ENTRE DÉDALO E O TEMPO: uma leitura semiótica das representações simbólicas
na poética barroca de Manoel de Barros.
Gicelma da Fonseca Torchi-CHACAROSQUI (UFGD) 1
RESUMO: Na área dos estudos Semióticos, os desafios impostos pelos textos de caráter
artístico, especificamente os literários, sempre mereceram especial destaque. A semiótica da
cultura considera o texto como sendo a unidade mínima da cultura. As reflexões aqui
desenvolvidas empreendem algumas possibilidades de ponderações teóricas centradas na
interface entre os textos teatrais e cinematográficos. O objetivo do trabalho é analisar estes
elementos, por serem básicos e essenciais e atuarem com diversidade e complexidade na
criação de uma obra artística no que concerne a estruturação de suas imagens. Foram
ressaltados aspectos relevantes para os estudos semióticos e dos textos literário e sua tradução
em outros sistemas de signos que compõem a estrutura do universo cinematográfico, com
especial atenção aos aspectos semióticos e culturais. Analisamos a possibilidade de tradução
intersemiótica do texto dramático Tristão e Isolda (Joseph Bédier) para o cinematográfico
Romance, (Guel Arraes) através de procedimentos exclusivamente cinematográficos usados
pelo diretor, ou seja, refletimos se o cineasta procurou, em seu sistema de signos,
equivalentes para o sistema verbal/dramático. Num segundo momento, abordamos outros
aspectos decisivos na transcriação, a saber, os aspectos culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura dramática; Cinema; Intersemiótica.
Caminhos introdutórios : A arte como linguagem semiótica
A obra de arte se configura como comunicação em linguagem artística. Para Lotman
(1978), as diversas manifestações artísticas, sejam elas teatro, cinema, música, pintura,
possuem uma linguagem que as organiza de modo particular. Linguagem é todo o sistema de
comunicação que utiliza signos ordenados de modo particular (que servem para transmitir
informação), ou seja, cada linguagem, é não só um sistema de comunicação, mas ainda um
sistema modelizante, essas duas funções estão indissoluvelmente ligadas. E mais ainda, ―cada
sistema de comunicação pode realizar uma função modelizante e, inversamente, cada sistema
modelizante pode desempenhar um papel de comunicação‖, (LOTMAN, 1978, pp. 44-45). A
mensagem é uma informação codificada que, por sua vez, é decodificada e, o mais
importante, é re-codificada. A re-codificação é um dos conceitos fundamentais da semiótica
da cultura
O que define a linguagem, como sistema semiótico é a circunstância de ela ser
constituída por signos, pois uma linguagem para exercer seu papel comunicativo deve,
obrigatoriamente, dispor de um sistema de signos. Por consequência, a principal característica
1
Professora Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutora em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. [email protected]
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do signo é ―a capacidade exercer sua função de substituição‖ (1978, p.10). Na medida em que
estes são sempre o equivalente de alguma coisa, ―signo subentende uma relação constante
com o objeto que substitui‖ ( LOTMAN, 1978, p.12). Assim uma linguagem não é, não
obstante, um conjugado de signos avulsos, formados mecanicamente, pois os signos têm uma
relação biunívoca entre sua expressão material obrigatória e o seu conteúdo. Assim, ―os
signos não existem como fenômenos isolados, mas sim como sistemas organizados
(semânticos e sintáticos) constituindo uma das regras essenciais de qualquer linguagem‖.
(LOTMAN,1978, p.12). Por sua vez, Lotman os divide em dois grupos: os signos
convencionais e os signos figurativos. Os convencionais, em que a palavra é o exemplo mais
típico, são aqueles em que a relação entre expressão e conteúdo tem uma motivação
intrínseca. Por sua vez, os signos figurativos, ou icônicos, ―supõem para o significado uma
expressão única, uma expressão que lhe é por natureza própria e se caracterizam por sua
maior inteligibilidade - o desenho é um grande exemplo‖ (1978, p.15). Desta forma, os signos
convencionais são codificados e os figurativos sua antítese. No entanto se lembramos que os
signos só podem ser lidos no interior de uma dada área cultural, os signos icônicos acabam
tendo, neste âmbito, um caráter de convencionalização.
Existe ainda, na visão do autor, uma diferença essencial entre os signos figurativos e
os convencionais, ―esses últimos formam facilmente sintagmas e dispõem-se em
microcadeias‖, facilitando a sua circulação seja em forma de frases ou em narrativas. Mas
construir uma frase com signos figurativos, ―definir a natureza de seus elementos e de seus
limites é algo muito difícil‖ ( LOTMAN, 1978, p.19). O mundo dos signos, icônicos e
convencionais, não se limita, pois estes estão em constante interação, interpenetrando-se e
repelindo-se continuamente, processo este que se evidencia nas artes. O grande exemplo
citado pelo autor eslavo é o da literatura, ―arte que a partir de signos convencionais, cria um
texto que é um signo figurativo‖ (LOTMAN, 1978, p.20).
Para que houvesse o entendimento do texto não mais como um simples enunciado
dado em uma linguagem qualquer, mas como um sistema de códigos marcado pela
multivocalidade, foi necessário um considerável desenvolvimento do pensamento científico.
Os textos artísticos por serem multivocais são acrescidos de uma unidade complementar, pois
seus vários subtextos são (re)expostos na linguagem de uma arte dada: gestos, cores, sons,
formas, imagens, iluminação e palavras traduzem-se por exemplo, para a linguagem do
cinema
Apesar de o autor se referir à complexidade do texto artístico como ―uma etapa
qualitativamente nova na complicação do texto‖ (LOTMAN, 1998, p. 80), vale dizer que o
próprio Lotman alerta que esta não é uma característica exclusiva deste tipo de sistema. Para
ele, não só os elementos pertencentes a diferentes tradições culturais, históricas e étnicas, mas
também os constantes diálogos intratextuais entre gêneros e ordenamentos estruturais de
diversas orientações formam ―esse jogo interno de recursos semióticos que, manifestando-se
com maior claridade nos textos artísticos, resulta, em realidade, em uma propriedade de todo
texto complexo‖ (Lotman, 1998, p. 86). Assim, o estágio avançado de complexidade pode ser
também verificado em outros tipos de texto da cultura. O texto, além de ser uma
comunicação, cumpre também outras duas funções, quais sejam, a de transmissão de
significados e a de geração de novos sentidos.
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O autor eslavo advoga ainda que estruturalidade é a qualidade textual da cultura sem a
qual as mensagens não podem ser reconhecidas, armazenadas e divulgadas. No limite desse
raciocínio situa-se a síntese sistêmica: o conceito de cultura como texto, na verdade, deve ser
entendido como texto no texto. Todo texto da cultura é codificado, no mínimo, por dois
sistemas diferentes. Por conseguinte, todo texto da cultura é um sistema modelizante.
É o texto que reúne as características do tipo de cultura. Os aspectos do conceito de
cultura como texto, apontados até aqui, permitem sistematizar alguns pontos-chave da
semiótica sistêmica. Por um lado, o processo de passagem da informação em texto; por outro,
a dinâmica do texto com o contexto. Ou seja:
O ―trabalho‖ fundamental da cultura [...] consiste em organizar
estruturalmente o mundo que rodeia o homem. A cultura é um gerador de
estruturalidade: cria à volta do homem uma sociosfera que, da mesma
maneira que a biosfera, torna possível a vida, não orgânica, é óbvio, mas de
relação (Lotman & Uspenskii, 1981, p. 39).
1. Transcriação: tradução intersemiótica e os aspectos de análise contemporânea
Alem da possibilidade de penetração analítica nos meados mais sutis das palavras, a
teoria geral dos signos permite desenvolver relações de várias ordens entre a semiótica e a
literatura. Estas são as relações internas, estabelecidas nos limites da própria literatura, da
qual uma regionalidade seria a semiótica da tradução e relações externas, estas desdobradas
em dois níveis: relação da literatura com as demais artes: música, pintura, escultura, etc.; e
relações da literatura com outros sistemas de signos: jornal, cinema, televisão, fotografia.
Tudo isso é viável porque a teoria geral dos signos nos habilita a perceber as intersinfluências e intercâmbios de recurso que um sistema de signos pode estabelecer com outros
e que são chamados de processos intersemióticos. Sob essa lente torna-se perceptível, por que
e como uma linguagem pode fecundar a outra, como a literatura pode fecundar o cinema e
vice-versa, como a música pode fecundar a poesia e vice-versa. O saber semiótico funciona
como um passaporte de trânsito das linguagens e como um detector das forças nascentes da
linguagem que encontra suas fontes privilegiada na literatura.
Entendida como atividade cognitiva, a tradução opera a passagem de um enunciado a
outro, considerado como equivalente: as línguas naturais, por exemplo, traduzem-se umas nas
outras, ou seja a ―transcodificação de uma linguagem noutra‖ leva à descoberta em um único
objeto, de objetos de duas ciências ou, então, faz com que se elabore um novo domínio do
conhecimento e de ―uma nova metalinguagem que lhe é própria‖ ( LOTMAN,1978, p. 5051).
Enquanto atividade semiótica, a tradução pode ser decomposta, de um lado, em um
fazer interpretativo e, de outro, em um fazer produtor, pelo fato da não-adequação dos
universos figurativos de diferentes discursos. Transcriar, portanto, ou como é indicado por
Haroldo de Campos, em artigo: trata-se da ―literalidade exponenciada, a literalidade à forma
67
(antes do que ao conteúdo) do original sob o signo da invenção‖2. A passagem de um sistema
significante a outro – do discurso literário ao cinema ou à TV, das bandas desenhadas aos
jogos eletrônicos ou, ainda, da imagem visual à imagem virtual e as incríveis possibilidades
da inteligência artificial – evidencia semióticas heterogêneas e permite-nos falar em tradução
intersemiótica. O termo é cunhado por Júlio Plaza, a partir de Jakobson:
A primeira referência (explícita) à Tradução Intersemiótica que tive
oportunidade de conhecer foi nos escritos de Roman Jakobson. De que
tenho notícia, Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos
possíveis de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. A
tradução Intersemiótica ou 'transmutação' foi por ele definida como sendo
aquele tipo de tradução que 'consiste na interpretação dos signos verbais por
meio de sistemas de signos não verbais', ou 'de um sistema de signos para
outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a
pintura', ou vice-versa, poderíamos acrescentar (PLAZA, 2001, p.13).
A tradução intersemiótica, definida como tradução de um determinado sistema de
signos para outro sistema semiótico, tem sua expressão entre sistemas os mais variados. Entre
as traduções desse tipo, encontra-se a das artes plásticas e visuais para a linguagem verbal e
vice-versa, assunto que tem sido estudado por muitos autores contemporâneos como Nelson
Goodman, Michael Benton, Mario Praz, Júlio Plaza, Solange Oliveira e outros. Em alguns
casos, artista e poeta são a mesma pessoa, como William Blake e Samuel Palmer, que
pintaram a partir de seus próprios poemas.
O poeta, primeiro leitor de sua obra de arte, torna-se seu próprio tradutor. Em outros
casos, pinturas feitas por outros artistas aparecem como ilustrações para os poemas ou
romances, e só raramente um poema aparece como inspiração para um quadro. Em casos
especiais, esse último pode ter um apelo tão forte que se transforma em obra-prima, em vez
de apenas servir como material decorativo. Entretanto, a maioria dos pares literatura/pintura
surgiu porque os escritores/poetas reagiram às pinturas, compondo poemas ou romances
sobre elas, isto é, leram verbalmente o que estava ―escrito‖ em imagens. Apesar de esse
procedimento ser em geral considerado uma tradução do visual para o verbal e vice-versa,
para Yuri Lotman (1990), cada obra, pintura ou poema, já contém em si elementos de ambas
as naturezas. Por isso, propõe um modelo de leitura das obras em que essa se faz,
simultaneamente, para os elementos verbais e visuais. Além das relações entre pinturas e
textos literários, temos outros exemplos de tradução intersemiótica. Um deles é a relação
entre textos dramáticos e filmes. Também entre esses textos existe a simultaneidade verbal e
visual, porém, nesse caso, bem mais aparente. Os textos se baseiam em palavras e imagens, o
que ilustra a simultaneidade, já apontada, dos elementos verbal e visual, embora um deles
sempre predomine.
2
CAMPOS, Haroldo de, ―A Poética da tradução‖, A Arte no Horizonte do Provável, pp. 98-111.
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O teatro mostra-se como um meio verbal, porém não exclusivamente, enquanto o
cinema mostra-se, principalmente, mas não exclusivamente, como um meio visual. Usam-se
termos como transcodificação, interpretação, ou refração para descrever a transição entre
esses dois meios, e esse processo será aqui considerado como uma transação que acontece no
―interlugar‖, isto é, um processo que enfatiza a alteridade e a diferença entre os textos, mas
procura ―consistências proporcionais‖ 3 .A idéia neste trabalho é procurar elementos de um
determinado sistema semiótico que exerçam função semelhante/ equivalente em outro
sistema de signos, ou seja, procuram-se equivalentes. Há que se considerar, entretanto, outro
componente crucial em situações tradutórias: a cultura. Para ilustrar a espécie de semiose
entre sistemas, farei algumas considerações sobre o processo de tradução2 que ocorre no filme
Romance em que o diretor Guel Arraes faz uma adaptação fílmica de Tristão e Isolda, da
peça de Joseph Bédier. Essas considerações estão organizadas em duas partes: a primeira
trata dos equivalentes intersemióticos e a segunda, da cultura, como elemento decisivo em
qualquer tradução.
2.1. Tradução aspectos literário ( dramático) e cinematográfico
O conjunto dos sistemas de signos cinematográficos pode ser considerado como um
construto ao qual damos um significado. O mesmo acontece com o conjunto de signos
teatrais. Juntos, constituem o conjunto no qual se integram o que chamamos, neste trabalho,
de aspectos intersemióticos da tradução. Num fenômeno complexo como este, não é possível
uma sistematização satisfatória dos signos usados, porque ambos os sistemas—
cinematográfico e teatral—, apesar de distintos, se sobrepõem e se misturam. No teatro, como
no cinema, a vestimenta e a maquiagem, por exemplo, pertencem igualmente à arte do diretor
e à do ator; o diretor de arte influencia o movimento, e o mesmo se diz da ação do ator. No
teatro, o trabalho do iluminador auxilia o do diretor de cena e, no cinema, o trabalho desse
profissional auxilia o do cenografista, sobrepondo-se a ele. Em ambos, o texto dita os gestos e
o movimento e, no cinema, o trabalho da câmara e o processo de edição influenciam muito o
significado dos elementos da mise-en scene.4 Martin Esslin (1990), entretanto, faz uma
distinção entre signos denotativos e conotativos, numa tentativa de sistematização dos signos
dos meios dramáticos5 . Esslin divide os sistemas em dois grandes grupos: os que são comuns
a todos os meios dramáticos e os que são específicos apenas do cinema. Entre os primeiros,
comuns às duas formas de expressão, encontram-se os sistemas fora do drama, os que estão à
disposição do ator, os visuais, os orais e o texto. Entre os específicos do cinema, encontramse os derivados do trabalho da câmara, da ligação entre os planos e a edição. Todos
representam instrumentos usados para caracterizar as personagens, retratar o background e o
meio ambiente e, por fim, contar a história; tudo porém, no nível denotativo. No nível
3
Este termo foi empregado por Marcel Cornis-Popp ao falar de adaptação do texto teatral para o
cinematográfico.
4
O termo, segundo Penney, define aquilo que comprime todos os sistemas de signos que criam sentido no
espaço, isto é, o que é oferecido para ser filmada, a imagem de ação total, criada por elementos como os atores,
a cenografia, o vestuário, a iluminação e os adereços.
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conotativo, outros sentidos podem estar implícitos, latentes mensagens morais, filosóficas,
políticas - que o escritor, o diretor ou o próprio diretor de arte queiram transmitir. Esta
mensagem, porém, está presa a signos que, quando combinados, podem criar estruturas
significantes de outra ordem, que será explicada posteriormente. O material de expressão do
sistema cinematográfico é constituído não só de imagens, mas também de palavras, signos
impressos, música e ruídos. Por isso, especula-se sobre a existência de um cerne
especificamente cinematográfico, seja ele um sistema múltiplo ou único de signos.
Para alguns teóricos, como Eisenstein (1949) e os formalistas russos, o cinema se
distingue enquanto forma de arte distintiva, pelas possibilidades que oferece de criar
significados através de técnicas específicas como justaposição, fragmentação, separação e
reunião de imagens através do uso variado da angulação, deslocamento, focalização,
perspectiva e distância entre a câmara e o objeto filmado. Outros teóricos realistas, como
Bazin (1967), ao contrário, definem a especificidade do cinema em termos da relação
privilegiada com uma realidade objetivamente verificável e consideram a montagem e outros
recursos como manipuladores e distorcedores da realidade. Embora discordantes nesse
aspecto, essas duas abordagens jamais negam a especificidade dos recursos cinematográficos.
Numa representação teatral existe também uma enorme variedade de sistemas de significação
em operação: cenário físico, contexto cultural, texto dramático, interpretação artística dos
atores, etc. Além disso, podemos acrescentar outros elementos, como os das artes cênicas:
mímica, dança e circo e um grande número de formas híbridas, muito comuns atualmente.
Quando traduzimos do teatro para o cinema, alguns elementos considerados como
peculiares ao teatro serão transformados em outros, especificamente cinematográficos. É a
própria procura pela equivalência, ou seja, pelos aspectos que rotulo de intersemióticos,
aqueles decorrentes do fato de que o cinema e o teatro possuem propriedades distintivas
resultantes de meios diferentes. No cinema seriam, por exemplo, a montagem, recursos de
iluminação, a filmagem. São, portanto, fatores intrínsecos, forças internas que atuam sobre as
traduções/filmes. Sabe-se que os cineastas encontraram, na literatura, modelos de construção
do enredo, métodos de delinear personagens, modos de apresentar processos de pensamento e
meios de lidar com o tempo e o espaço. Eisenstein que, há 40 anos, garantiu que os romances
contém equivalentes de fades, dissolvências, closeups, procedimentos de composição e
edição. O cinema desenvolveu seus próprios métodos de narrar, apesar de dever muito à
literatura. Ao propor a transformação, tradução, de uma forma de arte em outra, o cineasta se
envolve em problemas que exigem soluções que interferem em sua decisão de usar este ou
aquele recurso.
De acordo com a história, sabe-se que muitos filmes usaram o teatro como fonte, por
conta da semelhança evidente entre ambos, em termos de espetáculo. Porém, esses primeiros
filmes eram apenas imitações mecânicas dos dramas, simples teatro filmado. Hoje, os
cineastas, conscientes da ineficácia dessa metodologia - que desprezava os recursos do meio
utilizado - se valem das possibilidades temporais, espaciais e dos processos mixmidiáticos
ilimitados do cinema para expandir o drama, isto é, usam equivalentes cinematográficos para
determinados signos teatrais. Num primeiro momento, tentarei exemplificar a tradução
intersemiótica do texto dramático para o cinematográfico, através de procedimentos
exclusivamente cinematográficos usados por pelo diretor, ou seja, tentarei mostrar como o
cineasta procurou, em seu sistema de signos, equivalentes para o sistema verbal/dramático.
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Num segundo momento, tratarei de outros aspectos decisivos na tradução semiótica, a
saber, os aspectos culturais.
3. Do texto para a Tela: o filme Romance
Ana (Letícia Sabatella) e Afonso (Wagner Moura) são dois jovens atores que se
apaixonam durante a montagem teatral de Tristão e Isolda . Ao mesmo tempo em que recriam
a história deste casal mítico, Tristão e Isolda, que está na origem de todos os casais
românticos, eles tentam descobrir para si próprios uma nova forma de se relacionar. O filme
tem a assinatura de Guel Arraes na direção e Paula Lavigne na produção. Em seu filme,
Romance, o diretor Guel Arraes (O Auto da Compadecida, Lisbela e o Prisioneiro) faz um
ensaio sobre a representação dramatúrgica do amor, recheado de ironias aos cacoetes da TV e
do cinema brasileiros. A cidade paraibana Cabaceiras foi um dos cenários filme de Guel
Arraes. Estrelado por Wagner Moura e Letícia Sabatella, o longa conta a história de Ana e
Afonso, dois jovens atores que se apaixonam durante a montagem teatral do Romance de
Tristão e Isolda. Ao mesmo tempo em que recriam a história deste casal mítico que está na
origem de todos os casais românticos, eles tentam descobrir para si próprios uma nova forma
de se relacionar, menos trágica e mais livre, porém carregada da mesma emoção. Ao narrar o
romance contemporâneo de Ana e Afonso, tendo como pano de fundo o romance clássico de
Tristão e Isolda, Romance é uma história de amor e uma história sobre o amor. O elenco do
longa conta com Andrea Beltrão, José Wilker, Bruno Garcia, Tonico Pereira, Vladimir
Brichta, Edmilson Barros e Marco Nanini.
Tristão e Isolda, uma adaptação de um dos maiores escritores da literatura francesa:
Joseph Bédier. A peça é baseada em um triângulo amoroso entre o rei da França Marcos, seu
sobrinho Tristão e a princesa Isolda. O rei precisa casar e seu sobrinho se encarrega de buscar
a noiva para o casamento. De volta de terras distantes com a jovem Isolda (futura esposa do
rei), o sobrinho e a moça bebem uma poção mágica preparada pela mãe da noiva, uma
feiticeira à moda medieval. A partir deste momento Tristão e Isolda se apaixonam
fervorosamente e terão de enfrentar uma série de dificuldades para ficarem juntos. Tristão e
Isolda é , também, uma lenda celta que mostra a história de amor proibido, sendo retratada de
diferentes maneiras na Idade Média e hoje espalhada pelo mundo. As obras literárias mais
antigas sobre Tristão e Isolda que chegaram até hoje são fragmentos de dois romances em
verso escritos na segunda metade do século XII em francês antigo. William Shakespeare
inspirou-se nos versos do poeta Arthur Brooke, lançados em 1562, que por sua vez foi
influenciado pelas narrativas de Tristão e Isolda, escreveram Romeu e Julieta. O famoso
compositor alemão Richard Wagner, criou a célebre ópera em três atos da famosa lenda,
baseado nos contos celtas. O famoso compositor alemão Richard Wagner, criou a célebre
ópera em três atos da famosa lenda, baseado nos contos celtas.
Maria Nazareth de Barros, no livro Tristão e Isolda: o mito da paixão5 refere-se à
obra de Rougemont como, sem dúvida, a obra teórica mais conhecida escrita sobre a lenda de
5
BARROS, Maria Nazareth de. Tristão e Isolda: o mito da paixão. SP: Mercuryo, 1996. p. 110.
71
―Tristão e Isolda‖. Para Rougemont (1988) o mito de Tristão e Isolda não é apenas o
romance, mas o fenômeno que ilustra todo o prazer que os amantes experimentam por meio
da paixão-morte, cuja influência se projeta até os dias de hoje. texto foi concebido prevendo
um espetáculo com uma hora de duração aproximadamente. A construção do texto dramático
também procura incorporar na sua estrutura o suspense, como forma de suscitar a atenção e
manter o interesse do leitor-público. O texto dramatúrgico estruturado em nove quadros e três
atos se organiza, portanto, a partir de situações dramáticas selecionadas ou inspiradas a partir
dos episódios do romance.
Até o final do século XIX e início do século XX o êxito do espetáculo teatral era
atribuído exclusivamente ao texto. Uma das únicas exceções foi a Commedia dell’Arte, em
que o texto nascia da adaptação de um roteiro à singularidade da representação. Em 1887, o
francês André Antoine funda o Théâtre-Libre, e passa a ser considerado o primeiro diretor
teatral. Antoine opõe-se à concepção declamatória do teatro francês da época e tenta impor
uma estética naturalista. Ao contrário da elocução tradicional6, o ator deve retornar aos gestos
naturais do homem moderno no seu cotidiano.
Para Jean-Jacques Roubine, com a invenção da eletricidade, o espaço cênico passa a
ser segmentado, multiplicando-se. O diretor adquire o domínio dos componentes da cena,
tornando-se o guardião7 da globalidade do espetáculo. Na opinião de Elie Bajard a construção
da comunicação entre o palco e a platéia também já não é a mesma, pois o público não é mais
um público sociologicamente homogêneo 8 e, portanto, exige novas convenções. No processo
de produção do espetáculo, o diretor se apropria da estética teatral e passa a optar se o
espetáculo se submete ao texto, ou o texto se produz a partir da montagem do
espetáculo.aston Baty, citado por Roubine, no livro A linguagem da encenação teatral,
afirma:
(...) a finalidade do teatro é o espetáculo. Este só adquire a perfeição e
homogeneidade que configuram uma obra de arte quando o encenador está na
plenitude dos seus direitos como autor, como inventor. (ROUBINE, 1982, p.
57).
3.1 Equivalentes no sistema cinematográfico
No filme Romance, Arraes não explora somente a comédia, mas parece focar muito
mais no romance e na exploração da arte dentro da arte. O roteiro, escrito pelo próprio Arraes
e do não menos talentoso Jorge Furtado (Saneamento Básico - O Filme), acompanha a
história de Pedro (Wagner Moura) e Ana (Letícia Sabatella). Ele é diretor e ator teatral; ela é
atriz. Os dois se conhecem quando ele faz audições para sua montagem de Tristão e Isolda,
uma das mais clássicas e trágicas histórias de amor já feitas. Quando ela é descoberta pelo
6
CARLSON, Marvin. Teoria do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. SP: UNESP, 1997.
p. 273.
7
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral: 1880-1980. RJ: Zahar, 1982. p. 57.
8
BAJARD, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. SP: Cortez, 1994.p.54
72
executivo de TV Danilo (José Wilker, para quem foram reservadas as mais engraçadas frases
do filme), ele logo a contrata para fazer novela. Para Pedro, o trabalho é impensável e o
relacionamento entre os dois entra em crise. Não somente afetivo, mas principalmente
profissional. Com ciúmes do sucesso da amada na TV, ele rompe a bem-sucedida parceria
nos palcos e na vida. Três anos depois, os dois se reencontram para trabalharem juntos num
especial para a TV. O cenário não é mais a idade média e sim o nordeste brasileiro. O filme
se muda para o sertão da Paraíba e ali reproduz o que seria os bastidores da gravação de um
especial para a TV.
Percebe-se que a tradução da dramaturgia para o sistema cinematográfico é feita de
maneira contemporânea e inovadora, Romance explora muito bem as relações que os atores
têm com a dramaturgia, seja no jogo de encenação e verdade, seja numa estrutura um pouco
de comédia de vaudeville (com entradas e saídas de cenas, ―batidas de porta‖, etc), Arraes
coloca teatro e TV dentro do cinema e resolve discutir, de forma leve, a relação entre os tipos
de veículos e como os atores são capazes de lidar com ambos. Romance é uma história de
amor e uma história sobre o amor que perpassa as questões de metacinema, e das relações
entre as diversas artes (aqui tanto sobre a relação teatro-mundo quanto sobre o mundo dos
artistas brasileiros entre TV e teatro) e cinema refletindo sobre teatro.
O maior recurso de tradução são as imagens visuais, mas além das imagens visuais,
Arraes usa outros recursos, especificamente cinematográficos, que são empregados na
tradução intersemiótica entre qualquer arte e o cinema. Como na representação teatral,
também representam sistemas de signos em operação que podem ser agrupados de acordo
com algumas variáveis. O primeiro grupo tem relação com o trabalho da câmara. Inclui os
planos estáticos (plano de conjunto, plano médio e primeiro plano) e os planos em
movimento (plano panorâmico, plano com movimento de câmara e os relacionados à
velocidade da filmagem: câmara lenta e plano acelerado). O segundo grupo tem a ver com a
ligação entre os planos: a dissolvência, a fusão de imagens, a tela dividida e o corte seco. O
terceiro grupo se relaciona ao sistema de signos da edição. Inclui a montagem e o uso da
sucessão rítmica de imagens e sua inter-relação com a trilha sonora. Uma das cenas que mais
ilustram esta afirmação é a dos atores Letícia Sabatella e Vladimir Brichta, com figurinos da
cultura nordestina, aparecem fazendo um dueto, cantando a música "Flor do Mocambo",
famosa em terras nordestinas. O casamento de uma música do folclore nordestino com o
texto clássico de Bérdier: remete-nos ao processo de interculturalidade, designado por
Canclini de hibridação. A hibridação seria o termo adequado para traduzir os processos
derivados da interculturalidade, não só as fusões raciais comumente denominadas de
mestiçagem ou o sincretismo religioso, mas também as misturas modernas do artesanal com o
industrial, do culto com o popular e do escrito com o visual, ou seja, trata-se de um conceito
de maior amplitude e atualidade que explicaria melhor os complexos processos
combinatórios contemporâneos ―não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos,
mas também a de produtos de tecnologia avançadas e processos sociais modernos ou pósmodernos‖ (Canclini, 2003, p. XXIX). Canclini prefere chamar estes produtos resultantes da
interface entre grupos culturais distintos de hibridação, termo escolhido para ―designar as
misturas interculturais propriamente modernas, entre outras, aquelas geradas pelas
73
integrações dos Estados nacionais, os populismos políticos e as indústrias culturais‖
(Canclini,2003, p. XXVII).Martin- Barberro sobre este assunto afirma que
[...] a mestiçagem, que não é só aquele fato racial do qual vivemos, mas a
trama hoje de modernidade e descontinuidades culturais, deformações sociais
e estruturas do sentimento, de memórias e imaginários que misturam o
indígena com o rural, o rural com o urbano, o folclore com o popular e o
popular com o massivo. [...] ( MARTIN- BARBERO, 2008, pág. 27- 28).
Fotograma 1 ; Cor; Cena cantada, performance oral.
(...)
Você flor divina, tão simples e tão bela
Ô flor amarela, do meu pé de jambo
Sou triste poeta, cativo mais amo
Por isso lhe chamo de Flor do Mocambo
Não tenho riqueza para lhe ofertar
Navio nem mar, nem Copacabana
Só tenho a viola a vida e mulambo
Ô Flor do Mocambo, da minha choupana
74
Lhe dou as estrelas, a lua a cascata
O campo e a mata, o riso e o pranto
Estrela cadente luz de vagalume
Venha dá perfume, aos versos que conto
Lhe dou peixinho, que morre na areia
A voz da sereia, que canta escondida
Eu só quero apenas que os dias seus
Se unam aos meus, nos dramas da vida
Odeio o guerreiro, da vil raça humana
O homem que engana ao seu Criador
Pois morro brigando no céu e na terra
E até faço guerra, pra ter seu amor
Olhando a inocência, que tem no seu riso
Eu fico indeciso, sem saber o que faço
Você é poema da felicidade
Plantando saudade, na alma da raça
Quando a mocidade, voar for embora
Olhando a aurora, sem saber porque
Aí chorarei já quase no fim
Com pena de mim, pensando em você
(...)
Segundo Guel Arraes (2008)9 ele conheceu esta canção numa gravação que Liedo
Maranhão, antropólogo pernambucano, havia feito com um folheteiro (leitor de folhetos de
cordel). Mais tarde, Arraes, descobriu que a letra é de Apolônio Cardoso, advogado e violeiro
nascido em Campina Grande, por coincidência, cidade bem próxima da região em que
filmaram esta cena Apolônio Cardoso, cujo nome é reconhecido como um dos mais importantes da cultura
popular regional. O figurino, a trilha sonora foi uma forma singular de traduzir a lenda medieval para a
contemporaneidade nordestina brasileira e atualizar o texto para nossa identidade cultural. Percebemos as
complexidades semióticas traduzidas pelo cinema, o texto é clássico, a música é regional, o
figurino é típico da região. O figurino, a trilha sonora, a luz tomam a dimensão de
dramaturgias dentro da dramaturgia cinematográfica que nos leva. Mesmo o texto clássico,
em seu desempenho oral, ganha a dimensão da localidade por conta do sotaque (em
consonância com o figurino e com o cenário do sertão nordestino) num processo de
multimodalidade vocal que cria semânticas diversas. Portanto o texto clássico de Bérdier ao
ser traduzido semióticamente por Arraes não deixa de transmitir seu significado, mas
associado aos gestos, cores, sons, formas, imagens, iluminação e palavras plasticamente
captadas pelas lentes do cinema produz ( num processo multimodal), novos sentidos.
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Disponível em http://ego.globo.com/Gente/Noticias. Acessado dia 30/04/2010
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Fotograma 2; Cor ; Cena Cantada, performance oral.
De acordo com Iedema (2003), uma perspectiva multimodal leva em consideração que
a língua em uso não ocorre por si própria, mas é integrada e dependente de outras formas de
constituição e construção de significados. Por isso, os estudos multimodais têm como
principal objetivo observar esses processos de produção de significados situados socialmente
e também oferecer meios para descrever uma prática ou representação em toda sua riqueza e
complexidade semiótica.
Como nas peças de Brecht, é necessário que a audiência participe intelectualmente da
experiência do filme. Quando a mensagem é compreendida adequadamente, a abordagem
oferece possibilidades incríveis para o desenvolvimento do cinema, que passa a propiciar um
diálogo vital e estimulante entre o texto e o leitor. Ontologicamente, desconstrói valores
tradicionais; mimeticamente, em vez de reflexo da realidade, transforma-se em um ensaio
onde se trabalham modelos de uma estrutura social que pode ser melhor. A relação política
com o espectador estabelece-se pela chance que este tem de interagir e de participar
diretamente da lógica do filme e seu procedimento intercultural, inspirado pelo figurino, pelas
imagens nordestinas, da cultura em que os personagens são inseridos cujo grande exemplo é
o do dueto romântico do folclore regional.
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Considerações possíveis
As reflexões aqui desenvolvidas empreenderam algumas possibilidades de ponderação
teórica centradas na interface entre teatro e cinema. Foram ressaltados aspectos relevantes
para os estudos semióticos e dos textos literário e sua tradução em outros sistemas de signos
como o cinematográfico, com especial atenção aos aspectos semióticos e culturais.
Obviamente não foram exauridas as reflexões teóricas virtualmente derivadas da
tradução de um sistema de signos para outro. Outros aspectos poderiam privilegiar outras
formas de significar, próprias do novo sistema semiótico. O estudo aqui apresentado cumpre,
entretanto, seu papel de avançar um pouco mais o estudo das relações entre sistemas
semióticos em contato.
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CHACAROSQUI, Gicelma da Fonseca Torchi