Uma Obra Teatral Polêmica MÁRCIA REGINA SERRANO ([email protected]) FERNANDA REGINA PARO ([email protected]) CENTRO UNIVERSITÁRIO NOSSA SENHORA DO PATROCÍNIO FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO E NEGÓCIOS Resumo: este trabalho analisa a cena da enunciação em que se deu a apresentação da peça teatral Me cago em Dios em Madrid no ano de 2004, entre cujos enunciadores estão o autor da peça, políticos, administradores públicos, advogados e populares. O título da obra teatral é uma expressão idiomática escatológica existente na Língua Espanhola cujo complemento pode ser variado (como por exemplo “la leche”, “en tu madre”, “en tus muertos”, etc) segundo o recurso discursivo mais ou menos mitigador que o enunciador queira utilizar. Também se analisará de quais Formações Discursivas virão os discursos fomentados por essa cena enunciativa. Palavras-chave: Análise de Discurso. Língua Espanhola. Linguística. 1 INTRODUÇÃO Em abril de 2004 estreou no Círculo de Bellas Artes de Madrid uma peça que titulava “Me cago en Dios”. O enunciado utilizado para nomear a peça por si já poderia ser objeto de análise. Entretanto, nesse acontecimento discursivo encontram-se outros ingredientes que também merecem ser observados. O autor do monólogo, Íñigo Ramirez de Haro que, entre outras coisas, é também cunhado da presidente da Comunidad Autónoma de Madrid (o que equivaleria no Brasil à governadora de Estado), utilizou o Círculo de Bellas Artes para lançar a sua peça na Espanha. O Círculo é uma entidade cultural sem fins lucrativos que é 2 subvencionado pela prefeitura de Madri, pela empresa de aviação IBÉRIA e pela Comunidad Autónomica de Madrid. Portanto, esses outros ingredientes (beneficiamento familiar e uso de dinheiro público) unidos a um componente lingüístico que não deixa quase ninguém indiferente, configuram uma cena de enunciação1 bastante interessante para ser analisado sob o ponto de vista da “identidade enunciativa” e das Formações Discursivas (doravante FD). A essa cena, deve-se acrescentar outros dois eventos: um dia antes do término da temporada do espetáculo, Fernando Incera e Íñigo, intérprete e autor, respectivamente, foram agredidos por dois jovens identificados como “hermanos de la ideologia ultra”. Durante a agressão gritavam “viva Cristo rey”, e em consequência, a peça não voltou a ser apresentada nesse teatro. Além disso, o autor teve que responder processo instaurado pelos populares que se sentiram ofendidos pelo título e pelo teor da peça. 2 DESENVOLVIMENTO Esses fatos nos levam a separar nessa cena três elementos discursivos: a) o discurso suscitado pela questão religiosa, haja vista que se trata de um título que utiliza uma expressão considerada blasfema por muitos; b) o discurso sobre a questão política, pois houve a percepção, segundo notícias dos jornais, que devido ao parentesco entre o autor e a presidente de la Comunidad Autónoma de Madrid, poderia ter havido algum tipo de favorecimento na produção da peça dentro do Círculo de Bellas Artes; c) o discurso jurídico, pois o autor teve que se defender judicialmente sobre a acusação de ferir os “sentimentos religiosos”, que é considerado crime na Espanha, cuja pena é pagamento de multa. Vejamos os enunciados que marcam os posicionamentos2 das FDs nessa cena de enunciação: 2.1 A questão religiosa 1 Não se refere à situação de comunicação, mas ao espaço instituído em que coloca em cena o espaço da enunciação. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2008 p.95) 2 “define precisamente uma identidade enunciativa forte, um lugar de produção discursiva bem específico”. (ibid, p. 392) 3 Tão logo apareceram as propagandas sobre a peça, tanto através dos cartazes como pelos jornais, e imediatamente após a estréia, não tardaram em aparecer manifestações contrárias sobre o uso de uma expressão idiomática considerada blasfema para intitular uma peça teatral. O arcebispo de Madrid manifestou-se em entrevista: “gravísimo delito punible, por el simple hecho de que el título es la expresión más abrupta de la blasfemia, lo que supone herir la sensibilidad de la gran mayoría de la sociedad”. Ele também pediu aos fiéis que denunciassem o diretor da peça, Pedro Forero, e o autor, Íñigo Ramírez de Haro, à Promotoria. O advogado constituído para defender os “afectados” alegou, no que diz respeito ao conteúdo da obra, que o espetáculo fazia chacota aos “colegios católicos, a los santos, a los sacerdotes y la burla a Jesucristo, llegándose a reír de las llagas producidas por la Pasión". Íñigo, embora em declarações aos jornais posicione-se3 como laico e ateu, diz não haver tido a intenção de zombar nem de ofender ninguém, e que sua intenção foi "narrar una experiencia autobiográfica" (ele foi educado em colégio jesuíta) e "crear una obra artística". Entretanto, em outros momentos, ele ataca a religião de forma contundente: "la religión es un mal, el mayor foco de violencia y guerra en nuestras sociedades, y que crea un acoso psicológico a la persona". Sobre o rompimento com seu passado religioso, Íñigo diz que quando “rasgam las vestimentas” pode ocorrer duas coisas “que te achantes o que, con tranquilidad, y ese es mi caso, reivindiques tu libertad de pensamiento.” E denuncia que “España no puede seguir padeciendo esa amenaza clerical.“ A propósito do processo movido pelas pessoas e entidades que consideraram a sua peça ofensiva, Íñigo evoca os tempos em que havia a inquisição na Espanha: “parece que hemos vuelto a la Inquisición del siglo XIX y sólo podrían meterme en la cárcel. Si fuera un retorno al siglo XVII podrían pedir que me quemasen en la Plaza Mayor”. 3 “o posicionamento corresponde à posição de um locutor que ocupa em um campo de discussão, aos valores que ele defende (consciente ou inconscientemente) e que caracterizam reciprocamente sua identidade social e ideológica” (ibid, p. 393). Neste trabalho, esse conceito pode ir alternando-se com a descrição do conceito em citação anterior. 4 É interessante observar neste corpus em particular que as notícias vinculadas na maioria dos jornais sobreasseveraram4 os mesmos enunciados e os mesmos enunciadores: autor da peça, arcebispo, presidente da Comunidad Autónoma, diretor do teatro e os advogados. Os irmãos agressores e os populares que se manifestaram diante do teatro não tiveram nenhuma citação em discurso direto em nenhuma das notícias. 2.2 A questão política “Me cago en Dios” já havia sido representada no teatro Kimbel de Nova Iorque (2003) e no Centro Cultural Helénico, no México (abril de 2004) antes de sua estréia em Madri, porém nesses países não houve repercussão ou manifestações contrárias sobre o espetáculo. Em Madri, a peça ficou 15 dias em cartaz no Círculo de Bellas Artes (o teatro patrocinado com a verba pública), porém depois da agressão sofrida pelos integrantes da peça, ela passou a ser encenada em outro teatro, o Alfil. Nessa nova temporada, a palavra Dios fora substituída por censura. Já não se lia no cartaz e nos anúncios dos jornais “Me cago en Dios” mas sim “Me cago en la censura”. Sobre a reformulação na divulgação do espetáculo, ou seja, na sobreposição da palavra “censura” sobre “Dios” o autor declara que "es la realidad de la ciudad y hay que reflejarla.” A polêmica política, como já foi mencionado anteriormente, deu-se pelo fato de que o teatro que integra o Círculo de Bellas Artes ser subsidiado com dinheiro público e pelo possível beneficiamento na produção dessa peça nesse espaço, haja vista que o autor é irmão do marido de Esperanza Aguirre, presidente da Comunidad Autónoma de Madrid. Esperanza Aguirre é filiada ao conservador Partido Popular (este bastante vinculado à Igreja Católica e também à Fundación Francisco Franco) e diante do ocorrido ela não tardou em manifestar-se, tanto através de uma carta pública quando em entrevistas, e a posicionar-se sobre os seguintes temas: 4 A “destacabilidade” “implica um tipo de amplificação da figura do enunciador manifestada por um ethos apropriado” e “tomada de posição no interior de um conflito de valores”. (Maingueneau, 2008, p.82) 5 a) a blasfêmia: "una obra teatral cuyo título es marcadamente hiriente e insultante para una inmensa mayoría de madrileños, a la vez que ofende sus sentimientos más profundos"; b) o uso de verba pública: "con sorpresa e indignación" ficou sabendo que o Círculo de Bellas Artes incluía em sua programação esse espetáculo. E ordenou ao consejero de Cultura e Deportes que entrasse em contato com os responsáveis do Círculo para “adecuar nuestra participación para evitar incidentes como éste". E tenta encerrar a polêmica afirmando que “con dinero público, no se puede ofender a los madrileños”; c) a censura: "desde el respeto a la lógica iniciativa del Círculo para programar su actividad, pero desde el también lógico cuidado de que la participación de la Comunidad de Madrid no pueda ser considerada como ofensiva para los sentimientos de los ciudadanos"; d) o nepotismo: “una elige a su marido, no a sus cuñados”. Íñigo, o cunhado, por sua parte se posiciona da seguinte forma perante a acusação de que teria recebido algum tipo de apoio de sua cunhada ou de seu governo: a) sobre o uso de verba pública, ele afirma que seu espetáculo foi financiado de maneira privada e que "lo he pagado de mi bolsillo. El Círculo se limita a prestar la sala para su representación". Acrescenta que havia um acordo com o Círculo que, no caso de que houvesse boa bilheteria, iria ser prorrogada a temporada, porém “después de lo ocurrido no creo que sea así"; b) sobre o nepotismo, disse que grande parte do problema foi causado pelo “morbo que provoca el hecho de que Esperanza Aguirre sea mi cuñada.” Os partidos de oposição acusaram ao governo de Madri de ter uma política “rancia” e chamou Esperanza Aguirre de “censora”. Diante desse simulacro, o consejero de cultura defendeu o governo de Esperanza Aguirre aclarando que “no se trata de retirar la subvención, así como tampoco de controlar su programación.” Com o intuito de abranger toda a discursividade política gerada a partir do posicionamento do PP de Madri sobre a peça, faz-se necessário saltar no tempo e 6 recorrer a outro acontecimento discursivo ocorrido em junho de 2006: “Me cago en Dios” foi encenada em Lisboa com o apoio da Embaixada Espanhola e da secretária de Cooperación Internacional, Leire Pajín, e foi muito comentado o fato do escudo da Espanha estar ao lado do título “Me cago en Dios”. Cabe ressaltar que o grupo político que governa a Espanha nesse período é o Partido Social Obrero Español (PSOE), ou seja, um partido de esquerda e de oposição ao governo madrilenho. Parece ser que com esse evento o PSOE, ou particularmente Leire Pajín, quis corroborar o posicionamento do partido em Madri em opor-se a atitude “rancia” e “censora” do PP em 2004. 2.3 A questão jurídica As pessoas que se sentiram ofendidas (tanto pelo título quanto pelo conteúdo da peça) recorreram à justiça para impedir a sua exibição e pautaram sua petição na Lei Orgânica 10/1995 do Código Penal espanhol, no artigo 525 que dispõe o seguinte: Incurrirán en la pena de multa de ocho a doce meses los que, para ofender los sentimientos de los miembros de una confesión religiosa, hagan públicamente, de palabra, por escrito o mediante cualquier tipo de documento, escarnio de sus dogmas, creencias, ritos o ceremonias, o vejen, también públicamente, a quienes los profesan o practican. Nesse sentido, o acusado se manifestou através da imprensa informando que sua obra não tinha intenção de ofender a ninguém, que era uma criação que retratava a sua realidade e que "en mi ánimo no existe ningún deseo de provocación". E se defende alegando que "no he montado ningún escándalo, lo ha montado el clericalismo militante, esa España negra e inquisitorial que todavía existe” e denuncia que há “un problema de libertad de expresión en un país que constitucionalmente es laico". Argumenta, também, que a peça já havia sido representada nos Estados Unidos e no México sem que houvesse maiores problemas. Meses depois, em setembro de 2004, o juiz encarregado de julgar a ação determinou sua suspensão temporária, pois considerou que existia uma “distancia 7 abisal del tipo delictivo” do artigo 525 do Código Penal, pois citada lei castiga aos que ofendem os sentimentos religiosos, não a ofensa direta a Deus. Ademais, o juiz sustentou que somente há delito se se ataca aos sentimentos religiosos e considera que tais sentimentos "aparecen diluidos en el texto, sin identificación concreta y material de una determinada confesión religiosa". O advogado que defendia às “vítimas” se posicionou, evidentemente, contrário à decisão adotada pelo juiz titular do Juzgado de Instrucción número 26 de Madri, Juan Francisco López Sarabia e argumentou que tal decisão só pôde ser determinada por alguém que não leu integralmente a obra, pois a seu modo de ver "salvo una sola referencia conjunta a Alá, Jehová, Buda, Visnú, Brama y Shiva el resto de la obra es una burla constante de la religión católica, de Dios y de Jesucristo". O advogado também apela pela referência que a peça faz "a los colegios católicos, a los santos, a los sacerdotes y la burla a Jesucristo, llegándose a reír de las llagas producidas por la Pasión". No entanto, apesar de todas as considerações feitas pelo representante legal dos “afectados”, o juiz considerou que não havia elementos objetivos para considerar que o conteúdo da obra ou o seu título provocam “descriminación, odio o violencia contra grupos o asociaciones” e decide, portanto arquivar o caso. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tentou-se descrever nas páginas anteriores um panorama da cena de enunciação gerada, inicialmente, pelo uso no título em uma peça teatral de uma expressão considerada blasfema. O percurso do enunciado no interdiscurso (MAINGUENEAU, 2008, p.23-24) que esse corpus foi apresentando ao longo da pesquisa mostrou-se bastante consistente e, portanto, não houve dificuldades em “construir espaços de coerência” para estabelecer o objeto de análise. Nesse sentido, acredita-se que a análise não ficou “puramente lingüística”. Corria-se o risco disso acontecer, haja vista que o recorte para a elaboração do corpus foi o enunciado “me cago en dios”, uma expressão em espanhol que, 8 segundo a percepção do autor da peça, é “un lenguaje de la calle, el habla popular. Y esa expresión se oye constantemente”. Entretanto, deve-se aclarar que, segundo pesquisas realizadas anteriormente no Corpus Diacrônico del Español (CORDE) e no Corpus de Referencia del Español Actual (CREA)5, a expressão escatológica é encontrada em abundância, porém seu complemento varia e entre eles verifica-se que há muitos mitigadores (en la leche, en tus muertos, en la madre, en la mar, etc.). Esse fato leva-nos a pensar que os enunciadores que escolhem o complemento “en dios” parecem querer marcar um posicionamento anti-religioso. Diante desse fato, os enunciados serão analisados a partir dos posicionamentos anti-religiosos versus pró-religiosos dos enunciadores nas FDs. O conceito de FD que defende Pêcheux (1971) ancorado na teoria althusseriana de colocar em jogo as práticas discursivas associadas a lugares ou a relações de lugares, (que se manifesta materialmente no conhecido enunciado “as FDs interligadas determinam o que pode e deve ser dito - articulado sob a forma de uma harenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc. - a partir de uma posição dada numa conjuntura"), pode ajudar a explicar a discursividade gerada a partir da escolha por parte do autor da peça do uso de uma expressão idiomática em que há a ofensa a figura de Deus para intitular sua obra. Dito de outra forma, a partir da decisão do autor de retirar a expressão blasfema dessa condição e levá-la a um outro patamar, o da sua “institucionalização”. “O que pode e deve ser dito” nessa posição, nessa conjuntura é que motivou os posicionamentos discursos das FDs políticas e religiosas. Íñigo Ramirez de Haro quando escolheu o teor da peça e seu título claramente trouxe à tona a relação entre a Igreja Católica e o Governo e a sua influência na sociedade espanhola. Embora tenha dito que não havia intenção de ofender ninguém (“Yo la he utilizado como podría haber utilizado cualquier otra"), não tem como ignorar que, se não houvesse a intenção de provocar e gerar polêmica, o autor poderia ter escolhido outro título. Parece, portanto, que diante do posicionamento discursivo assumido pelo autor sobre a tentativa de “institucionalizar” a expressão “me cago en dios” deflagrou por 5 Banco de dados da Real Academia Española – www.rae.es 9 parte de outras FDs (político-partidárias, jurídicas, institucionais) outro posicionamento discursivo na tentativa de descolamento e rechaço a sua posição. As FDs que se identificaram com o posicionamento do autor geraram uma discursividade em que os pré-construídos “liberdade de expressão”, “liberdade de pensamento”, “inquisição”, “clericalismo militante”, “Revolução Francesa” e “franquismo” foram evocados. Por outro lado, as FDs que rechaçaram o uso de uma expressão ofensiva a Deus dentro de uma instituição que recebe dinheiro público ancoraram as suas argumentações nos pré-construídos “Segunda República espanhola”, “Guerra Civil" e “ofensa aos sentimentos religiosos” (este último referese ao Código Penal espanhol). Além do mais, alguns enunciadores no interior de um discurso, recorreram ao simulacro para desqualificar os seus opositores. Sobre Íñigo, as adjetivações “cunhado da presidente da Comunidade Autônoma de Madri”, “ateu e laico”, “exestudante de colégio jesuíta”, “de família aristocrática” foram utilizadas por quase todos os jornais. Ele mesmo se impõe um simulacro quando se diz “vítima da censura”. Por outro lado, Íñigo arremete contra os seus adversários utilizando o mesmo recurso linguístico: “esa España negra e inquisitorial que todavía existe”, e sobre o uso da expressão “me cago en dios” assegura que seus adversários “lo dicen a diario, pero hay una moral muy estrecha en este país”. Os simulacros e os pré-construídos apresentados anteriormente parecem indicar a mesma coisa: o rechaço da presença da alteridade discursiva dentro da FD e a demarcação do que “pode e deve ser dito em uma dada conjuntura”. Para “demarcar o território” parece que cada enunciador, na tentativa de defender a FD em que está filiado e que ao mesmo tempo se assujeita, recorre em alguns momentos ao préconstruído (entendido como aquilo que pode ser retomado, ou seja um “já-dito” (PÊCHEUX, 1975 p.164)) e a outros momentos como um simulacro (entendido como algo que se constrói a partir da semântica, construído num processo peculiar, em uma polêmica (POSSENTI, 2003)). Nessa cena de enunciação evidenciou-se que a dinâmica do embate dos discursos provocados pelo uso da expressão blasfema se deu pela “não negociação” 10 semântica do enunciado. Houve, portanto, uma tentativa de “demarcar” o enunciado à FD dos anti-clericalistas e dos “anti-religiosos”, não permitindo, assim, a “subversão da fronteira” semântica desse enunciado. Para terminar, é importante mencionar outro fato para dimensionar a presença da FD religiosa no interdiscurso da FD em que se filia o autor: essa peça, depois de 2004 não voltou a apresentar-se na Espanha, porém ela seguiu em uma “carreira internacional”. O título (traduzido) se manteve em alguns países, em outros, reformulou-se. Na França, a peça foi representada duas vezes em Paris, uma com o título de "Vers toi je chie, Mon Dieu" e a outra com o título “Bon Dieu de merde”. Em Lisboa, manteve-se o “Cago-me em Deus” e nos Estados Unidos, na primeira vez, chamou-se “In God we shit” e na segunda (2011), chamou-se “HOLY SHIT” ou “We Couldn’t call it what we wanted to call it so we called it HOLY CRAP”. Percebe-se, portanto, que no caso do francês e do inglês, na primeira montagem houve quase uma tradução literal da expressão em espanhol, haja vista que parece não haver nesses idiomas uma expressão idiomática equivalente à espanhola, ou seja, “a defecação em algo que se considera sagrado”, porém, na segunda montagem, a produção da peça ou seu próprio autor (não se sabe) parecem ter mitigado o impacto lingüístico que essa expressão causa, traduzindo o título para expressões, embora também consideradas malsonantes ou blasfemas em suas respectivas sociedades, não significam a mesma coisa. Seguramente não é casualidade. 4 REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2008 MAINGUENEAU, D. Cena da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008 PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1975 POSSENTI, S. Observações sobre o Interdiscurso. Revista Letras. n. 61. UFPR, 2003. Disponível em: < http://www.revistaletras.ufpr.br/edicao/61/SirioPossentiObservacoesSobreInterdiscurso.pdf>. Acesso em: 18 de junho de 2011.