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OS 70 NA AMÉRICA LATINA: A POLÍTICA DA PALAVRA EM ANTÔNIO
CALLADO E RODOLFO WALSH.
Maria Laura. Moneta Carignano (UNESP/FCLAr).
RESUMO: A intenção deste trabalho é relacionar dois autores que pertencem
respectivamente à literatura brasileira e à literatura argentina e que representam a literatura
política ou engajada dos anos 70. Os romances aos que aludiremos são Bar Don Juan do
autor brasileiro Antônio Callado e Operación Masacre do argentino Rodolfo Walsh.
PALAVRAS-CHAVE: R. Walsh, A. Callado, literatura política.
Em 1969 os jurados da Casa de las Américas criaram uma nova categoria literária
para reconhecer e premiar escritores que por toda a América Latina estavam escrevendo um
tipo de textos até então inclassificáveis e que designaram com o nome de: “Testimonio”, ou
seja, literatura testemunhal. Segundo o crítico uruguaio Angel Rama - ao referir-se a este
episodio - a nova categoria apontava para
un conjunto de libros que crecen día a día y que situados aparentemente en los
lindes de la literatura, son remitidos a la sociología y sobre todo al periodismo
(como era en aquel momento el libro de Rodolfo Walsh Operación Masacre,
como sería dentro de esta orientación Las venas abiertas de América Latina de
Eduardo Galeano).(RAMA, 1983, p.220).
O primeiro fato que nos permitiu vincular estes dois textos - o de Callado e o de
Walsh - é o caráter de documentos, de testemunhos de ambos, mas também a relação de
ambos os escritores com o jornalismo; tudo isto orientado pela intenção de denúncia das
condições históricas que estão se sofrendo nas movimentadas décadas dos 60 e dos 70. É
interessante neste sentido, já que a intenção do trabalho é vincular um escritor brasileiro e
um argentino, chamar a atenção para a nomenclatura diferente que este tipo de literatura
teve no Brasil e na América hispano-falante. No Brasil, este tipo de textos adquiriu o nome
de literatura engajada, enquanto no resto da América Latina diferentes manifestações se
enquadraram dentro da classificação “testimonial”. Contudo, em ambas as classificações se
expressa a relação do texto literário com a realidade social, enfatizando também a relação
estreita entre o estético e o político.
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A relação entre literatura e realidade adquire no gênero testemunhal (literatura
engajada, no Brasil) novas formas o que, como veremos, criam, na verdade, um novo
gênero afastado dos pressupostos do romance realista. As situações históricas similares da
América Latina toda durante o período 60 - 70 é também o cenário comum, o referente
comum destes livros, embora apareçam neles as especificidades de cada país e sua
particular história. Embora diferentes, em ambos os textos encontramos a referência
explícita e de denúncia das condições de repressão, tortura, e injustiça que caracterizou as
ditaduras da América Latina toda durante esse período. No caso de Walsh, especificamente,
o golpe designado na história argentina como a Libertadora del 55.
Algumas datas resultam importantes: o livro de Callado coloca em cena o período
imediatamente posterior ao começo da ditadura em 1964 no Brasil. O romance narra a
história de um grupo de intelectuais e artistas, jovens pertencentes ao que tem se chamado à
“esquerda festiva”, que dentro do ambiente opressivo da ditadura ainda pensam na
revolução e tentam fazê-la possível. O relato dos horrores que o aparelho repressivo do
Estado executa contra eles da o tom de denúncia do livro todo: de fato, o romance começa
narrando a cena da tortura e do estupro que a policia comete contra João e Laurinha. Mas, o
interessante é que o livro adota um olhar particular, não só em relação ao poder e ao
Estado, mas também ao próprio grupo de “revolucionários” que serão mostrados a partir de
um olhar crítico que ressalta a improvisação, a falta de experiência, a desvinculação da
realidade, o não contato com o povo, a desorganização e certa ingenuidade que às vezes
pode até comover ao leitor.
Callado, nostálgico, parece estar fazendo uma crítica e uma auto-crítica (já que ele
participava de essa esquerda festiva) dos 60 e, desiludido, apresentar a violência e o horror
que se tornará a marca dos anos 70. O livro mantém, então, estas duas questões: denúncia
das práticas da repressão durante a ditadura – da injustiça e crueza que as caracterizou –,
mas também parece anunciar o fim de uma época, da festa da esquerda, e apresentar, não
sem um grau de nostalgia, a crítica a uma geração que não conseguiu vincular a idéia de
revolução às condições reais do cenário político brasileiro desse momento.
Por outro lado, o livro de Rodolfo Walsh narra a investigação que o próprio
narrador-jornalista-escritor-detetive realiza de um acontecimento da vida política argentina
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do ano 1955 e que foi escondido e não julgado. Em 1955, um grupo de militares
nacionalistas e peronistas se levantou contra o governo ditatorial de Aramburu, liderados
pelo general Juan José Valle. O levantamento fracassou e foram fuzilados. A decisão de
fuzilar a Valle respondeu a uma ordem direta de Aramburu. Os civis que participaram
foram mortos ilegalmente por decisão própria do jefe da Policia, coronel Desiderio
Fernández Suarez, em José León Suarez. Tudo isto está documentado em Operación
Masacre de Rodolfo Walsh no qual se relatam os fatos. O livro é a denúncia e a busca da
verdade e da justiça dos assassinatos cometidos pelos militares da chamada Libertadora
(golpe militar contra o peronismo) contra um grupo de trabalhadores e militantes
peronistas. O romance apresenta-se como a investigação e o esclarecimento dos crimes –
fuzilamentos – cometidos pelo governo militar no ano de 1955. Há varias questões que o
livro colocará em cena: a relação literatura – jornalismo, a relação literatura – gênero
policial, a figura do narrador-escritor-jornalista-detetive, o caráter testemunhal e de
denuncia do texto.
Mas, o que faz que estes dois romances sejam considerados explicitamente
políticos? Achamos que a resposta está em que este tipo de textos se politiza, justamente,
em, pelo menos, dois sentido: pelo caráter literário da narração dos fatos (que assume assim
uma condição especial do poder da palavra que reformula a noção de “verdade” dos
gêneros tradicionalmente encarregados de dar conta do real) e, por outro, na medida em que
o alvo da sua denúncia não é um assassino qualquer, mas é o próprio Estado. Diz a critica
argentina Ana Maria Amar Sanches referindo-se a Operación Masacre e que nós fazemos
extensivo ao texto de Callado: em este tipo de textos “el Estado no sólo es criminal o
cómplice, sino que acumula nuevos delitos como el ocultamiento de evidencias y la
persecución y maltrato de las víctimas: no queda espacio que pueda garantizar la justicia”
(AMAR SÁNCHEZ, 1992, p. 147)
O que vincula denúncia, testemunho, literatura e jornalismo, literatura e realidade; o
que faz deste tipo de textos, textos politizados é, justamente, este fato: o crime é cometido
pelo Estado, e se é o próprio Estado quem comete o crime, a justiça e já impossível. Daí
que a tarefa destes escritores – a de denunciar justamente este fato – os envolva de um ar de
justiceiro, e de que a figura do escritor e do intelectual adquira um novo papel, cuja marca
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primordial é o compromisso com a verdade e a narração dos fatos, a integridade moral, a
busca da justiça, em fim, o comprometimento com a vida pública. Diante da injustiça do
Estado, e da conseqüente impunidade, a palavra, a narração (entendida como denúncia)
possibilita algum tipo de justiça. Diz Amar Sánchez:
Porque han podido ser contados, los crímenes no han quedado totalmente
impunes: contar, narrar es una manera de reparar. Lejos de la asepsia de la
verdad “objetiva” periodística (...) los relatos desmienten la condición de
testimonios “puros” volcados hacia un referente externo. Por el contrario
reafirman el poder de la escritura; un poder que asegura la perduración – como
una forma de imponer la verdad y hacer justicia – para evitar el olvido, es decir,
para triunfar sobre la muerte. (AMAR SÁNCHEZ, 1992, p.156)
A palavra literária como forma da justiça, da memória; o poder da escrita contra a
amnésia e o esquecimento, duas estratégias típicas utilizadas pelo autoritarismo para apagar
a memória de nossas histórias. É por isto que estes textos podem ser chamados de políticos,
de engajados, e não só pelo referente histórico que exprimem. É este poder que informa a
palavra (na sua capacidade de re-criação do mundo) o que separa estes textos do mero
documentalismo e do simples jornalismo, embora comparta com eles a busca da verdade.
Sua condição literária politiza o poder da palavra, re-criando a realidade, em uma dupla
direção: exprimir o real para dar conta dele e denunciar seu horror, mas também para tentar
fazer compreensível e perdurável na memória coletiva a própria história. A narração, longe
de se apresentar como a “verdade objetiva” dos fatos, se posiciona no ato da enunciação
que assume seu lugar histórico e ideológico.
Tanto Callado quanto Walsh foram jornalistas que acabaram se dedicando à
literatura. Este fato, em vez de uma simples alusão biográfica, é crucial na construção do
projeto escritural de cada um. O jornalismo - seu objetivo de exprimir a realidade, de dar
conta dos acontecimentos, de vínculo imediato com o social, sua fidelidade à verdade, seu
espírito detetivesco, mas também sua rapidez, seu ritmo vertiginoso e fraturado, sua
condição de material baixo, de pertencimento aos estratos da cultura de massa, a linguagem
pontual e exata – vai contaminar e exercer uma função particular na literatura de ambos.
A questão da busca da verdade é um ponto que aproxima e afasta a prática literária
da prática jornalística porque na primeira a verdade se submete a uma reflexão maior que
questiona a transparência da linguagem, a sua capacidade de ser copia do real. A “verdade”,
na literatura, se politiza. Se no discurso jornalístico a “verdade” parece objetiva e
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assepticamente alcançável (seguindo a idéia de que a linguagem é uma copia do real) em
estes textos (o romance de Callado e de Walsh) a verdade é uma construção escritural que
mostra e expõe o posicionamento político do autor. O escritor não se esconde traz a
“verdade do fato”, o que, sabemos, se trata, na verdade, de um mito: a realidade só e
apreensível por meio da linguagem, por tanto, qualquer discurso sobre o real supõe
escolhas, fragmentação, seleção e montagem daquilo que quer se mostrar, esses
procedimentos criam “uma verdade” que nunca é a totalidade do real.
Em este tipo de literatura, ao contrario do que acontece no jornalismo, a busca da
verdade assume um posicionamento, revela sua própria construção, expõe seu próprio olhar
sobre a realidade. Essa verdade comprometida e afastada do discurso mentiroso da mídia que tenta impor sua opinião sob o disfarce da “objetividade” e desse conceito de verdade
única e total - é a base a partir da qual estes escritores assumem um novo papel na
sociedade, dando lugar a um novo tipo de intelectual. Diz Heloisa Buarque de Hollanda da
figura de Callado:
Falar em Antônio Callado me provoca um sentimento meio indefinível, mas
sempre reverente. Sua figura se delineia na minha fantasia como a daquele
intelectual extremamente presente, responsável, correto e vigoroso, cujos
trabalhos sintonizam-se ponto com ponto com essa imagem (Buarque de
Hollanda E., Jornal do Brasil, 11/07/81).
A sintonia entre a escrita e o papel do intelectual novamente enfatizada e enlaçada;
essa também é outro dos aspetos que nos permitiu comparar Callado e Walsh: essa mistura
própria deles entre o estético, o político, e o papel do intelectual nas suas sociedades, tudo
sob a forma compacta da coerência.
A outra marca que compartilham estes romances é que eles representam a passagem
da década dos 60 para a década dos 70. São textos que se afastam do ambiente festivo dos
60 e estão atravessados, pelo contrário, pela emergência da violência, pelo absurdo da
realidade que tem se tornado sinistra e incompreensível. Ambos os textos falam do social,
tematizam a história desse período, redefinem a função do escritor - intelectual, e
estabelecem novas formas de relação entre o literário, o jornalismo e a mídia. Eles também
mostram estratégias de apropriação de certas tecnologias narrativas como a montagem e a
fragmentação que, como veremos, vão caracterizar a literatura a partir desse momento.
Todas estas questões surgem, na verdade, da preocupação última das literaturas dos 70: a
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preocupação, em igual medida, pela política e pela estética num cenário marcado pela
violência do real.
No caso de Callado, há uma intenção de desvelar criticamente as falhas da esquerda
sessentista, da esquerda festiva, como foi chamada no Brasil, mas também de denunciar o
caráter repressivo, violento e autoritário da ditadura militar. No caso de R. Walsh,
Operación Masacre se apresenta como um livro de denúncia dos fuzilamentos realizados
ilegalmente pelos militares da Libertadora del 55, de um grupo de militantes peronistas. O
“acontecimento” peronista não só vai ser o “tema”, mas também vai orientar a ação política
do intelectual que acabará aderindo à esquerda peronista e que sofrerá a repressão militar na
sua própria vida.
Na literatura argentina, a literatura de Walsh marca uma ruptura que pode ser lida
como revolucionária. Nas palavras do crítico Daniel Link: “Los textos de Rodolfo Walsh
señalan el punto de corte y disolución de la lógica ficcional dominante hasta ese momento,
deshacen la novela como género y ponen en crisis la institución literaria” (LINK, 1994,
p.57) O que produz a ruptura entre os projetos escriturais anteriores, entre os 60 e os 70, é
precisamente a irrupção da violência. Isto vai reorientar não só a literatura dos 70 que vai
passar a ter prioridades que vão além do estritamente estético, mas também a figura do
escritor-intelectual.. A irrupção violenta do real não pode deixar de mexer os cimentos
daquilo que até então se compreendia como literatura modificando, na materialidade
mesma do texto, os modelos literários até então vigentes. Diz Link: “Si hay algo que define
el pasaje del sesenta al setenta es la irrupción de fuerzas antiestéticas en el arte. Contra lo
sublime, contra la grandeza, contra la simbolización, la violencia salpica, corrompe,
destruye planes...”(LINK, 1994, p.58).
A violência aparece assim como a marca mais forte dos 70 e a causa de um novo
rumo para a literatura que não pode mais deixar de ver aquilo que o horror do real vem a
dizer. Em função, justamente, desta conjuntura histórica, a literatura dos 70 vai colocar em
questão, pelo seu caráter de denúncia e compromisso com o real, a fronteira entre o literário
e o ficcional. A literatura dos 70 divorcia a ficção da literatura e apresenta uma literatura
que não é ficcional. Essa seja talvez sua marca mais representativa, sua separação definitiva
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não só em relação ao realismo, mas também à outros gêneros como a literatura fantástica.
Diz Link em relação a Walsh:
Nadie podría asimilar el proyecto de Walsh al programa del realismo (pero
tampoco al folletín) precisamente por el fragmentarismo con que construye sus
cuentos, por la diseminación de la novela en distintos espacios y en diferentes
tiempos de enunciación y por la disociación entre ficción y literatura. Estas
propiedades de la literatura de Walsh señalan, en realidad, en otra dirección.
(LINK, 1994, p.59)
Em Walsh estas duas categorias – literatura e ficção - não são mais convergentes, o
que criará um novo gênero: a não-ficção fundando o gênero que os americanos espalharão
pelo mundo com o nome de non fiction novels e cujo mais representativo escritor foi
Truman Capote. Esta dissociação entre ficção e literatura vai carregar um profundo
desmoronamento da instituição literária que vai ter que repensar o que considera ou não
literatura. A pergunta, inevitável, que Walsh e Callado tiveram que enfrentar e que funda
seus respectivos projetos foi: como escrever quando a violência mancha a literatura? E
também: Como representar essa violência? A resposta cria este novo tipo de literatura que
se dilui na violência da política e que já não permite a relação pacífica, até evasiva, e
simplesmente “simbólica” com a literatura. No prólogo a Operación Masacre, o narradorescritor nos diz:
Tengo demasiado para uma sola noche. Valle no me interesa. La revolución no
me interesa. ¿Puedo volver al ajedrez?
Al ajedrez y a la literatura fantástica, que leo, a los cuentos policiales que
escribo, a la novela “seria” que planteo para dentro de algunos años, y a otras
cosas que hago para ganarme la vida y que llamo periodismo, aunque no es
periodismo. La violencia me ha salpicado las paredes, en las ventanas hay
agujeros de balas, he visto un coche agujereado y dentro un hombre con los
sesos al aire, pero es solamente el azar lo que me ha puesto eso ante los ojos.
Pudo ocurrir a cien kilómetros, pudo ocurrir cuando yo no estaba. (WALSH
apud AMAR SÁNCHEZ, 1992, p.149)
Voltar política a literatura: para isso é preciso tornar políticos os gêneros, a própria
escrita. Uma das saídas para esta nova literatura vai ser, justamente, repensar a relação da
literatura com os gêneros menores, com o jornalismo, com a mídia, com a linguagem baixa
e popular. Trabalhar a literatura a partir dos restos, dos desperdícios, desestabilizando a
autonomia da literatura.
Este tipo de textos quebra o formato do realismo e apresenta, no nível das técnicas
narrativas, novas estratégias que nos permitem afirmar que se trata de um novo tipo de
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textos ou, dito em outras palavras, de um novo gênero que se afasta dos pressupostos do
realismo ingênuo. A fragmentação e a montagem aparecem como técnicas próprias destes
romances. Segundo Link, estes textos estão:
preocupados por el estado de las técnicas narrativas y correlativamente por ciertas
cuestiones ligadas con la industria cultural y la posición de los intelectuales.
Precisamente si algo tienen de característico las literaturas de los 60 y 70 es esa
preocupación correlativa a la vez por la política y a la vez por la estética. De esa
preocupación se desprende la hipótesis (canónica ya) del valor ideológico de los géneros
y las estrategias narrativas (Link, 1994, p.54)
A importância da técnica é uma das marcas da literatura dos 70 e é precisamente a
ênfase colocada na técnica o que informa o caráter político do gênero. Os escritores dos 70
foram os que nos ensinaram pela primeira vez, que a ideologia, a “posição” do intelectual
aparece definida não pela explicitação de sua postura política, mas pela especificidade da
escrita. A isto se refere o comentário de Eloísa Buarque de Hollanda quando diz de
Callado: “O que tal vez Callado não perceba (ou britanicamente não explicite) é a intima
relação que estabelece em seu trabalho de ficção entre os aspectos técnico artesanais e
aqueles da responsabilidade da militância”. (Buarque de Hollanda E., Jornal do Brasil,
11/07/81).
Duas técnicas definem esta nova escrita: a fragmentação e a montagem; ambas
destinadas a mostrar o caráter de construto de toda escrita e a quebrar com o modelo da
ilusão referencial e da linearidade própria do realismo decimonónico. O que essas técnicas
expressam é a impossibilidade de dar conta do real a través dos modelos literários do
realismo. O mundo tem se tornado confuso e fragmentário e para dar conta dele é preciso
também mudar a forma em que isso vai ser contado. Diz Callado em relação a sua técnica
de fragmentação:
É uma maneira diferente de você ver as coisas. Há uma diferença entre a
confiança que você tem na sua capacidade de organizar o mundo na sua cabeça
pelo menos, de forma compreensível e o momento que você começa a viver,
uma sucessão de acontecimentos, nos quais passou a faltar, de sua parte, uma
esperança de organizá-los, e deles próprios uma falta de coesão, uma falta de
sentido, que eu não acho só do Brasil, não, mais no Brasil aparece mais
(CALLADO apud Da CRUZ)
É a forma da literatura o que informa esta nova realidade que se caracteriza pelo
horror, pela falta de sentido, pela brutalidade e a incompreensão. O texto literário apresenta
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seu caráter “revolucionário”, isto é, politicamente progressista não pelo posicionamento
explicito do autor e sim pelas transformações que ele realiza na própria materialidade da
sua arte. Isto foi o que Walter Benjamin assinalou no seu texto El autor como produtor. Foi
ele quem chamou a atenção para o fato de que a tendência política de um texto devia se
procurar na sua tendência literária, isto é, na sua técnica. Estas “tendências literárias”
podem, segundo o mesmo autor “consistir en un avance o en un retroceso de la técnica
literária” (BENJAMÍN, 1977, p.84). Se a técnica consegue quebrar as formas anteriores e
criar, artisticamente, uma nova forma, o texto vai questionar na sua própria produção, na
sua materialidade, o aparelho de produção. Diz Benjamin: “la tendencia política, por más
revolucionaria que parezca, seguirá funcionando como contrarrevolucionaria, en tanto el
escritor sólo experimente su solidariedad con el proletariado en su conciencia, pero no
como productor” (BENJAMÍN, 1977, p.84). Com isto Benjamim quer dizer que não se
trata do posicionamento político do escritor para que uma obra tenha um compromisso com
a política revolucionária, mas que é obrigação do artista se posicionar como transformador
e não como simples abastecedor, sendo essa transformação algo que ele tem que produzir
na própria técnica, na materialidade do seu trabalho.
Seguindo este argumento, a nova narrativa, tanto de Walsh quanto de Callado,
expõem uma transformação das formas e dos gêneros que os torna revolucionários nos seus
respectivos sistemas literários. Ambos modificam o sistema literário criando um novo
gênero que se afasta do realismo a través das técnicas da fragmentação e da montagem, que
divorcia o literário do ficcional, e que estabelece novos diálogos com o jornalismo e a
mídia, formas próprias das sociedades contemporâneas. Os romances de Callado e também
os de Walsh introduziram novidades ao nível das técnicas narrativas que implicaram uma
ruptura e uma modificação no sistema literário. É em esse sentido que eles se tornam
revolucionários; produzindo um avance na tendência literária, eles expressam um avance
ideológico.
Por último, queremos referir-nos à figura do intelectual que, logicamente, se
relaciona com esse papel de produtor e não abastecedor do que falava Benjamin. A
importância da técnica leva também a modificar a idéia que se tem da prática da literatura
e, por conseguinte, da figura do escritor. Para estes escritores a literatura é um trabalho, do
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qual se deve possuir um saber técnico, um oficio, e o escritor ao contrário das visões
idealistas e românticas que o pensam como um gênio ou ser superior é alguém que trabalha
como qualquer outra pessoa, só que com um material específico: a palavra. A literatura dos
70 ajudou neste sentido a desmistificar e a tirar a aura elitista que envolvia à literatura e ao
escritor, aproximando a prática literária da idéia de trabalho, oficio, profissão e tirando dela
toda sacralização alienante, para religar literatura e sociedade. Diz Eloísa Buarque de
Holanda de Callado:
Acompanhando o raciocínio de Callado, escrever é, por tanto, basicamente, um
oficio que exige uma técnica, uma disciplina e um now-how (e também uma
atenção redobrada no que diz respeito aos direitos trabalhista e à questão dos
direitos autorais). O escritor aqui não parece ser nem um predestinado, nem um
diletante; é apenas um profissional, ou melhor, um trabalhador. À representação
do escritor enquanto artesão, Callado acresce um fator que, do seu ponto de
vista, firma-se como complemento imprescindível a essa prática: a
responsabilidade pública do intelectual. Ou seja, a obrigação de ser um legítimo
participante (Buarque de Hollanda, E., Jornal do Brasil 11/07/81)
Quisemos introduzir algumas questões que achamos chave para a literatura dos 70,
sublinhando também o que há de comum não só entre um escritor brasileiro e um argentino,
mas que pode ser extensivo a América Latina toda. Re-ler os 70, re-ler estes romances,
supõe fazer da experiência da leitura a vivificação do projeto que os identificou: entender a
palavra, a literatura, na sua força viva, não só em seu caráter de testemunho, mas também
como forma da memória. Frente ao horror da ditadura e ao seu aliado –o esquecimento – a
palavra destes romances continua falando e permitindo-nos a possibilidade da reconstrução
da própria história, da nossa identidade.
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político brasileiro dos anos 70/80. Rio de janeiro: Caetés, 2000.
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Montevideo: Arca, 1977.
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Roberto. Rodolfo Walsh, vivo. Buenos Aires: Ed. De la flor, 1999.
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