EDUCAÇÃO E FILOSOFIA Reitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Adriana dos Santos Marmori Lima DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I Diretora: Carla Liane N. dos Santos Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenador: Eduardo José Fernandes Nunes GRUPO GESTOR Editora Geral: Tânia Regina Dantas Editora Executiva: Liége Maria Sitja Fornari Coordenadora Administrativa: Noélia Teixeira de Matos Carla Liane N. dos Santos (DEDC I), Eduardo José Fernandes Nunes (PPGEduC), Adailton Ferreira dos Santos, Walter Von Czekus Garrido, Maria Nadija Nunes Bittencourt, Lynn Rosalina Gama Alves (Suplente), Tatiana Santos Borba (representante discente) Conselheiros nacionais Antônio Amorim Universidade do Estado da Bahia-UNEB Ana Chrystina Venâncio Mignot Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ Betânia Leite Ramalho Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN Cipriano Carlos Luckesi Universidade Federal da Bahia-UFBA Dalila Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG Edivaldo Machado Boaventura Universidade Federal da Bahia-UFBA Edla Eggert Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS Elizeu Clementino de Souza Universidade do Estado da Bahia-UNEB Jaci Maria Ferraz de Menezes Universidade do Estado da Bahia-UNEB João Wanderley Geraldi Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP José Carlos Sebe Bom Meihy Universidade de São Paulo-USP Liége Maria Sitja Fornari Universidade do Estado da Bahia-UNEB Maria Elly Hertz Genro Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS Maria Teresa Santos Cunha Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC Nádia Hage Fialho Universidade do Estado da Bahia-UNEB Paula Perin Vicentini Universidade de São Paulo-USP Robert Evan Verhine Universidade Federal da Bahia - UFBA Tânia Regina Dantas Universidade do Estado da Bahia-UNEB Walter Esteves Garcia Associação Brasileira de Tecnologia Educacional / Instituto Paulo Freire Conselheiros internacionais Adeline Becker Brown University, Providence, USA Antônio Gomes Ferreira Universidade de Coimbra, Portugal António Nóvoa Universidade de Lisboa- Portugal Cristine Delory-Momberger Universidade de Paris 13 – França Daniel Suarez Universidade Buenos Aires- UBA- Argentina Ellen Bigler Rhode Island College, USA Edmundo Anibal Heredia Universidade Nacional de Córdoba- Argentina Francisco Antonio Loiola Université Laval, Québec, Canada Giuseppe Milan Universitá di Padova – Itália Julio César Díaz Argueta Universidad de San Carlos de Guatemala Mercedes Villanova Universidade de Barcelona, España Paolo Orefice Universitá di Firenze - Itália Coordenadores do n. 39: Prof. Dr. Adailton Ferreira dos Santos e Prof. Dr. Luciano Costa Santos Revisão: Luiz Fernando Sarno; Tradução/revisão: Profa. Dra. Valquíria C. M. Borba; Capa e Editoração: Linivaldo Cardoso Greenhalgh (“A Luz”, de Carybé – Escola Parque, Salvador/BA); Secretária: Dinamar Ferreira. Bibliotecária: Maura Icléia C. de Castro. REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DA PETROBRAS S.A. Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 Revista do Departamento de Educação – Campus I (Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA) Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. ADMINISTRAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta, assinaturas, etc. deve ser dirigida à: Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Departamento de Educação I - DEDC Rua Silveira Martins, 2555 - Cabula 41150-000 SALVADOR – BAHIA - BRASIL Tel. (071)3117.2316 E-mail: [email protected] Normas para publicação: vide últimas páginas. E-mail para o envio dos artigos: [email protected] / [email protected] Site da Revista da FAEEBA: http://www.revistadafaeeba.uneb.br Indexada em / Indexed in: - REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic - BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP) - Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação - EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP - Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação - Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação. www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html - CLASE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana - Universidade Nacional Autônoma do México: E-mails: [email protected] e [email protected] / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx - INIST - Institut de l’Information Scientifique et Technique / CNRS - Centre Nacional de la Recherche Scientifique de Nancy/France - Francis 27.562. Site: http://www.inist.fr - IRESIE - Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa (Instituto de Investigaciones sobre la Universidad y la Educación - México) - Latindex (Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal) - SEER - Sistema Eletrônico de Editoração de Periódicos Pede-se permuta / We ask for exchange. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade / Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992Periodicidade semestral ISSN 0104-7043 1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título. CDD: 370.5 CDU: 37(05) Tiragem: 1.000 exemplares SUMÁRIO 9 Editorial 10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade EDUCAÇÃO E FILOSOFIA 15 Apresentação Adailton Ferreira dos Santos e Luciano Costa Santos 19 Entre a educação e a Filosofia: aspectos históricos da Filosofia da Educação como disciplina acadêmica e campo de investigação Fernanda Antônia Barbosa da Mota 31 Natureza da Educação e Filosofia da Educação Maria Judith Sucupira da Costa Lins 41 Educação e Filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na Educação Básica – considerações polilógicas Dante Augusto Galeffi 55 Filosofia, filósofo, professor de Filosofia Izilda Johanson 63 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética Fátima Maria Nobre Lopes 73 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de Sartre Cássio Donizete Marques 85 Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética Antônio Sidekum 95 O ato de caminhar e a Educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau Jordi Garcia Farrero 105 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire Jorge Miranda de Almeida 117 O não saber socrático e a Educação: o desafio de aprender a pensar Giorgio Borghi 129 La Filosofía y la Cultura ante la globalización Alejandro Serrano Caldera 139 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo Roberto Bartholo Jr 151 Identidad y Educación Renato Huarte Cuéllar Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013 159 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz 171 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos Alvino Moser; Daniel Soczek 183 Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na História da Ciência Fumikazu Saito 195 A importância do ensino de Ciências da Natureza integrado à História da Ciência e à Filosofia da Ciência: uma abordagem contextual Adailton Ferreira dos Santos e Elisa Cristina Oliosi 205 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna Luciano Costa Santos ESTUDOS 217 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt 229 O processo de formação de conceitos na perspectiva vigotskiana Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes; Elieuza Aparecida de Lima RESUMOS DE TESES E DISSERTAÇÕES 241 O tempo escolar e o encontro com o outro: do ritmo à simultaneidade Ana Sueli Teixeira de Pinho 242 Macabéas às avessas: trajetórias de professoras de Geografia da cidade na roça – narrativas sobre docência e escolas rurais Mariana Martins de Meireles 243 Normas para publicação Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013 CONTENTS 11 Editorial 12 Themes and Terms to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da FAEEBA Education and Contemporaneity Education and Philosophy 15 Presentation Adailton Ferreira dos Santos e Luciano Costa Santos 19 Education and philosophy: historical aspects of philosophy of education as an academic discipline and an investigative field Fernanda Antônia Barbosa da Mota 31 Nature of education and philosophy of education Maria Judith Sucupira da Costa Lins 41 Education and philosophy: philosophizing as a transdisciplinary formativeactivity for basic education - polylogical considerations Dante Augusto Galeffi 55 Philosophy, philosopher, professor of philosophy Izilda Johanson 63 The double aspect of education: way of estrangement constitution or way of estrangement overcoming through ethics Fátima Maria Nobre Lopes 73 Education - between the individual and the collective according to Sartre´s critique of dialectical reason Cássio Donizete Marques 85 Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética Antônio Sidekum 95 The act of walking and education: 300 years after Rousseau´s birth Jordi Garcia Farrero 105 Education as ethics and ethics as education in Kierkegaard and Paulo Freire Jorge Miranda de Almeida 117 The not-knowing socratic and education: the challenge of learning how to think Giorgio Borghi 129 Philosophy and culture in the face of globalization Alejandro Serrano Caldera 139 Untying the imagination: brief notes on ethics and criticism in the contemporary world Roberto Bartholo Jr Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013 151 Identidad y Educación Renato Huarte Cuéllar 159 The school and the seven complex lessons: reflecting on innovative advances in education Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz 171 Philosofy for children: a brief reflection Alvino Moser; Daniel Soczek 183 “Continuity” and “discontinuity”: the process of constructing scientific knowledge in the history of science Fumikazu Saito 195 The importance of teaching integrated Natural Sciences, History of Science and Philosophy of Science: a contextual approach Adailton Ferreira dos Santos e Elisa Cristina Oliosi 205 Fruitful thought: elements for a transmodern rationality Luciano Costa Santos 217 Ethos Transformation in The West of Santa Catarina Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt 229 The process of formation of concepts in a vygotskyan perspective Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes; Elieuza Aparecida de Lima 241 The school time and the encounter with other: from the rhythm to the concurrency Ana Sueli Teixeira de Pinho 242 Macabéa in reverse: the trajectories of Geography teachers from the city to the countryside – narratives of teaching and rural schools Mariana Martins de Meireles 247 Instructions for publication Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 1-250, jan./jun. 2013 Pensar a Educação no plano filosófico e a Filosofia no plano educacional é um desafio a ser enfrentado nos tempos atuais marcados pela fragmentação e pelo pragmatismo utilitarista. A Filosofia, se considerada como um pensar radical sobre o ser da Educação, instiga a indagação sobre a natureza do ato educativo, as possibilidades da educação como projeto de hominização, e as condições históricas do educar nas diversas temporalidades. A Educação, compreendida em perspectiva mais alargada do que a educação formal e institucionalizada, trata de processos de construção de subjetividades comprometidas com determinados projetos de mundo. O nascimento biológico por si não é suficiente para inserir o sujeito no mundo da cultura, no qual a educação tem função instituidora. A natureza das problematizações sobre Educação enquanto formação humana remete ao pensamento de Martin Heidegger, quando ele evidencia a ocorrência de uma mutilação do pensamento na modernidade por conta do gigantismo utilitarista e pragmático do conhecimento moderno. A razão instrumental funcionou como uma barreira de contenção para o pensamento autêntico. Esta posição encontra-se também amplamente defendida por Boaventura Santos, que qualifica o conhecimento gerado pela razão instrumental com a designação impactante de “conhecimento-lixo”. O conhecimento-lixo é aquele incessantemente produzido, movido por uma lógica do fluxo rápido e utilitarista da produção capitalista. Tal lixo cognitivo descarta as questões fundamentais da experiência humana ao tempo em que se autorreproduz, produzindo uma epistemologia da superficialidade, ou, dito de outro modo, uma epistemologia negativa. Daí a pertinência da Filosofia no combate a essa epistemologia da superficialidade. Em contraponto, o filósofo Edgar Morin traz uma grande contribuição para as ciências sociais, particularmente para a educação, ao se opor ao paradigma clássico da simplificação. Apresenta a epistemologia da complexidade como um grande desafio ao conhecimento reducionista, propõe uma reforma do sistema de pensamento, a transformação do conhecimento da complexidade em pensamento da complexidade, questionando as grandes narrativas e as certezas consideradas absolutas e imutáveis, descortinando a aventura do conhecimento e da construção de novo paradigma científico que incorpore a probabilidade, o acaso, a ordem, a desordem, as incertezas. É com satisfação que colocamos à disposição do público o número 39 da Revista da FAEEBA, cuja temática é Educação e Filosofia. Nesta edição os autores propõem, mediante 18 artigos e 2 textos da Seção Estudos, um encontro alentador entre Educação e Filosofia. Em tempos de lógica produtivista e tecnocrática, esse encontro, acreditamos, é de grande potencialidade formativa. Precisamos, para responder aos desafios e inquietações contemporâneas, impulsionar pensamentos criativos e inconformados. Agradecemos aos protagonistas que colaboraram para a produção deste número temático e desejamos uma boa leitura a todos! As Editoras Tânia Regina Dantas Editora Geral Liége Sitja Fornari Editora Executiva Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 9 Nº Tema Prazo de entrega dos artigos Lançamento previsto Coordenadores 40 Pesquisa em Educação 30.05.2013 Novembro de 2013 Eliseu Clementino de Souza Liége Maria Sitja Fornari 30.10.2013 Abril de 2014 Valquíria Claudete M. Borba Kátia Maria Santos Mota 30.05.2014 Novembro de 2014 Alfredo Eurico Rodrigues Matta Maria Olívia Matos Oliveira 41 Educação: cognição, aprendizagem e formação de professores 42 Educação, Mídias e Design Pedagógico Enviar textos para Liége Fornari: [email protected] / [email protected] /[email protected] 10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 Thinking Education in terms of Philosophy and thinking Philosophy in terms of Education is a challenge nowadays once we are living in times of fragmented identity and pragmatic utilitarianism. Philosophy, if it is considered as a way of a radical thinking on the person of Education, invites us to question the nature of the education act, the possibilities of education as a project of hominization, and the historical conditions of education through times. Education, in a broad perspective that goes beyond the formal and institutionalized education, is about processes of construction of subjectivities according to specific world projects. Birth is not enough to a man be considered a cultural subject. Education has an institutional function in the insertion of the subject into culture. The nature of the questions on Education as institution for human formation leads us to Martin Heidegger ideas. He shows the mutilation of thinking in modern times because of the great pragmatic utilitarianism of the modern knowledge. The instrumental reason has been a barrier to the authentic thinking. This position has been also broadly defended by Boaventura Santos who says the knowledge generated by the instrumental reason is “garbage knowledge”. The garbage knowledge is the one that is continuously produced, oriented by the logic of the fast flux and the capitalist production. This cognitive garbage does not consider the fundamental questions of the human experience and reproduce itself, and this produces an epistemology of superficiality, a negative epistemology. Hence, we can see the relevance of Philosophy on the struggle against the epistemology of superficiality. In counterpoint, the philosopher Edgar Morin contributes enormously to the social sciences and in special to education when he opposes to the classical paradigm of simplification. He introduces the epistemology of complexity as a great challenge to the principle of reduction. Morin proposes a reform in thinking, a changing of the knowledge of the complexity into complex thought. He criticizes the great narratives and the absolute and immutable certainties, unveiling the adventure of knowledge and the construction of a scientific paradigm that incorporates probability, chance, order, disorder, uncertainties. We are very pleased to present the 39th issue of the FAEEBA Journal, which theme is Education and Philosophy. In this edition, the authors propose an encouraging meeting between Education and Philosophy in 18 papers and 2 texts in the Studies Section. In times of productivist and technocratic logic, we believe this meeting may be considered a great opportunity for people to grow in their formation. In order to face challenges and contemporary concerns we need to encourage creative and nonconformist thoughts. We are grateful to the protagonists who collaborated on this issue and we wish everybody a good reading! The Editors Tânia Regina Dantas General Editor Liége Sitja Fornari Executive Editor Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 11 Nº Theme Submission deadline Publication date Coordinators 40 Research in Education 05.30.2013 November 2013 Eliseu Clementino de Souza Liége Maria Sitja Fornari 41 Education: cognition, learning and teacher formation 10.30.2013 April 2014 Valquíria Claudete M. Borba Kátia Maria Santos Mota 42 Education, Media and Pedagogical Design 05.30.2014 November 2014 Alfredo Eurico Rodrigues Matta Maria Olívia Matos Oliveira Email papers to Liége Fornari: [email protected] / [email protected] /[email protected] 12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 EDUCAÇÃO E FILOSOFIA Adailton Ferreira Santos; Luciano Costa Santos No ano em que completa seu 21º aniversário, a Revista da FAEEBA oferece ao público esta edição de número 39, dedicada à interface de Educação e Filosofia, justo quando tramita o projeto de criação do Curso de Graduação em Filosofia no Campus I da UNEB, com o que a nossa Universidade afinal se junta às outras quatro universidades públicas baianas que já dão abrigo à Coruja em seus domínios. Além de pôr fim a uma decisão arbitrária perpetrada pelo Regime Militar, a retomada da obrigatoriedade da Filosofia no Ensino Médio nos anos 2000, aliada à franca expansão da abertura de cursos universitários de Filosofia em instituições públicas e privadas, sinaliza para a sociedade brasileira a possibilidade de uma virada histórica, caso a oportunidade seja bem aproveitada. Com efeito, mais do que prover um amplo repertório de matrizes conceituais que estão na base da construção das ciências nas mais diversas áreas – o que não é pouco –, a Filosofia compromete o educando de todos os níveis com uma exigência epistemológica irrecusável: a de submeter o conjunto de seus saberes a uma profunda apropriação reflexiva e rigorosa justificação argumentativa. Sem esse apurado crivo reflexivo, o cabedal informativo a que se tem acesso pode vir a depositar-se na zona morta das falsas certezas e das “meias verdades”, ensejando a indesejada proliferação de sujeitos institucionalmente capitalizados e pedagogicamente mal formados. Nesse sentido de educação do pensar e para o pensar, a Filosofia é não somente condição propedêutica da Educação, mas garantia de seu próprio escopo. Nesses tempos em que as instituições de ensino são pressionadas a se converterem em bancos de dados a serviço de demandas mercadológicas, tal exigência inscrita no labor filosófico transcende sua relevância educacional e ganha status de imperativo civilizatório. Os artigos reunidos nesta edição foram selecionados de um conjunto de textos enviados – cujo volume, aliás, cresce a cada nova edição –, a partir da avaliação de especialistas de acordo com os cuidadosos critérios que pautam a Revista. O primeiro artigo, intitulado “Entre a Educação e a Filosofia: aspectos históricos da Filosofia da Educação como disciplina acadêmica e campo de investigação”, de autoria de Fernanda Antônia Barbosa da Mota, objetiva mostrar que a Filosofia da Educação, como disciplina e campo investigativo, tem sua história perpassada pelo entrecruzamento das áreas da Educação e da Filosofia, asseverando a relevância da investigação dessa temática em âmbito acadêmico. No artigo “Natureza da Educação e Filosofia da Educação”, a autora Maria Judith Sucupira da Costa Lins focaliza o problema da natureza da Educação e sua relação com a Filosofia da Educação. Reflete sobre o sentido do fenômeno educacional a fim de entender o conceito de educação e, a partir daí, estabelecer o campo epistemológico da Filosofia da Educação. Para a autora, entender a natureza da educação é importante para os que estão comprometidos com o desenvolvimento de pessoas face aos desafios de construir um mundo novo. Em “Educação e Filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na Educação Básica – considerações polilógicas”, de Dante Augusto Galeffi, discute-se a relação entre Educação e Filosofia a partir da implicação decorrente do retorno obrigatório da Filosofia ao Ensino Médio nacional, tendo em vista o crescente interesse Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013 15 Apresentação pela Filosofia em todos os níveis da Educação Básica, pelo reconhecimento de que se trata de uma atividade de pensamento dialógico fundamental para o desenvolvimento humano saudável e criador. Segundo a autora Izilda Johanson, no artigo “Filosofia, filósofo, professor de Filosofia”, o exercício da docência em Filosofia traz implícita uma compreensão prévia sobre o próprio sentido do filosofar. Isto significa que a referência ao “ensino de Filosofia” já compreende a necessidade de enfrentar questões próprias à atividade filosófica, tais como: “Por que Filosofia?” e “Em que consiste a Filosofia?”. O artigo seguinte, intitulado “O duplo aspecto da Educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela Ética”, de Fátima Maria Nobre Lopes, aborda a posição do filósofo húngaro György Lukács acerca da centralidade do trabalho e do seu caráter teleológico, evidenciando a gênese ontológica da Educação como formação humana e o seu desenvolvimento no âmbito das teleologias secundárias por meio das quais pode ocorrer a constituição e/ou a superação de estranhamentos. Dando destaque a outro importante nome da História da Filosofia, em “A Educação entre o singular e o coletivo a partir da Crítica da Razão Dialética de Sartre”, o articulista Cássio Donizete Marques mostra que a Educação, como formação do ser humano, permite vivenciar, na dialética da história, a relação entre o individual e o coletivo, constituindo-se na plena liberdade do sujeito que constrói seu projeto em meio a uma dada situação. No artigo “Emmanuel Levinas: Educação e interpelação ética”, o autor Antônio Sidekum apresenta subsídios filosóficos para o campo educacional a partir do pensador judeu lituano Levinas, o qual descerra novos horizontes na reconstrução de utopias para a História contemporânea, ao pôr em questão o caráter egolátrico da subjetividade moderna que tem o seu fundamento no cogito cartesiano e chega ao máximo idealismo monológico em Kant. Em seu artigo sugestivamente intitulado “O ato de caminhar e a Educação: a propósito dos 300 anos de nascimento de Rousseau”, Jordi Garcia Farrero foca as bucólicas perambulações do filósofo genebrino como metáfora de um modo de pensar e existir à margem do racionalismo hegemônico em seu tempo. Por extensão, realiza uma reflexão sobre a tendência educativa que surgiu em fins do século XIX – o neonomadismo pedagógico –, já que a ação pedestre de Rousseau, que podia ser concebida como excursão, é um claro antecedente do Romantismo pedagógico. O autor Jorge Miranda de Almeida, em “A Educação como Ética e a Ética como Educação em Kierkegaard e Paulo Freire”, estabelece um confronto/encontro entre estes dois pensadores do profundo do humano. Em suas respectivas épocas, ambos se posicionaram criticamente em relação às concepções vigentes de Educação e Ética, postas a serviço do poder e do ajustamento social, mas será justamente a partir de Educação e Ética que, para estes pensadores, os seres humanos em processo de inconclusividade poderão construir estratégias para superarem as barreiras que impedem a sua realização. Revisitando as matrizes filosóficas gregas no artigo “O não saber socrático e a Educação: o desafio de aprender a pensar”, Giorgio Borghi analisa o problema do tipo de saber que está em jogo na educação, refletindo sobre o sentido do não saber socrático que se contrapõe ao saber tradicional da pólis e ao novo saber dos sofistas. Considerando a relação entre saber e pensar, o autor se concentra no diálogo platônico Apologia de Sócrates, em que encontra a primeira tematização do conflito entre a visão tradicional e a visão filosófica da Educação. 16 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira Santos; Luciano Costa Santos A seguir, o artigo “La Filosofia y la Cultura ante la globalización”, de Alejandro Serrano Caldera, aprofunda a crise de valores e o risco à pluralidade cultural trazidos com a globalização, sob cuja imposição os Estados-Nações viram correias de transmissão de uma só vontade de dominação. Diante disso, segundo o autor, a Filosofia deve contribuir para construir uma ética dos valores, fundada numa racionalidade moral e conceitual que substitua a racionalidade instrumental. Apoiado em contribuições teóricas de Vilém Flusser, no artigo “Desatando a imaginação: breves notas sobre Ética e Crítica no mundo contemporâneo”, Roberto Bartholo Jr. discute o lugar do diálogo e do discurso no mundo contemporâneo e destaca implicações da programação e da produção de imagens técnicas para os modos hegemônicos de organização da cultura e exercício de dominação. Por fim, aponta desafios confrontados para as instituições acadêmicas contemporâneas, particularmente, as universidades. Renato Huarte Cuéllar, no artigo intitulado “Identidad y Educación”, parte de uma definição filosófica de identidade para entender como o ser humano, eminentemente social, se vincula a processos educativos e de transmissão que dependem de cada grupo em seu respectivo contexto, numa complexa trama que vai do individual ao coletivo e vice-versa. Com base nisso, tenta entender o processo educativo dos tlamatimine ou sábios nahuas no México Tenochtitlan anterior à Conquista, investigando sua contribuição para repensar a educação no século XXI. “A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo”, dos autores Ricardo Antunes de Sá, Sonia Maria Marchioratto Carneiro e Araci Asinelli da Luz, objetiva trazer contribuições aos educadores quanto aos processos de ensino e aprendizagem na escola, com base no pensamento complexo de Edgar Morin e considerando as discussões da Conferência Internacional “Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Presente”, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE). No artigo “Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos”, a dupla de autores Alvino Moser e Daniel Soczek desenvolve considerações sobre o ensino de Filosofia para crianças, partindo do pressuposto de que o filosofar é uma atividade própria do ser humano, mas poucos são os alunos de Ensino Médio e Superior que, de fato, se interessam pelas aulas de Filosofia que são obrigados a cursar. A hipótese dos autores é de que a postura filosófica dos alunos lhes é subtraída devido a processos educacionais que os limitam à perspectiva instrumental da cultura de massas. O autor Fumikazu Saito, em “‘Continuidade’ e descontinuidade’: o processo da construção do conhecimento científico na História da Ciência”, toma distância de enfoques formalistas e propõe uma abordagem contextualizada do ensino de ciências, pautada em tendências historiográficas mais atualizadas, dando especial atenção ao contexto cultural em que surgem as ciências, segundo os estudos das epistemologias de Bachelard e de Kuhn. Em “A importância do ensino de Ciências da Natureza integrado à História da Ciência e à Filosofia da Ciência: uma abordagem contextual”, Adailton Ferreira dos Santos e Elisa Cristina Oliosi refletem sobre o ensino de ciências da natureza, na perspectiva de uma abordagem contextual, a fim de compreender melhor a relação entre ciência e sociedade. Tal abordagem do ensino tem sido recomendada por organização internacional, pela legislação brasileira e por pesquisadores que defendem outro tipo de ensino na sociedade contemporânea, globalizada e tecnológica. Assim, almeja-se que o ensino das ciências da natureza possibilite a compreensão da atividade científica e, por sua vez, contribua para superação das ideias distorcidas sobre as ciências. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013 17 Apresentação O artigo “O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna”, de Luciano Costa Santos, apresenta o paradigma da transmodernidade, que consiste na reapropriação do legado científico e crítico da racionalidade moderna a partir da revisita a fontes hermenêuticas por esta relegadas. Tais fontes – a exemplo de transcendência, alteridade e tradição – propiciam uma fecundidade de sentido que a razão crítica não pode produzir por si mesma, e constituem uma reserva sapiencial ante o dissolvente pragmatismo pós-moderno que tanto afeta a área educacional. A seção “Estudos” apresenta dois artigos. No primeiro deles, intitulado “A transformação do ethos no Oeste de Santa Catarina”, os autores Anderson Luiz Tedesco e Paulino Eidt têm como objetivo compreender as transformações societárias – especialmente no campo educacional – decorrentes da sociedade de consumo e dos demais processos verticalizadores da globalização no espaço regional do Oeste de Santa Catarina. Com base no método “instrumental cultural” de Vygotsky, o artigo “O processo de formação de conceitos na perspectiva vygotskyana”, das autoras Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes e Elieuza Aparecida de Lima, analisa a constituição da natureza social do homem a partir de processos de apropriação e objetivação de conhecimentos, que tornam individuais as conquistas historicamente construídas pela humanidade, dentre as quais a do pensamento conceitual. Este número traz ainda dois resumos de pesquisas monográficas, o primeiro de tese e o segundo de dissertação. O resumo de tese, elaborado por Ana Sueli Teixeira de Pinho, refere-se à pesquisa intitulada “O tempo escolar e o encontro com o outro: do ritmo à simultaneidade. O resumo de dissertação, de autoria de Mariana Martins de Meireles, apresenta a síntese do trabalho intitulado “ Macabéas às avessas:trajetórias de professoras de geografia da cidade na roça - narrativa sobre docência e escolas rurais”. Agradecemos aos que enviaram seus artigos – publicados ou não –, bem como aos pareceristas e demais colaboradores que ajudaram a trazer esta edição à luz. Aos leitores e aos comprometidos com a formação educacional, esperamos que os textos que seguem os estimulem a cultivar com cada vez mais denodo o exercício do filosofar, entendido como exigência radical de sentido que contribui para desconstruir falsas certezas, destituir poderes ilegítimos e favorecer o advento do que realmente precisa nascer. Adailton Ferreira Santos Luciano Costa Santos 18 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 15-18, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota ENTRE A EDUCAÇÃO E A FILOSOFIA: ASPECTOS HISTÓRICOS DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO COMO DISCIPLINA ACADÊMICA E CAMPO DE INVESTIGAÇÃO Fernanda Antônia Barbosa da Mota* RESUMO Este trabalho tem por objetivo mostrar que a filosofia da educação como disciplina acadêmica e como campo investigativo tem sua história perpassada pelo entrecruzamento das áreas da Educação e da Filosofia. É no âmbito das complexas relações entre a Educação e a Filosofia que tanto a institucionalização do ensino de filosofia da educação, quanto a constituição e consolidação do campo filosóficoeducacional são registrados historicamente, num percurso marcado por abordagens filosóficas acerca de temas educacionais e pela investigação de temas educacionais nos pensamentos filosóficos. Trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico, fundamentada na construção de conhecimentos oriundos das contribuições de autores clássicos e contemporâneos, além de estudos posteriores feitos por estudiosos e pesquisadores sobre as ideias de tais autores. Os aportes teóricos que fundamentaram o estudo foram: Cambi (1999), Severino (2000; 2011), Saviani (1991, 2002a, 2002b), Albuquerque (2003), Tomazetti (2003, 2010), Gallo (2007), Pagni (2008) e Henning (2010), dentre outros. A partir da compreensão crítica da trajetória da filosofia da educação e suas especificidades nas dimensões teórica (pesquisa) e prática (ensino), defendemos a relevância do estudo dessa temática no âmbito acadêmico, pois, conforme acreditamos, a filosofia da educação constitui um dos principais campos teóricos na contribuição para a formação de futuros educadores. Palavras-chave: Educação. Filosofia. Ensino de Filosofia da Educação. ABSTRACT EDUCATION AND PHILOSOPHY: HISTORICAL ASPECTS OF PHILOSOPHY OF EDUCATION AS AN ACADEMIC DISCIPLINE AND AN INVESTIGATIVE FIELD This paper aims to show that philosophy of education as an academic discipline and an investigative field has its history permeated by the intercrossing areas of Education and Philosophy. It is in the context of the complex relationship between Education and Philosophy that both the institutionalization of the teaching of philosophy of education and the formation and consolidation of philosophical and educational field are recorded * Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professora Efetiva de Filosofia da Educação na UFPI. Endereço para correspondência: Departamento de Fundamentos da Educação, Campus Universitário “Ministro Petrônio Portella”, Bairro Ininga, CEP-64049-550, Teresina-PI. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 19 Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação historically, a journey marked by philosophical approaches to educational issues and research on educational topics in philosophical thoughts. This is a bibliographic research, based on the construction of knowledge that comes from the contributions of classical and contemporary authors, and later studies made by scholars and researchers on the ideas of such authors. The theoretical contributions we have based our study on includes authors such as Cambi (1999), Severino (2000, 2011), Saviani (1991, 2002a, 2002b), Albuquerque (2003), Tomazetti (2003, 2010), Gallo (2007), Pagni (2008) and Henning (2010), among others. Based on the critical understanding of the trajectory of philosophy of education and its specificity in theoretical (research) and practical (teaching) dimensions, we believe in the relevance of studying this theme in the academic sphere, once the philosophy of education is a very important theoretical field that contributes enormously to the formation of educators. Keywords: Education. Philosophy. Teaching of Philosophy of Education. Introdução O ensino de filosofia da educação tem sido alvo de discussões por autores, pesquisadores e demais profissionais da área na tentativa de consolidar a filosofia da educação como um campo de saber legitimado pela teoria e pela prática. Dentre as questões mais polêmicas, o ponto nevrálgico é a forma como o ensino dessa disciplina tem sido praticado pelos professores. Por meio deste estudo, pretendemos ampliar os debates no campo filosófico-educacional para a construção de uma base de conhecimentos que contribuam significativamente para expandir o diálogo no campo acadêmico para futuras pesquisas sobre o ensino de filosofia da educação. Nessa perspectiva, abordaremos alguns de seus aspectos históricos, enfatizando nessa trajetória sua conversão em disciplina acadêmica institucionalizada e também sua constituição e consolidação como campo de estudos e pesquisas no Brasil. Breve histórico da trajetória da filosofia da educação: disciplina e campo A filosofia da educação como disciplina acadêmica e como campo investigativo tem sua história perpassada pelo entrecruzamento das áreas da Educação e da Filosofia. É no âmbito das complexas relações entre a Educação e a Filosofia que tanto a institucionalização do ensino de filosofia da educação quanto a constituição e consolidação 20 do campo filosófico-educacional são registrados historicamente, num percurso marcado por abordagens filosóficas acerca de temas educacionais e pela investigação de temas educacionais nos pensamentos filosóficos. No âmbito internacional, é importante destacar que a partir do final do século XVIII até o início do século XX, embora os conteúdos filosófico-educacionais fossem trabalhados nas disciplinas em instituições educativas e figurassem nos manuais de história da pedagogia, a expressão filosofia da educação não era especificamente utilizada e tampouco era preponderante. Nesse período, além da referida terminologia, uma abrangente nomenclatura era utilizada indistintamente para tratar de qualquer tópico que relacionasse filosofia e educação. Tanto na produção teórica da época quanto na organização disciplinar os seguintes designativos eram considerados como correlatos a filosofia da educação: Filosofia, Pedagogia, Pedagogia Geral, Pedagogia Teórica, Teoria da Educação, Filosofia Geral, Princípios da Educação, Introdução à Filosofia, Pedagogia Filosófica, Filosofia Pedagógica e Ciência da Educação. A despeito da profusão de termos, o saber filosófico era considerado fundamental para os estudos pedagógicos (TOMAZETTI, 2003). Essa relativa indistinção entre o saber filosófico e o saber pedagógico predominou até o início do século XX. Enquanto perdurou essa suposta equivalência entre os dois saberes, os conteúdos filosófico-educacionais foram diluídos nos estudos pedagógicos, principalmente, no âmbito da discipli- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota na Pedagogia Teórica. Tal situação somente mudou quando a própria Pedagogia deixou de ser uma disciplina subdividida nas vertentes teórica e prática, a fim de buscar sua consolidação como campo teórico relacionado às Ciências da Educação. A tentativa de cientifização da Pedagogia foi permeada pelo embate entre discursos fundamentadores do saber pedagógico. Nesse embate, o decadente discurso filosófico perdeu sua hegemonia por ser considerado demasiadamente teórico, generalista, normativo, especulativo e totalizante, enquanto o ascendente discurso científico ganhou cada vez mais espaço no âmbito acadêmico ao propor uma compreensão sistemática do fenômeno educacional a partir de perspectivas interdisciplinares distintas oriundas da biologia, da psicologia e da sociologia (as chamadas ciências da educação), compreendidas como ciências experimentais humanas e sociais. O contexto do referido debate foi permeado pelo uso deletério que Durkheim fez da expressão especialista de generalidades, criada originalmente por Comte para se referir ao papel do filósofo diante das ciências positivas (TOMAZETTI, 2003). No positivismo, a Filosofia é compreendida como uma disciplina pré-científica, constituída por ideias gerais e cujo objeto de estudo principal seria os universais. Na célebre Lei dos Três Estados, Comte defende a ideia evolucionista segundo a qual o desenvolvimento intelectual da humanidade pode ser historicamente classificado em três fases distintas: a teológica (ficcional), a metafísica (abstrata) e a positiva (científica). Em cada uma delas o pensamento humano opera de uma forma característica. No estágio teológico, predominam as crendices e superstições, expressas nas explicações que apelam para forças sobre-humanas como espíritos e divindades. No estágio metafísico, as explicações anteriores cedem lugar para elucidações baseadas em causas finais, essências e outras generalizações teóricas. E no estágio positivo, considerado o ápice do desenvolvimento intelectual humano, tanto a transcendência quanto a especulação generalizante são superadas em prol da ciência, definida pela verificação e comprovação das leis originadas a partir da experiência (COMTE, 1983). A partir da classificação comtiana, a filosofia fica restrita a um segundo plano, o estágio pré- -científico da abstração e das generalidades, ao passo que disciplinas como biologia, psicologia e sociologia, por serem consideradas ciências experimentais, estariam situadas num patamar mais elevado no que se refere à evolução do pensamento humano. Como o filósofo da educação não poderia ser considerado um cientista e como a filosofia remete a um saber de caráter amplo, panorâmico e de conjunto, então, foi-lhe atribuído o título de especialista em generalidades. Assim, a filosofia da educação associada às generalidades foi amplamente prejudicada porque tudo aquilo que não tinha lugar na ciência era destinado ao campo de saberes filosóficos da educação. Nesse contexto, os especialistas das ciências da educação concebiam a perspectiva filosófica como irrelevante para a educação porque consideravam que nenhuma proposta de melhoria concreta podia advir dela, visto que, diferentemente das positivas explicações oriundas das ciências da educação, as propostas filosóficas acerca da educação eram negativistas e utópicas. No esquema de Durkheim, por exemplo, a filosofia educacional não poderia fixar a finalidade da educação em razão de seu caráter negativista e utópico e, por isso, deveria forçosamente abdicar de tal tarefa em prol da sociologia e da psicologia, as positivas ciências da educação que, por efetivamente cuidarem dos aspectos coletivos e individuais de uma sociedade, saberiam identificar as reais necessidades educacionais a fim de estabelecer metas realizáveis (DURKHEIM, 1978). Durkheim também usa pejorativamente a associação da filosofia com a amplitude de ideias e ausência de especificidades com o propósito estratégico de minar a influência filosófica exercida no campo universitário e, assim, ocupar seu lugar com outros campos do saber que não são generalistas, mas devidamente demarcados, hierarquizados e com competências específicas: a psicologia da educação e a sociologia da educação. A partir dessa consideração de Durkheim, as referidas ciências da educação são qualificadas como saberes positivos aptos a fundamentar e legitimar a prática educativa, enquanto a filosofia, por não possuir uma competência específica, é considerada um saber negativo e sem cientificidade, inapto para a fundamentação e legitimação da educação, e que ainda precisa ser avaliado a fim de encontrar o seu lugar na hierarquia Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 21 Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação do território universitário (TOMAZETTI, 2003). Essa estratégia partiu inicialmente da constatação de uma nítida confusão entre os termos educação e pedagogia, que para Durkheim, deveriam ser meticulosamente diferenciados, pois enquanto a educação se refere a ações, a pedagogia concerne a teorias. Essa distinção entre o campo educativo e o campo pedagógico também serviu ao propósito de atrelar a sociologia ao campo experimental (científico) e a filosofia ao campo pedagógico (especulativo) e, assim, justificar a exclusão do saber filosófico do âmbito das ciências da educação (DURKHEIM, 1978). Ainda no cenário acadêmico mundial, é preciso destacar dois fatores relevantes para o entendimento do processo de constituição e consolidação da filosofia da educação como disciplina e como campo especializado de produção de saberes. Primeiro, o afastamento da filosofia da educação do âmbito das ciências da educação acarretou também uma visão generalizada de que ela constituía uma disciplina demasiadamente teórica (frequentemente associada aos sistemas filosóficos e à história da ideias pedagógicas) e apartada dos problemas práticos do trabalho pedagógico. Por isso, a erudita disciplina filosofia da educação passou a ser vista com suspeita e descaso pelos educadores entusiastas da cientifização educacional e ávidos por técnicas de ensino baseadas na sociologia e na psicologia, disciplinas consideradas úteis para a formação profissional e prática dos professores. A despeito dos dilemas relativos ao pertencimento da filosofia da educação a um território educacional ou a um território filosófico, o cenário mundial no final do século XIX, sobretudo na Europa, foi marcado pelo predomínio das concepções científicas em detrimento das concepções filosóficas. Nesse período, até o início da I Guerra Mundial (1914-1918), a própria disciplina história da educação era ministrada por professores com formação filosófica cuja abordagem era centrada nas contribuições teóricas dos grandes pensadores para o campo educacional (NÓVOA, 1994). Tal característica fazia da própria história da educação uma filosofia da educação, já que o estudo dos aspectos históricos e dos aspectos pedagógicos era delineado no domínio da própria história das ideias filosóficas (CAMBI, 1999). Esse contexto 22 mudou significativamente a partir dos anos de 1950, quando a história da educação passou a ser orientada por novas concepções historiográficas que privilegiavam não a história das ideias filosóficas, mas o processo histórico das instituições e práticas educacionais. Por meio dessa nova percepção que questiona a centralidade das teorias filosóficas no âmbito dos estudos históricos ocorre um distanciamento entre o campo histórico da educação e o campo filosófico da educação. A partir dos anos 1960, em decorrência da exacerbação do fosso acadêmico existente entre as disciplinas científicas (sociologia, psicologia etc.) e as disciplinas teóricas (filosofia, história etc.), podemos identificar dois contextos distintos nos quais a disciplina filosofia da educação evolui, em ambos a orientação dominante não sendo pedagógica, mas filosófica. Nos países europeus sob influência intelectual e cultural francesa, há uma nítida distinção entre as áreas das ciências da educação e a área da filosofia da educação, sendo a disciplina filosofia da educação concebida e praticada em conformidade com a orientação filosófica predominante do professor ministrante (tomista, fenomenológica, marxista etc.). Já nos países europeus sob influência inglesa e nos Estados Unidos, a filosofia da educação conta com um prestígio acadêmico maior, visto que até mesmo a expressão ciências da educação é evitada sob a alegação de que a utilização de tal nomenclatura poderia conduzir ao erro de que os cursos de formação de professores teriam por objetivo formar os futuros cientistas da educação e não os futuros práticos da educação. Como tanto a Inglaterra quanto os Estados Unidos produziram estilos próprios de filosofia, respectivamente a filosofia analítica e o pragmatismo, suas concepções de filosofia da educação também são amplamente orientadas por tais tradições filosóficas. A Filosofia da Educação no Brasil Os primórdios da Filosofia da Educação no Brasil remontam à introdução de conteúdos de natureza filosófica relacionados com temas ou questões educacionais nos currículos das escolas normais a partir dos anos 30 do século XX. Nessa época, o conteúdo da filosofia da educação consta de forma diluída na disciplina Pedagogia Geral. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota Posteriormente, como disciplina independente da pedagogia teórica, ela aparece vinculada aos estudos históricos na cátedra de História e Filosofia da Educação. No século seguinte, entre os anos de 1920 e 1930, a Filosofia da Educação figura como uma das últimas disciplinas de formação pedagógica a integrar institucionalmente o conjunto curricular no ensino normal (TOMAZETTI, 2003). Entre os anos de 1940 e 1960, a filosofia da educação desponta como disciplina autônoma e institucionalizada no cenário acadêmico universitário. Sobre isso, é preciso mencionar que a inserção da disciplina filosofia da educação no âmbito das universidades brasileiras foi marcada, desde o início, por um forte compromisso com a formação de professores (PAGNI, 2008). Assim como acontecia nas universidades estrangeiras, a filosofia da educação professada e ensinada nos cursos de formação de professores das universidades brasileiras variava em conformidade com a orientação filosófica predominante na formação dos professores responsáveis pela disciplina. No período compreendido entre os anos de 1930 e 1960, a filosofia europeia constituía a influência teórica preponderante, principalmente na vertente francesa, seguida pela vertente alemã e, distante de ambas, no que diz respeito à inserção nos conteúdos disciplinares acadêmicos, a vertente filosófica americana do pragmatismo. A vertente inglesa, responsável pela emergente filosofia analítica da educação, surgiu historicamente a partir dos anos de 1960, e embora sua proposta de análise conceitual de termos éticos e epistemológicos ligados aos empreendimentos educacionais tenha sido considerada revolucionária nos países anglófonos, ela teve escassa recepção no Brasil. Além da referida proposta, a grande repercussão obtida pelos filósofos analíticos da educação deveu-se principalmente às críticas que fizeram à então consensual prática no âmbito da disciplina Filosofia da Educação nos cursos de formação de professores, que para eles consistia em um estudo panorâmico e acrítico das ideias dos filósofos clássicos (TOMAZETTI, 2010). Anísio Teixeira, um dos principais reformadores da educação brasileira, foi também responsável pela tentativa de difundir no meio acadêmico nacional uma filosofia da educação inspirada nas ideias do pragmatista John Dewey. Paradoxalmente, embora seu projeto reformista vinculado ao ideário escolanovista tenha relativamente obtido êxito, sua filosofia da educação inspirada no pragmatismo foi amplamente combatida pelos representantes das outras vertentes filosóficas. É importante mencionar que, diferentemente de Durkheim, que havia separado filosofia e educação, Dewey propôs uma reaproximação ainda mais forte entre ambas, ao sustentar que a filosofia poderia ser conceituada como uma teoria geral da educação. A partir dessa nova configuração, a filosofia era concebida como educação e a educação como uma atividade imbuída de sentido somente se fosse amparada pela perspectiva filosófica. Resultante dessa compreensão subjaz a ideia que tanto a filosofia quanto a educação dependem da sociedade: a atual em que vivemos e a futura que objetivamos construir. Duas implicações decorrem dessa visão que situa a filosofia e a educação como dependentes do tipo de sociedade na qual estão inseridas. Primeiro, a ideia de que nenhuma filosofia poderia ser tomada como fundamento, pois numa sociedade em constante transformação não haveria lugar para soluções dogmáticas e supostamente definitivas, mas somente para uma filosofia de hipóteses e soluções provisórias. E, também, a ideia de que a filosofia da educação seria um instrumento mais útil para o progresso da sociedade democrática se, em vez de manter os olhos permanentemente voltados para o passado buscando um ideal de formação canônica, ela prestasse mais atenção aos problemas culturais, morais e educacionais modernos (TEIXEIRA, 1978). Assim, enquanto as orientações filosóficas europeias professavam que o ensino de filosofia da educação deveria estar atrelado ao estudo da história da filosofia e das ideias pedagógicas, Anísio Teixeira defendia que era possível praticar uma filosofia da educação abordando os problemas atuais da sociedade, sem menosprezar os estudos de caráter histórico. Como nesse momento inicial de institucionalização da disciplina filosofia da educação os catedráticos de algumas universidades responsáveis pelo seu ensino nos cursos de Pedagogia ou Filosofia tinham sua própria formação vinculada a uma influência filosófica francesa ou alemã, tal proposta de fazer uma filosofia da educação pareceu-lhes herética, visto que a própria Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 23 Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação possibilidade de se ensinar alguém a filosofar é algo considerado questionável. A alternativa teórica proposta por Teixeira era expressa na prática de uma filosofia da educação de orientação pragmatista centrada na reflexão e tratamento de problemas atuais emergentes do campo educacional e cultural brasileiros (PAGNI, 2008). Nessa época, entre os anos de 30 e 60 do século XX, constatamos a presença institucionalizada da disciplina filosofia da educação nos currículos das escolas normais e nos currículos universitários brasileiros. Todavia, ainda não é possível sustentar a existência de um campo de estudos e pesquisas filosófico-educacional, visto que poucas obras abordavam questões próprias da filosofia da educação. Também nesse aspecto é preciso destacar o pioneirismo de Anísio Teixeira, cujas obras Educação Progressiva: uma Introdução à Filosofia da Educação (1934) e Educação para a Democracia (1937) constituem um importante marco inaugural da investigação filosófica sobre educação no Brasil. Entretanto, as décadas subsequentes mostraram que tal empreendimento inovador foi uma exceção, visto que as publicações específicas na área eram escassas, além de serem teoricamente fracas ou marcadas pelo proselitismo. Até os anos de 1960, também era bastante comum a ausência de livros específicos sobre Filosofia da Educação nas bibliografias básicas da referida disciplina, sendo prática comum entre os professores responsáveis pelo seu ensino encaminhar os alunos para a leitura dos textos clássicos em Filosofia e Educação (TOMAZETTI, 2003). Essa mudança nos rumos da filosofia da educação no Brasil ocorreu, em parte, em razão do embate travado no decorrer dos anos de 1940 e 1950 entre os defensores dos ideais da Escola Nova e os partidários da Igreja Católica. Além do contraste entre as duas respectivas concepções vislumbradas para a disciplina filosofia da educação (crítica e implicada com as práticas escolares cotidianas, pela vertente escolanovista; e moralmente doutrinária e pedagogicamente transmissiva, pela vertente católica), o pano de fundo dessa disputa teórica foi marcado por divergências de natureza política e ideológica. A produção intelectual dos teóricos cristãos era baseada principalmente nas ideias de São Tomás 24 de Aquino e em outros autores vinculados ao catolicismo. Dois fatores foram decisivos para que a disciplina filosofia da educação, na versão tomista, se tornasse hegemônica nos currículos dos cursos de formação de professores. Em primeiro lugar, a filosofia da educação cristã vinculou sua imagem à defesa dos valores morais e à tradição dos bons costumes, associando a filosofia da educação escolanovista, aos valores ateus e modernistas. Em seguida, em virtude de seu amplo poder editorial, suas ideias foram disseminadas maciçamente em periódicos educacionais da época e em manuais de filosofia da educação. É importante lembrar que, nesse período, a própria criação das pontifícias universidades católicas no Brasil corresponde a uma estratégia da Igreja Católica de combater a influência política e ideológica da Escola Nova nos sistemas públicos de ensino e nas recém-criadas universidades públicas, pautadas nos ideais laicos e democráticos. Nesse contexto, autores como Leonardo Van Acker, Maria Izabel Pitombo e Dom Geraldo de Proença Sigaud são destaques na defesa dos ideais católicos. Para os teóricos católicos, a disciplina filosofia da educação era constituída por um inquebrantável nexo entre pedagogia e religião, por um lado, e filosofia e teologia, por outro. Mediante essa concepção, caberia a ela não apenas definir os fins e os valores da educação para a sociedade, mas defini-los em conformidade com os ideais cristãos, cuja orientação estava expressa nos referidos manuais de ensino de filosofia da educação. Uma crítica destacada ao papel estritamente curricular da disciplina filosofia da educação é feita quando se conecta a tardia constituição de um campo de investigação filosófico educacional com a própria história da inserção da disciplina filosofia da educação nas universidades brasileiras. Muito antes da institucionalização da disciplina filosofia da educação, a forma como a própria filosofia ingressou na cultura brasileira, ainda no período colonial, foi marcada pelo dogmatismo, autoritarismo e ideologização no molde escolástico. Desse modo, a experiência filosófica brasileira não foi caracteriza pelo estímulo ao pensamento crítico e questionador, mas pela exigência de um pensamento subserviente que se limita a legitimar e referendar as posições impostas pelo poder vigente (SEVERINO, 2000). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota No decorrer dos anos de 1950 até meados dos anos de 1960, as propostas curriculares da disciplina filosofia da educação foram baseadas predominantemente nos programas e bibliografias de orientação tomista, cuja influência delineou uma identidade filosófico-teológica para a filosofia da educação. Essa hegemonia não se limitava ao âmbito das universidades católicas, pois nas universidades públicas os conteúdos programáticos de orientação tomista compartilhavam sua presença majoritária com uma modesta parcela de conteúdos orientados pelo existencialismo. Nessa mesma época, a partir do final dos anos de 1950, os conteúdos programáticos baseados nas ideias pragmatistas de Dewey ou relacionados com temáticas escolanovistas são quase inexistentes. Posteriormente, o personalismo, a fenomenologia e o marxismo também passaram a concorrer como alternativas teóricas norteadoras das teorias e práticas educacionais (ALBUQUERQUE, 2003; TOMAZETTI, 2003). A partir dos anos de 1970, em virtude do surgimento da filosofia da educação também como programa ou área de concentração de alguns dos recém-criados cursos de pós-graduação em educação (em nível de mestrado e doutorado), houve a constituição do campo da filosofia da educação. O programa de pós-graduação em Filosofia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), criado em 1971 por iniciativa de Joel Martins, teve uma destacada participação na trajetória de constituição do campo filosófico educacional no país porque atuou como um centro irradiador de estudos e pesquisas na área. A primeira geração de docentes, constituída por Dermeval Saviani, Newton Aquiles Von Zuben, Antônio Joaquim Severino e Geraldo Tonaco, era considerada o núcleo básico desse programa. Até o final dos anos de 1970, a partir das experiências do referido grupo, outros programas com área de concentração em filosofia da educação ou em áreas afins foram criados na Universidade Metodista de Piracicaba, na Universidade Estadual de Campinas e na Universidade Federal de São Carlos. As atividades de ensino, pesquisa e produção dos mestres e doutores formados nessas instituições repercutiu significativamente para a difusão das investigações acadêmicas e para formação de novos quadros para o trabalho docente em outras universidades brasileiras (SAVIANI, 2002b). Embora a maioria dos programas de pós-graduação em educação fosse centrada em outras áreas de concentração, havia condições curriculares para a investigação especializada na área filosófico-educacional, de modo que a consolidação de tais programas deve ser ressaltada como um importante marco inicial para a constituição de uma tradição investigativa brasileira no campo da Filosofia da Educação (SEVERINO, 2000). Nesse período, Saviani produziu dois trabalhos relevantes para a prática da pesquisa em filosofia da educação. O primeiro estudo defende uma concepção de filosofia da educação que, principalmente na década de 1980, foi bastante propagada, tornando-se um tipo de princípio norteador para estudiosos e professores vinculados com a área. O argumento principal consistia na recusa tanto da ideia que a filosofia da educação tenha como tarefa a fixação apriorística de princípios e objetivos para a educação, quanto da ideia de que a filosofia da educação deva ser reduzida a uma teoria geral da educação responsável pela sistematização dos seus resultados. Ao contrário, a tarefa da filosofia da educação não seria apenas reflexiva e crítica em relação à prática educacional, mas também elucidativa tanto no que concerne ao papel das diversas disciplinas pedagógicas nos processos educativos, quanto no que diz respeito à avaliação das soluções propostas e dos resultados obtidos (SAVIANI, 1991). No segundo estudo, Saviani elabora uma classificação das principais tendências e correntes da educação brasileira e, no âmbito dessa pesquisa centrada em livros, dissertações e teses da área educacional produzidas até o ano de 1977, distingue quatro concepções ou tendências filosófico-educacionais predominantes na história recente da educação brasileira: a humanista tradicional, a humanista moderna, a analítica e a dialética. A humanista tradicional predominou nos anos de 1930. A humanista moderna dividiu o cenário com a tendência predecessora entre os anos de 1930 e 1945 e prevaleceu no período entre 1945 e 1960. A analítica ganhou evidência a partir dos anos de 1960, mas sua ênfase é situada no período posterior a 1969. E a dialética tem suas referências teóricas encontradas majoritariamente nos trabalhos pro- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 25 Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação duzidos a partir de 1974. A orientação teórica humanista tradicional centra-se na visão essencialista do ser humano e está relacionada com as vertentes religiosas do tomismo e do neotomismo. O humanismo moderno é fundado numa visão centrada na existência, na vida prática da atividade humana e possui distintas expressões representadas pelo historicismo, pragmatismo, existencialismo e fenomenologia. A vertente analítica é representada pela filosofia analítica da educação, que tem como princípio fundamental a análise da linguagem lógica educacional, isto é, a investigação e compreensão dos termos educacionais no contexto linguístico e formal de sua utilização. A literatura educacional que tem como referência a dialética é constituída fundamentalmente por autores vinculados à tradição marxista que sustentam que os problemas educacionais somente podem ser efetivamente compreendidos a partir de seu contexto histórico, político, econômico e social (SAVIANI, 2002a). A fim de evitar imprecisões teóricas, Saviani sugere pensar a filosofia da educação a partir de uma dupla abordagem: como processo e como produto. O caráter processual da filosofia da educação remonta à sua conceituação como uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas suscitados na realidade educacional brasileira. Já como produto, a filosofia da educação é compreendida num sentido mais abrangente como uma concepção teórica norteadora a partir da qual se privilegia uma ação com o objetivo de dar um determinado direcionamento para o processo educativo. Seja como processo ou como produto, a filosofia da educação não pode ser considerada isoladamente, pois seus dois significados estão intimamente relacionados e apenas a tendência dialética proporciona e harmoniza ambos os aspectos (SAVIANI, 2002a). A respeito disso, Severino adverte que embora o mencionado texto de Saviani constitua um clássico, sua abordagem também encerra uma versão interpretativa acerca da filosofia da educação similar a dos autores por ele criticados (SEVERINO, 2000). Isso fica evidenciado pela própria afirmação de Saviani, que sustenta que dentre as quatro tendências mencionadas, a concepção dialética seria a única capaz de articular corretamente as exigências teóricas com a concretude histórica e social (SAVIANI, 26 2002a). Aqui, a ressalva não está relacionada com a sistematização de Saviani em torno da proposta classificatória das tendências teóricas, mas refere-se à sua enfática defesa da dialética como uma concepção teoricamente superior e ideologicamente isenta. Severino ainda sugere que cada época apresenta discursos e referências filosóficas explícitas ou implícitas que, além de pensar a realidade educacional no país, contribuíram igualmente para delinear a tradição filosófico-educacional brasileira. Assim, não é possível conceituar a filosofia da educação ou delimitar a sua prática a partir de apenas uma vertente filosófica. Na trajetória da filosofia da educação no Brasil, o pensamento sistemático sobre a educação está sempre vinculado a pressupostos teóricos emprestados de paradigmas filosóficos universais (SEVERINO, 2000). O delineamento da tradição filosófico-educacional brasileira é atravessado por referências explícitas ou implícitas aos pressupostos essencialistas, naturalistas e historicistas. Assim, embora o pensamento filosófico-educacional atual esteja desvinculado das perspectivas metafísica e teológica, até a primeira metade do século XX havia autores cujas ideias eram baseadas no essencialismo neotomista, como o padre jesuíta Leonel Franca (1893-1948), fundador da PUC-RJ, e Leonardo Van Acker (1886-1986), professor de filosofia da educação da PUC-SP, que fez críticas vigorosas ao movimento da Escola Nova, pois acreditava que nesta concepção a filosofia ficava reduzida à epistemologia e a pedagogia reduzida a um misto de psicologia e biologia. Após o predomínio dos pressupostos essencialistas na educação tradicional, a perspectiva científica passa a ter grande relevância para o conhecimento do processo educacional e das práticas pedagógicas. A mudança mais representativa dessa tendência foi o modelo da Escola Nova, proposto pelos Pioneiros da Educação (os principais foram Fernando Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira), que entre os anos de 1920 e 1930 defendiam que a sociedade brasileira precisava de uma educação inspirada pelas teorias científicas e voltada para a democracia, e não de uma educação controlada pela autoridade religiosa. A partir da segunda metade do século XX, o marxismo e o existencialismo, as duas principais correntes Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota filosóficas da época, também influenciaram as reflexões filosóficas no Brasil, sendo Paulo Freire (1921-1997), o autor mais representativo dessa perspectiva histórico-social. Severino defende que a filosofia da educação possui três tarefas peculiares, distintas e inter-relacionadas: a epistemológica, encarregada da análise crítica do conhecimento e discurso educacional; a axiológica, responsável pela indicação de valores para a prática educacional; e a ontológica, incumbida de construir uma imagem do ser humano como sujeito educativo. É no âmbito dessa última tarefa que nossa atual discussão está inserida. Assim, a filosofia da educação somente pode indicar valores se estiver amparada por uma antropologia filosófica. Todavia, tanto a abordagem antropológica metafísica quanto a cientificista revelam-se insuficientes para conceituar a especificidade humana: enquanto a primeira se perde no idealismo apriorista, a segunda se equivoca num emaranhado de determinismos (SEVERINO, 2011). Além das três indissociáveis tarefas que configuram a filosofia da educação, Severino também propõe que elas são desempenhadas conceitualmente a partir de quatro círculos hermenêuticos, que atribuem e sistematizam significações à educação. Essa sistematização expressa nos círculos hermenêuticos não dispõe de uma nomenclatura específica para cada uma de suas quatro expressões. Entretanto, os círculos hermenêuticos são tão abrangentes teoricamente que todas as perspectivas filosófico-educacionais individuais ou coletivas são abarcadas por eles. Essa proposta corrobora a ideia de que as produções acadêmicas da cultura filosófica brasileira na abordagem de temas educacionais também são vinculadas a algum tipo de modelo teórico fundamental oriundo da tradição filosófica ocidental (SEVERINO, 2011). Na trajetória histórica da filosofia da educação, vimos que após a sua conversão em disciplina acadêmica institucionalizada, sua constituição como campo de estudos e pesquisas foi precedida e marcada por embates travados entre intelectuais de distintas orientações teóricas. Por isso, alguns autores consideram que durante os anos de 1930 a 1960 não é possível sustentar a existência de um projeto filosófico-educacional no Brasil, em decorrência da hegemonia católica. A orientação neotomista nor- teava intelectuais, programas, bibliografias e, posteriormente, instituições que conferiam à filosofia da educação uma identidade filosófico-teológica. Após o declínio da hegemonia neotomista e do advento dos programas de pós-graduação, entre os anos de 1970 e 1980, a filosofia da educação ensinada e produzida nas principais universidades brasileiras foi gradualmente se transformando, passando a cultivar uma identidade laica vinculada com a antropologia da existência, posteriormente associada com a fenomenologia e, finalmente, de forma mais longeva, subsidiada pelo marxismo. As décadas subsequentes de 1980 e 1990 são consideradas cruciais para a consolidação da filosofia da educação como campo de investigação teórica e de prática profissional. Esse período é considerado o mais fértil no que tange à produção de estudos e pesquisas oriundos do campo investigativo filosófico-educacional. Inclusive, a própria identidade e objeto de estudo da filosofia da educação passam a ser problematizados. Acerca dos anos de 1980, Tomazetti alega que o suporte marxista não ofereceu subsídios necessários para que a filosofia da educação tivesse uma identidade disciplinar própria, com conteúdos e objetivos definidos como disciplina de formação de professores. Por sua vez, Albuquerque contesta tal posicionamento e defende que foi sob o paradigma marxista que a filosofia da educação, no contexto dos cursos de pós-graduação, configurou-se especificamente como uma disciplina formativa voltada para a reflexão de problemas oriundos da realidade educacional. A intensa produção acadêmica orientada pelo referencial dialético marxista no âmbito filosófico-educacional, produzida entre as décadas de 1970 e 1980, também entrou em declínio no final dos anos de 1980, coincidindo com a crise do marxismo no cenário mundial (TOMAZETTI, 2003; ALBUQUERQUE, 2003). Albuquerque explica ainda que, sob a perspectiva crítica do marxismo, a filosofia da educação colocou de lado seu caráter especulativo e voltou-se para a realidade educacional prática, a fim de questionar o estreito nexo entre as instituições escolares, as estruturas de poder e os aparelhos ideológicos. Nesse sentido, uma das principais medidas para a consolidação hegemônica do paradigma marxista no âmbito da filosofia educacional foi a bipolariza- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 27 Entre a educação e a filosofia: aspectos históricos da filosofia da educação como disciplina acadêmica e campo de investigação ção teórica entre a emergente concepção dialética da educação e as demais concepções que, independente de suas matizes teóricas, deveriam ser superadas por encerrarem concepções burguesas de educação (ALBUQUERQUE, 2003). Na releitura de Gadotti, as tendências teóricas que Saviani havia dividido em quatro vertentes (a humanista tradicional, a humanista moderna, a analítica e a dialética) são divididas em apenas duas tendências radicalmente opositoras: a concepção dialética e a concepção tecnoburocrática. Enquanto a tendência dialética representava o comprometimento com as classes populares, a tendência burguesa congregava as três tendências restantes que deveriam ser superadas em razão do compartilhamento de um pressuposto metafísico que negava a existência de classes sociais (GADOTTI, 1983). Assim, nessa argumentação, os intelectuais católicos e os reformadores liberais escolanovistas constituíram tendências distintas dentro de uma única concepção burguesa de educação. Quando a filosofia da educação presenciou a substituição da perspectiva neotomista pela perspectiva marxista como orientação norteadora hegemônica, tal evento procedeu a partir de fatores externos, tais como mudanças no cenário político-cultural brasileiro, e também a partir de fatores internos, particularmente a presença de novos professores e novos currículos. No âmbito pedagógico, Libâneo critica que no decorrer dos anos de 1980 a forte influência marxista no campo educacional fez com que muitos educadores adotassem um discurso teórico oriundo das ciências sociais que menosprezava a própria Pedagogia (LIBÂNEO, 2010). A sucessão histórica de uma orientação teórica por outra não evita que erros antigos sejam novamente cometidos na área da filosofia da educação, sendo o principal deles a repercussão do silêncio hegemônico acerca das correntes opositoras consideradas superadas. Essa prática academicamente sectária faz com que muitos profissionais que atuam na área, em vez de reavaliarem continuamente seus programas de ensino e práticas pedagógicas à luz de novas teorias filosóficas e educacionais, prefiram simplesmente reeditar as categorizações, conteúdos e procedimentos de décadas passadas sem, entretanto, articulá-los com fatos históricos relevantes, 28 novidades teóricas ou questões educacionais atuais. A respeito disso, Albuquerque argumenta que a própria disciplina filosofia da educação carece de uma revisão crítica interna que contemple seus principais problemas, autores, correntes e categorizações, além de seu objeto de estudo e ensino (ALBUQUERQUE, 2003). Após a década de 1990, a intensa produção de artigos e livros que predominaram nas décadas anteriores diminuiu consideravelmente. Gallo considera que esse declínio ocorreu em decorrência da reformulação do Curso de Pedagogia, no qual a disciplina filosofia da educação teve sua carga horária reduzida ou seu conteúdo diluído em outras disciplinas, assim como ocorreu em outras revisões curriculares nos demais cursos de formação de professores (GALLO, 2007). A despeito do relativo declínio no âmbito das publicações da área, o período compreendido entre meados dos anos de 1990 e o início dos anos de 2000 é bastante rico no que concerne aos esforços em prol da organização e mapeamento da produção teórica, delimitação temática e demais estudos sobre a identidade e especificidade da filosofia da educação. Esse esforço teórico e de sistematização ocorre a partir da criação do Grupo de Trabalho (GT) – Filosofia da Educação, cujo primeiro encontro ocorre na 17ª reunião da ANPED, realizado no ano de 1994. A partir daí, os encontros subsequentes são marcados por intensos debates entre os principais pesquisadores da área em torno de perspectivas, caminhos e delineamentos predominantes para o campo da filosofia da educação. Albuquerque sustenta que os debates identitários travados no âmbito do GT – Filosofia da Educação a partir de 1997 não resultaram em modificações significativas nos rumos da investigação filosófica e educacional porque a produção acadêmica dessa área continuou amplamente baseada na produção de estudos de autores vinculados a tradição filosófica (ALBUQUERQUE, 2003). Por sua vez, Gallo considera essa tendência na produção de trabalhos vinculados ao pensamento de um determinado teórico sob uma dupla perspectiva. Por um lado, cumpre um importante papel na consolidação da filosofia da educação como uma tradição de pesquisa. Por outro lado, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Fernanda Antônia Barbosa da Mota tem o efeito nocivo de conduzir ao fechamento da investigação em torno dessa perspectiva, acarretando a perda do potencial criativo do pensamento (GALLO, 2007). Em nosso entendimento, essa dualidade constitui um dos principais problemas que circundam a pesquisa e o ensino em Filosofia da Educação no Brasil. Considerações finais No âmbito da discussão explicitada no decorrer desse estudo, evidenciamos o fato que distintas orientações teóricas produzem diferentes concepções de filosofia da educação e, consequentemente, diferentes formas para o seu ensino. Tal quadro torna-se ainda mais complexo quando consideramos a diversidade da formação inicial e continuada dos professores que atuam no campo da filosofia da educação. Isso porque, ainda que seja possível encontrar profissionais detentores das mais diversificadas formações, a maioria é formada em pedagogia ou filosofia, ou em ambos os cursos, ou, ainda, têm graduação em pedagogia com pós-graduação em filosofia, ou graduação em filosofia com pós-graduação em educação. Se considerarmos que a formação (graduação e pós-graduação) do professor de filosofia da educação não é consensual, resta saber como e até que ponto essa formação diversificada pode implicar em compreensões distintas do lugar e função do campo da Filosofia da Educação no curso de pedagogia e, consequentemente, como tal enfoque teórico-metodológico distinto orienta a sua prática em sala de aula, afetando assim a sua contribuição à formação do pedagogo e dos demais estudantes de outras licenciaturas. Diante do exposto até aqui, é possível constatar que nos dias atuais o campo da Filosofia da Educação continua permeado pelo antigo dilema que faz com que teóricos, pesquisadores e professores tenham que eleger a vertente filosófica ou a pedagógica como predominantes tanto na formulação de sua concepção de filosofia da educação, quanto para o seu ensino. Em ambos os casos persiste uma indesejável priorização de uma área em detrimento de outra. Não obstante, tais questões constituem importantes lacunas na literatura especializada acerca da formação docente, visto que ainda são escassos os estudos acerca do ensino dos professores de Filosofia da Educação no Brasil. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Maria Betânia. O ensino de filosofia da educação em questão. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, n. 1, p. 1-11, nov. 2003. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Unesp, 1999. COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. 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Recebido em 12.11.2012 Aprovado em 07.01.2013 30 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 19-30, jan./jun. 2013 Maria Judith Sucupira da Costa Lins NATUREZA DA EDUCAÇÃO E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO Maria Judith Sucupira da Costa Lins* RESUMO Este artigo focaliza o problema da natureza da educação e sua relação com a filosofia da educação. É apresentada uma discussão sobre a natureza da educação e enfatizada a necessidade de se entender o conceito de educação para se prosseguir através da filosofia da educação. O propósito deste artigo não é trazer uma filosofia da educação específica como modelo. O objetivo é discutir educação a partir da perspectiva da filosofia da educação. A filosofia da educação tem sido pensada para investigar a natureza e fins da educação de modo a oferecer elementos para a prática educativa. Questões sobre educação levam as pessoas a questionar sobre a natureza da educação e por esse motivo é importante desenvolver o campo da filosofia da educação. Diferentes concepções de educação têm um aspecto comum concernente à necessidade de discussão mais profunda sobre fins e processos educativos. A investigação sobre educação é interminável e a tradição contemporânea e histórica da filosofia da educação nos convida a continuar a investigação sobre a natureza da educação na modernidade. Entender a natureza da educação é importante para todos os que estão interessados no desenvolvimento de pessoas para o desafio de um mundo novo. Palavras-chave: Natureza da Educação. Filosofia da Educação. Concepção de Educação. Fins da Educação. ABSTRACT NATURE OF EDUCATION AND PHILOSOPHY OF EDUCATION This paper focuses on the problem of the nature of education and its relation to the philosophy of education. We present a discussion of the nature of education and we emphasize the importance of understanding the concept of education in order to go through the philosophy of education. The purpose of this article is not to show a specific philosophy of education as a model. We intend to discuss education from the perspective of the philosophy of education. The philosophy of education has been treated as a way of investigating the nature and aims and objectives of education in order to offer elements to educational practice. Questions on education lead people to ask about the nature of education and that is why it is important to develop the field of philosophy of education. Different conceptions of education have a common aspect concerning the need of deeper discussion on educational aims and objectives and processes. The inquiry about education is endless and the historical and contemporary * Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Associada do Departamento de Fundamentos da Educação da Faculdade de Educação da UFRJ. Endereço para correspondência: Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Pasteur, 250, fundos - 2º andar. CEP: 22290-240 – Rio de Janeiro, RJ. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 31 Natureza da educação e filosofia da educação tradition of philosophy of education invites us to continue the investigation about the nature of education in modern times. Understanding the nature of education is important for all who are interested in developing people for the challenge of a new world. Keywords: Nature of Education. Philosophy of Education. Conception of Education. Aims and Objectives of Education. 1. Introdução A ideia da discussão da Natureza da Educação em relação à Filosofia da Educação se fundamenta em sua característica conceitual necessária para a compreensão de todos os demais temas presentes na atividade de um professor de Filosofia da Educação. Natureza é o que há de mais peculiar a algo, aquilo que é em si mesmo e que o define. A natureza de uma coisa é o que faz com que esta coisa seja o que é, ao mesmo tempo em que a distingue de todas as outras coisas. Por isso, ao nos aproximarmos do problema da Filosofia da Educação necessitamos entender a Natureza da Educação. Em recente obra sobre Filosofia da Educação, no capítulo escrito especialmente sobre Natureza da Educação, lê-se: “começo com a observação que o termo ‘Educação’ se refere, em seu sentido primeiro, a práticas mais ou menos sistemáticas de supervisão e orientação das atividades de pessoas de modo a pretender promover formas válidas de aprendizagem e desenvolvimento.” (CURREN, 2007, p. 3). O referido autor passa então a analisar a questão proposta a partir da discussão sobre o estabelecimento dos fins da Educação, pensando sobre como esta deve ser realizada e chegando ao problema da seleção do seu conteúdo. Ainda sobre a centralidade desse tema, o mesmo autor diz: “a maioria das questões sobre educação nos conduzirão, cedo ou tarde, a perguntar sobre a Natureza da Educação”, e, ainda, que pensar sobre a Natureza da Educação é “um bom ponto para começar a aprender a pensar filosoficamente sobre educação” (CURREN, 2007, p. 7, grifo do autor). Nosso objetivo aqui é refletir sobre a Natureza da Educação com o olhar voltado para a Filosofia da Educação, a fim de que seja possível se chegar a algumas considerações sobre a relação existente entre elas. Uma definição é um complexo conceitual que busca delimitar de forma mais precisa 32 possível a natureza de uma coisa, e por isso é difícil a sua elaboração. Aristóteles (MCKEON, 1941), no Livro VII, 1028b, identifica a questão: o que é o ser? com a questão: o que é substância? Em sua reflexão, analisa a aplicabilidade do conceito de ser inicialmente a coisas sensíveis apenas e a estende para as não-sensíveis, de modo a afirmar que um ser é tudo o que pode ser tomado como sujeito de uma proposição afirmativa. Tal consideração nos leva a olhar a Educação como um ser na medida em que sobre Educação são apresentadas proposições afirmativas. Surgem então dois momentos do conhecimento sobre Educação: 1. Existencial, que é a consciência de que a coisa está aí. 2. O segundo momento: o que é isto?, nos eleva acima do plano puramente sensorial da informação para o plano cognitivo da coisa, o que é função da razão. Não é uma das mais fáceis tarefas buscar o entendimento da Educação, no entanto, clarificar as ideias sobre conceito de Educação “é uma necessidade urgente”, já mostrava Peters (1965, p. 88), fundador da London School of Philosophy of Education nos anos 1960, acrescentando que “tal clarificação conceitual é eminentemente a tarefa do filósofo da educação” (PETERS 1965, p. 88). Essa necessidade permanece ainda não completamente satisfeita, e por isso continuamos a nos debruçar sobre esse problema na tentativa de encontrar uma solução. Quando se tem o propósito de refletir sobre questões de Filosofia da Educação, o primeiro ponto que surge é, assim, a questão da Natureza. A compreensão do ser da Educação é fundamental para que se prossiga indagando sobre outros aspectos da Educação. O objeto da educação é o homem concreto, que é indivíduo e ao mesmo tempo em si mesmo é ente de humanidade, ente universal. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 Maria Judith Sucupira da Costa Lins Esse é um problema fundamental enfrentado pela Educação. Cada ser humano é específico e ao mesmo tempo pertence à humanidade. Em sua individualidade, a pessoa é incomunicável em seu ato de ser, sem, contudo, deixar de ser uma pessoa de comunicação, tema este que é central na reflexão de Habermas (1981) ao analisar o agir das pessoas nos diferentes sistemas de organização social. Segundo o referido filósofo, a complexidade do agir comunicativo é de tal ordem que parece não haver uma saída para essa situação, nem na linguagem nem no comportamento. Habermas (1981) faz críticas ao estudo parcial do ser humano e objeções à fragmentação do estudo do homem. Toda ciência estuda seres, mas somente a Filosofia se preocupa com o ser enquanto ser e continuamente está a questionar o ser. A Educação como ciência que busca um agir sobre o homem segundo finalidades específicas encontra grande dificuldade porque seu objeto é um ser ambivalente, é sujeito/ objeto; ser de liberdade/ser de natureza; espírito/ matéria. É um ser de contradições que se descobre continuamente como um desconhecido, que se revela e se oculta, de modo que precisa ser guiado por fins (MARITAIN, 1961), os quais constituem a base de sustentação da atividade educativa. Entendemos que o ser humano é um ser da experiência. É nessa perspectiva que Heidegger (1963) afirma que o homem é o ser que indaga sobre o ser, e ao se indagar sobre o ser o homem encontra tudo aquilo que lhe diz respeito, iniciando o caminho da Filosofia. A Filosofia expressa uma base de critérios que inspiram e orientam um agir, especialmente o agir educativo. É nesse sentido que vai se incluir a Educação. Heidegger (1963), em suas reflexões sobre o problema filosófico, diz não ter chegado a uma resposta, mas nos oferece pistas para uma continuidade dessa investigação. Compreender o ser humano como tal aparece então como indispensável para a atividade filosófica e educativa. A Filosofia enquanto questionamento da totalidade envolve o próprio ser humano, pois este é parte da totalidade, e desse modo a Filosofia é um questionamento do próprio ser humano. O ser humano é um ser que filosofa e nesta ação busca saber sobre si e sobre o mundo a sua volta. A Filosofia, ação realizada pelo ser humano, não é uma atividade puramente especu- lativa ou teórica do universo, mas envolve a sua existência e o seu fazer. O problema no homem, de ser o sujeito e o objeto do conhecimento, reveste a Filosofia da Educação de peculiares dificuldades. Toda vez que o homem se conhece a si mesmo, nas formas conceituais, tende a tornar-se objeto para si mesmo, mas ao mesmo tempo continua sujeito da sua busca. O fenômeno da Educação acontece e é um fato tanto individual como social. Apresentar uma descrição do acontecimento da Educação não é nosso objetivo e também não pretendemos nos estender na múltipla questão de conceitos. Entendemos que é preciso indagar sobre Educação e Filosofia, lembrando que em referência à última, pode-se dizer que “O único guia adequado para filosofia é a própria filosofia.” (DANTO, 1971, p. 9). É ainda o mesmo autor quem afirma: Pode-se descobrir muito sobre filosofia – pode-se saber sua história e os nomes de seus grandes mestres e mesmo suas doutrinas características, famosas e não saber realmente o que é filosofia [...]. Só se aprende o que é filosofia fazendo filosofia, lendo filosoficamente. Não há outro meio. O único caminho para filosofia é por meio da própria filosofia. (DANTO, 1971, p. 11). Ampliamos esse comentário para o domínio da Filosofia da Educação, sobre o qual estamos refletindo, e afirmamos que somente se aprende Filosofia da Educação fazendo Filosofia da Educação, ou seja, abordando os temas da Educação no questionamento próprio da Filosofia da Educação. Para que isso se torne realidade, temos que iniciar refletindo sobre o que é a Educação, procurando apreender o que é a Natureza da Educação e em seguida relacioná-la com a Filosofia para começarmos os questionamentos referentes à Filosofia da Educação. 2. Reflexões sobre a Natureza da Educação Passemos assim à questão propriamente dita da Natureza da Educação. Pode-se entender que Educação é uma atividade exercida normalmente por adultos sobre sujeitos imaturos e caracteriza-se por ser teleológica, com o fim de desenvolver estruturas Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 33 Natureza da educação e filosofia da educação de aprendizagem que levam a comportamentos considerados úteis, necessários e valiosos. Essa apresentação da Educação no conceito que agora organizamos tem caráter estipulativo e tenta iniciar a questão da sua Natureza. Pensar sobre a Educação muitas vezes pode levar alguém a tomá-la apenas como um processo, no entanto, segundo Standish (2007a), questionar a Natureza da Educação posiciona-se como prioridade. Faz-se imperiosa a discussão sobre a Natureza da Educação. A concepção de Educação tem uma base anterior à própria evolução do seu processo, de modo que o já citado filósofo Peters, ao se perguntar sobre o que é um processo educacional analisa a questão respondendo que “Educação não se refere a nenhum processo; mais precisamente, ela encerra critérios aos quais qualquer processo deve se adequar” (PETERS, 1967, p. 1). Essa afirmativa não nega o processo educacional, apenas procura evitar o reducionismo do conceito de Educação à realização de um processo, enfatizando a perspectiva mais ampla e filosófica da Educação. Isso não impede que alguém, ao ser educado, realize a sua construção e efetue aprendizagens que compõem um processo. No entanto, não esqueçamos que “Educação é inseparável do julgamento de valor” (PETERS, 1967, p. 3), e se concordamos com esta afirmativa, a Educação acontece a partir do momento em que podemos identificar valores para a vida do ser humano, o que é central à Filosofia. Embora não pretendendo analisar esse ou outro filósofo da Educação mais extensivamente, as ideias sobre Educação apresentadas por Peters foram destacadas por serem significativas na medida em que estão voltadas para questões filosóficas numa concepção da Educação visando a finalidade de aperfeiçoamento do ser humano. Note-se ainda que suas ideias e propostas permanecem na atualidade, conforme explica Palmer (2001) ao incluí-lo entre os 50 maiores filósofos modernos que pensam sobre Educação. Em trabalhos de diferentes autores, Peters tem sua obra analisada e comentada, como, por exemplo, por Barrow (2009), que destaca o pioneirismo e importância do referido filósofo inglês nessa área, e aponta a contribuição de seu pensamento para o entendimento da Filosofia da Educação. A 34 atualidade dessa Filosofia da Educação é também ressaltada por Katz (2009), afirmando que para se educar cidadãos para o século XXI precisamos recorrer aos conceitos apresentados por Peters em sua proposta de Filosofia da Educação. Acrescente-se ainda Cuypers e Martin (2009) atribuindo o desenvolvimento da moderna Filosofia da Educação ao papel fundamental daquele filósofo e ressaltando sua originalidade e atualidade. O fato de termos destacado nesse momento o nome de um filósofo em nossas reflexões não significa que sua teoria servirá de linha condutora ao nosso pensamento. As citações justificam-se na medida em que se pode considerar sua importância no que tange ao nosso objetivo, que é a Natureza da Educação e sua relação com a Filosofia da Educação. Educação não se expressa por meio de um conceito abstrato, pelo contrário, é uma atividade concreta que envolve pessoas comprometidas com valores e engajadas na prática pedagógica. Transformar é a ideia central da Educação, a qual envolve aprendizagens, lembrando-se sempre que nem toda aprendizagem, principalmente pelas características de intenção, será educacional. Por ser concreta, datada e situada, a importância da historicidade da Educação é inegável e esta é realçada pela ação das pessoas concernentes à prática social. Educação é uma atividade sistemática intencional, ao mesmo tempo em que é uma relação ético/existencial. Dessas reflexões iniciais podemos dizer que a Educação é um fato e ao mesmo tempo uma disciplina que trata deste fato. É prática e teórica, é in fieri e in facto. Acrescentamos que a Educação é uma atividade própria do homem na sociedade, mesmo sem que este disso se dê conta. Desse modo, é possível dizer que os ritos de iniciação praticados pelo homem primitivo configuraram um fazer da Educação e tinham sua eficácia em determinado contexto histórico e social. A despeito de a autoconsciência da Educação se verificar como problema somente no que se convencionou chamar a Antiguidade Clássica Grega, existia, no entanto, a Educação anteriormente, se bem que de formas e com objetivos diferentes de uma situação de problema do ser do homem. Tomando-se a questão do problema do ser do homem como o marco fundamental da atividade educativa, pode-se considerar que é a partir da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 Maria Judith Sucupira da Costa Lins reflexão grega que propriamente surge a Educação como inquietação da consciência. No entanto, a partir dessa perspectiva do papel dos ritos na vida social, cabe dizer que os povos primitivos anteriores à antiguidade clássica faziam Educação. Esta atividade era exercida, insistimos, embora ainda sem se caracterizar por uma forma plenamente consciente, de modo que, à sua própria maneira, a Educação também ali acontecia. A partir do século XIX a Educação tende a se fazer também científica e procura auxílio nas teorias científicas, principalmente aquelas que se iniciavam com referência ao comportamento. Em 1879, Wundt inaugura em Leipzig o primeiro laboratório com essa intenção, o que é um marco frequentemente citado. Não seguiremos aqui o tentador fio da História, apenas observamos quando a Educação começa a ser vista com possibilidades científicas e por isso recorre a estudos de cunho científico. Esse é um problema que já havia sido tratado por Herbart (1776-1841) ao tentar não só aproximar a Educação da cientificidade, mas extrair da Psicologia os meios e da Filosofia os fins para sua realização. Herbart (2010) tentou situar a Educação como a aplicação da Psicologia. Essa afirmação não se mantém, nem poderia ser considerada ao se refletir sobre a Natureza da Educação, e se a aceitássemos entraríamos em contradição com nosso objetivo de identificar a própria Natureza da Educação. Embora Herbart (2010) seja citado como um dos pioneiros quanto à preocupação com a cientificidade da Educação, na realidade, quando faz uso do termo ciência esta aplicação se dá em um sentido bem mais amplo do que se conhece hoje em dia. A questão da Educação em sua relação com a ciência continua a ser altamente controvertida. Em Educação, o cientista não pode ser apenas o cientista como é conceituado em referência à Física, mas tem que passar a um plano valorativo e ser fundamentalmente um filósofo com preocupação científica. Educação é fato e valor. Ser e dever ser. Realidade e norma. Além disso, vem sendo fortalecida uma concepção de educação que reconhece tanto a permanência quanto a mudança; experiência registrada como a experiência direta; o domínio das ideias quanto o domínio da matéria, conforme aponta Chambliss (2009). A Educação é uma atividade prática e um constante refletir teórico, sendo marcada pela dinâmica da relação na composição dialética enriquecedora de sua própria natureza. 3. Questões sobre Filosofia da Educação Passando a uma reflexão mais especificamente dirigida para questões sobre a Filosofia da Educação, vejamos em primeiro lugar o que se pode entender por Filosofia. A Filosofia é a disciplina que consiste em discutir seu problema interno. Ao mesmo tempo é possível afirmar que a Filosofia não é uma disciplina, pois a rigor não tem um objeto como as outras disciplinas. É uma indagação sobre a raiz das coisas, um constante questionamento e um deslumbramento diante destas. Podemos encontrar três ordens de problemas filosóficos fundamentais: 1. Saber crítico a partir da reflexão; 2. Saber sobre o mundo e se situar na realidade; 3. Reflexão e construção sobre o sentido da vida. Atitude diante da vida. O homem antecipa o que vai ser. Essas ordens de problemas filosóficos exemplificam a dificuldade da construção de um sistema de pensamento filosófico. Podemos ainda esquematizar o problema, para efeitos didáticos, nos seguintes aspectos: 1. Método de pensamento que se refere à reflexão crítica sobre condições e responsabilidades da ciência do saber; 2. Atitude diante da existência visando conhecer a totalidade, a multiplicidade à luz dos princípios fundamentais; 3. Saber das coisas, o que é fundamental para o homem porque é o ser que age racionalmente e toma consciência crítica do seu existir. Na realidade, poucos filósofos tentam abarcar essa totalidade do problema da inteligibilidade do ser, e do fundamento do agir do ser, em razão de sua ampla extensão. Uma das funções da Filosofia é a análise crítica das condições de possibilidade do saber em geral e de cada uma de suas formas especiais. Sendo assim, podemos desde logo inferir Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 35 Natureza da educação e filosofia da educação que constitui uma das tarefas básicas da Filosofia da Educação definir a natureza do saber pedagógico. A atividade prática e a reflexão são características, mas não são suficientes para explicar a Filosofia. Considerando que a Filosofia venha a se constituir uma disciplina própria, ainda assim observamos, como salienta Archambault (1965, p. 8, grifo do autor), que se pode entender também que a “Filosofia é, naturalmente, sempre a filosofia de alguma coisa: filosofia da arte, da ciência, da política. Filosofia tem um objeto próprio tradicional”. Com essa perspectiva se começa a compreender a Filosofia da Educação. A Filosofia tem como conceito a exigência da consciência em sua função de trabalhar problemas da indagação do homem sobre si mesmo e a realidade à sua volta. Essa é a centralidade da atividade filosófica, por isso não se propõe a apresentar respostas, mas criar problemas. Nesse sentido, a Educação segue outra vertente porque se apresenta como prática pedagógica. O problema de ser a filosofia filosofante é se o sujeito pode de certo modo transcender a situação e neste esforço reflexivo chegar a se dar conta de todos os fatores que exercem influência sobre ela própria e a realidade. A Educação tem a função de indagar e problematizar, acontecendo, deste modo, a aproximação com a Filosofia, pois também a Educação se propõe questões muito mais do que consegue encontrar respostas. A Filosofia se apresenta como ação e reflexão, o que nos permite pensar que a Filosofia é o momento em que o espírito atinge a si mesmo. A partir desse conceito específico, pensemos também a Filosofia da Educação, unindo esta ação e reflexão. Embora se possa considerar que a análise filosófica da realidade educativa existiu desde a época dos diálogos platônicos, enquanto disciplina autônoma, a Filosofia da Educação é de criação recente. Há inúmeras publicações alemãs que são incontestavelmente obras de Filosofia da Educação, no entanto, a disciplina propriamente dita e assim enunciada surge no final do século XIX, nos Estados Unidos. A atitude metodológica proposta para a Filosofia da Educação pretende imprimir um caráter científico, pois é semelhante à existente em outras ciências, embora as afirmativas não sejam precisas e os questionamentos persistam. A Filosofia pres36 supõe necessariamente a análise crítica, mas tem que oferecer uma visão do mundo, o que mostra que não se reduz a um diletantismo intelectual. A Filosofia tem necessidade de estar conectada com a realidade e, analogamente, ao pensamento de MacIntyre (1984), que afirma ser estéril para a filosofia refletir no recolhimento “de uma poltrona”, também nós consideramos esta esterilidade para a Filosofia da Educação que se afastasse da vida real. A atividade da Filosofia se realiza no plano do conhecimento e dos valores, de certo modo o que vem a constituir o sentido fundamental da Filosofia, mas que reflete sem se distanciar da realidade concreta dos fatos históricos e socioculturais. Filosofia da Educação é a atividade prática de reflexão sobre o significado e o agir educativo e ela está fortemente inserida na realidade concreta. É também com essa preocupação que Pollack (2007) se questiona sobre o que seja a Filosofia da Educação, lembrando que é preciso situá-la no campo social para que esta se realize. Entendemos que a Filosofia da Educação, que é uma atividade de crítica, no plano do conhecimento e dos valores, se encontra inserida na realidade sociocultural. A ausência de valores como base na Filosofia (KENAN, 2009) é uma crítica pertinente que vem se fortalecendo cada vez mais no que se refere à ideia de Educação. Essas são características, mas não são suficientes. A Filosofia da Educação é uma disciplina cujo problema é discutir as realidades educativas. O homem é o ser capaz de pensar além do que é imediatamente exigido pela sua adaptação biológica. Tem consciência de si inserido no mundo e é um ser que se autoconstitui, ao mesmo tempo em que é uma liberdade que atua em função de valores. Portanto, a Filosofia da Educação, num sentido prático, se apresenta também como uma teoria de valores na construção do ser humano. Embora tenhamos que compreender que “a ética só indiretamente tem algo a ver com o problema da filosofia da educação” (ALVAREZ, 1969, p. 19). Isso porque a Filosofia da Educação não se limita a problemas da ética, embora eles tenham vital importância. A Filosofia da Educação tem um papel que se amplia além dessa discussão, o que nos leva a pensar sobre qual é o lugar da Filosofia no estudo da Educação e sua significação. Standish (2007b) tenta Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 Maria Judith Sucupira da Costa Lins responder a essa questão examinando a Filosofia da Educação como um campo de estudo com característica própria, sem com isto se distanciar da relação com a Filosofia. Diferentes concepções filosóficas, desse modo, devem compor o estudo da Filosofia da Educação. Poder-se-ia pensar que a ciência, tal como hoje se apresenta, em seu formato rígido, condiciona o pensamento filosófico, no entanto a Filosofia não se restringe aos limites impostos pela ciência. A natureza própria da Filosofia é lidar com problemas universais, o que não a impede de construir um olhar histórico, enquanto a Educação procura conciliar o universal ao particular, debruçando-se sobre cada educando enquanto uma pessoa única. Desse modo, é preciso não esquecer que “o estratagema da filosofia consiste em jamais se deixar determinar por um campo único” (GROUPE DE RECHERCHES SUR L’ENSEIGNMENT PHILOSOPHIQUE, 1977, p. 7). Para a Associação Latino-Americana de Filosofia da Educação (ALAFE), em documento divulgado no congresso realizado no início de agosto de 2011 (CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, 2011), a Filosofia da Educação é, antes de tudo, campo da filosofia. Se a Filosofia é uma indagação sobre a raiz das coisas, pensemos na Filosofia da Educação como a indagação sobre a raiz da Educação. É um constante questionamento que busca ser crítico e conhecer o mundo para se situar na realidade educativa. É uma reflexão que antecipa e oferece condições para a construção de significados no campo da educação. E, principalmente, a Filosofia da Educação tem a marca dos valores (O’CONNOR, 1967), a qual não pode ser menosprezada. Resumindo, a Filosofia da Educação é uma atitude diante da vida educativa, na medida em que as questões filosóficas são centrais para a Educação na teoria e na prática. A Filosofia alimenta o debate sobre a Educação (OANCEA; BRIDGES, 2009), permitindo deliberações concretas para a prática pedagógica. Diante dessas reflexões, ousamos afirmar que não é possível compreender Educação sem uma concepção filosófica, ou seja, uma teoria da educação está relacionada à filosofia, à antropologia filosófica, à ética e ao conceito de ser humano. Teoria e prática em Educação revelam uma opção filosófica daqueles que estão envolvidos neste empreendimento fundamental para o ser humano. Filosofia da Educação pode ser entendida conforme a seguinte argumentação: Não é seu objeto que distingue a filosofia de outras disciplinas. São as suas finalidades, suas preocupações e sua maneira de investigação. [...] Na medida em que os problemas de educação oferecem um campo rico para a análise filosófica, e a educação é uma atividade complexa, vital e baseada em valores, parece que o estudo de filosofia da educação pode ser um estudo legítimo, válido e proveitoso. (ARCHAMBAULT, 1965, p. 8). É nesse contexto que a experiência ganha a centralidade do problema filosófico da educação, notadamente em Dewey (1952), que apresenta fortemente o conceito de experiência como nuclear para uma Filosofia da Educação ao dizer que Educação é a contínua reconstrução da experiência. A presença do pensamento de Dewey (1958) na Filosofia da Educação torna-se consistente por sua exigência de que esta seja entendida necessariamente como uma prática que surge das condições sociais na qual ela é exercida. A junção dos termos “Filosofia” e “Educação” com a preposição de genitivo encaminha-nos para a ideia de posse. Seria a Educação a dona da Filosofia? Submete-se, desse modo, o pensar filosófico à Educação? Nossas pesquisas nos respondem negativamente e nos mostram que uma Filosofia da Educação exige a discussão de componentes básicos diversos, dos quais se destacam a finalidade da educação, propostas de sistemas educacionais e organização de currículos, além do significado do papel de todos envolvidos nessa atividade. Pensar sobre Filosofia da Educação nos conduz a caminhos diversos, a transformações e linhas de pensamento que se multiplicam. Da Filosofia da Educação se chega à Teoria Pedagógica, que por sua vez se relaciona à Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, Economia da Educação e outras formas de expressão do conteúdo educativo. Não estamos no momento abordando esses diferentes e importantes campos de relação da Educação, mas sim refletindo sobre a Filosofia da Educação, entendendo sua importância para os desafios que se apresentam para a construção de um novo mundo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013 37 Natureza da educação e filosofia da educação 4. Considerações finais O tema aqui desenvolvido nos permitiu uma reflexão que tem prolongamentos na prática educacional ao mesmo tempo em que suas raízes se fincam no aprofundamento teórico. Filosofia da Educação é uma permanente indagação e, precisamente por essa característica, nos instiga a continuar buscando não só novas respostas, mas também perguntas outras que surgem do contexto atual. Retornando ao objetivo proposto inicialmente, é bom que não nos esqueçamos da importância do conhecimento cada vez mais preciso do que é a natureza da Educação. Para que se possa caminhar no plano da Filosofia da Educação, a identificação dessa natureza se nos apresenta como indispensável. Não há um conceito rígido e fechado sobre o que é Educação, de maneira que sua natureza pudesse facilmente revelar-se. Pelo contrário, qual uma interminável cebola, é preciso tirar todas as peles, remover todas as camadas para se chegar ao núcleo do conceito de Educação. O tempo e a História provocam o pensar contínuo sobre a natureza da educação, que tem suas bases na tradição (ARENDT, 1983) e, simultaneamente, se lança para o futuro. Trata-se de um problema permanente para a Filosofia da Educação, iluminar o significado dessa atividade essencial do ser humano, de modo que não nos contentemos com simples rótulos e fáceis descrições do que, aparentemente, seria a natureza da educação. Finalizando, propomos que a discussão seja continuada, pois sabemos que, na realidade, esse tema não pode ser concluído. Muitos debates se fazem necessários para que tenhamos pistas para seguirmos na caminhada educativa. Natureza da Educação não é um objeto, não é um dado estático, nem muito menos uma informação que se consiga ao estalar dos dedos. A Filosofia da Educação, em sua complexidade e riqueza de análises e reflexões, é o campo privilegiado para que o educador busque e descubra essa identidade. REFERÊNCIAS ALVAREZ, A. G. Filosofia de la educacion. 3. ed. Buenos Aires: Ediciones Troquel, 1969. ARCHAMBAULT, R. Introduction. In: ARCHAMBAULT, R. (Org.). Philosophical analysis and education. London: Routledge and Kegan Paul, 1965. p. 1-11. ARENDT, H. Between past and future. Eight exercises in political thought. New York: Penguin Books, 1983. BARROW, R. Was Peters nearly right about education? Journal of Philosophy of Education, London, v. 43, p. 9-25, Oct. 2009. Supplement 1. 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Procura-se destacar o empoderamento do sujeito conhecedor como foco primacial do filosofar na prática educativa, abordando diferentes instâncias propositivas para tratar da relação de educação e filosofia. Estas aparecem nos tópicos escolhidos, desenhando uma polilógica, formando um conjunto de tensores fundamentais que mostram a investigação da questão filosófica da educação a partir do imperativo da complexidade e do cuidado que se deve ter para não reduzir o acontecimento do pensar apropriador ao domínio da linguagem explicativa. Trata-se também de um esforço de compreensão a partir de si mesmo. Algo além da mensuração e da previsão. Algo que se cultiva no tempo e que ganha densidade com a duração imprevisível do existir singular. Palavras-chave: Educação e Filosofia. Sócrates. Filosofia na educação básica. Método dialógico. Abordagem polilógica e transdisciplinar. Abstract E D U C AT I O N A N D P H I L O S O P H Y: P H I L O S O P H I Z I N G A S A TRANSDISCIPLINARY FORMATIVEACTIVITY FOR BASIC EDUCATION - POLYLOGICAL CONSIDERATIONS This paper aims to analyse the relationship between Education and Philosophy, considering the implications of the mandatory return of Philosophy as a subject in the National High School. It is clear the increasing interest in Philosophy at all levels of basic education once there is recognition that it is dialogical thought activity for the healthy and creative human development. The approach we deal with emphasizes the * Doutor em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Associado III – DE (UFBA). Coordenador do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (2011-2013) (UFBA). Endereço para correspondência: Universidade Federal da Bahia / Faculdade de Educação – FACED/UFBA – Doutorado em Difusão do Conhecimento. Av. Reitor Miguel Calmon - s/nº – Vale do Canela – Salvador-BA – CEP 40110-100. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 41 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas experience of the appropriaton (the dynamic relationship between being and being there), appropiating and assigning. We try to show the difference between a philosophy for all (basic) and a superior philosophy (top). We try to highlight the empowerment of the knowing subject as the main focus of philosophizing in the educational practice. In order to achieve our goals, we discuss different purposeful instances in a way to understand the relationship between education and philosophy that appear in the chosen topics where we draw a poly-logical approach. The analysis leads to a set of fundamental tensors that shows the investigation of the philosophical question in education from the imperative of complexity and care we must have in order not to reduce the occurrence of appropriation to the domain of the language explanation. It is also a comprehension effort of the self, something beyond the measurement and prediction that grows over time and gets stronger in an unpredictable time of our singular existence. Keywords: Education and Philosophy. Philosophy for Basic Education. Dialogic Method. Poly-logic and Transdiciplinary Approach. Abertura: uma abordagem polilógica do sentido – restabelecendo a relação entre educação e filosofia em uma chave radicalmente imprevisível, como uma obra de arte Filosofia e Educação encontram-se separadas em virtude dos processos históricos da modernidade. Em uma civilização esquizofrênica e lábil como a dominante, todos os movimentos tendem à dissociação e à fragmentação, predominando um estado inercial de desatenção e descuidado geral. A filosofia se vê fora da educação, e a educação se encontra apartada da atitude filosófica. A filosofia deixou de lado, já há muito tempo, a atitude filosófica radical. A distância entre as academias filosóficas e o senso comum da educação é tão intensa que se pode ouvir de longe sua dissonância e atropelo. A insensatez domina o cenário dos personagens conceituais que desfilam suas erudições nos palcos acadêmicos. E a vida ela mesma, como fica a vidavividavivente de cada dia? Será essa uma pergunta filosófica e pedagógica simultaneamente? Filosofia e Educação tornaram-se dois territórios distantes, abissalmente, um do outro. A modulação disciplinar da modernidade é relativamente responsável por isso. A Filosofia acadêmica dedica-se às historiografias filosóficas, investigando pouco ou quase nunca as emergências da vida humana de todas as idades, de incontáveis tempos. 42 Mantida a dicotomia motivada pelo desconhecimento da vida sábia, qual é a serventia de uma disciplina de Filosofia que não alcance o âmbito de um questionamento radical? Um questionamento acerca do ser que somos, e se limite a transmitir conteúdos da suposta tradição filosófica hegemônica, para depois aplicar testes ou provas a serem respondidas como treinamento para o sucesso nos exames de acesso ao ensino superior? Se não tivermos a coragem de colocar a questão filosófica da educação nacional em processo de investigação rigorosa, deixaremos passar a oportunidade histórica de decidirmos questões do nosso próprio destino, ampliando, assim, o âmbito dos estudos filosóficos fundamentais e formadores de professores licenciados ou não em filosofia, permitindo ampliar o campo de formação do educador-filósofo. E como ainda não há esse educador de filosofia que já se encontre com tamanha possibilidade filosófica viva, é preciso, também, se ter a coragem para projetar os novos espaços e tempos de convivência de um filosofar consequente e transformador do estado de consciência de si mesmo pelo agir corresponsável e comunitário. O passo a ser dado é muito grande. Temos a nosso favor a força do tempo ancestral que vem ao nosso encontro, trazendo-nos de volta ao tempo instante. Somos levados a decidir pelo mais antigo, o mais arcaico, o evidente, o mais sublime dos modos de amar: o amar Sophia! Contudo, o Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi mais evidente e sublime dessa decisão encobre-se na impossibilidade de se alcançar o fim último da “verdade” por meio de representações eidéticas puras ou por experimentações seriadas, porque o próprio pensamento já se percebe “em outra parte sempre”, justamente por ser “pensamento”, ser já passado. Isso nos leva muito longe em relação à função propriamente formativa da filosofia na educação básica, nos afastando da tradição que pensa dicotomicamente a Filosofia em sua relação com a Educação e com a Vida. Temos aqui a delimitação de um campo de pesquisa que se mostra emergente e necessário, caso se tenha a coragem de levar a bom termo uma radical maneira de experienciação da aprendizagem filosófica básica, a partir de vivências consistentes relativas aos principais desdobramentos de nossa condição de seres pensantes e desejantes. Seres estratificados sócio-historicamente de acordo com cada caso específico que é sempre uma constelação serial de casos. A tarefa não é a simples transmissão de formas acabadas, e sim o exercício efetivo da investigação filosófica permanente, que sempre se renova e surpreende na ação própria de cada caso implicado. O mais antigo vem a nós como inspiração: Sócrates e o nexo indissociável de filosofia e educação na perspectiva do pleno desenvolvimento humano Quando Sócrates inventa a filosofia abre-se um abismo entre a forma tradicional de transmissão da Sabedoria e sua maiêutica ou método de investigação de si mesmo, a partir de um movimento dialógico de perguntas e respostas. A filosofia inaugurada por Sócrates é uma nova forma de educação, não sendo possível dissociá-la do movimento de formação do homem grego, uma nova Paideia, que se apresenta como um desafio absolutamente inusitado para a humanidade, e não apenas para o povo grego. Como afirma Jaeger (1995, p. 512): “Sócrates é o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente”. Quer dizer, na origem da filosofia ocorre o mais vistoso e brilhante fenômeno pedagógico de todo o Ocidente? Como isso se mostra e procede? Como assinala Figal (2003) em seu ensaio Sócrates - O filósofo, o radicalmente novo em Sócrates pode melhor ser percebido em um diálogo de Platão no qual, a partir de uma questão colocada por Sócrates, dois personagens dialogam acerca da distinção entre o sofista, o político e o filósofo (Teeteto e o Estrangeiro de Eléia). Sócrates aparece como divisor de águas na tradição do pensamento grego, justamente por sua atitude interrogante. Diz ele: No ‘Sofista’ de Platão, fala-se dos pensadores importantes antes de Sócrates, de Parmênides e Heráclito, e também de Empédocles, e se diz que tratavam seus ouvintes como crianças: contavam histórias, sem dar importância a que os pudessem seguir ou não (Soph. 242c, 243ª-b). Essa censura é decidida e também injusta como uma posição recém-inventada. Que o gestual na fala dos nomeados se distinga pelo contraste, perca sua força de persuasão e abra a perspectiva de desenvolver pensamentos como fala, em perguntas e respostas, verificando se o interlocutor pode acompanhar ou não, isso vem de Sócrates. [...] O que muda não é algo exterior, é decididamente mais que uma questão de estilo. Pensamentos são diferentes quando participados e partilhados, não mais ensinados ou anunciados. Aliás, só agora os tomam como pensamentos, pois exatamente porque agora sua articulação linguística é levada a sério, é conscientemente experimentada, eles se destacam de sua respectiva forma linguística. Pensamentos, agora se percebe, podem ser formulados de um modo, mas também de outro, e só se tornam compreensíveis se pronunciados em diversos modos e versões. Além disso, agora se vê a importância dos pensamentos para a vida pessoal e em grupo: onde se acha importante cuidar da sua articulação, eles sempre já determinaram a vida pessoal; é possível experimentar que eles nos dizem respeito como algo comum. (FIGAL, 2003, p. 129-130). Essas surpreendentes palavras ofertam o tom do gesto radical de Sócrates ao realizar uma Paideia reinventada no diálogo tensivo com a tradição. O tradicional faz-se de novo desconhecido em sua nascente. O que emerge é a possibilidade de uma individuação implicada radicalmente com a verdade comum. A comunidade é o fundamento metodológico da filosofia nascida com Sócrates. Ao transformar uma discussão retórica em uma Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 43 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas investigação continuada, ele inicia o movimento da filosofia como aspiração à sabedoria. Tudo, então, começa entre amigos. A filosofia acontece como reunião de amigos: ela pressupõe o laço afetivo que implica cada amigo em si mesmo, pela relação dialógica com o desconhecido: o perguntado – ti estin – o que é isto? O perguntado da filosofia socrática mostra o desconhecimento humano em relação ao seu estado existencial. A busca do conceito universal e sua essência ideal, na perspectiva alcançada, não é o principal foco da investigação socrática. Seu principal foco é o acontecimento do desvelamento da condição humana – sua verdade comum. Sócrates afirma a impossibilidade da investigação filosófica fora do diálogo comum entre amigos do Saber. Como alguém pode ser levado a investigar a si mesmo – sua alma – se não despertar para a “sua” alma na relação com outras almas? Ninguém aprende a pensar a partir de si mesmo sem se estranhar renovadamente no jogo dialógico do perguntar e responder, jogo implicado com os estados partilhados de percepção e possível intuição direta de si mesmo em relação à totalidade conjuntural. O movimento inaugurado por Sócrates chamado de filosofia permanece ainda fecundo em sua abertura germinal, possibilitando repensar a educação filosófica interligada às emergências dos seres humanos vivos, requisitando cuidado e dedicação, empreendimentos de aprendizados significativos conectados com as questões da existência comum e suas singularidades. A aprendizagem filosófica diz respeito ao autoconhecimento nessa implicação comum e singular. A partir de Sócrates, o sentido da educação humana se amplia em suas possibilidades, adquirindo uma abertura convergente na direção do trabalho infinito de compreensão teórica e racional do ser que somos. Isso segundo uma potência para a vida sábia, uma disposição para a autorrealização que se configura como atitude radical na investigação do que é e do que não é, investigação de si mesmo – seres que alcançam e realizam a consciência da consciência e da inconsciência ao longo da existência própria e apropriada. Esse ato inaugural de Sócrates – posto que assim se mostre evidente nessa visada própria e apropriada – não significou uma predominância 44 de sua atitude filosófica em todos os momentos da História do Ocidente, tornado-se a palavra e o conceito “filosofia” uma derivação aberta a singulares desenvolvimentos. Isso significa reconhecer as diferentes escolas filosóficas com suas diferentes fundamentações metafísicas. O que também significa não tomar partido, não polarizar a produção discursiva do sentido. Assim, retomar a figura de Sócrates como fio condutor para a realização de outra possibilidade de educação humana – compreendendo a totalidade da condição de possibilidade – se dá nesse contexto de modo semelhante ao que Edmund Husserl fez com Descartes, ao tomar para si a responsabilidade de investigar “os próprios pensamentos” em um movimento radical de retorno a si mesmo. Em suas Meditações Cartesianas, Husserl (2001) defende a ideia de uma fenomenologia como explicitação transcendental da constituição da consciência imanente, a partir do esclarecimento dos fundamentos da objetividade como “concordância de uma pluralidade de subjetividades”. Ele toma como horizonte constitutivo de sua investigação fenomenológica a alteridade intermonádica da própria consciência transcendental, da consciência em si mesma no ato de tornar-se consciente das possibilidades incomensuráveis de fenômenos de existência, não dependendo, portanto, do transcurso da experiência, sendo uma intuição eidética purificada dos dados indutivos e/ou dedutivos. Isso, entretanto, não significa a ausência de um método, nem o desconhecimento do que já se encontra-aí. Com Sócrates nasce a filosofia da alma humana. Será? Ao longo de toda a História do Ocidente isso ficou encoberto na medida em que corre solta a imagem mítica de Sócrates. O importante, aqui, não é a figura lendária, grandiosa e estática, e sim aquilo que podemos fazer com a atitude filosófica inaugurada por Sócrates. Esse é o desafio: a realização de uma prática filosófica radicalmente dialógica. O importante é o trabalho efetivo na direção de aprendizados comuns que permita a cada um construir o conhecimento de modo próprio e apropriado. Essa posição pode soar estranha e levantar suspeita. Isso exige uma explicitação mais longa do argumento, para que não pareça veleidade Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi o que se constitui como problema filosófico no rigoroso e específico sentido do termo. A maior dificuldade de exposição do argumento encontra-se no preconceito generalizado relativo ao que deve ser a disciplina escolar, por extensão, o que deve ser a disciplina de filosofia no currículo do ensino médio. O fundamento aqui utilizado, entretanto, toma outro rumo, caminhando para a necessária mudança de regime modulador da educação formal como um todo. Trata-se de uma revolução necessária, já anunciada por muitos estudiosos do assunto em nosso tempo, educadores e filósofos, filósofos educadores, educadores filósofos ou simplesmente filósofos amadores (amantes do saber-ser). O próprio Sócrates não era um profissional do conhecimento filosófico, e sim, simplesmente, um “filósofo”, quer dizer: um amante de Sophia, um aspirante ao saber-ser mais próprio. Para começar do começo precisa-se por primeiro praticar uma filosofia radical, garantindo um aprendizado consistente do que é necessário para uma humanidade que precisa urgentemente aprender a ser sua própria experiência, havendo lugar para todos nesta convergência que requer o aprendizado da arte de aprender: a ser, a conhecer, a viver junto, a fazer, a transcender na imanência. Evoquei acima os pilares da educação do século presente expressos no Relatório para a UNESCO organizado por Delors (2004). Considero que eles apresentam a abertura de constituição de uma humanidade solidária e fundada na plena liberdade partilhada, implicadamente corresponsável e investigadora dos acontecimentos comuns, cuidadosa com suas próprias crias, sem preconceitos ou preceitos de exclusão de qualquer gênero ou espécie. Requer-se para isso a altivez do maior quilate e potência. Sócrates continua inspirando a possibilidade de uma Paideia filosófica radical que dê acesso ao mundo do sentido pela implicação de cada um com sua própria vida de relação e pertencimento. Nessa inspiração, é o problema ético que alcança a centralidade da questão filosófica emergente. Trata-se de uma necessária atenção às “coisas humanas”, como fez Sócrates ao inaugurar uma filosofia da alma, sendo necessário que se pergunte: “para que serve este estudo e qual é a meta da vida?” (JAEGER, 1995, p. 539). Sem responder satisfatoriamente a tal pergunta não se pode propriamente realizar uma educação apropriadora da vida digna, comum e altiva: o cultivo do humano senhor de si e corresponsável pela sua própria sustentabilidade conjuntural. O que se põe em jogo são as formas de aprender a ser que constituem as possibilidades diferenciais da comunidade humana. Muitas são as dimensões desse empreendimento, e o maior obstáculo encontra-se no modo como coletivamente os seres humanos reafirmam suas virtudes e formas superiores de ser e comandar outros. O iniciante na investigação do sentido implicado – o sentido que diz respeito a cada um em seu movimento de individuação singular – precisa saber, desde o início, de que não se trata de uma matéria para ser decorada pela repetição, e sim de ser um caminho de investigação em que só se aprende pela direta implicação com o aprender algo. Isso requer experiência própria da atenção, que pode perfeitamente ser equiparada à atitude filosófica – à disposição ao saber-ser. Com Sócrates ocorre a reestruturação da conexão entre a cultura espiritual e a cultura moral. Isso não significa que Sócrates fosse apolítico e que pregasse algo contrário ao alcance justo do bem comum. Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio tornou-se central na cultura ética do Ocidente. A conduta ética é algo que brota do interior do próprio indivíduo tornando-o liberto da mera submissão exterior à lei, segundo exigia o conceito tradicional de justiça. Tudo isso não é imediatamente claro e objetivo. Portanto, não se trata de uma afirmação de “verdade” irrefutável, e sim de uma composição apropriada a dar passagem ao movimento de retorno radical a si mesmo, próprio da atitude investigativa que nasce com o nome próprio de Filosofia. Trata-se da condição sem a qual toda a argumentação racional acerca de situações e acontecimentos não passa de produção discursiva que favorece a manutenção de relações de poder baseadas em coerções e controles desiguais. Nessa perspectiva, pode parecer infundada a emergência de outra Paideia filosófica para a formação da humanidade emergente, e evocar Sócrates pode soar como recurso persuasivo de convencimento massivo e aligeirado. Este é o ponto de tensão: não se trata de convencer ninguém de Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 45 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas nada, e sim de fazer ver um problema concretamente comum, que requer, de todos os implicados, decisões necessariamente responsáveis. Não se trata, portanto, de conjectura e sim de investigação rigorosa. O fim não é convencer pela retórica literária, e sim persistir na senda interrogante, exaurindo o problema e dando acesso direto ao seu sentido E como esse é um caminho infinito, não se pode querer exaurir o problema de que trata a filosofia por meio do mero exercício lógico formal. A questão filosófica pensada como início e nascente é muito mais implicada do que simplesmente aprender a lógica do raciocínio discursivo e propositivamente certo. As questões filosóficas do nosso tempo dizem respeito aos modos de existência de humanos e suas relações com seu ambiente vital. E por que a filosofia de inspiração socrática nasce justamente pela investigação da condição humana comum, universal, a partir do autoconhecimento e da autocondução, para que este ideal de educação se torne efetividade é preciso que se investigue, por primeiro, os meios necessários do poder fazer-aprender filosofia como acontecimento da arte de aprender a aprender e a desaprender. Toda essa imagética é a maneira encontrada para deixar ser a transparência da evidência implicada. Cada um de nós, cada ser humano precisa e pode tornar-se um pesquisador da “verdade” e da “não-verdade”, não para fazer disso a sua profissão, concorrendo, assim, com os especialistas e profissionais da filosofia. Nessa compreensão, o que se necessita não é de uma filosofia para profissionais e sim de uma filosofia que permita que cada um aprenda a pensar, aprenda a aprender com autonomia e liberdade e possa descobrir por si mesmo qual é a sua potência de ser, e possa dedicar sua vida ao investimento de seu próprio cuidado e dedicação com outros. Desse modo é clara a diferença entre uma filosofia ao modo socrático e uma filosofia profissional, sendo coerente afirmar que a educação filosófica adequada à formação básica é aquela que promova os meios para o aparecimento de seres humanos mais vigorosos e criativos, cuidadosos e justos, conscientes e batalhadores, altivos e corajosos, respeitosos e dignos. Seres humanos responsáveis pela própria vida de relação. 46 Essa filosofia da origem comum e da emergência planetária é simultaneamente ética e estética, ontológica, lógica e epistemológica, política e ecológica, mística, poética e pedagógica, não se limitando exclusivamente ao campo formal dos conceitos universais e necessários transmitidos por repetições mnemônicas desconectadas do modo aberto e sensível próprio do aprendizado humano comum. Sobretudo, com o método socrático pode-se experienciar e conhecer a totalidade das possibilidades humanas no sentido maior de sua disposição amorosa, de seu ethos aberto à liberdade do encontro instante: a medida do caminho sábio. Nessa perspectiva, o cuidado humano próprio da aprendizagem filosófica não pode prescrever o caminho do outro, porque o outro é sempre um mistério do próprio ser que ele é como outro, enquanto pode ser consciente de si como alteridade e destino. A concepção de uma filosofia que é o mesmo que educação da alma para sua liberdade propriamente dita pode melhor ser apreendida pela descrição do método socrático, como o mesmo foi retido por Platão em seus Diálogos fundadores de um novo gênero literário: a filosofia. Evocamos a tese muito consistente de Colli (1996), para que se possa caracterizar o que pode vir a ser o trabalho filosófico na educação básica, expandindo-se para todos os âmbitos da vida em comum e do que ainda se desconhece. A relação dialógica entre filosofia e educação só pode inexistir quando se insistir em um conceito de educação instrumental e conteudista e em uma concepção de filosofia meramente técnica e maquínica. Mas, afinal, a quem serve uma filosofia que nada tem a ver com a educação humana livre, que nada diz em relação à vida concreta dos educandos? O momento é de decisão coletiva e não de insistência em um modelo pedagógico que não dá mais conta da emergência humana planetária, global e local. É preciso, então, uma ação capaz de reunir as forças e as possibilidades e não de separá-las. O trabalho não pode ser feito de cima para baixo, pois deste modo perpetua aquela forma de educação que consiste no deixar as coisas como estão não implicando em nenhum novo investimento conceitual e pedagógico para a educação filosófica daquele que vai ocupar a função de “parteiro” e não de professor de um saber de fachada. Ora, como fazer isso, se Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi aqueles que se encontram na ponta do processo filosófico não estão atentos a essa emergência? Como aprender a filosofar sem a implicação direta com a verdade do ser, com o domínio de si próprio pela firmeza e moderação? O caráter dialógico do método socrático e sua dinâmica processual comum: a tarefa do educador-filósofo na educação básica Como se vê em Platão (2001), o método socrático é um procedimento de indagação filosófica baseado no diálogo entre interlocutores. Devido à sua intrínseca natureza é também chamado maiêutico. O termo maiêutica deriva do grego maieutiké, subentendendo-se o conceito de techné. Em sentido literal, significa a “arte das parteiras”. O termo foi usado por Sócrates em homenagem à sua mãe Fenarete, parteira de profissão, para significar o ato de fazer vir à luz os pensamentos próprios de quem se encontra grávido de sua própria autopercepção e compreensão clarificadora. O importante na dialética socrática é mediar o nascimento de ideias próprias, através do atritamento dialógico. Esse procedimento supera a articulação da arte retórica que consistia no domínio argumentativo dos “professores” em relação ao seu público. Um tipo de saber que só alguns dominavam e que só estes tinham a autorização de transmitir. Na arte retórica a argumentação dos sofistas calava a fala dos iniciantes, não permitindo nenhuma investigação implicada e relacional. Compreendendo outro caminho para a investigação da verdade, Sócrates faz valer uma formação da individuação pela clarificação de si mesmo. Diz-se que o método dialético de Sócrates recorria a frases ou respostas espirituosas breves e cortantes, irônicas – no sentido da suspeita, de provocar desconforto, de fazer ver a impropriedade de uma “crença” pela sua inconsistência em relação ao que se pode alcançar como desvelamento em si. Esse modo de caracterizar o método dialético captura apenas uma pequena parcela de sua intencionalidade. O método socrático só é propriamente maiêutico em sua última fase: como a parteira traz à luz a criança, Sócrates trazia à luz as pequenas verdades dos interlocutores. Procedendo por confutação, por eliminação sucessiva das hipóteses contraditórias e infundadas, consiste em trazer gradualmente à luz a inconsistência de todas as convicções pessoais habitualmente consideradas como incontestáveis que revelam, depois de um exame atento, sua natureza baseada em “opiniões”, mesmo as opiniões sofisticadas dos oficiais do saber instituído. Na prática, o método pode ser usado por um professor-educador capaz de realizar a dialogia interrogante, e não o ensino ostensivo de um conjunto de noções para serem repetidas sem reflexão criteriosa. Isso quer dizer que essa prática estimula o pensamento próprio do educando, levando-o a experienciar estados de empoderamento de si mesmo. Jaeger (1995) ressalta, a partir de um Diálogo encontrado nas Memoráveis de Xenofonte, que a premissa fundamental da Paideia socrática é a de que toda educação deve ser política. Tem necessidade de educar o ser humano para uma das duas coisas: para governar ou para ser governado. Aprofundando o argumento: Já na alimentação se começa a marcar a diferença entre esses dois tipos de educação. O Homem que é educado para governar tem de aprender a antepor o cumprimento dos deveres mais prementes à satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome e à sede. Tem de se acostumar a dormir pouco, a deitar-se tarde e a se levantar cedo. Nenhum trabalho o deve assustar, por árduo que seja. Não se deve deixar atrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos. Tem de endurecer para o frio e para o calor. Não deve preocupar-se se tiver de acampar a céu aberto. Quem não é capaz de tudo isto fica condenado a figurar entre as massas governadas. Sócrates designa com a palavra grega askesis, equivalente à inglesa training, esta educação para a abstinência e para o autodomínio. (JAEGER, 1995, p. 546-547). Estamos diante do ascetismo socrático. Este, entretanto, não se confunde com a virtude monacal e sim com a virtude do homem destinado a governar pelo domínio de si próprio. Sócrates preconiza o que se pode chamar de cidadania clássica, aquela do ser humano enraizado em sua terra e que concebe a sua missão e a sua realização plena como a educação para a ocupação do posto de governante, através da “ascese” voluntária. De qualquer modo, não se pode evocar a dialética socrática sem a Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 47 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas presença do “domínio de si mesmo, firmeza e moderação”. Trata-se da enkratéia, que não constituindo em si mesma uma virtude é, entretanto, a “base de todas as virtudes”, segundo Xenofonte, equivalendo à emancipação da razão da tirania da natureza mecânica e compulsória das opiniões. Como se vê, o método socrático possui uma característica muito definida e ascética, o que não quer dizer que em algum momento ocorra a “repressão” dos chamados instintos naturais. Mais do que reprimir, a dialética permite que cada um tome posse de um estado de atenção que se encaminha para uma livre decisão e uma comum compreensão da totalidade conjuntural. Como, então, realizar essa formação em um sistema escolar na maioria das vezes contrário ao reconhecimento da individuação e da incomunicabilidade de tais estados de compreensão? Como a dialética socrática diz ainda respeito ao passo que pode ser dado na direção da emancipação humana inteligente, sensível e inventiva? O passo que se afigura necessário e inadiável não está garantido em fórmulas e preceitos aptos a serem transmitidos mecanicamente, justamente porque o ser humano encontra-se diante de sua efetividade como espécie e não é definível senão por aquilo que ele mesmo é enquanto existe como organização e perpetuação, projeto e processo, o feito e o por fazer. O passo necessário significa proteger-se da negligência ontológica que escraviza e destitui a essência humana da sua vocação para a realização da divindade suprema, sem objetivos e metas, sem finalidades metafísicas e sem promessas consoladoras, por isso mesmo livre para realizar a passagem da vida para a vida, na vida. O passo não faz concessões: o instante é sua alavanca e é sua consistência infinita. Afinal, qual é o sentido do autoconhecimento? Para que serve a filosofia da alma humana? Qual é o sem-sentido da vida? O passo necessário assinala a decisão de autonomia do educador-filósofo a partir de sua pertença comunitária. A filosofia tornada campo de possibilidades para a construção de uma enkratéia de inspiração socrática e husserliana: o domínio de si próprio como firmeza e moderação. Ora, isso não é algo que o professor ensina ao estudante por meio de aulas expositivas, mas só pode acontecer mediante a descoberta de um problema relevante que mereça a atenção de todos. Significa, então, 48 que o professor de filosofia precisa ser um filósofo e não um mero repetidor de manuais canônicos. O momento nos lança diante da necessidade de uma nova maneira de transformar o professor de filosofia e o educador em geral. Os percursos se ampliam e a complexidade requer outras habilidades e outras possibilidades. Como um regente de orquestra, o educador-filósofo precisa conhecer muitos campos e funções, linguagens e expressões, para que possa coordená-las em uma atitude de radicalidade que transcenda a simples disciplina e constitua-se na ação transformadora. Nessa perspectiva, o trabalho do educador-filósofo é especificamente transdisciplinar. Sua função ativa não seria a de mais um especialista em uma determinada área do conhecimento, e sim em sua propriedade de fazer pensar propriamente, coligando isso com aquilo, desligando ideias equivocadas de seu campo gerativo, propiciando vivências que favoreçam a construção do “autodomínio” e da “participação conjuntural polilógica”. Tudo isso pela disposição amorosa ao saber-ser uma plenitude vivente: partilha do que se oferece livre e disposto ao acontecimento existencial único – seu ser e não-ser em um terceiro incluído. Educação filosófica como eixo de conexão de todos os saberes na educação básica Permitir ao outro em desenvolvimento que aprenda a ler diretamente as letras e signos do mundo-aí significa deixar cada um florescer em sua singularidade. O desafio da formação filosófica consiste no seguinte abismo: o ser humano diferencia-se como organismo vivo e dá-se conta de sua existência comum em relação à deriva cósmica de sua gênese pela sua compleição psíquica. Esse abismo é tão absurdamente incomensurável que não se pode alcançar a sua outra margem através de navegações certeiras. Não há passagem entre a condição biológica e a condição psíquica da espécie humana e sim salto no abismo do ser que se aprende em conjunto com outros tantos iguais seres e diferentes entes, iguais entes e diferentes seres. Está em questão uma pertinente emergência ontológica. Os seres humanos necessitam de Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi cuidado e atenção em sua nascente. É emergente o aprendizado de si mesmo – o autodomínio socrático – assim como o aprendizado do outro mesmo – comum pertença cósmica. De que outra forma se poderá constituir um mundo de seres humanos livres e corresponsáveis senão através da cooperação e do absoluto respeito pelas diferenças e pelas igualdades? Entretanto, essa questão permanece vazia sem a sua realização política. Aqui se encontra umas das escansões do abismo entre vida biológica e vida psíquica. É impossível superar o abismo sem o salto que inclui a terceira margem do abissal. Em sua obra A Cabeça bem-feita, Morin (2001) alerta para os desafios do nosso tempo. Afirma uma inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários. Isso tem produzido a invisibilidade do que podemos chamar de emergências do nosso tempo como os conjuntos complexos, as interações e retroações entre as partes e o todo, as entidades multidimensionais, os problemas essenciais, assim como o acirramento das desigualdades e a desvalorização do ser humano em si mesmo e da vida em sua dinâmica sensível. Nas sociedades contemporâneas, dominadas pelo imperativo de uma economia abstrata e deliberadamente especulativa, para ter valor o ser humano tem que adquirir aparência de especialista, tem que se tornar alguém que conhece bem uma única coisa. Isso é bem o contrário do que se pode compreender por aprendizagem filosófica. Por excelência, a atitude filosófica é uma disposição para a investigação radical do sentido implicado do ser humano e sua existência histórica. Isso significa um ato de interligação de todas as partes de um acontecimento compreensivo, do ponto de vista da unidade cognitiva e acional da condição humana comum, universal. Como se poderia, então, conciliar o ato filosófico germinal com qualquer que seja o processo de especialização ou hiperespecialização? Afinal, por definição tradicional, a filosofia é o saber que se ocupa do não-saber. Portanto, é mais preciso concebê-la como atividade que só faz sentido para aqueles que a experimentam e realizam. Como, então, pretender reduzir a aprendizagem filosófica ao campo especializado da História da Filosofia Ocidental? Partindo da condição em que nos encontramos como seres participantes da comunidade humana real e ideal, concordamos com Morin (2001) ao apontar três desafios para repensar a reforma e reformar o pensamento: o contexto planetário (globalidade), a complexidade (diferentes planos de realidades paralelas) e a expansão descontrolada do saber (a fragmentação fora de controle). Tudo isso nos fala da transformação necessária para se repensar a reforma escolar e para reformar o pensamento acerca da formação humana emergente. Tudo isso nos instiga a pensar uma educação filosófica configurada pelo diálogo efetivo entre todos os aspectos e dimensões da experiência humana comum e singular. A reforma da escola básica passa pelo repensar a reforma do pensamento. Afinal, quais são os problemas emergentes do nosso tempo que requisitam investigações conjugadas com a totalidade da condição humana? Esses problemas são imediatamente gritantes para todos e podem ser reconhecidos nas diversas dimensões da experiência humana planetária. O momento requer o reconhecimento radical da condição humana global. Nessa medida, uma revolução da educação básica é uma consequência da metamorfose humana que se mostra absolutamente inadiável caso se queira fazer o esforço de ultrapassamento da fragmentação e da barbárie generalizada, tendo em vista a solidez de uma humanidade livre e curadora de sua própria superação infinita. Compreendendo os desafios do nosso tempo como configuradores de outras formas de perceber, de pensar e de agir, é preciso lidar com a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência simultaneamente. Essas são as seis imagens usadas por Calvino (2006) em sua obra inacabada Seis propostas para o próximo milênio. Ele oferece em breves imagens um horizonte de amplas potencialidades criadoras, não apenas para a literatura em processo, mas, sobretudo, para a existência humana como um todo. Como, então, separar abstratamente esses seis âmbitos figurados com a atividade filosófica implicada com a experiência vivida e vivente? Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 49 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas De maneira apropriadora, à filosofia básica não caberia a tarefa de isolar-se na disciplinaridade da especialização lógica estritamente histórica e sim a função de interligar tudo o que diz respeito ao sentido comum da compreensão humana e suas relações de pertença à totalidade indivisível e incomensurável. Portanto, caber-lhe-ia uma tarefa transdisciplinar: ontológica, epistemológica, política, ética, estética e ecológica simultaneamente. Cabe-lhe, assim, a tarefa de unificar o saber das humanidades ao saber das ciências da natureza sem perder de vista sua especificidade interrogante e aberta ao acontecimento instante: espanto originário do sentido do ser multiplicado na unidade indivisível que a tudo reúne na comum-responsabilidade. O próprio da atitude filosófica não é a memorização de conhecimentos sistematizados e sim o aprendizado do pensar radical, além de todo metro e de toda medida dada. Esse é um ponto crucial porque afirma uma condição de princípio absolutamente livre de todo vínculo e compromisso abstrato, pela concretização do vínculo com a vida e do compromisso com a dignidade humana inalienável. Portanto, não pretende dizer ao outro o que ele tem que fazer e aprender e sim fazer com que o outro aprenda por si mesmo a investigar e suspeitar dos dados da experiência comum e estabelecida, para refazê-los em suas possibilidades implicadas. Possibilidades que dizem respeito a um conjunto maior de fatores e planos de existência e que aproximem da razoabilidade que só se pode aprender diretamente, por compreensão leve, rápida, exata, visível, múltipla e consistente. Isso requer outras formas de trabalhar o aprendizado do pensar próprio e apropriado – apropriador: requer a criação de outras possibilidades ainda impensadas. Requer a coragem de saltar no abismo do ser-implicado: ultrapassagem, metamorfose, tradição e inovação em conjunção ativa e solidária. A união da cultura filosófica com a cultura literária e com a cultura científica é uma questão de sustentabilidade planetária. O nosso tempo tem produzido uma cultura da dispersão e da exclusão, da separação e da especialização profissional. Apesar dessa tendência, nunca como agora, se ouviu falar tanto em inclusão e acolhimento das diferenças. Estamos diante de uma ruptura paradigmática: o aprendizado do pensamento próprio e apropriado é 50 o acontecimento mais precioso para os indivíduos e as sociedades emergentes. A educação básica não pode mais olvidar a conjuntura planetária, a complexidade dos múltiplos âmbitos sistêmicos da realidade e a dispersão acelerada de muita informação e pouco conhecimento apropriador. A inserção da filosofia em sua dinâmica não pode deixar de lado a peculiaridade do filosofar como atitude aprendente radical. Trata-se do acontecimento da consciência da consciência e da consciência da inconsciência como implicação radical na totalidade vivente. A evidência implicada mostra-se aqui em sua consistência apodítica: a conjuntura abrangente do real, inegavelmente comum e diversificada em infindáveis situações e contextos, a tudo abarca e a todos inclui. A unidade que permite aos seres humanos conjugar suas necessidades e operar suas emergências não pode pertencer apenas a uma determinada categoria cultural, aquela dos especialistas e técnicos. Todos habitam no mesmo planeta que é um organismo vivo em sua totalidade. Qualquer acontecimento pontual tem relação com a totalidade. Isso é uma evidência implicada. Mas esta não fornece a ninguém a lei oculta dos acontecimentos, o que extrapolaria o caráter de uma evidência para se tornar apenas um recorte e uma deriva acional específica. Como diz Morin (2001, p. 18), “o enfraquecimento de uma percepção global leva ao enfraquecimento do senso de responsabilidade – cada um tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada –, bem como ao enfraquecimento da solidariedade – ninguém mais preserva seu elo orgânico com a cidade e seus concidadãos”. Nossa educação básica tem passado pelo mesmo processo de dispersão e fragmentação, e este é o momento, pela necessidade de mudança paradigmática, de se repensar as bases da Educação Básica como forma de enfrentamento responsável dos problemas que afligem a humanidade em sua totalidade. A mudança que deve ocorrer na educação democrática – portanto, para todos e não simplesmente para alguns poucos – mostra-se na convergência da reforma do pensamento. Como, então, continuar considerando a filosofia como uma atividade exclusiva de alguns poucos especialistas, quando o momento reclama e exige uma nova Paideia (formação) que dê horizonte e potência para os seres humanos constituírem-se Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi como pertencentes à totalidade conjuntural, a partir de seus solos e contextos próprios e apropriados? Estamos diante do mais assustador: o acontecimento da vida solidária e conjuntural. Nessa medida, a identidade humana não é uma entidade abstrata que se representa pelas formas mentais disponíveis. A capacidade de abstrair é uma função analógica conectiva do sentido implicado. Não passa de uma aproximação compreensiva que sempre requer algo que já é compreendido: um mundo, um contexto, uma história, uma linguagem. A vida em sua dinâmica consciente de si, através da espécie humana, não pode deixar de lado o sentido do que é por constituição livre e aberto a possibilidades. Isso quer dizer que tudo o que o ser humano é capaz de fazer atende ao dinamismo de algo que não é representável e compreensível em si mesmo, mas se precipita em superfícies como efeitos reflexivos: eis a consciência – um efeito de superfície, uma apresentação que pode se tornar também uma representação. Na dinâmica da individuação humana, base de toda cultura consciente e filosófica no sentido próprio, o que importa não se encontra presente em um modelo ideal fora do acontecimento do sentido. Essa é uma peculiaridade do ser que somos, enquanto existimos. Essa, também, é a forma própria da filosofia que cuida de investigar o acontecimento implicado – o ser humano em sua condição originária e em sua abertura para o aberto. Ora, o acontecimento acontece! O acontecimento não é propriedade de alguns e nem muito menos algo que se possa representar como conceito abstrato e monológico. O acontecimento é tudo o que é. Portanto, está muito além do que o ser humano é capaz de perceber e visualizar em sua compreensão humana condicionada. O acontecimento é, na perspectiva da “autocondução” filosófica, uma implicação efetiva do ser que somos com a totalidade conjuntural. Nesse âmbito não há lugar para abstrações reducionistas, nem muito menos lugar para excessos e abusos de claridade apodítica. O acontecimento é sempre um salto em si mesmo, porque cada lugar e tempo da vida é ponto de vida em si mesmo. Como se encontra no fragmento 116 de Heráclito: “Em todos os homens está o conhecer a si mesmo e bem-pensar” (COSTA, 2002, p. 179). Então, como alguém pode fechar os olhos diante dessa evidência apodítica e fazer acreditar em sua verdade particular e exclusiva? Só os que dormem podem cair nesta armadilha. É por isso que é preciso filosofar – despertar o sentido em nosso próprio existir conjugado e aberto ao devir outro. Tudo isso caminha na direção do passo no qual o falar sobre filosofia dá lugar ao filosofar implicado. E porque, usando palavras de Morin (2001, p. 19), “o saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado)”, é preciso procurar caminhos que condigam com a dinâmica instante dos processos em que seres humanos possam experienciar conjuntamente a posse da comum-responsabilidade diante do cuidar de si mesmo como totalidade segmentária vivente: um salto no transcurso do que se destina ao ser sempre outro ser-sendo: impermanência-permanente. Considerações: o salto dialógico do filosofar próprio e apropriado O diálogo não é em si mesmo uma simples comunicação ou transmissão de mensagem com específico conteúdo temático. O diálogo é a abertura para o conhecimento implicado: saber de si no mundo-com. Dialogar significa, antes de tudo, saber ouvir e saber falar, saber afirmar e saber negar, saber aprender e saber desaprender. Ouvir e falar são tensores complementares do campo linguístico comum. Na comunicação humana há sempre um falar (transmitir) e um ouvir (receber) em momentos intercalados e distintos. Isso não quer dizer ainda diálogo. O diálogo é o meio através do qual os seres humanos escutam e falam acerca daquilo que vivenciam como desvelamento. O diálogo, assim, deixa e faz ver aquilo que, conjugado, se apresenta na compreensão articuladora. Isso significa que o diálogo não se limita a transmitir o que já se sabe, mas implica no tensionamento relativo ao não-saber: o diálogo procura o encoberto. Pelo diálogo, o que se encontra encoberto descobre-se através do investigar, voltando a encobrir-se no investigado. O investigar se consuma no investigado para refazer-se sempre investigando. Pela investigação configura-se o âmbito comum do sentido. O diálogo investiga o desconhecido no encontro amoroso. No diálogo, o antagônico torna-se o questionador e o questionado é cada dialogante no diálogo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 51 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas Para Bohm (2001), o espírito do diálogo é completamente diferente de uma simples comunicação ou de uma discussão entre opositores, porque nele o que importa não é sair vencedor de uma disputa qualquer, e se alguém ganha, todos os implicados saem ganhando. Não se trata de uma disputa pessoal, da obtenção de mais pontos para sobressair-se diante dos outros, nem muito menos do predomínio de uma perspectiva sobre as outras, porque quando se descobre um erro, todos saem ganhando. O diálogo, assim, é um jogo do ganhar-ou-ganhar, diferentemente do que ocorre no jogo discursivo do tipo eu-ganho-tu-perdes. O fato é que o diálogo é mais do que uma participação comum porque através dele não se estará julgando contra os demais e sim com eles. A palavra “diálogo” é, na maior parte das vezes, usada como equivalente a “discussão”. Essa confusão conceitual requer uma investigação própria e apropriada para desfazer-se, inclusive porque consideramos o diálogo como o exercício filosófico por excelência, o que significa dizer que a filosofia não é mera produção discursiva e sim criação dialógica. Estamos diante de algo sempre assustador: como alguém pode só ganhar-ganhar e nunca perder para os outros? A ausência da experiência dialógica efetiva, radical, desafiante nas instâncias dos interesses comuns, leva à impropriedade de considerar o jogar dialógico como uma forma retórica qualquer, sendo uma ilusão metafísica a possibilidade de uma lógica inclusiva e não exclusiva. Imagina-se logo, pela dominância da metafísica polarizadora, que a inclusão de um terceiro é algo além do efetivamente dado. Ora, o ponto de mudança encontra-se justamente aí, na contraditoriedade dos polos opostos e complementares. No movimento dialógico, os opostos se dão “a saber” um pelo outro, o que se caracteriza como uma reunião de diferentes, bem distinta do princípio de exclusão da lógica da identidade e da exclusão do terceiro, por isso mesmo, monológica, monofônica. Pode-se, então, perguntar: se o diálogo distingue-se da arena das discussões públicas corriqueiras, que definem e delimitam territórios culturais excludentes e colonizadores, ele serve para qual fim? Qual é a serventia do dialogar assim apresentado, e como ele pode vir a acontecer na educação 52 básica de maneira consequente e rigorosa? O que significa, de fato, a prática do diálogo como caminho filosófico por excelência? Quem pode garantir essa propriedade? Quem pode abalizar esse acontecimento? Alguma autoridade externa pode determinar as regras áureas de um diálogo? Ou o diálogo, por propriedade, só pode acontecer no tensionamento entre iguais no comum-pertencimento? Tomemos, então, o diálogo como caminho apropriado para o acontecimento do filosofar vivo e criador. Como seria isso na prática escolar? Sabemos como andam cheias as turmas, de modo geral. Como dialogar filosoficamente diante de um grupo de 30, 40, 50, 60 ou mais pessoas? Para lidar com tamanha complexidade é preciso que ocorra um propósito bem definido. Se o diálogo não é a mera discussão de opiniões díspares, mas uma investigação relativa ao que é comum e ao que diz respeito a todos em comum, sem a presença de um mediador apropriado não é possível recorrer ao método dialógico de maneira fecunda. Como fazer para dar conta das diversas crenças e opiniões de um grupo determinado? Como reunir a dispersão em processos comuns de aprendizado dialógico, investigativo, questionador? Em geral, as pessoas não sabem tolerar facilmente o questionamento de suas crenças enraizadas e procuram defendê-las tomadas de muita emoção. Essas crenças são muito antigas, como o sentido da vida, os interesses de sua família, de seu país, seus interesses pessoais, religiosos, partidários. Ora, tocar no campo da autoimagem e da convicção pessoal significa desestabilizar o equilíbrio inercial das crenças ou opiniões comuns, sejam elas incultas ou cultas. O chamado senso comum associado ao campo das “opiniões subjetivas” é o meio concreto da existência humana. Desse modo, senso comum é todo acervo partilhado por associações de indivíduos. Mesmo no âmbito acadêmico e erudito há senso comum. As formas da experiência humana, a ciência, a arte, a filosofia, a religião, a moral, a política, a ética, são todas comunitárias. Todas produzem senso comum. Há, portanto, muitas categorias e níveis de senso comum. Diante do ato dialógico o seu desenraizamento é inevitável. O diálogo, partindo do senso comum, quer alcançar sempre um novo senso comum. A diferença é que o senso comum próprio ao diálogo é justamente a sua equalização Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Dante Augusto Galeffi comunitária no sentido de um distanciamento do meramente pessoal e idiossincrático, tendo-se em vista o alcance de uma compreensão articuladora partilhada, no sentido próprio e filosófico do termo. Como afirma Bohm (2001, p. 33, tradução nossa), “o verdadeiro objetivo do diálogo é aquele de penetrar no processo do pensamento e transformar o processo do pensamento coletivo”. O diálogo, portanto, não é um jogo inconsequente de perguntas abstratas e respostas meramente subjetivas. O diálogo não tem a função de reforçar as crenças já enraizadas e sim a propriedade de deslocar as crenças para um âmbito de comum-pertencimento, de maneira direta e oportuna. O diálogo atém-se ao próprio processo do pensamento e não ao seu conteúdo específico. O pensamento também é um processo dinâmico, exigindo de nós um intenso estado de atenção para ser compreendido sem subterfúgios. Ao ater-se ao processo do pensamento, o diálogo evidencia a natureza do pensar como um movimento coletivo abrangente. Pelo diálogo é possível experienciar como os pensamentos individuais são em sua maior parte resultados do pensamento coletivo e de nossas interações com os outros. O diálogo salta do disperso para o convergente. O diálogo reúne a dispersão comum em feixes de intensidade unívoca: conjugação das diferentes linhas de fuga em um campo comumente partilhado. O diálogo tem a propriedade de desfazer a dispersão dos pensamentos coletivos condicionados pela convergência das ações comuns. Como diz Bohm (2001), o poder de um grupo é muito superior ao das pessoas que o compõem. E porque o pensamento coletivo de nossa sociedade funciona de maneira muito incoerente e dispersa, o diálogo é um meio de potencialização similar ao laser, permitindo a experiência de um pensamento comum transformador e dinâmico. A filosofia necessária à educação básica é justamente aquela que favoreça a todos os educandos uma aprendizagem do pensar de maneira própria e apropriada, sem que seja preciso que se tornem filósofos profissionais, ou que dominem os textos canônicos como fazem os exegetas especializados. Quem quiser seguir esse caminho especializado que o faça em uma profissionalização superior. O fundamental de uma filosofia básica não é a transmissão de uma tradição abstrata e sim possibilitar que cada um, pelo diálogo, se dê conta de si mesmo e que aprenda a ser o mais amplo de si, na convergência de todos os feixes e campos dispersos e isolados para a constituição de um comum-pertencimento decidido e radical. Nessa perspectiva, o diálogo nos encaminha para o âmbito justo e certeiro, não sendo em nada parecido com um passatempo qualquer. Pelo diálogo filosófico, no sentido próprio do termo, se alcança a possibilidade voluntária de uma construção humana fundada no absoluto respeito à diversidade de opiniões e crenças, desde quando nenhuma delas queira dominar outras e sobressair-se com violência diante delas. No diálogo, portanto, não tem quem ensina e quem aprende, porque todos são aprendizes e mestres, simultaneamente. O diálogo diz-se amoroso justamente porque conjuga interesses díspares na intensidade da reunião integradora: cada um é responsável por si mesmo; todos são participantes do comum-pertencimento. Pelo diálogo, a má-fé coletiva é examinada como experiência grupal: não se trata de esconder os atos falhos e os comportamentos tácitos e sim de observá-los e compreendê-los em sua dinâmica gerativa. Esta análise dos próprios pensamentos é o fio condutor de um aprendizado filosófico que permita experienciar o clamor da vida com autonomia e liberdade partilhada. De qualquer modo, para que esse acontecimento dialógico possa vir a constituir uma prática efetiva e consequente é preciso não perder de vista o caráter específico da aprendizagem filosófica: a compreensão implicada de tudo o que é e de nada que não é sendo. Para isso, faz-se necessária a presença de educadores-filósofos que não sejam meros repetidores de uma historiografia hegemônica, mas que aprendam com os próprios erros a mediar processos de desenvolvimento implicado. O acontecimento, assim, nos convoca a pensar a emergência de outra educação básica que tenha a atitude filosófica como campo de reunião de todos os saberes e afazeres. E isso sem perder de vista que tudo só faz sentido para quem se abre para a experiência filosófica radicalmente livre de toda e qualquer autoridade externa, seja esta simbólica ou institucional, espiritual ou coorporativa. Esse é o desafio emergente: cuidar para que o si mesmo não se disperse na inconsciência coletiva e na irresponsabilidade conjuntural; implicar cada um na comum-responsabilidade da plenitude vivente: admiração reluzente, evidência partilhada! Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 53 Educação e filosofia: o filosofar como atividade formativa transdisciplinar na educação básica – considerações polilógicas Referências BOHM, David. Sobre el dialogo. 2. ed. Barcelona: Kairós, 2001. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Tradução Frederico Carotti. 3. ed. 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Diálogos: Teeteto – Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001. Recebido em 24.07.2012 Aprovado em 23.11.2012 54 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 41-54, jan./jun. 2013 Izilda Johanson FILOSOFIA, FILÓSOFO, PROFESSOR DE FILOSOFIA Izilda Johanson* RESUMO A designação ensino de filosofia para o que surge com a atividade do professor de filosofia, ou o que resulta dela, compreende a necessidade de respostas a determinadas questões próprias à atividade filosófica. Ao declarar o que quer que seja sobre o ensino de filosofia, mesmo que de modo não consciente, se responde a perguntas pressupostas nessa afirmação, tais como: Por que filosofia? Em que consiste a filosofia? É possível ensiná-la efetivamente? Qual filosofia ensinar? Qual é a especificidade do filósofo? Qual é a especificidade do ensino de filosofia? E justamente porque são pressupostas, tais questões são também aquilo que sela a ligação profunda entre filosofia, filósofo, professor e aluno de filosofia e, por isso também, pode-se dizer, são anteriores, antecedem a própria atividade docente. De modo que a busca pelo lugar que o professor e a professora de filosofia ocupam numa sala de aula, em meio aos alunos e alunas, numa instituição de ensino, é também a busca pelo seu lugar em meio à própria filosofia. É também a busca pela constituição do que poderíamos chamar aqui de problema filosófico da filosofia. Palavras-chave: Filosofia. Professor de filosofia. Ensino de filosofia. Leitura filosófica. ABSTRACT PHILOSOPHY, PHILOSOPHER, PROFESSOR OF PHILOSOPHY The definition of philosophy teaching for what comes as activity of the philosophy professor, or what outcomes of it, comprises a need for answers to certain specific questions of the philosophical activity. By declaring whatever is about teaching philosophy, even though unconsciously , presupposed questions are already being answered , such as: Why philosophy? What is philosophy? Is it possible an effective teaching? What philosophy to teach? What is the specificity of the philosopher? What is the specificity of the philosophy teaching? It is precisely because these questions are presupposed, they are also what seal the deep bonds among philosophy, philosopher, professor and the philosophy student, and that is what makes it possible to say, these are issues prior to the teaching activity. In search of his/her place as a philosophy professor in a classroom, among the pupils, he/she is also in search of his/her own place amid the philosophy field. He/She is in search of the constitution of what we could define as the philosophical problem of philosophy. Keywords: Philosophy. Philosophy professor. Philosophy teaching. Philosophical reading. * Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo- USP. Professora-adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Linha de pesquisa: História da Filosofia francesa contemporânea. Endereço para correspondência: Estrada do Caminho Velho, 333, Guarulhos-SP. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 55 Filosofia, filósofo, professor de filosofia Estender logicamente uma conclusão, aplicá-la a outros objetos sem ter realmente alargado o círculo de suas investigações, é uma inclinação natural do espírito humano, mas à qual é preciso não ceder nunca. H. Bergson Ensinar e filosofar O ponto estratégico que aqui interessará tocar expressa uma proposição fundamental, com a qual inicio este artigo dedicado à reflexão sobre a relação entre a atividade propriamente filosófica e o ensino dela. A proposição é a seguinte: o ensino de filosofia não se separa da própria atividade filosófica. No que se refere a uma proposta de curso e de uma prática de ensino de filosofia, entende-se, a partir disso, que é o próprio assunto ou a própria matéria do ensino que modela sua prática, que o conteúdo é determinante para a constituição da forma e que, portanto, o ensino de filosofia é modelado, acima de tudo, pela própria atividade filosófica. E é por isso que é legítimo dizer também que a docência, que o trabalho de professor (que monta cursos e aulas de filosofia) contribui, por sua vez, para atividade de filósofo que se é. Pois, em meio à atividade docente, e para além dos conteúdos das aulas e planos de ensino, se sobressai aquilo que podemos chamar de postura do professor, não apenas em relação aos seus alunos, à instituição de ensino, à sociedade, mas, sobretudo, em relação à própria disciplina de filosofia que ele ministrará. É muito comum – no mundo pedagógico universitário, mas, ainda mais, e infelizmente, no mundo da publicidade universitária – vermos a Filosofia ser admitida como um meio que visa atingir os mais diversos e variados fins, tais como aprimorar logicamente o raciocínio, desenvolver agilidade mental, ostentar erudição face à concorrência do mercado de trabalho, ou, simplesmente, o que se custuma chamar muito obscuramente de “cultivar o espírito crítico do aluno”. De fato, o estudo filosófico pode muito bem nos preparar para isso tudo e muito mais, entretanto, não parece nada sensato reduzir a Filosofia a um instrumental apenas, isto é, a um meio de se produzir algo de natureza di56 versa da sua própria. Em outros termos, sejam lá quais forem os objetivos alegados, quase nunca escutamos que o bom da filosofia é poder filosofar! E é a esse benefício, principalmente, que me refiro quando falo sobre a experiência docente. Ora, se existe algum proveito em se aprender dança, qual proveito seria este senão dançar? Da mesma forma, para que se aprenderia a jogar xadrez se não fosse para ter o prazer de jogá-lo? Portanto, a meu ver, se o curso de filosofia traz algum benefício, este não pode ser outro senão o de proporcionar aos alunos e às alunas a oportunidade de filosofar! A isso se segue uma questão crucial, que é a seguinte: como conseguir fazer com que os alunos e as alunas se aventurem no universo filosófico com a dignidade que a filosofia exige, ou seja, apreendendo ao menos esse essencial do filosofar, a saber, a sua especificidade, o seu rigor? Procurando responder a essas questões tão típicas da prática docente, acabamos chegando um pouco mais perto, pois, do que acredito ser também o essencial na própria atividade profissional de estudar, de ler, de escrever sobre filosofia, de falar sobre os filósofos e sobre o que eles falam, de filosofar, enfim. De modo que o pensar nessas questões, em princípio de ordem pedagógica, pode nos conduzir a um âmbito que ultrapassa o da sala de aula, estritamente falando, e o dos conteúdos programáticos, e talvez até mesmo o do divórcio entre ensino público e ensino privado, universidade pública e universidade privada, alunos de filosofia e alunos de outras áreas; isto porque se trata, antes de tudo, de pensar e mesmo estabelecer o lugar que o professor e a professora de filosofia ocupam, ou melhor, o lugar de onde ele e ela falam enquanto professor e professora de filosofia e mesmo – por que não? – filósofo e filósofa. Gostaria de aprofundar aqui um pouco mais essa questão e, assim, procurar estabelecer de algum modo um possível ponto de acolhida para todas essas afirmações prelimirares. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 Izilda Johanson Possibilidade de filosofar Certa vez, acompanhando em determinada escola uma aluna de estágio de filosofia, tive a oportunidade de presenciar a apresentação que a professora da classe de filosofia do ensino médio, a qual a estagiária foi designada, fez desta. A professora disse o seguinte: Esta pessoa que está aqui conosco veio para fazer estágio, assistir nossas aulas e participar delas também, ajudando a esclarecer dúvidas, discutindo conosco as questões. Quer dizer, ajudando na medida do possível, porque, vocês sabem, filosofia é só dúvida [sic]. A filosofia não tem respostas. A gente responde na medida do possível, mas sabe que não há respostas objetivas. Quanto mais a gente responde, mas a gente tem dúvida. Mesmo que essa apresentação tenha acontecido já há um bom tempo, lembro-me dessas frases como se fosse hoje. Sobre tal acontecimento, o que teríamos a dizer? Antes de tudo, está fora de questão a imprudência dessa professora de manifestar tal ideia para os alunos, pois diante dela, que sentido teria para eles uma disciplina que só pergunta e não dá respostas? Que sentido teria perder tempo com algo que não os leva a parte alguma? O que tal professora teria apreendido sobre a filosofia? Naturalmente, não vem ao caso respondermos a questão de ordem pessoal, entretanto, no que concerne ao que foi dito sobre a filosofia e sobre o que nos leva a ela, podemos e devemos dizer algo. Não parece sensato dizer que a filosofia não ofereça respostas; sabemos, contudo, que ela não cessa nunca de responder. Tomemos o texto de Foucault (1984, p. 13) na seguinte passagem: Mas o que é filosofar hoje em dia [...] senão consistir em tentar saber de que maneia e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando se pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento através do exercício de um saber que lhe é estranho. Seguindo por esse via, é possível afirmar que talvez nossa professora só tenha conhecido o discurso filosófico – ou reconhecido no discurso filosófico – sua pretensão de, do exterior, procurar fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a verdade. Talvez suas pretensões ao ensinar filosofia para seus alunos fosse difundir esse propósito. Digamos então que, nesse caso, foi desconhecido por ela aquilo que em filosofia é verdadeiramente relevante, o fundamental: “o corpo vivo da filosofia”, o “exercício de si no pensamento”, a atividade da reflexão, afinal. Dizemos que é o fundamental da filosofia, mas dizemos com isso que é também o fundamental da atividade do professor de filosofia. Nesse sentido, nos aproximamos da posição de Lyotard (1986) quando este nos fala sobre a relação entre filosofar e ensinar, a qual, num sentido preciso, é de sobreposição, ou, talvez melhor, de um cruzamento, pois há um ponto em que as duas figuras, a do professor e do filósofo, e a atividade de ambos, se cruzam. E é nesse cruzamento que o essencial da atividade do professor de filosofia deve visar inserir o estudante. Segundo o autor, a atividade filosófica exige do professor de filosofia que refaça a cada curso o caminho do filosofar desde o seu início, isto é, desde o ponto em que nada está dado inteiramente, em que existe somente a possibilidade de formação do espírito. É preciso, pois, que o professor de filosofia retome essa chamada “infância do espírito”, esse ponto maleável e ainda informe (é preciso reencontrá-lo com os alunos e neles também, isto é, é preciso criá-lo juntamente com eles), e que se abra em meio a esse campo de indeterminação ao trabalho de construção, de organização e, neste sentido, de invenção. Assim como o filósofo, o professor caminhará no sentido de certa “curiosidade”, a única, para retomarmos as palavras de Foucault, que vale à pena ser praticada com um pouco de obstinação: “aquela que procura assimilar o que convém, mas aquela que permite também separar-se de si mesmo” (FOUCAULT, 1984, p. 13). Assim sendo, em vez de expor um pensamento ou proferir um ensinamento, “uma apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação”, ao praticar seus “ensaios”, não há como o professor não se expor por meio de seus ensinamentos, “pois não se pode expor uma questão sem se expor a ela; não há como interrogar um assunto sem ser interro- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 57 Filosofia, filósofo, professor de filosofia gado por ele, sem reatar, portanto, com a estação de infância, que é a dos possíveis do espírito.” (LYOTARD, 1986, p. 34). Podemos dizer, então, que a atividade do professor de filosofia seria a de trazer os alunos para filosofar consigo? Isto é o que, afinal, parece o essencial. Amizade do conceito Em O que é a Filosofia?, Gilles Deleuze e F. Guattari (1992) afirmam que todo filósofo não tem muito prazer em discutir, que a discussão é muito boa para mesas redondas, mas a mesa na qual a filosofia “joga seus dados cifrados” é outra. Num julgamento apressado poderíamos concluir que estamos, neste caso, diante de um puro contrassenso, afinal, o que mais faz o filósofo a não ser discutir? De fato, ele trabalha com questões e problemas, mas não os discute propriamente, se tomarmos a discussão por qualquer coisa como debate de posições e ideias exteriores à própria filosofia. Das discussões, O mínimo que se pode dizer, é que elas não fariam avançar o trabalho (do filósofo), já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa. Que alguém tenha tal opinião, e pense antes isto que aquilo, o que isso pode importar para a filosofia, na medida em que os problemas em jogo não são enunciados? (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 41). Os autores prosseguem dizendo ainda que, quando esses problemas são enunciados, então “não se trata mais de discutir, mas de criar indiscutíveis conceitos para o problema que nós nos atribuímos” (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 260). A filosofia não é discussão, discussão é dispersão, mas pode ser também, por outro lado, restrição, estabelecimento de fins, de pontos finais para o espírito: “a comunicação vem cedo demais ou tarde demais, e a conversação está sempre em excesso em relação ao criar” (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 260). Quanto à filosofia, ela é concentração, organização do espírito investigativo, nunca imobilidade, contenção: ela é movimento, isto é, atitude de criar, de criar conceitos, fundamentar ideias, organizar o pensamento. É, pois, circunscrição no vasto e caótico universo das 58 possibilidades dos pensamentos e acontecimentos. Sua exigência de verdade, ou de validade, é antes a de um acordo entre coisas e pensamento, selada pela percepção, pela constatação sensível “que não percebe o presente sem lhe impor uma conformidade com o passado” (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 260). O espírito reflexivo, a razão de ser da filosofia, o que é senão a atitude crítica do pensamento filosófico sobre ele próprio no decorrer do tempo? Nesse sentido, Deleuze e Guattari (1992, p. 42) nos chamam a atenção para o fato de que criticar não significa substituir conceitos uns pelos outros (esta seria a atitude do comunicador, daquele que discute) , mas “constatar que um conceito se esvanece, perde seus componentes, ou adquire outros novos que o transformam, quando é mergulhado em um novo meio”. À filosofia cabe colocar seus próprios problemas, conhecer suas incertezas, em uma palavra, resolver seus próprios problemas. A filosofia tem horror a discussões. Ela tem mais o que fazer. O debate lhe é insuportável, não porque ela é segura demais de si mesma: ao contrário, são suas incertezas que a arrastam para vias mais solitárias. Contudo, Sócrates não fazia da filosofia uma livre discussão dos homens livres? Não é o auge da sociabilidade grega como conversação entre amigos? De fato, Sócrates tornou a discussão impossível... Ele fez do amigo o amigo exclusivo do conceito, e do conceito o piedoso monólogo que elimina, um após outro, todos os rivais. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 42). Ao nos debruçarmos sobre a questão do filosofar, vemos cada vez mais que quanto mais interesse se tem pela filosofia, isto é, quanto mais forte vai se tornando o impulso que leva alguém a se aprofundar em filosofia, mais nítido torna-se para nós o sentimento de que este impulso já é, em si, filosófico. Seria precipitado dizer que, de certa forma, o próprio germe da filosofia em nós é o que faz com que nós a busquemos? Talvez sim, pois bem sabemos o quanto de esforço exige o caminho do filosofar, o quanto é preciso que formemos (que trans-formemos) nosso espírito para ele, pois, é certo, o espírito filosófico não nasce pronto, ele se faz, se constrói. Entretanto, tomando a questão por outro lado, talvez a resposta possa ser outra, pois existe certo impulso, ou sentimento, chame-se Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 Izilda Johanson como quiser, que faz com que a despeito de tudo queiramos sempre mais, que garante a nossa resistência diante das intempéries e que nos mantém firmes (ou, muitas vezes, quase firmes) durante todo (ou quase todo) o percurso – percurso, no mais, que não parece ter nem local nem data para encerrar-se. Ora, não seria essa a questão principal do professor de filosofia, ou seu ponto de partida? Ou melhor, procurar esse impulso nos alunos, incitá-lo neles, não seria este o trabalho principal do professor de filosofia? E isso não porque ele deva formar filósofos, mas porque, supõe-se, ele pretenda introduzir seus alunos no espírito da filosofia? Lebrun (1976), respondendo à pergunta “Por que filósofo?”, diz que nunca acreditou que o que orientasse um jovem em direção à filosofia fosse sua “sede de verdade”. Afirma que tal fórmula é vazia . Vale acrescentar: este jovem, com sede de verdade que eventualmente procurasse a filosofia com intuito de encontrar a verdade, não seria ele um dos primeiros a abandoná-la, não seria ele o primeiro a recusar a filosofia? É de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar uma língua da segurança, instalar-se num vocabulário que se ajuste ao máximo às ‘dificuldades’ (no sentido cartesiano), munir-se de um repertório de topoi, em suma possuir uma retórica que lhe permitirá a todo instante denunciar a ‘ingenuidade’ do ‘cientista’ ou a ‘ideologia’ de quem não pensa como ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta senão tomar emprestado um discurso filosófico? (LEBRUN, 1976, p. 151). Ora, é a própria instrumentalidade da filosofia que está em questão. Ressaltamos, e ressaltaremos o quanto for necessário, nossa consideração de que a filosofia não se resume a uma instrumentalidade, mas não há como ignorar o quanto esta deve estar presente no horizonte de propostas e intenções do professor e da professora de filosofia. O discurso filosófico tem sua especificidade e talvez seja justamente essa especificidade aquilo que primeiramente nos atraia nele, aquilo que esteja mais próximo dos nossos olhos, mesmo quando ainda não sabemos muito bem reconhecê-la. Conhecer de perto o discurso filosófico é, portanto, o primeiro passo em direção ao filosofar. Não há como escapar; somente mergulhando no discurso filosófico é que se pode navegar pelos mares da filosofia. Não há como filosofar pelo lado de fora. Ainda que não se queira formar filósofos universitários, como é o caso do professor de filosofia no ensino médio, ainda assim é preciso lançar mão do instrumental filosófico para que, por meio dele, a própria filosofia possa dizer ao aluno o que ela é, o que ela pode e o que ela deverá ser. Mergulhar no discurso filosófico, apreender sua forma e pautar-se nela para construir o próprio discurso, disso nosso jovem aluno pode tirar bons proveitos. Que bons proveitos seriam esses, Lebrun (1976) bem os define quando diz, mencionando Hegel, que até mesmo as crianças gostam de encontrar um encadeamento e uma conclusão nos contos. É isso essencialmente que a filosofia nos proporciona, diz ele, “ela nos educa – segundo o acaso das influências e leituras – para a inteligibilidade. Dá-nos meio de discernir uma Gesetzmäszigkeit onde os ingênuos só vêem fatos diversos, acontecimentos amontoados” (LEBRUN, 1976, p. 152). É que o filosofar consiste principalmente em “expulsar o acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob o fortuito que se dá na superfície [...], compreender o funcionamento de uma configuração a partir de uma lei que lhe é infusa (é preciso que haja uma), conforme a ordem que se exprime nela (é preciso que haja uma)” (LEBRUN, 1976, p. 152). Isso pode ser, de fato, para qualquer um, inclusive para os nossos alunos, muito estimulante e sedutor. Leitura filosófica Resta-nos ainda um ponto a ser esclarecido. Falei da necessidade de o aluno apreender o essencial de um discurso filosófico. Entretanto, é preciso que se diga também que esse discurso diz respeito, principalmente, a uma forma de ser que, por si só, não garante que a leitura que se faz dele seja uma leitura filosófica. Uma leitura filosófica não se resume, pois, à aplicação de métodos ou metodologias de leitura. Por outro lado, não basta ler textos “de filosofia” para que se compreenda o filosofar: é preciso que tais textos (ou outros de outros tipos também) sejam lidos de maneira filosófica. Por isso o instrumental apenas não é suficiente, ou então bastaria repetir o que os filósofos reconhecidos como tal dizem para que qualquer um de nós se tornasse um filósofo. A imitação é algo muito mais Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 59 Filosofia, filósofo, professor de filosofia simples que a filosofia. Ora, é preciso deixar claro o que desejamos para os nossos futuros alunos. Como bem ressalta Lyotard (1986, p. 35), “uma leitura não é filosófica porque os textos lidos são filosóficos – estes podem ser de artistas, de cientistas, como também de políticos, e pode-se ler textos filosóficos sem filosofar – a leitura só o é (filosófica) se é autodidata”. E com isso não se diz que, em filosofia, não se aprende nada de ninguém, mas antes, e acima de tudo, que o essencial de um curso de filosofia é o diálogo: menos entre professor e aluno do que entre o aluno e o texto que ele lê. Nesse sentido, o trabalho do professor só pode ser o de sugerir caminhos. Ou melhor, descaminhos, pois uma leitura só é filosófica se é “um exercício de desconcertação em relação ao texto, um exercício de paciência. O longo curso da leitura filosófica não ensina somente o que é preciso ler, mas que não se acaba nunca de ler, que só se começa, que não se leu o que se leu. Tal leitura é um exercício de escuta” (LYOTARD, 1986, p. 36). Assim sendo, é preciso que o aluno escute a voz do próprio texto, é preciso que este seja lido em voz alta, em bom tom, não para os outros, evidentemente, mas para o seu próprio pensamento, o pensamento daquele que o lê. A leitura filosófica só se realiza a partir da relação que o leitor estabelece com ela: o que há no texto, no discurso expresso só se realiza mais integralmente quando a leitura significa elaboração, desdobramento de pressupostos e de subentendidos. Assim sendo, é preciso que o jovem reconheça pontos de partida, percursos, que os examine e os reexamine caminhando por eles; é preciso, enfim, que o aluno conheça e reconheça, num constante redobrar-se sobre os textos, o que estes têm a lhe dizer sobre o que, para ele, já poderia ter sido dito. Há que se reconhecer que uma das maiores virtudes da filosofia consiste no fato de ser ela a expressão desse esforço, já desde os antigos Gregos, para dar à palavra o movimento do pensamento . Eis o sentido da criação de conceitos, esforço que incita o leitor a esforçar-se ele também, a colocar-se nesse movimento ele também e ir tão longe quanto possa, até mesmo ao ponto de descobrir que, em filosofia, é o sentido do real que se sobrepõe às palavras que procuram expressá-lo, e não o contrário. Em relação aos textos que lê, ao se envolver 60 verdadeiramente com eles, nosso jovem verá, mais cedo ou mais tarde, que são as palavras que se subordinam ao sentido original, nunca o contrário, é o pensamento, enfim, que lhes dá a vida: O essencial daquilo a que chamamos elaboração, que acompanha e desdobra a escuta paciente, consiste na anamnese, na procura do que permanece ainda impensado quando já foi pensado. É por isso que a elaboração filosófica não tem nenhuma relação com a teoria, nem a experiência dessa elaboração com a aquisição de um saber (mathema). (LYOTARD, 1986, p. 36). Tal trabalho exige que se tenha muita paciência, principalmente da parte do professor. A ansiedade por resultados precisa estar fora de questão na medida em que eles são exatamente o bem conduzir-se nos procedimentos. Assim, a atividade do professor não pode ser outra coisa que não um constante recomeçar, e recomeçar juntamente com os alunos, pois não se pode avançar na aquisição de um conhecimento filosófico, simplesmente porque este não pode ser adquirido tal como um saber. A elaboração filosófica não pode ser transmitida por meio de conteúdos, ela é um trabalho solitário de escuta e de anamnese, e é nesse sentido que podemos entendê-la como autodidata. Crítica, reflexão e discernimento Agora, chegando ao final desta reflexão, poder-se-ia perguntar se não teria sido sobre a formação do espírito crítico do aluno, aquela coisa muito indefinida sobre a qual a maioria das propostas pedagógicas falam quando o assunto é filosofia, que se teria falado desde o início. Se considerarmos que o pensamento crítico do aluno advirá da simples discussão acrescida do trabalho do professor em solucioná-la, dando bons exemplos de como resolver problemas, certamente a resposta é não. Acredito, contudo, ter-me referido aqui à formação de um espírito crítico que pode ser avaliado pela sua capacidade de formular proposições e objeções de maneira consistente, quer dizer, organizada, coerente, precisamente, rigorosa. Fazemos, às vezes, da filosofia a ideia de uma perpétua discussão como ‘racionalidade comunicativa’ ou como ‘conversação democrática universal’. Nada é Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 Izilda Johanson menos exato e, quando um filósofo critica o outro, é a partir de problemas de um plano que não eram aqueles do outro, e que fazem fundir os antigos conceitos, como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas. Não estamos nunca sobre o mesmo plano. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 41). Um conceito, completam esses pensadores, não é um conjunto de ideias associadas, como uma opinião. Para atingi-los, é preciso que “ultrapassemos tanto as imagens quanto as abstrações e que atinjamos objetos mentais determináveis como seres reais” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 261). A filosofia também luta contra o caos, no entanto, não se trata apenas de trabalhar para reforçar certa tendência natural do espírito humano, essa de, diante do caos, fixar-se em algum tipo de porto familiar e, por isso, seguro. O papel do professor, nesse sentido, deve ser o de estimular, de incentivar, por meio do seu exemplo, o aluno, a aluna a arriscarem-se a mergulhar no ambiente propriamente filosófico, tal como um pescador que jogasse uma rede no vasto mundo real, mas “arriscasse-se sempre a ser arrastado e a se encontrar em pleno mar, quando acreditava chegar ao porto” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 261). Assim também está lançada nesse horizonte pedagógico certa concepção de educação, a saber, de uma educação formadora: não tecnicista, pois, tampouco voltada para qualquer tipo de erudição vazia, menos ainda direcionada a propósitos de servilismos em relação aos interesses imediatos, práticos, ou massificadores da sociedade; trata-se, pois, da aposta em uma formação que visa contribuir, antes de tudo, à constituição de um indivíduo capaz de distinguir, de discernir e, portanto, capaz de julgar e de escolher. Trata-se, assim, de priorizar e dar ênfase a uma proposta pedagógica que procura, antes de tudo, cultivar um hábito, mas um hábito cujos efeitos são exatamente opostos àqueles que imobilizam e fixam os sentidos e as ações num mesmo lugar. Trata-se justamente de uma proposta de cultivar e incitar o hábito de impedir o espírito de se acomodar em ideias e pensamentos já dados, prontos, fixados pela linguagem e estagnados nos sentidos. Trata-se, enfim, de cultivar certo hábito de colocar o próprio espírito o mais próximo possível das próprias coisas e das próprias ideias. Em uma palavra, visa a uma educação que enfatiza a percepção da diferença, e incentiva esse esforçar-se para não apenas apreender essa diferença, mas contribuir para sua criação. Menos uma educação que procure simplesmente encontrar um jeito de tornar tudo o mais digerível e adaptável possível, mas que, ao contrário, associe à tarefa de educar o cultivo da percepção de diferenças, as quais não podem ser simplesmente transpostas de um arranjo simbólico a outro, pelo menos não sem que com isso se perca justamente o seu sentido mais próprio e autêntico. E perceber a realidade como diferença, e não apenas como repetição do mesmo, parece ser a condição para a escolha – ora, em relação a uma realidade que se realiza como indiferença, não haveríamos que falar em escolha propriamente! Essa possibilidade é ainda mais reforçada quando se percebe, afinal, que essa possibilidade de escolher se realiza menos a partir de opções dadas e prontas, como alternativas preexistentes do tipo “pegar ou largar”, mas antes e acima de tudo como alternativa entre o que está dado e o que pode vir a surgir, isto é, entre o mesmo e o novo, aquilo, enfim, que pode vir a existir. O jogo do sentido Até agora, esteve aqui em jogo o desejo de provocar nos alunos certo estranhamento em relação ao que é dado como posto, não porque a filosofia seja “só dúvida”, mas porque a compreensão até mesmo de uma experiência comum vivida por nós demanda certo distanciamento e certa articulação dos elementos a serem pensados. Queremos cumprir, então, nosso papel de professores de filosofia. E isso se acentua quando nos vemos diante de fatos como, por exemplo, o que segue. Num dado momento do estágio referido anteriormente, a professora (ao que pareceu, com o intuito de apresentar à estagiária uma espécie de álibi que a absolvesse das acusações que porventura se pudesse dirigir a ela , ou aos seus propósitos pedagógicos) trouxe às mãos da estagiária um dos incontáveis questionários que ela gostava de aplicar a seus alunos. Pretendia, ao que parecia, que a estagiária reconhecesse nas respostas dadas pelos alunos a incapacidade deles para o curso Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 61 Filosofia, filósofo, professor de filosofia de filosofia. Tive o cuidado de copiar uma das respostas dadas a uma de suas questões para ter certeza, quando mais tarde voltasse a lê-la, de que a professora estava enganada e que o que acabou conseguindo foi mostrar o quanto um curso de filosofia pode ser interessante. A pergunta foi a seguinte: “O que importa não são os fatos, mas sua visão. (Otto Lara Rezende) - Qual a opinião de vocês sobre esta frase?” Veio então a respectiva resposta, por escrito, de um determinado aluno: “Isso quer dizer que não podemos nos preocupar com as coisas que vêm acontecendo em nossas vidas (problemas, tristezas, etc.). Temos sim é que acreditar em nós mesmos, temos que ter fé, ter garra. Força de vontade, pois só assim chegaremos onde queremos.” Ora, não podemos dizer que a resposta está errada (ao contrário do que disse a professora que perguntou). Perguntei-me, contudo, onde teria esse aluno buscado tal resposta. Certamente em alguma questão pessoal. Mas qual teria sido seu percurso? Teria ele compreendido a pergunta que lhe faziam? Teria ele pensado sobre a afirmação posta e articulado algum pensamento? Ao que parece, tudo se passou em meio a um caos de ideias, sentimentos, ideais, sonhos, desejos, tudo junto. E o “jogo do sentido a todo custo” de que nos fala Lebrun? E quanto à nossa professora, seu curso? Ao que parece, estava tão mergulhada no caos quanto seus alunos. A filosofia não é certamente sua salvação, nem a salvação dos seus alunos; contudo, como poderia ser interessante vê-los filosofar! REFERÊNCIAS DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992. FOUCAULT, M. O uso dos prazeres. História da sexualidade II. Rio de Janeiro: Graal. 1984. LEBRUN, G. Por que filósofo? Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 15, p. 148-153, jan./mar. 1976. LYOTARD, J-F. Le cours philosophique. In: DERRIDA, J. et al. Ecole et Philosophie – la grève des philosophes. Paris: Osires, 1986. p. 34-40. Recebido em 21.10.2012 Aprovado em 23.01.2013 62 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 55-62, jan./jun. 2013 Fátima Maria Nobre Lopes O DUPLO ASPECTO DA EDUCAÇÃO: VIA DE CONSTITUIÇÃO DO ESTRANHAMENTO OU DE SUA SUPERAÇÃO MEDIADA PELA ÉTICA Fátima Maria Nobre Lopes* RESUMO Este artigo aborda a posição do filósofo húngaro György Lukács acerca da centralidade do trabalho e do seu caráter teleológico, evidenciando a gênese ontológica da educação como formação humana e o seu desenvolvimento no âmbito das teleologias secundárias por meio das quais pode ocorrer a constituição e/ou a superação de estranhamentos. Tal assunto está exposto na sua obra Ontologia do Ser Social, na qual ele desenvolve as categorias centrais do homem enquanto ser social. Segundo Lukács, a malha social da vida humana é resultante do estabelecimento e realização de posições teleológicas dos homens, cujos resultados muitas vezes escapam do seu controle e vontade como se fosse uma segunda natureza, principalmente quando o percurso ou o resultado do processo dessa transformação torna-se estranhamento. Entretanto, mesmo diante de resultados inesperados, pois o homem está sempre realizando posições teleológicas “sob pena de fracasso”, Lukács afirma que não há uma contraposição entre teleologia e causalidade e sim uma conexão recíproca e operante. Isso nos remete à liberdade de escolhas e de buscas para soluções dos bloqueios à plena explicitação do gênero humano que se exprime como estranhamento, cuja superação exige a mediação da educação numa dimensão ética. Palavras-chave: Trabalho. Teleologia. Estranhamento. Ética. Educação. ABSTRACT THE DOUBLE ASPECT OF EDUCATION: WAY OF ESTRANGEMENT CONSTITUTION OR WAY OF ESTRANGEMENT OVERCOMING THROUGH ETHICS This article discusses the thought of the Hungarian philosopher György Lukács on the centrality of work and its teleological aspects, pointing out the ontological genesis of education as human formation and its development in the field of secondary teleology through which estrangement can be constituted and/or overcome. This subject is discussed at his work Ontology of Social Being, in which he develops the central categories of man as a social being. According to Lukács, the social network of human life is a result of men’s establishment and execution of teleological positions, which * Doutora em Educação. Mestre e graduada em Filosofia. Professora Adjunta do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação Brasileira e do Laboratório de Estudos do Trabalho e Qualificação Profissional (LABOR) da UFC/Fortaleza. Coordenadora do PIBID/Filosofia da UFC/Cariri e do Curso Gratuito de Especialização em Ensino de Filosofia da UFC/Cariri. Líder do Grupo de Pesquisa Ontologia do Ser Social, Ética e Formação Humana. Endereço para correspondência: Rua Chico Lemos, 1405, casa 10. Bairro: Cidade dos Funcionários. CEP: 60822-780. Fortaleza-Ceará. Fone: (85) 8837-4796. [email protected]. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 63 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética results often are often out of control and will, as in a second nature. This occurs mainly when the path or the result of the process of this transformation becomes estrangement. Nevertheless, even in front of unexpected results (man is always executing teleological positions under penalty of failure), Lukács says there is no contraposition between teleology and causality, but a reciprocal and operant connection. That leads us to freedom of choice and of searches to find solutions to the hung-ups considering the explicitness of the human being that is expressed as estrangement. Overcoming it demands mediation in education in an ethical dimension. Keywords: Work. Teleology. Estrangement. Ethics. Education. Questões Introdutórias: a dimensão ontológica da educação A educação no seu sentido mais amplo é mediada e mediadora de outras práxis sociais, aliás, é condição ontológica da práxis humana. Sabemos que a educação exteriorizada nos sistemas formais de ensino é instância de reprodução de interesses ideológico-particulares, mas, no seu sentido amplo, na sua dimensão ontológica, ela é instância de produção e reprodução da vida social dos homens. Nesse aspecto ela é também mediação para uma práxis criadora e transformadora, caso contrário, não haveria um desenvolvimento histórico do homem. Certamente, a educação (principalmente a formal) não é a alavanca da transformação social; mas ela é mediação para esse alcance, inclusive é veículo para a geração de novos valores, principalmente aqueles voltados ao para-si, valores emancipatórios que resgatem a dimensão humano-genérica dos homens. Essa educação com certeza deve ter uma dimensão ética. É nesse sentido que Marx, em suas obras juvenis, principalmente nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844, fala da necessidade de uma educação integral, omnilateral, ao afirmar que “o homem apropria-se do seu ser omnilateral de uma maneira omnicompreensiva, portanto, como homem total” (MARX, 1989, p. 196). Trata-se do potencial transformador dos sentidos quando eles são desenvolvidos e estimulados por orientações que proporcionem o aperfeiçoamento da existência humana. A sensibilidade humana, que se forma mediante uma objetividade, compreende “não apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.) [...] A formação dos sentidos é a obra de toda 64 a história mundial” (MARX, 1989, p. 119). Contudo, na sociedade capitalista, os sentidos físicos e intelectuais dos homens foram substituídos pelo sentido do ter, pois a alienação (o estranhamento) imperante nessa sociedade bloqueia a atividade intelectual, o desenvolvimento do pensamento crítico e a capacidade de amar. Marx diz que o homem esmagado pelas preocupações e pelas necessidades de sobrevivência não tem, por exemplo, “qualquer sentido para o mais belo espetáculo [...] A mais bela música nada significa para o ouvido completamente amusical [...]” (MARX, 1989, p. 119, grifo do autor). Georg Lukács, filósofo húngaro, tentando desvelar os alicerces filosóficos do pensamento de Marx, reexaminando as principais categorias constitutivas do ser social na sua obra Ontologia do Ser Social, admite a dimensão negativa da sociabilidade capitalista e o estranhamento (a alienação do homem do seu próprio ser) que aí impera. Segundo Lukács, o progresso intenso ao qual chegou a humanidade não deve ser interpretado simplesmente como promoção do homem. Não resta dúvida de que o desenvolvimento das forças produtivas via trabalho promove a sociabilidade e o progresso; por outro lado, esse desenvolvimento também produz, ao mesmo tempo, e com intensidade crescente, a opressão, a crueldade, as fraudes etc. No entanto, o estranhamento, que são os bloqueios à plena explicitação do gênero humano, não abrange nunca toda a totalidade do ser social. Portanto, os princípios norteadores da vida social e sua influência sobre a personalidade dos indivíduos não devem ser vistos “somente como negativos, como estranhantes [...] uma vez que a generidade em-si cria sempre um campo de possibilidades para a generidade para-si” (LUKÁCS, 1981, p. 601). Temos aqui um campo Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 Fátima Maria Nobre Lopes de possibilidades de superação do estranhamento, e isso de modo bem intenso no plano das teleologias secundárias nas quais se insere a educação e nas quais se dá a superação do estranhamento por meio de uma mediação ética. Lukács (1981) assevera que as motivações morais, éticas etc. dos homens se apresentam como momentos reais do ser social, são determinações da prática social dos homens. Toda a compreensão para essas questões reside na centralidade ontológica do trabalho como categoria fundante da vida social dos homens e no seu caráter teleológico. É a partir dessas considerações que Lukács (1981), resgatando a posição de Marx acerca da existência de qualquer posição teleológica somente no trabalho, afirma que só se pode falar razoavelmente do ser social quando houver a compreensão de que a sua gênese, o seu distinguir-se da sua própria base, o seu tornar-se autônomo, baseiam-se no trabalho e, consequentemente, no realizar-se contínuo de posições teleológicas. Portanto, a posição teleológica dos homens manifesta-se tanto no ato direto da produção (onde ocorrem as teleologias primárias), quando eles transformam a natureza em objetos de uso, ao mesmo tempo em que se transformam a si mesmos, como nos complexos sociais que dela decorrem (nos quais são estabelecidas as teleologias secundárias), que é o campo da superestrutura. Todo esse processo resulta na produção do novo precedido por posições teleológicas, quer sejam primárias ou secundárias, pois há uma conexão recíproca e operante entre essas duas esferas de teleologias que compreende a vida social dos homens. Em suma, o homem estabelece as suas teleologias (ideações) no ato do trabalho, ao transformar uma causalidade natural, a natureza, em causalidade posta que resulta nos objetos de uso, o produto do trabalho. Para esse fim, ocorre todo um processo de ensino e aprendizagem que remete à esfera da educação. Portanto, a concepção desse autor sobre as teleologias primárias e secundárias, e o seu respectivo imbricamento, nos permite relacionar a sua dinâmica também na educação. Vale dizer que assim como outros complexos sociais (o direito, a ciência, a política etc.), também a educação tem a sua gênese no plano das teleologias primárias e, por conseguinte, tem também uma dependência ontológica do trabalho (e ainda da esfera econô- mica) e, ao mesmo tempo, tem uma autonomia relativa ao se situar no plano da superestrutura, que compreende o campo das teleologias secundárias. Defendendo a intrínseca relação que há entre as duas teleologias, Lukács (1981) diz que somente com as teleologias secundárias se completa a humanização do homem, e que o costume, os hábitos, a tradição, a educação etc., que se edificam totalmente sobre posições teleológicas deste gênero, com o desenvolvimento das forças produtivas vão continuamente aumentando o seu raio de ação e a sua importância, terminando por se constituírem esferas ideológicas específicas para satisfazer estas necessidades da totalidade social. É sob esse prisma que podemos falar da gênese ontológica da educação como formação humana no âmbito das teleologias primárias e o seu desenvolver-se no campo das teleologias secundárias quando se objetiva institucionalmente nas famílias, nos grupos sociais, nas escolas etc. Aqui consiste a possibilidade de superação dos diversos estranhamentos, típicos do modo de produção capitalista, se a educação for desenvolvida numa dimensão ética, pois, certamente, os objetivos emancipatórios só podem ser concebidos com a intervenção de uma educação, no seu sentido amplo, cuja orientação esteja voltada para a formação humana. Teleologias primárias: gênese ontológica da educação como formação humana Não vamos aqui detalhar o tratamento teórico-metodológico que Lukács (1981) desenvolve acerca da centralidade do trabalho no desenvolvimento social do gênero humano, porém, para falarmos da gênese da educação como formação humana, teremos que tomar alguns pontos dessa temática. De início é importante destacar que embora Lukács não expresse muito o termo educação em sua Ontologia, no entanto, as formulações aí desenvolvidas dizem respeito, em última instância, à formação humana, quer dizer, à educação no seu sentido mais geral. O homem não nasce social, gênero humano; para se atualizar enquanto tal faz-se necessário que ele se autoconstrua por meio da atividade do trabalho. E o exercício dessa atividade requer, sem sombra de dúvidas, um processo de ensino e de aprendizagem que se dá num contexto Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 65 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética social, exigindo estruturas educativas para a sua efetivação. Estamos falando da educação no sentido mais amplo do termo, aquela que transcende as particularidades do capitalismo ou de qualquer outro sistema social e que desenvolve, em concomitância com o trabalho, as potencialidades do homem na produção da sua vida social, dirigindo-se ao pleno desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e criadoras e, portanto, à sua formação enquanto gênero humano. É nesse sentido que o afastamento da barreira natural por meio do trabalho torna o homem cada vez mais histórico e social. Quanto mais o homem se distancia de sua origem natural (sem jamais perder a sua dimensão biológica), tanto mais se torna social e tanto mais se faz necessário uma estrutura educativa que oriente a sua existência na relação com a natureza e com os outros homens, na produção da sua vida material e espiritual. Para o mencionado autor, essa estrutura educativa deve ter a finalidade de formar o homem de modo onilateral, num processo em que desenvolve ao mesmo tempo as suas capacidades e a sua personalidade, bem como a sociedade onde ele se insere. Nesse aspecto é que se pode afirmar a necessária conexão do desenvolvimento individual e o social. É por isso que a educação no sentido mais lato é um processo contínuo na formação dos homens. Faz parte da própria natureza humana desenvolver o seu ser social, ou seja, há uma intenção espontâneo-voluntária do homem em realizar em si mesmo os caracteres do gênero humano. Aqui “emerge a peculiaridade específica do ser social naquele complexo de atividades que costumamos chamar educação” (LUKÁCS, 1981, p. 152, grifo do autor). Não obstante, é importante frisar que mesmo que a educação seja intrínseca ao próprio desenvolvimento do homem, ela não é natural ou biológica e sim, social. É certo que o processo educativo retroage sobre a constituição biológica do homem. Lukács (1981, p. 150)1 cita como exemplo a fome 1 Falando das mudanças sociais em relação à sexualidade, no que se refere à relação entre homem e mulher, Lukács cita como exemplo o matriarcado, que transformou não somente o comportamento social dos homens, como também incidiu de forma radical na relação sexual. Lukács menciona ainda que nos diálogos de Platão a homossexualidade tem um “caráter erótico-ético” (LUKÁCS, 1981, p. 150). 66 e o sexo, que são momentos insuprimíveis da vida biológica, mas eles “são modificados no conteúdo e na forma pelo desenvolvimento social, pelas suas formas de reprodução”, ou seja, as mudanças que aí operam têm uma causalidade social. É sob esse prisma que, para Marx (1989), somente com o desenvolvimento objetivo da riqueza do ser humano é que se desenvolve a riqueza da sensibilidade subjetiva do homem, que compreende não apenas os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais que se expressam nos sentimentos, no amor etc. É por isso que os sentidos são teóricos, pois eles não podem ficar aprisionados às necessidades imediatas. Um homem preso às preocupações das suas necessidades não tem qualquer sensibilidade para o mais belo espetáculo; do mesmo modo que para o homem faminto não existe a forma humana de alimento, mas somente o seu caráter abstrato de alimento, na sua forma mais rude, dificilmente distinguindo-se do modo de se alimentar do animal. Por isso é necessário humanizar os sentidos do homem. Por meio do processo de objetivação/exteriorização (todo processo de objetivação, transformação da natureza em objetos de uso, compreende um processo de exteriorização do sujeito, imprimindo a sua marca no trabalho que desenvolve), que tem a sua gênese no trabalho, é que se desenvolve a natureza humanizada, a formação do gênero humano. “Essa educação [...] produz o homem em toda a plenitude do seu ser, produz o homem rico, dotado de todos os sentidos, como sua permanente realidade” (MARX, 1989, p. 119-120, grifo do autor).2 A partir dessas considerações, podemos perceber a inerência da educação na formação do indivíduo como membro do gênero humano. Contudo, isso não quer dizer que a educação seja fundante, e sim o trabalho, pois sabemos que o desenvolvimento do gênero humano efetiva-se sobre a base dessa atividade. Todavia, o próprio trabalho não se realiza sem uma dimensão ideológica, isto é, sem um sistema educativo que implica num processo de ensino e de aprendizagem; produção e reprodução da vida social, dos valores, costumes e normas, que vão desembocar nas teleologias secundárias. Nesse 2Na Ideologia Alemã, Marx repete essa ideia ao dizer que “a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende da riqueza de suas relações reais” (MARX, 1984, p. 54). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 Fátima Maria Nobre Lopes sentido, a educação – cujo caráter é eminentemente ideológico3 – consolida a formação humana dos homens ao contribuir para a sua inserção na atividade do trabalho e na própria sociabilidade. Portanto, ainda que a educação tenha o seu raio de atuação no âmbito das teleologias secundárias, ela tem a sua gênese ontológica no trabalho, no âmbito das teleologias primárias. Como sabemos, o trabalho é a categoria fundante do ser social do homem, pois é por meio dele que o homem transforma a natureza e a si mesmo. O processo de objetivação/exteriorização, que aí tem lugar, impõe critérios tanto em relação ao trabalho em-si, como em relação ao comportamento dos indivíduos. Nessa processualidade, a busca dos meios mais adequados para a realização da posição teleológica do trabalho remete ao conhecimento do processo, das condições objetivas propícias para tal realização. É justamente no exame das condições objetivas para a realização teleológica do trabalho que se gera o conhecimento e, portanto, a ciência. Quanto mais o homem conhece a legalidade do processo teleológico – e isso é requisito tanto para as teleologias primárias como para as secundárias –, mais preciso e bem-sucedido será o seu resultado. É importante frisar que não se trata aqui de um primado gnosiológico e sim ontológico, mas não resta dúvida de que o conhecimento faz parte do desenvolvimento do gênero humano. Aqui não há o problema de se perguntar – como em Kant – pela possibilidade do conhecimento, pois ele ocorre no próprio ato do trabalho. E isso se dá por meio de um longo processo de ensino e de aprendizagem, quer dizer, de um processo formativo. A educação, que tem a sua gênese nas teleologias primárias, ou seja, no trabalho, atua para além dele detendo a sua atuação no campo da superestrutura; sem esquecermos, no entanto, que as teleologia primárias e as secundárias são 3 Segundo Lukács, a ideologia caracteriza-se como o momento ideal das posições teleológicas dos homens. Trata-se aqui da ideologia no sentido amplo, que está presente em todas as formas de existência social. Desse modo, ele define a ideologia como “aquela forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social dos homens consciente e operativa” (LUKÁCS, 1981, p. 446). Já a ideologia no sentido restrito direciona-se mais para os conflitos sociais, tornando-se um instrumento por meio do qual os homens e as classes sociais se engajam e enfrentam as lutas sociais. Dependendo da sua direção, a ideologia no sentido restrito pode ser uma ferramenta de transformação ou de conservação do status quo social. Ver Lukács (1981, p. 452-453), principalmente. amplamente imbricadas pois a práxis humana é constituída por ambas. Podemos então afirmar que a humanização do homem é uma construção histórica e que a educação faz parte dessa humanização, pois ela insere as novas gerações no universo social do trabalho, mediando, orientando e acompanhando o desenvolvimento social dos homens. Em cada período histórico, diz Marx (1984, p. 56): [...] encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que cada geração transmite à geração seguinte; uma massa de forças produtivas, de capitais e de condições que, embora sendo em parte modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter especial [...] portanto, as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias.4 Essa longa citação nos mostra que a educação é uma prática social e histórica, pois por meio dela as pessoas compartilham as experiências vivenciadas pelas gerações anteriores e produzem novas experiências, novos modos de agir, novos valores. O crescente desenvolvimento do trabalho, segundo Lukács (1981, p. 561), “e o constante aperfeiçoar-se da ciência, que deriva dele mesmo movendo-se paralelamente em direção à própria autonomia, multiplicam e aprofundam os conhecimentos dos homens, inclusive quanto à própria práxis social”. Podemos afirmar que a educação se situa no mesmo patamar da linguagem, que é considerada como um “processo simultâneo à gênese do trabalho” (LUKÁCS, 1981, p. 380)5. Acreditamos que também a educação seja simultânea à gênese do trabalho, 4As circunstâncias feitas pelos homens não se realizam sem a mediação da educação, pois no processo de autoprodução os homens simultaneamente se educam, por isso podemos dizer que a educação é uma atividade mediadora da prática social global, havendo aí uma ação recíproca entre educação e sociedade. Marx expressa muito bem essa ideia quando diz que “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1984, p. 56). 5 Podemos lembrar aqui as posições de Manacorda (1991) ao expressar a ideia de que o homem se torna social pela educação. Nesse mesmo sentido, Manfredo Oliveira afirma que “a especificidade do ser humano emergiu como sua fundamental educacionalidade: só o homem pode ser educado, pois educação pressupõe liberdade e é a inauguração de sua efetivação” (OLIVEIRA, 1995, p. 108). Em outra passagem, Manfredo diz que a educação é o processo pelo qual o homem exerce a sua “auto-realização como homem” (OLIVEIRA, 1995, p. 110). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 67 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética pois na sua realização o homem não somente precisa falar alguma coisa, mas também conhecer, aprender alguma coisa, ainda que, como já frisamos várias vezes, a educação não seja um dado originário, e sim o trabalho, porém, ela passa a ser exercida pelo homem, independente da forma de sua utilização, tão logo ele começa a produzir seus meios de vida. Tudo isso evidencia a dimensão ontológica da educação na práxis humana, determinando-se como uma atividade mediada e mediadora da construção sócio-histórica do gênero humano. Sabemos que o solo genético dessa construção é o trabalho, mas nele está sempre presente a posição teleológica do homem, acompanhada por uma decisão alternativa, e isso requer, sem sombra de dúvidas, a mediação da consciência. Portanto, o trabalho e o processo educativo que dele brota são mediados pela consciência humana. Como dissemos no início, ainda que a educação seja parte essencial do desenvolvimento do gênero humano, ela não se realiza simplesmente por impulsos naturais ou biológicos. Também não surge espontaneamente de um espírito supra-histórico ou transcendente. A educação é intencional, social e histórica. Como diz Marx (1984, p. 119), “os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, dentro de suas relações históricas dadas, e não do indivíduo ‘puro’, no sentido dos ideólogos”. A consciência dos homens é um produto social, quer dizer, a sua formação se dá histórica e socialmente. A partir do modo de produção e reprodução da vida “os indivíduos fazem-se uns aos outros, tanto física como espiritualmente” (MARX, 1984, p. 55)6. É por isso que para esses pensadores a personalidade do homem é social, pois se forma no processo da sua vida real. Resumindo, podemos dizer que a posição teleológica que inaugura o ato do trabalho é estabelecida pelo homem como momento da prévia-ideação. Isso remete a uma decisão alternativa e requer a necessidade de mediação da consciência, da subjetividade. Ela não atua senão por um processo de formação, de conhecimento, de aquisição de habilidades e atitudes, o que implica um vasto processo educativo. 6 A esse respeito Lukács diz que o tipo tão persistente do aristocrata inglês, por exemplo, “é muito mais um produto da marca recebida pela educação em Eton ou Oxford-Cambridge do que pela transmissão hereditária” (LUKÁCS, 1981, p. 153). 68 No entanto, as referências relativas à educação no seu sentido amplo, assim como também ao trabalho em geral, são apenas pressupostos para explicar a formação do homem como ser social, uma vez que não existe trabalho, nem tampouco educação às margens da sociedade. Ambas são categorias sociais, historicamente situadas. No que se refere à educação, embora tenha a sua gênese ontológica no trabalho, no entanto, é no âmbito das teleologias secundárias que ela se desenvolve, iniciando-se por meio de processos informais na família, nos grupos sociais e nas demais vivências coletivas; difundindo-se em instituições formais, estruturadas e com finalidades específicas. Emerge aqui o caráter inacabável da educação no seu sentido lato e as suas diversas formas de se organizar no sentido estrito. Lukács (1981, p.152) diz que “entre educação no sentido lato e educação no sentido estrito não se pode traçar um limite preciso”. Todavia, não resta dúvida de que toda sociedade reclama dos próprios membros uma dada massa de conhecimentos, habilidades, comportamentos etc. Essa requisição remete aos métodos, conteúdos, duração etc. da educação em sentido estrito que ocorre na superestrutura, ou seja, no campo das teleologias secundárias. O desenvolvimento da educação no âmbito das teleologias secundárias: constituição e superação do estranhamento A totalidade social é a síntese das múltiplas ações dos indivíduos singulares cuja gênese se dá no trabalho. À medida que progride, com novos caminhos, novas necessidades, o processo do trabalho tende a um aperfeiçoamento crescente. A estrutura social específica decorrente desse progresso “coloca-se frente aos indivíduos já como uma forma autônoma do ser social retroagindo, assim, sobre todo o seu modo de vida” (LUKÁCS, 1981, p. 154), quer dizer, sobre as diversas esferas da sua vida. Dessa forma, as próprias posições teleológicas dos indivíduos, acompanhadas de suas ações, tornam-se uma potência social retroagindo, influenciando e determinando as suas ações e comportamentos, mas também impulsionando-os para novas decisões alternativas. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 Fátima Maria Nobre Lopes A educação é um dos complexos dessa potência social, principalmente quando ela objetiva-se em instituições como família, grupos, escolas etc. Destacamos aqui a intervenção da educação no modo de viver das pessoas e até mesmo a sua influência sobre o desenvolvimento físico delas. Em uma passagem da sua Ontologia, o autor diz que a essência da educação consiste “em influenciar os homens a fim de que frente às novas alternativas da vida reajam de modo socialmente desejado” (LUKÁCS, 1981, p. 153). Entretanto, não se trata de uma intervenção mecânica, a própria educação é constituída pelos atos dos homens num determinado contexto histórico. Todavia, dependendo do valor da posição teleológica desses atos, eles podem incidir de modo positivo ou negativo, quer sobre os indivíduos, quer sobre a totalidade social; podem contribuir cada vez mais para o desenvolvimento do homem ou podem influenciar para a degradação do patamar já alcançado da generidade humana. Cada modo de produção, cada sociedade tem em sua constituição um processo educativo influenciando a sua dinâmica e sendo por ela influenciado. Nessa ótica “a educação é sempre situada numa configuração determinada do ser-homem, isto é, num certo contexto sócio-histórico, numa relação de condicionamento recíproco com este contexto” (OLIVEIRA, 1995, p. 110). De fato, há essa reciprocidade entre a educação e o contexto social onde ela se aplica, mas não podemos esquecer que o modo de produção tem sempre a sua determinação predominante. É por isso que as instituições educacionais formais (principalmente a escolar) terminam por se submeter às regras da esfera econômica. No modo de produção capitalista essa submissão torna-se mais intensa, pois esse sistema busca assegurar, principalmente por meio da educação, que os indivíduos adotem suas posições, metas, valores, a fim de internalizar a sua ideologia e facilitar a sua legitimação. Não precisamos detalhar toda a depreciação que o capitalismo provoca no ser humano, mas queremos destacar que a questão ideológica que aí tem lugar torna-se um forte motor para a constituição de estranhamentos, inclusive na própria esfera da educação, principalmente no âmbito formal. Sabemos que, de um modo geral, a educação refere-se à formação humana objetivada sob a forma de conhecimento, transmissão de cultura, hábitos, valores, símbolos, modos de comportamentos etc. Nesse sentido, a educação forma a base ideológica pela qual o homem constrói a sua vida social. É por isso que ela se desenvolve no âmbito das teleologias secundárias, manifestando-se como uma atividade eminentemente ideológica. As posições teleológicas secundárias já existem em estágios muito iniciais e já não visam mais diretamente a transformação de um objeto natural, como no caso das teleologias primárias, e sim o surgimento de uma nova posição teleológica, pois a sua intervenção dirige-se agora para outras pessoas. Em suma, agora “o fim teleológico é o de induzir outros homens a posições teleológicas que eles mesmos deverão realizar” (LUKÁCS, 1981, p. 78)7. Trata-se aqui de uma ação voltada para a consciência dos outros homens, e nesta função a educação tem um papel basilar. Não é sem razão que na sociedade capitalista, onde predomina o valor de troca (e, junto a este, o individualismo e a competição), gera-se uma educação voltada predominantemente para valores competitivos, individualistas, opondo-se radicalmente à coletividade, à alteridade. Isso contribui para manter os indivíduos na sua particularidade, dificultando o seu elevar-se ao para-si. O resultado é que a formação do indivíduo ocorre de modo unilateral e empobrecido, dificultando a sua compreensão da própria vida, sentindo-se incapaz de transformar a realidade, considerando-a como um destino inevitável. É desse modo que os sistemas formais de ensino, principalmente a educação escolar, terminam por se transformar em instrumentos ideológicos de reprodução das desigualdades, tornando-se um veículo de manutenção e de geração de estranhamentos sob diversas formas. Falando do caráter cosmopolita a que chegou a classe burguesa visando formar o mundo à sua imagem e semelhança, 7 Em outra passagem, Lukács repete essa ideia dizendo que as posições teleológicas secundárias têm como fim “em primeiro lugar agir sobre a consciência de outros homens para induzi-los às posições teleológicas desejadas” (LUKÁCS, 1981, p. 91). Ao dissertar sobre a questão da ideologia, ele menciona mais uma vez que as teleologias secundárias têm “como fim todo um campo de reações desejadas (ou não desejadas) em direção a fatos, situações, obrigações, etc. sociais” (LUKÁCS, 1981, p. 466). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 69 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética Marx (1986) diz que a burguesia fez da probidade pessoal um simples valor de troca. “Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da ciência em trabalhadores assalariados [...] A burguesia arrancou o véu sentimental que envolvia as relações de família, reduzindo-as a simples relações monetárias” (MARX, 1986, p. 21). É daqui que se originam os estranhamentos mais gerais (tanto pessoais como sociais) que são decorrentes do caráter predominante do valor de troca no capitalismo, provocando essa reificação das relações humanas, inclusive no campo da educação. E isso é tão atual quanto no tempo de Marx. Em que pese a forte determinação dos mecanismos do capitalismo na educação, a reprodução ideológica8 que aí tem lugar não tem um caráter apenas negativo, estranhante; mas também pode se manifestar no seu aspecto positivo, no sentido de conservar o patrimônio alcançado pela humanidade e, portanto, de garantir a reprodução e a continuidade do gênero humano. Não queremos perder de vista aqui essa natureza fundamental da educação no seu sentido amplo, quer dizer, essa função que ela exerce na formação humana, pois possibilita ao homem a sua autoconstrução, proporcionando a sua participação no processo de produção e reprodução do ser social. Trata-se de um processo inacabado, pois, a cada momento histórico, novos valores, conhecimentos e habilidades vão sendo criados e acrescidos aos que se mantiveram e se universalizaram até aquele tempo. Por isso os valores predominantes do capitalismo não são eternos, a partir dele podem-se gerar outros. O próprio capitalismo proporciona a objetivação de valores superiores-genéricos, principalmente no que se refere à luta para a superação dos estranhamentos atuais. Tal luta eleva a humanidade a patamares mais altos, como ocorreu com a superação do estranhamento típico do feudalismo para o sistema capitalista. Sabemos que o processo de objetivação/exteriorização, que compreende a práxis social dos homens, ocorre tanto na esfera econômica (que possui as posições teleológicas primárias e também 8 Queremos frisar que a palavra “reprodução” utilizada nessas colocações ora tem um sentido negativo, quando se refere a interesses privados, ora tem sentido positivo, quando se refere à dimensão ontológica da formação humana. No contexto em que essa palavra é empregada, é possível perceber quando se trata de um sentido ou de outro. 70 as secundárias) como na superestrutura que dela deriva, incluindo a educação. Esse processo comporta, ao mesmo tempo, uma contradição e uma síntese, desenvolve e bloqueia a formação humana, pois, como já frisamos, o processo de objetivação/ exteriorização não exclui a existência de conflitos concretos. Portanto, o efeito causal que daí decorre (já dissemos que os seus resultados retroagem sobre as novas posições teleológicas dos indivíduos, bem como sobre a totalidade social) cria para os homens “modelos positivos e negativos, para as suas decisões futuras, e, por conseguinte quer seja nos indivíduos quer seja nos grupos faz da continuidade dos seus pensamentos, sentimentos, atos, etc. um componente dinâmico da sua consciência” (LUKÁCS, 1981, p. 467). Em seguida, o autor destaca que a consciência, tanto na sua dimensão individual como social, só pode surgir sob o fundamento desses efeitos produzidos pela objetivação do objeto e pela exteriorização do sujeito. As posições teleológicas dos homens e as ações que delas decorrem são duplamente condicionadas: pela consciência que põe e pelas determinações objetivas do real; trata-se da conexão recíproca entre o individual e o social. Isso ocorre também na educação, pois cada complexo social tem uma lógica e uma certa autonomia e, ao mesmo tempo, uma relação com os demais, principalmente com a base econômica. Tertulian (1996, p. 64) comenta que com essa posição “Lukács exclui definitivamente a concepção retilínea e monolítica do progresso histórico”, afastando qualquer determinismo de tipo economicista (fatalista) ou de um teleologismo na história como na filosofia hegeliana. Em diversas passagens da Ontologia, Lukács (1981) menciona que mesmo no capitalismo, no qual predomina uma sociabilidade estranhada, há sempre possibilidades, no sentido da dynamis aristotélica, de realização do para-si e, portanto, de superação das atuais formas de estranhamentos. Essa superação ocorre com uma mediação ética, cuja decisão e ação pertencem aos próprios homens. Considerações finais A partir das posições de Lukács (1981) pudemos perceber que o desenvolvimento social dos Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 Fátima Maria Nobre Lopes homens, por meio do seu processo de produção e reprodução, possibilita a elevação do seu ser e da sua consciência no processo histórico. Essa formação do gênero humano não pode ocorrer se não for por meio de um processo educativo. Vimos que nesse processo os indivíduos conservam, reproduzem e geram novas experiências. Desse modo, a educação não somente contribui para a reprodução social, como também, a partir dela, gera o novo. Por isso não se pode colocá-la em patamares mecanicistas, com a consideração de que ela é unilateralmente determinada pelo econômico, tornando-se diante dele totalmente impotente. Por outro lado, não podemos também colocá-la em patamares transcendentais, desconsiderando-se a sua natureza sócio-histórica, que compreende tanto a dimensão objetiva como subjetiva. Disso resulta que a positividade da formação do gênero humano, assim como a dinâmica do estranhamento, é um fato social, e não natural, mecânico, ou sobrenatural. Então, se são os homens que geram os próprios estranhamentos, são eles mesmos que irão superá-los. A educação como componente da estrutura social compreende a geração de estranhamentos, mas também gera condições para a sua superação. E dado que ela é uma mediação essencial da atividade humana, no âmbito das teleologias secundárias, poderá contribuir não somente para a superação dos estranhamentos na área específica da educação formal, mas também para a superação dos estranhamentos em relação à sociedade em geral, pois em qualquer dimensão da práxis social está presente a educação. Como diz Mészáros (2005, p. 47), adotando as ideias de Paracelso, “a aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice”. É evidente que essa educação tem que ser eminentemente ética. Trata-se de uma educação com a finalidade de formar o homem de modo onilateral, uma educação voltada para a superação do estranhamento e, portanto, comprometida com a emancipação humana, e isso só pode ocorrer se ela tiver uma dimensão ética. Vale ressaltar, portanto, que a educação emancipatória, em sua dimensão ética, compreende toda a vida da pessoa, e não somente a educação formal, embora ela tenha um grande peso na formação humana. É claro que as instituições formais são uma parte importante para a interiorização de valores superiores, porém, somente a educação no seu sentido mais amplo pode conduzir o homem a uma mudança verdadeiramente radical, rompendo, assim, a lógica mistificadora do capital. Nenhum “dos objetivos emancipatórios é concebível sem a intervenção mais ativa da educação, entendida na sua orientação concreta, no sentido de uma ordem social que vá para além do capital” (MÉSZÁROS, 2005, p. 43, grifo do autor). Não resta dúvida de que uma educação para além do capital só pode ter uma dimensão ética, que deve reportar-se ao coletivo sem sacrificar nem eliminar o indivíduo, mas também sem cair num individualismo que tanto impera no atual sistema. Relacionando com a posição de Marx (1980, p. 300), trata-se de “uma educação de seres humanos, para o desenvolvimento intelectual, para a execução das funções sociais, para as relações sociais e para o livre desempenho das energias vitais físicas e mentais [...]”. Trata-se de uma educação que proporcione o pleno desenvolvimento dos homens, a exteriorização das suas faculdades físicas, mentais e criativas. Uma educação para além do capital que, segundo Mészáros (2005), é necessária e urgente se quisermos garantir as condições essenciais da sobrevivência humana. É esse o fundamento ontológico que move a nossa posição acerca da educação numa dimensão ética como uma mediação necessária para a superação do estranhamento atual que, como vimos anteriormente, tem a sua gênese no trabalho enquanto criador de valores de troca (o trabalho estranhado), mas se estende para além dele, provocando um pluralismo de estranhamentos nas diversas esferas da vida das pessoas. Por isso a formação humana pressupõe mediações que requerem uma educação não somente para o trabalho, mas para além dele, quer dizer, para além das teleologias primárias, pois, como já frisamos, é no âmbito das teleologias secundárias que se completa o desenvolvimento da humanidade. Por conseguinte, o pertencer do homem ao gênero humano não é decorrente de uma herança apenas biológica, e sim desenvolvido por um processo histórico e social que tem a sua gênese no trabalho, mas perpassa toda a vida das pessoas por meio da apropriação de valores, habilidades, conhecimentos etc. que são adquiridos por todo um processo for- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 71 O duplo aspecto da educação: via de constituição do estranhamento ou de sua superação mediada pela ética mativo. As teleologias estabelecidas nesse campo e o modo de execução vão resultar em determinadas causalidades. Percebe-se aqui a estreita conexão recíproca entre teleologia e causalidade tanto no âmbito do trabalho como nos complexos sociais que dele derivam, principalmente na esfera da educação, que sendo permeada por uma dimensão ética, certamente, irá contribuir para a superação do estranhamento do mundo atual e para a elevação do gênero humano. REFERÊNCIAS LUKÁCS, György. Ontologia dell’essere sociale. A cura di Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. 3 v. MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. 1. ed. São Paulo: Cortez, 1991. MARX, Karl. Il capitale. Traduzione di Delio Cantimori e Altri. 8. ed. Roma: Editori Riuniti, 1980. 5 v. ______. Manifesto do partido comunista. 6. ed. São Paulo: Global, 1986. ______. A ideologia alemã. Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. São Paulo: HUCITEC, 1984. ______. Manuscritos eonômico-filosóficos. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1989. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005. OLIVEIRA, Manfredo. Ética e práxis histórica. São Paulo: Ática, 1995. TERTULIAN, Nicolas. Uma apresentação à ontologia do ser social, de Lukács. Tradução Ivo Tonet. Crítica Marxista, São Paulo, n. 3, p. 54-69, 1996. Recebido em 31.10.2012 Aprovado em 02.02.2013 72 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 63-72, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques A EDUCAÇÃO ENTRE O SINGULAR E O COLETIVO A PARTIR DA CRÍTICA DA RAZÃO DIALÉTICA DE SARTRE Cássio Donizete Marques* RESUMO A educação, como formação do homem, permite vivenciar, na dialética da história, a relação entre o individual e o coletivo. Ela se dá na plena liberdade do homem que constrói seu projeto em meio a uma dada situação. O coletivo, embora não tenha existência ontológica, constitui uma das dimensões fundamentais para se pensar a educação como dialeticidade entre o indivíduo e o coletivo, entre a subjetividade e a objetividade, entre o projeto e a situação, entre a totalização e as totalidades parciais. O sucinto texto aqui apresentado é parte da conclusão de meu trabalho de doutorado, que tem como título Do Individual ao Coletivo na Crítica da Razão Dialética de Sartre: Perspectivas Educacionais. A singularidade e a prática pedagógica expressam os dois lados de uma mesma moeda, educar na e para a singularidade a partir de uma prática pedagógica que se expressa na coletividade de um grupo em permanente processo de totalização. Palavras-chave: Educação. Individual. Coletivo. Práxis. Dialética. ABSTRACT EDUCATION - BETWEEN THE INDIVIDUAL AND THE COLLECTIVE ACCORDING TO SARTRE´S CRITIQUE OF DIALECTICAL REASON Education as formation of man let us experience, in the dialectic of history, the relationship between the individual and the collective. It occurs in the full freedom of man that builds up his project in a given situation. The collective, although it does not have an ontological existence, is one of the fundamental dimensions to think of education as dialectic between the individual and the collective, between subjectivity and objectivity, between the project and the situation, between totalisation and totality. The brief text presented here is part of my doctoral dissertation From Individual to Collective according to Sartre´s Critique of Dialectical Reason: Educational Perspectives. The singularity and the pedagogical practice are two sides of the same coin, educating in and for the singularity according to a pedagogical practice based on the collectivity that is in constant process of totalisation. Keywords: Education. Individual. Collective. Praxis. Dialectic. * Doutor em Educação (Filosofia da Educação) pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professor do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – Itu e Salto. Endereço Institucional: Praça Antonio Vieira Tavares, 73 – Salto–SP. soumar.coruja@ uol.com.br Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 73 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre 1. Introdução Antes de discutir a temática central deste trabalho, é oportuno traçar algumas referências gerais quando se pensa em educação e filosofia sartreana. Tem havido certo consenso em atribuir a Sartre uma filosofia da total negação de elementos positivos. Sartre é visto por muitos como o filósofo que confere ao existente e à existência uma pura gratuidade, consideradas como uma paixão inútil, um viver sem objetivos ou finalidades em que o outro representa um impedimento à minha liberdade, sendo considerado pelo próprio autor como o meu inferno. O ser é o que não é e não é o que é. A filosofia sartreana é classificada por muitos como a filosofia da angústia, do desespero, da total subjetividade, em que a única relação estabelecida é a da objetivação e coisificação do outro, ou seja, o meu olhar torna o outro uma coisa, retirando dele a subjetividade e a liberdade. Com essa leitura tornar-se-ia impossível a dois sujeitos compartilharem um ponto de vista comum, construir uma intersubjetividade, aspecto fundamental à educação. Atribui-se a Sartre a total falta de fundamentação nas relações humanas, que são pura gratuidade, nas quais se confere valor apenas ao existir e a cada escolha feita pelo homem. A escolha torna-se totalmente gratuita; é a escolha que fundamenta o valor e não o valor que fundamenta a escolha. Como pensar a educação a partir de um modelo que, numa primeira leitura, inviabiliza toda relação humana e assim toda intersubjetividade? Como pensar a educação sem nenhum referencial de valor a não ser a própria existência, sua gratuidade e sua absoluta liberdade? Como pensar educação num modelo de pensamento em que o outro é o meu inferno? É forçoso reconhecer, no processo educativo, uma dialética entre o subjetivo e o intersubjetivo, entre a parte e o todo, entre o singular e o universal. A Educação constitui movimento constante do fazer humano e do fazer-se humano, numa determinada situação, que, aliás, é um dos pontos-chave do pensamento sartreano. Todo homem está em situação e age a partir dela. Situação que se apresenta na sua total facticidade. A Educação institui-se como dinâmica entre a liberdade e a situação, entre o dado e a possibilidade de superação, situação que traz 74 a presença do outro que, a despeito de ser limite à minha liberdade, é quem me torna humano. Eu só sou na presença do outro. Isso é um convite à vivência em sociedade e ao reconhecimento do outro não como limite, mas como possibilidade de minha própria existência. Enfim, ainda que haja quase um consenso em relação a alguns aspectos do pensamento sartreano, outros permanecem abertos a novas leituras e interpretações, um desafio do ponto de vista teórico. Esse universo de possibilidades interpretativas será investigado a seguir, buscando verificar que perspectivas educacionais podem ser construídas, ou pelo menos delineadas, a partir das categorias presentes na Crítica da Razão Dialética. 2. A dialética entre o individual e o coletivo O pensamento sartreano, presente na Crítica da Razão Dialética, aponta para uma relação ao mesmo tempo conflituosa e de complementaridade entre o individual e o coletivo. Sartre não abre mão do sujeito e de sua singularidade, porém não fecha questão em relação ao coletivo e a tudo o que ele representa. A tensão posta entre estes dois polos não é completamente resolvida por Sartre, talvez, em razão da própria característica dialética de seu pensamento, de uma dialética histórica que se põe num mundo marcado pela totalização (MORAVIA, 1985). A peculiaridade do pensamento sartreano está justamente na não aceitação de um pensamento dualista (SARTRE, 1997), inclusive quando discute a questão do individual e do coletivo. É possível afirmar que para Sartre a existência de um implica na existência do outro, ou melhor, que a despeito da relação conflituosa, ambos se complementam na dialeticidade1 da história. O existente é na medida em que se “desenrola” na história, e a história é este desenrolar do existente. Todo dualismo acaba por simplificar e até mesmo camuflar uma dada realidade. A afirmação do indivíduo ou do coletivo, como alternativas mutuamente excludentes, não 1 Pensar na dialeticidade da história é reconhecê-la dialética. A razão dialética é a razão que torna inteligível toda forma de totalização, é toda unificação em curso. Sartre afirma que a razão dialética é a lógica viva da ação que deve superar a razão analítica e a razão positivista para se entender a totalização em processo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques expressa a compreensão que Sartre tem da história e do próprio homem. Parece ser impossível pensar tal relação se esta for compreendida somente a partir de uma oposição absoluta, ou o indivíduo ou o coletivo. Em Sartre eu sou indivíduo no coletivo e o coletivo é a expressão maior da individualidade efetivada de cada práxis singular. Como eu posso reafirmar minha práxis2 individual senão no coletivo? Como eu posso afirmar ser plena liberdade senão em relação ao prático-inerte3 que me coloca diante da objetividade das coisas? Não há liberdade no vazio e nem coletividade sem a adesão de cada práxis individual (SARTRE, 1985). Defender a subjetividade não é assumir, necessariamente, um discurso que negue toda e qualquer objetividade, principalmente em Sartre, para quem o meio e a rareté4 acompanham o homem ao longo de sua existência. Uma existência totalmente subjetiva torna-se pura abstração, o que é impensável para um filósofo existencialista. Entre a defesa do indivíduo e sua possível abstração tem-se uma realidade objetiva que, inclusive, viabiliza a práxis comum que leva à construção do coletivo. Sartre busca, a partir da defesa da razão dialética, estabelecer uma nova forma de compreensão da relação entre pensamento e objeto, relação esta que circunscreve toda possibilidade de conhecimento. A razão dialética possibilita superar a razão analítica e a razão positivista que, de forma direta ou indireta, estiveram presentes na construção de diversas perspectivas educacionais. Numa perspectiva dialética, o saber especulativo não dá conta da 2 Em Sartre, práxis designa a ação de um sujeito (indivíduo ou grupo), ela é uma forma de totalização, o esforço que todo indivíduo faz para ganhar seu ser, ou para ser seu ser, no quadro da necessidade (rareté). Sartre afirma em a Crítica da Razão Dialética que toda dialética histórica repousa sobre a práxis individual. 3O prático-inerte é sinônimo de matéria trabalhada pelo homem, marcada de significações humanas, ele é a inércia que nos faz escravos e Sartre luta o tempo todo para escapar de sua força, de sua passividade, de sua totalidade a partir da razão dialética. 4 Rareté designa uma estrutura fundamental de nossa relação material e social: o fato de nem a substância natural e nem o produto existir em quantidade suficiente para todo mundo. Essa estrutura não é derivada do modo de produção, mas é uma estrutura original de nossa relação com o mundo. Nós vivemos num mundo caracterizado pela “escassez” objetiva de bens. Essa realidade faz com que a práxis seja uma luta contra a morte, uma vez que em razão da rareté, o outro é uma ameaça a minha existência, gerando assim a hostilidade entre os homens. Sartre afirma que toda a aventura humana – pelo menos até agora – tem sido uma luta encarniçada contra a escassez. Por outro lado, é ela que faz com que o homem se organize em sociedade para lutar contra ela (CABESTAN; TOMES, 2001). realidade humana, que passa a ser mediada pela própria história. A dialética procura explicar os momentos da totalização e está integrada na própria ação. Nesse sentido a razão dialética busca explicitar a universalidade dos conceitos e sua relação com as singularidades da experiência e vice-versa (SARTRE, 1985). A relação sujeito-objeto não se dá de forma automática e mecânica; ela não pode ser definida previamente, sua definição se dá no próprio desenrolar da relação. Essa relação se dá dialeticamente, a partir do método progressivo-regressivo5, defendido por Sartre. Essa afirmação aponta para a ideia de uma educação na qual não é plenamente possível estabelecer o resultado, uma vez que este depende da forma como cada sujeito, envolvido no processo, irá assimilar e com isso vivenciar a situação apresentada. Uma coisa é a apresentação da realidade dada a partir do processo educativo, outra coisa é a efetiva assimilação, compreensão e interpretação que cada indivíduo tem do que está diante de si. A educação não determina, mas oferece determinações que serão reconstruídas pela e na liberdade de cada um. Porém, mesmo se aceitarmos a ideia de que a educação oferece determinações, cabe lembrar que elas são também o resultado da aceitação e adesão de cada práxis individual, feita num momento anterior e que se apresenta no presente. Com isso, pode-se efetivamente dizer que a educação é uma relação entre práxis individuais perpassada pelo coletivo, ou melhor, mediada pelo coletivo. O que se apresenta no processo educativo não é uma práxis individual, mas a adesão a um determinado projeto comum, ou, pelo menos, supostamente comum. A formação da realidade e do próprio homem se dá no conflito entre o concreto singular da vida, historicamente datado, e as contradições gerais estabelecidas pelas forças produtivas e pelas relações de produção. Existe no método progressivo-regressivo um movimento de interiorização da multiplicidade que começa na infância e estende-se por toda vida. Assim, a formação humana se dá, num primeiro momento, como movimento interno, ou melhor, sem a necessária interiorização do real – entende-se aqui real como aquilo determinado pela fenome5 Para a compreensão do método progressivo-regressivo, ver o texto Questões de Método, cap. III, de Jean-Paul Sartre (SARTRE, 1985). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 75 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre nologia – a consciência não é. Aqui, explicita-se a importância do movimento de interiorização do mundo, a multiplicidade das coisas é vivenciada por uma consciência que é plenamente individual e é enquanto individualidade que percebe seu entorno e estabelece uma relação com o mesmo. A formação começa pela tomada de consciência da multiplicidade das coisas por um existente que é pura abertura ao mundo. A diversidade do real é assegurada e ao mesmo tempo colocada sob o olhar atento de um indivíduo que, em última instância, é subjetividade e liberdade (SARTRE, 1985). Ao mesmo tempo em que atribui ao existente, enquanto consciência, a abertura para o mundo, Sartre reconhece neste mundo uma série de determinações específicas que retiram do existente a plena capacidade de ser o que deseja ser, de caminhar exclusivamente segundo suas regras e possibilidades. O indivíduo é marcado pela sua inserção em pequenos e grandes grupos, locais ou não, que o pressionam, submetendo-o a um conflito permanente entre o grupo local, os interesses gerais da classe à qual se pertence e seus próprios interesses pessoais. Simont, em seu artigo Indivíduo e Totalização: a dialética e seu resto, caracteriza bem essa situação ao afirmar que [...] o indivíduo é envolvente e envolvido, a história é envolvida e envolvente, sem que se possa decidir sobre a orientação dessa relação. Retomar as duas dimensões num só movimento é dizer o seguinte: não há situação senão para uma liberdade totalizante, que dela se arranca, mas não há totalização a não ser de uma situação multidimensional, fibrosa [...] com suas inércias, seus pesadumes, sua sedimentação de escolhas passadas, que curva, cola e desvia a liberdade, tanto quanto a suscita. (SIMONT, 2005, p. 21, grifo do autor). Diante desse fato, urge compreender todas as mediações que se fazem presentes ao longo da construção do indivíduo, mediações que irão dar ao indivíduo uma determinada formação e, com isto, uma determinada leitura de mundo que levará a uma práxis individual específica e única. Nesse sentido, Sartre reconhece o peso do contexto na formação do indivíduo; o que ele não aceita é a possibilidade, em razão desse contexto, de prever que humano está sendo formado e que decisões este mesmo humano tomará ao longo de sua vida. 76 A formação/educação não consegue fazer com que todos interiorizem a multiplicidade do real de uma mesma forma, mas isso não retira dela sua potencialidade de apontar caminhos comuns, projetos comuns. A educação é fundamentalmente um ato de significar o presente a partir da leitura do passado para se projetar o futuro, visando dar conta da rareté que marca toda caminhada do indivíduo. Ela, a educação, é constante afirmação do acontecimento histórico em suas múltiplas dimensões. É a rareté que impede o indivíduo de cair numa explicação de si e do mundo exclusivamente subjetivista e muitas vezes relativista, é ela que viabiliza uma formação coletiva, ainda que cada um se relacione com ela de forma individualizada. Ter um elemento comum, mesmo não havendo determinação absoluta deste para com os indivíduos, é um dado que historicamente precisa ser confirmado. A questão é buscar compreender por que determinado elemento é comum, uma vez que ele só pode ser comum se individualmente cada um aceitá-lo. Existiria, nesse sentido, a possibilidade de uma formação comum, que levasse à aceitação consensual de determinado elemento? Até que ponto o contexto determina minha formação? Qual o limite dessa interferência? Retomemos a ideia apresentada por Sartre de que não há a possibilidade de existirem dois Napoleões, mesmo se o contexto for exatamente igual, não pelo simples fato de ninguém nascer pré-determinado, mas pelo fato de que cada um responde ao meio de uma forma singular. Podemos apresentar exemplos mais objetivos e concretos para analisar a questão do elemento comum, como a falta de água numa determinada região. Ela leva um grupo de pessoas a tomar determinadas medidas comuns e a agir a partir de alguns critérios comuns. Porém, a forma como cada um assimila e prioriza a respectiva situação é bastante particular, ou seja, é impossível estabelecer plenamente um conjunto de práticas e principalmente de ideias que sejam comuns – exatamente as mesmas – para todo o universo de pessoas envolvidas. Segurança, progresso e falta de água existem enquanto objetividade dada para cada existente? Com certeza sim, mas o que importa é como eu lido com eles, como efetivamente eles afetam o meu dia a dia. O homem é ele e sua circunstância, como afirmava Ortega y Gasset, ou ele é a cir- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques cunstância que ele mesmo cria? A circunstância, criada por ele, passa, até certo ponto, a determiná-lo. Sartre tenta dar conta dessa situação, tendo a dimensão ontológica como pano de fundo de sua reflexão. Nesse sentido, ele afirma que ontologicamente não existe o coletivo. Porém, do ponto de vista epistemológico e antropológico, parece que o coletivo tem existência (SARTRE, 1985). Na maioria das vezes, quando se discute a questão da educação, a dimensão ontológica acaba sendo absorvida pelas dimensões epistemológicas e antropológicas, tornando-se ela mesma secundária. De fato, discutir educação não é pensar seu ser, mas determinar um modelo de homem e a partir dele um modelo de teoria do conhecimento, de ciência que dê conta desse homem. Contudo, a partir destas duas dimensões – antropológica e epistemológica – abrem-se novas possibilidades para se pensar a educação numa perspectiva sartreana, sem perder de vista a questão ontológica. Do ponto de vista sartreano, a práxis individual, centrada numa razão dialética, é sem dúvida o ponto de partida para a formação tanto do indivíduo como do coletivo. Em Sartre, práxis e teoria possuem reciprocidade ontológica e a práxis insere-se nas ações coletivas a partir do processo histórico. A práxis individual tem significação para além do individualismo, uma vez que ela expressa os projetos dos homens como seres-no-mundo. Ao escolher, escolho o homem. Nesse sentido, a formação, seja do indivíduo ou do coletivo, é dada por uma práxis individual que adquire significação no mundo concreto, espaço de existência das mediações. Segundo Lima (2003, p. 92), Pela mediação da razão dialética, que leva à inteligibilidade da práxis e da história, os indivíduos saem primeiro de sua alteridade, depois são de novo mediados pela situação criada pela urgência da ação. Surge então alguma coisa de inédito que é o resultado das sínteses passivas que a necessidade exige e sínteses que se efetuam na dupla relação para com o outrem e com a situação em movimento [...] na perspectiva de Sartre, a história não se reduz a procurar ‘motores’, mas tem por fim descobrir a dinâmica própria a cada grupo ou subgrupo na sua configuração particular. O homem não tem como escapar do espaço ao qual pertence, ele é cúmplice da situação que o acompanha ao longo de sua existência. Quer queira quer não, as suas escolhas são suas situações e suas situações são resultados de suas escolhas. Escolher para superar a situação é simultaneamente criar uma nova situação que pode ser melhor ou pior do que a anterior. Porém, a dialética que envolve essa relação, escolha-situação, escapa ao âmbito individual e passa a formar o coletivo. Somos as múltiplas possibilidades de escolhas dos múltiplos espaços e grupos que vivenciamos na nossa existência (SARTRE, 1985). 3. Implicações educacionais O movimento realizado pelo indivíduo em direção à formação do grupo e toda sua complexidade parece ser, independente da vertente filosófica, uma das discussões centrais à filosofia da educação. Educação que se dá na complexidade do real, perpassado pelas singularidades de seus atores e seus diferentes projetos, mas também educação enquanto ação coletiva, ou do coletivo, que se faz a partir de projetos singulares ou educação enquanto ações singulares que constroem o coletivo. Ou ainda, educação enquanto tensão constante entre o singular e o coletivo, vivenciada na dialética da história. Educação enquanto acontecimento que extrapola a pura subjetividade e singularidade, mas que não se deixa absorver por uma coletividade pronta e determinista. São esses os desafios maiores que se fazem presentes ao se pensar a educação no âmbito da filosofia. Possivelmente não seja possível afirmar unicamente uma ou outra posição, mas viver o processo educacional na dialética constante, que supera ao ser superada e é superada ao superar uma dada realidade, ou seja, em que subjetividade e objetividade, singularidade e coletividade movimentam-se e se reconhecem a partir da existência de seu oposto. Todas as colocações anteriores nos levam a algumas questões-chave para se pensar a formação e a educação do indivíduo e do seu grupo. Será que vivemos numa torre de babel, sem a menor possibilidade de compreensão e de construção de um espaço comum? Será o homem em sociedade uma ilusão necessária, mas que não existe efetivamente? As múltiplas possibilidades de ação invia- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 77 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre bilizariam a vida em comum, ou seja, no coletivo? Se as respostas às questões aqui formuladas forem afirmativas, conclui-se que não há possibilidade de formação. Nessa situação é possível afirmar que viveríamos em um puro estado de natureza. Contudo, existe um elemento que se apresenta como delineador de um processo comum. Na singularidade não há formação, toda formação é para o coletivo; mas só há coletivo quando as singularidades estiverem de “comum acordo” com algum projeto. O projeto comum é opção de cada singularidade que se encontra mediada pela mesma coisa, ou seja, o prático-inerte. O prático-inerte é o mesmo para um determinado conjunto de sujeitos singulares, e a decisão de tê-lo como mediação não é tão individual assim. O ônibus é minha mediação para chegar até o local que desejo, mas também se impõe como mediação a todos os demais que também desejam fazer o mesmo trajeto; o agricultor é minha mediação entre mim e o alimento, como também é a mediação de todos os que desejam o mesmo alimento que eu. Assim, a mediação é fundamental na formação do indivíduo e do coletivo. A educação se dá por mediações constantes que se colocam entre a práxis individual, o outro e o mundo. A mediação jamais se torna um determinismo, mas é ela a grande responsável pela possibilidade de relações intersubjetivas, é ela que permeia toda práxis, seja individual ou de um grupo – é bom lembrar que, para Sartre, o sujeito pode ser tanto um indivíduo como um grupo (organismo prático). A educação é a ação de um sujeito, seja indivíduo ou grupo (organismo prático). Essa ação se dá a partir de um fim que visa a construção não só do social, como também do próprio ser. Ela é práxis individual que se dá na história como movimento de superação da alienação e da necessidade. Sendo movimento constante entre a liberdade e a história, a educação não pode ser vista como algo dado externamente, construído de fora para dentro, mas como afirmação da livre ação do homem sobre seu contexto, porém uma livre ação que tem no combate à escassez seu objetivo maior. Nesse sentido, ela pode ser concebida como ferramenta de união entre todas as totalizações em curso (práxis individual) para a superação da rareté. 78 A forma como eu vivencio a mediação é o elemento fundante de minha educação. Nesse sentido, a educação é plena práxis individual permeada pela mediação do prático-inerte, ela é uma circularidade dialética, circularidade centrada na práxis individual que tem no prático-inerte sua “motivação”. A leitura aqui apresentada torna necessário reconhecer que a educação expressa a práxis individual de todos os envolvidos no processo e que buscam, a partir da presença do prático-inerte, estabelecer um projeto comum. Educar é ofertar um projeto comum ou, pelo menos, apresentar uma determinada realidade a partir de uma leitura estabelecida, buscando a adesão de cada singularidade envolvida. É um ato de convencimento do outro que, em última instância, é impossível de se pensar numa filosofia que defende a plena liberdade e a práxis individual; o próprio convencimento é resultado de alguém que, em sua liberdade, se convenceu. É o outro, aquele que está em formação, que reconhece e aceita o mediador entre a sua pessoa e o prático-inerte que se apresenta. Foi afirmado, anteriormente, que no plano ontológico ficaria difícil pensar a educação, uma vez que, ontologicamente, o coletivo não existe e que o ser, em última instância, é pura gratuidade e liberdade – plena práxis individual. Contudo, a despeito da inexistência ontológica do coletivo, ele influência diretamente a práxis individual, conforme já foi visto. Foi afirmado também que a educação poderia ser vista como ferramenta que tem o poder de unir todas as totalizações em andamento, ou seja, todas as singularidades em vista da superação da rareté. Não se vence a rareté individualmente, ela é um problema a ser enfrentado pelo coletivo. Entretanto, no coletivo, trava-se uma luta permanente entre a singularidade e o todo. É justamente aí que a história, dialeticamente, é construída e, com ela, a formação do sujeito. Formação que é diariamente alimentada na luta constante pela liberdade e controle das relações estabelecidas internamente no coletivo. Somos ontologicamente liberdade que, historicamente, tem que ser reafirmada na relação indivíduo-coletivo. É na própria liberdade que o coletivo surge; ele é resultado de um ato livre. O ato livre é fundante do coletivo que, por sua vez, tem origem no trabalho. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques 4. A educação como possibilidade de intermediação entre o individual e o coletivo A partir da compreensão das diferentes categorias trabalhadas e anteriormente expostas, pode-se aproximá-las da educação, mantendo, porém, o necessário grau de liberdade de interpretação, bem como de rigor acadêmico. Pode-se antecipar que, sob determinados aspectos, as categorias sartreanas transpostas para a educação reforçam e aprofundam pontos que já são discutidos e estão presentes em diversos debates sobre educação. Por outro lado, é possível perceber que essas categorias tanto abrem novos pontos de discussão e reflexão como fecham ou delimitam outros (BURSTOW, 2000). A educação, sendo fundamentalmente uma ação humana para humanos, é profundamente marcada pela presença da liberdade, que, na ótica sartreana, apresenta-se não como construção ou conquista resultante da práxis, mas como dimensão ontológica do próprio ser – eu não escolho nem conquisto a liberdade: eu sou livre. Nesse sentido, se a formação não é uma formação para a liberdade, uma vez que eu sou livre, para que a formação? O fato de sermos ontologicamente livres e, portanto, da liberdade não ser uma conquista, não elimina a possibilidade de que, mesmo na liberdade, eu esteja alienado. A liberdade não minimiza toda complexidade e multiplicidade da realidade à nossa volta; pelo contrário, ela nos proíbe de “apelar” para qualquer possibilidade exterior ao próprio homem. Diante dessa constatação torna-se necessário pensar a relação liberdade e alienação. Encontra-se uma leitura um tanto quanto comum de que a educação serve tanto como instrumento de alienação como de superação desta alienação. Se considerarmos esse ponto de vista, faz-se necessário afirmar que a alienação não é impedimento à liberdade, mas sim resultado da própria liberdade. Podemos, na liberdade, optar pela alienação? Ou ainda, o ato livre pode se dar na alienação? Na perspectiva de Sartre, a liberdade não é medida em grau – não se tem mais ou menos liberdade, ou seja, liberdade é um estado de ser do próprio homem, ou eu sou plenamente livre ou eu não o sou, porém esta última possibilidade não existe para o filósofo, que tem na liberdade absoluta e incondicional sua defesa maior. Retomando as duas questões acima apresentadas, pode-se afirmar que a primeira alternativa, a de que na liberdade é possível optar pela alienação, não é válida, uma vez que a alienação não é opção, mas ela é posta pelo estado das coisas; ela se dá no momento em que eu torno o meu ato exterior, ou melhor, no momento em que o meu ato é tornado exterior pelo outro ou pelo grupo, objetivando-se a partir da matéria dada e da força da rareté. A segunda alternativa, a de que o ato livre pode se dar na alienação, parece atender a esta leitura de alienação: sou livre mesmo na alienação, ou melhor, ser livre é ser na alienação. A minha práxis, que é livre por definição, se submete às leis de objetividade que vem da rareté. Consigo manter o ato livre no momento em que se efetiva, mas imediatamente ele se aliena em razão da própria objetividade das coisas e do olhar do outro. Tem-se aqui não uma alienação no sentido estritamente econômico ou sociológico, como em Karl Marx, mas uma alienação ontológica. Não há como eliminar a alienação da sociedade; ela não é um desvio da sociedade, mas sua própria estrutura. A impossibilidade de superar a alienação não retira a importância da educação no sentido de oferecer espaços que garantam a própria vida em sociedade, uma vez que somos, constantemente, ameaçados pela serialidade6 que se produz a partir do prático-inerte; a educação pode efetivar-se como concretização do ato livre que se dá em meio à alienação ontológica da estrutura em que vivemos. Cada práxis individual manifesta um momento de um processo maior de educação, de um processo de totalização. Ela se faz no ato livre e se efetiva no grupo, ou melhor, o resultado do ato singular recai sobre o grupo, visto que, ao escolher, escolho o homem. Essa ideia parece constituir o cerne de uma possível reflexão sobre a educação a partir de Sartre. Ao dizer que cada práxis individual manifesta um momento de um processo maior de educação não se está querendo dizer que existe uma educação anterior e exterior ao próprio homem e que só restaria a ele orientar sua liberdade 6A serialidade é entendida como um modo de relação que é consequência do prático-inerte, onde o sujeito entra num âmbito de relações em que o comportamento está delimitado por atividades sequenciadas e, muitas vezes, numeradas e catalogadas. O sujeito em série está inserido numa rede de relacionamentos onde não possui o controle das condições da relação (LIMA, 1998, p. 69) Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 79 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre na concretização deste modelo pré-determinado. O que acontece é que, como vimos anteriormente, não há liberdade abstrata, ela só é na relação dialética da própria história e da objetividade das coisas. Somos livres, mas ontologicamente somos seres incompletos que se formam no ato livre da existência. Somos o que somos e não o que deveríamos ser. O “dever ser” não ocupa espaço nessa perspectiva, a não ser quando este “dever ser” é o próprio homem. Não temos como não escolher o homem. Somos condenados a escolher o homem em cada escolha livre, em meio a uma alienação permanente que nos impulsiona ao agir. Toda essa reflexão tem como base a defesa sartreana de que ao se falar do humano está se falando em totalização e não em totalidade. A formação é uma atividade que se dá na totalização pela qual se estabelecem relações significantes entre o singular e o coletivo. Lembremos, por exemplo, da necessidade do sujeito plenamente livre reconhecer, diante do prático-inerte, uma necessidade comum e, então, estabelecer um projeto comum. Só se estabelecem projetos comuns quando se alcançou um mínimo de significado comum. A formação do coletivo é uma construção de significados comuns que não deixam de contar com a adesão sempre livre de cada práxis individual. A educação deixa de ter, como muitas vezes a ela foi e ainda é atribuído, um sentido salvífico e idealista. Ontologicamente, minha liberdade não está em risco; sendo assim, ela não precisa da educação como sua salvação ou guardiã. Porém, assim como o homem constrói a história e é por ela construído, ele é senhor de sua educação como plena liberdade, mas é também produto desta educação, enquanto liberdade plena. A afirmação de que mesmo na alienação eu sou livre não elimina a força e o poder que a alienação tem de conduzir o ato livre para resultados que acabam produzindo cada vez mais alienação, tendo-se, assim, um ato livre que não corresponde à realidade, à verdade. Todo ato livre tomado na alienação produz uma realidade cada vez mais desfocada e, com isso, mais alienada. Encontramo-nos diante de um grande desafio que é, por meio da liberdade conseguir superar a alienação dada, não a fim de eliminá-la, pois isto é impossível, mas a fim de dar conta de uma dada realidade que exige uma ação, muitas vezes até em nome da própria sobrevivência. A 80 inércia diante da serialidade representa o maior risco à práxis individual. A série é plena negação da liberdade. Retoma-se aqui a pergunta feita ao longo do trabalho: por que se faz necessário romper com a série em direção ao grupo? Se na série eu sou somente um número, de onde vem a consciência que me impulsiona a sair dela? A formação é superação do dado por intermédio da própria práxis individual e da plena liberdade. Salva-se a liberdade, mas não está vedada a possibilidade de se escolher errado a partir de minha liberdade e do meu contexto, ou seja, a liberdade não representa a garantia de uma escolha melhor, mais justa e correta. A objetividade das coisas impede a subjetividade de optar de maneira mais clara e consciente; eu sou constantemente bombardeado pelo prático-inerte que impulsiona a práxis individual, mas, ao mesmo tempo, a impede de ser expressão plena de uma realidade. A educação aparece primeiramente como possibilidade de intermediar a relação entre o indivíduo e o prático-inerte, ou seja, o mundo das coisas inorgânicas. A primeira relação estabelecida é entre a práxis individual e singular e a objetividade do mundo. A partir da superação da relação aqui mencionada, tem-se o segundo momento, quer dizer, a relação intersubjetiva que se efetiva entre subjetividades diferentes. A forma como eu dou conta da primeira relação estabelecerá, de maneira profunda, a segunda e mais importante relação quando se pensa a educação. É lógico que não se pode perder de vista que o próprio prático-inerte é também produto e produtor da subjetividade, num movimento de síntese permanente. A maneira como cada indivíduo assimila e vivencia sua realidade irá fazer com que as relações intersubjetivas sejam mais ou menos complexas e variadas. Somos afetados diariamente por nosso contexto e muitas vezes manipulados para agir de uma determinada forma diante de uma dada realidade. Ainda que sejamos livres, nem sempre a decisão tomada expressa maior conscientização da realidade. Faz-se necessário que a formação caminhe a fim de dar maior autonomia diante do prático-inerte; contudo, não há nada de mágico que venha facilitar ou possibilitar esse processo: ele só se realiza na caminhada. Autonomia se constrói, se conquista, ao passo que a liberdade é condição ontológica do existir humano. Não sou Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques humano sem ser livre, mas posso ser humano sem ter total autonomia. Não há nenhum momento do coletivo que aponte para uma práxis que seja coletiva; aliás, não há consciência de classe, uma vez que esta ideia supõe um ser que seria superior a cada práxis individual. A própria consciência se constrói no processo de escolha que efetiva os valores de uma dada sociedade. O projeto comum, tão sonhado para a construção de uma sociedade efetivamente melhor, não materializa uma consciência comum, mas conduz a ações individuais que, em sua somatória, podem ou não realizar o projeto. Nessa perspectiva, a educação parece buscar algo que jamais irá alcançar, não por limite dela, mas por estrutura da própria realidade e do próprio ser humano. Retoma-se aqui uma das ideias centrais da Crítica, a ideia de totalização em curso: não há totalidade, mas totalizações. A educação, como processo individual de formação do humano – entendendo humano não como um a priori que nos delimita e nos determina –, só acontece na superação constante do inerte, de tudo o que ameaça a existência e coloca o homem sob o risco permanente de viver em série. A série é a negação primeira de toda existência e, assim, de todo projeto educacional. Na série não há processo de formação, mas de negação de toda possibilidade de formação, uma vez que nela somos apenas números que compõem uma fila e não práxis singulares e livres; nela não há intersubjetividade. Superá-la para viver a plenitude da existência é o grande desafio da educação. Observa-se que a série é resultado do prático-inerte, mas assume uma dimensão que extrapola a pura objetividade, uma vez que é composta por possíveis práxis individuais. Mesmo a série representando o risco maior de toda existência, a questão não é saber por que ela existe, mas sim entender que, mesmo nela, a liberdade permanece. A série não é um existente ontológico, mas um existente histórico, que não pode ser evitado, quer dizer, ela acompanha o homem em toda sua existência. O indivíduo deve ser o foco primeiro e último da educação, pois é ele, e somente ele, que, na singularidade de sua práxis, pode possibilitar mudanças efetivas e estruturais em toda sociedade. Porém, dizer que o indivíduo é o foco não significa defender uma educação individualista, uma vez que o coletivo é uma realidade inegável e que atua junto à práxis individual. O coletivo constitui a expressão maior de uma necessidade comum; só nele nasce um projeto comum que se constrói na e pela práxis individual. O projeto comum coloca um grupo de pessoas numa mesma direção e só poderá ser realizado com a participação efetiva de cada um de seus componentes. Nesse sentido, não há educação individualista; o que existe é a defesa da individualidade no conjunto do campo prático-inerte. O desafio da educação passa a ser afirmar a individualidade no conjunto do coletivo e, ao mesmo tempo, manter o coletivo – instituição ou estado – para não cair na serialidade. Não há indivíduo na serialidade. A educação é movimento, passagem de um estado para outro, superação do dado por meio da práxis individual. Ela permeia toda história e está permeada por ela. História e educação se confundem e se complementam. Temos de vencer o medo, o risco constante de queda, de volta a um estado em que somos meros números entre números. Ser livre numa situação dada é o grande desafio do processo de formação do homem, e ser livre é atuar sobre o meio de forma a dotá-lo de sentido. Um sentido que, ao mesmo tempo em que é individual, possa ser partilhado pelo coletivo. Somente assim se mantém o projeto comum e o próprio sentido da história. As ideias acima trabalhadas nos permitem chegar à afirmação da existência de dois sentidos para a educação que, de certa forma, fazem parte da filosofia da educação há muito tempo. Um dos sentidos diz respeito à educação como formação do homem e o outro como superação do dado para a vida na coletividade. A questão é verificar que contribuições as categorias sartreanas podem dar para os dois sentidos apresentados. Pensando o primeiro sentido, o que trabalha com a ideia de educação como formação do homem, cabe ressaltar que o homem ainda não é; ele se faz ao existir; sua existência é cercada pela coletividade e se dá numa situação. Somos condenados à liberdade, mas também somos chamados a vivenciá-la na responsabilidade que a vida em sociedade nos pede. Se o homem ainda não é, qualquer ideia de formação passa a ter um caráter profundamente histórico e particular, que conduz à ideia de práxis, que só alcança significado no momento de sua re- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 81 A educação entre o singular e o coletivo a partir da crítica da razão dialética de sartre alização. Ela só deixa de ser totalmente particular por causa da presença da rareté e do prático-inerte, que permeiam a história e a liberdade de cada um e com isso criam necessidades comuns que levam a projetos comuns. Com relação ao segundo sentido, o que trabalha com a ideia de que educação é superação do dado para a vida na coletividade, cabe ressaltar que se em Sartre o coletivo não tem existência ontológica, este espaço coletivo, em última instância, é o resultado das práxis individuais e só se mantém enquanto estas se mantiverem. Essa realidade abre duas novas possibilidades de análise. A primeira nos leva a pensar que o coletivo perde importância como fator determinante na formação, uma vez que ele não é um ser, mas a totalidade parcial que se constitui pelas práxis individuais. Por outro lado, o fato dele não ter existência ontológica contribui para atribuir à educação uma importância maior, pois além de formar o homem para a vida na coletividade, ela passa a ser responsável pela própria existência do coletivo. É possível defender a tese de que a educação constitui o movimento dialético capaz de contribuir para que cada sujeito, na sua individualidade e liberdade, reconheça a objetividade das coisas e a presença do outro enquanto terceiro. 5. Considerações finais Formar o homem é abri-lo à sua existência e possibilitar a ele vivenciar toda multiplicidade do mundo, dotando-o de sentido, num movimento permanente de síntese, pela qual a razão dialética é a grande responsável. Essa formação, ainda que se dê num ato pleno de liberdade, é permeada por mediações que, de forma mais direta e efetiva, ou de forma mais indireta e relativa, interferem na construção do próprio homem e, assim, do próprio coletivo. As totalizações que ocorrem ao longo da história são expressões de amadurecimento e, ao mesmo tempo, de maior responsabilidade do homem. Amadurecimento porque toda totalização é o resultado de sínteses sucessivas que realizam a razão dialética no próprio percurso da história, e responsabilidade no sentido de que o homem é chamado a compreender a realidade e a construir a sua história a partir de sua práxis individual. Ex82 periência e conceito assumem praticamente uma mesma dimensão, encarnadas nas mais diversas mediações que se apresentam ao longo do existir. A formação se dá na assimilação e superação das mediações que são vivenciadas na singularidade e na coletividade de cada momento. Torna-se possível, portanto, pensar na existência de uma práxis educativa que viabilize a inteligibilidade da história a partir da abertura constante de projetos pedagógicos que são frutos da especificidade de cada momento que se totaliza na dialética da história e que supera a especificidade da práxis individual rumo a um coletivo, única forma de vencer a rareté e de garantir a própria existência do indivíduo para além do prático-inerte. A irredutibilidade do individual ao coletivo e do coletivo ao individual expressa toda riqueza pedagógica do ato de educar, demonstrando que, levada às últimas consequências, nem uma liberdade puramente ontológica, nem um engajamento histórico por si mesmo traduzem, com exatidão, o sentido do existir humano e do ato pedagógico. Sartre pode não dar conta, de forma conclusiva, da relação entre o individual e o coletivo, mas isso não ocorre por falta de rigor em suas análises e muito menos por incapacidade intelectual. Talvez seja possível afirmar que a aparente falta de conclusão deve-se ao próprio objeto de estudo e ao método adotado, ou seja, o individual e o coletivo caminham na dialeticidade da história e por isso se determinam mutuamente neste processo, ao existirem e se colocarem diante da situação dada, marcada pelo trabalho, pelo prático-inerte, pela rareté. Educar é tender a algo novo, de forma singular, e não realizar um a priori determinista presente em cada um: pode-se dizer que a educação tanto é produto do homem como produtora do homem. Educação é movimento constante do fazer humano e do fazer-se humano, numa determinada situação. Ela se institui na dinâmica entre a liberdade e a situação, entre o dado e a possibilidade de superação, entre a complexidade e multiplicidade do real perpassado pelas singularidades de seus atores e de seus diferentes projetos que podem, na própria dialética do processo, vir a tornar-se comuns a um determinado grupo, uma vez que a práxis individual tem significação para além do individualismo, visto que expressa os projetos dos homens como seres no mundo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 73-83, jan./jun. 2013 Cássio Donizete Marques Estando o indivíduo situado numa história cercada pelo prático-inerte, a mediação assume importante papel na relação intersubjetiva, que sempre se dá de forma mediada. É ela que “provoca” o outro na sua subjetividade para se colocar diante de um terceiro que não é ele e, assim, reconhecer uma situação posta da qual o outro é parte. Nesse sentido, o método progressivo-regressivo viabiliza descobrir a dinâmica própria de cada grupo e assim projetar a educação a partir da forma como eu vivencio a mediação. Sou o único responsável pela minha formação, mas não posso ser ingênuo a ponto de negar toda força da história e do coletivo nela presente. Procuro sustentar a hipótese de que a passagem do individual ao coletivo, a despeito de não se mencionar a ideia de formação e nem de educação, só possa acontecer num processo educacional, no sentido de reconhecimento do mundo, da situação à qual se pertence e do outro que, na sua liberdade, escolhe o homem e, assim, me escolhe. A formação se dá numa dialética constante entre a situação e o projeto, entre minha liberdade e a do outro, entre minha subjetividade e o prático-inerte e, principalmente, na intersubjetividade esboçada pelo processo, uma intersubjetividade permeada pela escassez e vivenciada pela razão dialética. A intersubjetividade acontece no reconhecimento do projeto comum e no encaminhamento dado em direção a este projeto por meio do juramento. É ele que viabiliza uma perspectiva de unidade perante a multiplicidade das coisas, possibilitando a superação da inércia que permeia a tudo e a todos. A relação entre o individual e o coletivo apresenta o conflito permanente de todo processo educacional. Não há como pensar a educação e a formação sem pensar o indivíduo, mas não se pode pensar o indivíduo como pura abstração. Ele só é na situação e na história que, por sua vez, é o resultado de sua livre práxis individual. O coletivo expressa um movimento de formação que resulta da dialética da história e do processo de totalização. O indivíduo não é uma totalidade fechada em si mesma, que se basta a si mesmo, e enquanto relação com o outro e com o mundo das coisas, ele se forma, ou melhor, ele se transforma sem jamais perder sua liberdade. Eu não posso escolher não ser livre como também não posso deixar de dar conta da situação que se apresenta e que exige um projeto de superação. Preciso do outro assim como o outro precisa de mim: a história se faz no coletivo por meio de cada práxis individual. REFERÊNCIAS BURSTOW, Bonnie. A filosofia sartreana como fundamento da educação. Educação e Sociedade – Revista do Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), Campinas, SP, n. 70, p. 103-126, abr. 2000. CABESTAN, Philippe; TOMES, Arnaud. Le vocabulaire de Sartre. Paris: Ellipses, 2001. LIMA, Walter Matias. Liberdade e dialética em Jean-Paul Sartre. Maceió: EDUFAL, 1998. ______. Educação e razão dialética. 2003. 154 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2003. MARQUES, Cassio Donizete. Do individual ao coletivo na crítica da razão dialética de Sartre: perspectivas educacionais. 2007. 126 f. 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O pensamento ético de Emmanuel Levinas abre novos horizontes e delineia novos caminhos na reconstrução de utopias para a História contemporânea. O que durante a Modernidade chegou ao fórum de uma subjetividade absoluta é a constituição de um ideário que vem se desenvolvendo desde o cogito de Descartes e tem seu idealismo máximo em Kant. Essa perspectiva do ego absoluto é classificada por Levinas como egolatria. Da filosofia da alteridade de Levinas derivamos um humanismo e novos conceitos de educação. De Levinas recebemos a interpelação ética, conceito fundamental para uma nova compreensão da educação. A ética de Levinas possibilita o desenvolvimento de perspectivas da práxis libertadora pela educação. Na relação inter-humana, o Outro não é um objeto exposto a ser contemplado, nem tampouco um objeto de conhecimento a ser tematizado, mas ele é um rosto que inquieta, obriga, exige, ordena, enfim, sacode eticamente o eu exigindo-lhe responsabilidade. Educar para a responsabilidade significa sair do estado de indiferença frente às injustiças sofridas pelo Outro, questionar a espontaneidade da liberdade como princípio primordial da consciência moral e escutar a palavra que vem do Outro. Palavras-chave: E. Levinas. Alteridade. Interpelação ética. Educação libertadora. ABSTRACT EMMANUEL. LEVINAS: EDUCATION AND ETHICAL INTERPELLATION This article presents some thoughts on education according to the ideas of E. Levinas. Emmanuel Levinas´ ethical thought opens new horizons and outlines new ways to rebuild utopias for Contemporary History. What for Modernity could be seen as an absolute subjectivity is the constitution of an idea that has been developing since the cogito of Descartes and Kant´s idealism. This view of the absolute ego is classified by Levinas as egotism. From Levinas´ philosophy of alterity, we derive humanism and new concepts of education. From Levinas, we may notice the ethical interpellation, fundamental concept to a new understanding of education. Levinas’ ethics enables the development of prospects of liberating praxis in education. In human relationship, the Other is not an exposed object to be contemplated, nor an object of knowledge to be themed, but it is a face that worries, requires, demands, orders, shakes its self ethically requiring responsibility. Educating for responsibility means leaving the state of indifference to the injustices suffered by the Other, it means questioning the spontaneity of freedom as a fundamental principle of moral conscience and listening to the word that comes from the Other. Keywords: Emmanuel. Levinas. Alterity. Ethical Interpellation. Liberating Education. * Professor Visitante na Universidade Centro Americana de El Salvador, onde leciona Ética no Doutorado em Filosofia. Endereço para correspondência: Antonio Sidekum. Caixa Postal, 60. Nova Petrópolis-RS. CEP: 95150-000. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 85 Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética Introdução A filosofia de Emmanuel Levinas é portadora de inúmeros impulsos para uma atualidade da reflexão ética para nossa época, que se encontra tão conturbada pela violência e crimes contra a humanidade. O pensamento ético de Levinas abriu-nos novos horizontes e delineou novos caminhos na reconstrução de utopias para a História contemporânea. Muitos filósofos da Europa têm-se ocupado em discutir e refletir sobre a nossa época de barbárie, leia-se a história de holocaustos, totalitarismos e supressão da dignidade humana. Esses acontecimentos não se restringiram tão somente à Europa, mas a América Latina também foi levada no repuxe sofrimento da violência política institucionalizada. A violação dos Direitos Humanos tornou-se uma constante, e principalmente pelo fracassado sistema político, que cada vez mais causa a injusta desigualdade social. Face a essa situação, surge a interpelação ética. A filosofia na América Latina opta pela libertação, pelo questionamento ao sistema epistemológico totalitário e unidimensional buscando uma plenitude da vida do ser humano. As categorias da ética de Levinas recebem um eco na América Latina por um pequeno grupo de filósofos engajados com o compromisso histórico da libertação e da promoção plena da dignidade humana. Um dos grandes momentos foi revelar no espaço do horizonte ontológico que o Dasein latino-americano não é mais neutro, como fora pensado na Europa, mas é um Dasein que tem paixões, tem fome física, fome por justiça e grita no desespero por uma interpelação ética. Essa interpelação ética põe em questionamento a subjetividade originada da concepção da Selbstbewusstsein (autoconsciência) sustentada na fenomenologia do espírito concebida pelo idealismo filosófico. Na realidade latino-americana surge a conscientização ( Bewusstseinbildung), de Paulo Freire, que logo vai repercutir em toda a América Latina, principalmente nos países subjugados pelo terrível e sanguinário regime militar nazifascista. As categorias de interpelação ética, conscientização e tomada de consciência histórica tornaram-se paradigmas em nível de categoria de inimigo da lei de segurança nacional. É nesse contexto histórico que o pensamento de Levinas molda-se num novo horizonte de uma utopia concreta que repercutirá 86 de modo especial, pois põe em questionamento o modelo educacional domesticador. A pós-modernidade da filosofia continua a deparar-se com o grande desafio, que é o desafio para encarar suficientemente a problemática da recuperação do sentido originário e da verdadeira autonomia do sujeito humano. O que durante a Modernidade chegou ao fórum de uma subjetividade absoluta é a constituição de um ideário que vem se desenvolvendo desde o cogito de Descartes e tem seu idealismo máximo em Kant. Essa perspectiva do ego absoluto é classificada por Levinas como egolatria. Entretanto, na história da filosofia contemporânea encontra-se E. Husserl, que faz uma releitura da obra Meditações, de Descartes, tratando do sujeito apodítico, dedicando uma análise fenomenológica na obra Meditações Cartesianas. A mesma crítica encontramos em Michel Foucault na obra História da Sexualidade, na qual realiza uma leitura crítica da subjetividade, ou melhor, uma História do Sujeito, conhecida e reconhecida como um início de uma História da Verdade partindo de Platão, passando por Kant, Hegel, Kierkegaard e Heidegger. Foucault evoca a História da Subjetivação do ser humano. Sua filosofia educacional resume-se sobre o saber, o poder e a subjetivação. Emmanuel Levinas: a interpelação ética É preciso sublinhar, novamente, que a grande novidade da filosofia moderna é a descoberta da subjetividade como tal, dando-lhe inclusive a primazia em toda reflexão filosófica. Contudo, a subjetividade era interpretada na forma imanente do “eu pensante”. Isso permitiu uma vasta exploração filosófica do fenômeno do pensamento humano, mas, por outro lado, reduziu a subjetividade ao pensamento abstrato e desencarnado, com todas as consequências para os sistemas filosóficos que nasceram dessa concepção. Foram filosofias abstratas, racionalistas e predominantemente idealistas, com pouco ou nenhum contato com os problemas concretos do homem concreto, situado numa história concreta. Levinas será o principal interlocutor da nossa pesquisa. Nele se delineia uma crítica fundamental que é feita ao analisar-se o projeto da filosofia moderna com intuito de tratar a concepção da sub- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 Antonio Sidekum jetividade ética e do sujeito como responsabilidade política. Um sujeito como sujeitado ao outro e de um sujeito destituído, fraco, de uma fraqueza votada a outrem. Desse modo, a questão da Subjetividade é abordada a partir da Sensibilidade, como pulsão de Alteridade – sensibilidade traumática e vulnerável. Na exposição ao Outro, a subjetividade é portadora de responsabilidade “para-com [...]” e responsabilidade por uma anterioridade anterior a qualquer escolha e deliberação do sujeito responsabilizado (de-posição da soberania autárquica do Eu), até a condição de “refém”, no substituir-se. Pois todo o desenvolvimento da filosofia de Levinas instaura um novo humanismo dentro da perspectiva da afirmação da subjetividade. O eu somente poderá ser afirmado por um princípio anterior à consciência da existência. O ponto arqueológico é uma infinita interpelação ética da alteridade do outro. Essa ética parte da consciência de uma responsabilidade infinita para com a alteridade do outro. Uma ética que tem sua exigência no reconhecimento da alteridade do outro. Levinas é um pensador que vai além das perspectivas da subjetividade, do psiquismo e da egologia da Modernidade. Levinas nasceu em 1905, na cidade de Kaunas, Lituânia; emigrou como estudante universitário para a cidade de Estrasburgo, na França, e foi estudar em Freiburg in Breisgau, tendo visitado as aulas de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Sua tese de doutorado foi sobre a teoria da intuição em Husserl. Tendo passado pelo campo de concentração, tornou-se depois diretor do Colégio Israelita de Paris e, a seguir, professor na Sorbonne. Suas principais obras, conhecidas entre nós, são: Totalidade e Infinito e Outro modo de ser, ou além da essência. Essas obras serão os principais textos utilizados na elaboração de uma filosofia da educação para a fundamentação de uma educação ética e libertadora. Para compreender melhor o pensamento filosófico de Levinas, é preciso ater-se a uma fidelidade hermenêutica de sua obra, o que implica uma transparadigmatização de categorias utilizadas no contexto de sua ética e subjetividade. Levinas permeia todo o seu pensamento com uma infinita experiência da alteridade absoluta por meio do paradigma da interpelação ética. A Ética e a subjetividade manifestam-se pela epifania do rosto do Outro, cujo olhar coloca em total questionamento a minha subjetividade por meio do clamor: Tu não matarás. Essas categorias são desconhecidas no pensamento grego e, consequentemente, na tradição do pensamento ocidental, principalmente da Modernidade. Elas tecem toda estrutura do pensamento de Levinas, expressando por meio dessa nova hermenêutica a alteridade infinita e absoluta do outro. Com essas categorias Levinas avança além do pensamento dialógico de Martin Buber, em sua dialogicidade da relação recíproca do “eu-tu”, para ir ao encontro da misteriosa relação instaurada pela justiça na interpelação ética. A subjetividade , segundo Levinas, acontece como Responsabilidade “para-com [...]”. Seguindo os passos da construção feita por Kant, o conceito de sujeito proporciona uma unidade das faculdades cognoscitivas, a qual se considera por sua parte como a base fundamental para a reconstrução racional da validez científica, e a liberdade é o necessário na concepção da subjetividade. “Kant define o sujeito como liberdade que, por sua vez, funda a autonomia do sujeito. Para Levinas, liberdade e autonomia não são mais que secundárias e só aparecem no nível da fenomenalidade posteriormente.” (CARRARA, 2010 p. 76). Pois, segundo Levinas, a subjetividade estabelece-se além da egologia, da autonomia absoluta do eu e da experiência na ipseidade ou do em-si e do para-si, ou, nas palavras de Levinas, de uma egolatria. Deve-se levar em consideração uma nova introdução para se pensar a subjetividade e alteridade. Trata-se de uma passividade anterior a toda receptividade. A subjetividade é transcendente e é o Bem antes do ser. É diacronia. São essas as principais teses do La Substitution, do livro Autremment qu’être. A condição da subjetividade humana é possibilitada por meio da relação do eu com o outro, na qual está implicada a relação que se estabelece já anteriormente a qualquer arché, ou seja, a subjetividade existe já anteriormente à arché, ela é an-ârquica. Mesmo antes da minha existência, já na subjetividade, o meu eu é infinitamente responsável pelo outro. Levinas busca, por um lado, a intemporalidade e a temporalidade das circunstâncias privilegiadas do vivido em que se constitui a temporalidade, segundo Rosenzweig (1988). Emmanuel Levinas vai ao encontro do modo como Rosenzweig pensa o passado, isto é, a Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 87 Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética partir da consciência da transcendência da criação; é o presente vivido a partir da escuta e da acolhida da revelação; e o futuro, a partir da esperança da redenção, elevando assim essas referências paradigmáticas bíblicas do pensamento a um nível da própria temporalidade da subjetividade. Ética e subjetividade Levinas expressa a subjetividade a partir da ideia da relação infinita do inter-humano e com a ideia do infinito. A subjetividade se expressa por meio da condição de ser refém do outro, o que implica uma ruptura da totalidade e a instauração da experiência do outro como uma experiência da transcendência. Assim, a minha subjetividade realiza-se concretamente na história por meio da relação com o outro, que se manifesta por meio de seu rosto, cujo olhar é uma constante interpelação para o ato da radical justiça: Tu não matarás. A subjetividade acontece na existência humana mediante a relação intersubjetiva e na exigência infinita de justiça para com o outro. Nessa perspectiva em que se desenvolve a experiência da alteridade, a subjetividade será despertada para a vida ética, da infinita responsabilidade para com a alteridade do outro. Em todos os juízos sou sempre o sujeito (Subjekt) determinante da relação que constitui o juízo. Que entretanto, eu, que penso, sempre tenha que valer no pensamento como sujeito e algo que não poder ser considerado simplesmente como predicado inerente no pensamento, é uma proposição apodítica e mesmo idêntica; mas ela não significa que eu, enquanto objeto, seja um ente subsistente para mim mesmo, ou uma substancia. A última afirmação vai muito longe e por isso também requer dados que não se encontram de modo algum no pensamento e que talvez (se considero simplesmente o sujeito pensante como tal) sejam em número maior do que se possa jamais encontrar nele. (KANT, 1983, p. 203, grifo do autor). E segue a concepção da relação do si-próprio, conforme o pensamento de Søren Kierkegaard: O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação 88 propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. (KIERKEGAARD, 1979, p. 34, grifo do autor). Todavia, a subjetividade, além de ser autoconhecimento, autoconsciência e relação com a interioridade, é fundamentada e sustentada, segundo Levinas, a partir da relação ética com o outro. A subjetividade concretiza-se como fenômeno histórico a partir da experiência de transcendência. Nisso reside o fundamento da ética da alteridade. Levinas compreende a subjetividade como vivência da interioridade. A subjetividade é essencialmente uma experiência e consciência do gozo interior, e ela caracteriza-se pela unicidade. O eu quer viver. E viver na subjetividade significa experienciar a separação. A separação significa que a subjetividade plenifica-se no egoísmo e no ateísmo. É, antes de tudo, a experiência da solidão incomensurável da criatura face ao ato criador, a vivência da separação do criador do mundo e do outro. Entrementes, na subjetividade, essa separação supera-se pela transcendência e pela infinita relação com a absoluta alteridade do outro. Em Levinas, o “Outro” existe independentemente da intencionalidade do “eu”. É totalmente diferente do “eu”. Totalmente livre diante do “eu”. O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é simples inverso da identidade nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo imperialismo do mesmo; outro de uma alteridade que constitui o próprio conteúdo do Outro; outro de uma alteridade que não limita o mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. (LEVINAS, 1988, p. 26). A categoria alteridade é um dos aspectos centrais do pensamento de Levinas, pois sua compreensão possibilita o melhor entendimento das manifestações do ser. Para ele, a alteridade do outro só é garantida, pois se manifesta independentemente do eu. Ao introduzir a perspectiva da alteridade, o rosto se torna a manifestação do outro. Rosto para Levinas é concebido como um dos critérios Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 Antonio Sidekum fundamentais da ética. Não é apenas um conceito, um tema para ser analisado. É, por excelência, a expressão de alguém sendo, portanto, manifestação do outro. “O rosto é a própria identidade de um ser” (LEVINAS, 1997, p. 59). A partir do outro que vai em direção ao “outro” em mim, Levinas contrapõe-se à filosofia ocidental, cuja relação entre o eu e o outro é uma relação ontológica (LEVINAS, 1988). O rosto fala, interpela a responsabilidade do eu. Sua nudez mostra aquilo que realmente é. Portanto, a ética para ele é a filosofia primeira e não a ontologia. Somente uma ética que parta do outro pode abrir espaço para a dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu, o qual dá sentido ao próprio eu (LEVINAS, 1988). Faz-se necessário deixar-se interpelar pelo clamor do outro que requer resposta, acolhimento, direito de ser diferente, único, outro em sua alteridade absoluta. Entendo a interpelação ética a partir do clamor pelo direito de ser outro, por parte dos oprimidos. É na alteridade absoluta do outro que se exerce a justiça. Falamos do outro, cujo rosto é desmascarado pelo simulacro da imagem unidade e totalizante da unidimensionalidade da propaganda utilizada pela mídia, tendo sua voz calada pela provocação do discurso da moral da ambiguidade e pela mentira utilizada pela dominação das formas novas do imperialismo contemporâneo, que se lê como sendo o culto às guerras, cuja justificativa não é a defesa dos direitos humanos fundamentais, mas ela é uma nova forma de um fundamentalismo sustentado pelo terror e pela dominação e de um materialismo econômico, cuja ontologia e invisibilidade é a violência exercida pela inserção da economia capitalista, que, sem piedade e com total força destrutiva da ‘mão invisível’ do mercado, atua sobre a vida humana tanto individual como comunitária. (SIDEKUM, 2003, p. 14). A vida do ser humano acontece sob o firmamento da transcendência; sua tentativa é romper com a totalidade e poder irromper com a experiência do Infinito. A subjetividade face à transcendência define-se como refém e substituição do outro. O eu é infinitamente responsável pelo outro. Essa responsabilidade não poderá ser institucionalizada ou fundamentada por leis, mas é a interpelação do outro que provoca a minha experiência de subjetividade. É a necessidade do outro que provoca a minha vulnerabilidade e faz-me irromper na relação com a justiça. O ser humano responde, e a resposta sempre é uma resposta para o outro, ele é interpelado eticamente pelo outro. “A responsabilidade pelo outrem – responsabilidade ilimitada que a rigorosa contabilidade do livre e do não-livre não mede mais, reclama a subjetividade como refém insubstituível que ela desnuda sob o Eu numa passividade de persecução [... ] em Si.” (LEVINAS, 1974, p. 159, tradução nossa). Dessa forma, Levinas assume a transcendência de um modo radical; isto lhe foi possível pelo fato de ter questionado a tradição do pensamento ocidental e ter introduzido uma inovação na filosofia pelas categorias e paradigmas bíblicos. Essa seria também uma crítica radical à filosofia da Modernidade, que mantém como pontos irradiadores o cogito e o psiquismo a partir da totalidade absoluta do eu. A concepção de subjetividade em Levinas não é fragmentada, mas é exatamente a síntese da relação e da experiência da radicalidade da fundamentação última do ser humano. Educação e alteridade ética Levinas procura compreender a fenomenologia de Husserl com a finalidade de compreender a experiência metafísica. A fenomenologia husserliana tornou possível a passagem da ética para a exterioridade metafísica. O que há de fundamental e inovador no pensamento de Levinas é o seu caráter ético. O humanismo de Levinas sustenta-se em cima da interpelação ética do outro, que se manifesta em sua alteridade sob vários aspectos, como, por exemplo, na experiência concreta existencial pela fenomenologia da corporeidade, da proximidade e da relação concreta. Entretanto, a revelação ou a epifania do outro não é meramente fenomenológica, e sim manifestação de sua absoluta alteridade. A tematização da alteridade quer dizer, antes de tudo, incluir a ética numa nova perspectiva filosófica. A relação com o outro realiza-se na forma da bondade que se chama justiça e responsabilidade infinita para com outro e se concretiza historicamente numa experiência de transcendência, solidariedade e responsabilidade pelo outro. A alteridade é uma experiência de interpelação ética. Essa experiência manifesta-se pelo rosto do outro. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 89 Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética Com o conceito da alteridade, Levinas dimensiona sua crítica ética à filosofia da Modernidade. A concepção fundamental da imagem do homem levinasiano será correlacionada com o “humanismo do outro homem”, com a ética e a solidariedade como fundamento originário da ética da subjetivação e da libertação. Levinas acentua a dimensão do absoluto da subjetividade, da subjetivação e dos polos do eu e do outro. O outro é outro, isto é, unicidade; é exterior, é estrangeiro para mim, não será alcançável, pois encontra-se na distância infinita em relação com o meu eu. Ele é sujeito absoluto. Contudo, a subjetividade do outro se apresenta diante de mim como o desprotegido e sem forças; ele apresenta-se em sua plena nudez diante do meu “eu”. O outro confirma a minha unicidade. Ele encontra-se na exterioridade de toda relação de poder e de liberdade do meu eu. A ideia do infinito, em conjunto com a ideia da bondade e a ideia do desejo, desperta a subjetividade do outro. Essa responsabilidade antecede o próprio eu, da relação intersubjetiva segundo Kierkegaard. Levinas fundamenta, por meio da ideia do infinito, sua crítica à totalidade. A totalidade da egolatria será rompida a partir da subjetividade com a interpelação ética. A subjetividade aparece como abertura para a exterioridade, sem poder escapar da relação assimétrica, pela qual, por seu lado, se manifesta ao outro de maneira diacrônica como culpada e responsável eticamente. Temos vários projetos que pretendem discutir a temática sobre a alteridade ética e subjetividade na educação a partir da ética da responsabilidade do Outro em Levinas. E para sublinhar bem essa perspectiva, alguns pontos requererão cada vez mais uma reflexão mais profunda e podem servir como parâmetros e como respostas éticas aos enormes desafios que a história atual desencadeia tanto na educação para a paz, como para a superação da negação da dignidade humana. O ser humano vivencia a presença concreta do outro que se encontra na exterioridade e com isso mesmo na interpelação ética. O que seria a vivência do fato da angústia existencial segundo Kierkegaard e da apelação para uma subjetivação humana na perspectiva da História do sujeito em Foucault. Nesse sentido, a proximidade no horizonte do ser-para-o-outro não tem nenhuma delimitação 90 espacial e temporal, porém abarca a totalidade da humanidade. O ser-para-o-outro refere-se a um saber moral, isto é, ao pensar moral, à bondade, à diaconia, à substituição do outro e à justiça. A relação com o outro, no ser-para-o-outro, plenifica-se, fundamentalmente, no ser da comunidade, o que corresponde à responsabilidade ética para com o outro, como uma experiência da alteridade. Assim, nessa breve introdução ao pensamento ético de Levinas, vamos destacar os desafios éticos inerentes ao processo educativo. O desafio atual fundamental é a formação dos professores em e para Direitos Humanos, destacando-se a problemática principal da ética da alteridade na diversidade cultural, resgatando a alteridade absoluta do Outro que se revela como um rosto, segundo a filosofia de Emmanuel Levinas. Aqui se apresenta o tema dos Direitos Humanos desde a complexidade de sua fundamentação filosófica e das políticas públicas para a formação dos professores. Ao tratar do discurso sobre os Direitos Humanos surge imediatamente a dificuldade encontrada no pensamento filosófico ocidental no que diz respeito à alteridade do Outro, na sua absoluta alteridade e que é, por sua vez, reduzido pelo discurso filosófico ocidental ao Mesmo. Surge a cada passo a dificuldade em reconhecer a alteridade. O pensamento filosófico ocidental passa a ter sua egolatria rompida pela fenomenologia da alteridade e da interpelação ética, que são temas centrais do pensamento de Levinas e de seus discípulos, principalmente os que atuam com o compromisso da filosofia libertadora e da educação popular na América Latina. É nessa perspectiva que se quer fazer uma leitura política da educação a partir de Emmanuel Levinas. Como sabemos, a segunda metade do século XX despertou para uma ênfase universal dos Direitos Humanos, dando destaque especial ao direito à educação, e contemplou o Direito à diversidade Cultural. A diversidade cultural não é inata, pois, enquanto processo, ela acontece lado a lado à construção das identidades. A interação é um pressuposto para que a identidade se constitua como realidade. O outro possibilita a intermediação para o reconhecimento de si mesmo, de seu eu. Por isso, tanto a identidade quanto a diversidade cultural não se constituem mais uma realidade no isolamento e na ipseidade moral. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 Antonio Sidekum Conclusões Observamos, entrementes, que a diversidade cultural sofre variações significativas de um contexto para outro. O que determinada cultura concebe como valor, outra poderá interpretar como não valor. O conjunto de elementos que constituem uma cultura, pelos quais os indivíduos e os grupos se diferenciam dos demais e por eles são reconhecidos, depende significativamente do lugar que estes ocupam no grupo e das formas de relações que são estabelecidas entre si e com os outros. Afirma-se, assim, que toda a diversidade precisa ser entendida em uma perspectiva relacional. Com esses elementos pode-se sintetizar dialeticamente que: 1. Nesse sentido, Levinas chama atenção para o discurso de dominação desenvolvido pelo pensamento ocidental, fundamentado na filosofia grega. Recordando-se de que a ideia do Ser predominou na Antiguidade e na Idade Média como um substitutivo da ideia do eu. E com o início da Modernidade, continua mantendo o centro unificador e totalizante que não lhe permite o confronto e valorização da diversidade, concebida como uma abertura ao outro em sua alteridade infinita. E esta última situação é cada vez mais desafiada e inclusive negada pelo processo da globalização da economia e da erradicação da simbólica do ethos cultural. É assim que o pensamento da alteridade esboça várias entradas filosóficas sobre a Universalidade e a Diversidade Cultural, que se apresentam como desafios à educação da atualidade. Segundo os primeiros parágrafos da Introdução do livro Totalidade e Infinito, de Levinas, isso é, pela sua formação na experiência no seio familiar, na educação religiosa durante a adolescência, e pela sua vivência como professor que tematiza no contexto existencial para uma Diversidade Cultural. Com isso, se finaliza essa parte abordando o contexto dos Direitos Humanos e o reconhecimento da Dignidade Humana. 2. Após essas considerações, podemos abordar a proposta Filosófica de Emmanuel Levinas na perspectiva da Educação libertadora. Nesta proposta vai ser estudada a ética como filosofia primeira. Levinas traz-nos um redimensionamento da ética. Poderíamos dizer que em Levinas emerge um novo humanismo, que é o humanismo do outro homem. Este Humanismo repensa o ser a partir do outro. Aqui reside a inovação provocativa do pensamento de Emmanuel Levinas que terá eco especial na filosofia e pedagogia da libertação na América Latina, pois trata da Interpelação ética, da Alteridade e da Responsabilidade ética infinita diante do Rosto do Outro. Com isso, o centro de nossa reflexão pretende sair da pedagogia do mesmo para a práxis de uma pedagogia da alteridade: na perspectiva de Direitos Humanos. 3. O grande momento de nossa reflexão filosófica vai-se centralizando no tema da formação de professores em e para Direitos Humanos e questiona: É possível “formar” o outro sem reduzi-lo ao mesmo? Como alcançar uma formação humana na experiência histórica da nossa diversidade cultural e no direito à diferença? Como enfrentar os desafios dos professores: sujeitos históricos e promotores de Direitos Humanos? 4. Nas considerações finais, queremos permanecer com a ocupação dos seguintes questionamentos: Em que medida é possível pensar a Universalidade dos Direitos Humanos frente à Pluralidade e Diversidade Cultural? Como garantir a singularidade cultural e a identidade de um povo e, ao mesmo tempo, possibilitar a sua inserção no processo de universalidade? Quais seriam os critérios para garantir essa possibilidade? Considera-se, mesmo de forma precária, que essas questões por nós apontadas continuam a revelar a complexidade que envolve a questão da universalidade dos Direitos Humanos frente às diferenças culturais, frente às fracas políticas públicas executadas em nosso país, no que diz respeito à uma política educacional séria e libertadora. Jamais teremos um reconhecimento em plenitude existencial da dignidade humana enquanto o sistema político Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 91 Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética for um sistema dominado pelo pensamento do Mesmo e pelas falácias do discurso da globalização. É por isso que continuamos nossa crítica e proposta de permanecer com o desafio de sensibilizar as sociedades, culturas e grupos sociais para que possibilitem aos seus integrantes o desenvolvimento de perspectivas teórico-práticas dos Direitos Humanos, tendo em vista uma efetiva transformação no modo de conceber e tratar a pluralidade e diversidade cultural. No entanto, é nosso interesse refletir em que medida a formação de professores na ótica levinasiana poderia contribuir com esse processo. E seria nossa proposta: como na sequência dos trabalhos, adentraremos com maior frequência na filosofia de Levinas, na qual poderemos visualizar com maior clareza sua contribuição, tudo isso ao propor uma ética que tenha como ponto de partida a afirmação ética do outro, sendo esta archê capaz de abrir espaço para a dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu. Por isso, vamos centralizar nossa atenção na relação da dignidade humana com a questão dos Direitos Humanos, buscando compreender as suas origens e seus princípios ou fundamentos que possibilitem pensar o reconhecimento da alteridade do ser humano que, para Levinas, ocorre no encontro do face-a-face, o qual desperta à interpelação ética que vem da exterioridade, do rosto do outro. Por isso, a filosofia levinasiana alerta para a necessidade ética de se repensar a filosofia e a educação num patamar no qual se presume também uma formação dos professores que parta da alteridade ética do outro, caso contrário, a possibilidade de continuar convertendo-se a cultura em mercadoria poderá levar à barbárie, de acordo com Adorno (1995, p. 22). Pensar a formação de professores na perspectiva de e para Diretos Humanos com base em Levinas supõe reconhecer esta dimensão do rosto que nos interpela eticamente para inaugurar os processos formativos e educacionais, tendo em vista a superação da indiferença e a prepotência em relação ao outro, tanto por parte do educador quanto do educando. Na relação inter-humana, o Outro não é um objeto exposto a ser contemplado, nem tampouco um objeto de conhecimento a ser tematizado, mas um rosto que inquieta, obriga, exige, ordena, enfim, 92 sacode eticamente o eu exigindo-lhe responsabilidade. “[...] Educar para a responsabilidade significa sair do estado de indiferença frente às injustiças sofridas pelo Outro, questionar a espontaneidade da liberdade como princípio primordial da consciência moral e escutar a palavra que vem do Outro.” (ALVES, 2011, p. 144). Como escreve Alves (2011, p. 153), a violência gera uma perversão das relações entre o Mesmo e o Outro, pois faz desaparecer o caráter horizontal da inter-relação, que é suscitada por uma relação hierárquica de dominação-submissão entre o agressor e a vítima. [...] A violência é versátil, multiforme, manifesta-se de muitas maneiras e reflete muitas e distintas tendências e processos da nossa sociedade; é ubíqua, aparece em todas as partes; é uma fonte de poder e uma mercadoria que se compra e vende no mercado. A violência gera sempre um estado de ansiedade e insegurança, e às vezes quadros depressivos que dificultam gravemente a atividade de ensino e aprendizagem dos que a padecem. No entanto, em nossa compreensão, a complexidade não impede a construção democrática de alicerces que podem ser consensualmente definidos e aceitos pelas culturas e nações, respeitando-se assim suas particularidades e autonomia enquanto sociedades portadoras de uma determinada cosmovisão. Um passo significativo nessa construção é a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada por unanimidade pelos 181 Estados-Membros da UNESCO, na Conferência Geral ocorrida em novembro de 2001, em Paris. No artigo primeiro do referido documento se declara que “a diversidade cultural é patrimônio comum da humanidade” (UNESCO, 2001). A Declaração reconhece o papel frutífero do diálogo intercultural e refuta a noção de um conflito de civilizações. Insiste no fato de que, apesar da diversidade cultural, compartimos uma humanidade comum e, portanto, não somente uma responsabilidade e um respeito para como o Outro, mas também, a crença na capacidade de compreender e amar o Outro. “[...] A humanidade é uma, mas suas culturas são numerosas. Deve-se ter presente que cada vez que uma cultura desaparece, a comunidade, em particular, e a humanidade, como um todo, empobrecem” (MONTIEL, 2003, p. 44). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 Antonio Sidekum E o desafio para se sensibilizar a sociedade, as culturas e os grupos sociais permanece para que seus integrantes possam alcançar o desenvolvimento de perspectivas teórico-práticas que dizem respeito aos direitos humanos, tendo em vista uma efetiva transformação no modo de conceber e tratar o direito humano fundamental da pluralidade e diversidade cultural. Essa é uma clara contribuição da filosofia de Levinas ao propor uma ética que parte do outro, sendo esta capaz de abrir a história para a dignidade do outro enquanto radicalmente diferente do eu. Para nós, a atenção pela dignidade humana na questão dos Direitos Humanos deveria procurar compreender as suas origens e seus princípios ou fundamentos para pensar o reconhecimento da alteridade do ser humano que, para Levinas, ocorre no encontro do traço infinito do face-a-face, o qual desperta para a interpelação ética vindo da exterioridade, isto é, do rosto do outro. Pois, para Levinas: A apresentação do ser no rosto não tem o estatuto de um valor. O que chamamos rosto é precisamente a excepcional apresentação de si por si, sem paralelo com a apresentação de realidades simplesmente dadas [...]. O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta como a opinião ou a autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. (LEVINAS, 1988, p. 181). O rosto como tal sempre possui algo a mais que a face. Nele pode ocorrer uma manifestação que é única, singular. No rosto ficam registradas as experiências da vida por meio de cicatrizes, pele enrugada, olhares e demais expressões da interioridade. Diferentemente das coisas, o rosto, pela sua exterioridade, testemunha uma interioridade. Essa alteridade, por sua vez, jamais poderá ser representada ou substituída, simplesmente acolhida ou negada. Por isso, a relação exigida aí é especificamente ética, não ontológica. De Levinas aprendemos a consolidar a interpelação ética com a epifania ética do rosto humano e a dignidade humana, assim a dignidade humana é concebida na anterioridade absoluta da consciência do eu e de toda instituição política: Como já vimos, a dignidade humana não provém do Estado e nem é criada pela ordem jurídica ou simplesmente atribuída ao ser humano. A dignidade humana fundamenta-se no ser sujeito e pessoa, do ‘ser humano’ como tal. Ela implica numa existência anterior ao princípio da ordem jurídica ou do Estado. Ela interpela eticamente pelo reconhecimento da alteridade absoluta. Ela é conquista, afirma uma nova consciência histórica para ser humanamente no mundo social e político. É anterior a qualquer direito estabelecido pelo Estado. Assim, com toda a certeza, poderemos afirmar que o Estado de Direito não outorga ao ser humano sua dignidade, mas ele deverá garanti-la. (SIDEKUM, 2011, p. 40, grifo do autor). Aqui se requer um breve excurso filosófico, pois em Kant encontramos a inviolabilidade da dignidade humana como fundamento principal dos Direitos Humanos, extinguindo todo tipo de absolutismo, de cientificismo e de tecnocracismo. Proporciona espaço à tradição filosófica nos campos da metafísica e da ética, as quais voltam a figurar no processo de conscientização relacionado aos direitos humanos. Para Kant, a dignidade humana não pode ser considerada um valor material ou monetário, nem mesmo comparada a um objeto qualquer. Por isso, “a dignidade de uma pessoa não pode ser mediatizada pelo conjunto de uma escala de valores objetivos, mas é fundamentada na autonomia moral da pessoa [...].” (SIDEKUM, 2011, p. 83). A observação de Kant pode contribuir na identificação das motivações que, na atualidade, geram as discussões acerca dos direitos e da dignidade humana. Por isso, percebemos que a razão de toda a discussão em torno da dignidade humana, enquanto princípio fundamental dos direitos humanos, reside na luta empenhada por tantas pessoas que, ao longo da história e ainda hoje, reivindicam um reconhecimento de suas alteridades, expressas no direito à cidadania, ao ser livre, com acesso à saúde e a formação, tendo, enfim, tudo aquilo que fundamentalmente garante e potencializa a vida. Com isso finalizo, pois, com as palavras de que “a dignidade humana fundamenta-se na ética. Impõe-se como a condição fundamental de toda possibilidade para as práticas das virtudes e do exercício da cidadania” (SIDEKUM, 2011, p. 43). E, por fim, penso que seria bem recebida a acolhida de uma ênfase dada à leitura política da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 85-94, jan./jun. 2013 93 Emmanuel Levinas: educação e interpelação ética interpelação ética de Levinas para servir como pressuposto ético da filosofia da educação. Com tudo isso, apontamos, fundamentalmente, para a nossa situação educacional dos Direitos Humanos no Brasil. Sabemos que isso não será uma tarefa fácil, em virtude das falácias dos discursos ideológico-político-partidários, das vaidades pessoais dos dirigentes políticos educacionais e das dificuldades que surgem num bojo da autêntica proposta de uma reconstrução da utopia. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. ALVES, Marcos Alejandre. Pedagogia da alteridade: o ensino como acolhimento ético do outro e condição crítica do saber em Levinas. (Tese de doutorado) Pelotas: Universidade Federal de Pelotas - UFPEL, 2011. CARRARA, Ozanan Vicente. Levinas: do sujeito ético ao sujeito político – elementos para pensar a política outramente. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano. Porto: Tavares Martins, 1979. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. ______. Autrement qu’être ou au-delá de l’essence. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974. ______. Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlerisme. Paris: Rivages Poche, 1997. MONTIEL, Edgar. A nova ordem simbólica. In: SIDEKUM, Antonio. Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 15-58. ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der Erlösung. Frankfurt: Suhrkamp, 1988. SIDEKUM, Antonio. Interpelação ética. 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Durante esse período – tal como revelam suas obras autobiográficas –, ele estava submetido a duras acusações dos enciclopedistas, e o ato de caminhar acaba se convertendo na atividade mais adequada, visto que lhe permitia pensar, relembrar o passado e, ao mesmo momento, satisfazer o seu eu doído, triste e desprezado pela alta e ilustrada sociedade francesa. Nesse sentido, a forma de transitar rousseauniana foi solitária – uma espécie de autoexílio das cidades e dos aparelhos sociais – e caracterizada pelo contato com a natureza, como bem demonstra sua nova e principal ocupação: a herborização. Por outro lado, este artigo pretende realizar uma reflexão sobre a tendência educativa que surgiu no final do século XIX (neonomadismo pedagógico), já que a ação pedestre desse autor, que podia ser concebida como uma excursão, é um claro antecedente do Romantismo pedagógico. Palavras-chave: Rousseau. Caminhar. Neonomadismo pedagógico. Excursão. ABSTRACT THE ACT OF WALKING AND EDUCATION: 300 YEARS AFTER ROUSSEAU´S BIRTH This paper aims to explore the way of walking of Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). It is organized as follows. On the one hand, it indicates the last stage of his life as the one that makes possible more explicitly to observe his true Homo Viator. Over this period, as we can see in his autobiographical works, he began to fall out with the Encyclopedists, and the act of walking became a very appropriate activity as it allowed him to think and to recall the past and, at the same time, to satisfy his hurt, sad and unvalued ego by the high French society. Hence, the Rousseaunian way of walking was lonely, a kind of self-exile from the cities and the social apparatus - characterized by the contact with nature, his newest main occupation (herborization). On the other side, this article tries to make a reflection on the educational trend that emerged in the late nineteenth century (pedagogical neonomadism), because the pedestrian action of this author, which could be conceived as an excursion, is a clear antecedent of the pedagogical Romanticism. Keywords: Rousseau. Walking. Pedagogical Neonomadism. Excursion. * Doutorando em Pedagogia. Professor de História da Educação na Universidad de Barcelona. Endereço para correspondência: Universidad de Barcelona. Pg. Vall d’Hebron, 171. Campus Mundet. Edifici Llevant. 3ª Planta. Despatx 332. CP: 08035 Barcelona, Espanha. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 95 O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau Abertura: quando caminhar é muito mais que “deslocar-se a pé de um lugar a outro” Caminhar – ao lado de outras derivações, como caminhada, caminhante ou encaminhar – provém de caminho, palavra de origem céltica cuja primeira forma foi cammīnus. Este termo foi alheio ao latim arcaico e clássico, mas não é possível dizer o mesmo em relação à sua penetração no latim vulgar, já que, com exceção do romeno (plimbáre), deixou descendência em todas as línguas românicas: caminar (espanhol e catalão), caminhar (português), cheminer (francês), camminare (italiano) e camiñar (galego). Vale dizer que o seu abasto fraseológico e semântico é mais restrito em francês e espanhol, dado que marcher e andar costumam ser vocábulos de uso mais recorrente. De todas as formas, não há dúvida de que em todas as línguas latinas apresenta o mesmo significado. Quanto à sua sinonímia, destaca-se a significativa quantidade de vocábulos semelhantes com os quais se relaciona, tais como dirigir-se, mover-se, deslocar-se, avançar, circular, andar, rodar, passear, explorar, vagar, errar, marchar ou peregrinar. Dito isso, pode-se afirmar que – desde que os nossos antepassados Australopithecus afarensis conseguiram manter a coluna reta – caminhar é a ação humana utilizada para o deslocamento de forma autônoma. Portanto, é bastante possível que caminhar seja a atividade mais ordinária e natural que os seres humanos podem realizar. Não obstante, se se observa mais atentamente, pode-se constatar que a nossa maneira de nos deslocar, ao longo da história, tranformou-se em algo mais que dar um passo atrás do outro. Tanto é assim que se tornou objeto de estudo de algumas disciplinas científicas. Entre outras, convém destacar a Antropologia física ou biológica, que estuda o milagre do bipedismo na família denominada hominídeos (Hominidae) e as suas consequências sociais e culturais na evolução da espécie humana; a Psicologia evolutiva, que examina o processo que necessita uma pessoa para conseguir manter a postura ereta durante os primeiros anos de vida; e algumas disciplinas das Ciências da Saúde, que estudam a marcha 96 humana normal e a patológica. Mesmo que cada uma represente uma maneira bem distinta de abordar o deslocamento humano, o conjunto dessas disciplinas permite que o ato de caminhar seja considerado uma categoria. Nesse sentido, também é necessário mencionar uma série de autores que tomaram consciência do próprio movimento e passaram a considerar o ato de caminhar uma autêntica experiência estética. Entre outros, cabe citar os passeios românticos do poeta William Hazlitt (Maidstone, 1778 – Soho, 1830) ou do escritor Robert Louis Stevenson (Edimburgo, 1850 – Upolu, 1894), as explorações naturalistas e humanistas por territórios exóticos de Alexander von Humboldt (Berlim, 1769 – Berlim, 1859), o andar sem rumo pela capital da Modernidade de Honoré de Balzac (Tours, 1799 – Paris, 1850) ou Charles Baudelaire (Paris, 1821 – Paris, 1867) e as viagens que permitiram a Patrick Leigh Fermor (Londres, 1915 – Dumbleton, 2010) e a Bruce Chatwin (Sheffield, 1940 – Nice, 1989) metamorfosearem-se e conhecerem outras culturas. Em realidade, poderiam ser citados outros tantos exemplos – como as figuras arquetípicas de Abraão, Ulisses ou Eneias – porque, como todos sabem, cada pessoa tem uma maneira singular de caminhar o mesmo caminho. Em decorrência do abordado até o momento, pode-se intuir que o autor aqui analisado – Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 1712 – Ermenonville, 1778) – também foi um pensador que realizou longas caminhadas ao londo da sua trajetória vital. Sua forma de executá-las, inclusive, apresenta claras conotações educativas, como se verá a seguir por meio da apresentação das práticas pedagógicas pedestres e de plenair que se originaram graças ao naturalismo pedagógico romântico. Este artigo abordará, portanto, um dos pensadores mais importantes da História da Filosofia a partir de seus passeios (promenades). Aspectos biográficos de Rousseau Sólo he viajado a pie en mis días de juventud, y siempre con delicia. Pronto los deberes, los asuntos y un equipaje que llevar me obligaron a dármelas de señor y a utilizar vehículos, a los que conmigo Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 Jordi Garcia Farrero subían atormentadoras preocupaciones, apuros y molestias; mientras que antes en mis viajes no sentía otra cosa que el placer de caminar, desde entonces no he sentido otra cosa que la necesidad de llegar. (ROUSSEAU, 2007c, p. 91). Tal com indica a citação acima, a vida de Rousseau pode ser dividida em três etapas bem definidas. A primeira seria sua infância e juventude (1712-1742); depois, a época em que viveu em Paris entre os enciclopedistas e publicou suas obras mais emblemáticas (1742-1762); e a última, caracterizada pelo nascimento de sua forma de transitar (as promenades) e, consequentemente, pelo retorno à natureza por meio da herborização (1762-1778). Rousseau nasceu em 1712 em Genebra, filho de Isaac Rousseau (1672-1747), um relojoeiro, e de Suzanne Bernard (1673-1712), que morreu no seu nascimento por culpa de uma febre puerperal. Por isso, a tia e o pai do pequeno Rousseau tornaram-se responsáveis por sua educação. No que se refere ao papel de seu progenitor, que tentou transmitir-lhe um espírito livre e republicano sem adotar nenhum tipo de educação sistemática, vale ressaltar que, praticamente todas as tardes, o obrigava a ler algum romance sentimental da época e obras de Plutarco, já que, para a Genebra calvinista, cultivar tais hábitos era sinônimo de ser um cidadão bem educado. Dez anos depois de seu nascimento, e em razão da saída forçada de seu pai da cidade suíça por causa de uma grave discussão com um antigo chefe dos exércitos do eleito da Saxônia, a tutela de Rousseau foi transferida às mãos de seu tio. Gabriel Bernand toma certas decisões – como a de torná-lo aprendiz de gravador ao lado de um mestre tirânico chamado Abel Ducommun – que, de acordo com o próprio filósofo genebrês, levaram ao fim da serenidade de sua vida infantil; em outras palavras, ao início de sua etapa de mentiras e roubos. Em 1728, no entanto, deixou de sofrer a brutalidade de seu mestre, já que, depois de encontrar as portas da cidade fechadas quando voltava de uma excursão com uns amigos, Rousseau decidiu distanciar-se de seu país e de sua família para começar uma nova vida tão miserável como independente. Dessa maneira, começaram suas conhecidas viagens pe- destres pelo continente europeu1 que, muito tempo depois, foram motivo de interessantes reflexões como estas: “Lo que más lamento de los detalles de mi vida cuyo recuerdo he perdido es no haber hecho diarios de mis viajes. Nunca pensé tanto, ni existí tanto, ni viví tanto ni fui tanto yo mismo, si es que puedo hablar así, como en los que hico solo y a pié.” (ROUSSEAU, 2007c, p. 207). Fruto dessa errância, que tinha o claro propósito de buscar uma vida melhor e mais plácida, Rousseau conheceu vários nobres e preceptores, mas a figura de Françoise-Louise de la Tour (Tour de Pil, 1699 – Annecy, 1762) – também conhecida como Mme. de Warens – foi a que teve maior incidência em sua trajetória vital, principalmente entre 1728 a 1741, como mostra a constante lembrança dessa perceptora ao longo da vida de Rousseau. Não há dúvida de que na maneira de ser e fazer de Mme. de Warens – mais adiante conhecida como a amada Maman – encontram-se os principais motivos pelos quais o pensador suíço sempre manifestou que tinha boas lembranças de sua infância e juventude. Ela o tutelou e lhe proporcionou uma educação acurada, iniciando-o no catolicismo2 e o ajudando em seu interesse pela música3. Dessa perspectiva, convém fazer uma pausa e destacar sua estada – ao lado de Mme. de Warens – numa pequena e acolhedora casa de Les Charmettes. Entre 1738 e 1740, Rousseau, que voltou a desfrutar de uma vida sedentária depois de vários anos de errância contínua, idealizou, para ele mesmo, um plano de vida que lhe permitiu ler e instruir-se como autodidata. Não há dúvida de que, durante aqueles anos, teve um progresso intelectual considerável. Se se observa atentamente seu 1Com o propósito de demonstrar que foi um grande caminhante, indicar-se-ão, por ordem cronológica, todas as viagens a pé que fez entre 1712 e 1742: Genebra–Confignon (6 km); Confignon–Annecy (39 km); Annecy–Turim–Annecy (416 km); Annecy–Lion–Annecy (268 km); Annecy–Genebra–Nyon–Freiburg–Lausanne–Neuchâtel (160 km); Boudry–Berna (57 km); Berna–Soulere (700 km); Soulere–Paris (700 km); Paris–Lion (400 km) e, por último, Lion– Chambéry–Les Charmettes (100 km). Vale a pena lembrar que a maioria dos seus deslocamentos vinham motivados pelas aulas de música que ministrava. 2 De acordo com o segundo livro da obra Les confessions, sua conversão aconteceu na igreja metropolitana de São João de Turim, em 1728. 3 Não é de se estranhar, então, que mais tarde estreassem diferentes óperas das quais ele era o autor. Entre outras, podem-se destacar Les Muses Galantes (1745) e Devin de village (1752). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 97 O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau plano de vida é possível entender e corroborar esta última afirmação: antes de tomar café da manhã, dava um passeio e fazia suas orações; depois lia um pouco de algum clássico (Locke, Descartes, Leibntz...). Após um tempo, estudava geometria, latim, fisiologia ou astronomia. Almoçava e, mais tarde, inspecionava as flores e estudava ou lia, atividades que realizava com mais facilidade que quando as fazia durante a jornada matutina. Efetivamente, foram tempos de meditação no recesso, de estudo da natureza e de contemplação do universo, que forçaram um solitário a elevar-se continuamente em direção ao autor das coisas e a buscar com uma doce inquietude o fim de tudo o que via e a causa de tudo o que sentia. Mais tarde, decide romper definitivamente com o mundo de sua amada Maman e muda-se para Paris a fim de apresentar um novo sistema de notação musical4 na Academia, que lamentavelmente foi rejeitado, e lançar-se à “torrente del mundo”5, como se verá mais adiante. Rousseau entra então no entorno dos ilustrados em qualidade de copista de música e, dessa maneira, começa a estabelecer relações com Denis Diderot (Langres, 1713 – Paris, 1784) e Jean d’Alembert (Paris, 1717 – Paris, 1783). Embora logo tenha recebido a incumbência de escrever alguns artigos sobre música na Encyclopédie, seus primeiros anos na capital do Hexágono não foram nada fáceis do ponto de vista material e, por esse motivo, foi obrigado a aceitar o trabalho de secretário do embaixador francês na capital da ópera italiana, Veneza. Tal como expressa a citação que encabeça este parágrafo, o deslocamento que fazia em carroça de cavalos em direção à cidade italiana possivelmente seja o melhor exemplo da segunda etapa que acabava de começar na vida do filósofo genebrês, em que buscava fama e posição social. Não obstante, depois de dezoito meses, voltou a Paris em razão de desentendimentos com o cônsul e conheceu Thérèse Levasseur (Orléans, 1721 – Le Plessis, 1801), que logo seria a mãe de seus cinco filhos e, tempos depois, sua esposa. Em outra ordem das coisas, a detenção de Diderot em razão da publicação de Lettre sur 4 Em poucas palavras: substituir a linguagem musical cifrada por uma de números. Ver Ferrer (2010). 5 Expressão retirada da obra Las ensoñaciones del paseante solitario (ROUSSEAU, 2008, p. 50). 98 les aveugles à l’usage de ceux qui voient per les encara autoritats de l’Ancien Régime (1749) coincidiu com o momento em que o nosso autor se encontrava mais ligado às ideias dos ilustrados franceses. Tanto é assim que Rousseau o visitou quase todos os dias enquanto esteve preso no Chateau de Vincennes. Foi nessa época que, num dos deslocamentos pedestres feitos entre Paris e Vincennes (10 km), o autor suíço teve uma visão súbita – conhecida como Illumination de Vincennes – sobre as contradições do sistema social tal como demonstrou o Discours sur les sciences et les arts (1750), em que afirma que as Ciências e as Artes não fizeram progredir a felicidade humana (ROUSSEAU, 1974, 2006). Como reconhecimento a essa obra, ganhou o prêmio da Académie Dijon daquele ano. Alguns anos depois voltou a inscrever-se no prêmio com um texto que se titulava Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes (1755)6, fruto da inspiração da viagem de sete ou oito dias que fez com sua esposa a Saint-Germain. Naquela ocasião, não teve tanta sorte porque a instituição douta citada não lhe concedeu a premiação. Mesmo assim, mais tarde voltou a provar o sucesso e as boas críticas com seu primeiro romance, Julie, ou, la nouvelle Héloïse (1761) (ROUSSEAU, 2007b). Logo, no entanto, ficou claro que Rousseau não havia nascido para aquele mundo de tanta pompa e ornamento. Há unanimidade entre os estudiosos de sua obra e vida sobre o fato de que, para os enciclopedistas, a ruptura oficial foi causada pelas ideias que defendeu em L’Émile ou de l’éducation (1762) e Du contrat social (1762), as quais, posteriormente, evidencia em Letter to D’Alembert on the Theatre (1758)7. A isso deve-se acrescentar que, em 1765, tomou duas decisões que os ilustrados dificilmente entenderiam: continuar com o seu ofício de copista de música e abandonar Paris – ou, 6 Vale a pena lembrar que esse texto é considerado o primeiro em que o nosso autor aborda o tema do Homo naturālis com o objetivo de resolver o problema do direito natural e da desigualdade política. Fruto de tudo isso, Voltaire lhe escreveu uma carta dizendo que se tratava de um livro contra o gênero humano que dava vontade de andar de quatro quando se lia. 7 Nesta obra epistolar, realiza uma crítica sem restrições contra o teatro burguês. Frente a essa manifestação artística, o autor pré-romântico era mais partidário de festas de caráter lúdico ao ar livre, já que promoviam a inclusão de todos os cidadãos e os bons costumes, ao invés do deterioramento das virtudes (ROUSSEAU, 2009) . Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 Jordi Garcia Farrero tal como dizia ele mesmo, o redemoinho da alta sociedade – para viver ao lado do bosque Montmorency, já que tinha certeza de que sua preferência pela vida rural estava arraigada no fundo da sua sensibilidade. Em outras palavras, a ideia de que a natureza sempre lhe havia dado mais instantes de profundas alegrias e felicidade tiveram mais força que o desejo de chegar à glória e conquistar o reconhecimento na cidade. Para concluir essa apresentação sobre a trajetória vital de Rousseau, será analisada sua última etapa (1762-1778), caracterizada pelas consequências da condenação e proibição de seus dois grandes livros (Émile e Du Contrat Social) pelos poderes civis e eclesiásticos de Paris e de Genebra. Durante esse período, foi obrigado a abandonar precipitadamente a cidade de Les Llums porque as autoridades correspondentes emitiram uma ordem de busca e captura. Por tudo isso, passou a ser conhecido como um “fugitivo nesse mundo”, já que voltou a vagar pelo continente europeu, buscando asilo em Yberdon8, Môtiers-Travers (Principado de Neuchâtel)9, Île Saint-Pierre, Paris, Londres e, finalmente, Ermenonville, onde morreu, em 1778. Por outro lado, convém advertir que a vida de Rousseau durante essa época também esteve sumamente condicionada pelas críticas constantes que recebia do mundo que havia rejeitado (os philosophes) quando decidiu sair de Paris. No entanto, a situação tornou-se ainda pior por causa de uma publicação de Voltaire (Paris, 1694 – Paris, 1778) que denunciava o maior pecado de Rousseau como pedagogo da Modernidade: o envio de todos os seus filhos a um hospício chamado Casa de Enfants Trouvés10. A partir de então, tal como 8 Não se pode esquecer que, anos mais tarde (1805-1825), essa localidade suíça converteu-se no centro do pestalozzismo organizando uma escola de ensino primário e secundário para meninos, uma escola para meninas, uma escola normal para professores e um centro de formação profissional. Como se sabe, a obra de Johann Heinrich Pestalozzi (Zuric, 1746 – Brugg, 1827) foi muito influenciada por Emilio, o De la educación. 9Tal como explica em Las Confesiones (ROUSSEAU, 2007c, p. 727), foi então quando abandonou a indumentária típica do mundo ilustrado e adotou o armino. Graças ao pintor Allan Ramsay (Edimburgo, 1713 – Dover, 1784), há um retrato que o demonstra (National Gallery Scotland,1766). 10Trata-se do opúsculo El sentiment dels ciutadans (Le sentiment des Citoyens, 1764). Nesse sentido, também é interessante ver Boswell (1997). ele mesmo constata, Rousseau passou de ser uma pessoa incômoda no circuito intelectual da época, chegando a considerar-se o “horror da raça humana”. Tendo em conta esse contexto, o nosso autor, em vez de escrever uma carta para responder a Voltaire, como havia feito tantas vezes anteriormente, decidiu começar uma nova empreitada: escrever uma obra autobiográfica. Não obstante, vale dizer que, ainda que seja constituída por Les confessions (1782-1789), Dialogues de Rousseau juge de Jean-Jacques (1782) e Les Rêveries du promeneur solitaire (1782), faz-se referência somente ao primeiro e ao último escrito, pois foram os que, mais tarde, se tornaram referentes do gênero da autobiografia moderna (ROUSSEAU, 2008). Chegados a esse ponto, é o momento ideal para apresentar brevemente Les confessions e Les Rêveries du promeneur solitaire, obras que tem dois propósitos bem diferentes e, como se comprovará mais adiante, são básicas para conhecer a paixão que tinha Rousseau pelo ato de caminhar. Quanto à primeira obra, diferentes aspectos podem ser destacados. Tal como fez Santo Agostinho (354430) quando caía o Império Romano, o pedagogo moderno recuperou a arte de se confessar publicamente com o objetivo de preservar sua figura. Defendia que a única maneira de se proteger contra os ataques severos que recebia era mostrando sua verdadeira natureza. Dessa maneira, esse livro – dividido em duas partes, e cada uma delas dividida em seis capítulos – abarca todos os acontecimentos que sucederam desde o seu nascimento até 1765 e, sem dúvida, poderia ser concebido como um retrato um pouco intencionado em muitas ocasiões porque, entre outros objetivos, tentou construir mitos como o da infância perdida, aproveitando suas lembranças. No que se refere à outra obra autobiográfica, publicada postumamente, será feito somente um comentário, visto que, na apresentação da forma de transitar que será abordada posteriormente, estará muito presente por ser o livro que mostra mais explícitamente o objeto de estudo deste artigo. Sendo assim, Rousseau, nos inacabados Les Rêveries du promeneur solitaire, que está dividido em dez passeios em vez de capítulos, já não tem nenhuma pretensão de estabelecer um diálogo com Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 99 O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau os leitores. Ao contrário, é um texto que fez para ele mesmo e pensado para sua evasão em direção a uma ordem mais natural e menos contaminada pela sociedade. O caminhante solitário que rememora e herboriza Vê-se, então, que a obra Les Rêveries du promeneur solitaire confirma o que foi dito nessas últimas páginas: Jean-Jacques Rousseau sempre foi um grande caminhante. Para muitos, é considerado um dos primeiros a praticar esse exercício em sua época, já que seus contemporâneos – os ilustrados – habitualmente preferiam circular com carroças de cavalos durante seus deslocamentos. Para expressar melhor e confirmar a tese mencionada, é preferível deixar falar o próprio autor: “la marcha tiene algo que anima y aviva mis ideas: cuando estoy quieto apenas puedo pensar; mi cuerpo ha de estar en movimiento para poner en él mi espíritu” (ROUSSEAU, 2007c, p. 207). É portanto nessa última obra autobiográfica que se pode perceber perfeitamente a figura desse filósofo genebrês em movimento e, sobretudo, o método que utilizou durante aqueles anos (17761778). A citação seguinte o explicita: Pues habiendo formado el proyecto de describir el estado habitual de mi alma en la posición más extraña em que mortal alguno podrá encontrarse nunca, no he visto manera más simple y más segura de ejecutar esta empresa que llevar un registro fiel de mis paseos solitarios y de las enseoñaciones que los llenan cuando dejo mi cabeza enteramente libre y a mis ideas seguir su inclinación sin resistencia ni traba. Esas horas de soledad y meditación son las únicas del día en que soy yo plenamente y para mí sin distracción ni obstáculo, y en que verdaderamente puedo decir que soy lo que la naturaleza ha querido. (ROUSSEAU, 2008, p. 33). Ainda assim não se pode esquecer que justamente naquela época o nosso autor era uma pessoa atormentada pelas disputas e acusações feitas pelos enciclopedistas e, por esse motivo, decide dar pequenos passeios para estar longe das cidades e dos aparelhos sociais e, igualmente, para lembrar do passado com o fim de satisfazer o seu eu doído, 100 triste e menosprezado pela alta sociedade francesa. Tinha certeza que os negócios de Diderot e Voltaire o haviam levado a começar o exercício de se perguntar “quem sou eu?” (ROUSSEAU, 2008, p. 17). Tendo em conta que a principal finalidade de suas obras autobiográficas foi descobrir o tipo de homem que não havia sido desfigurado pela cultura e pelas artes, cabe enunciar uma série de particularidades que constituem os passeios rousseaunianos. Para começar, pode-se destacar o fato de que estava acostumado a caminhar pelas trilhas de forma solitária. No entanto, a solidão rousseauniana, que naquela época converteu-se num dos seus principais ideais, passou por diferentes etapas, tal como indica Todorov (1987). Inicialmente, era uma solidão que queria recuperar a sociedade; logo se transformou num tipo de solidão que desaprovava totalmente todo o social. Depois, como indica Les Rêveries du promeneur solitaire, aparece uma solidão feliz11, quando Rousseau percebe sua situação como uma oportunidade par dar vida e sentido ao que se encontra gravado no Templo de Delfos, “gnosi seauton”. Depois, como é lógico, a natureza também desempenhou um papel muito relevante. É possível dizer que as árvores e os animais foram seus únicos acompanhantes enquanto caminhava. Podem demonstrá-lo suas grandes descrições paisagísticas12 e seus herbários (Hortus siccus, jardim de plantas secas). É evidente que o prazer de descobrir e colher plantas foi muito importante para Rousseau durante seus últimos anos de vida (1764-1778)13 porque 11Nesse sentido, convém lembrar escritores e caminhantes tão importantes como William Hazlitt ou Robert Louis Stevenson, já que caminharam de uma maneira muito parecida, como nos mostra a seguinte citação: “uma excursão a pé, para aproveitá-la devidamente, deve ser feita em solitário. Se se faz em grupo, ou inclusive em casal, já só de nome não é uma excursão; é algo distinto, mais parecido com um piquenique” (HAZLITT; STEVENSON, 2003, p. 38). 12No quinto passeio de Las ensoñaciones del paseante solitario (ROUSSEAU, 2008), o pensador suíço faz um retrato bucólico da Ilha de Saint Pierre (o lago Bienne, Suíça). Convém recordar, igualmente, que a pintura, uns anos mais tarde, produziu uma série de obras de montanhas, vales, mares e entardeceres, ou seja, sobre a relação do homem com a natureza. Como se sabe, um dos melhores paisagistas da época foi Caspar David Friedrich (Greifswald, 1779 – Dresde, 1840). Desse autor, pode-se destacar El atardecer (Schweinfurt, 1821), visto que retrata dois caminhantes – com semelhanças mais que evidentes com o nosso autor – contemplando a natureza em meio a um bosque esteticamente sugestivo. 13Por ordem cronológica, pode-se citar alguns dos lugares onde realizou a atividade de herboritzar: Serralada del Jura, Val-de-Travers, ilha de Saint Pierre, Strasbourg, Derbyshire, Lion, Grenoble, Bourgoin, Monquin e entorno de Paris (bosques de Boulogne, Fontaine- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 Jordi Garcia Farrero lhe permitiu esquecer “seus inimigos” (Diderot e D’Alembert) e, como consequência, sonhar com a purificação da sua vida que, afinal de contas, era seu objetivo principal naquela época. Por sua vez, é importante destacar que a Botânica é uma ciência que foi favorecida pela vontade prerromântica de querer conviver harmoniosamente com a natureza, tão típica da sociedade do final do século XVIII. Nesse sentido, não se pode deixar de citar autores tão importantes para a disciplina mencionada como Adanson, Jussieu ou Buffon. De toda maneira, é bem possível que o mais importante de todos tenha sido Carl von Linné (Rashult, 1707 – Uppsala, 1778), que com a obra Systema naturae (1735) fundou a taxonomia moderna (nomenclatura binomial e sistema de classificação sexual das plantas). Sendo assim, cabe ressaltar que Rousseau, se comparado ao importante botânico sueco, deu um sentido diferente ao trabalho de fazer conjuntos de herbários recoletados durante suas passeios botânicos. Tratava-se, então, de um estudo ocioso feito por um solitário sexagenário que amava a natureza sem propósitos instrumentais (não admitia que a Botânica fosse dividida em teórica e prática) e, por esse motivo, a apresentou como uma scientia amabilis para todas as pessoas sensíveis e curiosas pela variedade e complexidade do mundo vegetal. Segundo esse filósofo, o mais importante dessa disciplina era saber observar a natureza e apreciar sua beleza em vez de aprender todos os nomes do reino vegetal de memória. Podem comprovar essa última ideia as obras Fragments pour un dictionnaire des termes d’usage en botanique (1781), com um total de 184 verbetes, e Lettres sur la botanique, na qual, com um espírito de divulgação científica indiscutível, apresentou distintas famílias do reino vegetal a petite Madelon, Marguerite-Madeleine Delessert (1767–1839) (ROUSSEAU, 2007c, p. 508). Por último, faz-se necessário lembrar que o ato de devanear (les Rêveries) também se configurou como uma das singularidades mais relevantes do universo de Rousseau em movimento. Para o autor de Du contrat social, o devaneio sub divo, que o bleau, Ermenonville e Montmorency). Além disso, no livro Cartas sobre Botánica (ROUSSEAU, 2007a), se pode ver uma estátua (p. 6) e um gravado (p. 12) que demonstram sua dedicação. permitia entreter-se e descansar, ao contrário da atividade reflexiva, foi a ação mais natural para ele durante aqueles dias. Não há nenhuma dúvida de que, a despeito da situação em que se encontrava, passear lhe permitiu pensar, lembrar, organizar todas as suas vivências e tirar particulares conclusões a partir de ideias leves e doces, que não agitavam muito o fundo da sua alma. Por último, cabe acrescentar que essa atividade imaginativa era passiva porque as ideias sucediam sem obstáculos (sensibilidade física), mas, ao mesmo tempo, exatamente o oposto, porque era o guia de suas meditações (LÓPEZ HERNÁNDEZ, 1989, p. 161). Em síntese, pode-se afirmar que as promenades solitárias de Rousseau consistiam em um devaneio, ou uma evasão pelo imaginário, e uma descoberta constante de plantas do entorno de Paris ou da ilha de Saint Pierre. Nesse contexto, há uma passagem cuja reprodução integral é inevitável: Nunca he podido hacer nada pluma en mano delante de una mesa y mi papel. Es durante el paseo en medio de las rocas y los árbores, es de noche en mi cama y durante mis insomnios cuando escribo en mi cérebro: júzguese con qué lentitud, sobre todo para un hombre absolutamente falto de memoria verbal, y que en su vida no ha podido retener de memoria seis versos. (ROUSSEAU, 2007c, p. 153). Final: o encontro entre o ato de caminhar e a educação Para finalizar este artigo, expor-se-ão duas breves considerações. Por um lado, será realizado um exercício histórico com a finalidade de identificar diferentes experiências educativas que têm importantes semelhanças em relação à forma de transitar de Rousseau, e, por outro, será sugerida a possibilidade de estabelecer um território comum tanto para as experiências educacionais, como para as ações pedestres. Primeira consideração. É importante destacar que L’Émile ou de l’éducation é o sinal de saída à pedagogia moderna e, ao mesmo tempo, a apresentação de um método que tem por objetivo chegar à pureza de Emílio a partir da supressão de toda a maldade acumulada pela cultura artificiosa e a desigualdade humana. Por meio da narração da trajetória vital de um indivíduo totalmente desvinculado Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 101 O ato de caminhar e a educação: a propósito dos 300 anos do nascimento de Rousseau de sua história, família e sociedade14, Rousseau tem a pretensão de reconciliar o homem com a natureza (Retournons à la nature!); promover um otimismo antropológico (o homem é bom por natureza e é a civilização que o corrompe) frente a um pessimismo social e histórico; exaltar o exercício físico e o contato com a natureza (o gosto pelo plenairismo) e, além disso, construir uma pedagogia vivida e espontânea para que a criança possa experimentar por ela mesma e não por meio de outras pessoas ou de livros (individualismo). Tal concepção naturalista da educação, que, sem dúvida, é completamente moderna e, mais ainda, espiritualista, teve muito boa aceitação – com lógicas restrições (o papel da sociedade e da cultura) – entre os denominados pedagogos do romantismo (Pestalozzi ou Fröebel) e, posteriormente, entre os principais representantes do movimento renovador da Escola Nova (Montessori, Ferrière, Decroly ou Dewey, entre outros). Podem comprová-la as diferentes práticas educativas que desenvolveram na natureza (colônias escolares, escoteirismo, banhos de mar, alpinismo, excursionismo etc.) sob a influência do naturalismo pedagógico romântico do final do século XIX e início do século XX. Dito de outra maneira, foi a institucionalização do retorno à natureza a partir de modelos pedagógicos lúdicos e pedestres. Vistas assim as coisas, fica claro que o livro pedagógico romanceado citado anteriormente colocou sobre a mesa dois aspectos fundamentais: a importância do meio e do corpo (em movimento) do educando (a educação física) nos processos de formação. É por esse motivo que, justo neste momento, vale a pena lembrar a velha discussão entre o nomadismo e o sedentarismo pedagógico 14 Vale recordar que esse livro está dividido em cinco partes e cada uma delas corresponde a um estágio evolutivo concreto do personagem (ROUSSEAU, 2003). A primeira parte, que abarca a vida de Emílio desde o seu nascimento até os dois anos de edade, aborda a experiência sensível do mundo, as três educações e a missão nutricional e educativa das mães. Depois é o momento que começa a configurar a sensibilidade, a desenvolver-se corporalmente e, além disso, leva à prática a educação negativa. Na terceira parte, vê-se um Emílio adolescente (12 a 15 anos), quando inicia a culturalização (introdução da educação intelectual e leitura de seu primeiro livro, Robinson Crusoe). Mais adiante (dos 15 anos ao casamento), narra a necessidade de iniciar a educação sexual, moral, social e religiosa. Por último, descreve a entrada de Emílio na sociedade, acompanhado de sua esposa, Sofia. Aliás, antes de se casar, Emílio fez uma viagem de dois anos pelo continente europeu com a intenção de conhecer povos, governos e costumes. 102 surgida na Europa no início do século passado em razão do estilo de vida urbano.15 Segunda consideração. É fundamental dizer que este artigo, que teve a pretensão de apresentar a vertente mais pedestre do pedagogo da Modernidade, também quer evidenciar que o ato de caminhar pode ser entendido como uma interessante práxis educativa, dado que nela mesma coincidem o método e a finalidade e, nesse sentido, o destino pelo qual se começa uma travessia representa uma ocasião perfeita para iniciar e viver um processo formativo. Não obstante, vale a pena lembrar que, hoje em dia, o fato de passear parece haver ficado subordinado a outros discursos, como o médico (um exercício a mais para perder peso, reafirmar os músculos, elevar a frequência cardíaca ou melhorar a tolerância à glicose); o do crescimento pessoal (dar um passo atrás do outro se converte em um tipo de terapia para aprender a ter controle da própria vida, reduzir ansiedades, melhorar o estado depressivo ou a fadiga emocional); ou o das atividades de lazer (caminhar ou trilhas), que gradativamente se colocaram como muito mais relevantes que o própio ato em questão. Por tudo isso, pode-se considerar que um dos legados da vida e da obra de Rousseau também poderia ser a possibilidade de repensar as caminhadas como uma atividade formativa de primeira ordem. 15Trata-se de uma época em que a excessiva concentração de população nas cidades estava gerando precárias condições de vida (falta de consciência higiênica; alimentação pobre; déficit de salubridade nas ruas e casas; falta de assistência médica; pobreza) e, consequentemente, uma alta taxa de mortalidade. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 Jordi Garcia Farrero REFERÊNCIAS BOSWELL, James. Encuentro con Rousseau y Voltaire. Barcelona: Mondadori, 1997. FERRER, Anacleto. Rousseau: música y lenguaje. Valencia: Universidad de Valencia, 2010. HAZLITT, William; STEVENSON, Robert. El arte de caminar. México, DF: UNAM, 2003. LÓPEZ HERNÁNDEZ, José. La ley del corazón: un estudio sobre J.-J. Rousseau. Murcia: Universidad de Murcia, 1989. 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Recebido em 06.11.2012 Aprovado em 23.01.2013 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 95-103, jan./jun. 2013 103 Jorge Miranda de Almeida A EDUCAÇÃO COMO ÉTICA E A ÉTICA COMO EDUCAÇÃO EM KIERKEGAARD E PAULO FREIRE Jorge Miranda de Almeida* RESUMO Kierkegaard e Paulo Freire se posicionam criticamente em relação às concepções vigentes, nas respectivas épocas, da educação e da ética. Elas estão a serviço do poder e do ajustamento social; mas, dialeticamente, será a partir da educação e da ética que os homens em processo de inconclusividade e de inacabamento poderão construir estratégias para superarem as barreiras que impedem a construção da dignidade humana e da justiça social. Este artigo estabelece um confronto e um encontro entre os dois pensadores do profundo do humano. Eles não se conheceram, mas dialogam por meio dos discípulos kierkegaardianos como Sartre, Jaspers, Heidegger, MerleauPonty, Gabriel Marcel, entre outros que são muito familiares a Freire, e por causa dessa comunicação indireta as principais categorias freireanas como subjetividade, intersubjetividade, dialogicidade, alteridade, amorosidade, educação, ética, homem, inacabamento, inconclusividade, responsabilidade, transcendência e dialética, têm uma interface e uma proximidade que permite, mantendo as diferenças, um encontro fecundo e frutífero para discutir novas possibilidades e potencialidades para a ética e para a educação. O objetivo central deste artigo é refletir, a partir dessas categorias, se e em que medida é possível a educação como ética e a ética como educação. E para a realização desse escopo utilizou-se a metodologia bibliográfica e analítica. Palavras-chave: Kierkegaard. Paulo Freire. Segunda ética. Educação. ABSTRACT EDUCATION AS ETHICS AND ETHICS AS EDUCATION IN KIERKEGAARD AND PAULO FREIRE Kierkegaard and Paulo Freire stand critically on the current concepts of education and ethics in the respective periods. They are at the service of power and social adjustment; but dialectically it will be from education and ethics that men in the process of inconclusiveness and unfinishedness may build strategies to overcome obstacles that hinder the construction of human dignity and social justice. This article establishes a confrontation and a meeting between the two thinkers of the depth of human nature. They have not met, but dialogue through their Kierkegaardian disciples as Sartre, Jaspers, Heidegger, Merleau-Ponty, Gabriel Marcel, and others that are very familiar to Freire. And because of this indirect communication, the main Freirian characteristics as subjectivity, intersubjectivity, dialogism, alterity, lovingness, education, ethics, man, incompleteness, inconclusiveness, responsibility, transcendence, dialectic * Professor titular do Departamento de Filosofia e Ci^ncias Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (DFCH-UESB). Professor permanente do programa de Pós-graduação (doutorado e mestrado) em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB. Professor convidado do Programa de Pós-graduação em Linguística da UESB. E-mail: [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 105 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire have an interface and a proximity which allows, keeping the differences, a fruitful and prolific meeting to discuss new possibilities and potentialities for ethics and for education. The main objective of this paper is to reflect upon these categories and analyse if and to which extent it is possible education as ethics and ethics as education. In order to reach our objective, our study was developed through the analytical and bibliographical methods. Keywords: Kierkegaard. Paulo Freire. Second ethics. Education. Introdução Assumindo a tese de que o ser humano está em constante construção e por isso mesmo é um ser inconcluso, ambíguo, de múltiplas possibilidades que devem ser concretizadas em realidades humanas, a educação é fundamental para que ele possa dominar suas próprias paixões, latências, tendências, inclinações. É importante que a educação do homem seja edificada na ética, pois esse é o remédio para a crise da ética e para a crise da própria educação. Pois a ética vigente em nosso país é uma ética em estado de coma terminal, pois ela tem se mantido omissa e silenciosa em relação aos abusos praticados pelos que estão no poder político e no poder econômico. A ética tem sido apenas um jogo de palavras, de retóricas argumentativas para legitimar o mesmo poder que oprime, que aliena, que exclui, que mata. Afinal, a ética vigente no Brasil, não é uma concepção de ética a serviço do poder? Ela corrobora a tese de Levinas (2000) de que a ética aliada ao poder é uma ética da tirania, do totalitarismo e da injustiça. Este artigo oferece possibilidades de pensar outra variável para a educação por meio do encontro entre Kierkegaard e Paulo Freire. Encontro imaginário, pois os dois não se conheceram e o pensador brasileiro não teve acesso direto à produção do filósofo dinamarquês, contudo sofreu muita influência deste pensador mediante a leitura e o diálogo que manteve com discípulos e interlocutores kierkegaardianos de primeira mão, como Sartre, Ricoeur, Jaspers, Lukacs, Berdiaeff, Heidegger, Merleau-Ponty, Marcel, Amoroso Lima, entre outros. A riqueza, originalidade e pertinência deste estudo residem no primeiro ensaio brasileiro com o objetivo de estabelecer uma conexão entre dois pensadores que fizeram da ética e da educação o eixo do respectivo pensar e de intervir em suas 106 respectivas sociedades. A partir deles é possível afirmar a indissociabilidade entre educação e ética, pois a primeira só tem validade se muito mais do que passar informações e conteúdos construir caráter, e a segunda só se concretiza no interior de práticas educativas, que se concretizam no interior da ética e do testemunho ético do existente no movimento realizado para tornar-se humano. O encontro entre Paulo Freire e Kierkegaard pode parecer aos marxistas dogmáticos e aos kierkegaardianos religiosos uma insensatez. Se Paulo Freire utiliza do método do materialismo histórico dialético, enquanto a preocupação de Kierkegaard é com a singularidade do indivíduo e utiliza do método da pseudonímia e da comunicação indireta, o que eles poderiam ter em comum? Se o esforço kierkegaardiano é retirar o indivíduo da massa e educar o singular, e se a tarefa de Freire é combater na esfera do social, como conciliar, sem forçar a barra, Freire e Kierkegaard? O esforço dos dois consiste em impedir que a subjetividade seja subjetivada em processos de objetivação e de homogeneização. Este estudo apresenta a relação entre a ética e a educação no interior da crise que ambas vivem. A presente reflexão desdobra-se em três partes. A primeira é intitulada A relação entre educação e ética em Kierkegaard e Paulo Freire, a segunda denominamos O sentido e a exigência da ética em Paulo Freire e Kierkegaard e na terceira discutiremos A alteridade ética e a subjetividade em Kierkegaard e Paulo Freire. O ponto de aproximação a partir da relação entre ética e subjetividade e do desdobramento dessa relação numa educação ética está alicerçado na tese de Freire (2000), exposta em Pedagogia da Indignação, quando afirma que uma das tarefas primordiais da pedagogia crítica radical libertadora é trabalhar efetiva e criticamente a legitimidade do sonho ético-político da superação Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 Jorge Miranda de Almeida da realidade injusta e a promoção da dignidade. Educação é, então, um ato de liberdade humana, ou melhor, como o próprio título da obra indica: Educação como Prática da Liberdade. Educar é muito mais do que ensinar a ler e a escrever, educar é construir caráter, é construir personalidades fortes e edificadas, como concebe Kierkegaard, para que se possa vivenciar responsavelmente o desafio e as exigências inerentes à liberdade. Esta é também a tese de Trombetta, desenvolvida no verbete alteridade para o Dicionário Paulo Freire, recheada de uma perspectiva eminentemente kierkegaardiana ao demonstrar que [...] a educação é, em sua essência, um processo ético antes de ser consciência crítica, engajamento político e ação transformadora. Ou a educação é ética e respeitosa com a alteridade do outro em sua singularidade, ou não é educação. É este respeito à alteridade do outro a exigência ética de todo o pensamento de Freire. Toda a eticidade da existência humana se dá no reconhecimento da alteridade, da sua dignidade de pessoa e na luta por justiça social. Sem este respeito e reconhecimento do outro não podemos entrar no diálogo libertador. Seguindo o legado ético-pedagógico de Freire, podemos concluir dizendo que o resgate da dignidade do outro, da sua alteridade é condição primeira para a edificação de um projeto mundo/sociedade ‘em que seja menos difícil de amar’. (TROMBETTA apud REDIN; STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 35). Em Kierkegaard, a educação é a tarefa de transformação do eu (indivíduo) em Si mesmo (singularidade). A educação é edificante porque deve ser construída na interioridade, para que o singular possa elaborar a própria personalidade e atingir a maturidade necessária para se doar ao próximo na condição de excesso ou transbordamento de si. Permanecer em si mesmo é um ato de alienação e desespero. Ir ao encontro do outro é a condição para tornar-se cada vez mais um si mesmo como o outro e com o outro. Por isso, é na subjetividade que ocorre a mais difícil ação que o homem é capaz de empreender: decidir, escolher sobre que ou quais ações realizar, porque é na ação que o homem concretiza o bem e/ou o mal; é na ação que o homem constrói a sua humanidade ou a sua inumanidade, logo, é exatamente na decisão que ele opta pelo que é mais humano ou o que é mais inumano. 1. A relação entre educação e ética em Kierkegaard e Paulo Freire Considerando a tese de que nada do que é humano é natural, é preciso admitir que a humanidade do humano é fruto de um processo sócio-histórico-cultural e que implica em cada ação o deixar de ser um eu-multidão para tornar-se um si-mesmo relacional, por isto a tese exposta por Paulo Freire em Educação e Mudança, que não é possível fazer uma reflexão sobre educação sem refletir sobre o próprio homem em virtude do seu inacabamento ou inconclusão. Isso significa ter clareza que o homem não é um ser determinado, mas um ser de liberdade, portanto sua característica fundamental não é a repetição como nos animais, mas o esforço em conquistar e concretizar a liberdade. Esforço que se reduplica porque não é possível entender a liberdade deslocada da responsabilidade. A premissa, nesse sentido, é que a responsabilidade precede a liberdade, por isso os homens se constroem em comunhão, em relação, em doação de um para com o outro, do si-mesmo como um outro conforme desenvolve, por exemplo, Ricouer (1991) em O Si-mesmo como um Outro, Levinas (2008) em Outro Modo de Ser ou Além da Essência e Kierkegaard (2005) em As Obras do Amor. Edificação que requer aprendizado, logo, uma concepção pedagógica que seja capaz de educar o homem em sua abertura e ambiguidade, pois se não fosse ambíguo, não seria homem livre e sim um ser predestinado e determinado. Considerando que o ser humano está em constante devir, é fundamental um processo pedagógico-educativo que possa contribuir significativamente para a construção do caráter e da personalidade da pessoa na condição de ser histórico-cultural no interior da dialética da subjetividade (o si mesmo) e da objetividade do meio (comunidade, escola, trabalho, família etc.). As obras Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Esperança demonstram a intrínseca relação entre subjetividade e objetividade que culminaria na intersubjetividade. Kierkegaard, por sua vez, nas obras Post-scriptum Conclusivo não Científico, em As Obras do Amor, no Conceito de Angústia, na Alternativa e na Doença Mortal utiliza de vários cenários e as várias perspectivas para apresentar a subjetividade existencial, porque Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 107 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire compreende que ela não pode por coerência interna, ser demonstrada. Embora Freire (2005, p. 45), em Pedagogia do Oprimido, afirme “que a intersubjetividade se apresenta como pedagogia do Homem”, ela não consegue atingir a educação ética como propõe Kierkegaard na radicalização da assimetria. Entretanto, o diálogo sobre a subjetividade entre os dois é fundamental porque assim como o pensador dinamarquês, Freire também tem clareza que o humano é subjetividade ética, conforme demonstra Trombetta (apud REDIN; STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 34), no verbete alteridade no Dicionário Paulo Freire: “o humano é subjetividade ética em comunhão, diálogo com o outro; é um eu capaz de amar o outro e, a partir desse amor, lutar por justiça que representa a culminância da consciência ética.” O exercício do diálogo é o primeiro passo para a superação da dialética do senhor e do escravo. O testemunho do mestre é a ocasião para que o discípulo possa construir o próprio saber e se posicionar no interior da cultura em que existe. É por meio do diálogo e existindo dialogicamente que, corroborando com Raúl Fernet-Betancourt, será decidido “se somos capazes, ou não, de caminhar em direção de uma cultura de convivência, cultivada como ‘bem universal’, porque nela todos e todas escrevem a universalidade elucidando a relacionalidade das diferenças, construtoras de nossa diversidade” (FERNET-BETANCOURT, 2010, p. 14). É urgente desenvolver o diálogo como condição ética e existencial porque se trata da própria existência do homem e do planeta, pois como existir em um mundo plurocêntrico, com tantas diferenças que devem ser mantidas como diferenças para não cair no domínio do mesmo? Como dialogar com o outro sem normatizá-lo como idêntico ao si mesmo? Não foi essa a trajetória da civilização ocidental? Não tem sido essa a postura da racionalidade instrumental filosófica e pedagógica? Assumindo a concepção da pessoa humana como um ser de abertura e de múltiplas possibilidades, Paulo Freire (1921-1977) e Soren Kierkegaard (1813-1855) fizeram da ética, da educação, da política, do trabalho, da cultura, da dialogicidade, do ser em relação, da dignidade os temas fundamentais dos seus escritos. Nesse sentido, a verdadeira tarefa da educação ético-existencial é 108 libertar a pessoa humana; libertá-la da opressão por meio do processo de construção de consciência crítica-reflexiva e engajada; libertá-la da educação ingênua e comprometida com o grande capital; libertá-la do assistencialismo demagógico e cínico de uma concepção de educação que mantém os discentes acomodados, resignados e passivos diante do clamor e da urgência de uma profunda transformação estrutural para que a dignidade humana se concretize como um direito de cada pessoa humana e não como um privilégio de classe como ocorre hoje no Brasil. O que é significativo no processo da educação ético-existencial é a intrínseca relação entre o ato de construir a si mesmo ao mesmo tempo em que as ações são dirigidas para construir o próximo, pois em verdade, segundo Freire, “não há um eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído” (FREIRE, 2005, p. 81, grifo do autor). Kierkegaard concebe o homem como uma síntese relacional e inconclusa, e a definição apresentada em A Doença para a Morte para a condição humana oferece ao leitor a chave para entender o profundo do si mesmo, como é possível constatar em sua resposta à pergunta kantiana sobre o que é o homem. Ele diz: O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. (KIERKEGAARD, 1979, p. 318). E a relação que se desdobra sobre si mesmo é a relação com o próximo, é o que produz a relação dialógica, eminentemente portadora de sentido, significado e existência, porque verdadeiramente o eu não existe sem o tu, o tu é o constitutivo do verdadeiro eu. O terceiro capítulo da obra Pedagogia do Oprimido, intitulado A dialogicidade – essência da educação como prática da liberdade, demonstra o que entendo por relação dialógica e a sua importância no âmbito da edu- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 Jorge Miranda de Almeida cação. Relação dialógica ou dialogicidade quer dizer uma relação que se reduplica, uma relação aberta que inclui enquanto mantém a separação (o um não se anula ou sobressai ao outro). Não se trata de reduzir a relação a uma subjetividade egoísta e desencarnada, mas à receptividade e à construção coletiva do conhecimento, que deve ser vital para a própria qualidade do existir, do existente e da existência. A dialética da relação entre eu e tu é abundantemente tematizada em Kierkegaard (2010, p. 30), como explicitamente afirma em O Conceito de Angústia: [...] o homem é um indivíduo e, como tal, é ao mesmo tempo ele próprio e todo o gênero humano, de sorte que o gênero participa todo inteiro do indivíduo, assim como o indivíduo participa de todo o gênero humano. [...] em qualquer momento, portanto, o indivíduo é ele próprio e o gênero humano. O que se fundamenta na perspectiva da educação ético-existencial é a necessidade do indivíduo singular assumir a tarefa ética que ele coloca a si mesmo, isto é, a de transformar a si mesmo em um indivíduo universal. “Somente o indivíduo ético exprime seriamente a si mesmo e tem uma familiaridade (intimidade) que é a sinceridade com si mesmo” (KIERKEGAARD, 2001a, p. 155). Ora, transformar a si mesmo implica no processo de transformação do próximo, isto porque o ser humano só existe em relação. A existência do eu-singular enquanto fruto de relação, como ensina Kierkegaard, precisa do outro para constituir o si mesmo, pois o outro enquanto tu concreto é a condição da constituição do si mesmo. Seguindo o raciocínio desenvolvido por Ricouer (1991) em O Si-mesmo como um Outro e invertendo a tese de Hegel de que não há diverso de si sem um si, Levinas (apud RICOUER, 1991, p. 219) afirma que “não há si sem um outro que o convoque a responsabilidade”. Essa inversão é de um alcance extraordinário porque estabelece a inter-subjetividade (aqui é necessário manter o hífen para destacar a relação e a separação da subjetividade que não se identifica com a intersubjetividade) como a condição, o lugar situado da construção da relação de libertação que se dá a partir de lutas em que o indivíduo singular adere a partir da própria escolha e não porque é um componente do motor da história. A intersubjetividade é concebida neste estudo a partir da definição de Antonio Sidekum na obra Interpelação Ética, quando afirma que “a intersubjetividade implica a abertura dialógica e, se considerada como tal, é o reconhecimento incondicional da subjetividade do outro” (SIDEKUM, 2003, p. 238). A subjetividade radical retira o filósofo, o pedagogo ou o pensador de sua acomodação e indiferença depositadas na objetividade da especulação pura, pois ele [...] desenvolverá sua filosofia não mais numa pura abstração especulativa, mas na busca da fundamentação originária de seu pensar no meio do povo sofredor a caminho da libertação. Sua ética será filosofia primeira, não mais sustentada por uma dialética abstrata neo-hegeliana. (SIDEKUM, 2003, p. 238). Na perspectiva da educação, Freire (2005, p. 58) está correto quando afirma que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. O que se entende por libertar em comunhão? É a libertação que é construída a partir da ação dialógica que é capaz de construir os homens enquanto subjetividade dotada de vontade, consciência, responsabilidade, singularidade e liberdade. Existe uma profunda relação entre tornar-se um si mesmo e sentir-se responsável pelo próximo. A obra freiriana Educação como Prática da Liberdade é um livro de Filosofia da Existência da primeira à última linha. A temática perpassa pelo diálogo com Jaspers, Sartre, Marcel, que são discípulos de primeira grandeza do mestre dinamarquês, que ironicamente não queria ter discípulos, apenas leitor (sempre no singular), capaz de construir um diálogo edificante, isto é, um diálogo ético. Freire insiste que o “homem existe — existere — no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (FREIRE, 1967, p. 41). A temporalidade é a condição humana. É no tempo que o homem humaniza-se ou não, por isso, retomando a expressão que Freire (1967) utiliza de Gabriel Marcel, é aí que o homem é situado e datado. Sendo condenado a existir, ele tem a possibilidade de escolher tornar-se um ser Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 109 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire vegetativo-sensitivo ou um ser psicossensorial ou finalmente um homem. Humanizar-se implica relacionar-se. Relacionar significa tornar-se responsável pelo próximo no interior dos atos limites ou situações-limites, como Freire (2005) desenvolve em Pedagogia do Oprimido. O tornar-se do indivíduo singular em situação é uma das categorias existenciais eminentemente kierkegaardianas. Freire (2005, p. 105) afirma que o próprio dos homens é estar, “como consciência de si e do mundo, em relação de enfrentamento com sua realidade em que, historicamente, se dão ‘as situações-limites’”. O que Kierkegaard e Freire entendem por situações-limites? Freire embasa a sua concepção das situações-limites em Álvaro Vieira Pinto, que significa a margem real onde começam todas as possibilidades. Para Kierkegaard, o que é doado ao ser humano é exatamente a possibilidade de deixar de ser um eu para tornar-se um si mesmo; de outra maneira, é utilizar da liberdade para concretizar a possibilidade, transformando-a em realidade. A proposta de uma educação decente, uma educação de-gente, uma educação problematizadora, libertadora e dialógica é uma alternativa para propiciar como condição, nunca imposição ou modelo, a superação da necrofilia pela biofilia, termos herdados por Freire de Erich Fromm, sobretudo da obra O Coração do Homem, amplamente dialogado em Pedagogia do Oprimido. E qual é, então, a proposta da educação decente? Uma educação que consiga superar a dicotomia subjetividade e objetividade e consiga constituir e construir uma pessoa humana comprometida consigo mesma, com o meio ambiente, com a comunidade, com a dignidade humana que se materializa no mundo do trabalho, da arte, da socialização dos bens, do conhecimento autêntico, da valorização e da partilha. É a própria situação ou o estar-em-situação no mundo e com o mundo que faz emergir o rosto do próximo e se concretiza na urgência em não perder tempo em assumir a responsabilidade diante da visitação, porque, no nosso tempo, o que prevalece não é o rosto do próximo, “[...] mas um aglomerado tumultuado de massa que reflete o egoísmo universal e que é como um pântano” (KIERKEGAARD, 1994, p. 20). Freire também critica a época atual, porque na estratégia utilizada pela ordem domi110 nante em massificar os homens padronizando-os, ela acaba por desenraizá-los e destemporalizá-los, tornando-os seres dóceis e ajustáveis ao sistema. 2 O sentido e a exigência da ética em Paulo Freire e Kierkegaard A educação brasileira, como é trabalhada nas universidades e faculdades de educação, com raríssimas exceções, está preocupada com currículos, conteúdos e estatísticas. Ela não discute as questões da existência e da vida. Prova contundente dessa afirmação é o fato de caminharmos para uma barbárie da desigualdade social que culmina na morte em vida, na morte silenciosa dos milhares de adolescentes e jovens que, em sua invisibilidade material e econômica, passam despercebidos dos congressos educacionais. Freire (2005, p. 197) já advertia que “não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma ‘morte em vida’. E a ‘morte em vida’ é exatamente a vida proibida de ser vida”. Essa é uma questão que cada educador brasileiro precisa responder a si e para si mesmo. Que concepção de educação legitima o silenciamento dos inocentes? Que concepção de educação é capaz de comprar a consciência do educador em nome de uma escola de referência com um percentual a mais no salário? Que concepção de educação perpetua e legitima os campos de concentração nas periferias, nas palafitas, nos cortiços, nas comunidades carentes? Que tipo de educação cria e mantém uma cultura que legitima a barbárie? Diante desse quadro, ousamos afirmar que a educação encontra-se diante de um antagonismo sem precedentes em toda a trajetória humana. István Mészáros, em sua obra A educação para Além do Capital, questiona como justificar as gritantes desigualdades sociais com base nos dados das Nações Unidas no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, explicitados por Minqi Li (apud Mészáros, 2005, p. 74), onde afirma: O 1% mais rico do mundo aufere tanta renda quanto os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere aos rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas estavam subnutri- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 Jorge Miranda de Almeida dos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma forma aprimorada de serviço de saneamento, e uma em cada seis crianças em idade de frequentar a escola primária não estavam na escola. Estima-se que 50% da força de trabalho não-agrícola (sic) esteja desempregada ou subempregada. Esses dados são suficientes para demonstrar a crise que a humanidade atravessa. Mesmo que não fossem bilhões, mas apenas uma única pessoa, esse fator já serviria para denunciar a penúria da educação e a crise que assola a humanidade. Por isso, considerando a tese de Kant de que o homem é a única criatura que precisa ser educada, a crise da educação é a crise do próprio homem e existe um entrelaçamento vital entre educação e humanização. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser, dirá Freire em Pedagogia da Autonomia. Dessa forma, a crise de sentido, o vazio existencial, a indiferença diante de questões fundamentais da existência humana, e que apropriadamente Hannah Arendt definiu em seus escritos como a banalidade do mal, é a mesma crise existente no interior da dicotomia das teorias e as práticas educacionais atreladas à estrutura burocrática e dominante do estado neoliberal e a necessidade de uma educação comprometida, engajada e ética. A estratégia coerente de combater estruturalmente essas questões é a ética. O filósofo e educador Paulo Freire (2008, p. 33), em Pedagogia da Autonomia, desenvolve as relações entre educação e ética, afirmando que “não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe, ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão”. E ainda explicita a relação ética e educação como condição fundamental do querer ser mais, do tornar-se humano mediante uma prática “fundamentalmente justa e ética contra a exploração dos homens e das mulheres e em favor de sua vocação de querer ser mais” (FREIRE, 2001, p. 23). No interior dessa perspectiva, esta obra desenvolve uma análise das relações entre Kierkegaard e Paulo Freire na construção de uma perspectiva de educação que seja embasada na ética da alteridade e, reduplicativamente, seja a condição para que a educação possa cumprir sua tarefa de construir a singularidade com caráter, com personalidade ética, possibilitando, dessa forma, relações mais verdadeiras, mais justas e mais humanas. Nesse contexto, é possível corroborar a tese da inseparabilidade entre educação e ética, e com base nesta constatação pretende-se pensar a educação à luz das afinidades entre Kierkegaard e Paulo Freire e como estes pensadores compreendiam a inseparável relação entre a educação e a ética, ou a educação como ética, ou ainda a ética como educação. Freire não leu o filósofo dinamarquês em primeira mão. Todavia, por coincidência ou não, muitas das categorias fundamentais de Kierkegaard são reapropriadas por Freire como a própria necessidade de uma crítica efetiva e madura da ética à ética. José Andrade de Azevedo, no artigo Fundamentos Filosóficos da Pedagogia de Paulo Freire, é um dos poucos estudiosos a estabelecer a influência que Freire recebeu de Kierkegaard ao afirmar no referido ensaio: Em seu pensamento também se pode encontrar a presença da filosofia existencialista, pois essa aparece nas noções sobre a existência e sobre o caráter histórico do homem. Assim, vemos Paulo Freire se aproximar de Kierkegaard, tendo a mesma preocupação do filósofo dinamarquês, isto é, preocupação com uma filosofia da existência na qual o homem é realçado no seu existir concreto: o homem é um ser concreto, diz Freire, que existe no mundo e com o mundo. (AZEVEDO, 2010, p. 38). Do estudo desses dois pensadores constata-se que não é possível construir a humanidade do humano se não se construir uma educação ética, e a ética não será concretizada se não for mediante uma prática educativa fortemente embasada na ética. Por isso, é retomada a sentença da ética como a instância e a condição que dão sentido ao homem, à relação e ao mundo. Em Pedagogia da Autonomia, Freire (1996) estabelece que mais do que um ser no mundo, o ser humano tornou-se uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu”, se reconhece como “si própria”, por isso: [...] presença que se pensa si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, comprar, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 111 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude. (FREIRE, 1996, p. 18). Educar é, em Freire e Kierkegaard, fundamentalmente, um processo de humanizar o homem, pois ele precisa edificar ou por si mesmo, ou por um outro (o estado, a igreja, o partido político, a mídia.) o seu estar sendo no mundo. Não sendo possível uma educação neutra ou imparcial ou ainda objetiva, como o educador se posiciona diante da difícil tarefa de ser ao mesmo tempo mestre e aprendiz? Tornar-se verdadeiramente mestre, significa adquirir a capacidade de deixar seu saber para aprender com o discípulo, a partir do olhar do discípulo, como ensina Kierkegaard (1995, p. 45): “entre o homem e homem não há relação mais alta que esta: o discípulo é a ocasião para que o mestre se compreenda a si mesmo, o mestre a ocasião para que o discípulo compreenda a si mesmo.” Na obra Migalhas Filosóficas, o processo de educação se constrói na relação entre mestre e aprendiz. O mestre nada mais é que a ocasião para o aprendiz. “Aquele, porém, que dá ao aprendiz não só a verdade, mas também junto com ele a condição, não é um mestre” (KIERKEGAARD, 1995, p. 34). Tornar-se mestre, em Kierkegaard e Paulo Freire, é problematizar a educação no interior dos conflitos, dos contrastes e das contradições políticas, econômicas, culturais, sociais, simbólicas; é participar ativamente com a maturidade necessária para não direcionar o aprendiz, porque, nesse caso, estaria reduplicando a si mesmo e reproduzindo a si mesmo no outro. Existir em razão dos outros requer a abnegação como altruísmo radical em direção à forma mais concreta de existência: a gratuidade do amor. Paulo Freire, em Educação como Prática da Liberdade, também assume a exigência do amor como condição fundamental para a educação que se pretende ser capaz de contribuir para construir gente, pessoa insubstituível em sua unicidade e singularidade. Ele afirma que “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1967, p. 97). Freire, ainda na referida obra, relaciona o Amor como fonte da 112 transcendência, exatamente porque como ser finito e indigente, tem o homem na transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua Fonte, que o liberta. E em Pedagogia do Oprimido, reforça a tese da “valentia de amar” (FREIRE, 2005, p. 203) como compromisso inalienável do amor, porque o amor não procura o que é seu, como dirá Kierkegaard em As Obras do Amor, no IV capítulo da segunda parte, intitulado O amor não procura o que é seu. A exigência do amor é amar, e amar é sempre uma ação dirigida para o outro. Está claro que, na concepção ético-existencial da educação como ferramenta indispensável à libertação das estruturas que impedem a concretização da dignidade humana, não estamos pensando no amor como é explorado de maneira superficial e sensacionalisticamente, como um produto comercial da marca pedagogia do amor, pedagogia do afeto, pedagogia da ternura. O amor não se deixa reduzir a práticas de autoajuda, decididamente isso não é amor; amor que é amor, transforma, se compromete, não utiliza de si mesmo como forma de ganhar dinheiro. Freire (1979, p. 15) é taxativo em Educação e Mudança: “não há educação sem amor”; quem não é capaz de amar os seres inacabados não é capaz de amar. Sentença dura e corajosa, porque parte do princípio do amor como componente ético-educativo-político da atividade pedagógica. Amar é demarcar uma posição crítica e clara em relação ao como se compreende a educação e a pessoa com quem ela se ocupa, se entrega e se torna responsável. O educador brasileiro não conhecia e por isso não teve acesso ao conteúdo de As Obras do Amor, do filósofo dinamarquês, porque possivelmente ele ampliaria sua compreensão sobre o amor, pois Freire (1979, p. 15), ao afirmar que “é falso dizer que o amor não espera retribuições”, não amplia a dimensão do amor para além de uma dimensão egoísta do amor. Mesmo tendo desenvolvido em Pedagogia do Oprimido que o amor é um ato de coragem, que a luta pela libertação do oprimido será um ato de amor, que não existe diálogo sem um verdadeiro gesto de amor ao mundo e aos homens, Freire (2005) não supera a compreensão do amor como retribuição, e por isso mesmo não atinge a dimensão do amor crístico da gratuidade e do engajamento radical e assimétrico como propõe Kierkegaard. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 Jorge Miranda de Almeida Freire, em Ação Cultural como Prática da Liberdade, ao explicar o amor como um ato de libertação e não um ato possessivo de amor, consegue chegar próximo à concepção do amor crístico, e ao utilizar Camilo Torres como exemplo dessa generosidade própria do amor, explica que “Torres se fez guerrilheiro não por desespero, mas por amor verdadeiro” (FREIRE, 1981, p. 66). Em Pedagogia da Esperança, citando Che Guerava, Freire (1992, p. 23) diz que “o verdadeiro revolucionário é animado por fortes sentimentos de amor. É impossível pensar um revolucionário autêntico sem essa qualidade”. E ao citar o poeta Thiago de Melo, afirma que “os interditados, os renegados, os proibidos de ser não precisam da nossa ‘mornidade’ (FREIRE, 1992, p. 92), mas de nosso calor, de nossa solidariedade e de nosso amor também, mas de um amor sem manha, sem cavilações, sem pieguismo, de um amor armado”. (FREIRE, 1992, p. 78). O que seria esse amor armado? O amor armado não utiliza armas, fuzis, bombas atômicas; usa a ética como condição para ser mais como vocação ontológica e existencial do homem. O capítulo do livro Pedagogia do Oprimido, intitulado “O homem como ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente movimento em busca de ser mais” (FREIRE, 2005), é, no fundo, um esforço para que o constante deixar de ser para tornar-se que é designado como vocação do humano seja realizada, é porque deseja ser mais que o homem pode construir a futuridade revolucionária, porque é um ser mais que ele se coloca como um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. “Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo” (FREIRE, 2005, p. 84). A originalidade da ética da alteridade, que denominamos, com base na relação entre Kierkegaard e Paulo Freire, de ético-existencial, é sua intrínseca relação com a educação que consiste na radicalização da ética como o sentido do sentido da tarefa do filosofar e do próprio existir. Isso porque a ética é, então, fundamentalmente, um processo de edificar o humano para o outro, e condição de superar a lógica capitalista, e ao superá-la tende-se a superar a educação técnica e instrumentalizadora. Explicando melhor: a educação coloca-se como tarefa, desafio e responsabilidade, na condição de sinônimo da própria ética, não dependendo de sistemas ou regras, mas do acolhimento e da necessidade de assumi-la como condição que garante a humanidade do humano. É essa a tarefa que cabe à educação se realmente quiser superar a dicotomia entre o discurso eloquente e estatístico sobre os avanços na educação, mas que, na prática, reforça a tese do aniquilamento do indivíduo para atender a demanda do mercado e a realidade efetiva que aponta a precariedade da educação no Brasil, no Ensino Fundamental, Médio e Superior, e projeta novas estratégias e possibilidades para uma educação que esteja comprometida com a ética, com a decência e com a dignidade da existência humana. 3 A alteridade ética e a subjetividade em Kierkegaard e Paulo Freire O eixo central desta reflexão é sustentar que subjetividade é capaz de fundamentar a ética da alteridade e, segundo Freire (1996, p. 16), “a melhor maneira de por ela lutar é vive-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas relações com eles”. A polêmica entre primeira ética, que por diversas vezes Freire (1996) denomina como ética do mercado ou ética menor, e a ética da alteridade está fundamentalmente estabelecida na distinção entre objetividade e subjetividade. A validade da tese que desenvolvo só terá sentido se houver a compreensão da subjetividade superando a compreensão no âmbito do ser e da identidade e relacionando e constituindo a própria ética como si mesmo (singularidade) relacional. O que quero afirmar? A exigência da prioridade do ético em relação ao ontológico. A subjetividade tem uma evolução histórica, perpassa a subjetividade ontológica que não é capaz de compreender o movimento da singularidade e mantém o intervalo entre o sujeito e o objeto, o pensamento do ser. A subjetividade econômica, como singularidade localizada no mundo e no relacionamento com o fazer as coisas do mundo, encontra o seu sentido na realização do trabalho e não mais fora dele. O trabalho, segundo Marx (2002), quando Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 113 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire superadas as contradições da divisão do trabalho, possui uma tríplice qualidade: de me revelar para mim mesmo, de revelar minha sociabilidade e de transformar o mundo, pois “é somente nesse estágio que a manifestação da atividade individual livre coincide com a vida material, o que corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos completos” (MARX, 2002, p. 84). E, finalmente, a subjetividade ética da segunda ética, que assume, na relação concreta com o imediatamente mais próximo, a condição que permite tornar-se um si mesmo. Essa compreensão de subjetividade tem um percurso que vai da abnegação ao sacrifício radical, do compromisso à substituição. Paulo Freire, em Pedagogia da Indignação, corrobora a tese que fora apresentada por Kierkegaard. Ao conceber o homem como ser inconcluso ele reafirma a necessidade da dialética da subjetividade com a objetividade para construir sentido e coerência à ação e à realidade. É por isso que Freire (2000, p. 57, grifo do autor) afirma: É neste sentido que falo em subjetividade entre os seres que, inacabados, se tornam capazes de saber-se inacabados, entre os seres que se fizeram aptos de ir mais além da determinação reduzida. [...] só na história como possibilidade e não como determinação se percebe e se vive a subjetividade em sua dialética relação com a objetividade. E percebendo e vivendo a história como possibilidade que experimentando plenamente a capacidade de comparar, de ajuizar, de escolher, de decidir, de romper. E é assim que mulheres e homens eticizam o mundo, podendo, por outro lado, tornar-se transgressores da própria ética. É preciso tomar cuidado, porque Kierkegaard e Freire concebem a subjetividade em perspectivas diferentes, mas com a mesma finalidade: ela deve tornar-se ética. Freire é influenciado pela concepção da dialética marxiana e não separa subjetividade da objetividade. Ele ainda está envolvido pela concepção da dialética hegeliana, na qual os componentes da tríade (tese, antítese e síntese) estão entrelaçados, e uma é condição para a outra na perspectiva da superação até atingir o espírito absoluto. Para o pensador dinamarquês, a dialética é inconclusa porque se assim não fosse não haveria liberdade e a ação procederia por necessidade. Por isso, diferente de Freire, a subjetividade, em Kierkegaard, é identificada como verdade, interioridade, decisão, ética, 114 paixão infinita e amor. Em síntese: “a interioridade é manter a ética em si mesmo” (KIERKEGAARD, 1993, p. 540). É satisfatória a distinção da subjetividade efetuada por Kierkegaard para que, no desdobramento do texto, o leitor possa situar-se quanto à especificidade desta categoria. Na objetividade e na universalidade do conceito, o Indivíduo Singular (den Enkelte) é dissolvido, é despersonalizado de sua estrutura íntima, isto é, não existe uma responsabilidade pessoal que assuma a tarefa de ser o portador do sentido e a concretização da assimetria ética, o que é o mesmo que afirmar que não existe uma existência autêntica. Um leitor de Levinas, acostumado apenas com as lentes de Heidegger e Husserl, certamente diria que Kierkegaard apropriou-se da categoria fundamental da ética levinasiana: a assimetria. Diria que foi exatamente o contrário. Em As Obras do Amor está presente e bem explicada a assimetria como a interioridade que se sacrifica porque, sendo mais, pode por excesso de si ir ao encontro do próximo sem perder a si mesmo. Dessa forma, A interioridade exigida é aqui a abnegação ou renúncia de si, que não se define mais proximamente em relação com a noção do amor da pessoa amada (do objeto), mas sim em relação com auxiliar a pessoa amada a amar a Deus. Daí segue que a relação de amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido. A interioridade do amor deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa. (KIERKEGAARD, 2005, p. 156). Entender e assumir que o fundamento do si mesmo não se encontra em seu interior, mas na abertura e na generosidade do existir para o próximo, denominada como subjetividade ética, como ação capaz de compreender que “o eu nada tem a significar se ele não se torna o tu”? (KIERKEGAARD, 2005, p. 113). Essa dialética do eu e do tu é uma abertura significativa para uma educação comprometida com a dignidade, com o decoro e com a decência, como Freire costuma se referir a uma educação ética. Freire (2005, p. 81, grifos do autor), dialogando com Kierkegaard, também afirma que “na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído”. Para os dois pensadores da existência, a alteridade Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 Jorge Miranda de Almeida é, então, uma obra de amor, enquanto sinônimo de relação. É também uma obra de amor porque o doar-se constitui a condição da ética da alteridade, uma vez que ao estabelecer o compromisso de construir autenticamente a existência, esta só se concretiza a partir da relação que se reduplica com base em si mesmo. A alteridade promove a igualdade na diferença, sem esta força vital o eu não existe, porque a alteridade institui a “responsabilidade da dialética da alma” (KIERKEGAARD, 2001b, p. 480) que, por sua vez, é a garantia de uma consciência comprometida. Ao insistir na dimensão da subjetividade, o objetivo é demonstrar a força e consistência da tese “a subjetividade é ética”, tendo o respaldo de Levinas (1984, p. 87) para justificar esta tese quando, na Conferência Existência e Ética, afirma: “a subjetividade está na responsabilidade (de mim para com o outro) e somente uma subjetividade irredutível pode assumir uma responsabilidade.” Kierkegaard (1993, p. 432) adverte que “a única realidade que existe para um existente é a sua própria realidade ética, no confronto com outras realidades ele tem apenas uma relação de conhecimento, mas o verdadeiro e próprio saber é uma transposição da realidade na possibilidade”. Nesse contexto, o que se explicita é a responsabilidade como o ápice da subjetividade, na condição de eixo nodal da singularidade humana. Como atribuir estatuto filosófico ou antropológico a uma concepção de ética sem a pressuposição de uma comunidade ideal do discurso, sem prescrição, sem fundamentação, sem normatização, centralizada apenas na radicalidade da substituição por um outro? A dialética da subjetividade e objetividade ocupa um lugar de destaque na obra freireana e no pensamento de Kierekgaard, porque em seu interior se reduplicam outras dimensões, como sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, ética e direito, autonomia e hegemonia, existência e história, interioridade e exterioridade etc. Contudo, o que interessa nesse momento é estabelecer, com base nessa relação, o nexo entre subjetividade e objetividade para produzir a intersubjetividade, que ocorre, fundamentalmente, no processo dialógico, ou como é também denominado em Freire, dialogicidade. A intersubjetividade vem a ser, em Paulo Freire, denominada como a pedagogia do homem, peda- gogia capaz de humanizar e instaurar a verdadeira relação, conforme sustenta Losso (apud REDIN; STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 231): Para Freire, é pela linguagem que o sujeito objetiva sua subjetividade; esta por sua vez, emerge de um processo de intersubjetividade. Assim, constituir o eu pelo reconhecimento do tu é o princípio da subjetividade que está sempre condicionado ao princípio da intersubjetividade. Considerações finais A temática da educação e da ética remonta à própria origem da educação entendida no sentido maior de paideia, isto é, a fim de educar para a humanização do humano em seu constante estado de devir, de deixar de ser para tornar-se. É no interior da educação entendida no sentido ético-existencial que se realiza a passagem do estado de vida para o da existência, como afirmam Kierkegaard e Paulo Freire. Não há meio termo no que diz respeito às condições da ética neste processo de transformação do eu egoísta em um eu-relacional. Considerando que o ser humano não é um ser de natureza, mas fundamentalmente um ser de cultura, e que as condições exteriores influenciam e determinam sua maneira de ser, seu caráter, o diálogo entre Paulo Freire e Kierkegaard, é uma contribuição para concretizar uma pedagogia que realmente esteja centrada na ética e não nos discursos sobre ética. O objetivo foi possibilitar ao leitor uma chave de interpretação que possibilite o discernimento necessário à compreensão de que a educação, especialmente a educação pública no Brasil no atual estágio em que se encontra, não pode ser uma educação ética, nem engajada e nem transformadora, simplesmente pelo pacto que o Estado estabeleceu com o neoliberalismo. Essa reflexão representa esforços a fim de oferecer em primeira mão uma reflexão contundente sobre ética como educação e educação como ética a partir de Paulo Freire e de Kierkegaard, considerando categorias como subjetividade, alteridade, ética, existência, existir, existenciação, dialogicidade, situação existencial, situação-limite, segunda-ética, intersubjetividade, responsabilidade, engajamento que se reduplicam a partir da relação entre uma e outra categoria ou entre a categoria e o existente Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 105-116, jan./jun. 2013 115 A educação como ética e a ética como educação em Kierkegaard e Paulo Freire no ato de existir, possibilitando no diálogo que se estabelece uma primeira síntese da existência em Kierkegaard e Paulo Freire: se o indivíduo singular é uma tarefa que está sempre em devir, ele não pode ser, em momento algum, reduzido à objetivação estanque do conceito. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Jose Andrade. 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Para uma correta compreensão desse conflito é necessário entender a nova relação que a filosofia inaugura com a dimensão transcendente da verdade, que se torna decisiva para uma paideia de tipo socrático, a ponto de ser considerada motivo suficiente para a condenação à morte do filósofo. O que torna ameaçadora a atitude de Sócrates em relação à educação é o seu misticismo filosófico monoteísta, que relativiza tanto o antropomorfismo das verdades consideradas intocáveis pelos religiosos, como o antropocentrismo absoluto da visão dos sofistas. Palavras-chave: Saber. Pensar. Educação. Filosofia. ABSTRACT THE NOT-KNOWING SOCRATIC AND EDUCATION: THE CHALLENGE OF LEARNING HOW TO THINK This article analyzes the problem of the kind of knowledge that is at stake in education. We reflect on the Socratic meaning of not-knowing opposed to the traditional knowledge of the polis and to the new knowledge of the Sophists. Considering the relation between knowing and thinking, our attention focuses on the Platonic dialogue Apology, in which we find the first thematization of the conflict between the traditional view and the philosophical view of education. For a correct understanding of this conflict it is necessary to understand the new relation that philosophy inaugurates through the transcendent dimension of truth, which becomes decisive for a Socratic kind of Paideia, that was considered enough to condemn the philosopher to death. What makes the Socratic attitude threatening in relation to education is his monotheistic philosophical mysticism, which shows the relativity of both anthropomorphism of the truths that are considered untouchable by religious men and the absolute anthropomorphism vision of the Sophists. Keywords: Knowing. Thinking. Education. Philosophy. * Doutor em Filosofia pela Universidade de Bologna. Professor Emérito da Faculdade São Bento da Bahia. Endereço para correspondência: Avenida Oceânica, 2353, Ap. 804, Ondina, Salvador-BA. CEP: 40170-010. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 117 O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar A questão do saber e do não saber é considerada central quando se fala em educação, mas, afinal, o que significa ‘saber’? A filosofia e a prática educativa socrática colocam radicalmente o problema do tipo de saber que está em jogo na educação e é justamente este problema que o presente artigo se propõe analisar. Somos desafiados a repensar as dimensões do nosso conhecimento e os nossos paradigmas pedagógicos, recuperando a doutrina socrática do “conhece-te a ti mesmo e reconhece quão pouco sabes”; uma doutrina que, conforme observa Popper (2006, p. 34), “foi banida pela crença de que a verdade é manifesta e pela nova confiança do homem em si próprio, exemplificada e ensinada de diferentes modos por Lutero e Calvino, Bacon e Descartes”. A visão moderna de conhecimento nos acostumou a identificar o saber com a certeza. Descartes teoriza que os estudos devem ter por objeto somente aquilo que estiver acima de qualquer dúvida e, na terceira das Regras para a direção do espírito, assim declara: Sobre os objetos propostos ao nosso estudo, é necessário procurar não o que os outros pensaram ou o que nós mesmos conjecturamos, mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente, ou o que podemos deduzir com certeza. Pois não é de outro modo que a ciência se adquire. (DESCARTES, 2010, p. 410). Hoje sabemos que também o conhecimento científico é sempre e somente conhecimento humano e, portanto, “está misturado com os nossos erros, os nossos preconceitos, os nossos sonhos e as nossas esperanças” (POPPER, 2006, p. 52). Além disso, acreditamos que a dimensão de mistério é constitutiva da nossa existência humana no mundo e que o nosso conhecimento, enquanto conhecimento humano, jamais poderá prescindir desta dimensão do nosso ser. Isso significa abrir-se a uma dimensão transcendente do processo educativo, que valoriza mais o pensar do que o saber. Existe uma diferença entre pensar e saber. Pois pensar não é saber. É não saber. Quando se pensa não se pretende saber; e quando se pretende já saber, não se pensa. [...] Por isso só aprende quem pensa. Pois pensar significa acolher o mistério da realidade irrompendo nas realizações do real. (LEÃO, 2003, p. 27). 118 Somente quem reconhece o seu não saber frente ao “mistério da realidade” encontra-se na condição de aprender a pensar e de aprender pensando. Mais que simplesmente acumular conhecimento, o importante é aprender a pensar. Já no século XVI, Montaigne (1996, p. 140) escrevia que precisava “indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais”, e não se preocupar “por guarnecer a memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência”. Trata-se de integrar a “sociedade do conhecimento” com a “sociedade do pensamento”, para que as pessoas, que hoje têm acesso a uma infinidade de informações, possam desenvolver também a capacidade de pensar. O conhecimento é matéria-prima do pensamento: mas o conhecimento adquire todo o seu valor quando é administrado pela capacidade de pensar. Por isso, é fundamental que a educação ajude as pessoas a aprender a pensar, para poder valorizar o conhecimento, porque o pensar humano educado não leva à certeza, como queria Descartes, mas à capacidade de lidar com as incertezas e a uma atitude de diálogo e tolerância, que é decisiva para a qualidade ética da convivência humana. Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ela escolha se puder. E se não puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião. (MONTAIGNE, 1996, p. 152). E continua com uma citação de Dante Alighieri: “Não menos que saber, duvidar me apraz”1 (MONTAIGNE, 1996, p. 152). Esse duvidar não corresponde à dúvida metódica de Descartes, que é finalizada ao adquirir a certeza do conhecimento, mas coloca-se como alternativa a um tipo de saber que exclui a dimensão transcendente da verdade. Trata-se, portanto, de uma dimensão de espírito que podemos chamar de espiritualidade do conhecimento e que entra constitutivamente numa nova visão de educação; não é por acaso que Sócrates é condenado como corruptor da juventude e corruptor porque ímpio. A figura de Sócrates encarna a nova visão de educação que vem se definindo com o apareci1 “Che non men che saber, dubbiar m’ agrada”. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 Giorgio Borghi mento do pensar filosófico e é no diálogo platônico Apologia de Sócrates que encontramos a primeira tematização do conflito entre a visão tradicional e a visão filosófica da educação. Conflito que articula estritamente a questão da educação com a questão da “piedade” e que tem um desfecho dramático com a condenação à morte do filósofo, mostrando a grande relevância que as questões da educação e da religiosidade tinham para as pessoas envolvidas nesse conflito. Sócrates, que Jaeger (1979, p. 475) considera como “o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente”, é condenado como um sujeito perigoso para a educação e é a falta de “piedade” que se torna prejudicial para a educação da juventude, segundo a acusação de Meleto. Ora, o nosso intento é mostrar que essa tese da acusação contra Sócrates é correta, mas em sentido totalmente diferente daquilo que entendia Meleto, porque o que entra em choque no processo de condenação de Sócrates são visões profundamente diversas de educação e do tipo de “espiritualidade” que orienta o processo educativo e que é definido pela relação que o educador tem com a verdade. No diálogo platônico, a acusação formal do processo é resumida pelo próprio Sócrates da seguinte maneira: Sócrates “é culpado de corromper os moços e não acreditar nos deuses que a cidade admite, além de aceitar divindades novas” (PLATÃO, 2001, p. 122-123). A ligação entre as duas acusações aparece claramente pouco depois: Não obstante, declara-nos, Méleto, porque motivo andas a espalhar que eu corrompo os jovens? Segundo a queixa que apresentaste, deve ser por ensiná-los a não acreditar nos deuses em que a cidade acredita, porém em demônios de nova modalidade. Não é isso o que afirmas: que com essa doutrina eu os corrompo? (PLATÃO, 2001, p. 125). Meleto confirma que é precisamente isso que ele está dizendo. Solicitado a esclarecer melhor se a acusação refere-se simplesmente ao fato de introduzir novos cultos ou à recusa de venerar aos deuses, Meleto responde significativamente, embora de forma não muito coerente: “O que afirmo é que não acreditas absolutamente na existência dos deuses” (PLATÃO, 2001, p. 126). Com isso estão colocados os elementos decisivos de um confronto que, para além da aparente leviandade e inconsistência da acusação, assume uma relevância que atravessa os séculos, chegando até nós. O que está em jogo no processo a Sócrates é muito mais sério e profundo do que a formulação verbal das acusações deixaria acreditar, adquirindo a característica de um processo formal à filosofia nascente. Não é por acaso que Sócrates precisa esclarecer, mais de uma vez, que ele está sendo acusado incorretamente de coisas que pertenciam ao pensamento de filósofos naturalistas ou sofistas, como já tinha acontecido na comédia As nuvens, de Aristófanes. “Sócrates erra por investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu, por deixar bons os argumentos ruins e também por induzir outros a fazerem a mesma coisa” (PLATÃO, 2001, p. 115). Quando um povo precisa de um bode expiatório contra uma suposta perigosa ameaça, não importa a consistência ou a coerência do procedimento inquisitório. Que Sócrates de fato compartilhasse do pensamento dos naturalistas ou dos sofistas é um detalhe insignificante tanto para Meleto quanto para a maioria que o condenou. No tribunal, Sócrates estava representando a ameaça que provinha do novo pensar filosófico e por isso estava sendo julgado. A única saída possível, para ele, seria desistir de filosofar, não tanto tentar justificar a sua filosofia ou tentar esclarecer que não é a mesma de outros pensadores. Sócrates percebe claramente isso, quando imagina o que poderiam propor-lhe os juízes: Sócrates, não daremos atenção a Ânito; vamos absolver-te, com a condição de parares com essa investigação e não te dedicares de hoje em diante à filosofia; porém, se fores mais uma vez apanhado nessas práticas, morrerás por isso. (PLATÃO, 2001, p. 130). A condenação de Sócrates fica praticamente decretada pela resposta que ele dá a essa proposta que seria a única condição de absolvição: “Estimo-vos, atenienses, e a todos prezo, porém sou mais obediente aos deuses do que a vós, e enquanto tiver alento e capacidade, não deixarei de filosofar” (PLATÃO, 2001, p. 130). O perigo do não saber socrático Nessa altura da nossa reflexão, torna-se necessário entender porque o tribunal ateniense consi- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 119 O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar derava tão perigosa a prática filosófica, a ponto de justificar a condenação à morte daquele que, no momento, era o seu mais significativo representante. As acusações formuladas no processo indicam claramente que o que mais preocupa os acusadores, em relação à filosofia, é justamente a questão da educação, estritamente atrelada ao modo de considerar a relação com o “divino”. Não é possível desvincular a questão do conhecimento da questão da educação; e a filosofia se ocupa, desde o seu nascimento, com uma nova concepção de conhecimento, que encontra na atitude socrática o seu desenvolvimento ético e que, por conta disso, acaba envolvendo mais diretamente o problema educacional. Sócrates não se refere à sua atividade com a palavra educação (paideia), porque considera representantes oficiais da paideia do seu tempo Górgias de Leontini, Pródico de Ceos e Hípias de Élis (PLATÃO, 2001, p. 116), dos quais quer claramente se diferenciar. Neste sentido, “nunca ensinei pessoa alguma” (PLATÃO, 2001, p. 135), declara Sócrates. Mas, Através dele, a missão de toda a educação é banhada por uma luz nova: já não consiste no desenvolvimento de certas capacidades nem na transmissão de novos conhecimentos; [...]. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com a phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos duma chamada cultura superior. Só pode alcançar o seu objetivo ao longo de toda a vida do Homem; de outro modo não o alcança. Isto faz mudar o conceito de essência da paideia. A cultura em sentido socrático converte-se na aspiração a uma ordenação filosófica consciente da vida, que se propõe cumprir o destino espiritual e moral do Homem. (JAEGER, 1979, p. 532). A questão do conhecimento como sabedoria é tema central da Apologia de Sócrates, porque é justamente o questionamento em relação à efetiva sabedoria da cultura tradicional que mais incomoda aqueles que se consideram os responsáveis pela tradição e pelos bons costumes. “Semelhante fama, atenienses, não me veio senão de certa sabedoria que me é própria. Que espécie de sabedoria?” (PLATÃO, 2001, p. 117). O oráculo que declara Sócrates como o mais sábio provoca o filósofo a empreender uma pesquisa sobre o sentido desta afirmação que leva a uma nova definição de saber 120 e de sabedoria. Depois de sondar políticos, poetas e artesãos, Sócrates sinaliza a lacuna comum do tipo de conhecimento deles: “pelo fato de cada um deles conhecer a fundo determinada profissão, julgavam-se também proficientes nas questões mais abstrusas, donde estragar esse defeito fundamental de todos a sabedoria de cada um” (PLATÃO, 2001, p. 120). Portanto, a superioridade da sabedoria socrática define uma nova atitude de conhecimento, de relacionamento com a verdade, que desafia toda a cultura vigente. Finalizando a sua entrevista com um político, Sócrates declara: Depois, ao retirar-me, falava a sós comigo: mais sábio do que este homem terei de ser, realmente. Pode bem dar-se que, em verdade, nenhum de nós conheça nada belo e bom; mas este indivíduo, sem saber nada, imagina que sabe, ao passo que eu, sem saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo. (PLATÃO, 2001, p. 119). Questionando o saber da pólis, representado pelos seus mais cultos expoentes, o filósofo questiona também o sistema educacional e denuncia que, na realidade, os dirigentes da cidade brincam com coisas sérias, como Meleto, “com fingido zelo, a respeito de assunto a que nunca atribuiu a mínima importância” (PLATÃO, 2001, p. 123). E essa leviandade em relação à educação aparece claramente no único momento realmente dialógico da Apologia, quando Sócrates interroga Meleto sobre quem corrompe e quem torna melhores os jovens. Se ele está acusando Sócrates de corromper a juventude, deve ter claro o que significa educar os jovens e quem os pode tornar melhores. A reticência de Meleto em responder mostra a dificuldade dele em acompanhar um diálogo reflexivo, por não estar acostumado a “pensar”, mas estar simplesmente expressando o senso comum daqueles que estão convencidos de que “um celerado de nome Sócrates anda a corromper os moços. Mas, se alguém lhes pergunta de que se ocupa e o que ensina, não têm o que dizer, porque de todo o ignoram. E, para encobrirem sua perplexidade, recorrem a essas imputações vulgares comumente assacadas contra os amantes da Sabedoria” (PLATÃO, 2001, p. 121-122). A dificuldade de Meleto em pensar a educação se mostra logo na sua resposta à insistência Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 Giorgio Borghi de Sócrates, que o obriga a dizer alguma coisa. Sócrates está perguntando “quem” torna melhores os jovens, e Meleto responde: “As leis”. Trata-se de uma resposta particularmente significativa, que revela muito da visão de educação tradicional que se incomoda com a filosofia. Por que se preocupar com “quem” deveria educar os jovens? As próprias leis e instituições da cidade, por si mesmas, os tornam virtuosos, levando-os a prestigiar o que a cidade prestigia e a desprezar o que a cidade despreza. Nenhuma educação seria mais certa e eficaz, se entre as instituições da pólis e os jovens não se intrometessem os filósofos, contaminando-os com a praga do pensamento reflexivo, que os afasta da adesão espontânea e natural ao que todo mundo sente e pensa. Sócrates não desprezava as instituições da pólis; muito pelo contrário, ele estava pronto a testemunhar com a morte o seu respeito para as leis da cidade. Contudo, para ele, quando se trata de educação, não basta o contato direto com as instituições da cidade sem a mediação de alguém que pensa e que sabe ajudar os jovens a aprender a pensar com a própria cabeça. Sócrates, portanto, não pode aceitar a resposta de Meleto, que indica as leis como responsáveis diretas pela educação da juventude, e reformula de forma mais explícita a sua pergunta. “Não foi isso que te perguntei, meu caro, porém o homem, que terá, naturalmente, para começar, de conhecer as leis” (PLATÃO, 2001, p. 123). Novamente a resposta de Meleto decepciona, mostrando que sua aversão a Sócrates prejudicou realmente a sua capacidade de pensar. A pergunta de Sócrates tentava conduzir Meleto a se concentrar sobre a figura humana do educador (não “o que”, mas “quem”, qual pessoa), que naturalmente deverá também conhecer as leis; Meleto considera somente o final da pergunta e responde que quem conhece as leis são os juízes. Trata-se de uma resposta estrategicamente correta, na perspectiva do acusador, mas que mostra, mais uma vez, a incapacidade de pensar a educação. Será que os juízes deviam ser considerados todos bons educadores, pelo simples fato de serem bons conhecedores das leis? E mais: além dos quinhentos juízes, havia muitas pessoas assistindo como ouvintes e um correto senso democrático comportava reconhecer que elas também tinham conhecimento das leis e, só por isso, conforme a opinião de Meleto, elas também seriam idôneas para educar. O mesmo senso democrático não podia deixar de fora os membros do Senado (outra instituição de quinhentas pessoas) e a Assembleia popular de todos os cidadãos com direito de voto, que, naturalmente, conhecendo as leis, se encontravam todos em condição de serem bons educadores dos jovens. Então, conclui Sócrates, “Ao que parece, todos os atenienses os deixam bons e nobres, menos eu. Sou o único a corrompê-los”. E Meleto confirma: “Exatamente” (PLATÃO, 2001, p. 124). Sócrates não quer contestar, diretamente, essa extrapolação democrática que reconhece competência educativa a todos os cidadãos; por isso, prefere continuar o diálogo dando uma volta estratégica no mundo dos cavalos e dos outros animais, onde é incontestável que somente bem poucos sabem como lidar com estes seres viventes para torná-los melhores. Meleto acredita no automatismo educativo das instituições políticas e vê na majestade das leis a eficácia formativa dos jovens; Sócrates está constantemente interessado no valor da pessoa singular e procura homens que saibam educar individualmente. A continuação do diálogo de Sócrates com Meleto, vertendo sobre a acusação de impiedade e de ateísmo, evidencia o ponto crucial da divergência das visões educacionais que aqui se confrontam. Parece que a acusação de Meleto é uma brincadeira. “Pois quer parecer-me que ele se contradiz na sua acusação. É como se dissesse: Sócrates é culpado por não acreditar nos deuses, mas acredita que existem deuses. Positivamente, tudo isso não passa de pilhéria” (PLATÃO, 2001, p. 126). Entretanto, de novo, Meleto e os outros acusadores de Sócrates consideram como detalhe que ele ensine a venerar outros deuses ou a não venerar de modo algum aos deuses. O que interessa e incomoda profundamente é que a filosofia e a educação de Sócrates nascem e se alimentam de uma atitude de espírito, uma “espiritualidade” outra, uma espiritualidade que pode até ser considerada ateia pela religiosidade tradicional. A acusação é apresentada de forma ingênua e incoerente, mas capta o que realmente é muito perigoso e ameaçador no pensamento e na paideia filosófica socrática. Como observa Jaeger (1979, p. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 121 O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar 539-540), falando de Sócrates, “o conhecimento da essência e da força do bem, que se apodera do seu interior como força arrebatadora, converte-se para ele num novo caminho para encontrar o Divino”. A espiritualidade filosófica monoteísta A questão da religiosidade na Apologia de Sócrates coloca-se em estreita relação ao tema do conhecimento e da sabedoria. A superior sabedoria socrática, que se funda sobre a consciência de não saber, comporta a seguinte convicção: Mas o que eu penso, senhores, é que em verdade só o deus é sábio, e que com esse oráculo queria ele significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que não se referia particularmente a Sócrates e que se serviu do meu nome apenas como exemplo, como se dissesse: Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria. (PLATÃO, 2001, p. 121). A verdadeira sabedoria implica o reconhecimento da dimensão transcendente da verdade, um reconhecimento que modifica radicalmente também a atitude e a modalidade educacional. Para Sócrates, viver filosofando significa dedicar-se ao conhecimento de si e dos outros e configura-se como obediência a uma ordem divina, para o bem individual e coletivo. “É o que me ordena fazer a divindade, bem o sabeis, estando eu convencido de que nunca nesta cidade vos tocou por sorte maior bem do que o serviço por mim a ela prestado” (PLATÃO, 2001, p.131). A Apologia de Sócrates é talvez o escrito platônico em que aparece com mais frequência a palavra deus, no singular. Esse monoteísmo filosófico, no contexto de uma cultura religiosamente politeísta, nos convida a um exame cuidadoso e aprofundado desta nova atitude espiritual, que aparece desde o próprio nascimento da filosofia. Maria Zambrano abre o primeiro capítulo do seu livro O Homem e o Divino com a seguinte afirmação: “Uma cultura depende da qualidade dos seus deuses” (ZAMBRANO, 1995, p. 25). Assim, podemos dizer que a passagem da mitologia à filosofia se apresenta como uma mudança cultural determinada pela diferença qualitativa da percepção do divino. “Pois a acção por excelência 122 da filosofia foi a transformação do sagrado no divino, na pura unidade do divino. E para realizar esta acção impremeditada de transformar o sagrado no divino, o pensamento filosófico teve de ignorar os deuses, imagens” (ZAMBRANO, 1995, p. 67-68). O sagrado nasce da pretensão do conhecimento humano de conhecer e controlar o mistério. Transformar o sagrado no divino significa aceitar não poder abarcar totalmente a riqueza inesgotável do mistério da vida e do mundo e ter a coragem de mergulhar na escuridão de um não saber, onde formular novamente a pergunta mais simples e mais radical: “o que é isso?”. É justamente essa pergunta que caracteriza a pedagogia irônica e maiêutica de Sócrates e que revela uma nova percepção da transcendência da verdade. É esse retorno ao divino que dá início ao pensamento filosófico. Um retorno que, descendo as camadas cada vez mais profundas da ignorância, nos leva no âmago das trevas originárias da realidade e do ser, onde as imagens sagradas da mitologia não satisfazem mais. Sim, porque os antigos mitos gregos não podem ser considerados, simplesmente, curiosas histórias de seres fabulosos chamados deuses, mas como a tentativa de sondar e “compreender” a profundidade oculta da realidade. Q uando Tales elabora a sua hipótese da água como princípio ontológico e gnosiológico de todas as coisas, está procurando uma nova forma de resposta à mesma questão da qual tinha se originado o pensamento mitológico. Por isso, mais que uma hipótese científica, no sentido atual da palavra, está propondo uma nova atitude de conhecimento da realidade, que se fundamenta numa nova concepção do divino. O próprio Aristóteles lembra que Tales teria apresentado uma segunda tese, aparentemente contraditória com aquela, mais conhecida, da água: “Tudo está cheio de deuses”. Será que essas duas teses, a da água e a dos deuses, são afirmações conflitantes, ou será que elas indicam o caminho para a verdadeira compreensão do sentido que a teoria de Tales tinha, na época em que foi formulada? Quando Aristóteles fala de Tales, na Metafísica, inicia apresentando aquela que poderíamos considerar a primeira definição do método científico como aquilo que nos permite deduzir hipóteses e leis gerais a partir de observações e experimentos: “Tales, iniciador desse tipo de filosofia, diz que o princípio Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 Giorgio Borghi é a água [...], certamente tirando esta convicção da constatação de que [...]” (ARISTÓTELES, 2001, p. 17); mas depois continua, dizendo: Há também quem acredite que os mais antigos, que por primeiro discorreram sobre os deuses, muito antes da presente geração, também tiveram essa mesma concepção da realidade natural. De fato, afirmaram Oceano e Tétis como autores da geração das coisas, e disseram que aquilo sobre o quê juram os deuses é a água, chamada por eles Estige. (ARISTÓTELES, 2001, p. 17). Essa evocação, feita por Aristóteles, do antiquíssimo saber mítico sobre o Oceano, Tétis e Estige, o lendário rio original, e a surpreendente menção aos “que por primeiro discorreram sobre os deuses”, que coloca também Tales entre aqueles que especularam a respeito dos deuses, nos oferece uma preciosa sugestão interpretativa do pensamento dele, que supera o aparente conflito entre suas teses. Quando fala de água, Tales está tentando dizer algo sobre o mistério da origem, sem recorrer às imagens sagradas da mitologia. Do mesmo modo que a água dá vida às coisas, assim também se passa com o fundamento divino originário: vivifica tudo o que penetra. Desse modo, a frase de Tales sobre a originariedade da água pretende afirmar o seguinte: em todo o real atua uma força divina, de poder criador, assim como o rio originário do mito, que tudo penetra como a mantenedora da vida, a água (WEISCHEDEL, 2000, p. 22-23). Segundo a interpretação de Nietzsche, no seu escrito A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, a hipótese da água, que precisamos levar a sério porque enuncia algo sobre a origem das coisas “sem imagem e fabulação”, é algo que Tales não poderia ter deduzido das “parcas e desordenadas observações da natureza empírica”. O que levou Tales àquela que Nietzsche chama de “monstruosa generalização” foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: “Tudo é um”. (NIETZSCHE apud PRÉ-SOCRÁTICOS, 1996, p. 44). Nietzsche destaca, assim, a intuição mística como algo que pertence ao código genético da filosofia enquanto tal. O discípulo de Tales, Anaximandro, continua e aprofunda esse novo caminho, com a ideia genial do apeiron, que, pela própria formulação privativa, indica, ainda mais claramente, aquele retrocesso à ignorância de onde nasce a atitude filosófica, na busca de um divino originário sem imagens, sem definição (indefinido), sem limite (ilimitado). Todavia, quem primeiro tematizou a transformação do sagrado no divino, operada pela filosofia, foi Xenófanes de Cólofon, com sua crítica ao antropomorfismo da mitologia. Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reproduzindo a sua própria forma. (BORNHEIM, 2011, p. 32). A vontade de verdade, como diria Nietzsche, leva o ser humano a querer, de qualquer jeito, dispor dela, pintando-a a sua imagem e semelhança, criando simulacros que possam dar a ilusão de dispor dela quando e como deseja. Mas o filósofo descobre que a verdade, na sua profundidade originária, é divina e, como tal, é sempre mais: “Um único deus, o maior entre deuses e homens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais” (BORNHEIM, 2011, p. 33). Esta ‘profissão de razão’ monoteísta abre o caminho para a elaboração ontológica de Parmênides e para a ideia do Ser, como tradução da dimensão profunda e misteriosa da realidade. Como observa Heidegger, De há muito, o mistério nos foi proposto na palavra ‘ser’. É por isso que o ‘ser’ é apenas uma palavra provisória, no sentido de palavra precursora. Cuidemos que nosso pensamento não lhe corra apenas atrás, de olhos fechados. Pensemos que ‘ser’ significa originariamente ‘vigência’ e ‘vigência’ significa adiantar-se e perdurar no des-encobrimento da verdade. (HEIDEGGER, 2002, p. 203, grifo do autor). Misticismo filosófico e educação Esta volta às origens era necessária para entender melhor o deus de que tanto fala Sócrates, fonte de sua piedade e motivo do conflito dramático que o leva à morte. A acusação dele não acreditar nos deuses que os atenienses acreditavam tinha algo de Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 123 O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar verdadeiro, embora ele não desprezasse a religião popular. Mas a sua adesão incondicionada ao filosofar tinha operado nele a transformação do sagrado no divino, uma transformação que se manifestava na sua vida e na sua prática de educador. Uma primeira consequência disso era sua concepção de verdade. Sócrates sempre desconfiou do óbvio e quase sempre consegue mostrar que o óbvio é irreal e que a verdade é muito raramente óbvia. O modo como mostra isso é a substância da discussão e dá a ela empolgação e dinamismo. Chegar a uma conclusão não é o objetivo. O objetivo é ensinar às pessoas com quem ele está conversando como pensar e, principalmente, como pensar por si mesmas. (JOHNSON, 2012, p. 72). Considerar a verdade como não óbvia é a atitude básica da espiritualidade filosófica monoteísta, que já Xenófanes tinha delineado: Pois homem algum viu e não haverá quem possa ver a verdade acerca dos deuses e de todas as coisas das quais eu falo; pois mesmo se alguém conseguisse expressar-se com toda exatidão possível, ele próprio não se aperceberia disso. A opinião reina em tudo. (BORNHEIM, 2011, p. 33). Ora, precisamos relembrar que é justamente a falta dessa atitude de espírito, dessa “espiritualidade”, que prejudica a efetiva sabedoria dos sabidos de Atenas que, pelo fato de conhecer bem alguma coisa, consideram-se sapientíssimos mesmo “nas questões mais abstrusas” (PLATÃO, 2001, p. 120). Para saber quais são, para Sócrates, estas “outras matérias de grande importância” podemos recorrer a um resumo das recomendações dele ao cidadão de Atenas: Como se dá, caro amigo, que, na qualidade de cidadão de Atenas, a maior e mais famosa cidade, por seu poder e sabedoria, não te envergonhes de só te preocupares com dinheiro e de como ganhar o mais possível, e quanto à honra e à fama, à prudência e à verdade, e à maneira de aperfeiçoar a alma, disso não cuidas nem cogitas? (PLATÃO, 2001, p. 130). É interessante notar que, na hora de exercer a sua missão educativa, Sócrates se dirige a um indivíduo, no singular, não a um auditório anônimo, e ele sondará este indivíduo para ajudá-lo a verificar se ele efetivamente é, ou somente pensa ser, sábio; “No caso, porém, de convencer-me de que é carecente 124 de virtude, embora diga o contrário, repreendê-lo-ei por dar pouca importância ao que é de mais valor e ter em alta estima o que de nada vale” (PLATÃO, 2001, p. 130-131). Afinal, as coisas mais importantes têm a ver com a verdade e a virtude, duas realidades que para Sócrates são inextricavelmente unidas, a ponto de a virtude de uma pessoa depender de como ela se relaciona com a verdade. Ora, o relacionamento com a verdade muda profundamente dependendo do relacionamento com o transcendente, que essencialmente pode se estruturar de três formas diferentes: religiosa, ateia ou mística. O relacionamento de tipo religioso e ateio é um tipo de relacionamento essencialmente dogmático, que pressupõe encontrar nos deuses (mitologia) ou nos homens (sofística) a medida última e inquestionável da verdade de todas as coisas. O que torna ameaçadora a atitude de Sócrates em relação à educação é o seu misticismo filosófico monoteísta, que relativiza tanto o antropomorfismo das verdades consideradas intocáveis pelos religiosos como o antropocentrismo absoluto da visão dos sofistas. “É certo que, pelo seu modo de ser espiritual, Sócrates é incapaz de ‘aceitar qualquer dogma’. Mas um homem que vive e morre como ele viveu e morreu tem em Deus as suas raízes” (JAEGER, 1979, p. 540). Na realidade, a espiritualidade filosófica monoteísta nasce dentro da religiosidade do sagrado mitológico, mas depois se distancia das suas origens mitológicas e se apresenta com características que modificam profundamente a percepção e a relação do homem com a verdade, determinando o conflito a que assistimos no processo a Sócrates, como também no enredo das tragédias deste mesmo período. Tal como o filho se separa do pai e luta com ele e, no entanto, não poderia ter existido sem ele, assim o pensamento filosófico e a afirmação da pessoa humana contida na tragédia denuncia a insuficiência dos deuses, e entra mesmo em conflito com eles. É o conflito específico que houve na piedade grega e que tem as suas vítimas míticas e reais: Antígona e Sócrates, vítimas, sem dúvida alguma, do sacrifício que os deuses exigem para dar passagem à nova piedade, ao nascimento da consciência. (ZAMBRANO, 1995, p. 54). A ‘nova piedade’ socrática se manifesta, de forma incisiva e desafiante, numa frase emble- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 Giorgio Borghi mática da Apologia: “sou mais obediente aos deuses do que a vós” (PLATÃO, 2001, p. 130). Mas esta afirmação, poderíamos perguntar, não é também uma declaração de intransigência e fundamentalismo religioso? Não, porque o ‘deus’ da espiritualidade filosófica é justamente o apeiron, o não-dogmaticamente definido. Na piedade mitológica antropomórfica deus se identifica com o que é dogmaticamente por nós considerado como verdade, mas Sócrates sempre desmonta ironicamente qualquer manifestação de dogmatismo; “é sua hostilidade não apenas à ‘resposta certa’, mas quanto à ideia de ser a resposta certa”. (JOHNSON, 2012, p. 72, grifo do autor). Para destacar ainda mais a característica da visão socrática de educação, falta dizer alguma coisa sobre a forma ateia de relacionamento com o transcendente. Johnson (2012, p. 71, grifo do autor) observa que na época de Sócrates “havia – e há desde então, e haverá no futuro – dois tipos fundamentalmente distintos de filósofos. O primeiro lhe diz o que pensar; o segundo como pensar”. O primeiro tipo de filósofo, na época de Sócrates, era representado pelos sofistas, que, depois do nascimento da filosofia, são os primeiros pensadores a cortar o laço da verdade com o “divino”, se constituindo como um movimento filosófico-cultural que tenta encontrar uma saída do monoteísmo da filosofia pré-socrática. Os sofistas percebem claramente que o que está em jogo no debate filosófico é a própria visão de verdade e que se pode procurar outro significado dela e outro caminho de acesso a ela. Se nós consideramos a verdade como determinada unicamente pela convergência de opiniões e pela autarquia da linguagem, não precisamos mais nos preocupar com uma arcké, que preexistiria antes e independentemente de nós. Górgias, um dos mais importantes pensadores sofistas, escreve uma obra cujo título expressa de forma clara e provocatória o núcleo desta nova visão: “Sobre a natureza, ou seja, sobre o não-ser”. Isso significa: o Ser de Parmênides não existe, como não existe nenhum outro princípio explicativo independente de nós e do poder criativo do nosso logos. É o homem a medida hermenêutica, criadora e ordenadora de todas as coisas, e não uma arcké preexistente e independente de nós, que teria necessariamente características divinas. Esta “solução” sofistica tem como consequência uma atitude educacional que, excluindo qualquer transcendência da verdade, se exercita mais “no que é chamado de retórica do que em discutir (dialegesthai)” (PLATÃO, 2007, p. 44), como encontramos no diálogo que Platão intitula com o nome do famoso sofista. Nas palavras que Platão coloca na boca de Górgias, a retórica torna-se uma arte com um poder extraordinário. “De fato, o orador é capaz de discursar contra todos e tratar de qualquer questão de modo a conquistar o apoio da multidão, abordando de maneira persuasiva praticamente qualquer assunto que deseje” (PLATÃO, 2007, p. 57). A retórica sofista, porém, pode funcionar somente admitindo a visão de verdade sofista, coisa que Sócrates não pode admitir. Ele concorda com os sofistas sobre a importância decisiva do uso inteligente do logos, mas não na forma da retórica e sim na forma do diálogo (diá-logos). Enquanto para os sofistas a retórica visa à criação da verdade, favorecendo eventualmente os mais expertos e inescrupulosos, o diálogo socrático é uma arte parecida à da parteira e visa ajudar as pessoas a descobrir e trazer à luz a verdade escondida nas entranhas da vida. Nesse sentido, o diálogo socrático é também bem mais democrático que a retórica sofista: no diálogo socrático o saber e o saber falar não se colocam a serviço do que é mais conveniente para os mais sabidos, mas colocam-se a serviço de uma Verdade que transcende os limites do nosso conhecimento e que é igual para todos. Por isso, o diálogo socrático comporta uma espiritualidade que deixa o ser humano sinceramente consciente da própria ignorância e aberto ao Mistério inesgotável de uma Verdade que não é posse exclusiva de nenhum sabido, mas que se deixa vislumbrar por todos aqueles que a procuram dia-logando democraticamente. No Górgias de Platão há uma passagem significativa onde Sócrates convida o sofista Polo a uma atitude pedagógica democrática, com as seguintes palavras: “respeita o sistema de perguntar e ser perguntado alternadamente, [...] podendo assim tanto refutar quanto ser refutado” (PLATÃO, 2007, p. 64). O distanciamento de Sócrates da paidéia sofista aparece logo na abertura da Apologia, onde se Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 125 O não saber socrático e a educação: o desafio de aprender a pensar desculpa antecipadamente pelo seu jeito de falar, declarando: “não sei absolutamente falar bem”; e considera mentiroso o fato dos acusadores tê-lo apresentado como um hábil orador que poderia enganar qualquer um. A menos que chamem de orador eloquente quem só diz a verdade. Se é isso o que querem significar, concordarei que também sou orador. Mas, quão diferente deles todos! [...] Não, atenienses, por Zeus, uma oração arrebicada como a deles, com palavras e torneios elegantes, porém de períodos simples e com as expressões que naturalmente me ocorrerem. (PLATÃO, 2001, p. 113). O relacionamento socrático com a verdade, marcado por uma espiritualidade filosófica monoteísta, caracteriza assim sua atividade educativa mais como uma conversa ocasional e informal entre amigos; uma conversa que se desenrola dentro do rio da vida, com todas as suas desafiantes perguntas que emanam de um fundo de mistério. Sócrates [...] era parte da vida da cidade – uma parte pensante, com certeza, uma parte que conversa e debate, porém não mais separada de sua atividade pulsante e agitada do que o peixeiro, o cambista ou o sapateiro, o político fanfarrão, o poeta indigente ou o advogado ardiloso. Sentia-se em casa na cidade e um estranho no campus. Sabia que assim que a filosofia se separasse da vida das pessoas, ela começaria a perder a validade e seguiria na direção errada. [...] Pois Sócrates viu e praticou a filosofia não como uma atividade acadêmica, mas como uma atividade humana. Estava relacionada com seres humanos reais enfrentando escolhas reais e éticas entre certo e errado, bem e mal. (JOHNSON, 2012, p. 138). Considerações conclusivas A missão divina do filósofo-educador concre- tiza-se, portanto, em ajudar as pessoas a encarar a busca da verdade e da justiça, percorrendo o estreito caminho entre o dogmatismo e o relativismo absoluto. Isso se torna possível somente por meio de uma atitude de espírito (espiritualidade) que, não satisfeita com as formulações antropomórficas, nem com as invenções antropocêntricas da verdade e da justiça, sabe mergulhar na escuridão luminosa do mistério da vida, experimentando a cada dia a dor e a alegria do pensar. Nessa altura da nossa análise, podemos então dizer que é a falta “dessa” espiritualidade que se torna prejudicial para a educação, não a falta da piedade tradicional que determinou a acusação contra Sócrates. Essa nova atitude de espírito possibilita uma educação que torna a vida digna de ser vivida, porque nos liberta da arrogância do saber e da angústia da ignorância. Até no momento de encarar nosso último destino, poderemos coerentemente continuar acreditando que também a verdade sobre a morte não nos pertence, repetindo com Sócrates: “Mas, está na hora de nós irmos: eu, para morrer; vós, para viver. A quem tocou a melhor parte, é o que nenhum de nós pode saber, exceto a divindade” (PLATÃO, 2001, p. 147). Reconhecendo, assim, que, até depois de uma vida inteira dedicada à busca da verdade, a nossa maior sabedoria consiste em saber que não se sabe. Talvez, para nós educadores, isso seja “um modo, mesmo que ‘fraco’, de vivenciar a verdade, não como objeto de que nos apropriamos e que transmitimos, mas como horizonte e pano de fundo no qual, discretamente, nos movemos” (VATTIMO, 2007, p. XX, grifo do autor). Assim, a verdade “fraca” de um não saber socrático representa a verdadeira força de uma nova atitude gnosiológica e pedagógica, que se coloca como alternativa a qualquer dogmatismo tanto religioso como ateu. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Metafísica. In: REALE, Giovanni. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário. Trad. M. Perine. São Paulo: Loyola, 2001. BORNHEIM, Gerd (Org.). Os filósofos pré-socráticos. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2011. DESCARTES, René. Obras escolhidas. Trad. Jacob Guinsburg, Bento Prado Jr., Newton Cunha, Gita Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Textos 24). 126 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 117-127, jan./jun. 2013 Giorgio Borghi HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. E. Carneiro Leão, G. Fogel, M. S. C. Schubach. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. A. M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1979. JOHNSON, Paul. Sócrates – um homem do nosso tempo. Trad. L. Kommers. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. LEÃO, Emmanuel Carneiro. A história na filosofia grega. In: FERREIRA, Acylene M. C. (Org.). Fenômeno e sentido. Salvador: Quarteto, 2003. p. 17-35. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Vol. I. Trad. S. Milliet. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Pensadores) PLATÃO. O banquete - apologia de Sócrates. Trad. C. A. Nunes. 2. ed. rev. Belém: Edufpa, 2001. ______. Górgias. In: Diálogos II. Trad., textos complementares e notas E. Bini. Bauru: Edipro, 2007. POPPER, Karl. Conjecturas e refutações. Trad. B. Bettencourt. 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Frente a la crisis integral de nuestro tiempo, la filosofía debe contribuir a forjar una ética de los valores, fundada en una racionalidad moral y conceptual que enfrente y sustituya a la racionalidad instrumental.La filosofía debe contribuir a construir un mundo más humano, donde la tecnología esté al servicio de los valores y no los valores y el ser humano al servicio de los instrumentos de dominación y de poder político universal, para el que los Estados-Naciones no son más que correas de transmisión de una sola voluntad de dominación. Palabras clave: Globalización. Filosofía. Cultura. Etica. Valores Abstract PHILOSOPHY AND CULTURE IN THE FACE OF GLOBALIZATION Globalization has produced a crisis of values and a risk to cultural plurality. In the face of the generalized crisis of our time, philosophy must help drawing up an ethic of values, based on a moral and conceptual rationality to face and replace the instrumental rationality. Philosophy must contribute to building a more humane world, where technology serves values a nd not values a nd the human being serve the instruments of domination and universal political power for which Nation-States are merely conduits for a single will to dominate. Keywords: Globalization. Philosophy. Culture. Ethics. Values. La globalización consiste en una práctica y un concepto que pretende convalidar un modelo homogéneo, a partir del cual se van generando las diferentes manifestaciones de la historia. Se trata de un modelo único de sociedad, de un arquetipo universal que pretende ser, en este momento, la forma de todas las sociedades cualquiera sea su naturaleza, historia o identidad. Este problema de la globalización se ve a través de la generalización de determinadas categorías económicas, políticas y sociales y de los efectos producidos por una aceleración vertiginosa en los cambios de la tecnología. Categorías y realidades históricas que han sido fundamentales para la Modernidad como las de política, soberanía, Estado-Nación, para referirme a las que nos son más próximas, se ven afectadas por un concepto y una práctica central que pretende legitimarse en la idea de la globalidad. Este modelo diseñado en los centros de dominación mundial, se asume valido para cualquier sociedad en cualquier parte del mundo. * Doctor en Derecho, Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua, 1962. Profesor de diversas cátedras de grado y maestrías en la Universidad Americana, UAM; Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua, UNAN-Managua y Universidad Centroamericana, UCA.Endereço para correspondência: Mansión Teodolinda, 6 cuadras al Sur, 25 varas abajo, Bolonia, Managua, Nicaragua. Tel: (505) 22 66 21 28. E-mail: [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 129 La filosofía y la cultura ante la globalización La globalización es una realidad y como tal debe considerarse. El rechazo pasional es estéril; el silencio indiferente, cómplice. Lo importante es tratar de señalar racionalmente que un proceso de esta naturaleza no debe escapar a una moral exterior que le sirva de referencia, ni a un juicio de valor que deba justificarla. Las cosas no se justifican por el solo hecho de existir. Hay que ver como existen y para qué. La globalización es necesaria siempre que se la entienda como unidad en la diversidad. Si ha de existir una cultura universal compatible con la dignidad e identidad humanas, ésta debe ser el resultado de la síntesis de múltiples afluentes culturales y expresiones históricas. Si una cultura planetaria llegara a surgir como consecuencia de ese abrazo universal de las culturas, de ese diálogo de las identidades, bienvenida sea. Si en cambio, debemos disolvernos sin rostro en un modelo unilateral, que además, no siempre representa una cultura superior, sino, con frecuencia, los residuos de una subcultura, que no es mejor, sino que solamente proviene de una sociedad más poderosa, tenemos la obligación de resistir y luchar para que una verdadera universalidad, producto de la multiculturalidad, florezca. El concepto de globalización, como ha sido formulado y aplicado, es lo contrario del de unidad en la diversidad. Incluye la existencia de un paradigma y la propuesta de un mundo homogéneo. En este sentido, globalización equivale a uniformidad, pero no a igualdad, ni siquiera a proporcionalidad, pues su esencia es, precisamente, la desigualdad y la asimetría entre los diferentes componentes del sistema. En la base misma del poder del sistema se encuentran, los Estados y las corporaciones transnacionales, verdadero núcleo de todo el mecanismo. Entre ambos, Estados y corporaciones, hay una identidad de intereses y fines, pues son piezas complementarias de la estructura principal y están situados en la búsqueda de sus objetivos, en un mismo o muy cercano plano jerárquico. En cambio, los Estados de los países del llamado mundo subdesarrollado son piezas secundarias en el engranaje del mecanismo. La globalización se nos presenta así como un mecanismo esencialmente asimétrico, compuesto 130 de una parte por las piezas claves que conforman los centros vitales de planificación, decisión y distribución de funciones: las corporaciones trasnacionales, los Estados del núcleo de poder mundial y los organismos financieros encargados de formular y aplicar las políticas correspondientes. De otra parte, las sociedades periféricas, caracterizadas, en medio de sus diferencias, por algunos referentes comunes: economías dependientes, escasa o nula industrialización, retraso en la utilización de la tecnología de punta, inestabilidad política, fragilidad democrática, debilidad institucional, concepto, estructura y funcionamiento anacrónicos del Estado, masificación de la pobreza crítica, crisis de sus sistemas educativos, para mencionar algunos rasgos que podrían considerarse comunes a pesar de sus diferentes grados de incidencia. Entre estos dos rangos que conforman el sistema no existe una estructura coherente, pues los dos términos no son jerarquizables por pertenecer a configuraciones cualitativamente diferentes. El sistema mundial, que se expresa en la globalización, se construye a partir de un modelo único que no toma en cuenta características e identidades de los componentes periféricos los que por su naturaleza y situación son colaterales. ¿Quiero esto decir que la globalización es mala y la integración dañina? Depende. Lo sería, si la globalización, de cualquier signo que sea, se logra restringiendo o anulando las posibilidades de otras expresiones culturales; es decir, si lo homogéneo no es síntesis de diferentes manifestaciones, si no es un nivel que se alcanza mediante un progresivo escalonamiento que incluye las realidades nacionales y regionales. Puesto en términos positivos quiere decir que la integración, y la globalización, pueden ser beneficiosas, si se realizan a partir del encadenamiento de situaciones y de la estructuración de propuestas y alternativas que se van construyendo escalonadamente. Expresado en forma más directa y precisa, el desafío actual para nuestros pueblos es el de construir planes estratégicos, nacionales, subregionales y regionales, que den nuevo contenido a los procesos de globalización, que permitan rescatar la circunstancia en la que vivimos y en la que se forman el destino personal de cada quién y la historia de cada pueblo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 Alejandro Serrano Caldera Para nosotros, herederos de la pobreza mundial, pero también de un universo cultural antiguo y polivalente, es de ineludible obligación plantearnos con lucidez el problema, sin beaterías de izquierda ni de derecha que se resisten a pensar con libertad sometidas a los dogmas; que satanizan o sacralizan y niegan la oportunidad de irrupción de un pensamiento crítico, a cuya ausencia se deben casi todos nuestros males. La globalización no es en sí misma un mal o un bien. Será lo primero, si prevalecen los criterios que pretenden una sociedad uniformada. Será lo segundo, si la globalización equivale a una verdadera universalidad, formada por la conjunción de las más variadas expresiones de la creatividad humana. La globalización y robotización de los fenómenos económicos, la transnacionalización de la economía y de los procesos financieros, vienen determinando una restricción a lo que ha constituido la esencia del Estado moderno: la soberanía. Las realidades que en el campo político han servido de base a la Modernidad, están afectadas por el concepto y el fenómeno de la globalidad. Pero además de este hecho económico y financiero, y de la existencia de un modelo económico transnacional y global, se da un proceso de tecnologización acelerada que produce también sus propias consecuencias. Es el caso de los avances tecnológicos, de las redes que constituyen hoy por hoy una especie de realidad sobrepuesta al mundo que nosotros conocemos y definimos con sus posibilidades y sus límites. Es el sistema de redes de comunicación que crean la posibilidad de una realidad y un lenguaje universal. Esto nos plantea un enorme desafío político, cultural y teórico, en la medida en que este sistema ofrece, como nunca antes, a la par de inmensas oportunidades de integración y desarrollo, las posibilidades de un dominio total ejercido por un poder planetario. Están dadas las condiciones y elaborados los instrumentos para establecer una civilización planetaria. Está por verse si ésta será fruto del diálogo y retroalimentación de las culturas, o si será consecuencia de la implantación de un modelo en el que los medios se habrán transformado en fines produciéndose la inversión teleológica de la que nos hablaba Hegel a comienzos del siglo XIX. El desafío está en definir la manera conforme a la cual debemos integrarnos a estos sistemas, contribuyendo a la formación de una civilización planetaria que sea fruto de la unidad en la diversidad, neutralizando los riesgos de transformarnos en sólo consumidores de mensajes estandarizados que erosionan nuestra identidad y valores y transforman a la civilización en un engranaje de la uniformidad. El desarrollo del ser humano, de sus aptitudes y capacidades, se forma a raíz del proceso de apropiación de la cultura, creada por medio del trabajo a través de la historia. Esto es un proceso activo, pues supone, no sólo la asimilación de la cultura acumulada, sino además, el desarrollo de actividades específicas en el hombre, en virtud de la apropiación que hace de los objetos sociales. La transferencia cultural y tecnológica en las sociedades dependientes no reproduce ni asimila socialmente los instrumentos transferidos. La adaptación es mecánica y por lo mismo no genera un proceso cultural en sentido dinámico e histórico. Por el contrario, estos mecanismos culturales producen actitudes pasivas que a la larga llevan a la incapacidad creativa y generan, o más bien degeneran en una conducta de sometimiento mecánico. El ser humano ajeno al proceso de producción de la cultura se convierte en un prisionero de ella. La enajenación de la cultura produce el efecto inverso que la creación de la cultura. Mientras ésta por el trabajo produce al mundo y produce al hombre alejándolo de las leyes biológicas e incorporándolo a la vida histórico-social, aquella, la cultura enajenada, suprime la capacidad de creación, y la asimilación histórica y la vocación de cambio, que son los rasgos esenciales del ser humano. La cultura es el mundo vivencial del ser humano. Pero no toda cultura es auténtica. La inautenticidad de la cultura está ligada a la crisis del humanismo. Es auténtica, cuando al mismo tiempo que hace progresar al hombre lo hace cada vez más humano. Cuando en el remoto amanecer de la especie lo rescata de la zoología a la historia. Cuando lo reafirma cada vez más en sus signos de humanidad, como ser libre, creativo, productor y feliz. Es inauténtica, cuando aún haciéndolo progresar materialmente, lo niega como tal, al reducirlo pasivamente en sus redes, al regresarlo de Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 131 La filosofía y la cultura ante la globalización la historia que es proceso de creación del mundo y de auto producción del hombre, a las orillas de la vida biológica y de la naturaleza vegetal, aunque este hecho ocurra en la era de las computadoras, la cibernética y la conquista de universo. La cultura como tal, en sentido humanista y auténtico, es el proceso de creación, asimilación y recreación del mundo, para el bienestar, la libertad y la auto producción del hombre. Esta, sin embargo, deshumaniza y esclaviza, cuando el modo de producción persigue solamente el lucro, la riqueza y el beneficio, y se sustenta en la explotación de los hombres y de los pueblos. Cuando “la concentración de la riqueza material produce la concentración de la riqueza espiritual”. Cuando los valores de un sector preponderante, desde el punto de vista de la economía, se internalizan abstractamente como valores de toda la sociedad. Cuando las diferentes situaciones económicas, sociales y culturales, rompen “la unidad de la especie” y generan condiciones de dependencia interna y externa. Cuando en el campo cultural, y al igual que en otros campos, el mundo se divide en dos: los que producen la cultura y los que en el mejor de los casos se adaptan, o se mal adaptan a la cultura producida por otros. Es decir los que viven al margen de la cultura, imposibilitados, y, luego, incapacitados de crear su propio hábitat, de modificar su medio y en disposición de adaptación sin posibilidades ni intenciones creativas. Cuando se acepta sin análisis crítico y sin racionalización, la cultura y la tecnología de otras sociedades, sin llegar a comprender el proceso científico de su producción ni su necesidad histórica. Este es el gran riesgo y el drama de nuestro tiempo. Por una parte, seres enajenados culturalmente y caracterizados por una vida pasiva y refleja, seres que ven al mundo frente a un espejo hasta llegar a ser incapaces de conocer y concebir otra realidad que no sea el reflejo de la imagen. Pueblos con marcado subdesarrollo económico, social, científico y técnico, colocados al borde del abismo de la historia, ante la grave posibilidad que el desarrollo científico y técnico ahonde aún más las grietas que lo separan del mundo desarrollado y lo dañen irreversiblemente. La transposición de esa realidad, a un medio que técnicamente no ha alcanzado tales niveles 132 de desarrollo, crea en éste, necesidades externas y origina una fractura entre el grado de desarrollo interno y la necesidad producida en forma externa. En virtud de esa disociación, la cultura tecnológica incorporada en los objetos, no es asimilada activamente y por ello genera una conducta pasiva de adaptación y luego de sometimiento a los objetos y a quienes los producen. Es claro pues, en cualquiera de las dimensiones en que se enfoque el asunto, que el problema esencial de nuestro tiempo es la pérdida de la libertad, y por ello, la deshumanización colectiva, como segregado de la forma de vida de la sociedad contemporánea. El hombre, cegado por la ambición de acumular riquezas, o abrumado por los problemas materiales, de supervivencia, está limitado para concebir el sentido de la libertad más allá del tejido de la realidad socio-económica en la que se encuentra atrapado. La lucha por la libertad es, en primera instancia la expresión del derecho de la supervivencia biológica. Esta actitud legítima, aún y cuando es condición necesaria para que aflore la libertad, pues ésta no existe en la explotación y en la miseria, no agota en ese nivel la plenitud a la que el ser humano tiene derecho. El riesgo para la cultura es muy grande, pues estamos enfrentados a un desafío que puede permitirnos desarrollar de manera extraordinaria los verdaderos valores universales, dentro de los cuales están incluidos los propios, o perecer culturalmente en la avalancha de una tecnificación que no se detiene ante la identidad de las culturas ni ante las diferencias. Estamos ante un proceso de globalización no sólo de la economía, de transnacionalización no sólo de los mecanismos financieros, sino de glo balización y transnacionalización de los modelos sociales, políticos y culturales que de alguna forma se van transmitiendo como paradigmas de la comunidad humana. La supranacionalización del capital y la transnacionalización de la producción están modificando los conceptos Norte y Sur basados originalmente en la relación entre la geografía, las condiciones económicas y sociales y la división internacional del trabajo, por un nuevo concepto en el que las fronteras se mueven y la geografía cambia. En numerosas Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 Alejandro Serrano Caldera ocasiones hemos señalado de qué manera, con la transnacionalización de la producción, la riqueza y la pobreza devienen fenómenos supranaciona les en una geografía que se va adaptando a los requerimientos de un sistema con pretensiones de cobertura planetaria. Frente a la razón instrumental que constituye la lógica de este proceso de transnacionalización de la producción, es nuestro deber trabajar en la elaboración de una filosofía moral que humanice ese alucinante proceso y que descodifique los signos en clave que la realidad económica, polí tica, social y cultural postindustrial conllevan. Lo primero es desmontar la identidad que se trata de establecer entre transnacionalización, globalización y uniformidad con universalidad. Globalidad no es universalidad; lo homogéneo no es universal, pues la homogeneidad se logra restringiendo o anulando las posibilidades de otras expresiones culturales. Lo que uniforma no une, somete. Lo verdaderamente universal en la cultura es lo que unifica en su propia heterogeneidad dentro de una articulación determinada que permite no sólo que las culturas diferentes coexistan, sino también que sean capaces de retroalimentarse. Esta es una de las labores inmediatas a desarrollar: construir una ética de la racionalidad, del desarrollo y de la democracia, para adaptar críticamente los sistemas tecnológicos en forma tal que pueda aprovecharse lo mejor que conlleva la maravillosa experiencia de la ciencia y la tecnología y, a la vez, evitar que una transferencia cultural acrítica e inconsciente nos conduzca, en un tiempo no demasiado largo, a la abolición de nuestro propio rostro y de nuestro propio rastro. Una ética de los valores exige desde el principio señalar la crisis moral que, en buena parte, se debe a la pérdida considerable de autenticidad y a la adopción mecánica de los paradigmas de la sociedad de consumo que se perfilan detrás de la deconstrucción y fragmentación de los arquetipos de la Modernidad. Parte de esta crisis, es como dice Bonete Perales (1989, p. 277), “vivir con las pautas económico-morales de la sociedad de consumo, sin haber llegado a la economía de consumo”. Es imprescindible, de acuerdo con el mismo autor, recuperar la actitud moral partiendo de los problemas concretos como el de la injusticia en el mundo, las desigualdades económicas, el problema de la guerra, el de la violencia, el problema de la corresponsabilidad de los hombres de ciencia, de los intelectuales, de las universidades, etc. Es necesario no dejar la responsabilidad moral a la tecnocracia. (BONETE PERALES, 1989, p. 289-290). Es inmoral adoptar, o simplemente aceptar de modo pasivo, la lógica del consumo por el consumo en la que, como dice Aranguren (1965 apud BONETE PERALES, 1989, p. 276), “el despilfarro es exaltado psicológicamente como símbolo de pertenencia a un status superior, signo de ascenso social, éxito y triunfo. Del puritanismo se ha pasado al hedonismo, a la moral del puro bienestar, que se hace consistir en el mayor consumo posible de todos los bienes posibles”. Por su parte, una ética de la democracia, agrega Aranguren (1965 apud BONETE PERALES,1989, p. 293-294), indica que la democracia no es un status en el que puede un pueblo cómodamente instalarse. Es una conquista ético-política de cada día, que sólo a través de una autocrítica siempre vigilante puede mantenerse, como decía Kant de la moral en general, una tarea infinita en la que si no se progresa se retrocede, pues incluso lo ya ganado ha de reconquistarse cada día […] La democracia nunca puede dejar de ser lucha por la democracia […] Antes y más profundamente que un sistema de gobierno es un sistema de valores que demanda una educación político-moral […] El intelectual deberá ejercer una función moralizadora, crítica, utópica y heterodoxa respecto a la democracia establecida. Al identificar la crisis que enfrentamos, es importante descodificar el neoliberalismo y las teorías del fin de la historia, hacer una crítica al concepto de globalidad, fundamentar el concepto de universalidad a partir de la existencia de las diferencias y fundamentar una nueva ética sobre la base del reconocimiento del otro. En eso reside la clave de una formulación ética para nuestro tiempo: reconocer al otro, lo diferente; reconocer que existen culturas que no necesariamente coinciden, sino que difieren en su riqueza y multivocidad con las culturas hegemónicas que tratan de dar una forma unilineal al mundo contemporáneo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 133 La filosofía y la cultura ante la globalización En la medida en que seamos capaces de generar esas alternativas filosóficas y éticas, estaremos preparándonos para insertarnos en este proceso de transformación tecnológica y cambios cualitativos que produce una revolución sin precedentes en la historia de la humanidad. En los últimos años se han dado transformaciones profundas. La filosofía no puede dejar pasar estos acontecimientos, ni dejar de relacionar la crisis de la ética, con el vertiginoso desarrollo de la tecnología, el cual se produce desprovisto de los necesarios sustentos morales y conceptuales, ya que es justamente la unión de una teoría y de una práctica lo que puede permitir al mundo desembocar en una experiencia moralmente enriquecedora a través del uso racional y humano de medios tecnológicos que tienen, asimismo, una posibilidad de utilidad sin precedentes. Es imprescindible, por tanto, ir a las raíces y, en nuestro caso, rescatar los elementos que nos permitan construir esa filosofía moral y esa ética del desarrollo y la democracia para forjar la nueva racionalidad que enfrente a la racionalidad instrumental, la que constituye la lógica dominante de nuestro tiempo. No se puede aceptar un mundo robotizado. Queremos un mundo humano, donde la técnica esté al servicio de los valores y no los valores y el ser humano al servicio de los instrumentos de dominación y de poder político universal, para el que los estados-naciones no son más que correas de transmisión de una sola política de dominación. Si no somos capaces de hacer una formulación clara de los riesgos que conlleva la transnacionalización económica y política postmoderna y postindustrial, si no somos conscientes de la necesidad de asumir con sentido crítico desde la plataforma de nuestra propia cultura la idea y el proceso del desarrollo contemporáneo, estaremos asistiendo a la sepultura de las culturas, de las diferencias y de las identidades. Se trata de preservar la identidad histórica y la pervivencia y acción recíproca de todas las culturas; de forjar un concepto de universalidad a través del diálogo de las culturas y de la unidad en la diversidad. Para ello hay que sustituir el juego de una sola imagen y de espejos múltiples por un concepto y una práctica de integración y retroalimentación de todas las historias y todas las culturas. No debemos aceptar ser los espejos en que se multiplica 134 la imagen del poder absoluto que se mira en ellos como Narciso en el estanque. Es importante que seamos capaces de reivindicar el reconocimiento del otro reafirmando nuestras culturas y planteando la ética de la alteridad, del respeto a las diferencias y de la solidaridad; que seamos capaces de proponer una nueva axiología, una nueva filosofía política que entienda la política como el arte del bien común y que se dirija a la identificación y fortalecimiento de nuevos sujetos históricos de la sociedad civil. Esta filosofía debe revisar la vigencia de los actuales conceptos de política, soberanía, Estado, nación, entendida esta última como proyecto cultural, moral y humano, abierto a una verdadera universalidad, frente a la globalización uniformadora del neoliberalismo. La filosofía latinoamericana ante la globalización La filosofía latinoamericana, desde su propia situación espacio-temporal, desde su historia y su geografía, debe enfrentar el reto del presente. Para ello es imprescindible, de previo, apropiarse teóricamente del pensamiento, la cultura y la historia de América Latina, tener una visión global de la historia de las ideas en la región, con el objeto de reivindicar para ellas la universalidad que les corresponde y para sustentarse sobre ellas, como sobre una plataforma teórica y moral, con el fin de enfrentar los retos del momento actual. Es necesario reiterar esa doble necesidad: la de apropiarnos de nuestra historia de las ideas y la de trascenderla necesariamente al abrirnos, con ella, al desafío de un horizonte más ancho. No hacer cualquiera de las dos cosas señaladas nos llevaría, en un caso, a la abstracción y al vacío, y en el otro, al enclaustramiento y autocolonización. Es fundamental filosofar sobre este tiempo desde la propia situación espacio-temporal. El desafío que se impone no es sólo pensar nuestra historia, sino, desde ella, pensar la historia de la humanidad. En virtud de esa circunstancia mediante la cual los contenidos del futuro se encuentran en germen en el presente, es posible entrever, la figura borrosa y todavía latente de las posibilidades del porvenir. Que lo latente se haga patente, que lo ambiguo e incierto se vuelva evidente, que lo posible devenga Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 Alejandro Serrano Caldera realidad, dependerá de la combinación de una serie de factores sobre los cuales el ser humano tiene la posibilidad de actuar. No existe sobre los pueblos y su historia un destino inflexible que no pueda ser cambiado mediante la combinación de una visión adecuada y una acción oportuna. No hay un determinismo hermético que consagre a unos como dominadores eternos y condene a otros como dominados perpetuos, pese a que en ciertas circunstancias, como las actuales, parecieran agotadas las posibilidades de cambio, consagrado un arquetipo universal y condenados a la uniformidad total de un solo modelo que suprime las diferencias y reproduce infinitamente su imagen reflejada en infinito número de espejos, reproductores de una visión uniforme y única. A pesar de todo, un observador medianamente atento puede identificar los cambios, las paradojas y las contradicciones de lo que pareciera ser la instauración del único modelo posible, y llegar a la conclusión de que lejos del fin de la historia nos encontramos más bien en las fronteras de la Modernidad, detrás de las cuales se abren nuevos horizontes. La Modernidad que se inicia en el siglo XVII se afianza en la racionalidad y en la libertad mediante las cuales, y por medio de la ciencia y la técnica que construyen, el ser humano se lanza a la aventura de forjar su propio mundo como obra de su voluntad y destreza. “¿Quién dudará de que la emancipación humana sólo puede empezar en el momento en que nos asumimos como actores de nuestra propia historia? […] La racionalización de las relaciones sociales es la característica más importante del paso de las sociedades tradicionales a las modernas” (VILLORO, 1992, p. 95-96). Junto a esto, agrego, la afirmación de la libertad individual, de la soberanía y del Estado-Nación, en un plano histórico-institucional. Sin embargo, estos valores cambiaron con la consolidación del capitalismo. “Para la Organización burocrática de las sociedades desarrolladas todos los individuos son homogéneos, intercambiables, esclavos de los pequeños intereses personales, computables para las encuestas electorales o los pronósticos del mercado” (VILLORO, 1992, p. 98-99). Hemos llegado más bien a la frontera de la modernidad, de esa modernidad construida sobre la libertad, la soberanía, el Estado-Nación y la razón histórica. La libertad se pierde desde el momento en que el ser humano deviene un número, un objeto intercambiable; la identidad, cuando el sujeto es estandarizado; la soberanía y el Estado-Nación se diluyen cuando las decisiones dependen cada vez menos de un poder soberano y nacional, para devenir decisiones sin rostro adoptadas por un sistema transnacional que se sobrepone a cualquier interés genuinamente nacional. Es el reino de la razón instrumental, de la deshumanización y de la uniformidad. Pero, ¿es éste un destino inexorable? ¿No queda ninguna posibilidad para la libertad, la pluralidad y el derecho a la diferencia? Pienso que no es un destino inexorable y que sí hay posibilidad para reivindicar la libertad esencial al ser humano. Lejos de terminar la historia, creo más bien que es un cierto tipo de historia el que ha entrado en crisis a pesar de las apariencias. Puedo decir con Zea (1993, p. 386) “que se ha iniciado una segunda etapa de la historia universal, la de la realización de la libertad como expresión propia del hombre sin rebajamientos que aplacen su posibilidad. No es así el fin de la historia, sino el auténtico inicio de la historia” en la cual, considero, deberá ser también universal la idea y la práctica de la libertad. Aproximaciones a un proyecto filosófico. Algunas reflexiones sobre el humanismo de nuestro tiempo El humanismo de nuestro tiempo debe rectificar, reintegrar la unidad fracturada y devolver al hombre y a la mujer su plenitud como seres integrales, intuitivos y racionales, y no como sujetos parciales que han fundado la vida únicamente en la mitad racional del ser. Jano tiene dos rostros y ambos forman su unidad. La integración dialéctica de ambas tendencias, o lo que es lo mismo, la realización de la unidad en la diversidad de las dos formas de interpretar y actuar la historia y la naturaleza humana, es lo que puede permitirnos “humanizar la vida y vitalizar las humanidades” y así recuperar valores que transcienden la utilidad, el provecho y la acumulación, de los que está lleno el lenguaje, la conducta y las categorías morales de nuestro tiempo. El egoísmo predominante debe dar paso a la solidaridad. Exis Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 135 La filosofía y la cultura ante la globalización tir es una palabra que nos sugiere vivir para algo más que para sí mismo. Ex-sí, fuera de sí, hacia los otros, hacia el prójimo, que es el próximo, es algo más que sobrevivir, es vivir, es más que vivir. Hablar de un proyecto filosófico desde América Latina exige aclarar que todo proyecto implica una propuesta y toda propuesta es un intento de abrir caminos cuando se considera que otros están cerrados. El proyecto de la Ilustración que en la filosofía, el derecho y la política, se abre en Europa en el siglo XVIII, lo mismo que el proyecto que propuso el romanticismo y el positivismo en el siglo XIX, parecieran agotados, o al menos en crisis. Con ellos, de alguna forma, se ha construido el pensamiento y la historia de América Latina, por lo que su crisis, querámoslo o no, nos afecta. El rechazo que la llamada filosofía postmoderna presenta a la Ilustración, es el rechazo al autoritarismo de la razón y al universalismo abstracto de sus principios absolutos e imperativos, confeccionados desde el reino de la razón y desde el escenario espacio-temporal europeo, con desconocimiento, consciente o no, de otras realidades en la historia y en el pensamiento. No obstante, lo que sería la propuesta postmoderna, si es que se puede hablar en esos términos de la Postmodernidad, no reco noce suficientemente el peso específico que las expresiones de la razón, han tenido en la historia concreta de la persona y de los pueblos. Además, la sociedad postindustrial, contemporánea de la filosofía postmoderna y de alguna forma emparentada con ella, ha producido al neoliberalismo y la globalización, expresiones imperiales y autoritarias establecidas sobre valores absolutos y principios inapelables en el mundo transnacional, que en una u otra forma vivimos y padecemos, a pesar de la deconstrucción, la fragmentación de los paradigmas y el “pensamiento tenue o débil” que proponen los filósofos postmodernos. Así, de esa manera, estamos enfrentados también ante el Doble Rostro de la Postmodernidad. Muchas cosas de la Modernidad deben ser retomadas y cumplidas, como la libertad no realizada; otras, de la Postmodernidad, deben ser asumidas, como el reconocimiento del otro, el respeto a la diferencia, el diálogo de las culturas, la identidad y la diversidad, como formas de la universalidad. 136 En este marco general de la filosofía mundial contemporánea, creo que el trabajo de los filósofos latinoamericanos y de la filosofía desde América Latina, tiene un papel muy importante que desempeñar para construir una filosofía desde América Latina, lo que significa más que una referencia territorial, una situación en el tiempo, la historia y la cultura, y una determinada perspectiva para enfocar los problemas universales de nuestro tiempo y para lanzar a un horizonte sin fronteras, es decir, universal, los temas tenidos hasta hoy como locales, circunscriptos a una específica historia y geografía. La referencia histórica y cultural no es otra cosa que un observatorio, un punto de vista, con todas las connotaciones e implicancias que esto conlleva. El proyecto filosófico que enfrente los retos del siglo XXI, proyecto de la unidad en la diversidad, debe superar la separación entre realidad y razón, pues la razón es vida pensada y pensamiento vivido; debe ser entendido, al menos, desde tres puntos de vista o posibilidades: como síntesis, en tanto resultado de una nueva categoría formada por la convergencia de varios afluentes que al dar forma a la unidad resultante, pierden su identidad individual que se disuelve en una dimensión universal; como articulación de diversidades que forman un todo unitario, pero sin perder su particularidad; y como coexistencia de diferentes situaciones que no son asimiladas ni por consenso ni por ninguna forma ción definida por un grupo hegemónico de poder, sea éste político, social o de otra índole. Un ejemplo del primer caso podría ser el de los Derechos Humanos; del segundo, el contrato social, el consenso o el proyecto de Estado-Nación; y del tercero, el reconocimiento de los derechos de las minorías, cualquiera sea su naturaleza, en su identidad y expresión particular. Ante las exigencias actuales que enfrentan la filosofía y la ética, proponemos las siguientes hipótesis: • • • la filosofía es un proceso dialéctico que va de lo abstracto a lo concreto en la búsqueda de la verdad; la historia de la filosofía es una función integradora y relacionadora de los resultados de la filosofía a través del tiempo; la filosofía, al buscar lo universal que resulta de las situaciones particulares, es un Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 Alejandro Serrano Caldera • quehacer estrechamente relacionado con el desarrollo histórico y social en consecuencia, la filosofía es una tarea de reconstrucción, integración e incorporación entre la vida y el trabajo, el pensamiento y la acción, la ciencia, la moral y el derecho, el análisis y la síntesis. Como resultado de estas hipótesis formulamos las siguientes proposiciones: • • • • • • todo pensamiento, en cuanto acción de la inteligencia y la conciencia, entra en la historia, se historiza; el ser humano es un desplegarse que deviene historia. No es una objetividad dada, es movimiento en la historia; no está nunca realizado, pues está realizándose; es la forma particular que el movimiento toma en el tiempo a través de la existencia personal o social; hay dos elementos que conforman este devenir: la vocación y la voluntad del sujeto. Juntos, vocación y voluntad, forman el ser; el proceso de construcción de la historia es el proceso de construcción del ser humano. Éste se crea al crearla; lo que el hombre hace forma parte de lo que es; lo que el hombre es forma parte de lo que hace. En este sentido, se entrelazan la ontología y la historia, la filosofía y la práctica; • • • • el ser, al manifestarse, lo hace históricamente; el propio ser es un manifestarse en la historia; la filosofía es la realidad que debe transformarse en concepto; pero es, a la vez, el concepto que debe transformarse en realidad; la teoría es la razón de la práctica y ésta la historicidad de la razón. La unidad de ambas es la praxis; así entendida, la historia, lejos de ser una deidad implacable, el altar del sacrificio del ser humano, es el tejido de relaciones del actuar del hombre, la esencia misma de un humanismo concreto construido de penas y esperanzas, triunfos y fracasos, ilusiones y decepciones. La realización de la filosofía como quehacer humano, como diálogo, como compromiso solidario, exige necesariamente asumir posición frente al tema de la globalización y la cultura, reunificar lo disperso, respetar las identidades y proyectarlas al horizonte universal de la razón. Mientras haya preguntas habrá filosofía. Mientras el ser humano sienta la necesidad de explorar el fondo de su conciencia y de su razón, de interrogar al mundo sobre sus contradicciones y de construir y construirse una realidad habitable, la filosofía estará presente ofreciendo desde diferentes ángulos y diversas perspectivas, una forma de construir la historia y de comprender y amar la vida. REFERENCIAS BONETE PERALES, Enrique. Aranguren: la ética entre la religión y la política. Madrid: Editorial Tecnos, 1989. VILLORO, Luis. El pensamiento moderno. Filosofía del Renacimiento. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1992. ZEA, Leopoldo. Filosofar a la altura del hombre: discrepar para comprender. México, DF: UNAM, 1993. Recebido em 14.08.2012 Aprovado em 28.12.2012 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 129-137, jan./jun. 2013 137 Roberto Bartholo Jr DESATANDO A IMAGINAÇÃO: BREVES NOTAS SOBRE ÉTICA E CRÍTICA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO Roberto Bartholo Jr* Soy hombre: duro poco Y es enorme la noche Pero miro hacia arriba: Las estrellas escriben. Sin entender comprendo: También soy escritura Y en ese mismo instante Alguien me deletrea Octavio Paz RESUMO Apoiado em contribuições teóricas de Vilém Flusser, este artigo discute o lugar do diálogo e do discurso no mundo contemporâneo e destaca implicações da programação e da produção de imagens técnicas para os modos hegemônicos de organização da cultura e exercício de dominação. Por fim, aponta desafios confrontados pelas instituições acadêmicas contemporâneas. Palavras-chave: Diálogo. Discurso. Programação. Crítica. Imaginação. Liberdade. ABSTRACT UNTYING THE IMAGINATION: BRIEF NOTES ON ETHICS AND CRITICISM IN THE CONTEMPORARY WORLD Supported by theoretical contributions of Vilém Flusser, this article discusses the place of dialogue and discourse in the contemporary world and highlights implications of programming and technical images for the hegemonic ways of organizing culture and exercising domination. It ends with a warning on challenges faced by contemporary academic institutions. Keywords: Dialogue. Discourse. Programming. Critics. Imagination. Freedom. * Doutor em iversidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Engenharia de Produção do Instituto Alberto Luis Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) na área de Gestão e Inovação, onde chefia o Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS). Endereço para correspondência: Programa de Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ). Caixa Postal 68507. CEP: 21941-972. Rio de Janeiro - RJ. bartholo. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 139 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo 1. Criação de sentido Rafael Cardoso, organizador brasileiro de importante coletânea de escritos de Vilém Flusser publicada em 2007 com o título O Mundo Codificado: por uma Filosofia do Design e da Comunicação, abre a Introdução desse livro com as seguintes palavras: “[...] um dos maiores pensadores da segunda metade do século XX viveu durante mais de trinta anos no Brasil” (FLUSSER, 2007a, p. 9). Só posso concordar. Flusser não apenas transitou pelo Brasil. Ele dialogou com seus Mitmenschen1 brasileiros. Uma de suas obras em português nos desvela encontros e diálogos que marcaram sua vida (FLUSSER, 2007b). Em meio a fecundas relações com alteridades diversas, faz-se visível uma marca indelével a ser reaprendida e identificada, a de um cidadão praguense. Praga era, para Flusser, muito mais que um mero dispositivo urbano. Era todo um “clima existencial” que “[...] supera todas as diferenças nacionais, sociais e religiosas. Se tcheco, alemão ou judeu, católico, protestante ou marxista, burguês ou proletário: pouco importa. Antes de mais nada se é praguense” (FLUSSER, 2007b, p. 23). Essa tatuagem na alma flusseriana tem dupla face: uma é a crença de viver em meio aos muros de um abrigo seguro dos poderes do mundo e seus perversos desvarios; a outra, a radical descrença disso, imposta pela ocupação nazista. Flusser testemunhou a “desfeitura aos pedaços” de seu ilusório domicílio perene: o desaparecimento, junto com a pseudo-eternidade dos muros de sua Praga, de tudo que mais queria de seu (família, amigos, faculdade, filosofia, arte, planos para o futuro). Um belo texto do capítulo final de Bodenlos nos fala do tardio reencontro de Flusser com Praga: O caminho impele para os becos bem estreitos e para as vielas. E agora é preciso falar do difícil problema do hábito. Quando eu era rapaz e residia em Praga, passava por essa região sem percebê-la. O hábito, para mim, repousava sobre essa região como um cobertor. Agora, uma vez que os 52 anos corroeram e dissolveram a cobertura do hábito, recebo nos olhos o impacto inabitual das cenas. [...] Os 52 anos que repousam entre o hábito e a redescoberta foram como um século, e não como a 1 Uma das palavras alemãs que Flusser deixa permear seus escritos, e que traduzo por “co-humanos”. 140 cinza do Vesúvio, que soterrou a cidade de Pompéia, mas também a conservou. Foram, sim, como um rio de lavas que queimou e escavou as construções e suas estátuas. Esta Kleinseite percorrida é uma transversal dos dois açoites de Deus – o nazismo e o stalinismo – e das cicatrizes abertas por suas chibatadas. (FLUSSER, 2007b, p. 244). Para Flusser, em significativa convergência com as filosofias da existência em voga na Europa após a Segunda Grande Guerra (e com Albert Camus em particular), a existência humana é jogada num abismo de experiências absurdas, em condições que podem ser designadas pela palavra alemã Bodenlosigkeit2. A condição humana é um vir a ser, uma tarefa que nos exige o empenho pela criação de sentido na confrontação com a contingência da vida. Esta criação de sentido é uma resposta relacional, que requer conexão comunicativa e consciente com outros, para o que se necessita de um código, e podemos usar variadas tecnologias. 2. Diálogo e Discurso na Sociedade Telemática Como bem aponta Andreas Ströhl, organizador da mais importante coletânea de textos de Vilém Flusser publicada em língua inglesa (FLUSSER, 2002), na perspectiva flusseriana o vir a ser humano “[…] is an interpolation, a node in a network of interactions and possibilities” e “dialogues spin the threads that constitute the I [...] . But the Thou I am in a dialogue with is also an extrapolation from such relations”3 (STRÖHL, 2007). Assim, para Flusser, nem sujeitos nem objetos são compreendidos como entidades determinantes do real e, numa realidade entendida como um campo possibilista de relações, o eu “[...] turns out to be a movable node in an intersubjective fabric”4 (FLUSSER, 1994 apud STRÖHL, 2007). Podem ser indicadas afinidades entre as perspectivas de Flusser e proposições de Martin Buber, 2 A tradução literal é “ausência de chão”. Prefiro, no entanto, a tradução com alguma ressonância poética pela palavra portuguesa “desterro”. 3 “[...] é uma interpelação, um nó em uma rede de interações e possibilidades” e “os diálogos tecem os fios que constituem o eu [...]. Mas a pessoa com quem eu esteja dialogando é também uma extrapolação dessas relações.”(As traduções em nota de rodapé são da profa Dra. Valquiria C. M. Borba) 4 “[...] torna-se um nó móvel em um tecido intersubjetivo.” Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 Roberto Bartholo Jr relativas ao “princípio dialógico” na antropologia filosófica (BARTHOLO, 2001a), e de Richard Rorty relativas às infinitas teceduras de descrições e re-descrições nos processos comunicativos e às contingências da linguagem, da identidade e da comunidade (RORTY, 2007). Entretanto algumas diferenciações são significativas. A proposição flusseriana traduzida em termos da antropologia filosófica de Martin Buber nos diria que a referência ao Isso é discursiva e a referência ao Tu é dialogal. E mais ainda: para Flusser seria um empenho vão o de se pretender uma experiência comunicativa direta e de primeira mão do Isso das coisas do mundo, pois as informações são produzidas nos diálogos e podem ser sintetizadas de informações já existentes, e somente depois disso é que se faz possível sua difusão através dos discursos. Analogamente a Buber, que dizia ser o homem um ser relacional e apontava para dois modos básicos de relação: o modo Eu-Tu e o modo Eu-Isso, Flusser caracteriza diálogo e discurso como dois modos básicos de atos comunicativos que se estabelecem entre as memórias de um eu e um (ou vários) tu, enfatizando que a fonte dos novos conhecimentos é o diálogo e os nomes próprios nele nomeados. Nas relações dialogais, informações são produzidas. Os discursos apenas as transmitem. A perspectiva flusseriana transpõe a concepção de Edmund Husserl do “mundo da vida” como uma rede de intencionalidades concretas para um novo contexto: a antevisão da sociedade telemática emergente. Este novo contexto vital do gênero humano se configura como uma sociedade em redes, portadora de novos horizontes de possibilidades relacionais para aquilo que Martin Buber chamou de “a vida dialógica” (das dialogische Leben). A perspectiva flusseriana é convergente com a perspectiva de Rorty de que nessa “vida dialógica” tanto a identidade do eu, como o seu senso de comunidade (sua aptidão a dizer “nós”) são produtos da tecedura de uma rede de descrições e redescrições. Nessa rede não há verdades perenes e totais, apenas contingentes e interiores a discursos passíveis de reconstruções. O discurso flusseriano faz uma apologia da liberdade e da criação num tempo de rupturas, descontinuidades e transições críticas na organização da cultura. Ele aponta para o limiar de novas institucionalidades, apoiadas em novos modos de interação e tecnologias comunicativas. Andreas Ströhl identifica que a mais importante contribuição dos “innovative writings”5 flusserianos é teorizar, e por fim abraçar “[…] the epochal shift that humanity is undergoing from what he termed linear thinking (based on writing) toward a new form of multidimensional, visual thinking (embodied by digital culture)”6 (STRÖHL, 2007). Flusser não é – nem quer ser – um observador impassível. Seus textos nos comunicam uma aposta (e nos querem seduzir a apostar junto com ele): “que na nova cultura digital e na nova sociedade telemática emergente o diálogo possa ser afirmado como o ‘valor mais alto’” (FLUSSER, 1987, p. 98). Em sua aposta Flusser não é ingênuo. Ele reconhece e identifica o poder manipulador dos meios de comunicação de massa. Para isso constrói uma tipologia de padrões comunicativos discursivos e aponta que foi o discurso anfiteatral que configurou os modernos meios técnicos de comunicação de massa. Nesse tipo de discurso os diversos receptores somente podem receber as mesmas informações. Não lhes são disponíveis canais de transmissão que possam servir de suporte para interações dialogais. Para Flusser, a autêntica comunicação só é possível quando “dialogue and discourse balance each other out. If, as we see today, a discursive form dominates, which prevents dialogues from taking place, then society is dangerously close to decomposing into an amorphous crowd”7 (FLUSSER, 1993, p. 232). Ele identifica na televisão os mais fortes exemplos do discurso anfiteatral, e aponta como ela enfatiza as características do circo: “[...] its massifying effect, the false freedom, the lack of responsability, the impossibility of a dialogue, the passivity vis-a-vis the black box, the magical power of this box, the ontological alienation with all its aesthetic, epistemological and political consequences and the programmed behaviour”8 5 “escritos inovadores” 6 “[...] a mudança que a humanidade está passando, o que ele chamou de pensamento linear (baseado na escrita) em direção a uma nova forma de pensar multidimensional e visual (incorporada pela cultura digital)” 7 “diálogo e discurso estão em equilíbrio. Se, como vemos hoje, um discurso prevalece, o que impede o diálogo, então, a sociedade fica perigosamente perto de se transformar em uma multidão amorfa” 8 “[...] seu efeito massificante, a falsa liberdade, a falta de responsabilidade, a impossibilidade de diálogo, a passividade cara a cara com a caixa preta, o poder mágico desta caixa, a alienação ontológica com toda a sua estética, consequências epistemológicas e políticas e o comportamento programado” Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 141 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo (FLUSSER, 1998, p. 285). Ele destaca que o poder manipulador dos meios de comunicação de massa repousa principalmente na influência exercida sobre os receptores com a difusão de discursos eclipsando os diálogos. Por fim ele adverte como podem ser perversas as consequências da articulação simbiótica de duas estruturas eminentemente discursivas e não dialogais: a anfiteatral dos meios de comunicação de massa e a piramidal dos partidos políticos. A aposta flusseriana pode ser entendida como um empenho pelo resgate de “vida dialógica”, tão cara a Buber e Husserl. Mas apenas se isso não for confundido com a nostalgia regressista de padrões relacionais arcaicos. Flusser não quer se rebelar contra a modernidade. Sua aposta é a radicalização de uma de suas possibilidades modernas redesenhando formas e estruturas discursivas em formas e estruturas dialogais, redesenhando o balanço entre os campos dos discursos e dos diálogos na nova sociedade telemática emergente. Em síntese, a aposta flusseriana aponta para a possibilidade de novos desenhos institucionais, não apenas tecnológicos. Para Flusser, a sociedade telemática emergente reconfigura a rede de intencionalidades concretas do “mundo da vida”. Peça-chave dessa reconfiguração é o “apparatus-operator complex” que atua como vetor dinâmico das mudanças sociais e tecnológicas contemporâneas redesenhando o modo de organização da cultura. Para isso ele “[...] devours texts, to spit them out again as techno-images” (FLUSSER, 1998, p. 151). Assim, a escritura dos textos perde centralidade na organização da cultura contemporânea, e com ela também a consciência histórica. O “pensamento em linha”, que se desdobra nos textos escritos e na consciência histórica, é agora não mais que um insumo do novo “apparatus-operator complex” produtor de imagens técnicas, que são o suporte para a hegemonia cultural de um novo modo de pensamento: o “pensamento em superfície”, que se desdobra nas imagens digitalizadas e na nova consciência mágica, que redesenha os horizontes e fronteiras do real e do virtual. 3. Uma nova imaginação Para Flusser, a principal tarefa que se coloca diante da humanidade contemporânea é a da crítica 142 da tecno-imaginação. Para isso necessitamos de orientação e autonomia, o que pode ser uma das principais funções das relações dialogais. Ele alerta que, sem o exercício dessa crítica, o que se seguirá é a reprodução ampliada do aparato de programação da vida. Andreas Ströhl radicaliza as implicações das tendências apontadas por Flusser, afirmando que “[…] the apparatus’s pictorial diarrhea will then make sure we will drown in a messy flood of kitschy aesthetic pictorial shit”9 (STRÖHL, 2007). O cenário flusseriano da projeção de futuro é uma grande provocação. Sua intencionalidade é nos provocar a responder: como podemos ser críticos e viabilizar meios dialógicos de filtragem e busca em meio às “contemporary media arts”10 e seu universo de imagens técnicas. Sem isso, a tendência prevalecente será que tecnologias, textos e imagens tradicionais serão engolidas pelo aparato. Nosso pensamento crítico vive um momento de transição. Ele perdeu a velha “terra-firme” da escritura textual e da consciência histórica, sobre os quais havia se habituado a encontrar os meios adequados de expressão. A modernidade contemporânea já atravessou um limiar que destituiu na nova organização da cultura digitalizada a centralidade desses velhos suportes (os textos superados pelas imagens técnicas e a historicidade de um tempo linear superada por complexos e descontínuos modos de imaginação). A crítica flusseriana implica mais que uma simples apologia da interatividade. Ela visa qualificar a interatividade, e nessa qualificação afirmar uma interatividade a serviço da dialogicidade, não apenas da difusão de padrões discursivos. Encontramos na atitude flusseriana significativa convergência (mas também forte radicalização) com relação a um velho texto de Bertolt Brecht (datado de 1925) sobre os padrões comunicativos do rádio: [...] quite apart from the dubiousness of its functions, radio is one-sided when it should be two. [...] It is purely an apparatus for distribution, for mere sharing out. So here is a positive suggestion: change this apparatus over from distribution to communication. The radio would be the finest possible communicati9 “[...] a imagem do mecanismo da diarreia trará a certeza de que nos afogaremos em poças imundas enquadradas em uma estética cafona de sujeiras” 10 “artes da mídia contemporâneas” Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 Roberto Bartholo Jr on apparatus in public life, a vast network of pipes. That is to say, it would be if it knew how to receive as well as to transmit, how to let the listener speak as well as hear, how to bring him into a relationship instead of isolating him. On this principle the radio should step out of the supply business and organize its listeners as suppliers. Any attempt by the radio to give a truly public character to Public occasions is a step in the right direction.11 (BRECHT, 1925). A implicação mais radical da crítica flusseriana do “apparatus-operator complex12” diz respeito a uma dimensão nevrálgica da “produção de sentido”: o sentido da liberdade na condição humana. Essa implicação é apontada por Andreas Ströhl na indagação: “[...] how does the process of personalisation of the media, of their material possession, of the environments they create, and of their surface design affect our society and culture?13“ (STRÖHL, 2007). Para Flusser, vivemos o limiar de novas condições de possibilidade, novos espaços de experiência e novos horizontes de expectativa para a dialogicidade na condição humana. A ruptura com uma relação servil aos discursos programados do “apparatus-operator complex” nasce da aposta na possibilidade de espaço para diálogos em meio à interatividade propiciada pelo novo universo das imagens técnicas. Isso implica ousar um redesenho das institucionalidades no novo modo de organização da cultura. Um re-desenho que precisa circunscrever e delimitar campos de vigência para novos padrões de relações de poder, nascidos da emergência de uma nova dualidade assimétrica, imposta pelo novo par “programadores e programados”, como dualidade-chave nas novas relações de poder e dominação no mundo contemporâneo. 11“[...] além das dúvidas sobre as suas funções, o rádio é parcial quando deveria ser imparcial. [...] É apenas um aparato de distribuição, de mera partilha. Então, eis uma sugestão positiva: mudar este aparato de distribuição para comunicação. O rádio seria o aparato de comunicação de mais sucesso na vida pública, uma vasta rede de canais. Isso significa dizer que seria se soubesse como receber e como transmitir, como deixar o ouvinte falar assim como ouvir, como trazê-lo para a relação ao invés de isolá-lo. A partir desse princípio, o rádio deveria se afastar da comercialização e transformar seus ouvintes em fornecedores. Qualquer tentativa do rádio de dar um verdadeiro caráter público às ocasiões públicas é um passo na direção correta.” 12 “complexo aparelho-operador” 13 “[...] como o processo de personalização da mídia, do seu poder material, dos ambientes que cria, e de sua estruturação afetam nossa sociedade, nossa cultura?” A afirmação da liberdade no novo contexto não se efetiva apenas pela possibilidade franqueada pelas novíssimas tecnologias da comunicação do usuário vir a se tornar um operador de “personalised media14” ou “media environments”15. A ampliação dos limites da interatividade através de fluxos reversíveis e multidirecionais de informações pode servir de suporte para transformar usuários em operadores, mas isso não basta para fazer deles autênticos programadores. Os operadores são apenas aptos ao exercício de um nível de “controle de segunda ordem” vis-à-vis a programação embutida nos novos dispositivos comunicativos da cultura digital contemporânea. Nas palavras de Andreas Ströhl: […] they do not have any access at all to the programme behind the apparatus whose operators they have become, neither in a technological nor in a political, theoretical/reflective or economic sense. However, they enjoy what they have been programmed to believe they have gained: more mobility, more freedom, and more self-determination. […] iPods create iOperators. The more the apparatus allows for a personal design, personal settings of the software or the interface, the more they become involved and dependent on the function they are taking over in the black box apparatus-operator complex. If everybody is programmed to be such an operator, there will be only operators left, and everybody will have become part of the machine: robots.16 (STRÖHL, 2007). “A exigência que se nos coloca é a de ousarmos dar o salto na nova imaginação” (FLUSSER, 2007a, p. 170)17. Essa é, para Flusser, a tarefa 14 mídia personalizada 15 ambientes digitais 16 “[...] eles não têm qualquer acesso ao programa por trás do aparelho dos quais se tornaram operadores, nem em um sentido tecnológico, nem em um sentido político, nem em um sentido teórico/reflexivo, nem em um sentido econômico. Contudo, eles apreciam o que foram levados a acreditar que ganharam: mais mobilidade, mais liberdade e mais autonomia. [...] iPods criaram iOperadores. Quanto mais o aparelho permite configurações pessoais, definições pessoais do software ou interfaces, mais eles se tornam envolvidos e dependentes das funções que estão adquirindo do complexo aparato-operador na caixa preta. Se todo mundo é programado para ser tal operador, sobrarão apenas operadores, e todo mundo se tornará parte da máquina: robôs.” 17 A frase é uma citação literal da tradução do texto original alemão de 1990 Eine neue Einbildungskraft (Vilém Flusser Archiv – http://www. flusser.khm.de) incluída na coletânea organizada por Rafael Cardoso. A mesma questão já era apresentada no encerramento do livro clássico Filosofia da Caixa Preta, primeira edição brasileira de 1985. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 143 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo urgente do filosofar contemporâneo. Para a aposta flusseriana, a ousadia da nova imaginação não diz apenas respeito ao re-desenho de categorias epistemológicas, nem diz apenas respeito ao discurso da crítica intelectual que duvida e questiona as certezas das crenças. Ela inclui essa crítica, sem se fechar à “proximidade do em tudo diferente”. E nisso se diferencia do percurso que hegemonicamente trilhou e trilha a cultura dita “ocidental”. Sem a abertura para a proximidade com o em tudo diverso, o discurso hegemônico ocidental se institui a si mesmo como uma intelectualização autoreferida, e prolonga em infindável ritualização uma “conversa fiada”. Nela se fala cada vez mais para se significar cada vez menos. A aposta flusseriana quer redesenhar o campo de vigência de diálogos e discursos e quer, apoiada na nova imaginação crítica, re-desenhar o mundo da vida e sua rede de intencionalidades, valorações e vivências concretas, abrindo campo para a efetivação de capacidades “[...] que até agora apenas dormitavam em nós” (FLUSSER, 2007a, p. 177). Mas para isso essa nova imaginação terá que, em meio a um novo contexto de produção de sentido, fazer suas a tarefa e a oportunidade de priorizar a pergunta: liberdade para que? e desmitologizar o rito dos discursos programados do “apparatus-operator complex”. Recuperar a “proximidade do em tudo diferente” é antes de mais nada experienciar limites. Inclusive limites para a pretensão de se vir a ser programador de tudo. Não se trata apenas de franquear aos programados o acesso aos códigos e habilidades dos programadores. Trata-se, antes – e principalmente –, de delimitar campos de vigência para discursos e diálogos, e para atividades programadas e não programadas em nossas vidas. Em termos buberianos, a relação programador/ programado é do tipo eu/isso. As relações do tipo eu/isso não são intrinsecamente más. O que pode ser ruim é a imposição de relações do tipo eu/isso inviabilizando e excluindo espaços de encontros e diálogos do tipo eu/tu. Mas também é possível imaginar relações do tipo eu/isso operando a serviço de relações do tipo eu/tu. Na perspectiva rortyana, discursos são descrições do mundo segundo o cânon de um vocabulário instituído. Eles são sempre em prosa, reproduzem o 144 cânon e não o subvertem. Para Rorty, as redescrições começam com a subversão do cânon, propiciada pela ousadia poética de carregar as palavras com novos significados. As palavras inaugurais de novas descrições são metafóricas. É por isso que elas podem expressar, com vocabulários antigos, novas “dizibilidades”. A comunicação dialogal é aberta à proximidade do “de todo diferente”, da alteridade do outro. A mútua compreensão em relações dialogais autênticas apoia-se em interpretações metafóricas que promovem recíprocas interferências. A comunicação dialogal é aberta à tecedura de uma infindável rede de descrições e re-descrições. Assim, numa perspectiva rortyana a nova imaginação flusseriana deve, portanto, propiciar uma ampliação da permeabilidade dos discursos aos diálogos, subvertendo os cânones fixos das conversações em prosa, ampliando o campo de novas “dizibilidades”, de novas descrições e re-descrições. Vivemos hoje, na academia, um tempo marcado pelos efeitos mais perversos de um eclipse da erudição, que Lindsay Waters, antigo editor da Harvard University Press, nos alertou em livro publicado em 2004 (WATERS, 2004): a produção intelectual dita qualificada evidencia crescente insensibilidade para arriscar respostas face a face aos apelos das presenças. Os caminhos de aprendizado e formação terminam por se deixar identificar com uma autodestrutiva corrida louca, que faz com que o norte da atividade universitária se resuma em atingir indicadores de produtividade em pesquisa, concebidos como fruto de um mau uso e abuso da cientometria. As novas gerações são empurradas a escrever cada vez mais papers para publicação em periódicos científicos de circulação internacional, indexados e ranqueados segundo o cálculo de seus “fatores de impacto”, sem permitir-lhes um minuto sequer para se perguntarem sobre as condições de produção (e comércio) de tais indicadores. Nesse contexto é árdua tarefa se afirmar como um acadêmico erudito, cuja obra não se deixe reduzir unidimensionalmente a uma produção seriada de papers, escritos para serem transformados em estatísticas a serviço da gestão da produção de uma produção intelectual dita qualificada que se fez surda para a verdade da ácida ironia do Premio Nobel de Física Wolfgang Pauli, ao dizer: “não me importo com Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 Roberto Bartholo Jr seu pensamento lento. O que me incomoda mesmo é você publicar mais rápido do que pode pensar.” (PAULI apud WATERS, 2006, p. 5). Em síntese: o grande desafio acadêmico contemporâneo é legar um testemunho para as novas gerações de que é, sim, possível publicar sem perecer. Tudo depende de como tecemos nossas escrituras. 4. Uma advertência muito antiga Exemplares nesse contexto são a vida e a obra de Larissa Adler Lomnitz. Desde seu posto de observação na Universidad Nacional y Autonoma de México (UNAM), Larissa tem papel de destaque nos estudos das redes sociais, desde muito antes que o tema se tornasse ponto focal da atenção num mundo onde a web é peça-chave na organização da cultura. Aberta aos apelos e surpresas da vida vivida, sua obra dialoga com as realidades, desvela teias de relações e elabora interpretações. O que se nos apresenta em suas narrativas é um “mundo em camadas”, que tem nas bonecas russas sua melhor metáfora: realidades-matriochkas, onde outros mundos se fazem presentes uns dentro dos outros (LOMNITZ, 2009). Assim, diálogos e interpretações constroem e reconstroem nas teceduras do formal e do informal os desenhos dos espaços relacionais inter-humanos. Este é um ofício que exige rigorosos engenho e arte. Mas, antes de tudo, requer o exercício de uma liberdade muito especial: o desapego das certezas fixas e pré-estabelecidas e uma disponibilidade para renovados encontros com alteridades diversas. Isso exige a aceitação dos riscos e surpresas inerentes às autênticas relações dialogais. E assim permite evitar o que a escritora nigeriana contemporânea Chimamanda Adichie chamou, em notável palestra incluída nos TED-talks, de “o perigo de uma história única” (ADICHIE, 2009). A vida e obra de Larissa indicam os procedimentos e atitudes para encontrarmos as portas de acesso a renovados mundos possíveis, sejam eles situados nas favelas, nas universidades, nas empresas ou no sistema político: dialogar e interpretar. E não se satisfazer com a simples reafirmação do já sabido. Nem ter medo de arriscar dizer novas palavras. Ouso identificar nessa fecunda ousadia uma convergência de atitudes com a mística judaica, o que me foi despertado pela leitura de um texto de Esther Cohen (COHEN, 1999). Para a mística judaica medieval o território do mundo pode ser identificado com o território do texto, “um espaço povoado por letras e palavras que no fundo não são outra coisa que a natureza mesma” (COHEN, 1999, p. 18, tradução nossa). No livro Gênese, a utilização do plural na palavra criadora divina é indicativa de que, situado em meio a tal Criação de caráter verbal, o ser humano recebe um continuado chamado a ler e interpretar tal mundo inconcluso. Como aponta Esther Cohen, ler o mundo criado “é situá-lo em perspectiva” e interpretá-lo “é dar-lhe corpo e vida” (COHEN, 1999, p. 18, tradução nossa). E é assim que “a mística judaica é uma hermenêutica da ação” e a interpretação é uma forma privilegiada de ação sobre o mundo. A mística judaica medieval fez do dito do profeta Isaías (51:16) “pus minhas palavras em tua boca” uma referência-chave para a compreensão de como o ser humano, sabendo-se coautor e copartícipe do universo, pode, pela interpretação das escrituras do mundo, ser também responsável. Nesse contexto, as interpretações são empenhos dialogais que se estabelecem entre a pessoa estudiosa do Torah e Altísimo. E, como aponta Esther Cohen, novas interpretações são palavras saídas da boca da pessoa sábia que encontram acolhida com gozo da parte do Altíssimo, “que as beija e saboreia seus aromas” (COHEN, 1999, p. 20). O mais notável nessa perspectiva é que interpretar não se deixa reduzir a um exercício estritamente cerebral, lógico-racional: é um empenho arriscado que exige a inteireza da pessoa, diz respeito a todo seu modo de vida e mobiliza todos os sentidos de seu corpo. Como adverte Esther Cohen, é somente dentro dos rigores e exigências de tal empenho dialogal que o Zohar (texto clássico da cabala medieval) abre a Torah para um mundo que é, ele também, escritura, e ao fazê-lo vislumbra “a possibilidade infinita de recriá-lo interpretando-o”, para então afirmar que “as novas interpretações sábias se convertem em novos firmamentos” (COHEN, 1999, p. 20-21, tradução nossa). Fica assim expressa uma estreita relação entre as palavras e os mundos possíveis, entre os atos de nomear e criar. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 145 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo George Steiner é um pensador crítico contemporâneo que faz um diagnóstico sombrio do chamado pensamento pós-modernista: A humanidade instruída se vê abordada cotidianamente por milhões de palavras, impressas, emitidas por rádio ou televisão, que aludem a livros que nunca se abrirão, música que nunca se escutará, obras de arte sobre as que nunca vai pousar nenhum olhar. Um perpétuo murmúrio de comentários estéticos, juízos improvisados e pontificações enlatadas inunda o ar. No plano da interpretação e valoração crítico-acadêmica, o volume de discurso secundário desafia qualquer inventário. (STEINER, 1991, p. 38, tradução nossa). O desequilíbrio entre o secundário e seu objeto, entre o ‘texto’ – onde incluo o objeto de arte, a composição musical ou a dança – e o comentário explicativo-valorativo que este gera, raia o grotesco. O discurso parasitário se alimenta de enunciados vivos; e como nas cadeias tróficas microbiológicas, o parasitário por sua vez se alimenta de si mesmo. Abundam a crítica, a diacrítica, e a crítica da crítica. (STEINER, 1991, p. 65, tradução nossa). A crítica de Steiner aplicada aos espaços universitários contemporâneos denuncia a esterilidade de exercícios formais de redação de papers apoiados nas “imunidades dos saberes indiretos” (STEINER, 1991, p. 55, tradução nossa). Quando esta atividade se institui a si mesma como um fim em si e pedra angular da excelência acadêmica, passamos a habitar um mundo onde palavras que não querem dizer algo a outros nem tampouco fazer algo com isso sustentam um palavrório irresponsável. Os espaços do diálogo acadêmico podem ser sufocados num “marasmo cinzento” (STEINER, 1991, p. 51, tradução nossa). É importante termos em mente que a crítica de Steiner não é dirigida contra as interpretações per se, mas sim contra os discursos estéreis e repetitivos, que somente aportam adições inócuas ao já sabido e esgotam-se em confirmações repetidas de si mesmos, como um cumulativo diálogo de surdos. A mística judaica medieval advertia contra riscos análogos aos da crítica de Steiner, reconhecendo que, se a palavra sábia pode criar mundos, essa não é, infelizmente, uma prerrogativa que lhe seja exclusiva, pois, como nos aponta Esther Cohen, “também as más interpretações criam 146 firmamentos, ainda que confusos, falsos e abismais” (STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa). E no Zohar (65-67) está escrito que interpretações vazias de entendimento e compreensão podem ser apropriadas por línguas mentirosas e convertidas em um falso universo chamado Tohu (confusão). Este é um alerta muito forte, pois em meio ao Tohu criam-se condições para que a morte venha a vitimar multidões sem causa alguma. Se, por um lado, há interpretações fecundas e vivificantes, por outro também as há estéreis e mortais. Em síntese: a sabedoria não é a única e exclusiva potência criativa. Daí o empenho da mística judaica medieval em advertir que “havia que se estar atento para deter o passo de interpretações que ‘matam’ ou que nos conduzem a uma ‘fenda do grande abismo’” (STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa). Diálogo e interpretação são os elementos de uma reiterada confrontação com a alteridade e a responsabilidade por interpretações elaboradas, “sabendo que cada letra e cada palavra edificam um bom pedaço de terra ou um corrupto pedaço de céu” (STEINER, 1991, p. 26, tradução nossa). Se somos herdeiros de uma “cultura do comentário”, isso não tem necessariamente que implicar que neguemos o texto para somente afirmar a existência e o valor das interpretações. Ou, ainda pior, que dando um passo adiante até uma fenda do abismo, percamos também de vista quaisquer vestígios das presenças das alteridades em nossas vidas vividas. Essa é a violência maior do discurso monologal: afirmar-se a si mesmo como o conhecedor da alteridade dos outros e o instituinte de uma história única a esse respeito. Tal violência e desmesura podem dar nascimento a “um corrupto pedaço de céu”. Mas diálogos e interpretações também podem nos abrir horizontes para “um bom pedaço de terra”. 5. Sobre miragens, desertos e travessias Na abertura dialogal afirmam-se possibilidades de interlocução que implicam resposta e responsabilidade. Os reducionismos maniqueístas das “histórias únicas” são aqui de nula serventia. Disso nos adverte exemplarmente Hans Jonas: [...] num primeiro olhar parece fácil diferenciar entre a técnica promotora do bem e a nociva, se Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 Roberto Bartholo Jr considerarmos apenas os fins da utilização das ferramentas. Arados são bons, espadas são ruins. Na era messiânica as espadas são transformadas em arados, ou, traduzido em termos da tecnologia moderna: bombas atômicas são más, mas fertilizantes químicos, que ajudam a alimentar a humanidade, são bons. Aqui salta aos olhos o dilema mistificador da técnica moderna. Suas ‘legiões de arados’ podem no longo prazo ser tão nocivas quanto suas ‘espadas’. (JONAS, 1987, p. 49, tradução nossa). A imbricação entre ciência e técnica, característica da chamada “evolução” da tecnologia moderna, pode ter sua estrutura formal descrita na terminologia de Galileu Galilei como o empenho por realizar uma sistemática transposição da via resolutiva (ou seja, a análise) para a via compositiva (ou seja, a síntese). O percurso pode ser caracterizado como uma sistemática recomposição artificial do decomposto (ou seja, a produção de novas sínteses). A abertura progressiva dos novos horizontes de factibilidade para a intervenção engenheiral se inicia no âmbito da mecânica, para progressivamente se ampliar incorporando os da química, da eletrodinâmica, da física nuclear, da informática, da biologia molecular, num processo que parece desconhecer limites e interdições. Na instauração desse processo devemos ter em mente que a Revolução Industrial foi uma mudança radical no modo de produção, não apenas a introdução de novos produtos. Mesmo quando os novos teares ingleses, movidos a vapor, ainda produzem os mesmos produtos antigos, são veículos de radicais transformações. Emerge com forte dinamismo um novo setor da economia, produtor dos meios de produção necessários para as novas unidades produtivas, com destaque para os insumos fundamentais: ferro e carvão. As transformações em curso implicam uma intricada rede de inter-relações: extração de matéria bruta, produção de matéria-prima, instrumentalização econômica da energia, transporte, mercado de trabalho. Somente após isso a inovação pode se instaurar com todo dinamismo nos setores de produção de produtos finais. De início suprindo ainda as antigas necessidades, até por fim atingir a produção artificial de novas necessidades de consumo e dos meios de sua satisfação. A química moderna abriu novos horizontes de factibilidade para o novo modo de produção. Emerge um novo ramo industrial como resultado da concretização de possibilidades teóricas de intervenção, na busca consciente de soluções para a substituição artificial-sintética de substâncias naturais escassas e caras. A petroquímica radicaliza o processo, viabilizando a produção de substâncias radicalmente novas, não meras cópias de um modelo de referência tradicional. E a produção do inteiramente novo propicia aplicações inéditas. Esboça-se já a pulsão mais característica da modernidade contemporânea, empreender uma intervenção que atinja “[...] a infraestrutura da matéria, pela qual são obtidas, através da reformulação de moléculas, novas substâncias segundo especificações, isto é, com características de utilidade planejadas” (JONAS, 1987, p. 34, tradução nossa). A estrutura interior da matéria transforma-se em objeto de engenharia, isto é, de reconstrução sintética segundo um projeto abstrato. E a indústria elétrica se associa a esse movimento, engendrando uma força universal cuja emergência é fruto de uma possibilidade teórica. Como situa Hans Jonas, “[...] a eletricidade é um objeto abstrato, não-corpóreo, não-material, invisível; na forma útil de ‘corrente’ ela é inteiramente um artefato, produzido pela transformação sutil de formas grosseiras de energia. Sua teoria teve que de fato estar completa, antes de suas aplicações práticas começarem” (JONAS, 1987, p. 36, tradução nossa). O percurso descrito foi levado às últimas consequências pela indústria atômica. A transição da indústria elétrica para a eletrônica evidencia um novo padrão de expansão dos poderes de intervenção da modernidade: a transição das tecnologias “energéticas” para as “informacionais”. Abrem-se novos horizontes de factibilidade para a intervenção engenheiral, ao mesmo tempo em que se insinua uma ruptura civilizatória, dada a radicalidade das transformações aportadas pelas chamadas novas tecnologias nos campos da microeletrônica, robótica, telemática, novos materiais, química fina, engenharia genética etc. Entretanto a instrumentalização engenheiral da informação genética é hoje o campo onde a transposição da via resolutiva para a via compositiva atinge certamente maior impacto. Se na engenharia do anorgânico pressupõe-se uma livre Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 147 Desatando a imaginação: breves notas sobre ética e crítica no mundo contemporâneo disponibilidade da matéria morta para a geração de novas formas, na bioengenharia contemporânea a morfologia dos organismos é o dado pré-existente, cujo “[...] ‘plano’ (= forma, organização) tem que ser descoberto, não inventado, para então, numa de suas corporificações individuais, se tornar objeto de ‘aprimoramento’ inventivo” (JONAS, 1987, p. 165, tradução nossa). E as experiências bioengenheirais não são feitas em modelos protótipos simuladores, passíveis de sucessivos testes e modificações, mas sim requerem disponibilidade sobre os originais, ou, nas palavras de Hans Jonas “[...] sobre o objeto no sentido mais completo, real e autêntico” (JONAS, 1987, p. 166, tradução nossa). Nesse contexto, toda produção de informação tecnocientificamente significativa é uma interferência direta e irreversível: a introdução arbitrária de modificações na cadeia genético-informacional da cobaia. Nesse ato afirma-se uma radical assimetria e unilateralidade de poder do presente sobre um futuro inerme. Diante disso, o mínimo que podemos nos perguntar é: “[...] qual o direito de alguém para, dessa forma predeterminar homens futuros; e mesmo que se suponha esse direito, que sabedoria, lhe capacita a exercê-lo?” (JONAS, 1987, p. 169, grifo do autor, tradução nossa). A situação presente é crítica porque o fundamento usual da legitimação dos poderes modernos, a ideia de utilidade para o gênero humano, revela-se uma miragem, quando o ponto fixo da referência utilitarista, o gênero humano, torna-se variável e objeto da manipulação. A neutralização ética da ideia de verdade e sua identificação com a mera correção preditiva de proposições relativas a relações causais observáveis (e mensuráveis) na descrição de eventos serve de suporte para uma identificação entre saber e poder, congruente com a clássica formulação de Francis Bacon, em 1626, expressa no desenho utópico da sua New Atlantis. Tal construção permeia o redesenho Iluminista europeu do ideal do homem culto. Nele se expressa uma postura diante da vida a ser atingida com base numa atividade espiritual autônoma, capaz de superar dialeticamente a tutela imposta heteronomamente pela educação religiosa popular. Essa perspectiva tem expressão de incomparável clareza e concisão nos versos do Zahme Xenien, de J. W. Goethe (tradução nossa): 148 Quem possui ciência e arte, tem também religião. Quem ambas não possui, tem religião. A tecnociência contemporânea se constitui em substância de coesão de um mundo artificial, fundado em hibridismos vários em que não se vislumbra mais delimitação clara entre o natural e o sintético. Os riscos de tutela, contra os quais o libelo Iluminista se dirigia, mudam de face. Não se trata mais de priorizar a necessidade de destutelarizar o intelecto contra os grilhões mentais da escolástica medieval. O anestesiamento do espírito crítico tem novos portadores. Superar a dominação tutelar de pedagogos, terapeutas e planejadores do sentido da vida é um desafio que ganha renovadas dimensões. Uma atualização dos versos de J. W. Goethe parece ser imperativa: Quem possui capacidade de confrontação ética com a modernidade tem também tecnociência. Quem isso não possui, tem tecnociência. A simples ampliação do espectro de poderes tecnocientíficos não deve ser identificada com um benefício para uma humanidade abstrata e genérica. Se tanto, é possível apenas associá-la ao benefício de um subconjunto social e historicamente determinado de pessoas. E a identificação desse subconjunto com a totalidade opera uma perversão do ideal da liberdade, para dele fazer elemento de uma retórica a serviço da perpetuação de privilégios. Já fomos advertidos por Max Weber em seu texto clássico “Ciência como vocação”, publicado por primeira vez em 1919, como edição ampliada de uma palestra dada em evento de 7 de novembro de 1917 promovido em Munique pela Liga Livre Estudantil da Baviera, e incluído em coletânea publicada em 1981, de que nenhuma ciência é isenta de pré-condições (WEBER, 1981). Uma pré-condição fundamental do produto do trabalho científico é que ele seja algo valioso de ser conhecido. Esta valoração é prévia ao trabalho científico em sentido estrito. Sendo assim, Os objetos de conhecimento Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 139-150, jan./jun. 2013 Roberto Bartholo Jr são vinculados a contextos de interesse não tematizados na pesquisa. É apenas nesse sentido que pode ser lícito afirmar que a ciência em ato seja valorativamente cega. Contudo, nas palavras do próprio Weber, existem sempre diferentes deuses a serviço dos quais a ciência pode ser praticada. É em função de qual deus se segue que são fixadas respostas à pergunta sobre o que é bom de ser conhecido. Na perspectiva weberiana, a ciência em si não é valorativamente neutra, embora as decisões sobre que deus seguir não possam ser consideradas cientificamente certas ou erradas. Se o programa de pesquisas tecnocientíficas contemporaneamente hegemônico segue ou não o deus verdadeiro não é, na perspectiva weberiana, uma pergunta passível de ser respondida pelos saberes científicos especializados. Todavia ela pode e deve ser colocada filosoficamente. Essa é uma condição para que a prática científica possa ter o valor de sua liberdade. Se a aposta originária do Iluminismo incluía a formação ética da pessoa pelo valor pedagógico da ciência, a práxis tecnocientífica corrente nos centros universitários e institutos de pesquisa da modernidade contemporânea dá cotidianas evidências de não corresponder a isso. Atribuir a tal práxis uma potência etizante da vida seria uma enganosa ilusão. Mas se hoje a formação tecnocientífica não se deixa identificar com uma formação ética da pessoa, isso não tem que implicar nossa desistência de dar ao vínculo entre ciência e vida aquela efetividade que Wilhelm von Humboldt queria associar à “ideia moral” (BARTHOLO, 2001b). Podemos não abrir mão do empenho por unir os efeitos da cientifização das condições de vida com as virtudes da autêntica cientificidade: modéstia, prudência, objetividade, crítica e autocrítica. Isso pode e deve permanecer parte vinculante de uma pedagogia da “razão razoável”. E justamente “razoável” por não ser apenas racional e por não pretender fazer da objetivização do racional a razão de ser de toda realidade. REFERÊNCIAS ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. Palestra proferida na Universidade de Oxford, Inglaterra, 2009. Disponível em: <http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html>. Acesso em: 18 fev. 2013. BACON, Francis. New Atlantis. Oregon, 1996. Disponível em: <http://oregonstate.edu/instruct/phl302/texts/bacon/ atlantis.html>. Acesso em: 18 fev. 2013. BARTHOLO, Roberto. Você e eu – Martin Buber: presença palavra. Rio de Janeiro: Garamond, 2001a. ______. Solidão e liberdade: notas sobre a contemporaneidade de Wilhelm von Humboldt. In: BURSZTYN, M. (Org.). Ciência, ética e sustentabilidade: desafios ao novo século. São Paulo: Cortez, 2001b. p. 43-59. BRECHT, Bertolt. The radio as an apparatus of communication. 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Una vez hecho esto, se pasará a la segunda parte del trabajo en donde, al final, podamos utilizar esta categoría para entender de mejor forma el fenómeno educativo, ligado a un caso particular como puede ser el de los tlamatimine o sabios nahuas en el México Tenochtitlan de antes de la Conquista y su proceso educativo en su presencia y su carencia en su ausencia para repensar la educación en el siglo XXI. Palabras clave: Identidad. Educación. Tlamatine/tlamatimine. Filosofía náhuatl. Filosofía de la educación. ABSTRACT IDENTITY AND EDUCATION In this paper we try to explain how the concept of “identity” can be understood philosophically, in order to understand how the social being is necessarily bound up with educational and transmission processes which depend upon each group in specific contexts. In this sense, these implications could build a bridge towards the idea of understanding education through identity and the multiple contexts of the individual and the collective processes. After having done that, we explain a specific case in which education and identity are tightly bond. This is the case of the tlamatimine (plural form of the náhuatl tlamatine) or náhuatl philosophers before the Spanish Conquista. This could shed light on the analysis of the relationship between education and identity in the 21st. Century. Keywords: Identity. Education. Tlamatine/tlamatimine. Náhuatl philosophy. Philosophy of education. * Candidato a Doctor en Filosofìa por la UNAM. Profesor definitivo del Seminario de Filosofía de la Educación – Facultad de Filosofía y Letras – Universidad Nacional Autónoma de México. Dirección institucional:Universidad Nacional Autónoma de México –Facultad de Filosofía y Letras. Colegio de Pedagogía. Circuito escolar s/n. Ciudad Universitaria. 04310, México, D.F. Endereço para correspondência: Caléndula 9, Xotepingo, Coyoacán. 04610, México, D.F. [email protected] / renato@ unam.mx Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 151 Identidad y educación I. Identidad En este apartado abordaremos tres momentos en los que la identidad podrá ser abordada mínimamente para efectos de este trabajo. En un primer momento veremos cómo puede entenderse la identidad como una categoría filosófica. En un segundo apartado veremos brevemente cómo podemos entender la identidad como un proceso que no sólo es individual, sino que requiere de lo colectivo para poder fraguarse. En el tercer apartado veremos la relación que guarda lo identitario con lo educativo de manera general. De la categoría de identidad Tal vez una de las categorías a la cual más se ha abocado la filosofía es al tema de la identidad. A partir de esta larga trayectoria es que giran los conceptos en torno al yo que, paradójicamente, necesita de otro, de alguien más, para que le dé sentido. Por más que la identidad sea el terreno de lo más íntimo, somos nosotros en tanto existen los otros. Como dice Adolfo Sánchez Vázquez: “Durante veinticinco siglos la filosofía occidental no ha hecho más que dar vueltas en torno a la noria de la identidad.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1994, p. 342). Es preciso aclarar que en este trabajo no se pretende realizar un recorrido por esta cuestión, sino partir de algunos puntos básicos para poder vincular la identidad con la educación. La identidad nace como parte de las múltiples preocupaciones de la filosofía por lo menos desde Heráclito, que al parecer la niega, y Parménides, en el sentido de una aceptación del ser, ya que ambos se preguntan por lo uno y lo múltiple y cómo es que puede darse la mismidad en la multiplicidad (KIRK; RAVEN, 1981). Aunque con respuestas un tanto distintas, ambos filósofos responden a preguntas tan cotidianas en torno a la posibilidad de identificación con lo que hoy podría ser una fotografía de nosotros mismos cuando éramos niños. Hay una posibilidad de identificarse, de decir soy yo mismo, aunque en estricto sentido no seamos los mismos. Hay una continuidad en el cambio, una mismidad. Dicha mismidad, de la que parte Aristóteles como principio de identidad (A=A), sirve para establecer 152 el principio de no contradicción en su Metafísica (Γ, 1005b 19-21). Para Aristóteles (1982), todos los entes, y no sólo los seres humanos, se conocen, se hacen uno con el conocimiento (noein) en el momento en que pueden encontrar la esencia de los entes en tanto que entes. En el caso de las cosas no humanas, tienden naturalmente hacia su propio bien. En el caso de los seres humanos, esto no siempre sucede así. El ser humano necesita de ayuda para encontrar su propia esencia. De ahí la necesidad de una ética y de un proceso de educación. En cualquier caso, al poder partir de que alguna cosa es eso mismo no otra, estaremos en posibilidad de hablar de ontología, de lo que las cosas son. Para Hegel (apud SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 1994), por su parte, esta definición de identidad (A=A) era fútil, trivial e inútil. Hegel sostiene que este principio es una mera tautología que no es de mayor utilidad para el sentido que quiere dar a la filosofía. La categoría se torna entonces social como un elemento filosófico, cosa que no podría haberse pensado en la Grecia Cláica, tal vez porque no existía el principio de individuación – socialización que cobrará sentido en la Modernidad. En cambio, Sánchez Vázquez propone las “señas de identidad” que dan sentido a la identidad, unas en mayor y otras en menor sentido. Es necesario admitir señas de identidad que no nos pertenecen, al igual que las que sí lo hacen, para construir la identidad. Es entonces que la identidad tiene que cargar necesariamente con la diferencia, con la alteridad, con el otro. Además, Sánchez Vázquez reitera que fue Marx, antes inclusive que Dilthey u Ortega y Gasset, quien reconoció que esta identidad es histórica y colectiva. Y no sólo la identidad es histórica sino que también lo es la conciencia de ella (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1994). Entonces, la identidad necesariamente es colectiva. Pero, ¿acaso no parecería ser una cuestión individual? ¿Cómo puede llegar a funcionar esta categoría entre lo individual y lo colectivo? Veremos una forma de aproximarse a esto a continuación. De lo individual a lo colectivo y de regreso María Noel Lapoujade establece que la identidad del yo es el camino intermedio entre la identidad ori- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 Renato Huarte Cuéllar ginaria y las identidades múltiples (LAPOUJADE, 1994). La identidad originaria es lo que en la historia de la filosofía se ha tratado de encontrar como identidad primigenia, arquetípica e ideal. Las identidades múltiples son aquéllas que se dan en lo colectivo pero que no dan cuenta del yo separado del colectivo. Para poder hacer esta distinción, Lapoujade (1994) sostiene que la identidad trascendental puede entenderse kantianamente al decantar lo empírico de lo a priori. Esto quiere decir que de lo que sucede en la realidad, iluminamos solamente las operaciones, las actividades, las maneras universales y necesarias dentro de ese dinamismo. En este sentido, Fichte – según Lapoujade (1994) – expresa que el principio de todo conocimiento humano es la identidad del yo. Al delimitar al yo, existe automáticamente un no-yo que es diferente al yo que se pregunta y delimita. Esta posible paradoja se resuelve en Fichte de la siguiente manera: “La medicación es pensada por Fichte del lado de la recíproca limitación, en tanto ella implica afirmación y negación, más aún, divisibilidad. La noción de divisibilidad denota la oposición yo / noyo, pero a la vez los concilia.” (LAPOUJADE, 1994, p. 407). La identidad entonces pasa a ser definitoria del ser y podemos hablar de su ontología; algo muy similar a lo que ya proponía Aristóteles en la Metafísica como veíamos líneas arriba. En este sentido no existe identidad sin la otredad que, entre otras muchas metáforas, ha sido retomada por Umberto Eco, Jacques Lacan y Jean Baudrillard como el “espejo” (LAPOUJADE, 1994). Este espejo no es la concreción material finita para el reconocimiento del yo según Eco. El yo surge literalmente de un espejismo según Lacan; una idea proyectiva de un yo que necesita de otra imagen para afirmarse, para crearse. Baudrillard, por su parte, dirá que el movimiento inverso a la paulatina conquista de la identidad es la de la pérdida que se da en la enajenación de la sociedad contemporánea de la pantalla y la red en lugar de la escena y el espejo. La pantalla a manera de superficie de proyección de imágenes caracteriza al hombre contemporáneo enajenado. Ya no somos, haciendo una paráfrasis shakespeariana, meros actores en las escenas que hemos de interpretar en nuestras vidas cotidianas. Con certeza muchos otros autores han hablado de la identidad desde las metáforas planteadas o desde otros lugares, tiempos y espacios. Al parecer también la identidad aristotélica ya implicaba este juego “de espejos” en donde la identidad implica otro elemento que le da sentido en similitud y en diferencia. A pesar de las diferencias entre las distintas posibilidades de aproximación al problema de la identidad, parece haber una constante en el uso de metáforas que van de lo colectivo a lo individual. Es de esta manera que lo que pensamos que lo más íntimo y cercano a nosotros mismos, eso que llamamos nuestra propia identidad resulta definida desde la otredad, desde un todos que en conjunto me representa y me dice en otra doble vía: “Yo no soy el otro sino algo distinto.” Ambas vías, la del yo y la de los otros, y la del nosotros y los otros, son algo movible y en constante cambio. Las identidades son mutables y en ellas se reconfiguran. Baudrillard, por ejemplo, por eso ya advertía del peligro de desdibujar los procesos identitarios con la globalización. Según su postura, el peligro de la reconfiguración identitaria no se daría de manera homogénea y neutral, sino desde los paradigmas que la sociedad del consumo pretendiera para las sociedades contemporáneas. Es por esto que podemos sostener que en un ir y venir que las identidades se van fijando, cambiando, reconstruyéndose. Ahora corresponde analizar qué ocurre con el vínculo entre identidad y educación. La identidad es una categoría amplísima y difícil de asir, pero indiscutiblemente está ligada a lo social. Siendo la categoría de identidad una idea filosófica, al tratar de vincular ambas ideas, estaremos tratando de realizar una aproximación filosófica al fenómeno educativo. La identidad en los procesos educativos La identidad como categoría o pregunta filosófica pretende abarcar a todos los entes en tanto tales. En el caso del ser humano, los procesos identitarios a partir de la cotidianidad nos remiten a escenarios distintos dependiendo de las relaciones que se den en dichos espacios. Estas relaciones dependen de al interacción con otros sujetos, idearios, imaginarios, entre otros. Alfred Schütz, discípulo de Husserl, da una explicación interesante al respecto desde la introducción que hace a la fenomenología de la de teoría sociológica contemporánea (SCHÜTZ, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 153 Identidad y educación 1974). Somos los mismos y sin embargo diferentes en los distintos espacios en los que se desempeña una persona. Un padre de familia lo es tal en tanto tiene un hijo. Esa función social no es la misma que la del esposo. Aunque el espacio sea la familia, dentro de ésta, existen espacios distintos pero sobre todo, relaciones distintas. En el trabajo esta misma persona tendrá un jefe y tal vez subordinados, suponiendo cierto tipo de trabajos. Pero en ese espacio no será tan importante el padre y el esposo sino más bien qué tipo de relaciones sociales lleve en la oficina. En cada uno de los espacios y dentro de las funciones sociales que desempeñe, la identidad específica será una distinta pero a la vez, parte de la identidad unitaria del individuo. Es decir, no existe una fragmentación esquizofrénica en las personas, sino que las relaciones humanas que se van dando en los distintos lugares en los que nos desenvolvemos nos van forjando y son relevantes en ese momento dado. Todas estas relaciones son parte de la socialización y se aprenden también socialmente, inclusive sin necesidad de un espacio educativo pensado ex professo. Es el mismo individuo con el mismo nombre y apellido para todos los casos. Si entendemos lo educativo mucho más allá de lo escolar y que una de sus funciones más importantes es la de la socialización, podemos entender a la vez esto que Aristóteles llamará la actualización de las potencialidades, que algo que se tenía en ciernes se lleve al aquí y al ahora. Esta es una forma tradicional de entender a la educación como un proceso en donde se desarrollen (actualicen, en términos aristotélicos) las potencialidades humanas. Cada sociedad y grupo específico, pro más pequeño que sea, encontrará en estos procesos diversas formas de definir lo propio de lo que no lo es. Si entendemos que los marcos identitarios se supraponen, a la manera schütziana, y se tienen identidades laborales, otras familiares otras nacionales, etc., entonces quedará claro que existirán procesos identitarios que definirán a un individuo o colectivo como parte de un conjunto más amplio de individuos dependiendo de los espacios y las relaciones que entre ellos se dé. Todos estos procesos se dan en marcos de transmisión con mayor o menor intencionalidad, siempre socialmente. Sea la escuela, la familia, 154 los medios masivos de comunicación o los amigos, en todos ellos hay relaciones que determinan la aceptación o rechazo en un grupo a partir de las relaciones que ahí se den. Estas relaciones son tramas sociales que se van dando y reconstruyendo con el tiempo. Cada marco social determinará lo que considera aceptable y lo que no, en esta multiplicidad de tramas de identidad. Además, estas tramas son históricas y parten de lo individual a lo social, de ida y vuelta. La categoría de identidad, si bien compleja y con un larga trayectoria, es asible y da oportunidad de trabajar fenómenos educativos no menos complejos y añejos. Existe la invitación a adentrarse en ellos y desde ahí enriquecer la práctica a la que nos dediquemos, en especial desde nuestra identidad como agentes interesados en los fenómenos educativos. Pero, ¿qué es lo que podemos llamar propiamente identitario en los procesos educativos? Retomando las metáforas analizadas en apartados anteriores, parecería que justamente la educación , en tanto formación humana en el sentido más amplio que se pueda dar de la palabra, busca ir encontrando eso que en cada momento se considera fundamental para el ideal de ser humano que se tenga. En el caso de las poleis griegas, por ejemplo, era claro que los ideales colectivos cambiarían entre Atenas y Esparta, por poner los casos paradigmáticos. A pesar de que en lo individual cada uno de los miembros de estas ciudades-Estado parecería fraguar su propia vida a partir de principios e ideales propios, no se distinguirían completamente del colectivo. Si bien la idea de pertenencia a estos espacios estaba dada más hacia el estudio de la dialéctica (lo que hoy entendemos por filosofía) incluida la discusión en torno a la guerra, sabemos que también había dialéctica, retórica y demás principios de la formación del griego de ese entonces. Cada pueblo tendrá estos rasgos de identidad, de conservación y de ruptura de modelos que conforman lo educativo y que también tienen que servir de base para cuestionarlos. De esta manera, pasaremos a la segunda parte de este trabajo en donde se verá cómo podemos aproximarnos en pleno siglo XXI a los tlamatimine o sabios nahuas que vivieron en la ciudad de México-Tenochtitlan hasta el siglo XVI. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 Renato Huarte Cuéllar II. La identidad revisitada: el caso de los tlamatimine nahuas De ser cierto lo que hasta este momento se ha planteado, se podría haber tomado para este ejemplo prácticamente cualquier ejemplo en cualquier cultura, en cualquier momento y lugar. No obstante, el caso de los tlamatimine resulta de particular interés por la cercanía y a la vez lejanía que implican estos personajes. Vincular identidad y educación nos remite a pensarlos desde múltiples perspectivas. Sin embargo, siendo la identidad un tema de tan antiguo raigambre dentro de la filosofía y la educación un tema amplio debatido, en esta ocasión considero ineludible hacer una breve reflexión desde la filosofía de la educación desde por lo menos dos perspectivas. La primera es, sin lugar a dudas, necesaria para entender a estos personajes: su contextualización y explicación, aunque sea de manera muy somera. En segundo lugar, buscaremos dar cuenta por qué justamente esta aproximación sigue siendo válida aún para nuestros días. Los tlamatimine: Los sabios o filósofos Miguel León-Portilla, tal vez uno de los primeros en estudiarlos en el siglo XX, nos narra que en las propias fuentes nahuas aparece la figura del tlamatini, sabio o filósofo (y si se me permite: pedagogo-psicólogo-maestro) náhuatl (LEÓNPORTILLA, 2001). Los tlamatimine (en plural) no son lo que hoy podríamos considerar alguien con un gran conocimiento “enciclopédico” o alguien que se dedica exclusivamente a teorizar pero se encuentra desvinculado del mundo cotidiano, que “vive a un metro sobre el nivel del suelo” como se dice cotidianamente. De lo que los informantes narraron al cura Bernardino de Sahagún, todavía hoy tenemos varias definiciones de lo que es un tlamatini De entre esas definiciones hay dos que co-inciden en un factor muy interesante. “Hace sabios los rostros ajenos, hace a los otros tomar una cara (una personalidad), los hace desarrollarla” (LEÓN PORTILLA, 2001, p. 65). Parece ser que este hecho de dar rostro es dar una personalidad. Para la filosofía náhuatl el objetivo y fin último de lo humano era la capacidad de tener un rostro (propio) y un corazón, como se verá más adelante. Los personajes que se encargaban de esta labor eran los tlamatimine. También nos dice Miguel León Portilla que este sabio: “Pone un espejo delante de los otros, los hace cuerdos, cuidadosos; hace que en ellos aparezca una cara (una personalidad)” (LEÓN PORTILLA, 2001, p. 65). Resulta por demás interesante que la metáfora que utiliza para la descripción de estos sabios o filósofos sea justamente la del espejo. Parecería que el rostro puede desarrollarse únicamente a partir del reflejo en el otro. Lo característico de esta descripción sería que el espejo está horadado, que tiene orificios. Veamos esto con mayor detenimiento. En ambas citas podemos ver que se está hablando de hacer en los otros una cara, crearla y hacerla sabia. Si, como indica León Portilla en la traducción, entendemos que los nahuas entendían por cara o rostro – el prefijo ix, como en ixtli (LEÓN PORTILLA, 2001) – la conformación de una personalidad; entonces podemos entender que nuestra cara es una forma de identidad. ¿De qué manera nuestro rostro, ixtli, debe ser conformado como identidad? ¿Cómo generar en los otros esta capacidad de poseer una cara y convertirse en personas? Para poder contestar tal vez convenga recordar que en náhuatl educación se dice justamente ixcuitia. nite, que incluye la raíz ixtli, rostro. El tlamatini también es descrito como un “espejo horadado”, aquel que permita que el rostro del otro pueda adquirir una apariencia a través del rostro propio, de nuestro rostro; pero horadado, “agujereado por ambos lados” (LEÓN PORTILLA, 2001, p. 67) , perforado, porque a través de este rostro, nuestra propia cara puede verse en los otros, en el mundo (LEÓN PORTILLA, 2001). Es una doble vía que permite que los otros se reconozcan en uno y uno se reconozca en los otros. Re-conocerse es conocerse de vuelta. Conocer de vuelta es identificar rasgos que había olvidado que eran míos. También implica que los otros identifiquen rasgos en mí. En esta doble vía en que podemos identificar rasgos de los rostros, de las personalidades humanas, está guardado lo que en español llamamos identidad. Podemos entender la identidad como el concepto de que entre dos cosas no hay rasgo Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 155 Identidad y educación alguno que lo distinga, haciéndolo idéntico, pero más bien es identificar rasgos comunes entre una y otra cosa. Recordemos, como tal vez hacía el Sócrates platónico en los diálogos, que la función del filósofo era la de educar en este sentido de paideia para la cual no bastaba un espacio delimitado para la función educativa, sino el mercado, el taller del herrero o cualquier otro lugar era el adecuado para entrar en contacto con la filosofía. Parecería ser que algo similar tendríamos en el papel de los tlamatimine que entraban en contacto con la gente y al parecer deambulaban por los espacios públicos conversando con los ciudadanos de esta gran metrópoli México- Tenochtitlan. Si se entiende al tlamatini como aquella persona que es capaz de guiar a los que guían y ser quien despierta, ilumina, abre los oídos, enseña la verdad sin olvidar amonestar de tanto en tanto (LEÓN PORTILLA, 2001); entonces la función que desempeñaba era una función compleja y de suma importancia para la sociedades nahuas de ese tiempo. Eran una fuerza vital que permitía a los nahuas conformarse en lo colectivo pero también en lo individual. El ámbito del tlamatini no se reducía al Calmecac o al Telpochcalli. Era una asunción de vida y un trabajo constante. Así como no se concebían distintos el filósofo, el pedagogo, el psicólogo, el maestro sino como una unidad en cada uno de los tlamatimine, así tampoco su función social estaba reducida al ámbito escolar. Eran parte de una sociedad en donde lo más importante era que cada quien desarrollara un rostro propio en un juego de espejos en donde las identidades cambiaban según el orden de la flor de la palabra. Entre las demás descripciones de estos sabios, se nos dicen que son como una tea caliente que se prende y apaga (LEÓN PORTILLA, 2001). Esto puede ser interpretado de múltiples formas. Por lo menos podemos decir junto con León Portilla que estos sabios eran como esa brasa caliente que, con el viento parece palpitar. Son el corazón de una sociedad que les permitía vivir y encontrar su forma de sentir que, en náhuatl, no se distingue del todo de la forma de pensar. Esta función de desarrollar un rostro y un corazón es la función educativa por excelencia que estos sabios podían ejercer con su 156 propia identidad y con su vulnerabilidad horadada como espejo. Basta decir que entonces adquirir un rostro era ser educado. Ser educado en el pleno sentido de la palabra: encontrar una identidad ligada a las cuestiones más básicas y fundamentales de lo que todo grupo social siempre se ha preguntado: ¿Quiénes somos? ¿Qué es aquello que sé y cómo puedo lograrlo? ¿Qué es aquello que me rodea? y otras tantas preguntas que, según el propio LeónPortilla, son las preguntas básicas que la filosofía articula en cualquier sociedad y no solo la así llamada “occidental”. Los nahuas tenían filosofía en tanto se hacían las mismas preguntas, aunque las respuestas no siempre fueran las mismas (LEÓN PORTILLA, 2001). La ausencia del tlamatine y su presencia Pero los tlamatimine ya no están aquí con nosotros de alguna manera. Fueron los primeros en ser asesinados durante la Conquista. Apenas y tenemos noticias de encuentros con los gobernantes nahuas en 1524 cuando llegaron los primeros doce franciscanos a tierras hoy mexicanas. Este encuentro con los gobernantes nahuas lo tenemos en la narración del Coloquio de los Doce que, al pedir hablar con los dirigentes indígenas, éstos respondieron: Lamentamos una cosa, que los sabios y prudentes señores, tan experimentados en el arte de la palabra quienes tuvieron antes que nosotros la carga del gobierno estén ya muertos; si hubieran podido escuchar de vuestra boca lo que nosotros hemos oído, ellos os habrían dirigido un amable saludo y una respuesta muy adecuada. Pero nosotros ¿qué podemos decir? Somos personas modestas y de poco saber. Es cierto que ahora tenemos la carga del reino y de los asuntos públicos, pero nosotros no tenemos ni su saber ni su sapiencia. (SAHAGÚN apud DUVERGER, 1990, p. 78-79). 1 Esto, excelsamente narrado por Bernardino de Sahagún en 1564 ya escribiendo desde Tlatelolco hace referencia a un México sin los sabios nahuas 1 Bernardino de Sahagún “Coloquios y doctrina cristiana con que los doce frailes de San Francisco enviados por el papa Adriano Sexto y por el Emperador Carlos Quinto convirtieron a los indios de la Nueva España, en lengua mexicana y española.” Libro I, Capítulo 6, equivalente a las págs. 78-79 de Duverger (1990). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 Renato Huarte Cuéllar (DUVERGER, 1990). Difícil sería re-construir la pérdida de los tlamatimine salvo tal vez honrosas excepciones de algunos de los frailes españoles. De cualquier forma no habría ya el mismo espejo, ni el mismo rostro, ni la misma guía, ni la misma luz (LEÓN PORTILLA, 2007). Y sin embargo, considero que al hacer este recorrido por una de las formas originarias que existieron en un momento es también decir que siguen estando con nosotros, como un elemento identitario no sólo de lo indígena, sino como elemento que da identidad, junto con otros más, de una forma de vincular y entender el vínculo que se da entre educación e identidad. Esto, ¿qué nos puede decir sobre la educación y la identidad en México y las distintas regiones de América Latina de principios del siglo XXI? Sin lugar a dudas algo de nosotros mismos como un gran espejo a la distancia de algunos siglos. Vivimos en una época distinta en donde nadie, en estricto sentido, vino a tomar el papel de los tlamatimine. ¿Quién nos guía? ¿Hacia dónde podemos y queremos ir? México, al igual que otros países, ha pasado por varias etapas en donde el modelo de por lo menos un siglo ha sido atribuirle a la escuela el mayor peso educativo. Al vivir en una sociedad en donde los padres no podían darle la mejor educación a los hijos, el Estado, a través del sistema escolar hizo patente lo que todavía es para nosotros ley a través de las diferentes constituciones de nuestros países, de una educación que en el mejor de los casos busca ser laica, gratuita y obligatoria que lleve a la sociedad, basada en el progreso de la ciencia, a formar parte de la sociedad de naciones. Al maestro se le asignó el papel educativo preponderante. La identidad que habría de construirse en el México del siglo XX era básicamente la identidad nacional. Aunque en cada país latinoamericano esto puede llegar a ser muy particular, considero que todos nuestros países estaban (o están) inmersos en esta idea modernizante. Es así que tenemos hasta el día de hoy, todos los ritos nacionales con un himno y una bandera, libros de texto de Historia, Geografía, hasta hace algunos años Lengua Nacional, entre otros. Los símbolos patrios existen ahí, ondeando o llamados a ser leídos para recordarnos de una identidad nacional colectiva que supuestamente es parte de la educación cívica de todos los niños que se viven en un territorio nacional. La identidad personal, entonces, ha quedado relegada a segundo término. Para una relación identitaria considero que hace falta el conocimiento de manera personal, cara a cara, rostro a rostro. Esto es impensable en la dinámica actual tanto por el número de estudiantes en cada grupo y por la carga laboral y el trasfondo de lo que se concibe como el deber magisterial, que en realidad es el deber como seres humanos Todo esto es pensado desde la asunción de que los profesores sean los que primordialmente tengan esta labor de conformar “identitariamente” a los niños y jóvenes del país. Aunque los grupos fueran pequeños, tiene que haber una base de confianza y de relación mutua para que pueda darse esta doble vía de comunicación. De cualquier forma vamos consolidando un rostro a lo largo de nuestras vidas. Encontramos rasgos de identidad en los héroes que vamos encontrando o vamos construyendo a lo largo de nuestras vidas. Vamos forjando en la cotidianidad espejos que, en el mejor de los casos, no funcionan como espejismos de la pregunta por el yo. ¿Dónde nos encontramos? Probablemente la mayoría de estas respuestas apelen a ser fortuitas. Tal vez pensemos que estamos educados al tener un diploma o título dentro del sistema “educativo”, pero entonces habremos desvinculado la idea de educación en una parcialización de agentes, temas, conceptos, etc. educativos. ¿Qué significa educar realmente? Es por esto que retomar e incorporar al diálogo contemporáneo a los grandes personajes de nuestras propias historias es un acto filosófico que nos remite a una recolecta de elementos perdidos pero presentes en cada una de nuestras tradiciones. Tomemos entonces a un noble grupo de nuestros antepasados como espejo a la distancia para que nos ayude a entender cómo es que la identidad y la educación están vinculadas. Educar es generar esa capacidad de ser uno mismo en plenitud, en donde educar también es educarse. A pesar de las barreras que puedan llegar a existir en los sistemas, prácticas y discursos, cuestionemos nuestra labor como educadores en distintos ámbitos y espacios: como padres de familia, como profesores, como guías, como amigos, como ciudadanos, como Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 157 Identidad y educación mexicanos que tenemos que compartir, desde nuestra propia identidad una identidad colectiva en diversos sentidos. Hablar de identidades individuales no está confrontado con las identidades familiares, culturales, regionales, nacionales y hasta mundiales. Traigamos de vuelta al tlamatini para que gracias a él la gente humanice su querer, reciba una estricta enseñanza, conforte el corazón, conforte a la gente, ayude, remedie y a todos cure (LEÓN PORTILLA, 2001). REFERENCIAS ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. de V. García-Yerba. 2. ed. Madrid: Gredos, 1982. (Biblioteca Clásica Gredos). DUVERGER, Christian. La conversión de los indios de la Nueva España con el texto de los Coloquios de los Doce de Bernardino de Sahagún. Trad. de Victoria G. de Vela. Quito: Abya-Yala, 1990. KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. Los filósofos presocráticos. Historia crítica y selección de textos. Madrid: Gredos, 1981. LAPOUJADE, María Noel. La identidad del yo. In: HÜLSZ, E.; ULACIA, M. (Eds.). Más allá del litoral. México: UNAM, 1994. p. 405-412. LEÓN PORTILLA, Miguel. Los sabios o filósofos. In: La filosofía náhuatl estudiada en sus fuentes con nuevo apéndice. 10. ed. Pról. de Ángel María Garibay. México, DF: UNAM, 2001 p. 63-74. ______. Visión de los vencidos: relaciones indígenas de la conquista. 20. ed. México, DF: UNAM, 2007. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Identidad e historia. In: HÜLSZ, E.; ULACIA, M. (Eds.). Más allá del litoral. México: UNA, 1994. p. 341-352. SCHÜTZ, Alfred. El problema de la realidad social. Buenos Aires, Amorrortu, 1974. Recebido em 03.08.2012 Aprovado em 05.01.2013 158 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 151-158, jan./jun. 2013 Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz A ESCOLA E OS SETE SABERES: REFLEXÕES PARA AVANÇOS INOVADORES NO PROCESSO EDUCATIVO Ricardo Antunes de Sá* Sonia Maria Marchioratto Carneiro** Araci Asinelli da Luz*** RESUMO Este artigo objetiva trazer contribuições aos educadores quanto aos processos de ensino e de aprendizagem na escola, com base no pensamento complexo de Edgar Morin e considerando as discussões da Conferência Internacional Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Presente, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE). É desenvolvida uma análise compreensiva e dialógica sobre os princípios necessários para se efetivar uma educação que possibilite aos educandos refletir e intervir no mundo presente e futuro, sob um outro olhar epistêmico para enfrentar os desafios do pensar e do conhecer hoje necessários, na busca de um novo modo de ser. Palavras-chave: Teoria da complexidade. Educação. Escola. ABSTRACT THE SCHOOL AND THE SEVEN KNOWLEDGE: REFLECTING ON INNOVATIVE ADVANCES WITHIN SCHOOL EDUCATION The article aims at contributing to educators` advancement in teaching and learning school processes, upon Edgar Morin’s book “The Seven Necessary Knowledge in Education for the Future” (2003) and discussions held by the International Conference The Seven Necessary Knowledge in Education for the Present, at Fortaleza (CE), September of 2010. There follows a comprehensive and dialogic analysis about some ∗ Pedagogo. Doutor em Educação. Professor Adjunto III. Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Setor de Educação na Linha Cultura, Escola e Ensino. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Endereço: José Rebelato, 240 – Sobrado – 01 – Xaxim – CEP: 81710010 – Curitiba–PR. Telefone: (41) 31526146. [email protected] ∗∗ Geógrafa. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Professora Adjunta IV. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Linha de Cultura, Escola e Ensino. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Endereço: Rua Carmelo Rangel, 1260 – CEP: 80440-050 – Curitiba–PR. Telefone: (41) 3342-6681 / (41) 91124514. [email protected] ∗∗∗ Doutora em Educação. Professora Associada. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Pesquisa Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Ambiente e Sociedade, do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Membro do Conselho e do GT-Educação da SBPC. Endereço: Rua João Luiz Costa, 21 – Jardim Social – CEP 82.530-140 – Curitiba–PR. Telefone: (41) 9162-4503. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 159 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo principles in view of an education enabling children and youngsters to be reflective and active in the world. Therefore, an in-the-present and for-the-future school needs another epistemic sight to cope with thinking and knowing challenges in the search of a new quality of well-being. Keywords: Complexity theory. Education. School. Introdução Este texto foca a escola contemporânea a partir da obra de Edgar Morin (2003) Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro e da Conferência Internacional Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Presente, realizada em setembro de 2010, em Fortaleza (CE). A Conferência, com participação de diversos grupos de estudos e pesquisas, de professores da Educação Básica e dos representantes de Secretarias de Educação Estaduais e Municipais de todo o Brasil, buscou valorizar os pressupostos epistemológicos e metodológicos da Teoria da Complexidade – segundo a sistematização de Edgar Morin – tendo em vista as experiências e discussões de sua incorporação à educação. Esse evento colocou em pauta preocupações recentes da educação brasileira, assim como de outros países, trazendo ao debate acadêmico-científico instigantes e inquietantes contribuições para a pesquisa e a formação de educadores e, a mais, abrindo perspectivas de reflexão sobre paradigmas emergentes da ciência e suas implicações na inovação das práticas educativas, presentes e futuras. A Conferência discutiu e clarificou pontos e nós da rede de pesquisadores e estudiosos que vêm tematizando o pensamento complexo, a fim de religarem os saberes dispersos das áreas do conhecimento, em vista de novas conexões entre as ciências da natureza e as sociais. Nessa perspectiva, entram em jogo implicações da conhecida máxima pascalina, na proposição de Morin (2005, p. 103): “Considero impossível conhecer as partes enquanto partes sem conhecer o todo, mas não considero menos impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes.” O evento foi uma iniciativa político-pedagógica que objetivou “[...] iniciar um profícuo diálogo entre escolas e universidades, para intercâmbio de saberes e de práticas pedagógicas capazes de iluminar 160 novos cursos de formação docente, a partir da complexidade” (CONFERÊNCIA..., 2010, p. 10). O artigo foi desenvolvido como um diálogo reflexivo sobre a Teoria da Complexidade e os desafios da escola contemporânea, com o especial objetivo de trazer contribuições aos educadores quanto aos processos de se ensinar e aprender na escola, sob uma perspectiva epistemológica com base no pensamento complexo de Edgar Morin e tendo como referência os eixos temáticos da sua obra – acima citada – e textos publicados nos Anais da Conferência. Nesse rumo, a escola precisa rever suas práticas sociopedagógicas para que as novas gerações aprendam a pensar, compreender, contextualizar e globalizar os saberes que emergem necessários à multidimensionalidade da vida-hoje. Conforme Antônio (2009), a educação necessita ser repensada sob uma nova epistemologia. Assim, um dos grandes desafios das práticas pedagógicas, atuais e do futuro, é transitar unitariamente pela diversidade do conhecimento, rompendo as fronteiras disciplinaristas rígidas – e isto enquanto uma questão filosófica central da Educação. Sobre isso, Santos (2008, p. 81) argumenta que “A complexidade [constitui] um corpo teórico que possibilita o resgate do elo perdido, o sentido do conhecimento para a vida”. As cegueiras do conhecimento e a escola A assertiva em foco remete à compreensão de que o conhecimento elaborado, notadamente o científico, é uma interpretação da realidade e, estendido à escola, privilegia o real pedagógico. Essa interpretação comporta erros e desvios, perturbações e ruídos que interferem na percepção intelectiva do educando, do professor e ou do pesquisador. As interpretações, por mais racionais e lógicas que possam parecer, incorporam sempre interferências subjetivas, emocionais e culturais, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz as quais são intrínsecas ao sujeito que opera a elaboração do conhecimento. É preciso considerar que – na escola, de maneira específica, e na vida de maneira geral – o desenvolvimento das capacidades cognitivas implica a inseparabilidade da paixão, da afetividade, da curiosidade e da imaginação. No entanto, essas dimensões só se tornam frutíferas para a emancipação e autonomia intelectual do indivíduo quando mantêm um equilíbrio dinâmico, o que significa que “A afetividade pode asfixiar o conhecimento, mas pode fortalecê-lo [...], a faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode mesmo estar na raiz de comportamentos irracionais” (MORIN, 2003, p. 20). A teorização sobre a escola, a organização das ações pedagógicas e a prática docente necessitam integrar um permanente diálogo com a prática in actu. Tal diálogo não é aleatório nem espontaneísta, mas referenciado a fatos e fenômenos pensados reflexivamente na construção de objetivações mediadoras entre os processos de compreensão, decisões e ações nos contextos culturais, para além de sistemas de ideias enquanto certeza de conhecimento. Daí que, as grandes interrogações sobre o conhecer pedagógico comportam “[...] desenvolver nova geração de teorias abertas, racionais, críticas, reflexivas, auto-críticas, aptas a se auto-reformar.” (MORIN, 2003, p. 32).O fenômeno mais distorcido que a racionalização pragmática pode trazer ao trato com o conhecimento científico em relação à educação é a fragmentação do conhecimento – sua reificação em pressupostos que simulam a explicação da complexidade do real e não dialetizam nem dialogam com a teia multidimensional da sociedade, do humano, da vida. Torna-se importante a escola contemporânea assumir que a racionalidade, e não a racionalização, é uma prerrogativa do conhecimento científico e da ação educativa. Uma postura de permanente diálogo epistêmico abre caminho a todos os professores e pedagogos que lidam com o conhecimento, para o avanço da educação. A racionalidade é saudável no diálogo com o real pedagógico em busca da compreensão e da elaboração de estratégias de intervenção para aprimorar, transformar e melhorar o espaço da ação educativa, a fim de intervir para humanizar, para criar uma ambiência cooperativa, colaborativa e sinceramente democrática: “Opera o ir e vir incessante entre a instância lógica e a instância empírica; é o fruto do debate argumentado das ideias, e não a propriedade de um sistema de ideias.” (MORIN, 2003, p. 23). A racionalização, em suas particularidades, pode causar distorção do exercício da racionalidade, com descambo ao autoritarismo teórico, para a visão unidimensional da realidade escolar que, no discurso, traveste-se de democrática e dialógica. Distorções da racionalização estão frequentemente presentes na área de formação de professores e estendem-se mecanicamente à prática escolar, deixando os educadores imobilizados para uma coerente reflexão crítica sobre o fenômeno educativo. Racionalizações pedagógicas acríticas cegam o diálogo e a produção de um conhecimento válido frente às complexas tessituras da organização escolar. Os fenômenos que se manifestam no âmbito da escola, sejam de ensino e de aprendizagem, de gestão, de organização e planejamento, de relações profissionais ou pessoais, comportam, por parte dos profissionais da educação, uma posição epistemológica, profissional e política. A dimensão epistemológica compreende a racionalidade científica, o método de investigação e a busca de respostas que possibilitem intervenções pertinentes e qualificadas na organização escolar, com o objetivo de que esta instituição cumpra seu papel formativo social, científico, político e cultural. A dimensão profissional articula-se às demais dimensões, na medida em que professores, pedagogos e técnicos têm claro seu papel e suas responsabilidades perante a natureza e a especificidade da escola. Esta dimensão estriba-se não apenas na básica questão salarial, mas evoca pertinências teórico-metodológicas no trato com a questão pedagógica. A dimensão política, por sua vez, é o compromisso com a formação do cidadão, sob os princípios da ação intersubjetiva no diálogo entre os diferentes e os diversos e do respeito à cooperação, à colaboração e à solidariedade. Morin (2003) define muito bem o trato do conhecimento lúcido e pertinente, enfocando que o saber necessário, para o presente e futuro, demanda lides educacionais que incorporem o racional e o Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 161 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo emocional, pois o conhecimento científico exige observação e auto-observação, crítica e autocrítica nos processos reflexivos e de intervenção. Os textos divulgados pela Conferência em foco (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000) destacam a necessidade de o educador buscar sentidos e significados com os educandos, a partir de atividades de observação e diálogo crítico-reflexivo sobre a multidimensionalidade do objeto em estudo, como maneira de se perceber as diferenças e as contradições existentes no mundo. Nesse contexto, surgem possibilidades de diálogo sobre a questão da verdade absoluta, do erro, da ilusão e da incerteza na construção dos conhecimentos, dada a subjetividade individual; esta, sempre vivenciada em diferenciações culturais, leva a que um objeto possa ser visto e olhado de várias maneiras, desde a percepção sensorial e a interpretação do vivido, passando por desejos, afetos e temores. Nessa linha de reflexão, os educandos poderão compreender a provisoriedade dos conhecimentos, alcançando entender que nem tudo que se sabe hoje será válido amanhã; além de visualizarem o erro não como oposição ao conhecimento – o que é normalmente entendido na cultura escolar –, mas sim como critério de avanço da ciência, em perspectiva de curiosidade epistemológica (FREIRE, 1996). Assim, quando o educando se percebe “[...] agente do processo de construção do conhecimento, em que o erro se torna parte integrante desse processo, sua curiosidade torna-se mais viva, dinâmica e contributiva.” (VIEIRA et al., 2010b, p. 4). Portanto, a consideração das cegueiras do conhecimento — a serem trabalhadas na escola — possibilita um dos saberes fundamentais para que os educandos passem a ver o mundo numa perspectiva contextual e flexível, em contraposição a uma visão linear e reducionista. Sob essa ótica, uma reforma de pensamento pedagógico - de natureza paradigmática e não programática, segundo Morin (2003) - faz-se necessária, pondo como questão fundamental da educação os pressupostos filosóficos para tratar e organizar o conhecimento. Isso exige dos educadores processos de auto-organização frente ao imprevisível e, consequentemente, capacidade de gerar mudanças e transformações na maneira de perceber a realidade 162 educacional e de construir o conhecimento. Os princípios do conhecimento e a escola Organizar o conhecimento é uma aptidão necessária para o cidadão de hoje, no acesso às informações e no saber como articulá-las, de modo a reconhecer e conhecer questões do mundo contemporâneo. Assim, torna-se essencial saber organizar os conhecimentos no sentido de aprender a aprender (MORIN, 2013). Organizar os conhecimentos não se reduz, entretanto, à classificações e categorizações externas, puramente conceituais, mas em uma apropriação hermenêutica de seus sentidos que possibilitem um estar-no-mundo mais autônomo e consciente. O conhecimento chamado “pertinente” relaciona-se à consideração da complexidade das diversas dimensões que constituem a realidade – física, biológica, histórica, econômica, cultural, política etc. Para tanto, é necessário superar o conhecimento disjuntivo, que impede a apreensão e compreensão de realidades complexas, em suas múltiplas interconexões e relações. Nesse sentido, é importante que os educadores, comprometidos com as novas gerações, desenvolvam um ensino que possibilite aos educandos pensar a realidade de forma complexa, em vista da sua formação como cidadãos éticos. Sob essa ótica, urge – na interação de interpretar e intervir – que a escola reelabore categorias para o enfrentamento dos desafios da atual sociedade globalizada, altamente científica e tecnológica. Com efeito, um conhecimento pertinente, do e no mundo, requer a evidenciação de eventos, fatos, fenômenos, dados, experiências nas suas perspectivas contextuais, globais, multidimensionais e complexas. Cabe, pois, designar esses aspectos de inteligibilidade conceitual como categorias. A categoria contexto situa os dados e as informações, denotando significados, sentidos, densidade etc., possibilitando a compreensão da tessitura do objeto estudado; porquanto, o educando só apreende os conhecimentos quando são contextualizados sob os aspectos global, geográfico e histórico, pois conhecer um dado isolado não lhe permite alcançar o entendimento do todo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz Por sua parte, a categoria global vai além do contexto, referindo-se ao conjunto das partes ligadas a ele, de modo inter-retroativo ou organizacional; refere-se, portanto, às relações entre as partes e destas com o todo e vice-versa. O todo não é a soma das partes. As partes possuem características e especificidades que, na sua dinâmica inter-relacional, auto-eco-organizativa, formam o todo; e este tem qualidades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem separadas umas das outras. Por isso, é preciso ter conhecimento do todo para entender as partes. A categoria multidimensionalidade relaciona-se aos diversos aspectos constitutivos do indivíduo e às várias instâncias da sociedade (econômica, histórica, política, jurídica, social etc.), interconectadas em configuração hologramática, isto é, sob o aspecto da presença do todo nas partes. O conhecimento pertinente, portanto, incorpora essa característica multidimensional da realidade, pois cada dimensão está inter-relacionada com a outra, de forma inter-retroativa permanente, modificando-se constantemente. Já a categoria complexo diz respeito às interligações presentes na natureza e na sociedade, urdidas pelas inter-retro-eco-ações; é a junção entre unidade e multiplicidade – o que foi tecido junto. Portanto, “[...] há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si” (MORIN, 2003, p. 38). Nessa perspectiva, a educação tem por finalidade promover o desenvolvimento da inteligência dos educandos, para se tornarem aptos a raciocinar sobre os objetos de estudo com base nas categorias de contexto, do complexo e do multidimensional dentro da concepção global; pois é dessa maneira que aprenderão a (re) ligar os saberes e ter condições de compreender as questões sobre o mundo e de intervir nele, criteriosa e responsavelmente, na prevenção e solução de problemas. Observa-se que um conhecimento pertinente não se caracteriza pela quantidade de informações, mas pela sua organização simultaneamente analítica e sintética das partes religadas ao todo e do todo religado às partes. É dessa maneira que o educando terá condições de apreender a complexidade, as conexões ocultas e intrínsecas a toda a realidade. Tal encaminhamento pedagógico opõe-se ao conhecimento disjunto, em favor da articulação entre as diversas áreas de ensino, a partir de uma relação dialógica, via um planejamento aberto, flexível, que possibilite um trabalho escolar problematizador (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000; MARTINAZZO, 2010a). Nessa linha destaca-se a valorização da transversalidade curricular e de projetos educacionais inter e transdisciplinares, que favoreçam a construção conjunta e colaborativa do conhecimento escolar. Para Morin (2003), esse é um dos desafios da educação do presente, na medida em que há, de um lado, uma inadequação profunda entre os saberes divididos e, de outro, as realidades ou problemas multidisciplinares, multidimensionais, globais e planetários. Assim, a inter-relação das áreas de ensino torna-se uma exigência cognitiva-e-pedagogicamente natural para proporcionar a compreensão da realidade complexa pelos educandos e, com isso, serem capazes de enfrentar e resolver os problemas emergentes, na linha da cidadania planetária, portanto, local-global. Além de tudo, de acordo com Santos (2008, p. 76), “[...] trabalhar a educação com tal visão supera a mesmice do padrão educativo, encanta o aprender e resgata o prazer de aventurar-se no mundo das ideias”. Ao ter a Escola a finalidade político-pedagógica de formar cidadãos, incumbe-lhe assumir que eles não existem sem conhecimentos de problematização, que não se constituem sem a capacidade intelectual de pensar e de saber pensar: A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Esse uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que com frequência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar. (MORIN, 2003, p. 39). Ensinar a condição humana na escola Ensinar a condição humana numa perspectiva complexa é permitir o desvendamento de seus diversos enraizamentos: cósmico, físico, terrestre e do próprio ser humano. Morin (2003) traça uma Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 163 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo via de interligação e interdependência que revela, primeiro, nossa dimensão cósmica. Somos cósmicos porque as partículas de nosso organismo, da vida na Terra, são provenientes da formação inicial do Universo, em constante auto-organização. A condição física teve origem pela termodinâmica sobre a Terra, ou seja, por meio das condições energéticas provenientes do Sol; já a condição terrestre relaciona-se à biosfera terrestre – nosso Planeta Terra – quanto ao seu complexo biofísico. E o humano é resultado de uma evolução de milhões de anos que se foram sucedendo, até chegar à espécie Homo Sapiens, diferenciada das espécies anteriores pela sua complexificação psicossocial e cultural, especialmente pela linguagem. Na realidade, o conceito de homem implica duplo princípio: um biofísico e, o outro, psico-sociocultural. Não há como conceber o ser humano sem essa dupla raiz de origens: o humano é ao mesmo tempo um ser biológico e cultural, que traz em si uma unidualidade. Assim, entender o humano é compreender sua unidade na diversidade e vice-versa, o que traduz uma antropologia complexa (MORIN, 2003, 2013). A escola, ao trabalhar esse saber, estará refletindo sobre a complexidade humana – a sua unidade e diversidade quanto aos constituintes biológicos, psicológicos e socioculturais. Tal reflexão implica a discussão triádica de indivíduo, sociedade e espécie humana, em que cada sujeito é produto e produtor da espécie e, no seu conjunto, forma a sociedade, que produz cultura e é por ela produzida. Essas perspectivas possibilitam a compreensão da relação entre indivíduo e sociedade e, nesse sentido, conduzem à tomada de conhecimento e conscientização dos educandos sobre a condição humana e da diversidade dos indivíduos, dos povos e das culturas – “[...] sobre nosso enraizamento como cidadãos da Terra [...].” (MORIN, 2003, p. 61). Assim, a importância da escola tratar a condição humana nos diferentes conteúdos curriculares, entre os quais as questões socioambientais – tão presentes nos dias atuais e que afetam a fragilidade biossocial dos habitats humanos. Decorre daí a noção de interdependência, necessidade do cuidado por relações saudáveis entre os seres humanos e desses com o meio natural, em vista do trato das realidades de vida e desenvolvimento de condições desejáveis. Além disso, vale ressaltar a importância 164 desse saber escolar, para os educadores poderem entender melhor seus educandos, na medida em que os entendam como seres biológicos, psíquicos, afetivos, sociais e intuitivos e, sob essa ótica, reconhecendo suas subjetividades e problemas pessoais no ato educativo (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000). Ensinar a identidade terrestre na escola Conceber a identidade terrena implica refletir sobre os problemas do nosso mundo e as condições que foram produzidas pelo homem ao longo dos tempos: a era planetária. Nesse sentido, é importante pensar as condições de vida que os seres humanos vêm produzindo, especialmente a partir do processo de globalização e mundialização, que criou problemas vitais para a humanidade – a intersolidariedade de problemas, antagonismos, crises e processos vários, aleatórios, senão descontrolados. A globalização vem-se constituindo, notadamente desde o século XV, pela dominação do ocidente europeu que, ao mesmo tempo, produziu sérios problemas civilizatórios – destruição, escravidão e exploração, especialmente das Américas e da África – e desencadeou planetariamente a expansão do comércio e o encurtamento das distâncias entre os povos. A globalização econômica pós-industrial, capitaneada pelas forças produtivas do capitalismo, que no século XX se generaliza como economia de caráter neoliberal mundializada, cada vez mais se faz interdependente pelo desenvolvimento das telecomunicações e informática (MORIN, 2003). A mundialização, na fase atual, tornou o Planeta um todo, ou seja, cada parte do mundo faz parte do mundo, e o mundo em sua totalidade está cada vez mais presente em cada uma de suas partes – isso se verifica não apenas para as nações e povos, mas também para os indivíduos. Tal processo de mundialização caracteriza-se por uma unificação conflituosa, permeada por interesses políticos e econômicos que impõem uma globalização cultural, afetando os modos de pensar e viver das sociedades diversas do mundo, gerando conflitos socioculturais; e além do mais, o mercado mundial dominador visa essencialmente ao lucro e não à qualidade de vida planetária. Como escreve Morin (2003, p. 75), “A união planetária é a exigência Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz racional mínima de um mundo encolhido e interdependente. Tal união pede a consciência e um sentimento de pertencimento mútuo à Terra, considerada como [...] pátria”. Para tanto, é necessário propiciar uma educação escolar cidadã e planetária que possibilite o desenvolvimento nos educandos da consciência ecológica e sociocultural, relacionada à conservação dos ambientes de vida, e uma aceitação da diversidade cultural, reconhecendo-se a unidade na diversidade. Com isso, reforça-se a importância da coexistência de modos de vida ante a intensificação de movimentos de pessoas e grupos mediante as tecnologias de comunicação e transporte. Portanto, pensar uma identidade terrena significa que os seres humanos adotem posturas de responsabilidade para com as diferentes realidades socioambientais. Na escola, essa premissa deve perpassar todos os conteúdos curriculares, ensejando uma prática educativa articuladora do conhecimento, sob uma orientação ético-social. Para tanto, é necessário o educando desenvolver uma autopercepção de pertencimento ao Mundo-Terra e ao Universo, entendendo que somos enquanto existentes, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade juntas: unidade como um Planeta, em suas características cósmicas e, ao mesmo tempo, mais um e mais outros no todo do universo. Também se faz ideativamente indispensável ao educando compreender que nosso Planeta possui características diferentes em cada ponto de sua geografia – e que devem ser respeitadas. A responsabilidade da educação escolar, portanto, implica ajudar os educandos a entenderem que o Planeta Terra é único e deve ser conservado enquanto lugar de habitar e conviver, para as gerações presentes e as futuras (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000). E aí está uma nova postura educacional, emergente e urgente, para a busca de uma identidade terrena, conforme alude Morin (2003, p. 78, grifo do autor): O duplo imperativo antropológico impõe-se: salvar a unidade humana e salvar a diversidade humana. Desenvolver nossas identidades a um só tempo concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa pátria, a de nossa comunidade de civilização, enfim, a de cidadãos terrestres. [...] Civilizar e solidarizar a Terra, transformar a espécie humana em verda- deira humanidade torna-se o objetivo fundamental e global de toda educação que aspira não apenas ao progresso, mas à sobrevida da humanidade. [...] A educação do futuro [e do presente deve] ensinar a ética da compreensão planetária. Enfrentar as incertezas na escola É uma premissa que diferencia a educação-hoje da tradicional, que ensinava a pensar os fenômenos sob um foco de regularidade; um bom planejamento, por exemplo, poderia ordenar tudo, organizar os processos de forma que funcionassem como um relógio. Nos dias atuais, em vista da velocidade acelerada das dinâmicas complexas e aleatórias da era planetária, é necessário levar em consideração o princípio da incerteza; isto é, entender que o universo é jogo e risco da dialógica entre a ordem, a desordem e a organização. E sob essa condição, está a realidade humana – seja a história da humanidade, a história individual, a história da escola. Assim, a educação do presente para o futuro precisa defrontar-se com as incertezas do conhecimento, pois, segundo Morin (2003, p. 84-85), existe: [...] Um princípio de incerteza cérebro-mental, que decorre do processo de tradução/reconstrução próprio a todo conhecimento. [...] Um princípio de incerteza lógica: como dizia Pascal muito claramente, ‘Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a não contradição é sinal de verdade.’ [...] Um princípio da incerteza racional, já que a racionalidade, se não mantém autocrítica vigilante, cai na racionalização. [...] Um princípio da incerteza psicológica: existe a impossibilidade de ser totalmente consciente do que se passa na maquinaria de nossa mente, que conserva sempre algo de fundamentalmente inconsciente. Existe, portanto, a dificuldade do autoexame crítico, para o qual nossa sinceridade não é garantia de certeza, e existem limites para qualquer autoconhecimento. Diante das incertezas inerentes à condição humana, a realidade não é tão satisfatoriamente legível quanto suposto por imediatismos pragmáticos. Ideias e teorias que pretendam traduzir a realidade via esquemas simplistas podem sempre equivocar-se. Nesse rumo, alerta Morin (2003, p. 85): “Por isso, importa não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato), nem irrealista no Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 165 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade); importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real, saber que há algo possível ainda invisível no real”. Portanto, o conhecimento é passível de ilusão e de erro, e nas certezas doutrinárias intolerantes encontram-se as piores ilusões; ao contrário, numa consciência do caráter incerto das cognições está a oportunidade de se chegar ao conhecimento pertinente, o que requer verificações e convergências de indícios. Para enfrentar a incerteza é importante levar em consideração duas questões: o desafio e a estratégia. O desafio relaciona-se à consciência da aposta (hipótese), partir da qual entra em cena a estratégia, como momento de se elaborar cenários de ação e de examinar as certezas e as incertezas de uma determinada situação – as probabilidades e improbabilidades. É importante considerar-se a prudência e a audácia no diálogo entre fins e meios, tendo como base o contexto sob a análise. Além disso, na estratégia pesam as complexidades inerentes às próprias finalidades previstas, máxime, no caso de a estratégia comportar modificações, em vista de imprevistos, de informações novas etc. Nesse sentido, toda oportunidade envolve risco e vice-versa, de modo que ante a incerteza, o inesperado e o improvável, tudo é possível. Aqui vale ressaltar a ideia de “ecologia da ação”, de Morin (2003), isto é, considerar a complexidade supondo o aleatório, a iniciativa, a decisão, o imprevisto e a consciência dos desvios e das transformações. Isso, conforme Santos (2008), equivale a um jogo de ações e inter-relações, significando que o conhecimento é dinâmico, embora também possa ser submetido ao “fenômeno do reducionismo”, seguindo caminhos inesperados, nem sempre coincidentes com as expectativas iniciais. Com efeito, a incerteza é um saber a ser ensinado na escola; o aluno passa a entender que todo conhecimento – de senso comum ou científico –, todo pensamento, planejamento e organização de qualquer atividade raciocinada é permeado pela incerteza e, por isso, passível de desconstrução e reorganização. Essa visão de mundo permite aos educandos entenderem que o futuro é aberto e imprevisível, remetendo-os à incerteza histórica e a um devir problematizador e, com isso, capacitando-os para uma relação mais amadurecida, 166 prudente e consciente com o real e suas injunções circunstanciais (VIEIRA et al.,2010a; VIEIRA et al., 2010b; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000). O entendimento de incerteza histórica pode ser referendado por uma colocação de Petraglia (2000, p. 13), ao lembrar que a “[...] base da epistemologia da complexidade advém de três teorias surgidas na década de 1940: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas, cujos impactos e aplicações práticas, no entanto, só se manifestariam mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980”, evidenciando a dinâmica de mudanças, de transformações epistemológicas da própria ciência. Em suma, a velocidade das informações e as dinâmicas complexas do mundo atual, marcado por profunda crise de desacertos humanos (guerras, massacres, desprezos e ódios interétnicos) e desequilíbrios ecológicos (desastres ambientais e problemas socioambientais), levam a humanidade a desafios complexos, não facilmente legíveis e que, por isso, demandam das escolas uma nova orientação sociopedagógica para empoderar os educandos a desenvolverem análises interpretativas criteriosas, sob a luz dos saberes em foco. Ensinar a compreensão na escola A compreensão relaciona-se a dois sentidos: um intelectual ou objetivo e o outro, intersubjetivo. O primeiro implica apreender em conjunto o texto e seu contexto, o todo e as partes, o múltiplo e o uno. Esse sentido intelectual da compreensão passa pela racionalidade explicativa; já o segundo sentido da compreensão vai além da dimensão intelectual, racional, analítica ou explicativa: comporta a percepção do outro, como sujeito que não é apenas percebido quantitativa e objetivamente, mas implicando um processo de intersubjetividade – de empatia, de identificação e de heteroprojeção. Sob esse foco, a compreensão é sentimento de abertura e de solidariedade, pelo qual o papel da escola está no “Ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade” (MORIN, 2003, p. 93). No entanto, é preciso ter-se presente que a compreensão envolve uma série de obstáculos geradores de mal-entendidos ou não-entendidos, pela polissemia de um termo, pela ignorância de costumes culturais Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 Ricardo Antunes de Sá; Sonia Maria Marchioratto Carneiro; Araci Asinelli da Luz e, nesse contexto, pelas dificuldades de abertura subjetivo-social a uma outra visão de mundo. A vivência da atitude compreensiva é a arte de viver e do bem-pensar, a qual deve ser ensinada às novas gerações: aprender a pensar em conjunto, envolvendo-se com o texto e o contexto, o ser e sua realidade ambiente, o local e o global, o multidimensional, enfim, o complexo. E nesse sentido, pensar bem é compreender objetiva e subjetivamente as circunstâncias da vida, evitando-se o pensamento redutor, fragmentador e empobrecedor, seja de um fato, de um evento, de um acontecimento, de um sujeito etc. – pelo contrário, há que se prover e promover o aprendizado sobre do bem-conviver, pois nessa linha estaremos caminhando para mais humanização das relações humanas. Nesse âmbito, ressalta-se a importância desse saber – ensinar a compreensão – quanto à relativização do que seja o verdadeiro em cada área do conhecimento, requerendo-se do currículo escolar a abertura das fronteiras disciplinares, a fim de que os educandos compreendam o que cada olhar sobre um mesmo fenômeno apreende, sistematiza e elabora. Porquanto, urge mais e mais, nos espaços escolares, diálogos de conscientização sobre a solidariedade intersubjetiva em vista da formação de educandos que saibam conviver com as diferenças, em suas diversas dimensões. Há necessidade da criação de um clima agradável e confiante nas escolas, por meio da escuta sensível e de relações de alteridade, na linha do respeito, da justiça e da dignidade – pilares da ética da convivência saudável (VIEIRA et al., 2010a; VIEIRA et al., 2010b; LIRA et al., 2010; SANTOS, 2008; PETRAGLIA, 2000). A escola do futuro, mas já como escola do hoje e do agora, não pode prescindir de ensinar e viver a compreensão, não só no que se relaciona ao pensamento complexo, mas enquanto demanda a autocrítica de nossas falhas, beneficia a compreensão dos outros, desfaz a posição de juiz e fomenta a prática da tolerância. Essa visão converge com o pensamento de Freire (2004, p. 24, grifo do autor): Falo da tolerância como virtude da convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua significação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente, não com o inferior [...]. Na tolerância virtuosa não há lugar para discursos ideológicos, explícitos ou ocultos, de sujeitos que, julgando-se superiores aos outros, lhes deixam claro ou insinuam o favor que lhes fazem por tolerá-los. O desenvolvimento da Educação, sob essa perspectiva, está no caminho de uma educação para a cidadania planetária, em vista de sociedades democráticas abertas ao mundo. Com efeito, a escola tem um grande desafio hodierno, que é humanizar o homem sob a ética da solidariedade, a partir “[...] da reforma planetária das mentalidades [...]” (MORIN, 2003, p. 104). Ética do gênero humano na escola O sétimo saber compreende o gênero humano, a partir da tríade inseparável: indivíduo, sociedade e espécie, pois cada sujeito é coprodutor do outro: o indivíduo pertencente à espécie humana, na dinâmica interacional com outros indivíduos, produz a sociedade e esta retroage sobre os indivíduos. Para conviver com o outro, é preciso reconhecê-lo como ser humano, em condições de igualdade democrática. O sentimento democrático é um valor fundamental no processo educativo, na medida em que favorece a relação respeitosa entre indivíduo e sociedade – entendendo cada pessoa como cidadão, sujeito responsável e detentor de direitos. Nesse contexto está o respeito à diversidade sociocultural, o que exige busca de consenso nos conflitos mediante o diálogo, para salvaguardar a vida democrática. O empenho pela vida democrática deve ser um dos pilares do “novo” homem. É uma utopia permanente que impedirá as aventuras autoritárias e totalitárias, as quais impõem aos indivíduos mecanismos coercitivos, com perda da liberdade. A educação cidadã planetária tem, por isso, como princípio básico o desenvolvimento do senso democrático, que supõe valores de responsabilidade e solidariedade com a coletividade – a comunidade local e planetária. É nessa orientação pedagógica que são dadas aos educandos condições de se apreenderem como seres interdependentes para a preservação de si mesmos, da vida, do outro e do Planeta (LIRA et al., 2010). Para tanto, torna-se necessária a reforma da escola, tanto sob o aspecto do conhecimento quanto da formação afetivo- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 159-169, jan./jun. 2013 167 A escola e os sete saberes: reflexões para avanços inovadores no processo educativo -atitudinal. Por conseguinte, faz-se imperativa, hoje, uma Educação que saiba lidar com a ciência, com a técnica e com a ideologia, elucidando aos educandos os fenômenos complexos da realidade e auxiliando-os a intervir no mundo de maneira a melhorar as condições de vida nos ambientes locais e globais. Assumir sociopedagogicamente a ética do gênero humano é conceber a escola como espaço e lugar de direitos humanos, onde a ética do conhecimento e a ética da responsabilidade não são soluções e sim, caminhos. Nesse sentido, escola como espaço de emancipação dos educandos é o lugar de diálogo e reciprocidade da presença. Freire (1996, p. 33, grifo do autor), sobre a ética do gênero humano, expressa: Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer da ética, quanto mais fora dela. [...] é uma transgressão. Esse saber de referência, aos educadores, pressupõe uma educação integral em prol das grandes mudanças ansiadas pela humanidade: justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo, tolerância religiosa, respeito às minorias, educação universal, equilíbrio ecológico e liberdade política, no contexto de uma desejável e possível sustentabilidade planetária. Considerações finais As reflexões, em pauta, abrem motivações para uma reforma da escola, tanto sob o aspecto dos conteúdos de conhecimento, quanto da formação afetivo-atitudinal dos educandos. Aos educadores, sempre são bem-vindas perspectivas de uma educação que saiba lidar com a ciência, com a técnica e com a ideologia, elucidando os fenômenos complexos da realidade e preparando os cidadãos-em-formação a intervir pela melhoraria das condições de vida no mundo local-global. As contribuições de Morin (2003) e da Conferência focada apontam desafiadoras inovações de condutas cognitivas e pedagógicas a serem vividas na escola hodierna, enquanto espaço e lugar de aprender, desenvolver e exercitar a humanização dos educandos. A escola é um espaço privilegiado na vivência de interações complexas que aproximam e unem as diversidades, as diferenças dos sujeitos, num movimento dialógico que contempla complementaridades, antagonismos e tensões. É o espaço e lugar onde os educadores dialogam uns com os outros – seus pares e os educandos – numa relação de convivência, de acolhimento e de compreensão. Nesse sentido, é falsa qualquer dicotomia entre professor e educando, pois, segundo Freire (1996, p. 21), “[...] não há docência sem discência [...]”. A escola precisa olhar para os novos desafios do pensamento e do conhecimento humano; precisa se transformar de modo a ser capaz de construir conhecimentos em que docentes e educandos aprendam a se situar e compreender no lugar onde convivem e atuam, desvelando o processo histórico de ser humanidade, desde os primórdios até a atual era planetária, destacando exemplos solidários, porém, sem ocultar a opressão e a dominação (MARTINAZZO, 2010b) – e, nesse sentido, denunciando e repudiando males que poderiam e ser evitados ou, pelo menos, minimizados. Os sete saberes, necessários para a educação do-presente-e-futuro, dão ensejo ao sonho e fundam a realidade do (re)encontro de educadores e educandos com dimensões do pensar e fazer que valorizem uma racionalidade humanamente compromissada com a felicidade e a identidade terrena e cósmica, numa vinculação – tão construída quanto espontânea – à Natureza, à História e à Cultura. Referências ANTÔNIO, Severino. 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Nossa hipótese é de que a postura filosófica da criança lhe é subtraída ou subjugada por processos educacionais formais ou informais que, numa perspectiva instrumental, limitam a condição humana a uma cultura de massas, na perspectiva de uma indústria cultural que assume novas dimensões pelo desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Na tentativa de apresentar algumas reflexões críticas sobre o processo de formação da criança, o percurso deste texto é, num primeiro momento, fazer uma breve explanação sobre alguns significados do que é ser criança no mundo contemporâneo. No segundo momento, defenderemos a ideia de que a predisposição ao filosofar é uma capacidade que aparece nos anos iniciais da existência humana para, num terceiro momento, discutir como aproveitar esta predisposição para a reflexão filosófica como elemento fundante do processo educacional. Palavras-chave: Filosofia. Ensino de Filosofia. Filosofia para crianças. ABSTRACT PHILOSOFY FOR CHILDREN: A BRIEF REFLECTION This paper aims to present some reflection on teaching philosophy to children. We believe philosophizing is a human activity, but there are only a few High School and college students interested in it. Our hypothesis is that the formal and informal educational processes discourage children in their dispositions toward philosophy. That occurs because our contemporary society promotes the “mass culture” which limits human condition. This perspective acquires new dimensions with the advent and development of Information and Communication Technologies (ICTs). In order to * Doutor em Ética pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Professor do Centro Universitário UNINTER. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Educação da UNINTER. Endereço para correspondência: UNINTER - Rua Saldanha Marinho, 131 – Centro, Curitiba-PR. CEP: 80410-150. moseral.am@gmail,com ** Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Centro Universitário UNINTER e da Secretaria do Estado de Educação do Estado do Paraná (SEED-PR). Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Educação da UNINTER. Endereço para correspondência: Rua José Rodrigues Pinheiro, 565, Capão-Raso, Curitiba- PR. CEP: 81130-200. [email protected]; [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 171 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos present some critical reflection on child’s education process, we follow three steps: first, a brief explanation of what means to be a child in the contemporary world. Second, we present the thesis that in their first years of life children are endowed with the capacity for philosophizing. Finally, we discuss how we can take this child’s predisposition to philosophy as a fundamental source of the educational process. Keywords: Philosophy. Teaching Philosophy. Philosophy for Children Introdução Dentre as muitas problematizações construídas e reconstruídas no âmbito filosófico, uma das mais interessantes do nosso ponto de vista, atualmente, refere-se à fundamentação epistemológica quanto ao que seria importante, considerando as condições materiais de existência contemporâneas, para embasar e/ou consolidar o que chamamos de pensamento filosófico. Dentre os possíveis desdobramentos dessa problemática destacamos, dentre outras, duas questões: como e por que ensinar/ aprender o filosofar. Quanto à pergunta “por que ensinar/aprender filosofia?”, existe um posicionamento “consensuado” no Brasil quanto à sua importância para compreensão e (re)construção da realidade, ainda que constituído por diversos vieses e perspectivas. Basta, nesse sentido, ler a introdução ou algum capítulo específico da maioria dos livros ou manuais de ensino de Filosofia. Contudo, quanto ao “como se aprende filosofia”, o foco da questão requer o olhar atento do professor que, em sala, é demandado a desenvolver processos dialógicos de construção da realidade com os estudantes, gerando, necessariamente, conflitos derivados do contraste entre posturas ideológicas diversas. Em uma sala de aula, seja do ensino médio ou da graduação (em cursos que não o de Filosofia), temos uma realidade quali-quantitativa desafiadora: alguns poucos estudantes vêm até a sala de aula interessados no estudo da Filosofia. Em sua grande maioria, esses estudantes trazem consigo preconceitos recorrentes quanto aos conteúdos e abordagem da Filosofia em sala de aula. Esses preconceitos podem ser percebidos nos comentários entre os estudantes no que diz respeito à Filosofia: é comum associar a imagem do professor de filosofia como um “louco” ou ateu, por exemplo. Em 172 muitas situações, esses e outros preconceitos limitam a discussão filosófica, desviando o campo da reflexão para o campo dos dogmatismos e falácias. Eventos na sala de aula derivados dessas concepções equivocadas muitas vezes deixam implícito, e outras claramente explicitado, que o estudante, pelo menos nas primeiras aulas, não pretende fazer parte dos processos de ensino e aprendizagem de Filosofia. Sua permanência física na sala de aula decorre muitas vezes da coerção exercida pelo currículo numa perspectiva burocrática: se não fizer a disciplina, reprova! Dificuldades dessa natureza deixam os professores apreensivos. Frente a esse quadro, o professor de Filosofia é desafiado a estimular os estudantes a aceitar o convite à Filosofia, parafraseando o livro de Chauí (2004). Dentre as possíveis respostas ao desafio acima apontado, uma das possibilidades de abordagem dessa questão está relacionada ao seguinte questionamento: a partir de que momento e sob quais circunstâncias, efetivamente, o ser humano estaria em condições de pensar sobre si mesmo e seu mundo? Em que momento e como essa disposição é negada ou, ao menos, não cultivada nos processos de ensino? Se o estudante chega ao ensino médio e superior com os preconceitos e posturas acima mencionadas, tais condições e atitudes merecem ser pensadas também na perspectiva dos processos escolares aos quais as crianças foram anteriormente submetidas. Nesse sentido, duas questões principais norteiam nossa reflexão. A primeira, como (re)pensar a prática de formação das crianças para o exercício do pensamento filosófico? Segunda, como essa experiência de significação e ressignificação da realidade pelo pensamento filosófico pode ser resgatada no estudante em processo de formação mais adiantado (ensino médio e ensino superior)? Partimos do pressuposto, adiante explicitado, de que o filosofar é uma atividade própria do ser Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 Alvino Moser; Daniel Soczek humano, fundamental para o desenvolvimento individual e coletivo dos sujeitos sociais. Nossa hipótese é que a postura filosófica da criança lhe é subtraída ou subjugada por processos educacionais formais ou informais que, numa perspectiva instrumental, limitam a condição humana a uma cultura de massas, continuamente reafirmada pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Este texto abordará, em grande parte, a primeira questão com o objetivo de, a partir dessas reflexões, lançar alguma luz sobre a segunda questão. As discussões sobre os processos de ensino/ aprendizagem de Filosofia para o público infantil e infanto-juvenil têm muitas perspectivas e estão em desenvolvimento em muitas frentes como cursos de extensão e especialização, eventos regionais, nacionais e internacionais ligados a esta temática, bem como produção de dissertações e teses1, além de artigos de revistas científicas2 e, é claro, de pesquisas realizadas em ferramentas de consulta da internet como o Google. Ainda temos editoras especializadas em obras de filosofia3 e a publicação de outros materiais como jornais disponibilizados em blogs4. Considerando a diversidade de propostas e projetos quanto ao ensino de filosofia para crianças, damos algum destaque às reflexões aqui desenvolvidas para a proposta elaborada e implantada por Lipman e seus colaboradores (LELEUX, 2008) na Universidade de Columbia, sem desconsiderar as críticas a ela direcionadas. Essa proposta tem origem entre os anos 60-70 do milênio passado e foi discutida, (re)pensada e melhorada nas décadas seguintes, sendo hoje trabalhada em diversos países. Para trabalhar as questões acima pontuadas, este texto se divide em momentos articulados entre si. Num primeiro momento será realizada uma breve explanação sobre o que significa ser 1Estas dissertações ou teses podem ser acessadas pela consulta ao banco de teses da Capes, disponível em: <http://capesdw.capes.gov. br/capesdw/>. 2 Muitos desses artigos, avaliados criteriosamente e disponibilizados em revistas, podem ser acessados em bases de periódicos como o Scielo, pelo site <http://www.scielo.org.br>. 3 Destacamos aqui duas delas: a Vozes, <http://www.universovozes. com.br/> e a Shofos, <http://www.editorasophos.com.br/>, cujos catálogos estão disponíveis on-line nos referidos sites. 4 Existem centenas, talvez milhares de blogs sobre filosofia e seu ensino. Dentre eles destaco o “Corujinha”, que surgiu de uma tradição de 23 anos de publicações em Filosofia, disponível em <http://jornalcorujinha.blogspot.com.br/>. criança no mundo contemporâneo. Em seguida, será defendida a ideia de que a predisposição ao filosofar é uma capacidade humana que aparece nos anos iniciais da existência para, num terceiro momento, discutir como aproveitar esta predisposição para pensar ensino de filosofia para crianças e jovens. Este texto conta, em alguns momentos, com certa licença poética e está pautado pela nossa experiência como professores, refletindo, portanto, nossa concepção de ensino. Não afirmamos que as opções teóricas aqui tomadas sejam as melhores nem as piores linhas de análises e nem propomos alguma sistematização quanto ao estado atual da arte referente ao debate dessa temática. Apresentamos, tão somente, pontos de vista que nos parecem convenientes no intuito de suscitar debates sobre o ensino de filosofia para crianças e pensar como este movimento pode ser aproveitado para qualificar a formação dos estudantes ao longo de todo o seu processo formativo e para além dele. 1. O surgimento da concepção contemporânea de criança como “nativas digitais” As globalizações e os processos de mundialização (HARVEY, 1993; IANNI, 1996; SANTOS, M., 2000; SADER, 2004), o grande acúmulo e disponibilização de informações pelo acelerado desenvolvimento das tecnologias (CASTELLS, 2003), a crítica aos seus usos (JONAS, 2006) são alguns dos elementos que influenciam o processo de desenvolvimento da pessoa e da sociedade. Discutir a condição da criança no mundo contemporâneo e sua presença na Escola (no Brasil, 96,7% das crianças entre 7 e 14 anos, segundo o IBGE, estão devidamente matriculadas), nesse ambiente pautado pelas TICs, é algo extremamente desafiador, principalmente se propusermos uma reflexão sobre o papel da Escola. Ao deixar uma criança adentrar os muros da Escola, pelo menos duas perguntas incitam nossa reflexão: o que a Escola espera de um estudante em qualquer disciplina e qualquer grau de ensino e o que a sociedade espera desta pessoa em formação. Devemos considerar que, talvez, esses dois conjuntos de expectativas sejam diferentes e, inclusive, divergentes e conflitantes entre si como abordado mais adiante. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 173 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos Em termos históricos, no mundo ocidental a representação da ideia de infância como concebemos hoje remonta à França dos séculos XVII e XVIII (ARIÈS, 1978). Até há alguns séculos a criança era considerada apenas um homúnculo, ou seja, um adulto em miniatura. Essa visão de mundo pode ser percebida nas várias representações de crianças desse período histórico usando roupas, tendo posturas e realizando atividades específicas “do mundo adulto”. Foi Erasmo de Rotterdam (2008) um dos pioneiros no mundo moderno ocidental a pregar que as crianças não são adultos em miniatura e que, portanto, não deveriam ser tratadas como adultos. As crianças teriam, segundo ele, um modo próprio de ser, diferente do modo dos adultos e que, fundamentalmente, deve ser respeitado. O movimento histórico de construção e afirmação de uma identidade infantil teve, como todo processo dialético, muitos avanços e retrocessos em razão das mais diversas circunstâncias históricas, e consideramos que o saldo atual desse processo histórico é positivo. No Brasil, por exemplo, existe até uma previsão legal de seguridade dos direitos das crianças estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). Não obstante todo esforço histórico dos últimos séculos a fim de oferecer às crianças uma visibilidade social diferenciada, respeitando as idiossincrasias de sua condição, temos, em Postman (1999), dentre outros, a tese de um grave retrocesso neste movimento emancipador. Em sua obra O Desaparecimento da Infância, esse autor constata que a condição de ser criança estaria desaparecendo por conta da alienação provocada pela televisão. Isso se deveria ao fato de que, em geral, diante da TV as pessoas ficam passivas e não têm como interagir com a tela, sendo manipuladas por seus enredos. Destaque-se nesse movimento, dentre outros elementos, o forte apelo ao consumismo e às questões referentes a disputas ideológicas implícitas e explícitas. A utilização massiva da televisão como meio de comunicação e entretenimento apresenta consequências nefastas para a infância, demonstradas, entre outros, por Salgado, Pereira e Jobim e Souza (2005), posto que a manutenção e perpetuação de sua programação estão asseguradas pelo seu 174 potencial econômico, com o qual está comprometida. Como medir, por exemplo, os impactos cognitivos e o que fazer com uma criança que, ao chegar à pré-escola, já esteve exposta a milhares de horas na frente de uma televisão, condição esta que, possivelmente, perdurará durante longos anos? Não podemos deixar de lembrar que crianças, em seu processo de socialização, têm como uma de suas características a imitação dos exemplos de seu entorno social. Como diziam os clássicos, exempla trahunt: os exemplos arrastam. A criança imita o que vê e, assim, podemos observar a veracidade do que afirma Dawkins (2007): não apenas os genes se transmitem, mas também os memes, isto é, certos traços culturais, nem sempre os melhores. Não obstante todas as críticas a esse fenômeno e o uso cada vez maior de outras mídias possibilitadas pela internet, não podemos deixar de lembrar que nunca se ganhou tanto com a propaganda televisa, em razão de sua grande audiência5. Os estímulos, a interação não só com a televisão, mas também com os mais diversos recursos tecnológicos, como os aparelhos celulares e o computador, acabam criando relações síncronas e assíncronas, despertando novas compreensões de mundo, interesses e linguagens . Participando de jogos eletrônicos, interagindo com os também conectados amigos no Orkut, Facebook e outras comunidades virtuais, as crianças constroem novos sentidos para a realidade, gerando discussões muito interessantes sobre a condição humana na perspectiva do “pós-humano” (SANTAELLA, 2003). Do ponto de vista da história da filosofia, ir “além das aparências” ou superar a “doxa” (doxa, opinião) era um dos lemas de Sócrates e Platão (PLATÃO, 1994), dentre muitos outros filósofos, preocupação e meta sustentada heroicamente até a modernidade. Entretanto, com a crise da razão moderna, fomos confrontados com a hipótese da inexistência de uma verdade universal e a inviabilidade teórica do 6 5 Na última novela da Rede Globo, por exemplo, no capítulo final, a inserção de um comercial saiu por R$ 500 mil, e o merchandising variou entre R$ 1 e 1,8 milhão de reais, segundo reportagem de Almeida (2012). 6 Um levantamento de dados sobre o uso das tecnologias por crianças e jovens encontra-se na pesquisa, publicada em 2012, intitulada Gerações Interativas Brasil: Crianças e Adolescentes Diante da Tela, disponível em <http://fundacaotelefonica.org.br/Uploads/ book_telefonica_2_final.pdf>. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 Alvino Moser; Daniel Soczek uso de conceitos como “evidência”. Pela guinada linguística nos século XX, começamos a ponderar os elementos simbólicos da linguagem, suas representações numa perspectiva cética, relativista, culturalista. Ainda que Parmênides (1973) nos alertasse para que não se fizesse confusão entre o ser e o não ser, temos que admitir: Heráclito venceu, pois “panta rei”, tudo muda. Fruto dese processo histórico, uma das características das crianças dessa era digital marcada pela liquidez (BAUMAN, 1998, 1999, 2003, 2005) é a fuga do silêncio. O uso frequente de celulares, iPhones, iPad, iPod e, sobretudo, das redes sociais promove uma condição de ausência do silêncio que consideramos aqui condição fundamental para a reflexão. Como é possível realizar uma reflexão com um livro na mão, na frente da televisão e com algum aparelho de som ligado ao ouvido? Somos “dinossauros” ou “vanguarda” ao propor o silêncio como fundamento educativo dessa “nova era”? A leitura e a escrita, quando realizadas em diferenciadas plataformas de comunicação, seguem padrões de aligeiramento que impedem a reflexão. Basta olhar a forma escrita utilizada para além da gramática escolar nos chats e redes sociais. Vale perguntar quantos estudantes, de qualquer sala de aula, que não compreendendo um conteúdo específico, tomasse por tarefa a releitura do assunto duas, três, quatro vezes até entende-lo, numa perspectiva obstinada pelo conhecimento. Não há espaço e tempo para essa atitude – espaço e tempo possuem, hoje, dimensões diversas. E se a filosofia precisa ensinar a bem pensar, como nos adverte Lipman (1990), é preciso que as pessoas de todas as idades, principalmente as crianças, construam espaços de silêncio e disposição para a retomada cuidadosa e atenta daquilo que lhes escapa ou é dificultoso. Nesse sentido, Tapscott (1997) assinalava a preocupação de psicólogos que previam uma geração superficial, assim como Bauerlein (2008) em The Dumbest Generation: How the Digital Age Stupefies Young Americans and Jeopardizes Our Future (Or, Don’t Trust Anyone Under 30). A origem de parte significativa dos problemas das relações de ensino está relacionada ao fato dos educadores ou docentes não se preocuparem em adquirir conhecimentos sobre o perfil das crianças que já não podem ser enquadradas em modelos/ padrões e expectativas estudadas e pesquisadas há algumas décadas. É preciso levar em consideração as novas dinâmicas sociais que interferem diretamente em todos os processos sociais e, em especial, do nosso ponto de vista, as relações escolares. É uma condição nova – as crianças são “nativas digitais” (PRENSKY, 2001, 2010), expressão que dele tomamos de empréstimo para o título desta seção. Nesse sentido, vale destacar, dentre tantos outros exemplos, o esforço de pesquisadores como Fantin e Rivoletta (2010) no artigo Crianças na Era Digial: Desafios da Comunicação e da Educação, que traz vários relatos de pesquisas feitas em escolas de ensino fundamental com o uso de recursos metodológicos como fotos pelo celular, projeção de DVD e visualização de streamers em sites como o Youtube. As crianças se animam, se interessam e prestam atenção na medida em que esses recursos saem da retórica tradicional e estabelecem, per si, links com sua realidade num modal que se adéqua aos seus interesses. A importância da discussão sobre a condição da criança no mundo contemporâneo está diretamente relacionada à discussão sobre “como aprender”. Então, o ensino teria como uma de suas metas desenvolver a capacidade de formular perguntas, o que, no sentido mais próprio do conceito, é o foco, a meta de um pensamento que se propõe filosófico, predisposto à discussão, “aberto ao mundo”. Daí a importância de pensar a reflexão filosófica desde a mais tenra infância. 2. As crianças e a Filosofia No Brasil é sempre discutível e incerta a posição sobre o ensino de Filosofia no que diz respeito à política pública – só há alguns anos o ensino de Filosofia voltou a fazer parte da matriz curricular do ensino médio no Brasil; o que dizer sobre o ensino de filosofia para crianças? Do ponto de vista da discussão do ensino de filosofia para crianças esbarramos em, pelo menos, dois grandes preconceitos: a) A premissa de que as crianças são incapazes de refletir e abstrair; b) A premissa de que o pensamento que “realmente importa” é, exclusivamente, aquele proposto pela Escola. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 175 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos Para uma lógica neoliberal predominante no contexto contemporâneo, que se apropria, se nutre, valoriza e constrói uma racionalidade instrumental, a Filosofia é algo dispensável e sua inclusão no currículo “deve ser combatida”. Os detratores de plantão do ensino de Filosofia preconizam que ela não é para “qualquer um”. Essa postura perpassa a história da Filosofia. Platão escreveu no frontispício de sua ACADEMIA: “não entre aqui quem não souber Geometria” (DURANT, 1999, p. 67). Para ele é somente após o domínio da aritmética, da geometria, plana e estereométrica, e da astronomia que o estudante estará apto a iniciar os estudos da dialética que o levará para a vida teórica, própria da Filosofia. Na Idade Média, a expressão magister dixit prescinde de comentários. Em Kant (2005), o esclarecimento é a passagem de uma “menoridade” para uma “maioridade”, concepção esta que está fundada e reforça preconceitos e estereótipos quanto a uma suposta “incompetência” para o pensar. Esses são alguns exemplos que ainda hoje fundamentam posturas educacionais, pressupondo a dependência e capacidade de raciocínio e predisposição ao estudo em um sentido sui generis: a Filosofia, para alguns professores, seria uma “pérola jogada aos porcos”, parodiando o ensinamento bíblico de forma enviesada. Opondo-se a essa perspectiva reducionista quanto à potencialidade e predisposição universal ao pensamento filosófico, vale destacar, dentre outros, as interessantes observações de Kohan (2009). Segundo esse autor, a Filosofia é uma aposta na educação das crianças, sobretudo uma aposta na infância, na sua força, na liberdade e na alegria. Para Gaarden (1995), o que para o adulto parece banal, é misterioso para a criança, pois ela tem o poder de encantar-se com a realidade, posto que existam coisas que julgamos impossíveis que não as espantariam. Não valorizar essa postura e as perguntas delas decorrentes, desencorajá-las, significa destruir o dubium admirationis (a dúvida da admiração) de que tratava Aristóteles (BORNHEIN, 1983), requisito fundamental para o pensamento filosófico. Portanto, a Filosofia não é um saber, mas uma relação afetuosa, de amor, philo, com o saber. Como bem o observa Kohan (2009), não se pode transmitir Filosofia, nem ensinar, do mesmo modo que não 176 se pode educar. Isso põe grandes problemas para as instituições escolares que estão habituadas a ensinar “conteúdos”. Predispor e motivar o pensamento filosófico nas crianças não é ter que fazer que as crianças aprendam um conteúdo, sobretudo o que se encontra nos livros dos filósofos e dos manuais de filosofia. A Filosofia não tem pretensões de ensinar a pensar “corretamente” ou “ensinar a ser ético” ou qualquer outra coisa do gênero. Resume-se, tão somente, o que é muito, a um espaço aberto à discussão. É nesse sentido que se pode dizer que a filosofia não se ensina, mas se aprende. “[...] não é um modo de saber, nem um modo de pensar [...] Isso significa que não pode ser ensinada na base da lógica da técnica e dos instrumentos.” (KOHAN, 2009, p. 62). Na contramão dessas ponderações, ocorrem situações altamente questionáveis dentro do processo educacional, como, por exemplo, a existência de sistemas de avaliação que têm como um de seus instrumentos mais usuais a “prova”. Esse instrumento gera e reafirma constantemente um absurdo “medo de errar” frente ao “correto”, ou seja, aquilo que é exclusivamente “passado” pelo professor ao aluno, algo absolutamente assombroso. Saem desse tipo de “formação” alunos tímidos intelectual e eticamente, que não conseguem aceitar ou propor a crítica. Esses estudantes estão, definitivamente, excluídos do processo de construção do conhecimento. A destruição da capacidade de questionamento e da criatividade do aluno limita ou mesmo elimina sua liberdade de expressão. Uma formação normalizadora/disciplinar na perspectiva de como Foucault nos apresenta estes conceitos suspende a originalidade e a autonomia. Essa concepção crítica quanto às consequências e efeitos desses processos escolares perversos é compartilhada por vários filósofos. Jaspers (1998) escreve que as crianças até os sete anos são gênios, mas que a escola se encarrega de torná-los “normais” ou de “bobificar” (a expressão é do autor). Dewey (1959) criticava, há muitas décadas, as péssimas condições nas quais os estudantes chegam ao ensino superior. O que é constatável, com algum grau de generalização nas salas de aula, é que questionar e formular uma pergunta já não são mais atos mentais espontâneos e recorrentes nos alunos do final do ensino fundamental, ensino médio e ensino superior. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 Alvino Moser; Daniel Soczek Para superar essa problemática, uma alternativa é que o professor deixe, como esse ignorante que se dizia Sócrates, que a criança se encante com o mundo, com a realidade. Cabe ao educador, seja pai ou docente, não tolher ou privar a criança dessa possibilidade, principalmente mediante o uso acrítico e indevido dos recursos tecnológicos à disposição das crianças. Hoje são ditas loas sobre as maravilhas dos netbooks, smartphones e tablets; a interrogação que paira sobre quem quer fazer a educação pela Filosofia, ou educar sem mais, é a questão sobre a disposição e uso destas tecnologias. De acordo com Meirieu, Há, no coração da ‘pedagogia socrática’ uma verdade que é evidente, ‘a caixa preta’ nos escapa. Podemos criar reflexos condicionados, aferrar-nos à dupla estímulo-resposta, fazer levantar, sentar, andar, correr, recitar, identificar, cortar, aplaudir nossos alunos, mas não podemos jamais saber com certeza o que se passa na caixa preta no momento de seu comportamento. (MEIRIEU, 1994, p. 36). Mediante essa condição da infância no mundo contemporâneo, qual seria o telos da educação? Segundo muitos autores, díspares em suas concepções de mundo e educação, como Rousseau, Kant, Marx ou Adorno, pode-se afirmar de modo generalista que todos eles, a despeito de diversos fundamentos epistemológicos e propostas metodológicas divergentes e mesmo opostas entre eles, pensam a educação como emancipação, como autonomização do sujeito, como desenvolvimento da consciência crítica. Seria essa condição possível e desejável às crianças? Bom, vale lembrar considerações de alguns filósofos a esse respeito. Segundo Montaigne (1987, p. 24), “Visto que é a filosofia que nos instrui a viver e que é nela que a infância, como todas as outras idades, tem sua lição, por que não comunica-la? Ensinam-no a viver quando a vida já passou. [...] É um grande erro tornar a filosofia inacessível às crianças”. A possibilidade de ensino de filosofia para crianças é defendida enfaticamente por Benjamin (1985, p. 236-237), quando afirma que “A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis [...] A criança aceita perfeitamente as coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas”. Alguns fatos confirmam que as crianças estão predispostas ao pensamento filosófico. Vejamos dois exemplos. Eu, Moser, lembro-me, com saudades, como qualquer pai ou mãe se lembra de seus filhos, de quando minha filha tinha cinco anos. Viajávamos de Santa Maria para Passo Fundo, numa linda tarde. Então, a menina de cinco anos disse-me: “Olha, paizinho: o sol está se pondo no horizonte!!” Acompanhava-nos um professor amigo, e este perguntou à queima-roupa: “Mas, minha filha, o que é o horizonte?” E ela, muito séria, olha para ele como que estranhando a pergunta: “Ora, tio Percy, o horizonte é a casinha do sol.” Do mesmo modo, noutra ocasião, aprendeu a palavra pensar, não sei com quem. E de repente, chamei-a para algo. E a resposta veio (imitando o pai): “Espera um pouco, estou pensando.” Imediatamente fiz-lhe a pergunta: “E o que é pensar, minha princesa?” Ao que ela respondeu: “Ora, pensar é falar baixinho para mim mesmo”. Certamente, essa reflexão é filosófica. Eu, Daniel, tenho diversas vezes me surpreendido com as atitudes de minha filha Amelie, que está hoje com quatro anos. Ainda há alguns dias, ela me comunicou que nossa cachorra (ainda filhote) “não tem educação”, sendo, na sua concepção, que educação é “não fazer bobeira”. Outro momento que exemplifica o pensamento filosófico ocorreu há quase um ano. Naquela época, tínhamos em casa uma gata e um casal de coelhos. Quando os coelhos começaram a procriar, a gata, fatidicamente, caçou e matou um dos filhotes dos coelhos. A ideia do que poderia acontecer depois da morte a partir da experiência do enterro do coelhinho gerou vários comentários metafísicos sobre a finitude da vida e a transcendência associada a uma forte dose emocional. Foi, certamente, uma experiência significativa em vários aspectos. Desculpem-nos se lhes contamos exemplos de nossas experiências. Acreditamos que cada leitor também deve conhecer ou ter vivido situações como essas, observáveis no contato com qualquer criança. As crianças são os verdadeiros poetas e filósofos porque criam o mundo com sua linguagem, até o momento em que são obrigadas a seguir o caminho e a linguagem – o currículo escolar – que lhes são impostos. Cedo demais são instadas a deixar a Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 177 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos imaginação e a fantasia para se debaterem com a dura realidade. É o momento em que se processa o início da colonização das crianças, nas palavras de Mandel (1973). Aliás, todas essas afirmações podem ser cobertas pela monumental abertura do Emílio, quando Rousseau (1990) afirma que a criança, ao nascer das mãos do “Supremo Arquiteto”, é perfeita, mas a sociedade a corrompe. A condição do ser humano como filósofo não garante a perenidade de uma postura reflexiva sobre o mundo. É necessário um processo de construção dialógica para que essa predisposição do espírito materialize-se nas práticas cotidianas. Daí a importância da discussão sobre metodologias de ensino de Filosofia para crianças, terceira parte deste artigo. 3. Filosofia para crianças: aproximações metodológicas No Brasil, talvez, a primeira experiência do ensino de Filosofia para crianças, trabalhada aos moldes das proposições de Lipman, data de 1985, em São Paulo, sendo expandida esta experiência para diversos outros estados como Santa Catarina e Paraná. Essa experiência está associada à fundação do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças7. As experiências com o ensino de Filosofia propostas por Lipman levaram-no a produzir, em 1989, um texto intitulado Reforçar o Raciocínio e o Julgamento pela Filosofia, trabalhando neste artigo sua reprodução no livro Filosofia para Crianças, o Modelo de Matthew Lipman em Discussão, de 2008. Neste texto, entre outros elementos, ele pontua algumas pressuposições de sua metodologia de trabalho com filosofia para crianças, parafraseadas abaixo. Para Lipman (2008), o ensino de filosofia para crianças deve considerar os seguintes aspectos: ser imparcial (quanto às diferentes concepções filosóficas) e representativo (Filosofia em seu conjunto); não dogmático; respeitar o cabedal linguístico das crianças considerando sua predisposição ao pensamento filosófico; considerar que os problemas filosóficos fazem parte do universo infantil como 7 Essa Fundação está hospedada no site <http://www.philosletera.org. br/>. 178 os conceitos de justo, belo, vida; as crianças gostam de perguntas e, portanto, a concepção de privação da abstração pelas crianças é um erro, mas esta abstração deve ser moderada; as crianças refletem melhor quando têm modelos, mas o ideal é a deliberação coletiva, formando grupos de pesquisa; as crianças aprendem melhor com narrativas, pois apreendem as significações contextuais; a inteligência se expressa de várias formas, mas a linguagem oral é fundamental, além da escrita; é importante a realização de exercícios para o desenvolvimento de aptidões cognitivas e planos de discussão, para consolidar a conceitualização da realidade; os exercícios devem ser elaborados por especialistas e não pelo professor da disciplina (algo questionável); o raciocínio é uma técnica (pode ser ensinado) e o julgamento é uma arte (aprende-se por si), necessitando um ambiente estimulante para ambos. A partir dos tópicos anteriores e das considerações de Lipman (2008) e outros pesquisadores que tratam do ensino de Filosofia para crianças, alguns aspectos merecem destaque. Em primeiro lugar, é necessário observar que há um imenso abismo entre o saber do professor de filosofia e o modo de pensar das crianças. Esquecemos, quase todos nós, que fomos crianças. Em segundo lugar, ao aprender algo novo, desaprendemos algo: uma nova aprendizagem é um novo comportamento, aprende-se desaprendendo, esta é a lei. Há, portanto, muita distância entre a weltanschauung dos adultos e o modo de ver o mundo das crianças. Basta que vejamos os filmes, por exemplo, como História sem Fim, O Mistério do Cristal ou O Jardim Secreto e comparemos nossas interpretações com as das crianças. Quais são os desenhos animados que as crianças apreciam, e quais apreciamos nós? As músicas? E assim por diante. Podemos empregar palavras também usadas pelas crianças, mas talvez apenas o ruído seja o mesmo: não se processa a verdadeira comunicação, que é uma comum + união, uma sintonia. Nessa linha de raciocínio, qual seria uma das origens da indiferença/apatia dos alunos em sala de aula? Em segundo lugar, é importante considerar se seria mais importante pensar o método enquanto incentivo à pesquisa e reflexão do que o conteúdo propriamente dito. Resgata-se, aqui, duas experiências que poderiam ajudar a pensar essa problemá- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 Alvino Moser; Daniel Soczek tica. Primeiro, a experiência Jacotot. No início do século XIX, em razão de certas condições históricas específicas, Jacotot lançou o desafio a seus alunos para aprenderem uma segunda língua por meio da apresentação de um texto bilíngue, sem intervenção do professor, discutindo com isso o conceito de emancipação do aluno, como bem trabalhado por Rancière (2002). Segundo, a experiência proposta por Postman e Weingartner (1973) sugerindo que o professor de matemática lecione inglês ou geografia. E que os professores de geografia, história, línguas ensinem disciplinas totalmente diferentes daquelas a que estão acostumados a ensinar. Se não o conseguem, segundo esses autores, é porque não sabem se comunicar. Em terceiro lugar, conceber o ensino de filosofia para crianças não significa, necessariamente, criar uma nova disciplina no currículo da educação infantil. Implica, tão somente, que os educadores ponham à disposição dos alunos metodologias de aprendizagem eficazes. Com essas metodologias, porão à disposição das crianças materiais e utensílios necessários (as informações básicas) e lhes possibilitarão efetuar as operações mentais indispensáveis: deduzir, antecipar, analisar, efetuar sínteses e outras. É uma das funções da escola providenciar para que todos os alunos adquiram essas competências. Em quarto lugar, é necessária uma postura dialógica. Essa postura nega um ensino norteado pela escola tradicional, ou seja, pelo uso indiscriminado de mecanismos de respostas fechadas (ainda que de “múltiplas escolhas”), “truques/pegadinhas” na formulação das questões, o resumo de conteúdos a “macetes”. Essas e outras práticas assemelhadas transformam o processo educacional numa verdadeira tortura, já que o conhecimento apresentado e cobrado é puro non sense para os estudantes. Quando incentivado, o aluno pesquisa fora da sala: a limitação do tempo e do espaço na escola para discussão dos temas torna-se a motivação para seu prolongamento em outros momentos, fazendo a passagem da condição de a-luno (sem luz) para estudante, pensador. É na infância que a reflexão produzida coletivamente produz as condições necessárias para uma concepção democrática de sociedade. É necessária a (re)produção de uma cultura da “pergunta”, na constituição de “comunidades de investigação”. Não basta romper com a opinião: é preciso problematizá-la. Essa comunidade de investigação, como proposta por Wenger (1998, 2002) e propiciada pela TICs, corresponde a um conjunto de procedimentos e atitudes que garantem uma discussão coletiva sobre temas diversos, numa perspectiva filosófica. Na ótica do pensamento moderno, quando Descartes escreve “Je”, este representa o sujeito universal, o sujeito racional que fala tendo ideias claras e evidentes e que devem ser aceitas por todos. Repensar tal concepção é fundamental para compreender as dinâmicas sociais contemporâneas, em que o professor se apresenta como facilitador, alguém que coopera para a aceitação da correção lógica ou problematização da diversidade dos argumentos pelos colegas ou pelo professor. O aprender a pensar está relacionado à aplicação de atividades a partir dos interesses manifestados pelas crianças – reflexão provocada –, análise da experiência e da atividade. Enfim, é importante lembrar que todo conhecimento tem seu caráter social, posto que é construído por homens em sociedade a partir de seus problemas historicamente construídos. O que é importante na existência humana é expressar ideias e sentimentos – a violência, seja no seio familiar, seja nas guerras internacionais, está associada a uma impossibilidade de compreensão e conversação no que se refere a conteúdo e sentimentos. Essa condição social demanda a necessidade de produção de um “conhecimento prudente para uma vida decente”, como nos ensina Santos, B. S. (2004). A reflexão filosófica pode, em muito, ajudar nesse processo. Considerações finais Como (re)pensar a prática de formação das crianças para o exercício do pensamento filosófico? Como essas experiências de significação e ressignificação da realidade pelo pensamento filosófico podem ser resgatadas no estudante em processo de formação? Aprender por si mesmo é uma predisposição da condição humana e, mesmo, uma necessidade. Toda existência é tomada de posição e julgamento. Nesse sentido, é fundamental pensar o processo Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 171-182, jan./jun. 2013 179 Filosofia para crianças: apontamentos reflexivos educativo numa perspectiva filosófica, pela construção de comunidades de pesquisa. É fundamental perceber o processo educacional sob a ótica do prazer pela reflexão. Estabelecer questionamentos que dizem respeito ao cotidiano dos alunos, deixando de lado temas bizantinos e abstratos que nada significam para as crianças e jovens pós-modernos. Ensinar a aprender a viver. Despertar o interesse filosófico é fazer perguntas sobre questões que os estudantes queiram discutir. Se o aluno não é chamado para a responsabilidade do processo ele, definitivamente, é excluído dele. A elaboração de uma agenda coletiva de discussão, realizada entre pares, permite pensar o processo de forma circular-colaborativa. Esse movimento contextualiza sentidos, desperta e valoriza a criatividade. Entendemos que o objetivo do ensino de filosofia não é colocar o estudante, de qualquer idade, em contato com algum filósofo e suas teses (elemento acessório), mas, fundamentalmente, prepará-lo para enfrentar os desafios do século XXI estimulando competências relacionadas à reflexão e ao diálogo, fundamentos de um pensamento crítico, que tenham por finalidade a busca por soluções dos problemas cotidianos a partir de uma postura democrática. REFERÊNCIAS ALMEIDA, D. Empresas pagam até R$ 1,8 mi para estar no final de Avenida Brasil. Época Negócios, Rio de Janeiro, 19 out. 2012. Disponível em: <http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Resultados/noticia/2012/10/ final-de-avenida-brasil-tem-propaganda-r-500-mil-e-merchandising-de-ate-r-18-mi.html >. Acesso em: 04 dez. 2012. ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1978. BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. Ética da pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1999. ______. 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Dessa forma, educadores têm buscado pautar suas propostas em teses descontinuístas sem levar em consideração de que elas próprias são resultados de uma forma de pensar o mundo, e foram elaboradas e instituídas frente ao conhecimento científico de uma época. Assim, mais do que pautar a aproximação da história do ensino em aspectos formais, o autor propõe neste artigo uma abordagem contextualizada, pautada em tendências historiográficas mais atualizadas. Especial atenção é dada ao contexto em que as epistemologias de Bachelard e de Kuhn foram elaboradas. Palavras-chave: História da ciência. Epistemologia. Continuidade e descontinuidade. Construção do conhecimento científico. Natureza da ciência. ABSTRACT “CONTINUITY” AND “DISCONTINUITY”: THE PROCESS OF CONSTRUCTING SCIENTIFIC KNOWLEDGE IN THE HISTORY OF SCIENCE Historians of science and educators have presented some proposals that aim to bring together the history of science and the teaching of science. Such proposals have emphasized the formal aspects of modern science without considering the process of constructing scientific knowledge. Thus epistemologies based on the idea of rupture such as Gaston Bachelard´s and Thomas Kuhn´s epistemologies are especially appreciated. For many educators, the Bachelard´s concepts of “epistemological obstacle” and Kuhn’s notion of “paradigm shift” seem to break with the linear and progressive view of the development of the scientific knowledge. Under these circumstances, educators have based their proposals upon the historical discontinuity * Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador do CESIMA (PUC-SP). Professor do PEPG em História da Ciência (PUC-SP). Professor do PEPG em Educação Matemática (PUC-SP). Endereço para correspondência: Rua Marquês de Paranaguá, 111, Prédio I, 2º andar – Consolação. CEP: 01303-050. São Paulo-SP-Brasil. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 183 “Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência theses without taking into consideration that these very theses were the results of a way of thinking the world which was designed and instituted facing the scientific knowledge of a certain time. In this paper the author proposes that the approach of the history of science to science teaching should be guided by an approach based upon current trends in historiography rather than focusing it in the formal aspects of science. Special attention is given to the context in which Bachelard´s and Kuhn´s epistemologies were evolved. Keywords: History of science. Epistemology. Continuity and discontinuity. Constructing scientific knowledge. Nature of science. Introdução A epistemologia da ciência é atravessada por problemáticas bem diversas e estabelece múltiplas relações com a ciência e sua história. Dentre essas diversas temáticas, provavelmente, a mais comum seja aquela voltada para a natureza do conhecimento científico. No que diz respeito ao ensino de ciências, essa temática tem recebido bastante atenção de professores e pesquisadores da área de educação, visto que boa parte dos problemas de ensino de ciência parece estar relacionada às características do conhecimento que se pretende ensinar. Desse modo, diferentes abordagens que buscam aproximar história da ciência e ensino de ciência têm sido propostas e discutidas já há algum tempo1 (MARTINS, 2007; SILVA, 2006; CACHAPUZ; PRAIA; JORGE, 2004; KOMINSKY; GIORDAN, 2002; PRAIA; CACHAPUZ; GIL-PÉREZ, 2002; MATTHEWS, 1994, 1995; SILVEIRA, 1992). Contudo, ao abordar a natureza do conhecimento científico, esses estudos têm enfatizado apenas aspectos formais da ciência, dedicando pouca atenção ao processo da construção do conhecimento científico. O que é bastante compreensível, visto que muitas das questões relacionadas à ciência partem de caracterizações do que é conhecimento científico para então compreender o processo histórico de seu desenvolvimento. Assim, educadores, bem como alguns historiadores da ciência, têm buscado aproximar história da ciência do ensino de ciência por um viés epistemológico sem, contudo, levar em consideração que o próprio processo que os conduzem a essa aproximação é também histórico. 1 Como a lista é longa, citamos aqui apenas algumas propostas e estudos. A lista inclui ainda, entre outros: Gil-Pérez (1983); Gagaliardi (1988); Ayala (1992); Castro (1992); Giordan e Vecchi (1996). 184 Com efeito, uma das preocupações dos pesquisadores em educação quanto à questão da epistemologia diz respeito à predominância de visões de índole empirista-indutivista entre os professores de ciências (PRAIA; CACHAPUZ; GIL-PÉREZ, 2002). Para reverter tal situação, acredita-se que a inclusão de estudos sobre tendências epistemológicas mais atualizadas nos cursos de formação de professores seria fundamental. Nesse sentido, as ideias de Gaston Bachelard (1884-1962), Karl R. Popper (1902-1994), Thomas S. Kuhn (19221996), encontram-se entre as mais mencionadas pelos pesquisadores em educação, mesmo entre aqueles preocupados em atualizar as visões de ciência predominantes entre professores e estudantes (BELTRAN; SAITO, 2012). Dentre esses filósofos da ciência, provavelmente, os mais valorizados sejam Bachelard e Kuhn. Podemos dizer que os educadores são atraídos para os estudos de Bachelard e Kuhn por causa da ideia de ruptura que se encontra na base de suas epistemologias. Para muitos educadores, as noções de obstáculo epistemológico de Bachelard e de mudança de paradigma de Kuhn parecem romper com a visão linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico, visão esta que caracterizaria uma epistemologia de viés positivista. Todavia, é preciso ter em conta que essas duas noções, na verdade, mascaram as concepções de natureza positivista que ainda permeiam essas duas epistemologias (SAITO; BROMBERG, 2010). Sem dúvidas que as ideias de Bachelard e de Kuhn foram importantes para compreendermos o desenvolvimento da ciência. Além disso, elas valorizaram a história da ciência dando-lhe um lugar entre as muitas propostas filosóficas que pretendiam refletir sobre o fazer científico. Contudo, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 Fumikazu Saito como veremos mais adiante, as epistemologias de Bachelard e de Kuhn não parecem dar conta do processo histórico da construção do conhecimento científico e são tomadas com muita cautela por alguns historiadores da ciência (BELTRAN, SAITO, 2012; SAITO; BROMBERG, 2010; ALFONSO-GOLDFARB, 1994). Devemos ter em conta que a epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências. Sua principal característica é a reflexão sobre a argumentação dos processos do conhecimento científico, argumentação essa que se desenvolve sobre um pano de fundo em que se entrelaçam diferentes concepções de ciência e outras posições de natureza ética, estética, filosófica, religiosa, política, ideológica etc. Assim, é sobre esse cenário de fundo que devemos situar as diferentes epistemologias da ciência para podermos compreendê-las em seu aspecto mais essencial, tomando-se o cuidado de não extraí-las de seu contexto de modo a subtrair-lhes a historicidade que lhes é inerente. Isso porque toda epistemologia é formulada e desenvolvida em meio a posições conflituosas que conduzem a controvérsias. Em outros termos, as epistemologias de Bachelard e de Kuhn devem também ser contextualizadas e analisadas segundo concepção de conhecimento de suas respectivas épocas, visto que a epistemologia (e também a filosofia da ciência)2 está ancorada a certos pressupostos discursivos próprios de uma época. Assim, como abordaremos a seguir, ao aproximarmos história da ciência do ensino de ciências é preciso ter-se em conta que a epistemologia também é resultado de uma forma de pensar e ver o mundo e é elaborada e instituída frente ao conhecimento científico de uma época. Gaston Bachelard Podemos dizer que a epistemologia de Bachelard surgiu num momento em que a reflexão sobre a natureza do conhecimento científico se apresen2 Por escapar do escopo principal deste artigo, não discutiremos aqui a diferença entre filosofia da ciência e epistemologia. Cabe, entretanto, observar que esses dois domínios de conhecimento referem-se a assuntos distintos. O que se entende por epistemology em países de língua anglo-saxônica é entendido como philosophie de la science na França, por exemplo, e vice-versa (CARRILHO; SÀÁGUA, 1991). tava essencialmente a-histórica. Na época em que Bachelard formulou suas ideias, o neopositivismo, expressão do conhecimento filosófico entre as duas grandes guerras mundiais, tinha como meta chegar a uma ciência unificada e, para atingi-la, propunha restringir a própria concepção de ciência à lógica e à matemática. Assim como o positivismo clássico, proposto por Auguste Comte (1798-1857), o neopositivismo mantinha a tendência de privilegiar a ciência empírica como forma de conhecimento válido, buscando, entretanto, novos critérios para fundamentá-la. Para os neopositivistas, a ciência unificada deveria abranger todos os conhecimentos fornecidos pelas ciências empíricas sobre os quais se aplicaria o método lógico de análise que havia sido desenvolvido por matemáticos como Giuseppe Peano (1858-1932), Gottlob Frege (1848-1925), Alfred North Whitehead (1861-1947) e Bertrand Russell (1872-1970) (PASQUINELLI, 1983; SCHILICK, 1975). É fácil compreender por que razão a epistemologia dos neopositivistas buscou circunscrever a ciência nos moldes lógico-matemáticos e relegar a história a um segundo plano. Naquela época, era generalizada a sensação de que o edifício da ciência não demoraria a ficar pronto. Os cientistas, que já não eram mais filósofos naturais, mas especialistas em campos de conhecimento específicos e complexos, sentiram-se então preparados para falar de sua própria área de conhecimento. Surgiu aí uma espécie de cientista-filósofo ou cientista-historiador cuja ordem do dia era assentar a ciência sobre bases sólidas para garantir o aprimoramento do conhecimento científico (ALFONSO-GOLDFARB, 1994). Foi nesse contexto, em que a ciência e a epistemologia estavam preocupadas com o presente, que Bachelard renovou alguns pressupostos filosóficos. Foi no confronto com as ideias neopositivistas que ele anunciou que a ciência não tinha a filosofia que merecia porque ela estaria sempre atrasada em relação às mudanças do conhecimento científico (BACHELARD, 2006). Para Bachelard, o instrumento de análise privilegiado da epistemologia não era a lógica, mas a história da ciência, concebida como área de conhecimento que investiga e identifica as fases efetivas atravessadas pelo desenvolvimento do saber científico (BACHELARD, 1996). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 185 “Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência Segundo Bachelard, “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização [...] [Assim], aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado” (BACHELARD, 1996, p. 17-18, grifo do autor). Isso significa que as sucessivas contradições do passado, que se afiguram como autênticas rupturas epistemológicas, seriam as molas propulsoras do desenvolvimento do conhecimento científico. Nesse sentido, a história da ciência avançaria com base em sucessivas rupturas epistemológicas. Cabe observar que a concepção que subjaz a essa ideia tem por base a ruptura entre conhecimento de senso comum e científico (BACHELARD, 1977). Para Bachelard, o conhecimento de senso comum era mera opinião. Para ele, “a ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião [...] A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos [...] Ela é o primeiro obstáculo a ser superado” (BACHELARD, 1996, p. 18, grifo do autor). Isso porque toda opinião já era resposta a um problema, e o espírito científico proibia-nos de termos opiniões sobre questões que não compreendemos. Assim, Bachelard alertava que, antes, precisávamos aprender a formular claramente as questões e considerar, em seguida, as teorias que as responderiam. É nesse sentido que ele afirmava que o conhecimento científico vivia da agitação dos problemas. Em outros termos, o conhecimento científico avançaria por meio de sucessivas retificações de erros anteriores. Desse modo, como “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior” (BACHELARD, 1991, p. 17), a verdade alcançaria pleno sentido quando um problema era resolvido, ou seja, quando um erro do passado era retificado: Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, 186 lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia à quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos. (BACHELARD, 1996, p. 17). O obstáculo epistemológico era uma ideia que impedia e bloqueava outras ideias, podendo esta ser hábitos intelectuais cristalizados, teorias científicas dogmáticas, dogmas ideológicos entre outros. Portanto, a história da ciência para Bachelard era a história da superação desses obstáculos epistemológicos. Nesse sentido, o conhecimento sempre avançaria de forma progressiva aproximando-se da verdade por meio de um longo trabalho de construção e de retificação, ou seja, rompendo com o conhecimento anterior. Podemos dizer que Bachelard foi considerado pelos educadores como o teórico da descontinuidade. E, talvez, do ponto de vista epistemológico (e não histórico), a ideia de obstáculo epistemológico tenha se mostrado bastante atrativa ao educador, visto ser um conhecimento e não, como se poderia supor à primeira vista, ausência de conhecimento. Além disso, um obstáculo epistemológico não era um conhecimento falso, uma vez que ele permitia produzir respostas satisfatórias, e até mesmo corretas, a certos tipos de problemas. Todavia, tal conhecimento tornava-se inadequado quando era transposto ou aplicado a outras categorias de problemas, estagnando assim o progresso do conhecimento científico. Então, para promover o avanço do conhecimento era preciso retificá-lo, ou seja, corrigi-lo em nome do progresso da ciência. No que diz respeito ao ensino de ciências, essas ideias fundamentaram diversas pesquisas e propostas de ensino de ciências que buscaram determinar as concepções prévias dos alunos e propor estratégias didático-metodológicas para superá-las (BELTRAN, 2009), inclusive no ensino de matemática (MIGUEL; MIORIM, 2005), cuja área de referência, segundo Bachelard, não teve que superar obstáculos epistemológicos em seu desenvolvimento (BACHELARD, 1996). Além disso, essas ideias foram aceitas por alguns educadores que se prontificaram a buscar obstáculos epistemológicos enfrentados pelos cientistas no desenvolvimento do conhecimento científico para fundamentar suas propostas curriculares e de ensino de ciência (GIORDAN; VECCHI, 1996). Muitas Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 Fumikazu Saito dessas propostas, entretanto, buscaram estabelecer um paralelo entre o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento psicológico da criança (GIL-PÉREZ, 1983), tendo por base a tese de que, no desenvolvimento psicogenético do indivíduo, da mesma forma que na biologia, a ontogênese reproduziria a filogênese. Desse modo, tais propostas acabaram se pautando na ideia de que existiria um “paralelismo” entre a história do pensamento científico e o desenvolvimento da inteligência da criança (GARCIA; PIAGET, 1987). Segundo Beltran (2009), surgiram críticas severas em relação a essas ideias, visto que seria um absurdo comparar o complexo pensamento de Aristóteles ao de uma criança. Além disso, nem o pensamento de Aristóteles é infantil, nem as crianças deveriam ser pequenos filósofos gregos. Desse modo, alguns educadores que inicialmente defenderam a ideia do paralelismo teriam mudado de posição. No que diz respeito à historia da ciência, embora a epistemologia de Bachelard muito tenha contribuído para elaborar perspectivas historiográficas não continuístas, na medida em que rompera com a visão linear do desenvolvimento da ciência, tão cara aos positivistas e neo-positivistas, sua ideia de progresso, entretanto, continuou fundamentada naquelas escolas (BELTRAN; SAITO, 2012). Isso porque, na época de Bachelard, a ciência era a mais alta expressão do conhecimento. Era nela que deveriam espelhar-se não só a filosofia, mas também a história da ciência. A reflexão sobre a ciência, assim, deveria acompanhar seus novos desdobramentos que, em seu processo construtivo, rompera com os erros do passado e avançaria e progrediria rumo ao futuro. Consequentemente, nesse contexto, faria sentido uma história da ciência que julgasse o passado, como bem salientou Bachelard: [...] o historiador da ciência, para bem julgar o passado, deve conhecer o presente; deve aprender o melhor possível a ciência cuja história se propõe escrever. E é aqui que a história das ciências, quer se queira quer não, tem uma forte ligação com a actualidade da ciência. (BACHELARD, 2006, p. 209). Segundo Bachelard (2006, p. 209), era o presente que iluminava o passado, isto é, “a partir das verdades que a ciência actual tornou mais claras e melhor coordenadas”, que “o passado de verdade surge mais claramente progressivo na própria qualidade de passado”. Em outros termos, Bachelard referia-se a uma história que os historiadores da ciência atualmente identificam como “presentista”, isto é, uma história que busca pinçar no passado somente o que é familiar, deixando de lado outros aspectos, que na realidade foram importantes, por serem incompreensíveis. Consequentemente, estudos em história da ciência pautados nessa perspectiva tenderam a reforçar a ideia de que ciência era um corpo de conhecimentos acabado e verdadeiro, visto que a ciência teria convergido para o momento presente, que seria a etapa mais aprimorada de seu desenvolvimento (BELTRAN; SAITO, 2012). Podemos dizer que, na acepção de Bachelard, a história da ciência é apenas uma história daquilo que deu certo e é verdadeiro, uma vez que é a história da retificação dos erros do passado. Uma proposta historiográfica que tenha a epistemologia descontinuísta inspirada no modelo de Bachelard tende, assim, a nos conduzir a uma história da ciência descontextualizada, visto que deixa de lado outros aspectos ligados à ciência. Em outros termos, Bachelard refere-se a uma história que valoriza apenas as condições internas do discurso científico, deixando à margem outros desdobramentos de natureza social, política, econômica etc. Em suma, para o historiador da ciência, a epistemologia de Bachelard rompera com uma concepção cumulativa e linear do conhecimento, embora ainda admitisse a noção de progresso científico. Entretanto, ainda na mesma esteira, defendendo a descontinuidade no desenvolvimento do conhecimento científico, uma ideia mais radical seria ainda proposta por outro filósofo natural, que também viria a defender uma epistemologia da ruptura, introduzindo as noções de incomensurabilidade e paradigma, como veremos a seguir. Thomas S. Kuhn Em 1963, Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas, procurou apresentar um modelo para o desenvolvimento da ciência com base nos momentos de grandes mudanças conceituais, ou seja, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 187 “Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência nas revoluções científicas. Essa obra chegaria a alcançar um público não especializado na reflexão da filosofia da ciência, atraindo sociólogos, antropólogos e historiadores para a história da ciência. Diferentemente da proposta de Bachelard, a de Kuhn procurou redefinir as bases para se explicar a quebra de processo do desenvolvimento do conhecimento. Como já mencionamos, a diferença entre as ideias de Kuhn e de Bachelard torna-se compreensível se contextualizarmos a concepção de conhecimento em que tais epistemologias foram elaboradas. E, nesse sentido, podemos dizer que a epistemologia de Kuhn surgiu num momento em que as reflexões sobre a natureza do conhecimento científico estavam voltadas para as questões metodológicas da ciência. Cabe observar que, embora a proposta epistemológica de Bachelard tenha valorizado a história da ciência, tal como vimos anteriormente, grande parte dos filósofos e pensadores da ciência ainda consideravam-na apenas como um espaço da descrição do contexto das descobertas da ciência: “um espaço eventual, exterior ao processo natural e lógico do conhecimento” (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p. 82). Alguns filósofos da ciência, notadamente Popper, propuseram novos modelos para explicar o desenvolvimento da ciência (POPPER, 1979, 1993). Essas propostas, entretanto, buscaram explicar a transformação das teorias científicas analisando sua coerência e estruturas lógicas. Desse modo, dando ênfase ao método científico, esses modelos buscaram dar uma explicação lógica das razões pelas quais as teorias científicas não se acumulavam como mera sequência umas das outras, mas que uma suplantava a outra (POPPER, 2003). Isso porque do ponto de vista lógico (e não histórico), o natural seria encontrar uma teoria que explicasse melhor e de forma mais ampla os fenômenos que a anterior explicava. A ciência teria, assim, por propósito a eliminação dos erros das teorias anteriores, substituindo-as por teorias mais verossímeis de tal modo a aproximar-se da verdade de modo progressivo. Podemos dizer que foi sobre esse pano de fundo que Kuhn desenvolveu sua tese descontinuísta. Visto que as teorias não se sucediam de forma 188 acumulativa, o problema agora era explicar como uma teoria substituía (ou substituíra) outra, ou seja, entender como é que as teorias, que não se acumulavam meramente, eram formuladas e justificadas. Kuhn então buscou estabelecer estreito contato com a história da ciência, propondo a existência de momentos de rupturas no processo do desenvolvimento do conhecimento científico. Assim, procurando suplantar as teses que defendiam o continuísmo, ele buscou justificar a descontinuidade na ciência por meio da noção de “paradigma”. Em linhas gerais, o “paradigma” seria um conjunto de regras, normas, crenças, teorias etc. que forneceria o modelo de problemas e soluções aceitáveis por certo período à comunidade científica. Esse período em que os problemas emergiam e eram definidos e resolvidos pelo paradigma foi denominado por Kuhn “ciência normal” (KUHN, 1997). Podemos dizer que fazer ciência “normal” significava resolver quebra-cabeças. Segundo Kuhn: A ciência normal esforça-se (e deve fazê-lo constantemente) para aproximar sempre mais a teoria e os fatos. Essa atividade pode ser vista como um teste ou uma busca de confirmação ou falsificação. Em lugar disso, seu objeto consiste em resolver quebra-cabeça, cuja simples existência supõe a validade do paradigma. O fracasso de uma solução desacredita somente o cientista e não a teoria. (KUHN, 1997, p. 111). Uma vez aceito o paradigma, a comunidade científica adquiria também os problemas e os critérios para resolvê-los. O sucesso e o insucesso da solução de problemas não estariam dessa maneira necessariamente relacionados às regras impostas pelo paradigma, mas à capacidade do pesquisador em resolver um problema. Assim, a resolução de problemas fortalecia a ciência “normal”, que procuraria elaborar instrumentos mais sofisticados e potentes, ampliando a teoria e precisando seus conceitos (KUHN, 1997). A ciência “normal”, portanto, seria acumulativa, e o cientista “normal” não buscaria a novidade (KUHN, 1997). Razão esta que explicaria os períodos em que uma teoria ganharia força e se aprimoraria progressivamente. Contudo, no processo de articulação teórica e empírica dos paradigmas, o conteúdo informativo de uma teoria aumentaria gradativamente, acabando por colocá-la em risco. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 Fumikazu Saito Assim, contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma, surgiriam as “anomalias” que o cientista em algum momento teria que dar conta. Segundo Kuhn: “Quanto maior forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente, de uma ocasião para mudança de paradigma” (KUHN, 1997, p. 92). Com a crise do paradigma iniciar-se-ia um período de ciência “extraordinária”, em que os cientistas perderiam confiança na teoria que antes haviam abraçado, colocando em crise o paradigma vigente (KUHN, 1997). Essa crise geraria instabilidades que se transformariam em verdadeiras revoluções na ciência. Nesse período, vários novos paradigmas concorreriam para substituir o anterior. Tais paradigmas, entretanto, ainda seriam incompletos por não incorporarem a série de normas e explicações que só o paradigma estabelecido poderia fornecer. É nesse período que a comunidade científica pautaria sua escolha em motivos nada racionais, ou seja, a escolha do novo paradigma dar-se-ia por razões estéticas, emocionais e até políticas e religiosas. Todavia, uma vez acabada a crise e estabelecido o novo paradigma, esse período de “irracionalidade” seria esquecido. Ocorreria aqui uma verdadeira mudança na concepção de mundo: Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente [...] as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. (KUHN, 1997, p. 145-146). Diferentemente de Bachelard, podemos dizer que Kuhn relativizou o processo do desenvolvimento do conhecimento científico introduzindo nele alguns aspectos não formais da lógica da pesquisa científica. Com efeito, no que diz respeito à história da ciência, a perspectiva epistemológica de Bachelard reforça ainda a ideia de que o conhecimento científico avançaria e se aprimoraria de modo natural, superando obstáculos epistemológicos. Nessa perspectiva, a ciência no seu processo histórico de desenvolvimento elaboraria teorias mais amplas que superariam as anteriores. Aspecto este muito diferente do que encontramos na proposta epistemológica de Kuhn. Em outros termos, o novo paradigma na perspectiva de Kuhn não explicaria nem mais, nem melhor os fenômenos antes explicados pelo paradigma anterior. O que significa que os conceitos e as teorias existentes no velho paradigma e aqueles formulados dentro do novo seriam incomensuráveis. Segundo Kuhn: A maior parte dos leitores do meu texto supusera que quando eu falei de teorias incomensuráveis, queria dizer que elas não podiam ser comparadas. Mas ‘incomensurabilidade’ é um termo retirado da matemática onde não implica tal coisa [...] O que falta não é a comparabilidade, mas uma medida de comprimento em termos da qual ambos possam ser medidos direta e exatamente. (KUHN, 1976, p. 190-191). Dizer que duas teorias eram incomensuráveis não significava necessariamente que não fossem passíveis de comparação, mas que essa comparação não poderia ser feita por meio de uma redução ou de outros métodos habitualmente discutidos no contexto da filosofia da ciência (KUHN, 2006). Kuhn, assim, abria as portas para a história da ciência vasculhar o passado e o presente numa nova busca. Ou seja, como bem observa Alfonso-Goldfarb, A busca de como cada cultura, cada comunidade científica e cada época construiu, de acordo com seus objetivos e suas formas de ver o mundo, os critérios das verdades que regeriam sua ciência. E se as ciências de várias épocas e diversas culturas teriam, cada uma, seus próprios critérios do que fosse verdadeiro ou falso, a ciência moderna deixava de ser o padrão. Tornava-se tão-só uma ciência entre muitas, nem melhor nem mais completa, apesar de sua pujança. A ciência moderna deveria, a partir daí, ser estudada historicamente para que se pudesse entender a constituição dos critérios que lhe deram formação. (ALFONSO-GOLDFARB, 1994, p. 86, grifo do autor). No que diz respeito ao ensino de ciência, podemos dizer que, diferentemente das ideias de Bachelard, as ideias de Kuhn não chegaram a ter muita influência em propostas didático-pedagógicas. Entretanto, a noção de paradigma parece ter influenciado alguns educadores porque o próprio Kuhn teria observado que a função do paradigma Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 189 “Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência cumpria-se nos manuais científicos e livros didáticos por meio dos quais o jovem estudante é iniciado na ciência (KUHN, 1997). Contudo, no que diz respeito à história da ciência, o termo “paradigma” é utilizado com muita cautela pelos historiadores, visto ter se transformado numa daquelas palavras mágicas que explicam tudo.3 Além disso, do ponto de vista filosófico e historiográfico, o termo é vago e não parece dar conta do desenvolvimento progressivo do conhecimento científico. A ideia de que a mudança de paradigma implica em progresso da ciência é um problema bastante complexo que tem recebido atenção de filósofos da ciência. Contudo, na perspectiva da história da ciência, não encontramos no passado pessoas dedicadas, de modo consciente, a promover mudanças de paradigma, nem mesmo superando obstáculos epistemológicos. Para alguns historiadores da ciência, as epistemologias da ruptura de Kuhn e Bachelard foram elaboradas num contexto em que a própria ideia de progresso constituía um dos pilares do fazer científico. Isso significa que é preciso também contextualizar a ideia de progresso4, evitando assumi-la como um dado objetivo, tal como foram admitidas nas epistemologias de Kuhn e Bachelard. Novas perspectivas historiográficas A despeito das críticas ao relativismo supostamente assumido por Kuhn, suas propostas tiveram grande repercussão e juntaram-se à de muitos estudiosos que buscavam novas abordagens para a história da ciência. Dentre esses estudiosos podemos citar aqui Walter Pagel (1898-1983) com o seu trabalho pioneiro sobre Paracelso, bem como Frances Yates (1899-1981) sobre a retomada da tradição hermética na época de Giordano Bruno, entre outros5. A partir desses estudos pioneiros, novas tendên3 Na verdade, Kuhn utiliza o termo “paradigma” em mais de um sentido. A esse respeito, vide Masterman (1978). 4 Convém observar que a noção de “progresso”, que tem por pressuposto a ideia de que é possível chegar a uma verdade absoluta, não é um dado objetivo, mas um valor. A noção de progresso também não pode ser desvinculada do contexto histórico. Vide Rossi (2000) e Butterfield (2003). 5 Pagel (1960, 1961, 1982) e Yates (1988, 2001, 2003). Vide também McGuire e Rattansi (1995); Rattansi (1972, 1988). 190 cias historiográficas passaram a ser propostas e, nelas, levaram-se em consideração não só as continuidades, mas também as rupturas no desenvolvimento no processo de transmissão, transformação e adaptação dos conhecimentos científicos. Todavia, ao contrário das ideias de Bachelard e de Kuhn, que tiveram grande penetração entre educadores, essas novas perspectivas parecem não ter chegado sequer a ser consideradas no campo do ensino (TRINDADE et al., 2010). Atualmente, história da ciência não mais se confunde com epistemologia ou filosofia da ciência. A história da ciência renovou seus pressupostos e suas propostas historiográficas nos últimos anos, fortalecendo laços com o campo da própria história, da sociologia e de outras áreas das humanidades. Assim, nos dias de hoje, a história da ciência, embora mantenha a epistemologia como uma de suas possíveis abordagens, não se limita a ela. Novas abordagens metodológicas propõem escrever história da ciência envolvendo três esferas de análise: epistemológica, historiográfica e contextual, conforme proposta historiográfica apresentada e discutida em recente seminário internacional (ALFONSO-GOLDFARB, 2008). Essa nova abordagem nos estudos de história da ciência tem buscado contextualizar o conhecimento científico, valorizando o processo da construção deste conhecimento. Assim, diferentemente dos estudos pautados em tendências historiográficas mais tradicionais, que têm apenas valorizado resultados, novas propostas historiográficas têm enfocado suas investigações nos processos que conduziram a tais resultados, considerando agora uma rede de inter-relações (ALFONSO-GOLDFARB, 2003; ALFONSO-GOLDFARB; FERRAZ; BELTRAN, 2004). Desse modo, em vez de adotar uma perspectiva normativa e filosófica, atuais tendências historiográficas da história da ciência têm insistido na necessidade de contextualizar o conhecimento científico, procurando compreender a ciência do passado tal como ela era vista no passado, e não como ela deveria ser vista segundo uma perspectiva filosófica pré-concebida. Em outros termos, para compreendermos a natureza da ciência, por meio de seu processo de construção histórica, é preciso avançar além da própria caracterização formal da ciência moderna. Isso porque, como bem sugere Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 Fumikazu Saito Canguilhem (1977, p. 15), “a ciência atual não se confunde com essa mesma ciência no seu passado”. Nesse sentido, tendências historiográficas atuais têm procurado situar a ciência do passado no passado, analisando cada etapa do desenvolvimento do conhecimento científico segundo uma rede de relações. Assim, estudos recentes em história da ciência têm mostrado que tanto as rupturas quanto as continuidades devem ser consideradas relevantes, assim como as influências de fatores referentes à lógica interna dos conceitos e teorias e o papel das influências externas à ciência do período em que tais conceitos e teorias foram elaborados (ALFONSO-GOLDFARB; BELTRAN, 2002, 2004, 2006; BELTRAN; SAITO, TRINDADE, 2010, 2011; SAITO, 2011). Contudo, esses novos estudos ainda não chegaram a educadores e professores das várias disciplinas. A perspectiva histórica dominante que permeia o material didático para o ensino de ciências, bem como veiculadas pelos meios de divulgação científica, continua ainda a valorizar uma história linear e progressista. A história da ciência geralmente é utilizada como fonte de exemplos na apresentação das teorias, e espera-se que os discentes construam conhecimento sobre a natureza da ciência por meio de conceitos científicos. Segundo Trindade et al (2010, p. 125-126), tal forma de abordagem apresenta alguns problemas: a aprendizagem não é favorecida porque os alunos são colocados diante de questões epistemológicas que sequer formularam e acabam sendo conduzidos a interpretações sobre um conceito sem terem estabelecido qualquer tipo de crítica sobre eles. Decorre daí que é absolutamente inútil a leitura de textos antigos, originais, sem que se conheçam as condições históricas, sociais, e da própria ciência do período em foco. Os educadores têm buscado utilizar a história da ciência para propiciar uma formação em que o discente veja a ciência de modo crítico. Todavia, ao pautarem-se em questões formais da ciência, os educadores muitas vezes não percebem que, na maioria das vezes, os estudantes não estão preparados para elaborar questões de natureza epistemológica. Além disso, uma história da ciência que apenas ilustre ou encadeie logicamente as ideias científicas do passado até o presente numa sequência cronológica e linear tende a reforçar a ideia de que a ciência progride e aprimora-se deixando de lado questões de ordem contextuais importantes. Ao proceder dessa maneira, os conteúdos da ciência são organizados de tal modo a dar ênfase nos encadeamentos lógicos dos conceitos sem relação com as necessidades extracientíficas. Por outro lado, dar ênfase apenas ao contexto em que a ciência foi elaborada também apresenta problemas. Como bem observam Trindade et al (2010, p. 126), os alunos normalmente têm parco conhecimentos de história e praticamente nenhum de filosofia. Desse modo, ao restringir apenas aos aspectos sociais que propiciaram o aparecimento de determinados conceitos, o educando não é colocado frente aos debates que envolveram os estudiosos da época e que propiciaram a formulação de novos conhecimentos, ou ainda de novas formas de se compreender antigos conhecimentos. Assim, no que diz respeito ao ensino de ciências, é preciso começar pela história da ciência e não pela epistemologia. Episódios da história da ciência, pautada em tendências historiográficas mais atualizadas, pode servir de porta de acesso às questões epistemológicas da ciência. Para tanto é preciso aproximar o historiador da ciência do educador. Será somente por meio de um diálogo entre historiadores da ciência e educadores que poderemos superar os desafios que enfrentamos na articulação dessas duas áreas de conhecimento distintas, história e ensino (SAITO, 2010; TRINDADE et al., 2010). Considerações finais As epistemologias descontinuístas às vezes mascaram a expectativa de que, por meio delas, podemos superar o discurso positivista e progressista do conhecimento científico. A noção de ruptura, certamente, desconstrói a ideia de acumulação de conhecimento. Todavia, não rompe necessariamente com as ideias de linearidade e progresso. Para que possamos compreender o desenvolvimento do conhecimento científico, devemos voltar o nosso olhar para o próprio processo de construção da ciência. Devemos compreender que as várias epistemologias da ciência também fazem parte Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 191 “Continuidade” e “descontinuidade”: o processo da construção do conhecimento científico na história da ciência desse processo e que, portanto, elas também devem ser contextualizadas. Diferentes épocas elaboram diferentes epistemologias, assim como diferentes concepções de ciência. Desse modo, ao articular história e ensino é preciso levar em consideração a visão historiográfica de referência. Isso, entretanto, não significa que devemos tornar o professor um historiador. Visto que muitos manuais e livros didáticos de ciência, que buscam aproximar história e ensino, ainda reforçam a ideia linear e progressista do desenvolvimento do conhecimento científico, é preciso aproximar o educador do historiador da ciência. Isso porque a história da ciência pode ser um instrumento importante para o professor que, utilizando-se de fontes adequadas e atualizadas, possa promover entre seus alunos uma visão mais crítica em relação à ciência e à construção do conhecimento científico. Todavia, é importante que o educador tenha consciência de que a História da Ciência não se encontra pronta e acabada. Ela não deve ser confundida pelo educador como um repositório fixo de informações onde ele poderia buscar recursos para articular história e ensino em sala de aula. A História da Ciência deve ser tomada como ponto de partida para resignificar os conteúdos e levantar discussões sobre diferentes modelos de conhecimento, preparando assim o discente para as questões epistemológicas mais relevantes. É nesse sentido que temos dirigido nossos esforços ao articular história e ensino de ciências. Em outros termos, a História da Ciência pode contribuir na preparação dos alunos para que eles possam formular questões epistemológicas importantes para se compreender a natureza da ciência. REFERÊNCIAS ALFONSO-GOLDFARB, A. M. O que é História da Ciência. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. Como se daria a construção de áreas interface do saber. Kairós, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 55-66, 2003. ______. Centenário Simão Mathias: documentos, métodos e identidade da história da ciência. Circunscribere, São Paulo, v. 4, p. 5-9, 2008. ALFONSO-GOLDFARB, A. M; BELTRAN, M. H. R. (Org.). O laboratório, a oficina e o ateliê: a arte de fazer o artificial. 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Recebido em 28.11.2012 Aprovado em 29.01.2013 194 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 183-194, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE CIÊNCIAS DA NATUREZA INTEGRADO À HISTÓRIA DA CIÊNCIA E À FILOSOFIA DA CIÊNCIA: UMA ABORDAGEM CONTEXTUAL Adailton Ferreira dos Santos* Elisa Cristina Oliosi** Resumo Este artigo propõe-se a reflexão do ensino de ciências da natureza, na perspectiva de uma abordagem contextual para melhor compreender a relação entre ciência e sociedade. Tal abordagem para o ensino de ciências tem sido recomendada pela UNESCO , pela legislação brasileira assim como por pesquisadores que defendem a necessidade de repensar o ensino na sociedade contemporânea, globalizada e tecnológica. Assim, almeja-se que o ensino das ciências da natureza possibilite a compreensão da atividade científica e, por sua vez, contribua para a superação das ideias distorcidas sobre as ciências. Com efeito, apontaremos trabalhos de estudiosos como Matthews, Gil-Pérez, Martins, Freire Jr. e do filósofo das ciências Gaston Bachelard, que defendem um ensino integrado entre a história da ciência e a filosofia da ciência para permitir que o cidadão adquira um pensamento crítico das ciências e de suas implicações no contexto atual. Além disso, essa concepção de ensino contribui para entender a relação dos fatores históricos e sociais no processo de constituição das ciências da natureza de uma época específica. Palavras-chave: Ensino de ciências da natureza. Abordagem contextual. História da ciência. Filosofia da ciência. Abstract THE IMPORTANCE OF TEACHING INTEGRATED NATURAL SCIENCES, HISTORY OF SCIENCE AND PHILOSOPHY OF SCIENCE: A CONTEXTUAL APPROACH This article aims to reflect on teaching Natural Sciences in the perspective of a contextual approach for better understanding of the relationship between science and society. This approach to teaching has been recommended by international organizations, by the Brazilian laws and also by researchers who advocate another kind of education in the contemporary, globalized and technological society. Thus, * Graduado em Filosofia e Pedagogia. Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2012. Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Líder do Grupo de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência e Ensino de Ciência (GHFEC). Endereço para correspondência: Av. Silveira Martins, Cabula, nº 2555 Departamento de Educação I / UNEB – Salvador-Bahia. CEP: 41.150-000. [email protected] ** Graduada em Licenciatura em Química pelas Faculdades de Filosofia, Ciência e Letras Oswaldo Cruz. Doutora em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2010. Professora de História da Química, Química Geral da Universidade Nove de Julho. Membro do Grupo de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência e Ensino de Ciência (GHFEC). Endereço para correspondência: Rua Manoel de Souza Azevedo, 495 – São Paulo-SP. CEP: 02.809-040. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 195 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual it is expected that teaching natural sciences will enable students to understand the scientific activity and contribute to overcoming distorted ideas about science. Our reflections are based on the papers of scholars such as Matthews, Gil-Pérez, Martins, Freire Jr. and the philosopher of science Bachelard, who advocate teaching integrated History of Science and Philosophy of Science in order to allow critical thinking of science and its implications for the current context. Moreover, this way of education contributes to the understanding of the influence of historical and social factors on the constitution process of natural sciences. Keywords: Teaching Natural Science. Contextual Approach. History of Science. Philosophy of Science. 1- Introdução Neste estudo pretendemos fazer uma reflexão sobre o ensino de ciências da natureza1 para melhor compreensão da relação ciência e sociedade, considerando as discussões atuais que defendem uma abordagem contextual do ensino na conjuntura da sociedade contemporânea, globalizada e tecnológica. Tal abordagem toma como base uma vertente construtivista, em que o sujeito crítico dialoga com o conteúdo científico e se permite compreender as ciências entrelaçadas aos fatores social, histórico, filosófico, que, por sua vez, são intrínsecos à atividade científica. Nessa perspectiva, mostraremos que a “história da ciência e da filosofia da ciência”2 tem sido apontada como de grande importância para o ensino das ciências da natureza, almejado na chamada “sociedade do conhecimento”3. Para tanto, enfoca-se neste estudo três momentos, considerando os aspectos que privilegiam essa abordagem. Inicialmente, focalizaremos o contexto do ensino de ciências a partir do estudo de um grupo de documentos que versam sobre a educação científica, publicados pela UNESCO (1999, 2003): a Declaração de Budapeste Marco Geral de Ação e A Ciência para o Século XXI: uma Nova Visão e uma Base de Ação; e a legislação brasileira, 1 De acordo com os PCNs (BRASIL, 2000), as ciências da natureza são: química, física e biologia, e adotaremos essa expressão para nos referimos a essa área do saber. 2 A “história da ciência e filosofia da ciência” é um campo do conhecimento e tem sido bastante difundida no Brasil, por sua contribuição para o ensino de ciências da natureza. Para melhor saber, ver Silva (2006) e/ou Alfonso-Goldfarb (1994). 3 O termo é empregado nos documentos da UNESCO e do Brasil e também por pesquisadores para se referir à sociedade globalizada e tecnológica e dependente das ciências no contexto atual. 196 especialmente, a LDB, os PCNs e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2000, 2006, 2011). No segundo momento, destacaremos algumas ideias distorcidas sobre as ciências da natureza, que dificultam o ensino ao se pensar na atividade científica fragmentada, a-histórica, com um rigor absoluto e imutável, à luz de uma revisão bibliográfica estrangeira e brasileira, a qual inclui pesquisadores, reconhecidamente importantes, como Matthews (1995), Gil-Pérez et al (2001), Martins, L. (1998), Freire Jr. (2002) e o filósofo das ciências Bachelard (1968). No terceiro e último momento, abordaremos estudos de especialistas para, a partir de suas propostas, refletir sobre o ensino de ciências da natureza integrado à “história da ciência e à filosofia da ciência”. Os estudos sobre o ensino de ciências da natureza assinalam a importância desse campo do conhecimento para o cidadão adquirir um pensamento crítico das ciências e de suas implicações na sociedade contemporânea. Além disso, é um saber considerado fundamental para se entender melhor a relação com os fatores históricos e sociais no processo de constituição das ciências da natureza de uma época específica 2 - Abordagem Contextual do Ensino de Ciências da Natureza sob a Perspectiva da Legislação O saber científico é um dos conhecimentos considerados mais importantes na chamada sociedade do conhecimento e, segundo a UNESCO (1999), se tornou uma exigência para a formação de um Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi “cidadão”4 consciente e crítico sobre os acontecimentos do mundo. É também uma condição imprescindível para se entender a nova configuração da sociedade e o desenvolvimento científico, e, ainda, para a inovação e o crescimento local e nacional do país. Tendo em consideração a maneira de pensar supracitada, professores e pesquisadores têm discutido e manifestado suas preocupações quanto ao ensino de ciências da natureza, conforme será visto a seguir. Esses especialistas consideram essencial para a aprendizagem que se tenha [...] uma melhor compreensão do trabalho científico [...], em si mesmo [e] um indubitável interesse [pela ciência], em particular para os que são responsáveis, em boa medida, pela educação científica de futuros cidadãos de um mundo marcado pela ciência e pela tecnologia. (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 139). Nesse sentido, se diz ainda que, Para que um país esteja em condições de atender às necessidades fundamentais de sua população, o ensino de ciências e da tecnologia é um imperativo estratégico [...]. Hoje, mais do que nunca, é necessário fomentar e difundir a alfabetização científica em todas as culturas e em todos os sectores da sociedade (UNESCO, 1999) 5. Tal preocupação com um ensino de ciências da natureza, que possibilite o entendimento das questões epistemológicas, históricas e filosóficas que envolvem a ciência e, por outro lado, contribua para o exercício da cidadania, tem sido constante e tem aparecido de maneira contundente, nas últimas décadas, nos documentos para a “educação científica”. Esta expressão é largamente empregada por estudiosos e na legislação do ensino de ciências da natureza para designar o “conhecimento necessário para entender os debates públicos sobre as questões de ciência e tecnologia” (HAZEN; TREFIL, 1995, p. 12). Tal conceito envolve um conjunto de 4 A UNESCO (1999) e legislação brasileira (BRASIL, 2011) consideram que o aluno é um cidadão e como tal tem direito à cultura científica, enquanto uma construção humana situada historicamente. Doravante, utilizaremos esse termo por entendermos que ele agrega melhor a ideia de educação como um direito na sociedade do conhecimento. 5Trata-se da Declaração de Budapeste, um importante documento resultante dos primeiros encontros no âmbito internacional para a educação científica nos países da América Latina e Caribe, realizados em San Domingos e Budapeste, em 1999. acontecimentos, vocabulários e fatores históricos e filosóficos. Nessa perspectiva, de um ensino de ciências da natureza com base contextual, a UNESCO afirma ainda em outro documento intitulado A Ciência para o Século XXI: uma Nova Visão e uma Base de Ação, que “A educação científica, em todos os níveis e sem discriminação, é requisito fundamental para a democracia. Igualdade no acesso à ciência não é somente uma exigência social e ética. É uma necessidade para a realização plena do potencial do homem” (UNESCO, 2003). No âmbito do Brasil, essa perspectiva de ensino de ciências alinha-se às discussões internacionais. O Ministério da Educação (MEC), desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20/12/1996, afirma que: “A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (BRASIL, 2011). Essa fase da escolaridade abrange também o saber científico. Sendo assim, o ensino das ciências da natureza, na educação básica, deve contribuir para a formação do cidadão, por meio de uma abordagem histórica, social e cultural da atividade científica, para possibilitar a compreensão das ciências como construções humanas. De acordo com Matthews (1995, p. 165), tal abordagem do ensino de ciências da natureza contribui para “Tornar as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamento crítico e, além disso, possibilitar um entendimento mais integral da[s] matéria[s] científica[s]”. Em consonância com o pensamento atual, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino das ciências da natureza ressaltam que o estudante não é só cidadão do futuro, mas já é cidadão hoje, e, nesse sentido, conhecer ciências é ampliar suas possibilidades presentes de participação social e desenvolvimento mental, para, assim, viabilizar sua capacidade plena de exercício da cidadania (BRASIL, 2000). Tal perspectiva para o ensino de ciências da natureza perpassa todas as fases da educação básica. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 197 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual (BRASIL, 2006) recomendam uma organização curricular do ensino brasileiro que contemple as dimensões histórico-social e epistemológica. Este documento vai além dos demais apontados, anteriormente. Preconiza-se aqui uma maior interação entre o ensino, a abordagem contextual e o currículo, criando, desta forma, um entrelaçamento da atividade científica com a dimensão humana. Com efeito, a posição defendida nos documentos da UNESCO e pela legislação brasileira implicam em modificações no ensino de ciências da natureza. De acordo com essa abordagem, a contextualização da ciência é imprescindível para possibilitar outro tipo de ensino, se quisermos que a educação científica atenda à nova configuração da sociedade, que, por sua vez, coloca a aprendizagem no centro das atividades humanas, pois o conhecimento torna-se necessário não só para a inserção do cidadão no mundo contemporâneo, mas também para usufruir dos bens decorrentes do progresso da ciência. 3- Das ideias Distorcidas sobre as Ciências ao Ensino das Ciências da Natureza A necessidade de compreensão das atividades científicas na sociedade do conhecimento tornou-se uma questão premente no ensino de ciências da natureza. Com isso, muitos pesquisadores têm procurado mostrar que a visão distorcida das ciências existente entre os cidadãos pode ser superada. Para entendimento da discussão, mostraremos a seguir como se apresentam alguns problemas no ensino de ciências da natureza. Rosemberg e Birdzell (1990) e Rodrigues e Demeis (1996) nos mostram, por meio dos estudos da história da ciência moderna, que a ciência da natureza apresentou um desenvolvimento considerável a partir da segunda metade do século XIX, e estreitou cada vez mais seu vínculo com as instituições dessa sociedade. A partir desse momento, tornou-se responsável por um aumento exponencial de novos conhecimentos e tecnologias, que afetaram, de maneira profunda e irreversível, a organização e a vida cotidiana dos indivíduos. Nesse sentido, assinalamos, por exemplo, a presença marcante da ciência e da tecnologia nas residências, com a utilização de eletrodomésticos, na sala de aula, com 198 a utilização dos aparelhos elétricos eletrônicos e computadores e na comunicação entre os cidadãos, através dos diversos modelos de celulares utilizados por professores e alunos. No entanto, Pozo (2004) assinala que, mesmo assim, a percepção usual do cidadão acerca da ciência parece advir mais do conhecimento tecnológico que ela propicia do que dos processos de criação e descobertas a ela inerentes. Dentre os fatores responsáveis por esse quadro, pode ser destacado que o conhecimento científico apresentado no ensino é diferente das muitas suposições e crenças que os estudantes têm sobre o mundo. Isso decorre do fato do saber científico requerer [um sistema de pensamento próprio onde se deve ter em consideração] a incorporação do mundo, dos modelos e teorias da ciência em lugar de um sistema cognitivo [a maneira comumente utilizada para se pensar no dia a dia], que é muito eficaz no mundo cotidiano, mas que está estruturado por princípios muito diferentes dos que estruturam tais teorias e modelos. Assim, a ciência requer do cidadaão outra maneira de pensar, ou seja, uma maneira que incorpore as característica e peculiares inerentes à própria ciência. Esse sistema é denominado de natureza da ciência e deve ser ensinado em todas as fases da escolaridade. Um dos primeiros trabalhos, de maior repercussão, que destacou problemas no ensino de ciências da natureza foi realizado pelo filósofo e epistemólogo Bachelard (1884-1962), professor de química e de física, que trabalhou com adolescentes na educação básica e com jovens no ensino superior, e se dedicou ao estudo do ensino e da epistemologia da ciência. Esclarecemos que não temos a intenção de apresentar uma análise dos trabalhos desse filósofo. É suficiente para o nosso fim ressaltarmos um dos problemas do ensino das ciências da natureza estudado por Bachelard (1968, p. 138), em que ele aponta que Existem situações de ensino onde se imaginam que o espírito [saber científico] começa com uma aula, que é sempre possível reconstruir uma cultura falha [o saber comum] pela repetição da lição, que se pode fazer entender uma demonstração repetindo-a ponto a ponto. Não levam em conta que o jovem entra na aula [...] com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana. Bachelard procura mostrar, com este exemplo, que o cidadão leva para a sala de aula uma bagagem, um pensamento sobre o fenômeno ou teoria científica que foi moldada com a cultura do seu contexto e isso se constituí em um obstáculo à aprendizagem. É importante que se compreenda que, para ocorrer outra aprendizagem, agora fundamentada no saber científico, se faz necessário que o cidadão supere essa visão, ou seja, os obstáculos enraizados, as concepções distorcidas de ciência. Nesse sentido, o citado autor chama atenção para que se observe especialmente a maneira como se ensina a ciência, ao dizer: “É indispensável que o professor para explicar uma matéria passe continuamente da mesa de experiência para a lousa, a fim de extrair, o mais depressa possível, o abstrato do concreto. Quando voltar à experiência, estará mais preparado para distinguir os aspectos orgânicos do fenômeno [...]” (BACHELARD, 1968, p. 139). A preocupação com o ensino e aprendizagem é fundamental nos estudos desse filósofo e epistemólogo da ciência. Assim, ele sugere que, ao ensinar ciências da natureza, deve-se procurar observar a forma de trabalho, que explique de maneira pormenorizada o fenômeno ou a teoria científica, ininterruptamente, procurando fazer com que esta seja compreendida, esclarecendo os aspectos teóricos e distintos dos aspectos visíveis. Bachelard recomenda, sobretudo, que para a explicação teórica do fenômeno ou teoria se levem em consideração os fatores contextuais e como esses fatores se entrelaçam formando um todo. Desse modo, para Bachelard (1968) é indispensável que a ciência seja compreendida em sua teia de relações, ou, como já dissemos anteriormente, a partir de uma abordagem contextual, logo, diretamente envolvida com as dimensões humana e social. Prosseguindo com o estudo, os pesquisadores Melo (2005) e Mendes (2005) apontam que parte dos professores considera a ciência como uma construção individualista, particular e elitista, e que existe entre eles o mito de que o saber científico é fruto de mentes brilhantes. Para esses sujeitos, os conhecimentos científicos aparecem como obras de gênios isolados, ignorando-se o papel do trabalho coletivo e cooperativo, dos intercâmbios entre equipes. Em particular faz-se crer que os resultados obtidos por um só cientista ou equipe podem ser suficientes para verificação, confirmando ou refutando, uma hipótese ou toda uma teoria (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 133). Conforme Santos et al (2010), é preciso compreender, ainda, que o conhecimento científico não é obra somente de uma pessoa. Ele é resultado do trabalho de muitas pessoas. Também é preciso que se entenda que, muitas vezes, no processo de construção do conhecimento se estabelecem crises e conflitos entre as equipes, os colaboradores, o governo e/ou a sociedade em razão de motivações diversas, como interesses e pontos de vistas diferentes, relacionados mais diretamente às questões metodológicas e teóricas da ciência, ou relacionados mais diretamente às questões social, política e/ou econômica da região onde a ciência é criada. Portanto, o trabalho do cientista não é individual, e sim construído por muitos “atores” e condicionado a múltiplos fatores, em consonância com a sociedade. Corroboram para melhor compreensão dessa problemática os estudos recentes que realizamos sobre a história da ciência no Brasil, especialmente na Bahia, da segunda metade do século XIX: A Presença das Ideias da Escola Tropicalista Baiana nas Teses Doutorais da Faculdade de Medicina (1850-1889). Com esse estudo procuramos mostrar que um grupo de médicos independentes, chamados, posteriormente, de Escola Tropicalista Baiana, baseado em teorias científicas mais modernas, deu início a práticas médicas diferentes para a abordagem do saber científico, focalizando as doenças regionais reinantes, como a febre amarela e o cólera, chamadas, tempos depois, de doenças tropicais, que, na época, dizimaram milhares de pessoas, sobretudo entre a população negra e escravizados. Em razão do pensamento diferente e da nova forma de trabalho científico, os médicos tropicalistas enfrentaram, durante décadas, no ambiente científico, posições contrárias de grupos influentes, como a Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro e as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, além Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 199 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual de rejeições de corporações sociais e políticas (SANTOS, 2012). Além disso, os médicos da Escola Tropicalista Baiana tiveram que lidar com a mentalidade existente na sociedade, com a resistência da população à modificação de hábitos centenários e de comportamentos tradicionais como sepultamentos nas igrejas, e também com a resistência dos médicos do Império para adotarem outras atitudes e práticas médicas que possibilitassem mudanças na saúde pública. O grupo de médicos tropicalistas enfrentou ainda fatores de ordem econômica impostas pelo governo e as contingências determinadas pela legislação, que impediram que se fizessem com mais brevidade as transformações almejadas no país. Passado muito tempo depois, os trabalhos dos médicos tropicalistas foram considerados originais para a época e contribuíram para as mudanças da trajetória da medicina no Brasil (SANTOS, 2012). Continuando com essa reflexão, Gil-Pérez et al. (2001) apontam outro problema. Para uma parte dos professores existe uma concepção empírico-indutivista da ciência, que resulta no distanciamento das ideias concretas sobre como se constrói e se produz o conhecimento científico. Essa concepção transmite uma crença sobre o papel neutro da ciência e, ainda, incorpora um pensamento ingênuo do conhecimento científico atribuindo à atividade científica a ‘descoberta’ científica. Em consequência disso, o pensamento desses professores revela uma certeza de que o cientista sempre está consciente de seus métodos. Podemos dizer, também, que tal pensamento distorcido não leva em consideração os fatores sociais e culturais, baseado na crença de que tal contexto não interferiria na atividade científica, pois seria um saber fundamentado na chamada imparcialidade científica e na observação. Essa visão no ensino de ciências transmite uma ideia equivocada do trabalho científico e não considera que a ciência é uma construção humana e, portanto, sujeita às questões de todas as ordens, percalços, intempéries e conflitos, de acordo com o lugar e a conjuntura onde é criada, difundida e desenvolvida. Aliás, o exemplo dos médicos da Escola Tropicalista Baiana também é importante para esclarecer melhor a questão e demonstrar a pertinência da ciência com o seu entorno. 200 Lembramos também outro fator, igualmente importante, que pode interferir na atividade científica: as questões de fóruns pessoais dos cientistas que, em muitas oportunidades, podem se constituir como estímulos e se tornarem imprescindíveis para o trabalho científico, ou ainda como empecilhos ao desenvolvimento de um determinado trabalho. Em outras palavras, nessa discussão “incluem-se ainda os componentes pessoais que influenciam as atividades dos cientistas” (SCHWARTZ; LEDERMAN; CRAWFORD, 2004, p. 611). Dessa maneira, tudo leva a crer que boa parte dos problemas existentes no ensino de ciências da natureza é decorrente também de uma mentalidade que durou muito tempo. Conforme explica Videira (2006), pensou-se que a ciência seria o que é graças ao fato de que existiria o método científico, e que, para a maioria das opiniões, ele seria superior quando comparado a outro tipo de conhecimento. Inclusive, a instauração da ciência moderna somente teria ocorrido porque o físico e astrônomo Galileu Galilei (1564-1642) e os filósofos naturais ingleses Francis Bacon (1561-1626), William Harvard (1578-1657) e o filósofo francês René Descartes (1596-1650), entre outros, criaram o método científico. Nesse sentido, ainda, Videira faz o seguinte comentário: Esta é uma das ideias mais difundidas e arraigadas a respeito do método científico, quando este é entendido de forma tradicional, por exemplo, concretizada nas diferentes formulações do empirismo e do positivismo, considera-o como capaz de realizar corretamente duas funções: a) conduzir com segurança os cientistas às descobertas que almejam; e b) argumentar que aquelas descobertas são, de fato, verdadeiras e bem fundamentadas (2006, p. 23). Assim, devido a pensamentos como esses, surgiram mais distorções e problemas no ensino de ciências da natureza. Por exemplo, se passou a acreditar em um rigor inquestionável e nos procedimentos infalíveis utilizados pela ciência, e, logo, não se cogitava a possibilidade de que o resultado trazido pela utilização do método científico poderia conter erros, seja no laboratório, no estudo de um fenômeno, seja na coleta e análise de dados de uma pesquisa. A visão tradicional e de perfeição atribuída ao método científico forma um pensamen- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi to distorcido da atividade científica, e leva a crer que o cientista sempre tem certezas. Porém, isso não é real. Em seu cotidiano, os cientistas lidam também com dúvidas e erros, permanentemente (SANTOS, 2011). Gil-Pérez et al reiteram a discussão feita acima sobre o ensino de ciências da natureza. De acordo com os trabalhos destes pesquisadores, “trata-se de enxergar o método científico como uma sequência de etapas definidas, destacando-se o rigor do mesmo e o caráter exato dos resultados obtidos” (GIL-PÉREZ et al., 2001, p. 130). Cabe ressaltar, além disso, que ao idealizar o método científico como infalível, ele se torna, desde então, um método mecânico, com controle rigoroso que traz resultados inquestionáveis, e descarta-se a existência da criatividade, da tentativa e da dúvida, rejeitando-se, assim, as características inerentes do trabalho científico. Considerando o exposto, acerca do ensino de ciências da natureza no contexto atual, é imprescindível aos cidadãos o conhecimento das questões epistemológicas, históricas e filosóficas como uma importante contribuição para a superação dos problemas do ensino, conforme foram apresentados. Por outro lado, os estudos realizados por Abd-El-Khalick e Lederman (2000) e Shiang-Yao e Lederman (2007) ressaltam que as concepções distorcidas a respeito da natureza da ciência são mais comuns entre aqueles cidadãos que se encontram mais afastados das discussões filosóficas. É preciso compreender que o conhecimento científico consiste de tentativas empíricas, pois se transforma em função de observações sobre o mundo natural. Além do mais, deve-se considerar a importância da imaginação e da criatividade para a construção de explicações científicas no ensino de ciências em todas as fases da escolarização. 4- A Importância da História da Ciência e Filosofia da Ciência no Contexto do Ensino das Ciências da Natureza De acordo com os estudos desenvolvidos por Matthews (1995), na Inglaterra e nos Estados Unidos, países de larga experiência com a educação científica, uma maneira de contribuir para a melhoria dos problemas da educação em ciências seria o ensino da história da ciência e da filosofia da ciência no ensino de ciências da natureza. Em suas pesquisas, Matthews (1995) argumenta que a história das ciências possibilitaria o entendimento de como e em que circunstâncias ocorreu a construção de um dado conhecimento, em um período histórico, e, por outro lado, a filosofia das ciências permitiria conhecer as questões epistemológicas em que estão implicados os problemas científicos. Assim, o ensino de ciências da natureza tomaria outros encaminhamentos, ganharia características mais humanas e oportunizaria uma melhoria na aprendizagem. A necessidade de compreensão da natureza da ciência, ou seja, como se desenvolve a atividade científica, tornou-se uma questão premente no ensino para superar as ideias distorcidas sobre as ciências. Essa maneira de pensar é tida como consensual entre os estudiosos da área. Sendo assim, é importante destacar que: O crescimento dos estudos em história da ciência e filosofia da ciência, intensificado na segunda metade do século XX, respondeu tanto a necessidades estritamente intelectuais e conceituais, estas ligadas ao desenvolvimento de certas disciplinas, quanto a necessidades sociais, decorrentes de crescente influência que a ciência e a tecnologia passaram a ter nas sociedades contemporâneas. (FREIRE JR., 2002, p. 15). Nesse contexto, Melo (2005) defende que a história da ciência e a filosofia da ciência são os fundamentos ou os alicerces para atingir o conhecimento científico, pois a sua inserção no ensino contribui para entender as relações da ciência com a tecnologia, com a cultura e com a sociedade. Mach (1960), por sua vez, afirma que o estudante com um conhecimento em história da ciência e filosofia da ciência pode compreender exatamente como a ciência apreende, e não apreende, o mundo real, vivido e subjetivo. Contudo, o mais comum é que o estudante fique sujeito à infeliz escolha de renunciar ao seu próprio mundo, por ser uma fantasia, ou renunciar ao mundo da ciência pela mesma razão. Esse pesquisador também adverte que o mundo dos fenômenos vividos é vital para a educação em ciência, pois é nesse cenário que a curiosidade e a fascinação começam, mas ele não deve ser confundido com um mundo inerte, ou um mundo de Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 201 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual gases ideais. Corroborando também esse enfoque, os estudos da pesquisadora e professora Lilian Martins destacam que a história e a filosofia da ciência trazem importantes contribuições ao ensino de ciências. Quais sejam: Mostrar, através de episódios históricos, processo gradativo e lento de construção do conhecimento, permitindo que se tenha uma visão mais concreta da natureza real da ciência, seus métodos, suas limitações. Isso possibilitará a formação de um espírito crítico fazendo com que o conhecimento científico seja desmitificado sem, entretanto, ser destituído de valor. (MARTINS, L., 1998, p. 18). Além disso, Mostra, através de episódios históricos, que ocorreu um processo lento de desenvolvimento de conceitos até se chegar às concepções aceitas atualmente [...] [e] o educando irá perceber que a aceitação e o ataque a alguma proposta não dependem apenas de seu valor intrínseco, de sua fundamentação, mas que também nesse processo estão envolvidas outras forças tais como as sociais, políticas, filosóficas e religiosas. (MARTINS, L., 1998, p. 18). E ainda segundo Roberto Martins, Informações (preferencialmente bem fundamentadas) sobre a vida de cientistas, a evolução de instituições, [...] o acidente geral de uma época, as concepções alternativas do mesmo período, as controvérsias e dificuldades de aceitação de novas ideias [...] fornecidas através da história e filosofia da ciência durante a formação dos professores podem contribuir [...] para dar uma nova visão da ciência e dos cientistas, dando maior motivação ao estudo. (MARTINS, R., 1990, p. 4). Dessa maneira, podemos observar a relevância da história da ciência e da filosofia da ciência para o ensino de ciências da natureza. As peculiaridades apresentadas com a apropriação desses saberes tornam o ensino mais interessante, permitem a compreensão da natureza da ciência e oportunizam uma aprendizagem mais significativa. Por sua vez, retiram o cidadão do lugar ingênuo, favorecendo o surgimento de uma posição crítica em relação à ciência e a tecnologia na sociedade do conhecimento, contemporânea e globalizada. Além do mais, como bem nos lembra Matthews, esse conhecimento permite enxergar “A ciência 202 numa dimensão mais humana e compreensível e se pode explicar, de outra maneira, os fenômenos como artefatos dignos de serem apreciados por si mesmos. Isto é importante para os estudantes que estão sendo apresentados ao mundo da ciência” (MATTHEWS, 1995, p. 184). É importante, porém, que se esclareça que a área de história da ciência e filosofia da ciência não pretende substituir o ensino de ciências, ou, ainda, ser a “solução” para todos os problemas do ensino. Na verdade, os elementos oferecidos pelas abordagens da história da ciência e da filosofia da ciência complementam o conteúdo das disciplinas científicas de várias formas. Especialmente, quando se trata de “compreender o conhecimento científico como resultado de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social” (BRASIL, 2010, p. 35). Por conseguinte, a inserção desses saberes no ensino contribuiria, certamente, para a formação de um pensamento mais reflexivo e crítico do cidadão na educação básica. 5- Considerações finais Procuramos com este trabalho fazer uma reflexão sobre as questões prementes do ensino de ciências. Focalizamos, especialmente, as discussões que abarcam a abordagem contextual do ensino de ciências da natureza. Assim, a educação científica, entre outras questões, deve contribuir: Para o domínio das técnicas de leitura e escrita; permitir o aprendizado dos conceitos básicos das ciências naturais e da aplicação dos princípios aprendidos a situações práticas; possibilitar a compreensão das relações entre a ciência e a sociedade e dos mecanismos de produção e apropriação dos conhecimentos científicos e tecnológicos; garantir a transmissão e a sistematização dos saberes e da cultura regional e local. (FRACALANZA; AMARAL; GOUVEIA, 1986, p. 26-27). As razões acima elencadas se contrapõem ao ensino centrado no livro didático, memorístico, acrítico e a-histórico ainda praticado em algumas partes do país. Visando à mudança dessa realidade, torna-se necessário desenvolver um ensino de ciências que tenha como foco, em todas as fases do processo de escolarização, a ação do sujeito, a sua participação ativa durante o processo de aquisição Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi do conhecimento, a partir de desafiadoras atividades de aprendizagem (FRIZZO; MARIN, 1989). Nessa perspectiva, compreendemos que os trabalhos dos estudiosos, pesquisadores, filósofos e professores do ensino de ciências da natureza, bem como a legislação brasileira, a LDB (1996), os PCNs (2000) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), convergem para o seguinte: todos os cidadãos têm direitos a um ensino que possibilite a sua formação cultural, uma vez que o conhecimento científico é parte constituinte da cultura da sociedade contemporânea e tecnológica. Alinha-se a tal perspectiva a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que defende, especialmente para a América Latina, que o ensino das ciências da natureza con- tribua para o cidadão refletir criticamente sobre as ciências e os produtos produzidos por ela, para essa conjuntura da sociedade, globalizada e tecnológica (UNESCO, 2005). Consequentemente, a área de história da ciência e da filosofia da ciência pode oferecer uma importante contribuição para o ensino de ciências. Além disso, possibilitaria ao cidadão a superação das ideias distorcidas sobre as ciências à medida que este passar a conhecer em que circunstâncias ocorre a construção do saber científico e entender as questões epistemológicas que envolvem a ciência e a tecnologia sem perder de vista a relação com a dimensão humana e social. Assim, outro tipo de ensino de ciências da natureza é imprescindível no contexto na sociedade do conhecimento. REFERÊNCIAS ABD-EL-KHALICK, F.; LEDERMAN, N. 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Recebido em 08.12.2012 Aprovado em 07.03.2013 204 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Luciano Costa Santos O PENSAMENTO FECUNDO: ELEMENTOS PARA UMA RACIONALIDADE TRANSMODERNA Luciano Costa Santos* Para Ana Cecília Costa “Eis o paradoxo: como modernizar-se e retornar às fontes?” Paul Ricoeur RESUMO Uma das principais marcas do contexto contemporâneo é o desgaste de ideais iluministas fundadores da modernidade, em decorrência da expansão planetária de um sistema civilizatório baseado na produtividade e competitividade. Esse transe histórico atinge a escola “ilustrada” moderna, instrumentalizada como banco de dados a serviço de demandas mercadológicas. Diante da encruzilhada “pós-moderna”, propõe-se como perspectiva histórica o paradigma da transmodernidade, situado além da negação ou reafirmação da modernidade, e que consiste na reapropriação do legado científico e crítico da racionalidade moderna, a partir da revisita a fontes hermenêuticas por ela relegadas. Tais fontes, como as dimensões de transcendência, alteridade e tradição, propiciam uma fecundidade de sentido que a razão crítica não pode produzir por si mesma, e constituem uma reserva sapiencial ante o dissolvente pragmatismo pós-moderno. Palavras-chave: Modernidade. Razão crítica. Pós-modernidade. Pensamento fecundo. Transmodernidade. ABSTRACT FRUITFUL THOUGHT: ELEMENTS FOR A TRANSMODERN RATIONALITY One of the main characteristics of the contemporary context is the deterioration of the illuminist founding ideals of modernity. This fact is due to the planetary expansion of a civilization system based on productivity and competitiveness. This historical trance reaches the modern “aesthetic” school which acts as database for market demanding. Facing the “postmodern” crossroad, we propose as a historical perspective the transmodernity paradigm that is beyond negation or confirmation of modernity. It consists of scientific and critical legacy appropriation of modern rationality through the relegated hermeneutical sources. These sources, as the dimensions of transcendence, * Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio no Institut Catholique de Paris/Université de Poitiers. Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC). Pertence à Linha 1 (Processos Civilizatórios: Educação, Memória e Pluralidade Cultural) do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC) da UNEB. Endereço para correspondência: Av. Araujo Pinho, nº 421, Cond. Edgar Degas, Apto. 601 – Canela. CEP: 40.110-150. SalvadorBA. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 205 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna alterity and tradition, give fruitful meaning that cannot be given by critical reason itself, and they are considered a kind of sapience stockpile facing the weak postmodern pragmatism. Keywords: Modernity. Critical Reason. Postmodernity. Fruitful Thought. Transmodernity. 1. Modernidade Não é fácil tomar pé na densa cerração dos tempos atuais, e menos ainda vislumbrar a luz de um possível horizonte histórico rumo ao qual se destinariam nossas esperanças. Conforme o ângulo que se eleja, há quem entenda os nossos tempos como desdobramento, exacerbação ou desagregação do projeto civilizatório moderno, e nesse caso seríamos – respectivamente – “modernos”, “hipermodernos” ou “pós-modernos”, ou, quem sabe ainda, tudo isso ao mesmo tempo. Como quer que se chamem as águas revoltas em que navegamos, parece razoável partir do conceito de modernidade como chave hermenêutica na tentativa de decifrar o sentido e divisar as perspectivas que se abrem com a contemporaneidade. Antes de erigir-se em paradigma que se impõe às mais diversas áreas de atuação humana, da economia à educação, o conceito de modernidade nasce colado à experiência histórica. É um conceito histórico-filosófico. Refere-se a uma nova era que se inaugura na Europa ocidental, a partir do século XV, com sucessivos movimentos de ruptura e emancipação protagonizados, em vários níveis, pela classe dos mercadores de bens aglomerados nos centros urbanos – ou “burgos” – então em plena efervescência. Em nível econômico, os “burgueses” rompem com a sujeição ao sistema feudal de produção, baseado na apropriação hereditária das terras, a partir da conquista do poder de acumular bens pela transformação técnica da Natureza. Momentos-chave dessa emancipação econômica são as revoluções Comercial (séc. XVI) e Industrial (séc. XIX), que impulsionam a conquista de novos mercados para além das fronteiras do Velho Mundo. Em nível político, o homem burguês se insurge contra o poder da aristocracia, legitimado por títulos hereditários de nobreza, abrindo caminho para a construção de uma ordem institucional pública pactuada pela 206 sociedade civil, cujos principais momentos são as revoluções Gloriosa (séc. XVII) e Francesa (séc. XVIII), que fincam os fundamentos do Estado democrático e de direito. Em nível cultural, o homem moderno libera-se da tutela da Igreja, conquistando o poder de entender o mundo pelo livre exercício da razão, sendo marcos dessa emancipação mental o Renascimento (séc. XV) e o Iluminismo (séc. XVIII), que legam ao Ocidente o caldo de cultura humanista do qual viriam a surgir, dentre outras, instituições como o método científico e a escola pública. Ruptura, emancipação, inovação: tais atitudes consubstanciam o espírito propulsor da era moderna, que preside a seus movimentos e momentos sem deter-se em nenhum deles, inaugurando um processo de incessante atualização histórica que configura a modernidade como projeto inacabado. Fruto da emancipação da classe burguesa impulsionada pelo avanço técnico-científico, a modernidade traz em seu próprio advento a compreensão de si mesma como progresso face ao período histórico anterior, consolidando uma interpretação do tempo que tem o seu vetor axiológico fixado no futuro: doravante, o novo é sempre melhor; ser atual é estar à frente do que passou e o passado, em si mesmo, já é ultrapassado. Em suma, ser moderno é ser contemporâneo do futuro. Como afirma Paul Ricoeur (1968) em Civilização universal e culturas nacionais, no livro História e Verdade, salta aos olhos a presença de certa linha progressiva na história das sociedades modernas, quer se tenha em conta a conquista de cada vez mais objetividade na ciência, eficácia na técnica, produtividade na economia, conforto no consumo, planificação no Estado, equanimidade no sistema jurídico, e assim por diante. Em certa medida, a racionalidade moderna – emancipada, autônoma – vem se tornando cada vez mais “razoável” de acordo com os seus pressupostos internos de objetividade, eficácia, produtividade, conforto, planificação e equanimidade. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 Luciano Costa Santos No entanto, o que caberia questionar – e deixamos a questão, por ora, em aberto – é se o fato do progresso, verificável em países ditos desenvolvidos, implica que o ideal de progresso esteja destinado a impor-se como horizonte às sociedades. De outro lado, tendo em vista os graves desarranjos sociais e ambientais decorrentes da expansão planetária da civilização moderna, importa ainda questionar se o próprio ideal de progresso é não somente viável (ou “sustentável”), mas apropriado para corresponder às mais exigentes aspirações humanas de sentido e convivência. Noutras palavras, o que está em jogo é a suposta equivalência de progresso e crescimento, ou modernização e humanização. Não é fácil, porém, levar adiante tal tarefa de revisão paradigmática, pois isto obrigaria o pensamento a saltar para fora do campo de sentido que parece ser o único possível ou, ao menos, o único legítimo. Hegemônica nos espaços institucionais da ciência e da academia, a racionalidade moderna passa a confundir-se com a própria vida da razão, longe da qual não restariam senão sombras e incertezas, fanatismos e fantasias. No interior dessa jurisdição hermenêutica, questionar a objetividade como critério de sentido é correr o risco de cair no subjetivismo, questionar eficácia e produtividade como critério de valor é correr o risco de resignar-se ao inútil, questionar o progresso como sentido da história é correr o risco de retroceder ao “arcaico”, questionar a equanimidade normativa como critério de justiça é correr o risco de ceder ao arbítrio, questionar, enfim, a modernidade como critério de civilização é correr o risco de tornar-se “bárbaro”. No entanto, assim como modernidade não é sinônimo de humanidade, mas apenas uma versão da aventura humana, a racionalidade moderna tampouco é a razão, mas um modo ou modelo desta, com a respectiva oferta de sua força e a impossibilidade de seus limites. 2. “Crítica” da razão crítica Ora, o que antes de tudo caracteriza a racionalidade moderna é a decisão de não contar com outra fonte de sentido senão a que se origina do próprio sujeito. Se for assim, só pode fazer sentido o que não somente se apresenta ante a consciência do sujeito, mas o que provém de seu ato intencional. Trata-se, portanto, não apenas de obrigar toda faculdade ou forma de conhecimento a prestar contas ante o crivo da razão reflexiva, mas de desautorizar, por princípio, a pretensão de inteligibilidade de qualquer forma de conhecimento constituída aquém ou além do campo de força da razão, seja esta científica, especulativa ou crítica. Segundo Gadamer (2011), situa-se aqui o nó que leva o iluminismo (Aufklärung) a recusar a contribuição de revelação, tradição, autoridade e preconceito (ou, se quisermos, “pressuposto”) como instâncias geradoras de sentido. Partindo da posição amplamente estabelecida de que cabe à razão reflexiva a prerrogativa de julgar a validade de qualquer conhecimento, o iluminismo conclui que todo conhecimento só pode ter o seu ponto de partida na reflexão. A partir daí, julga procedente cortar os fios que ligam a razão a pressupostos pré-reflexivos de ordem histórica ou cultural, preservando-a de qualquer contágio epistemológico indevido e lançando-a num percurso lógico linear e coerente, de certeza em certeza, de juízo em juízo, de argumento em argumento, de conclusão em conclusão. Com isso, a racionalidade iluminista livraria a razão de um círculo hermenêutico “vicioso” que justamente Gadamer – e, antes dele, Heidegger – assumem como virtuoso e levam às últimas consequências: aquele círculo segundo o qual a razão reflexiva já opera a partir de sentidos histórico-culturais dos quais lhe cabe apropriar-se para trazê-los à maior inteligibilidade possível. Assumir o círculo hermenêutico significa, portanto, reconhecer que a razão situa-se em um lugar e não tem como escapar da finitude. Se essa perspectiva parece degradar a razão – especialmente se considerada à luz ofuscante do Absoluto hegeliano, por exemplo –, de outro lado lhe confere a inaudita dignidade do que é vivo e mortal, reconhecendo que ela pertence a uma comunidade, traz à luz um tempo e mergulha num denso caldo de sentido, de tal modo insondável que não tem como vir de todo à luz na transparência do conceito. De volta ao “nó” iluminista, o que leva a racionalidade moderna à destituição epistemológica de tradição, revelação, autoridade e pressuposto é o fato de, ademais de prévias à reflexão, tais instâncias supostamente usurparem uma credibilidade que, de direito, pertenceria somente à razão, haven- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 207 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna do assim uma incompatibilidade de competências. Desse modo, a tradição revelada tenderia a ocupar o lugar da reflexão, a autoridade deslocaria o juízo, o pressuposto substituiria a evidência. De acordo com Gadamer (2011), porém, esses polos não são nem separados, nem incompatíveis como pretende a razão moderna. Em primeiro lugar, falta ao iluminismo suficiente radicalidade reflexiva para reconhecer o seu próprio preconceito quanto à suposta supremacia da razão reflexiva face às demais instâncias geradoras de sentido. Haveria, assim, um preconceito do iluminismo contra todo pressuposto, com exceção do pressuposto de que a “luz” da razão é superior a qualquer outra. De outro lado, embora pré-reflexivos, tradição, revelação, autoridade e pressuposto não são necessariamente alheios a certa compreensão intuitiva, uma vez que a crença na revelação, o pertencimento à tradição, a obediência a uma autoridade e a aceitação do pressuposto por vezes supõem o reconhecimento implícito da lucidez que os torna persuasivos ou mesmo irrefutáveis. Por fim, mesmo atuando em distintas áreas de sentido – ou por isso mesmo –, razão e tradição carecem uma da competência da outra, sem o que a razão periga privar-se de sentidos seminais e a tradição, estacionar em um grau primário de compreensão que não faria jus à riqueza do que ela guarda. Crença e crítica não disputam espaço hermenêutico. A crença dá o que a crítica não pode dar; a crítica tira o que a crença precisa perder para tornar-se mais dadivosa. No entanto, tal é a confusão instalada sob a longa hegemonia do paradigma iluminista, que a razão crítica, por assim dizer, atraiu a crença para si, dando lugar a uma inusitada crença na crítica, como se a reflexão sobre os limites da razão e a desconstrução de suas formas espúrias – competências da crítica – tivessem o poder de saciar a sede de sentido dos amantes da sabedoria. Tanto mais cáustica a crítica, tanto mais ardorosa a crença, até chegar-se ao extremo paradoxo de ortodoxos devotos dos mestres da suspeita, para os quais um pensamento se torna tanto mais digno de crédito quanto menos restar a ser desconstruído. No vórtice (já agora “pós-moderno”) dessa razão hipercrítica, não somente tudo o que é sólido, mas mesmo tudo o que é tenro se desmancha no ar, como se até a possibilidade de nascer e frutificar 208 já fosse um atentado contra as suspeitas da razão. Diga-se de passagem, para quem tem em torno de si uma civilização viçosa como a latino-americana, com a pletora de suas criações populares mestiças e tropicais, submeter-se, não propriamente à razão crítica, mas ao criticismo herdado de uma civilização vetusta como a europeia, não seria sintoma de... colonialismo cultural? Que acadêmico “emancipado”, porém, estaria disposto a admiti-lo? De desconstrução em desconstrução, à razão crítica foi afinal reservada a grandiosa tarefa de contribuir para “edificar o deserto”1 (UNGER, 2001, p. 19), âmbito de despojamento no qual só sobrevive o que permanece ligado às fontes, e que aqui se pode tomar como metáfora da possível passagem para uma nova ordem civilizatória mais além da modernidade. Nesses tempos de deserto, em que a racionalidade moderna parece haver atingido a exaustão após levar ao extremo o seu poder, não há como pretender uma possível superação da razão crítica por uma hipotética – e ainda mais engenhosa e rigorosa – crítica da razão crítica, que só nos precipitaria mais para dentro do vórtice do qual se espera escapar. A razão crítica não pode ser superada por qualquer novo investimento reflexivo, porque justamente lhe coube conduzir ao limite o esforço de construção/desconstrução reflexiva do sentido. Em tempo de deserto, já não se trata apenas de refletir mais, investir mais, capacitar, produzir, construir, desconstruir, reconstruir, progredir, mais (ou menos!), mas de preparar o dom de um novo começo. Trata-se, portanto, de submeter a razão moderna a um mortal rito de passagem pelo qual ela venha a renascer para além de seu poder e de sua impotência. 3. Pensamento Fecundo A alternativa à razão crítica não é, portanto, de modo algum a razão acrítica – contradição nos termos –, mas o pensamento metacrítico ou fecundo. O meta (“além de”), referido no termo “metacrítico”, indica a abertura da razão a instâncias hermenêuticas – tais como as mencionadas tradição, revelação e autoridade –, nas quais surpreende uma potência de sentido que, por seus próprios recursos reflexivos, ela não tem como prover a si mesma. Uma 1 A frase é atribuída a Nietzsche, sobre a “desertificação” do mundo contemporâneo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 Luciano Costa Santos das características diferenciadoras do pensamento fecundo é, pois, a sua radical passividade, uma vez que o sentido não resulta da iniciativa intencional da consciência reflexiva, mas advém-lhe por dom. É encontrado. O pensamento fecundo recebe o logos daquele núcleo gerador de sentido a que pertence, escuta e reverencia. E aqui reside a sua segunda característica marcante, que é a de operar a partir de – e em relação com – uma dimensão outra, diante da qual o seu poder se detém. O pensamento fecundo é, assim, antes de mais nada, pensamento fecundado, ao fazer-se guardião de um sentido outro, novo, que o invoca e insta para vir à luz. Nessa perspectiva, e para continuar no rastro das metáforas que nos guiam, talvez se possa dizer que, enquanto cabe à razão crítica contribuir para enterrar ideias “semimortas” (ou “natimortas”), que entulham os discursos mas não geram acontecimento, o pensamento fecundo é chamado a favorecer a insurgência de sentidos que precisam vir à luz para que o mundo se renove. Sendo assim, é como se a tarefa do pensamento oscilasse entre tomar a sério e questionar, em última instância, ora o que precisa morrer, ora o que precisa nascer. Opta-se, aqui, pelo termo “fonte” em vez, por exemplo, de “fundamento”. O fundamento – metáfora arquitetônica – pode ser posto por alguém – o fundador –, tem o seu começo demarcável, é estável e atua como base sem, entretanto, influir naquele que sobre ele se sustenta; a fonte, ao contrário, brota de si mesma, tem origem insondável, é dinâmica, em permanente renovação, e comunica-se como dom àquele que dela vive, vivificando-o a cada instante. Em resumo, a imagem da fonte guarda as características do que é originário, gerativo, insondável, dinâmico, gratuito e dadivoso, e por isso parece melhor apropriada para servir de metáfora do princípio seminal (arké) que atua no pensamento fecundo. Exemplos desse princípio hermenêutico gerador são, dentre tantos – e para ficar apenas com pensadores contemporâneos –, as categorias de “mundo da vida” (Lebenswelt) em Husserl, “ser” em Heidegger, “linguagem” em Gadamer, “mistério” em Gabriel Marcel, “carne” em Merleau-Ponty, “encontro” em Buber, “alteridade” em Levinas, “núcleo ético mítico” em Paul Ricoeur, “estar” em Rodolfo Kusch, para citar algumas das mais evocativas. Essas categorias têm em comum o deslocamento gravitacional levado ao “sol” da subjetividade moderna, que tudo constitui como objeto e reduz à própria medida e, no âmbito da polis, espraia a luz do “humanismo progressista” quando trata de prestar contas a parcelas esclarecidas da opinião pública. A questão, para o pensamento metacrítico, não é a criticidade em si mesma, ou o seu suposto excesso. Especialmente na esfera das relações públicas, mas não apenas aí, a razão crítica é o mais eficaz preventivo contra abuso de poder, desigualdade de direitos, exploração e violência, e nunca será exigida o bastante em países como o Brasil, cuja pesada herança colonial expõe amplos setores da população à privação de recursos, supressão de direitos e falta de participação política. Criticidade nunca é demais. A questão é o modelo hegemônico de subjetividade autocentrada que erige a razão crítica em princípio soberano de sentido, confiando-lhe a prerrogativa pedagógica de presidir a formação do sujeito, a relação com os outros e a transformação do mundo, como se a autonomia de pensar por si (sapere aude!) e a consciência dos direitos próprios e alheios fosse o que de mais elevado se pudesse esperar do humano. A propósito de direitos, aliás, importa não perder de vista que a igualdade jurídica iluminista não nasce da solidariedade compartilhada, mas da concessão a todos os cidadãos de direitos que, em princípio, cada sujeito emancipado reivindica para si mesmo. Noutras palavras, a concepção iluminista de justiça tem como base uma antropologia individualista. Não resta dúvida de que, sem razão crítica, não é possível emancipação, e sem esta não há como assegurar a dignidade humana. Isto posto, cabe indagar se a garantia da liberdade e dos direitos equivale ao ideal de vida humana ou constitui a necessária passagem rumo à sua realização. Sendo este o caso, o imperativo de emancipação estaria para a humanização, por exemplo, como a saúde para o esporte, o domínio da língua para a poesia, ou o respeito para a relação interpessoal. Fincados os marcos da cidadania em firmes alicerces jurídicos, estabelecidas as regras do jogo social com base na liberdade e igualdade universal de direitos, “resta” saber que sentido dar a felicidade, bem, mal, sexo, amor, amizade, família, morte, nascimento, valores, afetos, corpo, vício, transcen- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 209 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna dência etc.; resta, inclusive, saber que sentido dar às próprias liberdade, dignidade e justiça retiradas de seu enquadramento civil e jurídico, todas essas questões viscerais para as quais a racionalidade moderna reserva um tratamento raso ou evasivo, quando não as relega sumariamente ao campo da consciência “privada”. Se as fontes hermenêuticas tradicionais foram interditadas como “irreflexivas” e “acríticas”, de onde, afinal, haurir lucidez para dar sentido à vida e à morte? A esse respeito, é bastante sugestivo que da velha França revolucionária um filósofo como Ferry (2007) tenha suscitado, no início deste século, o retorno a certa “espiritualidade laica” de matriz clássica greco-romana, com o propósito de enfrentar a crise de sentido da sociedade pós-metafísica a partir de uma perspectiva sapiencial que a comunidade acadêmica sequer parecia considerar digna de ser trazida ao debate público. Ainda mais significativo é que, na mesma França, nos anos 1970, após haver elaborado uma rigorosa desconstrução arqueológica da relação entre ciência e poder, ninguém menos que Foucault enceta uma guinada sapiencial em pleno reduto estruturalista. Valendo-se de uma releitura nietzschiana de filósofos helenistas, Foucault (2004) concebe a ética como estética da existência ou cuidado de si mesmo, tendo como base a compreensão da vida como obra de arte trabalhada pelo indivíduo a partir da vigilância criativa exercida sobre os próprios afetos e desejos. Quaisquer que fossem as águas hermenêuticas aí em jogo, gregas ou outras, o sintomático nesses casos é, de um lado, a sede de sentido que leva à retomada de questões quase demitidas do campo filosófico; e, de outro, a busca de fontes sapienciais para além da razão crítica, por parte de filósofos que a manejam com maestria. Fica sugerido por esses exemplos que, reduzida a si mesma, a racionalidade moderna parece ter pouco a dizer sobre o enigma humano. Dono de recursos, sujeito de saberes e direitos, desvencilhado de laços comunitários, o homem moderno não reconhece qualquer sentido extrínseco ao seu poder de pensar, produzir e gerir a vida por si mesmo, vindo a cristalizar-se a percepção de si como identidade autoconstitutiva e fundamento do real: penso, logo existo. Em última instância, ser 210 eu é fundar a existência a partir da própria consciência. O ego cogito cartesiano não é, portanto, senão o correlato filosófico do poder – técnico, econômico, político e intelectual – que se libera no homem moderno. 4. Pós-modernidade Um dos mais significativos paradoxos entranhados na modernidade reside, entretanto, no fato de que a emancipação do sujeito não se dá sem que ele mesmo acabe se sujeitando a mecanismos técnicos, econômicos e políticos que vão além de sua esfera individual de decisão e dele se apropriam como instrumento. Nos tempos atuais, consolida-se em nível planetário a expansão do sistema de acumulação econômica baseado na exploração da força de trabalho (a que Marx chama mais valia), articulado ao sistema tecnológico de exploração dos recursos naturais, sob a pressão de uma avassaladora força de apropriação que tudo submete a objeto de cálculo, uso e produção, e a que Heidegger (1995) denomina Gestell. A expansão planetária desse sistema integrado de acumulação econômica e exploração tecnológica já não se encontra (se é que algum dia esteve) sob o controle de nenhum sujeito histórico. Trata-se, antes, de uma irresistível e ilimitada “mobilização total” (JÜNGER, 2002) que irrompe do coração da história, arranca e arrasta instituições seculares e cuja superação não parece sequer concebível, pois somente a custo se poderia imaginar a possibilidade de uma civilização futura pós-tecnológica e pós-industrial. Contrariando uma perspectiva “humanista” que se estende até o século XIX, ciência (objetividade), técnica (eficácia), economia (produtividade) e política (planificação estatal) já não são meros recursos racionais à disposição de desígnios de emancipação, mas configuram hoje um único sistema civilizatório científico-técnico-econômico-político, cujo raio de atuação cobre todo o planeta e põe a seu serviço a sociedade toda de todas as sociedades. É a consumação da internacionalização compulsória desse sistema tecnológico-capitalista que se conhece com o nome de globalização, preferindo o pensador Milton Santos cunhá-lo de “globalitarismo” para sublinhar o seu aspecto totalitário, apontando como fatores de sua consti- Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 Luciano Costa Santos tuição: a mais-valia globalizada como único motor da história; a unificação do sistema das técnicas por intermédio da informática; a sincronização do tempo mundial mediante técnicas de informática e comunicação; e a possibilidade de se tomar conhecimento de todas as sociedades do planeta (SANTOS, 2001). Zygmunt Bauman chama “modernidade líquida” ao estágio atual da civilização moderna, para destacar o caráter fluido, volátil, desse poder global que não se fixa em parte alguma, invade todos os espaços e tende a desobstruir o que resiste à sua livre expansão (BAUMAN, 2001). Tal ação dissolvente não somente contribui para consumar o desmonte de estruturas tradicionais desconstruídas pela modernidade, mas atinge os fundamentos de sólidos marcos institucionais da própria modernidade. Assim, e para citar alguns dos mais representativos, o estado democrático e de direito recebe uma formatação “neoliberal” light que reduz sua ingerência em áreas vitais da sociedade; partidos políticos de fundo ideológico flexibilizam princípios em função de premências fisiológicas; escolas acomodam programas em vista da competitividade no mercado de trabalho; e a ciência desliga-se de ideais humanistas para converter-se em banco de dados à disposição de demandas mercadológicas (LYOTARD, 2008). Na base dessa fragilizada arquitetura institucional legada pelas Luzes, o que se vê atingido é o modelo de racionalidade que lhe sustenta. Como se a própria razão moderna tivesse se tornado pesada demais para os fluídicos circuitos dos tempos atuais. Doravante, a ciência tende a se apossar da consciência, o cálculo esvazia a reflexão, a funcionalidade absorve o valor e a busca de bem-estar desloca o ideal de emancipação e outras “grandes narrativas” modernas (LYOTARD, 2008). Mesmo a razão crítica, com sua exaustiva exigência de lucidez, a desconfiar de Deus, do mundo e de si mesma, torna-se indesejável barreira ao fluxo do capital simbólico, e dá lugar a uma conveniente razão cínica, que se dispõe a tocar qualquer questão uma vez combinado que nenhuma deve ser levada a sério. Chega-se, assim, à imanência total do sentido – ou ao totalitarismo do sentido imanente –2, e o sujeito vem sujeitar-se ao sistema civilizatório que em suas origens parecia assegurar a sua libertação. Já não há novo mundo – utópico – a construir, nem velho mundo a pôr abaixo, apenas uma imensa vontade de poder, que é de todos e de ninguém, a pedir passagem. Tendo em vista a dissolução de paradigmas modernos em curso, o mencionado Bauman (2001) e outros autores se referem aos tempos atuais como “pós-modernidade”, na qual estaria em transe a passagem para outra ordem civilizatória. Se na modernidade o sujeito emerge como indivíduo autônomo, em luta contra a opressão e a privação de direitos, na pós-modernidade encontra-se a reboque de um processo de atomização social que o isola dos demais e, no espelho da cultura da imagem, o torna cativo do culto a si mesmo. Eis o paradoxo: o eu moderno, emancipado, revolucionário, criador, elevado a princípio transcendental na categoria romântica de gênio, vê-se doravante hipertrofiado à condição de deus narcísico e, ao mesmo tempo, reduzido a simulacro de si mesmo. Se antes havia princípios a defender e causas por que lutar, agora se move à deriva do que o seduz: a consciência cede ao desejo, e a razão não tem mais força que a motivação. Numa época acostumada a tantos obituários – “morte de Deus”, “fim da metafísica”, cultura do “pós-humano” –, já não parece consequente proscrever a perspectiva ontoteológica sem renunciar às chamadas questões últimas. O reconhecimento da própria debilidade impõe-se, assim, como gesto mais radical do pensamento pós-moderno.3 Esvaziado de certezas e princípios, e abandonado aos próprios desejos, o sujeito oscila entre a segurança de posições fundamentalistas que lhe deem eixo em meio à dissolução geral, e a comodidade de soluções híbridas, à la carte, à medida de suas preferências e no limite de suas conveniências. Nessa perspectiva, a ética de oportunidade substitui a ética de princípios, numa flutuação de normas e valores em função dos interesses de cada um.4 Sem horizonte utópico a que destinar-se, a cultura pós-moderna leva à saturação sua ingênita dinâmica de superação. Premida pela ânsia de novidade, mas impossibilitada de gerar o novo, 2 Para um aprofundamento da categoria de “totalidade”, ver Levinas ([198-?]). 3 Sobre o conceito de “pensamento fraco”, ver Vattimo (1995). 4 Sobre o conceito de “ética de oportunidade”, ver Susin (1996). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 211 O pensamento fecundo: elementos para uma racionalidade transmoderna inventa sucessivos prefixos paroxísticos, como “supra”, “ultra”, “mega”, “super”, “hiper”, a fim de bater recordes de rendimento, sem, entretanto, lograr remediar o estéril vazio de sentido em torno do qual se agita. Contra as aporias da civilização pós-moderna e a insuficiência da razão cínica, sempre restam as exigências da razão crítica, a desconfiar de objetividade, funcionalidade, bem-estar, qualidade total, otimização e semelhantes relatos pós-modernos hegemônicos. Como vimos, porém, se à razão crítica é dado colaborar para “edificar o deserto”, nem mesmo seus recursos bastam para fazer jorrar novas fontes. 5. Conclusão: transmodernidade Diante dos impasses da civilização pós-moderna, há os que – “antimodernos” –vislumbram a saída na contramão da sociedade tecnológica, industrial e republicana. Outros, ao contrário – “modernos” –, como Marx e Freud, apostam às últimas consequências na possibilidade de que a própria razão científica ou crítica venha a sanar as fraturas da civilização moderna e abrir-lhe o futuro. Outros, por fim – propriamente “pós-modernos” –, rendem-se à dissolução de instituições e ideais iluministas, resignam-se à implosão do tempo e assumem o sistema globalitário como seu reino. Como toda época da história humana – aliás, como tudo o que é humano –, a pós-modernidade traz a ambiguidade em seu coração: se de um lado exacerba o desenraizamento existencial5 levado a cabo pelos tempos modernos, de outro contribui para abrir brechas na rígida ordem institucional moderna e dilatar a racionalidade que lhe subjaz, propiciando condições para o advento de um novo tempo histórico. Assim, do “pensamento fraco” pode-se abrir caminho ao senso do mistério; do culto narcísico do indivíduo, ao cultivo da interioridade; do refluxo da normatização à ética das relações interpessoais; da crise das utopias às transformações setoriais e locais; do retraimento do Estado ao protagonismo da sociedade civil, e assim por diante. No entanto, para que os desertos pós-modernos sejam oportunidade de renascimento, é preciso 5 Sobre o conceito de “desenraizamento”, ver Weil (2001). 212 encontrar as fontes pelas quais renascer. Noutras palavras, é preciso encontrar a arké de um novo começo civilizatório. Se a contemporaneidade é o momento atual da história em que coexistem desdobramentos da modernidade, desconstruções pós-modernas e novas possibilidades latentes, trata-se de saber que perspectiva de contemporaneidade está à altura do futuro. A nosso ver, a perspectiva de contemporaneidade a ser cultivada não é moderna, antimoderna ou pós-moderna, mas – com licença para o neologismo – transmoderna, isto é, aquela que não se posiciona nem em estrita continuidade ao projeto da modernidade nem (muito menos) contra este, mas busca ligá-lo a núcleos geradores de sentido que, de um lado, confiram sapiencialidade e responsabilização ética às suas conquistas científicas, tecnológicas, econômicas, jurídicas e políticas; e, de outro, atuem como eixo existencial ante a generalizada dissolução pós-moderna. Não se trata, portanto, de mera reafirmação ou dissolução da modernidade, mas de reapropriação desta a partir de fontes alternativas de sentido que ela ignora e não pode recuperar por seus próprios recursos. Principais exemplos desses núcleos sapienciais são a transcendência ou relação com a gratuidade do mistério; a alteridade ou não indiferença pela diferença do Outro; e a tradição ou pertença à memória de uma comunidade. Reverenciar o mistério, se responsabilizar pelo Outro ou guardar a memória de um povo são gestos seminais que, por si mesma, a racionalidade moderna jamais teria como produzir. De modo apenas indicativo, e para finalizar, assim resumiríamos os principais elementos de uma possível hermenêutica do paradigma transmoderno: Sentido de emancipação, sem reduzir a esta a libertação humana; Composição de liberdade e autoridade; Sentido de autonomia do sujeito, sem confundi-la com independência; Composição de autonomia e obediência; Sentido de progresso, sem reduzir a este o crescimento humano; Composição de progresso e tradição. Na base do novo paradigma, subjaz a compreensão de uma racionalidade fecundada pelo sentido Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 205-213, jan./jun. 2013 Luciano Costa Santos e de uma subjetividade despertada pelo outro. Em ambos os casos, o humano é visto em tensão para uma dimensão gratuita – a fonte de sentido ou o outro – que tanto mais o constitui quanto mais o ultrapassa. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. FERRY, Luc. Aprender a viver. 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Trata-se de uma leitura a partir da constituição histórica do ethos dos povos pré-capitalistas da região e a sua lenta e gradual mudança, quando da ocupação do território, no início do século XX, pelos migrantes de descendência europeia. Desta forma, num primeiro momento expressa os fatores objetivos e subjetivos que constituíram o ethos dos povos pré-capitalistas e, no final, descreve as transformações decorrentes da incorporação do espaço regional aos circuitos internacionais da economia por meio da institucionalização da propriedade privada, implantação de um modelo agroindustrial e do processo de homogeneização da cultura. Para alcançar os objetivos propostos, realizou-se um estudo bibliográfico, abordando aspectos filosóficos, históricos e sociológicos, no que tange a origem do conceito de ethos ocidental e a sua transformação no decorrer do tempo – estendendo-se até o século XX, embasando-se nessa busca reflexiva no pensamento dos filósofos Henrique C. de Lima Vaz, Michel Foucault, no historiador Werner Jaeger e no sociólogo Zygmunt Bauman, entre outros, a fim de compreender as consequências trazidas com as transformações do ethos no Oeste de Santa Catarina. Palavras-chave: Ethos. Solidariedade. Ética. Capitalismo. ABSTRACT ETHOS TRANSFORMATION IN THE WEST OF SANTA CATARINA The main purpose of this paper is to understand the societal changes due to the consumer society and the globalization vertical processes in the west of Santa Catarina. It brings a reading comprehension of the historical constitution of the ethos of the pre-capitalist ruling classes in the region and its slow and gradual change at the time of the occupation of the territory in the early twentieth century by European migrants. We first show the objective and subjective factors that have constituted the ethos of the pre-capitalist ruling classes and then we describe the changes that have 1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Observatório da Educação, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES/Brasil. * Licenciado em Filosofia. Especialista em Bioética e Pastoral da Saúde pelo Centro Universitário São Camilo (CUSC). Mestre em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Atua na área da Filosofia na UNOESC. Endereço para correspondência: Linha Jaborazinho. CEP: 89677-000 – Jaborá-SC. [email protected] ** Licenciado em História e Geografia. Mestre em Educação nas Ciências (Unijuí- RS). Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UOESC). Endereço para correspondência: Linha Santa Fé. CEP: 89896-000 – Itapiranga-SC. [email protected] Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 217 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina occurred due to the incorporation of the regional economy into the international circuits through the institutionalization of private property, implementation of an agro-industrial model and the process of homogenization of culture. In order to achieve the proposed objectives, we have made a bibliographic study on philosophical, historical and sociological approaches regarding the origin of the concept of Western ethos and its transformation over time - throughout the twentieth century. We have based our study on the philosophers Henrique C. Vaz de Lima and Michel Foucault, the historian Werner Jaeger and the sociologist Zygmunt Bauman, among others, in order to understand the consequences brought by the ethos transformation in the west of Santa Catarina. Keywords: Ethos. Solidarity. Ethics. Capitalism. 1 Considerações iniciais Imbuído pelo desejo de compreender a formação do ethos constituído no meio Oeste catarinense, buscou-se analisar, num primeiro momento, a construção da identidade dos povos pré-capitalistas da região Oeste de Santa Catarina: Kaingang, Xokleng e os Tupi-Guarani e, posteriormente, os Bugres e os Caboclos. Num Segundo momento, a análise se dá a partir da ocupação da região por migrantes de descendência europeia e a formação do ethos comunitário como condição necessária para a sobrevivência em meio à floresta. Essas “ilhas de ocupação”, atormentadas e extasiadas com doenças epidêmicas, tiveram de conjugar esforços que, necessariamente, passavam pela solidariedade horizontal. A solidariedade constituiu uma blindagem contra a insegurança e a instabilidade e, em última instância, condição necessária para a sobrevivência do próprio tecido social. Presos ao mundo natural e linear, e avessos ao moderno, seus personagens encontraram um campo privilegiado para práticas coletivas, solidárias e coesas. Comunidades organizadas na pequena propriedade de subsistência, utilização da mão de obra familiar e intenso espírito comunitário com ampliação e aprofundamento de valores como igualdade e solidariedade. Portanto, acentuou-se a compreensão de que eram comunidades forjadas em valores de igualdade, solidariedade e espiritualidade na formação do ethos. Tornando-se oportuno na discussão sobre a formação do ethos no meio Oeste Catarinense apresentar definições conceituais a respeito das compreensões históricas acerca do próprio termo ethos. 218 Por fim, a análise se atém ao período mais recente da região (final do século XX e primeira década do século XXI), quando o espaço regional é incorporado aos circuitos internacionais da economia por meio do processo de agroindustrialização. Surgem novos atores, novas relações e novas interdependências forjadas pelo mundo da mercadoria. 2 A formação do ethos no Oeste catarinense Desde a formação2 do espírito grego, uma das primeiras expressões argumentadas por Jaeger (2010, p. 43) é de que “todos têm algo de humano e amável; nos seus discursos e experiências domina o que a retórica posterior apelidou de ethos”. Essa expressão corroborou a apresentação da essência humana constituída nas primeiras comunidades do Oeste Catarinense. Encontrou-se também, na mesma obra clássica, outra constatação do historiador alemão, quando ele definiu a constituição do ethos como as raízes mais profundas do ser humano ao argumentar que o ethos é “um anseio espiritual, 2 Procurou-se esclarecer o conceito de formação utilizado no texto a partir de um artigo do professor Dr. Antônio Joaquim Severino, intitulado “A busca do sentido da formação humana: tarefa da Filosofia da Educação”, compreendendo que a palavra formação “significa a própria humanização do homem, que sempre foi concebido como um ente que não nasce pronto, que tem necessidade de cuidar de si mesmo como buscando um estágio de maior humanidade, uma condição de maior perfeição em seu modo de ser humano. Portanto, a formação é processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa – é bom lembrar que o sentido dessa categoria envolve um complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser”(SEVERINO, 2006, p. 621). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever” (JAEGER, 2010, p. 63). Portanto, essas constatações colaboraram nas primeiras características da formação do espírito grego e, claro, séculos mais tarde na formação dos povos do Oeste Catarinense. Compreende-se nas palavras de Vaz (2004) que, para Aristóteles (Ret. I 11, 1370 a 7; Ét. Nic. VII, 9, 1152 a 31), querer demonstrar a existência do ethos é, na verdade, se propor a construir um devaneio mental, porque na formação do espírito grego, tanto o ethos quanto a physis são considerados as primeiras manifestações do ser. Portanto, são os primeiros fundamentos que colaboraram na constituição mais íntima do ser humano, ou seja, a sua ontologia. Por conseguinte, se o ethos para os gregos era compreendido como a própria ontologia, não o foi diferente para as primeiras comunidades do Oeste Catarinense, pois elas caracterizavam-se pelo espírito comunitário, pela igualdade e pela solidariedade; como diria Vaz (2004, p. 11), pela “transformação da physis (natureza) através da práxis (ação humana)”, buscando com isso, nas palavras de Woloszyn (2005, p. 2), implantar uma cultura da subsistência com o “cultivo do feijão, do amendoim, do arroz, sobretudo a mandioca e o milho tinha lugar de destaque na horticultura cabocla”, transformando a natureza para garantir a sobrevivência das comunidades. E o mais significativo desse processo todo de cultivo, seguindo argumentação da historiadora, é a existência das “bodegas onde trocavam, nesses pequenos estabelecimentos comerciais, de produtos agrícolas como o fumo, o milho, o feijão, a erva-mate, etc. por sal, bebidas, querosene, pólvora, instrumentos de trabalho etc”. Percebe-se que essas primeiras comunidades nativas e caboclas eram organizadas de modo a relacionar-se bem com a natureza, utilizando-a para a própria sobrevivência, sem interesse comercial, mesmo por que nem dinheiro existia, ou seja, construindo impressões de felicidade pela simplicidade de vida que tinham, nos possibilitando, desse modo, pensar em mais uma característica do ethos, que nas palavras de Vaz (2002, p. 118, grifo do autor) representa: O ser humano, dotado de razão, o Bem ou fim deve ter os predicados que possam ser aceitos e justificados pela razão. Sua posse causa no ser racional, pela mediação da arete ou virtude, o estado de auto-realização ou auto-satisfação que Aristóteles designa com o termo eudaimonia3. Quando designado o ethos como eudaimonia, ou seja, como felicidade, concebe-se a ideia de comunidades nativas autorrealizadas por viverem na simplicidade. Com isso acredita-se que ethos seja o supra summo da ética expressado nas palavras de Aristóteles, pois ao realizar um estudo etimológico sobre a origem do termo ethos, descobriu-se que sua terminologia se divide em dois vocábulos gregos. Segundo Vaz (2004, p. 12) “o ethos encontra-se dividido em um ethos (com eta inicial) e um ethos (com épsilon inicial)”4. Semelhante análise etimológica do ethos encontramos no pensamento de Boff (2000, p. 34): “essa palavra se escreve de duas formas: com eta, (a letra e em tamanho pequeno) e com epsílon (a letra E em tamanho grande).” Ora, na primeira definição do ethos (com eta inicial) sendo a casa do ser humano no pensamento vaziano, caracterizou-se como a morada do ser: O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e ação (VAZ, 2004, p. 13). Por conseguinte, ao comparar o ethos como uma casa simbólica, possíveis interpretações poderiam ser inferidas, uma delas é de que essa morada do ser humano se constrói de forma segura, dando-lhe abrigo e proteção no decorrer da sua existência. Assemelhando-se com o que aconteceu nas primeiras comunidades nativas que habitaram o 3 Segundo Vaz (2002, p. 118) “o termo eudaimonia costuma ser traduzido na linguagem usual por felicidade, denotando o sentimento de bem-estar ou auto-satisfação do agente, o que realça seu caráter contingente e transitório. No sentido original, porém, eudaimonia, literalmente ‘proteção de um bom daimon’, significa a excelência ou perfeição resultante no agente da posse do bem ou bens que nele realizam melhor sua capacidade de ser bom”. 4 Ver em Vaz (2002, p. 13): “na língua filosófica grega, ethike procede do substantivo ethos, que receberá duas grafias distintas, designando matizes diferentes da mesma realidade: ethos (com eta inical) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social, ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume.” Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 219 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina Oeste de Santa Catarina, transformando a physis e, como diria Vaz (2004, p. 13), inscrevendo “os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações”. Portanto, segundo Vaz (2004, p. 13), “o ethos não é dado ao ser humano, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído”. Retomando-se a ideia metafórica do ethos como a casa espiritual das comunidades nativas, nas palavras de Woloszyn (2005, p. 3) “a mata virgem era o lócus espacial de comunidades produtoras formadas de nativos e caboclos” que contribuíam na construção e na proteção do simbólico, ou seja, do mundo da cultura5. Configurando-se essa casa espiritual como o próprio ethos que nunca está pronto e acabado propriamente, ou seja, sempre em construção ou reconstrução, graças a essa constituição do ethos (enquanto casa) que o logos passou a compreendê-lo e a traduzi-lo como manifestações culturais distintas que colaboram na gênese ética: O ethos é a morada do animal e passa a ser a ‘casa’ (oikos) do ser humano, não já a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteção, mas a casa simbólica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia a própria casa material uma significação propriamente humana, entretecida por relações afetivas, éticas e mesmo estéticas, que ultrapassam suas finalidades puramente utilitárias e a integram plenamente no plano da cultura. (VAZ, 2002, p. 40, grifo do autor). Para contribuir com a definição etimológica do primeiro ethos (com eta inicial), Boff (2000, p. 34) esclarece que “o ethos com e pequeno que significa a morada, o abrigo permanente seja dos animais (estábulos), seja dos seres humanos (casa)”. Essa concepção filosófica de Boff sobre o ethos se tra5 Ver na obra de Morin (2007, p. 35): “a Cultura é, repitamos, constituída pelo conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada individuo, gera e regenera a complexidade social. A cultura acumula o que é conservado, transmitido, apresentado e comporta vários princípios de aquisição e programas de ação. O primeiro capital humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão.” Além disso, é importante ver a ideia de cultura simbólica no pensamente de Cassirer (1994, p. 48): “o homem não pode fugir à sua própria realização. Não pode senão adotar as condições de sua própria vida. Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Todo progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e a fortalece.” 220 duz na casa não espiritual construída pelos seres humanos no âmbito da natureza compreendida como Gaia (mãe) a Mãe-Natureza (physis), que passa a ser transformada em cultura. Portanto, para Boff (2000, p. 35), “esse ethos se traduz, então, por ética”. Vale reforçar na argumentação que, tanto no pensamento de Vaz (2002) quanto em Boff (2000) articula-se a ideia de uma ciência do ethos, e o caminho para essa articulação não poderia ser outro que não o filosófico na busca racional por compreender essa ciência, ou seja, a de que a ética é a ciência real do ethos. Segundo Vaz (2002, p. 37), o seu objeto de estudo da ciência ética é o ethos que se apresenta como “um fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e impondo-se à experiência do indivíduo tão logo este alcance a primeira idade da razão”. Mantendo essa estrutura de ciência do ethos, a ética passa a refletir sobre uma gama conceitual no âmbito filosófico como a “vida no bem” (eu zen), o “agir segundo o bem” (eu prattein) a “vida melhor” ou “mais feliz” (eudaimonia). Além disso, na “excelência” ou “virtude” (areté) de nosso agir e de nosso ser, mas de todas essas categorias, Vaz (2002, p. 38) aponta-nos que “o ‘bem’ deve ser realizado (agathon=deon), embora não pela coação, mas pela persuasão”. Logo, percebeu-se que esse agir segundo o bem era prática comum entre as comunidades nativas que buscavam ser solidarias na formação de um ethos intimamente ligado ao social e ao individual: O ethos é, inseparavelmente, social e individual. É uma realidade sócio-histórica. Mas só existe, concretamente, na práxis dos indivíduos; e é essa práxis que deixa seus traços nos documentos e testemunhos que nos permitem o acesso à fisionomia própria de um determinado ethos histórico. (VAZ, 2002, p. 38). Já o segundo vocábulo do ethos (com épsilon inicial), segundo Vaz (2004, p. 14), “diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos”. Foi traduzindo essa compreensão vaziana de pensar o ethos como a essência do ser que se chegou aos fundamentos de toda a constituição do hábito, características próprias da segunda acepção do ethos. Somando forças com essa argumentação, encontra-se em Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt Boff a compreensão do ethos com E (o épsilon, em grego): Ele significa os costumes, vale dizer, o conjunto de valores e de hábitos consagrados pela tradição cultural de um povo. Ethos como o conjunto dos meios ordenados ao fim (bem/auto-realização) se traduz comumente por moral. Moral (mos-mores, em latim) significa, exatamente, os costumes e valores de uma determinada cultura (BOFF, 2000, p. 36). Com essa rememoração etimológica acerca do conceito ethos, percebeu-se que suas duas acepções configuraram-se nos vocábulos gregos: um ethos que caracterizou a essência nas comunidades do Oeste Catarinense, e um ethos que correspondeu à constituição dos hábitos dessas comunidades, sendo impossível sobreviver sem um ethos, como argumenta Vaz (2002, p. 40): “o ethos é constitutivamente tradicional, pois o ser humano não conseguiria refazer continuamente sua morada espiritual.” Seguindo esse pensamento vaziano, esse ethos nunca morre, pois se encontra sempre em transformação, correspondendo, na compreensão de Küng (1990, p. 9), ao “propósito moral6 que designa frequentemente códigos, costumes e condutas de indivíduos ou grupos, bem como um aspecto da natureza humana”. Portanto, mesmo com a vinda do caboclo7 para a formação social e cultural da região, não houve tamanhas modificações na cultura de subsistência: O povo – caboclo luso-brasileiro, na maioria – vivia em solidão, longe dos recursos que a modernidade proporcionava às pessoas dos centros maiores. Suas principais atividades econômicas resumiam-se em extração da erva-mate, tropeirismo, lavouras de subsistências, criação de gado bovino e de suínos e, produção de derivados da pecuária. (THOMÉ, 2007, p. 75). Por conseguinte, ao ser construído esse ethos no 6 Ver em Vaz (2002, p. 14): “o vocábulo moral, tradução do latim moralis, apresenta uma evolução semântica análoga à do termo ético(a). Etimologicamente a raiz de moralis é o substantivo mos (mores) que corresponde ao grego ethos, mas é dotado de uma polissemia mais rica, pois seu uso se estende a um amplo campo de expressões como pode ser verificado nos léxicos latinos.” 7 Ver em Ribeiro (2006, p. 281): “Os protagonistas desses esforços foram alguns lusitanos, muitos neobrasileiros mestiços, saídos daquelas primeiras células - Brasil, e a indiada engajada como mão-de-obra escrava para todas as tarefas pesadas e gasta nesse duro trabalho.” Oeste Catarinense, ele jamais morreu nas mãos das primeiras comunidades que o forjaram no espírito da solidariedade, da simplicidade, da comunidade unida em prol da transformação da natureza para o bem coletivo. Porém, com as adversidades do tempo e a chegada dos colonizadores, rupturas culturais passaram a surgir em âmbito cultural, porque, como diria Vaz (2002, p. 40), “trata-se de um legado – o mais precioso – que as gerações se transmitem (tradere, traditio) ao longo do tempo e mostra, por outro lado, não menos extraordinária capacidade de assimilação de novos valores e de adaptação a novas situações”. 3 O espaço natural transformado em mercadoria: novo ethos O Oeste de Santa Catarina aparece, na segunda e terceira décadas do século XX, no cenário nacional como recorte geográfico e espaço de acolhimento de diferentes grupos étnicos. Alemães, italianos e poloneses, descendentes da segunda e terceira gerações de imigrantes que povoaram a encosta inferior do Rio Grande do Sul e Santa Catarina no século XIX, foram recrutados por companhias colonizadoras e pela Igreja para reinventar suas tradições negligenciadas ou eclipsadas nos locais de origem. Os “vazios demográficos” eram também prescritos pelo Estado para proteger o território contra incursões estrangeiras. Dessa forma, as novas fronteiras do Sul do Brasil foram incorporadas para alimentar a máquina capitalista dos séculos XIX e XX. A ação pública, por meio da concessão de imensas áreas do território para Companhias Colonizadoras, deliberada ou inadvertidamente contribuiu para o aniquilamento dos povos imersos na floresta (índios e caboclos) que possuíam a posse coletiva da terra. Os silvícolas foram coagidos a conviverem com a “opção legal”, ou seja, as leis grupais tornaram-se incompatíveis com a estrutura capitalista imposta pelas colonizadoras. Dessa forma, o processo de titulação da terra tornou concreta a lógica capitalista na região: As novas fronteiras foram incorporadas para alimentar a máquina capitalista. Deliberada ou inadvertidamente, não se reconhecia a humanidade dos que já ocupavam tais territórios. A economia dita natural (índio e negro) foi substituída pelo mundo Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 221 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina da mercadoria, colocando-os em conformidade com os padrões que identificam o capitalismo.Por isso, o processo de colonização anuncia-se preliminarmente pelo estabelecimento da propriedade privada capitalista da terra onde ela não existe com força, levando a uma complexificação da troca, fazendo com que se instale o mundo da mercadoria. O universo pioneiro encontra-se, desde o início, imbricadamente articulado à reprodução social capitalista. (MARTINS, 1996, p. 129). Em algumas parcelas do espaço regional, juridicamente devoluto, a Igreja atuou como epicentro das decisões e ressuscitou experiências utópicas do passado, formando comunidades orantes, étnica e confessionalmente iguais. O espaço fechado, em meio à mata virgem, com a quase total ausência do Estado, dava ampla liberdade de organização das colônias. O isolamento e a vida de subsistência contribuíram para uma forte coesão social. Toda a organização dos “pioneiros” de origem europeia gravitava em torno da família e da vivência comunitária. No universo pioneiro, algumas características serviam de andaime e alicerce. Ideais se cruzavam no espaço da família, na escola e na vida social. Regras sociais e costumes foram paulatinamente incorporados a partir de mecanismos de coerção social. Sem parâmetros exógenos, as instâncias da família, escola, comunidade e religião transmitiram os valores e os ideais da cultura. 3.1 A vida comunitária: proteção, necessidade ou virtude? O fracionamento da área colonizada em comunidades criou um profundo sentimento comunitário e religioso, que foi determinante para a edificação de estabelecimentos escolares, religiosos e sociais, sustentados por uma rede de associações, o que encobria a ausência do Estado nas regiões colonizadas. A estruturação física e a demarcação das terras das comunidades rurais foram definidas de maneira a facilitar a integração das famílias. Os lotes deveriam convergir para um ponto central da comunidade (onde se expressava de maneira muito prática a vida em comum). Dessa forma, as pequenas comunidades rurais traziam um envolvimento de todos pelo controle a partir do centro. 222 O caráter coletivo e comunitário das colonizações do Oeste de Santa Catarina foi condição necessária para a reprodução da família camponesa. A visão holística do meio, onde o conjunto e o todo se encontram ligados inextricavelmente, inscreve-se, em última análise, no modelo estacionário a que o colonizador foi submetido. Essas “ilhas de ocupação”, atormentadas e extasiadas com doenças epidêmicas, tiveram de conjugar esforços que, necessariamente, passavam pela solidariedade horizontal. A solidariedade constituiu uma blindagem contra a insegurança e a instabilidade e, em última instância, condição necessária para a sobrevivência grupal. As comunidades constituíram-se numa célula fechada e harmônica. As contradições, injustiças e arbitrariedades eram quase sempre suprimidas pela identidade social e coletiva. Bauman (2003, p. 8), ao se referir à força comunitária, enfatiza: Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir – mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem . Presos ao mundo natural e linear, avessos ao moderno, seus personagens encontraram um campo privilegiado para práticas coletivas, solidárias e coesas. Numa região, pensada e criada a partir do epicentro religioso, a compartimentação horizontal refazia-se, continuamente, por meio de um permanente debate interno. Princípios uniformes e intocáveis coordenavam as ações individuais e coletivas. A intolerância era total para tudo o que pudesse despertar a desconfiança e a indisposição da comunidade. Nas comunidades, líderes tinham a função de registrar, diferenciar e comparar. Esses grupos eram investidos de poder, davam vida ao panóptico comunitário. No coletivo, a população buscava o sentido para a vida local. Um cotidiano compartido e complementar, embora conflitivo e hierárquico, constituiu a garantia Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt de sobrevivência. Mutirões comunitários para edificar obras públicas e ajudar famílias desestabilizadas envolviam a todos: “trata-se acima de tudo de um ato de solidariedade”, afirma Candido (2003, p. 89). Morin (2003, p. 124) enfatiza que “A fraternidade solda a comunidade”. O verdadeiro “mosaico cultural” que se instalou na região, pautado na homogeneidade étnica (alemães, italianos e poloneses), produziu espécies de “ilhas europeias” em meio à mata densa e fechada. Um espaço natural, recortado e afastado do mundo moderno da época. As famílias se fecham ao moderno e abrem as portas para a natureza. O arcabouço das relações próprias de cada uma das colônias, com o mínimo de intercâmbio externo, exigia cooperação entre as famílias. Os mutirões suprimiam as limitações individuais. A máxima das sociedades arcaicas “dar é receber” assume aqui todo o seu significado. A exemplo dos Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, também nas colonizações organizadas a obrigação moral do beneficiário em atender aos chamados eventuais dos que o auxiliaram perpetuou essa forma de solidariedade: A necessidade de ajuda imposta pela técnica agrícola e a sua retribuição automática determinava a formação duma rede ampla de relações, ligando uns aos outros os habitantes do grupo de vizinhança e contribuindo para a unidade estrutural e funcional. (CANDIDO, 2003, p. 89). O isolamento da região provocou condicionamentos adaptativos. Uma multiplicidade de técnicas locais, geradas espontaneamente, movia os “pioneiros”. Todas as famílias eram potencialmente produtoras de alimentos, objetos de trabalho, roupas, calçados, móveis e outros. A necessidade fez aflorar a criatividade das pessoas. Inventaram-se moinhos, prensas, rodas d´água, instrumentos de trabalho, cachaça, vinho, cerveja. Em cada família se gestava um cientista natural, um mecânico, um construtor, um sapateiro, uma costureira, um farmacêutico, uma parteira... “Na aurora dos tempos históricos, o homem dependia diretamente do espaço circundante para a reprodução de sua vida. Era necessário conhecer seus segredos para sobreviver”, afirmava Santos (2003, p.23). O isolamento da região originou um refluxo da circulação da moeda pelo mercado de escambo. Em consequência, trocas sem a mediação da moeda eram práticas comuns entre todas as famílias. Famílias desestabilizadas por doenças ou catástrofes eram socorridas, tendo em vista o caráter funcionalista da comunidade. Patologias eram resolvidas com intuito de restituir o membro ao corpo social único. A formação coletiva exige um jogo de obrigações e trocas: A hospitalidade é um sustentáculo do laço social. O laço social é concebido segundo a forma de reciprocidade: o hóspede é tanto aquele que recebe como o que é recebido. E cada um deles pode se tornar estrangeiro. A hospitalidade assegura a possibilidade de viajar, de encontrar o outro em geral. Pela hospitalidade, aquele que é separado, diferente, estranho, é acolhido, integrado, incluído em uma comunidade. A hospitalidade consiste em atar o indivíduo ao coletivo. Contrapõe-se inteiramente ao ato de exclusão. (LÉVY, 1998, p. 37). As pequenas comunidades são locais centrípetos, na versão de Antonio Candido (2003), de vida social e cultural mais rica, favorecendo a convergência de pessoas em atividades comuns. Esparsos em grupos ralos e disseminados por uma extensão imensa, o projeto comunitário, com sua força religiosa, foi um fator de sociabilidade e de sobrevivência do próprio grupo. 3.2 Globalização, verticalização e rompimento do ethos historicamente construído A dinâmica socioeconômica que se estabeleceu desde o início da colonização da região Oeste de Santa Catarina caracterizou-se pela predominância da família como unidade organizadora do processo produtivo e do trabalho. Nesse modelo, predomina a propriedade direta dos instrumentos de trabalho por parte de quem trabalha. O que se obtém é fruto da jornada de trabalho gratuito da família, que executa praticamente todas as operações relativas à produção (seleção de sementes, plantio, colheita, estocagem, transporte...). Fatores como a falta de mercado, famílias numerosas, meios de transportes e comunicações rudimentares, terras montanhosas, além do transplante do modelo de propriedade das regiões de origem, fizeram com que se pautasse a colonização em cima da propriedade familiar e Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 223 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina da produção de subsistência. Os recursos naturais da região viabilizaram um modelo de desenvolvimento econômico de reduzida orientação para o mercado. A modernização, introduzida em toda a região Oeste de Santa Catarina a partir da década de 1970, transformou o “espaço natural” e rompeu com a sociabilidade tradicional, integrando a região aos circuitos internacionais da economia. À medida que o espaço regional tornou-se mais aberto e interdependente, as mudanças aconteceram de forma muito rápida. O desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes, a interação com outros espaços, a preocupação do Estado e, ainda, o fascínio do capital (agroindústrias) pela região na qual pudesse espalhar seus interesses implantaram a denominada modernidade tecnológica. A interação cultural e econômica transformou o espaço fechado. A entrada mais agressiva do capitalismo rompeu com os laços de solidariedade que soldavam, até então, o tecido social. As grandes agroindústrias (leite, aves e suínos) colocam-se como centrais irradiadoras da modernidade da região e implantam relações verticalizadas no campo. Para o capital, houve e há uma dualidade clara na região: de um lado, os empreendedores do movimento, da fluidez, da oxigenação, da instabilidade, da racionalização; de outro lado, os considerados como inadequados aos padrões de produtividade e competitividade. Aqueles da vida linear e da lentidão. Pessoas só adaptadas às oscilações sazonais do tempo e sintonizadas com o “circuito inferior da economia”. As empresas hegemônicas, além da modernização das atividades agrícolas, redirecionaram drasticamente a forma de vida de suas populações. Agem sobre uma parcela do território e governam por metas. As metas e os prêmios contagiam, classificam, excluem, humilham e criam o espetáculo da denúncia. A eficácia produtiva é instrumento inibidor de resistências e criador de docilidades. A competitividade destroçou antigas solidariedades horizontais e implantou a verticalidade. “Nexos verticais se superpõem à compartimentação horizontal, característica da história humana até data recente” (SANTOS, 2001, p. 84). Essas empresas, a partir do seu epicentro de atuação, mudam 224 as formas de ser e de agir. Quebram resistências, fidelidades, sequestram autonomias, potencializam vocações e impõem velocidades. Os filhos dos antigos camponeses são agora operários das agroindústrias, nas quais são, igualmente, enquadrados. No espaço fechado e recortado da empresa, o poder é exercido pela coerção. Os dispositivos disciplinares vão desde a ameaça de demissão à cobrança dos que o circundam. “A pirâmide disciplinar constitui a pequena célula do poder no interior da qual a separação, a coordenação e o controle das tarefas foram impostas e tornaram-se eficazes”(FOUCAULT, 1992, p. 173). Dessa forma, a rede assimétrica de poderes sustenta um poder central (chefe da empresa) que, por sua vez, mantém a multidão de operários compactados e vigiados. O senso de honra alimentado pelo operário, aliado à vergonha e ao embaraço, o tornam um ser altamente disciplinado e previsível. O operário, posto ao ritmo da máquina, é forçado a uma disciplina de trabalho. A partir de Foucault (1988) é possível traçar um diagrama disciplinar que cabe no debate anterior; existe, para os operários, um mecanismo de organização do espaço (perfilação), controle do tempo (produção máxima no mínimo de tempo), vigilância (observação de um pelo outro e, consequentemente, de todos por todos) e, por fim, o registro contínuo do conhecimento (que se constitui num mapeamento completo de cada um e de suas potencialidades). Aos colonos remanescentes, agora denominados empresários rurais, resta a obediência às regras da racionalidade e a adaptação ao mercado global. Enfim, no espaço rural introduziu-se um processo de produção que cumpre a estrita obediência aos mandamentos científicos e técnicos, enquanto no espaço urbano a hegemonia das empresas estabelece suas relações. É o enquadramento, o assujeitamento e a racionalidade atropelando a diversidade, a pluralidade e a autodeterminação. Os hábitos, normas, conduta e comportamento são ditados pelas empresas hegemônicas e pela sociedade de consumo, e antigos valores são vistos com estranheza pelos mais jovens. O abrandamento dos costumes, o desprendimento da vida comunitária, o excesso de desregramento e a multiplicidade de religiões constituíram-se em uma desordem Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 Anderson Luiz Tedesco; Paulino Eidt aos olhos dos mais velhos. A diversidade, para os velhos, transformou o lugar onde tiveram laços de cultura, memória e afetividade no que Augé (1994) denomina de não-lugar. As gerações mais jovens cortaram do presente o passado, e grande parte deles considera inútil o que os mais velhos sempre tiveram como certezas. Nesse sentido, a preocupação demasiada dos homens com o curso de sua própria vida os despojou daquilo que sempre foi elementar para os velhos: o conhecimento da natureza e de seus enigmas. Consequentemente, o meticuloso trabalho de décadas em constituir uma unidade de sentimentos e fidelidades foi desarraigado. A individualidade e a corrida tecnológica solaparam os preceitos morais e éticos que, de certa forma, guiaram as populações hoje envelhecidas. Estas, hoje, se encontram na encruzilhada da vida, com sua temporalidade estilhaçada e as referências sem suporte. 4 A desordem das lógicas exógenas: o moderno avança A modernidade opera com fissuras e rupturas e está em contínua desordem. Tudo é apreendido sob o aspecto do “movimento”. “A modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo [...], despedaça a rocha a qual repousa a segurança da vida diária”, afirmou Bauman (1998, p. 19). Ela exige a adequação ao proposto. Há necessidade contínua de dominar o estranho e perseguir o novo. As certezas se dissipam a cada momento e a insegurança é a tônica diária que persegue seus protagonistas. Para Balandier (1997), o movimento desfaz a ordem e produz incessantemente o desconhecido e o novo. O homem preocupa-se em demasia com o curso da vida e abdica da tolerância e da solidariedade. Para o homem moderno, as ações coletivas deixaram de existir e o coletivo foi transferido para o individualismo. É como afirma Bauman (1998, p. 92): “A modernidade não retarda o contentamento, mas impossibilita de alcançá-lo. Todos são nômades e depois de cada curva surgem novas curvas e ninguém consegue se fixar. [...] A pegada de ontem deve ser negada e apagada”. A modernidade criou um abismo entre o presente e o passado. Em toda região Oeste de Santa Catarina, idiomas estão sendo extintos, fidelidades negligenciadas, medicina natural completamente solapada e experiências camponesas ridicularizadas. Os velhos cansaram e perderam o poder e estão sendo substituídos por gerações da obsolescência, da contingência, da habitação de mundo e do outro. O mundo técnico-científico rompeu com o homem natural e sua sabedoria. Sabedoria que nasceu por meio de um exercício de bricolagem, da interação e da necessidade. Processos técno-biológicos implantam um meio artificial de produtividade, rapidez e fluidez. Não há qualquer solda entre povos indígenas, o camponês antigo e o moderno que se desenha. 5 Considerações finais Ao longo deste ensaio teórico se discorreu a respeito da formação dos povos nativos do Oeste de Santa Catarina, pontuando-se que entre eles eram construídas ações de solidariedade, fraternidade e, sobretudo, de ajuda mútua na disseminação dos saberes em prol da transformação da natureza (physis) para a própria sobrevivência das comunidades. Portanto, esse modo de ser constituiu-se o próprio ethos dos nativos daquela época. No entanto, como o ethos é constituído no espaço e tempo e, por conseguinte, passa por transformações, com a chegada dos migrantes a cultura nativa sofreu um forte impacto, caracterizando-se como de ordem ontológica, pois causou uma ruptura na cultura de subsistência a fim de implantar uma cultura mercantilista, ou seja, de transformação da natureza em lucro e não mais de apropriação dela, como a mãe natureza (Gaia) que protege e cuida fornecendo os alimentos para a sobrevivência da comunidade. Com a chegada dos migrantes de origem europeia, que já haviam vivenciado a ascensão capitalista na Europa, o ethos oestino tomou outra forma. Dado o isolamento da região, uma trama de relações se entrelaçaram e se sustentaram no espaço ocupado. A solidariedade foi condição necessária para a sobrevivências desses migrantes. Os novos protagonistas, invariavelmente, empreenderam uma peregrinação para a formação de comunidades abnegadas, humildes e altruístas. E, para atingir Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 217-227, jan./jun. 2013 225 A transformação do ethos no oeste de Santa Catarina tal intuito, tiveram que modelar a vida social, o amor, o trabalho e o lazer pelo coletivo. Houve poucos pontos de oposição, conflito e contradição no interior da colonização. Por sua vez, a partir da década de 1970, as políticas públicas no espaço agrário, o avanço dos meios de comunicação e de transportes desagregou, de múltiplas maneiras, algumas explicitamente brutais, o padrão cultural e social deveras homogêneo. A funcionalidade do modelo de desenvolvimento que o capital desenhou para a região demoliu as bases de uma sociedade, até então, bastante virtuosa e horizontal. A ascensão do poder econômico alterou o ethos da região e uma nova correlação de forças se estabeleceu. Mais excludente? Mais verticalizada? Mais danosa à mãe terra? Mais solidária? Edgar Morin (2003, p. 224) preconiza: “A História desafia qualquer predição. Seu devir é aleatório, sua aventura sempre foi, sem que se saiba, mas agora deveria saber, uma aventura desconhecida.” REFERÊNCIAS AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da modernidade. Portugal: Bertrand, 1994. BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BAUMANN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro de Gama e Cláudia Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Brasília: Letravivav, 2000. CANDIDO, Antonio. Parceiros do Rio Bonito. 10. ed. São Paulo: Editora 34, 2003. CASSIRER, Ernst. Ensaios sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994. (Coleção Tópicos). FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade. 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Isso significa que, para se trabalhar no plano abstrato, são necessárias formulações de conceitos, entendidos como um ato complexo, dinâmico e interfuncional, construídos por meio da atuação e inserção do indivíduo na cultura, mediado pelas relações com as outras pessoas. Nesse meio, o indivíduo recebe conhecimentos por meio de aprendizados formais e não-formais promotores de subsídios para construção dos conceitos científicos e cotidianos. Para realizar seus estudos sobre o processo de formação de conceitos, Vigotski utilizou um método experimental pautado nos pressupostos filosóficos da teoria marxista do funcionamento dos processos mentais, porque percebia estes processos como em constante mudança e movimento. Assim, o método denominado “Instrumental Cultural e Histórico” diferenciava-se dos estudos experimentais convencionais centrados no desempenho da tarefa em si. O método utilizado por Vigotski preocupava-se com o processo de formação de conceitos e não apenas com recortes estáticos dos processos cognitivos. Depreendemos, em nosso estudo, a constituição da natureza social do homem a partir de processos de apropriação e objetivação de conhecimentos, que torna individuais as conquistas historicamente construídas pela humanidade, dentre as quais tipos sofisticados de pensamento, o que requer discutir a formação de conceitos. Palavras-chave: Vigotski. Epistemologia. Formação de conceitos. Ontogênese. ABSTRACT THE PROCESS OF FORMATION OF CONCEPTS IN A VYGOTSKYAN PERSPECTIVE In his work on human knowledge, Vygotsky reveals the second human nature, the one * Pesquisadora e pós-doutoranda pelo Grupo de Pesquisa: Diferença, Desvio e Estigma. Doutora em Educação. Mestre em Filosofia. Pedagoga pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. [email protected]; [email protected] ** Docente do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus de Marília. Doutora em Educação. Mestre em Educação. Pedagoga pela Unesp. Membro dos grupos de Pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural”; “GP FORME – Formação do Educador”e “Grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil” [email protected]; elieuza@ marilia.unesp.br Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 229 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual which is historical and cultural, due to people´s learning throughout life, through the mediation of others and the concrete conditions of life and education. In this eminently social process, the child grows into the intellectual life having the adult as a peer and learns human skills from this adult-child interaction. This means that, for working with abstract formulation, it is necessary understanding it as a complex, dynamic and functional act that is built by the insertion of individual performance into culture that is mediated by interaction with others. In this setting, each individual reaches knowledge through formal and non-formal learning that help on the formulation of scientific and everyday concepts. To make studies on the process of concept formation, Vygotsky adopted an experimental methodology based on the philosophical assumptions of Marxist theory of how mental processes occur, once he perceived these processes in a constantly changing and moving. Thus, the method called “Instrumental, Cultural and Historical” differed from conventional experimental studies focused on the performance of the task itself. The method adopted by Vygotsky was concerned with the process of concept formation and not only with fragmentary cutouts of cognitive processes. According to our study, the formation of the social nature of man develops from processes of appropriation and objectification of knowledge, which makes individual the historically constructed achievements by mankind, as, for example, types of sophisticated thinking, which requires the discussion of concept formation. Keywords: Vygotsky. Epistemology. Concept formation. Ontogenesis Introdução Neste texto, enfatizamos questões sobre a natureza cultural do homem, ressaltando o papel essencial que as condições de vida e educação têm no desenvolvimento humano. De modo geral, assinalamos os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural,1 conhecida no Brasil como Escola de Vigotski, 2 cujas proposições fundamentam as reflexões propostas neste artigo. A partir de 1920, fundamentados na concepção materialista-dialética do desenvolvimento humano, pesquisadores russos buscaram reestruturar a Psicologia com base no ideário da filosofia marxista, com a perspectiva de superar o subjetivismo, o determinismo e o fenomenalismo presentes na ciência psicológica, e de romper os limites do mecanicismo que descaracterizava a constituição da inteligência e da personalidade do homem. 1 Na pesquisa de Lima (2001, p. 13), localizamos o seguinte destaque: “no decorrer do trabalho, utilizaremos o termo Escola de Vigotski, apontando como Teoria Histórico-Cultural o conjunto de estudos realizados por Vigotski, colaboradores e discípulos [...]” 2Em razão dos diversos modos de grafar o nome do estudioso russo Lev Semenovich Vigotski: Vigotsky, Vygotsky, Vygotski, Vigotskii, Vigotski, dentre outras, neste trabalho, a forma usual será VIGOTSKI, salvo as referências bibliográficas, que terão a escrita do texto original. 230 Os estudos de Talízina (1988, p. 16) indicam que esse mecanicismo revelava-se pela negação “[...] do caráter específico do psíquico, que levava à liquidação da psicologia como ciência”. E o primeiro passo importante nessa direção foi dado por L. S. Vigotski, que, já em seus trabalhos iniciais, mostrou que o defeito fundamental tanto da psicologia subjetivo-idealista como da reflexologia consiste na separação da psique da conduta, o qual conduz inevitavelmente ao mecanicismo na análise da conduta e, de fato, a este mesmo idealismo subjetivo na compreensão da psique. Os estudos de Lima (2001) sintetizam que, já naquele momento, os trabalhos de Vigotski revelaram que a psique é formada por meio da vida concreta do homem, condicionada, pois, pelas relações sociais. Nessa perspectiva teórica, a psique não existe sem a conduta, isto é, o modo de agir do homem, e a conduta tampouco existe sem a psique (TALÍZINA, 1988). Em outras palavras, no processo dialético em que o homem se humaniza, o desenvolvimento das capacidades psíquicas possibilita-lhe o domínio da conduta e, assim, redimensiona a direção da ação humana mediante novos modos de ação e compreensão da realidade objetiva. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi Nessa direção, é possível destacar que a teoria vigotskiana apresenta o princípio da unidade do psiquismo e da atividade humana. Esse princípio constituiu a base fundamental dos estudos elaborados pela Escola de Vigotski. Nas bases filosóficas marxistas, Vigotski encontrou os fundamentos para desenvolver uma reflexão sobre o desenvolvimento dos processos psíquicos superiores: as leis culturais, históricas e sociais influenciando decisivamente a constituição dos processos superiores especificamente humanos. Analisou como a natureza biológica humana (o processo de maturação) entrelaça-se e relaciona-se com os processos culturais que condicionarão o desenvolvimento do psiquismo humano. A análise dos fatores internos e externos envolvidos no processo de humanização do homem caracterizou-se como determinante para a compreensão do desenvolvimento das capacidades psíquicas humanas.3 Conforme já ressaltado por Lima (2001), esse modo de estudo denominou-se Método Instrumental Cultural e Histórico. De acordo com a autora: [...] Instrumental, referindo-se à natureza mediada das funções psicológicas superiores através de objetos e signos – os estímulos auxiliares; Cultural, por envolver meios sociais e instrumentos mentais e físicos como fatores sem os quais não há desenvolvimento das funções psíquicas superiores; e Histórico – visto que os instrumentos criados pelos homens carregam significados e conceitos generalizados, fonte de todo o desenvolvimento superior humano. (LIMA, 2001, p. 15).4 No processo de desenvolvimento infantil, com base em estudos focados na Escola de Vigotski, o adulto e outros parceiros mais experientes tornam-se mediadores e criadores de mediações entre a criança e o conhecimento a ser apropriado. Nessa corrente teórica é possível notar que a constante presença e mediação da geração adulta, seja por 3“É importante esclarecer que a humanização do homem é uma tendência, ou seja, é uma possibilidade no processo de formação humana, isso porque, existem categorias que elevam o homem a esse patamar, englobando o trabalho, a socialidade, a consciência, a universalidade e a liberdade e exigindo a superação das condições sociais alienadoras que não permitem ao homem a apropriação das máximas possibilidades humanas” (LIMA, 2001, p. 15). 4 “Estímulo auxiliar pode ser designado como um meio externo com auxílio do qual o indivíduo atua. Sob essa designação estão os termos: estímulo-meio (p. 56, 57); estímulo exterior (p. 56 e 128); e estímulo [catalisador] (p. 76 e 77)” (LIMA, 2001, p. 15). meio da figura do adulto, seja por meio do próprio conhecimento acumulado por gerações, possibilita que os processos psicológicos desenvolvam-se desde os primeiros dias de vida. As crianças, ao apropriarem-se e objetivarem conhecimentos, atribuem sentidos a eles. Ao longo de seu desenvolvimento cultural, essas objetivações poderão ser cada vez mais objetivas e próximas do conhecimento científico. Essa breve retomada acerca de alguns dos fundamentos do pensamento de Vigotski é necessária para reflexões a respeito de questões pertinentes ao processo de formação de conceitos na perspectiva desse estudioso russo. Formação de conceitos: a perspectiva de Vigotski A Teoria Histórico-Cultural – também conhecida como Escola Soviética de Psicologia, em sua vertente histórico-cultural –, ou Escola de Vigotski, tem no pensamento de Vigotski e de seus colaboradores seu aporte epistemológico. Alguns dos estudiosos dessa escola conviveram e trabalharam com Vigotski no início do século XX, outros são discípulos que, atualmente, em pleno século XXI, continuam as investigações acerca do desenvolvimento do psiquismo humano. Dentre os estudiosos dessa escola estão nomes notáveis como Leontiev (1978, 1988), Luria (1982), Elkonin (1987), Talízina (1988), Bozhóvich (1987), Davydov (1995). O legado dessa corrente histórico-cultural de produção do conhecimento traz análises relevantes sobre a natureza social humana, sobre o desenvolvimento cultural da consciência e da conduta humanas e contribui para repensarmos a Educação, com apontamento de teses que norteiam a reflexão de uma práxis pedagógica preocupada com a educação das formas superiores de conduta, considerando as máximas possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento cultural do homem (LIMA, 2001). Esse aporte teórico ressalta que o desenvolvimento da inteligência, da personalidade, das emoções, da consciência e do relacionamento da criança, do adolescente ou do adulto com outras pessoas – o desenvolvimento de capacidades especificamente humanas – acontece no processo da vida social do sujeito, por meio da atividade, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 231 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual a partir das condições de vida e em processos de educação e comunicação. Nessa perspectiva, o desenvolvimento cultural constitui-se na atividade humana mediada pelas relações e pelas objetivações humanas social e historicamente produzidas (LIMA, 2001). Dessas ideias decorre a tese segundo a qual a natureza humana é social. O homem torna-se homem durante sua vida no seio sociocultural. Cada pessoa não nasce pronta e acabada. As características humanas são externas a ela no nascimento. Com base em sua atividade e da sua vivência em sociedade, mediante processos de educação e comunicação, o homem humaniza-se, apropria-se da experiência social, transformando-a em sua própria experiência individual (LIMA, 2001). Além da herança congênita, biológica, e da experiência individual estruturada sobre essa herança biológica, o homem, diferentemente dos animais, assimila a prática histórica e social, a experiência humana construída e acumulada. De acordo com Leontiev (1988), trata-se de processo de desenvolvimento individual, único e particular, típico por seus mecanismos de apropriação e objetivação, e qualitativamente distinto dos processos de adaptação; cada pessoa forma suas aptidões e capacidades humanas. Já no início do século XX, na Rússia, Vygotsky (1998) argumentava, dentre outras defesas, a respeito de estudos sobre a formação de conceitos, os quais não possuíam um método experimental que propiciasse observar a dinâmica interna ocorrida nesse processo. Para entendermos a argumentação de Vigotski, se faz necessário uma explanação sobre os métodos tradicionais que existiam até o momento de sua pesquisa.5 Segundo o autor, os métodos tradicionais se dividem em dois grupos, a saber: 1) método por definição e 2) método por abstração. No primeiro grupo, investiga-se a definição dos conteúdos verbais já formados na criança. Para o autor, esse método não possibilita um estudo aprofundado da formação de conceitos, por lidar com o produto acabado e não com o ínterim que ocorre no processo; centra-se ainda na palavra, 5 Salientamos que não desconhecemos as inúmeras pesquisas do século XXI realizadas, principalmente, nas neurociências, na psicologia e nas ciências cognitivas sobre a formação de conceitos. Entretanto, optamos por manter as análises de Vigotski, uma vez que muitas dessas pesquisas se baseiam nos estudos deste autor. 232 não levando em conta a percepção e a elaboração processual do material sensorial que origina um conceito. Esse método não explora a relação entre o conceito e a realidade. No método por abstração, investigam-se os processos psíquicos que levam à formação de conceitos. De acordo Vygotsky (1998, p. 66), esse método não analisa a complexidade do processo, uma vez que faz recortes parciais dele, negligenciando “o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na formação de conceitos”. Segundo o autor, esses métodos por definição ou por abstração não fazem a correlação exigida no processo de formação de conceitos, ou seja, separam “a palavra do material perceptual e operam ora com um ora com outro”6 (VYGOTSKY, 1962, p. 53, tradução nossa). Para Vygotsky (1998), houve um significativo avanço nos estudos sobre a formação de conceitos, a partir das pesquisas e elaborações teóricas de Ach e Ritmat. Ambos tentaram relacionar os dois métodos tradicionais anteriores e propuseram um método que se centrava nas “condições funcionais da formação de conceitos” (VYGOTSKY, 1998, p. 67). Nesse método, a formação de conceitos não é um processo mecânico, mas um processo criativo. Um conceito, nessa perspectiva, não é algo isolado, fossilizado e imutável, mas um processo cognitivo dinâmico a serviço da comunicação, do entendimento e da resolução de problemas. O único equívoco desse método, na compreensão de Vygotsky (1998, p. 70), é o de direcioná-lo a uma visão teleológica do processo, com uma tendência ao determinismo, ou seja, esses estudos resumem-se “na afirmação de que o próprio objetivo cria a atividade adequada, por meio da tendência determinante – isto é, que o problema traz em si a sua própria solução”. Pautado nessas considerações, para a investigação do processo de formação de conceitos, Vygotsky (1998) utiliza um método que relaciona os dois métodos tradicionais supracitados, sem cair em uma tendência ao determinismo. O método dupla estimulação7 foi desenvolvido pelo seu colaborador L. S. Sakaharov, e consiste em: 6Na versão original: “the word from the perceptual material and operates with one or the other”. 7 Optamos por manter a descrição do método na íntegra, para evitar possíveis equívocos. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi [...] 22 blocos de madeira, de cores, formas, alturas e larguras diferentes. Existiam cinco cores diferentes, seis formas diferentes, duas alturas (os blocos altos e os baixos) e duas larguras da superfície horizontal (larga e estreita). Na face inferior de cada bloco, que não é vista pelo sujeito observado, está escrita uma das quatro palavras sem sentido: lag, bik, mur, cev. Sem considerar a cor ou a forma, lag está escrita em todos os blocos altos e largos, bik em todos os blocos baixos e largos, mur nos blocos altos e estreitos, e cev nos blocos baixos e estreitos. No início do experimento todos os blocos, bem misturados quanto às cores, tamanhos e formas, estão espalhados sobre uma mesa à frente do sujeito [...] O examinador vira um dos blocos, mostra-o e lê seu nome para o sujeito e pede a ele que pegue todos os blocos que pareçam ser do mesmo tipo. Após o sujeito ter feito isso [...] o examinador vira um dos blocos ‘erradamente’ selecionados, mostra que aquele bloco é de um tipo diferente e incentiva o sujeito a continuar tentando. Depois de cada nova tentativa, outro dos blocos erradamente retirados é virado. À medida que o número de blocos virados aumenta, o sujeito gradualmente adquire uma base para descobrir a que características dos blocos as palavras sem sentidos se referem. Assim que faz essa descoberta, as [...] palavras [...] passam a referir-se a tipos definidos de objetos (por exemplo, lag para os blocos [altos] e largos, bik para baixos e largos),e assim são criados novos conceitos para os quais a linguagem [língua] não dá nomes. O sujeito é então capaz de completar a tarefa de separar os quatro tipos de blocos indicados pelas palavras sem sentidos. Dessa forma, o uso de conceitos tem um valor funcional definido para o desempenho exigido por este teste. Se o sujeito realmente usa o pensamento conceitual ao tentar resolver o problema [...] é o que se pode deduzir a partir da natureza dos grupos que ele constrói e de seu procedimento ao construí-los: praticamente cada passo de seu raciocínio reflete-se na sua manipulação dos blocos. A primeira abordagem do problema, o manuseio da mostra, a resposta à correção, a descoberta da solução – todos esses estágios do experimento fornecem dados que podem servir de indicadores do nível de raciocínio do sujeito. (VYGOTSKY, 1998, p. 70-71, grifos nossos). De acordo com Vygotsky (1998), no método de dupla estimulação, o problema da tarefa é mostrado ao indivíduo desde o início da realização da tarefa e permanece até o seu final, sendo as chaves para solução do problema introduzidas paulatinamente. Isso o diferencia do método de Ach, no qual o indivíduo, antes de saber qual é a tarefa, pode ler e manusear as palavras sem sentidos. O método de dupla estimulação evidencia algumas importantes considerações, a saber: 1) o processo de formação de conceitos se inicia na infância; 2) existe uma interfuncionalidade entre as funções intelectuais; e 3) para se trabalhar com os conceitos verdadeiros há a necessidade do desenvolvimento das funções intelectuais. Para Vygotsky (1998), as funções intelectuais que formaram a base psicológica da formação dos conceitos verdadeiros irão amadurecer, se configurar e se desenvolver na puberdade. Anteriormente a esse período, o que ocorre no processo de formação de um conceito são os equivalentes funcionais, que mantêm “uma relação semelhante à do embrião com o organismo plenamente desenvolvido” (VYGOTSKY, 1998, p. 72). Segundo o autor, a formação de conceitos é resultante de uma atividade complexa, da qual todas as funções intelectuais básicas fazem parte, tais como: memória, atenção, formação de imagens, inferências ou tendências determinantes. Entretanto, todas essas funções, sem o uso do signo – ou palavras –, não são suficientes. Outro fator relevante, mas não único, para a formação de conceitos são as exigências, as tarefas ou os problemas que o meio sociocultural oferece ao adolescente, considerando-se que se esse meio não oferecer novas exigências “o seu raciocínio não conseguirá atingir os estágios mais elevados ou só os alcançará com grande atraso” (VYGOTSKY, 1998, p. 73). Entretanto, essas exigências por si só não explicam o mecanismo de desenvolvimento da formação de um conceito. A função dessas exigências é a ampliação sociocultural global do adolescente, a qual afeta, significativamente, o conteúdo e o desenvolvimento do seu raciocínio. Se na adolescência não existe nenhuma nova função elementar, o que de fato existe é uma reorganização das funções já existentes: [...] as funções existentes são incorporadas a uma nova estrutura, formam uma nova síntese, tornam-se partes de um novo todo complexo; as leis que regem esse todo também determinam o destino de cada uma das partes. Aprender a direcionar os próprios processos mentais com a ajuda de palavras ou signos Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 233 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual é uma parte integrante do processo de formação de conceitos. (VYGOTSKY, 1998, p. 73-74). Para a verificação empírica do método da dupla estimulação, Vigotski e seus colaboradores, Kotelova e Pashakovskaja, fizeram algumas alterações e o aplicaram a mais de 300 pessoas, dentre elas crianças, adolescentes, adultos e pessoas com distúrbios patológicos (intelectuais ou linguísticos). No texto de Vygotsky (1998) não há descrição dos procedimentos adotados para uma replicação literal de seu método, mas o autor conclui que o processo de formação de conceitos passa por três fases básicas que se subdividem em vários estágios8. As três fases básicas na formação de um conceito são o pensamento sincrético9, o pensamento por complexos e o pensamento conceitual. O pensamento sincrético, por sua vez, se subdivide em três estágios: 1) os amontoados sincréticos são manifestados pela tentativa e erro; 2) os amontoados sincréticos são determinados pelo campo visual da criança; e 3) a imagem sincrética tem uma base mais complexa. A primeira fase, aqui denominada pensamento sincrético é caracterizada pela agregação desorganizada ou amontoados que se utiliza para solucionar uma tarefa. Esse é o primeiro passo dado pela criança para formação de conceitos. Nessa fase, as crianças agrupam os objetos de forma desigual, sem fundamento algum, revelando “uma extensão difusa e não direcionada do significado do signo a objetos naturalmente não relacionados entre si” (VYGOTSKY, 1998, p. 74), ou de forma ocasional na percepção que a criança tem do objeto. Assim, nessa fase, o significado da palavra para a criança é um conglomerado vago e sincrético de objetos isolados. Em razão desse sincretismo, no significado da palavra, a imagem dos signos na mente da criança é extremamente instável. Nessa fase, a percepção, o pensamento e a ação da criança tendem a se misturar em diversificados “elementos em uma imagem desarticulada, por for8 Salientamos que o autor em voga, apenas para fins metodológicos, faz essa divisão, pois ele próprio é crítico do atomismo na ciência. Assim, acredita-se que o autor tem como pano de fundo a visão global e dialética do processo de formação de conceitos (FONSECA-JANES, 2010). 9Vygotsky (1998) não dá uma denominação a essa fase, apenas evidencia que Claparède a chama de sincretismo e Blonsky, de coerência incoerente. Entretanto, para fins metodológicos, optou-se por denominá-la de pensamento sincrético (FONSECA-JANES, 2010). 234 ça de alguma impressão ocasional” (VYGOTSKY, 1998, p. 74). Assim, a criança tende a confundir os elos reais entre as coisas. Para elucidar tal fase destacamos as próprias palavras do autor, que a descreve como: [...] o resultado de uma tendência a compensar, por uma superabundância de conexões subjetivas, a insuficiência das relações objetivas bem apreendidas, e a confundir esses elos subjetivos com elos reais entre as coisas. Essas relações sincréticas e o acúmulo desordenado de objetos agrupados sob o significado de uma palavra também refletem elos objetivos na medida em que estes últimos coincidem com as relações entre as percepções ou impressões da criança. (VYGOTSKY, 1998, p. 75). Para o autor, muitas palavras coincidem no significado tanto para o adulto quanto para a criança por coincidirem com objetos concretos, a exemplo de copo, prato, mesa etc.10 Assim, percebemos desde os primórdios da formação de um conceito, na ontogênese, que o mundo real ou vivenciado é fator relevante para o seu desenvolvimento, embora não o único. Os estudos experimentais de Vygotsky (1998) evidenciaram existir, na primeira fase da formação de conceitos, três estágios distintos. No primeiro, os amontoados sincréticos são manifestados pela tentativa e erro, os grupos são desarticulados e criados ao acaso, cada objeto apresentado à criança é uma mera suposição que pode ser confirmada ou não pela experimentação. No segundo, os amontoados sincréticos são determinados pelo campo visual da criança, que determinaram a posição espacial dos objetos experimentais; assim, neste estágio, a “[...] imagem ou grupo sincréticos formam-se como resultado da contigüidade no tempo ou no espaço dos elementos isolados, ou pelo fato de serem inseridos em alguma outra relação mais complexa pela percepção imediata da criança” (VYGOTSKY, 1998, p. 75). No terceiro, a imagem sincrética tem uma base mais complexa, pois, tendo passado pelos estágios anteriores, já elabora com mais coerência seus amontoados de objetos. Pode-se dizer que existe uma coerência incoerente, pois ainda não existem, nos elementos recombinados, elos intrínsecos entre si. O que diferencia esse estágio dos 10 Exemplos nossos (FONSECA-JANES, 2010). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi demais é que ao tentar dar significado a uma nova palavra, a criança o faria por meio de uma operação processual de duas etapas, entretanto, “[...] essa operação mais elaborada permanece sincrética e não resulta em uma ordem maior do que a simples agregação dos amontoados” (VYGOTSKY, 1998, p. 76). A segunda fase, denominada pelo autor como pensamento por complexos, é caracterizada pela transitoriedade e variabilidade do pensamento, ou seja, as crianças agrupam os objetos por suas próprias características e não por um traço estável. As crianças agrupam os objetos por traços distintos e mutáveis, como se elas fossem famílias separadas e relacionais. As associações dos objetos são realizadas mais pelas impressões concretas do que pelas impressões subjetivas, uma vez que a criança já superou em grande parte seu egocentrismo. A função principal desse tipo de pensamento é estabelecer elos e relações entre os elementos para que ocorram as generalizações futuras. Assim, as ligações entre os elementos são concretas e reais, com traços de objetividade, pois é uma evolução do sincretismo ao pensamento conceitual (VYGOTSKY, 1998). De acordo com Vygotski (1998, p. 77), esse estágio do desenvolvimento na formação de conceitos é marcado pelas relações “concretas e factuais, e não abstratas e lógicas”. Essas relações ocorrem mediante a experiência direta da criança com o objeto. A diferença entre esse tipo de pensamento e um conceito verdadeiro é que, no primeiro, os agrupamentos dos elementos ocorrem por causa das ligações factuais que estão presentes no momento de escolha, enquanto no último os agrupamentos ocorrem de acordo com um atributo do próprio objeto. Os estudos experimentais sobre a formação de conceitos de Vigotski evidenciaram ainda que essa segunda fase subdivide-se em cinco estágios que se sucedem uns após os outros, dificultando indicar quando um se inicia e quando o outro termina. Esses estágios são: o complexo tipo associativo, o complexo de coleções, o complexo em cadeia, o complexo difuso e o complexo de pseudoconceito. No complexo associativo, a criança estabelece ligações entre os objetos por uma semelhança, em contraste ou pela proximidade do espaço. No complexo de coleções, a criança agrupa os objetos, ou sua impressão concreta do objeto, com base em características que os tornam diferentes e complementares entre si. Esse agrupamento dos objetos é realizado com a participação da operação prática, que poderíamos chamar de cooperação funcional. No complexo em cadeia, os agrupamentos são realizados pela característica de um objeto isolado, sendo um agrupamento vago e flutuante. É, antes de tudo, uma junção dinâmica e consecutiva de elos isolados em uma única corrente, com a transmissão de significado de um elo para o outro. No complexo difuso, os agrupamentos são feitos por meio de conexões difusas, indeterminadas e instáveis, que extrapolam os limites da experiência. No complexo de pseudoconceitos, as crianças pensam por pseudoconceitos, ou seja, palavras designam complexos de objetos concretos estabelecendo conexões com uma lógica própria. Esse complexo é o elo entre o pensamento por complexos e o estágio final da formação de conceitos. Nesse estágio, a criança é capaz de realizar generalizações semelhantes à de adultos, justificada pela ocorrência de muitas interações com os adultos por meio da comunicação verbal. Esse processo de interação intensifica o processo de formação de conceitos. Entretanto, a criança não tem consciência de estar iniciando a prática do pensamento conceitual. Na fase do pensamento conceitual ocorre o amadurecimento intelectual. A criança está próxima do pensar abstratamente sem a necessidade da experiência concreta. O germe dessa fase é enlaçado no pensamento por complexos. Essa fase subdivide-se em dois estágios: o desenvolvimento por abstração e o dos conceitos potenciais. No estágio do desenvolvimento da abstração, a criança agrupa objetos com base no grau máximo de semelhanças entre os componentes. Em tal estágio, a criança abstrai todo um conjunto de características sem distingui-las claramente entre si. Essa abstração é baseada numa atribuição superficial dos objetos. No estágio dos conceitos potenciais, a criança realiza agrupamentos com base num único atributo do objeto. Esses conceitos potenciais podem ser formados tanto na esfera do pensamento perceptual como do prático. Na esfera do pensamento perceptual, os agrupamentos pautam-se nas impressões semelhantes que a criança tem do objeto. A esfera do pensamento prático está pautada nos significados funcionais semelhantes que a criança tem do objeto. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 235 A importância do ensino de ciências da natureza integrado à história da ciência e à filosofia da ciência: uma abordagem contextual Segundo Vygotsky (1998), no adolescente os pensamentos sincréticos e por complexos vão desaparecendo gradualmente, e os conceitos potenciais são usados com menor intensidade para a formação de conceitos verdadeiros. Mesmo tendo aprendido a formar conceitos, o adolescente continua a operar com os elementos anteriores, ora com os sincréticos, ora com os por complexos, por muito tempo. A adolescência passa a ser o momento de transição para a formação plena dos conceitos abstratos racionais sem, necessariamente, precisar da experiência. Outro fator diretamente ligado à formação de conceitos em Vygotsky (1962, 1996, 1998) é a influência da linguagem, uma vez que o pensamento humano está intrinsecamente ligado à linguagem. Vygotsky (1962, 1996, 1998) argumenta que o pensamento e a linguagem refletem a realidade de uma forma diferente daquela da percepção, constituindo-se as chaves para compreensão da natureza da consciência humana. Para o autor, as palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência, uma vez que a palavra é um microcosmo da consciência humana. Considerações finais Pelo exposto ao longo deste texto, em seus trabalhos sobre o conhecimento humano, Vygotsky (1996, p. 115) demonstra que o “aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo por meio do qual as crianças penetram na vida intelectual daquelas que as cercam”. Isso significa que, para se trabalhar no plano abstrato, são necessárias formulações de conceitos, entendidos como um ato complexo, dinâmico e interfuncional, construídos por meio da atuação e inserção do indivíduo na cultura, mediado pelas relações com as outras pessoas. Nesse entorno sociocultural, o indivíduo se apropria de conhecimentos por meio de aprendizados formais e não-formais promotores de subsídios para construção dos conceitos científicos e cotidianos. 236 Para realizar seus estudos sobre o processo de formação de conceitos, Vigotski utilizou um método experimental pautado nos pressupostos filosóficos da teoria marxista do funcionamento dos processos mentais, porque percebia estes processos como em constante mudança e movimento. Assim, todo seu método diferenciava-se dos estudos experimentais convencionais centrados no desempenho da tarefa em si. O método utilizado por Vigotski preocupava-se com o processo de formação de conceitos e não apenas com recortes estáticos dos processos cognitivos. Acreditamos que se uma pessoa tiver clareza sobre um conceito específico, isto pode vir a gerar mudança de atitudes, de hábitos e de comportamentos (FONSECA-JANES, 2010). A literatura especializada sobre atitudes sociais e pesquisas anteriores (FONSECA-JANES, 2010) tem evidenciado que a aquisição de informação sobre conceitos pode ser um dos mecanismos para a mudança de atitudes, mas não o único. Essa ideia é embasada, sobretudo, nas premissas assinaladas neste artigo, ao discutirmos sobre a formação de conceitos na perspectiva vigotskiana. Pela exposição realizada, defendemos a tese de que a formação/apropriação de conceitos científicos pode vir a modificar qualitativamente a inteligência e a personalidade de crianças, jovens e adultos de maneira a torná-los mais humanizados, considerando que os estudos de Lima (2001, p. 15) assinalam, mediante sistematizações teóricas com base na Escola de Vigotski, que “a humanização do homem é uma tendência”. Com essa defesa e perspectiva, os apontamentos anteriores nos impulsionam a refletir acerca da função da escola e dos professores atuantes desde a Educação Infantil ao Ensino Superior, tendo como referências as especificidades de cada momento da vida e da escolaridade e as mediações necessárias para que formas sofisticadas de humanização sejam potencializadas, o que requer discussões fundamentadas teórica e cientificamente, o que envolve revisões e aprendizados sobre a formação de conceitos. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 Adailton Ferreira dos Santos; Elisa Cristina Oliosi Referências BOZHÓVICH, L. Las etapas de formación de la personalidad en la ontogénesis. In: DAVYDOV, V.; SHUARE, M. (Org.). La psicologia evolutiva y pedagógica en la URSS (Antologia). Moscou: Editorial Progresso, 1987. p. 250-273. DAVYDOV, V. V. The influence of L. S. Vygotsky on Education, Theory, Research and Practice. 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Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade do Estado de São Paulo, Marília, 2001. LURIA, A. R. El papel del lenguage en el desarollo de la conducta. Havana: Pueblo y Educación, 1982. TALÍZINA, N. Psicologia de la Enseñanza. Moscou: Progresso, 1988. VYGOTSKY, L. S. Thought and language. New York: MIT Press, 1962. _ _____. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Série Psicologia e Pedagogia). ______. Pensamento e linguagem. Tradução Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Série Psicologia e Pedagogia). Recebido em 21.10.2012 Aprovado em 17.01.2013 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 195-204, jan./jun. 2013 237 RESUMOS DE TESES E DISSERTAÇÕES PINHO, Ana Sueli Teixeira de*. O tempo escolar e o encontro com o outro: do ritmo à simultaneidade, 2012. 274f. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade** Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Salvador. Esta tese tem por objetivo compreender a relação entre o tempo escolar, os outros tempos sociais e as temporalidades dos sujeitos, a partir de narrativas biográficas de professoras, em duas escolas com classes multisseriadas, e sujeitos das comunidades de Botelho e Praia Grande, em Ilha de Maré. A análise do campo empírico fez emergir o problema do tempo escolar reduzido a ritmo, ora compreendido como uma propriedade individual, ora como uma imposição de um tempo hegemônico, o do relógio. Para problematizar essa noção, foram utilizados autores como Elias (1993), Faraco (2010a) e Bakhtin (2003). Com base na relação entre tempo e diferença, retomou-se a discussão com Bakhtin (2003; 2010) para, junto com Levinas (2011a, 2011b), propor outra concepção, a de tempo como simultaneidade, concebida como coexistência e interação. A pesquisa empírica adotou, como abordagem metodológica, a narrativa (auto)biográfica que se constitui na oportunidade do outro dizer de si e, ao fazê-lo, através da entrevista narrativa, deixar entrever traços de uma experiência, ao mesmo tempo pessoal e social. A pesquisa conclui que a compreensão do tempo escolar, de um lado, depende de um olhar atento para os outros tempos sociais que atravessam a escola, e de outro, de uma atenção especial às interações realizadas entre os sujeitos no interior da sala de aula. Afinal, o tempo escolar é acontecimento que se dá no encontro com o outro. ABSTRACT: The school time and the encounter with the other: from rhythm to simultaneity Palavras-chave: Tempo Escolar. Tempo Social. Autobiografia. Tempo e Diferença. Tempo e Outro. Ritmo e Simultaneidade. Keywords: School Time. Social Time. Autobiography. Time and Difference. Time and the Other. Rhythm and Simultaneity. This thesis aims to understand the relationship between the school time, the other social times and the temporalities of the subjects. It is based on the analysis of biographical narratives of female teachers who work in two schools with multiserial classes and individuals from the communities of Botelho and Praia Grande, in Ilha de Maré. The analysis of the empirical field shows the problem of the school time that is reduced to rhythm, sometimes understood as an individual property, sometimes as an imposition of a hegemonic time, the clock. In order to problematize this notion, we bring authors such as Elias (1993), Faraco (2010a) and Bakhtin(2003) to discuss it. On the basis of the relationship between time and difference, the discussion has been done according to Bakhtin (2003; 2010) and Levinas (2011a, 2011b) studies, which, led us to another conception, time as simultaneity, understood as coexistence and interaction. For our empirical research, we chose as a methodological approach the (auto) Biographical narrative that allows the opportunity for the other talk about itself and, in so doing, through the narrative interview, let us see traces of a personal and social experience at the same time. According to our research, we may say that the understanding of the school time, on the one hand, relies on attention to the other social times that are present at school, and on the other hand, a particular attention to the interactions between the subjects inside the classroom. After all, the school time is an event that happens in the encounter with the other. * Doutora em Educação e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. Professora Assistente da Universidade Católica do Salvador, atuando no Curso de Pedagogia. Pesquisa temas da Formação de Professores: Currículo, Tempo Escolar, Educação Rural, Classes Multisseriadas e (auto)biografia. Endereço para correspondência: Avenida Professor Manoel Ribeiro, nº 1315, Condomínio Boulevard Iguatemi Jardim, Ap. 904, STIEP, Cep: 41 750 160. Salvador – BA. [email protected] ** Orientador: Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza (Universidade do Estado da Bahia- UNEB); data da defesa: 17 de dezembro de 2012; banca examinadora: Rita de Cássia Gallego (Faculdade de Educação da Universidade do Estado de São Paulo - FEUSP) – Coorientadora; António Carlos da Luz Correia (Instituto de Educação da Universidade de Lisboa - UL); Luciano Costa Santos (Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade/UNEB); Antônio Dias Nascimento (Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade/UNEB). Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 241 MEIRELES, Mariana Martins de* . Macabéas às avessas: trajetórias de professoras de Geografia da cidade na roça – narrativas sobre docência e escolas rurais, 2013. f. 245. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Salvador- BA.** A pesquisa objetivou apreender trajetórias de seis professoras de Geografia que moram na cidade e exercem a docência na roça, buscando, através de suas narrativas, compreender os sentidos que atribuem à docência e às escolas rurais. O estudo pautou-se nos princípios epistemológicos da pesquisa qualitativa, ancorado nos pressupostos da abordagem (auto)biográfica, com ênfase nas narrativas docentes. Foram utilizados como instrumentos de recolha de dados: as entrevistas narrativas e as observações, analisados a partir de princípios da hermenêutica (RICOUER, 1976), na perspectiva interpretativa-compreensiva, além das contribuições de Schütze (1987), sobre a análise das narrativas. O estudo apontou questões importantes para problematizar o ensino de Geografia em contextos rurais, a partir do movimento de compreender as trajetórias das professoras, revelando as implicações que os percursos de vida-formação-profissão tiveram sobre suas identidades e performatividades docentes, bem como nas condições de trabalho que lhes são impostas no exercício diário da profissão. A pesquisa apontou, ainda, que o deslocamento geográfico (cidade-roça-cidade) vivenciado pelas professoras constitui-se como um espaço-tempo produtor da profissão, ou seja, uma “ritualização” diária que fornece elementos para construção da identidade docente, com implicações diretas no território da profissão, revelando modos de fazer docência na contemporaneidade. Nessa docência em travessia, as professoras reconstroem a si mesmas como pessoas e professoras, pensam/reelaboram suas práticas e projetos profissionais, mediante táticas singulares, suscitadas, sobretudo, em seus trajetos cotidianos em contextos rurais tão diversos e tão singulares. ABSTRACT: Macabéa in reverse: the trajectories of Geography teachers from the city to the countryside – narratives of teaching and rural schools Palavras-chave: Docência. Escolas rurais. Narrativas. Pesquisa (auto)biográfica. Trajetórias de professoras de Geografia. Keywords: Teaching. Rural Schools. Narratives. (Auto) Biographical Research. Trajectories of Geography Teachers. This research paper aimed to understand the trajectories of six Geography teachers who lived in the city and worked in the countryside. Through their narratives, we tried to comprehend the meanings they gave to teaching and to rural schools. Our study was based on the epistemological principles of the qualitative research and on the (auto) biographical approach. Its emphasis was on the teachers narratives. Our research instruments were: the narratives and observation that have been analyzed according to the hermeneutical principles (RICCOUER, 1976), on the interpretative-comprehensive perspective, and on Schütze´s contributions (1987) on the analysis of narratives. Through our analysis we identified important questions that led us to problematize the teaching of Geography in rural contexts. This is due to our attempt to understand the teachers´ trajectories, the implications of their ways of life-formation-profession in their identities and teaching, the work conditions that they face every day. Our data indicated that the geographical displacement (citycountryside-city) of the teachers was like a space and time that has had a great influence on their profession. In other words, an everyday “ritualization” which gave elements for the construction of the teacher identity with direct implications for the profession, what revealed ways of teaching in the contemporary times. In this crossing teaching, the teachers reconstruct themselves as persons and teachers, they think/ redesign their practices and professional projects through particular tactics mainly from their everyday paths in so diverse and unique rural contexts. * Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Universidade do Estado da Bahia. Endereço para correspondência: Avenida José Penedo, 486, centro. Cep: 48 793 000. Caldas do Jorro – Tucano/[email protected] ** Orientador Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB). Data da defesa: 26 de Abril de 2013. Banca examinadora: Profa. Drª Ana Chrystina Venâncio Mignot (UERJ); Prof. Dr. Nestor André Kaercher (UFRGS); Profa. Drª Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios (UNEB) 242 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e semestral, que tem como objetivo incentivar e promover o intercâmbio de informações e resultados de estudos e pesquisas de natureza científica, no campo da educação, em interação com as demais ciências sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Aceita trabalhos originais, que analisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural, e que sejam classificados em uma das seguintes modalidades: - ensaios: estudos teóricos, com análise de conceitos; - resultados de pesquisa: texto baseado em dados de pesquisa; - estudos bibliográficos: análise crítica e abrangente da literatura sobre tema definido; - resenhas: revisão crítica de uma publicação recente; - entrevistas com cientistas e pesquisadores renomados; - resumos de teses ou dissertações. Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outro periódico. A titulação mínima para os autores é o mestrado. Mestrandos podem enviar artigos desde que em co-autoria com seus orientadores. A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo que os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originais em francês e inglês poderão ser traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coordenação do autor ou de alguém indicado por ele. Os autores e co-autores que tiveram artigos publicados devem ficar com um intervalo de dois números sem publicar. Os textos não devem exceder a quatro autores. Os temas dos futuros números e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimos números da revista, assim como no site www.revistadafaeeba.uneb.br, ou podem ser informados pelo editor executivo a pedido. Também será publicada, em cada número, a lista dos periódicos com os quais a Revista da FAEEBA mantém intercâmbio. Os textos recebidos são apreciados inicialmente pelo editor executivo, que enviará aos autores a confirmação do recebimento. Se forem apresentados de acordo com as normas da Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, serão encaminhados para os membros do Conselho Editorial ou para pareceristas ad hoc de reconhecida competência na temática do número, sem identificação da autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. Os pareceres têm como finalidade atestar a qualidade científica dos textos para fins de publicação e são apresentados de acordo com as quatro categorias a seguir: a) publicável sem restrições; b) publicável com restrições; c) publicável com restrições e sugestões de modificações, sujeitas a novo parecer; d) não publicável. Os pareceres são encaminhados para os autores, igualmente sem identificação da sua autoria. Os textos com o parecer b) ou c) deverão ser modificados de acordo com as sugestões do conselheiro ou parecerista ad hoc, no prazo a ser definido pelo editor executivo, em comum acordo com o(s) autor(es). As modificações introduzidas no texto, com o parecer b), deverão ser colocadas em vermelho, para efeito de verificação pelo editor executivo. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 243 Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes em inglês, o(s) autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo a oportunidade de introduzir eventuais correções de pequenos detalhes. O encaminhamento dos textos para a revista implica a autorização para publicação. A aceitação da matéria para publicação implica na transferência de direitos autorais para a revista. A reprodução total ou parcial (mais de 500 palavras do texto) requer autorização por escrito da comissão editorial. Os autores dos textos assumem a responsabilidade jurídica pela divulgação de entrevistas, depoimentos, fotografias e imagens. Sendo a Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade um periódico temático, será dada preferência à publicação de textos que têm relação com o tema de cada número. Os outros textos aprovados somente serão publicados numa seção especial, denominada Estudos, na medida da disponibilidade de espaço em cada número, ou em um futuro número, quando sua temática estiver de acordo com o conteúdo do trabalho. Se, depois de um ano, não surgir uma perspectiva concreta de publicação do texto, este pode ser liberado para ser publicado em outro periódico, a pedido do(s) autor(es). O autor principal de um artigo receberá três exemplares da edição em que este foi publicado. Para o autor de resenha ou resumo de tese ou dissertação será destinado um exemplar. Os textos devem ser encaminhados exclusivamente para o endereço eletrônico do editor executivo ([email protected] / [email protected]). O mesmo procedimento deve ser adotado para os contatos posteriores. Ao encaminhar o texto, neste devem constar: a) a indicação de uma das modalidades citadas no item I; b) a garantia de observação de procedimentos éticos; c) a concessão de direitos autorais à Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Os trabalhos devem ser apresentados segundo as normas definidas a seguir: 1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereços residencial (somente para envio dos exemplares dos autores) e institucional (publicado junto com os dados em relação a cada autor), telefones (para contato emergencial), e-mail; c) titulação principal; d) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m). 2. Resumo e Abstract: cada um com no máximo 200 palavras, incluindo objetivo, método, resultado e conclusão. Logo em seguida, as Palavras-chave e Keywords, cujo número desejado é de, no mínimo, três e, no máximo, cinco. Traduzir, também, o título do artigo e do resumo, assim como do trabalho resenhado. Atenção: cabe aos autores entregar traduções em inglês de boa qualidade. 3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias (em formato TIF, cor cinza, dpi 300), quando apresentados em separado, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979. 4. Sob o título Referências deve vir, após a parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos autores e das publicações conforme as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Vide os seguintes exemplos: a) Livro de um só autor: BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986. b) Livro até três autores: NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994. 244 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 c) Livro de mais de três autores: CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. d) Capítulo de livro: BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198. e) Artigo de periódico: MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002. f) Artigo de jornais: SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4. g) Artigo de periódico (formato eletrônico): TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000. h) Livro em formato eletrônico: SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http:// www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003. i) Decreto, Leis: BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia. j) Dissertações e teses: SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996. k) Trabalho publicado em Congresso: LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107. IMPORTANTE: Ao organizar a lista de referências, o autor deve observar o correto emprego da pontuação, de maneira que esta figure de forma uniforme. 5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data, de acordo com a NBR 10520 de 2003. As citações bibliográficas ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou, quando ultrapassa três linhas, em parágrafo com recuo e sem aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva e submeter-se aos procedimentos gramaticais da língua. Exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo, entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias está à disposição de todos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas de sites devem, além disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2003. 6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os agradecimentos, apêndices e informes complementares. 7. Os artigos devem ter, no máximo, 50 mil caracteres com espaços e, no mínimo, 30 mil caracteres com espaços; as resenhas podem ter até 20 mil caracteres com espaço. Os títulos devem ter no máximo 90 caracteres, incluindo os espaços. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 245 e conter título, número de folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e data da defesa pública, assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave. 8-As referências bibliográficas devem listar somente os autores efetivamente citados no corpo do texto. Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows ou equivalente: • letra: Times New Roman 12 • tamanho da folha: A4 • margens: 2,5 cm • espaçamento entre as linhas: 1,5; • parágrafo justificado. Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de encaminhar os textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação. Para contatos e informações: Administração: Secretária: Dinamar Ferreira E-mail: [email protected] Tel. 71.3117.2316 Editora Geral: Tânia Regina Dantas E-mail: [email protected] Editora Executiva: Liége Maria Sitja Fornari E-mail: [email protected] [email protected] Site da Revista da FAEEBA: www.revistadafaeeba.uneb.br 246 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 The Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a thematic and semestral periodic which have for objective to stimulate and promote the exchange of informations and of results of scientific research, in the field of education, interacting with the other social sciences, interconnected to the regional, national and international community. The Revista da FAEEBA receive only original works which analyze and discuss matters of scientific and cultural interest and that can be classified according to one of the following modalities: - essays: theoretical studies with analysis of concepts; - research results: text based on research data - reviews of literatures: ample critical analysis of the literature upon some specific theme; - critical review of a recent publication; - interviews with recognized researchers; - abstract of PhD and master thesis. Submitted works should be unpublished and should not be submitted simultaneously to other journal. Papers written in Portuguese, Spanish, French and English are received. Views published remain their authors’ responsibility. Texts originally in French and English may be translated into Portuguese and published after a revision made by the author or by someone he has suggested. Authors who published in this journal should wait two volumes to become newly authorized to publish. No paper should have more than 4 authors. Themes and terms of the futures volumes are published in the last volumes are also available on-line at www.revistadafaeeba.uneb.br. In each volume, appears also the list of academic journals with which the Revista da FAEEBA have established cooperation. Texts submitted are initially appreciated by the Editor which will confirm reception. If they are edited in accordance with the norms, they will be sent, anonymously so to assure neutrality, to other member of the editorial committee or to ad hoc evaluators of known competence . Evaluators’ reports will confer the submitted work scientific quality and class them in four categories: a) publishable without restrictions b) publishable with restrictions; c) publishable with restrictions and modifications after new evaluation; d) unpublishable. Evaluators’ reports are sent anonymously to the authors. In the b) or c) case, the works should be modified according to the report’ suggestion in the terms determined by the editor in agreement with the authors. Modifications made should appear in red so as to permit verification. After the grammatical revision of the text, the correction of the bibliography, and the revision of the part in English, the authors(s) will receive the text for an ultimate opportunity to make small corrections in a week. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 247 Submitting text to the journal means authorizing for publication. Accepting a text for publication imply the transfer of copyrights to the journal. Whatever complete or partial reproduction (more than 500 hundreds words) requires the written authorization of the editorial committee. Papers’ authors should assume juridical responsibility for divulging interviews, photographies or images. As the Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade is a periodic journal, preference will be given to the publication of texts related to the theme of each volume. Other selected approved text may only be published in a special section called Studies depending of available space in each volume or in a future volume more in touch with the text content. If, after a year, no possibility of a publication emerges, the text can be liberated for publication in another journal if this is the will of the author. The main author of a paper will receive three copies of the volume in which his paper was published. The author of an abstract or a review will receive one. Texts as well as ulterior communication should be sent exclusively to the e-mail address of the editor ([email protected]/ [email protected] ). In should be explicited initially a) at which modality the text pertains; b) ethical procedures; c) copyrights concession to the Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade. Works should respect the following norms: 1. In the first page, should appear: a) the paper’s title; b) authors’ name, address, telephones, e-mail; c) main title; d) institutional affiliation and post. 2. Resumo and Abstract: each with no more than 200 words including objective, method, results and conclusion. Immediately after, the Palavras-chave and Keywords, which desired number is between 3 and 5. Authors should submit high quality translation. 3. Figures, graphics, tables and photographies (TIF, grey, dpi 300), if presented separately should come with indication of their localization in the text, have a title and indicates author and reference. In this sense, the tabular norms of tabular presentation, established by the Brazilian Conselho Nacional de Estatística and published by the IBGE in 1979. 4. Under the title Referências should appear, at the end of the paper, in alphabetic order, the list of authors and publication according to the norms of the ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). See the following examples: a) Book of one author only: BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1986. b) Book of two or three authors: NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994. c) Book of more than three authors: CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. d) Book chapter: BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198. e) Journal’s paper: MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002. 248 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 f) Newspaper: SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4. g) On-line paper : TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Available at: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago. 2000. h) E-book: SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://www. bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003. i) Laws: BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia. j) Thesis: SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996. k) Congress annals: LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE: história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107. IMPORTANT: Organizing references, the author should take care of punctuation correct use, so as to preserve uniformity. 5. This journal use the author-date quote system, according to the NBR 10520 de 2003. Bibliographical quotes or quotes from on-line publications, if inserted into the text, should appear between quotation marks or if the quotation is more than three lines long, distanced and without quotation marks with author reference. Examples: 1- According to Freire (1982: p.35), etc. 2-Minority pedagogy is for all (Freire, 1982, p.35). On-line quotes should indicate the URL and access date. Footnotes should only contain explanatory notes strictly necessary respecting the NBR 10520, of 2003. 6. Texts can contain footnotes, thanks, annexes and complementary informations. 7. Papers should have no more than 50.000 characteres and no less than 20.000 characteres including spaces. Titles should have no more than 90 characteres including spaces. Reviews are limited to 5 pages. Thesis abstracts should contain no more than 250 words and should include title, number of page, author data, key-words, name of the director and university affiliation, as well as the date of the defense and the English translation of text, abstract and key-words. Look out: texts will only be accepted formated in Word for Windows or equivalent: • font: Times New Roman 12 • paper dimension: A4 • margins: 2,5 cm • line spacing: 1,5; • paragraph justified. Authors are invited to check the norms for publication before sending their work. It will ease the process of evaluation and facilitate an eventual publication. Contact and informations: Secretary: Dinamar Ferreira - Email: [email protected] - Tel. 71.3117.2316 General Editor: Tânia Regina Dantas - E-mail: [email protected] Executive Editor: Liége Maria Sitja Fornari - E-mail: [email protected] Website of the Revista da FAEEBA: www.revistadafaeeba.uneb.br Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, jan./jun. 2013 249