Principe
i Mecanico
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A Camara do Conselho
No alto, o belo tecto do salão
Encimava muitos arcos
E os anjos, subindo e descendo,
Trocavam presentes entre si.
Alfred, Lorde Tennyson,
«The Palace of Art»
– É mesmo como eu imaginava – disse Tessa, sorrindo para o rapaz a seu
lado. Este ajudara-a a passar por cima de uma poça de água e ainda lhe
agarrava polidamente no braço, logo acima do cotovelo.
James Carstairs, muito elegante no seu fato escuro, com os cabelos louro-prateados chicoteados pelo vento, devolveu-lhe o sorriso. A sua outra mão
descansava no pomo de jade de uma bengala. Se algum dos transeuntes
achou estranha a cor dos seus cabelos, as suas feições ou o facto de um
homem tão novo precisar de bengala, não parou para olhar.
– Considero essas palavras uma bênção – disse Jem. – Começava a pensar que, para ti, Londres era uma desilusão.
Uma desilusão. Nate, o seu irmão, prometera-lhe tudo em Londres –
uma vida nova, um sítio maravilhoso para viver, uma cidade com edifícios
altos e parques maravilhosos, mas ela encontrara apenas horror, traição
e perigo. No entanto…
– Nem tudo – replicou ela, voltando a sorrir.
– Ainda bem – disse ele em tom sério. Tessa olhou para o grande edifício
que tinha na sua frente. As agulhas góticas da Abadia de Westminster tocavam quase no céu. O Sol conseguira sair de trás das nuvens e banhava-as
com uma luz pálida.
– Tens a certeza que é aqui? – perguntou ela enquanto Jem a conduzia
na direcção da entrada. – Parece tão…
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CASSANDRA CLARE
– Humano?
– Apinhado. – A abadia estava aberta aos turistas naquele dia. Estes
saíam e entravam pelas grandes portas, muitos deles com guias Baedeker
na mão. Um grupo de americanas, mulheres de meia-idade com roupas
fora de moda, falando com sotaques que fizeram Tessa sentir saudades por
um momento, passaram-lhes à frente nas escadas, atrás de um guia. Jem
e Tessa misturaram-se com elas.
O interior do templo cheirava a pedra e a metal. Tessa olhou em volta e
para cima, maravilhada com o tamanho. Aquilo fazia o Instituto parecer
uma igreja de aldeia.
– Reparem na divisão tripla da nave – disse um guia, explicando que
as capelas mais pequenas alinhavam-se nas alas leste e oeste da abadia.
O silêncio era grande, apesar de não estar a decorrer qualquer serviço
religioso. Enquanto deixava que Jem a conduzisse na direcção do lado
leste da igreja, Tessa apercebeu-se de que pisava pedras com datas e
nomes gravados. A jovem sabia que havia reis, rainhas, soldados e poetas
sepultados na Abadia de Westminster, mas não estava à espera de andar
em cima deles.
Os dois jovens pararam, por fim, no canto mais a sul do templo. A luz
do dia entrava por uma janela circular, mais acima.
– Eu sei que temos de ir para a reunião do Conselho – disse Jem –,
mas queria mostrar-te isto. O Canto dos Poetas – acrescentou, abrangendo
o local com um gesto do braço.
Tessa sabia, claro, por ter lido, que estavam ali sepultados os grandes
escritores de Inglaterra e viu a tumba de Chaucer com a sua cúpula, mas
leu também outros nomes familiares.
– Edmund Spenser, Samuel Johnson, Coleridge, Robert Burns e Shakespeare – disse ela com um arquejo.
– Esse não está mesmo enterrado aqui – esclareceu Jem. – É só um
monumento, como o de Milton.
– Eu sei, mas… – replicou Tessa, olhando para ele e sentindo-se corar.
– Não consigo explicar, é como se estivesse no meio de amigos. É tolice da
minha parte, eu sei…
– Não é tolice nenhuma.
Tessa sorriu-lhe.
– Como sabias o que eu queria ver?
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– Era impossível não saber. Quando penso em ti, vejo-te sempre com
um livro na mão – disse, desviando o olhar, mas não sem antes ela o ver
corar. Jem era tão pálido que não conseguia esconder o mínimo rubor,
pensou, surpreendida por o pensamento lhe parecer tão agradável. Tessa
afeiçoara-se muito a ele ao longo dos últimos quinze dias. Will evitava-a,
Charlotte e Henry andavam ocupados com a Clave, o Conselho e o Instituto e até Jessamine parecia preocupada. Jem, porém, estava sempre presente, parecia levar muito a sério o papel de guia; tinham estado em Hyde
Park, nos Kew Gardens, na National Gallery, no British Museum, na Torre
de Londres e no Traitor’s Gate; tinham ido ver mugir as vacas a St. James’s
Park e os vendedores a apregoarem a fruta e os legumes em Covent Garden; tinham ido ao Embankment ver os barcos no Tamisa e comido umas
coisas chamadas door-stops, que tinham um aspecto horrível, mas que afinal eram só pão, manteiga e açúcar. E à medida que os dias passavam, Tessa
sentia-se desabrochar, a sair devagar do estado de infelicidade causado por
Nate e Will e pela perda da sua velha vida, como uma flor a sair do solo
gelado; até dera consigo a rir. E o culpado era Jem.
– És um bom amigo – exclamou. Quando, para sua surpresa, ele não
disse nada, a jovem acrescentou: – Pelo menos, espero que sejamos amigos.
Também pensas o mesmo, não pensas, Jem?
O rapaz virou-se para ela, mas, antes que respondesse, uma voz sepulcral saiu das sombras:
Vede e tremei, mortais!
A carne, aqui, muda:
Pensai em quantos ossos reais
Dormem no interior destas pedras.
Uma silhueta escura apareceu entre dois monumentos. Enquanto Tessa
pestanejava, surpreendida, Jem dizia em tom de resignado divertimento:
– Will. Decidiste agraciar-nos com a tua presença, afinal de contas?
– Eu nunca disse que não vinha – respondeu este, avançando. A luz
da janela circular caiu-lhe em cima, iluminando-lhe o rosto. Nem sequer
naquele momento Tessa conseguia olhar para ele sem sentir um aperto no
peito. Cabelos negros, olhos azuis, maçãs do rosto bem modeladas, pestanas espessas, boca cheia. Will seria um homem bonito se não fosse tão alto
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CASSANDRA CLARE
e tão musculado. A jovem sabia o que era passar-lhe as mãos pelos braços
duros e sabia o que era sentir-lhe as mãos na nuca, delgadas e flexíveis, mas
cheias de calos…
Tessa afastou as recordações. As recordações não eram boas para ninguém quando se sabia a verdade. Will era um homem belo, mas não lhe
pertencia, não pertencia a ninguém. Algo nele se quebrara e pela fenda
saía uma crueldade cega, uma necessidade de magoar e afastar as pessoas.
– Estás atrasado para a reunião do Conselho – disse Jem com bom
humor. O rapaz era o único imune à malícia endiabrada de Will.
– Fui fazer um recado – replicou Will. Tessa reparou que ele parecia
cansado; tinha os olhos raiados de sangue, as bolsas por baixo dos olhos
eram quase cor de púrpura e as roupas estavam amarrotadas, como se
tivesse dormido vestido. E o cabelo precisava de um corte. Não tens nada
com isso, disse a si própria, desviando o olhar das suaves ondas escuras que
se lhe enrolavam em volta das orelhas e na nuca. Não interessa o que pensas do aspecto dele ou como ele passa o tempo. Ele foi muito claro. – Vocês
também estão.
– Quis mostrar a Tessa o Canto dos Poetas. Achei que ela havia de gostar – disse Jem com toda a simplicidade. Face a tanto desejo de agradar,
Will não conseguiu pensar em nada de desagradável para dizer e encolheu
os ombros, afastando-se em passo acelerado pela abadia fora, na direcção
do claustro leste.
As pessoas passeavam em volta do jardim quadrado, falando em voz
baixa, como se ainda estivessem na igreja. Nenhuma delas reparou em
Tessa e nos seus companheiros quando eles se aproximaram de umas portas
duplas de carvalho, numa das paredes do claustro. Will, depois de olhar em
volta, tirou a sua estela da algibeira e encostou a ponta à madeira. As portas cintilaram por um momento com uma luz azul, abriram-se, ele entrou,
seguido por Jem e Tessa, e em seguida fecharam-se com estrondo, pesadas
como eram, não apanhando por um triz as saias da rapariga, que as puxou
a tempo e se afastou rápido, virando-se depois para uma escuridão quase
total.
– Jem?
Luz. A pedra mágica de Will. Estavam numa grande sala de pedra de
tecto abobadado. O chão parecia ser de tijolo e num dos extremos via-se
um altar.
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– Estamos na Pyx Chamber. Dantes o tesouro era aqui. Havia arcas
cheias de ouro e prata ao longo das paredes.
– Tesouro dos Caçadores de Sombras? – perguntou Tessa, confusa.
– Não, da Coroa. Daí as paredes e as portas grossas – respondeu Jem.
– Mas os Caçadores de Sombras sempre entraram aqui – acrescentou ao
ver a expressão da jovem. – As monarquias sempre pagaram aos Nefilins,
em segredo, para lhes manterem os reinos livres de demónios.
– Na América não – disse Tessa, bem-disposta. – Nós não temos monarquia…
– Mas tens uma secção do governo que lida com Nefilins – disse Will,
dirigindo-se ao altar. – Costumava ser o Departamento da Guerra, mas
agora é uma secção do Departamento de Justiça…
O rapaz calou-se quando o altar se afastou para um lado com um
gemido, revelando um buraco escuro e vazio. Tessa viu umas luzes a tremeluzir na escuridão. Will enfiou-se no buraco com a pedra mágica acesa.
Seguindo-o, a jovem viu-se a descer por um corredor de pedra. A pedra
das paredes, do chão e do tecto era toda igual, dando a impressão de que
a passagem fora escavada na rocha apesar de ser suave, em vez de áspera.
A espaços saía da parede uma mão com um archote que brilhava com uma
luz fantasmagórica.
O altar fechou-se. O corredor começou a ficar cada vez mais inclinado.
A luz dos archotes, azul-esverdeada, iluminava gravuras esculpidas na
rocha – sempre o mesmo motivo, um anjo em chamas a erguer-se de um
lago com uma espada numa das mãos e uma taça na outra.
Por fim, os três jovens viram-se em frente de duas grandes portas prateadas, cada uma delas com um desenho que Tessa já vira – quatro Cs
entrelaçados. Jem apontou para eles.
– Clave, Conselho, Convénio e cônsul – disse, antes que ela perguntasse.
– O cônsul é o… chefe da Clave? Uma espécie de rei?
– Não como os monarcas normais – disse Will –, porque é eleito, como
os presidentes ou os primeiros-ministros.
– E o Conselho?
– Vais vê-lo daqui a pouco – respondeu o rapaz, abrindo as portas.
Tessa abriu a boca e fechou-a, mas não sem antes reparar no olhar divertido de Jem, a seu lado. A sala na sua frente era das maiores que a jovem
já vira, um enorme espaço abobadado cujo tecto estava pintado com um
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padrão de estrelas e constelações e do qual pendia um candelabro em
forma de anjo com archotes nas mãos. A sala em si era um anfiteatro cujos
bancos, longos e curvos, estavam ocupados até três quartos da sua capacidade. Will, Jem e Tessa estavam no alto de uns degraus que os cortavam ao
meio. Na base via-se uma plataforma e sobre ela várias cadeiras de espaldar
de aspecto desconfortável.
Numa delas estava sentada Charlotte com as mãos no colo. Só alguém
que a conhecesse bem lhe perceberia a tensão nos ombros. A seu lado
estava Henry, bastante nervoso.
Na sua frente, com as mãos apoiadas numa espécie de estante, mais
larga e mais comprida do que as habituais, encontrava-se um homem alto
de longos cabelos claros, barba espessa e ombros largos, com uma túnica
semelhante às dos juízes, com runas bordadas nas mangas. A seu lado,
numa cadeira baixa, sentava-se um homem mais velho, de cabelos grisalhos, com o rosto barbeado cheio de rugas. A sua túnica era azul-escura
e quando ele mexia uma mão, os anéis brilhavam. Tessa reconheceu-o:
o inquisidor Whitelaw, de voz gelada, que interrogava as testemunhas em
nome da Clave.
– Senhor Herondale – disse o homem louro com um sorriso, olhando
para cima –, que amabilidade da sua parte juntar-se a nós. E senhor Carstairs também. E a vossa companheira deve ser…
– Menina Gray – disse Tessa antes que ele acabasse. – Menina Theresa
Gray, de Nova Iorque.
Um murmúrio, parecido com o som de uma onda a recuar numa praia,
percorreu a sala. A jovem sentiu a tensão em Will e Jem aspirou o ar,
como se fosse falar. Interrompeu o cônsul, pensou ela ter ouvido alguém
dizer. Com que então, aquele era o cônsul Wayland, o primeiro-oficial
da Clave. Olhando em volta, Tessa viu alguns rostos familiares – Benedict Lightwood com as suas feições angulares e o seu ar rígido, o seu
filho Gabriel Lightwood, olhando fixamente em frente, Lilian Highsmith
com os seus olhos escuros, o amável George Penhallow e até a formidável
tia de Charlotte, Callida, com os cabelos grisalhos penteados no alto da
cabeça. Havia muitos outros que não conhecia. Era como olhar para um
álbum de fotografias com todas as pessoas do mundo. Havia Caçadores
de Sombras louros com aspecto de viquingues, um homem de pele escura
que parecia um califa saído do seu livro ilustrado das Mil e Uma Noites e
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uma indiana com um belo sari cheio de runas prateadas, sentada ao lado
de uma outra que virara a cabeça para eles, com um elegante vestido de
seda e muito parecida com Jem – as mesmas feições belas e delicadas, os
mesmos olhos, as mesmas maçãs do rosto. Os cabelos, porém, em vez de
louros, eram escuros.
– Bem-vinda então, menina Tessa Gray de Nova Iorque – disse o cônsul,
parecendo divertido. – Ainda bem que veio. Sei que já respondeu a algumas perguntas do Enclave de Londres. Esperava que pudesse responder
a mais algumas.
Apesar da distância, Tessa encontrou os olhos de Charlotte. Achas que
sim?
Charlotte respondeu-lhe com um aceno de cabeça quase imperceptível.
Por favor.
A jovem endireitou os ombros.
– Com certeza.
– Aproxime-se então do banco do Conselho – disse o cônsul. Tessa percebeu que ele estava a referir-se ao estreito banco de madeira ao lado da
estante. – E os cavalheiros que a escoltam podem acompanhá-la – acrescentou. Will resmungou qualquer coisa em voz baixa, tão baixa que Tessa
não ouviu. Ladeada pelos dois rapazes, a jovem desceu os degraus e parou
ao lado do banco, insegura. De perto, o cônsul tinha olhos azuis amigáveis,
ao contrário dos do Inquisidor, de um cinzento-tempestuoso, como o mar
em dia de tempestade. – Inquisidor Whitelaw – disse o cônsul ao homem
dos olhos cinzentos –, a Espada Mortal, por favor.
Este levantou-se e tirou de baixo da túnica uma lâmina maciça. Tessa
reconheceu-a de imediato: a espada Códex, longa, com o punho em forma
de duas asas abertas, a que o anjo Raziel trazia ao emergir do lago e que
dera a Jonathan Caçador de Sombras, o primeiro de todos.
– Maellartach – disse ela, dando-lhe o seu verdadeiro nome.
O cônsul, pegando na espada, disse, parecendo mais uma vez divertido:
– Estou a ver que tem estudado. Qual de vós a ensinou? William? James?
– Tessa aprende sozinha, Sirr – respondeu o primeiro muito animado,
nada conforme com o clima austero da sala. – Ela é muito curiosa.
– Mais uma razão para não estar aqui. – Tessa não precisou de se virar
para reconhecer a voz: Benedict Lightwood. – Isto aqui é o Conselho da
Guarda. Os do Mundo-à-Parte não deviam entrar aqui – disse ele com voz
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CASSANDRA CLARE
tensa. – A Espada Mortall não pode ser usada para a obrigar a dizer a verdade. Ela não é Caçadora de Sombras. O que veio ela aqui fazer?
– Paciência, Benedict – disse o cônsul Wayland, pegando na espada
como se ela não pesasse nada e olhando com intensidade para Tessa.
A jovem sentiu-se como se ele lhe estivesse a perscrutar o rosto, a ler-lhe
o medo nos olhos. – Não vamos fazer-te mal, pequena feiticeira – acrescentou. – Os Acordos proíbem-no.
– Não devia chamar-me feiticeira – disse Tessa. – Eu não tenho nenhuma
marca de feiticeira. – Era estranho ter de dizer aquilo outra vez, mas na
primeira vez fora interrogada por membros da Clave, não pelo próprio
cônsul, um homem alto e de ombros largos que exsudava uma grande sensação de poder e autoridade, a espécie de poder e autoridade que Charlotte
reivindicava e que Benedict Lightwood invejava.
– Chamo-te o quê, então? – perguntou ele.
– Ela não sabe – respondeu com secura o Inquisidor. – E os Irmãos
Silenciosos também não.
– Ela pode sentar-se – disse o cônsul. – E prestar depoimento, mas o
seu testemunho só contará como metade do de um Caçador de Sombras.
– O homem virou-se para os Branwell. – Entretanto, Henry, por agora está
dispensado do interrogatório. A Charlotte fica, por favor.
Tessa engoliu o ressentimento e sentou-se na primeira fila de bancos,
onde se lhe juntou Henry, tenso e com os cabelos desgrenhados, com Jessamine de um lado, muito aborrecida, usando um vestido castanho-claro
de alpaca e Will e Jem do outro, este mesmo encostado a si, ao ponto de
lhe sentir o calor dos braços.
O Conselho continuou como muitas outras reuniões do Enclave. Charlotte
foi chamada a recordar a noite em que o Enclave atacara a fortaleza do vampiro
de Quincey, matando-o e matando os seus seguidores presentes, enquanto
o irmão de Tessa, Nate, traindo a confiança em si depositada, permitia que
o Magister, Axel Mortmain, entrasse no Instituto, onde assassinara dois dos
criados e quase raptara a própria Tessa. Chegada a sua vez, esta disse as coisas
que dissera antes: que não sabia onde estava Nate, que não desconfiara dele,
que só tomara conhecimento dos seus poderes quando as Irmãs Escuras lhos
tinham mostrado e que sempre pensara que os seus pais eram humanos.
– Richard e Elizabeth Gray foram investigados – disse o Inquisidor.
– Não existem indícios que levem a supor que não fossem humanos.
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O rapaz, o irmão, a mesma coisa. Como Mortmain sugeriu, o pai da rapariga podia ser um demónio, mas se sim, fica a questão do desaparecimento
da marca de feiticeiro.
– Tudo em ti é curioso, incluindo esses teus poderes – disse o cônsul,
olhando com intensidade para Tessa com os seus olhos azul-claros. – Não
fazes ideia dos seus limites? Foste testada com algum dos apetrechos de Mortmain? Para ver se conseguias aceder-lhe à memória ou aos pensamentos?
– Fui e… tentei com um botão que ele me deixou. Devia ter funcionado.
– Mas?
Tessa abanou a cabeça.
– Não consegui, não tinha centelha, não tinha vida. Não consegui ligar-me a ele.
– Muito conveniente – resmungou Benedict em voz baixa.
Tessa ouviu-o e corou.
O cônsul indicou-lhe que podia sentar-se. Enquanto o fazia, a jovem
olhou para Benedict Lightwood, reparou-lhe nos lábios cerrados e perguntou a si própria o que teria dito para o enfurecer daquela maneira.
– E ninguém sabe de Mortmain desde… a altercação com a menina
Gray no Santuário – continuou o cônsul enquanto Tessa se sentava.
O Inquisidor folheou alguns dos papéis que tinha na estante.
– As casas dele foram vasculhadas e não se encontrou nada. O mesmo
em relação aos armazéns. Até os nossos amigos da Scotland Yard participaram na investigação. O homem desapareceu, como nos diz o nosso jovem
amigo William Herondale.
Este sorriu como se estivesse a ser elogiado, mas Tessa, ao ver-lhe a malícia por trás do sorriso, pensou no fio de uma navalha de barba.
– A minha sugestão – disse o cônsul – é que Charlotte e Henry Branwell
sejam censurados e que nos próximos três meses os seus actos oficiais em
nome da Clave passem primeiro pela minha aprovação…
– Meu senhor cônsul – disse uma voz no meio da multidão. As cabeças
viraram-se. Tessa teve a sensação de que aquilo, alguém a interromper
o discurso do cônsul não devia acontecer muitas vezes. – Se me é permitido falar…
Este ergueu as sobrancelhas.
– Benedict Lightwood – disse ele –, tiveste hipótese de falar antes,
durante os depoimentos.
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CASSANDRA CLARE
– Eu não questiono os depoimentos – disse este. O seu perfil adunco
ainda parecia mais acentuado à luz fantasmagórica da sala. – O que questiono é a tua frase.
O cônsul, um homem grande, de pescoço grosso e peito largo, inclinou-se para a frente na estante. As suas grandes mãos pareciam capazes de
esganar com facilidade o pescoço de Benedict. Oxalá, pensou Tessa, porque não gostava do homem.
– Porquê?
– Porque acho que deixaste que a tua amizade pela família Fairchild te
cegasse para as insuficiências de Charlotte como directora do Instituto –
disse Benedict. A atmosfera adensou-se. – Os disparates cometidos na
noite de 5 de Julho fizeram mais do que embaraçar a Clave e fizeram-nos
perder os Pyxis. Estragámos a relação que tínhamos com os do Mundo-à-Parte de Londres, atacando futilmente Quincy.
– As queixas apresentadas, através das Compensações, foram várias –
replicou o cônsul. – A Lei tratará delas. Tu não tens nada a ver com as
Compensações, Benedict…
– E – continuou este, cada vez mais alto –, pior ainda, ela deixou escapar
um criminoso perigoso que tinha planos para destruir os Caçadores de
Sombras e nós não fazemos ideia do seu paradeiro. E a responsabilidade
de o encontrar não está onde devia estar, isto é, nos ombros dos que o
deixaram escapar!
O alarido espalhou-se pela sala. Charlotte parecia consternada, Henry
confuso e Will furioso. O cônsul, cujos olhos se tinham toldado de modo
alarmante à menção dos Fairchild – devia ser a família de Charlotte, pensou Tessa –, esperou que o tumulto passasse e disse:
– A tua hostilidade para com o líder do teu Enclave não te beneficia em
nada, Benedict.
– As minhas desculpas, cônsul, mas não acredito que manter Charlotte
Branwell como directora do Instituto, apesar de sabermos que o envolvimento de Henry Branwell é no máximo simbólico, seja do interesse da
Clave. Eu acho que uma mulher não deve dirigir um Instituto. As mulheres
não pensam com lógica e discrição, antes com as emoções do coração.
Não tenho dúvidas de que Charlotte é uma mulher boa e decente, mas um
homem não se teria deixado enganar por um espião reles como Nathaniel
Gray…
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PRINCIPE MECANICO
– Eu fui enganado. – Will pusera-se de pé e olhava em volta com os
olhos em brasa. – Todos nós fomos. Que insinuações está a fazer sobre
mim, Jem e Henry, senhorr Lightwood?
– Tu e Jem são crianças – respondeu Benedict em tom cortante. – E Henry
nunca levanta os olhos da secretária.
Will começou a trepar por cima da sua cadeira, mas Jem puxou-o para
baixo. Jessamine, com os olhos castanhos muito brilhantes, juntou as mãos.
– Que excitante – exclamou.
Tessa olhou para ela, enojada.
– Não percebes que ele está a insultar a Charlotte? – murmurou. Jessamine, porém, afastou-a com um gesto.
– E quem sugeres que dirija o Instituto em vez dela? – perguntou o cônsul, sarcástico. – Tu?
Benedict abriu as mãos num gesto autodepreciativo.
– Se tu o dizes, cônsul…
Antes que ele terminasse, outras três figuras levantaram-se. Tessa reconheceu duas como membros do Enclave de Londres, apesar de não lhes
saber os nomes. A terceira era Lilian Highsmith.
Benedict sorriu. Estava toda a gente a olhar para ele. A seu lado estava
o seu filho Gabriel, olhando para o pai com uns olhos verdes enigmáticos.
Os seus dedos finos agarravam no espaldar da cadeira que tinha à frente.
– Três apoiantes para a minha causa – disse Benedict. – É o que a Lei
exige para eu poder concorrer formalmente, contra Charlotte Branwell,
à posição de chefe do Enclave de Londres.
Charlotte arquejou um pouco, mas não se mexeu. Jem continuava
a agarrar Will pelo pulso e Jessamine parecia estar a assistir a uma peça de
teatro excitante.
– Não – disse o cônsul.
– Não me podes impedir de concorrer…
– Benedict, tu não concordaste com a minha nomeação de Charlotte.
Tu sempre quiseste o Instituto e agora, quando o Enclave precisa que trabalhemos juntos mais do que nunca, trazes a divisão e a discórdia para
o Conselho.
– As mudanças nem sempre são pacíficas, o que pode, até, ser uma vantagem. O meu desafio mantém-se – disse Benedict, com as mão enclavinhadas uma na outra.
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CASSANDRA CLARE
O cônsul tamborilou na estante. O Inquisidor continuava a seu lado, de
olhar gelado.
– Tu sugeres, Benedict – disse o primeiro, por fim –, que a responsabilidade de encontrar Mortmain deve cair sobre os ombros dos que dizes
«terem-no perdido». Concordas, suponho, que encontrar Mortmain é
a nossa primeira prioridade? – Benedict anuiu. – Nesse caso, proponho
o seguinte: Charlotte e Henry Branwell ficam encarregues de investigar
o paradeiro de Mortmain. Se dentro de duas semanas não o tiverem localizado ou, pelo menos, não houver qualquer indício da sua localização,
o desafio pode ir em frente.
Charlotte pôs-se em pé de um salto.
– Encontrar Mortmain? Sozinhos, só Henry e eu… sem a ajuda do
Enclave?
O olhar do cônsul não era hostil, mas também não era clemente.
– Podes pedir o auxílio de membros da Clave se precisares e tens, claro,
os Irmãos Silenciosos e as Irmãs de Ferro ao teu dispor – respondeu –, mas
quanto à investigação, sim, é apenas vossa.
– Não concordo – queixou-se Lilian Highsmith. – Transformas a caça
a um louco num jogo de poder…
– Retiras o teu apoio a Benedict, nesse caso? – perguntou o cônsul.
– O desafio dele acaba e não haverá necessidade de os Branwell se porem
à prova.
Lilian abriu a boca, mas a um olhar de Benedict fechou-a e abanou
a cabeça.
– Nós perdemos os nossos criados – disse Charlotte com voz tensa.
– Sem eles…
– Terás outros, como é normal – disse o cônsul. – O irmão de Thomas,
Cyril, vem de Brighton para se juntar à tua casa e o Instituto de Dublin
cedeu-te a sua segunda cozinheira. Ambos estão bem treinados. Devo
dizer, Charlotte, que os teus também deviam estar.
– Thomas e Agatha estavam bem treinados – protestou Henry.
– Mas tens vários que não – disse Benedict. – A menina Lovelace,
Sophie e aquela do Mundo-à-Parte – acrescentou, apontando para Tessa.
– Portanto, como tencionas incluí-la na tua casa, não lhe faria mal nenhum
receber treino básico de defesa. E a criada também.
Espantada, Tessa olhou para Jem.
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PRINCIPE MECANICO
– Ele está a falar de mim? – Este anuiu com uma expressão sombria.
– Não posso… prefiro cortar um pé!
– Corta antes um ao Benedict – resmungou Will.
– Não te preocupes, Tessa, vais ver que és capaz… – começou a dizer
Jem, mas o resto das suas palavras foi abafado pela voz de Benedict.
– De facto – disse este –, como vão estar muito ocupados a investigar o
paradeiro de Mortmain, posso ceder os meus filhos Gabriel, aqui presente,
e Gideon, que regressa logo à noite de Espanha, como treinadores. São
ambos lutadores excelentes e podem ajudar.
– Pai! – protestou Gabriel, parecendo horrorizado. Era evidente que
Benedict não discutira com ele tal possibilidade.
– Nós somos capazes de treinar os nossos próprios empregados – disse
Charlotte com voz cortante. O cônsul, porém, abanou a cabeça.
– Benedict Lightwood está a fazer uma oferta generosa. Aceita-a.
Charlotte corou até à raiz dos cabelos e após um momento baixou a
cabeça, aceitando as palavras do cônsul. Tessa sentiu-se tonta. Ia ser treinada? Treinada para lutar? Ia aprender a lançar facas, a manejar uma
espada? Uma das suas heroínas preferidas fora sempre Capitola, do livro
The Hidden Hand, capaz de lutar como um homem e que se vestia como
um deles, mas isso não queria dizer que quisesse ser ela.
– Muito bem – disse o cônsul. – Termina aqui a sessão do Conselho.
Voltaremos a encontrar-nos neste mesmo local dentro de quinze dias.
Nem todas as pessoas saíram de imediato. Muitas delas levantaram-se
apenas e começaram a falar com os vizinhos. Charlotte deixou-se ficar
sentada, imóvel. Henry, a seu lado, parecia querer dizer qualquer coisa consoladora, mas não conseguiu pensar em nada e a sua mão pairou, insegura,
sobre o ombro da sua mulher. Will olhava para Gabriel Lightwood, que lhe
devolvia com frieza o olhar.
Devagar, Charlotte levantou-se. Henry murmurou-lhe qualquer coisa,
colocando-lhe a mão nas costas. Jessamine já estava de pé, fazendo girar a
sua nova sombrinha branca. Henry substituíra a velha, destruída na batalha
contra os autómatos de Mortmain. Os seus cabelos formavam cachos que lhe
caíam sobre as orelhas. Tessa pôs-se rapidamente de pé e o grupo dirigiu-se
para o centro da sala do Conselho. A jovem apanhou sussurros à passagem,
sempre as mesmas palavras: «Charlotte», «Benedict», «nunca mais encontram
o Magister», «duas semanas», «desafio», «cônsul», «Mortmain», «humilhação».
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CASSANDRA CLARE
Charlotte caminhava muito direita, corada, como se não ouvisse
nada. Will parecia capaz de fazer justiça com as próprias mãos, mas Jem
mantinha-o seguro pelo casaco. Will era como um cão de raça que gostava
de morder os convidados, era preciso tê-lo sempre seguro pela coleira.
Jessamine, mais uma vez, parecia aborrecida, nada interessada no que o
Enclave ou qualquer dos presentes pudesse pensar dela.
Ao chegarem às portas da Câmara do Conselho já iam quase a correr. Charlotte esperou que os outros a alcançassem. A maioria das pessoas estava a sair pela esquerda, de onde tinham vindo Tessa, Jem e Will,
mas Charlotte virou para a direita, andou uns passos ao longo do corredor
e parou abruptamente assim que virou uma esquina.
– Charlotte? – Henry parecia preocupado. – Querida…
Sem aviso, esta deu um pontapé na parede com toda a força. Esta não
sofreu nada por ser de pedra, mas Charlotte soltou um guincho.
– Livra! – exclamou Jessamine, fazendo girar a sombrinha.
– Posso fazer uma sugestão? – perguntou Will. – Benedict continua na
sala do Conselho. Se quiseres ir lá dar-lhe um pontapé, recomendo que
apontes mais acima e um pouco para a esquerda…
– Charlotte. – A voz profunda e grave foi reconhecida de imediato
por todos. Esta virou-se com os olhos castanhos muito abertos. O cônsul
aproximava-se com as runas bordadas na bainha e nas mangas da túnica
a brilhar. – Charlotte – repetiu ele –, lembras-te de o teu pai dizer que não
se devia perder as estribeiras?
– Lembro, mas também me lembro de ele dizer que devia ter tido um
filho – respondeu Charlotte com amargura. – Se ele tivesse… se eu fosse
homem… ter-me-ias tratado da mesma maneira?
Henry pousou a mão no ombro da sua mulher e murmurou-lhe qualquer coisa, mas ela sacudiu-o. Os seus enormes olhos castanhos estavam
fixos no cônsul.
– E como te tratei? – perguntou ele.
– Como se eu fosse uma criança, uma rapariguinha a precisar de uma
reprimenda.
– Charlotte, fui eu quem te nomeou directora do Instituto e do Enclave –
retorquiu o cônsul, exasperado. – Não o fiz por ser amigo de Granville
Fairchild e por saber que ele queria que fosse a filha a suceder-lhe, mas
porque pensei que davas conta do recado.
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PRINCIPE MECANICO
– Também nomeaste Henry – disse ela. – E disseste que o Enclave aceitaria um casal na direcção, mas não uma mulher só.
– Pois, parabéns, Charlotte, porque não me parece que os membros do
Enclave de Londres tenham a impressão de estar a ser liderados por Henry.
– É verdade – disse este, olhando para os próprios pés. – Todos eles
sabem que eu sou um inútil. A culpa do que aconteceu é toda minha, cônsul…
– Não – replicou Wayland. – A culpa é de uma combinação de complacência generalizada da parte da Clave, azar, má escolha de ocasião e algumas decisões erradas da tua parte, Charlotte. Sim, considero-te responsável
por elas…
– Nesse caso concordas com Benedict! – gritou Charlotte.
– Toda a gente sabe que Benedict Lightwood é um canalha e um hipócrita, mas também toda a gente sabe que é politicamente poderoso. Não
é boa ideia antagonizá-lo ainda mais, ignorando-o. Foi melhor assim.
– Foi melhor assim? É isso que lhe chamas? – perguntou Charlotte,
amargurada. – Colocaste-me numa situação impossível.
– Dei-te a missão de encontrar o Magisterr – disse o cônsul –, o homem
que entrou no Instituto, que te matou os empregados, que te ficou com os
Pyxis e que tenciona armar um exército de monstros para nos destruir.
Resumindo, um homem que tem de ser detido. Como chefe do Enclave,
Charlotte, é teu dever detê-lo. Se achas que é impossível, então talvez seja
melhor perguntares a ti própria se queres mesmo o cargo que ocupas.
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