Obra e Loucura: a experiência trágica da loucura e a ausência de obra
Renan Pavini Pereira da Cunha1
Resumo:
Para Foucault, a loucura encontra um grande avizinhamento com a linguagem literária a partir
do século XIX, transgredindo a linguagem usual que se instaura nesse mesmo período. Tal
transgressão, segundo o autor, se realiza no que ele chamou de ausência de obra, isto é, onde há
loucura não há obra e vice-versa. Paradoxalmente, a experiência da loucura, enquanto
desmoronamento da obra, se realiza como obra justamente por negar a própria estrutura da obra:
é onde a loucura, fora do campo psicopatologia, retoma uma experiência tão familiar à
Renascença de uma experiência trágica da loucura. Tentarei demonstrar como os conceitos de
ausência de obra e experiência trágica da loucura podem ser entendidos dentro da obra
História da loucura na idade clássica. Como Foucault vai considerar o conceito de ausência de
obra (que nada mais seria uma retomada de uma experiência trágica da loucura, que foi
silenciada por uma experiência crítica) como linguagem transgressiva e ao mesmo tempo vazia,
silenciosa. Como este é um fenômeno eminentemente moderno, que veio a modificar o modo de
escrever e de se entender da estética.
Palavras-chave: Ausência de obra. Experiência trágica. Loucura. Foucault.
Abstract:
To Foulcault, the madness finds a big relation with the literary language since XIX century,
transgressing the usual language that establishes itselves in this same period. This transgression,
for the author, realizes itselves in what he called work absence, in other words, where the
madness is present there is no work and vice versa. Paradoxically, the experience of madness,
while collapse of the work, realizes itselves like work precisely because denies the own
estructure of the work: that’s where the madness, out of the psicopatology field, recovery a
extremely familiar experience to the Renascence of a tragic experience of the madness. I´ll try
to demonstrate how the concepts of work absence and tragic experience of madness can be
understood inside the piece History of Madness. How Foucault is going to considerate the
concept of work absence (that would be a resume of a tragic experience of madness, that was
silent by a critical experience) like transgressive language in the same time empty, silent. How
this is an eminently modern phenomenom, that came to modify the way of writing and
undertanding estetic.
Keywords: Work absence. Tragic experience. Madness. Foucault.
Tomando como ponto de partida as reflexões que o pensador Michel Foucault
realizou sobre a loucura e sua estreita relação com a experiência literária, deparo-me
1
Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual de Londrina - UEL. Atualmente é discente da
Especialização “Filosofia Moderna e Contemporânea: Aspectos Éticos e Políticos” e do Mestrado em
“Estudos Literários” pela mesma Universidade. Orientadores: Marcos Nalli e Marta Dantas. E-mail:
[email protected]
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diante de uma questão que se faz aqui fundamental: por que, desde a modernidade,
apenas a experiência artística em geral, e a experiência literária em particular e de modo
contundente, é capaz de permitir à loucura uma expressão, uma voz, que não passa, que
escapa dos limites reguladores dos discursos e das práticas psicopatológicas? Ora,
partindo ainda dos referenciais teóricos adotados por Foucault, o que parece se
evidenciar é que há uma identificação entre a literatura moderna e aquilo a que Foucault
denominou experiência-limite e ausência de obra. Mas o que entender precisamente por
tais conceitos? E como percebê-los na experiência literária?
Em pleno Renascimento, existiam dois tipos de experiência – que se
encontravam entrecruzadas, com constantes intercâmbios – da loucura: experiência
trágica e experiência crítica. Entre essas duas formas de experiências, dar-se-á uma
ruptura cada vez maior, até romper-se plenamente. A primeira é tida como uma
“experiência cósmica da loucura”, que se encontra como elemento trágico, experiência
que demonstra “estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças de bestialidade e do
fim dos tempos”. Nessa experiência, a loucura tem sua força primitiva de revelação:
revela o onirismo como real, o delírio da destruição pura, o segredo profundo que vai se
abolir a verdade de nosso mundo de aparência. Esta experiência trágica se mostra desde
o século XV livremente nos quadros de Bosch, Brueghel, Thierry Bouts e Dürer, e que
no Renascimento – que de maneira geral mantinha um contato de hospitalidade com a
loucura, estando, esta, ligada a todas as experiências importantes da época – possibilita
tanto a Cervantes como a Shakespeare darem testemunho dessa loucura não submetida à
verdade e à razão.
Em contraponto, a “experiência crítica da loucura” é vista pelos saberes
racionais que a dominam, estes, a mantêm presa às críticas morais que a situam como
ilusão, sonho e onirismo. Uma loucura a qual a razão dialoga, mas diálogo este à
distância. Revela-se em sua medíocre verdade sobre o mundo, ao qual aos olhos do
sábio, por mais que a loucura seja mais sábia que toda a ciência, deve-se submeter
diante da sabedoria para quem ela é loucura. Estando no universo do discurso, dirige sua
força crítica contra a pretensão humana. Esta aparece nas obras de Erasmo de Rotterdam
e Brant. 2
2
Uma diferença relativamente clara entre essas duas experiências — experiência trágica e experiência
crítica —, falando sobre elas dentro de um campo artístico, é onde a primeira é a própria loucura falando,
falando num sentindo por deveras metafísico do termo, uma loucura que fala livremente sobre o que
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Alcançada sua plena ruptura acontece uma ocultabilidade quanto à experiência
trágica e cósmica da loucura, pois a mesma não desaparece por inteiro do mundo
ocidental, apenas está mascarada, silenciada, ocultada pelos “privilégios exclusivos de
uma consciência crítica”. Enquanto esta levará a ciência médica; a experiência trágica
reaparece, como se estivesse sempre em vigília, nas obras de Goya, Van Gogh,
Nietzsche e Artaud:
Enfim, são essas descobertas extremas, e apenas elas, que nos
permitem, atualmente, considerar que a experiência da loucura que se
estende do século XVI até hoje deve sua figura particular, e a origem
de seu sentido, a essa ausência, a essa noite e a que tudo o que ocupa.
A bela retidão que conduz o pensamento racional à análise da loucura
como doença mental deve ser reinterpretada numa dimensão vertical;
e neste caso verifica-se que sob cada uma de suas formas ela oculta de
maneira mais completa e também mais perigosa essa experiência
trágica que tal retidão não conseguiu reduzir. No ponto extremo da
opressão, essa explosão, a que assistimos desde Nietzsche, era
necessária. (FOUCAULT, 1972, p. 48; 2003, p. 29).
Foucault, na modernidade, “(...) aponta o ‘fulgor’ dos poetas Artaud, Hölderlin e
Nerval que escaparam, de certo modo, ao ‘gigantesco aprisionamento moral’ e
perceberam a experiência fundamental da desrazão que acena para além dos limites da
sociedade”(DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 11). Ou seja, o único meio de transgredir
a racionalidade moderna, que está totalmente implantada na mentalidade do homem
ocidental, é a loucura – esta, como manifestação artística e literária. Ela não se encontra
enquadrada dentro da racionalidade que a determinou: distancia-se, mas o único
processo de distanciamento na qual a mesma pode falar é através da experiência
artística, ausência de obra. Só a arte tem a chancela, para Focault, para escapar ao
aprisionamento, não só científico, mas a um aprisionamento muito mais amplo da
racionalidade: o aprisionamento da linguagem.
Se acompanharmos a linha de raciocínio e a conduta de Foucault,
cronologicamente, veremos que em 1962, um ano após História da Loucura, o autor
deseja falar: do onírico, do irrisório, do irreal ou do real modificado. Já a segunda, é o homem letrado que
expõe sua posição sobre a loucura, ou seja, o homem de razão falando sobre as maneiras demasiadamente
loucas de um discurso sobre a loucura. É onde a “consciência crítica subordina uma experiência trágica
do homem no mundo a um saber que já privilegia a verdade e a moral. Para Erasmo, por exemplo, a
loucura faz o homem aceitar o erro como verdade, a mentira como realidade, a violência como justiça, a
feiura como beleza.” (MACHADO, 2000, p. 28, 29). Em suma, a loucura traz os valores invertidos que
estão instaurados em determinada cultura.
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escreve em seu artigo “Introdução (in Rousseau)” que a obra por definição é nãoloucura, que loucura é impossibilidade de produção de obra, ou seja, há uma
impossibilidade entre obra e loucura. Uma das frases desse artigo que nos deixa com os
olhos em prontidão e segue a tese da História da Loucura, é quando o autor fala que a
“obra não pode ter seu lugar no delírio” e “só a linguagem pode ser delirante”
(FOUCAULT, 2002, p. 183). E a linguagem delirante, transgressiva por excelência, é a
linguagem literária3.
Foucault quer mostrar que a ciência médica – com toda sua racionalidade – não
conseguiu aprisionar, de certa maneira e em alguns casos, o objeto de seu estudo, e que
os métodos adotados pelos psiquiatras estão longe de serem considerados como
eficientes. Assim como “Antonin Artaud passa internado no asilo, ‘deportado na
França’, como ele próprio se descreve, submetido ao poder da psiquiatria, em sua forma
mais violenta: o eletrochoque que provoca o ‘coma’”(REY, 2002, p. 39). E é a partir
dessa barbárie da psiquiatria que Foucault nos demonstra o poder eminente do
reaparecimento da loucura em sua ausência, em sua força de revelação, onde podemos
ver no final da tese História da Loucura:
No instante em que, juntas, nascem e se realizam a obra e a loucura,
tem-se o começo do tempo em que o mundo se vê determinado por
essa obra e responsável por aquilo que existe diante dela.
Artifício e novo triunfo da loucura: esse mundo que acredita avaliá-la,
justificá-la através da psicologia, deve justificar-se diante dela, uma
vez que em seu esforço e em seus debates ele se mede por obras
desmedidas como as de Nietzsche, de Van Gogh, de Artaud. E nele
não há nada, especialmente aquilo que ele pode conhecer da loucura,
capaz de assegurar-lhe que essas obras da loucura o justificam
(FOUCAULT, 1972, p. 663; 2003, p. 530).
É essa relação aparente que Foucault expõe, onde ao tratar de loucura, esteja
falando de obra. Em sua análise, na Idade Média e no Renascimento, a loucura se
manifesta na sociedade, “no horizonte social como um fato estético ou cotidiano”(Id,
2002, p. 163). É no século XVII, com a internação, que a loucura perde sua força de
revelação que detinha nas obras de Shakespeare e Cervantes. Perde-se, também, sua
3 É bem observado, por Roberto Machado, que nesse artigo é a primeira referência explícita que Foucault
faz à linguagem literária como transgressiva: “(...) considera essa linguagem aquém da obra, que é pura
transgressão, como aquilo que torna a própria obra possível, aquilo a partir do que ela fala.”
(MACHADO, 2000, p. 46, 47).
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função de manifestação para tornar-se excluída, silenciada, ganhando agora o título de
derrisória, mentirosa, linguagem inútil. E com a Modernidade, ela volta-se – a partir de
“uma reflexão secreta sobre a natureza da linguagem e da literatura” (RAJCHMAN,
1987, p. 17) – nas obras de Nietzsche, Artaud, Van Gogh, Hölderlin, etc. Assim, essa
volta perde o sentido social e cotidiano, e a loucura como transgressão, só pode falar a
partir de seu silêncio – esse falar é a própria obra.
Toda a força de manifestação da loucura e como era vista em determinada
sociedade, de maneira geral, pode ser encontrada nas obras que se manifestam ou nas
que a descrevem. Ou seja, a loucura sempre ocupou um lugar dentro da sociedade. Mais
ainda, sempre ocupou um lugar “estético” dentro de determinada época de acordo com
as obras que tratam sobre ela, ou a própria ausência que é ela própria. Isso acontece,
freqüentemente, dentro da História da Loucura4. Só que ao mesmo tempo em que a
loucura tinha sua força de manifestação nas obras, era vista dentro da sociedade num
diálogo entre os homens – estando de certa maneira excluída (tanto moral, como
teologicamente), ainda tinha sua função dentro da sociedade. E as forças da psicologia a
tratam com certo inibimento que ela já, a mercê de suas grades, se liberta para
proliferar-se na ausência que é própria da sua obra.
Seguindo essa linha de raciocínio, não interessaria para Foucault acusar os
psiquiatras de qualquer tipo de relação que eles possam ter com a loucura a não ser o
próprio fato dos mesmos a tomarem pelos saberes racionais. A crítica aos psiquiatras –
de acordo com o que Foucault propõe – tem sua força e repercussão porque, ao falar da
ciência médica, exclui qualquer sintoma de loucura. A razão se sobrepõe à loucura
acusando-a de doença, é “o poder que a razão exerce sobre a não-razão para lhe arrancar
sua verdade de loucura, de falta ou de doença (...)” (FOUCAULT, 2002, p. 153).
Podemos ver a bipolaridade da tese foucaultiana: de um lado, o saber racional que se
manifesta nas ciências; do outro, o onírico, a loucura, que se manifesta nas obras
artísticas, nos poetas, nessa linguagem marginalizada do cotidiano.
4
A exemplo disto, coloquemos a experiência renascentista da loucura, onde podemos ver perfeitamente
esta manifestação que se encontra em duas vertentes: Experiência trágica e cósmica da loucura, que
constitui o fascínio do trágico, que estão ligados a imagens que mostram a bestialidade e o fim do mundo,
o caos (podemos ver essas manifestações nos quadros de Bosch, Dürer, etc); e experiência crítica da
loucura, que esta constitui a ironia crítica, onde a loucura aparece como motivo de sátira, de escárnio,
como denunciadora do mal das fraquezas humanas (nas obras de Erasmo, Montaigne, Brant, etc).
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O próprio Focault, em 61, quando lhe fazem a pergunta se a loucura vale mais
que a razão, ele nos responde:
– Uma das objeções do júri foi, justamente, de que eu teria tentado
refazer o Elogio da Loucura. No entanto, não: eu quis dizer que a
loucura só se tornou objeto de ciência na medida em que ela foi
decaída de seus antigos poderes... Mas, quanto a fazer a apologia da
loucura em si, isso não. E se Artaud é louco, e se foram os psiquiatras
que permitiram a internação de Artaud, isso já é uma bela coisa, e o
mais belo elogio que se possa fazer...
– Não à loucura, com certeza...
– Mas aos psiquiatras (Ibid, p. 164).
Esta relação é importante aqui: onde a razão se sobrepõe à loucura para mostrarlhe sua verdade, onde o louco se encontra acorrentado pela “força de suas paixões” e
“arrebatada pela vivacidade dos desejos e das imagens” (FOUCAULT, 1972, p. 642;
2003, p. 513); é esta irresponsabilidade do louco que a medicina começa a apreciar. “A
loucura de um ato se mede pelo número de razões que a determinam”(FOUCAULT,
loc. cit.; loc.cit.). Mas aqui se encontra o problema, pois “a loucura de um ato é julgada
precisamente pelo fato de que nenhuma razão jamais chega a esgotá-la”(FOUCAULT,
loc. cit.; loc. cit.). E essa loucura medida, justificada, avaliada em todas suas formas
diante da psicologia, encontra sua liberdade fora dos muros que a projetou como doença
mental, expressando-se na sua ausência de obra. A loucura de cada autor pertence às
suas obras, assim como estas lhe pertence.
A própria leitura de Sade (1740-1814)5 nos leva, exposto por Foucault, a uma
“loucura do desejo”6, onde essa constitui “mortes insensatas, as mais irracionais paixões
são sabedoria e razão porque pertencem à esfera da natureza”(FOUCAULT, 1972, p.
657; 2003, p. 525). Podemos, ainda, ver em Sade, na sua “(...) estrutura do discurso, a
aberração esgota a reflexão: as palavras tornam-se de novo o que o discurso as impedia,
um instante, de serem, ou seja, a propensão ao próprio acto que restabelece a imagem de
sua execução no seu mutismo”(KLOSSOWSKI, 1968, p. 61, 62). E toda sua singular
5
Foucault, ao falar da literatura de Sade, cita as obras Justine e Juliette. (FOUCAULT, 1972, p. 657 a
660; 2003, p. 525 a 527).
6
Klossowski coloca-nos que em sua obra, “(...) Sade depende, quanto aos sistemas filosóficos através dos
quais suas personagens especulam, do racionalismo de Voltaire e dos enciclopedistas e do materialismo
de Holbach e de la Mettrie. De resto, as suas personagens passam com perfeito à-vontade dum sistema
para outro, ao sabor das paixões, sem se preocupar com as contradições.” (KLOSSOWSKI, 1968, p. 106).
Acredito que é deste último que podemos dar um exemplo que Foucault quer dizer com “loucura do
desejo”.
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configuração de obra, por toda essa exclusão da linguagem por si própria, como poderia
patologicamente escapar da vida de seu autor?7
Onde o homem, nesta loucura do desejo, primitiva, nessa loucura que lhe é
próprio e que lhe foi silenciada, sufocada, excluída, tirada para fora de si pela moral e
religião, liberta-se nessas esferas artísticas que ultrapassam os muros de uma sociedade.
Onde o homem retoma o que lhe foi sufocado: é a libertação das correntes para alcançar
sua própria liberdade, sabedoria, linguagem e seu silêncio.
Tanto na literatura de Sade, quanto nos quadros de Goya (1746-1828),
observamos a desrazão em vigília na noite, nos limites da sua possibilidade. Podemos
considerar que a experiência trágica da loucura ainda está viva, apenas estava esperando
o momento certo para se manifestar e acusar que não é a onírica loucura que produz
monstros, como acontecia na Idade Média e no Renascimento, mas agora é O sonho da
razão produz monstros8. Goya, que em toda sua vida sempre pintou quadros para a corte
espanhola e para os nobres e, a partir de 1793, com sua nova técnica com o uso da águaforte, começou sua série Los Caprichos: que se compunham de 80 placas, onde a
primeira placa pretendida desta série seria justamente é O sonho da razão produz
monstros – mas Goya a substitui por uma Auto-retrato, “a imagem de um homem
confiante com chapéu alto e expressão crítica” (ROSE-MARIE e RAINER HAGEN,
2004, p. 35). É em Los Caprichos que o artista plástico começa a revelar em suas
7
Cito aqui uma estrofe que Klossowski em seu trabalho coloca da biografia de Sade escrita por Gilbert
Lévi. Aquele a denominou de uma “qualidade inigualável”, Vie du marquis de Sade. Infelizmente, até o
presente momento não tivemos acesso a tal biografia, por isso cito por Klossowski: “Se os processos, as
condenações que provocam diversos escândalos, nomeadamente os casos de Arcueil e de Marselha, as
suas prisões repetidas, enfim, a sua longa detenção por ordem régia, por causa de sua sogra, se toda essa
repressão arbitrária o faz necessàriamente insurgir-se, a ele, o apologista do arbitrário, contra todas as
instituições, todas as leis “humanas ou divinas”, — dever-se-á ver nisso apenas a projecção exterior do
seu processo interior, desse processo que a sua consciência contra ele intenta? Talvez o castigo que a sua
vontade inconsciente lhe acarreta, esse castigo iníquo lhe seja necessário, precisamente para ganhar o seu
processo interior.” (LÉVI, apud KLOSSOWSKI, 1968, p. 110).
8
No original, El Sueño de la Razon Produce Monstruos, é uma obra de Goya, onde se encontra uma
pessoa (aparentemente um artista) debruçada em uma escrivaninha dormindo sobre livros e papéis, em
seu sono (ou sonho) de razão — como sugere o título da obra —, animais e suas sombras aparecem atrás
dessa pessoa como em sonho, onde tais animais assumem formas de monstros. Estes fantasmas nocturnos
eram morcegos em formas de corujas, que segundo Rose-Marie e Rainer Hagen, eram formas que Goya
procurou para se “libertar das imagens criadas na sua cabeça, e que o oprimiam”. (ROSE-MARIE e
RAINER HAGEN, 2004, p. 31). Também vale a ressalva que Goya, nesta mesma obra, arriscou uma
“visão angustiante com um título perigoso”, pois a razão da época estava vincula com a idéia do
iluminismo, e o iluminismo esta diretamente vinculado a França — país que mandara matar seu rei, sua
rainha e a destruir sua nobreza. E ainda, podemos perceber que o autor “brinca” com o título da obra,
tendo a palavra Sueño em espanhol, duas significações: podendo ser traduzida tanto por sono como por
sonho.
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pinturas “visões e pesadelos que existiam no seu pensamento” e “o incentivo a esta
nova faceta surgiu de uma crise nervosa, de um esgotamento, que quase o levou à morte
e o deixou sem o sentido da audição” (Ibid., p. 31)9. Seguindo o mesmo ritmo de Los
Caprichos, Goya, ressuscitando a experiência trágica de morte que se dava na Idade
Média, começa a pintar gravuras – que agora comporão mais de 80 placas – que terão
como título Os Desastres da Guerra, que fazem referência a invasão que se deu na
Espanha pelos franceses, estes, liderados por Napoleão. Sabe-se que nem todas suas
gravuras são tema que realmente aconteceram, mas sim, visões de Goya quanto à morte,
a brutalidade, a martirização do homem: “tal como no passado, quando atormentado
pelos morcegos gigantes, eram agora as visões de tortura e assassinato que o
torturavam” (Ibid., p. 58). Uma dessas principais gravuras para ilustrar é Isto é Pior –
onde um homem está perfurado por um tronco desde suas genitais até a altura do obro; e
Que mais Podemos Fazer? – onde três soldados franceses seguram um homem indefeso
pelas pernas enquanto outro soldado o castra ou o mata com uma espada. Mas é na
velhice de Goya que podemos encontrar traços claros de sua ausência de obra: seu
mundo vazio, silencioso. Duas obras destacam-se nessas perspectivas: Duelo com
Mocas e O Cão. Na primeira, dois homens num duelo estão enterrados até os joelhos
num campo de areia movediça, utilizando mocas como armas. Assim, ambos os homens
não podem fugir, e não tendo nenhum espectador por perto, até mesmo o vencedor, após
a luta ter acabado, será tragado pela areia; já em O Cão – obra de Goya que apresenta
maior o vazio – um cão, na areia movediça, aparentemente, encontra-se só com sua
cabeça de fora, olhando para cima como se esperasse alguém para salvá-lo; espera vã,
pois nem santos, nem homens aparecem. O cão da pintura ocupa cerca de um por cento
de todo o quadro, e vale notar que esta obra está desprovida de quaisquer objetos
familiares, sua composição por excelência é a solidão, o vazio, a ausência: “nunca antes
um artista se aventurou em tão radical renúncia para retratar a solidão” (Ibid., p. 75)10.
9
Quanto à crise de Goya, Rose-marie e Rainer escrevem que “não se sabe ainda a qual a razão desta
crise, que poderá ter surgido de uma doença puramente física. É, no entanto, possível que também os
factores psíquicos possam ter tido influência: talvez as visões, as imagens de escuridão e o inconsciente
tenham ficado recalcados durante demasiado tempo, por serem incompatíveis com a sua ascensão e a
razão e não terem lugar no elegante mundo de seus patronos.” (Ibid., p. 31).
10
Na Alemanha, cerca de dez anos antes, o artista plástico Caspar David Friedrich pintou O Monge a
Beira-mar, “uma imagem com um tema semelhante: a pequeníssima figura de um homem contra um
cenário de paisagem natural, dividido em três zonas horizontais de cor. Uma imagem extraordinária para
Friedrich, mas a comparação revela que Goya foi ainda mais longe, quebrando as convenções da
composição pictória.” (ROSE-MARIE e RAINER HAGEN. 2004. p. 75).
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Tanto Sade como Goya, vão “reencontrar a experiência trágica para além das promessas
da dialética” (FOUCAULT, 1972, p. 660; 2003, p. 527).
Se nos voltarmos para a obra na qual Foucault intitula Raymond Roussel, não
veremos toda uma interpretação das obras de Roussel pelo filósofo? Primeiramente,
nesse livro dedicado a Roussel, escrita em 63 – logo após da História da loucura – em
nada inflige à posição de Foucault sobre a ausência de obra, como iremos demonstrar.
Fica-nos clara a posição que Foucault toma ao tentar, de certa maneira, explicar
desde as primeiras obras de Roussel até sua última e mais reveladora; obra tida até
mesmo como autobiográfica: Comment j’ai écrit certains de mes livres11.
Mas, para o presente trabalho, é demasiado importante nos atermos para o
último capítulo desta obra de Foucault12, no qual nos será esclarecedor. O filósofo
começa por fazer uma crítica ao psicólogo Janet. Este acusa Roussel de ser “um doente,
um pobre coitado”, e Foucault descreve essa observação do psicólogo como “frase de
pouco caso e vinda de um psicólogo” (FOUCAULT, 1999a, p. 137).
Foucault, em todo o momento em História da loucura na idade clássica – desde
seu prefácio de 61 – até Raymond Roussel, faz um ataque-crítica aos psicólogos, na
medida que estes julgam a obra pela doença, ou a doença pela obra. E é justamente este
desvinculamento – obra-patologia – que Foucault está tentando traçar.
Ao falar de ausência de obra, Foucault nos mostra a exclusão, o vazio, o
silêncio, que, paradoxalmente, faz-se em sua exclusão o lugar no qual a obra é
conhecida, seu vazio por onde a obra fala13 e seu silêncio na qual a obra se mostra. É
deste oco, deste espaço vazio da obra, que Foucault nos diz que “Ele é o espaço da
linguagem de Roussel, o vazio de onde ele fala, ausência pela qual a obra e a loucura se
comunicam e se excluem” (Ibid., p. 145). De igual forma em Roussel, podemos ver em
Artaud:
É desse vazio também que Artaud queria aproximar-se, em sua obra,
mas de que não cessava de estar afastado: afastado por ele de sua obra
11
Esta obra que pode ser traduzida “Como escrevi alguns de meus livros”.
No qual é intitulado como “O Sol Aprisionado”.
13
Foucault pensa que o espaço da linguagem de Roussel, o lugar por onde a obra fala e se realiza é
justamente o vazio. Mas não via este, em nada, como metáfora: “trata-se da carência das palavras que são
menos numerosas que as coisas por elas designadas, e devem a essa economia querer dizer alguma coisa”,
e conclui que “Seria necessário, em todo caso, formas bem singulares de experiências (bem ‘desviantes’,
quer dizer, desconcertantes) para tornar invisível esse fato lingüístico nu: que a linguagem só fala a partir
de uma falta que lhe é essencial” (FOUCAULT, 1999a, pp. 145 e 146).
12
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80
e também dele por sua obra; e em direção a essa ruína medular ele
lançava incessantemente sua linguagem, escavando uma obra que é
ausência de obra (Ibid., p, 145).
Assim, de todas essas enigmáticas obras tidas como ausências de obras, fica de
certa maneira – depois da psicologização da loucura – agradável aos olhos da
psicologia, atribuindo-lhes inúmeras classificações e explicações para o doente e sua
obra. Mas a psicologia não estaria dando uma penúria às obras na qual classifica e
explica os ritos, as idéias, as imagens, a própria linguagem dando assim à obra uma
“nervura patológica”? Não estaria esta ciência médica racionalizando e desta maneira
limitando a obra? Não estaria, também, dando à experiência da linguagem apenas
interpretações dentro dos limites da psicologia ou da psicopatologia, tirando assim da
obra sua parte mais rica? Foucault pode nos responder tais questões:
— Uma tal experiência, supondo que ela seja accessível, de onde
poderíamos falar dela, senão, talvez, desse solo já impuro onde a
doença e a obra são tidas como equivalentes. Falando num
vocabulário misto, todo povoado de qualidades ou de temas lábeis que
vêm se assentar ora sobre os sintomas e ora sobre o estilo ora sobre os
sofrimentos e ora sobre a linguagem, chega-se sem muito esforço a
uma certa figura que vale tanto para a obra como para a neurose
(Ibid., p. 140 ).
Este solo impuro é o ponto de chegada na crítica foucaultiana quanto à
psicologia. Esta vem com seus métodos simplificar a obra, qualificá-la, justificá-la,
avaliá-la dentro de seus métodos científicos. É onde a obra não está livre para se
expressar como obra, é onde ela encontra barreiras para se expressar, mas para
acontecer, onde não existe obra fora da patologia, onde a obra justifica-se para a doença.
Onde “Não mais é difícil, então, mostrar que a obra e a doença estão enredadas,
incompreensíveis uma sem a outra. Os mais sutis dizem que a obra ‘abre a questão da
doença’ ou então ‘abre a doença como questão’. A jogada já estava feita de início:
atribuíra-se todo um duvidoso sistema de analogias” (Ibid, p. 141).
Não importa os secretos segredos da obra, ela não está fora desses sistemas de
analogias que a psicologia impõe. Assim, Foucault fez um livro destinado a Raymond
Roussel, mas, o autor não o fez para explicá-lo psicologicamente, mas sim, para mostrar
como Roussel usava as palavras, para mostrar quem era Raymond Roussel e que sua
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obra “corre por debaixo de nossa linguagem há anos, e quase não sabemos”
(FOUCAULT, 2006, p. 179).
Quando Foucault se refere à obra de Roussel, o mesmo determina como “um
jogo de incerteza”, que “na sua leitura, nada nos é prometido”, e as obras de Roussel se
constroem através do ocultamento e do segredo; ou seja, não há nada de justificações ou
qualificações por parte do filósofo. Até mesmo em 1964 quando ele declara que nada
adianta saber se Roussel era louco:
Mas eis o que pouco nos adianta, nem tampouco saber que Roussel
era louco, que ele apresentava belos sintomas obsessivos, que Janet o
tratou, mas não curou. Loucura ou iniciação (os dois, talvez), tudo isso
nada nos diz sobre a parte desta obra que concerne à linguagem atual:
lhe concerne e ao mesmo tempo recebe dela sua luz (Ibid., p. 180).
Quanto à obra de Hölderlin – Hölderlin Jahrbuch – Foucault, em 61, agradece
“aos céus” que os psicólogos não a tenham lido14. “É que teria sido grande a tentação de
ter sobre Hölderlin e sua loucura um discurso muito mais fechado, mas da mesma
semente, que aquele de que tantos psiquiatras [Jaspers em primeiro e em último lugar]
nos deram os modelos repetidos e inúteis: mantidos até o coração da loucura, o sentido
da obra (...)” (FOUCAULT, 2002, p. 188). É certo que Maurice Blanchot escreve que
“(...) o pensamento de Hölderlin, já, no entanto, sob o véu da loucura, se apresenta mais
refletido, menos fácil que o do humanismo” (BLANCHOT, 1987, p. 273), e talvez esta
frase possa ser comparada com o que Artaud fala sobre Nerval15; que homens como
esses só conseguiram produzir obras tão fundamentais – assim como arrojadas –, tão
assaz importantes para a literatura como para as artes, que poderíamos então considerar
que só conseguiram devido suas crises de loucura? Colocar que loucura e sabedoria –
criatividade ou originalidade talvez? – estão implicadas e que só foi possível a criação
de tais obras a partir da loucura? Seguindo o pensamento de Foucault, podemos
considerar que está fora da capacidade tanto dos psicólogos, como de qualquer outra
entidade que venha a falar sobre este assunto (um olhar patológico sobre a obra):
loucura anula sabedoria? As visões de Nerval estavam certas ou não? Mas como
descartar uma “ciência” que se estabelece? O objetivo não é desqualificar ou descartar a
14
“O ‘Não’ do Pai”, in (FOUCAULT, 2002, p. 188 ).
Artaud fala da brutalidade dos psiquiatras sobre Nerval, em sua obra Van Gogh, o Suicida da
Sociedade.
15
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psiquiatria ou a psicopatologia, mas, não estamos tratando aqui do olhar psicológico
sobre o sujeito “louco”, mas sim, de um olhar sobre a obra: a loucura como
impossibilidade de obra, como linguagem, não separando a obra da loucura e a loucura
de sua obra, mas encarando a loucura acostada à idéia de ausência de obra16. Assim,
encarando-a como ausência de obra, é aqui que se obtém – pelo menos o deveria – um
afastamento psicológico, é essa a proposta de Foucault em História da Loucura quanto
às obras artísticas.
Uma obra artística (ou literária) encontra-se em uma outra esfera –
transcendental? Julgá-la por critérios psicológicos a reduziria a um equacionamento
metódico, e isto, a eliminaria desse universo no qual a linguagem encontra-se em seu
silêncio, rumando para um universo estético já determinado pela lógica racional.
Assim, Blanchot fala que “quando a loucura recobriu inteiramente o espírito de
Hölderlin, também sua poesia sofreu uma inversão”(BLANCHOT, 1987, p. 277). Mas
que inversão seria essa? Em sua linguagem teria ele consumado o retorno? Feito a
transgressão? Teria ultrapassado a barreira que há entre o céu e a terra, o dia e a noite,
visto as coisas em sua evidente transparência vazia. A que se deve toda essa mudança na
sua poesia, na sua linguagem? Como poderíamos claramente responder essa questão?
Blanchot nos dá uma resposta puramente aceita: “Por quê? Não sabemos.” E também é
dito por Remo Bodei, quanto à linguagem de Hölderlin: “também se faz cada vez mais
incompreensível a linguagem de Hölderlin no isolamento de uma iminente loucura
lúcida por plenitude do espírito” (BODEI, 1990, p. 72).
A loucura pode ser interpretada nesse parentesco com a linguagem literária, ao
percebermos que esta atravessa a “exigência da obra”17 que a constitui. Para Blanchot,
“a obra exige do escritor que ele perca toda a sua natureza” (BLANCHOT, 1987, p. 50).
Há um jogo da obra para com o autor, onde este se encontra encerrado pela obra. A obra
exige do autor, necessariamente, um afastamento do seu sujeito. O autor não pode
16
Foucault, quanto a esse velho problema nos coloca: “onde termina a obra, onde começa a loucura?” e
nos responde: “encontra-se, pela restringência que embaralha as datas e imbrica os fenômenos, resolvido,
de alto a baixo, e substituído por uma outra tarefa: em vez de ver no acontecimento patológico o
crepúsculo no qual a obra desmorona-se realizando sua verdade secreta, é preciso seguir esse movimento
pelo qual a obra abre-se pouco a pouco sobre um espaço no qual ser esquizofrênico toma seu volume,
revelando, assim, no extremo limite, o que nenhuma linguagem, fora do sorvedouro em que se precipita,
teria podido dizer, o que nenhuma queda poderia ter podido mostrar se ela não tivesse sido ao mesmo
tempo acesso ao topo” (FOUCAULT, 2002, p. 188).
17
Para maiores investigações sobre o conceito Blanchotiano de “exigência de obra”, ver BLANCHOT. O
Espaço Literário, 1987.
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responder mais por si mesmo – é nesse momento que vermos os riscos dessa
experiência –, pois se encontra vulnerável, já que não é ele próprio. Privando-se de si,
renunciando a si, o autor só pode tomar um único caminho: emudecer. E é nesse
silêncio que a obra adquire sua forma, sua coerência e entendimento:
Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente
inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito
do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem
termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental
que traça, dia a dia, o texto da literatura (FOUCAULT, 1999b, p. 61).
Vale a ressalva que Foucault não está, na verdade, a condenar a psicologia como
um todo. Está certo que ao lermos História da Loucura veremos certa crítica a ela, mas,
tal crítica é quando a psicologia está a justificar e falar da loucura enquanto obra, em
sua linguagem que lhe é própria. E não que Foucault descarte a psicologia dos saberes,
mas que ao se tratar de enquadrar um culpado quanto à delimitação de nossa literatura
marginalizada e expurgada, o filósofo está sim e fazendo tal crítica a psicologia. Não é
certo medicalizar a loucura? Não é esta a questão que está a se tratar; não é certo
patologizar uma obra de arte? Quanto a isso podemos afirmar indelevelmente: não, não
é certo. A obra não nasce de um sintoma patológico só para entreter conceitos
psiquiátricos e para levá-los a enquadrar alguns autores como loucos; se há loucura, ela
pode ser encontrada para aquém/além das obras, não nelas, mas fora delas. Há loucura
nas obras artísticas? Há doença no teatro da crueldade ou em Comment j’ai écrit
certains de mes livres? Podemos falar que Van Gogh sofria de algum distúrbio mental
por pintar-se com a orelha cortada? Seria o delírio uma dimensão própria da arte? Todo
artista seria delirante em sua obra? Todas essas questões estarão em uma dimensão mais
do que enigmática, parecendo difícil encontrar respostas, mas podemos, na medida do
possível, resultar em uma forma coerente de avaliação quanto a elas. Sim, talvez a
loucura seja própria da arte como a arte, talvez, seja própria da loucura. Sob essa
hipótese, teremos: a literatura – ou a arte em geral – encontra-se, imprescindivelmente,
na loucura como esta naquela. Mas tal partido tomado não me deixa, necessariamente,
com as mãos atadas quanto à fatalidade de que a loucura tem que ser avaliada e
justificada a partir de suas obras artísticas pela psicopatologia.
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O filósofo, em uma entrevista feita em 1961, intitulada A loucura Só existe em
uma sociedade, quando lhe perguntam quais foram suas influências para escrever
História da loucura, respondeu: “Sobretudo nas literárias... Maurice Blanchot,
Raymond Roussel. O que me interessou e me guiou é uma certa forma de presença da
loucura na literatura” (FOUCAULT, 2002, p. 162).
Mas de que forma Foucault via essa “presença da loucura na literatura”?
Podemos ver que a literatura para o filósofo francês é organizada em três eixos, o que
observa T. Shimizu, numa entrevista feita com Foucault em 1970:
(...) parece-me que, no seu sistema de pensamento, a literatura é
organizada segundo 3 eixos. O primeiro, em torno do problema da
loucura, é representado por Hölderlin e Artaud. O segundo, em torno
do problema da sexualidade, por Sade e Bataille. E o terceiro, em
torno do problema da linguagem por Mallarmé e Blanchot (Ibid., p.
233).
Fica claro que a posição de Foucault perante a literatura é uma posição de
experiência-limite, pois, os problemas da literatura (como loucura, sexualidade e o
problema da linguagem) são organizados, intrinsecamente, a partir de suas repressões.
Para entendermos melhor essa colocação do filósofo, cito uma passagem do prefácio de
1961:
Será preciso também fazer a história, e não somente em termos de
etnografia, dos interditos sexuais: em nossa própria cultura, falar das
formas continuadamente moventes e obstinadas da repressão, e não
para fazer a crônica da moralidade ou da tolerância, mas para trazer à
tona, como limite do mundo ocidental e origem de sua moral, a
divisão trágica do mundo feliz do desejo (Ibid., p. 155).
Essa divisão trágica a qual o autor vê ocultada – ao pensarmos loucura,
sexualidade ou linguagem como experiências-limites – nada mais é do que o que a
cultura ocidental impôs limites e muitas vezes reprimiu. Assim, como diz Roberto
Machado: “Correlativamente, a reflexão de Foucault sobre a literatura, estabelecendo
sua relação com a loucura, complementa a análise arqueológica no sentido em que é na
experiência literária que o jogo do limite e da transgressão, existente na experiência da
loucura, aparece com mais vivacidade como possibilidade de contestação da cultura”
(MACHADO, 2000, p. 37).
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Foucault não quis inverter os papéis – jogando a psicologia para fora da cultura
ocidental assim como aquela tentou fazer com a linguagem da loucura (isso nem seria
possível) –, não quis falar que a psicologia foi um erro que a sociedade criou, ou
melhor, que a loucura deu a brecha para a sua própria destruição literária/artística, para
a destruição de sua própria linguagem. Antes, quis mostrar que a literatura (ou as artes),
em sua estreita relação com a loucura, é uma ferramenta na qual encontramos um
discurso transgressivo, isto é, nas obras de Nietzsche, Artaud, Van gogh, Roussel,
Hölderlin, dentre outros, vemos aquela linguagem que o ocidente arremessou para fora
de sua cultura, tentou silenciar, ocultar e em outros casos justificar – patologizar. A
loucura liberta-se, transgressivamente, numa linguagem pertencente a si própria que
nada quer dizer.
Se após isso, ainda um psicólogo se perguntar, “porque essa recusa em
medicalizar a obra?”, “Por que esse olhar torpe para os saberes da psicopatologia diante
da obra?” Podemos nos voltar para Blanchot e ver o que ele diz quanto à obra: “a obra –
obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é
exclusivamente isso: que é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazer
exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime”(BLANCHOT, 1987,
p. 12). Assim a obra é esse espaço vazio e mordente da recusa, lugar aonde nenhum
outro jamais chegará a esgotá-la. É onde obra se afirma em sua essência e encerra-se em
sua ausência, sob e sobre sua ausência. A obra acaba por explicando-se em seu ilimitado
limite de obra.
— E eis ai vocês reduzindo toda a obra à unidade de uma “angústia”
diante da linguagem, a uma figura timidamente psicológica
(FOUCAULT, 1999a, p. 146).
Bibliografia Básica
FOUCAULT, Michel, Historie de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, 1972.
______. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho
Netto. – 7. ed. – São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
______. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Tradução
de Vera Lucia Avellar Ribeiro; organização e seleção de textos, Manoel Barros de
Motta. – 2.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.(Ditos e escritos; I)
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______. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Tradução de Vera Lucia
Avellar Ribeiro; organização e seleção de textos, Manoel Barros de Motta. – 2.ed. – Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006.(Ditos e escritos; III)
______. Raymond Roussel. Tradução de Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar
Ribeiro. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999a.
______. As Palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de
Salma Tannus Muchail. – 8. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999b.
______. Eu, Pierre Revière, que Degolei minha Mãe, minha Irmã e meu Irmão... Um
Caso de Parricídio do Século XIX. Obra Coletiva. Tradução de Denize Lezan de
Almeida. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1991.
Bibliografia Complementar
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. Tradução de Teixeira Coelho. – 3. ed. – São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Tradução de Álvaro Cabral. — Rio de
Janeiro: Rocco, 1987.
______. A Conversa Infinita-1: A Palavra Plural. Tradução de Aurélio Guerra Neto. —
Rio de Janeiro: Escuta, 2001.
BODEI, Remo. Hölderlin: la filosofía y lo trágico. Tradução de Juan Díaz de Aturi. —
Madrid, Visor, 1990.
DREYFUS, H. e RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. — Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
ERIBON, Didier. Michel Foucault: 1926-1984. Tradução de Hildegard Feist. – 1. ed. –
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
______. Michel Foucault e seus Contemporâneos. Tradução de Lucy Magalhães. – 1.
ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade, Meu Próximo. Tradução de Ana Hatherly. — São Paulo:
Moraes Editores, 1968.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
RAJCHMAN, John. Foucault: a Liberdade da Filosofia. Tradução de Álvaro Cabral.
— Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
REY, Jean-Michel. O Nascimento da Poesia. Antonin Artaud. Tradução de Ruth
Silviano Brandão. — Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
ROSE-MARIE e RAINER HAGEN. Francisco Goya: 1746-1828. Tradução
portuguesa: Philos – Editora Paisagem, 2004.
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