tr anç a do s e e ntalhe s de N ovo Airão 1 trançados e entalhes de Novo Airão 2 010 157 sala do artista popular S A P museu de folclore edison carneiro Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Iphan / Ministério da Cultura 2 Ministério da Cultura Ministro: Juca Ferreira REALIZAÇÃO Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro Programa Mais Cultura Presidente: Lygia Baptista Segala P. Beraba Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Presidente: Luiz Fernando de Almeida Apoio Nov'Arte Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Presidente: Simeão Anhape Bezerra Diretora: Claudia Marcia Ferreira Diretor Executivo: Jean-Daniel Vallotton Presidente: Luciano Coutinho NOV’ARTE ASSOCIAÇÃO DOS ARTESÃOS DE NOVO AIRÃO realização Depto. de Patrimônio Imaterial Polo Trançados de fibras e entalhes em madeira do RIo Negro (Novo Airão - AM) Diretora: Márcia Sant’Anna Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social parceria institucional e apoio financeiro Coordenação técnica: Luciana Carvalho Coordenação administrativa: Elizabete Vicari Departamento de Patrimônio Imaterial Parceria Institucional e Apoio Financeiro apoio Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural - Promoart Fundação Almerinda Malaquias Associação dos Artesãos de Novo Airão Presidente: Erivaldo de Souza Olar Sala do Artista Popular S A P 157 2 0 1 0 sala do artista popular museu de folclore edison carneiro Responsável Ricardo Gomes Lima Equipe de Promoção e comercialização Magnum Moreira, Marylia Dias e Sandra Pires Pesquisa e Texto Tatiana de Sá Freire Ferreira Produção/promoart Alexandre Pimentel Edição e revisão de textos Lucila Silva Telles Ana Clara das Vestes DIAGRAMAÇÃO Maria Rita Horta e Lígia Melges Fotografias T772 Trançados e entalhes de Novo Airão / organização de Tatiana de Sá Freire Ferreira. -- Rio de Janeiro : IPHAN, CNFCP, 2010. Ana Luiza de Abreu 32 p. : il. -- (Sala do Artista Popular ; n. 157). projeto de montagem e Produção da Mostra Catálogo da exposição realizada no período de ISSN 1414-3755 Luiz Carlos Ferreira 11 de março a 11 de abril de 2010 Produção de trilha sonora 1. Trançado – Amazonas. 2. Entalhe – Amazonas. Alexandre Coelho 3. Novo Airão – Amazonas. I. Ferreira, Tatiana de Sá Freire, org. II. Série. CDU 746.7(811.3) A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo constituir-se como espaço para a difusão da arte popular, trazendo ao público objetos que, por seu significado simbólico, tecnologia de confecção ou matéria-prima empregada, são testemunho do viver e fazer das camadas populares. Nela, os artistas expõem seus trabalhos, estipulando livremente o preço e explicando as técnicas envolvidas na confecção. Toda exposição é precedida de pesquisa que situa o artesão em seu meio sociocultural, mostrando as relações de sua produção com o grupo no qual se insere. Os artistas apresentam temáticas diversas, trabalhando matériasprimas e técnicas distintas. A exposição propicia ao público não apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente, a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares ou desconhecidas. Em decorrência dessa divulgação e do contato direto com o público, criam-se oportunidades de expansão de mercado para os artistas, participando estes mais efetivamente do processo de valorização e comercialização de sua produção. O CNFCP, além da realização da pesquisa etnográfica e de documentação fotográfica, coloca à disposição dos interessados o espaço da exposição e produz convites e catálogos, providenciando, ainda, divulgação na imprensa e pró-labore aos artistas no caso de demonstração de técnicas e atendimento ao público. São realizadas entre oito e dez exposições por ano, cabendo a cada mostra um período de cerca de um mês de duração. A SAP procura também alcançar abrangência nacional, recebendo artistas das várias unidades da Federação. Nesse sentido, ciente do importante papel das entidades culturais estaduais, municipais e particulares, o CNFCP busca com elas maior integração, partilhando, em cada mostra, as tarefas necessárias a sua realização. Uma comissão de técnicos, responsável pelo projeto, recebe e seleciona as solicitações encaminhadas à Sala do Artista Popular, por parte dos artesãos ou instituições interessadas em participar das mostras. O Programa de Promoção do Artesanato de Tradição Cultural – Promoart tem como foco o artesanato brasileiro de tradição cultural, ou seja, aquele que vem sendo produzido ao longo do tempo por diferentes grupos sociais e que tem como marca distintiva o profundo enraizamento na cultura local. Seu objetivo é, por meio do apoio direto aos grupos, promover o desenvolvimento desse setor da cultura e da economia brasileira, que, apesar de rico, permanece ainda pouco reconhecido e valorizado. Estruturado a partir de um convênio entre a Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro e o Ministério da Cultura, integra o Programa Mais Cultura e realiza-se sob gestão conceitual e metodológica direta do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/ Departamento de Patrimônio Imaterial/Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com a participação do Museu do Índio/Funai no que tange a grupos indígenas. Em todo seu escopo, conta com a parceria institucional e o apoio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e, nos planos regional e local, articula parceiros públicos, das esferas municipais e estaduais, e privados, além de organizações sociais. Em sua fase de implantação, o programa abrange 65 polos distribuídos em todas as regiões do Brasil, os quais foram selecionados por especialistas dentre mais de 150 opções, tendo em vista a importância cultural e a alta qualidade de seu artesanato, além da variedade de tipologias e técnicas envolvidas em sua produção. Ao longo de um ano, pretende beneficiar comunidades artesanais com investimentos diretos nas esferas de produção, comercialização e agregação de valor a produtos do artesanato brasileiro de tradição cultural. Em diferentes estágios de organização, tais polos serão estratégicos para o estabelecimento das bases de uma política nacional de artesanato, a partir da qual o universo de abrangência do programa poderá ser progressivamente ampliado. Respeitando-se suas singularidades, em cada polo se desenvolverá um projeto específico, um plano de trabalho formulado com a participação de técnicos e artesãos, a partir de diagnósticos detalhados de suas potencialidades e necessidades, e da proposição conjunta de ações em busca da sustentabilidade econômica e social do artesanato. Luiz Fernando de Almeida Presidente do Iphan Trançados e entalhes de Novo Airão Tatiana de Sá Freire Ferreira Novo Airão é uma pequena cidade situada no norte do Estado do Amazonas, em direção a Roraima. Localizada na margem direita do rio Negro, em frente a Anavilhanas – um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo, formado por cerca de 400 ilhas entremeadas por furos, lagos, canais e pelos igarapés das margens do rio Negro –, possui uma paisagem única. Após um passado de prosperidade na indústria naval, com embarcações de todos os tamanhos, feitas com madeira da região, e a extração livre de matéria-prima vegetal na década de 1980, Novo Airão assistiu à transformação das terras ao redor em unidades de conservação federais e estaduais1, 1 Parque Nacional do Jaú – 1980. Estação Ecológica de Anavilhanas – 2 de junho de 1981. Terra Indígena Waimiri Atroari – 1989. Parque Estadual do Rio Negro – 1995. Área de Proteção Ambiental da Margem Esquerda do Rio Negro – 2005. Área de Proteção Ambiental da Margem Direita do Rio Negro –2008. à s qua is os moradores da região passaram a ter acesso restrito. O viés ambientalista da demarcação das unidades gerou conflitos sociais que acabaram por reduzir a possibilidade de sobrevivência da população que tradicionalmente ocupava as terras e levou o nível de emprego a índices irrisórios. Manaus Novo Airão A falta de consulta pública, principalmente naquelas unidades federais de proteção integral (Estação Ecológica de Anavilhanas e Parque Nacional do Jaú), causou um grande conflito com o poder público dos municípios de Novo Airão e Barcelos, que tiveram boa parte da área municipal transformada em unidades de conservação. A população local teve seus hábitos tradicionais alterados por uma nova política preservacionista autoritária, dificultando seu acesso aos recursos naturais e empurrando o ribeirinho para a clandestinidade. (FVA, 2005) 9 Este é o cenário onde se desdobra a vida dos artesãos dessa cidade que tem como aliados o turismo ecológico e o artesanato, que permitem apontar para um futuro voltado para a preservação das tradições culturais de herança indígena e da floresta amazônica. Dessa maneira, a opção de trabalhar com artesanato aparece como fator de fixação de moradia, de valorização da força de trabalho e de desprendimento da relação de submissão ao patrão. Dois importantes núcleos de artesanato agregam à função de preservar a tradição cultural a de gerar emprego e renda para os moradores de Novo Airão. Ambos trabalham com matéria-prima de extração vegetal. A Nov’Arte investe no reaproveitamento de madeira morta, refugo da extração madeireira convencional, com um novo olhar sobre o que seria descartado, transformando-o em peças entalhadas de valor artístico. A Associação dos Artesãos de Novo Airão (AANA) trabalha com fibras do arumã, um cipó que habita as matas alagadas conhecidas como igapós. Depois de tingido e envernizado com resinas da flora amazônica, o arumã pode ser trançado em diversas peças decorativas e utilitárias. Nov’Arte – a arte de transformar madeira morta em elementos da fauna amazônica Em 1992, o manauara Miguel Rocha da Silva e o suíço Jean-Daniel Vallotton, dois empreendedores, se uniram em torno da ideia de criar um núcleo produtor de artesanato em madeira a partir da reutilização de sobras da indústria naval no município de Novo Airão. O importante para eles era a utilização de técnicas de marcenaria que pudessem ser ensinadas a outras pessoas, como fonte geradora de trabalho e renda. As pessoas beneficiadas seriam os antigos moradores do Parque Nacional do Jaú e da Estação Ecológica de Anavilhanas, que se juntaram aos moradores de Novo Airão. Batizaram o empreendimento de Fundação Almerinda Malaquias (FAM), em homenagem a dona Almerinda e seu Malaquias, pais de Miguel. Com o intuito de se fortalecerem como trabalhadores autônomos, os artesãos da FAM formaram uma associação de produtores em 2001, a Nov’Arte, que foi totalmente legalizada no ano de 2009 e onde hoje trabalham com entalhe em madeira 43 pessoas, sendo cinco delas mulheres. Desde a época inicial, em que eram produzidos pequenos móveis com as sobras da indústria naval, até os dias de hoje, dos utilitários e peças decorativas, o aprimoramento das técnicas de entalhe e da organização do grupo é constante. Da arte manual feita de maneira simples, com formão e terçado, hoje já existem máquinas como lixadeiras, serras de mesa, e motosserras que auxiliam no trato com peças de madeira de vários tamanhos, aumentando 12 a capacidade de produção e a qualidade do produto final. Na esteira desse caminho de crescimento, nos anos de 2006 e 2008, a Nov’Arte recebeu o prêmio de artesanato Top 100 do Sebrae, que “tem como objetivo identificar e selecionar as 100 unidades produtivas mais competitivas do País, avaliando seus processos de trabalho com foco em mercado” (Sebrae, 2006). 13 A tradição da madeira A tradição do entalhe em madeira com detalhes da fauna amazônica é passada para as novas gerações por intermédio dos filhos dos artesãos que se encantam pelo trabalho dos pais e se aproximam do universo do galpão e das bancadas. Miquéias, por exemplo, filho do senhor Edivaldo, é um dos melhores artesãos. Todavia, esse não é o único meio de contato; existem também cursos de capacitação abertos à comunidade. Em Novo Airão, famílias inteiras trabalham com artesanato. Os artesãos deixam os filhos livres para decidir se querem continuar com o ofício ou sair para terminar os estudos, ir para a universidade. Muitos já saíram e retornaram, como é o caso da família do senhor Clemente, artesão cuja esposa e filho também atuam nessa atividade, que já envolveu a maioria dos filhos do casal, hoje com outras ocupações. No período da indústria naval, a madeira mais utilizada era o molongó, que é leve e flutua na água. As peças eram pintadas e tinham menos entalhes. Foi um início com pequenos móveis e pinturas. A dureza e a densidade da madeira definem o tipo de peça a ser esculpido, já que guiam o processo de acabamento. Permitem um entalhe mais fino quanto maior for sua dureza, ao passo que as madeiras macias demais permitem menor precisão. O carro-chefe de vendas é o sapo cantor, feito em marchetaria de algumas espécies, como a itaúba, o roxinho, a muirapiranga e a jaqueira, que oferecem diferentes tonalidades à peça, que emite sons suaves e melódicos. A madeira deve ser dura e densa para que o som produzido tenha maior qualidade. O sapo, segundo o artesão Simeão, surgiu na Indonésia e foi reproduzido pelo mundo afora. Na Amazônia, os artesãos da Nov’A rte conseguiram atingir uma qualidade ímpar em sua produção, o que faz com que as peças oriundas de Novo Airão se destaquem entre as demais nas feiras de Manaus e Belém, por exemplo. Tradição e qualidade já reconhecidas em todo o país. Das madeiras mortas, refugos de serrarias, troncos ocados ou galhos de árvores encontrados nos arredores da cidade, saem esculturas de animais da fauna amazônica em vários tamanhos. O galpão de produção e a loja da associação são povoados por delicadas esculturas de tatus, tartarugas, jabutis, capivaras, pacas, tucanos, araras, sapos, peixes-boi, botos e peixes como o tucunaré, o matrinxã, o pirarucu, o aruanã, ou de algum outro animal conforme encomenda, 16 privilegiando sempre a fauna local. “O tema dos bichos foi escolha dos artesãos, que lançaram no mercado e deu certo” (Simeão – artesão da Nov’Arte). Como os animais representados, a matéria-prima utilizada é facilmente achada nas florestas locais, às quais se chega por “ramais”, nome que se dá, na região, aos caminhos feitos na floresta para retirada de madeira para a indústria moveleira ou naval, muitas vezes de forma ilegal, podendo ser recentes ou antigos. Muitos pedaços de madeira extraída para a indústria são descartados no próprio local; mesmo assim, resistem ao tempo e ali permanecem durante anos, até serem encontrados e transformados em pequenas obras de arte pelos artesãos da Nov’Arte. A itaúba, por exemplo, é uma madeira que resiste a até 50 anos caída no solo da floresta. Como a FAM já é conhecida em todo o município, os artesãos são avisados da presença de pedaços de árvores que lhes possam ser úteis e partem em grupo para serrar os grandes galhos ou troncos ocados de árvores como a jaqueira, o roxinho, a muirapiranga e a itaúba, entre outras. Os artesãos pesquisam a existência de madeiras mortas nos ramais ou nos roçados que as pessoas queimam para plantar. A itaúba é uma madeira que o fogo não consegue queimar por inteiro, de modo que sempre restam pedaços pelo chão. O processo de retirada da matéria-prima do mato é feito em carreta cedida pela Prefeitura ou alugada pelos artesãos. Primeiro, parte um grupo de duas ou três pessoas de moto ou bicicleta até o local indicado para verificar se a madeira é mesmo boa e se a quantidade encontrada é suficiente, pois devem pensar no custo posterior com o transporte. Outro grupo de três ou quatro vai ao local para serrá-la e amontoá-la em um canto à espera de transporte em caminhão ou barco. Os artesãos entram em acordo com o dono da propriedade para levar as peças em forma de doação, e garantem que é difícil alguém cobrar pela madeira morta, alertando ainda que um eventual pagamento de taxa com essa finalidade não se encaixa na filosofia de trabalho da Nov’Arte. Todos os artesãos sabem fazer a primeira identificação da madeira pra saber se é boa ou não. A madeira precisa estar seca. A gente traz madeira verde mas parte ela toda, porque, mesmo estando no chão, ela ainda contém muita 17 umidade. A gente corta e deixa secando nos contêineres e nas prateleiras, lá atrás. A madeira escura é melhor. A gente leva um terçado ou uma foice só pra cortar. Se ela for escura, o pessoal já marca onde está, pra depois chegar com a motosserra e cortar. (Miquéias) Normalmente, quando eu vejo uma peça de madeira, já imagino logo o que dá de fazer dela, um boto, uma coisa assim, pelo tamanho. A tabela de preços tem todas as medidas, são as medidas que guiam as peças de madeira. (Miquéias) Quando um grupo toma a iniciativa do transporte, passa a ter o direito de escolher os melhores pedaços, lembrando-se sempre de levar alguns para as mulheres, que não possuem força física para manusear a motosserra. Os pedaços restantes são divididos entre os demais artesãos. O controle de qualidade é feito pelo senhor Edmilson, um dos mais antigos artesãos de Novo Airão. Durante a semana, ele passa pelas bancadas para orientar os trabalhos, e na sexta-feira é feito o controle final. As peças que não são aprovadas não podem ser postas à venda nos espaços do grupo. As peças, que têm o nome do artesão gravado com pirógrafo, são vendidas na loja da própria Fundação ou enviadas para revendedores em Manaus ou em outros estados. Do valor de venda, 25% são retidos e guardados a título de formação de capital de giro para a Nov’Arte, e os outros 75% ficam para o artesão. O grupo crê que, dessa forma, todos se empenham em melhorar a qualidade de seu trabalho. tins, que trouxe o saber dos trançados em fibra de arumã do alto rio Negro, da cidade de São Gabriel da Cachoeira. São muitos os artesãos que trabalharam na organização do grupo para formar a Associação. Dona Percília e sua filha Ivete, dona Suzana, dona Francisca Viana, Amélia, seu Manoel, entre outros. No baixo rio Negro, os artesãos de Barcelos, cidade próxima, e de Novo Airão faziam objetos como tupé, peneira, chapéu e abano para uso doméstico. AANA – da floresta alagada aos trançados de tradição indígena A chegada ao galpão de produção da AANA desvela uma atmosfera de fazer arte: o pé-direito alto, as paredes de madeira, o telhado de palha, as grandes janelas de treliças que se abrem totalmente para entrar a luz e o vento da floresta, atenuando o calor úmido. Sentadas no chão, as artesãs, rodeadas de facas, talos de arumã e esteiras, mostram a diversidade de tons e tramas que se pode obter com o trançado que segue a tradição do artesanato indígena da calha do rio Negro. A Associação dos Artesãos de Novo Airão surgiu em torno do núcleo da família de dona Percília Clemente Mar19 O artesanato, que em princípio fornecia utensílios domésticos, passa a ser uma fonte de renda interessante, que se potencializa com a criação da associação e uma maior organização na comercialização dos produtos. Essa renda propiciou certa estabilidade às famílias que deixaram de vender sua mão de obra e passaram a se dedicar mais intensamente ao artesanato, à pesca e ao roçado de forma independente do patrão. (Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, 2006) Em meados da década de 1990, a organização nãogovernamental Fundação Vitória Amazônica conheceu o trabalho do grupo e o ajudou na criação da Associação, que se constituiu em 1996. A construção e a inauguração da sede ocupada pelo grupo, em terreno cedido pela Prefeitura Municipal, ocorreram em 2000. A partir daí começaram as vendas para o público na própria loja, realizadas para turistas que visitam a cidade, mas há também o envio para outros estados. O apoio direto da FVA foi fundamental para a organização inicial do grupo e na assessoria técnica para o manejo sustentável do arumã. Hoje, segundo os artesãos mais jovens, eles aprenderam a “andar com as próprias pernas”. O arumã é uma planta herbácea, de tamanho médio e grande, que cresce em locais alagados, como as florestas de igapó. Apresenta-se sob a forma de touceiras, que são compostas por talos em diferentes estágios de vida: o “broto”, um talo novo, que chega à altura de um metro; o “olho”, um talo jovem, que alcança mais de um metro e tem até quatro folhas em sua extremidade; e o “maduro”, que tem ramificação foliar na extremidade e altura superior a um metro. Sua extração segue o plano de manejo criado por uma bióloga especialista da FVA, necessário para receber autorização do Ibama para extração da matéria-prima de forma a não causar extinção ou desequilíbrio no ecossistema. Os saberes tradicionais e científicos são aprimorados durante a atividade de coleta e em oficinas, cursos e capacitações, que ocorrem com alguma frequência. A coleta de arumã ocorre no período da seca, quando os igapós não estão mais alagados, geralmente de agosto a abril. Quando a seca é muito intensa, como nos meses de novembro e dezembro, a retirada é difícil porque o canal do igarapé fica seco demais, tornando impossível a chegada até o local de coleta. O período indicado no plano de manejo para a reposição correta do arumã é de três anos; por isso, deve-se procurar outros igarapés e deixar alguns como área de “descanso”. 22 A coleta é geralmente feita pelos maridos das artesãs nos igarapés próximos à cidade. Os artesãos “tecedores” aguardam a chegada da matéria-prima. Após a identificação de um “arumanzal” com potencial produtivo, a Associação se reúne com a comunidade mais próxima para informar sobre o trabalho de coleta. Para realizar um manejo adequado, os homens devem primeiro “limpar” o igarapé, retirar troncos e galhos caídos no canal e liberar a passagem da canoa. Depois, demarcar a área e medir a densidade e a extensão do arumanzal, traçando pontos de medidas nas touceiras, que servem para o monitoramento anual das espécies. Os talos maduros de arumã devem ser cortados pela metade. É um trabalho arriscado, tem que trabalhar com muita atenção por causa de inseto, cobra, aranha. Se você, Deus o livre, for picado por uma cobra, seguro mesmo é só segurar pra não cair. Graças a Deus que ninguém já foi picado. Mas é um trabalho que não é pesado, é maneiro, que fica bonito depois que você termina. Trabalhar tudo com qualidade. Você trabalha com manejo, não maltrata as plantas. Os filhos do arumã, quando vão crescendo, não tem problema nenhum, eles nascem mesmo normal, você 23 vai tirando aos poucos, só pegando num canto só. Do jeito que a gente vai, tem que voltar pelo mesmo canto. A gente não sai pisando nos filhos que estão nascendo. Na touceira de arumã eles têm uns filhos pequenininhos, aí você corta com cuidado pra não magoar aquele filho. (...) Por isso, o processo é demorado um pouco, mas é de primeira. (...) O cipó também é feito manejado: numa touceira, você vai escolher só o que você vai precisar. Só o maduro, no ponto que você vai precisar. Não adianta você tirar o cipó verde 24 porque, quando chega aqui e a pessoa vai trabalhar, é diferente, fica com uma cor muito feia, fica roxo. E o maduro, não. O cipó é feito para o acabamento do tupé, e pra fazer as bolsas. (Rubens Freitas, coletor) Os produtos da AANA são feitos de fibras como o arumã membeca, arumã canela, arumã de terra firme, tucumã e cipó ambé. As tinturas e as resinas vegetais para a fixação da cor nas fibras são retiradas de árvores e arbustos como a goiabade-anta, urucu, ingá-xixica, crajiru, castanheira, jacitara, macucuí, cumati, pacuácatinga, tintarana e outras. A certificação florestal de produtos vegetais é uma forma de valorizá-los no mercado, uma garantia para o consumidor de que o produto provém de atividade que respeita o meio ambiente e que são economicamente justos para as pessoas envolvidas no trabalho. O arumã deve ser trabalhado maduro, sendo utilizado verde apenas para o arremate. Após a coleta, vai para tanques de armazenamento, onde fica, amarrado em feixes, submerso na água, que deve ser trocada de dois em dois dias. Depois de retirados da água, os talos de arumã são preparados de acordo com a cor que vão receber. Para o branco, lava-se com sabão e palha de aço; para fazer o preto, tira-se o lodo de cima e raspa-se; para o vermelho, tem de se tirar o lodo de cima e começar logo a pintar. 25 Os artesãos Josiane e Erivaldo moram com sua filha pequena na sede da Associação e são pacientes em explicar o saber para os visitantes mais curiosos. Erivaldo é neto de dona Percília, que trouxe a tradição do trançado do alto rio Negro. Ele conta que a avó é “baré”, uma mistura de indígena com pessoa de fora. No passado, dona Percília só “destalava” o verde e trançava. Os desenhos não sobressaíam no trançado, não havia variação de tonalidades. Um dia ela passou urucu e seiva da goiaba-de-anta na fibra, dando 26 a cor vermelha. Assim, os desenhos começaram a aparecer. O preto é preparado com a queima de pneus dentro de um camburão de zinco. O pó que gruda no zinco endurece, é então pilado e passado em peneira fina. O jenipapo também é utilizado para a cor preta, mas são necessárias várias passagens até atingir a tonalidade desejada. O verniz da goiaba-de-anta é passado para fixar a tinta no arumã, como um verniz. Quanto mais camadas de verniz, mais brilho adquire o talo. A fruta é chamada de goiaba porque é idêntica a essa outra, embora não tenha um gosto bom. Para o tingimento, é raspada uma parte da casca da árvore, que cicatriza com o tempo. No mato existem várias árvores espalhadas, umas mais oleosas do que outras. As mais antigas são mais vermelhas. Com o uso do urucu, a cor vermelha aparece mais rápido. Depois que o talo é pintado na cor desejada, é então “destalado” em tiras com o auxílio de uma faca pequena e posto no sol para secar por cerca de duas horas. A largura da tira depende da peça a ser produzida. Para um tupé grande, as tiras são mais largas; um tapete pequeno é feito com tiras mais finas. O tupé é uma esteira trançada em diferentes tonalidades, formando desenhos que recebem dos artesãos nomes como “caminho de bicho”, “caracol”, “zigue-zague”, “malha de jiboia miúda e graúda”, “escama de buriti”. Todas as artesãs participam das etapas de tingir, destalar, tecer e arrematar. São produzidos tupés de 2x2m, 2x1m, 1x1m, 50x50cm, 20x35cm, além de cestas, jarros, balaios, peneiras, tipitis, abanos, bolsas, chapéus e jogos americanos. A peça mais característica é o tupé de 2x2m. Segundo os artesãos, o preço do produto é elevado porque todo o processo é longo, envolve coletores e tecedores, e leva cerca de duas semanas só para tingir, destalar e tecer. Os artesãos adultos da AANA sabem que o trabalho com artesanato é uma opção de trabalho e renda para os jovens do município, porque, fora da esfera política, não há emprego na região. Por isso capacitam os artesãos mais jovens e demais pessoas que desejam aprender esse ofício. 29 Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO DOS ARTESÃOS DE NOVO AIRÃO. Catálogo de peças. Novo Airão (AM): A Associação, 2008. PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA. Mulheres do arumã do Baixo Rio Negro – Amazonas. Associação dos Artesãos de Novo Airão. Manaus: 2006. (Série Movimentos sociais, identidade coletiva e conflitos, fasc. 12). FUNDAÇÃO VITÓRIA AMAZÔNICA. Uma análise crítica das unidades de conservação do Baixo Rio Negro com propostas para as unidades estaduais. Manaus: A Fundação, 2005. (Relatório Técnico, n. 2). IBAMA. [Homepage]. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br>. Acesso em: 25 jan. 2009. NAKAZONO, Erika et al. Manejo do arumã do Baixo Rio Negro: uso tradicional de um produto florestal não madeireiro no artesanato de fibras vegetais. Manaus: Fundação Vitória Amazônica, 2006. SEBRAE. Prêmio Top 100 de artesanato. Disponível em: <http://www.top100.sebrae.com.br>. Acesso em: 5 jan. 2010. SIGLAS IPAAM – Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis 31 Depto. de Patrimônio Imaterial CONTATOS PARA COMERCIALIZAÇÃO Sala do Artista Popular | Cnfcp Associação dos Artesãos de NOVO AIRÃO Av. Ajuricaba, 55 – Centro Novo Airão – AM cep 69730-000 tel (92) 3365-1278 [email protected] (Erivaldo ou Josiane) NOV’ARTE Associação dos Artesãos de Novo Airão (AANA) parceria institucional e apoio financeiro AM 352 – Km 0, Quadra J – Nova Esperança Novo Airão – AM cep 69730-000 tel (92) 3365-1000 [email protected] (Jean Daniel ou Simeão) apoio Nov’Arte realização Rua do Catete, 179 (metrô Catete) Rio de Janeiro – RJ cep 22220-000 tel (21) 2285.0441 | 2285.0891 fax (21) 2205.0090 [email protected] | www.cnfcp.gov.br 35 36