A forma como as pessoas daqui são tratadas quando você não tem a documentação certa, eles vão-te considerar como um animal. Eles nem sequer te querem ver a andar no país deles se não tiveres um passaporte com um visto ou um BI ou uma autorização de trabalho. Eles dão-te trabalho realmente duro e o dinheiro que concordaste com eles - vamos dizer que se torna demasiado – eles podem chamar a polícia que então vem e prende-te. Você pode ser deportado sem receber nada. Esta é a voz de uma das muitas crianças que foram entrevistados para esta publicação da Save the Children. Os Nossos Sonhos Destruidos: Migração das Crianças na África Austral visa complementar algumas das investigações existentes sobre este tema, adicionando os pontos de vista e as opiniões das próprias crianças que fizeram estas viagens perigosas. OS NOSSOS SONHOS DESTRUÍDOS As crianças foram entrevistadas por toda a parte em vários países da África Austral, aonde o fenómeno da migração de crianças sem documentos atingiu proporções graves. Alguns rapazes e raparigas com idades tão jovens como doze anos, partilharam as suas experiências. Migraçã o A Save the Children espera que, através desta publicação, os governos, as organizações regionais, as ONGs que se concentram nas crianças, os órgãos de comunicação social e o público em geral, se sintam motivados a ouvirem o que é que as crianças têm a dizer, considerem as suas recomendações e sejam compelidos a agir. Save the Children a África Aust as n r a l Save the Children nç Save the Children em Moçambique Rua da Tchamba Nº398 Maputo, Mozambique Email: [email protected] Tel: +258 82 3183230 ria Para obter mais informações sobre o nosso trabalho sobre migração de crianças, por favor, contacte: da s C Tal como essas crianças nos dizem, elas são vulneráveis ao abuso sexual, à exploração laboral nas grandes cidades e nas zonas rurais, e elas têm pouco ou nenhum acesso à escola ou aos serviços de saúde, devido à falta de documentos. Quando são capturadas pelas autoridades, elas são frequentemente espancadas, os seus bens são confiscados, são detidas com adultos e, em seguida, são deportadas, embora haja supostamente leis para as protegerem. OS NOSSOS SONHOS DESTRUÍDOS Migração das Crianças na África Austral MOZAMBIQUE Nampula Tete Nyamapanda Chinhoyi HARARE Gokwe Dete Quelimane Honde ZIMBABWE Chimoio MUTARE Gweru Katiyo Masvingo Zaka Zvishavane Chiredzi Espungabera Gwanda Mwenezi Francistown Rutenga BEITBRIDGE Sango MUSINA Bulawayo BOTSWANA 7 78 78 78 788 7 8 Chigubo Louis Trichardt Pietersburg Mabalane Inhambane Komatipoort/ Ressano Garcia Xai Xai Moamba Nelspruit MAPUTO JOHANNESBURG SOUTH AFRICA LESOTHO SWAZILAND Durban Reino Unido e Save the Children Noruega em Moçambique Cape Town 8 i Publicado pela Save the Children Reino Unido e pela Save the Children Noruega em Moçambique Avenida Kenneth Kaunda, 1170 R/C. Caixa Postal, no. 1882, Maputo, Moçambique com Weaver Press, Box A1922, Avondale, Harare, Zimbabwe 2007 © Save the Children 2008 Concepção, composição e desenho da Capa por Myrtle Mallis Impressão: Precigraph, Maurícias. Traduçao: Frans Hovens, BesText Revisão: David Langa Esta publicação está protegida por direitos de autor, mas pode ser reproduzida por qualquer método sem pagamento ou autorização prévia apenas para efeitos de ensino, mas não para revenda. Para realizar cópias em quaisquer outras circunstâncias, é obrigatório obter autorização por escrito do editor, e pode ser necessário efectuar um pagamento. ISBN: 978 1 77922 070 7 (Zimbabwe) Número de Registo: 5248/RLINLD/2007 (Moçambique) 7 ii Agradecimentos Este livro foi editado por Irene Staunton da Weaver Press no Zimbabwe com o apoio da equipa editorial composta por Chris McIvor, Chris Bjornestad, Sibangani Shumba e Fiona Napier da Save the Children. Foi composto e concebido por Myrtle Mallis de Harare, com o apoio de Irene Staunton e das equipas da Save the Children. Gostariamos de reconhecer, também, a assistência da Rede Came, um parceiro não governamental em Moçambique, neste projecto. A Save the Children Reino Unido, a Save the Children Noruega e a Save the Children Suazilândia coordenaram e conduziram entrevistas em quarto países, nomeadamente, Zimbabwe, África do Sul, Moçambique e Suazilândia. A equipa de pesquisa foi composta por: Jeremiah Chinodya (SC Noruega, Zimbabwe) Glynis Clacherty (Clacherty and Associates, África do Sul) Promise Lipochi (SC Reino Unido, Zimbabwe) Goodwin Mata (Investigador independente, Moçambique) Mandla Mazibuko (SC Suazilândia) Tsepo Mokoena (Centre for Positive Care, África do Sul) Noah Mudenda (SC Reino Unido, Zimbabwe) Daina Mutindi (Investigador independente, Moçambique) Innocent Nyagumbo (Katiyo Youth Children’s Club, Zimbabwe) Cleopatra Nzombe (SC Noruega, Zimbabwe) Amanda Ruzvidzo (Youth Club Citizen Child, Zimbabwe) Lilian Rambuda (Centre for Positive Care, África do Sul) As suas reflexões sobre a experiência do grupo em epígrafe podem-se encontrar no Anexo, p.109. Gostaríamos de agradecer a Carmen Ramos, Alda Massingue, Paula Simbine e Salomé Cabo pelas suas considerações na revisão da versão do livro em língua portuguesa. Queremos agradecer também ao Programa de Estudos sobre a Migração Forçada da Universidade de Witwatersrand por ter coordenado a pesquisa sobre os menores desacompanhados na África do Sul. Os resultados do relatório subsequente providenciaram um importante contributo para o livro. A Save the Children conseguiu financiar o livro e o Projecto de Migração das Crianças que Atravessam a Fronteira com o generoso apoio da Embaixada Real da Noruega em Maputo. A Irish AID também providenciou fundos para pesquisa de campo no Zimbabwe, bem como para um seminário de formação para a equipa de pesquisa, o qual foi facilitado por Glynis Clacherty. Gostaríamos de agradecer especialmente às várias crianças que foram entrevistadas e que partilharam as suas histórias de vida de uma forma aberta e sincera acerca das perigosas viagens que enfrentaram e das dificuldades que encontraram ao alcançarem os seus destinos. As crianças contavam as suas histórias de vida tanto em palavras como através de desenhos. 8 iii Uma nota acerca de moedas Os valores das moedas diferem de uma maneira bastante vasta na região e por vezes há – especialmente no caso do Zimbabwe – uma taxa de câmbio do mercado oficial e uma do mercado negro. Moçambique: África do Sul: Suazilândia: Zimbabwe: 7 iv 1 Dólar americano = 25.74 Meticais 1 Rand = 3.66 Meticais 1 Dólar americano = 6.75 Rands 1 Dólar americano = 6.85 Emalangeni Quando o trabalho deste livro começou em Abril de 2007, o dólar americano era equivalente a 250 dólares zimambweanos de acordo com a taxa de câmbio oficial; e no mercado paralelo situava-se aproximadamente em cerca de 35.000 dólares Zimabweanos. Quando finalizámos o texto em Outubro de 2007, a taxa de câmbio oficial era de 1 dólar americano = 30.000 dólares zimabweanos e a taxa de câmbio não oficial era de aproximadamente 1.000.000 dólares zimabweanos. iv Introdução por Chris McIvor vii Nota editorial xv Capítulo 1: Atravessar o rio – Zimbabwe para a África do Sul 1 Capítulo 2: A precisar daqueles rands – Moçambique para a África do Sul 29 Capítulo 3: Caminhar para sobreviver – Zimbabwe para Moçambique 43 Capítulo 4: A minha avó não conheceu nenhumas fronteiras – Zimbabwe para Moçambique 65 Capítulo 5: Ninguém é demasiado jovem para trabalhar – Viver e trabalhar longe de casa 77 Capítulo 6: Temos de ir, não há outra maneira 97 Capítulo 7: Ignorarem-nos não é nenhuma resposta – Recomendações 105 Anexo – Reflexões dos entrevistadores 109 7 7 8 8 7 8 7 78 8 Glossário 7 8 7 8 7 8 7 8 7 Uma nota acerca de moedas 8 7 8 7 8 Índice 113 8 v 7 vi Introdução Chris McIvor P parece ter mais de dezoito anos de idade. Não é só o cansaço à volta dos seus olhos. Ela tem um olhar de alguém que carrega um fardo demasiado pesado, de alguém a quem foi dada uma responsabilidade que ela mal consegue assumir. Ela perdeu o seu pai há muitos anos atrás. A sua mãe teve dificuldade em enfrentar a vida sem ele, a sua pequena parcela de terra no sul do Zimbabwe não era suficiente para providenciar comida suficiente para alimentar as crianças e para as manter na escola, ao mesmo tempo. Ela explicou, Depois do meu pai ter morrido, houve muitos problemas na família. A comida e as propinas da escola tornaramse um problema. Mas como a minha mãe é pobre e todos os meus irmãos e irmãs mais novas se voltaram para mim a pedir ajuda, eu não tive outra hipótese senão sair da aldeia e procurar um emprego. Como havia pouco ou nenhum trabalho disponível na sua zona rural, e como ela não tinha qualificações que lhe oferecessem uma hipótese de emprego na cidade mais próxima, P decidiu ir a a África do Sul. Nessa altura, ela tinha dezasseis anos de idade. Devido à hostilidade para com os cidadãos estrangeiros naquele país e porque ela ainda era demasiado nova, ela sabia que as suas possibilidades de obter o visto de entrada para a África do sul eram remotas. E assim, tal como milhares de compatriotas seus algures no Zimbabwe, P tomou a decisão de atravessar a fronteira ilegalmente para a África do sul, consciente da posição vulnerável em que tal acto a colocava incluindo a ameaça de expulsão, a qualquer altura, daquele país. As principais rotas do Zimbabwe para a África do Sul são patrulhadas regularmente por soldados e pela polícia e, ao longo duma série de quilómetros, ambos os lados da estrada estão fortemente vedados. Para evitar ser presa e deportada, P decidiu atravessar para uma zona remota do parque nacional aonde lhe disseram que havia uma passagem indetectável para o outro lado. A ela, juntou-se, uma prima da mesma idade, que queria visitar o seu marido que estava a trabalhar na África do Sul numa quinta. Para evitar que os guardas florestais do parque nacional e os turistas as pudessem denunciar, as duas mulheres mantiveram-se afastadas das estradas, o que fez com que passassem por uma paisagem sem água e que lhes oferecia pouco abrigo do sol. Não podiam acender uma fogueira à noite para se aquecerem ou para manter os animais selvagens afastados, porque tinham medo de serem apanhadas. Ela relembra, Aquela fronteira Sul-africana tem muita vida selvagem. Nós na verdade estávamos a escapar-nos. Eu nunca tinha visto tantos elefantes na minha vida. Eu estava com medo. Mas porque a minha prima estava ali eu arranjei coragem para continuar. Nós tivemos sorte porque há pessoas que têm sido mortas e comidas pelos animais selvagens na mesma zona. Quando elas finalmente chegaram à cidade Sul-africana, uns dias depois, P não podia andar durante quase uma semana. “As minhas pernas estavam tão inchadas que eu não conseguia ficar em pé”, explicou ela. A vida, depois da sua chegada, não foi fácil. Ela vivia num quarto juntamente com outras três mulheres, incapaz de pagar uma acomodação melhor porque desde a sua chegada não tinha encontrado nenhum trabalho. Actualmente, ela 8 vii tem estado a fazer trabalhos de empregada de limpeza, em tempo parcial, para várias famílias mas isto não é regular e nem é bem pago. Um patrão, para quem ela trabalhou durante vários meses, esteve sempre a adiar o pagamento dos seus salários. Quando ela o exigiu, ele queixou à polícia que veio a prender. Ela foi detida numa cela sobrelotada com seus colegas Zimbabweanos onde veio a ser deportada. P afirmou que, “Embora eu estivesse assustada eu voltei para lá uns dias depois para procurar trabalho. A ideia de ganhar o rand Sul-africano dá-me força para continuar a tentar.” P não considera a hipótese de voltar à sua aldeia no Zimbabwe pois a família depende do dinheiro que ela lhes tenta mandar sempre que pode. Os seus irmãos e irmãs teriam que sair da escola, passariam fome, e perderiam a hipótese de ter uma vida melhor uma vez que ela própria já tinha desistido de sonhar. Até a sua família estar segura e as crianças mais velhas terem crescido, ela garante que vai continuar a aguentar as dificuldades da sua vida actual; o medo de ser presa, a ameaça de expulsão, os patrões exploradores, a longa e difícil viagem através da fronteira que a continua a assustar. De acordo com P há “milhares” de crianças da sua própria idade, algumas muito mais novas, que fazem a viagem através da fronteira para a África do Sul sem documentos, tutores, dinheiro ou mesmo sem um destino final. Muitos daqueles que ela conheceu vieram doutros países na região, tais como Moçambique, Suazilândia e Lesoto. Devido a várias razões, é difícil estabelecer o número de crianças emigrantes ilegais na região. Não há nenhuma forma de as contabilizar, porque é ilegal e porque as crianças atravessam as fronteiras em locais muito afastados daqueles que são os pontos de entrada oficialmente designados, para evitar que sejam detectadas. Ao mesmo tempo, o medo que as crianças têm de serem presas e deportadas significa que também não há outros métodos disponíveis para o registo. As estimativas grosseiras que existem, não distinguem os homens e as mulheres, das crianças. Dependendo da fonte, há estimativas de entre 1.2 e 3.5 milhões de Zimbabweanos a viverem legal e ilegalmente na África do Sul, mas não há nenhuma indicação de quantos deles são crianças. Há, aproximadamente, todos os anos, 80,000 Moçambicanos que são deportados da África do Sul para Moçambique através da fronteira de Ressano Garcia . No entanto, não há indicação de quantos desse universo são crianças O centro de acolhimento e de aconselhamento fundado pela Save the Children na África do Sul há alguns anos especialmente para crianças Zimbabweanas, só tem conseguido atrair um pequeno número delas. As crianças que foram ao centro disseram que sabiam da existência de muito mais crianças emigrantes que estavam a precisar de ajuda mas que receavam visitar o centro porque tinham medo de serem identificadas pelas autoridades e, subsequentemente, de serem deportadas. Mais tarde, um Programa de Assistência Social nas comunidades nos arredores da cidade confirmou a existência de um grande número de crianças emigrantes, cuja maioria vive em circunstâncias semelhantes as que P se referiu. A dificuldade em calcular o número exacto de crianças migrantes na região, não deve constituir uma razão para minimizar nem a escala do problema nem a natureza das dificuldades que as crianças enfrentam. Há indicadores suficientes para apontar para um fenómeno que está espalhado e que é grave. Um breve estudo conduzido pela Save the Children em Moçambique em 2006, incluiu o testemunho de um funcionário local da fronteira com o Zimbabwe que indicou que numa localidade havia cerca de 5000 crianças desacompanhadas que todos os anos atravessam a fronteira para a Província de Manica em Moçambique, e destacou que existiam muitos outros sítios onde ocorriam regularmente movimentos de crianças e adultos que eram impossíveis de monitorar. 7 viii Os números das repatriações, apresentados pelas autoridades Sul-africanas, relativos aos migrantes ilegais que regressaram ao Zimbabwe, indicam que, das duas mil pessoas repatriadas por semana, até 20 por cento eram crianças desacompanhadas. Durante os primeiros cinco meses de 2006, houve 2100 crianças desacompanhadas sem certidões de nascimento ou identificação que foram deportadas da África do Sul para Beitbridge. Embora muitas destas pudessem muito bem se emigrar de novo, também é evidente que um maior número de crianças escapou às detenções e que o número de crianças que ficou para trás é consideravelmente mais elevado do que o número daquelas que foram espertas o suficiente para não serem apanhadas. Como parte da pesquisa de antecedentes para esta publicação, o Programa de Estudos da Migração Forçada na Universidade de Witwatersrand em Joanesburgo concluiu que: O que fica claro a partir da nossa pesquisa é que há números suficientemente grandes de crianças desacompanhadas a atravessarem as fronteiras que justificam uma maior atenção. Conseguimos entrevistar pelo menos 60 crianças no período de duas semanas tanto em Musina como em Komatipoort [África do Sul] e havia todas as indicações de que poderíamos ter continuado a entrevistar mais crianças, pelo menos durante outras seis semanas. A nossa preocupação inicial de não conseguirmos encontrar facilmente crianças suficientes para poder formar uma amostra significativa, foi completamente infundada e as nossas estimativas são de que teria sido possível obter uma amostra de 500 crianças ou mais, desde que houvesse tempo e recursos suficientes. Nota-se que Musina e Komatipport estão localizadas em apenas dois pontos de entrada ao longo da fronteira que se estende por várias centenas de quilómetros. Outros investigadores que participaram deste estudo que queriam entrevistar crianças em Joanesburgo, encontraram, com relativa facilidade, rapazes e raparigas moçambicanas e Zimbabweanas com vontade de lhes contar acerca das duras experiências que enfrentaram. As crianças Swazis que tinham atravessado a fronteira ilegalmente para a África do Sul também foram entrevistadas em Malelane num abrigo de crianças. P reconhece que a migração para trabalhar na África Austral tem feito parte da história da sua comunidade e da história da sua família durante muitos anos. Ela lembra-se do seu avô que trabalhava nas minas, e de tios e primos a viajarem todos os anos para procurarem emprego sazonal nas grandes quintas comerciais da província do Transvaal do Norte, agora chamada Gauteng. Ela também sabe que o trabalho que eles faziam não era fácil, a vida longe das suas famílias era difícil e que a migração nunca foi uma primeira escolha mas sim uma escolha que lhes foi imposta pelas circunstâncias em que se encontrava. Mas, tal como outras crianças, ela acredita que as dificuldades e os obstáculos que eles têm que enfrentar hoje em dia são piores do que aqueles que as suas famílias enfrentaram no passado, quando eles faziam a sua viagem para o sul. O seu avô afirmou que ele e as pessoas que o acompanhavam tinham documentos legais. Ele tinha aonde ficar no local de chegada. Na mina aonde ele trabalhava, havia amigos e familiares que o recebiam, isso garantia algum apoio. Havia comunicação regular entre ele e a sua família e um sistema através do qual ele podia poupar dinheiro e o enviar para casa. Mas a “ilegalidade” de muitos emigrantes hoje em dia, combinada com uma população hospedeira muitas vezes hostil e a vulnerabilidade que advém da sua tenra idade e falta de experiência, significa que as crianças são confrontadas com níveis extremos de abuso, e de exploração por parte das autoridades. A maior parte das crianças que foram deportadas, reclamaram que, em ambos os lados da fronteira, os funcionários tinham lhes tirado o seu dinheiro, facto que foi considerado comum por várias crianças Zimbabweanas que atravessaram ilegalmente para Moçambique. Outras crianças foram mantidas em celas com adultos aonde foram sujeitas a abusos e, ocasionalmente, as autoridades batiam-nas, como forma de “mensagem” para não regressarem. Em 2004, um capitão do Exército Sul-africano e quatro soldados foram considerados culpados de violação e roubo sistemático daqueles que ‘saltam o arame da fronteira’ Zimbabweanos. 8 ix Em 2000, um estudo da Save the Children Noruega destacou uma percentagem de 94% das crianças que reclamavam da moléstia, abuso, humilhação e a confiscação de bens e de dinheiro pela polícia na fronteira como as suas maiores preocupações. Q, que vem de Mutare, na zona oriental de Zimbabwe, relata a sua experiência nas mãos da polícia quando ela foi apanhada na África do Sul. Eu tenho problemas com a polícia porque eles nos estavam a tratar como pedaços de papel na esquadra. Eles misturaram-nos com os rapazes no mesmo camião. Não foi bom para mim porque eu era a única miúda nessa altura. Um dos polícias tentou declarar-se a mim. Ele disse, “Se tu me amares, eu não te vou mandar embora.” Eu tive medo porque eu pensei talvez ele está a tentar ver se eu sou uma prostituta. Portanto eu disse que não. Ele disse-me que eu ia ficar presa para o resto da minha vida porque eu o recusei. Doeu-me muito porque eu vim para aqui para trabalhar, não para ficar controlada por alguém. Portanto isso agora preocupa-me todos os dias porque eu posso encontrá-lo e ele vai-me prender outra vez. Os rapazes estão melhor que as raparigas porque os rapazes podem trabalhar para eles próprios e ganharem o seu próprio dinheiro. Eles podem fugir se a polícia estiver atrás deles. Nós, as raparigas, eles aproveitam-se e usam-nos como esposas deles por nada, só para nós não sermos presas. O facto de ter de evitar as autoridades policiais para passar para o outro país criou outros tipos de perigos. Hoje em dia, muito do movimento da travessia da fronteira, é organizado por grupos de criminosos chamados “Magumaguma” e “Mareyanes”. Estes grupos são grandemente compostos por homens jovens que, ameaçando usar a força, “conduzem” as crianças para atravessar a fronteira sem que possam ser detectadas pela polícia em troca de dinheiro. Tendo em conta a sua situação de ilegalidade, há pouca probabilidade que as crianças apresentem queixa às autoridades, o que abre espaço para o surgimento de uma cultura de abuso e de exploração sistemática, que as sujeita a uma situação de maior vulnerabilidade e fragilidade. As crianças relatam frequentemente histórias de roubos, espancamentos, raptos e violações por elas testemunhadas. Essas histórias revelam as suas experiências vividas nos pontos de travessia da fronteira entre dois países. J, com cerca de 14 anos de idade, atravessou a fronteira de Moçambique para a África do Sul há alguns meses. Ele conta a sua experiência na fronteira: Há algumas pessoas na fronteira e tu falas com elas e elas vão-te ajudar a atravessar a fronteira ilegalmente. Normalmente, quando tu chegas atrás do mato eles revistam-te. Se tu tens um celular ou dinheiro, eles vão-te roubar. Se tu não tens nada eles deixam-te só ali no meio de nada. É na vedação da fronteira que as coisas acontecem. Se eles encontram ali uma pessoa sozinha na vedação, eles matam-na logo. Eles dizem, “Tu estás a tentar atravessar por tua conta”. Se tu tens um número de telefone então eles telefonam aos familiares e dizem que temos o vosso irmão ou irmã ou crianças e vocês têm que nos pagar para soltarmos esta pessoa. Às vezes eles guardam-te numa casa ali perto. Eles usam facas do mato e pistolas. 7 x As consequências da ilegalidade também se estendem aos locais de trabalho que as crianças encontram no local de chegada. A história de P é típica; a falta de vontade que os empregadores têm de pagar um salário condigno, a ameaça de denunciarem as crianças se se queixam do trabalho que é demasiado duro e mal remunerado, ou as denúncias feitas às autoridades sobre estas crianças antes do dia do pagamento dos respectivos salários como forma de não pagá-lo. Associado a isto, está o facto destas crianças não possuirem nenhuma documentação legal, por exemplo, um bilhete de identidade o que significa que o seu acesso aos serviços sociais básicos tais como educação, saúde e outro tipo de assistência social fica comprometido. M, de 16 anos de idade, proveniente do Zimbabwe, queixou-se nos seguintes termos: Eu sinto-me sozinha porque eu não sou Sul-africana. Portanto eu tenho de fazer o que eles mandam para eu não ser presa. Mas eu gostava de um dia eu poder encontrar alguém que me ajudasse a ter um bilhete de identidade do país para eu poder ter a minha vida livre nesse momento. Eu não quero voltar agora para o Zimbabwe sem ter alguma coisa para dar aos meus pais. Eu fugi deles sem ter dito adeus. O que é que incentiva as crianças a fazerem esta viagem? O que é que as incentiva a ficarem em países onde elas podem não ser bem-vindas, onde, contrariamente ao que pensavam antes da partida, é difícil encontrar um emprego? Onde elas podem estar sujeitas a abusos e a deportação em qualquer momento? T tem dezasseis anos de idade. Tal como P, ele parece muito mais velho para a sua idade, com o mesmo olhar de ansiedade e de preocupação, com a sua maneira nervosa e desconfiada quando ele fala. No ano passado, ele foi obrigado a sair de casa quando, após a morte da sua mãe, o seu pai se casou de novo. A sua madrasta insistiu para que ele contribuísse para o rendimento familiar embora ele ainda estivesse a frequentar a escola e ainda não tivesse terminado os seus exames. Como não havia trabalho disponível na sua comunidade, ele juntou-se a um grupo de rapazes, alguns mais novos com cerca de treze a catorze anos, e pôs-se a caminho para a África do Sul. Embora eles não tenham visto o elefante e o búfalo que P e a sua prima relataram, tiveram que atravessar um rio grande e fundo. Em Fevereiro de 2007, 45 Zimbabweanos afogaram-se ao tentarem atravessar o rio Limpopo, segundo reportou a polícia. Em 2006, mais 60 morreram afogados no mesmo rio . Sabe-se que um número considerável de pessoas foram mortas por crocodilos ao fazerem a mesma travessia, durante a estação chuvosa. Diz-se que às vezes aparecem os corpos dos emigrantese abocanhados pelos crocodilos nas margens do rio Limpopo, o rio que separa o Zimbabwe da África do Sul. T disse ainda que as pontes são sempre patrulhadas por soldados. Portanto, elas não tiveram outra alternativa senão tentarem o caminho directo que consiste em atravessar o rio a nado. Ele lembra-se também do “gang” que eles encontraram na sua viagem, das exigências de dinheiro que eles fizeram, e da sua fúria quando descobriram que algumas crianças estavam a atravessar por conta própria. Ao amigo de T, roubaram-lhe todos os seus pertences, tendo sido severamente espancado, de tal forma que chegou ao hospital na cidade mais próxima, apenas de cuecas. Tal como outras crianças na mesma situação, T relata à semelhante experiência vivida num outro País, a incerteza de conseguir emprego, a exploração laboral, a relutância dos patrões em pagarem salários decentes, o abuso por parte das autoridades e do seu medo permanente de ser preso. Ele reconhece que a sua vida nesse novo local não corresponde às expectativas que tinha antes de sair do Zimbabwe. Então porque é que ele não regressa? Será que as coisas lá em casa poderiam ser piores? T diz que ele não pode aguentar voltar para a sua família como um autentico fracasso, sem o dinheiro para aliviar a pobreza, que foi a principal razão da sua emigração. Tal como a P ele também fala dos seus irmãos e irmãs que ainda estão a frequentar a escola, da importância do dinheiro que envia ocasionalmente para ajudar na educação. Até concluírem os níveis básico de escolaridade, dentro de alguns anos, ele estará preparado para lidar com as condições terríveis da sua vida actual que diz ser difícil. “Mas o que é que eu diria à minha família, como é que eu podia olhar para a minha madrasta, se eu voltasse para casa sem nada?” 8 xi Em muitas histórias contadas pelos jovens, sobre as suas experiências enquanto trabalhadores emigrantes ilegais, relatam repetidamente “da vergonha” de regresso à casa sem ter tido sucesso. Embora 98% das crianças entrevistadas na fronteira entre Moçambique e o Zimbabwe, em 2000, tivessem dito que estavam ancioisas por regressar às suas casas, a maior parte disse que não o fariam até ter ganho alguma coisa para levar. “Eu não posso voltar porque eu não comprei o que eu precisava portanto não vou ter nada para os meus irmãos e irmãs e familiares”, foi uma das respostas mais comuns a esta pergunta. Cerca de 20% disseram que eles também não tinham o dinheiro para viajar. As crianças previram algumas das suas experiências antes de decidirem sair de casa? O que é que elas esperavam quando começaram a sua viagem? Tal como outras crianças, T queixa-se do facto de parecer haver uma cultura de silêncio e de pretexto acerca da natureza da emigração, na comunidade de origem. Tem havido uma tradição no seu distrito de as pessoas partirem a procura de trabalho em outros locais. As pessoas que regressaram pareciam todas “ter conseguido”. Eles traziam rádios, televisões, roupas e dinheiro. Ninguém quer reconhecer que a vida não tem sido fácil e que, para cada pessoa que teve sucesso, há outras que foram mal sucedidas. T explicou que, Quando os rapazes na minha aldeia perguntaram sobre atravessar a fronteira, nunca pensámos que ia ser tão difícil. Todos conhecíamos pessoas que tinham ido para a África do Sul e que tinham regressado com muito dinheiro. Sim, nós todos sabíamos que nesse país não gostavam dos Zimbabueanos mas ninguém nos disse acerca dos Magumaguma na fronteira, da polícia do outro lado, dos patrões que não nos pagam, da dificuldade de estar num lugar sem documentos. Tanto T como P reconhecem que esta informação não os teria feito mudar de ideia, que eles não teriam alterado a sua decisão de partirem. Por razões de diversa ordem quer seja económica, política, sociais ou familiares, a imigração oferece, por vezes, a única esperança para melhorar as suas vidas. Mas segundo eles, esta informação teria permitido que eles se preparassem melhor para a própria viagem, para a sua negociação com os empregadores que os estavam a tentar explorar e nas suas negociações com as autoridades Sul-africanas quando eles fossem presos. A P, tem 17 anos de idade e vive em Joanesburgo. Ela migrou do Zimbabwe há alguns anos atrás. Ela decidiu e viajou sozinha. Ela gostaria que alguém a tivesse advertido das coisas relevantes antes da partida. Se eu pudesse eu contava a outras crianças acerca da polícia aqui, e acerca da vida difícil. Não é fácil, sabes. Lá em casa tu tens os teus pais. Eles tomam conta de ti. Eles podem-te dar conselhos. Mas aqui tu estás por tua conta. Tu tens que tomar as tuas próprias decisões. Tu tens que pensar o que é que vais comer, o que é que vais vestir. Não é fácil, especialmente se quiseres estudar. Uma das coisas que mais impressiona quando se está a entrevistar as crianças que fizeram a viagem à procura de uma vida melhor noutro país, é o nível de maturidade e de responsabilidade que surgiu na sequência da experiência delas. Embora seja evidente que muitas delas são vítimas das suas circunstâncias, seja na sua casa ou naquelas que elas encontraram nos seus novos locais, estas crianças também são pessoas com pontos de vista e opiniões próprias. Mesmo crianças de doze ou treze anos de idade, conseguem expressar claramente os problemas que têm enfrentado, as suas estratégias para lidarem com os mesmos, as suas esperanças e aspirações para o futuro. Tendo isto em mente, não faz nenhum sentido excluí-las das discussões acerca da sua situação ou acerca das medidas necessárias para resolver os problemas que têm encontrado. 7 xii Quando lhes foi dada a oportunidade de se fazerem ouvir, a maior parte das crianças entrevistadas aventaram a hipótese de falarem abertamente. Esse compromisso de falar abertamente foi expresso oralmente ou através de desenhos. A relutância de algumas explica-se pelo medo de serem descobertos, de que isto chamasse a atenção dos seus empregadores ou da polícia. Uma vez que lhes foi ressegurada a confidencialidade da discussão e o facto de que eles não seriam denunciádos, foi óbvio que muitos estavam, não só preparados para relatar as suas experiências, como também estavam desejosos de o fazer. Há muitas razões para tal necessidade, por exemplo, as dificuldades que as crianças enfrentam e o abuso dos adultos que eram supostos as proteger. Isto tem a ver, em parte, com a ilegalidade da sua situação noutros países e com o facto de eles terem pouco ou nenhum acesso aos cuidados e à protecção do estado que é suposto cuidar delas. “Ninguém sabe aquilo por que passamos”, disse T, “e também ninguém parece importar-se. Se nós dizemos a alguém aqui sobre a maneira como nos tratam, sobre a polícia, os empregadores, os gangs nas fronteiras, eles encolhem os ombros e dizem, “Vocês deviam ter ficado em casa. O que é que esperavam, quando vieram para cá?” Parte da invisibilidade destes actos também tem a ver com a falta de vontade, no seio dos governos da região, para aceitarem a natureza e a gravidade do problema. Há uma relutância em reconhecer as falhas políticas e económicas que fazem com que as crianças se evadam do país e uma falta de vontade para reconhecer os maus tratos que as crianças enfrentam nos locais de chegada. E mesmo nas comunidades de origem, a pressão para partir e ganhar dinheiro para a família, o desejo de ajudar os seus irmãos e irmãs e o medo de ser visto como um fracassado, criam um constrangimento na criança que a impede de falar abertamente. A percepção de que “ninguém está interessado na nossa história” é comum. Neste contexto, é importante notar que muitas das discussões e preocupações recentes acerca das crianças vulneráveis emigrantes na África Austral, se concentram no tráfico organizado de pessoas. Enquanto há muito que pode e deve ser feito para lidar com esta situação em que as pessoas – principalmente mulheres e crianças – são retiradas à força de suas casas ou enganadas através da recepção de falsas promessas de trabalho e escolaridade no estrangeiro, e depois são sujeitas a trabalho de sexo e a mão-de-obra exploradora, o movimento voluntário das crianças que atravessam as fronteiras precisa de ser uma prioridade maior na agenda dos direitos da criança. A decisão de uma criança atravessar a fronteira ilegalmente não significa que os maus tratos que lhe possam ser infligidos do outro lado sejam de algum modo menos merecedor de preocupação e condenação pelo facto de ter sido por escolha individual, em vez de terem sido traficadas à força. Há muitas crianças que receberam uma reacção semelhante àquela que a T descreveu quando revelou os maus tratos sofridos nas mãos das autoridades, nomeadamente, a resposta que eles tinham que aceitar as consequências da sua decisão de sair de casa, mesmo quando isso envolve uma grave infracção dos seus direitos. “O que é que vocês estão à espera, se escolheram vir para cá?” é um ponto de vista que nunca deve deturpar a nossa preocupação com as aflições das crianças que acabam por viver em circunstâncias deploráveis. Quanto a soluções identificada por maior parte das crianças, seria de não ter de trabalhar noutro local, seria de todos os países da região estarem em posição de providenciar emprego para aqueles que acabam de se formar na escola, para produzirem o suficiente para as pessoas se alimentarem e para as crianças não terem de abandonar a sua educação quando as suas famílias não conseguem sustentar as despesas da escola. Mas dado que não é provável que isto se altere num futuro próximo, deveriam oferecer-se algumas medidas de protecção àqueles que tiverem decidido se mudar. Eles afirmam que quase todas as pessoas que são deportadas da África do Sul regressam alguns dias depois expulsos de lá. Um amigo de T foi preso e deportado cerca de dez vezes mas, apesar de vários espancamentos e roubos de dinheiro pelos funcionários dos dois lados da fronteira, ele sempre voltou a tentar. 8 xiii Haverá sempre migração enquanto houver um país que não consiga providenciar aos seus cidadãos as necessidades básicas e houver outro país ao lado que tem trabalho e dinheiro para oferecer. Portanto, não seria melhor criar uma espécie de mecanismo legal para facilitar e regularizar o movimento de pessoas, em vez de pretender que este não existe ou em vez de desejar que este não existisse? Não seria melhor do que a exploração laboral por parte dos empregadores, que o abuso e o assedio às raparigas, do que a existência de “gangs” criminosos na fronteira, do que a corrupção que surge quando os funcionários são aliciados com subornos de pessoas suficientemente desesperadas para lhes pagarem? Enquanto o Botswana parece estar a aumentar a segurança nas suas fronteiras com o Zimbabwe, Moçambique e o Zimbabwe aboliram os vistos de entrada para os seus cidadãos, em 2007. Espera-se que este passo facilite o movimento de pessoas e de bens entre os dois países, e que também tenha um efeito positivo na redução da vulnerabilidade e risco das crianças que atravessam a fronteira de ocorrência de situações de abuso e exploração. Mas mesmo que os Governos se mantenham relutantes em abrir as fronteiras dos seus países, há claramente necessidade de haver maior respeito pelos direitos das crianças quando estas são apreendidas. As histórias relatadas são acerca de espancamentos, abusos, humilhações, serem postas nas mesmas celas que os adulto que são frequentente presas sem que tenham matéria suficiente ou provas. Estas práticas infringem os direitos humanos que todos os países na região concordaram respeitar através da assinatura de convenções, incluindo a Convenção dos Direitos da Criança, a qual estipula padrões de detenção e de cuidados com pessoas jovens sob custódia. As crianças nunca devem ser colocadas numa situação como a descrita por O, que vem do Zimbabwe e passa muito do seu tempo a fugir às autoridades para ficar a trabalhar na África do Sul para poder ajudar a sua família em casa. Eu tento ao máximo mudar a maneira de andar, para andar como um Sul-africano ou para agir como um. É melhor para mim porque eu posso falar Sotho, eu posso falar Tswana, e eu posso falar línguas Sul-africanas. Mas eu tenho estas injecções Zimbabweanas (aponta para a cicatriz da TB na parte de cima do braço) e é assim que a polícia pode dizer se tu és um estrangeiro ou se vens da África do Sul. Como é que me vou livrar disto? Tu sabes eu preocupo-me como é que eu me vou livrar disto. A menos se eu tiver que me ajudar a mim próprio e pegar numa faca ou assim. Só para, sabes, só para eu estar seguro. Endnotes 7 xiv 1 2 3 4 Salopek, Paul. ‘In Africa, a desperate stampede.’ Chicago Tribune. 12 de Junho de 2007. Save the Children Noruega (Zimbabwe) e Save the Children Noruega (Moçambique). Relatório sem título. 2000. Salopek, Paul. ‘In Africa, a desperate stampede.’ Chicago Tribune. 12 de Junho de 2007. Ibidem. Nota editorial Irene Staunton O objectivo primário subjacente a: Os Nossos Sonhos Destruídos: Migração das Crianças na Àfrica Austral é capacitar as crianças que decidiram (geralmente por iniciativa própria) ir a a África do Sul à procura de trabalho, de um rendimento para as suas famílias, e de uma vida melhor, para contarem as suas histórias pelas suas próprias palavras. Tomou-se uma decisão de contratar jovens adultos para conduzirem as entrevistas presumindo que eles seriam uma presença menos ameaçadora do que aquela que poderia ser, utilizando pessoas mais velhas. Os entrevistadores foram seleccionados na base da sua experiência de trabalho com crianças ou da sua experiência de jornalismo, ou pela sua empatia. Todos eles falavam pelo menos uma língua indígena. Em Fevereiro de 2007, decorreu no escritório da Save the Children Reino Unido, em Harare, um seminário de cinco dias conduzido por Glynis Clacherty. Ali os entrevistadores, dois adolescentes que tinham acabado a escola naquela altura e seis jovens, foram iniciados nas diferentes técnicas de fazer entrevistas no contexto duma situação em que as crianças e os jovens pudessem estar a sentir-se tanto vulneráveis como receosos. Os entrevistadores foram então, em equipas – duas no Zimbabwe, duas em Moçambique, uma na Swazilândia e uma na África do Sul – procurar crianças e, tendo-lhes sido explicado qual a natureza do projecto, pedir-lhes para partilharem as suas experiências com eles. Foram conduzidas aproximadamente 50 entrevistas, tendo todas elas sido traduzidas para Inglês pelos entrevistadores e enviadas para Irene Staunton, a editora do projecto. A qualidade das entrevistas foi, em geral, boa, e algumas foram excepcionalmente boas. Algumas crianças estavam envergonhadas e cautelosas, outras estavam ansiosas por que as suas histórias fossem ouvidas e por darem a sua opinião. Houve várias que acharam a experiência catártica, o que sugere que se devem tomar mais provisões nos vários centros de repatriamento apoiados por ONGs para que as crianças encontrem um espaço para desabafar. Apesar de tudo, do ponto de vista editorial, houve uma série de preocupações. Tinham-se identificado uma vasta gama de perguntas relacionadas com a decisão das crianças de saírem de casa – com a sua viagem e os problemas que enfrentaram no caminho, a sua experiência da chegada e de trabalharem na África do Sul, e como é que as suas expectativas se combinaram com a realidade. Não obstante, pediu-se aos entrevistadores que não se prendessem demasiado rigidamente a estas perguntas, se as respostas das crianças conduzissem a conversa para áreas em que se pudessem recontar ou explorar experiências diferentes. No entanto, na ocasião, as perguntas conduziram a entrevista, houve uma declaração reveladora que não foi acompanhada, uma observação ambígua ou uma que parecia contradizer algo que tinha sido dito anteriormente, que não se esclareceu. Como não era possível voltar a encontrar as crianças, a nossa tendência foi não incluir aqueles aspectos duma entrevista que sugeriam inconsistência. Tivemos que decidir o que fazer quanto à maneira como íamos chamar as crianças porque, pelo menos nalgumas áreas, tais como Katiyo, uma pequena cidade no Zimbabwe, elas seriam conhecidas, ou porque elas tinham sofrido traumas e não queriam ser identificadas. Finalmente, concluiu-se que iríamos dispensar os nomes todos. Quando uma criança diferente está a falar, indica-se com dísticos de cores diferentes no início da asserção da criança. 8 xv Alguns entrevistadores forneceram descrições detalhadas das crianças que entrevistaram, outros nem tanto. Muitas das descrições davam muito naturalmente ênfase à pobreza e ao sofrimento que as crianças lhes aparentavam. No entanto, embora as crianças sejam vítimas das suas circunstâncias, a sua determinação em ir a algum lado e em fazer alguma coisa mostra acção, coragem, e resiliência, aspectos que não foram muitas vezes mencionados nas descrições. Além disso, dado que tentámos colocar por temas os pontos de vista ou as experiências das crianças, seria difícil ou monótono identificá-las com descrições. Em vez disso, tomámos a decisão de apresentar três ou quatro descrições representativas por capítulo, para dar uma ideia dos jovens cujas vozes se exprimem nos mesmos. Normalmente, o papel dum editor é melhorar a linguagem e a gramática, mas no caso de testemunhos orais, o reverso é válido, o papel do editor é manter a linguagem tal como ela é. Prevalecem pequenas dificuldades textuais. Podem-se usar elipses para indicar uma pausa no discurso da criança, ou que o texto foi cortado. Inicialmente tentámos encontrar uma maneira de usar as duas, mas o resultado parecia desajustado, desta forma usa-se uma simples elipse para ambos. De novo, inicialmente, colocámos entre parênteses quadrados todas as preposições ou frases retiradas de outras partes do texto, para ligar o texto, mas de novo o resultado impedia o fluir, e não contribuía para um sentido de veracidade, portanto só usámos minimamente estes parênteses quadrados. O livro foi desenvolvido à volta de cada posto fronteiriço pois as experiências das crianças e das suas razões para tentarem entrar na África do Sul (ou noutro país) revelam semelhanças mas também diferenças qualitativas. Assim, as crianças que procuram atravessar o Rio Limpopo numa série de pontos diferentes, são no essencial conduzidas pela fome, pelo desemprego e porque não têm ninguém na família que possa cuidar delas. Aquelas que atravessam a fronteira de Moçambique para ir e vir perto de Katiyo e Honde, continuam a viver em casa mas fazem a viagem para arranjar suplementos para os magros rendimentos das suas famílias. As crianças que atravessam em Machipanda, fazem-no frequentemente porque as pessoas sempre viajaram para lá e para cá entre Moçambique e o Zimbabwe e muitas vezes têm família nos dois lados da fronteira. As crianças Moçambicanas atravessam ilegalmente para a África do Sul à procura de melhor vida. Embora haja muitas similaridade nas entrevistas, tentámos evitar a repetição em favor daquilo que esperamos se assemelhe a um texto por camadas que permitem que haja tanto diferenças como similaridades nas experiências das crianças. Na medida do possível, tentámos permitir que as vozes das crianças, poderosas só por si, surgissem com o mínimo de comentários interpretativos. Não raramente, as suas razões para saírem de casa, ou a sua experiência de atravessar a fronteira, não eram diferentes, embora tivéssemos tentado seleccionar aquelas histórias ou anedotas que expressavam estas situações mais claramente. Também incluímos algumas das mais poderosas e ilustrativas entrevistas na sua totalidade, para equilibrar os extractos retirados de outras entrevistas, pois elas providenciam-nos um sentido da criança como uma pessoa mais completa. O estilo de expressão utilizado pelas crianças reflecte frequentemente um sentido de ocasião, elas estavam a contar uma história ao entrevistador. Por isso encontramos muitas vezes maravilhosas flores de retórica: ‘Nós vamos para Moçambique, carregar o quê?.... O açúcar!’ ‘Eles querem que a fronteira seja atravessada por pessoas com quê?.... Com passaportes!’ 7 xvi As crianças oferecem frequentemente uma descrição detalhada dum evento ou duma transacção, servindo a repetição tanto para indicar o seu significado como para dar à anedota o seu próprio ritmo natural: Eu saí de casa a pé e fui para o Centro de Gokwe. Apanhei um machibombo que se chamava White Spear e que me levou do Centro de Gokwe para Bulawayo. Depois de ter chegado comigo a Bulawayo eu fui para casa do Babamudiki. Quando cheguei a casa do Babamudiki passei um dia e dormi lá e então na manhã seguinte, apanhámos uma boleia para a fronteira de Plumtree. De lá fomos para Francistown. De Plumtree para Francistown caminhámos durante dois dias. Quando tínhamos caminhado dois dias para Francistown, apanhámos uma chapa que ia para Sashe. Quando chegámos a Sashe apanhámos um comboio que nos levou para Chuti. Depois de termos chegado a Chuti saímos de Chuti, apanhámos uma chapa …. Enquanto tentávamos assegurar a presença das vozes das crianças, tivemos por vezes que comprometer a tal repetição quando, durante uma passagem escrita que era muito longa, já se tinha alcançado o seu efeito. As crianças são frequentemente muito francas e têm uma abordagem literal, não manipuladora, dos factos: Ter dinheiro ou não, elas [as magumaguma] só te batem porque este é o “job” delas que elas estão a fazer. Eu encontrei alguns magumagumas outra vez e eles levaram-me para o sítio deles e disseram-me para lavar e cozinhar para eles porque eu era jovem… Mas graças a Deus eles não me violaram nem me bateram, eles só me obrigaram a trabalhar para eles só durante o dia e deixaram-me ir embora mais ou menos às 10 horas eu não sabia para onde havia de ir, portanto dormi no mato toda a noite. Elas também têm um forte sentido do que é justo e do que não é. Eles [os agricultores brancos] vão-te dizer que tu és daqueles que nos expulsaram do Zimbabwe, portanto o que é que vocês querem aqui? É muito doloroso porque nós não temos nada a ver com estes assuntos. Só estamos cheios de fome. Porque aqueles que os expulsaram eram diferentes de nós. Eles estão a ganhar uma boa vida. Nós só estamos à procura de boa vida. Ao contrário dos adultos, as crianças não são sentimentais e afirmam as suas situações quase com absoluta claridade. O meu avô não pode ser capaz de trabalhar por causa da idade dele. Ele é aquele que costumava dar-me dinheiro para mim portanto quando ele também morreu ninguém pagou para mim. A pobreza também foi provocada pela morte dos meus pais no ano de 1994. Demasiada pobreza em casa. Sem trabalho, sem o quê? Fome em casa. E muitas das crianças que foram entrevistadas tiveram que lidar com a experiência da perda ou com o sofrimento em múltiplas ocasiões. O meu pai faleceu em 1999, a minha mãe então faleceu em 2004. Quando o meu pai morreu… eu tinha oito anos (de idade) … quando a minha mãe morreu, eu tinha agora quinze. Apesar de tudo por que passaram e sofreram, muitos tinham ainda sonhos e objectivos que estavam determinados a alcançar. 8 xvii Eu vou ficar até eu poupar dinheiro suficiente para construir uma casa e pagar as minhas propinas da escola. Eu ainda quero aprender… Eu gostava de Português e de Ciências. Eu venho aqui para trabalhar e para construir uma casa para a minha avó e para comprar algum gado, para eles poderem vendê-lo e comprarem alguma coisa para comer quando eu morrer porque os meus pais não conseguiram fazer isso por nós, portanto eu preciso de o fazer pela minha avó. A coisa que eu gostava de fazer com a minha vida é ser um piloto de um avião isto é porque eu quero considerar a quantidade de dinheiro que vou ganhar e se é mais para um piloto ou para operar máquinas de feijão de soja. Fizemos o nosso melhor para deixar surgir as vozes das crianças e dos jovens da forma como eles as falavam. O comentário de ligação não pretende ser mais do que isso, do que para dar um contexto em que elas possam ser ouvidas, deixando muita da interpretação a cargo do leitor. 7 xviii CAPÍTULO 1 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O A Atravessar o Rio do Zimbabwe para a África do Sul B To Th ul Chiredzi i Mahenye ni Thohoyandou 110km Chikwalakwala Limpopo Crooks Corner 60km Dite 20km Dumba To JOHANNESBURG 8 7 MUSINA 7 8 8 7 7 8 8 7 8 7 BEITBRIDGE 0km Old Gorge Bridge 20km Zwaphele SOUTH AFRICA 60km Nothingham Estate 70km Tshikomitshini 102km: Shashe Shashe 102km Sango To M wa AS ing VI N G z Um O Shashe O AY AW UL BOTSWANA MOZAMBIQUE ZIMBABWE ‘Demasiada pobreza em casa. Sem trabalho, sem o quê?’ Desde a viragem do século, tem havido uma instabilidade política acentuada no Zimbabwe e o consequente declínio da economia do país. Muitos zimbabweanos não tem alimentação condigna, o que se deve, em parte, a um decréscimo na produção agrícola local bem como ao período de seca que o país atravessa. A taxa de desemprego, actualmente, é 8 1 8 7 7 7 8 KEY Alojamento Capim Campos de algodão Capim Fronteira que separa Zimbabwe e África do Sul Soldados de Zimbabweanos Estrada principal Caminho ou estrada para a fronteira Rio Limpopo Animais perigosos, leão, chita, etc. Posto fronteiriço Chicualacuala 7 2 Caminhões (levando crianças para AS) Crianças que cruzam ilegalmente Autocarro - Machimbombo (levando as crianças a SÁ) Paragem de autocarro de ônibus Magumagumas que se escondem debaixo de arbustos 8 7 8 estimada entre os 70 a 80 porcento sendo que as pessoas são cada vez mais dependentes das remessas dos membros da 78 família que vivem fora do país. Os serviços sociais, incluindo os programas de cuidados de saúde e de educação, foram gravemente degradados. Em 2005, a taxa de infecção pelo HIV & SIDA era uma das mais elevadas da África Subsariana. 7 Como resultado de todos estes factores e de outros que aqui não foram mencionados, muitos zimbabweanos deixaram o 8 país, alguns adquirindo vistos de trabalho em países vizinhos ou ainda mais longe, outros a viverem ilegalmente, em busca 7 de melhor vida para si e para as suas famílias. Nós discutimos o êxodo de crianças do Zimbabwe e procurámos ouvir o que os chefes locais pensavam acerca do problema. 7 8 7 8 Um chefe disse: tenho pena destas crianças que atravessam a fronteira alegando que vão trabalhar. Quando elas 7 8 Euregressam, trazem apenas mercearias – óleo de cozinha e sabão para as suas famílias. Outras crianças pensam que ir a África do Sul. Elas querem trazer coisas boas para os seus pais. 7 8 O problema équefácilenfrentámos é de trabalho. As nossas crianças querem trabalhar e têm força para trabalhar mas não há trabalho. A verdade é que a pobreza as obriga a 7 8 partir, adicionado a isto existe também o problema de falta de chuva. Se chovesse, as 7 8 crianças iriam trabalhar nos campos para se poderem se defender. 8 Com uma estimativa de 3.000 pessoas a morrerem todas as semanas no Zimbabwe devido ao SIDA, as famílias alargadas não conseguem mais sobreviver e o sistema de segurança social é inadequado visto que o desemprego conduziu a uma 8 grave redução nas actividades colectáveis. O chefe disse-nos: 8 O problema dos órfãos é doloroso. Uma criança perde os pais e não tem ninguém para cuidar dela, para que 1 7 7 8 ela possa terminar a sua instrução básica e prosseguir com os seus estudos, pois não há nada de que viver. A pandemia do SIDA é o nosso maior problema pois já matou tanta gente. Agora há muitos órfãos. Nós gostávamos de cuidar deles. Mas os problemas que enfrentamos é que não temos meios para os tratar melhor. Um chefe local apontou que as crianças deixam o país não só para se ajudarem a elas próprias mas para trazerem alguma coisa para os seus familiares. A morte ou o desemprego dos seus pais e dos familiares mais chegados significa que, ainda jovem, eles assumem a responsabilidade de sustentadores das suas famílias, muitas vezes sem ideia nenhuma do que é que isto significa, ou do preço elevado que têm de pagar,. 8 3 7 Eu senti-me mal porque eu não queria voltar para casa, não havia dinheiro nenhum nem nada para comer. Em casa, eu fico com a minha mãe e ela é desempregada. Ninguém estava a trabalhar. Nós, às vezes, lavramos a terra para pessoas da zona, para podermos ganhar algum dinheiro para comprar comida. O 8 8 78 78 7 8 8 7 8 As crianças assumem um sentido de responsabilidade pelas suas famílias, desde uma tenra idade. 7 É verdade que as crianças enfrentam muitas dificuldades durante a sua viagem, tais como fome, e que fazem certas coisas de que elas nunca esperarvam fazer. Algumas delas são tímidas para contar a verdade; algumas dizem que chegam a um ponto em que dormem com homens que não conhecem só para tentarem sobreviver. Mas não é por isso que elas vão ao sul, elas vão com a intenção de irem trabalhar. Contaram-me tantas histórias. Algumas dizem o que pensam nas suas casas e que querem voltar… mas não o querem fazer a menos que possam voltar com mercearias. O meu pai faleceu quando eu era novo. Quando cresci, descobri que não podia fazer nada senão ir à procura de alguns pequenos trabalhos para ajudar a minha mãe. Eu tenho duas irmãs mais novas que ainda são muito pequenas para ajudarem a minha mãe. Eu ouvi outros a falar acerca da África do Sul e de como era bom lá estar, portanto eu quis ir porque eu já estava em Beitbridge onde trabalhava para uma senhora vendendo. Eu já havia abzandonado a casa dos meus pais quando tinha dez anos para procurar um trabalho. Apanhei um autocarro gratuito para Beitbridge porque eu era muito novo para pagar o bilhete do autocarro. O meu pai faleceu no dia 11 de Janeiro de 2005. Somos onze crianças em casa. Nós vivíamos bem. Ganhávamos dinheiro por regar nos quintar. Mas, mesmo assim, começámos a ter falta de coisas e roupa em casa. Eu vi que a vida estava difícil. Eu pensei que se eu fosse a África do Sul, eu podia ajudar a minha mãe com gado para lavrar… eu ouvi as pessoas falarem que se tu ganhas rands e os trocas, aqui vai ser muito dinheiro e tu podes comprar o que quiseres. Portanto eu disse à minha mãe, ‘Vou-me embora de casa. Vou trabalhar.’ E ela deu-me dinheiro, 20.000 dólares zimbabweanos. Eu saí de casa a pé. L Na nossa família ninguém trabalha. O meu pai é um pedreiro, ele às vezes é pago para construir uma casa mas ele tem o problema de surdez. Isso faz com que ele não esteja perto da família. por causa disso, tive que sair de casa à procura trabalho para poder ter dinheiro para comprar comida e para ir a escola. M Na minha está tudo bem. Mas desde que eu era muito novo, os meus pais me mandaram à escola com dificuldade. Eu não terminei a 4a classe. Eu não consegui arranjar dinheiro para fazer o primeiro ciclo. Isso foi o que me fez partir. adicionado a isso, os meus irmãos iam à escola. Foi isso que me deu a vontade de partir, para dizer, ‘Deixa-me ir para o outro lado para ajudar os meus pais, e os meus irmãos a irem à escola.’ Quando eu estava para partir lhes disse, ‘quer morra ou viva, isso é da minha responsabilidade. Eu quero tomar conta da minha família, porque eu sou o filho mais velho.’ N 7 4 Um pequeno rapaz de dezasseis anos falou num tom baixo e os seus lábios estavam muito secos. As suas roupas cheiravam a suor e a sujidade. As suas calças jeans, que eram demasiado grandes para ele, estavam desbotadas e tinham grandes buracos nos joelhos. Ele estava contente por estar a voltar para sua casa, mas ele sabe que está de voltar para todos os problemas que ele pensava que deixava para trás quando ele emigrou para a África do Sul. Quando as crianças têm famílias, elas às vezes são disfuncionais, ou há tensões que surgem de múltiplos casamentos ou de relações que são exacerbadas pela pobreza e a tensão entre aqueles que abastecem e aqueles que não o podem fazer ou não o fazem é evidente, tal como nos diz este rapaz: Primeiro, a minha mãe casou-se com outro homem, depois esse homem faleceu, então ela casou com o meu pai. Mas o meu pai arranjou outra mulher – o meu pai tinha muitas mulheres e muitos filhos. Portanto eu, normalmente, não me comunico com as pessoas com quem eu vivo…. Porque eu odeio as palavras que eles dizem de mim [Acusações de roubo, inveja dos bens, falsa atribuição de culpas, etc.] Q Ter o suficiente para comer e ter acesso a alguns confortos não é suficiente para manter as crianças em casa, se elas forem infelizes. Quando há uma escolha acerca de quem deve receber educação, é quase sempre a rapariga que tem que abandonar os estudos primeiro. Nós tínhamos coisas boas. Havia uma antena parabólica. Nós víamos coisas do estrangeiro, huh! Havia lá comida. Mas eu vi que ir a África do Sul era melhor que viver em casa com a tua mãe que te odeia. Portanto é melhor ir a África do Sul e ser pobre do que ficar com a tua mãe e ser ameaçada, estás a ver? P O meu pai é um homem rico. Ele fica nos subúrbios com muitas casas, muitas lojas, muitos carros. Ele é rico mas talvez ele não saiba como tomar conta da sua família… porque ele tem muitos filhos em toda a parte. Mesmo que tu fales com ele, não ouve. K Eu concluí o nível primário no ano passado, em 2006. Se eu pudesse escolher, eu teria ido fazer o nível básico e depois a universidade ou o colégio… Mas simplesmente não há dinheiro. Apenas um tem emprego em casa… outro irmão frequenta uma escola de minas que custa muito dinheiro. Portanto o meu pai disse, ‘Vamos deixá-lo aprender. Talvez quando ele conseguir um emprego, ele vai ajudar-vos a pagar as vossas propinas …’ Portanto eu decidi vir para este lado. Porque eu vi que lá em casa eu estava sem fazer nada. Tu ficas deprimido só de estar sentado o dia todo, a fazer nada, a ver outras pessoas irem à escola, irem ao colégio. Na África do Sul, talvez eu encontre uma vida melhor ou comece mesmo a frequentar um colégio. P 8 5 Os pais ou os familiares ficam muitas vezes contentes por as crianças saírem de casa e procurarem ganhar dinheiro noutro lado. As crianças começam a trabalhar desde uma tenra idade e o facto de alguém com dezasseis anos de idade ser considerada uma criança, é muitas vezes um conceito estranho. M Eu saí da escola depois de concluir a 7ª classe. O dinheiro com que os meus pais ficaram depois de terem vendido o cabrito não é suficiente para nos alimentar e pagar propinas para quatro crianças irem a escola. Eu quero trabalhar para poder comprar roupas para mim, porque agora já sou suficientemente crescido. Eu tenho dezasseis… Os meus pais não me podem comprar nada. Eles dizem que eu agora sou crescido e que tenho que tomar conta de mim. A minha irmã mandou-me dinheiro para vir a África do Sul, para eu também poder procurar um emprego. Eu estava a viver com o meu pai, e com o meu irmão mais novo. A minha mãe estava separada do meu pai. Portanto eu decidi ir para a África do Sul porque o meu pai não estava a trabalhar e não tinha condições para suportar os encargos de mandar os dois à escola. Portanto eu decidi abandonar a escola para poder trabalhar para o ajudar. Ele estava muito velho para trabalhar para nós. Ele conseguia esculpir, mas o dinheiro era pouco porque ele estava a pagar a renda e a comprar comida. N As crianças que chegam a Beitbridge muitas vezes não têm um sítio onde ficar e têm pouco ou não têm nenhum dinheiro para pagarem a sua acomodação enquanto planeiam atravessar a fronteira. Às vezes mal dormem; outras vezes, as raparigas encontram outras opções. M Eu fico com o sekuru, mas ele não é o meu verdadeiro sekuru, ele é só alguém com quem eu vivo. Ele é sekuru porque ele vem de Mberengwa e eu venho de Mwenezi, por isso eu só pedi um sítio para ficar e ele disse que eu podia. Nós não pagamos renda.2 De vez em quando, ele diz, ‘Esta casa não é vossa e eu mando. Se eu quiser, eu vos posso mandar embora’. Às vezes ele vai querer que nós façamos coisas que não são possíveis, como querer que brinquemos duma maneira má, desejar nos tocar. Nós não queremos brincar assim, nós não queremos ser tocadas (risos)3. Eu digo-lhe que isso não é possível porque ele é o meu maior sekuru, eu digo, ‘Você agora4 é crescido e eu ainda sou uma criança, e você tem uma mulher.’ Eu acho que ele quer dormir comigo, é só isso que eu acho… mas quando a mulher dele foi para kumusha, eu normalmente não fico aqui. Eu durmo na casa desta outra mulher. Se elas não forem abusadas, e muitas são-no, a viagem às vezes pode ser mais fácil para as raparigas. Eu apanhei uma boleia num camião para Beitbridge. Nós não pagámos dinheiro nenhum. O condutor do camião foi muito simpático connosco porque contámos-lhe os nossos problemas e ele nunca nos pediu dinheiro. Em Beitbridge procurámos uma pessoa que nos ia mostrar como é que se atravessa porque nós não conhecemos a zona. Então encontrámos uma miudinha da mesma idade que nós. Ela também estava à procura de outros para atravessar, portanto nós tivemos sorte. Nós atravessámos o Rio Limpopo directamente. Quando estávamos na estrada, encontrámos um soldado Sul-africano que tinha um carro e nós pedimos uma boleia. Ele levou-nos para um campo e conhecemos uma senhora Sul-africana. Ela disse que precisava de alguém para trabalhar para ela, e levou-nos para a casa dela em Musina. P 7 6 A viagem pode ser longa e árdua, pior fica se se viajar para a África do sul via Botswana. No entanto, vencidas todas as dificuldades e perigos da estrada, as crianças são frequentemente pura e simplesmente presas e recambiadas para as suas casas. Os números apresentados pelas agências humanitárias mostravam que mais de 2.100 crianças – uma média diária de catorze – sem certidões de nascimento ou qualquer outra forma de identificação, foram repartiadas da África do Sul para a cidade fronteiriça de Beitbridge, nos primeiros cinco meses de 2006.5 Um rapaz alto, de pele clara, com um grande sorriso quase cómico na sua face que tinha uma maneira interessante de contar a sua história riu-se bastante por muitas vezes. Sentado na relva, à sombra de uma árvore, com a sua camisete vermelha desbotada e fato de treino azul marinho, ele parecia estar tranquilo consigo próprio. Mas o seu olhar contava uma história diferente. Eu saí de casa e fui a pé até ao Centro de Gokwe. Apanhei um autocarro chamado White Spear. Levou-me até Bulawayo. Eu fui a casa do babamudiki. Eu dormi lá e na manhã seguinte apanhámos uma boleia para a fronteira de Plumtree. De lá caminhámos durante dois dias para Francistown, depois apanhámos um kombi que ia para Shashe… Depois um comboio que nos levou para Chuti [sic]… e depois um kombi que nos levou até ao pé da fronteira do Botswana com a África do Sul. Depois de atravessar a fronteira, caminhámos e chegámos à estrada… Não tivemos nenhum problema, mas caminhámos um dia desde que saímos do caminho em Rustenburg e, na manhã seguinte, a polícia prendeu-nos. Estivemos durante muito tempo no trongo.6 Ficámos lá desde o dia 10 de Janeiro até 13 de Fevereiro, que foi quando eu fui repatriado. O Os Advogados para os Direitos Humanos recomendam que o Projecto de Lei da Imigração deve incluir um conjunto de padrões mínimos para a detenção de migrantes sem documentos, com especial atenção para a secção 32 (1&2) da Constituição e da Legislação Internacional sobre padrões de detenção. Estes padrões mínimos devem incluir provisões para condições de detenção tais como tamanho e condições das celas, dieta adequada, exercício, saúde, os detidos administrativos devem estar separados dos detidos criminais, as mulheres separadas dos homens e as crianças separadas dos adultos. O último padrão reveste-se de especial importância, dado que as crianças têm um direito constitucional de não serem detidas excepto como medida de último recurso, a criança pode ser detida apenas por um período de tempo mais curto possível, e tem o direito de ser (i) mantida separada de pessoas detidas com mais de 18 anos; e (ii) ser tratada duma maneira tal, e mantida em condições tais, que tenham em consideração a idade da criança.’ (A experiência mostrou que estas provisões nem sempre são respeitadas, e isto sublinha a necessidade de inclusão destas provisões no Projecto de Lei da Imigração.7) 8 7 Nós atravessámos a fronteira durante a noite… Tínhamos pago bilhete de autocarro desde Zvishavane e só ficámos com 10.000 dólares zimbabweanos. Demos o dinheiro ao mais velho para guardar. Passámos a noite quase toda a andar, depois dormimos e acordámos por volta das 4 da manhã. Depois descobrimos que os outros rapazes tinham partido com o nosso dinheiro. Caminhámos e chegámos a um sítio chamado Forohoda [sic] e pedimos uma boleia que nos levou até Thohoyandou [sic]. Agora era Sábado ao fim da tarde. Então começámos a procurar pequenos trabalhos mas não encontrámos nada. Conhecemos uma certa senhora e ela deunos 20 rands e esse foi o primeiro dinheiro que agora tínhamos nos nossos bolsos. Dormimos nesse Sábado à noite no mato onde havia ervas altas. No dia seguinte acordámos cedo e começámos outra vez à procura de pequenos trabalhos e ganhámos 30 rands. Na Segunda-feira de manhã apanhámos boleias para Louis Trichardt porque o dinheiro não chegava para ir até Pietersburg, que era para onde nós queríamos ir. Começámos outra vez a procurar pequenos trabalhos. Abordámos um homem branco e depois de lhe contarmos o nosso problema, ele disse, ‘Esperem aqui!’ e ele foi buscar o carro dele. Depois fez-nos ir no carro dele e entregou-nos à polícia e fomos presos. Portanto desde Segundafeira ficámos na prisão e fomos repatriados na Sexta. P M Eu tinha transporte desde Zaka para Chiredzi depois apanhei um comboio para Rutenga, e depois um gonyeti para Beitbridge. Apanhámos então um autocarro para Dete depois fomos a pé para Louis Trichardt; todos os dias a andar a pé. Os meus pés incharam e o meu sapato estava rasgado e também uma das minhas roupas. Deixei-a nos arbustos. Passámos a fronteira em Dite e atravessámos o rio. Fomos apanhados pelos arames e ficámos feridos. Durante dois dias não comemos nada e no terceiro dia, uma certa senhora deu-nos alguma comida, quando a abordámos na aldeia. Agora estávamos na África do Sul e ela tratou-nos muito bem. Sem trabalhar nem mesmo um único dia, nós estávamos agora a chegar a Louis, e calhou termos passado por uma quinta dum homem branco, e ele puxou duma arma e obrigou-nos a ir para a sua carrinha e entregou-nos à polícia. E fomos presos e passámos cinco dias na prisão. 7 8 Procedimentos para tratar das crianças Zimbabweanas repatriadas Os emigrantes sem documentos são levados para um centro de detenção na África do Sul, por exemplo, Lindela, ou para uma cela da polícia. Uma vez lá chegados, deve-se solicitar ao Departamento da Imigração Sul-Africano e à polícia para separarem as crianças dos adultos. As crianças devem ser entregues ao Departamento de Desenvolvimento Social (DoSD) para serem referidas para os locais de segurança. Este departamento está autorizado a fazer entrevistas e a fazer a ligação com o Departamento de Serviços Sociais (DoSS) no Zimbabwe e irá informar o DoSS sobre a situação das crianças, as suas idades, sexo e local de origem. Quando as crianças são deportadas, o DoSD deve comunicar com as suas contrapartes Zimbabweanas antecipadamente, sobre a repatriação das crianças. Isto permitirá que o DoSS faça a ligação com outros departamentos governamentais, tais como a polícia e a imigração e que faça os preparativos para receber as crianças. Quando as crianças são deportadas, o Departamento de Imigração libera os deportados e confirma o seu regresso. As crianças prosseguem então para o Centro de Apoio e Recepção da Organização Internacional para a Migração (OIM) em Beitbridge. No Centro, os departamentos governamentais estão presentes para supervisionar o processo. A OIM educa as crianças sobre migração segura e sobre o papel do centro de apoio. Eles também procuram certificar que as crianças têm, de facto, menos de dezoito anos. Ambas as organizações registam as crianças nas suas bases de dados. O DoSS completa o formulário do local de segurança Secção 15, da Lei das Crianças, e encaminha as crianças para a Save the Children Noruega (Zimbabwe) (SCN (Z)). A SCN (Z) providencia várias formas de assistência tais como reunificação das crianças com as suas famílias ou tutores legais. Isto também inclui a provisão de cuidados interinos tais como serviços médicos, aconselhamento, alimentação, transporte e uma reunificação segura. A organização também regista as crianças numa base de dados. A informação registada no centro inclui o local de origem da criança, a sua viagem, detalhes das suas vidas na África do Sul e a maneira como a criança foi deportada. No ano seguinte ao início do projecto, Julho de 2006 até Julho de 2007, 2.783 crianças (84% rapazes e 16% raparigas beneficiaram do projecto. Bulawayo, Chipinge, Chiredzi e Mberengwa foram identificados como os locais de onde provinham mais crianças. A SCN (Z) dirige então as crianças para o DoSS o qual facilita e assiste no rasto da família e na reunificação. As duas organizações discutem o problema da criança e a necessidade (ou não) de reunificação. O DoSS aconselha se a criança pode ou não ir para casa com ou sem escolta oficial. A seguir a estes procedimentos, a criança deixa o Centro e regressa ao seu local de origem. As crianças fazem muitas vezes os seus caminhos através de reservas de caça, para atravessar o Rio Limpopo em Beitbridge, Chikwalakwala, Dete, Thohoyandou, Sango Border Post, Crooks Corner e Mahenye. Nós só entrámos na água, segurando as mãos como se fosse um cinto, caminhando para atravessar o rio… Se tu tiveres azar e alguém deixar ir a outra pessoa, ela é arrastada pela água. Mahenye Sango N Chikwalakwala Dite Crooks Corner Thohoyandou 8 9 Nós saltámos por cima da primeira vedação e da segunda, que é electrificada e tem arame farpado e postes de cimento. Depois havemos de ir pela floresta, portanto podes ser atacado por leões e outros animais selvagens. Encontrámos dois soldados e eles dispararam mais de seis balas para o céu. Nós todos corremos e outros feriram-se nas pernas enquanto estavam a correr. Algumas crianças decidiram então ir para casa, outras perderam-se, as que sobraram continuaram. Algumas estavam magoadas. Dispersámo-nos. Não havia nada a fazer porque este não era o nosso país e nós tínhamos medo de ser presos. Também não tínhamos dinheiro para a clínica. Portanto só deixámos os feridos e seguimos em frente. M Se tu fores apanhado nas zonas rurais, batem-te mesmo a sério. Mesmo se tu tiveres um Bilhete de Identidade Sul-africano e no entanto fores um Zimbabweano, eles levam os BIs e rasgam-nos. Nesta longa viagem, as crianças que não têm nenhum dinheiro para pagar os kombies, ou para comprar comida, tentam frequentemente arranjar pequenos trabalhos à medida que prosseguem. As crianças que estão a viajar sozinhas são particularmente vulneráveis ao abuso e à exploração. Eu não apanhei um táxi para atravessar a fronteira porque eu não tinha dinheiro Sul-africano… Portanto eu andei vinte quilómetros a pé. Eu estava a comer pão que eu comprei em Beitbridge. O pão acabou. Eu encontrei água em buracos. Água estagnada. Eu cheguei a Makonde e dormi no mato. Acordei de manhã e fui procurar um pequeno trabalho e arranjei. Deram-me farinha de milho. Eu estava a cozinhar no mato. Eu trabalhei dois dias e ele deu-me o meu dinheiro. Eu desfolhei espigas de milho durante dois dias e acabei o campo. Recebi trinta rands – quinze por dia. Então eu parei e arranjei outro pequeno trabalho e trabalhei e recebi o meu dinheiro. Eu encontrei outro campo para cultivar. Eu fiz as duas porções e recebi 60 rands. E continuei a andar outra vez, cada noite a dormir no mato. As pessoas para quem trabalhei costumavam tratar-me mal. Quando eu disse dá-me alguma coisa para me tapar à noite, eles deram-me uma tela [pedaço de lona] que estava comida pelas formigas e que era demasiado pequena para me tapar no mato… Eles não gostavam de Zimbabweanos em casa deles. Portanto disseram-me para dormir no mato. Então eu fui apanhado, eu senti o meu coração a bater, mas eu só fiquei. O teu coração fica aflito porque eu posso ser apanhado hoje pela polícia, porque eles não me querem nesta terra. P 7 10 Face à vulnerabilidade das crianças, os funcionários, portadores e facilitadores (legais e ilegais) que dão assistência aos saltadores de fronteira, ganham todos eles algum dinheiro. Às vezes, tendo sido pagos adiantadamente, eles assumem a responsabilidade dos seus encargos; às vezes, eles pura e simplesmente exploram-nas. Por vezes, quando confrontados com o perigo ou com a possibilidade de serem presos, eles fogem e abandonam as crianças. Muitas vezes, os familiares que já estão a viver na África do Sul8, querem que as suas crianças venham à África do Sul, se ao menos para as férias da escola e, como eles próprios podem estar ilegais, eles pagam a um portador ou malaicha para atravessarem com as crianças. O meu irmão tinha mandado um malaicha para me trazer para a África do Sul. Isto foi em Agosto do ano passado [2006]. Os malaichas são pessoas que levam outras do Zimbabwe para a África do Sul e eles deixam-no aonde você vai ficar na África do Sul. Quando eles te atravessam, se houver uma estrada bloqueada, eles vão estar a assegurar que tu não encontras a polícia, até ao sítio onde tu vais viver. Eles recebem 1.000 rand só para uma viagem de ida ou volta. [Metade do dinheiro é pago em adiantado, e metade quando a pessoa chega ao destino.] Eles fizeram-nos passar pela barragem, mas não tinha água, e por baixo das vedações. Viemos sair perto de Musina. Eu só passei três semanas com os meus irmãos e voltei. Era tempo de voltar à escola e o mukoma disse que era melhor eu voltar para Bulawayo. Se tu estás a voltar e a andar com os malaichas não há problema. passas bem a fronteira. Eles podem usar um passaporte que não é teu. Eles só fazem-no carimbar para ti até tu passares o portão. Os malaichas levam-te de regresso a casa, directos a Bulawayo, directos ao sítio onde tu vives. Voltar é mais barato porque os malaichas dizem que ir é a parte difícil… mas voltar para casa, a polícia não te vai chatear. A segunda vez que eu fui, o mukoma tinha mandado outro para me vir buscar. Portanto esta pessoa estava a viajar com um autocarro… Quando chegámos à última fronteira no lado Sul-africano, ele escondeu-nos debaixo dos bancos, portanto quando a polícia começou a procurar eles encontraram-nos. Levaram-me para a frente e disseram-me para tirar a minha mala do autocarro. O meu coração não estava feliz. Eles fizeram-nos sentar numa casa e dormir numa prisão. Podes imaginar? Havia demasiados saltadores de fronteira e o sítio cheirava mal. Não é confortável para as pessoas dormirem ali. O 8 11 Quando os familiares decidem que uma criança se deve juntar a eles na África do Sul eles, muitas vezes, pagam a malaichas para fazerem a criança entrar ilegalmente pela fronteira. Este é um negócio lucrativo. No entanto, há muita coisa que pode correr mal e as crianças podem ser, simplesmente abandonadas. Há esta miúda que veio como...a dona da casa apanhou-a na rua. Eu acho que ela tem quinze. Ela nem sequer sabe aonde é que ela está. Ela perdeu o saco dela, ela perdeu o número de telefone dela, e o malaicha só a largou na estrada, dizendo, ‘Tens que te desenrascar sozinha aqui neste sítio’, e então ela veio à dona da casa e disse, ‘Pode-me ajudar por favor… eu estou à procura desta pessoa e desta pessoa…’ A dona da casa trouxe-a a mim e então eu descobri que ela é do meu país. Ela fala Shona. Eu pergunteilhe, ‘Como é que vieste para aqui?’, e ela disse, ‘Eu vim pelo malaicha.’ Eu perguntei-lhe, ‘ Ele não te levou aonde devias ir? e ela disse, ‘Eu perdi o meu dinheiro, e eu perdi o meu saco, aonde estava o meu número de telefone do meu irmão, portanto eu não sei para onde hei-de ir…’ E então eu perguntei-lhe, ‘ Aonde está o teu irmão?’ e foi como, ‘Ele está na Cidade do Cabo.’ Eu devo telefonar ao amigo dele para ele me apanhar e levar aos autocarros para a Cidade do Cabo.’ Então a dona da casa teve que encontrar alguém, um amigo dela que pudesse a levar e trabalhar para ela. Portanto ela agora está a trabalhar para essa pessoa até eles localizarem o irmão dela ou os malaichas que a trouxeram, ou o saco dela, como se ela alguma vez o encontrasse. P As crianças seguem várias vezes para a África do Sul sem a bênção dos seus pais. O facto das crianças deles não terem documentos oficiais não os preocupa excessivamente, especialmente se elas estiverem acompanhadas por um adulto conhecido. No entanto, mesmo tendo um adulto para as acompanhar, isto realmente não garante que as crianças estejam seguras. Depois do meu tio e eu sermos presos, o babamudiki disse, ‘Rapazes, hoje eu estou a pensar fugir, mesmo que eles me matem, deixem-nos matar-me.’ Eu não consegui ter forças para fugir. O Babamudiki conseguiu escapar e eu fiquei sózinho.’ M Ele é um rapaz aparentemente esperto e bem comportado. Ele veste-se de uma camisete azul-marinho lavada, que lhe assenta bem e calças blue jeans. Enquanto relaxávamos, ele expressou amargura pelos amigos que o roubaram e o abandonaram. 7 12 Os Magumagumas são bandidos conhecidos, que mandam nas zonas fronteiriças. Eles exploram os saltadores das fronteiras. Os seus crimes mais comuns são: violação, roubo e outros actos de violência. Todos esses actos foram reportados pelas crianças. O assassino é conhecido. N Gumaguma são pessoas que oprimem as outras. Se os encontrares no mato ou junto ao rio eles vão-te dizer dá-nos dinheiro e se tu não tiveres, eles podem-te bater ou podem-te violar. Ou podem levar as roupas que estás a vestir e dizem-te para ires assim, nú… Uma vez demos com algumas raparigas que estavam a chorar, a dizer que eles levaram o dinheiro, os sacos e os sapatos delas. Então os ladrões levaram o meu dinheiro todo. Eu já tinha gasto algum e fiquei com 50 rands e eles levaram-nos. Então eu fui a pé sem dinheiro. A viver de mangas. M P Nós éramos quatro, mas os ladrões eles eram dez. Ah, não havia nada que podíamos fazer. Eles batem-nos. Esta rapariga escura de altura média com muito acne vestia um bonito top sem mangas, uma saia florida e um enorme chapéu-desol voltado para a frente. Aparentando ser tímida, ela nunca estabeleceu contacto visual e embora, ela às vezes parecesse evasiva, ela desejava que a história dela fosse ouvida, e falou como se as palavras dela lhe permitissem distanciarse dos acontecimentos do seu passado recente. K Eu apanhei um kombi e saí do autocarro na paragem de Beitbridge. Eu fui atrás das lojas e vi alguns rapazes que diziam que ajudavam as pessoas a passar… eu tinha 800 rands. Eles disseram, ‘Então com 800 rands, tu tens sorte,’… Eles disseram, ‘Senta-te aqui. Tu dás-nos 200 rands para nós te ajudarmos a passar. Eu dei-lhes o dinheiro e fiquei com 600 rands.’… Nós passámos o Limpopo na parte de cima, aonde não tem água. Nós encontrámos alguns rapazes com rastas. Eles cortaram a minha blusa e as calças. Eles começaram a cortar a minha blusa e tiraram-me as calças. Eles levaram 300 rands e eu fiquei com 300 rands. Depois de termos atravessado o rio e saltado a primeira vedação, encontrámos outros tipos que estavam escondidos no mato. Eles avançaram para nós com facas e machados afiados. Eles perguntaram-nos aonde é que nós íamos. Nós dissemos-lhes que estávamos a ir para a África do Sul. Eles disseram, ‘Aonde é que está o dinheiro que vocês querem usar para o bilhete do autocarro?” Nós dissemos, ‘Nós não temos!’ E eles mandaram-nos deitar de barriga para baixo e começaram a bater-nos. Eles despiram-nos e deram-nos as roupas velhas deles que tu nem podes vestir. Eles ficaram com o nosso dinheiro e deixaram-nos ir. Esta ferida na minha mão é porque eu tentei lutar com eles mas eles usaram um tijolo. Teres o teu dinheiro ou não isso não importa, eles batem-te porque este é o trabalho que eles estão a fazer. P Há muitas histórias sobre os magumagumas, mas a reputação deles fica mais intensa na imaginação dos assustados saltadores de fronteiras. 8 13 M Os amagumagumas começaram a revistar-nos à procura de dinheiro. Eles eram mais de dez. Eles traziam armas – machados, facas (O entrevistador assobia. Riam-se os dois.) Eles começaram a revistar-nos. Descobriram que nós não tínhamos dinheiro… pensámos que eles nos iam matar. Porque algumas pessoas dizem que quando eles te encontram sem dinheiro, eles vão-te matar… eu era o único rapaz, eu pensei, ‘Eles vão-me matar a mim.’ As raparigas eles violam… Vimos sangue. R Os magumagumas são pessoas que ficam no mato para levar os bens e o dinheiro das pessoas. Mesmo se tu não tens dinheiro eles tiram as tuas roupas e batem-te. O facto das crianças estarem dispostas a correr este tipo de risco e passarem por muitas formas de humilhação ou de dor é uma indicação que elas estão determinadas a atingirem os seus objectivos. As raparigas são particularmente as mais vulneráveis. A. é uma rapariga baixa, de pele branca. A pele dela é áspera e as suas pequenas rastas são branqueadas. O estômago dela destaca-se entre a sua enorme camisete azul e as modernas calças jeans azuis escuras. Ocasionalmente, ela coloca uma mão protectora sobre a sua criança por nascer. Uma rapariga triste, percebe-se que ela precisa de aconselhamento e teve uma profunda necessidade de contar a história dela. Nós éramos dois rapazes e três raparigas. Andámos e quando chegámos ao rio, estávamos para atravessar quando nos encontrámos com estes magumaguma, seis deles. Um tinha uma arma e os outros dois tinham facas nas mãos, grandes facas assim (ela demonstra o tamanho delas). Foi uma coisa que me assustou porque eu estava a pensar porque é que estas pessoas estavam a segurar facas. Eles ficaram a olhar para nós, portanto não tivemos tempo para fugir. Quando nos voltámos, eu vi que mesmo atrás de nós havia mais gumaguma. Foi quando eu comecei a gritar, um deles correu e tapou a minha boca com a mão e perguntou-me porque é que eu estava a gritar e deu-me um estalo. Depois disso eu decidi tornar-me corajosa, mas no meu coração eu dizia, ‘Eu não quero morrer aqui, é melhor se eu morrer depois de voltar para a minha casa’. Portanto estes rapazes primeiro tiraram a minha amainini e foram com ela, mas disseram aos outros dois rapazes com quem estávamos a viajar, ‘Saiam daqui! Não vos queremos ver mais aqui. Desapareçam!’ Os rapazes então atravessaram o rio… Eles não foram para muito longe, eles só andaram um bocado para estes gajos acreditarem que eles se tinham ido embora. Eles ficaram numa árvore porque eles queriam ver o que era feito de nós; eles disseram que não podiam só ir e deixar-nos porque nós éramos irmãs deles. O que é que eles iam dizer ao nosso sekuru, se ele perguntasse o que é que nos tinha acontecido. Portanto estes gajos foram muito simpáticos para nós porque nos viram como as irmãs deles. Portanto estes magumaguma levaram a minha amainini e foram com ela. Eles não voltaram com ela até passar das quatro, o sol estava quase a pôr-se. Então eles levaram a minha amiga e eles foram com ela, e então M 7 14 disseram-me a mim, ‘Tu és aquela que nós queremos mesmo. Tu és alguém que estás muito assustada, como se nunca tivesses visto bandidos antes.’ Por isso foi quando o meu coração começou a bater depressa… Eu senti como se eu fosse desmaiar porque eu nunca pensei que eu ia encontrar todas as coisas que encontrei no caminho. Quando eles levaram a minha amainini eu ouvi-a a chorar e eu não sabia o que era até que eles me levaram. Três rapazes levaram-me. ‘Eles levaram-nos e foram ter sexo connosco sem protecção! Portanto isto foi uma coisa que me doeu muito. Então eles disseram, ‘Agora podem ir na vossa viagem. Vocês não vão voltar para trás. Assim nós continuámos e atravessámos o rio. Dissemos que devíamos caminhar depressa e seguir os dois gajos e podermos apanhá-los. Foi então que nós vimos que eles estavam mesmo na árvore à nossa espera. Portanto estes gajos estavam agora a confortar-nos para nós não continuarmos a chorar. Portanto ficámos corajosas e continuámos a andar e não encontrámos mais nenhum problema. Caminhámos uma grande distância até chegarmos a esta quinta e encontrarmos estas outras mulheres que disseram, ‘Deixem-me cozinhar sadza para vocês enquanto tomam banho já que tem três raparigas com vocês.’ Portanto essa senhora cozinhou sadza para nós e comemos e ela deu-nos sopa e disse que devíamos lavar as nossas roupas. Ela deu-nos mazambia a cada uma para enrolar à volta dos nossos corpos, para nós podermos ter roupas lavadas para usar quando seguíssemos o nosso caminho. Na verdade, ela queria organizar para nós dormirmos porque nós éramos jovens e ela disse que era melhor para nós descansarmos. Portanto descansámos esse dia. No dia seguinte, levantámonos cerca das quatro e continuámos com a nossa viagem. Portanto à frente, havia algumas mulheres Zimbabweanas que estes gajos conheciam. Portanto chegámos ao sítio destas mulheres e os rapazes disseram para elas, ‘Nós viemos com estas raparigas, por favor vocês podem olhar por elas para nós, até elas poderem sair. Então deixem-nas ir e procurarem trabalho.’ Estas mulheres concordaram. Elas confortaram-nos. 8 15 Apesar dos malaichas e dos magumagumas, alguns jovens descobriram rapidamente como trabalhar com o sistema, especialmente se eles têm familiares na África do Sul ou em Beitbridge. Também eles se tornaram operadores. Muitas das famílias destes jovens estão a viver ilegalmente na África do Sul. As expectativas dele acerca do que ele – e eles – podem alcançar é elevada, e ele está mais enraivecido do que magoado quando as coisas não funcionam como ele planeou. O boato no Centro de Recepção era que apesar de ter acabado de ser deportado, ele estava a planear voltar directamente a atravessar a fronteira. Os meus irmãos falam bem acerca do Sul. Eles disseram, ‘Meu, tem lá muitos trabalhos. Esta tua vida só de sentar em casa quando tens esta idade, não é bom.’ E eu invejei as bicicletas e os rádios deles. Alguns têm televisões nas casas deles. Foi muito doloroso ver os outros trazerem as suas coisas bonitas da AS e nós não tínhamos nada. Portanto eu saí de casa a fugir. A minha mãe está doente, portanto eu disse, ‘Deixa-me ir e trabalhar para ela.’ Assim a mamã deu-me dinheiro. Eu saí de casa de tarde e cheguei a Beitbridge. Quando o sol se pôs, apanhámos um táxi no renkini que ia para Zwaphele. Eu atravessei bem. Não tive problemas na vedação. Nós próprios nós não pagámos. O meu tio ajudou-nos a atravessar. Ele é aquele que fica aqui em Beitbridge. O meu tio disse, ‘ Rapazes, vamos! Eu ajudo-vos. Atravessem aqui.’ Havia um buraco na vedação. Nós passámos pelo buraco. Nós éramos cinco. Fomos a uma quinta e depois para Musina só para uma semana. Então fomos apanhar um comboio para Pietersburg. Nós vimos os soldados a passarem agora e depois ao pé de nós. Eles não falaram para nós. Quando tivemos o bilhete, eles disseram, ‘Entrem no comboio’. Nós viajámos bem. E chegámos lá sem problemas. O sítio era muito bom. Eu fiquei muito feliz, porque eu cheguei aonde eu queria ir. O meu irmão chegou cerca das sete. Nós fomos com ele e ele ajudou-nos a arranjar algum trabalho. Trabalhámos muito bem, mas dinheiro! Não nos deram dinheiro. O tipo de trabalho é para colocar chão, fazer chãos por 600 rands. Nós não tivemos o dinheiro. A pessoa para quem eu trabalhei era um homem preto. Ele foi-se embora à tarde para ir buscar o nosso dinheiro, mas ele não voltou com ele. Eu não pensei que isto era normal. Eu próprio eu vi essa pessoa como um ladrão! Ele enganou-nos e foi-se embora de vez. Eu trabalhei durante um dia. Portanto eu decidi ir para Vratipoort9 aonde o meu irmão trabalha. Então esta pessoa veio e apanhou-nos de repente. Ele não tinha um uniforme. Ele pediu-nos a todos o passaporte e o BI. Era evidente que nós não tínhamos. O meu irmão disse que ele não tinha e o meu irmão queria bater-lhe. Então o polícia disse, ‘Tu vais suar por causa destes miúdos… tu não os vais ver. Nós queremos ir e torturá-los na prisão ali.’ Eu fui preso e fechado na prisão. Nessa prisão eles deram-nos pequena sadza. E passámos toda a tarde fechados. Eles disseram, ‘Vocês rapazes são crescidos, vocês não devem só fazer barulho. Isto aqui não é Zimbabwe. Aqui vocês vão morrer à fome.’ Estas pessoas são muito más. A maneira que elas nos deram comida. Nós mesmo ficámos dois dias só na prisão. Então eles disseram ‘Hoje vocês vão estar OK, vocês Zimbabweanos. Vão embora para casa!’ P 7 16 7 8 7 8 8 78 7 8 7 8 7 7 8 8 ‘O que eu desejava fazer na África do Sul…’ Embora a maior parte das crianças saiam de casa por motivos de pobreza, há aquelas que apesar de terem um membro da família que as sustenta, também decidem ir para a África do Sul. Estas crianças muitas vezes estão simplesmente aborrecidas. As zonas densamente povoadas não oferecem nenhumas ou oferecem poucas facilidades aos adolescentes. Elas muitas vezes não têm nenhum dinheiro para gastar, e as suas famílias controlam rigidamente as actividades, especialmente no caso das raparigas. Portanto elas partem em busca de aventura, e com o sonho de um futuro mais confortável. Eu tinha de arranjar alguma coisa para fazer. A minha mãe era tão rígida que eu não podia sair o portão. Ela dizia que eu fazia coisas más, porque eu, eu não socializo com raparigas. Eu só socializo com gajos, e a minha mãe era muito rígida com isso. Então a minha irmã, que vive na África do Sul, decidiu chamar-me para o pé dela. Para mim já é demasiado tarde para voltar à escola porque a escola onde eu ia era muito chata. Os professores, eles não ensinam devidamente e os estudantes são brincalhões, portanto eu não quero voltar…. Eu prefiro achar alguma coisa para fazer, porque, eh!, a minha mãe não me compra roupas nem nada. Ela é demasiado rígida, sabes. Ela diz, ‘ O teu pai não está a mandar mais dinheiro nem nada para ti’. Portanto eu, eu prefiro ir para o sul. K Esta rapariga adolescente foi apanhada logo que chegou, depois foi detida e repatriada, mas ela estava determinada. Se tu és uma miúda, atravessar a fronteira é bastante duro e a vida daquele lado é dura, mas eishe se tu tiveres cabeça, se pensas depressa, está OK. E pá, mesmo se eu vou para casa, eu vou, mas eishe eu não vou ficar em casa, eu vou voltar para sul… talvez eu tenha outra sorte. Eu vou passar e vou para a da minha irmã. Eu ainda quero voltar. Eu vou atravessar a fronteira, talvez no Domingo… Agora neste momento eu não preciso de ninguém. Eu tenho de gostar de começar a viver a minha vida por minha conta, porque eu vou deixá-los de qualquer maneira, como quando eu casar, portanto é assim como eishe, tens que gostar de te habituares a estar por tua conta, a fazer coisas para ti própria. As crianças que são presas são muitas vezes levadas para Lindela10 antes de prosseguirem no transporte para Beitbridge aonde elas são levadas para o centro de crianças11 antes de as devolverem a casa. Há-de haver alguns polícias que vão estar à procura dos Zimbabweanos e Moçambicanos que não têm BIs. É quando eles nos vão apanhar. Então ele levam-nos para um lugar chamado Lindela12. Este sítio é muito perigoso. Para tu saíres [em boa saúde] é uma sorte porque há lá muitas doenças. Mesmo se tu morreres em Lindela, eles não podem fazer um esforço para dizer aos teus pais que tu estás morto. Então eles levam-nos em autocarros para a fronteira. Dantes, eles utilizavam um comboio mas outros costumavam saltar enquanto o comboio estava a andar depressa e ficavam feridos nas pernas, e outros morreram assim, portanto agora eles usam autocarros. Não há nenhum aviso aos nossos pais acerca disto. Depois disto eles levam-te para Beitbridge para o sítio [o centro das crianças] aonde eles ajudam crianças que foram deportadas. Eles têm autocarros que levam crianças para todo o lado, algumas para Chipinge, Harare, Bulawayo. Também nos deram comida neste sítio: milho e feijões para o caso de não teres comida em casa quando chegares. A comida é o que nos preocupa na nossa vida diária. P 8 17 Estes dois de dezassete anos de idade, pareciam miseráveis e esfomeados pois tinham sido deportados no dia anterior. Os seus lábios estavam secos e brancos. X vestia calças a três-quartos com um velho colete. Y tinha uma ferida com mau aspecto no seu dedo. Nenhum deles tinha sapatos e a pele dura e partida deles parecia como se nunca os tivessem usado. O repatriamento tinha significado que eles tinham sido obrigados a deixar para trás, na África do Sul, bens que valiam muitos rands. Cada vez mais, os Sul-africanos sentem que os não-nacionais de outros países lhes estão a tirar os seus trabalhos, tanto especializados como não especializados; e reconhecem que estão preparados para trabalhar por salários mais baixos. Também se diz que os não-nacionais estão por trás de muito do crime que existe na África do Sul. Alguns não compreendem, ou não querem compreender, as razões que os estão a fazer passar a fronteira, e a xenofobia pode resultar em muitas formas de exploração.13 As pessoas na África do Sul não gostam muito dos Zimbabweanos. Quando estás a falar com eles, eles vão-te ameaçar. Eles vão-te perguntar, “Donde é que tu és? Quem és tu? Chi? Chi? Vocês, os Zimbabweanos, querem acabar com as nossas coisas aqui!’ Q A maneira como as pessoas daqui são tratadas pelos Sul-africanos quando não tens os documentos certos… Eles vão-te ver como um animal. Eles nem te querem ver a andar no país deles se tu não tens um passaporte com um visto ou um BI ou uma autorização de trabalho para a África do Sul. Eles fazem-te passar mal e o dinheiro que tu concordaste receber – vamos dizer que se torna demasiado – eles podem chamar a polícia que então vem e te leva. Quando tu tentas dizer à polícia que eu trabalhei durante este número de meses com este empregador, eles podem-te prender. A polícia pode mesmo tirar dinheiro desse empregador e o assunto acaba assim. Podes ser deportado sem receber nada. N Eu tenho a certeza que já ouviste muito isto. Os Sul-africanos a dizerem que os estrangeiros roubam os trabalhos deles. Isto é porque nós estamos aqui para ganhar dinheiro e para procurar um emprego. O Sulafricano quer ganhar mais, e então se eu for contratado, eu não me importo de trabalhar por dez rands à hora, mas um Sul-africano quer 25 rands à hora. M Outros tentam arranjar um BI para ti, para ser fácil e seguro a viver e nas tuas operações, mas eles precisam de dinheiro. São SAR1,000 para ter um BI. Às vezes as famílias na África do Sul levam as crianças do Zimbabwe e fingem que eles são seus, para as crianças terem algum BI. As crianças mudam todos os seus nomes e mais tarde é que pagam. Mas, se a polícia ouve que a tua língua não é a língua deles, eles podem-te prender. Mesmo aqueles que vivem nos locais também te podem reportar à polícia que vem de noite e te prende. Eles vão de porta em porta a perguntar se tu és um estrangeiro. P 7 18 Tem-se argumentado que a Lei Sul-Africana do Refugiado 130 de 1998, providencia uma protecção extensiva às crianças refugiadas na África do Sul.14 No entanto, há um debate contínuo no país quanto a saber se as crianças sem documentos, provenientes de países vizinhos, mais particularmente do Zimbabwe, são ‘refugiadas’ ou ‘emigrantes económicas’.15 Actualmente, não há ‘nenhuma protecção legal para crianças imigrantes sem documentos ao abrigo da lei Sul-africana.’ … A Lei 96 de Controlo dos Estrangeiros de 1991 e o Projecto de Lei da Imigração de 2000, ‘pretendem livrar-se de pessoas não desejadas de todas as idades em vez de se basearem nos direitos das crianças.’ 16 Embora a África do Sul possa estar a lutar para lidar com o influxo de migrantes estrangeiros sem documentos e para gerir os aspectos contenciosos e por vezes contraditórios da lei para acomodar esta situação, há indivíduos Sul-africanos que podem e na verdade demonstram uma grande bondade. Depois de duas das suas companheiras terem sido violadas, elas receberam apoio. Esta rapariga ia-me confortar, a dizer, ‘Tu sabes que agora tu estás grávida. Tu só tens que ser forte e aceitar isso.’ Ela costumava falar muito sobre a Bíblia. Ela ia confortar-me e aconselhar-me, mesmo quando se falava de ser deportada… eu costumava dizer a essa rapariga, ‘Se eu for deportada, tu tens que tomar conta das minhas coisas… eu não sei se eu vou voltar ou não mas por favor toma conta das minhas coisas.’ Então esta rapariga disse, ‘OK, eu vou fazer como tu pediste,’ porque mesmo as nossas próprias roupas nós íamos partilhar. Em 2007, o salário mínimo para os trabalhadores das quintas na África do Sul está entre 885 a 1041 rands por mês. Muitos zimbabweanos e outros migrantes estrangeiros, incluindo crianças, estão dispostos a trabalhar por consideravelmente menos.17 Tal como vimos, acontece frequentemente que, mesmo antes do dia do pagamento do salário, a polícia é chamada e os zimbabweanos são deportados. De acordo com a lei, é ilegal empregar alguém com menos de quinze anos de idade. As crianças que querem desesperadamente ganhar a vida podem não saber disto, ou então iriam achar que a lei era irrelevante para as suas circunstâncias, independentemente de quão mal elas eram tratadas. A primeira vez, eu consegui trabalhar durante duas semanas no Vivo. Eu trabalhei na quinta. Nós acordávamos por volta das 5 horas da manhã. O meu trabalho era apanhar batatas. Às vezes nós lavávamos as batatas com uma máquina. Depois carregávamos as batatas para um camião para as levar para Joanesburgo. Por este trabalho, nós podíamos ganhar 650 rands por mês. Mas eu vim-me embora porque eu não tinha ali familiares, e a vida era muito dura. Eu saí de Vivo a pé. Andei 25 quilómetros. Foi quando eu parei um camião que ia para Waterport.18… Eu subi no camião e ele levou-me para Old Days [uma quinta]. O condutor deu-me cinco rands. O dinheiro ajudou-me para K 8 19 um dia. Quando o dinheiro acabou, eu não tinha nada e não tinha nenhum sítio para dormir e para ficar. Isto fez-me determinar-me a ir à polícia aonde eu me fiz prender. … Eu só fiquei dois dias depois eu fui deportado… para Beitbridge. Então eu recebi assistência para regressar à minha aldeia. Os meus pais estavam agradecidos de eu ter voltado vivo. Salários Mínimos (Trabalhadores das quintas) África do Sul O salário mínimo para os trabalhadores da quinta é entre 885 e 1041 rands (aproximadamente 118.00 e 139.00 dólares americanos) por mês. Moçambique O salário mínimo para os trabalhadores da quinta é 1.126.50 Meticais (aproximadamente 43.00 dólares americanos) por mês.19 Zimbabwe O salário mínimo para os trabalhadores da quinta é 350.000 dólares zimbabweanos (aproximadamente 3,00 dólares americanos) por mês.20 Também há outra coisa que acontece… Os fazendeiros brancos que já foram uma vez os fazendeiros Zimbabweanos… eles conseguiram ter algumas quintas lá na África do Sul. Se tu lhes pedires emprego, eles perguntam de onde é que tu vens. Em 2004 eu estava com o meu amigo, o fazendeiro perguntou ao meu amigo se ele era um Zimbabueano e no momento que ele disse, ‘Sim’, ele foi morto por uma arma. Quando a polícia veio perguntar [ao fazendeiro branco] porque é que ele tinha feito isto ele disse, ‘Eu pensei que era um babuíno no meu campo.’ Portanto esses fazendeiros eles tratam-nos com brutalidade.21 Eles vão dizer vocês são aqueles que nos expulsaram do Zimbabwe, portanto o que é que querem aqui? É muito doloroso porque nós não sabemos nada em relação aos assuntos deles. Nós só estamos esfomeados. Porque aqueles que os expulsaram, esses são diferentes de nós. Esses estão a ganhar uma boa vida. Nós só estamos a procurar uma situação melhor. P Nós caminhámos para fora da reserva de caça, portanto às vezes nós fugíamos dos brancos que nos queriam dar tiros com as armas deles porque eles iam dizer que nós somos aqueles que entrámos na reserva de caça deles e matámos os animais e os vendemos aonde estamos. Portanto às vezes nós caminhamos com Deus mas há outras vezes que o diabo quer interferir aonde nós estamos a caminhar com Deus.22 M Um rapaz magro e alto, vestia calças compridas de caqui que estavam sujas de tanto limpar as mãos nelas antes e depois de refeições que as tomava apressadamente. Alegre, calmo e relaxado, ele falava abertamente e ria-se corajosamente quando recontou o seu suplício. Ele está ansioso de voltar a casa apesar das dificuldades que ele vai enfrentar. 7 20 As crianças, particularmente os jovens adolescentes, passam frequentemente por um mau bocado na cadeia, e são vulneráveis ao abuso sexual. Eles não têm meios de contactarem alguém que as possa ajudar. Este rapaz, que foi abandonado por um adulto que o acompanhava, tinha um número de telefone para contactar os seus pais, mas não o autorizaram a o fazer. N Em termos da lei, eles eram duros porque a lei sobre saltar fronteiras declara que não é suposto nós passarmos muitos dias no trongo… (este rapaz ficou lá durante cinco semanas).23 Nós éramos tratados como lixo, e isso era contra a lei. Se fosse possível o polícia superior devia seguir o caso e dizer-lhes as leis sobre como lidar com os saltadores de fronteiras, nas cadeias. Eles não nos davam comida. Quando tentámos dizer-lhes que o tempo para nos deportarem já tinha passado, eles iam dizer, ‘Isso não é o nosso trabalho. O nosso trabalho de te prender é mais do que suficiente.’ Eles iam mentir-nos sobre quando é que nós íamos ser libertados. Eles iam dizer ‘hoje’ e quando chega hoje, eles não nos libertam. Os bandidos [i.e. os prisioneiros que não são saltadores de fronteiras] com quem nós ficámos levavam a nossa comida e às vezes a polícia negava dar-nos comida. Os verdadeiros prisioneiros iam ter comida dos seus familiares, boa comida. Às vezes aqueles que eram gulosos e queriam comida iam recebê-la. Chegado o anoitecer, diziam-lhes, ‘Vão e tomem banho’. Depois disso eles iam dizer, ‘Pela comida que eu te dei, este é o trabalho que eu quero que tu faças esta noite.’ É por este crime que vais morrer… Eles vão-te fazer de mainini. Quando chegava a noite, eles fazem-lhes como se elas fossem mulheres, quando eles são homens. A polícia podia saber mas porque eles os conhecem [aos prisioneiros] e entendem-se bem, eles não os chateiam com isso. (Este rapaz adolescente disse-nos que ele não sofreu assim, mas é evidente que ele ficou muito afectado com isso). Não, eu vou ser uma testemunha, nunca me aconteceu a mim, mas sim aos outros. Como outros zimbabweanos eles iam levar porrada e isto [sodomia] ia-lhes acontecer. Eles também iam apanhar, e o seu dinheiro ia-lhes ser roubado, e eles iam ficar a lavar roupas. O processo de atravessar a fronteira ilegalmente e de ser preso (ou não), são ambos susceptíveis à actos de corrupção. Eu reparei que o que a polícia queria especialmente era dinheiro. Na hora em que eles te apanham eles podemte perguntar se tu tens dinheiro. Se não tens, é quando eles te vão prender, mas se tens podes dar-lhes e eles podem mesmo escoltar-te para onde tu queres ir. Apesar da provisão da lei Sul-africana,24 B determinar que a pessoa passe 34 dias na cadeia, as autoridades podem achar, no entanto, que o encarceramento serviu o seu objectivo: Eu não quero voltar… voltar uma segunda vez sem um passaporte ou BI ou visto? Eu não quero voltar porque eu sei que o tempo que vou lá ficar é miserável. Quando eu voltar para casa eu vou dizer aos meus pais que não há um único dia que eu trabalhei porque a minha viagem ficou curta enquanto eu ainda estava na estrada. Portanto eu vou-lhes dizer como é que foi. Eles vão estar agradecidos por eu ter conseguido voltar vivo. 8 21 No entanto, ao contrário de muitas crianças, este jovem tinha um lar que lhe dava apoio para onde ele podia voltar, tinha pais que ele tinha a certeza que iriam entender. Ele também pensava que podia voltar para a escola, ao contrário de tantos outros saltadores de fronteira. O conselho que eu posso dar é, ‘Rapazes, se vocês pensaram seriamente nesta viagem, vocês precisam de passaportes, BIs, autorizações de trabalho, para mostrar que vocês podem trabalhar num lugar como a África do Sul. E, quando passarem para o lado de lá, vocês precisam de ir com muito dinheiro, para poderem pagar à polícia.’ Os problemas foram um pouco muitos… Tu podes encontrar um problema como por exemplo não seres capaz de arranjar comida; ou tu queres ir para casa rapidamente e a polícia recusa-se a deixar-te passar porque o número de pessoas [deportadas] ainda não é suficiente. Outro problema é quando tu queres ir para casa, eles podem-te dizer para esperares pelos do Ministério do Interior25 para te virem buscar… E se tu estiveres na cadeia, eles podem dizer, ‘Aqui, nós tratamos de vocês como animais.’ Eles queriam frustrar-nos a toda a hora. Há muitas crianças que regressam à África do Sul, sem se importarem com o número de vezes que são repatriadas. Eu comecei a ir à África do Sul no ano de 1999, quando eu tinha dez. Eu fiquei durante dois anos e eu fui preso e mandaram-me para casa. Eu voltei de novo em 2003 e eu trabalhei. Eu fui preso de novo em 2005, mas eu fui de novo em 2006, e eu fui preso outra vez e deportado em Janeiro de 2007. Eu voltei a ir outra vez em 2 de Fevereiro de 2007. É muito duro. Mas quando nós fomos presos, nós deixámos todas as nossas roupas e tudo o que tínhamos. Foi por isso que eu me esforcei para voltar para ir buscar as minhas roupas porque eu trabalhei muito duro para ter estas roupas. Eu posso vendê-las para arranjar comida. Se eu não for, isso já é outra história. Voltar lá é a única opção. A boa parte disso é que se chegamos à África do Sul, no mesmo dia que chegas, no mesmo dia arranjas emprego. Se eu ficar aqui eu vou acabar por ser um ladrão. Portanto eu tenho que ir. M Além de precisarem de apoiar as suas famílias, a atracção de adquirirem bens e roupas que lhes confirirão um certo estatuto nas suas familías e nas suas comunidades exerce uma enorme pressão sobre os jovens, que embora resilientes acabam cedendo pressionados pela pobreza. Infelizmente, isto gera um ciclo de informação deturpada porque, aquelas que regressam, mesmo que tenham passado por muitas dificuldades, desejarão confirmar as expectativas criadas aos seus familiares e amigos. Quando tu estás na África do Sul, é como se estivesses no Reino Unido… toda a gente quer ir… Portanto, se tu estiveste no sul e vais ao Zimbabwe passar férias, eles consideram-te como uma pessoa com dinheiro. Eles chamam-nos njibas… pessoas com dinheiro de verdade… E aqui na África do Sul tu arranjas tudo muito barato, a um preço mais barato. Portanto tu podes arranjar umas calças nice por 50 rands e depois quando tu vais para o Zimbabwe, tu podes dizer, ‘Arranjei-as por 400 rands’, e tu sabes… eles pensam que tu és rico e tudo… Ja, é por isso. Ja, eu sei que não é verdade. P Um chefe local pensou muito naquele assunto. Ele não acha que nós podemos impedir as crianças de partirem, portanto é importante que nós as ajudemos a viajarem em segurança. 7 22 Eles deviam ter passaportes ou documentos de viagem para poderem trabalhar na África do Sul durante dois ou três anos. Isso era uma coisa boa, pois ia ajudá-los com alguma coisa para fazer. Além de fazer trabalho do campo, eu não vejo qualquer outra solução. Para nós, negros, a nossa indústria é a agricultura, esse é o problema. Não há equipamento para fazer agricultura, não há vacas, burros, enxadas. Mesmo que eu encoraje as crianças para não partirem, isso não vai ajudar. Como chefe, eu planeei um programa para órfãos desde o 1º. Ano até ao 7º. Ano. Eu espero ter um lugar construído para eles fazerem diferentes tipos de trabalhos. No entanto, isto não teve sucesso. Se houvesse um moinho triturador, uma soldagem, uma carpintaria, isto ia ajudar as crianças… Eu também estava a dar terra aos órfãos para cultivarem mas os utensílios e as sementes agora são um problema. Nós arámos a terra para o milho. Mas, no ano passado, dos seis hectares que nós lhes demos, apenas dois é que foram arados, agora nós vemos que estas crianças não aguentam. Portanto eu e a minha família para ajudarmos, a carga também se torna demasiado pesada. … Eu gostava que nós pudéssemos arranjar um motor porque há lá um furo. Então a terra pode ser arada para as crianças tirarem alguma coisa dela. Se eu não fosse pobre, eu punha um motor no furo eu próprio, e plantava ali vegetais para a sobrevivência dos órfãos. O apoio das Agências Internacionais para os projectos de desenvolvimento de meios de sustento para as crianças e comunidades do Zimbabwe pode ser um passo na direcção certa, mas para muitos jovens estudantes que trabalharam duro para conseguirem alcançar os seus níveis secundários e não têm nenhuma possibilidade de emprego, a África do Sul ainda parece ser a melhor opção. O trabalho oferece dignidade e respeito, o desemprego e uma existência precária não é uma alternativa. Algumas crianças, no entanto, sentem que as dificuldades que encontram não compensam, mas estas ainda são uma minoria, e são normalmente aquelas que têm famílias que as possa sustentar. Uma vez eu tirei um curso sobre operação de máquinas para o projecto de feijão de soja. Eu posso voltar e apanhar esse emprego porque a viagem para voltar para o Sul custa o mesmo dinheiro que eu vou ganhar a trabalhar no projecto. K A única coisa chata é que eu não encontrei trabalho e a fome foi dolorosa. Foi a mesma coisa que se tivesse ficado em casa, eu não conseguia arranjar um trabalho. É só que eu fui preso antes de eu ter o dinheiro para fazer tudo o que eu quero fazer. Em casa é melhor – mas tu não vais ganhar dinheiro para comprar o que tu queres. P Eu vou dizer aos outros que querem ir para a África do Sul, ‘Não vão com uma pessoa sem um veículo. Vão com alguém que tenha um veículo. Ele vai-se virar contra ti. Quando estiveres a meio caminho, eles vão-te abandonar ali no mato. Sem mesmo um cêntimo, sem nada. Eu vou chegar a casa e dizer aos outros, ‘Não fujam de casa porque vai ser um problema. Vocês vão fugir e meter-vos em problemas iguais àqueles em que eu me meti’. M 8 23 Nós gostávamos se as coisas aqui no Zimbabwe fossem boas, nós não podíamos ter ido lá para a África do Sul, porque os problemas que enfrentamos são muito perigosos. Outras crianças estão a morrer na floresta. Os pais estão a dizer, ‘O meu filho está na África do Sul e ele morreu há muito tempo.’ N Vamos concluir este capítulo com uma história completa, porque esta abarca muitas das razões pelas quais as crianças e as pessoas jovens se sentem forçados a irem a África do Sul. Trata-se da história de uma criança órfã, à semelhança do que acontece com uma em cada quatro crianças no Zimbabwe.26 Ele tem dezasseis anos de idade e vive com uma avó que já não consegue trabalhar nem o apoiar. Ele anseia ir a escola, pois considera esta a única maneira concebível de ganhar a vida no futuro. Adicionado ao motivo anterior, ele sente-se envergonhado por não frequentar a escola.27 Ele também anseia fazer alguma coisa pela sua avó, mas o seu rendimento de Z$20.000 por mês como pastor, não é suficiente para a sobrevivência.28 Ele é dinámico, ele quer trabalhar para ter um modo de vida e respeito próprio, contudo, todas as oportunidades lhe estão vedadas. D usava um par de calças desbotadas e uma camisete igualmente desbotada. Ele tinha feridas nos seus pés rachados, a sua pele estava desidratada. De facto, todo o seu comportamento era aquele de uma criança com muitas poucas posses, fosse ele água aonde se lavar, ou comida para comer. Ele nunca sorriu e nunca viu nenhum outro futuro para si próprio que não seja ser um pastor. 7 24 ‘Ir para a escola é bom para as pessoas, elas não podem suspeitar que tu és um ladrão.’ Os meus pais faleceram em 1994 quando eu ainda não ia à escola. Nós somos duas crianças na nossa família e eu sou a segunda nascida. O meu irmão está na África do Sul. Ele foi para lá em 2002 depois do 2º Ano. Os meus avós mandaram-me à escola e eu cheguei à 7º Classe. Agora, eu estou a viver com a minha avó em Chilonga. Eu estou a trabalhar como pastor. Para a comida nós às vezes vendemos o gado e cabras do meu avô. Para as roupas, eu tenho que me desenrascar. Se eu trabalhar e comprar as minhas roupas, tudo bem. Às vezes os meus outros tios, que estão na África do Sul, mandam-nos alguma comida… Alguns dos meus tios foram em 2002, outros em 2004. O que os fez ir foi o meu avô ter falecido, portanto não havia mais nada que eles pudessem fazer.29 Era ele que costumava pagar-me as propinas da escola, portanto quando ele morreu ninguém pagou para mim, o que me obrigou a fazer este trabalho. A minha avó não pode trabalhar por causa da idade dela. O pai [o empregador] tem as suas duas esposas, e os filhos dele estão um pouco confortáveis, eles vão à escola, portanto eu sinto-me muito mal porque dantes eu também ia. Agora eu estou a tentar angariar fundos de todas as maneiras para voltar para a escola. Eu também gostava de receber mais dinheiro, para comprar calções para vestir quando for à escola. Eu agora recebo Z$20,000 por mês.30 Eu também estava a pensar voltar31 para a África do Sul porque a minha vida agora não é boa para mim. Portanto, se eu receber, eu preciso de cambiar o meu dinheiro para rands.32Eu vou usá-los para o bilhete do autocarro. Eu acabei de ver outros a irem para lá, no mês de Dezembro, que é o mês em que aqueles que foram para a África do Sul vão voltar. Eles vão ser muito elegantes, enquanto tu estás só a vestir as tuas roupas normais. Eles compram televisões, rádios, e outras coisas bonitas. De novo outros hão-de ir à escola, enquanto eu só estou aqui em casa. Portanto isto fez-me querer ir, para talvez eu poder ter o meu próprio dinheiro e ser elegante e fazer coisas como os outros fazem. M De facto tornou-se claro que D já tinha tentado ir a África do Sul. Eu comecei por trabalhar para poder arranjar alguns rands. Eu então caminhei para Chikwakwala. Eu não fui por Beitbridge. Depois de caminhar, eu apanhei um autocarro e, a partir daí, nós33 apanhámos um camião aberto. Depois, descemos e andámos outra vez a pé. Apenas um bocadinho mais à frente, encontrámos soldados zimbabweanos. Eles apanharam-nos e fizeram-me muitas perguntas, incluindo a razão porque estávamos a ir para a África do Sul. Mandaram-nos dar Z$30,000 dólares a eles e deixaram-me ir. Eu então encontrei outras crianças, juntámo-nos e fomos. Andámos e andámos desde cerca das 3 da tarde até cerca das 11 da noite. Trinta é o número desde aqui mas, à medida que nos aproximávamos da fronteira, o número aumentou para um grande grupo. Nós atravessámos a fronteira. É um arame, portanto levantámos o arame, depois agachámo-nos e passámos por baixo. Se houver polícia, às vezes podemos ser vistos e às vezes não.34 Descansámos cerca das 3 da manhã e acordámos cerca das 6 da manhã. Caminhámos outra vez até chegarmos à África do Sul. Caminhámos durante quatro dias. É muito longe, eu nem consigo explicar como é longe, porque nós vamos estar na floresta. Tu às vezes encontras animais selvagens e às vezes os magumagumas. Nós tivemos muita sorte que não os encontrámos, porque eles podiam ter-nos tirado todo o dinheiro que nós tínhamos. 8 25 Depois de um bocado, de novo entrámos nalguns camiões e prosseguimos até que chegámos. Eu paguei 40 rands, só para ficar com dez rands. Tudo junto eu tinha 50 rands, mas outros tinham qause 150. Portanto, eu comprei comida. Tu podes viver com poucos rands, se tu não beberes cerveja. Depois separámo-nos, outros foram em direcções diferentes. Nós só estávamos a andar à procura de trabalhos. Dentro do nosso grupo havia um que sabia falar a língua Sul-africana. Eles comunicaram e concordaram que podíamos ficar empregados. Arranjámos um trabalho a apanhar alguns tomates, e ficámos numas casas velhas, que foram mesmo construídas para isso. Elas são fornecidas pelo dono da quinta. Quanto a comida, tu recebes quando primeiro ficas empregado; um mês depois, tens que comprar para ti próprio. A tenacidade que é necessária para fazer esta longa jornada, muita dela a pé, não chega a nada, pois o trabalho das crianças é explorado pelo fazendeiro, e elas são reportadas como sendo emigrantes ilegais. Também há uma indicação da determinação e da capacidade que elas têm para agirem por elas próprias, quando elas decidem fazer greve da fome. 7 26 Mas o que aconteceu é que outros35- se eles vêm que é agora o fim do mês – eles chamam a polícia e dizem, ‘Os Zimbabweanos estão aqui. Venham e prendam-nos!’ Então a polícia vem. Portanto isto é também o que nos aconteceu. Eu trabalhei durante duas semanas e eu devia receber 850 rands. Então levaram-nos e puseram-nos na cadeia durante cinco dias. O que fez eles soltarem-nos foi que nós dissemos, ‘Nós não vamos comer a vossa comida, até vocês nos mandarem de volta.’ Eles estavam a dizer, ‘Esperem até vocês serem 150 crianças, então vocês podem ir.’ Dois dias depois eles disseram, ‘Por favor comam, nós deixamos vocês irem amanhã,’ e nós recusámos. No dia seguinte eles mandaram-nos subir nos camiões deles até Beitbridge. Eles disseram, ‘Vocês deviam ir para casa como cadáveres!’ Foi muito doloroso. Nós então fomos mandados para Beitbridge. Quando chegámos lá as mães36 disseram que aqueles que ainda não tinham chegado aos dezoito anos deviam ser enviados para outro quarto aonde lhes deram comida. Perguntaram-nos se queríamos ajuda ou se queríamos voltar outra vez para a África do Sul. Eu decidi voltar para casa. Ao fim da tarde, por volta das 4 horas, recebemos instruções para entrar nos autocarros para irmos para os nossos locais de origem. Nós éramos um número bastante grande, quase 30. Deram-nos 10 kg de milho e 1 kg de feijões. Os autocarros eram gratuitos. Deixaram-nos em Chiredzi. De lá nós tínhamos que encontrar o nosso próprio caminho. Eu disse à minha avó o que tinha acontecido. É por isso que me podem ver aqui. Ela ficou muito triste com isto porque ela estava à espera de uma coisa melhor da minha parte. Foi muito doloroso porque eu queria que, se eu tivesse conseguido, eu podia ter feito alguns melhoramentos nesta casa. Ahh… alguns dizem que isso acontece, mas outros ficam muito envergonhados por nós; eles olham-nos de cima abaixo e dizem, (a voz dele eleva-se) ‘Tu não serves para nada! Porque é que tu não conseguiste!’ Aqueles que sentem simpatia por mim dizem: ‘Tenta a próxima vez talvez tu consegues.’ Eles também dizem, ‘Tenta no mês de Dezembro. É um mês em que há muita chuva e as laranjas vão estar prontas nos campos e encontra-se muito trabalho neste mês.’ Eu só desejo ter dinheiro para eu poder ir à escola. Outras crianças estão a ir à escola. Ir à escola é bom para as pessoas; elas não podem suspeitar que tu és um ladrão. Agora, se alguma coisa acontece, elas dizem, ‘Isto é o rapaz que não vai à escola.’ Uma vez eu fui acusado de roubar uma faca. Eu também fui acusado de roubar um gerador. Há outros lá que foram à escola e conseguiram. Eles estão a trabalhar em empregos bons como a ensinar e serem soldados. Se eu conseguisse ir à escola eu gostava de ser um professor ou um soldado. Foi bom para mim falar com vocês. Eu fiquei muito feliz de vos ver aqui e de ter este tempo para partilhar a minha história, ajuda muito. Endnotes 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Zimbabwe Humanitarian Situation Report, Issue 9. UN Office for the Coordination of Humanitarian Affairs. July 2006. <http://www.reliefweb. int/rw/rwb.nsf/db900SID/AMMF-6SCFSB?OpenDocument> O uso do plural sugere que ela não era a única rapariga a ficar nesta casa desta maneira. Na África Austral, uma risada é frequentemente um meio das pessoas se distanciarem a elas próprias da dor e da humilhação. O uso da palavra ‘agora’ sugere que o sekuru (homem velho) pode de facto não ser muito velho. A esperança de vida de um homem adulto no Zimbabwe é de 34 anos. UN IRIN, 8 de Março de 2007. <http://www.irinnews.org/Report.aspx?ReportId=70584> Na África do Sul, a Lei da Imigração de 2002 (no. 13) (emenda de 2004 No.19), e a Lei dos Refugiados de 1998, são as duas principais leis que governam a imigração. A primeira cobre questões tais como vistos e autorizações de trabalho ou de residência, a segunda define o estatuto dos refugiados como procuradores de asilo e governa a maneira como eles são tratados. Para comentários adicionais veja, por exemplo, Peter Honey no Financial Mail de 15 e 16 de Fevereiro de 2007. Lawyers for Human Rights’ Submission of Comments on the Immigration Bill No 22439 of 29 June, 2001. Portfolio Committee for the Department of Home Affairs, South Africa.. Estima-se que haja aproximadamente três milhões de Zimbabweanos a viverem actualmente na África do Sul. (Alec Russel em The Financial Times, 10 de Abril de 2007.) Lindela é um centro de repatriamento perto de Krugersdorp; é uma instalação de propriedade privada que é o principal campo de detenção e de processamento para migrantes ilegais e sem documentos da África do Sul, os quais permanecem ali até serem repatriados. O South Africa Women’s Institute of Migration Affairs (SAWIMA), o qual está em estreita ligação com o centro, afirma que apanha pelo menos cinco menores desacompanhados no centro, por semana. O representante do SAWIMA disse que as idades das crianças variam entre os dez e os catorze anos de idade e que houve uma criança que foi apanhada no centro com apenas quatro anos de idade. O Centro de Recepção e Apoio de Beitbridge é apoiado pelo Departamento Internacional de Migração, pela Save the Children (Noruega), pelo UNICEF e pelo Ministério dos Serviços Públicos, Trabalho e Assistência Social do Zimbabwe. O Centro tem uma unidade para crianças, para acomodar menores deportados que aguardam a reunificação da família. Nos últimos seis meses de 2006, passaram pelo centro quase 950 crianças desacompanhadas. Desde Julho de 2006, a União Europeia abasteceu o centro com comida, roupa, cobertores e serviços de apoio psicológico a 1,000 crianças. Os fundos também estão a servir para aumentar o número de crianças Zimbabweanas com certidões de nascimento numa série de distritos. Está previsto para Plumtree, no sudeste do Zimbabwe, na fronteira com o Botshwana, um segundo centro de recepção de crianças. (Fonte: UN IRIN, March 8, 2007. <http://www.irinnews.org/Report.aspx?ReportId=70584>) ‘A Lei de Imigração 13/2002 (a Lei) falha em mencionar especificamente os direitos das crianças que são crianças menores e desacompanhadas, detidas em centros de detenção. A falha da Lei em fazer uma provisão específica e adequada para a protecção dos direitos destas crianças, pode levar a situações em que ocorrem violações das nossas obrigações constituicionais e das da lei internacional dos direitos humanos. O problema continuado das crianças detidas no Campo de Detenção de Lindela chama pertinentemente a nossa atenção para isto.’ Veja: Comments on Draft Immigration Regulations to the Immigration Act 2002 (Act No. 13 of 2002) Submitted by the South African Human Rights Commission to the Minister for Home Affairs on 2 June 2003 as per Government Gazette General Notice 1298 of 2003. (http://www.sahrc.org.za/sahrc_cms/ downloads/Immigration%20Act.doc) Muitas crianças (e adultos) na África do Sul sentem xenofobia, e as razões para isto podem não ser muito difíceis de entender. Há, no entanto, outro lado desta história. Veja: Benson, Koni. ‘Solidarity with Zimbabwe: Another Side to the Xenophobia Story.’ International Labour Research and Information Group. Cape Town. August 30, 2007. Apresentado nas Pambazuka News. Disponível em: http://www.pambazuka.org/en/category/ comment/43112 South African Law Commission, Project 110, The Review of the Child Care Act. Executive Summary of Draft Discussion Paper. 2 October, 2001, p. 5-6. Veja comentário de The Weekend Argus (SA), 4 de Agosto de 2007. ‘Refugees thin edge of dangerous wedge for SA and Zimbabwe’, por William Saundeson-Meyer. Ibid. Veja a nota sobre as moedas. Diploma Ministerial 54/2007. Artigo 1. Governo de Moçambique. 8 27 18 General, Agricultural and Allied Plantation Workers’ Union of Zimbabwe (GAPWUZ) 2 de Agosto de 2007. Este salário é para mulheres e homens, trabalhadores casuais e permanentes. As crianças não são encorajadas a trabalharem. O equivalente em US$ foi calculado a uma taxa de câmbio não oficial. 19 Os fazendeiros que dependem da mão-de-obra Sul-africana são hostis aos migrantes Zimbabweanos, responsabilizando-os pelo aumento do crime na província. Alguns fazendeiros falam abertamente de como eles se esforçam para manter as suas zonas ‘limpas de Zimbabweanos’. Human Rights Watch. ‘Unprotected Migrants: Zimbabweans in South Africa’s Limpopo Province’. Julho de 2006. Vol 18. No 6 (a) p.3 20 Progressivamente, há uma preocupação acerca de grupos vigilantes que operam em conjunção com a polícia ao longo da fronteira África do Sul/ Zimbabwe. Os fazendeiros queixam-se amargamente acerca do gado que está a ser morto, roubado ou deixado a vagabundear quando as vedações são persistentemente cortadas, e de haver fogos ateados, e de terem começado progressivamente a fazer a lei com as suas próprias mãos. Cape Times, 2 de Agosto de 2007 21 Tal como a Human Rights Watch notou, ‘A Lei da Imigração é violada habitualmente. Quando estão a apreender estrangeiros suspeitos de não terem documentos, a polícia e os funcionários da imigração falham a verificação da situação e identidade deles, e a polícia e o pessoal militar agridem e extorquem dinheiro aos migrantes estrangeiros. Os funcionários da imigração também detém os estrangeiros sem documentos, durante mais de 30 dias, sem prosseguirem com os procedimentos adequados, e as condições de detenção não cumprem com os padrões prescritos. A lei da imigração não toma nenhumas provisões para os trabalhadores migrantes que enfrentam a deportação para recolherem os seus salários que ficaram por pagar e para transferirem os seus ganhos, poupanças e bens pessoais.’ Op.-cit.p.3. 22 Comentários sobre Draft Immigration Regulations to the Immigration Act 2002 (Act No. 13 of 2002) Submitted by the South African Human Rights Commission to the Minister for Home Affairs on 2 June 2003 as per Government Gazette General Notice 1298 of 2003. <http://www. sahrc.org.za/sahrc_cms/downloads/Immigration%20Act.doc>> 23 O Ministério do Interior da África do Sul. 24 O UNICEF estima que há agora 1.6 milhões de crianças no Zimbabwe que perderam ou um ou ambos os pais. 25 Os números de 2004 sugerem que aproximadamente 33 por cento de todas as crianças Zimbabweanas desistem da escola primária antes de completarem os seus estudos básicos, representando um aumento de aproximadamente 6 por cento nos números de 2001. Não há números actuais disponíveis. 26 20 kg de farinha de milho custam 77.000 dólares zimbabweanos (13 de Maio de 2007). 27 A taxa de desemprego geralmente reconhecida no Zimbabwe é de 70-80 por cento. 28 Na altura da entrevista, isto valia cerca de US$1 no mercado negro. No entanto, com 2,200 por cento de inflação (13 de Maio de 2007), o seu valor diminui todos os dias à medida que aumenta o preço dos bens. Um par de calções escolares caqui, ao preço de hoje, custa 400.000 dólares zimbabweanos 29 Algumas das crianças que foram entrevistadas não revelaram que tinham tentado ir para a África do Sul repetidamente e que foram repetidamente deportadas. Houve indícios de que este tinha sido o caso, ou que seria o caso, e que foram revelados inadvertidamente, tal como nesta instância. 30 A única maneira provável de uma criança conseguir comprar rands será ao preço do câmbio do mercado negro o qual está hoje (13 de Maio de 2007) a 7.000 dólares zimbabweanos para 1 rand. 31 De igual modo, algumas das crianças falaram na primeira pessoa, como se estivessem a viajar sozinhas, e depois mudaram para o plural, sugerindo que elas estavam a viajar como um grande grupo, o que acontece frequentemente. 32 Outra sugestão de várias, de que ele tinha feito esta viagem frequentemente. 33 De acordo com o Departamento Internacional de Migração (IOM), muitas vezes o próprio fazendeiro. 34 As mulheres que trabalham no Centro IOM para deportados em Beitbridge. 7 28 CAPÍTULO 2 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O MOZAMBIQUE A precisar daqueles Rands De Moçambique para a África do Sul Lydenburg Sabie Nelspruit 8 7 8 87 Komatipoort/ Ressano Garcia 7 8 7 8 7 87 8 7 Belfast JOHANNESBURG Carolina 7 8 7 8 7 8 SOUTH AFRICA Moamba MAPUTO 7 8 7 8 Mbabane SWAZILAND ‘Não há emprego aqui, é por isso que vou procurar trabalho lá, para ter dinheiro para comprar muitas coisas.’ ‘Na África do Sul a vida não é como aqui em Moçambique... dormir é dinheiro, comer é dinheiro e até andar a pé é dinheiro.’ As crianças atravessam as fronteiras sempre que considerarem esta como a única solução prática para os seus múltiplos problemas. Elas atravessam a fronteira como uma tentativa de melhorarem as suas próprias vidas ou as vidas das suas famílias. São conduzidas pela pobreza, pelo desemprego, por terem de desistir da escola, por se tornarem órfãs ou por serem abandonadas e por um sentido de missão de que podem fazer alguma coisa por elas próprias. As crianças de Moçambique também atravessam as fronteiras para os países vizinhos, principalmente para a África do Sul, desacompanhadas e ilegalmente, tornando-se vulneráveis ao abuso e à exploração durante a sua viagem até ao destino. Tanto os rapazes como 8 29 as raparigas são muitas vezes maltratados e privados de salários pelos empregadores, tanto no contexto urbano como no contexto rural. As raparigas viajam para Joanesburgo e para outros destinos para procurarem emprego. Aquelas que não conseguem encontrar emprego, e que não podem ou não querem voltar a Moçambique, às vezes recorrem ao trabalho do sexo na rua. Sabe-se que, ao longo da fronteira de Moçambique – África do Sul, existe um bando perigoso conhecido como o Mareyane, que domina o comércio do tráfico de pessoas, viola as raparigas e assalta as crianças. A rapariga cuja história de vida a seguir se apresenta ficou órfã e sem abrigo. Nasci na província do Niassa no distrito de Mecanhelas em 1993. Saí do Niassa com o meu pai quando ainda era muito pequena. A minha mãe morreu no dia em que eu nasci. Então eles levaram-me para a África do Sul. Fiquei lá durante um ano e meio, com a minha tia. Então o meu padrasto, o marido da minha tia – chamo mãe à minha tia pois foi ela que me criou – disse que não queria ficar mais comigo. Ele maltratava-me. Costumava bater-me. Então ele mandou-me para vir viver com a minha avó, em Maputo. Nessa altura o meu pai tinha morrido. Então eu ficava lá na Matola, com a minha avó. Mais tarde, ela adoeceu e então ela também morreu. A casa aonde vivíamos era alugada e então os donos quiseram a casa. Durante muito tempo, a minha mãe mandava dinheiro para podermos pagar a renda. Então chegou o dia em que não mandaram dinheiro e os donos da casa tiraram as nossas coisas e mandaram-nos embora. Alguns vizinhos ficaram comigo durante alguns dias e depois disseram que não havia condições para eu continuar assim lá com eles. Portanto eu costumava andar nos mercados, a pedir emprego para ter dinheiro, para comprar alguma coisa para comer. Então pensei em ir para a África do Sul. Pensei que ia chegar à fronteira e pedir às pessoas para me levarem à casa da minha mãe. Porque era melhor viver com eles do que ficar na rua – mesmo apesar de meu padrasto me bater. O As crianças constituem aproximadamente 50 por cento dos vinte milhões da população moçambicana. Os órfãos estão numa categoria de alto risco quanto à migração interna e à migração transfronteiriça. O destino preferido das emigrações é, na sua maior parte, a África do Sul. Dos 1.6 milhões de órfãos no país em 2006, mais de 380.000 perderam os seus pais devido a doenças relacionadas com o SIDA. Prevê-se que o número de crianças órfãs aumente para 626.000 em 2010. Em 2006, a taxa nacional de prevalência do HIV & SIDA era de 16.2 porcento. 1 As crianças que não vão à escola esperam começar a trabalhar enquanto são ainda muito novas, e o mesmo se espera delas. Eu tenho catorze anos e vivo aqui no Chókwè. Fui para a África do Sul em 2003, com os meus três amigos. Fui daqui para a África do Sul devido ao sofrimento. É por causa da falta de trabalho aqui, e ouvi os meus amigos dizer que há trabalho lá e por isso eu decidi ir para a África do Sul. L 7 30 É raro as crianças terem passaportes, embora pareça que seja mais fácil para um jovem obter um passaporte em Moçambique do que no Zimbabwe, e os Moçambicanos já não precisam dum visto de entrada a África do Sul. Precisam, no entanto, duma autorização de trabalho, se obtiverem trabalho. Mesmo assim, até serem detidas e repatriadas, 2 a maior parte das crianças com poucas posses não pensam em tentar obter um documento legal. Isto torna-as dependentes dos ‘facilitadores de travessia’, que ganham a vida por levar as pessoas para atravessarem as fronteiras. Os facilitadores são conhecidos como os mareyanes ou zawarazas. Em relação a estes, aventa-se a hipóteses de serem jovens que trabalham numa agência ou são bandidos perigosos que estão envolvidos no contrabando e no tráfico de pessoas. As pessoas são ajudadas a atravessar a fronteira mediante um pagamento. Eles sabem como explorar o sistema, subornar os oficiais corruptos e a polícia da guarda fronteira, sabem cortar as vedações e facilitar a travessia ilegal da fronteira. A perspectiva dum zawaraza’s3 Sou zawaraza aqui. Estou a tentar levar a minha vida e ajudar a vida dos meus irmãos... Eu estou a fazer mukhero.4 Atravesso a fronteira para trazer coisas mas epá mano … esses polícias comunitários e as alfândegas estão-nos a tratar muito mal pá. Pedem dinheiro. Cada dia pagamos dez randes, vinte meticais, para ficar aqui a vender coisas e a fazer o nosso negócio. Costumavam bater-nos … (aponta para um colega com cicatrizes na cara). Nós não temos passaporte. (Risos) Só falamos com os guardas e eles deixam-nos entrar. É claro que, quando sairmos, temos que dar um pouco de dinheiro a eles. Quando eu pago hoje eu posso jobar 5 todo o dia até amanhã. Há uns dias em que ganho 300 meticais, outros dias 200 ou 100, tudo depende dos dias. Até ajudo outras pessoas a atravessar para o outro lado, no mato ali. A partir de Moçambique é cinquenta meticais; aqueles militares, além, cobram cinquenta rands. Eu levo-os do mato além em Moçambique para o outro lado lá. Eu costumo dizer que quero 150 rands. A pessoa costuma dar-me cinquenta rands cá em Ressano e outro 100 quando chegamos a um sítio aonde eles apanham o carro. Deixo-te lá com um mensageiro que tem um chapa para a África do Sul. Não aparecem muitas crianças aqui, só putos com mais de quinze anos. Esse putos chegam nos grupos deles. São muito espertos, fazem como a gente faz também. Encontrei um miúdo no comboio na estação e o puto disse, ‘Mano, eu aqui onde estou mal, quero ir para a África do Sul. Tenho taco para te pagar.’ Este puto tinha dezassete anos e eu disse, ‘Epá, como eu estou a ver as coisas, tu és o meu irmão, não é? Basta teres 100 rands.’ Entrámos aqui mesmo (indica um matagal uns 200 metros a oeste o portão da fronteira). Comprámos refrescos na estação. Pegamos três caixas cada um e depois fomos embora. Então eu disse que não é preciso pagar-me 100 rands, mas só 50 rands porque tu também carregaste as caixas.’ Eu não quero [um passaporte] porque sou um bandido daqui mesmo (risos). Não quero … não quero viver lá na África do Sul. Porque é aqui que estou a fazer taco. Quando eu vou lá e tenho um job...? Esperar um mês para receber dinheiro! Epa mano, nem pensar! No momento certo eu vou pensar “agora chega” e vou acabar mesmo. Vim para aqui quando tinha quase dez anos. Mas vou a Inharrime visitar a minha família. Fugi de casa. Eles queriam-me bater porque eu não queria ir à escola. Primeiro eu fui para Maputo, os meus tios também me bateram e disseram-me ‘volta para casa.’ Pedi dinheiro à minha tia, dizendo que queria voltar para casa, levei este dinheiro e fui para Ressano. Não queria voltar para Inhambane nenhum. Em qualquer sítio aonde eu podia chegar, eu ficava. Até agora eu tenho 3500 Mt, que vou levar para casa. Quando vou para lá, ofereço uma média e um maço de cigarros ao meu pai. Ele não fala muito. Ele só diz [quanto às suas razões para primeiro fugir de casa ] ‘Meu filho, acabou. Era um problema de há muito tempo’ (mais risos). Agora vivo em Tavene, estou a alugar uma palhota a 100 MT por mês. Vivo com o meu irmão e a minha tia. 8 31 Os auto-designados facilitadores são, muitas vezes, exploradores desalmados. De acordo com um guarda da fronteira, ‘Eles enganam os jovens, dizem que as condições de vida do outro lado são melhores do que em Moçambique.’ Os polícias cobram para levar os crédulos e os desesperados para o outro lado mas, além disso, eles muitas vezes ‘roubam o dinheiro e os celulares dessas pessoas e deixam-nas entregues à sua sorte. As vítimas regressam como uns desgraçados.’ No entanto, existem muitas pessoas que não conseguiam atravessar a fronteira ilegalmente, sem a ajuda dos marianos (mareyane) ou zawarazas, que sabem quais são os oficiais a subornar, aonde cortar a vedação e como evitar os guardas. Na zona fronteiriça do Distrito de Nkomazi, os mareyane estão envolvidos no contrabando de pessoas. São conhecidos por, à força, roubarem dinheiro e haveres de emigrantes, por violarem raparigas e mulheres e até por matarem crianças. A Organização Internacional para a Migração afirma que tais bandos, que constam de homens moçambicanos e swazis, também estão envolvidos nas actividades de tráfico de pessoas, e que recrutam activamente em distritos tais como Moamba e Magude e na província de Gaza em Moçambique. Oferecem emprego, dinheiro, uma educação, uma vida melhor, ou casamentos a raparigas e mulheres com idades entre os 15 e os 45 anos, como forma de as atrair para atravessarem a fronteira sul-africana. Na África do Sul, as raparigas e as mulheres são vendidas individualmente e ‘muito baratas’ a homens locais ou moçambicanos. Nas casas dos seus compradores, elas vivem em condições de servidão diária, que muitas vezes se caracterizam por trabalho doméstico forçado, abuso físico e violência sexual..6 Saímos da casa de chapa até Ressano. Cortámos o arame e aqueles marianos cortam paus e levantam a vedação para cima, até haver espaço suficiente para uma pessoa poder passar por baixo. Passámos e dormimos perto do rio Incomáti. Essa é a coragem de um homem. Pagámos 170 Rands por pessoa. Depois, aquele que nos estava acompanhar deixou-nos numa garagem já no lado da África do Sul. Depois apanhámos um minibus até à estação e apanhámos o comboio para Joanesburgo. N No Zimbabwe, as crianças ainda querem ir à escola mesmo estando o sistema de educação deteriorado e sabendo que a perspectiva de emprego muito baixa; ainda assim subsiste a crença de que a educação oferece um caminho para fugir à pobreza. Muitas crianças Zimbabweanas apenas migram quando não têm mais nenhuma esperança de frequentar a escola. Em Moçambique, as várias crianças que foram entrevistadas parecem ser mais indiferentes. O meu irmão convidou-me para vir para a África do Sul, dizendo que lá vou ter uma vida melhor do que aqui na Moamba. Também a escola, eu não estava a ver rendimento em continuar. Em vez de ficar sentado em casa decidi ir com o meu irmão. Q Eles acreditam que devem encontrar o seu futuro através do fornecimento da força do trabalho num país que possa criar tais condições. 7 32 Apanhámos o comboio para Ressano. Eu estava com o meu irmão e mais três amigos dele, mas não tínhamos passaporte. O meu irmão pagou a umas pessoas para ajudarem a cortar a vedação da fronteira. Ele pagou 150 rands por pessoa. Tínhamos que passar dois a dois. Atravessar a fronteira demora um dia inteiro. Você precisa ter coragem. Depois de cortar a vedação temos que atravessar o rio Incomati, também tens que ter cuidado para não ser visto pelos mabuno, se não estás mal. Mergulhámos no rio com a água até ao pescoço, depois continuámos em silêncio. Não se pode fazer barulho nenhum. Quando víamos a patrulha ao longe, escondíamos na mata. Andámos à pé. Chegámos a encontrar um soldado que nos exigiu documentos, mas aceitou algum dinheiro. Nós demos-lhe 150 Rands e ele deixou-nos continuar até Komatipoort, aonde dormimos numa garagem. No dia seguinte pedimos boleia. Quando nos perguntaram para onde, dissemos que queríamos ir para Joanesburgo. Quando chegámos lá alugámos uma casa e lá ficámos, mas alguns dias depois tivemos que sair e ir alugar outro sítio. Enquanto muitas crianças, provavelmente a maior parte delas, decidem deixar as suas terras de origem com o intuito de encontrar outras oportunidades na África do Sul, algumas são persuadidas a fazê-lo por um familiar que já lá se encontra. As motivações que as levam a assim procederem são diversas. Algumas vezes, os familiares persuadem as crianças a emigrar porque desejam ajudar-lhes, outras vezes, porque simplesmente, desejam a ajuda de alguém para trabalhar para eles. Para estas crianças que estão a ser exploradas pelos membros da sua própria família pouco ou nada se pode fazer. Fui trabalhar num salão de cabeleireiro. Foi o meu irmão que me convidou. Ele já está a viver lá há muito tempo, desde 2001. O meu irmão comprava comida. Dava-me 150 rands em cada três dias porque lá no salão dele eu varria o chão, fazia a limpeza… P Esta criança vestia uma camisete desbotada, calções velhos e tinha os sapatos gastos. Estava a carregar um molho grande de palha de aço. Enquanto falava virou-se para o lado, como se não confiasse em nós, mas falou bastante abertamente e segura de si mesmo. Mesmo assim, não simpatizou connosco, nem sequer ousou nos olhar de frente nem mesmo sorrir durante a conversa Quando eu tinha seis anos, o meu pai levou-me para Joni.7 Vivi ali toda a minha vida até eu ter doze. Eu vivia em Hectorspruit [perto de Naas]. Eu ajudava o meu pai a ladrilhar. As pessoas na vizinhança costumavam pedir os serviços dele. O meu pai tem uma mulher sul-africana e eu estava a brigar com ela. Então meu pai deume dinheiro para voltar para Moçambique. Eu vivi em Shamankuklu, uma zona rural; a minha família vivia numa casa feita de ihlanga. Havia seis a viverem na casa, um irmão, três irmãs, a minha mãe e eu. Eu fiquei lá dois anos. A vida lá em Moçambique era boa, com os meus irmãos e irmãs. Abri uma barbearia lá. Poupei o dinheiro da loja e quando tinha 200 rands, peguei aquele dinheiro e vim para este lado, para Naas. Vim com os meus amigos. Eu estava a ganhar a minha vida e ninguém estava a dar-me problemas e eu não estava a ser abusado pela minha madrasta.8 E estava a ganhar algum dinheiro com a barbearia. K 8 33 O aparelho de barbear era do meu amigo. Eu cobrava15 meticais para fazer a barba e 15 meticais para cortar o cabelo. Num dia eu podia fazer 100 meticais. Costumávamos jogar futebol e também cortávamos o cabelo das pessoas e ninguém me deu problemas. Acordava de manhã e fazia o que queria. Esta [outra] mãe em Hectorspruit estava sempre a gritar para mim, por nada. Eu não gostava disso porque eu não lhe estava a dar problemas. Eu só acordava e ia fazer as minhas coisas. Mas lá em Moçambique a minha família não cuidou de mim. Eles não queriam saber se eu tinha alguma coisa para comer ou uma coisa para vestir. Portanto pelo menos eu podia trabalhar e ganhar alguma coisa. Mas eles nunca queriam saber onde é que eu estava, portanto eu pensei que podia vir para cá porque talvez podia encontrar alguém para eu ficar com, então pelo menos eu estava com os meus amigos e podíamos fazer algo. Quando vim de Moçambique para cá, não usei a fronteira, viemos com os marianos. Alguns roubaram parte do nosso dinheiro, então tivemos que andar desde a fronteira até cá, a esta zona. Eu usei um carro desde a minha casa até à fronteira. Eu paguei por isso. Há algumas pessoas na fronteira e você fala com elas e elas vão-te ajudar a atravessar a fronteira ilegalmente e eles estão lá sempre. Você só tem que falar com eles e eles vão-te ajudar. Normalmente, quando chegam mesmo no mato, eles revistam a todos e se tu tens celular ou dinheiro, eles vão-te roubar. Mas eles não te deixam só ali, eles ainda te ajudam a atravessar e a apanhar um carro para te levar aonde tu queres ir. Roubaram o meu dinheiro e o meu celular. Logo quando você sai do carro, há pessoas ali à espera e eles perguntam aonde é que tu vais e eles levam-te pela vedação. Alguns dos marianos têm casas aqui perto de Naas. Do carro ou do táxi, ou daquilo que tu usas para chegar à fronteira, você desce do carro e os marianos estão à tua espera. É na vedação da fronteira que as coisas acontecem. Se eles encontram ali uma pessoa sozinha na vedação, eles matam-na logo. Eles dizem, “Tu estás a tentar atravessar sozinho”. Alguns tentam atravessar sozinhos. Um homem tentou e lutou com eles e fugiu e veio para Naas. Alguns levam-te para as casas deles em Naas e prendem-te. Outros andam connosco, até aqui mesmo. Ninguém usa carro. Eles andam a pé. Mas se tu tens um número de telefone, então eles telefonam aos familiares e dizem que temos o vosso irmão ou irmã ou crianças e vocês têm que nos pagar para soltarmos esta pessoa. Às vezes eles guardam-te numa casa ali perto. Se não tens o dinheiro ou números de telefone, eles simplesmente abandonam-te. Porque há muitos marianos, depois os outros vêm e dizem que você está a atravessar sozinho e então matam-te, mas em geral eles matam adultos, crianças não. Eles usam facas de mato e alguns têm pistolas. Costumam trabalhar com adultos mas na minha viagem da fronteira de Ressano Garcia para Naas nós tivemos três putos novos mas muitos dos outros eram adultos. Não tenho a certeza do que é que acontece nas casas na zona local. Normalmente, logo que tenhas passado a fronteira e eles vêem que você tem dinheiro ou que o teu familiar tem dinheiro, então eles prendem-te e pedem dinheiro. Mas eles só levaram o meu dinheiro e ajudaram-me a atravessar. Então caminhámos para cá, para Naas. Também há uma casa perto da fronteira e eles levam toda a gente para lá, a quem eles roubaram coisas e depois quando está escuro eles andam contigo até à África do Sul. Costumamos andar em grupos, os miúdos com as mulheres e os homens vêm atrás. 7 34 A África do Sul não constitui o paraíso que as crianças pensam que seja. Como disse um monitor no Centro João Baptista em Ressano Garcia, ‘Alguns encontram um bom sítio para trabalhar, mas a maior parte não. Fazem trabalhos pesados em condições miseráveis. Ouvimos falar de muitos casos de pessoas sem documentação que vão trabalhar nas plantações agrícolas. Então, quase no fim do mês, o agricultor chama a polícia, que os prende e os deporta a todos.’ Eles trabalharam durante um mês sem serem pagos e regressam em pior situação do que já estavam quando partiram das suas casas. Eu voltei em Janeiro de 2006, quando tinha treze anos... Epá, é sofrimento... por causa dos polícias, este trabalho não é nada bom é muito pesado... Eu trabalhei nas obras de construção. Carreguei pedras, ferros, este tipo de coisas... E ahh, não pagavam bem, davam 100 rands de catorze em catorze dias... Tás a ver, quando você combina um salário de 400 rands, eles pagavam 200 rands... E o resto? ‘Ah’ diziam, ‘é para a semana’ que nunca chegava. Trabalhávamos das 7 horas às 17 horas. Tínhamos um intervalo para almoço às 13 e 30. Você aí come do seu bolso. Na África do Sul a vida de lá não é como aqui em Moçambique... dormir é dinheiro, comer é dinheiro e mesmo andar é dinheiro. É isso que faz haver sofrimento e depois o emprego não paga bem. [Também] havia muito desprezo, eles diziam que vocês não podem vir para aqui para viver bem na nossa terra e chamavam-nos de magweregwere... P As crianças de Moçambique ou do Zimbabwe afirmaram que a vida na África do Sul ‘não é boa.’ Vivem ‘com medo da polícia’, às vezes são atormentadas ou desprezadas, e o trabalho é duro. No entanto um pouco mais tarde, elas vão manifestar categoricamente o desejo de voltarem a casa porque ‘em casa só há desemprego e fome.’ ‘Ir à escola sem ver dinheiro não traz nada. Quero trabalhar. Não há trabalho aqui, por isso eu quero ir para lá. Na África do Sul, as pessoas vivem bem.’ M Fazíamos pequenos biscates, como lavar carros, e às vezes nas obras de construção. Ficámos lá três anos. Então fomos apanhados pela polícia. Levaram-nos para a esquadra, e depois para o Centro de Repatriamento. Estávamos a espera da hora certa para apanhar o transporte, quando apareceu um carro da polícia e nos exigiram o nosso passaporte e Bilhete de Identidade. Quando viram que nós não tínhamos documentos puseram-nos algemas e meteram-nos no banco de trás do carro. Deram-nos umas chambocadas a mim e aos meus amigos e levaram–nos para a esquadra. Dormimos lá e no dia seguinte levarem-nos ao comboio para Maputo. Até lá, ficámos algemados às cadeiras onde estávamos sentados, nem nos deixavam mesmo fazer xixi... O repatriamento simples das crianças, sem as garantir uma formação que possa desenvolver as suas competências e habilidades quaisquer que sejam, não é a solução para o problema que se rola, pois elas irão de novo se submeter a todo o tipo de tratamento e desvantagens, com o objectivo de ganhar a vida. Eu gostei de estar na África do Sul. Quero voltar outra vez. A vida lá é mais fácil do que aqui porque é fácil apanhar dinheiro 8 35 e podem-se comprar muitas coisas. As pessoas tratavam-nos bem. Mas havia outros que nos gozavam, diziam ‘Machangana, vocês vêm aqui roubar o nosso trabalho e a nossa comida.’ Mas também há muita bandidagem, quando eles encontram Moçambicanos, podem-te matar. Voltámos por passaporte. Fomos presos pela polícia. Ficámos uma semana na esquadra. Epa, o tratamento de lá é muito mau... Depois essa semana levaram-nos para Lindelani.9 Não é nada bom porque está cheio Moçambicanos, Nigerianos, Zimbabueanos ... há confusão ... Ficámos duas semanas em Lindelani. Depois puseram-nos no comboio e fomos para Ressano. Lá deixaram-nos ali na estação dos caminhos-de-ferro e você desenrasca o teu dinheiro para ir para casa. Eu levei o meu casaco e vendi-o para ter dinheiro para o chapa. Depois deste mês eu quero voltar, mas agora já tratei do meu passaporte. Neste momento, não faço nada, só passear. Aqui não há trabalho, é por isso que eu vou para lá procurar trabalho na África do Sul, para ter dinheiro para comprar muitas coisas. N Embora as interpretações do tráfico de pessoas possam variar, parece ser consensual a ideia de que o tráfico de crianças se está a tornar um problema cada vez maior na África Austral. Um estudo de 2003 sobre o tráfico na região, conduzido pela Organização Internacional de Migração, estimou que há anualmente 1.000 mulheres e crianças moçambicanas que estão a ser traficadas para a África do Sul, para a exploração sexual.10 Estima-se que exista actualmente no Zimbabwe 200 crianças por ano que são persuadidas a atravessar a fronteira por adultos que, através de promessas falsas de uma vida melhor, as seduzem a viajar. Contudo, no local de chegada, elas são forçadas a trabalhar ou a praticar a prostituição. As estatísticas apresentadas podem ser consideradas provisórias devido à natureza clandestina deste fenómeno bem como à falta de capacidade adequada para fazer face a esta situação. A nossa investigação não se concentrou sobre o tráfico de pessoas, embora reconheça que possa haver uma inter relação entre as crianças desacompanhadas e sem documentos que atravessam as fronteiras, e o tráfico das mesmas. Mesmo assim, ouvimos histórias de crianças que tinham sofrido em consequência do tráfico. Esta é a história de Z, uma criança magra e frágil de quinze anos, tímida e reservada cuja a sua experiência a marcou bastante. Tenho quinze anos e vivo no Hókwe. Eu deixei de ir à escola na sexta classe porque eu tive este bebé que agora tem 3 meses. Eu tinha passado para a sétima classe. Vivo com os meus pais e mais seis irmãos aqui.11 Fui para a África do sul com um homem em 2005. Ele vive em Mapapa. Ele disse-me que ia arranjar emprego para eu trabalhar. Eu estava em Xilembene e conheci-o, quando ele perguntou se eu queria ir para a África do Sul, eu disse ‘Não’, e ele disse que era para eu ter um bom emprego e que me vinha buscar no dia 9 de Fevereiro. Eu disse, ‘Sim’, e ele veio buscar-me para ir com ele. Escondeu-me atrás do banco do carro, mostrou o seu passaporte e passámos. Havia outras pessoas também ali sentados atrás [do carro], mas eram todos adultos. E quando eu cheguei lá na África do Sul ele disse que ia buscar coisas para eu vender, mas ele quando ele se levantava de manhã só levava o carro e ia-se embora. Fiquei muito tempo e umas semanas depois ele disse-me que não me ia dar nada para vender. Eu disse ‘Afinal? Eu vou fazer maneira de ir à polícia pedir para me levarem para Moçambique.’ Ele perguntou-me se eu queria estudar e eu disse ‘Sim’, então fomos juntos à escola e eu matriculei-me para a sexta classe na escola de Koosville. Mas algum tempo depois ele disse que eu tinha de voltar para Moçambique para ir à escola. M 7 36 A vida lá na África do Sul não foi boa. É porque ele não me dava comida na casa da Mana Suzete. Quando ele saía de manhã, não me dava nada para eu vender e só voltava à noite. Depois ele disse que era para eu ser a mulher dele e queria obrigar-me a ter relações com ele … Tinha um quarto onde estava a dormir a Mana Suzete e ele entrava no quarto e dizia à mana para sair para ele ficar ali comigo.... eu negava e chorava e depois ele ia-se embora.12 Então eu fugi. Ele não estava lá e eu saí. Não levei nada... Porque eu vi que ele queria para eu ser a mulher dele e não me tinha dado o emprego que prometeu quando me levou daqui, Hókwe, para lá... Fui à polícia. Eu disse que queria conversar com eles para pedir para me levarem de volta para Moçambique. Eu disse que não queria voltar para a casa dele. A polícia acompanhou-me para o Centro. Eu fiquei numa casa com outras pessoas e um dia apanhámos o machibombo para casa. Eles não nos trataram mal... No próximo ano, quando o bebé crescer um pouco, mesmo este ano, eu gostava de ir à escola. Quero trabalhar, para ser professora. [Agora] sinto-me melhor porque tenho mais alguém para falar. Contei aos meus pais e às minhas amigas o que me aconteceu a mim. Gostava aquele tempo em que eu estudava. Mas lá na casa daquele senhor, não gostei porque não me dava comida e queria para eu ser a mulher dele. 8 37 O tráfico de pessoas resulta da pobreza, do desemprego, dum aumento do crime internacional, do baixo estatuto social das raparigas, da falta de alfabetização, da legislação inadequada ou não existente e duma fraca execução de lei. Geralmente, o tráfico costuma intensificar-se em situações de guerra, de desastres naturais e de violação generalizada dos direitos humanos. O sistema do tráfico de crianças funciona através das famílias bem como através de redes criminais internacionais, altamente organizadas. Uma definição do tráfico na legislação internacional foi providenciada, pela primeira vez, pela Convenção da ONU Contra o Crime Organizado Transnacional através do Protocolo da ONU para Prevenir, Combater e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças (2000). A partir da assinatura da protocolo, este assunto tem gerado consideráveis preocupações na África Austral, por parte dos governos, das agências internacionais e das organizações da sociedade civil nacionais. Alguns governos fizeram progressos no esboçar de legislação contra o tráfico, o que é um passo positivo, no entanto a implementação e a execução destas leis, após serem aprovadas, será um desafio a enfrentar. O Governo de Moçambique é o primeiro na região a esboçar a legislação específica para combater o tráfico, a qual se espera que entre em vigor em 2008. X é uma rapariga de doze anos. Ela falou suavemente quase que a sussurrar., mas quando falava sobre o seu pai, a sua cara radiava. Ela tem estado num abrigo na Suazilândia, desde Novembro de 2005 e tem que ficar ali até o caso dela ser ouvido no tribunal. Ela frequenta a escola e está neste momento na terceira classe. Nasci na Suazilândia. Na aldeia de Bashele. Eu estava a viver ali muito bem com Baba, sissi, buti, buti, buti – irmãos, demasiados para eu os conhecer a todos na minha cabeça. A minha mãe morreu. A casa aonde vivi com o meu pai era uma casa boa. Tinha três quartos e era feita de tijolos. Eu consigo lembrar-me dela. Eu só lavava a loiça, os meus irmãos organizavam a água e a minha irmã cozinhava e cuidava de nós todos. Foi bom porque eu jogava com os amigos. Jogávamos à amarelinha e ao jogo da macaca (mkonko). [Sorrisos.] Cantávamos uma canção enquanto jogávamos à amarelinha. P 7 38 7 Vamos para lá, lá, lá, A mãe de Sbeke já não está, está está 8 Eu tinha dez anos quando saí de lá. Fui roubada por uma gogo, que era da minha família pelo nome mas não na realidade e ela não pediu a autorização do meu pai, portanto ninguém podia perguntar ‘Aonde vai com a minha filha?.’ Ela simplesmente levou-me. Eu vivia neste lado da rua e a avó naquele lado. Um dia ela chegou cedo de manhã e a minha irmã e irmão não estavam e o meu pai estava no serviço, estava só eu. A avó disse-me, ‘Vamos embora.’ Eu concordei e nós saltámos a fronteira e simplesmente viemos para a África do Sul. Levou-me assim, sem nada; não trouxe uma mala com roupas. Fomos de táxi. Então o táxi deixou-nos e saltámos a vedação. Eu estava sentada no táxi, pensando ‘Aonde é que vamos?.’ Estava preocupada. Dantes eu confiava naquela avó. Ele vivia perto da nossa casa e eu confiava nela. Quando saímos do táxi na fronteira, atravessámos a pé. Eu não pensava nada, eu ainda confiava naquela gogo. Quando atravessámos a fronteira apanhámos um táxi e fomos até Barberton [uma cidade pequena em Mpumulanga]. Eu fiquei na casa dela e trabalhava para ela. A avó sempre batia-me e, depois disso, já não me sentia à vontade, então fui para uma tia [vizinha] que vivia perto e a tia levou a avó para o induna e a avó prometeu ‘Já não vou bater mais na criança’, mas começou de novo. Na casa da avó tinha que limpar e ir buscar água que estava longe e depois lavar a roupa da avó. Eu trabalhava o dia todo – fui à escola, mas quando ela não queria que eu fosse ela dizia ’Fica aqui.’ Fui para escola de machibombo. Ficava em casa três dias e depois ia à escola e às vezes eu não ia à escola durante uma semana inteira. Ela batia-me mas não me dizia porquê. Não falava nada. A segunda vez a tia decidiu levar-me para a esquadra junto com a gogo, porque ela não parava de bater-me. A avó disse à polícia que a minha mãe já morreu há muito tempo e então eles perguntaram ‘Então e o pai?.’ Eu disse que o meu pai está na Suazilândia e a tia e a polícia tentarem encontrar o meu pai e o meu pai disse à polícia, ‘Procurei tanto tempo pela minha filha!’ Então a polícia disse ao meu pai, ‘Você terá a sua filha depois de terminar o caso contra a avó.’ Vim cá, neste abrigo, para esperar pelo caso. Fiquei muito tempo com essa avó. Agora o que eu quero é ir à escola e trabalhar muito. Quando eu for grande eu quero ser polícia. Também quero ajudar as crianças. Também quero voltar para o meu pai. O meu pai saudou-me quando ele me viu e disse, ‘Minha filha, já não te via há tanto tempo!.’ Ele estava tão feliz (jabulile). Ele veio para a esquadra da polícia em Barberton. Eu pensava, ‘Quem me dera poder ir com ele agora.’ Mas vim para cá. Agora estou à espera. Penso que quando a minha irmã me vê ela vai ficar surpreendida porque eu tinha dez e agora tenho doze. Gostava para outras crianças ouvissem a minha história porque quero dizer a elas que devem ter cuidado com as avós que não são avós verdadeiras. Não podem ir em nenhum sítio com ninguém. Tenho quinze anos de idade e vivo aqui no Chókwè. Fui para a África do Sul em 2000, com um moço que me enganou. Até deixei de estudar por ele. Estava na sétima classe... Ele prometeu-me casar e quando cheguei lá ele traiu-me e eu fiquei lá de qualquer maneira. Não me despedi da minha família, fugi de casa... Quando chegámos lá ele tratava-me bem mas depois de algum tempo, já não. Ele trancava-me na casa de manhã até ele voltar à noite, do serviço dele... Eu fiquei a passar mal mesmo. Ele batia-me. Passava a vida a bater-me. Quando eu falasse alguma coisa com ele, ele batia-me por causa da outra moça que era amante dele. Alguém que me conhece viu-me ali e veio dizer à minha irmã no Chókwè que a vossa irmã está a sofrer lá naquela terra, e a minha irmã arranjou dinheiro e deu àquela miúda para ela me ir buscar. Fugi. Ele estava no serviço, então essa mana disse, ‘Tens que apanhar a tua roupa e não te despedir’ e eu disse O 8 39 ‘Não. Vou-lhe esperar e despedir porque senão ele vai pensar que eu roubei coisas dele.’ Quando ele chegou eu disse-lhe que eu ia embora e ele disse ‘Não’ mas eu insisti que queria ir para casa. Tive uma criança lá. Agora está cá no Chókwè comigo. Ele não queria que a levasse mas eu levei à força. Ele tinha 23 e eu tinha doze anos. Depois de lhe despedir ele não me deu nem um centavo para voltar. A amiga da minha irmã é que pagou as passagens. Não tinha passaporte portanto usei o passaporte da minha irmã. Tinha muito medo. Só que, prontos, a situação obrigavame voltar para casa desta maneira. Ressano Garcia é uma vila fronteiriça que separa Moçambique da África do sul para onde são deixadas a maior parte das crianças repatriadas da África do Sul. De acordo com um oficial superior da Patrulha da guarda fronteira, a maior parte dos jovens deixados em Ressano Garcia aquando do seu repatriamento nem todos são provenientes daquela zona. Quando chegam, as autoridades verificam os dados deles e depois os soltam. Muitos não são capazes de regressar às suas regiões natais pois a vila de Ressano se localiza no extremo sul do país enquanto alguns repatriados provêm da zona norte de Moçambique, nomeadamente, Niassa, Nampula.. Nalguns casos os repatriados não manifestam a vontade de regressar para junto das suas famílias. Como recurso para a sobrevivência, alguns vendem água, sumos, refrescos e carregadores de celulares nas ruas, enquanto outros se dedicam-se ao negócio de contrabando transfronteiriço como mukheristas. o contrabando consiste no transporte de mercadorias dum lado da fronteira para o outro, ou ajuda na travessia ilegal da fronteira, através de atalhos mediante o pagamento de algum dinheiro, a novos emigrantes para a África do Sul. O Centro de Acolhimento de crianças abriu em Moamba em Julho de 2006. É a primeira casa aonde as crianças que foram “traficadas” podem receber tratamento e permanecer, enquanto as autoridades tentam localizar as suas famílias.13 O Centro também aloja crianças emigrantes vulneráveis, que tiveram dificuldades de diversa ordem na África do Sul. A Amazing Grace Children’s Home (AGCH) é uma organização de base para o bem-estar da criança, em Malelane, perto de um dos principais postos da fronteira para Moçambique, na província do nordeste da África do Sul, Mpumalanga. A AGCH recebeu financiamento da agência internacional para o bem-estar da criança, Terre des Hommes, e mais recentemente está a receber financiamento da Save the Children Noruega. Costumava ser um abrigo para crianças de rua, mas agora aceita outras crianças, que não sejam crianças de rua apenas, que vivem em circunstâncias difíceis, incluindo as que são vítimas do tráfico.14 Em Ressano Garcia e Moamba, há centros para a acomodação das crianças de rua bem como para aquelas que foram abandonadas ou que tentaram atravessar a fronteira. Estes centros providenciam abrigo e educação e, quanto possível, tentam levar as crianças de volta para as suas famílias; contudo, nem sempre é fácil localizar as famílias destas sobretudo quando as crianças se tornaram órfãs quando bebés.15 Não estou a gostar daqui porque estou sempre a fazer a quinta classe. Não porque chumbei, só que aqui não tem outra classe. Também temos problemas com água e é muito longe aonde vamos buscar água com um tchova. Depois sentamos a jogar cartas; também jogo Ntchuva. Em Ressano, tem da sexta até à décima segunda classe, só que no dia em que cheguei lá vieram uns brancos que disseram que o número de crianças já chega e não podiam entrar mais.16 É por isso que quando encontram lá P 7 40 uma criança, mandam-na para Acção Social e depois para aqui neste centro. Os meus tios estão no Niassa. Já não os vejo há muito tempo. Ninguém sabe onde é que eu estou. Uns que chegaram aqui primeiro ainda aqui estão e outros que vieram depois já voltaram para casa, e outros ficaram sozinhos. Eu vejo isso como uma injustiça Ocasionalmente, quando se providencia abrigo e educação, as crianças tentam voltar a tentar atravessar a fronteira para a África do Sul. A minha mãe morreu, o meu pai, não sei onde é que está. Não sei aonde procurá-lo. Tenho 13 anos.... Estou aqui no centro desde 2002. Uns dizem que a vida na África do Sul é boa, mas outros dizem que não é. Dizem que dia e noite muitas pessoas morrem por causa dos bandidos. Eles matam as pessoas. As pessoas sofrem muito quando ganham dinheiro para comer, os outros apanham-no. Eles batem ou até podem matá-los. Eu não quero ir para lá. Eu estou bem aqui no centro. M O Centro João Baptista é um internato para rapazes órfãos, gerido por freiras e por outro pessoal de apoio. Situa-se em Ressano Garcia. As crianças recebem abrigo e comida, educação formal bem como uma formação em habilidades de vida e de sustento. O Centro providencia cuidados e apoio aos rapazes emigrantes órfãos que atravessaram a fronteira para a África do Sul.17 Perguntámos às crianças que tinham sido repatriadas da África do Sul qual era o conselho que deixavam para as crianças que desejam se evadir para aquele país. Podem ir, mas ... a vida lá na África do Sul é muito perigosa. Há pessoas que, quando te apanham, podem-te matar quando tu não tens dinheiro. N Se um miúdo ou um dos meus irmãos quer ir para lá, só precisas de arranjar passaporte. Quando um deles chega na minha casa vou levá-los para lá mas, quando regressam, já não os quero na minha casa porque já não têm dinheiro nenhum. É bom primeiro ter o passaporte e depois ir para lá, para evitar problemas. M Os miúdos não devem insistir em querer ir para a África do Sul sem saberem nada. Pelo menos quando fizerem a nona ou décima classe, eles podem ir. Eu só posso ir quando tiver 20 ou 25. P Diz às outras moças para não aceitarem convites para ir para lá, de pessoas que não conheces, porque depois lá elas vão sofrer … O P Eles têm que ter os passaportes deles, porque entrar ali sem documentos, você vai ficar mal. Não é tão difícil arranjar passaporte hoje em dia. No meu caso, se tivesse tido passaporte não teria regressado e teria arranjado trabalho e sido independente. De acordo com um líder comunitário, os jovens mais velhos muitas vezes influenciam negativamente os outros ao exibirem o seu equipamento áudio, celulares e carros após o seu regresso da África do Sul. Na opinião dele, a ‘terra do rand’ é uma 8 41 ilusão pese embora as crianças se predisponham a abandonar os seus familiares e educação formal para arriscar a vida por lá. Muitas vezes quando descobrem que a ida a África do sul não passou de uma ilusão, já é tarde demais para começarem uma vida honesta em casa o que faz com que recorram ao crime para o seu auto sustento. Embora possa ser verdade que há uma proporção dos jovens emigrantes ilegais que na realidade se tornam criminosos, a nossa pesquisa sugere que a maior parte quer simplesmente ganhar uma vida honesta e que não encontram, em casa, as oportunidades para a ganhar. Parece-nos importante reflectir sobre as facilidades que existem para os reabilitar e reintegrar socialmente quando regressam, voluntária ou involuntariamente, à casa. Nos casos em que as crianças abandonam as suas famílias como elas são recebidas no regresso? Será que se lhes pode providenciar formação que as possa habilitar para o auto-emprego? Visto que, enquanto as crianças quiserem ter uma vida razoável, e não o poderem fazer nos seus países de origem, elas irão continuar a atravessar a fronteira. Endnotes 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 7 42 17 Childhood Poverty in Mozambique: A Situation and Trends Analysis (Summary). UNICEF. December 2006. <http://www.unicef.org/media/files/ Final_SITAN_English_summary.pdf> De acordo com os números mais recentes do Ministério do Interior, cerca de 81,600 Moçambicanos foram deportados da África do Sul, entre Abril de 2004 e Março de 2005. Não há números específicos para crianças. Lawyers for Human Rights’ Submission of Comments on the Immigration Bill No 22439 of 29 June 2001. Portfolio Committee for the Department of Home Affairs, South Africa. Keep Your Head Down: Unprotected Migrants in South Africa. Human Rights Watch. February 2007. <http://hrw.org/reports/2007/southafrica0207/> Zawaraza significa literalmente gozar a vida e levar uma vida arriscada. Neste contexto, zawaraza ou marianos/mareyane refere-se a jovens que estão envolvidos em actividades ilegais e que, contra pagamento, ajudam emigrantes ilegais a atravessar a fronteira de Ressano Garcia/Lebombo. Transporte ilegal de mercadoria em pequenas quantidades para além da fronteira, muitas vezes com o conhecimento das autoridades locais. O Mukhero pratica-se muito em Ressano Garcia e Namaacha. A palavra é uma corrupção da palavra inglesa ‘carry.’ Trabalhar. Derivado da palavra inglesa ‘job.’ ‘Eye on Human Trafficking’, IOM, No. 2, May 2004. Geralmente Joanesburgo, mas significando muitas vezes, como neste caso, a África do Sul. Devem-se realizar mais pesquisas sobre o papel e as expectativas dos padrastos e madrastas. A pesquisa com crianças tem mostrado consistentemente que aqueles raras vezes apoiam os seus enteados e normalmente favorecem as suas próprias crianças, em detrimento das crianças que o parceiro tem dum casamento anterior. Lindela é um centro de detenção na África do Sul. Seduction, Sale and Slavery: Trafficking in Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa. IOM. May 2003. <http://www.iom. org.za/Reports/TraffickingReport3rdEd.pdf> Um estudo do UNICEF realizado em 2003, indica que 18 por cento das raparigas entre os 20-24 anos de idade se casaram antes de terem 15 anos, e 56 por cento antes de terem 18 anos. A idade média para o primeiro casamento no seio das raparigas variou entre as províncias, de 16 anos na província de Nampula para 20 na de Maputo. As raparigas que vivem nas zonas rurais tendem a casar mais cedo do que as suas contemporâneas nas zonas urbanas. Veja Childhood Poverty in Mozambique: A Situation and Trends Analysis. UNICEF. 2006. O facto dela ter uma criança sugere que realmente foi violada, mas a vergonha e a dor eram demais para o admitir a uma pessoa estrangeira. ‘Mozambique: Legislation reviewed to curb child trafficking.’ Integrated Regional Information Network. 31 January 2007. <http://www.irinnews. org/report.aspx?reportid=69831> <http://www.seedsoflight.org/amazing.html> Os centros tentam localizar as famílias das crianças. Às vezes não é possível, quer porque o último familiar conhecido pela criança faleceu; quer porque a criança foi abandonada ou deslocada quando era tão nova que não pode dar informação suficiente para iniciar a busca. O Centro João Baptista em Ressano Garcia de facto só vai até à oitava classe, e não há uma escola pública na cidade que vá até à décima-segunda classe. Scalabrini Development Agency <www.scalabrini.net/development/nav/mozambique.html> 7 7 8 78 CAPÍTULO 3 8 7 8 7 8 7 8 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O Caminhar para Sobreviver Do Zimbabwe para Moçambique ‘Sou o único que resta aqui. O meu pai faleceu em 2002 e a minha mãe em 2005. O meu tio também faleceu. A minha tia é muito velha para trabalhar e comprar roupa e pagar propinas, portanto eu vou carregar coisas para sobreviver.’ ‘Ao deixar a nossa casa, tens que te preparar para seja o que for.’ Katiyo, nome das herdades de chá e café da área, é uma pequena povoação no Vale de Honde, perto da fronteira moçambicana. Tal como noutras herdades agrícolas, a incidência do HIV & SIDA é alta e, como consequência disso, muitas crianças ficaram órfãs.1 As crianças que precisam de um rendimento, para poderem pagar as propinas escolares ou para comprarem comida para as suas famílias, 8 43 KEY Área Florestal Aldeias de Chisuko Plantacão de Chá Açúcar amontoado depois do cruzamento 60 km 30 km Caminhos Escolas Acampamento de Katiyo 7 44 Crianças a atravessarem para Moçambique (Mwere/Pungue Boundaries - Rios (Mwere/Pungue) Estrada principal para MutarePolice Tenda de acampamento da Policia 2 km 5 km 10 km H H H H H H Distancie de Katiyo para Honde Distancie de Katiyo para Panzi Distancie da Aldeia de Chisuko a Panzi Distâncias entre o local e a fronteira Distancia de Chisuko a Katiyo Distancia de outras áreas até a fronteira atravessam a fronteira para Moçambique, servindo principalmente dos comerciantes de mercadorias, tais como açúcar, milho ou tabaco. A sua mão-de-obra é barata e a viagem é longa e muitas vezes perigosa 3.000 dólares zimbabweanos por 20 kg de produto transportado.2 Quando eles têm que esperar muitos dias para receberem o seu dinheiro, eles muitas vezes têm de se responsabilizar pela custos das suas refeições acabando por regressar sem nada às suas casas após uma viagem de cerca de 100 a 140 quilómetros. A avó não trabalha3 e o avô não trabalha, o meu pai não tem dinheiro. A minha mãe não está cá; se divorciou do meu pai há muito tempo, portanto não pensa em nós. O meu pai nem sequer pensa em nos matricular na escola ou em comprar sapatilhas, portanto nós temos que nos ajudar a nós mesmos carregando açúcar. Então compramos livros e capas e tudo o resto. E a avó trabalha para comprar outra coisa como roupa. Às vezes trabalhamos nas machambas doutras pessoas e às vezes vamos a Moçambique, carregar o quê? – o açúcar. A minha avó só nos diz, ‘Trabalhem para vocês mesmos, meus filhos, para poderem sobreviver.’ K Uma rapariga muita tímida, com o cabelo bem capado e um fardamento gasto com muitos remendos. Os seus pés estavam cheios de poeira pois andava descalça. A rapariga parecia estar zangada com a sua mãe por esta não ser capaz de ser uma provedora e para além disso tirar-lhe o dinheiro que ela consegue no carregamento de açúcar. Ela ficou muito emocionada enquanto contava a sua história e nós tivemos de fazer um jogo de cartas com o qual ela se animou a medida que ia ganhando. P A maior parte das crianças vive com os seus avôs e avós porque os seus pais já morreram, alguns de SIDA, e outros, de outras doenças, tais como a malária. Mas essas avós são velhas e não podem cuidar deles, portanto a criança diz, ‘É melhor eu ir e ser um moço de fretes para aquele homem ou para aquela mulher, pois assim ganho para comprar a minha roupa interior...’ Você pode ir pedir ajuda aos teus pais, mas eles dizem, ‘Não temos dinheiro para comida, para livros.’ Então eles dizem, ‘Faz o que fazem as outras crianças.’ E assim tu vais com as outras crianças, para ser um moço de aluguer e atravessar a fronteira. Eu vivo com a minha avó e os meus irmãos. Ninguém nos vem visitar. A minha avó, ela precisa de ajuda porque é velha e não pode cuidar de si mesma; eu é que tenho que procurar comida. Faço isto atravessando a fronteira. Faço isto para arranjar comida e dinheiro para as propinas. Ela já nem é capaz de trabalhar a machamba, pois é demasiado velha. Eu vou a Panzi [em Moçambique] para comprar compras, costumo levar milho. Pedir todos os dias não é bom. Portanto preciso de ir carregar, mas como aluno isso não é bom. ... Os meus irmãos fugiram de casa porque dizem que talvez a avó seja uma bruxa por causa da maneira como os nossos pais morreram ser tão suspeita. M 8 45 A vida não é muito boa aqui. Se dizes aos teus pais que queres ter um livro, demora muito tempo para eles o comprarem. Às vezes, os professores mandam-te de volta para casa, dizendo que temos que ir buscar o livro, mas quando chegas a casa não vais ter o livro. É então que a gente começa a carregar açúcar para Moçambique, para arranjarmos o dinheiro para comprar os livros. R Durante muitos anos, o açúcar tem sido o produto carregado ilegalmente através da fronteira, do Zimbabwe para Moçambique, apesar do tabaco ser também comercializado. Este açúcar, que a gente carrega, é feito cá no Zimbabwe e depois é vendido em Moçambique em grandes quantidades. Eles fazem isso para ter um montante maior, para a gente poder comprar vestidos, sal e condimentos, porque as coisas são bastante mais baratas em Moçambique. Uma vez a gente carregava tabaco. Você está a andar na floresta. Carregamos o tabaco e fazemos uns trocos melhores. Normalmente demoramos duas semanas a ir para lá e duas semanas a voltar. Sim, a andar a pé. Quando estamos cansados, dormimos um pouco. Os donos trazem farinha de milho para cozinhar. Durante a noite, não há ninguém. Éramos quatro miúdos e nenhuma miúda e levávamos o tabaco. Este rapaz de dezasseis anos de idade vestia um uniforme escolar constituído por uma camisa, sem colarinho, de cor velha azul-celeste, uma gravata e calções verdes e calçava chinelos. O seu cabelo era bem curto e elegantemente cortado.apesar de desprovido de recursos financeiros. Ele é um rapaz inteligente e confiante, falava da sua educação e da luta para sobreviver incluindo a necessidade de cuidar da sua avó. As crianças são alugadas pelos comerciantes informais (os compradores), para trabalharem como passadoras dos seus produtos. São pagas quando chegam a Moçambique com a mercadoria, na maioria das vezes depois do comprador ter vendido a mercadoria. Isto pode significar que a criança tem que esperar vários dias para receber o seu dinheiro. 7 46 Há muita gente que carrega açúcar e há muitos compradores que precisam de pessoas para fazer o trabalho para eles. Os compradores terão mais de cem sacos. Alguns deles guardam-nos nas suas casas. Os compradores vão de porta em porta, à procura de pessoas que possam carregar o açúcar para eles. Então eles dizem para irmos às casas deles à noite, a gente dorme lá um bocado e acordamos por volta da 1 de manhã, hora em que começamos a nossa viagem. As pessoas que carregam são muitas. Uns carregam mesmo até 40 kg, de modo que se houver 100 caixas, o número de pessoas pode mesmo chegar a 50. Por cada 20 kg que a pessoa carrega recebe $3,000, mas por causa das necessidades que tens, és obrigado a carregar 30 kg ou 40 kg, o que pode ser suficiente para comprar livros e sal e outras coisas. Normalmente carrego 30 kg, durante uns 50 a 60 quilómetros. K Esta rapariga vestia um uniforme verde, sem botões, rasgado nos sovacos e nas bainhas. Estava descalça. O seu cabelo estava bem penteado. Estava muito jovial e relaxada. Era uma miúda muito forte pois esteve composta durante a conversa toda, mesmo quando se discutiram episódios penosos. Quando o comprador tinha açúcar ele ia procurar miúdos … e a gente dizia, ‘Estamos aqui.’ Se ele tivesse 150 caixas ele ia procurar 150 pessoas. Quando a gente está a andar, ninguém fala uns com os outros ... ficamos calados, temos medo de sermos apanhados pelos soldados. ... se chegamos ao sítio onde devemos falar, é lá que podemos falar. Não andamos em liberdade, não senhora. Atravessamos o rio Pungue três vezes... pela água. Se não consegues atravessar com a tua caixa, pedes a um amigo para te ajudar. Quando chegamos ao lado moçambicano, o comprador vende o açúcar e então ele diz, ‘Aqui tens o teu dinheiro.’ Se queres, podes procurar sal, uns peixinhos secados, seripende and tepwe. Então dizes à tua avó, ‘O que ganhámos a carregar foi isto.’ Ela sabe como usá-lo porque nós miúdos, nós vamos comprar nozes torradas e (risos) Zapsnacks (petisco de batata), não compramos livros. Se o dinheiro estiver com a avó, no dia em que termino o meu livro, ela diz, ‘Eu tenho o teu dinheiro. Vai comprar o livro.’ P 8 47 A caminhada é longa, triste e aterrorizante. Embora as crianças sejam muito sensatas na sua viagem de ida e volta para outro lado da fronteira, é preciso coragem e resistência para a fazer. Os compradores só pagam pelo produto que as crianças entregam. Às vezes elas perdem as suas mercadorias pelo caminho, e assim, não recebem nada; às vezes têm tanta fome quando chegam a Moçambique que gastam tudo o que tiverem ganho em alimentação. Quando estás a sair de casa, tu já estás preparada para qualquer coisa que possa acontecer. Às vezes caímos ou encontramos cobras e somos mordidos. O meu amigo foi mordido em finais de Janeiro. Ele deixou o açúcar e só recebeu pela distância que percorreu. Então dividimos o açúcar igualmente entre aqueles que lá estavam e carregámo-lo. Normalmente enfrentamos problemas de cheias, quando o rio está cheio. Se o açúcar cair no rio, tu tens que pagar por ele. Outro problema é que podes encontrar alguns crocodilos. Falando disto, o meu avô foi comido pelos crocodilos. Aconteceu no ano passado. Ele regressava de Moçambique e o rio estava cheio, não tinha outra hipótese senão fazer um esforço para atravessar. Só o identificámos porque ele primeiro tinha atirado as suas coisas para o outro lado. Nunca mais o encontraram. Quando atravessas, o dono às vezes tem de fugir, então nós andamos pela floresta e ficamos com arranhões. Ficamos na floresta durante um bom tempo. Às vezes encontramos leões, e fugimos ou subimos às árvores. Q 7 48 N Encontramo-nos num local e carregamos o açúcar. Às vezes pesa 20 kg ou …. às vezes 40, o que são duas caixas. … Talvez encontres um rio que está cheio. Alguns podem-se afogar e desaparecer com a água enquanto outros atravessam e continuam. Quando alguém se afoga, ninguém diz, ‘Vou deixar o meu açúcar aqui para ver se consigo ajudá-lo’, as pessoas simplesmente continuam a andar. ... No meio daqueles que andam contigo, não há ninguém que se importe contigo, porque todos dizem, ‘Eu quero ganhar dinheiro para me ajudar a mim mesmo.’ E então tu recebes algum dinheiro e este dinheiro não compra nada. Tu vais estar com fome depois de andares tanto, e portanto podes acabar por gastar o dinheiro todo. Portanto, quando voltas para casa não tens nada. Então amanhã já não vais à escola ...’ A polícia Zimbabweana… se eles te apanham, a regra deles é dar porrada. Não te deixam atravessar a fronteira. Eles querem a fronteira a ser atravessada por pessoas com o quê? – com passaportes. Portanto, se eles te apanham, podem te dizer para saltares como uma rã, com a caixa na tua cabeça. Depois de saltares como rã, com a caixa na tua cabeça ... os pais lá em casa ficarão preocupados porque agora já estás muito atrasado. Quando somos apanhados pela polícia de Moçambique, podemos ficar lá três dias, sem fazer nada ... não discutimos com eles porque é a lei donde? – do país deles. M Tanto os serviços policiais dos dois países, bem como os que operam nas fronteiras dos mesmos, procuram as pessoas que atravessam a fronteira ilegalmente. Quando os carregadores são apanhados, normalmente são espancadas e, em nalguns casos, podem ficar sem a sua mercadoria, nomeadamente, o açúcar e, como consequência disso, o comprador mandante recusa-se em paga-lhes pela viagem. Noutros casos, a polícia pode prendê-las durante muitos dias e durante esse tempo, as crianças são forçadas a fazer trabalhos domésticos. Nos casos em que o comprador mandante é interpelado pela polícia na companhia da criança, ele pode negociar a sua soltura e o que dará possibilidades ao grupo de continuar a sua jornada. Vamos ter medo dos assaltos da polícia. Dizem que somos saltadores de fronteira e às vezes tiram-nos o açúcar. Se eles nos apanham, primeiro dão-nos porrada, nós como crianças apanhamos menos porrada, os adultos são os que levam muita porrada e depois atiram-lhes água para cima, para ficarem bons [i.e. os adultos levam pancada até perderem a consciência]. É muito aborrecido, então tu choras e ficas calado. Depois disso eles deixam-nos sentar, porque somos crianças. Dizem-nos para cantarmos o hino nacional; depois mandam-nos rezar. Dizem que temos que rezar e dizer ao Senhor que estivemos envolvidos num incidente. P Querendo evitar a polícia local, acordamos à 1 de manhã e carregamos o nosso açúcar. Então podemos chegar lá por volta das 13 da tarde. A polícia não deixa contrabandear açúcar para fora do Zimbabwe, nem contrabandear produtos de Moçambique para o Zimbabwe, portanto as pessoas fazem isso como se fossem bandidos; carregam sem a polícia saber, porque eles podem-te prender e bater-te e tirar-te os produtos. Apanharam-me uma vez. É como... tínhamos acordado tarde, ok? Então o caminho que usámos para atravessar ficou conhecido, porque aqueles que foram atacados pela polícia tinham mostrado a picada. Então estávamos quase a atravessar. Foi ao amanhecer, e foi então que encontrámos a polícia que estava lá à nossa espera. Eles apanharam o açúcar e aqueles no nosso grupo que fugiram deitaram o açúcar deles fora. Então ficámos nós, éramos três, e mandaram-nos carregar todo o outro açúcar, além do açúcar que já tínhamos. Levaram-nos para o acampamento da polícia. Bateram-nos e mandaramnos buscar água e fazer outros trabalhos e depois voltámos para cá. Foi muito doloroso, porque o dono disse que não nos podia pagar a remuneração pelo carregamento. Ele disse que tinha sofrido prejuízos. K 8 49 Ele vestia uma camisete e uns calções desbotados, tinha cabelo castanho despenteado. Tinha um ar vulnerável, parecia esfomeado e solitário. Os seus lábios estavam muito secos e nem com as tentativas de os humedecer com a saliva através da língua surtiam o efeito desejado. Manifestava frequentemente o seu desejo de prosperar na vida e a necessidade de ter uma boa formação escolar. 7 50 Saímos de Katiyo … e andámos pela floresta e pelos campos de chá. Chegámos ao rio que se chama Rio Rwera. Atravessámos este rio e quando nos aproximávamos de Moçambique, atravessámos aquilo que se chama tembeya (base de soldados em Moçambique), aonde a gente paga uma taxa. Quando a gente anda na floresta, podemos ver alguns espíritos, fugimos e chocamos com espinhos de árvores e ficamos feridos, e às vezes encontramos uns polícias e levamos porrada. Você tem que aguentar com estas coisas todas. Se o dono do açúcar estiver ali, ele negoceia com a polícia, se o açúcar é descoberto; nós então voltamos ao acampamento e não há dinheiro para o pagamento. Mas se eles falarem e chegarem a um acordo, então nós continuamos com o açúcar. ... Às vezes eles batem-nos e mandam-nos levar o açúcar para o acampamento. Mas se eles negoceiam com o dono eles deixam-nos passar. P A polícia arranjou muitas formas de ameaçar e de castigar, e muitas vezes eles aproveitam-se disso, visto que quando confiscam o açúcar ou fazem as crianças trabalhar nas suas casas ou machambas. Se você fala bem ou mal, a polícia não quer saber, eles simplesmente apanham o teu açúcar ... então eles dizem, ‘Volta para casa!’. Mas se você encontra os guardas da fronteira, chamados os frentistas, eles mandamte andar até muito longe, a baterem-te. ... Se tiveres açúcar e fugires, eles disparam sobre ti... portanto, se tu vires um polícia, sentas aí mesmo, até que eles te apanhem. Estas são as regras em Moçambique. Não podemos fazer nada. Se é para levar porrada, então concordamos com a porrada. Aqueles polícias brigões podem-te dizer, ‘Abre lá o teu açúcar e come tudo.’ ... Se não comeres tudo eles batem-te. M A polícia moçambicana é mais cruel, porque quando eles dão pancada dói mais. As miúdas mais velhas são obrigadas a sentarem-se com os adultos. Eles batem às miúdas cinco vezes e aos adultos batem dez vezes. O açúcar é levado para os líderes deles no acampamento. Os donos vão pensar que fomos nós que roubámos o açúcar deles. Obrigam-nos a carregar açúcar de borla, até pagarmos a nossa dívida. N 8 51 As crianças podem perder as suas mercadorias quando estão a fugir da polícia ou quando a mercadoria lhes é confiscada, mas existem outros perigos. O mudhebhu-dhebhu [a ponte que abana]4 – abana tanto que você pode deixar cair a caixa na água. Uma vez, éramos muitos, e a ponte estava a abanar e as pessoas simplesmente sentaram-se porque não conseguiam manter o equilíbrio. ... Então chegou alguém e assustou-nos e fugimos e deixámos lá as caixas de açúcar. M Eu tinha um balde de milho, a minha irmã tinha dois baldes, outro amigo meu tinha um balde e meio. Atravessámos o Rio Rwera ali, na fronteira. Estava cheio. A água chegava até aos nossos pescoços. Então a minha irmã primeiro atravessou a nossa bagagem toda. Ela apanhou um pau de bambú [para a ajudar a atravessar], e depois ela levava todo o milho para o outro lado. Depois ela levou o meu amigo e eles atravessaram muito bem mas ... conforme nós seguíamos, a pressão da água era demasiada e nós fomos arrastados. Quando pisavas no solo, o solo era arrastado pela corrente e ficavas a flutuar. ... Então percebemos que todos tinham que nadar e conseguimos sair do fundo. Tivemos que voltar a pé para procurar o caminho. (Embora se conte esta pequena anedota com muitos gestos e risos, é óbvio que as crianças se podiam se ter afogado.) P 7 52 O rio tem cerca de cinquenta metros de largura e há algumas pedras muito escorregadias. Às vezes caímos e o açúcar fica molhado e quando isso acontece não somos pagos. O dono diz que o açúcar dele é muito caro. Quando o rio está mesmo cheio, o comprador às vezes procura alguém que tenha canoa. Combina com ele para atravessar e paga-lhe. K Muitas vezes as crianças mencionaram espiritos, ou o seu medo de feitiçaria se torna visível. Pode parecer um aspecto irrelevante mas o seu medo é real bem como a coragem de contar isso. Quando a gente anda pela floresta, podemos ver alguns espíritos. Fugimos e chocamos com espinhos de árvores e ficamos feridos … P R Na escuridão, quando a gente estiver a andar, não pode ver sempre onde pisa e choca com ramos pequenos de árvores abatidas. Às vezes a gente vê espíritos quando passa ao lado de cemitérios. Às vezes podemos cair... é assustador. M As crianças são sujeitas a situações de exploração e risco que um adulto teria dificuldades em os enfrentar . A maior parte deles está, conforme descobrimos, acostumados ao facto de que os seus próprios filhos correm esses riscos. A necessidade de sobreviver domina todas as outras considerações. Carregar mercadoria é sobretudo para os miúdos, mas se um adulto quiser carregar ele também pode carregar. Se tu quiseres carregar duas ou três caixas, tu é que sabes. Os compradores normalmente preferem os miúdos porque os miúdos não são difíceis. Os adultos fazem barulho, andam a discutir quando estão a andar, e quando são repreendidos e nós miúdos nos rimos deles, então eles zangam-se e dão-nos porrada. N As viagens interrompem a educação formal das crianças, não só nos dias em que estão a percorrer grandes distâncias, mas também porque elas ficam cansadas, com fome e muitas vezes de tal maneira doentes que não conseguem acompanhar as lições. Muitas vezes elas também ficam com medo. Katiyo a Honde – 60 km Katiyo a Katiyo Kayiyo Katiyo Panzi – 30 km a a Hauna – 55 km Mutsinzi – 10 km a Alguns voltam de Moçambique com doenças. Porque é difícil haver casas de banho e também é difícil haver água para beber porque... há pessoas que defecam na água e mijam lá também. Eles defecam simplesmente Chuwala – 85 km M 8 53 na água e você bebe dessa água e então apanha várias doenças. E também vais ter problemas do peito por causa de carregares. Também podes não chegar a casa porque as tuas pernas doem. E quanto a dormir, podes pedir na casa de alguém, e eles simplesmente põem-te num quarto com alguns miúdos, mesmo quando és uma miúda. Eles dizem, ‘Entra lá e dorme!’ e tu acabas por ser violada pelos miúdos ... Se tu quiseres gritar por socorro, não há ninguém para te ouvir... Todas as portas e janelas vão estar trancadas. E não há sítio nenhum para ir porque está escuro e tu vais ter medo… e os miúdos assustam-te, a dizer, ‘Se tu gritas, vamos-te matar.’ Portanto algumas voltam para casa com doenças tais como o SIDA, por causa disso. Às vezes a carga é tão pesada que acabas tendo uma doença. Dores no pescoço, dores na coluna e dores no corpo todo. Eu sofria dessas dores de vez em quando. E às vezes a gente apanha malária. P As crianças, desde tenra idade, trabalham como carregadores de açúcar e outros bens. Podes começar a partir dos onze anos mas isso é muito violento para ti. Se calhar tu pesas por aí uns 20 kg e eles mandam te carregar 20 kg. Então não vais conseguir andar e se tu não consegues andar, ninguém espera por ti. O comprador vai-te dizer, ‘Quero receber todo o meu açúcar porque não foi eu que te fui chamar a tua casa. Se tu não sabias se serias capaz ou não de carregar o frete, então porque vieste?’ Portanto só te vais forçar a ti próprio, por estares determinado ... para eu receber o dinheiro pelo qual eu trabalhei. K Há alguns miúdos que começam a ser moços de fretes apenas com dez anos. Dizem-lhes, ‘Ah, tu só vais carregar 5 kg.’ ... se ele carrega aqueles 5 kg e chega a Panzi, e passa lá o dia, ele vai começar a ter fome. Como ele não conhece nenhum sítio onde possa comer, então ele vai comprar bananas e acabar todo o seu dinheiro. E então, depois ter carregado coisas, ele volta para casa sem nada. No dia seguinte, ele diz, ‘Deixa-me carregar a caixa inteira, para ganhar mais.’ E quando ele volta para casa está doente, ou com dores no peito ou está a tossir ou está com as pernas inchadas... de tal maneira que ele vai crescer sem saúde. (A criança que conta esta história contou-a de modo muito dramático, transmitindo a intensidade dos seus sentimentos.) P Para além de estarem ausentes durante muitos dias, as crianças estão, muitas vezes, exaustas e esfomeadas quando regressam. A sua determinação em voltar à escola é “minada” pela necessidade que têm de dormir. Uma vez estando em casa, você diz, ‘Deixa-me ir à escola.’ Talvez tenhas ficado fora durante duas semanas no mato,... Então você diz, ‘Já que estou em casa hoje, deixa-me ir à escola.’ Mas, como voltaste a pé durante a noite, não dormiste nada portanto quando chegas à escola e pões os livros à tua frente imediatamente adormeces. Tudo aquilo que o professor diz, você não ouve. M Quando eu estava na primária, ninguém era melhor estudante do que eu, mas agora outros estudantes conseguem passar-me, portanto não sei o que é que se passa. Mas é por pensar demais. Na primária eu costumava ser o número um. Portanto os professores de vez em quando faziam-me perguntas sobre a matéria. No último trimestre fui número 12, e no trimestre anterior número 9. N 7 54 Eu estudo, mas não consigo compreender as matérias, é muito difícil. Eu fico preocupado com as propinas que ainda não paguei, estou ocupado em procurar uma solução – onde arranjá-lo e o que faço? Já paguei 1.000 dólares zimbabweanos, portanto onde vou arranjar os outros cinco, para não ser expulso da escola? Gostava de encontrar alguém com açúcar para carregar. Às vezes não há açúcar, portanto esperamos até haver açúcar disponível. O sistema escolar não permite acomodar oficialmente os alunos itinerantes.5 Os professores sabem muito bem dos problemas e das viagens que os seus alunos fazem; eles têm que rigorosamente escolher entre lhes oferecer a sua simpatia e ao mesmo tempo, os disciplinar pela sua ausência. O outro problema é que logo após solicitarem o dinheiro para a escola, os membros da comissão dizem, ‘Aqueles que não pagaram as propinas, levantem-se e saiam.’ Tu levantas-te e sais. Amanhã tu vens e mandam-te embora outra vez. Portanto quando carregas o açúcar estás a andar para nada. M Normalmente depende da procura do açúcar. Portanto se a gente for à Sexta, tudo bem … estás de volta na Terça e vais procurar um trabalho qualquer. Vais usar o pagamento para comprar comida. Isto faz-nos dizer, ‘Porque é que eu hei-de ir à escola, se me vão mandar para casa para ir buscar o dinheiro das propinas – o dinheiro de propinas que não existe.’ E isso interfere com a aprendizagem porque você estará a pensar em dinheiro. Às vezes ficamos lá [em Moçambique] para ganhar dinheiro... às vezes outros miúdos podem ficar sem ir à escola durante um mês inteiro. Os outros dois meses tu estás a trabalhar noutro lado. ... Para ganhar 5.000 dólares zimbabweanos, precisas de muito tempo. E, vais trabalhar com fome. [Os empregadores] vão-te tratar como trabalhador, um bandido,6 eles apenas precisam da tua mão-de-obra e te cobram pela comida. Se não tiveres muito cuidado, voltas para casa sem nada. Nós planeamos o que dizer quando chegados à escola depois de muito tempo de ausencia, para ver se o nosso registo foi anulado pelo director. Ele às vezes tem pena de nós e deixa-nos continuar. P 8 55 Este rapaz de catorze anos frequenta a sétima classe. Ele é o penúltimo filho de uma família de sete. Ele vestia uns calções e uma camisa mas estava descalço. Parecia estar com fome e, raras vezes, sorria. Os furtos de pouca monta quando estão a sair, ou os furtos de dinheiro e de bens quando estão a regressar, ou de artigos comprados com o dinheiro que ganharam, “minam” constantemente qualquer benefício que poderiam colher dessas longas viagens. Às vezes você foi carregar e diz a si próprio ‘Deixa-me comprar este livro, que ainda não tenho.’ Então adormeces na sala de aulas e há alguns alunos que roubam. Eles dizem, ‘Este aqui está a dormir,’ e então roubam-te esses livros. Quando voltas para casa, dizem, ‘Foste carregar, aonde está o dinheiro? Aonde estão os livros?’ Então você diz, ‘Foram roubados.’ E eles dizem-te, ‘Volta a carregar de novo, para arranjares dinheiro.’ Então você volta de novo. O Alguns não podem pedir sapatos e alguns não têm meios para os comprar1. Algumas pessoas de facto pagam a outros para usarem os sapatos deles. Por exemplo, a Rosemary só ficou com 1.500 dólares zimbabweanos depois de pagar pelos sapatos. L M Não posso fazer nada porque estou apenas a procurar dinheiro para viver. Se isso significa levar porrada da polícia, pronto, sabemos que isso acaba, porque até os professores na escola nos batem. Portanto não há problema quando a polícia nos bate, carregar mercadoria é uma maneira para ganhar dinheiro e nós concordamos com isso. Às vezes, quando tens cabeça boa e tu chegas a Moçambique, aqui existem bancas (pequenas lojas) onde se vende zityes ou seja roupa de fardo vendida à quilos. Mesmo quando tens fome, dizes, ‘É melhor morrer de fome,’ e tu levas o teu zitye. Então não só adquires o “zitye” mas também quando chegas à casa as pessoas olham para ti. As raparigas são especialmente vulneráveis à exploração sexual ou a sexo transaccional. Quando vão a Moçambique, elas vestem umas saias muito curtas e os gajos que compram o açúcar são atraídos pelas miúdas. Os compradores compram o açúcar às miúdas e depois os dois entram em casa do comprador e ficam lá. N Ele diz-nos para dormirmos num quarto e ele leva algumas das raparigas consigo. Quando estamos ali, ele só compra comida para as suas namoradas. Elas não concluíram a escola porque algumas delas ficaram grávidas. Ele fica com elas e faz delas suas esposas. Uma delas casou-se em Moçambique e ele está com uma delas. Algumas das miúdas, ele oferece a outros compradores. Algumas das miúdas receberam dinheiro e foram aconselhadas a informarem aos seus pais que se haviam casado. Às vezes elas são tolas, mas aquelas que querem ir à escola não caiem na armadilha. Q 7 56 Os compradores tratam-nos como escravos. Eles mandam-nos trabalhar para além da hora e às vezes levam as moças para as casas deles. Tratam-nos se não merecêssemos pagamento. Apenas lhes vendemos o açúcar e não podemos falar com eles acerca de nada. Eles só falam com os donos do açúcar. P As crianças que não estão acompanhadas por um adulto responsável e de confiança, vivem vulneráveis e têm que gerir o seu próprio sofrimento e medo. Quando estávamos a ir para casa, eu, a minha amiga e o meu irmão pequeno, vimos este homem à nossa frente. Então ele tentou agarrar a minha amiga assim, então ela livrou-se dele. Depois esse homem começou a perseguir-nos. Então apanhámos um punhado de terra e atirámo-la à sua cara. Nós corremos e ele agarrou a minha amiga mas ela mordeu-o e então ele largou-a. Então fugimos... Corremos com o meu irmão mais novo e ele corria também, até que atravessámos uma barragem. A barragem está aqui e ali há uma ravina profunda e há um pouco de água e um muro da barragem. Portanto atravessámos pelo meio, aonde há essa água que corre para a ravina. Então o meu irmão escorregou e caiu na barragem. Não pudemos fazer nada, só chorámos e corremos para contar à mamã. Dissemos a ela que estavamos a ser perseguidos por um assassino e que o miúdo foi comido por um crocodilo. Sim, nós vimo-lo, ele já estava morto ... O crocodilo, ele veio para comê-lo. … Desde então nunca mais ninguém passou por esse lado. K A vida familiar é posta em perigo pela pobreza, desemprego, o SIDA e mortes. Os pais ou os familiares para sobreviverem precisam que os seus filhos ganhem dinheiro, e as crianças não têm outra alternativa senão trabalhar como “moços de aluguer”. Esta é a única forma que eles têm de garantir algum rendimento. Começamos a fazer carregamentos e carregamentos. Então você ganha dinheiro. Então pago as minhas propinas, quando os pais se apercebem que começastes a trabalhar para ti mesmo, eles começam a exigir que continues a o fazer, vendo que estás a fazer algo que é muito bom. Então os pais, eles dizem ‘Vai! Vai!’… P Os pobres, sim os pobres, são eles que são os carregadores. Às vezes os mais ricos riem-se deles, e dizem, ‘Sim, eles devem sofrer.’ Portanto aqueles que não têm ninguém para os ajudar, são esses que fazem carregamentos. M Os que não vão, dizem que carregar açúcar não é importante e que os nossos pescoços se vão dobrar por isso. Eles gozam-nos – estou a brincar. Eu não me importo com isso porque para mim o que é importante é ser capaz de comprar os meus livros. N Os [adultos] têm mais tendência em deixar-te ir arranjar dinheiro para pagares as tuas propinas, porque às vezes também compramos açúcar e sal. Eles vão ficar muito felizes por fazerem a coisa certa. Eu posso dizer que há muita gente que está a sobreviver disso. Tu vais precisar de comida, portanto é não é possível ficar em casa. Então é aqui que tu deixas os teus pais [familiares] sozinhos. M Mesmo assim, as crianças ganham muito pouco.7 8 57 Para carregar um saco de açúcar [20 kg] para Moçambique, para Panzi, a gente recebe 3.000 dólares zimbabweanos [Fevereiro de 2007]; quando levas dois, é então que vais ter 6.000 dólares zimbabweanos. Para ir a Honde, que é mais ou menos 60 a 80 quilómetros, recebes uns 5.000 dólares zimbabweanos por cada caixa. P Vender outras coisas, tais como vegetais, couve ou nabo, folhas de abóbora ou milho, a polícia não te chateia, porque para ter estas coisas tu trabalhaste com as tuas próprias mãos. Portanto mesmo a polícia em Moçambique, eles não te incomodam nada, ao não ser aqueles que são cruéis, aqueles que dizem, ‘Não queremos coisas do Zimbabwe aqui.’ O Vender por conta própria é o melhor, porque fazes da maneira que tu queres. Podes dizer, ‘Hoje as coisas não andaram bem, hoje sofri prejuízo,’ então simplesmente deixas. Mas se as coisas forem doutra pessoa, e se voltares antes de vender tudo, ele vai dizer, ‘Andaste para nada.’ Então é assim que acabas gastando vários dias à espera de vender tudo, para receber o meu dinheiro. P Para além de carregar mercadorias, as crianças zimbabweanas fazem cada vez mais trabalhos temporários (‘trabalho por tarefa’) em Moçambique, e elas prolongam a sua estadia para o fazer; algumas têm sorte em terem familiares com quem podem ficar. No mês passado alguns foram a Moçambique, para fazerem alguns trabalhos. Hoje em dia quase toda a gente faz isso. Há pessoas que usam carros, mas nós vamos a pé. Fica a cerca de 70 quilómetros daqui, uns dois dias de viagem: dormimos em Honde e no dia seguinte continuamos para Chuwala. Tens que sachar a machamba inteira antes de seres pago. Fui lá com os meus amigos. Um deles já não vai mais à escola porque o pai dele morreu. Dizemos, ‘Estamos à procura de trabalho por tarefa.’ Às vezes eles assolam-nos e dizem muita coisa. Às vezes eles dizem, ‘Dálhes trabalho, porque eles são pobres.’ Uma vez trabalhámos uma semana porque a machamba era muito pequena e eles pagaram 200 meticais e nós dividimos o dinheiro igualmente entre nós. Consegui comprar um vestido para a minha avó, uma camiseta e calções para mim próprio e óleo para cozinhar. Mas o problema são os mosquitos. Eles provocam malária e isso é um obstáculo à nossa missão. O meu amigo foi atacado pela malária. Em Moçambique também há cólera porque há muita gente, e também tem a matacanha,8 uma doença que ataca os dedos dos pés e às vezes as unhas podem cair. Eu fui atacado (aponta as unhas dos dedos dos pés). É por causa de não usar sapatos. Nem te podes mexer (a sua voz eleva-se), mas felizmente eu estava aqui em casa. M As pessoas em Moçambique não são sempre muito simpáticas e prestáveis. As crianças estão conscientes das doenças e da fome. Elas sabem os riscos que estão a correr. 7 58 N Eles não nos recebem muito bem não. Às vezes podes dizer, ‘Temos fome. Estamos aqui há dois dias.’ Tu vês eles a cozinharem e a comerem a sua xima e eles dizem, ‘Se queres xima para comer, nós vendemos’ Então tu pensas em comprar a xima, mas este é o dinheiro que tu necessitas para comprar um livro. Então tu dizes, ‘Ah, é muito melhor que eu durma hoje com fome, e talvez amanhã voltemos para casa.’ Ninguém tem pena de ti se tu és do Zimbabué. Eles dizem, ‘Morre dessa tua fome. Porque é que vieste para cá?’ Mesmo quando tu ficas três dias em Moçambique, o comprador, não te dá comida. Eles dizem, ‘Toma conta de ti próprio.’ Se tiveres um familiar que viva em Moçambique, então tu pedes comida. Se ele te ajudar, tu agradeces a Deus. M Perguntou-se às crianças qual era o conselho que elas dariam aos outros que tenham em mente atravessar a fronteira. Eu dizia-lhes para não ir, podes ser apanhado e espancado. Há um homem – passou na rádio, ele tinha açúcar e mataram-no à pancada em Nhanga. Ele morreu ali. Eu vou dizer à criança para atravessar com um coração forte porque se atravessar de animo leve, de qualquer maneira, nunca mais vais voltar. Tu... podes ser espancado pela polícia ou ser preso. ... Não é nada bom discutir com a polícia. Acabas em grandes sarilhos … P Este carregar de mercadorias não é nada bom porque a polícia do Zimbabwe, eles não o permitem e a de Moçambique também não o permite. Portanto se tiveres azar e fores apanhado em Moçambique, então tu sabes que podes morrer lá, e os teus familiares não saberão de nada. Eles só vão ouvir que ele morreu, mas não saberão onde estás enterrado. Muitos de vocês só vão ser atirados para um único buraco. O Só posso dizer que se eles estiverem a andar à procura de dinheiro, espero que isso seja a única coisa porque eles podem encontrar muitos problemas – especialmente as moças. Elas não deviam ser enganadas e ficar grávidas porque isso traz mais problemas... Casos de violação? Sim senhora, temos. As moças ficam grávidas. … Acontece normalmente com as órfãs. Digamos que ela será a chefe da família. Alguém lhe promete apoio, portanto ela imagina que se ela fizer isso poderá suportar os seus irmãos. E assim ela acaba sendo enganada. P As raparigas que têm crianças extra conjugais, são muitas vezes abandonadas pelos próprios pais, pelo pai da criança e pelos avós ou avôs da criança. Isso faz com que elas sejam vulneráveis, mesmo para os seus próprios sonhos. Quando o bebé tiver crescido, eu vou ser uma empregada doméstica, não aqui mas noutro lugar qualquer, tal como Harare. Para cuidar do meu bebé, posso até aceitar, atravessar a fronteira e trabalhar em Moçambique numa loja, limpar o chão das lojas aceito qualquer coisa que me dê dinheiro. M As moças também carregam mercadorias. Quando elas vão, elas enfrentam problemas de gravidez. A minha irmã também ficou grávida. Depois os moços fogem para lugares muito distantes, como a Beira e Maputo. Dizem que a responsabilidade não é deles. N Carregar açúcar ou outras mercadorias para Moçambique é uma ocupação perigosa contudo oferece às crianças uma possibilidade de continuarem a sua educação formal, o que é o seu objectivo. O seu rendimento, embora magro, ajuda na sobrevivência das suas famílias. Não existem fontes alternativas de rendimento. Contudo, actualmente o açúcar é escasso pelo que muito pouco é carregado para Moçambique. Como é que esta escassez vai afectar as vidas das crianças? 8 59 Vamos concluir este capítulo com uma entrevista completa de uma rapariga de treze anos. Tal como outras crianças, ela é a única trabalhadora da família. A sua mãe é deficiente e não tem pai. Ela quer continuar a estudar, mas o seu trabalho como carregadora de açúcar para Moçambique não só a deixa sem tempo e energia mas também prejudica a sua saúde. Ela é muito realista acerca das dificuldades e dos perigos que enfrenta nas longas viagens. A vulnerabilidade dela evidenciase quando fala da sua doença de pele, pois tem medo de ter sido enfeitiçada. Contudo, ela tem orgulho do que consegue realizar em termos de apoio aos seus irmãos, custeando as suas despesas escolares para além de cuidar dela mesma. Esta criança tem energia e cometimento. Ela trabalha muito e quer ter êxito, mas resta saber se ela será capaz de fazer isto sozinha. Esta é a questão que mostra o quão precárias é a realização das suas ambições. ‘Se eu não carregar açúcar, sei que ninguém vai pagar as minhas propinas ou comprar livros e canetas para mim.’ ‘Carregar açúcar apenas resolve parte do problema, não todo.’ Eu estudo na Escola Primária de Katiyo. Na nossa família, nós somos quatro crianças. Eu sou a primogénita. O meu pai faleceu este ano e a minha mãe não faz nenhum trabalho. Ela só fica assim sentada, se ela vai à ARDA trabalhar, ela fica doente. As pernas dela doem-lhe, elas não têm força. Os meus irmãos e irmãs, eles só vão à escola. Se eu carregar açúcar e receber dinheiro, eu vejo que quando mando o dinheiro para casa, algum dele é usado para pagar a moagem do milho e outras necessidades. Suponhamos que eu não tenho uma caneta ou um livro, sou eu quem compra e as propinas também sou eu quem paga.9 Se ainda sobrar algum dinheiro e se for suficiente para pagar as propinas dos meus irmãos mais novos, eu pago. Agora calço umas sapatilhas novas. Fui eu quem os comprou, com o meu próprio dinheiro. Custam 7.000 dólares zimbabweanos. Eu carreguei açúcar três vezes e foi suficiente. A minha mãe deu-me dinheiro para ir a Hauna. Foi lá onde comprei os sapatos. O meu tio deu-me dinheiro para voltar para Katiyo M O meu pai trabalhava em Harare. Era um mecânico. Quando o meu pai faleceu ela voltou para cá, para Katiyo, vinda da sua terra, kwamurara.10 Portanto agora estamos nas mãos dos meus tios, mas vivemos na nossa própria casa. 7 60 Eu gosto de trabalhar em casa. Ir buscar lenha, buscar água ou trabalhar na machamba à volta da casa. Cultivamos tomates, vegetais, quiabos, milho, amendoim e “nyimo”. Temos galinhas e um cabrito. Às vezes carrego açúcar como as minhas amigas e com mulheres mais velhas. O meu tio é o irmão da minha mãe, às vezes vamos com ele e às vezes não. Quando vamos sozinhas, andamos sem fazer barulho. Se vemos uma das nossas amigas a falar, dizemos para ela se calar, para não sermos apanhadas pela polícia. Uma vez eu ia com as minhas amigas, éramos só miúdas. No nosso caminho, chegámos ao Rio Rwera e atravessámos. Só andávamos e andávamos; outras colegas minhas estavam a fazer barulho, então os polícias que estavam escondidos, ouviram-nos. Fomos apanhadas. Eles tinham as armas deles. Nós ficámos em pé. Eles disseram a nós, ‘Sentem-se rapidamente.’ Uma das minhas amigas queria fugir e o polícia disse, ‘Se tu fugires, vou-te matar com a minha arma.’ Dissemos a ela para voltar e ela voltou. O polícia disse, ‘Como é que vocês sabem que aqui se vende açúcar?’ Nós ficámos caladas. Eles disseram, ‘Vamos ao Acampamento da Polícia e vocês carregam a vossa própria carga: takurai mutoro wenyu.’ Então eles fizeram-nos carregar o nosso milho e a outras colegas nossas o açúcar. Depois chegámos ao acampamento. Lá, eles obrigaram-nos a deitar-nos de barriga para baixo. Eles deitaram-nos água. Ficámos molhadas e eles disseram, ‘Levantem-se. Tomem estas enxadas e trabalhem a machamba.’ Então trabalhámos a machamba e quando acabámos fomos para casa. Eu já fui apanhada quatro vezes … A polícia e os soldados moçambicanos, eles molham-te e mandam-te trabalhar a terra. Os polícias zimbabueanos, esses batem-te a sério. Eles apanharam-me duas vezes. Ataram-me a mim e à minha amiga numa árvore e começaram a bater-nos. Quando atravessamos o rio, pegamos numa corda – a primeira pessoa está no outro lado do rio. Eles atam as caixas de açúcar na corda. A segunda pessoa nada para o outro lado e puxa a corda; então o açúcar está noutro lado. As que ficaram para trás nadam para o outro lado do rio. Há troncos que se usam para atravessar, mas alguns ficam debaixo da água tornando tudo mais difícil. Tu não consegues ver os troncos. Algumas pessoas são arrastadas pela água, algumas nadam e nadam até que conseguem sobreviver. Ao longo do caminho também passamos por cemitérios e pisamos nos túmulos. Isto é mau. Noutras ocasiões, vemos fantasmas, o que é assustador. Às vezes, quando a gente usa uma outra picada, encontramos chá, portanto picamo-nos nos ramos de chá podados. No fim, acabas fazendo feridas nas pernas e em algumas partes do teu corpo, o que dificulta o teu andar. Então as pessoas em casa costumam dizer.’ Esta criança tem sofrido. As pernas dela estão inchadas.’ Normalmente, eu carrego 20 kg, mas às vezes carrego 26 kg. Por este trabalho recebemos Z$3,000, até Mutsinzi. É só ida e volta. Vamos de madrugada e voltamos ao fim da tarde. Se formos à meia-noite, voltamos de manhã cedo. Eu normalmente não carrego açúcar durante os dias de escola. Só carrego aos fins-de-semana. Eu vou ao Sábado e ao Domingo. Quando a gente chega e a polícia não nos apanhou, nós ficamos felizes. 8 61 7 62 Às vezes outras miúdas estão a andar com miúdos, mas elas não querem ouvir. Outras moças comeram dinheiro que era doutros miúdos. Essas foram espancadas. Às vezes fico zangada; então volto para casa sozinha. Não gosto de brincar com pessoas malcriadas. O meu futuro não vai ser bom. Quando eu recuso andar com outras moças, eu volto com outras mulheres. E se for na parte da tarde, volto sozinha. Não há nenhuma relação com os compradores, mas o que vemos é que quando chegamos a Moçambique algumas moças recebem comida, e outras recebem dinheiro. Não entendemos o que é que se está a passar. Algumas miúdas, quando a gente chega ali, elas entram nas “bhangas”. Quando elas entram lá, só sentam e ficam quietas. Não sabemos o que é que vai acontecer. Às vezes, se tu continuas a carregar o açúcar e continuas o fazer isso, tu acabas ficar doente. Podes ter problemas no pescoço e tu morres. O pai do T morreu (há um silêncio pesado). Nós só dizemos, ‘Deus, se nós não trabalhamos, o que é que fazemos?’ Quando eu carrego muitos kgs, por exemplo 26 kg, o meu pescoço começa a doer. Então fico uns dois dias sem ir à escola. Então eu minto e digo que tinha malária. Às vezes o professor pode me bater porque ele vai dizer, ‘Estás a mentir. Os teus amigos dizem que não estavas com malária nenhuma.’ Uma vez eu faltei à escola durante oito dias depois de ter ido vender açúcar. Noutra ocasião, eu faltei durante muitos dias, a minha mãe estava doente. As pernas dela estavam inchadas e a coluna dela doía-lhe (ela fica calada). Eu tenho estado a pagar as minhas propinas desde a 3ª Classe. As propinas da 1ª e 2ª classes foram pagas pela minha tia, a irmã do meu pai. A minha mãe tentava arranjar dinheiro para pagar as propinas quando eu estava doente e não carregava nenhum açúcar, então ela arranjava dinheiro e pagava as propinas. Quando o dinheiro que eu tinha não era suficiente, juntávamos o meu dinheiro com o da minha mãe. A minha melhor amiga, carrega açúcar. Ela não vai tantas vezes como eu. Ela só carrega há pouco tempo. Ela tem os pais, que pagam as suas propinas. Às vezes eles dizem a ela para não brincar comigo. Eles têm medo que eu a influencie ir para Moçambique. A minha irmã ainda não é capaz de carregar açúcar (apesar de ela já estar na 4ª Classe apesar de eu ter começado a carregar açúcar quando estava na 3ª Classe). Quando ela for carregar açúcar, ela provavelmente vai ficar doente. Em casa, quando ela carrega um bidão de plástico com água, ela fica doente. O pescoço dói-lhe e ela tem dores de cabeça. Se você me pergunta sobre os meus problemas, eu tenho um problema com a minha pele.11 Não tenho feridas. Nasci assim (a criança sussura). Kungomberekwa ndakaita zvimakwande kwande (Nasci assim com uma pele grossa e que cai às lascas). Só tenho feridas na minha cabeça e nas minhas pernas. Na minha família, nós nascemos assim. Se não pomos loção, a minha pele faz comichão. Quando tomo banho sem sabão, começa a doer. Esses são os problemas que tenho. Eu digo à minha amiga que a minha pele faz comichão e que estou a ter dores. Se não tenho loção, vai doer. Fomos a todo lado, na farmácia de Hauna e no hospital de Bonda, mas não desaparece. Se aplico enxofre, talvez vai desaparecer. Mas quando não aplico nada, vai começar de novo. A minha amiga diz que se eu tivesse um boião pequenino ia levar-lhe, para ela poder dar-me alguma loção. O sabão que eu preciso é Geisha12 Se não tenho Geisha e tomo banho com outro sabão, isto fica pior e eu fico doente. Na clínica eles só me deram remédio e não fez efeito. Eu não sei qual é a causa, talvez estou enfeitiçada (ela perde a voz). Outro problema é que às vezes eu recuso carregar açúcar para Mutsinzi. Os meus tios não querem apoiar-me e eu pergunto a mim própria, ‘Porque é que eles não me querem ajudar?’ Quando eles me mandam, eu vou de qualquer maneira. Mas eles dizem sempre que não têm dinheiro para pagar as propinas da escola. Se eles não têm açúcar, eu vou carregar para outras pessoas ... Outras miúdas como eu vão para escola com o dinheiro delas, quando vêem que chega para pagar as propinas, então elas pagam. Algumas, compram livros e canetas. Aquelas que usam o seu dinheiro sem cabeça, elas vão para as lojas. Também mentem e dizem aos seus pais que perderam o dinheiro que receberam. Elas vão à loja dos irmãos e compram biscoitos. As minhas amigas – se elas não vão a Mutsinzi – elas dizem, ‘Porque é que não paras com isso?’ eu digo, ‘Tu não podes ver quem vai pagar as minhas propinas.’ (a voz de X ficou tão baixa neste ponto que ela teve que repetir a afirmação). Se não pagas as propinas, eles mandam-te embora por não teres pago. Eu pergunto às minhas amigas, ‘É correcto?’ Eu não sei o que sei é que se eu não carrego açúcar ninguém vai pagar as minhas propinas ou comprar-me livros e canetas. Às vezes os meus tios começam a ralhar comigo e eu simplesmente levanto-me e vou me embora. Eles 8 63 repreendem-me, dizendo ‘Tu devias acabar com isso de ir a Mutsinzi.’ Eu digo-lhes, ‘Se vocês não me deixam ir, quem vai pagar as minhas propinas?’ Os meus tios ficam calados. Eles são capazes de dizer, ‘Porque é que a tua mãe não trabalha para ti?’ E eu respondolhes, ‘A minha mãe não pode trabalhar. Vocês sabem que ela não está boa.’ É isso que eu lhes digo. E se eles continuam ralhar comigo eu levanto-me e saio. (segue-se um silêncio longo). Eu fico furiosa por eles não pagarem as minhas propinas e nunca comprarem nada para mim. Os meus tios às vezes são cruéis. Às vezes o meu tio tem dinheiro para beber cerveja mas eu não vou ter propinas ou uma caneta. Eu posso pedir-lhe e ele responde, ‘será que sou teu pai?’A minha mãe não diz nada, mas ela podia dizer, ‘porque estás a bater esta criança. Acaso pagas as suas propinas?’ A minha mãe podia discutir com os irmãos dela para eles pararem de ralhar comigo. Talvez eles parassem de o fazer. Quero dizer às crianças que carregam o açúcar que quando elas recebem dinheiro, elas não devem desperdiçálo. Elas devem utilizar o dinheiro de modo sensato e comprar coisas que não têm, tais como uma caneta e um livro. Ou se tu já tiveres concluído a escola e se não tiveres nada em casa, podes dar o dinheiro à tua mãe, para teres comida. Carregar açúcar apenas resolve uma parte do problema, não resolve os problemas todos. Endnotes 1 7 64 ‘Os dados do levantamento Sentinel mostram que a prevalência de HIV continuou a ser regularmente mais alta nas comunidades de agricultores do que no seio da população em geral. Em 2000, um levantamento nacional de HIV e de sífilis revelou uma prevalência de HIV de 43.7 nas áreas agrícolas, comparada à média nacional de 35%. Igualmente, em 2003, a prevalência era muito mais alta nas áreas classificadas como Outras, as quais incluem as áreas agrícolas, em comparação com as áreas urbanas ou rurais. Um estudo realizado nas herdades do Vale de Hippo em 1991, revelou que 20.5% dos homens e 37.9% das mulheres mostraram sinais de infecções sexualmente transmitidas.’ Zimbabwe Human Development Report 2003. Poverty Reduction Forum, 2004 p. 55-56 2 Veja nota sobre moedas na página v. 3 i.e. no emprego formal. Trabalhar a machamba, trabalho temporário e trabalho doméstico não são considerados ‘trabalho.’ 4 A palavra é usada para transmitir o sentido de papa a borbulhar. 5 Veja Bourdillon, Michael (2000) Earning a Life (Weaver Press, Harare) para obter uma análise do sistema educacional nas herdades de chá e café as quais têm sido estruturadas para acomodarem as crianças que fazem a colheita em certos períodos do ano. 6 Os prisioneiros hoje em dia e nos tempos coloniais eram mandados trabalhar vestidos com fardamentos de prisioneiros e acompanhados por um guarda. Chamavam-se ‘bandidos’. 7 Em Dezembro de 2006, 3.000 dólares zimbabweanos podia ser suficiente para pagar três ou quatro pães. Actualmente um pão custa cerca de 156.000 dólares zimbabweanos. 8 Provavelmente isto é causado por uma pulga da areia, de tamanho microscópico, que penetra na pele debaixo das unhas dos pés e das mãos, provocando inchaços e incómodo. (A palavra Matekenye usada no Zimbabwesignifica literalmente alfinetes e agulhas). 9 Em Janeiro de 2007 a propina escolar por trimestre na maior parte das áreas rurais era, em média, de 10.000 dólares zimbabweanos. Isto não inclui tributos e, evidentemente, cadernos e livros. Actualmente, a bolsa por pessoa no Zimbabweé só de 250 dólares zimbabweanos por ano 10 Literalmente na casa dos Muraras. 11 A criança tinha eczemas em todo o seu corpo inclusive na sua cabeça. 12 Geisha é a marca dum sabão mais suave e macio do que os sabões ásperos e abrasivos normalmente utilizados pelos pobres. CAPÍTULO 4 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O A Minha Avó Não Conheceu Nenhuma Fronteira Do Zimbabwe para Moçambique ‘Saí de casa dizendo que ia procurar emprego ... Queria ajudar a educar o meu irmão, que está na quinta classe.’ A fronteira entre Moçambique e o Zimbabwe é longa, cerca de 1.250 quilómetros, e está mal protegida. Existem quatro postos fronteiriços entre os dois países. Dentre os quais, o posto de Machipanda, assim designado em Moçambique, tem seis pequenos postos na fronteira, enquanto os outros 3 postos estão encerrados, alegadamente, por falta de recursos materiais e de recursos humanos. Desde que as fronteiras foram estabelecidas entre Moçambique e Zimbabwe, no século dezanove, tem-se desenvolvido uma longa história de relações comerciais e laborais transfronteiriças envolvendo sobretudo as populações que vivem nas proximidades da fronteira. Historicamente, as pessoas sempre viajaram de um pais para outro afim de estabelecerem trocas comercias e actividades agrícolas bem como para procurar um emprego quando a disponibilidade local de emprego fosse exigua. Alguns casaram-se ou criaram familia no pais vizinho. De facto, por vezes é muito difícil diferenciar Moçambicanos de Zimbabwanos que vivam perto da fronteira porque partilham a mesma língua, têm as mesmas tradições, os mesmos valores culturais e laços familiares. Durante a guerra civil em Moçambique, a maior parte da circulação transfronteiriça era feita, principalmente, num único sentido. Milhares de refugiados, incluindo crianças entraram no Zimbabwe. Muitos deles permaneceram neste País durante todo o periodo de guerra civil em Moçambique e iniciaram nova vida no país anfitrião. Contudo, a maior parte dos emigrantes após a assinatura dos acordos 8 65 de paz em 1992, regressou a Moçambique para se reunir às suas famílias devido ao crescente restabelecimento da segurança e consequente reconstrução e reabilitação do país. Mesmo assim, os laços familiares entre alguns Zimbabweanos e Moçambicanos permanecem fortes e nos últimos anos, com o declínio da economia Zimbabweana e a redução de postos de trabalho agrícola essencialmente ocupados por Moçambicanos neste País, muitos destes começaram a procurar emprego em Moçambique. Não há dados oficiais disponíveis sobre o número de crianças zimbabweanas que entram em Moçambique ilegalmente. Contudo, um oficial do governo distrital da Província de Manica afirmou que, nos fins de 2005, na sua área de trabalho, havia dez a quinze crianças zimbabweanas a atravessarem diariamente a fronteira ilegalmente o que representa, aproximadamente, 3.650 a 5.475 crianças por ano. Não se indicaram quantas dessas crianças atravessavam a fronteira regularmente e quanto tempo permanecem no país.1 Saí no ano passado no dia 22 de Setembro de manhã … segui a estrada, perguntando às pessoas o caminho para Moçambique. Continuei a andar até que cheguei à fronteira zimbabweana, e eu pedi para passar e eles recusaram, disseram que não é possível ir para Moçambique ... Disseram, ‘Vocês são crianças novas, vão morrer enquanto estão lá.’ ... Então eu argumentei dizendo, ‘Ah, eles recusam-me a possibilidade de eu ir trabalhar.’ Então vi um homem com o açúcar dele, a atravessar debaixo da ponte e eu também atravessei por debaixo da ponte. Vi um curral de porcos e esgueirei-me atrás deste ... e depois andei ... debaixo da ponte e quando cheguei ao lado moçambicano, eu disse, ‘Estou a pedir para ir a Moçambique’, e eles disseram, ‘passa lá.’ Então encontrei os soldados em Moçambique, e eles disseram ‘Vai lá trabalhar um pouco, mas não queremos ouvir que estás a fazer asneiras.’ E eu passei e andei durante quatro horas até que cheguei a Machipanda.2 K Cheguei a Machipanda no ano passado, em Julho. Vim com outra mulher chamada ‘mãe da Lusinate’, que também se chama Carro ... Foi ela que disse, ‘Vamos para Moçambique. Vais ter trabalho já que não vais à escola’, e então eu vim com ela. Ela disse, ‘não é bom para ti, ficar sem fazer nada. Tens que fazer as tuas próprias coisas também.’ E comecei a trabalhar aqui desde Janeiro, até agora.’ Saí de Dangamvura e fui para a casa dela em Sakubva.3 De manhã, tínhamos que acordar por volta das cinco, e depois andávamos para o Serviço Vhumba e procurámos por carros que iam para Macdonaldo. Subímos num camião que transportava fruta. Deixou-nos em Mapikini. Então andámos e encontrámos soldados. Actualmente Carro é bem conhecida por eles. Então perguntaram a nós ‘Quando vocês atravessaram?.’ Então dissemos ‘Foi na semana passada.’ Olharam os papeis de identificação da Carro, mas não me disseram nada. Depois perguntaram, ‘Quanto você tem então?.’ E Carro deu-lhes cem meticais e disseram, ‘Pode passar.’ E atravessámos. Quando chegámos a Chimbiya, ela disse, ‘Estamos a pedir para atravessar’ e eles disseram, ‘Passa lá.’ Em Matembeya nem sequer nos perguntaram nada, apenas disseram ‘Passa lá’, e passámos. Os soldados ficam na floresta. Não é fronteira de verdade. É só quando você tem coisas e chega ali, você pode dizer tenho a minha mercadoria e quero passar. Então os soldados podem dizer-te ‘Dá-nos tanto dinheiro.’ Também ´por ali que passam os outros sem passaportes. Não mete medo. P 7 66 Conforme ouvimos, muitas vezes as pessoas atravessam frequentemente a fronteira sem se quer se darem conta de que realmente atravessam para um país estrangeiro, não obstante as diferenças politicamente traçadas, nomeadamente, a diferença a nível das línguas oficiais e das moedas em circulação em cada país. Às vezes quando tenho dinheiro e tenho um dia de folga, vou para casa. Quando cheguei a Matepe, só disse, ‘Estou a pedir para passar, vou para Mutare.’ Eles disseram, ‘Quando você volta?’ e eu disse, ‘Volto na Quarta-feira, ao por do sol.’ Disseram, ‘Tudo bem, Vai.’ Quando chegámos perto dos soldados eu disse ‘Estou a pedir para passar. Vou para Mutare.’ Perguntaram-me, ‘Quando você está lá em Moçambique, o que é que você faz?’ e eu disse, ‘Trabalho em Biguti, como cozinheiro’. E eles disseram, ‘Então, o que é que vai fazer aqui?’ E eu disse-lhes, ‘Vou visitar os outros.’ E perguntaram-me a mim, você é Zimbabweano?’, eu disse, ‘’Sim, sou.’ Disseram ‘Okay, mas que mercadoria é essa que você leva aí?.’ Eu tinha uma mochila com a minha roupa e um saco de papel com as coisas que tinha comprado. Eles procuraram. Disseram, ‘Estamos à procura porque alguns miúdos e miúdas atravessam com 4 mangoda ...algumas pedras. Voltei na Quarta-feira e disse, ‘Estou de regresso, estou a passar’, e eles disseram, ‘Passa lá.’ M A maior parte das crianças que atravessam as fronteiras irregularmente na região o fazem desacompanhadas, isto é sem serem acompanhadas pelos pais ou encarregados de educação. Todavia, algumas crianças viajam para países vizinhos, quer legalmente, quer ilegalmente, com um familiar adulto, que não poucas vezes acaba por as abandonar. Estas crianças ficam numa situação vulnerável, num país estrangeiro, e onde não têm nenhum familiar ou outro apoio ao qual possam recorrer. Tal como descreveu este rapaz, viver em Moçambique com o seu pai zimbabweano não significa que a criança vá ser cuidada e protegida. O meu pai pôs-me fora de casa. Ele e a minha madrasta, insultam-me e mandam-me embora. Eu sou o único filho do meu pai. Os filhos da madrasta são dois. E são esses que roubam (em casa) e depois dizem que fui eu. Batem-me. Às vezes mandam-me embora e eu voltava. Mas agora voltei e já não me querem mais ali. Se eles me vêem no caminho, eles dizem não te queremos ver aqui. Eu fico nas estradas. O problema é que o sítio onde nós dormimos não é bom e é difícil ter alguma coisa para comer. Comida .... às vezes dormes com fome, às vezes vais à procura de dinheiro, e só quando arranjas dinheiro é que você compra alguma coisa para comer. R Um oficial do governo da província de Manica disse à Save the Children que é difícil determinar a origem das pessoas, se Moçambicanas ou Zimbabweanas, pois elas podem falar a mesma língua, e, se as circunstâncias o exigirem, migram. Venho de Moçambique. Quando chegámos em Chipinge, passámos a fronteira. Pedimos licença e eles disseram, ‘Pode ir.’ Nem sequer perguntam quantos dias você quer ficar aqui, não se preocupam com isso. Normalmente se cometes um crime ficas detido e às vezes a polícia pede o teu bilhete de identidade, mas eu tenho uma certidão de nascimento Moçambicana. Portanto a polícia aqui não nos faz mal, porque os Zimbabweanos também passam por aqui. Até a polícia zimbabweana vai a Moçambique, procurar cerveja e mulheres. Então não há problema. Há uma escola perto da fronteira, que se chama Southdown, onde os Moçambicanos vêm aprender. Fechou há algum tempo mas agora está a funcionar bem. Fui à escola em Moçambique, até à quinta classe, mas não continuámos porque os nossos pais não trabalham. M 8 67 Fui educado só um bocadinho, para ter algum conhecimento. É por isso que disse, ‘Deixem-me ir para o Zimbabwe, procurar emprego.’ Apenas queria fazer algo, como vender coisas geladas ou bolos ou ovos. Neste momento vim para comprar alguns gelados para vender. Os meus irmãos foram para Joni.5 As minhas irmãs casaram-se lá. Os meus pais costumam ir lá. Os outros meus irmãos trabalham cá em Chipinge. Também foram à escola aqui, há muito tempo. O meu irmão que trabalha aqui aceitou-me. Eu disse a ele que queria trabalhar. Depois foi fácil arranjar trabalho porque o meu irmão ajudou. Somos muitos em Moçambique [rural], sem trabalho, aqui só há trabalho nas machamba e na comercialização da batata doce. Até mesmo comprar sabão é um desafio, portanto disse, ‘É melhor ir embora e trabalhar.’ Então agora eu compro e vendo. Quando me pagam compro calças, lençóis. Isto também dá para provar lá em casa que estava a trabalhar. Estive lá em Dezembro, no Natal. E em Janeiro também estava ali. Em geral, os guardas de fronteira moçambicanos dos postos de migração, são mais relaxados em relação às pessoas que atravessam a fronteira sem documentação necessária, ao contrário dos polícias fronteiriços que patrulham a fronteira, e são conhecidos por tratarem brutalmente as crianças que contrabandeiam mercadoria. Embora, como é natural, os oficiais de fronteira podem aproveitar-se da situação. Quando estás a passar, podem-te propor casamento. Um dia passei com a minha tia e o guarda disse, ‘Ah ... hoje você passou com esta miúda. ... eu, eu amo ela.’ Mas os outros que estavam lá disseram, ‘Não vês que ainda é criança? Não é possível para você dizer, ‘Amo esta criança.’ Não é possível!.’ O problema que enfrentamos é sermos apanhados pelos soldados, porque então todas as nossas coisas nos são roubadas. E depois obrigam-nos a trabalhar, temos que trabalhar um dia para eles. Assim nesse dia não dá para vender nada. P 7 68 Os órgãos de comunicação reportaram que os governos de Moçambique e do Zimbabwe aboliram os requisitos de visto para os seus cidadãos, em finais de 2007. Espera-se que a iniciativa facilite a circulação de pessoas e de bens entre os dois países. Anteriormente, os cidadãos de Moçambique e do Zimbabwe pagavam até 30 dólares americanos (cerca de 225 rands) para entrada em cada um dos países com um visto simples. Nos últimos dois anos, Moçambique assinou acordos para abolir os vistos com a Swazilândia, a África do Sul, a Tanzânia e a Zâmbia. As autoridades de migração foram citadas pelos órgãos de comunicação social locais como tendo dito que a abolição dos vistos teria aumentado a circulação de pessoas e de mercadoria.6 Os polícias de guarda fronteira zimbabweana e os soldados, muitas vezes exigem dinheiro às crianças que vendem vários bens, em troca da sua permissão de entrar para Moçambique. Atravessamos nos soldados, pagamos 4.000 dólares zimbabweanos. Quando voltamos, não pagamos nada. Se tem alguma coisa ou não, não interessa, se a pessoa quer passar deve pagar 4.000 dólares zimbabweanos. Nós pagamos para poder passar com as coisas que queremos. Às vezes eles aumentam o valor, quando chegas eles dizem 6.000 ou 5.000 dólares zimbabweanos. Se não pagas e queres passar, é difícil, eles te apanham e te batem. K Apesar ser raro haver crianças zimbabweanas a serem repatriadas de Moçambique, um rapaz de 17 anos de idade explica que isso acontece algumas vezes. Primeiro, disse-nos que tinha atravessado a fronteira com um grupo da igreja e que tinha usado um passaporte. Mais tarde, explicou porque é que tinha mentido sobre a sua situação em Moçambique. Eu estava a mentir porque houve informação de que só os Zimbabweanos é que eram retirados daqui e repatriados, porque não vamos ter um documento de identificação. Não te disse a verdade porque estava a suspeitar que isso podia acontecer assim. P Muitas crianças ocupam-se do comércio transfronteiriço, quando se vêm privadas da oportunidade de receberem uma educação formal. É muito difícil ir à escola, quando nem sequer se tem roupa para vestir. Os livros, até mesmo canetas, são muito difíceis de para comprar em Moçambique. Dói muito, ver os outros irem à escola e eu não poder. Os seus pais têm emprego. As crianças que estão comigo aqui, eles vão à escola e eu fico atrás. Posso ver que é um problema. Sempre pensei que se eu fosse educado eu poderia fazer um bom trabalho, como os outros estão a fazer. Mas na nossa família, somos assim, ninguém tem educação. Os meus irmãos têm as suas famílias, mas mesmo eles não podem ajudar com a minha escolaridade. Não têm dinheiro suficiente para isso. Posso ver exactamente que eles lutam pelas famílias deles. Ir à escola é muito importante porque se você se aplica, você pode ser motorista ou professor. E tudo isto porque és educado. Também para trabalhares numa loja, na indústria, ou na carpintaria, precisas de ser educado. Q N [Meu] pai faleceu em 2001. Foi atropelado por um carro quando ia ao serviço. Depois disso não podíamos ir à escola; eu e a Sofia, não fomos à escola, deixámos de ir à escola. Eu queria ir até à quarta classe. Depois de completar a escola queria fazer o trabalho de costura. As crianças cujos pais morrem, sofrem frequentemente de perdas múltiplas: casa, vida familiar, educação, segurança, futuro. M Sou natural de Mutare. Costumava ficar com os meus familiares e às vezes vivia no campo com a minha avó ... O meu pai faleceu em 1999, e a minha mãe em 2004. Quando o meu pai faleceu, eu tinha oito anos ... quando a minha mãe faleceu eu tinha treze. Sou o terceiro numa família de quatro crianças. Quando o nosso pai faleceu … a minha mãe estava a trabalhar numa oficina. Era aqui que o meu pai trabalhava também portanto, quando ele morreu, a minha mãe começou a trabalhar lá. Depois ela começou comprar e vender coisas, até que ficou doente... Nem sequer sei aonde estão os meus irmãos neste momento. Sei que a minha irmã está em Chipinge com a avó, aquela que teve a minha mãe. 8 69 Há muitas razões que levam as famílias à pobreza, e as crianças sofrem as consequências disso, especialmente quando os direitos tradicionais e habitos não são respeitados. Então as viuvas (e as suas crianças) ficam privadas dos seus direitos à herança a favor dos irmãos do marido e suas famílias ficando assim em pobreza. Quando os pais morrem, pode acontecer que a família alargada se apropriar da propriedade legítima dos órfãos. Às vezes, eles ficam a viver com familiares e são maltratados e abusados, enquanto que noutros casos são abandonados e têm que cuidar de si próprios. Para os órfãos, a negação dos seus direitos à herança constitui um factor que os leva a atravessar a fronteira para os países vizinhos, para ganharem precariamente para a sua sobrevivência. Antes do falecimento do meu pai, tínhamos cabritos, vacas, e galinhas e patos. ... eles foram-nos tirados pelo nosso babamukuru, o irmão do nosso pai, e ele levou-os para a sua casa. Disseram que é para o nosso irmão mais novo, deviam ficar com eles. A minha mãe não disse nada, apenas disse, ‘Deixa-os levá-los.’ O régulo disse para deixar as coisas assim. Então nós começámos a sobreviver, a sofrer … P As mulheres e as crianças podem tornar-se cada vez mais vulneráveis por serem privadas dos seus direitos de herança, nas famílias polígamas. 7 70 K O meu pai tinha negócios e então morreu. Quando morreu, os seus filhos eram muitos. Ele era um homem com muitas mulheres e a minha mãe era a mulher mais nova. Da minha mãe, nós éramos quatro, três meninas e um rapaz. [Depois da sua morte] Todas as outras mulheres tiveram que sair destas dependências ... Depois eles correram connosco, mesmo no restaurante lá, onde podes ver que destruíram as nossas coisas. Houve muita discussão. Alguém podia dizer, ‘Isto é meu’, e outro vinha e dizia, ‘Eu quero isso’ e ainda outro vem e diz ‘Eu também quero isso.’ Então eles simplesmente destruíam o que fosse. Eu ainda estava na terceira classe. E depois eu não pude mais ir à escola porque a minha mãe não tinha dinheiro para as propinas. Então pensei que atravessar era melhor. Então fomos embora. O meu tio era mau, ser batido todos os dias sem saber porque estás a ser batido. Ele realmente não me abusou... Não me violava. Ele costumava dizer, estou a ensinar-te alguns trabalhos na horta, nas machambas, a fazer tijolos, a ir buscar lenha, a cortar palha para cobrir o telhado, a ir ao moinho – que ficava a oito quilómetros de distância. Costumávamos acordar cedo para ir para lá, e depois íamos à escola. Isso foi duro porque quando a minha mãe e o meu pai eram vivos, não fazíamos tudo isso. Nós sobrevivemos muito bem antes da morte dos meus pais, porque tanto a minha mãe como o meu pai trabalhavam, e nos vivíamos na cidade. Tornou-se muito difícil fazer coisas que eu nunca tinha feito antes, especialmente ter que andar oito quilómetros carregando duas latas de milho. E não completei a minha educação. A minha avó não tinha dinheiro. P A epidemia da SIDA na África Austral faz com que muitas crianças se mudem para outras áreas. É a região no mundo mais afectada pelo HIV & SIDA. Actualmente, 27 por cento de todas as crianças menores de 15 anos no Malawi, e 14 por cento no Lesoto, perderam um ou ambos os pais. Os órfãos são mais susceptíveis a migrarem dentro dos países e a atravessarem fronteiras, do que as crianças que vivem com os seus pais. Uma das estratégias comuns para lidar com o SIDA dentro da família, é mandar os jovens para viver com familiares, às vezes a grandes distâncias das suas casas. Eles mudam-se para receberem cuidados, para cuidarem de outros, ou para procurarem trabalho de modo a sustentaremse a si próprios. As distâncias e as circunstâncias em que essas crianças viajam, podem causar-lhes problemas. Em geral, as crianças encontram meios para enfrentar a migração, mas estes mecanismos podem envolver a adopção de comportamentos viciosos e perigosos. É necessário que se realize mais investigação para aprender mais sobre o impacto do SIDA nas crianças migrantes.7 Este miúdo de dezasseis parecia ser muito inteligente. Estava vestido com uma camisete de côr castanha, desbotada e umas calças pretas bem engomadas. Tinha penteado o seu cabelo e os seus dentes eram brancos e limpos. Ele anseia por ter uma educação decente, mas sabe que por enquanto só pode ajudar a sua família a sobreviver. No entanto, sem ter um bilhete de identidade, ele está a enfrentar muitas dificuldades. 8 71 X não atravessou a fronteiras como uma emigrante ilegal, ela é a filha de mãe Moçambicana e pai Zimbabweano. Quando o seu pai faleceu, a sua mãe voltou a viver com a sua família em Moçambique. Enquanto a sua mãe é uma comerciante transfronteiriça, esta criança deslocou-se para a Beira, com dez anos de idade, para trabalhar para uma mulher que tinha uma criança recém nascida. Apenas quatorze, esta criança descalça parece ser mais velha do que a idade que tem e parece ser forte e energética. Ela estava calma quando começou a falar comigo mas depois já não conseguiu conter a sua dor e ela chorou. Após o falecimento do seu pai, ela perdeu todo o acesso a oportunidades, e direito âs suas necessidades básicas. Nasci em Machipanda em 1992. vivemos aqui um pouco e depois fomos e ficámos com o nosso pai no Zimbabwe. Depois dele falecer, voltámos para cá. Estivemos em Harare. O meu pai era soldado. Morreu de malária. A minha tia, a irmã da minha mãe, então disse que podíamos vir e ficar com ela porque a minha mãe não tinha condições para tomar conta de nós. Não tinha meios para pagar a escola, ou para comprar fardamentos. Não tinha dinheiro para nos alimentar porque éramos muitos a necessitar de coisas. Éramos seis crianças. Antes da morte [do meu pai] costumávamos sobreviver do seu vencimento, pois ele trabalhou bem e era a pessoa que nos ajudava. Quando ele morreu, não houve dinheiro nenhum e o outro dinheiro [a sua reforma] que era supostamente para nós usarmos, ficou atrasando e atrasando. Era difícil. A minha mãe estava a comprar e a vender roupa, mas teve um bebé pequenino e ninguém para cuidar dele. Então a minha tia mandou algum dinheiro para nós virmos para aqui em Machipanda, e começámos a viver com ela, e eles construíram uma casa cá e nos ajudamos-nos uns aos outros nas machambas. Estávamos a ir à escola aqui em Chikweya. Mas as coisas tornaram-se complicadas. A tia era doente. O tio tinha morrido e a tia não podia fazer tudo – dar aos seus filhos e também a nós. Ela estava doente. Então eu arranjei trabalho e fiquei na Beira. Foi ali que fiquei quatro anos, voltei o ano passado, em Dezembro. Tinha dez anos e fui arranjar um trabalho como empregada. O que me encorajou a ir para lá trabalhar foi porque eu estava muito doente com malária mas não tinhamos dinheiro para comprar os comprimidos. Foi por isso que fui para lá (os seus olhos enchem-se de lágrimas). Na Beira, o meu trabalho era ficar com o bebé e brincar com ele. Aquela senhora, a mãe, não me dava muito dinheiro, ela apenas me proporcionava oportunidade de ir à escola e comprava-me roupas. Àlgumas vezes ela dava-me dinheiro e esse era o que eu costumava mandar para a minha mãe. Estava a receber quatrocentos meticais. Agora estou na sétima classe. A vida ainda não mudou. Continuamos a enfrentar problemas ... mas não podemos fazer nada, só viver. Faltam coisas, dinheiro para comprar fardamentos e outras coisas para a escola, isso é difícil. Tudo o que eu quero é aprender para ter uma vida melhor lá fora. Se acabar a décima classe e, se Deus quiser, quero fazer alguns cursos. M 7 72 Na província de Manica8, muitas raparigas zimbabweanas trabalham nos bares, nomeadamente, na limpeza, na cozinha e como serventes de mesa mas, porque não têm autorizações de trabalho, elas são vulneráveis à exploração na suas mais diversas formas incluindo abuso sexual, como nos revelou esta rapariga de dezassete anos. Com a sua saia preta e rasgada e a sua blusa suja, de cor creme, a sua pele enrugada do sofrimento, esta rapariga parecia miserável, tensa e medrosa. Falou devagar e baixo, com um certo grau de desespero e de aflição. Ela é uma criança que sofreu muitas experiências más socialmente, mentalmente e psicologicamente. Comecei a trabalhar há oito meses. Às vezes não nos pagam, por isso o meu irmão já não vai à escola. Ele calou-se. Agora estou a pensar em voltar para casa para ajudar e para fazer alguns jobs com a minha mãe. Só espero que me dêem dinheiro para a passagem do machibombo para ir para casa. Não sei se eles mo darão ou não. Não me pagaram durante oito meses. Às vezes somos detidos. Eles dizem-nos para voltarmos para o Zimbabwe. Cobram-nos e depois voltamos para aqui. Eles prendem-nos porque alguns fazem coisas más … alguns miúdos, eles roubam. Algumas moças vão procurar dinheiro, encontrando-se com homens ... são apanhadas pela polícia e tudo é uma confusão ... confusão. Eu queria fazer isso [ir com moços] mas fui espancada. ... deixamo-nos influenciar por algumas moças no nosso serviço, mas fomos apanhadas pela polícia e fomos espancadas. Fomos apanhadas quando estávamos com alguns moços na rua às onze de noite, e eles bateram-nos. Eu estava à procura de dinheiro para voltar para casa. Não queria trabalhar mais. Dissemos umas às outras para irmos com moços. Queríamos ir ter relações com eles, mas não fomos ... É mau. Você fica doente e volta para dar problemas aos pais com várias doenças ... primeiro estás doente com DSTs e depois é o HIV. N De acordo com oficiais do governo provincial e ONGs locais da Província de Manica entrevistados em 2006 pela Save the Children, as mulheres e raparigas Zimbabweanas, estão envolvidas na prostituição ao longo do Corredor da Beira, na região central do país. Elas costumam juntar-se nos pontos de paragem dos camiões. ‘A prostituição é visível entre as Zimbabweanas, e elas dizem que vieram à procura de melhor condições de vida.’9 8 73 Quer as empregadas de bares se tornem ou não prostitutas, elas continuam a ser vulneráveis à exploração e ao abuso sexual. Quando acordo de manhã, varro. Depois de varrer eu e as minhas colegas, vamos buscar água e depois lavamos a loiça. O nosso trabalho propriamente dito é cozinhar e servir cerveja aos clientes. Este semana a minha colega vai cozinhar enquanto eu servo. Na próxima semana, eu vou cozinhar e ela vai servir. Há muitos problemas. Alguém pode beber cerveja, mas não paga. Então quando ele se vai embora, sou eu quem tem de pagar esse dinheiro. Às vezes não tenho esse dinheiro, então descontam no fim do mês. Às vezes, quando cozinhas, as pessoas dizem, ‘Queremos isto e aquilo e a gente vem mais tarde.’ Você prepara a comida e aquela gente não vem. Então, o dinheiro da comida é te descontado no fim do mês. Às vezes as pessoas ficam grossas e alguém pode fazer-te mal e usar uma garrafa para te bater... quando as pessoas que bebem estão bebedas podem fazer muita coisa. Às vezes um homem pode vir e querer tocar o teu peito ou alguém pode dizer, ‘Tenho dinheiro. Quero dormir contigo.’ Você diz a ele, ‘Ah, este tipo de coisa é difícil para mim. ... Eu, a fazer prostituição? Não posso. Não cresci a fazer isso.’ Essas são algumas coisas que me preocupam. Fico todo o tempo a pensar, ‘O que é que eu posso fazer? Posso deixar este job? Mesmo se fosse me embora, não tenho nada, como irei sobreviver? Mas há outras que trabalham cá, muitas que dormem com homens ... mas para mim, se você está apaixonada pelo seu namorado, ser apaixonada por um namorado só, se tu queres ... Mas maridos de outras? Nestes dias, há uma doença chamada SIDA, e outras também. Serás infectada de doenças ainda jovem. M Algumas crianças contaram que há raparigas zimbabweanas que vendem vários artigos durante o dia em Machipanda e Chimoio, e depois frequentam os bares a noite, à procura de homens com dinheiro. Outras raparigas que vendem artigos durante o dia, são abordadas por homens locais, que querem trocar dinheiro por sexo, conforme descreve esta rapariga. Ouvimos que isso acontece em certos locais. Existe uma banca, diz-se que é ali onde essas moças se encontram. Chama se a Padrinha. Elas vêm para vender as suas coisas e então apaixonam-se por algumas pessoas. Estão a procura de homens. Há outra moça com quem falei ontem que disse que, quando está a vender, alguns homens vêem e dizem eu tenho dinheiro, queres dormir comigo? Há muitos homens, nem sequer sei quem são. Eles dizem quanto é essa coisa e eu digo quanto é. Eles dizem, ‘Se eu dou-te este dinheiro, vais dormir comigo.’ P Agora eu tenho palavras para as moças da minha idade, não vamos fazer como se fôssemos parvas. principalmente, brincar no mercados, os rádios a tocarem música nos mercados, pessoas que querem fazer prostituição. Vamos deixar essas coisas como estão. K 7 74 Para alguns dos oficiais governamentais entrevistados, a existência de raparigas emigrantes zimbabweanas que se tornam prostitutas, não é um motivo principal para preocupações: ‘Não consideramos um assunto alarmante. Algumas destas moças vêm e regressam ao seu país no mesmo dia. Elas trabalham no Zimbabwe e só vêm a Moçambique para passarem a noite, e voltam de madrugada. Isto acontece porque o Zimbabwe tem uma cultura e leis que se opõem fortemente à prostituição, e muitas fogem do seu país e vêm a Moçambique para o fazerem.’10 Todavia, um representante duma ONG local em Manica tinha um ponto de vista muito diferente: ‘O assunto das Zimbabweanas na prostituição é alarmante. Os números estão a aumentar; os primeiras que chegaram eram menos vulneráveis, mas agora essas trazem mulheres novas que trabalham para elas.’ Um representante duma outra ONG afirmou o seguinte: É a situação social e económica delas que as leva à prostituição. Pensam que esta pode ser uma forma de sobrevivencia. A maior parte destas crianças não vivem com os seus pais, e algumas delas são mesmo órfãs. Se os empregadores tiverem um mínimo sentido de responsabilidade, eles protegeriam as raparigas. Y é pequena e tem a cor da pele clara. Estava vestida com uma mini-saia azul e uma camisola preta justa, e tinha um aspecto muito atraente. Uma rapariga aberta e inteligente, com uma confiança que não foi diminuída pelas suas experiências, ela parecia tanto inocente como concentrada. Aqueles com quem trabalhamos são nices pois quando vêem que essa gente está grossa, eles empurram-nos para fora do quintal. Aqueles que começam a discutir, eles chamam a polícia e essa gente é mandada para fora. Não podem entrar aqui quando estão grossos e querem violência. Acontece muito que alguém vem e começa a dizer, ‘Não me deste o meu troco!’ Ele começa a discutir ... talvez quer enganar-te ... talvez ele propôs ter relações contigo, e tu rejeitaste-o, portanto ele quer armar-te uma cilada e diz ‘Se tu fazes isso, eu vou fazer isto.’ Estes são alguns dos problemas que enfrentamos. P Quando um emprego não resulta em nada, ou quando as crianças são molestadas, exploradas ou deportadas, elas sentemse fracassadas. 8 75 E embaraçoso voltar para casa de mãos vazias depois ter trabalhado tanto... Queria começar a comprar roupa, depois uma carteira... Queria costurar um fardamento para o meu irmão e dar dinheiro à minha mãe. Vim para cá porque as pessoas diziam, ‘Em Moçambique, há dinheiro. Em Moçambique eles pagam.’ Mas não era verdade. Eu pensei que ia trabalhar para ajudar a minha família. Agora só quero ir para casa. M Endnotes 1 7 76 Visitors from Zimbabwe. Save the Children UK in Mozambique. May 2006. <http://www.savethechildren.it/2003/download/Pubblicazioni/ Zimbabwe/Zimbabwe_Cross_Border_Children.pdf> 2 O facto de ela dizer que demorou várias horas para ir a pé da fronteira para a cidade de Machipanda, a qual fica muito perto, sugere que ele não atravessou no posto de fronteira principal, mas num dos postos mais pequenos. 3 Dangamvura e Sakubva são subúrbios de alta densidade populacional de Mutare. 4 Diamantes. 5 Joanesburgo em particular. Mas usa-se a palavra também para referir a África do Sul. 6 ‘Mozambique, Zim to ease border rules.’ South African Press Association. 27 June, 2007. 7 Dum ensaio de pesquisa publicado em id 21 por Nicola Ansell e Lorraine Young, Dept of Geography and Earth Sciences, Brunel University, Uxbridge, UB8 3PH, UK. A pesquisa foi financiada pelo DFID. Email: <[email protected]> ou <[email protected]> 8 A Save the Children em Moçambique tem recebido depoimentos que sugerem que as raparigas zimbabweanas trabalham em restaurantes e bares em vários pontos de paragem de camiões nas províncias de Manica e Sofala, ao longo do chamado Corredor da Beira. Também se diz que estão envolvidas na prostituição nestes locais. Viajando para este, o Corredor termina no porto da Beira, junto ao Oceano Índico. Devia-se realizar uma pesquisa para determinar o número de raparigas que trabalham ao longo do Corredor para se ter melhor entendimento da situação delas. 9 op.cit. nota 2. 10 op.cit. CAPÍTULO 5 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O ‘Ninguém é demasiado jovem para trabalhar.’ Viver e trabalhar longe de casa ‘Mesmo quando estás a lutar para a sobrevivência não lhes dizes que estás a sofrer, tu dizes, “Estou bem aqui.”’ ‘As únicas diferenças entre a África do Sul e o Zimbabwe é só sobre jobs e dinheiro.’ ‘Ficar na rua não é a minha escolha. Não quero ser assim para o resto da minha vida. Quero ver-me a ir à escola e a crescer sabendo ler.’ Um rapaz negro, mal vestido com dezoito anos de idade. Tem um aspecto de quem parece não ter nada a fazer excepto a vontade de ir para a África do Sul, uma vez que ninguém pode pagar as suas propinas Incluímos esta entrevista na totalidade porque as experiências deste adolescente assemelham-se às de tantos outros adolescentes. Ele desejava trabalhar e trazer um carro dele para casa,. Mas sem quaisquer qualificações, apenas conseguia trabalhos temporários, embora ele reconheça que, mesmo assim, muitas vezes era melhor remunerado do que seria na sua terra natal, o Zimbabwe. Quando a gente chegava em Messina, os gajos com quem eu estava diziam, ‘Temos dinheiro, vamos a Pietersburg.’ Deixaram-me ali e eu cheguei nesta quinta e procurei um K 8 77 job. Eles disseram, ‘O trabalho que temos aqui, é apanhar laranjas.’ Tu sobes numa árvore, com a escada para apanhar as laranjas. Estás a carregar um saco nas costas e tens que pôr as laranjas lá dentro. Quando enches o saco recebes 25 cêntimos. Mas eu tinha ouvido dizer que quando tu comes, não há problema. Portanto comecei a comer as laranjas. Então, quando senti a minha barriga cheia, saí da quinta e deixei o dinheiro do meu trabalho. Então ia a uma outra quinta em Chipisa. Quando cheguei lá, eles disseram, ‘O trabalho é aqui, apanhar tomates, 27 cêntimos.’ Nessa altura eu vi que o dinheiro não era grande coisa, portanto saí daquele sítio e fui a pé para Louis Trichardt. Então eu vi um homem preto que tinha um veículo pequeno e abordei-o. Ele 7 78 disse, ‘Aonde é que tu vais?’ e eu disse, ‘Procurar um job.’ Ele disse, ‘Se estás a procurar um job, vamos.’ Quando a gente chegou em Louis Trichardt, ele largou-me na cidade. Então eu comecei a andar à procura e arranjei um job, tinha que arranjar o jardim na casa dum certo homem, era para três dias só. Depois dos três dias, ele dava-me 150 randes. O dinheiro era suficiente para eu ir a Pretória e chamar o meu tio. Ele tem uma cervejaria em Golden City, portanto eu estava a viver com ele. Ele arranjou um trabalho para mim, como vendedor numa cantina duma escola, portanto eu vendia e vendia. Então veio um problema. Um tipo numa cantina bem perto foi abatido com uma arma, portanto eu deixei o meu job. Depois comecei a misturar argila num local de construção – chama-se o rapaz de djadja . Mais tarde um homem branco acolheu-me e eu comecei a viver com ele na sua casa em Pretória e fiquei lá durante algum tempo. Eu continuava a fazer jardinagem. Então ele teve que ir para a América portanto eu tive que voltar à casa do meu tio. Então o meu tio arranjoume documentos de segurança e eu comecei a trabalhar como segurança [guarda]. Quando eu voltei para casa, eu ainda era um segurança. Era só que eu tinha ficado tempo demais na África do Sul, portanto eu dizia, ‘Deixa-me voltar para o Zimbabwe. Não fui deportado.’ Fui de machimbombo desde Pretória e que nos deixava em Messina, então a partir de lá ia de táxi para a Ponte. Pagámos uma multa e atravessámos sem passaporte. A sua resiliência, a avaliação franca das suas experiências bem como a sua coragem constituem qualidades que, em diferentes circunstâncias, poderiam ser recompensadas e poderiam beneficiar a sua própria sociedade; mas, da maneira que as coisas estão, ele irá provavelmente passar a maior parte da sua vida a viver o quotidiano. Na África do Sul, eles sabiam que eu era um Zimbabueano mas tudo depende da pessoa – alguns tratamte bem, outros não. Alguns riem-se de ti e chamam-te gricamba. É só um nome que eles dão às pessoas, especialmente às do Zimbabwe. O gricamba é o tal escaravelho que empurra estrume dum lado para o outro (risos). Alguns – se não tens comida ou roupa – eles dão-te. Posso dizer também com a polícia, depende da pessoa: eles podem vir e falar contigo, mesmo em Shona, sem te assustar nada. Mas outros são apanhados. O trabalho era um problema. Havia um tempo quando eu saí da casa do meu tio e estava a viver na cidade. Estávamos a dormir no mato. Cada manhã estás a acordar para procurar um job. Isto causava muita tensão. Eu arranjava um job, depois está acabado, então arranjava outro e está acabado. Eram só trabalhos de empreitada. Quando arranjei o job na segurança, já era melhor. Era de seis a seis. Três turnos de noite e três tunos de dia. E depois dois dias de descanso. Tinha muitos amigos. Eles gostavam de saber falar Shona e eu gostaria de saber falar Suthu ou Changana. As únicas diferenças entre a África do Sul e o Zimbabwe é só nos jobs e dinheiro. Aqui, olha para mim, eu não concluí a escola, então para eu ter um job para mim, ou é para guardar gado ou para cortar cana de açúcar, e eu estou a ver que isso não serve para fazer. Mas, naquele outro lado, mesmo para misturar argila ou algo, tu recebes dinheiro, o que é ok. Portanto nesse aspecto a África do Sul é muito melhor. Aqui é bom que a gente tem a liberdade de fazer coisas, ali as armas ou até ser assaltado é um problema. Por exemplo podes ouvir 8 79 armas perto, então no dia seguinte dizem que alguém foi abatido. Aqui, se tens o teu dinheiro, podes divertirte bem. A minha mãe, sim, costumava a falar com ela no telefone, ou escrever uma carta. E, ahhh, como alguém que fica muito longe, mesmo quando estás a lutar para viver não dizes a eles que estás a sofrer, tu dizes, ‘Estou a viver bem aqui.’ Porque quando tu dizes. ‘Estou a sofrer aqui,’ então eles lá não vão estar bem aqui (ele bate com a mão no coração). Agora estou a pensar a voltar para a África do Sul (ri-se). Só que o dinheiro para voltar é um problema. Não se podem processar os papéis sem dinheiro. Mas se alguém pergunta-me a mim sobre ir para o sul, não tenho tempo para contar mentiras a ninguém, simplesmente vou dizer, ‘Bradas, vocês não vão de qualquer maneira para aquele lado, vocês precisam de ter feito isto e aquilo. Ir só assim! Ah, vocês vão sofrer.’ Ja, eu não tenho que esconder nada – como dormir no mato e não encontrar um job. A minha mente disse-me que quando eu volto, eu vou regressar com um carro, mas ahhh, eu estava a mentir a mim mesmo (ri-se). Aqui, eles pensam que és um majonijoni com dinheiro, mas tu não vais ter nada (ri-se). Os jovens eles dizem, ‘Ele está a mentir. Só não quer que eu vou para o sul com ele. Ele quer ir sozinho.’ Contudo vais dizer a verdade a eles, que este caminho é duro. ‘Há tantas crianças que estão a sofrer como eu, e até mais.’ ‘A pobreza empurra-nos para atravessarmos fronteiras e tentar ganhar a vida.’ Quando um país está em crise, o contexto obriga as pessoas desse país a emigrarem legal ou ilegalmente para outros países, os que permanecem, em muitos casos, dependem das remessas do estrangeiro. Neste aspecto, as crianças assumem as tarefas dos adultos visto que se responsabilizam pelas famílias ameaçadas pela fome e pela privação. Desde muito pequenas, as crianças sentem a obrigação de trabalharem para sobreviverem1. No entanto, a sua vontade de trabalhar opõe-se à lei que considera ilegal o trabalho infantil, ou seja, de a crianças com menos de quinze anos de idade2 como também é ilegal trabalharem sem a autorização de trabalho. Assim, a sua ansiedade desesperada de trabalhar leva a que muitos oportunistas não hesitem em explorá-las. Adicionado aos factos anteriores, frequentemente, quando as crianças chegam pela primeira vez ao outro lado da fronteira não têm lugar para se hospedar ou viver. Assim, elas dormem no mato ou ao relento sem condições mínimas de segurança. Para poder comer, procuram trabalhos temporários. Nestas circunstâncias é possível o surgimento de casos de xenofobia. As crianças sem família, amigos ou documentos não têm ninguém a quem recorrer em situações de abuso. E vivem permanentemente com medo de serem presas e repatriadas. Eu acordo de manhã e choro, a pensar aonde hei-de ir e o que vou fazer, para conseguir arranjar alguma coisa para comer. Eu começo a andar às voltas, à procura de alguns jobs temporários. Aqui eu arranjei um trabalho de lavar roupas e vou ganhar alguma coisa para comer. Nos fins-de-semana é muito diferente dos outros dias porque há muitos jobs temporários para fazer, portanto posso conseguir trabalhar por dinheiro e comida. Às vezes outros dão-me roupa velha para vestir, porque eu não tenho dinheiro para comprar. [Quanto ao pagamento] depende do job, porque eu só faço lavagem e limpeza. Às vezes recebo 60 rands P 7 80 por semana. Não poupo o dinheiro porque o uso para comprar comida e pagar a renda do lugar onde estou. Não posso dizer que tenho um valor visível no fim do mês. Às vezes eu trabalho para uma pessoa e eles não me pagam e começam a gritar, eles dizem que sou apenas um Zimbabweano. Não posso ir a lado nenhum para registar queixa. Às vezes eles dizem a mim que vão me dar dinheiro no fim do mês, mas quando o dia chega, eles começam a dizer outras coisas para eu ter medo, então eu saio de lá e vou-me embora. Sinto-me deprimido e preocupado porque eu cheguei aqui para trabalhar para a minha família e agora as pessoas tratam-me como um escravo, e isso não é bom. Mas eu peço a Deus que, um dia, eles vão entender como é duro sair da tua casa e ficar nos países de outras pessoas sem conhecer ninguém. Eu acordo de madrugada e vou para fora para procurar um job. Se não encontro, volto à tarde e cozinho farinha de milho, se houver alguma. Se não houver nada, vou dormir com estômago vazio. Eu durmo lá fora com os meus amigos. Não há nada que podemos fazer porque o dono da casa não quer que a gente dorme dentro da palhota mas a gente paga dinheiro, 70 rands. M O rapaz tinha dez anos de idade. Era tímido e muito triste. Este rapaz órfão tem agora onze anos. Está a viver em Musina já há dois anos. Saiu de casa para ganhar dinheiro para ‘pagar as propinas da minha irmã’. De manhã eu acordo e apanho algumas garrafas na praça de táxis na cidade. Eu durmo na praça com alguns outros moços que não têm sítio para ficar. Quando não consigo apanhar algumas garrafas, eu peço a algumas senhoras que cozinham na praça para ajudar-me, com alguns restos para comer. E depois isso, eu vou à cidade para procurar garrafas de novo. Quando apanho algumas, vendo-as às senhoras que vendem água. Recebo cinco rands por um saco de plástico cheio de garrafas e então poupo o meu dinheiro para comida e roupa. Às vezes eu vou buscar água para as senhoras e depois elas dão-me dez rands por garrafão [um bidão de plástico de 10 litros]. Portanto eu junto isto ao dinheiro que ganho a fazer a recolha de garrafas. Apanho-as todos os dias, mesmo aos fins de semana, porque o dinheiro que eu recebo ajuda-me a comprar comida, portanto não tenho tempo para descansar. Às vezes não consigo ir buscar água ou recolher algumas garrafas, então eu uso o dinheiro que poupei e compro comida, e posso dizer que há um limite ao montante que dei à minha mãe. R 8 81 Não há outro job que estou a fazer para além deste. Eu vi outros a apanharem garrafas na cidade e eu junteime a eles porque eles tinham a mesma idade que eu. Não há outra coisa que posso fazer porque ainda sou novo para ter um job. Eu cheguei aqui no ano passado, em Novembro. Não posso dizer quanto tempo vou ficar aqui porque quando vou ter mais algum dinheiro vou decidir voltar para casa e ir e dar algum dinheiro à minha mãe porque agora eu sou o único que trabalha. Eu vendo sorvete, desde cerca das oito da manhã e eu volto cerca das dezoito. Então vou para o meu lugar e vou dormir. Nos fins-de-semana eu trabalho porque nesses dias o sorvete está a ser muito comprado porque as pessoas vão estar sentadas nas suas casas. Portanto eu trabalho mesmo no fimde-semana. Não tenho dia de folga, excepto quando está a chover, é quando tenho o meu descanso. Há amigos que dão-me dinheiro para comida e às vezes eu vendo sorvete extra e uso o dinheiro para comprar comida mas eles vão descontar do meu pagamento. Desde que cheguei aqui só tenho vendido sorvete porque este é o job que posso fazer, porque ainda sou novo para trabalhar nos jobs duros. Também algumas pessoas insultam-me e dizem coisas tristes, como. ‘Tu, um Zimbabweano, como é que tu podes vender sorvete sul-africano?’ Alguns tiraram o meu dinheiro e disseram-me para não dizer nada. Algumas pessoas levaram o meu sorvete e recusaram-se a pagar. Quando eu digo que eu preciso do meu dinheiro eles disseram-me para voltar ao Zimbabwe e pedir à minha mãe para pagá-lo, senão vão-me levar à esquadra. E não gosto nada disso porque eu vim cá para trabalhar não para ser apanhado. Portanto fico quieto e continuo a vender. Mas se o dinheiro falta, quando eu volto ao meu patrão, ele diz que vai descontar o dinheiro do meu pagamento. O montante exacto do salário depende da comissão. Quando tu vendes 100 rands recebes vinte rands; às vezes nunca vais vender tanto, portanto não vais receber. Mas mesmo assim eu sinto-me bem porque às vezes eu vendo 250 rands por dia e ainda por cima consigo mandar algum dinheiro e roupa para os meus familiares. Portanto sinto-me melhor em vender sorvete do que a fazer outros jobs em que acabas por não receber. Normalmente ganho 700 a 1,000 rands por mês. O problema é que não tenho feriado, isso faz-me não ter tempo para ir para casa, ou para comprar as minhas coisas para enviar para casa. É esse o problema que eu tenho a vender sorvetes. M Havendo falta de educação formal e de emprego para muitos jovens, e estando a pobreza a minar a sua própria existência, não é de admirar que eles anseiem por terem posses que julgam recompor o seu orgulho e o seu sentido de identidade e auto estima. Algumas outras moças da minha zona estavam a falar sobre a cidade e eu admirei-a, então eu decidi ver por mim mesma. Elas falavam de muitas coisas como os câmbios de dinheiro, roupa barata e muitos jobs com bons pagamentos todos os meses. Felizmente eu estava com moças que têm familiares em Musina , e eles ficaram comigo durante quase duas semanas e tentaram arranjar alguns jobs temporários para mim. Ainda estou a procurar um job fixo e não consigo porque não tenho um BI da África do Sul e não tenho passaporte, mas vou ficar desde que consiga o que quero. P 7 82 Era a minha decisão vir aqui porque eu costumava admirar os outros do sul, e também quero trabalhar para os meus pais. Sinto-me bem e feliz a trabalhar, a fazer trabalhos temporários, mas o problema é que às vezes somos presos e repatriados. Esta rapariga tem dezassete anos de idade. Ela vive num bairro de barracas mesmo à saída de Musina. Ela trabalha todos os dias úteis para uma família na cidade e também faz trabalhos de empreitada. Uma rapariga inteligente, vestida com roupa limpa e bonita, ela falava cuidadosamente e sentia orgulho de si. As raparigas, muitas vezes, encontram formas de trabalho doméstico, as quais lhes proporcionam um sítio para viver, mas também estão sujeitas a serem exploradas em termos das horas que trabalham e do baixo salário recebido. O meu job fixo é lavar roupa, cozinhar e fazer a limpeza. O job é na cidade. Trabalho para os Indianos, da Segunda até Sábado, das 7 até às dezassete. É trabalho duro. Eles dizem, ‘Faz isto! Faz aquilo!’ Gritam-me como eu fosse um cão. Eles dão-me trabalhos demais por dinheiro de menos. Dão-me 250 rands, com o bónus são 300 rands no fim do mês. Dão-me comida. Eles servem para eles mesmos e para mim. Preparam um prato para mim e dizem, ‘Toma e come acolá!’ Ao Sábado trabalho meio-dia. Quando eu volto do serviço vou fazer outro trabalho por empreitada, porque o dinheiro que recebo não chega para sustentar-me a mim e à minha família no Zimbabwe. Talvez consiga ir a uma pessoa e pedir um job por empreitada e eles arranjarem-me alguma coisa a fazer. Talvez possa lavar o chão, talvez possa varrer, talvez possa carregar tijolos. Faço isto em Mshongo [um bairro de barracas nos arredores de Musina ]. Carregar tijolos é trabalho duro. Por cerca de 60 tijolos grandes recebo 15 rands. As pessoas, como as crianças de escola, não tanto os mais velhos, chamam-nos ‘maZimbabwean’, como se nós fossemos cães. ´Vocês cheiram mal, voltem para casa, Zimbabweanos.’ Sentes-te mal no coração, isso dói. Também, quando estou no caminho para casa, posso ser assaltada pelos magumagumas. Eles roubaram muito dinheiro a mim. Dói-me porque não sei o que fazer ou dizer, pois sou Zimbabweana. Vou ter medo ir à polícia porque eles vão-me prender. K 8 83 Nas quintas, as crianças trabalham durante várias semanas, e aproximando-se do dia para auferirem os seus salários, alguns agricultores informam à polícia da existência de emigrantes ilegais nas suas quintas. Deste modo, a polícia dirigese às quintas e prende-as e depois repatria-as sem terem sido pagas pelo trabalho que realizaram. Isto não acontece apenas com as crianças no sector agrícola. Ouve-se, frequentemente, falar de crianças a serem exploradas, quer por não serem pagas quer por serem mal pagas. Elas não têm ninguém a quem possam recorrer. Algumas das pessoas para quem eu trabalho, eles pagam, e outros não pagam. Eles dizem, ‘Vão-se embora Zimbabweanos!’ Depois de eu ter trabalhado eles prometem que vão chamar a polícia para me prender. Tenho o caso dum homem que recusava pagar-me e quando eu fui à polícia eles correram comigo. Disseram-me para ir apresentar queixa no Zimbabwe. Sinto-me tão triste e zangado quando as pessoas não querem pagar-me. Repatriaram-me duas vezes quando estava a apresentar queixa. P Uma vez a trabalhei com alguém, a soldar, e ele tinha-me prometido pagar 100 rands por semana, mas ele nunca pagava. Eu fui à polícia para apresentar queixa e eles não me ajudaram. Em vez de ajudar, eles perguntaram tens passaporte ou um BI e eu disse, ‘Não’. Então disseram-me para desaparecer porque eles vão prender-me e repatriar-me porque não tenho autorização para estar na África do Sul. Senti-me zangado e triste porque eu pensava se calhar eles vão ajudar-me, porque são a polícia. Q Tal como acontece com as crianças em muitas povoações fronteiriças, algumas crianças em Beitbridge atravessam para Musina regularmente para recolherem ou venderem garrafas vazias. Alguns funcionários aceitam subornos para deixálos atravessar a fronteira; outros, mais sensíveis às dificuldades delas, podem fazer de conta que não vêem. Não tive problemas nenhuns porque passei a fronteira com outros miúdos, que eram da mesma idade que eu. Dissemos ao polícia que vamos apanhar algumas garrafas no lado sul-africano, e que vamos voltar de novo à noite, então eles deixaram-me passar. Eu não lhes paguei porque eu disse a eles que hei-de voltar e eles disseram, ‘OK, mas se tu não voltares, algum polícia vai prender-te e repatriar-te. E então a gente nunca mais vai autorizar-te a passar a fronteira porque estavas a dizer mentiras a nós.’ N Eu disse à policia que não tenho passaporte ou BI. Eu explico-lhes porque é que eu venho para a África do Sul. Tive sorte porque eles entendem-me. Assim, eles disseram para eu trabalhar e não roubar. Disseram que quando eles me apanham a roubar eu vou estar em grandes sarilhos porque eles sabem muito bem onde encontrar-me. M Quando as crianças atravessam a fronteira, é quase tão importante encontrar um lugar para ficar como encontrar emprego. A alternativa é dormir no mato, ou num lugar público relativamente seguro, tal como a praça de táxis. Nestas circunstâncias, a higiene pessoal é deficiente. Os rapazes são mais propensos de serem considerados bandidos e vagabundos, e inadvertidamente vão alimentar a animosidade que existe contra os emigrantes nos países receptores. 7 84 Eu fico na praça de táxis ou às vezes no mato porque na praça tem uns soldados que chegam à noite e prendemme, portanto às vezes eu decidi ficar longe da praça. Os soldados, à noite eles chegam na praça e pedem ver algum BI e passaporte de algumas pessoas que estejam a dormir na praça. Às vezes eles prendem-me e eu detesto isso porque eu não quero voltar para o Zimbabwe. Eles levam-me para a esquadra e no dia seguinte repatriaram-me para o Zimbabwe e eu fui para casa, mas eu volto para a África do Sul no mesmo dia. Os ressentimentos e a hostilidade para com os emigrantes ilegais são em parte provocados porque eles estão dispostos a trabalhar por muito menos do que os sul-africanos da mesma idade. Isto é uma consequência inevitável da sua própria pobreza e da desvalorização crescente da moeda dos seus países de origem. Eu não me importo trabalhar por dez rands à hora, porque ao menos recebo alguma coisa, por mais que não seja grande coisa. E pago a minha renda, talvez 350 rands... eu alugo um lugar na sala com uma cortina pequena – um sítio pequenino que posso alugar por 300 rands. Talvez eu consigo ganhar 900 rands por mês, então eu posso mandar 200 rands para os meus pais no Zimbabwe.3 P Alguns jovens atravessam a fronteira para procurar um familiar4 ou, nalguns casos, são convidados por um familiar para se juntarem a ele. Enquanto isto lhes pode dar um lugar para viver, o facto de serem apoiados por um familiar não afasta a possibilidade de serem explorados. De facto, como o ‘empregado’ não pode simplesmente ir-se embora, eles são muitas vezes tão vulneráveis à exploração como aqueles que trabalham para estranhos. A pessoa que me pagou para eu vir para cá – eles pagaram cerca de ZAR 1.200 – então eu tinha que trabalhar durante três meses para eles. Ela era a cunhada do meu irmão. Ela precisava de alguém para tomar conta do bebé. Ela não confiava em ninguém para cuidar do seu bebé porque a última pessoa que trouxe para cá deu uma dose demasiado forte de Panadol ao bebé ... Ela disse para eu vir e ela pagou a minha viagem. Trabalhei durante três meses sem receber porque ela tinha pago este dinheiro. E então, três meses depois ela não me pagou... Eu tomava conta do bebé. Cozinhar, lavar roupa, limpar. O dinheiro que ela devia pagar-me, era pouco demais porque em Março ... ela pagou-me 300 rands em vez de 400. E só para cuidar dum bebé, ouvi dizer que as pessoas pagam cerca de 600 rands. Mas eu estava a lavar e a limpar também e no fim de tudo ela dava-me só rands. Sim, e eu enviava tudo para casa. Não gastava mesmo nada. Ya. Cinco meses sem receber. K O alojamento para os migrantes com baixos salários é um problema permanente. Eles vivem em locais superlotados pois frequentemente procuram ajudar-se mutuamente ou partilhar a renda. Contudo a superlotação da habitação pode causar outros problemas de saúde e higiene. P Nós ficamos numa varanda, e somos três. Há outras pessoas que alugam os outros quartos. Há o quarto principal, um quarto extra e a sala. Não é higiénico. Há algumas pessoas, que não limpam e se tu não limpas, te arriscas a ficar doente. Portanto se alguém não limpa, tu que tens que limpar. Algumas pessoas não são higiénicas na sua maneira de ser. Temos um esquema de tarefas domésticas, mas o meu primo e eu somos os únicos que o seguem. Há doze pessoas no lugar aonde eu fico. Sabe, é como ... numa sala, é um espaço aberto, mas ... eles simplesmente prendem cortinas e assim a sala pode ser partilhada e nosso apartamento tem duas cortinas ... há dois casais naquela sala. Então já são quatro pessoas e na varanda são duas. É um casal também, portanto faz seis pessoas. E há mais dois quartos, imagina quantas pessoas estão a viver nesse apartamento e quantas cumprem o esquema de tarefas domésticas ... somos todos Zimbabweanos. M 8 85 X era uma rapariga confiante e i nteligente, que falava perfeitamente Inglês. Ela provinha claramente duma família dedicada de classe média e estava a enfrentar dificuldades em viver em Hillbrow, cidade muita gente, suja, e violenta. Eu tinha a sensação de que ela raramente saía do apartamento que partilhava com as suas primas, pois tinha medo do crime e de ser apanhada pela polícia. Sem emprego ou sem um lugar para ficar, os jovens na África do sul vivem sem documentos5 com medo de serem presos e repatriados, com grandes despesas sob a forma de grandes multas ou de subornos, que não são suficientes para desencorajar aqueles que estão determinados a ficar. É preciso um BI para tudo e eu nem sequer tenho nada comigo. É muito assustador, porque se acontecer alguma coisa contigo, eles não podem identificar-te não sabem quem tu és, donde tu vens ... Não têm contactos sobre ti. Eles não têm impressões digitais. Tu estás lá simplesmente. … Estou preocupado com os polícias. Porque a minha prima, ela costumava trabalhar num restaurante. Ela foi apanhada duas vezes e teve que pagar 600 rands em dois dias. Ela vai trabalhar, eles apanham-na. Ela foi presa e nós queremos soltá-la e pagar os 600 rands. No dia seguinte acontece a mesma coisa e ela simplesmente deixou o job dela porque só trabalhava para a polícia. Sempre que ela regressa do seu trabalho, eles prendem-na ... Pedem ver o BI ou passaportes e tu simplesmente não os tens. Agora eu estou sempre em casa. Se realmente tem uma razão pare eu descer e fazer alguma coisa, tal como fazer compras quando não temos nada para comer em casa, ou se tenho de encontrar alguém... Eu saio da casa mas não é simplesmente para ter conversas. Eu passo o dia sentada, a dormir, a não fazer nada. ... eu sei que se volto para casa, é voltar ao ponto de partida. Seria só para ficar sentada, portanto é melhor vir para este lado e procurar um job. N Perguntámos às crianças se, após chegarem à África do Sul, quando procuram trabalho, a vida é mais fácil para as raparigas ou para os rapazes.As suas afirmações são profundas e frequentemente negativas.6 Este jovem acha que as raparigas têm uma vida mais fácil do que os rapazes. Os rapazes sofrem sempre quando vêm para a África do Sul e eles têm problemas quando estão a procurar um job, mas as miúdas têm uma vantagem porque um homem pode propor casamento a ela e assim ela tem um lugar para viver e torna-se a sua esposa. Eles ajudam as miúdas porque pensam que os miúdos talvez estão aqui para roubar ou para serem criminosos, portanto eles têm medo de nos ajudar. M 7 86 Estas raparigas concordaram com ele. P Os miúdos quando chegam aqui sabem para onde ir e o que fazer mas o problema é que não têm sítio para ficar e as pessoas os tratam como pessoas que vieram cá para roubar, portanto eles mandam prendê-los, portanto os miúdos fogem e escondem-se. Para nós miúdas, para nós é mais fácil porque às vezes os homens tomam-nos para esposas, temporariamente, até que tens um lugar para ficar. Não ficamos no mato, a sofrer como os miúdos. Esta criança de dez anos tinha uma perspectiva diferente. Nós rapazes, podemos trabalhar para ter o nosso dinheiro sem sermos usados por outros homens, como são as moças. Também não é bom porque num certo momento alguém vai dizer ‘não’ e eles decidem para matá-la porque vão ter medo que a miúda vai apresentar queixa à polícia. K Nas cidades maiores, tais como Joanesburgo ou Pretoria, os grupos nacionais (nota do revisor - de uma certa nacionalidade) apoiam-se uns aos outros. Existem redes que ajudam a encontrar trabalho, alojamento, maneiras de enviar dinheiro para casa, etc. O que eu gosto de nós Zimbabweanos … é que mesmo se a gente nunca se conheceu no nosso país, ajudamonos uns aos outros. Suponhamos, talvez fico preso hoje, posso chamar um amigo e ele pode vir e subornar o polícia para mim ... e então ele sabe que amanhã a mesma coisa pode acontecer com ele, portanto a gente ajuda-se uns aos outros. Sempre gostamos de estender a mão uns aos outros. P Muitas crianças são repatriadas, e muitas voltam. Outras precisam de ir e voltar para levar bens e dinheiro para as suas famílias, e fazem isso numa base bastante regular. Os oficiais da polícia e dos serviços de migração em ambos os lados da fronteira aproveitam-se das oportunidades para explorarem os migrantes ilegais. As raparigas são particularmente vulneráveis. 8 87 M Eu repatriada e fui apanhada pela polícia e eles levaram-me à esquadra e eram cerca de 3 horas de manhã e eu durmo na esquadra. Eu tenho problemas com a polícia porque eles nos estavam a tratar como pedaços de papel na estação. Eles misturaram-nos com os rapazes no mesmo camião. Não foi bom para mim porque eu era a única miúda nessa altura. Um dos polícias tentou declarar-se a mim. Ele disse, “Se tu me amares, eu não te vou mandar embora.” Eu tive medo porque eu pensei talvez ele está a tentar ver se eu sou uma prostituta. Portanto eu disse que não. Ele disse-me que eu ia ficar presa para o resto da minha vida porque eu o recusei. Doeu-me muito porque eu vim para aqui para trabalhar, não para ficar controlada por alguém. Portanto isso agora preocupa-me todos os dias porque eu posso encontrá-lo e ele vai-me prender outra vez. Os rapazes estão melhor que as raparigas porque os rapazes podem trabalhar e ganhar o seu próprio dinheiro. Eles podem fugir se a polícia estiver atrás deles. Nós, as raparigas, eles aproveitam-se e usam-nos como esposas deles por nada, só para nós não sermos presas. Não vim para cá para ser usada assim. Quem me dera ser uma Sul-africana que talvez eu ia trabalhar e fazer sempre tudo o que queria. Perguntou-se às crianças que conselho dariam a outras crianças que pudessem estar a pensar em atravessar a fronteira sem documentos, e em viver e trabalhar noutro país. Eu vou dizer a eles para não vir à África do Sul sem ter alguns documentos porque a vida aqui é realmente difícil e ninguém vai ajudar-te se eles não te conhecem. Tudo aquilo que as pessoas dizem é mentira. Quando dizem que há muitos jobs e jobs que são fáceis para arranjar, é mentira. É melhor ficar no teu próprio país até estar adulto e decidir tu mesmo. Agora, eu trabalho e consigo comprar a minha roupa, comida e enviar algum dinheiro para casa, mas não chega porque eu é que sou o ganha-pão. N Eu contava a outras crianças acerca da polícia... da vida difícil ... não é fácil, sabes. Lá em casa tu tens os teus pais. Eles tomam conta de ti. Eles podem-te dar conselhos ... Aqui, tu estás por tua conta. Tu tens que tomar as tuas próprias decisões. Tu tens que pensar o que é que vais comer, o que é que vais fazer ou o que é que vais vestir. M Eu vou dizer a eles para não vir porque as pessoas do Zimbabwe estão a sofrer aqui na África do Sul, porque não há um lugar para ficar, ou roupa decente ou um sítio bom. É melhor voltar à escola – mas não no Zimbabwe. Mesmo assim, quanto a mim, eu prefiro ficar cá na África do Sul, a vender uns ovos e apanhar umas garrafas, para eu poder arranjar dinheiro porque não posso voltar ao Zimbabwe. P Ele também é muito objectivo quanto à ajuda que gostaria de receber. Eu quero que eles me dão apoio e um sítio para ficar, e que levam-me à escola e tratam-me como um ser humano, porque viver na rua não é a minha escolha. Não quero ser assim para o resto da minha vida. Eu quero ir à escola e quero crescer a saber ler porque não sei ler e escrever. 7 88 Mesmo assim, muitas vezes eles não querem voltar a casa, para uma situação sem esperança: sem comida, sem emprego, sem educação, sem perspectivas. A vida aqui é melhor do que no nosso país, porque o valor do dinheiro aqui é melhor e mesmo a comida e a roupa são mais baratas. K A África do Sul é melhor, porque dá para ganhar dinheiro, mesmo que não chega, mas podes comprar alguma coisa e algumas pessoas aqui ajudam as crianças e dão-lhes roupa e comida. P M Se a situação no Zimbabwe melhorar, conheço muita gente que ia voltar para casa. Muita, porque as pessoas vêm para cá para ganhar dinheiro. Só para o dinheiro. Não vêm para mais nada. Não vêm para se divertirem, não. Aqui na África do Sul, é melhor do que no meu país, porque aqui podes estar sempre em paz, mas no Zimbabwe não podes. N 8 89 Crianças migrantes de Moçambique ‘Costumava rezar para ter força mas já não rezo mais. A vida é dura demais.’ Os motivos para as crianças de Moçambique atravessarem a fronteira para a África do Sul são semelhantes aos motivos das do Zimbabwe: desemprego, pobreza, orfandade, a atracção da grande cidade, famílias disfuncionais e, provavelmente em menor quantidade, a falta de acesso à escola. Agora que a guerra acabou, as pressões sobre as crianças de Moçambique diminuíram bastante.7 Contudo, de acordo com um estudo levado a cabo pelo Southern African Migration Project, a mediana das remessas por emigrantes para as famílias em Moçambique é de ZAR 1.760. Em Moçambique, em 2005, as remessas eram uma fonte de rendimento para a maior parte das famílias, tanto em termos de dinheiro (77 por cento) como em termos de bens (65 por cento).8 Aqui também, como já vimos, as crianças têm muitas vezes familiares a viverem na África do Sul a quem se vão juntar, mas o facto de ficar com um familiar não significa necessariamente que a criança esteja protegida. Este rapaz doze anos embora parecesse ser muito mais velho. Ele tinha frequentado a segunda classe antes de abandonar a escola. Quando o entrevistámos ele estava na África do Sul apenas há duas semanas. Usava um velho chapéu de pano semelhante a um boné que colocou ao colo Quando nos encontrámos, ele estava a vender ovos cozidos e colocou-os cuidadosamente no chão ao nosso lado, juntamente com um frasco de Aromat. O meu irmão agora vive na África do Sul e ele veio para me buscar. Ele é um irmão grande, tem vinte anos. Ele vive cá em Naas. Eu queria viver com o meu irmão, portanto eu pedi a ele para trazer-me para cá. Ele trabalha para uma pessoa com uma camioneta de entrega de mercadorias. Ele anda a entregar coisas. Agora eu estou a vender ovos cozidos. Eu ganho 60 rands por dia. O meu irmão, ele gosta de berrar muito e é por isso que eu gosto muito mais da minha família. Somos só nós os dois na casa. Ele queixa-se da minha maneira de cozinhar. Está a gritar. Eu tenho que cozinhar todos os dias. Ele diz que eu não sei cozinhar. M 7 90 O meu irmão trouxe-me porque os outros dois estavam a ir à escola, ele disse que ia matricular-me aqui e eu também devia vender algumas coisas aqui. Era para eu ir à escola este ano mas o meu irmão deve falar com um professor qualquer mas agora ele está a demorar. Ao perguntar-lhe o que ele gostaria de ter ou, caso a sua vida pudesse mudar como é que ele ia mudá-la, o rapaz respondeu: Eu voltava para casa em Moçambique, para o meu irmão e a minha irmã, para a minha vovó e as vacas e os meus amigos. Pode-me ajudar a voltar para casa em Moçambique? Fico triste de pensar na minha casa. [A minha avó] ainda é bastante forte, as suas pernas são boas e os seus olhos são fortes. Ela era boa pessoa. Não abusavame. Ela partilhava tudo que ela tinha connosco. Ela tentava cuidar de nós. Este rapaz, vestido com uma camisa desbotada, e com sabedoria para além da sua idade, tem cuidado de si próprio e tomado decisões sobre a sua vida durante muito tempo. Eu voltei para a África do Sul quando tinha doze anos e agora tenho catorze. Agora estou a vender palha de aço. Durmo numa casa que pertence à pessoa que dá-me o trabalho de vender a palha de aço. Vendo-a só a cinco rands o molho. A pessoa não me disse quanto dinheiro vou receber. Somos só nós os dois num quarto; ele vende toalhas de rosto e eu vendo a palha. Ele é uma pessoa nice; não fala muito. É de Inhambane e eu sou de Chamankulu. O dono do negócio dá-nos comida. Há outras pessoas que trabalham para esta senhora mas eles não vivem com ela. Ela é Moçambicana. Quando recebo o meu dinheiro no fim do mês eu quero arranjar o passaporte.9 É mais fácil se tens um passaporte na África do Sul, porque não vais ser incomodado pela polícia. Se não tens passaporte, a polícia leva-te para Ressano Garcia e então é meio complicado de voltar se não tiveres dinheiro nenhum. Quando vou ter passaporte quero ir a Durban. Tenho um amigo que me falou da cidade. Ele trabalha ali e nós combinámos que eu vou ter o passaporte e então o meu amigo há-de vir e vai levar-me a Durban. Sou um rapaz que pode fazer coisas sozinho. Sou um aluno rápido, sou capaz de aprender rapidamente coisas novas. Se tu mostras me alguma coisa eu aprendo muito rápido, portanto posso fazer muita coisa: barbeiro, vender, ladrilhar. Costumava rezar para ter força mas já não rezo mais. A vida é dura demais. P 8 91 As crianças de Moçambique encontram o seu caminho não só para a África do Sul, como também para outros países na região. A entrevista seguinte, com um rapaz na Swazilândia, é representativa de tantas outras, como já tivemos oportunidade de ver, e as dificuldades dele são vencidas pela sua resiliência e pelo seu estoicismo. Este rapaz de dezasseis anos parecia estar mal nutrido, com fome e cansado. Tinha acabado de lavar um veículo e estava a apanhar sol. Vestia um par de calças não muito limpas arregaçadas até aos joelhos. Descalço, não tinha lavado as mãos nem os pés depois ter lavado o carro. Ele tentava evitar olhar para nós, quer por timidez quer por boas maneiras, e olhava para o lado ou para o chão quando estava a responder às perguntas. Esteve sentado numa única posição durante toda a entrevista, embora esta tivesse sido longa e nós estivéssemos sentados em cima de tijolos de cimento. Tivemos um problema de linguagem pois ele está habituado a falar Português, mas isso não o impediu de se exprimir. Tal como muitas crianças, Y era o produto duma família desfeita, disfuncional. Não conhecia pai, que não contribuía para o seu bem estar, e quando a mãe perdeu emprego ele ficou ainda mais vulnerável. Nasci em Maputo. Ali tínhamos uma casa muito grande … Tive uma vida bastante difícil porque o meu pai faleceu e eu tive que deixar a escola. Às vezes eu chegava em casa e descobria que os meus tios me tinham trancado a porta para não entrar. A minha mãe vivia muito longe de onde eu vivia. Assim, eu fiquei com o meu tio, a sua esposa e os seus filhos ... Nasci na cidade e ninguém mostrou-me a casa do meu pai. O meu tio pagou as minhas propinas até deixar de pagar. Eles não me disseram porque é que deixaram de pagar as propinas ou o chapa para eu ir à escola. Eu costumava ir às aulas da noite, na escola. Não havia lugares para as aulas de dia, portanto tinha que frequentar as aulas à noite. Os filhos do meu tio frequentavam outra escola. Nós vivíamos bem juntos. Eles gostavam de mim mas acabaram a odiar-me sem razão nenhuma. O 7 92 Mas havia algum motivo e a criança tinha percebido isso. Eu estava a frequentar a escola ao lado da barraca aonde ele costumava beber à noite, ele tinha medo que eu ia contar à sua esposa o que é que ele fazia naquela barraca. Ele bebia muito. Então eu decidi ir para a Swazilândia. Tinha um amigo que estava a visitar Maputo. Ele disse-me para ir com ele porque eu não estava a fazer nada, como tinha deixado de ir à escola. Disse que a vida é melhor na Swazilândia porque tu podes fazer qualquer trabalho. Afinal, ninguém sabe como tu és pobre, mas em Maputo, lá não podes fazer certos trabalhos porque nós nascemos ali. L Em casa, o orgulho, as expectativas sociais e a posição social, tudo pode fazer com que seja difícil a uma criança fazer trabalho por empreitada; mas quando se está noutro país, goza-se dum certo anonimato que nos dá a liberdade de ganhar dinheiro de maneiras que, em casa, nos embaraçariam. A criança tinha vivido numa ‘casa grande’. Então o meu amigo, ele levou-me e nós fomos. Era de dia, apanhámos um machimbonbo pequeno que ia a Lomahasha. ... Eu não disse nada ao meu tio mas disse à minha irmã, que é mais nova que eu. Ela não queria que eu fosse mas eu disse-lhe que não podia fazer nada porque estava a arriscar de ficar sem emprego. Quando chegámos na fronteira, o meu amigo sabia o que fazer. Ele pagou e a gente passou. Não tínhamos passaportes. Eu estava com medo mas ficar em Maputo também não ia-me fazer muito bem. [De Lomahasha] apanhámos um machimbonbo pequeno que ia a Manzini. Aqui encontrei muitos Moçambicanos, e alguns deles conhecia. Eles estavam a vender vegetais na rua. Eu não estava feliz a vender vegetais. Tinha muito medo da polícia municipal. Eles costumavam prender-te por vender coisas na rua. Os meus amigos, eles fogem sempre quando vêem a polícia municipal. Mesmo assim, o rapaz começa a vender vegetais. Fui preso e fiquei na cadeia durante três meses (os olhos enchem-se de lágrimas).10 A vida na cadeia era difícil. Descobri que mesmo a comida era diferente daquela que estava costumado (a sua voz treme). Não éramos maltratados porque os carcereiros asseguravam que não éramos batidos. Ficámos juntos com prisioneiros adultos que estavam a cumprir penas de muitos anos na Prisão Central de Matsapha. Os carcereiros tratavam-nos bem mas tivemos de trabalhar demasiado nas machambas. Nunca mais quero voltar para lá, pois as coisas não são boas. Não fazes progresso nenhum. A pessoa é incapaz de fazer as coisas como deve ser. 8 93 Y tinha pedido um passaporte através da Alto Comissariado Moçambicano em Mbabane, Swazilândia, e foi-lhe concedido, portanto a sua viagem de regresso, três meses depois, não foi difícil, mas ele só ficou quatro dias em Maputo. Eu pensava que ia ser melhor ficar na Swazilândia e ganhar dinheiro para construir uma casa em Maputo. Em Moçambique, os meus amigos trabalham mas ganham muito pouco, mas ao mesmo tempo as coisas são muito caras. Ganho 350 emalengeni. Pago a renda – E120 – e troco o resto para a moeda moçambicana e poupo esse resto [Ele paga a sua comida com as gorjetas que os clientes lhe dão]. A vida é ok porque quando tu acabas o teu trabalho, vais directamente para o teu quarto e dormes. Os meus colegas do trabalho e os clientes tratam-me bem. Alguns Suazis chamam-nos nomes mas outros sabem que somos seres humanos. Vivemos bem uns com os outros no bairro de Madonsa porque a maior parte dos inquilinos são Moçambicanos. A gente ajuda-se e partilha as coisas uns com os outros. Ao perguntar-lhe quais as dificuldades que ele enfrenta como criança que vive longe de casa, Y respondeu: Não há dificuldades específicas. Eu luto e consigo. Às vezes, a polícia faz uma razia no bairro e eles prendemnos se não temos passaporte. Eu tenho que ir ao posto da fronteira cada mês e renovar o período da minha permanência [se o teu passaporte não estiver actualizado, a polícia prende-te]. É prática normal. Alguns dos meus amigos não têm passaportes. O motivo é que não é fácil ter um passaporte. Tu tens que trabalhar e ter dinheiro suficiente antes de poder pedir passaporte. ‘Eu vou ficar até eu poupar dinheiro que chega para construir uma casa e pagar as minhas propinas da escola. Eu ainda quero aprender. Qual o conselho que ele daria às crianças que atravessam a fronteira para a Swazilândia ou a África do Sul? Se eles têm casa, eu ia encorajá-los para ficarem lá, porque eles podem meter-se numa situação pior. Eles podem ficar com saudades de casa. Agora eu estou acostumado às dificuldades. … Não há nada que eu gosto do meu job, só que não há outra coisa nenhuma que eu posso fazer, portanto tenho que fazê-lo. Além disso, se eu voltar a casa, ninguém vai ajudar-me. Mas sinto a falta da minha escola e da minha mãe. Lavar carros não é um job que dá para viver, mesmo quando vou ser adulto. Eu preferia ter um job que eu posso fazer para o resto da minha vida. Gostava de ser mecânico de carros. Penso que é um job fácil que pode sustentar-me para o resto da minha vida. Mas primeiro preciso de ser educado. Não posso continuar a lavar carros quando tenho os meus próprios filhos. Y tem pensado muito sobre a sua decisão de sair da casa e sobre as experiências que tem tido e, para um miúdo de dezasseis anos de idade, ele é extremamente maduro e sábio. O que é que teria tornado a sua vinda para a Swazilândia mais fácil? 7 94 Eu precisava de ter a certeza de ter alojamento e oportunidades para jobs, de modo que posso ganhar dinheiro suficiente que podia levar a casa. Agora eu preciso de dinheiro para fazer tudo que tem que ser feito e de alguém que me diz como eu devo fazer certas coisas. Não gosto de estar com pessoas que usam álcool e que fumam, porque a gente não se vai entender. Os meus amigos dizem a mim para pagar sempre a renda, trocar algum dinheiro para a moeda de Moçambique, ir a Maputo, comprar uma parcela e construir uma casa. Arranjar mais algum dinheiro e fazer um negócio. Dessa maneira podes viver em Maputo para sempre. Tal como a maior parte das crianças, ele tem um sentido apurado de justiça. Num caso em que eu sou o ajudante, o Suazi tem que receber mais. Mas o mesmo princípio deve ser aplicado quando o Suazi é o meu ajudante, estás a ver? Também é uma pena que a barreira da língua faz com que não posso exprimir-me bem. Queria dizer que eu sou realmente pobre, e se tu podes ajudar-me, por favor faça. Preciso de um job. O job que tenho não é um trabalho que posso fazer para sempre. E para a minha educação, eu preciso de maningue dinheiro porque ainda não consegui garantir um lugar na escola. Queria que alguém podia oferecer pagar para mim até que acabo a escola. Senão, se alguém não dá-me dinheiro suficiente, posso desistir da escola outra vez. Se eu tenho uma educação, vejo-me a viver uma vida decente porque vou ter tudo o que eu quero. Quero construir uma casa, ser responsável e ser respeitado. Neste momento os meus amigos em Maputo comigo compreendem-me porque eles lembram-se da maneira como o meu tio tratava-me. Quando crescer, vou ver o que fazer porque não pretendo odiá-lo para sempre. Mesmo assim, a minha vida é melhor do que quando eu estava em Moçambique. Pelo menos sou capaz de fazer coisas pequenas que quero fazer. Tenho saudades dos meus primos, mas não concordaria em voltar para casa [embora] eu pensava que a minha vida na Swazilândia ia ser muito melhor. 8 95 Endnotes 1 2 Veja o Apêndice para uma discussão sobre este tópico. De acordo com a Constituição da África do Sul e com a nova Lei de Criança, é ilegal utilizar mão-de-obra infantil (menos de quinze). As únicas excepções possíveis a isto incluem: envolvimento na representação de anúncios, no desporto e em actividades artísticas ou culturais. 3 Muitas pessoas no Zimbabwe dependem, hoje em dia, das tais remessas. 4 Estima-se que haja aproximadamente três milhões de Zimbabweanos na África do Sul. Ninguém sabe quantos dessas pessoas são crianças, i.e. com menos de dezoito anos. 5 Algumas organizações para os direitos das crianças na região, agora utilizam a frase ‘crianças não documentadas’ em vez de ‘crianças ilegais’. Utilizar a palavra ‘ilegal’ pode implicar que todas as crianças não acompanhadas, que atravessam as fronteiras, estão envolvidas em actividades criminais, o que não é o caso. 6 Para as ONGs que querem ajudar as crianças, pode ser mais fácil identificar os rapazes, pois podem viver e trabalhar na rua. Por outro lado, as raparigas podem ficar dentro do quarto do parceiro, sujeitas a potenciais abusos e exploração. 7 Não há estatísticas facilmente acessíveis sobre os números de crianças e adultos que fugiram de Moçambique durante a guerra. O que se sabe é que há 1.7 milhões de Moçambicanos que regressaram após o final da guerra e que há quatro milhões de pessoas deslocadas internamente que voltaram às suas casas. 8 Pendleton, Wade, et al. ‘Migration, Remittances and Development in Southern Africa’. Migration Policy Series No. 44. 2006. Southern African Migration Project (SAMP). Cape Town: South Africa; Kingston: Canada. 9 Em 2005, a África do Sul e Moçambique celebraram um acordo de renúncia de vistos, que permite aos cidadãos de cada país permanecer no outro país sem visto, por um máximo de 30 dias. O acordo visava encorajar a entrada legal em vez de ilegal na África do Sul. Anteriormente, os Moçambicanos eram obrigados a pedir vistos para poder entrar na África do Sul, os quais tinham que ser pagos em dólares americanos. Não é bem claro qual o impacto da renúncia, em termos de movimento transfronteiriço ilegal de crianças moçambicanas para a África do Sul. Fonte: International Marketing Council of South Africa <http://www.southafrica.info/public_services/foreigners/moz-130405.htm> 10 A Constituição da África do Sul providencia na Secção 28(1), que: ‘Cada criança tem o direito de não ser detida, salvo como medida de último recurso, caso em que, para além dos direitos que a criança goza no âmbito das secções 12 (Liberdade e Segurança da pessoa) e 35 (Pessoas Acusadas, Detidas e Presas), a criança pode ser detida apenas durante o período apropriado mais curto, e tem o direito a ser: (i) mantida separada de pessoas maiores de 18 anos de idade; e (ii) tratada duma forma e mantida em condições que considerem a idade da criança.’ Veja: Comments on Draft Immigration Regulations to the Immigration Act 2002 (Act No. 13 of 2002) submitted by the South African Human Rights Commission to the Minister for Home Affairs on 2 June 2003 as per Government Gazette General Notice 1298 of 2003. (http://www.sahrc.org.za/sahrc_cms/ downloads/Immigration%20Act.doc) 7 96 CAPÍTULO 6 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O ‘Temos que ir, não há outra maneira’ ‘Sou simplesmente um ser humano.’ ‘Sem BI, não vejo nenhuma maneira de alguma vez ter uma vida melhor.’ Este adolescente nasceu em 1991. Ele tinha dezasseis anos na altura da entrevista. Incluímos toda história dele para nos lembrarmos das crianças que têm que sobreviver sozinhas, enfrentar múltiplas perdas e rejeições, que não têm meios para receberem uma educação formal, e para quem a vida seria ainda mais triste, se não fosse pelo seu espírito e resiliência. O seu pai era Zimbabweano e a sua mãe Moçambicana. O seu pai adoeceu em Chipinge e a sua mãe do outro lado da fronteira, em Moçambique. As crianças deslocaram-se entre os dois pais até que cada um deles morreu. O facto de existirem tensões familiares fez com que as crianças ficassem virtualmente abandonadas pois nem uma família nem a outra queriam cuidar delas. O seu irmão mais velho partiu para a África do Sul e este adolescente passou a cuidar de si próprio, porque ele acha que não poder viver com a sua irmã casada. Consciente dos seus muitos problemas, ele adoptou uma atitude fatalista, enquanto se agarra à esperança do seu irmão mais velho ainda estar vivo na África do Sul e de que este o viria apoiar, se pudesse ser localizado. ‘Ainda temos fé que ele não tenha morrido. K Nós ficámos cá em Chipinge durante dois anos, e eu ia à escola. Na altura tinha quinze anos. Arranjei um trabalho a vender freezits. Estava a viver um ano com a avó. Então ela morreu. Portanto fui viver na casa do 8 97 pai deste meu irmão mais novo.1 Então foi ele que morreu em 2002. Então eu fiquei sozinho. Ficava na oficina ali, chamada Maphosa. Há carros que já não se usam, portanto entramos neles e dormimos lá. Fiquei um ano e tal ali. Então ele tentou arranjar um job em Mashco, aonde tinham trabalhado tanto o seu pai como o seu tio. “Mas eles disseram que queriam bilhetes de identidade ou certidões de nascimento. Eu não tenho uma certidão de nascimento, quem tem uma certidão é o meu irmão. Então eu fui a Moçambique e pedi para ter um. Eles disseram, ´Tu és do Zimbabwe.’ Portanto voltei para cá e tentei arranjar um. Então eles disseram, ‘Tu és de Moçambique.’ Portanto eu, eu tenho problemas com muitas coisas. Se eu tivesse um BI daqui, talvez eu tivesse um job. É um problema, mesmo arranjar trabalho à empreitada sem um BI. Se eu ficar aqui eles dizem, ‘Tu és Moçambicano’, e quando vou para Moçambique, eles dizem, ‘Tu és Zimbabweano.’ Não posso desmentir [negá-lo] mas o que é que posso fazer? Quando eles dizem, ‘Tu és Moçambicano’, o que é que posso fazer? Só dá para aceitar, porque ali não tenho pai nenhum e aqui não tenho pai nenhum. Portanto eu digo simplesmente, ‘Onde quer que eu estou, tá nice porque não preciso de comprar um vestido para a minha mãe ou calças para o meu pai’. Para mim, ir e viver na casa da minha irmão não dá, porque ele está casada com alguém e tem filhos e o cunhado está lá, portanto não vai dar’. Eu digo, ‘Irmã, toma conta de ti mesma.’ Vamos aguardar e ver como as coisas andam com o irmão na África do Sul – talvez se ele vier e procurar-me e a gente vai-se encontrar. Não sei. Se calhar ele morreu ali. Mesmo a esperança de que vou revêlo, não tenho. Agora já há quatro anos que a gente não se vê. Eu tentei frequentar a escola uma vez, e cheguei à segunda classe e eles queriam dinheiro para as propinas da escola. Não consegui encontrar dinheiro, então eu disse simplesmente, ‘Agora compete a Deus aonde ele quer que isto vai acabar.’ Uma vez fui a uma escola em Moçambique, então estava a viver com o tio que trabalhava em Sloadin [sic].2 Ele teve um acidente com um tractor e então ele morreu. Foi o ano quando eu deixei a escola. Este rapaz só tem dezasseis anos e na sua pouca experiência de vida, perdeu a sua mãe, pai, avó e dois tios, todas elas pessoas com quem ele tinha vivido durante algum tempo. É lógico que ele se agarre à falsa esperança de que talvez ele consiga encontrar o seu irmão. Eu sei ler, mas não muito. Portanto qualquer coisa que eu pense fazer, não estou a ver que vai correr muito bem, mesmo se eu penso em seguir o meu irmão para África do Sul. Ele teve sorte porque tinha um passaporte e papéis. E teve razão em ir. Quando eu tentei, não consegui. Não consegui arranjar alguém para me apoiar. Encontrei um velhote que viajou com o meu irmão [para a África do Sul] e eu disse, ‘O meu irmão, ele está lá de verdade?’ E ele disse, ‘Está lá.’ Então eu disse, ´Posso ir também?’ e ele disse, ‘Arranja algum dinheiro e vamos.’ Então fui com ele e chegámos a Beitbridge e o homen levou-me para o outro lado, para Messina. Ele tinha um BI e um passaporte mas não os usou para atravessar. Ele passou connosco, por baixo da vedação. Então fomos para Pietersburg … eu estava a tentar procurar o meu irmão. Se eu sofrer com ele, pelo menos é muito melhor porque viver assim sozinho, tudo cai em cima de mim – se eu quero roupa ou qualquer coisa. Portanto se eu encontrar o meu irmão, eu vou ter muitos menos problemas. 7 98 Tendo atravessado a fronteira, ele queria continuar desde Pietersburg até Pretória, pois tinha a ideia que o seu irmão podia estar ali. Eles foram, no entanto, presos pela polícia. Nesta fase, após dois dias sem comer, ele estava com muito fome e portanto ele aceitou que podia ser melhor voltar para casa, e foi repatriado. Quando a gente chegámos em Beitbridge, aqueles no centro [IOM] disseram, ‘Aqueles que querem ir, podem ir. Aqueles que querem comer, vêem cá e comam. Depois vamos organizar o vosso transporte.’ Então nós comemos. Tudo o que queria fazer era comer, porque eu estava mesmo com fome. Tinha passado dois dias sem comer nada. No mato, estávamos a comer algumas frutas muito amargas. Bebemos água que encontrámos em recipientes fechados. Estávamos a morrer de sede. Mas a água deu-nos problemas de estômago. Voltar para Chipinge não fazia muito sentido para o rapaz, pois ele não tinha família nem ninguém para o apoiar. Ainda penso que se eu pudesse arranjar dinheiro até uns Z$100,000, talvez ia para a África do Sul outra vez. Vou simplesmente viver ali porque as coisas aqui são tão difíceis. É melhor para mim quando estou a sofrer perto do meu irmão. Talvez o encontre. Como não tenho um pai e uma mãe, não deveria ter um irmão que conheço? Eu sei que os meus pais estão mortos e que nunca mais vou os ver, mas não o meu irmão. Mesmo se ele seja casado, posso viver com ele porque não vai me mandar embora. Aqui no Zimbabwe eu cortava flores no jardim de Ganga durante um certo tempo. O dinheiro que ele me dava era de Z$30,000. Podia apenas comprar uma peça de roupa por mês – foi então que comprei esta camiseta e as calças – durante três meses. Então encontrei esses gajos que estavam alojados perto e eles disseram muface [amigo], este dinheiro que tu estás a ganhar, podes ganhar a empurrar um carrinho de mão. Vamos procurar uma casa onde podes ficar e vais empurrar um carrinho de mão. O dinheiro vai ser mais do que aquilo que estás a ganhar agora. Então eu empurrava o carrinho de mão e eu comecei a ter dinheiro e agora compro farinha de milho para apoiar-me a mim mesmo. Então eu disse a mim mesmo, ‘Deixa-me começar a poupar algum dinheiro, de modo que posso ir e ver o meu irmão.’ O meu irmão tem papéis, portanto mesmo se eu vou a Joni3 e encontro a polícia, eu vou poder simplesmente falar com eles. Não tenho um BI: não daqui, nem de Moçambique e nem da África do Sul. Sou apenas um ser humano. Portanto eu simplesmente pergunto-me a mim mesmo porque é que Deus me fez isto a mim. Se ele me tivesse deixado ter um BI, eu não estaria a sofrer. Se alguém me pedisse para mostrar o BI, eu mostrava o BI. Agora, se me perguntassem porquê eu estou a sobreviver neste mundo, não seria capaz de responder. Penso que nunca vou ter nenhum sítio para trabalhar. Se eu tivesse um BI, eu iria pensar que um dia talvez iria ter um job, mas sem um BI, não vejo maneira nenhuma de alguma vez ter uma vida melhor Quando eles dizem àqueles que não frequentaram a escola ‘vem’, é para lá aonde eu vou. Mas agora vou ter sempre um atraso porque quando eles chamam outros para vir trabalhar ou para ir à escola, eles precisam de BIs. Os meus próprios jobs são empurrar o carrinho de mão e cortar flores como jardineiro. São os jobs que aqueles que têm BI não querem fazer. Portanto o meu próprio job é só este job pesado. Em Moçambique, se eles apanham-te sem certidão de nascimento, eles dizem, ‘Volta para o Zimbabwe. Tu queres roubar coisas,’ e dão-te porrada. E quando eu venho para o Zimbabwe, houve dias em que levei porrada. 8 99 Apesar deste adolescente ter poucos recursos materias e estar muito vunerável emocionalmente, ele mostra um nivel resiliencia elevado. 7 100 Tenho uma manta que sempre levo comigo quando viajo. Isso causou problemas com a polícia porque eles disseram, ‘Tu dormiste no mato, por causa da manta. Tu és um skellum, um ladrão.’ Eu disse, ‘Não dormi no mato.’ Em Moçambique, eles não querem ver uma pessoa ter um corte de cabelo como um quadrado ou tranças. Portanto cortei o cabelo mas mesmo assim eles disserem, ‘Tu és um ladrão e um bandido!’ Eles realmente bateram-me muito. E em Jersey também me bateram muito. E eu disse não interessa, deixa-me simplesmente só ir embora e trabalhar. Tudo o que eu estou a tentar é viver, mesmo se eles prendem-me, deixa-os fazê-lo muitas vezes. Tudo o que eu estou a tentar é tentar ganhar dinheiro. Então, talvez, posso encontrar o meu irmão e convencê-lo para voltar comigo e arranjar-me uma certidão de nascimento ou um BI. Mas eu não acredito na verdade que a gente vai se encontrar porque mesmo se eu encontro o meu irmão, já não me lembro dele agora. Os números de telefone que eu tenho, eu tento ligá-los mas eles não funcionam. Não consegui falar com ele. Estou apenas a receber números e as pessoas que estiveram no sul, elas dizem, ‘Liga lá. Esses são os números do teu irmão.’ Então quando eu tento ligar eles dizem, ‘Eles não dão para estabelecer a ligação, são errados.’ Então eu arranjo outros números e mesmo assim não consigo ter ligação. Outros dizem que o meu irmão tem lhes dito, ‘Se ele pode vir, deixa ele vir.’ Mas eu não sei se eles estão a dizer a verdade ou mentiras. Agora já não tenho dinheiro porque eu fui para o sul e fui preso. Portanto estou preocupado. Tentámos outra vez em Janeiro, e fomos presos. Agora a pessoa com quem eu vou disse que quer ir de novo em Junho. Agora o dinheiro para ir é de Z$100,000. Em Junho, não sei, talvez pode ser Z$200,000 e tal. Portanto o dinheiro que estou a poupar agora, pode não ser suficiente depois.4 A única pessoa que eu vejo de vez em quando é a minha irmã. Ela está ali em Moçambique, se eu não vou lá durante dois meses, ela vem para cá. Agora para eu ir lá, o dinheiro é o problema. Preciso de Z$15,000 para ir a Jersey;5 depois eu vou andar a pé para ir a Moçambique. Portanto eu preciso de Z$30,000 para ir e voltar. Eu tenho as minhas sobrinhas e para mim, ir simplesmente assim, isso não dá. Elas têm que correr e dizer, ‘Tio! Tio!’ e eu tenho que trazer algo para elas. Tu ficarás embaraçado se as crianças correm para ti e tu não trazes nada porque eles pensam que estou bem. Eles não sabem que estou a sofrer. Portanto eu preciso de Z$50,000 para comprar-lhes coisas, os quais não quero tirar dos Z$100,000 que quero usar para ir a Joni. Parece que estou a andar para trás. Eu tento ser forte mas estou a ver que não ajuda. O que faz-me feliz é que alguns dias quando a gente tem dinheiro, vamos estar felizes. Vamos usar este dinheiro e comprar bebidas e vamos jogar. Amanhã é Domingo e vamos assistir o futebol e voltamos tarde porque amanhã não trabalhamos. Vamos gastar o nosso dinheiro, para qual temos trabalhado durante a semana. Vamos para os take-aways e comer ali e a gente vai-se divertir porque vamos esquecer-nos dos nossos problemas. Mas se não tem dinheiro, vamos pensar que é melhor para eu morrer. Não sei porque é que estou vivo. Será que as coisas vão mudar? Quando tu pensas assim, ficas sem ideias sobre o que fazer. Mas com dinheiro divertes-te. ´Com dinheiro a vida é fácil, mas sem ele, eh pá ...! Podes passar dois dias sem comer, nem sequer xima, só água. É isso dói e tu dizes, ‘Se a vida é assim, eh pá, se eu morresse eu ia descansar e não ia chorar por causa dessa vida.’ A maior parte das crianças quer trabalhar. Elas não sairiam do seu país se eles pudessem trabalhar e receber um salario realistico em circustâncias razoáveis. Pelo exposto, este adolescente preferiria ficar em casa. No entanto, esta solução não é viável pois ele necessita de se alimentar a si e à sua família. Estávamos a viver bem na nossa família. O meu irmão costumava ir a Joni e ele costumava ajudar-me. Mas quando a minha mãe, o meu pai e o irmão faleceram, foi então que eu decidi ir para a África do Sul, porque ia sofrer por não receber nada. Estava a viver com a minha irmã e a minha mãe. Então a mãe morreu e agora a minha irmã está doente também. Foi isso que fez-me ir para a África do Sul. Estava na quarta classe. Eu teria P 8 101 7 102 concluído a escola se tivéssemos arranjado livros e dinheiro para as propinas da escola. A minha irmã não trabalha porque ela está doente. Agora que estou de volta da África do Sul, sou eu que trabalha aqui. Vou trabalhar as machambas e faço alguns trabalhos temporários.6 Vais trabalhar na Agritex, na construção e na instalação de linhas ZESA e então recebes algum dinheiro. Mas o dinheiro não chega. Como agora, queríamos trabalhar a terra e não podemos arranjar o dinheiro para os remédios para os vegetais – aqueles que temos que pulverizar [fertilizante]. E não temos galinhas ou gado para vender. Simplesmente trabalhamos e aquilo que ganhamos é só isso. Eu disse à minha irmã que queria ir para a África do Sul. Ela disse, ‘É uma boa ideia. Mas não fiques calado quando chegares lá. Tens que informar-nos que chegaste bem.’ Simplesmente vi que, como eu estava grande, para mim andar sem ter boa roupa não ia dar; para mim comprar roupa aqui, não vou ter o dinheiro, portanto o meu amigo disse, ‘Estás a sofrer. Joni é bom, tu vais e trabalhas e compras a tua roupa.’ Fui-me embora com aquele amigo meu. Fomos com a Delivery.7 Ele queria SAR300, portanto eu paguei-lhe SAR250 e fiquei com SAR50. Atravessámos bem. O meu amigo ajudou-me a procurar emprego. Então ele disse, ‘se tu queres um job, tu vês esse gajo, ele dá-te um cartão para ter um job.’ Então nós recebemos o cartão para trabalhar.8 Tens que pagá-lo depois de ganhares dinheiro. Então eu trabalhava e trabalhava. Na quinta [na África do Sul] estávamos a escolher as uvas podres das boas... escolhemos as que fazem o álcool. Então eu trabalhei e vi que não era dinheiro suficiente para enviar para casa. O homem branco vai descontar a sua renda e dinheiro para a farinha de milho. ... Depois de receber o salário, eu vi que era pouco demais. Não podia enviar nada para casa e também não podia usá-lo para comprar comida. Portanto fui para Pretória. E eu vivia no Munlo Park e trabalhava e trabalhava. Penso que a gente trabalhava dois meses. Estucava paredes tipo Durawall. Comecei trabalhar para um homem branco durante dois meses, depois o terceiro mês trabalhámos para um homem preto. Mas aquele não nos pagava como deve ser. Ele dizia, ‘Este mês vou dar tanto e tanto.’ E depois ele não dava, [portanto] a gente recebe menos. Então eu trabalhava e vi que não estava nada bom. Então fui ficar ao lado do semáforo para oferecer a minha mão-de-obra, para poder arranjar um homem branco, que paga mais. Tu estás ali ao lado do semáforo e quando passa um branco tu levantas o teu dedo assim [risos] e eles sabem que tu queres um job ... Mas a polícia chegou e foi assim que fiquei preso. Eles simplesmente prenderam-nos e levaram-nos para Lindela. É uma prisão que é grande e muito alta. Mas podes jogar futebol até chegar o teu dia para sair. Então eles levam-te e tu vais. Em Lindela, vais estar misturado com toda a gente, excepto as mulheres que estão separadas dos homens. Dormimos num sítio nice. Se tiveres azar as mantas ainda não foram lavadas e estão sujas. Quando eu estava lá as coisas foram boas porque eles vieram nos nossos quartos para fazer limpeza, os quartos de banho, eles limparam e mesmo as mantas foram lavadas. A xima está lá, dormir estará lá – até mesmo o futebol podes jogar, até ao dia em que tens que sair e ir para casa. Entrei numa Terça e .. saí numa Terça – uma semana mais tarde .. Fomos bem tratados porque eles estavam-nos a dar comida. Quando a Terça chegou recebemos a nossa comida por volta de oito horas. Então vem a migração do Zimbabwe e dão-te estes cartões com o teu nome. Estávamos sentados neste corrredor. Não podes fugir porque há um muro muito alto. Quando o sol estava alto, fomos levados nos camiões e para o comboio. Haverá polícia. Quando eles chegam a um local [uma estação na África do Sul] aonde o comboio vai parar, eles dizem shafkop, e eles dizem-te para olhares para baixo. Eles sabem que há outros que vão cair [saltar e fugir] quando o comboio pára. Então, quando o comboio começa a andar de novo, a polícia diz, ‘Agora podem levantar a cabeça.’ Então eles dizem, ‘Amen,’, porque ninguém saltou (risos). Depois do comboio, a gente vai de camião. Quando chegámos a Beitbridge, a polícia disse, ‘Aqueles que querem voltar [para Joni], vão. Aqueles que querem voltar para casa, vão.’ (risos) A polícia Zimbabweana, eles sabem que se tu queres voltar, tu vais voltar. Portanto eles dizem, ‘Se tu queres voltar, tens que ir agora.’ Então eles levam-te para a esquadra. Eles dizem, ‘Sente-te aqui até os outros chegarem.’ Então eles dizem, ‘Crianças da casa, vocês voltaram. Aqueles que querem ir para casa, os machimbombos estão aqui.’ Portanto entramos simplesmente nos machimbombos. Na África do Sul posso trabalhar durante um mês, e com esse dinheiro posso comprar uma vaca ou outras coisas que eu quero para usar. No Zimbabwe, podes trabalhar um mês inteiro e não vais ter suficiente para comprar calças e uma camisa. Na África do Sul, após dois meses, até podes comprar um carro. O que não gostei era que eu vou e ofereço-me ali no semáforo e vem um homem preto e aceita e diz, ‘Vou te pagar tanto e tanto,’ e depois ele me dá pouco dinheiro. E é uma pessoa da casa! Agora, quando eu estou ao lado do semáforo e vejo um homem preto que diz, ‘Anda cá, vamos dar-te um job,’, eu não vou. O homem branco, ele não vê ninguém como um familiar dele, portanto somos todos tratados da mesma maneira. ... mas apenas quando o patrão é um homem preto, assim ele pode tratar-te doutra maneira. 8 103 Tinha três amigos. São da África do Sul. A gente dava-se bem. Trabalhámos juntos como pessoas que fazem o mesmo caminho e vivíamos perto. Eles costumavam passar de manhã para me levar com eles. As pessoas tratam-te bem, se tu ficas ... depende da tua maneira de viver. Se tu vives como um ladrão ... nem pensar! Mas como alguém que não ficava durante muito tempo, realmente não recebi muita ajuda. Aonde a gente vivia, se tu ficavas doente, vinha a ambulância. Se alguém de Zimbabwe se envolvia numa briga e ficava ferido, era levada para o hospital numa ambulância. E eles não te obrigam para pagar. Talvez só pelos remédios, mas mesmo os remédios, é muito raro para pagares. [A polícia] eles simplesmente são diferentes. Eles podem apanhar alguém que começa a discutir ou eles podem-te apanhar e tu fazes o que eles te dizem. Se tu fazes aquilo que eles dizem, eles não vão ter problemas contigo, mas se tentas criar problemas, podem bater-te. Mas eles normalmente não dão porrada. Quando eu voltei eu disse a eles – a maior parte dos meus amigos aqui – ‘Bradas vamos para a África do Sul. Ali a vida é boa. Temos de ir todos.’ Portanto aqueles que me escutaram já se foram embora, mas alguns que não conseguiram o dinheiro não foram. ... Quando sofres muito, chega um momento quando... porque eles dizem que quando tu sofres demais... o que é que eles dizem? ‘Depois da pobreza vem a riqueza?’ Significa que vou ficar feliz nos próximos dias. A vida é boa para viver aonde a gente nasceu. Sabe, andamos sem passaportes e se tu estás envolvido num acidente ninguém sabe quem tu és. É bom arranjar passaportes, para que aqueles que partem – partam em paz. Endnotes 1 2 3 4 5 6 7 8 7 104 Na cultura Xhona, os primos são considerados irmãos; tios, pais. Provavelmente uma quinta. Normalmente significando Joanesburgo, mas também a África do Sul em geral. Veja a nota acerca de moedas na página … Uma quinta perto da fronteira. O emprego formal absorve aproximadamente 20 por cento da população. A taxa de desemprego no Zimbabwe é normalmente citada como estando entre os 80 e 85 por cento. Os ‘trabalhos temporários’ incluem qualquer forma de trabalho eventual. Indubitavelmente homens jovens sofrem mais do que as mulheres jovens, pois foram educados para serem o ‘ganho-de-pão’ e não para trabalharem em casa. Portanto enquanto uma mulher jovem desempregada vai sempre encontrar algo útil para fazer, e utilizará alguma forma de identidade ao fazê-lo; a desmoralização e a falta de objectivo que podem acompanhar o desemprego afectarão os homens jovens ainda muito mais. Veículo/pessoal de entrega informal (malaitsha), que efectua muitas formas de entrega transfronteiriça, contra um pagamento. Isto inclui ajudar pessoas a atravessarem a fronteira. Existe aparentemente um mercado negro próspero para autorizações de trabalho, Bis, passaportes e mesmo certidões de nascimento. CHAPTER 7 O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O L Q N R M P K O Ignorar-nos, não é a resposta Recomendações para acção A historia tradicional de migracoes na africa austral mostra a interligacao destas com os padroes de pastoreio existentes bem como com as rotas comerciais entao usadas; contudo, recentemente a migracao, particularmente a emigracao para a Africa Sul esta intimamente relacionada com a busca de trabalho. Actualmente, existe um número maior de crianças a atravessar as fronteiras da região, sozinhas ou acompanhadas de outras crianças, devido a uma série de factores.1 Apesar de, nacional e internacionalmente, os direitos da criança devessem estar protegidos por instrumentos legais, muitas vezes elas encontram-se em situação de vulnerabilidade e exploração nos países de chegada2. A migração e as políticas introduzidas pelos governos nacionais para gerir e responder a situações de migração têm implicações profundas nos direitos das crianças no mundo contemporâneo. Tem-se dado um enfoque e uma atenção muito grandes ao tráfico da criança e à situação de “procura de asilo desacompanhado” bem como à criança refugiada, como forma de lidar com os danos associados à migração. Embora estas crianças tenham vulnerabilidades especiais, os nossos investigadores entrevistaram um grupo razoável de crianças por mediação, que tinham atravessado as fronteiras sozinhas ou com outras e enfrentado uma série de privações bem como de oportunidades, durante a sua viagem e no país de destino. Todas as experiências e situações de crianças migrantes são únicas e muitas vezes complexas. Temos de garantir que as crianças não sejam excluídas das iniciativas de protecção por causa de não pertencerem às definições ou às categorias de tipos de circulação. As recomendações que se seguem foram identificadas a partir das próprias crianças e das organizações que trabalham no movimento transfronteiriço de crianças. Estas organizações não têm estrutura para apresentar um projecto definitivo sobre o que deve ser feito para colmatar estas situções, mas esperamos que promovam um debate urgente sobre soluções praticas de como lidar com os problemas enfrentados pelas crianças apresentadas neste livro. 8 105 1. Governos, órgãos regionais e doadores devem apoiar a investigação e a partilha de informação B Efectuar investigação adicional na África Austral, a fim de compreender melhor os factores de atracção e os desincentivos ao movimento migratório das crianças. A pobreza, o HIV & SIDA, a desagregação familiar, a morte dum pai ou tutor e a procura de melhores oportunidades de sustento e de educação, são alguns dos factores de atracção que as crianças têm destacado, mas deverão existir outros factores que devem ser investigados. Contudo, este estudo também sugere a necessidade de pesquisa sobre a ligação entre o HIV & SIDA e a migração na região. B Efectuar investigação adicional sobre as diferentes formas de exploração e de trabalhos perigosos a que os rapazes e raparigas estão sujeitos em países estrangeiros, e identificar meios adequados para minimizar este problema. B Identificar em que outros lugares na região é que há um grande número de crianças a atravessarem fronteiras. Por exemplo, há algumas evidências que indicam que as crianças migrantes que entram no Botswana e na Zâmbia, a partir do Zimbabué, no norte da Namíbia a partir de Angola e na Tanzânia e em Moçambique a partir do Malawi, enfrentam problemas semelhantes. Seria importante saber o que está por detrás destes movimentos, quais as novas orientações destes movimentos migratórios e que medidas é que se devem tomar para a protecção a estas crianças? B Incentivar a que a participação e as vozes de crianças e de jovens estejam presentes em todos os aspectos da investigação. B Facilitar a aprendizagem e o intercâmbio entre os países e a região. Há importantes lições a serem aprendidas com a partilha de informação sobre as iniciativas existentes e as estratégias concebidas para ajudar as crianças migrantes estrangeiras desacompanhadas. Os órgãos e as agências de investigação regionais estão bem colocados para apoiarem ou levarem a cabo este tipo de troca de informações. 2. Governos, órgãos regionais e doadores devem apoiar respostas apropriadas B Garantir a educação básica gratuita de qualidade nos países de origem. Uma das razões principais por detrás da travessia das fronteiras, mencionada por crianças na investigação, é a sua procura por oportunidades de educação formal que lhes são negadas nos seus países de origem. Os governos e os doadores, como parte do seu comprometimento para com as Metas de Desenvolvimento do Milénio, devem fazer mais para garantir a educação básica gratuita de qualidade como um meio da redução do número de crianças que saem de casa por este motivo. B Acelerar esquemas de registo de nascimento gratuito na região, em particular nas zonas rurais. As crianças 7 106 migrantes que não têm documentos ocupam uma posição particularmente vulnerável em termos da sua capacidade para terem acesso a direitos e à protecção em países estrangeiros. Não ter uma identificação adequada significa ser qualificado como "ilegal". Isto torna difícil o acesso aos serviços, à justiça e à protecção social, e expõe as crianças ao abuso por parte das autoridades encarregadas de controlarem "a imigração ilegal". B Implementar os quadros nacionais jurídicos e políticos existentes para protecção das crianças migrantes. Os países tais como a África do Sul, Moçambique e Suazilândia, que são países de acolhimento para crianças migrantes estrangeiras, precisam de clarificar os quadros legais e políticos que dizem respeito às mesmas. Idealmente, as respostas às necessidades dessas crianças deveriam ser integradas nos planos de acção nacionais para órfãos e crianças vulneráveis, bem como nas leis de protecção das crianças. B Desenvolver directrizes claras para ajudar os departamentos governamentais, as agências, as autoridades e as ONGs que encaminham crianças para os serviços governamentais. É preciso atribuir recursos adicionais caso se queira desenvolver uma resposta de protecção eficaz. B Pôr termo à detenção e à deportação de crianças migrantes estrangeiras. As crianças migrantes que são apreendidas pelas autoridades devem ser tratados de acordo com as normas internacionais e com as leis e as políticas nacionais. Isto inclui um processo de repatriamento adequado e transparente, para garantir que os governos são antecipadamente notificados das crianças a serem repatriadas e para garantir que elas não sejam devolvidas a situações familiares abusivas que as tenham empurrado para fora de casa, sem que haja mecanismos adequados de protecção e cuidados. Além disso, as crianças não deveriam, em caso algum, ser presas e deportadas com adultos. B Proporcionar recursos e formação sobre os direitos e a protecção das crianças às autoridades fronteiriças, à polícia e aos oficiais da acção social. A formação e os recursos complementares devem conduzir a uma melhoria da implementação de quadros jurídicos existentes para a protecção das crianças migrantes estrangeiras. B Dar protecção às crianças migrantes envolvidas em trabalhos perigosos e ocultos, tais como o comércio sexual, o trabalho doméstico e o trabalho nas fazendas. Os governos precisam de trabalhar com as ONG e com as comunidades locais para garantir o acesso a estes grupos e a protecção dos mesmos. B Desenvolver uma abordagem harmonizada em toda a região, para um quadro de protecção das crianças que tenham atravessado para um outro país. Embora as respostas nacionais sejam fundamentais, a abordagem da migração de crianças desacompanhadas também necessita de ser resolvida a nível regional e sub - regional. Os órgãos regionais, tais como a União Africana (UA) e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) têm um papel importante a desempenhar no sentido de garantir a protecção das crianças migrantes desacompanhadas. 3 B Desenvolver iniciativas de sensibilização da comunidade, para que as crianças e as comunidades façam escolhas informadas. Os governos, as agências da ONU, as ONG e as redes regionais devem desempenhar um papel mais forte na criação de iniciativas de sensibilização, para ajudar a educar as comunidades sobre os perigos que as crianças que atravessam fronteiras enfrentam. As iniciativas devem incentivar a comunicação entre as crianças, líderes comunitários, pais e tutores, professores, grupos religiosos, governos locais e associações (ou seja, comissões de protecção / bem - estar das crianças). 8 107 3. ONGs internacionais, nacionais e redes apoiar respostas apropriadas B Fortalecer as respostas de cuidados e de protecção e introduzir novas iniciativas para as crianças migrantes estrangeiras. Isto deve assumir a forma de prestação de serviços às crianças, quer abandonadas nos países de acolhimento quer no processo de repatriamento. Tais programas devem manter fortes ligações com os departamentos governamentais nos países relevantes, para assegurar a sustentabilidade das respostas e a conformidade adequada com as leis e os padrões nacionais. B Criar centros de informação nas zonas fronteiriças para as crianças migrantes, em cooperação com os governos, que irão oferecer panfletos, folhetos e programas de rádio. B Providenciar apoio adicional aos actuais centros infantis, abrigos e orfanatos nas zonas fronteiriças. Estas instalações são frequentemente apoiadas financeiramente por agências internacionais e instituições religiosas, as quais providenciam educação e cuidados às crianças migrantes. Os padrões de protecção infantil nestas instituições também precisam de ser reforçados e aplicados pelas devidas autoridades reguladoras. 4. Os órgãos de comunicação social na África Austral devem relatar de modo responsável e positivo B Interceder junto dos órgãos de comunicação social para que estes compreendam melhor a situação das crianças migrantes estrangeiras e noticiem de modo responsável sobre a mesma. Os órgãos de comunicação social podem contribuir para as reacções xenófobas contra imigrantes estrangeiros, o que pode ter consequências negativas para eles. B Encorajar a inclusão das vozes de crianças nas histórias noticiadas pelos órgãos de comunicação social. Os órgãos de comunicação social podem desempenhar um papel importante no sentido de assegurar que as histórias de crianças possam ser ouvidas pelas pessoas em casa e no seu país de acolhimento - ajudando assim as crianças a fazerem escolhas informadas sobre a travessia das fronteiras. B Incentivar os órgãos de comunicação social a destacarem casos de abuso e de exploração de crianças migrantes estrangeiras, para chamar a atenção do governo, das ONGs e das comunidades para estes mesmos casos. Endnotes 1 “Poverty made this decision for me” um relatório sobre crianças que vivem em Musina; as suas experiências e necessidades, Glynis Clacherty Agosto de 2003 SC UK e SC Suécia 2 Child Migration and the Construction of Vulnerability, Julia O’Connell Davidson e Caitlin Farrow, Universidade de Nottingham para SC Suécia 2007 O Quadro da Política de Migração para a África é uma política, ao contrário de um quadro jurídico, e é, portanto, não vinculativo. Faz recomendações políticas e dá orientações aos Estados-Membros da União Africana. Não tem, actualmente, provisões para crianças migrantes sem documentos, mas concentra-se na migração de crianças em resultado do tráfico de crianças. Deveriam incluir-se dentro do quadro das disposições sobre crianças migrantes sem documentos. O Projecto de Protocolo sobre a Facilitação de Circulação de Pessoas na SADC, pretende promover um acesso mais fácil ao trabalho e a outras oportunidades entre fronteiras, na região. Neste momento, as crianças não são mencionadas neste Protocolo e ainda está para ser ratificado por todos os parlamentos nacionais. Deveria proceder-se a uma revisão deste Protocolo num futuro próximo, para clarificar o estatuto da criança no mesmo e iniciar um processo de harmonização em que a protecção dos direitos das crianças que atravessam as fronteiras é atribuída a uma única entidade e aplicação, em toda a região. A Comissão Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos deveria dar mais prioridade à protecção e aos cuidados de crianças migrantes estrangeiras na região. 3 7 108 Anexo Reflexões dos entrevistadores Jeremiah Chinodya O processo da entrevista visava proporcionar diálogos com as crianças. Ao princípio, as crianças tiveram dificuldade de se abrirem com o entrevistador, mas o processo da entrevista pressupunha o estabelecimento de um clima de confiança entre a criança e o pesquisador. No fim, segundo a minha experiência, as crianças foram capazes de falar abertamente. As crianças estão expostas a muitos perigos. Quando atravessam as fronteiras, elas são vítimas de violência, negligência, abuso sexual e físico. Algumas crianças são engravidadas e outras são infectadas pelo HIV; algumas morrem por causa dos crocodilos que as atacam quando tentam atravessar rios. Fiquei muito impressionada com uma criança de Katiyo, ela atravessou a fronteira como carregadora de mercadorias, designadamente, açúcar. Ela estava orgulhosa e feliz por ter sido capaz de pagar as suas propinas na escola desde a altura em que estava na terceira classe (há quatro anos) e de comprar os seus cadernos e livros escolares. Apesar dos perigos que enfrentam, algumas crianças estão felizes porque, atravessar a fronteira para trabalhar, permite-lhes melhorar o seu sustento e o das suas famílias. A minha preocupação é que atravessar as fronteiras políticas é um crime. Eu acho que os governos da SADC devem pôr mecanismos a funcionar que protejam as crianças contra o abuso nos países para os quais elas emigram ilegalmente. A minha esperança é que a nossa contribuição para esta pesquisa possibilite que se encontrem soluções bilaterais que possam oferecer protecção às crianças e que possam providenciar às crianças desprivilegiadas e desfavorecidas a oportunidade de realizarem o seu potencial. Temos que reconhecer que, embora a emigração de crianças possa ser ilegal estas quando estão com fome ou desesperadas à procura de uma educação, atravessar uma fronteira para um país mais próspero pode-se-lhes apresentar como a única solução sensata. Glynis Clacherty Quando me lembro das entrevistas que fiz às crianças migrantes em Messina, Komatipoort e em Joanesburgo, eu vejo um pequeno rapaz moçambicano, chamado F, e a palavra ‘perda’. Tal como tantas outras crianças, os pais do F estavam mortos; a sua mãe, apenas dois meses antes de eu o entrevistar. Mais uma vez, ele tinha crescido numa área rural, com muitos amigos à sua volta. Disse-me os nomes deles todos e forneceu detalhes sobre os jogos que faziam, ele fez um desenho das árvores à volta da sua casa e do gado de que ele cuidava. Tal como as outras crianças, o F tinha saído da sua casa porque não havia dinheiro para comida ou para a escola. Ele sobreviveu ao perigo de atravessar a fronteira ilegalmente e agora encontra-se numa cidade comercial hostil e feia na África do Sul, onde tem que se preocupar com a polícia. Enquanto estávamos sentados num take away barulhento, senti um nó na garganta, só de pensar em tudo o que ele tinha perdido e no pouco que ele tinha ganho. Pensei em como ele não tinha tido quase tempo nenhum de chorar a perda da sua mãe, e como ele tinha perdido a sua casa, a sua língua e 8 109 também a sua cultura. À medida que o F falava connosco, observei que ele ficava cada vez mais triste, de cada vez que eu lhe pedia para se lembrar da sua casa e, mais do que uma vez, perguntei-me o que é que eu estava a fazer. Estaria a piorar a sua situação, ao fazê-lo lembrar-se o que ele havia perdido? Tentei animá-lo enquanto comíamos frango e bebíamos uma coca e falávamos sobre as pessoas do mercado que compram a palha-de-aço que ele vende. Mais tarde, a transcrição desta entrevista fez-me lembrar como é importante registar estas histórias; as pessoas devem ser ditas as historias de crianças como o F. O F é bastante invisível mas a sua história deve ser contada. Pois, as pessoas com poder precisam de entender porque é que crianças como o F estão a emigrar, como é que elas são contínuamente exploradas por adultos, e quais são os seus sonhos e ambições. Senti-me privilegiada por testemunhar a história do F e as de outras crianças, pois são histórias de coragem e de resiliência acompanhadas de grandes perdas. Pedi desculpas ao F no fim da nossa entrevista, por te-lo entristecido e assegurei-lhe que ele tinha feito algo muito importante ao contar-me a sua história. Pois ele havia falado em nome dos muitos milhares de crianças emigrantes e que provávelmente a sua historia tocaria a alguém. Talvez aqueles que detêm o poder possam através de histórias como esta reconhecer que nem todas as crianças migram por opção, mas que grande parte delas o fazem devido às dificuldades da sua vida, e que consequentemente estas crianças precisam de ser protegidas. Estas crianças também necessitam de ter acesso a serviços e aos direitos a que as crianças sul-africanas têm acesso. Goodwin Mata A minha experiência em entrevistar crianças que atravessam ilegalmente as fronteiras, ajudou-me a entender que estas crianças eram difíceis de localizar na área fronteiriça de Ressano Garcia/Lebombo, e também na província de Gaza, para onde as mesmas tinham regressado para se juntar às suas comunidades. Muitas destas crianças preferem ficar escondidas, por motivos justificáveis. Algumas são tímidas e ou têm medo de expor as suas experiências a pessoas estranhas. As poucas que consegui entrevistar, ajudaram-me a entender melhor a situação de vulnerabilidade em que se encontra e os riscos que correm quando atravessam a fronteira e enquanto permanecem na África do Sul. As entrevistas mostraram que as autoridades fronteiriças não impedem a migração ilegal de crianças, e que algumas vezes colaboram com os homens que levam crianças ilegalmente através da fronteira. Espero que a Save the Children faça algo para ajudar a proteger estas crianças e as suas comunidades. Este trabalho é urgente. Mandla Mazibuko Pela sua própria natureza, as entrevistas eram emocionalmente exaustivas e um pouco arriscadas tanto para as crianças como para mim. Elas requeriam que as crianças contassem toda a sua historia a um estranho que apenas podia simpatizar com elas e deixá-las na mesma situação. Como entrevistador senti-me mal, porque não tinha hipóteses de ajudar as crianças, e mesmo assim elas deram-me todo o tempo e toda a informação que eu precisava. Mesmo sendo emigrantes ilegais, as crianças confiaram-me informações confidenciais que podiam levar à sua detenção e repatriamento, se eu estivesse numa missão diferente. Fiquei realmente surpreendido por perceber quão inocentes estas crianças ainda eram, apesar das dificuldades que haviam já enfrentado enquanto tão pequenas! 7 Escutar as suas histórias deixou-me com muitas perguntas por responder, sobre que dificuldades as obrigaram a sair de suas casas, muitas vezes ainda tão crianças; sobre as circunstâncias duras e ameaçadoras, que elas enfrentaram nas suas viagens longas, arriscadas e ilegais para os países vizinhos; e sobre as dificuldades e abuso a que estão sujeitas a cada dia que passa da sua vida. 110 Houve um rapaz moçambicano que me impressionou profundamente. Ele era uma criança tão maravilhosa apesar de não ter tido uma infância feliz. Ele desafiou todas as adversidades ao emigrar ilegalmente para a Swazilândia, onde ele conseguiu mais do que esperava. Na Swazilandia ele tentou ganhar a vida a vender frutas e vegetais na cidade mais movimentada do país, mas foi detido. Na prisão, foi obrigado a permanecer com criminosos desumanos que estavam a cumprir longas sentenças. Neste momento, está fora da cadeia e a trabalhar bastante para reorganizar a sua vida. Apesar de todas as dificuldades que enfrentou, este rapaz continua a estar concentrado; determinado a realizar os seus sonhos, um dia. Ela não culpa a ninguém pelo tipo de vida a que tem estado sujeito. É paciente e espera que os seus esforços sejam compensados por um futuro melhor. Estou realmente preocupado com o futuro destas crianças. O que é que será feito delas? Será que as suas vidas irão alguma vez melhorar? Será que elas irão alguma vez voltar para os seus países? Serão ela responsáveis por aquilo que lhes aconteceu e acontece? Por quanto mais tempo conseguirão elas enfrentar estes desafios nas suas vidas jovens e frágeis? Como elas nunca conheceram uma infância, já para não falar do facto de a terem gozado, que futuro as reserva? Julie Middleton Ela foi raptada por um amigo da família e levada para a África do Sul. Ele trabalhou quatro meses para poupar dinheiro suficiente para ir para Joanesburgo, só que este lho foi roubado na fronteira. Ele estava cansado de dormir numa árvore e de comer dos caixotes de lixo. Ele estava doente por trabalhar duro nos campos e de chupar só cana-de-açúcar. Ele estava a iniciar o seu próprio negócio de vendedor ambulante com o seu magro rendimento. Ela trabalhava como empregada doméstica para pagar os seus estudos. Cada uma das mais de 50 crianças que entrevistei em Komatipoort e Malelane para este e para outros projectos, tinha uma história única. O que elas tinham em comum, no entanto, era a coragem e o desespero que as fez atravessar a fronteira sozinhas. Enquanto a maior parte escolheu sair de casa à procura de outras alternativas na África do Sul, nenhuma delas preferiu a vulnerabilidade e a exploração que ia encontrar. A maior parte ficou chocada com a realidade do país do qual se fala ter todas as estradas ‘cobertas em ouro’ e onde oportunidades abundam. Estas crianças rapidamente descobriram a sua vulnerabilidade aos marianas que as roubam, que lhes batem e que as violam na fronteira; aos tsotsis, que roubam os seus rendimentos diários; ao empregador que lhes dá um saco de farinha de milho como pagamento de uma semana de colheita de laranjas; à polícia que faz ouvidos de mercador, às suas queixas; e aos professores, que exigem certidões de nascimento sul-africanas para os deixar frequentar a escola. As histórias destas crianças deixaram-me não só com uma grande tristeza por aqueles que sofrem mas também com um tremendo optimismo pelos que sobrevivem, mas acima de tudo, deixaram-me angustiada. A exploração que estas crianças sofrem é bem conhecida pelas autoridades sul-africanas, mas mesmo assim pouco se faz para a colmatar. Daina Mutindi Entrevistei crianças zimbabweanas que atravessam para a cidade fronteiriça moçambicana de Machipanda e também para a cidade de Chimoio na província de Manica. As entrevistas revelaram-me que as crianças que atravessam as fronteiras na África Austral são muito vulneráveis. As crianças atravessam as fronteiras à procura de empregos, como forma de melhorarem o seu sustento. Algumas crianças trabalham apenas por comida. Elas são usadas como mão-de-obra barata ou até gratuita, o que a meu ver é igual à escravatura, dado que as crianças não têm voz. Também entrevistei crianças que testemunharam terem sofrido assédio e abuso sexual enquanto trabalhavam ou vendiam a sua mercadoria. Três raparigas por mim entrevistadas falaram desta experiência. É também uma grande preocupação para mim descobrir que as crianças que atravessam as fronteiras o fazem muitas vezes desacompanhadas. Desta forma, elas sujeitam-se facilmente ao tráfico de crianças. Algumas crianças também me contaram que sofrem agressões verbais por parte da população do país para onde emigraram. Uma rapariga disse 8 111 estar tensa porque a população local continuava a perguntar-lhe porque é que ela saiu da sua casa e já a convidaram abertamente a voltar para o seu país. As crianças que atravessam as fronteiras ilegalmente não têm protecção nos países para onde emigram. Encontrei algumas crianças em Machipanda que confessaram que numa ou noutra altura a polícia lhes tinha batido. Elas exprimiram o seu medo da polícia e também de se tornaram vítimas de actividades criminais. Olhando para isto tudo, é uma pena que, como pesquisador, eu não possa, pessoalmente, ajudar estas crianças, embora seja testemunha da sua miséria. A minha preocupação refere-se ao melhoramento dos direitos destas crianças, sua protecção e sustento. Espero que a melhoria das condições economicas destes países reduza o número de crianças que atravessam as fronteiras. Espero que os governos nesta parte do mundo sejam capazes de introduzir um tipo de passaporte alternativo, mais acessível, que possa ser usado por crianças para atravessarem as fronteiras. Talvez um documento barato que possa ser fornecido a título gratuito pelas autoridades locais. Também, as organizações que defendem os direitos de crianças podem ajudar muito a promover novas leis que possam melhor a vida das crianças que atravessam as fronteiras. Innocent Nyagumbo Esta pesquisa de migração transfronteiriça foi dolorosa para mim. Enquanto eu estava a conduzir as entrevistas com as crianças, apercebi-me de que há crianças, tanto no Zimbabwe como na África do Sul, que enfrentam muitos problemas, tais como a fome, a falta de dinheiro para custear as despesas das propinas, a orfandade, o pagamento insuficiente, entre outros, que as forçam a emigrar porque elas necessitam de dinheiro para sobreviver. A migração causa-lhes problemas adicionais, inclusivé a morte, ferimentos, fome, assédio sexual, dentre outros. O uso de entrevistas ajudou as crianças a abrirem-se porque proporcionou-lhes uma plataforma e um ambiente relaxado, o que é melhor do que o uso de questionários. Como pesquisador, a minha preocupação é as crianças verem e dirigirem algumas peças de teatro que expliquem os perigos das crianças atravessarem as fronteiras. As organizações de apoio precisam de consciencializar acerca dos perigos das crianças atravessarem ilegalmente para outros países. Outra questão é que se devem ajudar as crianças através do estabelecimento de alguns projectos sustentáveis para angariar fundos para abrirem pequenos negócios auto-sustentáveis, tais como a criação de aves, moageiras, fotocopiadoras, só para citar alguns. As crianças desfavorecidas e os órfãos precisam de ter assistência na forma de bolsas que as ajudem a pagar as suas propinas escolares. Cleopatra Nzombe 7 112 A minha experiência em pesquisa, especialmente a conduzida em Beitbridge, foi bastante emocional e esclarecedora. Emocional pois permitiu que eu me relacionasse com as crianças num contexto completamente novo. As coisas por que algumas destas crianças passaram e sobreviveram são inacreditáveis. Nenhuma criança devia jamais passar por um trauma semelhante. É imperdoável. O olhar dessas crianças, à medida que contavam as suas histórias, vai perseguir-me para o resto da minha vida! Faz-me pensar, se nós os representantes da autoridade, os guardiões dos direitos das crianças, estamos a fazer tudo o que podemos para manter as nossas crianças seguras. Evidentemente que não! No entanto, o facto de fazer parte de tal pesquisa fez-me entender as verdadeiras questões que afectam as crianças e as tornam vulneráveis. A pesquisa mudou a forma como eu via as questões das crianças e a minha abordagem no tratamento das mesmas. As crianças são o nosso futuro e eu farei tudo o que puder para as proteger. Glossário (Todas as palavras, excepto as que são acrónimos, estão em Shona a menos que haja outra indicação.) Agritex – Serviços agrícolas, técnicos e de extensão amainini – irmã mais nova da mãe, tia, pequena mãe amalaitsha (Ndebele) – aquele que transporta coisas para outras pessoas ARDA – Autoridade Agrícola e do Desenvolvimento Rural amaikuru/amaiguru – cunhada; irmã mais velha da mãe baba – pai babamudiki – pequeno pai, i.e. irmão mais novo do pai, um tio bhangas/mabhangas – cabana, pequena casa frequentemente usada como um bar ou um local para beber bhudi – irmão grande (muitas vezes apenas um bom amigo) chi – quem [és tu?] dagga – mbanje, marahuana freezits – sumo gelado em pequenos tubos de plástico. Barato, doce e muito popular. jagger/jagging – um carregador, aquele que transporta uma carga. Fazer jag/jagging não tem uma derivação Shona, sendo um neologismo possivelmente adaptado da palavra Inglesa to jog. gogo – avó gonyeti – camião gricamba – bosteiro gumaguma – (Shona) amagumaguma (Ndebele) – alguém que faz qualquer coisa legal ou ilegal para ganhar; um bandido gumbakumba – veículo da polícia usado para a deportação kapenta – pequeno peixe seco kombi – pequeno autocarro kumusha – para/na casa rural njibas – pessoas que estiveram na África do Sul. nyaterera – sandálias feitas de pneu de borracha velho e de pele de vaca. nyimo – legumes mabakayawa – peixe seco madala – homem velho majonijoni – alguém que esteve em Joanesburgo ou na África do Sul malaicha (Shona)/amalaitsha (Ndebele) – pessoa que carrega coisas para outras pessoas matembeya – soldados matekenya – literalmente alfinetes e agulhas; na realidade, nas instâncias a que se refere, uma dor e infecção provocada por pequenos vermes da areia que se enterram debaixo das unhas dos pés e das mãos. magumaguma – bandidos, preparados para fazerem qualquer coisa por dinheiro mainini – irmã mais nova da mãe, tia, mãe pequena mazambia – tecido para envolver à volta do corpo de alguém muface – amigo mukoma – irmão 8 113 musha – casa rural randa – rand renkini – fila sadza – um mingau grosso feito de grão de milho e utilizado como alimento básico no Zimbabwe e em quase toda a África Austral. sekuru – avô. Termo de respeito por qualquer homem mais velho. sisi – irmã; também usado para uma boa amiga tackies – ténis, sapatos de lona tembeya – soldado, base dos soldados; matembeya – soldados TM – uma cadeia de supermercados trongo – prisão ZESA – Autoridade de Fornecimento de Electricidade do Zimbabwe (Todas as palavras em Moçambicano neologismos/calão a menos que haja outra indicação) chapa – um pequeno autocarro, um kombi banca – um pequeno quiosque aonde se vendem artigos incluindo álcool aonde as pessoas se reúnem à noite gogo – avó (Shona/Siswati) jobar – trabalho ihlanga – caniço (Xichangana) mabuno – o mesmo que Boer (neste caso polícia ou militar branco) (palavra usada em vários países na África Austral) machangana – Pessoa que pertence ao grupo étnico Changana, uma língua falada proeminentemente na zona sul de Moçambique e que é também falada zona sul da África do sul e na zona meridional de Zimbabwe. mana – irmã indica uma relação cordial entre pessoas que não são realmente irmãs. (Português) mano – irmão, ou termo usado entre dois amigos homens. (Português) marianos/mareyane – bandidos. Homens novos prontos a fazerem qualquer coisa por dinheiro. Às vezes eles formam gangs criminosos constituídos por homens Moçambicanos e Suazis envolvidos no contrabando e no tráfico humano para a África do Sul. magweregwere – Termo depreciativo, originalmente usado por soldados negros no exército colonial Português para designar os soldados brancos seus colegas que vinham de Portugal. Adquiriu um significado mais amplo de colonizador/estrangeiro protegido pelo governo colonial. Também se escreve ‘maguerre’. Também pode ser uma referência para uma pessoa branca, normalmente Sul-africana ou Portuguesa. mukhero – comércio informal de uma variedade de artigos, vegetais, rutas, roupas e pequenos utensílios caseiros trazidos de outras partes de Moçambique e dos países vizinhos para serem vendidos nos mercados em Maputo. mukheristas –Moçambicanos, normalmente mulheres, que praticam mukhero ntchuva – jogo popular Moçambicano (e Africano), que consiste em mover pequenos seixos ou cascas de sementes, de um furo (numa tábua de madeira ou simplesmente no chão) para outro, de acordo com um conjunto de regras específicas. (derivação desconhecida) palhota – casa tradicional - pode ser redonda ou quadrada. Feita de material local principalmente com paredes de barro e um telhado de palha (Português) zawarazar – gozar a vida e viver à beira do limite 7 “Todos os nomes mencionados pelas crianças foram ouvidas e soletradas foneticamente. Fizemos o melhor para 114 identificar os verdadeiros locais, mas nem sempre isso foi possivel.” A forma como as pessoas daqui são tratadas quando você não tem a documentação certa, eles vão-te considerar como um animal. Eles nem sequer te querem ver a andar no país deles se não tiveres um passaporte com um visto ou um BI ou uma autorização de trabalho. Eles dão-te trabalho realmente duro e o dinheiro que concordaste com eles - vamos dizer que se torna demasiado – eles podem chamar a polícia que então vem e prende-te. Você pode ser deportado sem receber nada. Esta é a voz de uma das muitas crianças que foram entrevistados para esta publicação da Save the Children. Os Nossos Sonhos Destruidos: Migração das Crianças na África Austral visa complementar algumas das investigações existentes sobre este tema, adicionando os pontos de vista e as opiniões das próprias crianças que fizeram estas viagens perigosas. OS NOSSOS SONHOS DESTRUÍDOS As crianças foram entrevistadas por toda a parte em vários países da África Austral, aonde o fenómeno da migração de crianças sem documentos atingiu proporções graves. Alguns rapazes e raparigas com idades tão jovens como doze anos, partilharam as suas experiências. Migraçã o A Save the Children espera que, através desta publicação, os governos, as organizações regionais, as ONGs que se concentram nas crianças, os órgãos de comunicação social e o público em geral, se sintam motivados a ouvirem o que é que as crianças têm a dizer, considerem as suas recomendações e sejam compelidos a agir. Save the Children a África Aust as n r a l Save the Children nç Save the Children em Moçambique Rua da Tchamba Nº398 Maputo, Mozambique Email: [email protected] Tel: +258 82 3183230 ria Para obter mais informações sobre o nosso trabalho sobre migração de crianças, por favor, contacte: da s C Tal como essas crianças nos dizem, elas são vulneráveis ao abuso sexual, à exploração laboral nas grandes cidades e nas zonas rurais, e elas têm pouco ou nenhum acesso à escola ou aos serviços de saúde, devido à falta de documentos. Quando são capturadas pelas autoridades, elas são frequentemente espancadas, os seus bens são confiscados, são detidas com adultos e, em seguida, são deportadas, embora haja supostamente leis para as protegerem.