136 OS 70 NA AMÉRICA LATINA: A POLÍTICA DA PALAVRA EM ANTÔNIO CALLADO E RODOLFO WALSH. Maria Laura. Moneta Carignano (UNESP/FCLAr). RESUMO: A intenção deste trabalho é relacionar dois autores que pertencem respectivamente à literatura brasileira e à literatura argentina e que representam a literatura política ou engajada dos anos 70. Os romances aos que aludiremos são Bar Don Juan do autor brasileiro Antônio Callado e Operación Masacre do argentino Rodolfo Walsh. PALAVRAS-CHAVE: R. Walsh, A. Callado, literatura política. Em 1969 os jurados da Casa de las Américas criaram uma nova categoria literária para reconhecer e premiar escritores que por toda a América Latina estavam escrevendo um tipo de textos até então inclassificáveis e que designaram com o nome de: “Testimonio”, ou seja, literatura testemunhal. Segundo o crítico uruguaio Angel Rama - ao referir-se a este episodio - a nova categoria apontava para un conjunto de libros que crecen día a día y que situados aparentemente en los lindes de la literatura, son remitidos a la sociología y sobre todo al periodismo (como era en aquel momento el libro de Rodolfo Walsh Operación Masacre, como sería dentro de esta orientación Las venas abiertas de América Latina de Eduardo Galeano).(RAMA, 1983, p.220). O primeiro fato que nos permitiu vincular estes dois textos - o de Callado e o de Walsh - é o caráter de documentos, de testemunhos de ambos, mas também a relação de ambos os escritores com o jornalismo; tudo isto orientado pela intenção de denúncia das condições históricas que estão se sofrendo nas movimentadas décadas dos 60 e dos 70. É interessante neste sentido, já que a intenção do trabalho é vincular um escritor brasileiro e um argentino, chamar a atenção para a nomenclatura diferente que este tipo de literatura teve no Brasil e na América hispano-falante. No Brasil, este tipo de textos adquiriu o nome de literatura engajada, enquanto no resto da América Latina diferentes manifestações se enquadraram dentro da classificação “testimonial”. Contudo, em ambas as classificações se expressa a relação do texto literário com a realidade social, enfatizando também a relação estreita entre o estético e o político. ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 137 A relação entre literatura e realidade adquire no gênero testemunhal (literatura engajada, no Brasil) novas formas o que, como veremos, criam, na verdade, um novo gênero afastado dos pressupostos do romance realista. As situações históricas similares da América Latina toda durante o período 60 - 70 é também o cenário comum, o referente comum destes livros, embora apareçam neles as especificidades de cada país e sua particular história. Embora diferentes, em ambos os textos encontramos a referência explícita e de denúncia das condições de repressão, tortura, e injustiça que caracterizou as ditaduras da América Latina toda durante esse período. No caso de Walsh, especificamente, o golpe designado na história argentina como a Libertadora del 55. Algumas datas resultam importantes: o livro de Callado coloca em cena o período imediatamente posterior ao começo da ditadura em 1964 no Brasil. O romance narra a história de um grupo de intelectuais e artistas, jovens pertencentes ao que tem se chamado à “esquerda festiva”, que dentro do ambiente opressivo da ditadura ainda pensam na revolução e tentam fazê-la possível. O relato dos horrores que o aparelho repressivo do Estado executa contra eles da o tom de denúncia do livro todo: de fato, o romance começa narrando a cena da tortura e do estupro que a policia comete contra João e Laurinha. Mas, o interessante é que o livro adota um olhar particular, não só em relação ao poder e ao Estado, mas também ao próprio grupo de “revolucionários” que serão mostrados a partir de um olhar crítico que ressalta a improvisação, a falta de experiência, a desvinculação da realidade, o não contato com o povo, a desorganização e certa ingenuidade que às vezes pode até comover ao leitor. Callado, nostálgico, parece estar fazendo uma crítica e uma auto-crítica (já que ele participava de essa esquerda festiva) dos 60 e, desiludido, apresentar a violência e o horror que se tornará a marca dos anos 70. O livro mantém, então, estas duas questões: denúncia das práticas da repressão durante a ditadura – da injustiça e crueza que as caracterizou –, mas também parece anunciar o fim de uma época, da festa da esquerda, e apresentar, não sem um grau de nostalgia, a crítica a uma geração que não conseguiu vincular a idéia de revolução às condições reais do cenário político brasileiro desse momento. Por outro lado, o livro de Rodolfo Walsh narra a investigação que o próprio narrador-jornalista-escritor-detetive realiza de um acontecimento da vida política argentina ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 138 do ano 1955 e que foi escondido e não julgado. Em 1955, um grupo de militares nacionalistas e peronistas se levantou contra o governo ditatorial de Aramburu, liderados pelo general Juan José Valle. O levantamento fracassou e foram fuzilados. A decisão de fuzilar a Valle respondeu a uma ordem direta de Aramburu. Os civis que participaram foram mortos ilegalmente por decisão própria do jefe da Policia, coronel Desiderio Fernández Suarez, em José León Suarez. Tudo isto está documentado em Operación Masacre de Rodolfo Walsh no qual se relatam os fatos. O livro é a denúncia e a busca da verdade e da justiça dos assassinatos cometidos pelos militares da chamada Libertadora (golpe militar contra o peronismo) contra um grupo de trabalhadores e militantes peronistas. O romance apresenta-se como a investigação e o esclarecimento dos crimes – fuzilamentos – cometidos pelo governo militar no ano de 1955. Há varias questões que o livro colocará em cena: a relação literatura – jornalismo, a relação literatura – gênero policial, a figura do narrador-escritor-jornalista-detetive, o caráter testemunhal e de denuncia do texto. Mas, o que faz que estes dois romances sejam considerados explicitamente políticos? Achamos que a resposta está em que este tipo de textos se politiza, justamente, em, pelo menos, dois sentido: pelo caráter literário da narração dos fatos (que assume assim uma condição especial do poder da palavra que reformula a noção de “verdade” dos gêneros tradicionalmente encarregados de dar conta do real) e, por outro, na medida em que o alvo da sua denúncia não é um assassino qualquer, mas é o próprio Estado. Diz a critica argentina Ana Maria Amar Sanches referindo-se a Operación Masacre e que nós fazemos extensivo ao texto de Callado: em este tipo de textos “el Estado no sólo es criminal o cómplice, sino que acumula nuevos delitos como el ocultamiento de evidencias y la persecución y maltrato de las víctimas: no queda espacio que pueda garantizar la justicia” (AMAR SÁNCHEZ, 1992, p. 147) O que vincula denúncia, testemunho, literatura e jornalismo, literatura e realidade; o que faz deste tipo de textos, textos politizados é, justamente, este fato: o crime é cometido pelo Estado, e se é o próprio Estado quem comete o crime, a justiça e já impossível. Daí que a tarefa destes escritores – a de denunciar justamente este fato – os envolva de um ar de justiceiro, e de que a figura do escritor e do intelectual adquira um novo papel, cuja marca ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 139 primordial é o compromisso com a verdade e a narração dos fatos, a integridade moral, a busca da justiça, em fim, o comprometimento com a vida pública. Diante da injustiça do Estado, e da conseqüente impunidade, a palavra, a narração (entendida como denúncia) possibilita algum tipo de justiça. Diz Amar Sánchez: Porque han podido ser contados, los crímenes no han quedado totalmente impunes: contar, narrar es una manera de reparar. Lejos de la asepsia de la verdad “objetiva” periodística (...) los relatos desmienten la condición de testimonios “puros” volcados hacia un referente externo. Por el contrario reafirman el poder de la escritura; un poder que asegura la perduración – como una forma de imponer la verdad y hacer justicia – para evitar el olvido, es decir, para triunfar sobre la muerte. (AMAR SÁNCHEZ, 1992, p.156) A palavra literária como forma da justiça, da memória; o poder da escrita contra a amnésia e o esquecimento, duas estratégias típicas utilizadas pelo autoritarismo para apagar a memória de nossas histórias. É por isto que estes textos podem ser chamados de políticos, de engajados, e não só pelo referente histórico que exprimem. É este poder que informa a palavra (na sua capacidade de re-criação do mundo) o que separa estes textos do mero documentalismo e do simples jornalismo, embora comparta com eles a busca da verdade. Sua condição literária politiza o poder da palavra, re-criando a realidade, em uma dupla direção: exprimir o real para dar conta dele e denunciar seu horror, mas também para tentar fazer compreensível e perdurável na memória coletiva a própria história. A narração, longe de se apresentar como a “verdade objetiva” dos fatos, se posiciona no ato da enunciação que assume seu lugar histórico e ideológico. Tanto Callado quanto Walsh foram jornalistas que acabaram se dedicando à literatura. Este fato, em vez de uma simples alusão biográfica, é crucial na construção do projeto escritural de cada um. O jornalismo - seu objetivo de exprimir a realidade, de dar conta dos acontecimentos, de vínculo imediato com o social, sua fidelidade à verdade, seu espírito detetivesco, mas também sua rapidez, seu ritmo vertiginoso e fraturado, sua condição de material baixo, de pertencimento aos estratos da cultura de massa, a linguagem pontual e exata – vai contaminar e exercer uma função particular na literatura de ambos. A questão da busca da verdade é um ponto que aproxima e afasta a prática literária da prática jornalística porque na primeira a verdade se submete a uma reflexão maior que questiona a transparência da linguagem, a sua capacidade de ser copia do real. A “verdade”, na literatura, se politiza. Se no discurso jornalístico a “verdade” parece objetiva e ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 140 assepticamente alcançável (seguindo a idéia de que a linguagem é uma copia do real) em estes textos (o romance de Callado e de Walsh) a verdade é uma construção escritural que mostra e expõe o posicionamento político do autor. O escritor não se esconde traz a “verdade do fato”, o que, sabemos, se trata, na verdade, de um mito: a realidade só e apreensível por meio da linguagem, por tanto, qualquer discurso sobre o real supõe escolhas, fragmentação, seleção e montagem daquilo que quer se mostrar, esses procedimentos criam “uma verdade” que nunca é a totalidade do real. Em este tipo de literatura, ao contrario do que acontece no jornalismo, a busca da verdade assume um posicionamento, revela sua própria construção, expõe seu próprio olhar sobre a realidade. Essa verdade comprometida e afastada do discurso mentiroso da mídia que tenta impor sua opinião sob o disfarce da “objetividade” e desse conceito de verdade única e total - é a base a partir da qual estes escritores assumem um novo papel na sociedade, dando lugar a um novo tipo de intelectual. Diz Heloisa Buarque de Hollanda da figura de Callado: Falar em Antônio Callado me provoca um sentimento meio indefinível, mas sempre reverente. Sua figura se delineia na minha fantasia como a daquele intelectual extremamente presente, responsável, correto e vigoroso, cujos trabalhos sintonizam-se ponto com ponto com essa imagem (Buarque de Hollanda E., Jornal do Brasil, 11/07/81). A sintonia entre a escrita e o papel do intelectual novamente enfatizada e enlaçada; essa também é outro dos aspetos que nos permitiu comparar Callado e Walsh: essa mistura própria deles entre o estético, o político, e o papel do intelectual nas suas sociedades, tudo sob a forma compacta da coerência. A outra marca que compartilham estes romances é que eles representam a passagem da década dos 60 para a década dos 70. São textos que se afastam do ambiente festivo dos 60 e estão atravessados, pelo contrário, pela emergência da violência, pelo absurdo da realidade que tem se tornado sinistra e incompreensível. Ambos os textos falam do social, tematizam a história desse período, redefinem a função do escritor - intelectual, e estabelecem novas formas de relação entre o literário, o jornalismo e a mídia. Eles também mostram estratégias de apropriação de certas tecnologias narrativas como a montagem e a fragmentação que, como veremos, vão caracterizar a literatura a partir desse momento. Todas estas questões surgem, na verdade, da preocupação última das literaturas dos 70: a ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 141 preocupação, em igual medida, pela política e pela estética num cenário marcado pela violência do real. No caso de Callado, há uma intenção de desvelar criticamente as falhas da esquerda sessentista, da esquerda festiva, como foi chamada no Brasil, mas também de denunciar o caráter repressivo, violento e autoritário da ditadura militar. No caso de R. Walsh, Operación Masacre se apresenta como um livro de denúncia dos fuzilamentos realizados ilegalmente pelos militares da Libertadora del 55, de um grupo de militantes peronistas. O “acontecimento” peronista não só vai ser o “tema”, mas também vai orientar a ação política do intelectual que acabará aderindo à esquerda peronista e que sofrerá a repressão militar na sua própria vida. Na literatura argentina, a literatura de Walsh marca uma ruptura que pode ser lida como revolucionária. Nas palavras do crítico Daniel Link: “Los textos de Rodolfo Walsh señalan el punto de corte y disolución de la lógica ficcional dominante hasta ese momento, deshacen la novela como género y ponen en crisis la institución literaria” (LINK, 1994, p.57) O que produz a ruptura entre os projetos escriturais anteriores, entre os 60 e os 70, é precisamente a irrupção da violência. Isto vai reorientar não só a literatura dos 70 que vai passar a ter prioridades que vão além do estritamente estético, mas também a figura do escritor-intelectual.. A irrupção violenta do real não pode deixar de mexer os cimentos daquilo que até então se compreendia como literatura modificando, na materialidade mesma do texto, os modelos literários até então vigentes. Diz Link: “Si hay algo que define el pasaje del sesenta al setenta es la irrupción de fuerzas antiestéticas en el arte. Contra lo sublime, contra la grandeza, contra la simbolización, la violencia salpica, corrompe, destruye planes...”(LINK, 1994, p.58). A violência aparece assim como a marca mais forte dos 70 e a causa de um novo rumo para a literatura que não pode mais deixar de ver aquilo que o horror do real vem a dizer. Em função, justamente, desta conjuntura histórica, a literatura dos 70 vai colocar em questão, pelo seu caráter de denúncia e compromisso com o real, a fronteira entre o literário e o ficcional. A literatura dos 70 divorcia a ficção da literatura e apresenta uma literatura que não é ficcional. Essa seja talvez sua marca mais representativa, sua separação definitiva ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 142 não só em relação ao realismo, mas também à outros gêneros como a literatura fantástica. Diz Link em relação a Walsh: Nadie podría asimilar el proyecto de Walsh al programa del realismo (pero tampoco al folletín) precisamente por el fragmentarismo con que construye sus cuentos, por la diseminación de la novela en distintos espacios y en diferentes tiempos de enunciación y por la disociación entre ficción y literatura. Estas propiedades de la literatura de Walsh señalan, en realidad, en otra dirección. (LINK, 1994, p.59) Em Walsh estas duas categorias – literatura e ficção - não são mais convergentes, o que criará um novo gênero: a não-ficção fundando o gênero que os americanos espalharão pelo mundo com o nome de non fiction novels e cujo mais representativo escritor foi Truman Capote. Esta dissociação entre ficção e literatura vai carregar um profundo desmoronamento da instituição literária que vai ter que repensar o que considera ou não literatura. A pergunta, inevitável, que Walsh e Callado tiveram que enfrentar e que funda seus respectivos projetos foi: como escrever quando a violência mancha a literatura? E também: Como representar essa violência? A resposta cria este novo tipo de literatura que se dilui na violência da política e que já não permite a relação pacífica, até evasiva, e simplesmente “simbólica” com a literatura. No prólogo a Operación Masacre, o narradorescritor nos diz: Tengo demasiado para uma sola noche. Valle no me interesa. La revolución no me interesa. ¿Puedo volver al ajedrez? Al ajedrez y a la literatura fantástica, que leo, a los cuentos policiales que escribo, a la novela “seria” que planteo para dentro de algunos años, y a otras cosas que hago para ganarme la vida y que llamo periodismo, aunque no es periodismo. La violencia me ha salpicado las paredes, en las ventanas hay agujeros de balas, he visto un coche agujereado y dentro un hombre con los sesos al aire, pero es solamente el azar lo que me ha puesto eso ante los ojos. Pudo ocurrir a cien kilómetros, pudo ocurrir cuando yo no estaba. (WALSH apud AMAR SÁNCHEZ, 1992, p.149) Voltar política a literatura: para isso é preciso tornar políticos os gêneros, a própria escrita. Uma das saídas para esta nova literatura vai ser, justamente, repensar a relação da literatura com os gêneros menores, com o jornalismo, com a mídia, com a linguagem baixa e popular. Trabalhar a literatura a partir dos restos, dos desperdícios, desestabilizando a autonomia da literatura. Este tipo de textos quebra o formato do realismo e apresenta, no nível das técnicas narrativas, novas estratégias que nos permitem afirmar que se trata de um novo tipo de ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 143 textos ou, dito em outras palavras, de um novo gênero que se afasta dos pressupostos do realismo ingênuo. A fragmentação e a montagem aparecem como técnicas próprias destes romances. Segundo Link, estes textos estão: preocupados por el estado de las técnicas narrativas y correlativamente por ciertas cuestiones ligadas con la industria cultural y la posición de los intelectuales. Precisamente si algo tienen de característico las literaturas de los 60 y 70 es esa preocupación correlativa a la vez por la política y a la vez por la estética. De esa preocupación se desprende la hipótesis (canónica ya) del valor ideológico de los géneros y las estrategias narrativas (Link, 1994, p.54) A importância da técnica é uma das marcas da literatura dos 70 e é precisamente a ênfase colocada na técnica o que informa o caráter político do gênero. Os escritores dos 70 foram os que nos ensinaram pela primeira vez, que a ideologia, a “posição” do intelectual aparece definida não pela explicitação de sua postura política, mas pela especificidade da escrita. A isto se refere o comentário de Eloísa Buarque de Hollanda quando diz de Callado: “O que tal vez Callado não perceba (ou britanicamente não explicite) é a intima relação que estabelece em seu trabalho de ficção entre os aspectos técnico artesanais e aqueles da responsabilidade da militância”. (Buarque de Hollanda E., Jornal do Brasil, 11/07/81). Duas técnicas definem esta nova escrita: a fragmentação e a montagem; ambas destinadas a mostrar o caráter de construto de toda escrita e a quebrar com o modelo da ilusão referencial e da linearidade própria do realismo decimonónico. O que essas técnicas expressam é a impossibilidade de dar conta do real a través dos modelos literários do realismo. O mundo tem se tornado confuso e fragmentário e para dar conta dele é preciso também mudar a forma em que isso vai ser contado. Diz Callado em relação a sua técnica de fragmentação: É uma maneira diferente de você ver as coisas. Há uma diferença entre a confiança que você tem na sua capacidade de organizar o mundo na sua cabeça pelo menos, de forma compreensível e o momento que você começa a viver, uma sucessão de acontecimentos, nos quais passou a faltar, de sua parte, uma esperança de organizá-los, e deles próprios uma falta de coesão, uma falta de sentido, que eu não acho só do Brasil, não, mais no Brasil aparece mais (CALLADO apud Da CRUZ) É a forma da literatura o que informa esta nova realidade que se caracteriza pelo horror, pela falta de sentido, pela brutalidade e a incompreensão. O texto literário apresenta ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 144 seu caráter “revolucionário”, isto é, politicamente progressista não pelo posicionamento explicito do autor e sim pelas transformações que ele realiza na própria materialidade da sua arte. Isto foi o que Walter Benjamin assinalou no seu texto El autor como produtor. Foi ele quem chamou a atenção para o fato de que a tendência política de um texto devia se procurar na sua tendência literária, isto é, na sua técnica. Estas “tendências literárias” podem, segundo o mesmo autor “consistir en un avance o en un retroceso de la técnica literária” (BENJAMÍN, 1977, p.84). Se a técnica consegue quebrar as formas anteriores e criar, artisticamente, uma nova forma, o texto vai questionar na sua própria produção, na sua materialidade, o aparelho de produção. Diz Benjamin: “la tendencia política, por más revolucionaria que parezca, seguirá funcionando como contrarrevolucionaria, en tanto el escritor sólo experimente su solidariedad con el proletariado en su conciencia, pero no como productor” (BENJAMÍN, 1977, p.84). Com isto Benjamim quer dizer que não se trata do posicionamento político do escritor para que uma obra tenha um compromisso com a política revolucionária, mas que é obrigação do artista se posicionar como transformador e não como simples abastecedor, sendo essa transformação algo que ele tem que produzir na própria técnica, na materialidade do seu trabalho. Seguindo este argumento, a nova narrativa, tanto de Walsh quanto de Callado, expõem uma transformação das formas e dos gêneros que os torna revolucionários nos seus respectivos sistemas literários. Ambos modificam o sistema literário criando um novo gênero que se afasta do realismo a través das técnicas da fragmentação e da montagem, que divorcia o literário do ficcional, e que estabelece novos diálogos com o jornalismo e a mídia, formas próprias das sociedades contemporâneas. Os romances de Callado e também os de Walsh introduziram novidades ao nível das técnicas narrativas que implicaram uma ruptura e uma modificação no sistema literário. É em esse sentido que eles se tornam revolucionários; produzindo um avance na tendência literária, eles expressam um avance ideológico. Por último, queremos referir-nos à figura do intelectual que, logicamente, se relaciona com esse papel de produtor e não abastecedor do que falava Benjamin. A importância da técnica leva também a modificar a idéia que se tem da prática da literatura e, por conseguinte, da figura do escritor. Para estes escritores a literatura é um trabalho, do ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 145 qual se deve possuir um saber técnico, um oficio, e o escritor ao contrário das visões idealistas e românticas que o pensam como um gênio ou ser superior é alguém que trabalha como qualquer outra pessoa, só que com um material específico: a palavra. A literatura dos 70 ajudou neste sentido a desmistificar e a tirar a aura elitista que envolvia à literatura e ao escritor, aproximando a prática literária da idéia de trabalho, oficio, profissão e tirando dela toda sacralização alienante, para religar literatura e sociedade. Diz Eloísa Buarque de Holanda de Callado: Acompanhando o raciocínio de Callado, escrever é, por tanto, basicamente, um oficio que exige uma técnica, uma disciplina e um now-how (e também uma atenção redobrada no que diz respeito aos direitos trabalhista e à questão dos direitos autorais). O escritor aqui não parece ser nem um predestinado, nem um diletante; é apenas um profissional, ou melhor, um trabalhador. À representação do escritor enquanto artesão, Callado acresce um fator que, do seu ponto de vista, firma-se como complemento imprescindível a essa prática: a responsabilidade pública do intelectual. Ou seja, a obrigação de ser um legítimo participante (Buarque de Hollanda, E., Jornal do Brasil 11/07/81) Quisemos introduzir algumas questões que achamos chave para a literatura dos 70, sublinhando também o que há de comum não só entre um escritor brasileiro e um argentino, mas que pode ser extensivo a América Latina toda. Re-ler os 70, re-ler estes romances, supõe fazer da experiência da leitura a vivificação do projeto que os identificou: entender a palavra, a literatura, na sua força viva, não só em seu caráter de testemunho, mas também como forma da memória. Frente ao horror da ditadura e ao seu aliado –o esquecimento – a palavra destes romances continua falando e permitindo-nos a possibilidade da reconstrução da própria história, da nossa identidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AMAR SÁNCHEZ, A. Maria. El relato de los hechos. Rodolfo Walsh: testimonio y escritura. Rosario: Beatriz Viterbo, 1992. BASTOS, Alcmento. Um aprendizado do Brasil. In: A história foi assim: o romance político brasileiro dos anos 70/80. Rio de janeiro: Caetés, 2000. BENJAMIN, Walter. El autor como productor. In: Brecht: Ensayos y conversaciones. Montevideo: Arca, 1977. ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras 146 BUARQUE DE HOLLANDA, Eloísa. Antônio Callado, profissão escrito. In: Jornal do Brasil, 11de julho de 1981. CALLADO, Antônio. Bar Don Juan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. DA CRUZ, Claudia Helena. Bar Don Juan (1971) de Antônio Callado: impasses políticos e estéticos do romance engajado. DE GRANDIS, Rita. Entre la escritura del acontecimiento y el acontecimiento de la escritura. In: Polémica y estrategias narrativas en América Latina. Rosario: Beatriz Viterbo, 1993. LINK, Daniel. Los setenta, Walsh y la novela en crisis. In: La chancha con cadenas. Buenos Aires: Ed. Eclipse, 1994. RAMA, Ángel. Rodolfo Walsh: la narrativa en el conflicto de las culturas. In: Literatura y clase social. México: Ed. Folios, 1983. SILVERMAN, Malcom. A ficção em prosa de Antônio Callado. In: Moderna ficção brasileira. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 1978. WALSH, Rodolfo. Hoy es imposible en la Argentina hacer literatura desvinculada de la política.(Repotaje de Ricardo Piglia a Rodolfo Walsh. Marza de 1970). In: BASCHETTI, Roberto. Rodolfo Walsh, vivo. Buenos Aires: Ed. De la flor, 1999. _____. Operación Masacre. Buenos Aires: Ed. de la Flor, 1972. ÍCONE - Revista de Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 136-146, jul. 2008. ISSN:1982-7717 http://www.slmb.ueg.br/iconeletras