventrículo contralateral. Desta forma, impede-se, por exemplo, que em consequência
de um aumento do volume de ejecção de um ventrículo se acumule sangue no leito
vascular a montante do ventrículo contralateral. Este mecanismo intervém em várias
situações fisiológicas e patológicas, sendo de realçar a sua importância no equilíbrio
do débito dos dois ventrículos durante os movimentos respiratórios.
3. No reforço da função auricular para a manutenção do débito cardíaco.
A pré-carga, ou seja, o comprimento muscular em repouso, é também um importante
determinante da função do músculo da parede auricular: alterações do volume
auricular antes da sua contracção provocam alterações no mesmo sentido na sua
função. Assim, quando o retorno venoso está aumentado a contracção auricular
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também é mais potente, contribuindo adicionalmente para o aumento da pré-carga
ventricular. Este mecanismo é particularmente importante se o enchimento ventricular
for muito dependente da contracção auricular, como acontece quando o tempo de
enchimento ventricular está diminuído. Isto verifica-se sempre que a frequência
cardíaca está aumentada, como por exemplo durante o exercício físico.
4. Quando o volume cardíaco é inferior ao normal.
Nestas circunstâncias o mecanismo de Frank-Starling continua a actuar. Por exemplo,
durante o exercício físico o volume telediastólico diminui em grande parte devido ao
aumento da frequência cardíaca e à consequente diminuição do tempo de enchimento
ventricular.
Nestas circunstâncias, qualquer variação adicional
do volume
telediastólico provoca uma alteração, no mesmo sentido, do volume de ejecção,
indicando que o mecanismo de Frank-Starling continua activo.
5. Em condições patológicas.
Quando a frequência cardíaca é muito baixa, ou na presença de insuficiência cardíaca, o
aumento da pré-carga, provocado por um enchimento ventricular acima dos valores
normais, pode permitir elevar o volume de ejecção para valores compatíveis com a
vida.
PÓS-CARGA
Músculo cardíaco isolado
No músculo cardíaco isolado, a pós-carga consiste na tensão exercida sobre o músculo
depois deste iniciar a sua contracção, ou seja, é a soma das cargas contra as quais o músculo
tem de se encurtar. Os seus efeitos na função muscular são ilustrados pelas relações tensão
activa-comprimento (figura 7) e velocidade de encurtamento-tensão (figura 9). Destas
figuras ressalta que um aumento da pós-carga provoca uma diminuição do grau e da
velocidade de encurtamento muscular.
Figura 9. Relação velocidade de
encurtamento-tensão.
A relação velocidade de encurtamento-tensão obtém-se representando graficamente a
velocidade máxima de encurtamento de variadas contracções isotónicas, produzidas contra
diferentes níveis de pós-carga, em função do respectivo nível de pós-carga. Esta relação tem
uma forma aproximadamente hiperbólica sendo caracterizada por dois pontos fundamentais:
1. “P0”: corresponde à tensão desenvolvida quando a velocidade de encurtamento é zero,
ou seja, em condições isométricas. À medida que a carga aumenta a velocidade de
encurtamento diminui progressivamente, podendo ser nula se a carga for de tal forma
elevada que o músculo não se consiga encurtar. Nestas condições, estamos perante
uma contracção isométrica, na qual por definição a força desenvolvida é máxima para
as condições experimentais consideradas, enquanto o grau e a velocidade de
encurtamento são mínimas, ou seja, zero.
19
2. “Vmax”: corresponde à velocidade de encurtamento quando a carga é zero.
Teoricamente, a velocidade de encurtamento é máxima nestas circunstâncias. O valor
de Vmax não pode, no entanto, ser determinado directamente, sendo por isso obtido por
extrapolação a partir da relação velocidade de encurtamento-tensão. Uma das
particularidades de Vmax, que lhe confere particular importância, consiste no facto de
não ser afectada pela pré-carga, embora seja bastante sensível a alterações da
contractilidade ou inotropismo.
Coração intacto
Avaliação da pós-carga
A pós-carga é, por definição, o somatório das cargas contra as quais o músculo tem de
se encurtar. Quando este conceito é aplicado ao coração intacto, a pós-carga pode ser definida
como a tensão exercida sobre as fibras da parede ventricular durante a fase de ejecção. Tal
como foi dito a propósito da pré-carga, o cálculo da tensão da parede ventricular implica, de
acordo com a lei de Laplace, o registo simultâneo da pressão, da espessura da parede e de um
ou mais diâmetros ventriculares, o que coloca problemas de ordem prática. No caso da
pós-carga, dever-se-á ainda ter em conta que durante a fase de ejecção a tensão da parede
ventricular (pós-carga) não é constante, pois os diâmetros ventriculares diminuem, a pressão
intraventricular varia e a espessura da parede aumenta. A pós-carga pode ainda ser avaliada
pela medição da impedância aórtica, uma vez que esta constitui um dos seus determinantes
mais importantes. A necessidade de se proceder ao registo simultâneo de pressões e de fluxos,
se possível no mesmo local da aorta e utilizando métodos de alta precisão, limita o uso deste
índice na prática clínica. É por isso que a avaliação clínica da pós-carga foi durante muito
tempo feita a partir da pressão arterial sistólica, apesar das limitações evidentes de tal
aproximação.
O aparecimento de técnicas de imagem, como a ecocardiografia, que permitem a
determinação não invasiva da espessura da parede e dos diâmetros ventriculares, tornou mais
fácil e acessível uma avaliação relativamente precisa da pós-carga.
Efeitos da pós-carga
No coração intacto, uma alteração da pós-carga num determinado sentido provoca
alterações no sentido oposto do volume e da velocidade de ejecção. Estes efeitos são
semelhantes aos anteriormente descritos para o músculo isolado, se considerarmos que o
volume de ejecção é comparável ao encurtamento muscular e que a velocidade de ejecção é
comparável à velocidade de encurtamento. Os efeitos da pós-carga no ventrículo intacto estão
ilustrados na figura 10, onde se representam as ansas pressão-volume de quatro ciclos
cardíacos a diferentes níveis de pós-carga, juntamente com as respectivas relações
pressão-volume telediastólica e telessistólica.
Figura 10. Ansas pressão-volume de quatro ciclos cardíacos a diferentes
níveis de pós-carga e respectivas relações pressão-volume
telediastólica e telessistólica.
21
É de notar que a pressão e o volume telediastólicos (pré-carga) são iguais nos quatro
ciclos cardíacos representados, o que se traduz pela sobreposição dos cantos inferiores
direitos das quatro ansas pressão-volume na figura 10. O aumento da pós-carga, indicado
então pelas pressões sistólicas crescentes, provoca uma diminuição do volume de ejecção,
traduzido graficamente pela diminuição da largura da ansa pressão-volume. No ciclo cardíaco
4 a resistência à ejecção é de tal forma elevada que o ventrículo não a consegue vencer. Neste
caso obtém-se um ciclo cardíaco isovolumétrico, que se representa por um segmento de recta
vertical, ou seja, uma ansa pressão-volume cuja largura é zero.
Importância fisiológica e controle da pós-carga no coração intacto
No coração in situ, os componentes periféricos da pós-carga ventricular esquerda
incluem as resistências vasculares periféricas, a impedância aórtica, as características físicas
da parede vascular arterial, o volume de sangue na aorta e a viscosidade sanguínea. Os
factores correspondentes para o ventrículo direito são a resistência vascular pulmonar, a
impedância do tronco pulmonar, as características físicas da rede arterial pulmonar, o volume
de sangue na artéria pulmonar e a viscosidade sanguínea. Além destes factores periféricos, o
diâmetro e a espessura da parede ventricular são, de acordo com a lei de Laplace, também
componentes importantes da pós-carga. Assim, um aumento do volume telediastólico eleva
simultaneamente a pré-carga e a pós-carga. Enquanto a elevação da pré-carga é determinada
pelo aumento do comprimento pré-contráctil das fibras ventriculares, a elevação da pós-carga
é mediada por uma diminuição da espessura da parede e por um aumento dos diâmetros
ventriculares.
A importância da pós-carga na regulação da função cardíaca manifesta-se em várias
situações, nomeadamente:
1. Na regulação da pressão arterial.
Uma variação da pressão arterial provoca uma alteração da pós-carga no mesmo sentido
e consequentemente uma alteração em sentido oposto do volume de ejecção e do
débito cardíaco. Assim, por exemplo, se a pressão arterial aumentar, o consequente
aumento da pós-carga determina uma diminuição do volume de ejecção e tende a fazer
regressar a pressão arterial ao seu valor inicial.
2. Na resposta do ventrículo esquerdo a um aumento súbito da pressão aórtica.
Um aumento súbito da pressão aórtica provoca uma diminuição imediata do volume de
ejecção. Há, contudo, uma recuperação parcial da função cardíaca alguns ciclos após
aquele aumento da pós-carga. Este fenómeno foi designado auto-regulação
homeométrica da função cardíaca, uma vez que, ao contrário da auto-regulação
heterométrica, não foi relacionado com alterações do comprimento da fibra muscular.
É por vezes também denominado efeito de Anrep, em homenagem ao investigador
que descreveu o fenómeno pela primeira vez. Os mecanismos subjacentes a esse
aumento da função cardíaca não estão ainda totalmente esclarecidos. As hipóteses
explicativas incluem: 1) um aumento da contractilidade, secundário à elevação da
pressão de perfusão coronária e à recuperação de uma isquemia subendocárdica
transitória; e 2) um aumento da pré-carga, em consequência da diminuição do volume
de ejecção (mecanismo de Frank-Starling).
3. No equilíbrio do débito dos dois ventrículos.
A diminuição do volume de ejecção de um dos ventrículos leva a uma acumulação de
sangue a montante desse ventrículo. Isto provoca um aumento da pós-carga do
ventrículo contralateral e consequentemente uma diminuição do volume de ejecção
deste. Assim, além da pré-carga, também a pós-carga desempenha um importante
papel no equilíbrio do débito dos dois ventrículos.
4. Em condições patológicas.
As patologias que se acompanham de uma diminuição da contractilidade, como por
exemplo a insuficiência cardíaca, são muitas vezes agravadas por um aumento
concomitante da pós-carga. Este facto explica a melhoria clínica destes doentes
quando são tratados com fármacos que diminuem a pós-carga, como por exemplo os
anti-hipertensores.
23
INOTROPISMO
Músculo cardíaco isolado
A contractilidade ou inotropismo é traduzida pela velocidade e grau de encurtamento
ou desenvolvimento de tensão pelo músculo, a níveis determinados de pré-carga e de
pós-carga. Assim, um aumento da contractilidade provoca nas contracções isométricas um
aumento da velocidade e da capacidade de desenvolvimento de tensão e nas contracções
isotónicas um aumento do grau e da velocidade de encurtamento muscular. Estes efeitos são
produzidos na ausência de variações da carga. Uma intervenção que aumente a
contractilidade é denominada inotrópica positiva, enquanto uma intervenção que a diminua é
denominada inotrópica negativa. As alterações da contractilidade têm sido atribuídas a
variações da quantidade de cálcio disponível para a contracção muscular e/ou a alterações da
sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio.
Um método ideal de avaliação da contractilidade deverá ser independente da carga e
incluir as variáveis força, comprimento, velocidade e tempo. Assim, no músculo isolado a
contractilidade é normalmente avaliada pela relação tensão activa-comprimento (figura 7) e
pela relação velocidade de encurtamento-tensão (figura 9). Um aumento da contractilidade
provoca um deslocamento para cima e para a esquerda da relação tensão activa-comprimento
(figura 11).
Figura 11. Efeitos de um aumento da contractilidade
(curva a tracejado) na relação tensão
activa-comprimento.
24
O deslocamento desta relação para cima traduz o aumento da tensão máxima
desenvolvida nas contracções isométricas, a qualquer nível de pré-carga; o deslocamento para
a esquerda reflecte o aumento do encurtamento muscular nas contracções isotónicas, a
qualquer nível de pré-carga e de pós-carga.
Como foi acima referido a propósito dos efeitos da pós-carga, a relação velocidade de
encurtamento-tensão é aproximadamente hiperbólica, sendo caracterizada por dois pontos
fundamentais: “P0”, que corresponde à tensão máxima desenvolvida pelo músculo numa
contracção isométrica, e “Vmax”, que representa a velocidade de encurtamento quando a carga
é zero. Como se pode observar na figura 12, um aumento da contractilidade desloca esta
relação para cima e para a direita, o que traduz um aumento da velocidade de encurtamento a
qualquer nível de carga.
Figura 12. Efeitos de um aumento da contractilidade
(curva superior) na relação velocidade de
encurtamento-tensão.
Assim, quer P0 quer Vmax aumentam (P'0 e V'max) quando a contractilidade aumenta.
Além desta sensibilidade a alterações da contractilidade, Vmax tem ainda a particularidade de
não ser afectada pela pré-carga. Este facto, faz com que a Vmax seja considerada um dos
melhores e mais sensíveis indicadores da contractilidade ou inotropismo.
25
Coração intacto
Avaliação da contractilidade
A avaliação da contractilidade ventricular já foi abordada no início desta
apresentação. Relembramos, no entanto, que dos vários índices de contractilidade aí
enumerados se destacou, pelo facto de ser independente da carga, o declive da relação
pressão-volume telessistólica, também designado Emax ("maximal elastance"). Concluiu-se
que este índice deve ser preferido e utilizado sempre que possível para avaliar a
contractilidade ventricular.
Efeitos da contractilidade
No coração intacto, a um determinado nível de pré-carga e de pós-carga, um aumento
da contractilidade provoca um aumento do volume e da velocidade de ejecção nos ciclos
cardíacos com fase de ejecção, e um aumento da pressão máxima desenvolvida nos ciclos
isovolumétricos. Parte destes efeitos estão ilustrados na figura 13, onde se representam as
ansas pressão-volume de 6 ciclos cardíacos, juntamente com as respectivas relações
pressão-volume telediastólica e telessistólica.
Figura 13. Efeitos da contractilidade na função cardíaca. Ansas
pressão-volume de seis ciclos cardíacos e respectivas relações
pressão-volume telediastólica e telessistólica.
26
Dos ciclos cardíacos representados, três possuem fase de ejecção (ciclos 1, 3 e 5) e
três não (ciclos isovolumétricos: 2, 4 e 6). É de notar que a pressão e volume telediastólicos
(pré-carga) são comuns aos 6 ciclos cardíacos. Os ciclos 1 e 2 partilham a mesma relação
pressão-volume telessistólica (linha a cheio), ou seja, têm uma contractilidade semelhante.
Um estímulo inotrópico positivo (aumento da contractilidade) provoca um aumento do
volume de ejecção (ciclo 3), da pressão máxima desenvolvida sob condições isovolumétricas
(ciclo 4) e do declive da relação pressão-volume telessistólica (linha a tracejado superior).
Um estímulo inotrópico negativo (diminuição da contractilidade) tem efeitos opostos (ciclos
5 e 6, linha a tracejado inferior).
Importância fisiológica e controle da contractilidade no coração intacto
À semelhança dos outros determinantes da função cardíaca, a contractilidade ou
inotropismo tem uma grande importância fisiológica, pois permite que a função cardíaca seja
rapidamente alterada e adaptada às necessidades do momento do organismo. Dentre os vários
factores que afectam a contractilidade miocárdica destacamos, pela sua relevância, os
mecanismos neurohumorais, que incluem:
1. O sistema nervoso autónomo, no qual se destaca o sistema simpático. A quantidade
de catecolaminas libertada pelos terminais nervosos simpáticos do coração é, em
condições fisiológicas, provavelmente o factor mais importante na regulação da
contractilidade miocárdica. De facto, as variações rápidas da contractilidade no
organismo intacto são efectuadas fundamentalmente à custa de variações no número
de impulsos nos nervos cardíacos adrenérgicos. A libertação de catecolaminas pela
medula supra-renal, embora tenha acções cardíacas mais lentas que as dos nervos
simpáticos, pode adquirir particular relevância em situações como a hipovolemia e a
insuficiência cardíaca congestiva. O sistema nervoso parassimpático tem um efeito
menos importante sobre a contractilidade, sendo inotrópico negativo a nível auricular.
O seu efeito a nível ventricular ainda não está completamente esclarecido, parecendo,
contudo, ter pouca importância fisiológica, dada a escassa inervação parassimpática
dos ventrículos.
27
2. O endotélio cardíaco. À semelhança do endotélio vascular, que tem um importante
papel na regulação da vasomotricidade, também os endotélios endocárdico e vascular
coronário (endotélio cardíaco) são importantes moduladores da função cardíaca. Os
trabalhos experimentais sugerem que, em condições fisiológicas, o endotélio cardíaco
tem um efeito inotrópico positivo. Os efeitos do endotélio na função cardíaca são
provavelmente mediados pela libertação de várias substâncias, tais como: o monóxido
de azoto (NO), a endotelina-1 e a prostaciclina (PGI2). Além disso, existem evidências
experimentais de que os efeitos cardíacos de várias substâncias são influenciados pelo
endotélio, nomeadamente: os agonistas α1, o peptídeo natriurético auricular, a
vasopressina, a 5-hidroxitriptamina, as angiotensinas I e II, a endotelina-1 e os dadores
de NO, como por exemplo, o nitroprussiato de sódio.
3. Hormonas. Várias hormonas influenciam a contractilidade miocárdica. Enquanto, por
exemplo, as angiotensinas I e II, a vasopressina, o cortisol, a glicagina e as hormonas
tiróideias T3 e T4 têm um efeito inotrópico positivo, o peptídeo natriurético auricular
tem um efeito inotrópico negativo. Como foi acima referido, este efeito inotrópico
pode ser, nalguns casos, influenciado pelo endotélio cardíaco. Convém lembrar que
algumas hormonas, além dos seus efeitos na contractilidade, podem ainda influenciar
os outros determinantes da função cardíaca, ou seja, a pré-carga, a pós-carga e a
frequência cardíaca. As variações da carga devem-se fundamentalmente aos seus
efeitos sobre a vasomotricidade e/ou a natriurese.
A importância da contractilidade na modulação da função cardíaca manifesta-se em
variadas situações fisiológicas e patológicas, tais como:
1. Alterações hemodinâmicas.
Uma variação da pressão arterial, por exemplo, induz, pelo reflexo barorreceptor, uma
alteração da contractilidade: uma diminuição da pressão arterial provoca um aumento
da contractilidade e vice-versa. O aumento da contractilidade eleva o débito cardíaco e
consequentemente a pressão arterial.
28
2. Extra-sístoles e variações da frequência cardíaca.
Afectam a contractilidade miocárdica pela relação força-frequência, que consiste no
aumento da contractilidade após uma extra-sístole ou em resposta a um aumento da
frequência cardíaca.
3. Alterações metabólicas.
As alterações metabólicas provocadas pela isquemia, hipoxia ou acidose deprimem a
função cardíaca.
4. Patologia endócrina.
Os seus efeitos na contractilidade dependem do tipo de hormona envolvida e dos seus
níveis plasmáticos. São exemplo de patologias endócrinas que se acompanham de
alterações da contractilidade, o feocromocitoma, os tumores do córtex supra-renal, o
hipotiroidismo e o hipertiroidismo.
5. Perturbações da estrutura e função cardíacas:
5.1. Necrose miocárdica, incluindo o enfarte do miocárdio. Apesar da disfunção
regional, provocada pelo miocárdio necrótico, a função cardíaca global pode estar
preservada devido ao aumento compensatório da contractilidade do miocárdio
normal. Para a manutenção da função cardíaca global nestas condições
contribuem ainda outros factores, nomeadamente o aumento da pré-carga.
5.2. Insuficiência cardíaca. Esta condição patológica é caracterizada por uma
diminuição da contractilidade miocárdica, o que induz a estimulação dos
mecanismos que tendem a aumentar a função cardíaca. Em situações graves, estes
mecanismos podem ser incapazes de manter, mesmo em repouso, uma função
cardíaca adequada às necessidades do organismo.
6. Resposta a fármacos:
6.1. Inotrópicos positivos: aminas simpaticomiméticas, glicosídeos cardiotónicos,
cafeína, teofilina, amrinona, milrinona, etc.
6.2. Inotrópicos negativos: bloqueadores-β, bloqueadores dos canais de cálcio,
barbitúricos, bem como a maioria dos anestésicos gerais e locais.
29
FREQUÊNCIA DE CONTRACÇÃO
Músculo cardíaco isolado
No músculo cardíaco, a frequência e a sequência com que se geram os potenciais de
acção podem afectar consideravelmente a função muscular, ou seja, a força desenvolvida ou o
grau de encurtamento muscular. São exemplos destes efeitos as alterações da função muscular
provocadas por variações da frequência de contracção e por contracções prematuras. Estes
fenómenos estão relacionados com alterações da cinética do cálcio.
Um aumento da frequência de contracção provoca uma diminuição imediata da força
desenvolvida. Segue-se, então, uma fase de recuperação progressiva que acaba por estabilizar
num novo nível em que a força desenvolvida é superior à inicial. Isto significa que em última
instância, um aumento da frequência de contracção acaba por ter um efeito inotrópico
positivo, conhecido por relação força-frequência ou efeito de Bowditch. Este efeito
inotrópico positivo é tanto mais pronunciado, quanto maior for o aumento da frequência de
contracção.
A diminuição imediata da força desenvolvida após um aumento da frequência de
contracção deve-se, pelo menos em parte, à incompleta recuperação das reservas de cálcio
pelo retículo sarcoplasmático e outros locais de armazenamento. Durante o relaxamento
muscular o cálcio é bombeado activamente para os locais de armazenamento. São, contudo,
necessários 500 a 800 ms para que o cálcio reabsorvido pelo retículo sarcoplasmático esteja
disponível para ser libertado em resposta à despolarização seguinte. Quando a frequência de
contracção aumenta, o intervalo de tempo entre duas contracções sucessivas, que corresponde
ao período de recuperação das reservas de cálcio, diminui. Este facto explica o decréscimo da
quantidade de cálcio disponível para a contracção e consequentemente a diminuição da força
desenvolvida.
O fenómeno de Bowditch ou relação força-frequência, que consiste no aumento
progressivo da força desenvolvida em resposta a um aumento da frequência de contracção, é
mediado por um aumento gradual da concentração intracelular de cálcio durante a contracção
muscular. Este aumento da concentração intracelular de cálcio é devido ao maior número de
despolarizações por minuto e ao aumento do fluxo de cálcio para o sarcoplasma em cada
despolarização, em consequência da estimulação da actividade reabsorptiva do retículo
sarcoplasmático.
As alterações da função muscular induzidas por contracções prematuras são também
mediadas por alterações da cinética do cálcio. A estimulação prematura de um músculo, que
se estava a contrair com uma determinada frequência, provoca uma diminuição da força de
contracção, que é tanto mais acentuada quanto menor for o intervalo de tempo entre a
contracção normal e a contracção prematura ou extra. Este fenómeno é semelhante à
diminuição imediata da função muscular após um aumento da frequência cardíaca e, como
tal, pode ser explicado pela incompleta recuperação das reservas de cálcio pelo retículo
sarcoplasmático e outros locais de armazenamento. A uma contracção prematura segue-se
uma pausa prolongada e uma contracção muscular que desenvolve mais força que o normal.
Este aumento da força muscular constitui um efeito inotrópico positivo que é tanto mais
pronunciado quanto mais prematura tiver sido a contracção extra. Este efeito inotrópico
positivo é explicado por um aumento da quantidade de cálcio libertada para o sarcoplasma
durante a fase de contracção. Isto acontece porque o período de repouso prolongado que se
segue a uma contracção prematura torna possível a reabsorção de uma maior quantidade de
cálcio pelos locais de armazenamento ao mesmo tempo que lhe permite tornar-se disponível
para ser libertado durante a fase de contracção. O referido efeito inotrópico positivo diminui
rapidamente de intensidade, desaparecendo por completo ao fim de três ou quatro
contracções.
Coração intacto
A frequência e sequência de contracção também afectam a função do coração intacto.
Neste, é comum denominar a frequência de contracção por frequência cardíaca e as
contracções prematuras por extra-sístoles.
Efeitos da frequência cardíaca
No coração intacto, um aumento da frequência de contracção também provoca um
aumento da contractilidade miocárdica pela relação força-frequência. Este efeito é, no
entanto, menos pronunciado que no músculo isolado, sendo mais facilmente demonstrável
31
quando a função cardíaca está comprometida e relativamente modesto quando essa função é
normal. Apesar dos seus efeitos modestos na contractilidade ventricular, a frequência de
contracção é um importante determinante da função cardíaca, uma vez que influencia
directamente o débito:
débito cardíaco = volume de ejecção x frequência cardíaca
Esta fórmula chama, no entanto, a atenção para o facto dos efeitos da frequência
cardíaca no débito dependerem do volume de ejecção. À medida que a frequência aumenta o
tempo de enchimento ventricular diminui e a contractilidade aumenta ligeiramente. Enquanto
o primeiro efeito tende a diminuir o volume de ejecção, o segundo tende a aumentá-lo.
Assim, quando se avaliam os efeitos da frequência sobre a função cardíaca deve ter-se em
conta a importância relativa dos vários factores que afectam o volume de ejecção. Se a
frequência for alterada por intermédio de um marca-passo ("pacemaker"), desde
aproximadamente 50 até cerca de 180 ciclos por minuto, o débito cardíaco manter-se-á
relativamente constante. Isto acontece porque o volume de ejecção diminui quando a
frequência aumenta, uma vez que o retorno venoso não se altera e o tempo de enchimento
ventricular se encurta. No entanto, se um aumento semelhante da frequência for provocado
pelo exercício físico o débito cardíaco aumentará, apesar do tempo de enchimento ventricular
se encurtar. Este facto fica a dever-se fundamentalmente ao aumento do retorno venoso que
acompanha o exercício físico. Estes fenómenos evidenciam a importância da interacção entre
a função cardíaca e a circulação periférica, a qual cai, no entanto, fora do âmbito desta
apresentação.
Importância fisiológica e controle da frequência cardíaca
Tal como se referiu, se o volume de ejecção for constante, o débito cardíaco será
directamente proporcional à frequência de contracção. A importância da frequência na
adaptação do débito às necessidades do momento do organismo é facilmente demonstrável
em animais de experiência ou em pacientes que não possam alterar a frequência cardíaca.
Estes são incapazes de aumentar adequadamente o débito cardíaco mesmo quando a função
miocárdica é perfeitamente normal. A adaptação ao exercício físico é um exemplo clássico da
importância fisiológica da frequência na regulação do débito.
Os principais determinantes da frequência cardíaca são o automatismo intrínseco do
nó sinusal e a actividade do sistema nervoso autónomo. O automatismo intrínseco do nó
sinusal pode ser alterado por vários factores, tais como a temperatura e o metabolismo. A
febre e o hipertiroidismo aumentam a frequência cardíaca (efeito cronotrópico positivo),
enquanto a hipotermia e o hipotiroidismo a diminuem (efeito cronotrópico negativo).
Relativamente ao sistema nervoso autónomo, o sistema nervoso simpático tem um efeito
cronotrópico positivo, enquanto o sistema nervoso parassimpático tem um efeito cronotrópico
negativo.
Extra-sístoles
O efeito de uma extra-sístole no coração intacto é semelhante ao efeito de uma
contracção prematura no músculo isolado, ou seja, a diminuição da função cardíaca é tanto
mais pronunciada quanto mais prematura tiver sido a extra-sístole. Este fenómeno está
também relacionado com a incompleta recuperação das reservas de cálcio. Ainda à
semelhança do que acima foi dito para as contracções prematuras no músculo isolado,
também as extra-sístoles são seguidas de uma pausa prolongada e de um ciclo cardíaco em
que a função está aumentada. Este aumento da função cardíaca não se deve, no entanto,
apenas a um efeito inotrópico positivo provocado por uma maior libertação de cálcio durante
a contracção, semelhante ao que foi descrito para o músculo isolado. No coração intacto, a
pausa diastólica prolongada permite um enchimento ventricular mais eficaz, o qual pelo
mecanismo de Frank-Starling aumenta a função cardíaca. Em resumo, o aumento da função
cardíaca no ciclo que se segue a uma extra-sístole é provocado por um aumento quer da
contractilidade quer da pré-carga e denomina-se potenciação pós-extra-sistólica.
A potenciação pós-extra-sistólica pode ser utilizada para aumentar continuamente a
contractilidade através de uma técnica denominada “estimulação eléctrica emparelhada”. Esta
técnica, consiste na estimulação cardíaca contínua com pares de estímulos, ocorrendo o
segundo estímulo imediatamente após o período refractário do primeiro. O segundo estímulo
provoca assim uma extra-sístole bastante prematura e uma contracção cardíaca de pequena
grandeza. A esta extra-sístole segue-se uma contracção cardíaca mais forte que o normal em
33
consequência da potenciação pós-extra-sistólica. Este efeito inotrópico positivo esteve na
base da utilização terapêutica desta “estimulação eléctrica emparelhada” em condições
patológicas associadas a uma contractilidade miocárdica comprometida. O seu uso clínico é,
no entanto, limitado pelo elevado risco de ocorrerem outras formas de arritmia cardíaca,
nomeadamente, fibrilação ventricular.
NOTAS FINAIS
Tal como foi referido no início desta apresentação, os vários determinantes da função
cardíaca foram descritos isoladamente apenas por questões pedagógicas. Na descrição
individual de cada um dos determinantes foram sendo referidas as suas interacções com um
ou mais dos restantes factores. Antes de terminar, passaremos a enumerar essas interacções,
explicando sucintamente cada uma delas:
1. Interacção pré-carga / pós-carga.
No coração intacto, um aumento da pré-carga eleva a pós-carga por dois mecanismos
distintos: 1) a diminuição da espessura da parede e o aumento dos diâmetros
ventriculares condicionam, pela lei de Laplace, um aumento da tensão da parede antes
e depois do ventrículo se começar a contrair (pós-carga); 2) o aumento do volume de
ejecção induzido pelo aumento da pré-carga leva a uma elevação da pressão arterial e
consequentemente da pós-carga. Por seu turno, um aumento da pós-carga também
eleva a pré-carga no coração intacto, uma vez que ao diminuir o volume de ejecção
induz um aumento do volume telediastólico (pré-carga) nos ciclos cardíacos seguintes.
2. Interacção pré-carga / inotropismo.
Uma elevação da pré-carga provoca um aumento imediato da sensibilidade dos
miofilamentos ao cálcio, o que representa um efeito inotrópico positivo. Além deste
efeito imediato, foi ainda descrito um aumento adicional da contractilidade nos 10
minutos que se seguem a uma elevação do volume telediastólico (pré-carga). Este
fenómeno foi atribuído a um aumento da libertação de cálcio pelo retículo
sarcoplasmático.
3. Interacção pós-carga / inotropismo.
Uma elevação súbita da pós-carga provoca um aumento da contractilidade, sendo este
fenómeno conhecido por efeito de Anrep. Este efeito tem sido atribuído: 1) a um
aumento da contractilidade, secundário à elevação da pressão de perfusão coronária e
à recuperação de uma isquemia subendocárdica transitória; e 2) a um aumento da
pré-carga, em consequência da diminuição do volume de ejecção (mecanismo de
Frank-Starling).
35
4. Interacção frequência cardíaca / inotropismo.
Um aumento da frequência cardíaca provoca uma elevação da concentração intracelular
de cálcio, o que representa um efeito inotrópico positivo. Este efeito é conhecido por
relação força-frequência.
5. Interacção frequência cardíaca / pré-carga.
Um aumento da frequência cardíaca provoca uma diminuição do tempo de enchimento
ventricular e consequentemente da pré-carga e do volume de ejecção. Quando a
frequência cardíaca é muito elevada (superior a 180 batimentos por minuto), o
enchimento ventricular e consequentemente o volume de ejecção podem ficar de tal
forma comprometidos que sobrepujem o efeito positivo da frequência no débito
cardíaco.
Em resumo, a função cardíaca melhora quando a pré-carga, a contractilidade ou a
frequência cardíaca aumentam, ou quando a pós-carga diminui e vice-versa. Desta forma, não
é de estranhar que os efeitos de determinado factor na função cardíaca possam ser
contrariados pelos efeitos de outro que actue em sentido oposto. É por isso que, na avaliação
dos efeitos de qualquer intervenção sobre a função cardíaca sistólica, é muito importante ter
em conta os seus vários determinantes, bem como as possíveis interacções entre eles. Na
verdade, pode inclusivamente acontecer que a função cardíaca não tenha sido globalmente
alterada apesar de terem ocorrido variações individuais importantes de alguns daqueles
factores.
36
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