UMA OPINIÃO CRÍTICA SOBRE
A QUALIDADE E A UTILIDADE DOS
TRABALHOS DE CONSULTORIA
AMBIENTAL SOBRE AVIFAUNA
Marcelo Ferreira de Vasconcelos
Nas últimas duas décadas, a demanda por serviços em consultoria ambiental abriu novas opções de trabalho para os ornitólogos brasileiros, possibilitando, desse modo, o conhecimento sobre a avifauna em regiões que ainda não haviam sido amostradas.
Após atuar por mais de seis anos como consultor, gostaria de comentar a respeito da importância que os resultados desses trabalhos têm para ampliar o conhecimento sobre a avifauna, criticar o
uso indevido ou limitado de certas metodologias empregadas e sugerir melhorias para a obtenção de dados mais confiáveis que sirvam a estudos sobre biogeografia e conservação das aves. Realizei levantamentos em cinco estados brasileiros, a saber: Maranhão (28 dias em campo, 450 horas de escritório, 12 municípios
visitados), Mato Grosso (19 dias em campo, 240 horas de escritório, 1 município visitado), Mato Grosso do Sul (24 dias em campo, 144 horas de escritório, 1 município visitado), Minas Gerais
(251 dias em campo, 2.276 horas de escritório, 35 municípios visitados) e Pará (21 dias em campo, 352 horas de escritório, 4 municípios visitados). Além disso, consultei mais de 150 Relatórios de
Impacto Ambiental (RIMAs) produzidos por outros ornitólogos
entre os anos de 1989 e 2000, disponíveis na biblioteca da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM - MG), a fim de avaliar o
estado geral e a qualidade de tais estudos. Por questões éticas, omito os nomes de empreendedores, empreendimentos ou localidades visitadas. O objetivo deste artigo é o de apenas apontar alguns
tópicos sobre como os trabalhos de consultoria ambiental sobre
avifauna vêm sendo realizados e as falhas metodológicas básicas
que os mesmos apresentam.
Tempo de amostragem limitado
Este é um dos problemas mais comuns enfrentados pelos consultores ambientais. A maioria dos estudos de diagnóstico da avifauna é realizada em tempo muito restrito, o que limita a eficácia
dos relatórios de Estudo e Relatório de Impacto Ambiental
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(EIA/RIMA), Relatório de Controle Ambiental (RCA), Plano de
Controle Ambiental (PCA) e de monitoramento. Em certos levantamentos realizados em áreas relativamente amplas nas quais
ocorrem diversas fitofisionomias e micro-hábitats, as amostragens de campo são geralmente realizadas em uma ou duas campanhas de campo que ocorrem em intervalos de três a nove dias para
cada campanha. Nesses casos, devido às restrições que esses intervalos de tempo impõem, espera-se que os diagnósticos relatem
apenas uma parcela da avifauna que efetivamente ocorra nessas
áreas. Isso se deve ao fato de que curvas cumulativas de espécies
por tempo de coleta (Fig. 1) não se estabilizam após poucos dias
de levantamento (Magurran 1988), especialmente na Região Neotropical, onde a diversidade em espécies de aves é a maior do planeta (Sick 1997). Ademais, espécies raras ou ameaçadas de extinção tendem a apresentar baixas densidades populacionais, por isso, o tempo necessário para sua detecção é obviamente maior.
Conseqüentemente, a maioria dos diagnósticos sobre avifauna para estudos de consultoria ambiental exclui tais espécies. Nesses estudos, estas são as espécies mais importantes, pois quanto maior
for o seu número amostrado haverá um maior acréscimo de argumentos a favor da implantação de medidas para a conservação e o
manejo do hábitat em que estas ocorrem.
Outro problema relacionado ao tempo de amostragem em diagnósticos de avifauna é o da ocorrência de estudos baseados em
campanhas temporalmente pontuais, realizadas em uma única estação do ano. Caso a campanha inclua a estação reprodutiva, aumentam as chances de que um maior número de espécies seja detectado, pois os indivíduos da maioria delas tornam-se mais ativos e vocalizam com maior freqüência durante o período reprodutivo. Por outro lado, caso a campanha ocorra em épocas frias e
secas, ou em dias chuvosos, o resultado do levantamento será prejudicado, tendo em vista que o diagnóstico será baseado em uma
pequena porcentagem da avifauna total que ocorre na área. Além
disso, espécies migratórias são eventuais em determinadas épocas do ano e, por esse motivo, podem ser excluídas das listagens
que forem baseadas em um único episódio de amostragem.
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Figura 1. Curva cumulativa de
encontro de espécies ao longo do
tempo para as aves registradas nos
campos rupestres da Serra do
Caraça (Fonte: Vasconcelos 2001).
Note que a curva só tende a
estabilização após mais de 80 dias
de levantamento de campo (seta).
Neste caso, os campos rupestres
são relativamente pobres em
espécies quando comparados com
outras regiões, a exemplo da Mata
Atlântica e da Floresta Amazônica,
onde o tempo em campo
necessário para estabilizar a curva
do coletor seria muito maior.
Os métodos empregados em programas de monitoramento são
muitas vezes bem adequados ao problema e se baseiam em técnicas apropriadas (Bibby et al. 1992, Gibbons et al. 1996, Sutherland et al. 2004), mas o tempo disponível para executá-los limita
sua eficácia. Por exemplo, consideremos um estudo que vise avaliar os impactos da implantação de um determinado empreendimento sobre a comunidade de aves em uma certa área. Métodos
baseados na literatura científica são sugeridos pelos consultores e
usados para avaliar se houve modificações na composição da avifauna, na densidade das espécies e em seus territórios, antes e depois do empreendimento. Mas, geralmente, os resultados obtidos
por meio do emprego de tais métodos são comprometidos pelo
curto tempo de amostragem despendido no estudo. Em alguns casos, um número menor de campanhas é realizado antes da implantação dos empreendimentos, em comparação com o número
de campanhas após a sua implantação. Nesses casos, o tempo é insuficiente para que seja feito um bom levantamento das espécies
da avifauna, para propiciar uma noção adequada da ocorrência sazonal das mesmas e para realizar estudos eficazes baseados no
censo e no anilhamento de aves nas condições originais antes de
ocorrer o impacto do empreendimento. Assim, na maioria das vezes, não é possível inferir se as modificações ocorridas na composição e na diversidade da avifauna foram devidas à descaracterização do ambiente original ou mesmo ao conhecimento insuficiente sobre a avifauna antes que os impactos ocorressem.
Finalmente, a pressa dos empreendedores em apresentar os documentos ambientais necessários para obter a licença de implantação do empreendimento, associada à economia resultante do pagamento de um número menor horas de consultoria são os principais motivos de que a amostragem em campo seja realizada em espaço de tempo limitado.
Falta de critérios consistentes para a identificação das espécies de aves
A cada ano, um número maior de biólogos entra no mercado de
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trabalho proporcionado pela consultoria ambiental. Muitos deles
procuram este tipo de atividade devido à sua maior rentabilidade.
Um problema básico, constatado em diversos estudos, é o da ausência da formação desses biólogos como naturalistas, pois atualmente existe uma forte tendência à especialização, com a concomitante perda de uma visão mais abrangente e interativa sobre o
mundo natural. Como exemplo, consideremos dois tipos comuns
de estudantes de ornitologia da atualidade. Um deles se especializa no estudo de algum aspecto do comportamento reprodutivo em
determinada espécie de ave. Outro se especializa no seqüenciamento de genes de espécies de um determinado gênero. Como resultado de seus estudos, estes dois estudantes de ornitologia podem até mesmo descobrir novas informações relevantes. Porém,
provavelmente, não conhecem a avifauna da região onde vivem,
pois, devido a sua formação especializada, serão incapazes de reconhecer vocalizações e diversos caracteres morfológicos e comportamentais em espécies até mesmo comuns. Esses são perfis típicos de estudantes que cursam atualmente a graduação em Ciências Biológicas. Devo esclarecer não ser contrário às linhas de pesquisa tais como as exemplificadas acima. No entanto, há problemas quando especialistas de tal natureza acham-se capazes de trabalhar como naturalistas, sem que tenham sido adequadamente
preparados, ou investido – por iniciativa própria – neste aspecto
de sua formação como biólogo. Seguindo essa linha de raciocínio, suponhamos agora que os nossos estudantes hipotéticos concluam seu curso de graduação especializados nas linhas de pesquisa a que se dedicaram, mas com amplas lacunas no conhecimento sobre História Natural. Tais biólogos poderão trabalhar em
consultoria ambiental e produzir diagnósticos de qualidade indesejável, uma vez que não serão capazes de identificar prontamente as espécies de aves, no curto intervalo de tempo geralmente disponível para a realização de levantamento da avifauna em uma determinada área. Esse ornitólogo especialista também falhará na
identificação de espécies raras ou ameaçadas de extinção, tanto
como poderá identificar incorretamente a maioria das espécies
crípticas. A necessidade de voltar a ensinar nossos estudantes a se11
rem bons naturalistas preparados para lidar com a conservação da
biodiversidade é tema de discussão recente (Noss 1996, Rivas
1997, Krupa 2000).
Embora os exemplos sejam hipotéticos, isto é o que acontece a
muitos estudos de consultoria ambiental, principalmente porque
as empresas e os empreendedores preferem, muitas vezes, contratar profissionais recém-formados, com pouca experiência de campo, para economizar no valor pago por hora de consultoria. Além
disso, agindo dessa maneira, teriam uma maior garantia de que as
espécies raras e ameaçadas de extinção seriam mais dificilmente
detectadas. Deste modo, isso poderia contribuir para diminuir os
problemas que teriam diante dos órgãos ambientais fiscalizadores.
Quanto à confiabilidade das identificações contidas em diversos RIMAs que analisei, houve muitos registros duvidosos de espécies para certas regiões geográficas. Caso tais espécies realmente ocorressem nessas áreas, tais registros deveriam ser publicados para aperfeiçoar o conhecimento da distribuição geográfica e conservação dessas espécies. Mas, em geral, não é possível saber, especialmente no caso de espécies crípticas, se o executor do
projeto as identificou corretamente. Uma solução para este problema seria a documentação das espécies durante os trabalhos de
campo pela coleta de exemplares, por fotografias e gravações de
vocalizações. São poucos os estudos de consultoria ambiental
que apresentam registros baseados em espécimes coletados, fotografias e gravações de vocalizações. Caso os impactos de um empreendimento levem uma ou mais espécies crípticas, de identificação duvidosa, à extinção local, já não seria possível saber a respeito de interessantes relações biogeográficas da avifauna daquela área. Infelizmente, os levantamentos recentes sobre a avifauna
mostram forte declínio na atividade de coleta científica de espécimes (Remsen 1995, Winker 1996, Peterson et al. 1998, Tubelis &
Tomas 2003, Freymann & Schuchmann 2005). A coleta científica
de exemplares da avifauna é crucial para o progresso da ornitologia e para a conservação das aves e tem sido abandonada pela falta
de conhecimento dos procedimentos da pesquisa científica, pelo
fato de a conservação ser erroneamente enfocada em nível de indivíduos (e não de população) e por ignorância ou falso moralismo
(Vuilleumier 1988, 2000, Remsen 1995, Winker 1996, RojasSoto et al. 2002). Além disto, muitas de nossas instituições de pesquisa e ensino carecem de taxidermistas capacitados a preparar
exemplares para coleções taxonômicas, o que leva vários pesquisadores a não coletar material zoológico.
Falta de publicação de dados
A maioria dos resultados de estudos sobre distribuição geográfica das aves é publicada por pesquisadores vinculados a universidades. Neste contexto, muitos dos levantamentos de avifauna
publicados no Brasil abrangem áreas já protegidas por lei, a exemplo de diversos tipos de parques e reservas. Por outro lado, os consultores amostram localidades que ainda não foram pesquisadas.
A publicação dos dados provenientes de consultorias é, assim, de
vital interesse para o refinamento do conhecimento da distribuição da avifauna nestas áreas e, conseqüentemente, para a conservação das aves. Tais informações poderiam ser publicadas em periódicos científicos e usadas em 'workshops' para a definição de
áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade, bem como em revisões de listas de espécies ameaçadas de extinção.
Entretanto, na prática, estas informações quase nunca estão disponíveis em forma de publicações, o que representa um enorme
desperdício de tempo e dinheiro despendidos em atividades de
campo.
Os dados oriundos de estudos de campo em consultorias ambi12
entais não são publicados por três motivos principais:
1) as empresas contratantes impedem que os consultores divulguem os dados coletados em campo sem autorização prévia, incluindo nos contratos parágrafos contendo essa restrição. Em
muitos casos, as empresas não autorizam a publicação dos dados ou até mesmo não respondem aos consultores após que estes tenham solicitado permissão para a divulgação dos mesmos;
2) os consultores não têm tempo para publicar ou não têm interesse em divulgar suas listagens e descobertas;
3) os resultados submetidos à publicação, oriundos de estudos de
consultoria ambiental, não são apresentados em formato de artigos científicos ou não apresentam informações confiáveis,
sendo por esses motivos recusados.
Em um próximo artigo, apresentarei sugestões para que os resultados provenientes dos trabalhos de consultoria ambiental sejam mais bem aproveitados em estudos biogeográficos e sobre a
conservação das aves.
Agradecimentos
Agradeço aos caríssimos revisores de versões preliminares do
manuscrito: Prof. R. P. Martins, Pe. L. Palú, J. F. Pacheco e P. N.
Vasconcelos. Sou muito grato às empresas que me proporcionaram a realização de estudos de consultoria ambiental em diversos
pontos do Brasil. À CAPES sou grato pela concessão de uma bolsa de estudos para a realização do doutorado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre da UFMG, que está em andamento.
Referências
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Endereço do autor: Pós-graduação em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre, ICB, UFMG, Belo Horizonte,
MG. E-mail: [email protected]
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