METODOLOGIAS EQUITATIVAS PARA FINANCIAMENTO DO SETOR SAÚDE Autor Maria Lecticia Machry de Pelegrini Universidade do Vale dos Sinos [email protected] METODOLOGIAS EQUITATIVAS PARA FINANCIAMENTO DO SETOR SAÚDE O financiamento de políticas públicas e, especificamente, das políticas de saúde, tem sido foco de interesse de pesquisa em todo o mundo. A expansão dos serviços de saúde por parte do Estado, ocorre especialmente após a II Guerra Mundial, quando a saúde passa a ser entendida como um direito universal, isto é, estendida a todos, enquanto tributo da cidadania (MÉDICI apud PIOLA, 2002, p. 23). A partir da década de 50 e 60, os gastos públicos nesta área crescem consideravelmente, especialmente em países desenvolvidos, seja pelo aumento de cobertura dos serviços, seja pela evolução e incorporação de novas tecnologias ou pelo aumento da esperança de vida da população. Neste contexto, a discussão sobre o financiamento do setor ocupa a pauta de governantes e economistas. Criar mecanismos de acompanhamento e discussão nesta área, principalmente na busca de critérios que garantam a eficiência e a eqüidade no financiamento das políticas e ações de saúde, tem sido o desafio de governantes e academia. Experiências têm sido descritas, e dentre os países europeus, se destaca o governo britânico, que desenvolve a partir da década de 80, um processo de acompanhamento da alocação eqüitativa de recursos para saúde que tem sido marco referencial para muitos países. O objetivo deste trabalho é apresentar sucintamente algumas destas metodologias, com enfoque aos trabalhos que vem sendo desenvolvidos para desenvolver processo eqüitativo de recursos no Brasil. O Modelo Britânico (RAWP): O sistema de saúde inglês é um dos precursores da universalização da cobertura assistencial. Ainda em 1944, (antes mesmo da implantação do National Health Service, em 1948), nos princípios básicos constavam: cobertura universal tanto dos serviços assistencias quanto os preventivos; proporcionalidade no financiamento em função da capacidade de pagamento; igualdade na oportunidade de acesso a serviços; distribuição geográfica eqüitativa de recursos físicos e financeiros (Whitehead in PORTO 2002 p. 18). Na década de 70 foi elaborado o RAWP – Resouce Allocation Working Party, que distinguiu diferentes critérios para orientar os gastos em saúde (de custeio e de investimentos), buscando que os recursos de investimentos conseguissem igualar a relação de leitos por habitantes nas diferentes regiões. Para a distribuição de recursos de custeio foram determinados critérios para sete itens de despesa: a) Internações não psiquiátricas – para a obtenção dos percentuais de distribuição para cada região a população foi corrigida em função de três tipos de indicadores: Sexo e Idade; taxas de utilização observadas segundo causa básica ( CID); fluxos interregionais. b) Internações Psiquiátricas e de incapacitados mentais – para a qual a população foi ajustada por sexo, faixa etária e estado civil; taxas de utilização esperada (excluindo a mortalidade); fluxo inter-regional ; e casos de longa duração. c) Serviços Ambulatoriais - utilizou mesmos critérios de internações não psiquiátricas porém a população foi ajustada para 6 grupos etários. d) Serviços de saúde coletiva - a distribuição foi estimada a partir da população residente segundo faixas etárias sem distinção de sexo e a utilização estimada em cada faixa foi corrigida a partir das respectivas SMRs - Standardised Mortality Ratios (Razões padronizadas de mortalidade). e) Serviços de ambulância – a distribuição foi feita a partir das SMRs globais, pois estudos demonstraram não haver variáveis de sexo e idade para esses serviços. f) Custos administrativos – somente base populacional sem ajustes. Assim a RAWP utiliza critérios de necessidades regionais que incluem população ponderada pela taxa nacional de utilização dos serviços, pela idade e sexo e pela taxa de mortalidade regional padronizada (CORTES et all apud FERLA e FAGUNDES, 2003 p. 125). Desde a sua implantação, muitos ajustes a essa metodologia já foram implementados, permanecendo como um dos principais métodos de avaliação sistêmica de necessidades. Este método tem sido base para a orientação de diversos outros países dentro do Reino Unido: Escócia, Irlanda do Norte e Pais de Gales; demais países da Europa: Espanha e Portugal; África: Zâmbia e África do Sul; Na América: Canadá, México e Brasil; e, Austrália Nova Zelândia, Índia (TOBAR 2003). O Modelo Escocês ( SHARE) : Seguindo os princípios do método RAWP, o modelo escocês desenvolveu algumas adaptações para distribuição entre suas regiões: a) Distinguem as internações não psiquiátricas as internações obstétricas; b) Para o financiamento de Serviços Coletivos, não aplica a discriminação das SMR – taxa de mortalidade padronizada segundo causa, por não considerar significativo, usando a padronização apenas para o grupo inferior a 65 anos e aplica também um ajuste quanto por dispersão por dispersão geográfica da população; c) Não inclui como componente os incapacitados mentais; d) No montante destinado a compensar fluxos inter-regionais de pacientes, distingue os custos particulares de cada especialidade classificando os hospitais em diferentes grupos dando diferentes valores a cada grupo. O Modelo SCRAW do País de Gales: Ainda seguindo a metodologia RAWP, incorpora as seguintes adequações: a) Para as internações não psiquiátricas, considera o custo médio anual ajustado por grupo etário, sexo e SMR global (não discriminado por causas); b) Para os serviços de ambulâncias, corrige a dispersão da população segundo o fator: Kilômetros/ total de habitantes; c) Para cálculo da compensação inter-regional, usa uma amostra dos serviços realizados. O Modelo PARR da Irlanda do Norte: Resulta de uma combinação dos demais modelos do Reino Unido com uma inovação que merece destaque: na distribuição final, uma vez somados todos os componentes, além de incorporar um ajuste por formação e por fluxo inter-regional de casos, agrega um ajuste por serviços especializados (em particular serviços laboratoriais). O Modelo Espanhol: A distribuição é feita com base populacional e cabe ressaltar que: a) Ainda que o sistema garanta acesso universal (1986), para o cálculo de distribuição são deduzidos os cidadãos com cobertura específica de seguros especiais (forças armadas, poder judiciário e outros); b) São também deduzidos dos repasses os montantes gastos com os serviços administrados pelo governo de forma centralizada; Em 1995, foi proposto, conforme Tobar (2003), uma metodologia distributiva baseada no método RAWP, porém com três diferenças: a)O modelo proposto não diferencia despesas de custeio e de capital; b)É aplicada apenas ao setor hospitalar; c)Permite uma combinação dinâmica e flexível da distribuição de recursos, de maneira que se podem simular diferentes combinações de variáveis com diferentes pesos e ponderações. As variáveis utilizadas são: i)População; ii) Gasto em Saúde (incluindo as transferências do governo central e não incluindo os gastos correspondes ao das administrações territoriais); iii) Taxa de Utilização: número de leitos do setor público e privado diferenciando pacientes agudos e crônicos e recursos humanos (diferenciando médicos e enfermeiros); iv) Mortalidade e níveis sócio-econômicos – utilizando a taxa de mortalidade padronizada e índice de Townsed. O Modelo Italiano: O Plano Sanitário Nacional do início da década de 80 estabelecia distribuição baseada em dois tetos de recursos: a) teto histórico de cada região; b) teto teórico calculado em função de variáveis de necessidade. A implementação contemplava uma reforma gradual, garantindo as regiões o teto histórico por no máximo seis anos. A partir de então só haveria o teto teórico baseado em um per capita ajustado segundo: a) Idade – agrupada em três grupos; b) Taxa de Mortalidade Infantil; c) Doenças Ocupacionais, acidentes de trabalho e mortalidade de Idosos. Em 1985, foi definido novo modelo de distribuição que destingiu componentes relacionados com funções de saúde: serviços hospitalares, serviços ambulatoriais, programas de higiene e prevenção. O Modelo Mexicano: Em 1996, foi desenvolvida fórmula de distribuição que contempla tanto a eqüidade como a eficiência. Porém devido à ausência de informações sobre desempenho, foi decidido o uso apenas de critério de eqüidade. Passaram assim a distribuir recursos para os estados através de distribuição per capita ajustada por: a) Condições de saúde – mediante uso da taxa de mortalidade infantil – indicador sensível para as condições de pobreza, representativo para os atraso de saúde que pretende corrigir e com registros confiáveis no país; b) Dificuldade de oferecer serviços – Foi medida com o índice de marginalização do Consejo Nacional de Poblacion (CONAPO), que também dá conta da capacidade estatal de apoiar com recursos próprios os serviços de saúde. O “caso” Brasil: A universalidade de acesso a serviços de saúde, é uma conquista recente da sociedade brasileira, alcançada na constituição de 1988, nela também esta prevista que a distribuição de recursos da seguridade social seja feita de forma eqüitativa. A Lei Orgânica da saúde (LOS 8080/90), dispõe sobre princípios e diretrizes para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, registra alguns conceitos que no território nacional, compuseram o escopo de um amplo movimento social na construção do que se convencionou denominar de processo de Reforma Sanitária brasileira: - a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência, - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie, - a utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática, - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União,Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência a saúde da população. Ainda na Lei Orgânica da Saúde LOS 8080/90 são estabelecidos os critérios de financiamento do Sistema Único de Saúde, em seu artigo 35: I. perfil demográfico da região II. Perfil epidemiológico da população a ser coberta; III. Características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área; IV. Desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior; V. Níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais; VI. Previsão do plano qüinqüenal de investimentos da rede; VII. Ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo. (BRASIL 1990) Afirma ainda, em seu parágrafo primeiro, que metade dos recursos destinados a Estados e municípios serão distribuídas segundo o quociente de sua divisão pelo número de habitantes, independentemente de qualquer procedimento prévio. Para a operacionalização do artigo 35 da LOS 9090/90, destacamos alguns estudos realizados: Em 1991, Vianna et alli, similaram a distribuição dos recursos de 1989 que 50% dos mesmos fossem transferidos com base populacional (per capita) e o resto com base nos seguintes critérios: a) Perfil demográfico e epidemiológico; b) Características quantitativas e qualitativas da rede; c) Desempenho técnico, econômico e financeiro; d) Participação do setor saúde nos orçamentos estaduais O estudo apontou diversas dificuldades na operacionalização dos critérios indicados no artigo 35 da LOS 8080/90, inclusive a necessidade de regulamentação dos mesmos. Com os dados então disponíveis para a análise, conclui que o perfil de distribuição obtido, nas cinco microrregiões do país, era quase idêntico se usada apenas à distribuição per capita bruta. Como segunda hipótese, foi simulada a distribuição ajustada não só sobre 50% dos recursos mas sobre todo o montante, neste caso houve sim discriminação positiva favorecendo as regiões menos favorecidas, em detrimento do Sul e Sudeste. Uma terceira hipótese consistiu em adotar cinco critérios de distribuição, três deles usando a razão inversa: a) situação sanitária; b) grau de cobertura dos serviços de saúde; c) nível de renda; e, dois em razão direta: desempenho do sistema estadual ou municipal e participação do setor saúde no orçamento estadual Desta forma os efeitos redistributivos alcançariam, uma distribuição mais eqüitativa. No ano de 1997, estudo realizado por Porto (1997), aplicou a metodologia RAPW para o Brasil, com dados de 1994, e concluiu que, ao cabo do uso da mesma, se encontraria uma distribuição semelhante à realizada pelo Ministério da Saúde no mesmo ano. Isto se deve principalmente pelo fato de que a metodologia RAWP ajusta a distribuição em função da SMRs calculadas sobre a mortalidade notificada e, no Brasil, há um sub-registro muito grande de mortalidade nos estados mais pobres. Quando aplicada a mesma metodologia, porém com base de dados de mortalidade proporcional, se alcança uma distribuição similar a que seria obtida distribuindo sobre a população bruta, e a distribuição per capita sem ajustes. A autora desenvolveu adaptações da metodologia RAWP, corrigindo a mortalidade para os sub-registros e indicadores socioeconômicos associados às condições de vida (renda per capita e percentual de lugares com renda inferior a um salário mínimo). Cabe salientar que a disponibilidade de estudos está na dependência de sistemas de informações integrados, confiáveis, abrangentes e acessíveis que possibilitem a análise das desigualdades em saúde, em diferentes dimensões (VIANA,2001 p. 172). Para a operacionalização de indicadores relativos aos gastos em saúde, alguns avanços já estão sendo feitos através do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde – SIOPS, que tem como objetivo contribuir para a orientação das políticas de saúde locais, constituindo-se em valioso instrumento de apoio à gestão e ao controle social. Este sistema, implantado em 1999, ainda carece de sensibilização dos gestores no reconhecimento da necessidade de obter informações para formulação, implantação acompanhamento e avaliação da política de saúde. Conforme aponta Pastrana e Cunha (2002), em trabalho apresentado no Congresso da Associação Brasileira de Economia da Saúde (dezembro 2002), o sistema mostra um padrão de alimentação dos dados diferenciado. No estudo realizado entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, um dos fatores que certamente influi nesse diferencial positivos dos municípios gaúchos é o fato da utilização dos mesmos para o cálculo do repasse de recursos. Em 2002, estudo realizado por Porto (2002) desenvolve metodologia alternativa ao RAWP anteriormente proposto pela mesma em sua tese de doutoramento, baseado então em um único cálculo distributivo ou cálculo distributivo total, usando como fator de ponderação a participação do gasto por cada tipo de serviço no ano anterior. Determinando-se assim um proxy de necessidade [grifo da autora]. Este estudo, devido a complexidade de sua metodologia, vem sofrendo contribuições de vários setores da academia e gestores envolvidos com a discussão de financiamento do sistema de saúde brasileiro. A operacionalização da lei pelo Ministério da Saúde: A universalização do direito de acesso às ações e serviços de saúde, instituído na CF, foi dispositivo auto-aplicável, o que resultou na imediata ampliação da demanda a ser atendida pelo sistema preexistente. Não tendo sido acompanhada de aumento compatível de recursos para o setor resultou uma progressiva degradação da qualidade dos serviços oferecidos pelo sistema público. Devido à irregularidade de financiamento, o inicio da década de 90 foi marcado pelo aumento da participação das esferas subnacionais, particularmente os municípios, no financiamento do sistema. No entanto essa participação não permitiu a superação das desigualdades, dadas as diferentes capacidades de arrecadação, associadas à desigual distribuição inter-regional da atividade econômica. Cabe também salientar que a crise do financiamento do setor facilitou a expansão do sistema privado de planos e seguros de saúde, alimentado pela migração dos trabalhadores do mercado formal, subvencionado pelos empregadores, aumentando em muito os gastos das famílias com saúde (BARROS, 2003). Ao longo da década de 90 a forma de repasse de recursos financeiros da União para as esferas subnacionais foi regulada pelas Normas Operacionais Básica (NOBs). A NOB 1/91 institui um sistema de alocação de recursos estruturado da seguinte forma: a) Recursos destinados ao pagamento de internações hospitalares, com o pagamento direto do Ministério da Saúde aos prestadores de serviços, públicos ou privados, mediante o sistema de pagamento prospectivo por procedimento; b) Recursos destinados a pagamento da assistência ambulatorial, calculado em base a valores per capita: Unidade de Cobertura Ambulatorial (UCA), diferenciados entre grupos de Estados, multiplicados pelo tamanho populacional; c) Recursos destinados a investimentos e equipamentos e ampliação das unidades já existentes: Unidade de Capacitação de Rede (UCR), que variava entre 1 a 5% do teto ambulatorial e inversamente proporcional ao valor da UCA; e d) Fatores de estímulo à municipalização, calculados com base em um valor per capita correspondente a 5% do valor da UCA, multiplicado pelo tamanho da população, destinado a municípios que cumprissem os requisitos estabelecidos na Norma. Desta forma, conforme ressalta Porto, a NOB 1/91 representou um movimento de recentralização do Sistema de Saúde uma vez que: a)retirou o caráter automático das transferências intergovernamentais; b) reduziu à saúde à mera prestação de serviços médicoassistenciais, ignorando a importância de ações de caráter coletivo; e c) passou a tratar as esferas subnacionais como prestadores de serviços, vinculando as transferências ao pagamento por serviços previamente prestados. A partir de 1993, sucessivas políticas foram implementadas procurando superar os retrocessos e avançar no processo de descentralização. A NOB/93 estabeleceu três níveis de autonomia de gestão para as esferas subnacionais: incipiente, parcial e semiplena. Pressupunha que mediante o cumprimento de alguns pré-requisitos as secretarias de saúde passam a receber um volume global de recursos para a cobertura assistencial e a dispor sobre a sua aplicação. Previa também a transferência de valores globais (para os municípios em gestão mais avançadas) de tetos financeiros para a cobertura hospitalar, efetuando assim transferências diretas, fundo a fundo, de recursos e dotando uma maior transparência a distribuição de recursos.(UGÁ et al 2003). Avanço importante também foi dado pela criação de Comissões Intergestores Bipartites e Tripartites, instituindo assim espaço de concertação de políticas setoriais entre as três esferas de governo. A NOB 01/93 resgatou o processo de descentralização, introduzindo novos estímulos para que estados e municípios fossem adquirindo autonomia na gestão da rede assistencial. Em janeiro de 1997 passa a vigorar a NOB 01/96. Por meio desta norma as modalidades de gestão foram reduzidas a duas: plena da atenção básica e plena do sistema municipal, para os municípios; e, gestão avançada do sistema e gestão plena do sistema para estados. A gestão plena do sistema confere autonomia para gerir o sistema como um todo, isto é, todas as ações relativas à promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como de manutenção do sistema como um todo. A NOB 01/96 buscou disciplinar o processo de organização do cuidado à saúde com o objetivo de induzir um novo modelo de atenção no país. O mecanismo fundamental para a estruturação do novo modelo consistiu no processo de programação pactuada e integrada entre as três esferas de governo, das atividades de assistência ambulatorial e hospitalar, de vigilância sanitária e de epidemiologia e controle de doenças. Esse processo nomeado Programação Pactuada Integrada – PPI visava: a) assegurar a explicitação do pacto entre os gestores; b) tornar visíveis as relações intermunicipais, traduzindo as responsabilidades de cada município na garantia de acesso da população aos serviços de saúde e a reorganização de serviços na lógica do novo modelo de atenção; e c) a reorganização da gestão do sistema, direcionando a alocação de recursos. Na sua concepção, a PPI deveria ser elaborada de forma ascendente, com base municipal. Por uma serie de questões, não se constituiu num processo consistente e estruturante do modelo de atenção. A principal estratégia utilizada para a indução do novo modelo de atenção relaciona-se à estrutura de financiamento adotada para o custeio das ações e serviços de atenção básica de saúde sob gestão municipal, o Piso de Atenção Básica – PAB, criado na NOB 01/96 e regulamentado nas portaria GM 1882, 18/12/97 e GM 2091, de 26/02/98. As inovações relacionadas à autorização e custeio da média e alta complexidade ambulatorial, medicamentos e insumos excepcionais (FAE, APAC), embora tenham representado importante instrumento para o registro de atendimento e racionalização do gasto em saúde, não modificaram a estrutura de financiamento mantendo a remuneração por procedimentos e com distorções nos valores pagos. Cabe analisar também as distorções que vêm ocorrendo ao longo da proposta: existem hoje quatro grandes fluxos de recurso, que por sua vez estão subdivididos em vários tipos de repasses fragmentando em muito as transferências de recursos: a) O Piso de Atenção Básica: que compreende uma parte fixa – hoje com valores defasados – calculados com base a um valor per capita multiplicado pela população; e uma parte variável destinada ao estímulo financeiro à implantação de programas (que foi amplamente utilizado no ultimo período como forma de indução a alguns projetos federais e onde obteve alguma forma de reajuste): Programa de agentes Comunitários de Saúde (PACS), Programa de Saúde da Família (PSF), Programa de Combate às Carências Nutricionais (PCCN), Ações Básicas de Vigilância,Epidemiologia e Ambiental, Ações Básicas de Vigilância Sanitária, Medicamentos Básicos; b) Recursos destinados a procedimentos ambulatoriais de alto e médio custo/ complexidade compreendendo: Fração Assistencial Especializada – FAE; a APAC relativa ao financiamento de procedimentos de alto custo/complexidade; o FAEC (Fundo de Ações Estratégicas e Compensação) destinado à compensação intermunicipal dos procedimentos de média e alta complexidade; c) Recursos destinados a Ações de Média complexidade em vigilância Sanitária – distribuídos per capita, conjuntamente a incentivos proporcionais ao volume de arrecadação de taxas de fiscalização; d) Recursos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), transferidos por pagamentos prospectivos via AIH – Autorização de Internação Hospitalar, combinado com fatores de compensação a unidades que funcionam com custos hospitalares diferenciados: FIDEPS – Fator de Incentivo ao Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa e o IVHE – Índice de Valorização Hospitalar de Emergência, ou mesmo que participem de ações focais definidas pelo Ministério da Saúde, como campanhas seletivas. Esta norma continua em vigor mesmo com a Norma Operacional da Assistência – NOAS (publicada em janeiro de 2001), visto que a mesma não altera o sistema de alocação de recursos e encontra-se ainda em fase de implantação. Ao analisarmos este período recente, verificamos que a vigência de Normas de lógica “municipalista” permeou a estruturação da gestão neste período. Esta situação, se de um lado contribuiu para a ampliação do acesso a serviços básicos de saúde, dificultou a constituição de redes hierarquizadas e regionalizadas de serviços, onde a participação da esfera estadual é imprescindível no financiamento, planejamento, regulação, avaliação do Sistema Único de Saúde, possibilitando a formação de redes equânimes de atenção integral à saúde. De todo modo, é inevitável constatar um efeito evidente das políticas de financiamento no modo de funcionamento do sistema, em particular dos serviços assistenciais. A experiência do Rio Grande do Sul – Municipalização Solidária da Saúde: A participação das esferas subnacionais no financiamento do SUS tem sido apontada como uma das dificuldades efetivas na implantação do Sistema Único de Saúde, em especial quando se trata da participação dos Estados. Em consonância com a necessidade de o Gestor Estadual redefinir seu perfil de participação na constituição do sistema, a Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul, no período de 1999-2002, constituiu como seus eixos prioritários de ação: a descentralização da gestão (transparência e descentralização dos níveis de poder, com política compatível de financiamento); fortalecimento das instâncias de pactuação e controle social; regionalização da atenção; Integralidade da atenção; e qualificação permanente dos trabalhadores para o SUS. Em estudo sobre o financiamento à saúde do Rio Grande do Sul no período de 1995 a 2001 (Ferla et alli, 2002) constatou-se uma acentuada variação nos valores re´passados pelo gestor estadual aos municípios e regiões, sendo que 30% dos municípios não receberam qualquer recurso financeiro estadual para a saúde até o ano de 1988, independente da modalidade de habilitação em que se encontravam, ou de indicadores demográficos e ou de saúde. Essa característica de participação estadual de financiamento tampouco fortaleceu o processo de regionalização ordenada do SUS no estado, já que regiões com menor oferta de serviços, tiveram menores valores repassados pelo Estado. Na gestão do Governador Olívio Dutra, de 1999 a 2002, a então Secretaria Estadual de Saúde e Meio Ambiente (SSMA) estabelece em seus eixos prioritários de atuação a descentralização da gestão, criando a Municipalização Solidária da Saúde (MSS), através do Decreto Estadual nº 30.582, de 10 de junho de 1999, onde dispõe sobre o repasse regular e automático de recursos do fundo estadual de saúde para os fundos municipais de saúde. Criada com o objetivo de fortalecer a gestão municipal na MSS os recursos do Tesouro Estadual são transferidos do Fundo Estadual de Saúde para os Fundos Municipais de Saúde, sem qualquer vinculação com modalidades previamente definidas de gasto. Assim cada município tem autonomia para decidir em que vai gastá-lo, desde que sua aplicação seja aprovada pelo respectivo Conselho de Saúde e o gasto seja realizado em projetos e atividades classificadas na função saúde, conforme estabelecido na legislação federal. Para receber os recursos, o gestor municipal precisa apresentar para aprovação um Plano de Aplicação e Relatórios de Gestão, com a prestação de contas ao respectivo Conselho de Saúde, realizada em audiência pública na Câmara de Vereadores, trimestralmente. Essas regras de gasto e prestação de contas estão definidas na legislação federal desde 1993, por promulgação da Lei Federal nº 8.689/93, que dispõe sobre a extinção do INAMPS. Nessa lei, como em boa parte dos dispositivos legais que tiveram associados aos princípios e diretrizes do processo de reordenamento do sistema de saúde, que emergiu no período adjacente da 8ª Conferência Nacional de Saúde e Assembléia Nacional constituinte, participação da sociedade e permeabilidade no funcionamento da “máquina” de governo são considerados mecanismos imprescindíveis à adequação das políticas de saúde a da própria sociedade. Não é por outro motivo que uma das marcas produzidas pelo movimento social que lhe deu sustentação (o conhecido “Movimento Nacional de Reforma Sanitária”, em alguns momentos referido como “Partido Sanitário”) foi “Saúde e Democracia”. Segundo a metodologia criada a partir de 1999, os recursos da Municipalização Solidária da Saúde são transferidos em 4 parcelas anuais. Como a criação da MSS deu-se em junho, foi pactuado na CIB o seguinte cronograma de execução: 1ª parcela – no segundo do trimestre do ano vigente 2ª parcela – no terceiro semestre do ano vigente 3ª parcela – no quarto trimestre do ano vigente 4ª parcela – no primeiro trimestre do ano subseqüente. No ano de 1999, o critério adotado para distribuição de recursos foi per capita, fazendose a distribuição aos 467 municípios então existentes (cabe salientar que a partir do ano 2000, 30 novos municípios foram criados no Estado). Ainda em 99 foi criada uma “fração” da Municipalização Solidária da Saúde, com o objetivo de minimizar o impacto das oscilações populacionais ocasionado pelo verão e a fração para populações itinerantes, atingidas por barragens, assentamentos, assentado, Indígena e acampados sem terra. Esse contingente populacional, excluído das estatísticas demográficas oficiais por decorrência da sua extrema mobilidade territorial, também tem associada em si uma precária condição de acesso aos bens e serviços de consumo, inclusive na saúde. Para o repasse dos recursos a partir do ano 2000, atendendo aos preceitos do artigo 35 da Lei Orgânica da Saúde (LOS), de 19 de setembro de 1990, foram utilizados os seguintes os critérios para o cálculo dos valores a serem repassados aos municípios, com o argumento de alcançar uma maior eqüidade na distribuição de recursos: (a) População total,(b) População menor de 14 anos, (c) População maior de 60 anos,(d) Capacidade instalada,(e) Mortalidade Infantil e (f) Prioridade Regional. A partir do ano de 2001, com a possibilidade de acesso aos dados do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), foi acrescido aos critérios de cálculo da MSS, atendendo a LOS artigo 35, o Inverso da Arrecadação Municipal e o Percentual de Recursos Próprios Utilizados na Saúde. No ano de 2002, os mesmos critérios e bases de cálculos foram utilizados. Desta forma, a metodologia adotada contemplou a aplicação de todos os indicadores previstos no artigo 35 da LOS 8080/90. Cabe relatar ainda que além da Municipalização Solidária da Saúde, o Estado institui também neste período o programa saúde solidária, pelo qual, com o objetivo de reorganizar e qualificar a rede de serviços hospitalares do estado foi também estabelecido mecanismo de repasse financeiro a toda a rede hospitalar estabelecida. Conclusões A análise realizada aponta que a adoção de metodologias de alocação financeira para a distribuição de recursos, permite a descentralização dos serviços de saúde, propiciando a efetiva formação de sistemas locais de saúde resolutivos. No entanto, para a implantação destas, e necessário o efetivo compromisso dos Gestores com a implantação do SUS, que venha de fato fortalecer as instancias locais de saúde, ressalta-se também a necessidade de sistemas de informações efetivos e mecanismos de acompanhamento que propiciem a efetiva participação do controle social no acompanhamento dos mesmos. Referências BARROS, Elizabeth. 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