Memórias
de
um
Sargento de Milícias –
Manuel Antônio de Almeida
O romance retrata a vida do Rio de Janeiro no início
do século XIX e desenvolve pela primeira vez na
literatura nacional a figura do malandro. Memórias de
um Sargento de Milícias surgiu como um romance de
folhetim, ou seja, em capítulos, publicados
semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de
Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os
folhetins não indicavam quem era o autor. A história
saiu em livro em 1854 (primeiro volume) e 1855
(segundo volume), com autoria creditada a “Um
Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida
aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em
1863.
ENREDO
A obra conta as aventuras de Leonardo ou
Leonardinho, filho dos portugueses Leonardo Pataca e
Maria da Hortaliça. Como os pais não desejassem
criá-lo, Leonardo fica por conta de seu padrinho (um
barbeiro) e de sua madrinha (uma parteira), após a
separação dos seus progenitores.
Sempre metido em travessuras, desde cedo
Leonardo mostra-se um grande malandro. Já moço,
apaixona-se por Luisinha, mas põe o romance a
perder quando se envolve com a mulata Vidinha. A
primeira decide, então, casar-se com outro.
Tempos depois, Leonardo é preso pelo Major Vidigal,
enfrenta diversos problemas, mas acaba sargento de
milícias. Quando da viuvez de Luisinha, reaproxima-se
da moça. Os dois casam-se e Leonardo é reabilitado.
TEMPO
A história se passa no começo do século XIX, ocasião
em que a família real portuguesa se refugiou no Brasil.
Por isso, o romance tem início com a expressão “Era
no tempo do rei”, referindo-se ao rei português dom
João VI.
NARRADOR
Apesar do título de “memórias”, o romance não é
narrado pelo personagem Leonardo, e sim por um
narrador onisciente em terceira pessoa, que tece
comentários e digressões no desenrolar dos
acontecimentos.
ROMANCE MALANDRO
O que se vê é que Manuel Antônio de Almeida
foge completamente ao idealismo romântico de sua
época. Se há traços românticos em sua obra, eles
estão no tom irônico e satírico que assume o narrador.
PERSONAGENS
• Leonardo ou Leonardinho - o anti-herói ou herói
picaresco do romance, vadio, malandro, que adora
fazer estripulias e criar problemas. Mulherengo, quase
perde seu amor, por ser inconsciente. É criado pelo
padrinho, já que os pais se separam e não têm
paciência para lhe suportar as traquinagens. Chega a
ser preso, torna-se granadeiro e Sargento de Milícias.
Casa-se e torna-se assentado.
• Luisinha - moça com a qual Leonardo se casa. Em
princípio é desengonçada e estranha, depois melhora.
Casa-se com José Manuel, por influência da tia,
arrannjando um marido que só deseja seus bens. É
órfã. Fica viúva e une-se a Leonardo.
• Vidinha - mulata jovem, bonita e animada, toca viola
e canta modinhas. Cativa Leonardinho, que vive em
sua casa por algum tempo.
• Compadre - barbeiro de profissão, cria Leonardo,
protege-o e acaba deixando-lhe uma herança que
surrupiou do comandante de um navio.
• Comadre - defende e acompanha Leonardo em
qualquer circunstância. Adora o afilhado.
• D. Maria - doida por uma demanda judicial, ganha a
guarda de Luisinha, quando ela perde os pais.
• José Manuel - salafrário e calculista, casa-se com
Luisinha por dinheiro e morre.
• Major Vidigal - militar que persegue Leonardo, até
conseguir integrá-lo às forças milicianas. Calcado em
uma figura real.
• Leonardo Pataca - pai de Leonardo, acaba casado
com Chiquinha, depois que abandona o filho com o
compadre.
• Maria da Hortaliça - mãe do personagem,
portuguesa, trai Leonardo Pataca e foge com outro
para Portugal.
FRAGMENTOS
PRIMEIROS INFORTÚNIOS
Passemos por alto sobre os anos que decorreram
desde o nascimento e batizado do nosso memorando,
e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos.
Digamos unicamente que durante todo este tempo o
menino não desmentiu aquilo que anunciara desde
que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro
sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza
particular à madrinha, a quem não podia encarar, e
era estranhão até não poder mais.
Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo;
quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha
uma paixão decidida pelo chapéu armado do
Leonardo; se este o deixava por esquecimento em
algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente,
esganava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro
tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e
acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria,
exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos
ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a
vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando
não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava;
trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém
ele não se emendava, que era também teimoso, e as
travessuras recomeçavam mal acabava a dor das
palmadas.
Assim chegou aos sete anos.
Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o
Leonardo começava a arrepender-se seriamente de
tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão,
porque, digamos depressa e sem mais cerimônias,
havia ele desde certo tempo concebido fundadas
suspeitas de que era atraiçoado.
Havia alguns meses atrás tinha notado que um
certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e
enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma
ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira
encostado à janela. Isto porém passou sem mais
novidade.
Depois começou a estranhar que um certo colega
seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do
oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto
também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe
por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa
com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa,
e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã
entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém
que estava na sala abriu precipitadamente a janela,
saltou por ela para a rua, e desapareceu.
À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem
perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou
cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco
uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou
para a Maria com os punhos cerrados.
— Grandessíssima!...
E a injúria que ia soltar era tão grande que o
engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo. A
Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois
também não era das que se receava com qualquer
coisa.
— Tira-te lá, ó Leonardo!
— Não chames mais pelo meu nome, não
chames... que tranco-te essa boca a socos...
— Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos
namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor
aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de
que se achava possuído transbordaram em socos
sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de
resistência desatou a correr, a chorar e a gritar:
— Ai... ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!...
Porém o compadre ensaboava nesse momento a
cara de um freguês, e não podia largá-lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as
contas. Encolheu-se a choramingar em um canto.
O menino assistira a toda essa cena com
imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava
e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se
tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que
este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma
grande coleção de cartuchos.
Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver
alguma coisa mais do que seu ciúme, reparou então
na obra meritória em que se ocupava o pequeno.
Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas
orelhas, fê-lo dar no ar uma meia volta, ergue o pé
direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos
atirando-o sentado a quatro braças de distância.
- És filho de uma pisadela e de um beliscão;
mereces que um pontapé te acabe a casta.
(Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um
sargento de Milícias, cap. II)
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Memórias de um Sargento de Milícias – ENREDO TEMPO