1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Curso de Mestrado ANA CAROLINA CARVALHO TORRES BARBOSA (ANA CAROLINA SAUWEN) CAMINHOS PARA UMA PALHAÇA: INVESTIGAÇÃO A PARTIR DA OBRA DE AVNER, THE ECCENTRIC RIO DE JANEIRO 2011 2 ANA CAROLINA CARVALHO TORRES BARBOSA (ANA CAROLINA SAUWEN) CAMINHOS PARA UMA PALHAÇA: INVESTIGAÇÃO A PARTIR DA OBRA DE AVNER, THE ECCENTRIC Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Teatro. Linha de pesquisa: Processos Formativos e Atuação Cênica BANCA EXAMINADORA: Profa Dra. Nara Keiserman (UNIRIO) (Orientadora) Profa. Dra. Ana Lucia Martins Soares (Ana Achcar) (UNIRIO) - titular Profa. Dra Juliana Jardim (USJT) - titular Profa. Dra Jacyan Castilho (UFBA) – suplente Prof. Dr. Paulo Merisio (UNIRIO) - suplente RIO DE JANEIRO 2011 3 AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Nara Keiserman pela generosa recepção ao convite de me guiar nesta pesquisa. Pela orientação cuidadosa, atenta e gentil com que me contemplou durante todo este tempo. Pela sua deliciosa gargalhada que animava as manhãs de ensaio. Pela amizade e o afeto. Pelos ensinamentos obtidos graças ao seu modo de pensar a pesquisa em teatro, sempre a aproximando da vida e calor que regem o palco, mas sem deixar de lado o necessário rigor acadêmico. À Flávio Souza que foi um dos meu primeiros professores de palhaço, para depois se tornar muito mais : amigo, colaborar artístico e companheiro na admiração infinda pelo trabalho de Avner. Obrigada ainda pelo olhar que dedicou à minha investigação prática, trazendo contribuições inestimáveis ao longo de todo o processo. À Profa Dra. Ana Achcar, por ter sido a primeira a vislumbrar a palhaça quando até para mim ela era apenas um aceno distante e por ter conduzido tão bem os meus primeiros passos nesse caminho torto. Agradeço também pela valiosa contribuição na banca de qualificação e por ter aceitado o convite de integrar a banca de defesa. Ao Prof. Dr. Angel Palomero, pelos ensinamentos adquiridos nos anos de trabalho ao seu lado e que ficam para toda a vida: o fortalecimento do lugar de artista-criadora e um inigualável modelo de ética e amor pelo teatro. Ao Prof. Dr. Paulo Merisio, por ter composto a banca de qualificação, trazendo questões fundamentais para o aprofundamento da pesquisa e por ter aceitado o convite para a suplência da banca de defesa. Obrigada também ao Monsieur, le professeur, pelos enriquecedores aprendizados em sala de aula. À Profa Dra. Juliana Jardim, por ter aceitado fazer parte da banca de defesa e pelas ricas trocas que já me proporcionou, através da leitura de sua produção a respeito do palhaço e do bufão. À Profa. Dra. Jacyan Castilho, por gentilmente ter aceitado o convite de compor a suplência da banca de defesa desta dissertação. À Da Guia, pelo permanente sorriso e disponibilidade para ajudar em qualquer coisa que se mostrasse necessário. 4 Aos companheiros de curso Paulo Trajano e Fernando Maatz, pelas trocas ao longo do processo. E a Ana Paula Brasil, Verônica Santos e Fabricio Moser pela amizade que formamos neste período e que certamente se estenderá muito mais. Por toda a ajuda no dia da apresentação do meu número de palhaça. Pelos dias em que dividimos as angústias do percurso acadêmico. Pelas noites em que rimos das angústias desse mesmo percurso. Aos palhaços que me acompanham (ou já acompanharam) nos erros, descobertas e gargalhadas: Catarina (Camila Nhary), Tubias (Pablo Aguilar), Batatinha (Filipe Codeço), Lindomar Delgado (Adriano Pellegrini), Custódio (Thiago Quites), Maricota (Mariana Fausto), Claudinei (Henrique Escobar), Matilde (Leticia Medella), Kassandra (Julia Sarmento) e Charlotte (Patricia Ubeda). Ao Filipe, agradeço mais ainda, por ter me emprestado sua câmera e ter passado todos os vídeos para DVD. E à Camila e ao Pablo pela amizade e carinho que os anos só fazem aumentar. À Paula Santos, pela doce amizade e por ter filmado a apresentação. Aos amigos Jean Bodin e Marc Cunha, pela revisão do abstract. À todos os palhaços cujos exemplos inspiradores me alimentam e divertem e em especial a Márcio Libar (Cuti-Cuti) e Ricardo Puccetti (Teotônio). Aos amigos que compreenderam a minha ausência neste período e que mesmo assim se mantiveram por perto. Em especial a Elsa, Verônica e Karen. Por tudo, tudo, tudo. Ao Zé. Pelos sorrisos, pelo incentivo, pelas conversas, e por muito mais. Aos meus pais, pelo apoio constante. Ao meu pai Joubert, agradeço ainda por ter sido meu primeiro mestre na arte de fazer rir e à minha mãe, Maria da Luz, pela doçura e força com que conduz os dias. E, em especial, agradeço à Avner Eisenberg, que deu sentido e razão de ser a toda esta trajetória de pesquisa. Agradeço não somente pelo grande palhaço e mestre que é, mas também pela generosidade e cuidado com que me acolheu desde o primeiro momento em que a ele me dirigi. Exemplo de palhaço e exemplo de ser humano. Porque está tudo junto mesmo. 5 A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá . Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam. Manoel de Barros (1998: 53) 6 RESUMO A Pesquisa está organizada em dois eixos que se entrecruzam. O primeiro deles é a análise da atuação do palhaço americano Avner, the Eccentric no espetáculo Exceptions to gravity, que é resultado do acúmulo de suas experiências ao longo de 38 anos de ofício. O segundo é o processo de criação de um número, que objetiva verificar de que maneira as questões levantadas se transformavam a partir da experimentação da pesquisadora, que também é palhaça. A análise tem como foco: princípios do palhaço; autoria e apropriação; relação com a platéia e técnica dos movimentos, definidos a partir da pedagogia aplicada por Jacques Lecoq, um dos principais mestres de Avner, na École Internationale de Théâtre. O número, denominado Balões!, foi documentado em DVD e é parte integrante da dissertação. Palavras-chaves:palhaço, autoria, apropriação, triangulação, relação com a plateia, movimento, triangulação. 7 ABSTRACT This research is organized in two axes that intersect. The first one is the analyses of the performance from American clown Avner, the Eccentric on the show Exceptions to gravity that results from the accumulation of his experiences of 38 years of work. The second one, is the creation process of a number, aimed to verify in which ways the issues raised were changed by the experimentation of the researcher, who is also a clown. The analyses focus: clown principles, authorship and ownership, relationship with the audience and movement technique, defined from the pedagogy applied by Jacques Lecoq, one of Avner´s masters, at École Internationale de Théâtre. The number, named Balloons!, documented on DVD, is part of the dissertation. Keywords: clown, authorship, ownership, check in with the audience, relationship with the audience, movement. 8 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO........................................................................................................10 INTRODUÇÃO.............................................................................................................15 CAPÍTULO 1 - E O PALHAÇO, O QUE É?..............................................................23 1.1 Princípios...................................................................................................................24 1.1.1 Lógica particular que se manifesta através do corpo.......................................25 1.1.2 Transformação da fraqueza pessoal em força cênica.......................................26 1.1.3 Subversão da ordem .......................................................................................27 1.1.4 Alternância entre façanha e fracasso...............................................................28 1.1.5 Erro e problema...............................................................................................30 1.1.6 Caráter universal e particular...........................................................................34 1.2 Autoria e apropriação.................................................................................................35 1.2.1 Transmissão do repertório clássico e comicidade pessoal..............................41 1.2.2 Autotradição e bricolagem...............................................................................44 1.3 Relação com a platéia................................................................................................45 1.3.1Respiração........................................................................................................46 1.3.2 Entrada............................................................................................................48 1.3.3 Triangulação....................................................................................................50 1.3.4 Voluntários.......................................................................................................52 1.3.4.1 Aikido...........................................................................................................55 1.3.5 Improvisação...................................................................................................58 1.4 A técnica dos movimentos.........................................................................................63 1.4.1 Ponto fixo.......................................................................................................63 1.4.2 Manipulação do Impulso...............................................................................66 1.4.3 Equilíbrio e desequilíbrio................................................................................68 1.4.4Oposições.........................................................................................................70 9 CAPÍTULO 2- E A PALHAÇA, O QUE FAZ?...................................................................73 2.1 Princípios............................................................................................................................74 2.1.1 Lógica particular que se manifesta através do corpo................................................75 2.1.2 Erro e problema.........................................................................................................76 2.1.3 Alternância entre o fracasso e a façanha...................................................................77 2.1.4 Exploração do grotesco.............................................................................................78 2.2 Autoria e apropriação..........................................................................................................80 2.2.1 Gags clássicas: precisão e técnica.............................................................................81 2.2.2 Apropriação de números do repertório de Avner......................................................82 2.3 Relação com a plateia.........................................................................................................86 2.3.1 Entrada......................................................................................................................87 2.3.2 Triangulação.............................................................................................................90 2.3.3 Voluntários................................................................................................................94 2.3.4 Improvisação.............................................................................................................96 2.4 Técnica dos movimentos.....................................................................................................99 2.4.1 Ponto fixo..............................................................................................................100 2.4.2 Manipulação do Impulso.......................................................................................102 2.4.3 Equilíbrio e desequilíbrio........................................................................................104 2.4.4 Oposições................................................................................................................105 2.5 A criação do número.........................................................................................................105 2.5.1 Metodologia............................................................................................................105 2.5.2 Procedimentos.........................................................................................................106 CONCLUSÃO.......................................................................................................................111 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................116 ANEXOS................................................................................................................................123 Anexo 1- Transcrição da entrevista com Avner Eisenberg.....................................................123 Anexo 2 - Princípios do palhaço, segundo Avner Eisenberg..................................................149 Anexo 3 - DVD Exceptions to gravity……………………………………………………………..150 10 CAMINHOS PARA UMA PALHAÇA: investigação a partir da obra de Avner, the Eccentric Apresentação Quando criança eu nunca sonhei em fugir com o circo, ainda que sempre tenha achado linda esta imagem. Além disso, associava o picadeiro muito mais aos números de risco do que aos dos palhaços. Lembro vagamente da sensação de medo e deslumbramento ao ver uma mulher, leve como uma pluma, voando acima da minha cabeça para se jogar nos braços de um homem que a segurava em pleno ar. Mas não guardo nenhuma lembrança especial relacionada aos palhaços, que passaram sem importância pelo meu mundo infantil. Talvez haja apenas uma exceção: aos cinco anos fiz uma festa de aniversário cuja temática era ―Lá vem o palhaço no meio da rua‖. Guardanapos, painéis decorativos, bolos e balões, em toda a parte havia figuras sorridentes com narizes vermelhos e grandes golas coloridas. Eu mesma estava vestida assim. Mas quem escolheu o tema foi minha prima mais velha, com quem dividia todas as comemorações devido à proximidade das datas de nascimento. Por mim teria sido, novamente, uma festa da Moranguinho. Iniciei a apresentação do presente estudo pela exposição destes fatos e memórias da minha infância para dizer que somente quando já era bem crescida, ao redor dos 20 anos, é que entrei de fato em contato com o universo do palhaço. Foi uma descoberta que, ainda que tardia, determinou a partir daí a condução do meu percurso artístico e, arrisco dizer, da minha vida. Num mundo que exige performances cada vez mais eficientes, seja do carro, do computador ou do próprio homem, é um alívio descobrir um lugar em que a glória está justamente na derrota, no não ser capaz. Foi este lugar que o encontro com o palhaço me revelou. Um lugar onde todas as inadequações e desajustes representam uma possibilidade de jogo, onde a melhor solução para um problema é assumi-lo e explorá-lo ao máximo, de preferência de modo a que ele gere um novo problema ainda mais interessante; onde é possível apresentar os seus aspectos pessoais mais ridículos e, junto ao público, rir deles; onde se pode inventar um mundo ao contrário, regido por leis particulares e que não tem nenhuma relação com aquelas que comandam o nosso dia a dia. E, talvez principalmente, onde o corpo é quem dita as regras. Aí sim, dá até vontade de fugir com o circo. Foi durante o Bacharelado em Artes Cênicas – Habilitação: Interpretação Teatral, cursado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, que iniciei o meu 11 contato com o universo do palhaço, graças a uma disciplina optativa denominada ―Jogo e Relação‖, ministrada pela Profa. Dra. Ana Lúcia Martins Soares (Ana Achcar). Depois de cursá-la, tive a grata oportunidade de integrar por aproximadamente três anos o Programa Enfermaria do Riso1, que prepara estudantes de Artes Cênicas para atuarem como enfermeiros-palhaços nas alas pediátricas de hospitais. O meu processo de descoberta do palhaço aconteceu de forma tranquila e prazerosa. Isto porque o que ocorreu foi o reconhecimento e aprofundamento de uma natureza que já se manifestava: eu sempre fui estabanada e ligeiramente desengonçada, precisando apenas de um belo vestido, um salto alto e uma ocasião especial para tomar o maior dos tombos, além ter a tendência a compreender as sentenças mais simples da forma inversa e acreditar ingenuamente em qualquer absurdo que me dissessem. O que até àquela época tinha visto como defeitos irremediáveis revelavam-se qualidades - eu era palhaça!- e em pouco tempo estava atuando em hospitais. Ainda que se apresentassem eventuais dificuldades, naturais dentro de qualquer percurso artístico, seguia em frente, sem maiores questionamentos sobre a minha prática. A rotina hospitalar, modificada pela presença subversiva do palhaço, representava para mim um lugar de jogo, experimentação e muito prazer. Obviamente havia situações desconfortáveis, dores, perdas. O hospital é um lugar de passagem, do qual todos sempre vão embora, na melhor das possibilidades porque se curaram e na pior porque faleceram. Mas havia, por outro lado, a confirmação constante da potência transformadora do riso provocado por aquele palhaço, um riso (...) que se coloca como jogo, como proposta exclusiva e somente voltada para o risível, sem qualquer preocupação de zombar do outro (...) um riso que provoca em nós, espectadores uma espécie de revitalização, de rejuvenescimento, de recarga de energia. (Bolognesi em http://www2.uol.com.br/parlapatoes/divirta/, acesso em 20 de Maio de 2011). É este o riso que eu procuro provocar ainda hoje. Ainda durante a formação no Programa Enfermaria do Riso participei em paralelo à atuação nos hospitais, da criação e atuação no espetáculo PalhaSOS, dirigido por Flávio 1 O Programa interdisciplinar de formação, ação e pesquisa Enfermaria do Riso foi criado em 1998 na UNIRIO. Coordenado pela Profa. Dra. Ana Achcar, da Escola de Teatro, e pelo Prof. Dr. Edson Liberal, da Escola de Medicina, o Programa tem como ações principais o estudo e a prática da atuação do palhaço no ambiente hospitalar. Atualmente o Programa atua no Hospital Universitário Gafrée e Guinle, Instituto Fernandes Figueira e Hospital da Lagoa, todos localizados na cidade do Rio de Janeiro 12 Souza, colaborador constante do Programa. O espetáculo buscava traduzir em cena a experiência vivida nos hospitais, apresentando o olhar do palhaço sobre aquele ambiente. Tratava de temas como assepsia, saúde, cura e perdas. Além, é claro, do relacionamento com enfermeiros, médicos, acompanhantes e, em especial, as crianças. O processo de criação e atuação no espetáculo evidenciou questões que nunca tinham se apresentado para mim durante o trabalho no hospital. Ficava de lado a atuação baseada principalmente no jogo com a criança ou com outra pessoa presente no ambiente hospitalar, e que acontece de maneira diferenciada a cada dia, ou melhor, a cada nova relação, para se sobrepor, na peça, o processo de construção de números, com a necessidade de formalização de uma estrutura que garanta o seu bom funcionamento, a cada apresentação. Foi neste momento que tive todas as dificuldades, dúvidas e crises que não me assolaram no início do contato com o palhaço. E foi assim que eu compreendi também que para se ser um bom palhaço é necessário muito mais do que uma pré-disposição natural para aquele universo. Ou seja, foi aqui que comecei realmente a entender a importância que o conhecimento técnico teria para a realização do meu ofício. Não que até então a minha prática tenha sido guiada a partir somente impulsos livres e talento natural. Pelo contrário, eu integrava um Programa de Formação, Extensão e Pesquisa, onde havia um treinamento constante que envolvia a participação em aulas práticas e seminários, elaboração de relatórios, entre outras atividades. Mas até então eu atuava basicamente num território que para mim era, e continua sendo, muito mais fácil, que é o da improvisação. O trabalho rigoroso de construção e repetição me fez aprimorar o pensamento e a compreensão sobre as relações de tempo-ritmo, triangulação justa com a plateia, limpeza dos movimentos, matemática do riso, entre outros. Em suma, foi com este espetáculo e as dificuldades que enfrentei na sua realização que surgiram os primeiros questionamentos sobre o meu fazer, que me acompanham até hoje e que certamente impulsionaram o desejo de realizar uma pesquisa de mestrado que tivesse a prática como espaço essencial de experimentação e descoberta. Ainda assim, faltava um norte investigativo mais firme. Foi então que eu conheci Avner, the Eccentric. Avner Eisenberg é um artista americano que possui longo percurso como palhaço e como professor. Vem se apresentando e ministrando oficinas em diversos países há mais de trinta e oito anos, ultrapassando com sucesso possíveis barreiras linguísticas e culturais. 13 Meu primeiro contato com a sua obra ocorreu em 2008, durante a 7° edição do Anjos do Picadeiro - Encontro Internacional de Palhaços2, onde tive a oportunidade de assistir ao seu espetáculo solo Exceptions to gravity. O meu encantamento por aquele senhor com aparência de avô bonzinho, mas capaz de equilibrar uma escada na ponta do queixo, foi imediato. Até hoje lembro com precisão o estado ao qual a sua atuação foi me conduzindo. Acostumada a assistir a outros palhaços com o olhar atento e analítico de quem realiza o mesmo trabalho e está sempre tentando entender em que medida o que está sendo feito pode trazer contribuições para o próprio percurso, neste caso esqueci-me deste lugar para simplesmente rir sem parar durante todo o show. Ao final, após alguns instantes de silêncio seguiram-se palmas efusivas, em meio às quais, grande parte do público enxugava os olhos. Por quê? Avner não utilizou nenhum recurso especialmente elaborado para conduzir-nos do riso às lágrimas, não houve nenhum lirismo especial para encerrar a noite. Ainda assim algo havia emocionado profundamente aquelas pessoas. Deixei o Teatro Carlos Gomes sem saber nomear a dimensão daquele acontecimento. Porém, estava certa de uma coisa: tinha assistido ao espetáculo mais marcante da minha vida. Passados alguns dias, a forte impressão causada por Avner continuava viva em minha memória. Nas conversas casuais ao longo do Encontro, era comum que o seu nome fosse efusivamente citado. Até que alguém que não pudera assisti-lo perguntou: ―Mas afinal, o que ele faz de tão fantástico assim?‖ Fiquei algum tempo emudecida tentando pensar numa resposta que pudesse satisfazer minimamente a curiosidade de meu interlocutor. Tentei escolher um momento especialmente interessante do espetáculo e descrevê-lo, mas o que eu poderia dizer? Avner fez pequenos malabarismos, fingiu engolir o pé de uma cadeira, comeu algumas folhas de papel, brigou com um pedaço de pano vermelho que teimava em não obedecer às suas ordens, equilibrou uma pena de ave na ponta do nariz e fingiu estar voando, fez alguns truques de mágica, relativamente conhecidos. Nenhuma destas descrições poderia dar conta do que o espetáculo é. Pude perceber, então, onde reside o fascínio provocado por sua obra. Avner, the Eccentric não faz nada de mirabolante, não exibe nenhuma ideia incrível e inédita. Mas todos os seus pequenos números, amarrados por uma linha dramatúrgica bem construída, são 2 Anjos do Picadeiro é um Encontro Internacional de Palhaços que acontece no Brasil desde 1996. Ele é realizado e produzido pelo grupo carioca Teatro de Anônimo, junto a parceiros que variam a cada edição. O Encontro reúne palhaços e pesquisadores desta área vindos de diversas partes do Brasil e do mundo. É um dos mais importantes espaços de diálogo, observação e reflexão sobre a arte da palhaçaria no país. 14 realizados com um conhecimento técnico tão apurado e ele conduz de forma tão sutil e generosa a sua relação com o público que toca profundamente o espectador. A excelência daquele palhaço me fez vislumbrar a possibilidade de, através da análise da sua atuação, desenvolver um caminho de pesquisa que pudesse trazer transformações e crescimentos na minha própria trajetória enquanto palhaça profissional, além de, a partir das reflexões estabelecidas, produzir um material de análise que interesse também a outros palhaços e pesquisadores. As sonoras gargalhadas que continuo dando mesmo ao assistir pela vigésima vez as imagens gravadas de seu show são a comprovação de que fiz a escolha certa. 15 Introdução Fonte: www.avnertheecentric.com, créditos indisponíveis Esta pesquisa se organiza a partir de dois eixos centrais. No primeiro deles, está a análise de Exceptions to gravity e no segundo a investigação ocorrida durante o processo de criação de um número, Balões!, que tinha por objetivo verificar de que maneira as questões levantadas se transformavam quando eu as experimentava. Estes dois trabalhos aconteceram em paralelo, fornecendo elementos constantes de troca e reflexão. Uma vez que Exceptions to gravity é o ponto que originou e deu sentido a todo este projeto de pesquisa, exponho um breve resumo do percurso artístico que conduziu Avner à formulação deste show. Em seguida, apresento a estrutura de escrita da Dissertação e as principais fontes utilizadas ao longo da pesquisa. Ao ser perguntado sobre há quanto tempo realiza o espetáculo, Avner sempre responde com a quantidade de anos em que vem trabalhando como palhaço. Isso confirma que Exceptions é resultado do acúmulo de experiências e apuramento de uma linguagem oriunda de aproximadamente trinta e oito anos de ofício. Ali se conjugam os principais números que ele foi desenvolvendo ao longo dos anos, assim como os conhecimentos que foi somando à sua experiência. Assim, torna-se imprescindível para a posterior análise deste espetáculo a apresentação da trajetória artística de Avner Eisenberg, onde destaco alguns dos pontos que foram fundamentais para que chegasse à formulação do espetáculo que realiza atualmente. 16 Este artista formou-se em Teatro na Universidade de Washington, em 1971. Nessa época, tinha grande interesse na Pantomima, que já vinha realizando, ainda que sem conhecimentos técnicos focados especificamente nesta área. Buscando aprofundar seus estudos, viaja para a França. Sua pretensão inicial era estudar com Marcel Marceau, mas não conseguiu contatá-lo, acabando por direcionar-se à École Internationale de Théâtre, fundada por Jacques Lecoq em 1956. Depois de iniciar ali sua formação, teve a dimensão do potencial pedagógico daquele trabalho, cujos ensinamentos o acompanham até hoje, não só no que se refere ao movimento, mas também à comunicação com o espectador. Em uma entrevista dada a Christopher Lueck em 2011, Avner afirma que o trabalho proposto na École de Mime, fundada por Étienne Decroux, para onde muitos dos seus colegas migraram, ainda que tivesse uma exigência corporal mais forte é, em certo sentido, mais fácil do que o proposto por Lecoq, uma vez que ―Decroux havia tomado certas decisões a respeito do que era beleza e o que não era. Enquanto que a escola de Lecoq era um espaço de constante investigação sobre o que comunica e o que não.‖ 3 (Eisenberg apud Lueck, 2011: 55, tradução minha) Tal colocação, ainda que um tanto radical, confirma a importância que tem para Avner a investigação do que potencializa o estabelecimento da relação com o público, sendo tema constante de seus estudos até hoje. Outro mestre extremamente importante na sua trajetória foi Carlo Mazonne-Clementi, o qual teve contato direto com alguns dos maiores nomes do teatro europeu durante os anos 50 e 60. Estudou com Étienne Decroux, trabalhou com Marcel Marceau, foi assistente de Jacques Lecoq e atuou com Dario Fo e Franca Rame no Teatro Piccolo de Milano. Ao retornar aos Estados Unidos foi um dos grandes responsáveis pela introdução no país do estudo da Commedia dell'Arte. Em 1971, fundou a Dell'Arte School of Physical Comedy, onde Avner lecionou. Localizada na Califórnia, esta foi a primeira escola de Comédia Física dos Estados Unidos, tendo sido dirigida por ele até a sua morte, em 2000. Com uma formação de dois anos, até hoje é reconhecida como uma das principais Escolas de Teatro Físico e Comédia da América. A importância dos mestres na trajetória de Avner confirma-se na seguinte frase, em que demonstra sua gratidão a: ―Lecoq que me ensinou tudo que eu sei, e Carlo, que me ensinou o resto'.‖ 4 (www.avnertheeccentric.com, acesso em 10 de Maio de 2010, tradução minha) Segundo Avner, Lecoq passou-lhe todos os conhecimentos técnicos sobre o 3 ―Decroux had made certain decisions on what was beautiful and what was not, and Lecoq School was at constant research for what communicated and what didn't.‖ 4 ―'Lecoq, who taught me everything I know, and Carlo, who taught me the rest.‖ 17 funcionamento do corpo que seriam essenciais para o resto do seu trabalho. E Carlo transmitiu-lhe outro ensinamento fundamental: em cena o mais interessante não é o que você sabe, mas sim a maneira como lida com o que ainda não conhece. No início da carreira, Avner realizava o seu espetáculo com muita freqüência, em qualquer tipo de lugar para onde fosse convidado a se apresentar. ―Por anos, eu fiz de quatro a seis shows por dia e participei de dois a três Festivais por ano - e a cada Festival eu podia estar junto a outros performes.5‖ (Eisenberg apud Lueck, 2011: 56, tradução minha). Este foi um período muito importante, na medida em que possibilitou a avaliação constante da eficácia de sua comunicação com o público e o rápido aperfeiçoamento de sua atuação. Tanto que um dos conselhos que transmite aos seus jovens aprendizes é que busquem se apresentar o maior número de vezes que puderem, não importa onde nem sob que circunstâncias, pois existe um tipo de conhecimento que somente se adquire pela prática e com a presença do público. Nos festivais, os encontros com performes cujos trabalhos apresentavam linguagens artísticas afins possibilitou um crescente intercâmbio, que culminou em alguns espetáculos realizados em conjunto e no apoio mútuo para a viabilização de novas apresentações e temporadas. Os performers eram: Avner, the Eccentric, Penn and Teer e os Flying Karamazov Brothers. Estes grupos foram sendo progressivamente reconhecidos até chegarem a realizar temporadas de sucesso de público e crítica na Broadway, fomentando a expansão de um novo gênero, que ficou conhecido como New Vaudeville. Tal nomenclatura específica se deveu ao fato de que, ainda que se aproximassem do modelo clássico de vaudeville, na medida em que utilizavam teatralmente recursos como mágica, palhaçaria, malabarismo e acrobacia para a criação de espetáculos cômicos, se diferenciavam por serem apresentações de longa duração. Como ator, Avner realizou outros espetáculos, entre os quais destaco Esperando Godot, que apresentou em diversos momentos de sua vida em produções regionais e no qual desempenhou, em momentos diferentes, tanto o papel de Vladimir quanto o de Estragon. A última montagem deste espetáculo da qual participou foi em 2000, com direção de Michael Schwartz. As longas temporadas desta peça e seu grande interesse pela obra de Beckett influenciaram profundamente a temática de seu show, que também trata da espera por algo que nunca chegará, tema caro ao escritor. O sucesso de sua primeira temporada solo na Broadway, com o show então denominado Avner, the Eccentric, rendeu-lhe o convite para participar do filme A Jóia do 5 ―For years, I was doing four to six shows a day at two or three Ren fairs a year – and at each fair, I would get together with other performers‖. 18 Nilo6, onde desempenha de forma hilariante o papel da jóia. Avner integrou como ator mais algumas produções audiovisuais, mas o crescente sucesso de seu trabalho solo fez com que se afastasse deste campo de atuação, para se dedicar ao universo do palhaço e ao ensino. A partir de 1986, Avner começou a ser convidado para participar de diversos Encontros e Festivais internacionais de palhaço, mágica e Comédia Física. O sucesso de suas apresentações levava a convites para novos eventos. Até hoje, é desta maneira que sua carreira prossegue. Já se apresentou e ministrou oficinas em mais de vinte países, como Singapura, Brasil, Israel, Finlândia, Fiji, Rússia e Japão. É válido destacar que, além da qualidade inegável do seu trabalho, outro fator que contribui para que receba tantos convites internacionais é o fato deste palhaço se comunicar o tempo inteiro sem dizer uma única palavra. Para além do visível interesse artístico que Avner sempre teve na Pantomima, o seu espetáculo se organiza desta maneira também porque ele vislumbrou a possibilidade de ter uma carreira muito mais profícua fora do seu país de origem, o que o levou a desenvolver um espetáculo sem falas e com um tipo de humor que independe de diferenças culturais. Tal decisão foi tomada após a observação da discrepância existente na relação com o Teatro nos Estados Unidos e na Europa, relativa tanto à quantidade de público quanto à importância dada pelos órgãos governamentais para a Arte, que se reflete nas verbas para festivais, eventos e outros estímulos. ―Quando eu atuo em festivais e teatros na Europa muitas vezes sou pago pela própria cidade (…) A definição deles de governo é um governo que faz a vida de seus habitantes melhor. E nós voltamos para a nossa cidade e eles dizem: Bem, nós não damos suporte à arte. E eu digo: O que vocês fazem? E eles dizem: bem, segurança pública, recolhimento do lixo e todas essas coisas realmente incríveis. Mas eles realmente não alcançam o sentido de que dar suporte às artes é uma maneira de fazer a vida das pessoas melhor.‖ 7 (Eisenberg apud Lueck, 2011: 54, tradução minha) Assim, a maneira como o espetáculo se estrutura está fundada não apenas em opções artísticas ou conceituais, mas também de ordem econômica e política, que aparecem na clara escolha por uma comunicação universal tanto no que diz respeito à linguagem quanto ao tipo de humor desenvolvido, que garante ao artista poder se apresentar e se comunicar em qualquer lugar do mundo. Este pensamento de Avner se expande até a sua prática pedagógica. 6 Jóia do Nilo (1985) foi dirigido por Lewis Teague e roteirizado por Mark Rosenthal, Lawrence Konner e Diane Thomas. 7 When I play festivals and theaters in Europe, I‗m most often paid by the city itself. (…) Their definition of government is government that makes the lives of its inhabitants better, and we went to our city, and they said, ―Well, we don‗t support the arts, that‗s not our job. And I said, ―What do you do? And they said ―Well, Homeland Security—pick up garbage, and all that really sexy stuff. But they really have no sense of supporting the arts as a way to make the lives of people better. 19 Ele sempre incentiva seus alunos a desenvolverem, na medida do possível, espetáculos que não sejam dependentes da fala para que possam ter a chance de seguir uma carreira internacional. (Eisenberg apud Lueck, 2011: 55) Nos Festivais de que participa Avner habitualmente realiza a oficina Eccentric Performing Workshop. Além disso, há mais de vinte anos a ministra em conjunto com sua esposa, Julie Goell, no Celebration Barn Theatre, em Maine. Os seus procedimentos pedagógicos derivam da análise do espetáculo e estão em permanente processo de aprofundamento e redescoberta. Por exemplo, para encontrar respostas mais ricas para um dos temas que mais o instiga, que é a comunicação com a plateia, Avner passou a desenvolver estudos de Neurolinguística e Hipnose, sendo hoje especialista em ambas as áreas. Os conhecimentos nestes dois campos trouxeram elementos que contribuíram para que entendesse melhor a prática que já realizava, de modo a poder transmiti-la a outros palhaços e artistas.8 Avner pratica Aikido, arte marcial japonesa não competitiva e aumenta constantemente seus conhecimentos de Mágica em novos cursos. É Diretor Artístico do Festival de Comédia Física Phyzgig, que acontece anualmente entre o Natal e o Ano Novo em Portland, onde mora, com o objetivo de estimular o encontro entre artistas e fomentar a produção dos novos artistas da sua região. Quando não está viajando a trabalho, este palhaço volta para a sua casa numa pequena ilha próxima a Portland, onde passa o tempo fazendo nada, prática que pode ser observada no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=Gwua T0Cwv Q&feature=related Iniciei o trabalho prático, tematizado no capítulo 2, quando alguns princípios básicos de Exceptions to gravity estavam suficientemente claros, de modo que pudessem nortear efetivamente a construção de um número, garantindo assim a conexão entre as duas investigações. E, ao iniciar essa experiência, tive certeza de que a melhor maneira de conduzilo seria permitindo que houvesse uma real contaminação entre a análise que vinha desenvolvendo do espetáculo de Avner e o processo de criação. Os modelos oferecidos por Teses e Dissertações que utilizaram Laboratórios Experimentais, como as do Prof. Dr. Paulo Merísio, Um estudo sobre o modo melodramático de interpretar: o circo-teatro no Brasil nas décadas de 1970-1980 como fontes para laboratórios experimentais e da Profa Dra. Elza de Andrade, Mecanismos da Comicidade na 8 Ainda que a transmissão dos saberes venha ocupando um espaço cada vez maior na prática artística de Avner, não me deterei neste ponto, para manter o foco investigativo na sua atuação, através da análise de Exceptions to Gravity. 20 construção do personagem: propostas metodológicas para o trabalho do ator, para citar os que apresentam afinidades temáticas com minha pesquisa, foram contribuições fundamentais para o meu trabalho. A diferença é que estes pesquisadores atuaram observando e direcionando os Laboratórios, mas não foram os atores destes mesmos processos. No meu caso, era clara a necessidade de interlocutores que pudessem contribuir com outros olhares para o processo de criação do número. Este diálogo foi feito com a minha orientadora Profa. Dra. Nara Keiserman e com o Me. Flávio Souza, que realiza agora seu doutoramento nesta Universidade, tendo também Avner como um dos objetos de estudo. Essa Dissertação está estruturada em Apresentação, Introdução, Capítulos 1 e 2, Conclusão e Anexos. O capítulo 1, ―E o palhaço, o que é?‖ é dedicado à análise de Exceptions to gravity e o segundo, ―E a palhaça, o que faz?‖, à reflexão sobre a forma como está análise de desdobra na minha prática, a partir do processo de criação de um número. A análise de Exceptions to gravity se dá a partir de quatro pontos principais: princípios do palhaço, autoria, relação com a platéia e técnica dos movimentos. Estes pontos foram definidos tendo por base a metodologia aplicada na École Internationale de Théâtre, de Jacques Lecoq, cujo percurso pedagógico é guiado por três caminhos que se entremeiam ao longo de toda a formação: a improvisação, a técnica dos movimentos e o auto-cours, onde os alunos têm a oportunidade de desenvolver suas próprias criações a partir de temáticas sugeridas pelos professores, e em consonância com os tópicos abordados nas aulas. Avner cursou esta escola e até hoje aponta Lecoq como um dos pilares de sua formação. O aprofundamento do estudo sobre o trabalho deste que é um dos principais mestres do Teatro Físico no mundo (Romano, 2008: 49) fez- me perceber que seu modelo pedagógico poderia oferecer um interessante procedimento metodológico para essa pesquisa, feitos os ajustes necessários. A mudança mais significativa é que ao invés da improvisação, tenho como tópico de análise a relação com a plateia, devido à importância central que essa tem para Avner, oferecendo um campo rico de investigação, onde posso incluir as questões relativas à improvisação. A partir da observação das idéias e da atuação de Avner estabeleci e analisei princípios relativos tanto à criação quanto à atuação do palhaço, pelos quais inicio o primeiro capítulo. São estes: lógica particular que se manifesta através do corpo, transformação da fraqueza pessoal em força cênica, subversão da ordem, alternância entre façanha e fracasso, exploração do erro e do problema e caráter universal e particular. Cada um deles é discutido a partir do diálogo com outros pensadores e artistas e exemplificado através de momentos de Exceptions to gravity. 21 No segundo ponto da análise, autoria e apropriação, proponho-me a investigar qual é o processo realizado por Avner que garante a manutenção de um caráter autoral, mesmo ao trabalhar com estruturas clássicas. Esta discussão levou a outras questões importantes que também são exploradas, como o processo de transmissão do conhecimento por mestres da palhaçaria, a autotradição e a bricolagem, aspectos característicos do ator cômico apontados pelo semiólogo Marco De Marinis e que também podem ser observados na atuação de Avner. Já na relação com a plateia, investigo pontos centrais para a compreensão da maneira como Avner trabalha e desenvolve a relação com o público, tão importante para a sua atuação. Discuto: o controle da respiração do público, técnica utilizada por Avner ao longo do espetáculo; a entrada do palhaço, momento fundamental da atuação e que pode determinar todo o desenrolar do show; a triangulação, regra cômica fundamental ao jogo do palhaço; a utilização de voluntários e a importância do Aikido como aprimoramento técnico para esta utilização; e a improvisação. No quarto ponto, a técnica dos movimentos, busco entender em que medida o conhecimento das suas principais leis pode contribuir para a criação da Comédia Física, tão bem trabalhada por Avner em sua atuação. As questões abordadas em cada um dos pontos se relacionam e complementam, gerando discussões em comum. A divisão metodológica selecionada serve à elaboração de um pensamento estruturante dos conteúdos acionados pela análise do trabalho de Avner. O segundo capitulo segue a mesma divisão metodológica do primeiro. Princípios do palhaço, autoria, relação com a platéia e análise do movimento são discutidos agora a partir da minha experiência prática, que se dá através do processo de criação de um número, cujo resultado, documentado em DVD, é parte integrante da Dissertação. Inclui- se apenas mais um subitem, onde desenvolvo questões mais específicas do processo de criação, como a metodologia utilizada para o seu desenvolvimento. Na conclusão, abordo a maneira como a análise da atuação e do posicionamento artístico de Avner forneceram elementos que me levaram a redimensionar o meu próprio fazer. Aponto ainda as possibilidades de desdobramentos da pesquisa em novos caminhos, incluindo a continuidade de realização do número, percebido como embrião para um possível espetáculo, e uma investigação a respeito de procedimentos formativos para o palhaço a partir da pedagogia desenvolvida por este mestre. Tenho como fontes primárias fundamentais dessa pesquisa um DVD com a filmagem de Exceptions to gravity realizada pelo Teatro de Anônimo no mesmo dia em que o assisti pela primeira vez, e trechos de espetáculos anteriores disponibilizados pelo próprio Avner em seu 22 site9, bem como fotos encontradas em variados endereços eletrônicos. Este palhaço tem um cuidado muito grande em documentar, catalogar e tornar acessível o material que foi produzido a seu respeito, e o seu site, onde encontrei entrevistas, críticas e matérias publicadas em diversos países do mundo, representa uma importante fonte de pesquisa. Além disso, o fato da transmissão de conhecimento a outros palhaços e estudantes ocupar papel central em sua vivência artística, faz com que ele já há muito tempo venha elaborando conceitos e princípios da atuação, que servem de base para os workshops que ministra ao redor do mundo, e que também estão disponibilizados nesta mesma página virtual em diversas línguas, entre elas o português, em versão traduzida por mim, a seu pedido. Os seus textos ―Os princípios do palhaço‖ e ―Trabalhando com voluntários‖ representam importante contribuição para a minha elaboração teórica na análise do espetáculo. Avner também disponibiliza algumas referências bibliográficas, tanto de livros diretamente relacionados ao Palhaço quanto a respeito de Mágica, Aikido, Neurolinguística e Hipnose, outros campos do conhecimento que, segundo ele, o fizeram compreender melhor a prática que já realizava. Alguns dos livros por ele indicados na sessão relativa ao Palhaço foram adotados na bibliografia desta pesquisa. Ainda pesquisando na internet, encontrei outras entrevistas realizadas ao longo dos últimos 30 anos e um ebook que reúne entrevistas dos principais clowns americanos da atualidade, Avner Eisenberg entre eles. Destaco como fonte de pesquisa a entrevista que realizei com ele durante sua participação no Risadaria, evento de humor que aconteceu em São Paulo em Março de 2011 e que consta como Anexo desta dissertação. O processo de elaboração do meu número, Balões!, foi registrado num caderno de anotações, onde relatava os principais objetivos do trabalho e a maneira como eles se desdobraram na cena. Este material também foi utilizado como fonte primária na pesquisa, bem como as fotos de Balões! realizadas por Rany Carneiro no dia de sua apresentação. 9 www.avnertheeccentric.com 23 CAPÍTULO 1 - E O PALHAÇO, O QUE É? Fonte: http://malditotransgressor.blogspot.com, créditos indisponíveis Avner trabalha sem nariz vermelho. Também não utiliza a tradicional maquiagem branca e vermelha, nem tem grandes sapatos ou roupas desproporcionais ao seu tamanho. Levando-se em conta apenas os aspectos exteriores de sua figura, poderia passar simplesmente por um senhor de aparência respeitável. No entanto, é preciso apenas que comece a sua atuação para não deixar dúvidas de que se trata de um palhaço. Neste capítulo, o seu show Exceptions to gravity será analisado a partir de três eixos centrais: autoria e apropriação, relação com a plateia e técnica dos movimentos. O desenvolvimento deles ajudará a clarear aspectos centrais da atuação do palhaço, que permitem que Avner seja reconhecido como tal, mesmo sem os elementos acima apontados. Antes disso, no entanto, mostrou-se necessário o desenvolvimento de um item dedicado ao levantamento de alguns princípios fundamentais ao palhaço. Este foi considerado, ao longo de toda a pesquisa, sob a perspectiva de Lecoq, que denominou o nariz vermelho como ―a menor máscara do mundo‖. (2011: 214) 24 O palhaço povoa as mais diferentes culturas ao longo de toda a história da humanidade. Desde o homem das cavernas até uma tribo contemporânea de índios hotxuás, sempre foi necessária a presença desta figura transgressora, que ocupa o papel do risível, expondo e rindo do próprio ridículo e permitindo assim que os outros façam o mesmo. O palhaço ri com o outro. Coloca em evidência, de forma exagerada, sua própria imperfeição. É um riso provocado no corpo todo, livre (se possível) de qualquer aspecto moral. Um palhaço é um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na guilhotina e que se expõe nu em sua tolice e estupidez. O palhaço é diferente do comediante. Ele não conta uma história engraçada. Ele é a graça, ele é o risível. A torta bate primeiro no seu rosto, o pé encontra a sua bunda e o tapa, a sua cara.‖ (Castro, 2005: 257). Ainda que seja possível estabelecer uma tipologia do palhaço, apresentando as diferenças existentes a partir de pressupostos como, por exemplo, tipo e local de atuação, função desempenhada no grupo social a que pertence ou contexto histórico, acredito que esta não seja tarefa da presente pesquisa. Não por um esgotamento do tema, ainda que vários pesquisadores já tenham se dedicado a ele10, mas sim porque esta efervescente discussão, para ser bem desenvolvida, me desviaria da questão central do presente estudo. Uma vez que o meu interesse está primordialmente na atuação de Avner Eisenberg, escolho pensar o palhaço tendo por base os elementos presentes no seu trabalho, em particular Exceptions to gravity, no qual o seu pensamento sobre o palhaço aparece claramente. 1.1 Princípios Apresentarei a seguir alguns princípios11 fundamentais que regem a atuação de Avner e servem de base também para a minha própria prática investigativa. Não espero chegar a um manual sobre o que o palhaço é, especialmente pela certeza de que este seria o caminho onde mais facilmente poderia desviar-me do meu objetivo, deixando escapá-lo entre os dedos na tentativa sempre vã de agarrar, nomear e classificar. Vou ater-me à discussão de alguns dos aspectos que considero fundamentais para a criação e a atuação do palhaço, a partir da observação do modo como estão presentes nas ideias e na performance de Avner. Como já anunciados na Introdução, nomeio a lógica particular que se manifesta através do corpo; a transformação da fraqueza pessoal em força cênica; a subversão da ordem; a alternância entre 10 Como exemplos é possível citar ―Palhaços‖, de Mario Fernando Bolognesi, ―O Elogio da Bobagem‖, de Alice Viveiros de Castro e ―Les Clowns‖, de Tristan Rémy. 11 11 Avner também estabeleceu 16 princípios do palhaço, que foram publicados em http://www.avnertheeeccentric.com/eccentric_principles_portuguese.php e constam como anexo desta dissertação. 25 façanha e fracasso; a exploração do erro e do problema; o caráter universal e particular. 1.1.1 Lógica particular que se manifesta através do corpo Penso o palhaço não como um personagem que exista à priori, mas sim como uma figura desenvolvida a partir do reconhecimento e expansão da lógica pessoal de cada um, que se revela através do corpo. De fato, antes de se tornar um personagem, o palhaço é uma visão de mundo. Ele se organiza numa lógica particular que olha, pensa e realiza a realidade num sentido que lhe é autêntico, único e original. Não se pode separar o palhaço da pessoa, o criador, pois se trata dele mesmo, apenas revelado numa espécie de segunda versão da própria existência. (Achcar, 2007: 106). Assim, evidencia-se um olhar que entende que o palhaço existe somente a partir de cada um, o que garante a individualidade e originalidade de sua atuação. Este tipo de abordagem encontra ligação direta com os pensamentos de Jacques Lecoq. Os estudos deste mestre, que compõem o último módulo de formação da École, intitulado ―À procura do seu próprio clown‖, foram muito importantes não só na França, alcançando eco em diversos países do mundo, inclusive no Brasil. A lógica pessoal de cada palhaço é revelada a partir do corpo, lugar onde se concretizam pensamentos e ações. O clown12 não diz poema, não faz um poema, ele 'é' um poema. Ele é com o seu corpo como o autor é com a linguagem. Para ele, o corpo, essa confusão de músculos, de nervos e de pele é a linguagem, dá à luz o poema encarnado, a presença única de seu corpo. (Cervantes, 2001:1) Destaco neste texto a palavra ―encarnado‖ utilizada aqui no sentido mais próximo da matéria: feito carne. O palhaço é o poeta da carne e é exclusivamente pela sua pele, pelos seus ossos, pelo seu corpo, enfim, que podemos chegar próximos de um entendimento que clarifique o que ele é. Em consonância com esta abordagem, apresento um pensamento do palhaço e pesquisador Ricardo Pucetti sobre a mesma questão: O palhaço não tem psicologismos, sua lógica é física: ele pensa e sente com o corpo. Ele é um ser que tem suas reações afetivas e emotivas todas localizadas em partes precisas de seu corpo, ou seja, sua afetividade e seu pensamento transbordam pelo corpo. (Puccetti in Magri, 2008: 110) Tive a oportunidade de realizar o curso ―O palhaço e o sentido cômico do corpo‖, ministrado por Puccetti e um dos trabalhos que mais me chamou a atenção ali foi o de percepção dos ―gestos-em-fuga‖, noção que encontra ressonância com as questões agora 12 Não estabeleço, nesta pesquisa, uma diferenciação entre as nomenclaturas palhaço e clown, acreditando que a primeira é simplesmente a tradução para a nossa língua da segunda e que, portanto, é a que deve ser a adotada. Mantenho a palavra em inglês apenas nas citações de textos que assim a utilizam. 26 abordadas. Este professor conduz os alunos a determinadas situações de desconforto ou de cansaço extremo onde o corpo ―deixa escapar‖ gestos muito pessoais. Quando um estudante realiza um destes gestos, Puccetti o destaca, de maneira que possa ser reconhecido e armazenado para chegar a formar o seu repertório pessoal. ―O clown surge à medida que vai encontrando, ampliando e codificando suas ações físicas.‖ (Burnier, 2001: 218). Avner, ao ser solicitado a comentar a respeito desse tema, afirma que (...) a maneira como você reage fisicamente a certos estímulos começa a definir o seu caráter, mais do que decidir que o meu caráter vai ser isso, isso e isso. O que tende a criar um caráter rígido que não tem muitas opções. O palhaço é uma pessoa que tem muitas opções (...)‖13 (Eisenberg apud Lueck, 2011: 60, tradução minha) Assim, a lógica particular do palhaço manifestada através do corpo permite um leque de possibilidades de trabalho muito maior do que o levantamento intelectual de determinadas características, baseadas em aspectos psicológicos ou mesmo comportamentais. Os ―gestos pessoais‖ podem sinalizar determinados aspectos individuais do palhaço e levar a um caminho de trabalho muito mais concreto, em que o palhaço tem a oportunidade de trabalhar de forma mais ampla, ―transitando por diferentes territórios criativos e tendo como guia as multiplicidades que atravessam sua forma singular de (des)ajuste ao mundo‖. (Matos, 2009: 62) 1.1.2 Transformação da fraqueza pessoal em força cênica O palhaço sempre trabalha com a exposição do seu ridículo, daqueles aspectos a princípio mais inadequados, desajustados de sua existência. Pernas finais demais, peitos excessivamente grandes ou até mesmo uma dificuldade de entendimento das proposições mais simples são qualidades para o palhaço, pontos positivos que merecem ser destacados e exibidos para fazer o público rir: ―(...) é justamente esse nosso lado, esquisito, torto e feio que é a fonte mágica do risível.‖ (Libar, 2008: 108) Observa-se, assim, a transformação de uma fraqueza pessoal em força cênica. Este ponto é de vital importância durante o processo de descoberta do palhaço. ―Quanto menos o ator se defende por trás de um personagem, deixando-se surpreender pelas suas próprias fraquezas, mais ele contribuirá para o aparecimento do seu palhaço.‖ (Lecoq, 1997: 154) Ou seja, o processo de surgimento do palhaço exige o desvelar dos ―defeitos‖ que passamos a vida tentando disfarçar, na tentativa quase sempre vã de sermos perfeitos, bons, inteligentes, 13 ―(...) how you react to certain stimuli starts to define your character, rather than deciding that my character‗s going to be this and this and this. That tends to create a rather rigid character who hasn‗t got many options. Clowning is a person that has lots of options,‖ 27 fortes. Mas depois que o aprendiz vivencia este processo de aprendizagem descobre que há um lugar onde suas imperfeições podem se revelar qualidades. Quando vai para a cena, elas provocam gargalhadas do público, revelando o potencial intrínseco de comunicação na exposição da fraqueza pessoal. É o que revela Avner: Eu estava em uma temporada num teatro de Paris por três meses, torci alguma coisa e comecei a mancar. Foi terrível. O diretor do teatro veio e perguntou: ―O que nós vamos fazer? Você vai poder fazer o show?‖ Eu disse: ―Ah, é claro.‖ e ele perguntou: ―Como?‖ e eu respondi: ―Bom, o meu show é baseado em pessoas rindo da desgraça dos outros. Se a pessoa é grisalha e velha e manca, é ainda mais engraçado‖.14 (Avner apud Hurwitt, 2005:1, tradução minha) A força que tem para a atuação do palhaço a exposição da sua fraqueza está justamente no fato de que ele não está zombando de ninguém, a não ser, exclusivamente, dele próprio, liberando o público para, por uma via indireta, rir de si mesmo. Afinal, ―ao rir-se do outro, sempre se ri um pouco de si mesmo.‖ (Pavis, 2003: 59) Acho que existe um princípio realmente importante no teatro, que é o de que você tem que ser alguém com quem a plateia possa ter uma relação de empatia. Você sabe a relação entre simpathy e empathy15? Simpathy é quando a plateia olha e diz ―Ah, sim, coitado...‖ e empatia é quando a plateia olha e diz ―Oh, eu sei, eu entendo como essa sensação é‖. E a empatia é a reação mais forte. É quando nós sentimos o que a pessoa sente. E isso acessa as conexões dos neurônios do nosso cérebro, provocando uma sensação de bem-estar. (Avner, entrevista para a autora, em anexo) 1.1.3 Subversão da ordem A lógica através da qual o palhaço organiza suas ações é determinada por sua visão de mundo, que se organiza de forma particular. De acordo com a pesquisadora Juliana Jardim ―o palhaço vê o mundo pelo avesso enquanto revela o avesso do ator que veste a máscara. A lógica que conduz suas ações dá novas funções ao mundo ao seu redor‖. (Jardim, 2002: 27) Assim, o palhaço vai organizar sempre suas ações de uma maneira subversiva em relação à ordem natural das coisas. Em determinado momento do espetáculo, o chapéu de Avner, objeto de que faz uso constantemente, vai parar no alto de um cabo de vassoura, que ele segura com uma das mãos. Depois de procurá-lo exaustivamente à sua volta, Avner percebe a localização e divide com o 14 ―'I was in Paris at a theater for three months, and I sprained something and I started limping around.' Avner says. 'It was terrible. And the director of the theatrer came and said, 'What are we going to do? Can you do the show'I said 'Oh, of course.'He said, 'How?' I said, 'Well, my humor is based on people laughing at the misfortunes of others. If that persons is gray and old and limping, it's just more funnier.'‖ 15 Optei por manter as duas palavras na língua original porque simpathy, normalmente traduzida como simpatia, abarca um sentido mais amplo em Inglês, sendo sinônimo de compaixão. Já empathy poderia ser traduzida somente como empatia. 28 público a descoberta. A solução mais natural agora seria abaixar o braço e simplesmente retirar o chapéu do cabo de vassoura. Mas tal ideia nem passa pela cabeça deste palhaço. Ele estica o outro braço para tentar alcançar o chapéu, mas cada vez que o faz mexe também a mão direita, que segura o cabo, mantendo-o igualmente afastado. Depois de medir a altura a que o chapéu encontra-se de si, naturalmente grande, uma vez que ele está em cima do cabo, acha nova solução: concentra-se, prepara-se, flexiona os joelhos e... pula! Mas o cabo também pula e o chapéu continua inalcançável. Gargalhada geral. Nova solução: Avner sai de cena e volta com uma cadeira, na esperança de que em cima dela, por estar mais alto consiga finalmente recuperar o seu objeto. A plateia ri e aplaude ao observar a lógica pessoal que rege a ação e que é levada às ultimas consequências. Já em cima da cadeira, ao tentar se aproximar do chapéu Avner pisa no encosto da mesma, levando-a ao chão. A plateia se assusta, mas ele sai ileso e sequer cai. Porém, o chapéu continua no alto do cabo de vassoura. Finalmente, surge uma solução: Avner equilibra o cabo de vassoura na sua testa, com o chapéu lá em cima e com um movimento rápido e preciso da cabeça provoca a queda do cabo, levando o chapéu a se encaixar perfeitamente na sua cabeça. Aplausos gerais! Descrevi este número porque ele me parece bastante revelador dessa capacidade do palhaço de criar uma lógica pessoal que subverte o sentido natural dos acontecimentos. É importante destacar que esta subversão acontece a partir da relação estabelecida com o público. O palhaço não reinventa um mundo sozinho, ele reinventa em relação. Em nenhum momento a plateia se cansa da maneira como Avner lida com o problema que criou e pensa ―ele precisava apenas abaixar a mão‖. Nós embarcamos naquela lógica que ele estabeleceu e se, no final, o público aplaude é porque ele conseguiu uma solução para o problema que respeita toda a visão da situação que foi estabelecendo. Se depois de todo o esforço precedente ele simplesmente se desse conta do quão fácil seria apenas abaixar o braço e pegar o chapéu, ainda que conseguisse finalizar sua saga, estaria quebrando a lógica que nos colocou e a qual aderimos e respeitamos. Mas não, Avner descobre uma maneira de resolver a questão, em que reafirma a visão subversiva do mundo que desde o início estabeleceu. 1.1.4 Alternância entre façanha e fracasso A alternância entre façanha e fracasso se opera da seguinte maneira: quanto mais simples for a ação a que o palhaço se propuser, maiores são as chances de ele fracassar. Já a ação que parece impossível diante das dificuldades que apresenta, o palhaço cumpre com a maior facilidade. ―O trabalho do clown consiste, então, em relacionar talento e 'fiasco'. Peça a 29 um clown que dê um salto mortal, ele não consegue. Dê-lhe um chute no seu traseiro, e aí ele o faz sem se dar conta. (Lecoq, 2010: 216). Esta fala de Lecoq revela um aspecto fundamental: ainda que o palhaço seja aquele que erra, que fracassa diante dos desafios mais simplórios, em algum momento ele precisa mostrar que possui alguma habilidade extraordinária e surpreender o público diante da sua capacidade de realizar uma ação impossível de ser realizada pelo espectador. A alternância entre façanha e fracasso fica bem evidente nos palhaços de circo. Muitas vezes, a sua apresentação é organizada a partir da paródia aos números realizados pelos outros artistas circences. Por exemplo, depois de um arriscado número de trapézio que levou a plateia a um estado de suspensão entra em cena o palhaço, parodiando o número anterior. Ele tenta subir no trapézio, mas se enrola nas cordas, prende o figurino, dá cambalhotas ao invés de parar em pé, etc. O interessante é que, em muitos casos, o palhaço domina com uma perfeição até maior do que o trapezista os detalhes técnicos da sequência. Isto porque para poder fazer errado ele precisa conhecer perfeitamente a execução correta, e em algum momento surpreenderá o público demonstrando que também possui habilidades extraordinárias. Avner se aproxima destes palhaços quando, ainda que encontre as maiores dificuldades para saltar de uma cadeira que está a cerca de 30 centímetros do chão, equilibra no queixo com aparente facilidade uma escada de mais de dois metros de altura, ou quando depois de inúmeros problemas para conseguir segurar concomitantemente três claves em suas mãos, realiza uma elaborada rotina de malabarismo com elas, momentos registrados pela imagem a seguir. 30 Fonte: http://moisturefestival.blogspot.com.br/2011_03_01_archive.html, foto de Michelle Bates Fonte: http://mmart229.lacoctelera.net/, foto de Manel Martins 1.1.5 Erro e problema O palhaço apresenta-se ao público com determinado objetivo, mas é incapaz de simplesmente cumpri-lo do começo ao fim sem maiores dificuldades. Através de sua falha, expõe sua natureza humana mais genuína e faz rir, revelando a ―lógica do erro‖ que rege toda 31 a sua atuação. No caso de Exceptions to gravity, tal procedimento fica extremamente claro uma vez que a estrutura do espetáculo é ―largamente baseada na teoria dos acidentes. Cada ação tem uma terrível e oposta reação.‖16 (Avner apud Juglers World, 1986: 1, tradução minha) Exceptions to gravity tem como mote a espera. Avner entra em cena para limpar o palco antes do início de um espetáculo, que começará em cinco minutos, conforme anuncia através de uma mágica, na qual transforma restos de papel que juntou do chão numa folha de jornal onde está escrito ―Show starts in 5 min‖. Depois disso, passa a esperar que algo aconteça, buscando pequenas ocupações para preencher o tempo, como observar a plateia enquanto come pipocas, invertendo a posição: de agente da ação, torna-se espectador do seu público, e provocando o riso. Fonte: http://www.pinedaleonline.com/news/2009/04/AvnerTheEccentric1.htm, foto de Pam McCulloch No entanto, nenhuma das ocupações é realizada de uma maneira óbvia e direta, oferecendo sempre inúmeros desdobramentos, como já acontecera durante o período em que ele estava apenas tentando limpar o palco. São sequências de ações mal-sucedidas que desencadeiam as situações posteriores, evidenciando uma das premissas do trabalho do palhaço, segunda a qual importa menos qual é a ação a que ele se propõe, o interessante são as dificuldades com que esbarra no percurso de sua realização e a forma que encontra para 16 ―largely based on the theory of accidents. Every action has a terrible and opposite reaction." 32 solucioná-las. Quanto mais intensas forem as dificuldades, conduzindo-o por um caminho longo até chegar ao seu objetivo final, mais rico se torna o número. O erro é uma qualidade na atuação do palhaço, e quanto mais ele ocorrer, desde que esteja amparado por uma lógica pessoal que justifique aquele direcionamento, melhor. ―(...) Na comédia física o público ri do que o palhaço pensa. Ri sempre que consegue acompanhar o seu raciocínio e que percebe como o palhaço entende que deveria resolver o problema em que se meteu.(...)‖ (Colombaioni apud Libar, 2008: 135) Vale reproduzir a fala de Avner a respeito de como o palhaço lida com o problema e o erro. Ela é a resposta a uma indagação sobre o conceito ―escalada de frustração‖ que costuma utilizar em seus cursos: Palhaços não falham. Eles têm sucesso de maneiras inesperadas e ressignificam qualquer coisa que aconteça em um sucesso. Eu penso que o palhaço é num certo sentido alguém que acha complicações para problemas muito simples e soluções muito simples para problemas complicados. Estes duas características caminham juntas e, acredito que com muitos entendimentos equivocados, mas os palhaços são mais do que tudo, solucionadores de problemas e quando a sua primeira tentativa de resolver um problema não funciona... Eu costumo falar sobre escalada e frustração, mas penso que um terreno mais fértil para explorarmos é a ideia de: `Hmmm, esse problema é ainda mais interessante do que eu pensei', mais do que a noção de escalada da frustração. Num certo sentido, palhaços não ficam frustrados. Eles aceitam tudo e lidam com isso. E eles são muito cuidadosos ao se dedicarem a um problema que qualquer criança de três anos poderia resolver17. (Eisenberg apud Lueck, 2011: 57 e 58, tradução minha) É importante destacar que Avner não se refere ao palhaço como um causador de problemas, mas sim um solucionador deles. Esta forma de pensar muda bastante a questão, sendo especialmente importante durante o processo de construção de um número. É muito perceptível quando o palhaço está deliberadamente criando os problemas em que se mete, já deixando claro de antemão que nada vai dar certo, ou quando o foco da sua ação está na solução da questão, mas ainda assim, o que ele consegue é apenas que os problemas se tornem progressivamente maiores. Isto acontece porque o palhaço sempre resolve um problema com a criação de outro, mesmo que esta não seja a sua intenção. 17 Clowns do not fail. They succeed in unexpected ways, and they reframe whatever happens as a success. I think that a clown in a sense is someone who find complicated to simple problems, and very simple solutions to complicated problems. Those two kind of go hand in hand, and with a fair amount of misunderstanding, but I think that clowns are foremost problem solvers. And if when their first try at solving the problem doesn‗t work... I used to talk about escalation and frustration, but I think that a much more fertile ground to plow is the idea that ―Hmm, this problem‗s even more interesting than I thought‖, rather than a notion of escalating frustration. In a sense, clowns don‗t get frustrated. They sort of accept everything and deal with it. And they´re very earnest about reapplying themselves to this problem that any three-year-old could solve. 33 O pensamento exposto é o retrato fiel do que acontece em Exceptions to gravity, em diversos momentos. Relato um deles. O chapéu (ele novamente) cai no chão. Avner se abaixa para pegá-lo, mas está um pouco distante demais para conseguir alcançá-lo. Então, seguindo sua lógica pessoal, ao invés de se aproximar do chapéu com um passo, decide alongar seu braço o máximo que puder, para que, com um tamanho maior do que o normal, possa chegar até onde o chapéu está. Depois de estender o braço consegue recuperar o seu objeto. Palmas do público. Porém o movimento provocou uma diferença no tamanho dos braços, que certamente o prejudicará dali em diante. Ele tenta realizar várias ações que o confirmam. Empenha-se em segurar uma cadeira com as duas mãos, no entanto ela cai no chão. Tenta cruzar os braços, mas estes não ficam. Apóia a mão esquerda no queixo, glória! Porém ao tentar realizar a ação com a mão inversa as distâncias diferentes o impedem de ter sucesso. Definitivamente, precisa reajustar as distâncias, o que consegue inclinando o tronco até o chão e apoiando as mãos, para a partir dali alongar-se e alcançar o equilíbrio entre os membros superiores do corpo. Finalmente, volta a ter os braços equidistantes, recebendo palmas da plateia. Mas é só dar o primeiro passo para perceber que agora a diferença passou para as pernas, uma delas está mais curta, fazendo com que manque terrivelmente. Com uma pancada forte no joelho da perna mais curta consegue regular a altura delas. Porém o ombro saiu do lugar... E daí em diante. A lógica do erro traz outra qualidade positiva para a cena. Ela permite que uma mesma situação seja explorada tão intensamente que provoca o riso no público diversas vezes e de forma progressiva. Assim, aproveitando ao máximo o que cada pequeno embaraço é capaz de oferecer, o palhaço pode organizar a sua atuação com muito menos propostas e mais ações. Ele não precisa a cada momento começar uma sequência nova, provocar o riso, finalizá-la, e dar início a outra, como se recomeçasse tudo outra vez. Existem sequências no espetáculo de Avner que se baseiam num mesmo problema e que rendem mais de dez minutos. ―(...) esforço-me sempre para economizar os meus meios. Quero dizer com isso que quando um único acontecimento pode provocar por si próprio duas gargalhadas separadas vale bem melhor do que dois fatos separados.‖ (Chaplin, 1969: 111) Através desta exploração máxima de cada problema, o palhaço garante o envolvimento do público num fluxo contínuo, ao passo que se a todo o momento inicia uma nova ação tem que sempre reconquistar a atenção. Ricardo Puccetti trabalha em seu curso a ideia de que a relação do palhaço com a plateia deve ser a mesma que o surfista tem com a onda. Não basta chegar ao topo dela, isto é apenas o começo, pois agora é preciso descobrir a maneira de se manter ali em cima o máximo de tempo possível. O auge para um surfista é 34 conseguir realizar um tubo perfeito, atravessando a onda inteira sem ser por ela engolido. Não basta ao palhaço conseguir uma grande gargalhada de seu público, depois disso ele precisa viabilizar maneiras de manter o mesmo nível de contato, para que possa ―surfar‖ com a plateia. Desenvolver uma mesma ação até o limite, ou para além dele, também ajuda neste sentido. 1.1.6 Caráter universal e particular Ainda que o palhaço dependa do que há de mais singular em cada um para existir ele é dotado de uma inegável universalidade. Tal afirmação pode parecer contraditória, mas ela se justifica na medida em que Quanto mais se vai ao individual (e este é o segredo do clown, no meu ponto de vista) mais nós tocamos o universal. (...) Se eu tenho coragem de chegar ao fundo, ao fundo do ridículo, daquilo que é verdadeiramente uma porcaria em cada um, paradoxalmente, nós retornamos ao todo, é ali que se revela alguma coisa universal.18 (Gautre: s/d: 3, tradução minha) Avner é um dos exemplos de que é possível se comunicar através do humor em diversos países, independentemente das diferenças culturais que existam entre eles. Já foi dito que a comunicação ampla que Exceptions to gravity atinge se deve, em parte, ao desejo deliberado de criar um espetáculo que não dependesse tão somente do interesse do público americano. Mas, para além deste desejo e busca consciente, Avner conseguiu atingir uma comunicação universal por ter desenvolvido uma figura tão pessoal e única que acaba por atingir a universalidade mencionada acima, encontrando eco para as suas ações em qualquer outra pessoa. A primeira vez que assisti Exceptions to gravity foi durante um Encontro de Palhaços. A resposta do público foi extremamente calorosa ao longo de todo o show e seu sucesso foi estrondoso. Mas tal reação não chegava a ser surpreendente, Avner era a grande atração internacional de um evento cujo público era formado basicamente por outros palhaços. Acredito que é como se já houvesse uma pré-disposição daquelas pessoas para gostarem do que iriam ver. Depois disso, voltei a assisti-lo no Risadaria, maior evento de humor da América Latina que aconteceu na cidade de São Paulo em Março de 2011, reunindo todas as manifestações artísticas ligadas à comédia e ao riso. Avner apresentou-se durante os quatro 18 Plus on va à l'individuel (et c'est ça le secret du clown à mon avis) plus on touche l'universel. (…) Si j'ai la courage d'aller au fond, au fond du dérisoire, de ce qui est vraiment nul chez moi, paradoxallement, en retournant le gant, c'est la que se révèle quelque chose d'universel. 35 dias do evento e eu pude observar alguns trechos do espetáculo sendo realizados para públicos absolutamente distintos daquele que esteve presente na minha primeira experiência. Avner apresentava-se ao final de uma noite de humor, em que a grande maioria dos participantes era formada por comediantes de stand-up, gênero que faz grande sucesso não só nesta cidade. A plateia assistia alvoroçada aos principais ídolos do humor paulista executando seus textos que giravam, na maior parte das vezes, em torno de temas como sexo, relacionamento e trânsito. Eu aguardava ansiosa para ver qual seria a reação do público à presença de Avner, pois além de ele ser o único palhaço da noite, apresentaria trechos de um espetáculo sem fala e com um tipo de humor completamente distinto daquele já estava instalado na sala. No entanto, já na primeira noite foram suficientes alguns minutos de cena para que a plateia inteira estivesse envolvida com aquele palhaço, compartilhando com ele as agruras encontradas ao longo da apresentação, ao mesmo tempo em que ria delas. Um dos motivos que permitiu essa reação certamente foi o caráter universal da obra. A incapacidade de Avner de solucionar os problemas, suas crescentes dificuldades e a maneira de lidar com elas são tão particulares e ao mesmo tempo tão passíveis de acontecerem a qualquer um de nós que provocavam no público a identificação necessária para o acolhimento e o riso. Ao final da apresentação Avner foi mais ovacionado do que qualquer um dos participantes anteriores. Isto se repetiu nas três noites subseqüentes, confirmando que ―Aquilo que faz rir os ingleses não vale necessariamente para um italiano ou para um japonês, mas é importante que os clowns, de onde quer que venham, façam o mundo inteiro rir.‖ (Lecoq, 2010: 223). 1.2 Autoria e apropriação Exceptions to gravity acontece durante a espera pelo início de um espetáculo que começará em supostos cinco minutos. Durante este tempo Avner, no papel de um funcionário do teatro, busca maneiras de se entreter e entreter o público. Na primeira sequência do show, ele entra em cena para varrer o palco. Em seguida, olha o relógio e percebe que ainda tem algum tempo. Pega no bolso um maço de cigarros, porém não chega a acender nenhum deles, tamanhos os problemas que vão se sucedendo, começando pelos cigarros que caem, seguidos pela vassoura que quebra e culminando no chapéu que vai parar no alto do cabo da vassoura. Nesta primeira parte, já é possível entender por que o espetáculo recebe este título. Avner trabalhará o tempo inteiro contrariando as leis da gravidade: insinuará vôos, apresentará um arriscado número de corda-bamba, realizado por seus dois dedos que atravessam corajosamente uma corda invisível, e equilibrará no rosto diversos objetos, 36 começando com um cigarro, passando por penas, flores, papéis e culminando numa escada, como se pode ver na foto abaixo: Foto: Pam McCulloch, publicada em http://www.pinedaleonline.com/news/2009/04/Ladder.htm Ao longo de todo o show, Avner utiliza vários números e gags clássicas, bastante conhecidas do público. Porém, a sua maneira de realizá-las as torna extremamente particulares. A partir da observação desse aspecto, aparentemente paradoxal, surgiu a questão que norteia este tópico: qual é o processo realizado por este palhaço que garante a manutenção de um caráter autoral mesmo ao trabalhar com estruturas clássicas? No universo do circo e do palhaço, a repetição dos mesmos números e gags é bastante comum. O público não se incomoda se perceber que assiste a algo que já viu muitas vezes antes. Não compreender as coisas, quando tudo é tão claro como a luz do dia; não dar pelo truque, embora repetido milhares de vezes; tatear como um cego quando todos os sinais indicam a direção exacta (…) espreitar pelo extremo errado de uma carabina, uma carabina carregada! - nunca as pessoas se cansam destas coisas absurdas, pois há milênios que os seres humanos se enganam no caminho, há milênios que todas as suas buscas e interrogações desaguam num beco sem saída. (Miller, 1966: 82 e 83) Mas, ainda que a plateia não se incomode com a repetição das mesmas estruturas, e que entre aqueles que admiram os palhaços clássicos esta seja possivelmente uma das 37 características mais apreciadas, as peculiaridades na maneira de realizar os números garantem uma recepção sempre diferente, de acordo com o palhaço que o executa. Este é um dos conflitos apresentados na obra ficcional de Henry Miller, O sorriso ao pé da escada, de onde destaco a citação acima. Antonio, palhaço medíocre de um pequeno circo, passa toda a vida representando os mesmos números sem nunca conseguir sucesso algum, atingindo sempre uma recepção apenas morna de sua plateia, até o dia em que cai doente. Augusto, personagem principal desta história e que já fora um palhaço reconhecido internacionalmente, mas que escolheu a alegria que o anonimato lhe proporciona, realizando pequenas funções no circo que garantem seu sustento e paz longe do picadeiro, resolve substituí-lo secretamente, utilizando a mesma maquiagem, figurino, números e até o nome do outro. Acredita que assim poderá lançar Antonio à glória que até agora não fora capaz de alcançar. Trabalhando a partir dos mesmos números que seu companheiro enfermo, mas de uma maneira particular, Augusto consegue atingir seu objetivo e a plateia alvoroçada aclama o nome de Antonio, novo ídolo das multidões. Augusto pretendia ensinar ao verdadeiro Antonio tudo sobre a maneira com que modificara a execução dos números, ajustara os tempos e provocara esta inédita reação. Mas Antonio morre de desgosto ao saber do sucesso estrondoso da noite anterior. Ele está por demais ciente de que nunca será capaz de reproduzi-lo. Este exemplo foi retirado da literatura, que trata de forma poética uma situação bem próxima do real: ainda que o material seja o mesmo é a maneira como o palhaço trabalha com ele que garantirá, ou não, o seu sucesso. O encanto do público está muito mais na maneira como o palhaço trabalha e não exatamente no que ele se propõe a fazer. Assim, a mesma sequência poderá ser extremamente bem recebida quando executada por determinado palhaço, ao passo que é possível que provoque total indiferença, ou até mesmo vaias, quando realizada por outrem. Mas por quê? Para tentar encontrar respostas para esta questão tomarei como modelo de análise um número clássico realizado por Avner em seu espetáculo. O número selecionado se baseia numa relação de sedução estabelecida entre o palhaço e alguém do sexo oposto, escolhido na platéia. Pode ser dividido em três momentos distintos: primeiro, o palhaço simula machucar acidentalmente uma parte do corpo, normalmente um braço, mão ou dedo. Dirige-se, então, à pessoa escolhida e pede um beijo, que ajudará a curar a dor. Caso ele tenha êxito, conseguindo ser beijado na parte pretensamente dolorida, comemora, dividindo sua alegria com o restante da audiência. Mas, durante a comemoração, ele se distrai e machuca outra parte do corpo, em geral o rosto. O público, que já entendeu a lógica de sua ação, ri antecipadamente por saber que o palhaço solicitará um novo beijo da 38 mesma pessoa. Após receber este segundo beijo, ele novamente comemora e se machuca, mas desta vez num lugar mais inusitado, como a axila ou as nádegas. A finalização depende de cada palhaço, alguns solicitam de fato o terceiro beijo e chegam a recebê-lo, outros interrompem antes deste momento. Nesta sequência clássica, existem três momentos de riso. O primeiro, quando o palhaço pede o primeiro beijo. O segundo, quando se fere novamente e o terceiro quando se machuca num local absurdo e que dificilmente será beijado. Qualquer palhaço que executá-la já sabe disso, o número segue uma progressão cuja mecânica praticamente garante o seu bom funcionamento. Na sua estrutura, é possível observar a utilização de vários mecanismos de comicidade como a repetição, através dos sucessivos beijos e acidentes; e o inesperado, perceptível tanto quando o palhaço cai pela segunda vez quanto ao solicitar o beijo nas axilas ou nádegas. Além disso, ele obedece a uma regra clássica da comédia, denominada regra dos três tempos, segundo a qual a mesma ação deve se repetir três vezes para conseguir o riso. A primeira serve para apresentar a ação, a segunda evidencia a repetição e na terceira a ação se finaliza de forma diferente, provocando o riso. As três repetições não precisam acontecer seguidamente. Em muitos casos são divididas ao longo de todo o show, o que não diminui seu efeito cômico e ainda ―dá margem a que o público ache que você faz o humor inteligente, por tê-los feito pensar‖. (www.tricicle.com, acesso em 2 de Outubro de 2010, tradução minha)19 Mas apesar do número trazer em sua estrutura todos estes elementos, que facilitam as chances de uma boa acolhida junto ao público, a forma como cada palhaço vai realizá-lo pode determinar diferenças na recepção. Na análise da maneira como Avner realiza o número, destaca-se imediatamente o modo como ele estabelece o contato com a moça escolhida. Antes de descer do palco pela primeira vez, ele já havia criado uma relação com ela, que provavelmente selecionara por estar se mostrando receptiva ao longo do espetáculo. Assim, esse primeiro contato direto que vai exigir uma ação do voluntário já está facilitado pela abertura previamente provocada. Ao se aproximar da moça, Avner inicialmente pede (com gestos, pois, como já foi dito, em nenhum momento do espetáculo se utiliza da fala) que sopre o seu dedo, como forma de aliviar a dor. Depois de receber o sopro, sente-se à vontade para solicitar o beijo no mesmo local. Avner vai construindo a relação com muito cuidado, deixando-a extremamente à 19 (...) lo que da pie a que la gente piense que haces ―humor inteligente‖ porque se ha visto obligado a pensar. 39 vontade. Depois de ter recebido o beijo, ele divide com extrema precisão a sua reação, demonstrando para a mulher uma gratidão inocente e para o resto da plateia uma felicidade ligeiramente sensual, garantindo ainda mais o riso. Em seguida, direciona-se novamente para o palco, mas continua olhando para a moça, o que faz com que ―se distraia‖, tropece e caia na escada, ações que realiza com exímio domínio técnico. Quando vai se machucar pela terceira vez, Avner faz uma pequena modificação. Ao invés de se ferir ―sem querer‖, como já aconteceu nas duas vezes anteriores, e é o que a plateia espera que ocorra, ele explicitamente se joga no chão, não deixando nenhuma dúvida do intuito da sua terceira ação. Consegue assim quebrar a expectativa do público ao mesmo tempo em que respeita a sequência preexistente, provocando uma risada dupla da platéia, tanto por vê-lo desmontando explicitamente o jogo que havia criado, quanto por perceber o lugar onde será solicitado o terceiro beijo. Porém, ao invés de solicitar o beijo nas nádegas, Avner apenas inicia o andar em direção à moça, provoca a gargalhada da plateia e faz um gesto sinalizando que desistiu de dar continuidade a ação. Ele finaliza a gag neste momento. Não estaria de acordo com a sua natureza, doce e elegante, ainda que extremamente atrapalhada, solicitar realmente este terceiro beijo. Esta é apenas um dos vários números clássicos que Avner utiliza em seu espetáculo. Selecionei-o justamente por sua simplicidade e por se tratar de uma seqüencia bastante conhecida. Eu já o vi ser executado por palhaços de diversas origens e linhas de trabalho. Na descrição analítica realizada, é possível perceber que as diferenças apontadas na execução de Avner referem-se à maneira delicada com que ele se relaciona com a voluntária, à forma como respeita o tempo de aproximação, que é naturalmente mais prolongado, à sua capacidade de dividir com precisão as reações diferenciadas para a platéia inteira e para a moça escolhida; e ao apuramento técnico com que realiza as ações que formam o número. Ou seja, as diferenças são determinadas pela natureza específica deste palhaço, somadas ao seu conhecimento técnico que permite a execução perfeita de toda a sequência. Percebe-se, então, que é essencial que independentemente da ação que estiver realizando, o palhaço tenha clareza absoluta de sua lógica pessoal, o que determina toda a forma como vai agir, reforçando o caráter autoral de sua atuação. Este caráter é apontado pela pesquisadora Juliana Jardim, ao discutir o treinamento de atores com essa máscara: (...) O ator investigará em profundidade o caráter de autoria em seu novo estado de atuação. Tudo o que faz é um depoimento pessoal já que, apesar de alguns princípios serem comuns, cada palhaço é único, assim como o é cada encontro com a máscara. Uma nova lógica pessoal manifesta-se no descobrimento desse também novo mundo interior e exterior. (Jardim, 2002: 22) 40 A descoberta e aprimoramento desta lógica são de importância fundamental ao palhaço, determinando mudanças no tempo de execução, no ritmo, na relação com a plateia, fatores que vão, por sua vez, provocar as diferenças na recepção da mesma gag. Ou seja, a questão está em se o palhaço simplesmente tenta imitar um número que já foi realizado por outro, ou se apropria dele. Pode-se entender, assim, que quando um palhaço simplesmente copia um número que já foi feito por outro, ele está se esforçando na direção de uma reprodução exata que sequer é possível de ser realizada. Já ao se apropriar, permite que as suas características pessoais, a sua visão de mundo guiem o relacionamento com o que está sendo apreendido. As chances de que obtenha um bom resultado, procedendo desta maneira, são infinitamente maiores. Avner, ao ser questionado em entrevista concedida em 1986 a uma revista sobre malabares, Jugles World, sobre quais são as questões éticas envolvidas ao se utilizar a idéia ou o número de outra pessoa para conseguir uma boa performance, afirma que o plágio é a forma mais sincera de lisonja àquele de quem se copia o trabalho. Por outro lado, é a pior coisa que se pode fazer para o seu próprio desenvolvimento como performer, pois ao simplesmente pegar um número que pertence a outro e tentar reproduzi-lo, estão sendo eliminadas as possibilidades de desenvolvimento da sua própria personalidade, seu senso de tempo, ritmo e relação com a platéia. Afirma ainda que muitos iniciantes, ao assistir a um número que funciona tentam adaptá-lo para sua própria execução, sem entender o processo que levou o artista que o criou a chegar àquele resultado final. Segundo sua visão, essa prática tem poucas chances de funcionar, pois o mais importante para o palhaço é investir no desenvolvimento da sua própria personalidade. ―Os truques não interessam. O que interessa é a atitude por detrás dos truques.‖ (Eisenberg apud Juglers World, 1986: 2). Ainda que eu concorde com esta última frase, tenho ressalvas diante da colocação feita por Avner, pois acredito que o processo de apropriação pode ser um aprendizado muito rico para o palhaço, contribuindo justamente para a descoberta e aprimoramento de sua natureza própria. A prova maior disso é que a apropriação do material de outros artistas é utilizada como forma de transmissão de conhecimento por inúmeras gerações de artistas circenses, que passavam os números de pai para filho. O processo de formação acontecia já no picadeiro, com a repetição pelos novos palhaços dos mesmos materiais antes executados pelos mais velhos. Não se trata, portanto, de condenar a utilização de números ou gags criadas por outros, haja visto que este procedimento é parte de uma tradição a que todos os palhaços se ligam, mas sim de refletir sobre o processo de aprendizado, buscando a apropriação em 41 detrimento da simples cópia. Para aprofundar a discussão sobre este processo de apropriação, é válido apresentar a maneira como os membros de uma tradicional do circo italiano, os Colombaioni, lidam e transmitem este saber. Para tal, me utilizarei da experiência vivida e transmitida por outros dois palhaços, Ricardo Puccetti e Jango Edwards. 1.2.1 Transmissão do repertório clássico e comicidade pessoal Introduzirei a questão da transmissão do repertório clássico a partir da experiência dos Colombaini, à qual tive acesso indiretamente graças ao relato feito em livros por Ricardo Puccetti e à minha experiência de trabalho com Jango Edwards, ambos discípulos desta família, por perceber que se trata de um ótimo modelo para discussão de questões ligada à autoria e apropriação. Como já foi dito antes, na presente pesquisa não estou desenvolvendo as questões ligadas aos procedimentos pedagógicos utilizados pelo próprio Avner, tanto porque me desviaria do foco central da pesquisa, quanto porque não tive acesso, durante o curso da mesma, à quantidade de material que seria necessária para o pleno desenvolvimento desta questão. 20 Os Colombaioni são uma tradicional família circense da Itália, cujo repertório cômico descende diretamente da Commedia dell´Arte, de cuja tradição alguns de seus antepassados, os Travaglia, fizeram parte. Os Colombaioni ficaram mundialmente conhecidos após a parceria com o cineasta Frederico Fellini, que chegou a nomeá-los como os maiores palhaços do mundo. Este diretor sempre teve profundo interesse pelo universo dos palhaços e Nani Colombaioni, o patriarca da família, foi seu assessor em assuntos relativos à palhaçaria em filmes como La Strada e I Clowns, no qual os Colombaioni também atuaram. Durante muito tempo, Nani, que já faleceu e teve seu lugar ocupado por um dos filhos, Leris, recebeu em sua casa artistas oriundos de diversas partes do mundo interessados em aprimorar seus conhecimentos sobre a palhaçaria clássica, denominação com a qual os próprios Colombaioni se definem. Importantes grupos brasileiros (Lume, Seres de Luz e Teatro de Anônimo) tiveram ali a oportunidade de imergir no universo do palhaço e da comedia física. Vale destacar que estes são alguns dos principais grupos de teatro a trabalhar com a formação do palhaço no Brasil, transmitindo seus aprendizados a muitos outros artistas. Além disso, Leris Colombaioni vem frequentemente ao país ministrar oficinas e dirigir espetáculos. Assim, é possível dizer que o trabalho dos Colombaioni tem influenciado 20 Vale destacar que Avner tem ponto de vista diferente sobre a questão da apropriação de números, não fazendo uso deste processo em seus procedimentos pedagógicos. 42 direta e indiretamente gerações de palhaços no país. Nani Colombaioni trabalhava a partir de uma metodologia bastante peculiar, que previa uma mistura dos espaços de aprendizado e de convivência familiar, onde os estudantes eram completamente inseridos. A partir do relato de Ricardo Puccetti, destaco alguns elementos que tem especial importância para a questão agora apresentada, a autoria e a apropriação no trabalho do palhaço. Uma das principais frentes de trabalho de Nani com seus alunos era a transmissão do repertório clássico da palhaçaria. Este mestre tinha um vasto conhecimento desse material, acumulado e transmitido ao longo de inúmeras gerações. Após ter desenvolvido a relação com o aprendiz a ponto de ter compreendido qual é a lógica pessoal que rege aquele aluno específico, Nani transmitia alguns destes números. Assim, para cada aprendiz ele ensina determinadas partes de seu repertório, que são condizentes com a lógica e com a pessoa do aprendiz, tudo com muito rigor para que os mínimos detalhes sejam apreendidos. Ele exige que o aprendiz tenha primeiramente toda a partitura da cena bem codificada, para que num segundo momento ele coloque nela o seu caráter, a sua pessoa, o seu ritmo pessoal, o que Nani chama de comicidade pessoal, ou seja, o aprendiz deve descobrir a maneira própria de executar a gag ou a cena cômica aprendida. (Puccetti in Ferracini, 2006:139) Desta metodologia, dois aspectos interessam especialmente. Um deles é o fato de que Nani precisava conhecer primeiramente a lógica do aluno para depois disso realizar a seleção dos números clássicos a serem transmitidos. Ou seja, ainda que exista um repertório clássico universal, não são todos os números que condizem com todos os palhaços. Isto porque a lógica particular de cada palhaço se revela não somente na maneira de executar um número, mas também na temática explorada no material selecionado. Então, no momento em que decide usar cenas, gags ou números deste repertório o artista precisa levar em consideração o que ali está em consonância com a sua lógica particular, a sua visão de mundo. Além disso, a metodologia aplicada prevê que o palhaço primeiramente apreenda todos os detalhes de execução da partitura, para depois trabalhar sua maneira pessoal de executá-la. Ou seja, o domínio técnico das ações também tem importância fundamental para o bom resultado do trabalho, sendo tão relevante quanto a exploração da lógica pessoal do palhaço. A união destes fatores é o que vai garantir ao palhaço a realização de um processo de apropriação daquele material. Jango Edwards, palhaço americano que reside há muitos anos na Espanha, tem um percurso artístico de mais de quarenta anos. Sua performance associa uma rígida formação na 43 palhaçaria clássica com um olhar voltado para temáticas contemporâneas. Além da atuação cênica, também ocupa importante espaço em seu trabalho a formação de outros artistas, que exercita nos workshops que ministra pelo mundo e no The nouveau clown institute, escola de palhaços fundada por ele e localizada em Barcelona. (www.jangoedwards.net, extraído em 02 de Agosto de 2010) Jango teve contato com os ensinamentos de Carlo Colombaioni, irmão de Nani, muito antes deste segundo abrir os seus conhecimentos para pessoas fora do clã familiar. Num tempo em que a tradição do circo era passada quase que exclusivamente de pai para filho, como numa confraria secreta, Jango fez parte de um dos primeiros grupos a ter acesso a estes ―segredos‖ e passou a disseminá-los através de cursos, que continua ministrando até hoje. (Libar, 2008: 185) Entre as diversas oficinas dadas por ele está a Teoria do Palhaço, da qual tive a oportunidade de participar em 2008, durante a 7° Edição do Anjos do Picadeiro Encontro Internacional de Palhaços, no Rio de Janeiro. São desenvolvidas ali algumas questões afinadas com as que estão sendo pesquisadas no presente estudo e acredito que será fundamental deter-me sobre elas. Um dos princípios mais importantes apresentados por Jango é o do give and take (dar e receber). De acordo com este princípio, durante o espetáculo o palhaço precisa desenvolver uma relação apurada com a plateia que lhe permita tanto dar a ela a possibilidade de entrar em contato com a cena quanto para receber os estímulos que são fornecidos. Mas estes verbos possuem também outro sentido, referindo-se às trocas de ideias e criações que podem ser estabelecidas entre os palhaços. Segundo o seu pensamento, importa menos a autoria do que a exploração das características pessoais de cada estudante/palhaço, que é o que vai garantir a qualidade do trabalho. Como forma de aplicação prática desta noção, Jango Edwards propõe, como exercício, a cópia de um número por ele executado durante a música Great balls of fire. Os estudantes são orientados a repetirem exaustivamente a sequência, até serem capazes de executá-la com perfeição. Quando todos cumprem esta etapa do trabalho, Jango afirma que já têm um número pronto, que precisa somente ser preenchido por pequenos detalhes que vão ser descobertos a partir da lógica pessoal de cada um. O mestre executa então o mesmo número ―recheando-o‖ com pequenos gestos bem próprios e em perfeita harmonia com as suas características subversivas e provocadoras, levando imediatamente ao riso a plateia de alunos. A partir daí, cada um passa a desenvolver o mesmo trabalho na sua partitura, tomando o cuidado fundamental de continuar respeitando todas as ações físicas por ele propostas. Ao assistir a 44 execução dos outros estudantes, percebi que era nítido que os números que funcionavam conjugavam a repetição perfeita da sequência de movimentos com a presença de pequenos detalhes, que permitiam entrever a lógica pessoal de cada palhaço. Jango disse-nos ainda que um encontro de palhaços como aquele do qual participávamos é um dos melhores espaços de aprendizado existentes, não apenas pelas oficinas oferecidas, mas principalmente pela oportunidade de assistir a inúmeras estéticas diferentes e perceber o que funciona no trabalho de outros artistas e quais são as ideias passíveis de apropriação. Sugere que se assista aos espetáculos com um bloquinho na mão, onde se anote tudo que possa ser recriado e evitando o natural esquecimento, dado o volume de experiências que se vive em um prazo tão curto. E confessa que já utilizou muitas propostas de alunos em seu espetáculo e que se alguém fizer algo muito bom durante o workshop pode ter certeza de que existe a possibilidade de vê-lo repetido por ele em cena. O estudante deve entender isso como uma homenagem, não como um roubo. O princípio do give and take está presente no trabalho de Jango também quando ao final da oficina ele entrega para cada aluno um CD com as músicas que foram usadas durante o trabalho de formação e no seu espetáculo. Tal atitude serve de estímulo para que os estudantes refaçam os números propostos por ele. Acredito que seu posicionamento seja um reflexo da formação clássica, junto a palhaços advindos da tradição circense italiana, conjugada ao estímulo à generosidade, que é um preceito muito importante em toda a sua proposta de trabalho, assim como na palhaçaria em geral. 1.2.2 Autotradição e bricolagem A condução dada à questão da manutenção do caráter autoral mesmo na lide com um material pré-existente mostra que o palhaço ou aprendiz precisa se apropriar deste material de maneira a ser capaz de dominar todos os detalhes técnicos da execução, ao mesmo tempo em que insere ali a sua comicidade pessoal. O conceito de apropriação me levou à percepção de uma abordagem semelhante, trabalhada pelo semiólogo italiano Marco De Marinis, ao falar sobre o ator cômico popular no teatro italiano do século XX. Este semiólogo é um dos mais importantes teóricos teatrais contemporâneos (...) Sua obra propõe uma revisão profunda tanto do método como do objetos do estudos teatrais, oferecendo novas ferramentas, cujo enfoque histórico é completado substancialmente por outros aportes das novas ciências do espetáculo, e para tanto propõe uma nova ―teatralogia‖. Superando o conceito ―textocêntrico‖ que durante muito tempo reduziu a história do teatro à história da literatura dramática, De Marinis investe numa história do teatro global, isto é, numa perspectiva teatrológica não mais parcial, e sim orgânica e integradora. (Andrade, 2005: 41) 45 Na busca por definir um modelo do ator cômico, De Marinis aponta alguns aspectos que lhe são característicos, como a vocação para o solo, a relação não pré-determinada com o espectador e a autotradição. É este último aspecto que interessa no momento. A autotradição é considerada por De Marinis como uma necessidade primordial ao ator cômico, na medida em que lhe permite reconstruir seu próprio universo de conhecimentos através de uma relação com o passado que envolve sempre o respeito à sua própria autoria e singularidade, enfatizando ―a ideia de apropriar-se, tomar como seu, passar pela própria experiência algum elemento externo a ela, reelaborando e criando algo novo‖ (Carvalho, 2009: 40). É neste caminho que ele apresenta o conceito de bricolagem, identificado como o processo realizado por este ator cômico, de ―seleção, desmontagem, recomposição, assimilação e re-elaboração‖. (De Marinis, 1997: 160). Os termos por ele apontados me oferecem uma base possível para elaboração do que é o trabalho de apropriação e como ele garante a autoria daquele que o executa. Para a realização de um número ou gag clássica, como os feitos por Avner em seu espetáculo, é necessário primeiramente a seleção do material que interesse e esteja em consonância com a natureza daquele palhaço. Ao que se segue a desmontagem e recomposição da estrutura para que sirva ao fim específico em que agora será utilizada. Depois, chega-se à assimilação técnica de todos os movimentos da sequência, o que permite que ela seja perfeitamente executada. Por fim, na medida em que se insiram no número os elementos que revelam a comicidade pessoal daquele palhaço chega-se à re-elaboração do material de origem. Avner realiza todo este processo com perfeição. 1.3 Relação com a plateia Até hoje, Waldemar acha estranha a forma como se transforma em Arrelia. Pode já estar pintado, vestido, pronto, mas o palhaço só surge mesmo quando corre a cortina, e ele vê e sente o público. - Então - diz Waldemar - é como se o palhaço fosse um boneco de borracha vazio que o riso e a alegria repentinamente enchem de vida. (Freire, 1966) Esta citação pertence a uma matéria de jornalismo literário, elaborada a partir da experiência artística de Waldemar Seyssel, o palhaço Arrelia, um dos mais importantes do Brasil. A escolha de utilizá-la para iniciar a presente discussão se deve ao fato de que ela expressa com muita propriedade a importância que a presença do público tem para a atuação do palhaço. A metáfora do boneco de borracha vazio, que apenas a relação estabelecida através do contato com a plateia é capaz de encher, explicita o fato de que o palhaço encontra 46 o sentido da sua atuação somente a partir do momento em que estabelece a comunicação com o público. Isto porque sua atuação se baseia sempre no jogo, na relação, seja com seus objetos de cena, seus parceiros ou, como no presente caso, com a plateia. É possível afirmar ainda que o palhaço responde aos estímulos que recebe muito mais do que se impõe sobre eles. ―A relação que o palhaço estabelece com o seu público é direta e imediata, pois ele só pode existir se mediado pelo olhar do outro.‖ (Achcar, 2007: 110) No que se refere à Avner Eisenberg, a relação com a plateia sempre representou um foco de especial atenção. Segundo ele, nos últimos tempos este tem sido seu principal interesse de investigação e de transmissão através do ensino: como entender qual é a conexão que precisa realmente ser estabelecida com a plateia e como este processo acontece. (Eisenberg apud Lueck, 2011: 58) Foi para encontrar respostas mais amplas para estas questões, inclusive, que ele se interessou em estudar Hipnose e Neurolinguística, áreas nas quais é atualmente especialista e cujos conhecimentos influem de forma determinante sua atuação. Avner faz uma comparação entre a relação do palhaço com o público, com o início de uma relação amorosa. É preciso ir cativando lentamente o interesse da outra parte. Se, na ânsia da conquista, começa-se a querer impressionar e, por exemplo, a contar muitas piadas, o resultado será o inevitável afastamento, diante do exagero da investida inicial. Por isso, a necessidade da delicadeza, de ir aos poucos tateando e entendendo algo que ainda não se conhece bem. Progressivamente, é possível desenvolver a conexão com a plateia daquela noite. Para a reflexão sobre a maneira como Avner estabelece e desenvolve a relação com o público foram definidos cinco pontos centrais de análise: respiração, entrada, triangulação, o uso de voluntários e a improvisação. 1.3.1 Respiração De acordo com Avner, o controle da respiração da platéia serve como base para o desenvolvimento de toda a conexão que precisa ser estabelecida entre palhaço e público ao longo do espetáculo. Em dois de seus princípios sobre o palhaço ele afirma que ―O trabalho do palhaço é fazer a audiência sentir coisas e deixá-la respirar.‖ e ―Todos inalamos, mas muitos de nós precisam ser lembrados de exalar.‖ (Eisenberg, www.avnertheeccentric _principles_portuguese.php, acesso em 5 de Maio de 2010) Em Exceptions to gravity Avner comanda o tempo inteiro a respiração do público. Em alguns momentos o faz explicitamente, como ao solicitar através de gestos que se inspire e 47 expire com calma, após uma proposta coletiva que deixou a audiência visivelmente excitada demais para que possa dar sequência ao que está sendo solicitado. Mas na maior parte do tempo, realiza este comando sem que sequer percebamos, apenas vamos seguindo o ritmo por ele estabelecido, no que ele denomina como o real work do palhaço. Tal expressão é retirada do universo da Mágica, onde recebem esta nomenclatura todos os procedimentos realizados pelo mágico sem que o público perceba e que garantem a surpresa e o espanto diante de suas mágicas. Para Avner, o real work do palhaço é conseguir comandar a conexão com a platéia durante o tempo inteiro, sem precisar dar nenhum comando direto a respeito disso, através do que ele denomina como uma ―técnica secreta‖. O público permanece envolvido pelo palhaço, é guiado por ele em suas ações, mas não tem a menor idéia de que isto esteja acontecendo. E a respiração é um elemento fundamental para que possa realizar este procedimento. O ator italiano, mímico e dramaturgo Dario Fo, que tem grande importância no âmbito da cultura popular e da comédia, sendo o autor vivo mais encenado do mundo, ao final de uma demonstração na qual apresentou a um grupo de estudantes alguns aspectos técnicos fundamentais da sua atuação ressalta a importância dos momentos de pausa que realizou ao longo do texto. Segundo ele, eles são essenciais na medida em que servem não apenas para que ele respire, mas também para (...) fazer o público respirar com você. O público precisa tomar fôlego simultaneamente. Caso ele seja afogado ou agredido durante os momentos de tensão, ou ao final de uma risada, sem que se permita sua recuperação, sem deixá-lo respirar ele acabará ficando cansado e perderá a sua capacidade de se divertir e de participar adequadamente. (Fo, 1999: 179) Percebe-se que a atenção com a respiração do público deve ser constante e não guiada somente pelos níveis de tensão de cada momento do espetáculo. Até uma explosão de gargalhadas exigirá uma pausa do palhaço para que o público recupere o fôlego para o que virá a seguir. Existem conhecimentos técnicos que precisam ser apreendidos, especialmente pela prática, para ser capaz de conduzir a respiração da plateia ao longo de todo o espetáculo. Ao mesmo tempo, esta é uma maneira muito eficaz de garantir a conexão, tão cara ao trabalho do palhaço. Ainda que Avner não seja de forma alguma o único a pensar nesta questão, como comprova a citação de Dario Fo, os seus estudos sobre Neurolinguística e Hipnose o levaram a elaborar de forma bastante original a maneira como realiza esta conexão e a importância da 48 respiração durante tal processo. A sua forma de trabalhar a entrada do palhaço é um reflexo disso. 1.3.2 Entrada Fonte: www.avnertheeccentric.com, créditos indispoíveis A entrada do palhaço é considerada um momento decisivo da atuação. O ditado popular ―a primeira impressão é a que fica‖ adequa-se perfeitamente neste caso e começar bem pode garantir o sucesso do restante do show. Ao passo que, diante de um mau início, o palhaço terá que se esforçar muito mais dali em diante para desfazer a maneira que o primeiro contato foi estabelecido. De acordo com o palhaço e pesquisador francês André Riot-Sarcey: ―A dificuldade para um clown profissional é começar bem... e terminar bem! E no meio do caminho ele se desembaraça como pode. (…) O começo e o fim são primordiais‖ (Rio-Sarcey in Boca Larga, 2006: 102)21 Ricardo Puccetti afirma que a importância da entrada se deve ao fato de que ela é a oportunidade do palhaço se apresentar ao público ao mesmo tempo em que estabelece uma relação de comunicação verdadeira. Este pesquisador explicita o modo como acredita que o palhaço envolve o público ao longo do espetáculo através da imagem metafórica de uma ―isca‖ que é lançada pelo palhaço na sua entrada e a partir do momento em que ―fisga‖ alguém, passa a se ampliar até transformar-se numa rede de pesca que abarcará todos os presentes. (Puccetti in Ferracini, 2006: 143). Destaca ainda que uma boa tática a ser utilizada 21 A reflexão sobre a importância do começo não é exclusividade do universo do palhaço, podendo ser observada em estudos sobre diversas outras formas de arte, como o teatro, a dança, a música e até mesmo a literatura. 49 ao se lançar a isca pela primeira vez é perceber no meio da audiência aqueles que se mostram imediatamente mais disponíveis para, através deles, ir abarcando toda a platéia, ao invés de se centrar em quem parece não estar gostando, o que o palhaço iniciante muitas vezes tem a tendência a fazer. Procedimento semelhante é trabalhado por outros artistas. O espanhol Pepe Nunez utiliza a metáfora de uma bolha que simboliza o movimento de envolver as pessoas no seu espaço de jogo. O palhaço entra em cena cercado pela sua bolha (seu universo cômico pessoal) e busca fazer com que ao longo do espetáculo essa bolha se expanda progressivamente até que estejam nela envolvidos todos os presentes. (Matos, 2009: 138 e 139) Cada palhaço possui uma maneira pessoal de trabalhar a entrada e o envolvimento progressivo do público. Avner utiliza-se de uma técnica também ligada à respiração. Ele afirma que os estudos de Neurolinguística e Hipnose o ajudaram a compreender que uma das maneiras mais eficazes de entrar em conexão com uma pessoa é refletir ―a postura dos outros, os gestos, o tom da voz‖ (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) provocando afinidade entre os corpos, o que instala uma sensação de conforto. Tal procedimento é válido e eficiente ao se estabelecer uma conversação com alguém pela primeira vez, por exemplo. Mas no caso do show ele se torna impossível, uma vez que são várias pessoas que precisam ser envolvidas. A partir desta constatação, Avner desenvolveu uma técnica, baseada na respiração, que permite que de forma muito rápida toda a platéia entre em conexão com ele. O espetáculo tem início com o palco vazio. Alguns segundos antes de sua entrada ouvem-se os primeiros acordes de uma música. Em seguida, Avner surge lentamente em uma das extremidades do palco, olhando para a platéia. De início, vemos somente o seu rosto, depois o tronco inteiro, mantendo ainda as pernas fora de cena. O palhaço está com todo o ar retido nos pulmões, pois antes de entrar realizou uma inspiração profunda cujo ar propositadamente não foi liberado. Após olhar por alguns instantes o público daquela noite, Avner faz uma profunda expiração. A audiência repete o movimento de expiração, quase sem perceber, e se estabelece imediatamente uma relação de conforto entre palhaço e público. Depois disto, ele ainda permanece parado por alguns instantes, apenas respirando e olhando as pessoas com quem dividirá a próxima hora. É uma maneira de observar e começar a entender o público daquela noite, ao mesmo tempo em que instala um ritmo diferenciado daquele em que todos se encontravam antes da sua entrada. Em seguida, anuncia através de gestos que vai dar início à limpeza do palco e principia a ação. 50 Avner afirma que o sucesso de sua entrada é conseqüência do esvaziamento do estado de tensão em que ambos, platéia e palhaço, se encontram antes do início do show. O palhaço está nervoso porque espera que o público goste do que ele fará naquela noite. Por outro lado, a platéia encontra-se ansiosa, torcendo para que não tenha sua próxima hora desperdiçada assistindo a um espetáculo maçante. Quando se anuncia o início do show, ambos inspiram e retém o ar, automaticamente, porque essa é a atitude que todos temos quando algo novo vai acontecer, um reflexo natural de defesa do corpo, que sequer percebemos, mas que realizamos diante de qualquer novo acontecimento ou proposta. A expiração conjunta provocada por Avner imediatamente faz com que esta tensão inicial se dissipe, dando lugar a uma sensação de conforto. Ao assistir Exceptions to gravity mais de uma vez, pude verificar a real eficiência de tal procedimento, mesmo diante de públicos diferenciados. Um ponto importante é que esta primeira expiração conjunta garante que se estabeleça uma forte conexão das pessoas do público com o Avner e também entre elas. Cria-se uma unidade na plateia provocada pelo fato de todos estarem, sem necessariamente perceber, respirando num ritmo semelhante ou mesmo igual, o que vai facilitar toda a comunicação posterior do palhaço. 1.3.3 Triangulação A triangulação é um mecanismo essencial ao jogo da máscara, em que se pode inserir o palhaço. Ela garante a criação de um canal de comunicação direto do público com a ação que está sendo desenvolvida. A escolha desta nominação se deve ao fato de que se desenvolve um jogo de olhares capaz de construir uma representação geométrica, imaginária, que adquiri o formato de um triângulo (...) Um dos vértices desse triângulo é ocupado pelo artista que está em cena e conduz o olhar dos espectadores; outro vértice é ocupado pelo público, com quem o artista se comunicará; e para fechar o triângulo, o terceiro vértice é ocupado por aquilo que o artista quer comunicar (pode estar ligado a uma pessoa, situação advinda da plateia, ou de seu companheiro de cena, algum objeto, ruído, ou mesmo algo que ocorre no próprio corpo do ator, em seu figurino, por exemplo). (Matos, 2009: 47) A triangulação é ―uma estratégia para colocar o público dentro do espetáculo e para que o mesmo não disperse sua atenção em relação ao que está acontecendo.‖ (Wuo, 131: 2005). Ela se opera através de uma divisão do olhar com o público a cada novo acontecimento. Algo muda, um novo problema se instala: olha-se para a plateia. ―A máscara deve abordar diretamente o público a cada mudança que ocorrer na situação, e 51 conseqüentemente, no objetivo, na urgência, no estado, na ação.‖ (Achcar, 2005: 147). Este procedimento garante uma organização da cena e da comunicação com o público que revelase essencial para o jogo do palhaço. Não encontrei no Inglês, língua nativa de Avner, um sinônimo exatamente equivalente a triangulação. O mais próximo disso é a expressão check in with the audience, que pode ser traduzida como ―checar com a platéia‖. Segundo seu ponto de vista, ainda que muitos professores estimulem o uso do check in, Avner considera este procedimento bastante condenável. De fato, em seu show ele triangula com o público menos do que a maioria dos palhaços, justificando tal escolha por dois motivos distintos. O primeiro deles, explicitado na entrevista concedida a Christopher Lueck, também possui relação com os seus pensamentos a respeito da respiração do público. Segundo ele, cada vez que mudamos o foco do nosso olhar para uma nova direção, inspiramos. Nós o fazemos por um mecanismo de alerta de nosso sistema psicofísico, que ao ser confrontado com algo novo se protege através da inspiração. Quando percebemos estar novamente em segurança, nós expiramos. Aplicando tal teoria à cena, quando o palhaço está realizando uma ação e a interrompe para olhar para a plateia, ele inevitavelmente irá inspirar, por causa da mudança de foco do olhar, provocando também a inspiração do público. Isto faz com que a todo o momento se instale um estado de alerta no público que não é vantajoso para o espetáculo. Avner afirma que ele próprio costumava triangular muito mais, dividindo o olhar com a audiência a cada novo momento da sequência. Até descobrir que é possível permitir à plateia simplesmente acompanhar o problema em que se meteu para, somente quando ele já foi solucionado, dividir o olhar com ela. Porque então ele poderá inspirar em conseqüência da mudança no foco do olhar e logo em seguida expirar aliviado porque finalizou o problema. E a platéia inspira e expira com ele, relaxando. De acordo com a sua teoria, através deste procedimento é possível obter muito mais riso do público do que se a cada mudança na ação dividirmos o olhar. O segundo ponto, que faz com que ele condene a utilização excessiva da triangulação, é que, de acordo com o seu ponto de vista, ela coloca o palhaço num estado de inferioridade em relação à plateia, como se estivesse o tempo inteiro querendo a confirmação de que está indo bem, o que acaba por cansar a audiência. Avner compara esta atitude, observada na atuação de muitos palhaços, com a que as crianças pequenas têm em relação a seus pais, dividindo tudo o que fazem com eles e esperando por um sinal de elogio e aprovação. Avner questiona: ―É este o tipo de relação que você quer que o público tenha com você? (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) 52 Acredito que o termo em Inglês check in wih the audience facilite um entendimento da triangulação como esta simples necessidade de averiguação do palhaço sobre quais estão sendo as reações do seu público. No entanto, parece-me que o olhar que o palhaço lança à platéia durante a triangulação não precisa, necessariamente, ser o de quem está solicitando aprovação. A triangulação tem um papel muito mais importante do que esse, servindo, inclusive, para organizar o tempo-ritmo da cena, fundamental para o jogo do palhaço. Apesar de ter, em seu discurso, um posicionamento bastante radical em relação à triangulação, ela está consideravelmente presente em Exceptions to gravity. Avner olha de forma direta para o público em diversos momentos do espetáculo, como quando comemora a solução de um problema que enfrentou ou ao receber aplausos. Na verdade, a principal diferença que se pode observar em relação à maneira como a maioria dos palhaços faz é que Avner não olha diretamente para a platéia enquanto está envolvido com as tentativas de solucionar algum dos diversos problemas que enfrenta ao longo de todo o espetáculo. No entanto, continua dividindo com a audiência as mudanças que vão acontecendo, uma vez que respeita o tempo de suspensão da ação, onde aconteceria também a divisão do olhar. Desta forma, parece-me que garante a utilização da triangulação, mantendo a especificidade de não realizar a quebra também através do olhar direto para o público. Isto porque, segundo a sua percepção, este olhar enfraquece a relação com a platéia, por provocar excessivas inspirações de ar. É possível dizer que Avner encontrou uma maneira particular de realizar a triangulação, potencializando a sua eficiência dentro daquela estrutura específica. 1.3.4 Voluntários Fonte: http://www.kosmix.com/topic/avner_eisenberg, créditos indisponíveis A utilização de voluntários do público é bastante comum em shows de palhaço. Porém, a maneira como Avner a realiza traz algumas particularidades que merecem uma análise mais detalhada. Ele produziu um texto denominado justamente ―Trabalhando com 53 voluntários‖, em que apresenta alguns tópicos que podem servir como base para este trabalho. Tais tópicos, desenvolvidos a partir dos conhecimentos que foi acumulando ao longo dos anos, tinham por objetivo organizar um pensamento que pudesse ser transmitidos a outros palhaços. São estes: Faça o seu voluntário se sentir bem. O objetivo é fazer com que o resto da platéia diga para si mesma: ―Aquilo parece divertido. Talvez eu seja escolhido da próxima vez.‖. Obtenha o acordo antes de fazer contato- venha com uma proposição. Seja claro no que você quer que o voluntário faça. Entre no espaço próximo ao provável voluntário. Não tenha medo da rejeição. Faça o voluntário se sentir como o escolhido, não como se você precisasse dele para se salvar. Nunca coloque no palco alguém que não quer ir. Se o voluntário estiver desconfortável ou sem colaborar, retorne- o à sua cadeira e se desculpe gentilmente, assim o próximo voluntário vai saber que será bem tratado. Leve a culpa se o voluntário fizer alguma besteira. Exemplo: se uma bola for jogada acima da sua cabeça, reaja como se você estivesse no lugar errado, ao invés de como se a bola tivesse sido mal jogada. Se o voluntário estiver feliz, a audiência estará feliz. Leve o tempo necessário para ter certeza de que o voluntário está respirando. Use verbais e não-verbais comandos. Sempre tranquilize o voluntário de que ele está fazendo bem e que independente do que ele fizer, está correto. Descubra verbais e não verbais táticas para se aproximar do voluntário. (Eisenberg, http://www.avnertheeccentric.com/vounteers-portuguese.php, acesso em 12 de Janeiro de 2010) Alguns destes tópicos serão discutidos no presente texto, a partir da exemplificação e análise de momentos do espetáculo. Ainda que em Exceptions to gravity diversas pessoas do público ocupem o papel de voluntários para a realização de pequenas ações, Avner mantém uma relação constante com uma única mulher, pela qual ele mostra estar apaixonado e que eu vou nomear a partir de agora como ―a escolhida‖. O desenvolvimento desta relação auxilia a construção dramatúrgica do show, na medida em que se torna um elemento que se repete sempre, como as quedas do chapéu ou o equilíbrio de objetos. A relação inicia-se concretamente no momento em que ele machuca o dedo e realiza o número clássico em que pede um beijo para sarar a dor, seguido por outro machucado e outro beijo, como já descrito anteriormente. Depois disso, o espetáculo é constantemente pontuado por comentários diretos feitos à ―escolhida‖. Cito alguns dos momentos em que isso acontece: tendo nas mãos uma longa pena, com a qual realizará pequenos números, como equilibrá-la no nariz e andar sobre os joelhos e voltar a ficar de pé sem deixá-la cair, Avner insinua utilizá-la também para fazer cócegas na ―escolhida‖; em outro momento pede a sua ajuda para retirar de dentro da calça um tubo de copos que acidentalmente caiu ali; mais à frente tira uma foto dos dois juntos com a máquina que ―roubou‖ de outra pessoa da platéia. 54 Num dos últimos números do show, Avner trabalha com a participação de toda a platéia. Trata-se de um concerto, no qual ele é o maestro e o público, seus músicos. Depois de receber efusivos aplausos por equilibrar uma escada no queixo, percebe que pode manipular a manifestação sonora da plateia. Passa então a comandar subidas e descidas de volume de acordo com os seus gestos. Diante do bom desempenho dos seus ―músicos‖, aumenta o grau de dificuldade da proposta, dividindo a plateia em grupos que deverão seguir comandos diferenciados, formando uma música executada pela multidão. O público das duas extremidades passa a ter que gritar enquanto quem está no meio assobia. Rapidamente, Avner localiza alguém na platéia do meio que não sabe assobiar e interrompe o número para se dirigir a essa pessoa. Pede a ela que se levante e diante da confirmação de que realmente ela não sabe assobiar Avner a abraça, lamentando efusivamente sua falta de talento. Carinhosamente, ele a pega pelo braço, demonstrando que tem uma solução para o problema. Avner atravessa a platéia com a pessoa ao seu lado, entre risos do público, levando-a sempre cheio de pena e carinho. Surpreende-nos então com a solução que encontra para o problema: expulsar a pessoa do teatro. A platéia gargalha diante de tal atitude, especialmente porque ela quebra a expectativa quanto à relação que vinha se estabelecendo até então. Mas Avner desiste de mandá-la embora e direciona-se, juntamente com a moça, à ―escolhida‖, que está sentada na parte da platéia que deve apenas gritar. Pede então para que ela assobie. Verificando que a ―escolhida‖ sabe fazê-lo, o que aumenta ainda mais o seu amor por ela, o palhaço descobre nova forma de solucionar a questão: troca as duas de lugar na platéia. Resolvido, a moça que não sabe assobiar precisará apenas gritar. No final do concerto, Avner volta para a platéia para destrocar as duas mulheres de seus lugares. Dirige-se primeiramente à ―escolhida‖ e a leva pela mão até o seu lugar de origem, onde ajuda a que não sabe assobiar a se levantar, sem permitir que a ―escolhida‖ sente. Ele segura cada uma delas por uma das mãos e as leva até a cadeira de origem da que não sabe assobiar. Depois de uma pequena confusão onde se embolam os braços dos três, Avner finalmente consegue fazer com que ela se sente, liberando-a. Ao invés de direcionar a ―escolhida‖ de volta para a sua cadeira, ele a leva para o palco, provocando novas gargalhadas de toda a platéia. Com este confuso percurso até o palco ele consegue fazer com que a ―escolhida‖ suba ali quase sem se dar conta, diferente de muitos artistas que transformam este num momento de grande tensão para quem vai subir, que se percebe o centro das atenções e pode facilmente desistir. Além disso, a maneira progressiva como Avner desenvolve a relação com a ―escolhida‖ ao longo de todo o show permite que quando ele a leve para o palco ela já se 55 encontre tão à vontade, sentindo-se mesmo parte do espetáculo, que não oferece nenhuma resistência para permanecer ali. Ao invés de se sentir desconfortável e apreensiva, o que muitas vezes acontece nos espetáculos que se utilizam de voluntários, Avner desenvolve o tempo inteiro a relação de maneira que a ―escolhida‖ se sinta feliz e orgulhosa por estar nesse lugar. Evidenciam-se assim dois dos princípios por ele preconizados: ―Faça o seu voluntário se sentir bem. O objetivo é fazer com que o resto da platéia diga para si mesma: ´Aquilo parece divertido. Talvez eu seja escolhido da próxima vez‖, o que se justifica através de um outro: ―Se o voluntário estiver feliz, a audiência estará feliz.‖. (Eisenberg, http://www.avnertheeccentric.com/vounteers-portuguese.php, acesso em 12 de Janeiro de 2010) Avner estabelece esta mesma relação de conforto e cuidado com todos os outros voluntários de que se utiliza. O que não significa que ele seja o tempo todo ―bonzinho‖. Em alguns momentos, o palhaço transforma a outra pessoa no motivo do riso, especialmente quando ela se mostra incapaz de entender alguma proposta que ele tenha feito. Em um dos espetáculos que eu assisti, a ―escolhida‖, quando já estava no palco, foi convidada a sentar numa cadeira colocada no centro. Diante da sua demora em realizar a ação, Avner repetiu o pedido e ela apontou para si própria, como a perguntar se era ela quem deveria se sentar. Com gestos, ele disse que sim e apontou para o resto do palco vazio, mostrando que não poderia estar se referindo a mais ninguém. Mas Avner faz isso de uma forma que a própria pessoa também ri de si, acompanhada por ele e pelo restante do público. Até porque este palhaço já deu mostras suficientes de sua própria incapacidade de lidar com os problemas mais simples, então é bastante cômico vê-lo sinalizar a dificuldade alheia de entendimento. Por outro lado, quando Avner solicita algo de um voluntário e este atende ao seu pedido de maneira incorreta ele sempre age como se o erro tivesse sido seu, de maneira a não inibir a pessoa a continuar tentando, como se confirma no seguinte tópico: ―Leve a culpa se o voluntário fizer alguma besteira. Exemplo: se uma bola for jogada acima da sua cabeça, reaja como se você estivesse no lugar errado, ao invés de como se a bola tivesse sido mal jogada.‖ É muito comum ver palhaços que diante do erro do voluntário brigam com ele para que da próxima vez acerte, mas é muito mais interessante ver o palhaço botando a culpa em si mesmo. Especialmente porque está claro para toda a platéia que não foi ele quem errou, contribuindo para reforçar a maneira inversa com que ele percebe todas as situações. 1.3.4.1 Aikido 56 Avner pratica constantemente o Aikido, arte marcial japonesa criada em 1940. Segundo o palhaço, ela fornece uma base de treinamento importante para o seu trabalho com os voluntários. De acordo com O´Sensei Morihei Ueshib, fundador desta prática "Aikido não é uma técnica para lutar com ou derrotar o inimigo. É o caminho para reconciliar o mundo e fazer dos seres humanos uma só família." (http://www.Aikidobr.com.br/Aikido/ acesso em 03 de Julho de 2011) Não existem competições nem disputas no Aikido, cuja prática em geral é composta por aquecimento e alongamento do corpo e treinos de técnicas de aprisionamento, torções, projeções e rolamentos, através das quais são trabalhados fisicamente os princípios do Aikido. Dentre eles, tem destaque o de não-resistência, através do qual o praticante desenvolve a sensibilidade para acompanhar a energia do parceiro de forma harmoniosa, ao invés de se opor a ele. Enquanto a base de grande parte das lutas marciais está no enfrentamento, na disputa de força e espaço com o oponente, o princípio do Aikido é justamente o contrário. Quando o oponente ataca, ao invés de oferecer resistência deve-se perceber o direcionamento do movimento proposto e aproveitá-lo, indo na mesma direção anunciada por aquele que avança. A inexistência de oposição leva o corpo do outro à queda, por isso ao observar um treino do Aikido tem-se a impressão de que ele é composto basicamente por quedas e levantamentos. De acordo com Avner, o Aikido trabalha essencialmente sobre como se manter o tempo todo em equilíbrio e na vertical. Além de como se apropriar do espaço onde se está, mantendo-se sempre em prontidão para deixá-lo, caso alguém o queira mais do que você. Ele define essa luta como um jogo físico de contato, que quando bem realizado acontece sem que a outra pessoa sequer perceba que está sendo tocada. O objetivo de Avner com o treinamento físico é atingir uma forma muito suave e ao mesmo tempo muito expansiva do Aikido, através de exercícios que possibilitam um aprendizado profundo sobre como se manter no controle da relação com o espaço e com o outro, independentemente do que aconteça a sua volta. (Eisenberg apud Lueck, 2011: 61) Durante a entrevista que realizei com este mestre, pude experienciar fisicamente o funcionamento dos princípios do Aikido. Diante da minha pergunta sobre qual era a relação desta prática com o desenvolvimento do trabalho com os voluntários, Avner me propôs que levantássemos para que ele pudesse me fazer entender, através do meu próprio corpo, qual era a relação que estabelece entre as duas coisas. O relato a seguir faz parte do material da entrevista: 57 Ponha a mão no meu ombro. (Avner iniciou a demonstração solicitando que eu empurrasse seu ombro. Ao invés de se opor ao meu movimento ele cedia a ele, indo para a mesma direção para qual eu o empurrava. O que fazia com que eu perdesse o equilíbrio) Empurre, empurre. (Continuamos por mais um tempo até que eu quase caí no chão, o que não aconteceu apenas porque ele me segurou antes disso) Eu posso lutar com você. Mas eu faço muito melhor sendo receptivo e amável (Seguindo sua instrução, avanço novamente em sua direção e ele apenas desvia. Mais uma vez eu perco o equilíbrio) Você quer ir lá? Vá lá... Agora, outra coisa. Puxe aqui. (Pediu para que eu puxasse com força a sua mão para baixo. Novamente ao invés de se opor ao movimento ele cedeu a ele, indo na mesma direção). Eu sinto que você quer ir nesta direção. Então eu te ajudo. Agora eu sinto que você quer ir para lá, te ajudo também. A minha questão é perceber o direcionamento do seu movimento e aproveitá-lo. Essa é a base do Aikido. Não é sobre força. Você só precisa de um dedo (ele coloca um dedo no meu cotovelo e apenas com ele comanda a direção que o meu corpo deve seguir, fazemos isso durante algum tempo) (...) Por um olhar filosófico, esta é a relação que deve ser estabelecida com a platéia. Eu empurro você e você vai: ―Ok, o que tem de interessante aqui, deixe-me ver...‖ Existem muitas aplicações interessantes no Aikido para o trabalho com voluntários. Por exemplo, no Aikido nós aprendemos a comandar o movimento sem força. (levantamos de novo e ele demonstra como faz para conduzir o movimento do voluntário sem que ele se dê conta. O contato da sua mão com meu corpo é muito suave, mas ainda assim direciona o meu movimento). Você está vendo?Eu quase não te toco... É muito suave e a pessoa nem sabe que você está encostando-se a ela. Ela realmente não se dá conta.(Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) A partir desta experiência prática eu pude verificar uma relação estreita entre o Aikido e a técnica denominada contato-improvisação, criada por Steve Paxton no início dos anos 70, cujo treinamento fez parte de diversos momentos da minha formação como palhaça, especialmente nas aulas de ―Jogo e Relação‖ ministradas por Flávio Souza. Basicamente o contato-improvisação é uma técnica que investiga a improvisação e a exploração de movimentos a partir do estabelecimento de pontos de contato físico e troca de peso. Os movimentos surgem da experiência do toque e da relação de dar e receber o peso do corpo, tomando consciência dos vários aspectos dessa troca. (...) ensina como sentir o peso e como entrar em relação com o outro. É uma investigação sobre o movimento a partir de leis naturais que interferem no corpo quando este se propõe a sair do estado de inércia, descobrindo que mecânica está implicada quando o corpo se move. (Carvalho, 2009: 52) Parece-me que tanto o contato-improvisação quanto o Aikido podem ser pensados como treinamentos que sensibilizam o corpo, tornando-o capaz de prontamente entrar em relação, ser afetado e responder aos estímulos recebidos do outro. Uma resposta que não nega a proposição alheia, pelo contrário, confirma-a, tornando possível entrar verdadeiramente em relação e até mesmo conduzir a maneira como esta relação vai se desenvolver. Por exemplo, o conhecimento das relações de peso e força faz com que seja possível a Avner conduzir o movimento do voluntário através de toques suaves, quase imperceptíveis, mas que vão direcionando o corpo do outro para onde ele deseja que vá. 58 Ao estar aberto ao estabelecimento de uma relação que não se dá através da imposição, o palhaço pode ainda transformar a proposição de um voluntário ou de todo o público, de maneira a que algo que a princípio contrarie a sua idéia inicial seja também interessante. O seguinte exemplo, onde Avner relata o que aconteceu em uma de suas apresentações durante o número em que faz o concerto com a platéia confirma o acima exposto: Houve um festival em que todo um lado da plateia, eu não sei como eles conseguiram aquilo, porque eram realmente todos, ficou em absoluto silêncio. Eles decidiram não fazer o som. Eu acho que muitos palhaços iriam (faz um gesto apontando o dedo, como se estivesse repreendendo o público) obrigá-los a fazer aquilo. Mas eu: ―Uau! Incrível! Muito bonito‖ e ia para o outro lado da plateia, que fazia o som e voltava para eles: silêncio. E os elogiava. ―Muito bem!‖ É muito mais interessante. Esse é o grande principio, você sabe, o princípio de todos os princípios é: ―Seja interessado. Não interessante.‖(Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) É possível afirmar que o Aikido é um dos treinamentos possíveis ao palhaço para que ele estabeleça as relações muito mais a partir da escuta, do recebimento, da acolhida ao que é externo a si do que pela sua imposição, pela busca em dominar a plateia. Este princípio pode ser facilmente aplicado ao trabalho com os voluntários, como explicitado acima, mas me parece que encontra eco em algo ainda maior, sendo revelador da relação que o artista deve estabelecer com toda a sua criação. 1.3.5 Improvisação O termo improvisação pode ter sentidos muito diferentes, de acordo com o contexto em que está sendo utilizado. Refere-se tanto à base dos jogos teatrais desenvolvidos por Viola Spolin, por exemplo, quanto à técnica do teatro-esporte, fundada por Keith Johnstone e que vem conquistando cada vez mais adeptos e se firmando na atualidade como um espaço importante de investigação e prática dentro do teatro. Até mesmo dentro do universo específico do palhaço este termo adquire significações diversas. Para dar conta daquela que acredito estar mais próxima da maneira como Avner trabalha em seu espetáculo, opto por pensar a improvisação a partir da Commedia dell'Arte. O início da Commedia dell'Arte remonta a meados do século XVI. Este gênero teatral, de origem italiana, teve uma incrível capacidade de recriação ao longo do tempo, o que lhe permitiu vigorar por mais de dois séculos na Europa, devido a um engenho ―tão mercadológico quanto artisticamente expressivo‖ (Rabetti, 1997: 76). Entre as suas principais características é possível destacar a importância basilar ocupada pelo ator, que dominava primorosamente técnicas corporais e vocais, a estruturação do grupo como uma companhia 59 formada por atores profissionais e instaurada juridicamente e um modelo de composição dramatúrgica que permitia a existência de um amplo repertório, adaptável às mais diversas ocasiões e públicos. Este gênero deixou uma riquíssima herança no que se refere ao teatro cômico popular, tendo exercido influência determinante em diversos autores teatrais, entre eles Shakespeare e Molière. No processo de reteatralização do teatro que se observou no século XX, o seu estudo foi retomado por importantes encenadores, como Vsévolod Meierhold e Jacques Copeau, por exemplo. O resgate dessa tradição popular foi realizado como um caminho possível na busca das inovações que consideravam essenciais ao teatro, entre elas, a criação de uma linguagem específica para o ator, diferente do naturalismo. As técnicas corporais dos comediantes italianos foram usadas por estes pesquisadores como base para pesquisa sobre o corpo do ator. Embora a Commedia provoque constante fascínio entre pensadores e artistas, é impossível dar conta do que ela realmente possa ter sido. Ainda que haja uma extensa bibliografia a respeito do tema, ela não se debruça sobre todos os aspectos que compõem este gênero teatral. Além disso, são escassas as fontes originais a respeito do processo de preparação dos atores e o momento da cena, por exemplo. É possível observar inúmeras divergências e pontos de vista entre aqueles que se dedicaram a estudar este gênero, especialmente nas questões relacionadas diretamente à atuação. A atenção necessária ao se aproximar do material disponível é apontada por Mazzone-Clementi ao afirmar que: Embora nós possamos conjecturar a respeito da Commedia a partir de uma perspectiva histórica, nós não podemos saber como ela era. Não existem roteiros, nem fotos. Há apenas algumas pinturas, algumas descrições esparsas, e uma multidão de cenários intraduzíveis. Ainda assim, um grande interesse na Commedia continua. Qualquer um pode abrir a gaveta marcada Commedia dell´Arte, mas tendo aberto-a, como saber o que escolher dali? Para alguns, a Commedia significa uma poeirenta reencarnação das posturas e poses de um Callot22, charmosas enquanto desenhos, mas mortas no palco. (Mazzone-Clementi, extraído de http://www.dellarte.com/dellarte.aspx?id=257, acesso em 16 de Novembro de 2010, 23 tradução minha) 22 Mazzone- Clementi refere-se à coletânea de gravuras de Jacques Callot intitulada Balli di Sfessania que foi considerada durante longo tempo como registro legítimo da Commedia, sendo reproduzida em diversos livros que abordavam o tema. Hoje, no entanto, já está provado que tratava- se apenas de uma reinterpretação pessoal do gênero feita por este artista. 23 Although we can conjecture about commedia in a historical framework, we cannot know what it was like. There are no existing scripts, no photos. There are only a few paintings, a few sparse descriptions, and a horde of mostly untranslated scenarios. Yet, a great interest in commedia continues. Anyone can open the drawer marked commedia dell'arte, but, having opened it, how does one know what to choose from it? For some, commedia means a dusty reincarnation of the postures and poses of a Callot, charming in print, but deadly on the stage. Anyone can open the drawer marked commedia dell'arte, but, having opened it, how does one know what to 60 Um dos pontos mais polêmicos que vem permeando os estudos da Commedia refere-se justamente à improvisação. Até hoje não existe um consenso dos pesquisadores sobre a maneira como ela acontecia e que papel ocupava na estrutura de que fazia parte. Ainda são escassos os estudos sobre este ponto específico e as opiniões divergentes evidenciam que este é um tema ao qual ainda merecem dedicar-se muitas pesquisas. Existe, porém, um ponto de vista que vêm se solidificando e é com ele que me afino nesta pesquisa. Durante longo tempo, a improvisação foi entendida como uma espécie de falta de rigor e compromisso, como se os atores tivessem no palco liberdade para criar livremente, a partir de um dom natural e sem precisar se basear em nenhuma dramaturgia. Hoje se sabe que a improvisação ocupava um papel bastante diferente, ainda que não possa se definir com precisão que papel era este. Há estudos que apontam que durante os espetáculos, a improvisação se dava através da utilização de uma linguagem codificada, através da qual os atores, em permanente relação com a plateia, determinavam a partir de suas ações quais seriam as escolhas subseqüentes mantendo-se fiéis aos limites impostos pelos seus papéis. É possível perceber que ao invés de uma forma primária de sobrevivência, baseada apenas num modelo simplificado de improvisação, como a Commedia dell´Arte foi por longo tempo encarada, tratava-se de um gênero teatral complexo que exigia dos cômicos habilidades específicas e um profundo domínio técnico. É o que afirma Dario Fo: Os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags, lengalengas, ladainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impressão de estar improvisando a cada instante. Era uma bagagem construída e assimilada com a prática de infinitas réplicas, de diferentes espetáculos, situações acontecidas também no contato direto com o público, mas a grande maioria era, certamente, fruto de exercício e estudo. (Fo, 1998: 17) A apresentação que faço da maneira como se dava a improvisação na Commedia dell'Arte se deve ao fato dela possuir estreita relação com uma das formas em que aparece no universo do palhaço. Trata-se do que Luis Otávio Burnier denominou como improvisação codificada (2009: 218). O palhaço possui um amplo repertório formado por seus números, gags e etc. Por mais que exista uma dramaturgia razoavelmente estabelecida, há sempre um nível de abertura, de porosidade, que permite ao palhaço escolher entre todo o material de que dispõe qual deve ser utilizado com cada plateia específica, além da possibilidade de inserir novos elementos. choose from it? For some, commedia means a dusty reincarnation of the postures and poses of a Callot, charming in print, but deadly on the stage 61 Este tipo de improvisação exige do artista um grande nível de atenção e comprometimento com a cena, pois precisa estar ao mesmo tempo conectado com o que está acontecendo no momento presente na plateia e com todos os elementos que compõem o seu repertório, para que possa fazer rapidamente a escolha do que acionar a cada instante. O palhaço argentino Chacovachi apresenta a questão da relação do palhaço com a plateia e a improvisação através de uma analogia com uma partida de xadrez, que me parece bastante interessante. Antes de tudo, ele afirma que a partida é jogada ao mesmo tempo com e contra o público. O rei é a dignidade e a fonte de energia do palhaço. Se ele perde algum dos dois, perde o jogo. A rainha é sua personalidade e suas atitudes, é quem defende e ataca e que pode levar sozinha à vitória, a que vai para onde quer e quando quer. Jogando sem atitude e personalidade é muito difícil o triunfo. Os bispos, cavalos e torres são as rotinas daquele palhaço, fundamentais para estar em cena, podem ser números clássicos, participativos, excêntricos, de habilidades ou paródias. Os peões representam os chistes e gags, que podem ser sacados a qualquer momento. Segundo a maneira como se move o público a cada jogada, o palhaço irá mover-se. É por isso que apesar do material ser sempre o mesmo, não acontecem duas apresentações iguais, é impossível prever a maneira como o público jogará a cada vez. (www.chacovachi.com, extraído em 10 de Abril de 2010) Esta é uma das maneiras de entender a improvisação na atuação do palhaço e provavelmente a mais frequentemente observada. No entanto, não é a única. Dentro da palhaçaria clássica existe outro entendimento, que prevê que o único espaço de improvisação existente é no alargamento ou diminuição do tempo entre as ações, de acordo com o público e com o lugar da apresentação de cada noite. É desta maneira que pensava o palhaço italiano Nani Colombaioni: Uma coisa é se apresentar numa lona de mil lugares, outra é se apresentar num teatro de arena, ou ainda num palco italiano ou na rua. Haverá dias com mais adultos na plateia e outros com mais crianças ou idosos. O público pode estar mais perto de você ou mais longe. Tudo isso vai interferir no seu jeito de atuar, porque as suas ações vão chegar de formas diferentes para o público dependendo de cada realidade. Diante de tantas incertezas as únicas coisas que lhe restam são a eficiência do roteiro que você já sabe que funciona e o fato de estar vivo em cena. Tem que ser fiel ao roteiro, sem ignorar a realidade de cada plateia. Isso fará com que um espetáculo nunca seja igual ao outro, apesar de você estar fazendo aquilo pela milésima vez. Isso é improvisação para mim. (Colombaioni apud Libar, 2008: 135 e 136) Durante a entrevista que realizei com Avner, perguntei sobre de que maneira a improvisação estava presente em sua atuação. A princípio ele negou a sua presença ―Eu improviso em todos os minutos do meu dia. Exceto quando estou no palco‖. (Eisenberg, 62 entrevista para a autora, em anexo) Mas com o decorrer da conversa ele apresentou a sua teoria a respeito, que vai de acordo à idéia de que na atuação do palhaço existe uma improvisação com leis e regras determinadas. Comparou a atuação do palhaço a um sistema computacional, onde existem milhares de caminhos internos que podem ser percorridos, mas que no final devem levar sempre ao mesmo lugar: Você faz alguma coisa, eles riem, você faz isso. Você faz a mesma coisa, eles não riem, você não faz a mesma coisa, você faz aquilo. Não importa. Então a coisa toda é uma série de decisões ramificadas. Quando alguém, por exemplo, tira uma foto de você durante o show. Ele fica em pé e ―click!‖, com um flash bem forte. O que você faz? Bem, você pode não fazer nada; você pode parar, se arrumar e posar para a foto; você pode ir lá e tirar a câmera da pessoa; levar a câmera para o palco e tirar uma foto de todo o público; você pode entregar a câmera a outra pessoa e pedir para que tire uma foto de vocês dois. Enfim, eu posso ficar nisso por um longo tempo. Mas cada uma dessas opções indica uma decisão e conduz a um caminho na rede de decisões. Mas quando você termina, precisa estar exatamente onde começou. (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) Ao assistir à atuação de Avner ao vivo cinco vezes tive a chance de observar os mesmos trechos do espetáculo sendo realizados em espaços diferentes e para públicos distintos e refletir sobre a maneira como ele trabalha a improvisação. É espantosa a precisão com que ele realiza as ações, dando a impressão de que repete tudo exatamente da mesma forma a cada dia. Porém, a relação com a plateia exige um nível de abertura no espetáculo que conduz inevitavelmente a sutis modificações. Avner não chega a mudar a ordem dos números e nem opta por um material diferente do que havia previsto antes do início do espetáculo de acordo com a reação do público. Mas prolonga ou diminui determinada sequência dependendo do envolvimento da plateia com a proposta, por exemplo. O espaço que a improvisação tem em Exceptions to gravity ficou bastante claro quando pude observar repetidamente o número do concerto, onde toda a audiência é utilizada como voluntária. Em geral, o público adere completamente à proposta, fazendo com que Avner a elabore cada vez mais. Como já foi dito anteriormente, determina sons diferenciados para cada parte do público: uma parte grita, outra assobia e a outra apenas bate com os pés no chão. O concerto segue até um grand finale que envolve todos os presentes. O público levanta-se para aplaudir de pé. Neste momento, Avner vira-se de costas, agradece a uma plateia imaginária localizada no fundo do palco, retorna para a frente e, caso o público real ainda não esteja de pé, solicita que se levantem para também agradecer. As pessoas levantamse e curvam-se, entre divertidas e envergonhadas por estarem cedendo à proposta. Mas uma 63 inevitável olhada discreta para as cadeiras ao lado confirma que todos os ―músicos‖ estão agradecendo. No fim, novas palmas, agora para Avner e para si próprios. Em um dos espetáculos que assisti, porém, não houve uma adesão total à proposta musical e apenas parte da plateia estava participando da orquestra. Avner finalizou-a antes, fato imperceptível para os demais espectadores, mas que certamente garantiu que ele fosse aplaudido com um entusiasmo que não aconteceria caso tivesse prolongado o número até onde geralmente é o seu final. Terminar garantindo as palmas calorosas era essencial, porque elas são o gancho para o número seguinte. Desta maneira, o palhaço manteve-se fiel ao repertório previamente codificado, fazendo os ajustes necessários diante daquele público específico. 1.4 A técnica dos movimentos A principal base de formação de Avner se deu, como já foi dito, através dos conhecimentos adquiridos na Escola de Jacques Lecoq. Ele afirma que chega a ser impossível mensurar o tamanho da influência do mestre francês, cujos ensinamentos se fazem presentes no seu trabalho até hoje. ―Lecoq continua olhando por cima de meu ombro toda vez que eu estou criando algo novo‖ (Lueck, 2011: 56, tradução minha)24. A limpeza de seu gestual, a maneira como envolve todo o corpo na realização de cada ação e o rigor com que as executa são alguns exemplos observáveis em sua atuação e que confirmam a veracidade de tal afirmação. A técnica dos movimentos é trabalhada ao longo de toda a formação dos alunos na École e seu principal objetivo é preparar o corpo dos estudantes para que possam incorporar os conhecimentos a ponto de não ser mais preciso sequer pensar sobre eles. Certamente, Avner quando está em cena hoje em dia (depois de 38 anos, é sempre válido lembrar) não fica mais pensando em como criar pólos de oposição entre as partes do seu corpo, por exemplo. Mas eles estão lá, presentes e atuantes. A relação com a técnica preconizada por Lecoq me parece ser a mesma que Chacovachi expõe na seguinte declaração: ―Para poder ser palhaço aprendi muita técnica. No princípio aprendi, depois esqueci.‖ (http://www.mundoclown.com.br /chacovachipalhacoargentino, acesso em 10 de Junho de 2011). Ainda que a técnica dos movimentos seja um dos três eixos centrais do caminho pedagógico proposto na École Internationale de Théâtre - os outros dois são: a improvisação 24 Lecoq is still looking over my shoulder whenever I‗m creating something. 64 e o auto-cours - servindo como base para todo o desenvolvimento do aluno, a produção teórica por ele elaborada sobre este tema é escassa. Diante da importância de seus pensamentos sobre o teatro, é possível dizer que Lecoq escreveu realmente muito pouco. Possivelmente pela dificuldade de transmitir em palavras as questões de uma pedagogia criativa e poética que estava sempre em investigação e também pelo receio de que houvesse um posterior engessamento das suas teorias, uma vez que este mestre nunca procurou estabelecer uma verdade final, mantendo-se, pelo contrário, ―constantemente mudando, desenvolvendo, pesquisando, experimentando novas direções e estabelecendo novos objetivos‖.25 (Martin in Berkoff, 1999: 8, tradução minha). Fica claro que sempre foi muito mais importante para Lecoq o estabelecimento de parâmetros investigativos que lhe proporcionassem novas descobertas e perguntas do que o fechamento de um método único. Assim, diante da escassez do material fornecido por Lecoq, fez–se necessária a procura de uma produção teórica complementar, que pudesse alimentar as discussões aqui apresentadas. Nesta busca, pude encontrar na obra de Vsévolod Meierhold um rico espaço de diálogo. Este encenador russo foi um dos grandes responsáveis pela revolução teatral do início do século XX. Sua genialidade e potencial criativo, unidos a uma capacidade imensa de produção artística, permitiram que ele se ocupasse e refletisse sobre todos os aspectos que envolvem a encenação, desde o trabalho do ator até os mínimos detalhes sobre a iluminação cênica, por exemplo. Desta maneira, tornou-se antecessor de uma série de questionamentos e formulações sobre o teatro que se desenvolveram posteriormente, tendo desdobramentos que alcançam os nossos dias. Meierhold viveu num momento em que ocorriam profundas transformações na maneira de se pensar e fazer teatro, especialmente na Rússia. Em busca das inovações que considerava essenciais ao teatro, percebeu a necessidade da criação de uma linguagem específica para o ator, diferente do naturalismo. Na busca por elementos que guiassem este caminho, que deslocava o eixo central do teatro do texto para o ator, foi fundamental o estudo do teatro oriental, o resgate das tradições do teatro popular, como a Commedia dell’Arte, o Teatro de Feira, o Vaudeville (Bonfitto, 2007: 40), além das aproximações com outros campos artísticos, em especial o Circo (Picon-Vallin in Wallon, 2002: 126). Todas estas aproximações tinham por objetivo indicar um novo caminho para o ator de teatro e seu trabalho corporal. Meierhold admirava os artistas de circo por sua polivalência, expressa na execução exímia de múltiplas habilidades, bem como por terem o sentido do risco como parte 25 ―constantly changing, developing, researching, trying out new directions and setting new goals.‖ 65 primordial do movimento de criação e vivência artística. Por isso, foram muitas vezes convidados para participar dos seus Estúdios, que eram os espaços de experimentação das novas descobertas e treinamento dos atores. Ali ensinavam aos atores técnicas circenses, como jogos com malabares, quedas, saltos e clownaria. Além disso, alguns deles chegaram a integrar o elenco de seus espetáculos, como, por exemplo, Vitali Lazarenco que interpretava o Diabo na encenação de Mistério Bufo, de Maiakovski. Já o encontro com a Commedia dell´Arte aproximou Meierhold do universo da máscara, cujos princípios passaram a ser constantemente explorados na sua prática cênica. Apesar das distâncias que separam os trabalhos de Lecoq e Meierhold, percebo um lugar de encontro nos princípios sobre o trabalho corporal do ator, que passo a explorar com a finalidade de trazer elementos para o foco investigativo desta dissertação: o palhaço. De acordo com Lecoq, o movimento é muito mais do que um simples percurso ou o deslocamento de um ponto a outro. Ele é uma dinâmica na qual o que interessa é a maneira como são feitos os percursos. A base de seu ensino se constitui no estudo das relações entre ritmo, espaço e força. A técnica dos movimentos é trabalhada na École por três caminhos distintos. O primeiro deles é a preparação corporal e vocal. O segundo, a acrobacia dramática, onde são aprendidos e exercitados movimentos acrobáticos sempre a partir do estabelecimento de uma justificativa dramática que motive aquele determinado movimento, ensinamento seguido à risca por Avner em seu espetáculo quando, por exemplo, realiza uma surpreendente parada de mão apenas para recolocar em sua cabeça o chapéu que caiu no chão. O terceiro é o que mais interessará a esta pesquisa: a análise dos movimentos. Ali são explorados elementos diretamente relacionados à Mímica, numa abordagem que a entende como um ―treino que viabiliza o desenvolvimento da precisão e da consciência do movimento; mas o ator deve superar os limites expressivos da mímica e buscar suas próprias ferramentas‖. (Romano, 2008: 54 e 55) De acordo com Lecoq: ―A análise dos movimentos do corpo humano e da natureza, das ações físicas no que tem de econômico, está na base do trabalho corporal da escola.‖ (Lecoq: 2010: 116) A partir de um dos capítulos do livro Le Théâtre du Geste (1987), primeira reunião impressa dos pensamentos de Lecoq, formada por palestras e entrevistas por ele concedidas, selecionei alguns pontos relativos a análise dos movimentos que me parecem de especial importância para um pensamento a respeito do corpo do palhaço. São estes: ponto fixo, manipulação do impulso, equilíbrio e desequilíbrio e ainda oposições. Passo a um detalhamento do modo como esses elementos são utilizados por Avner em 66 Exceptions para criar momentos de comicidade buscando, por esse caminho, a exploração máxima da natureza desta figura. 1.4.1 Ponto fixo O ponto fixo possibilita uma organização do olhar em relação ao movimento. Num processo de mão dupla, ele situa o deslocamento de um movimento, ao mesmo tempo em que o movimento evidencia o ponto fixo. Serve como princípio de organização da cena, bem como do corpo do ator e, no presente caso, do palhaço. Numa cena em que todos os atores se movem ao mesmo tempo fica muito difícil conseguir acompanhar o sentido do que está acontecendo. Da mesma forma, se o palhaço move várias partes do seu corpo simultaneamente, sem suspensões que permitam a criação de um foco para o movimento, desviamos constantemente a atenção, que não consegue fixar-se em um lugar determinado. Lecoq exemplifica dizendo que na mímica ilusionista, ao se colocar um chapéu na cabeça, a presença do mesmo será reforçada caso antes ele seja mantido fixo no espaço por um instante e for vestido com um movimento que engaje o corpo inteiro. (Lecoq, 1987: 102). A consciência do ponto fixo permite também uma maior clareza na execução e sentido da gestualidade, contribuindo para que fiquem presentes somente os gestos essenciais à ação. É bastante perceptível que Avner tem total consciência da importância do ponto fixo para o movimento. Todas as suas ações são extremamente limpas e claras, com desenhos reconhecíveis no espaço. Além disso, a exploração do ponto fixo permite que ele direcione o olhar do público o tempo inteiro para o lugar que lhe interessa. Tal recurso torna-se especialmente importante em números de Mágica, permitindo-o realizar o truque sem que a platéia sequer imagine o procedimento de que se utilizou para tal. Num dos números de seu espetáculo Avner trabalha com o que parece ser, à primeira vista, um bichinho de pano comprido e com dois braços pequeninos. Avner manipula este objeto com tanta precisão que quase acreditamos que ele tem vida própria. No final do número ele surpreende toda a platéia ao desenrolá-lo e mostrar que não passava de um pedaço de tecido vermelho, que havia sido enrolado de forma a adquirir a aparência desejada. A eficiência da manipulação deste boneco se deve, em parte, à utilização do ponto fixo. 1.4.2 Manipulação do Impulso De acordo com Lecoq, toda ação é precedida por um gesto preparatório que acontece no sentido contrário àquele da ação. 67 No maior deslocamento de um objeto ou de si mesmo (lançar, saltar) criamos, antes do gesto da ação propriamente dita, um gesto em sentido contrário, que serve para definir a sua direção, como que para buscar apoio, para concentrar a força de propulsão. É o impulso do esforço, seu ímpeto. (Lecoq, 1986: 103) O impulso do esforço está presente sempre que é necessário um engajamento maior de todo o corpo na realização de uma ação. Lecoq, cuja formação inicial foi no campo da educação física, percebeu-o primeiramente nos atletas, que trabalham o tempo inteiro com a exploração do movimento na direção contraria. É o que acontece, por exemplo, com um corredor prestes a iniciar uma disputa. No momento em que o primeiro apito anuncia a proximidade da largada o corpo realiza um movimento na direção contrária a que tomará em seguida e que permite que a sua subseqüente partida seja muito mais precisa e potente. Partindo da observação do corpo dos atletas, Lecoq estendeu a utilização do impulso do esforço para o movimento dos atores. O que o mestre francês denomina como impulso encontra eco num conceito trabalhado por Meierhold e que recebe o nome de otkaz (palavra russa que pode ser traduzida como ―recusa‖). Otkaz é um princípio do movimento segundo o qual ―qualquer ação num dada direção deve começar por uma fase em direção contrária.‖ (Picon-Vallin, 2008: 68). Foi a partir da observação de um princípio do teatro oriental, segundo o qual o gesto deve terminar na direção oposta àquela em que se iniciou que Meierhold elaborou o conceito de otkaz, considerado por ele como a primeira fase na realização do movimento. Ainda sobre o impulso, vale destacar a colocação do pensador Hubert Godard, que acrescenta outro elemento muito importante a esse respeito, que é o da relação do impulso do movimento com o espaço: A primeira fase de qualquer percepção e de qualquer gesto consiste na tomada de referências no espaço. É o modo como vou me orientar que ditará a qualidade do gesto que seguirá. Essa orientação precisa de um mínimo de vetores. Um vetor que vai ser o substrato, o chão, e o outro que vai ser o espaço, a projeção no espaço. (Goudard, 2010: 6) Ou seja, o impulso do movimento se dá numa direção contrária ao gesto que origina como forma de se organizar referencialmente em relação ao espaço que o cerca, onde irá encontrar eco para a ação. Mas como o conhecimento da forma com que se opera o impulso do esforço, ou otkaz, pode servir para a criação de um momento cômico? Lecoq explica: ―A supressão do impulso criará uma surpresa e o disfarce será fazer uma ação com um falso impulso. Um impulso 68 desmedido para uma ação mínima criará uma ruptura que o riso equilibrará.‖ (Lecoq, 1986: 103) Avner explora em diversos momentos de Exceptions to gravity este princípio relativo ao impulso. Seleciono um. Ele está em cima de uma cadeira e precisa descer. Antes de iniciar a ação ajeita sua camisa e sua calça. Depois, dobra os joelhos como se fosse saltar de uma distância muito alta. Respira fundo e pula. Porém, o chão está a poucos centímetros de si. A diferença entre as dimensões do impulso e da ação provoca gargalhadas no público. Em outros momentos do espetáculo repete a mesma descida da cadeira, conseguindo sempre o mesmo riso, que agora é provocado não somente pela relação desmedida entre o impulso e a ação, como também pelo fato de que, dentro da lógica pessoal daquele palhaço, a descida da cadeira continua sendo algo muito perigoso. 1.4.3 Equilíbrio e desequilíbrio Uma das maiores contribuições que os artistas de circo forneceram às pesquisas de Meierhold se deu em relação à percepção da importância da alteração do equilíbrio e de sua recuperação pela consciência do deslocamento do centro de gravidade do corpo. É o que nos diz Picon-Vallin na seguinte passagem: É observando a figura dos malabaristas, e em particular Enrico Rastelli, que Meierhold compreende a importância no trabalho cênico dos deslocamentos do centro de gravidade: o malabarista trabalha com todo o seu corpo e não apenas com suas mãos. O jogo do ator, como o do malabarista, se traduzirá no plano cinético em termos de equilíbrio constantemente colocado em perigo, perdido e reencontrado. Não se trata somente da proeza, do desempenho, mas do processo técnico que permite a sua realização. Importa conhecer as leis do movimento para a qualquer momento poder desmanchá-lo, jogar com a surpresa, a mudança de ritmo, como o fazem os excêntricos. (2009: 128) O corpo do palhaço trabalha no limite do desequilíbrio, da mudança brusca, do risco, das alterações rítmicas. Para isso, é necessário um controle do centro de gravidade do corpo, a partir do qual é possível uma organização corporal que torne precisas as mudanças entre os estados de equilíbrio e desequilíbrio. Parece-me que é esta relação com o centro de gravidade que Avner aborda em um dos seus princípios: ―O peso pertence à parte inferior. Mantenha um simples ponto no seu baixo abdômen. Mantenha a sua energia fluindo.‖ (Eisenberg, http://www.avnertheeccentric.com/eccentric_principles_portuguese.php, acesso em 5 de Maio de 2010) Meierhold compreendeu que a um estado corporal determinado corresponde um estado emocional e, portanto, a exploração dos deslocamentos do centro de gravidade contribui ainda para a alternância entre estados de emoção diferentes com rapidez, o que é fundamental para o 69 palhaço. Assim como em outras máscaras, os estados de emoção do palhaço são todos corporificados, recebidos e expressados através do envolvimento de todo o corpo. E não existe a necessidade de transição de um estado ao outro. Ela acontece de forma imediata, por estímulos físicos, e sem necessidade de explicações psicológicas. Assim, o palhaço pode estar num instante agachado enquanto chora por ter destruído um objeto e no segundo seguinte pulando de euforia porque descobriu um novo jogo muito mais interessante. Avner utiliza-se destas relações entre equilíbrio e desequilíbrio o tempo inteiro em seu espetáculo, tanto em seu próprio corpo quanto na relação que estabelece com os objetos de que se utiliza na cena. As fotos a seguir são parte do material de divulgação de Exceptions to gravity. A primeira delas foi publicada na revista de malabares Juglers World, em 1986. Não tenho informações precisas sobre a data da segunda, porém a observação da aparência física de Avner nela torna fácil perceber que se trata de uma imagem bem mais recente. Nas duas imagens, fica bem evidente como são exploradas em seu corpo as relações entre equilíbrio e desequilíbrio. Mas uma análise comparativa da sua postura permite ainda a percepção de como, com o passar do tempo, Avner valorizou ainda mais as relações de desequilíbrio, tornando esta imagem, um dos carros-chefe de divulgação de seu espetáculo, ainda mais interessante. Fonte: http://www.juggling.org/jw/86/1/avner.html, créditos indisponíveis Fonte: www.avnertheeeccentric.com, créditos indisponíveis 70 Nas duas imagens é possível observar como Avner valoriza as relações entre equilíbrio e desequilíbrio, criando pólos de tensão opostos entre as suas pernas, as costas e as nádegas. Todas estas partes estão ligeiramente arqueadas, dando uma impressão ainda maior de mobilidade. Além disso, cada uma das regiões parece apontar para uma direção diferente. Mas na segunda imagem Avner vai até o limite, não existe nenhuma parte do seu corpo que siga o mesmo eixo que o quadril, ponto central de apoio. Ele explora ainda mais os desequilíbrios entre as duas pernas, que na primeira foto encontravam-se flexionadas uma ao lado da outra. Agora, uma das pernas avança para frente, num passo que não se dá em linha reta, mas que atravessa a direção em que se encontra a perna de trás. Além disso, o braço esquerdo, que estava praticamente encoberto na primeira imagem, é colocado em uma posição visível. Por encontrar-se ligeiramente flexionado, cria mais desequilíbrio. Mais um detalhe: a mão com os dedos abertos ao máximo aponta ligeiramente para cima, criando outra linha de oposição. Numa análise geral das duas fotos é possível notar que o aumento dos pontos de desequilíbrio gerou um visível aumento da expressividade da imagem. É possível pensar ainda que o palhaço utiliza os princípios relativos ao desequilíbrio tanto de forma concreta, na maneira como organiza seu corpo e realiza as ações, quanto simbolicamente, no desequilíbrio que é próprio à sua natureza, sendo conseqüência da sua lógica pessoal de transgressão e inversão da ordem natural do mundo. 1.4.4 Oposições (Stocker, http://stockadas.zip.net, acesso em 2 de Julho de 2011) A charge acima, parte da saga de um personagem denominado Clóvis e classificada por seu autor, Paulo Stocker, como pantomima desenhada me parece o retrato perfeito da maneira como a oposição se manifesta no corpo do palhaço. Ela é consequência do fato de que muitas vezes o corpo do palhaço precisa ir numa direção, mas seu desejo ou pensamento estão focados em outro ponto, fazendo parte do corpo apontar para outra direção, formando vetores com oposições maiores ou menores, mais nítidas ou mais sutis. Palhaços de carne e 71 osso não podem se dividir ao meio, mas seguem mantendo presentes as linhas de oposição, que são a fisicalização da lógica que estabelece entre seu pensamento e suas ações. Ainda que o foco desta análise esteja na atuação de Avner vale citar a bela descrição, feita pelo palhaço e professor Márcio Libar de como o já citado palhaço italiano Nani Colombaini utilizou as oposições durante a realização de uma gag em sua entrada de cena com o número clássico Spaghett, durante o Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro 2, em 1998. Libar descreve que Nani e seu filho Leris entraram pelo corredor da plateia em direção ao palco. Leris subiu direto as escadas para o proscênio enquanto Nani ficou ali embaixo parado, de costas para o público, olhando para os dois lados do palco, ora para uma escada, ora para a outra. Quando seu corpo parecia que ia andar em direção a uma escada, sua cabeça e seus olhos se voltavam para outra. Quando se virava decidido para aquela que estava olhando anteriormente, seus olhos e cabeça já se voltavam para outra. Ainda de costas para o público, estancou, olhou mais uma vez para cada escada, trocou o peso do corpo de um joelho para o outro e coçou a cabeça em dúvida. Quando a platéia percebeu o seu conflito explodiu em gargalhadas e aplausos. Impressionante o tempo que ele levou para realizar esta pequena gag‖ (Libar, 2008: 147 e 148). Em determinados momentos de Exceptions to gravity, este jogo de oposições se manifesta com clareza no corpo de Avner. Como quando, depois de ter recebido o beijo da ―escolhida‖, retorna ao palco, mas mantendo parte do seu corpo voltada para a direção onde ela estava. Em outros momentos, no entanto, há um jogo de oposições intensas no seu corpo, porém quase imperceptível para olhos menos atentos. É o que acontece durante a manipulação de vários copos, arrumados uns dentro dos outros, formando uma espécie de longo cano, como mostra a foto abaixo. Foto: Marie Clauzade, extraido de www.avnertheecentric.com 72 Depois de ter enfrentado diversas dificuldades em lidar com estes copos, Avner consegue colocá-los no chão, de forma vertical. Eles ganham a aparência de um tubo cumprido e flexível, com o qual Avner passa a dançar, como se fosse uma companheira de verdade. Avner cria diversas oposições em seu corpo ao longo desta dança. Outro momento em que podemos observar esse jogo de oposições é o retratado na imagem abaixo. Fonte: http://www.laguiago.com/valencia/evento/31956/el-mago-actor-y-payaso-avner-the-eccentric-enxirivella-valencia/, créditos indisponíveis Ainda que todo o seu rosto, ombros e pés estejam virados para a esquerda, Avner senta-se na extremidade direita da cadeira, chegado a deixar parte do seu corpo fora dela. Apesar de sutis, estas oposições contribuem para que consiga garantir um alto nível de atenção do público durante o espetáculo. As oposições, assim como as quebras de expectativas, de ritmos impedem a estabilização de uma harmonia na atuação, destacando uma incompletude que se manifesta de formas variadas, mas que objetiva deixar em evidência o ridículo que é próprio da sua natureza de palhaço. 73 CAPÍTULO 2 – E A PALHAÇA, O QUE FAZ? Foto: Rany Carneiro ―Eu sou palhaça!‖ Essa frase serviu-me como guia durante todo o processo de elaboração desta pesquisa de Mestrado. Conseqüência da preocupação central de que nem o fascínio provocado pela obra de Avner, nem os ricos diálogos proporcionados pelas descobertas da bibliografia deixassem encoberto o lugar de quem está falando sobre aquilo que faz. Eu sou palhaça e por isso é inevitável que uma parte considerável desta pesquisa seja dedicada à maneira como as questões que a mobilizam se operam na minha prática, no meu corpo. Assim, minha Dissertação trata também de um processo pessoal de descoberta e investigação cênica motivado pela observação da atuação de Avner e pela percepção de que aquele trabalho poderia fornecer elementos cuja análise modificaria também o meu percurso artístico. Este processo aconteceu durante a investigação que deu origem à criação de um número, Balões!, que analiso neste segundo capítulo. A metodologia desenvolvida ao longo de toda a pesquisa previu uma contaminação entre os espaços de análise de Exceptions to gravity e o processo investigativo para a criação do número. Foram trabalhos concomitantes e complementares. A análise da atuação de Avner fertilizou a investigação cênica da mesma maneira que a criação do número trouxe novas questões para a análise, estabelecendo-se um ciclo de trocas constantes que alimentava os dois 74 eixos. A divisão realizada na dissertação atende apenas a uma necessidade de organização tanto da escrita quanto de sua posterior leitura. Não nomeio esta pesquisa como teórico-prática por acreditar que tal terminologia ainda contribui, mesmo que indiretamente, para uma separação entre os dois eixos, o que não fez sentido neste processo. O pensamento e a reflexão fizeram parte de cada dia de experimentação no laboratório de criação do número, da mesma forma que o meu olhar sobre o espetáculo de Avner foi o tempo todo mediado pela palhaça que analisava a cena reproduzindo o gesto, ou que lia um texto já imaginando de que maneira aquelas idéias poderiam ser transformadas em ação. A organização deste capítulo segue basicamente a mesma divisão estrutural do primeiro, voltada agora para a análise do processo investigativo que levou à elaboração do número. Assim como no capítulo anterior, são dispostos como eixos de análise: questões relativas aos princípios do palhaço, autoria, relação com o público e técnica dos movimentos. Para além destes, foi necessário incluir também um subitem onde pudesse desenvolver algumas das questões mais específicas relacionadas aos procedimentos metodológicos que guiaram a criação do número, bem como apresentar brevemente a maneira como o processo se desenvolveu. 2.1 Princípios do palhaço Não utilizo nariz vermelho em Balões!. Esta escolha se firmou por dois motivos distintos. Primeiramente, pelo fato de Avner trabalhar assim, o que me fez querer experimentar se havia na minha própria atuação alguma diferença estando com ou sem o nariz. Além disso, exploro elementos de outros universos, como a mágica, os gestos característicos das partners que acompanham os artistas de circo em diversos números clássicos e, em especial, elementos da linguagem do burlesco. A maneira como o número foi sendo construindo, juntamente com o tipo de figurino pelo qual optei sugeriram uma figura onde o nariz vermelho parecia sobrar. De fato, me parece que a sua ausência não implicou em nenhuma mudança, na medida em que busco manter presentes em meu corpo os princípios que regem a máscara do palhaço. Trabalhar sem nariz exige, na verdade, uma obediência constante a estes princípios, de forma a garantir que a máscara esteja latente mesmo sem o seu maior signo. Até porque a essência do palhaço não reside na bola vermelha. ―Certos atores vestem uma bolinha vermelha no nariz, calçam sapatos descomunais e guincham com voz de cabeça, e acreditam estar 75 representando o papel de um autentico clown. Trata-se de uma patética ingenuidade.‖ (Fo, 1999: 304). Os princípios fundamentais à criação e atuação do palhaço, estudados no primeiro capítulo a partir da maneira como aparecem na atuação do Avner, foram trabalhados também na minha atuação. Apresento a seguir como alguns deles, como a lógica particular que se manifesta através do corpo, a alternância entre façanha e fracasso, a exploração do erro e do problema, e do grotesco foram experimentados durante o processo de construção do número e podem ser observados na estrutura dramatúrgica de Balões!. 2.1.1 Lógica particular que se manifesta através do corpo Ao longo de todo o número trabalho com a tentativa de sensualidade, que acaba por conduzir a equívocos e atrapalhações. Este é um lugar de jogo que eu já venho desenvolvendo há algum tempo como palhaça, tendo explorado-o anteriormente em outros números e espetáculos. Por isto, me interessei em aprofundar a pesquisa a este respeito, em Balões!. No começo do processo eu já tinha definido com muita clareza que ―a minha palhaça é sexy e atrapalhada‖. Porém, esta definição estava limitando as maneiras como isso podia acontecer na cena. Eu queria inventar um movimento que provocasse a disparidade, ao invés de permitir que ela aparecesse justamente através do movimento. A conseqüência é que estava criando ações esquisitas, mas que não chegavam a ser engraçadas. Depois de ter percebido isto, passei a trabalhar realmente com a procura de movimentos sensuais, como andar rebolando ou me encostar a uma parede numa pose charmosa. A ação, naturalmente desajeitada, já se encaminhava para o lugar errado, ou, no caso do palhaço, o lugar certo, que poderia provocar o riso. Então precisei apenas explorar cada vez mais estes momentos, através do desenvolvimento e repetição de tais ações. Desta maneira, pude confirmar que a lógica particular que rege a atuação do palhaço se desenvolve muito mais a partir da corporeidade do que pela pretensa exploração de características definidas à priori. Esta fisicalização de uma sensualidade equivocada não é a única maneira como trabalho com a expressão da minha lógica particular de palhaça através do corpo. Na verdade, este é um processo contínuo, presente em todo o número. Escolhi a exemplificação deste momento porque me parece que ele mostra como pode ser sutil a diferença de posicionamentos e como ela pode conduzir a lugares completamente distintos. Definir ―a minha palhaça é sexy e atrapalhada‖ não possibilitou a criação de nada que pudesse ser 76 aproveitado no número, mas trabalhar no corpo está sensualidade forneceu muitos momentos de jogo. 2.1.2 Erro e problema A exploração do erro e do problema foi fundamental para a construção dramatúrgica de Balões!. Durante toda a investigação, busquei ampliar ao máximo as dificuldades que poderia encontrar ao realizar cada uma das ações e foi a partir deste mote que desenvolvi grande parte da estrutura do número. Avner coloca que o palhaço é um solucionador de problemas e não um causador deles. Busquei experimentar qual era a diferença, durante a criação, entre gerar um problema a partir de uma tentativa de solução e simplesmente criar novos problemas a todo instante. Inicialmente, me pareceu que a diferença entre os dois era muito sutil e tentar percebê-la antes de desenvolver o problema estava, na verdade, me impedindo de criá-los. Então, dediquei-me apenas a explorar todos os erros e problemas que podia encontrar em cada ação. O jogo com os balões mostrou um grande número de possibilidades. Voltei a pensar o palhaço como um solucionador de problemas quando tive que selecionar o que deveria ser mantido na estrutura final de Balões!, privilegiando os momentos que seguiam esta lógica em detrimento àqueles em que o problema aparecia de forma mais gratuita. Numa avaliação posterior, percebo que na apresentação para o público documentada em DVD mantive um momento que deveria ter sido cortado. É quando encho o balão pela primeira vez, após inúmeras tentativas que haviam sido frustradas porque o lançava no ar com o impulso da expiração. Para comemorar o feito, estico o braço que segura o balão para o lado, mostrando ao público que finalmente está cheio. Mas o balão se esvazia em seguida, porque eu não havia dado um nó na sua ponta. Ou seja, era apenas uma nova forma de não encher o balão, que não vinha de uma tentativa de solucionar os problemas encontrados até agora para realizar tal ação. É diferente de quando, mais à frente, encho o balão, mas ao dar o nó prendo os meus dedos ali. Tento soltá-lo da minha mão e o balão se esvazia no ar, voando aleatoriamente e me assustando. Um novo problema, causado, porém, durante a tentativa de solução. O mesmo acontece em um momento anterior do número, quando vou buscar um balão que estava guardado entre meus seios. Não consigo encontrá-lo e na árdua tentativa de resolver esta dificuldade acabo gerando outra, pois enfio a mão até a barra do vestido, prendendo nele todo o braço. Ao tentar retirá-lo de lá, levanto parte do vestido, deixando-me 77 desnuda. Os problemas e dificuldades seguem, mas sempre a partir da busca por uma solução para eles. A sequência de fotos a seguir mostra este momento. Fotos:Rany Carneiro 2.1.3 Alternância entre o fracasso e a façanha Busquei incluir em Balões! um momento em que trabalhasse com a alternância entre a façanha e o fracasso. Porém, a princípio pensei que esta seria uma tarefa impossível, pois eu não possuo muitas habilidades extraordinárias e nem tenho nenhum talento acrobático, como os demonstrados por Avner em Exceptions to gravity. Mas investigando a partir da estrutura e 78 do jogo com os balões consegui desenvolver uma habilidade no trato com eles, que é a de encher vários ao mesmo tempo. Como relatado acima, encontro inúmeras dificuldades durante a tentativa de encher um simples balão. Depois que consigo fazê-lo, o jogo para fora e retiro do sutiã dois balões, que ponho na boca. Encho os pulmões de ar e rapidamente consigo que estejam cheios. Em seguida, encho ainda três balões de uma só vez. Desta maneira, revelo que apesar de ter considerado muito difícil a mais simples das tarefas, encher um balão, consigo facilmente o mais complicado, trabalhando com a alternância entre a façanha e o fracasso. Esta sequência me fez perceber que a façanha pode ser explorada de formas diferentes, não precisa necessariamente estar relacionada a alguma habilidade circense ou musical. Mais importante do que isso, é que ela surja a partir de uma questão que já vem sendo desenvolvida no número. Por outro lado, ressaltou o quanto pode ser útil ao palhaço possuir em seu repertorio algumas habilidades extraordinárias. 2.1.4 Exploração do Grotesco Ainda que o Grotesco não seja um traço muito presente na atuação de Avner, ele foi se revelando de grande importância dentro da minha atuação, ao longo do processo de construção do número. Tal fato me fez perceber a necessidade de incluí-lo como um princípio fundamental neste segundo capítulo. O grotesco se caracteriza por uma exposição ―do contraste, da tensão entre dois pólos opostos‖ (Picon-Vallin, 2008: X). Esta se expressa especialmente através de um olhar sobre o homem que leva em consideração não apenas os aspectos espirituais, elevados, mas também o corpo, com suas necessidades biológicas e seus desejos carnais, permitindo que a carne e o espírito sejam explorados em uma mesma obra, sem que um exclua o outro. Pelo contrário, a presença dos elementos opostos reforça cada um deles. Diversos pensadores dedicaram-se ao estudo do Grotesco, em especial Wolfgang Kaiser, que no livro O Grotesco (1957) apresenta uma teoria geral, acompanhada de um estudo semântico do vocábulo e da análise de algumas obras, especialmente literárias que utilizaram tal estética; também Vitor Hugo, que em O Sublime e o Grotesco (1827) se opõe ao Classicismo em defesa do movimento romântico, no qual observa a coexistência do sublime e do grotesco, e ainda Mikhail Bakhtin, que no livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, O Contexto de François Rabelais (1941), apresenta a questão do Grotesco como um elemento de liberação do homem e seus instintos e de valorização da sua corporalidade. De acordo com o autor, a cultura popular carnavalesca, onde imperava o 79 grotesco, permitia que por um curto período festivo se instaurasse uma nova ordem, que subvertia valores e hierarquias sociais. Assim, é possível afirmar que é em seu estudo que ―se encontra o fundamento principal para a nominação do grotesco como categoria do palhaço. Para ele, o riso popular organiza o grotesco como um modo de liberação de tudo que é terrível para se tornar festa.‖ (Achcar, 2007: 38) No universo do cômico e do palhaço, o grotesco é explorado ao máximo pelo bufão, figura marginalizada da sociedade que, em geral, possui algum tipo de anomalia física ou mental e é por isto colocado num lugar de inferioridade, o que lhe permite criticar abertamente diversas instâncias sociais, atitude que um homem comum não poderia adotar, sem estar colocando em risco sua própria cabeça. O bufão expõe o seu corpo em todos os aspectos que socialmente são tratados de forma disfarçada. A fome, o sexo, a escatologia são explorados escancaradamente. Também é próprio do palhaço o trato com esses temas, ainda que de forma mais suave, na medida em que ele não nega o lugar do corpo como mobilizador do riso. De acordo com Pavis, ―na derrisão grotesca, rimos não de alguma coisa, mas com aquilo que estamos ridicularizando. Participamos da festa dos espíritos e dos corpos.‖ (Pavis, 2008: 189) Ao dar ―ao corpo o estatuto de um fazer artístico que não encontra nas ideias de sublime e de belo os suportes para o seu entendimento,‖ (Bolognesi, 2003: 184) é possível aproximar-se do Grotesco, sem negar os momentos de beleza que também podem estar presentes dentro da mesma estrutura, uma vez que é justamente o trânsito entre os dois pólos que reforça cada um deles, que podem ser explorados ao máximo, permitindo jogar com os contrastes e deslocar permanentemente os modos de percepção, característica primordial ao Grotesco. O Grotesco é explorado ao longo de todo o número, especialmente porque um dos motes principais de toda a estrutura vem de uma questão totalmente ligada à carne, a sensualidade, ainda que trabalhada conjuntamente com o erro e a atrapalhação. Os estudos sobre este tema foram deixando claro que para trabalhar com a sensualidade equivocada, era importante que em alguns momentos ela fosse contraposta por uma real sensualidade. Achar este lugar foi desafiante, mas fundamental. Destaco um dos momentos de Balões! em que acredito ter conseguido transitar entre os dois pólos. Ele acontece depois das inúmeras tentativas frustradas de encher os balões, que fazem parte da primeira parte do número. Depois disso, saio de cena para retornar com parte do corpo coberta por mais de cinqüenta balões coloridos. Inicio uma dança que conduzirá a um pretenso strip-tease com balões, número clássico do universo burlesco, adaptado de 80 acordo com a minha lógica de palhaça. Ainda que eu esteja excessivamente coberta por balões no momento do strip-tease, a imagem tem sua beleza, como mostra a seguir. Foto:Rany Carneiro Procuro valorizá-la, realizando alguns passos simples de dança da forma correta. Assim, nos momentos em que exploro o Grotesco, como ao tentar descer até o chão movendo exageradamente os quadris, prendendo alguns dos balões entre as pernas e insinuando estar gostando bastante do efeito provocado por sua presença naquele lugar, retirando-os em seguida com um movimento forte do quadril para frente, destaco as oposições, favorecendo os dois momentos. 2.2 Autoria e apropriação Para analisar a forma como as discussões a respeito de autoria se desdobraram a partir da investigação cênica optei por uma divisão em dois pontos. Eles foram definidos partindo da observação, feita no primeiro capítulo, de que Avner utiliza em Exceptions to gravity tanto números quanto gags do repertório clássico da palhaçaria. Assim, primeiramente relato o processo de investigação que garantiu a execução correta das gags clássicas em Balões! para, 81 em seguida, discorrer sobre o meu processo de apropriação de dois números do repertório deste palhaço. 2.2.1 Gags clássicas: precisão e técnica Durante muito tempo, tive bastante resistência em utilizar gags clássicas nos números que desenvolvia. Questão de gosto, pensava. Mas como um dos eixos centrais que eu havia estabelecido para a análise de Exceptions to gravity estava diretamente relacionado ao trato com o repertório universal da palhaçaria, onde é impossível não incluir as gags, percebi que elas teriam que fazer parte também da minha investigação na cena. Rapidamente confrontei-me com duas questões importantes: é quase impraticável para um palhaço organizar sua atuação sem utilizar, de alguma forma, este repertório. Mesmo se a escolha não for proposital, como era o meu caso até então, é bastante provável que em algum momento haja um tapa, uma queda ou pelo menos um inocente escorregão. Mas a descoberta mais importante foi a de que eu optava por não usar esse material não exatamente por uma questão de gosto, mas sim de dificuldade. São questões técnicas delicadas que envolvem a boa realização de uma gag. Por outro lado, ela é capaz de ―tirar risos da platéia dependendo da maestria com que são executados.‖ (Castro, 2005: 44) As minúcias para as quais é necessário estar atento na execução de uma gag são indicadas com precisão pelos atores da companhia espanhola de comédia física Tricicle, que a denominam como Unidade mínima de humor. Seu objetivo é provocar o riso e o mecanismo que a provoca é muito frágil, basta atrasá-lo ou adiantá-lo um segundo para que não funcione. Às vezes uma gag deixa de funcionar e não se sabe por que: por ter mudado a velocidade de execução, por prepará-la demasiadamente, porque alguém fez outra ação naquele mesmo momento, porque se mudou um movimento, ou porque aquele que a executa faz cara ―agora vem a gag que nunca dá certo‖ e, é claro, não dá certo. Só há uma coisa pior que uma gag não funcionar: não se saber 26 por que. (www.tricicle.com, acesso em 2 de Outubro de 2010, tradução minha) Acredito que o maior problema ao se executar mal uma gag clássica é que o público não ri, mas como já conhece o material de tempos imemoriáveis sabe perfeitamente que 26 Unidad mínima de humor. Su objetivo es provocar la carcajada y el mecanismo que lo provoca es muy frágil; basta atrasarlo o adelantarlo un segundo para que no funcione. A veces un gag deja de funcionar y uno no sabe por qué: por haber cambiado la velocidad de ejecución, por prepararlo demasiado, porque alguien hace otra acción en ese mismo momento, porque hay un movimiento cambiado o porque el que lo ejecuta pone la cara de ―ahora-viene-el-gag-que-no-me-sale‖ y, claro, no le sale. Sólo hay una cosa peor que no funcione un gag: que no sepas el por qué. 82 aquele era um momento feito para o riso. E não há nada comparável ao constrangimento que vai se instalando na plateia ao perceber que aconteceu algo que se pretendia engraçado, mas que passa longe de atingir este resultado. Logo no início de Balões!, realizo uma gag clássica na qual tento me apoiar com a mão na parede, mas como ela está muito longe, a mão não a alcança, o que faz com que eu quase caia. Aparentemente de simples execução, a tarefa exigiu de mim muitos dias de trabalho até entender todo o mecanismo que me permitiria alcançar a sua correta execução. Primeiramente, é preciso estender ao máximo o braço que vai em direção à parede. Este movimento deve ser rápido e preciso. Caso ele seja feito com um pouco mais de lentidão evidencia-se para o público que a queda foi preparada e acabam as chances de riso. Depois disso, ao perder o eixo de equilíbrio do corpo é preciso inverter a posição das pernas. Este movimento ajuda na recuperação do equilíbrio que impedirá que a queda aconteça de fato. Além disso, um barulho forte do pé que depois de cruzar a perna retorna ao chão aumenta a sensação de que houve realmente um acidente. O equilíbrio se estabiliza quando a mão reencontra a parede. Neste momento, são necessários alguns segundos de suspensão, ainda com as pernas trocadas, dando o tempo que a platéia precisa para acompanhar tudo que aconteceu. Só depois, posso seguir para a próxima ação. Todo este processo é necessário para realizar uma gag que dura, aproximadamente, seis segundos. Além desta quase queda, utilizo em outros momentos pequenas gags clássicas. São inúmeros escorregões, tropeços e rolamentos, assumidos como parte importante do meu repertório. Cada um deles exigiu um tempo de pesquisa para que pudessem ser assimilados todos os detalhes técnicos de sua execução. Ainda que sejam procedimentos diferentes dependendo de cada gag, alguns aspectos se destacam: é necessário um instante de suspensão durante a execução, uma clareza absoluta no desenho gestual, a atenção constante com o eixo de equilíbrio do corpo e uma divisão precisa entre ação, reação e comentário, que acontece somente depois que a gag já foi finalizada. 2.2.2 Apropriação de números do repertório de Avner ―Repetir, repetir – até ficar diferente Repetir é um dom do estilo.‖(Barros, 2004: 11) Incorporei ao meu trabalho dois momentos de Exceptions to gravity. O primeiro é o número clássico já anteriormente descrito, no qual o palhaço se machuca e pede a um voluntário da platéia beijos que farão a dor passar. 83 Já havia fechado uma sequência em que faço uma suposta mágica com um dos balões, conseguindo a incrível proeza de aumentar o seu tamanho ao esticá-lo com as duas mãos. Depois disso, mostro meu feito à platéia. No entanto, ―acidentalmente‖ um dos lados do balão se solta, fazendo-o bater na outra mão, que se machuca. Terminava a sequência ali, iniciando outra em seguida, na qual tento encher pela primeira vez o balão. Percebia que faltava algo entre estes dois momentos, mas não sabia exatamente o quê. Durante um dia de trabalho evidenciou-se que o número realizado por Avner seria o ideal. Na maneira como Avner realiza este número destaca-se o fato de que seu terceiro machucado, ao invés de acontecer acidentalmente, como nas duas vezes anteriores, é feito de propósito. Quando iniciei a assimilação da sequência, percebi que para alcançar plenamente o efeito cômico provocado por esta queda proposital é necessário que os dois primeiros machucados aconteçam de forma a parecerem realmente acidentes. Conseguir tal efeito com o primeiro deles foi relativamente simples, eu precisava somente soltar o balão de um dos lados e esperar que batesse na outra mão, o que realmente dói um pouco. O que exigiu um cuidado maior foi conseguir acertar precisamente o tempo de reação à dor. Já o segundo machucado foi bem mais trabalhoso. Ele é provocado por uma queda no momento de retorno ao palco, depois que eu consegui do voluntário o beijo no dedo. Como mantenho a minha atenção ainda focada nele, tropeço e caio no chão, ferindo o joelho. Mais uma vez, a execução de uma gag clássica. Treinei a queda diversas vezes até que o meu corpo aprendeu a realizar o tombo perfeitamente, e, igualmente importante, mantendo-se protegido. Só um pouco depois é que eu fui destrinchar o mecanismo que permitia a realização da gag que eu já estava executando. Entendi que para alcançar o efeito é necessário que durante a queda o peso do corpo seja deslocado para a frente, mas sem perder o centro do equilíbrio no quadril. Isto permite o controle do movimento correto para que as mãos cheguem ao chão um instante antes do joelho, evitando que a força do impacto se concentre nesta área tão sensível do corpo. A sensação de que o joelho bateu realmente no chão é reforçada pelo barulho provocado na verdade pelas mãos. Chegou o momento da reelaboração da sequência, de acordo com a minha lógica particular, permitindo a inserção da comicidade pessoal na maneira de trabalhar com o material pré-existente. As mudanças mais significativas que aconteceram são que eu peço os beijos com muito mais veemência e dengo do que Avner. Enquanto ele praticamente não emite nenhum som vocal, eu expresso toda a minha dor com gemidos altos e em tons 84 diferentes, dirigidos ao voluntário ou para a platéia como um todo. É possível dizer que Avner trabalha num registro bem mais sutil do que eu. Além disso, no final do número, quando este palhaço apenas insinua o pedido do beijo nas nádegas para a sua voluntária, desistindo rapidamente e sem sequer sair do palco, eu faço diferente. Insisto no pedido, vou até o voluntário e com as nádegas próximas ao seu rosto suplico um último beijinho. Ao experimentar o processo de apropriação deste material clássico é que realmente se clareou que tão importante quanto deixar que a sua lógica pessoal contamine a execução é dominar tecnicamente todos os mecanismos que compõem a sequência. Se eu quisesse, antes mesmo de ter entendido como realizar a gag da queda de joelhos, inserir a minha comicidade pessoal, provavelmente não teria conseguido nem apreender a maneira correta de execução e nem tornar o momento engraçado. Pude assim comprovar, através da prática, que o domínio técnico da sequência é o primeiro passo para a apropriação. O segundo número de Exceptions to gravity do qual me apropriei também se baseia numa rotina clássica. O palhaço tem nas mãos um pedaço de fita crepe, chiclete, ou qualquer outra substância grudenta da qual busca se livrar. Mas não consegue, porque ao tentar fazê-lo ela sempre se cola em um novo lugar. Avner adaptou-o para a sua execução criando uma lógica de funcionamento interessante. Depois de realizar um número muito difícil, a sua língua fica para fora da boca, como acontece mais de uma vez ao longo do espetáculo quando ele se concentra muito para fazer alguma coisa. Como Avner não consegue fazer com que a língua volte para dentro sozinha, a empurra com as mãos. Este problema foi resolvido. Porém uma de suas mãos ficou suja de saliva. Ele a limpa no suspensório, mas agora a saliva gruda ali. O suspensório é limpo com a calça, passando a saliva ainda por seu sapato, uma cadeira e um pano até que retorna à sua mão. Sem vislumbrar alternativa, Avner leva o dedo novamente à boca, colocando a saliva no seu lugar de origem. Ao encontrar esta solução brilhante, o problema está finalmente resolvido e Avner recebe aplausos e gargalhadas que o confirmam. Optei por experimentar a sua execução porque na entrevista concedida a Christopher Lueck (2011) Avner fala especificamente sobre esta rotina, apontando as modificações que foi fazendo nela, em decorrência da sua mudança de pensamento em relação à triangulação. Uma vez que os seus pensamentos a respeito deste tema também são alvo deste estudo quis experimentar a apropriação da rotina na minha prática. Além das questões específicas relacionadas à triangulação, que deixo para serem desenvolvidas na parte do capitulo dedicada à relação com a platéia, outras questões foram reveladas durante o trabalho com este material. 85 Experimentei realizar o processo de apropriação de maneira diferenciada do que fiz com o número dos machucados e beijos, optando por copiar exatamente o que Avner fazia. Tal escolha se firmou porque eu queria experimentar como soava para mim a repetição dos mesmos tempos de execução por ele propostos, além de entender o que acontece quando a apropriação se dá justamente pela tentativa da cópia precisa da execução alheia. Assisti varias vezes ao número feito por Avner, buscando apreender tanto a sequência de movimentos quanto os tempos por ele utilizados em cada uma das ações. Em determinado momento, acreditei que a havia assimilado com perfeição e passei a me concentrar em outras questões durante os ensaios, limitando-me a repeti-la no momento da sequência correspondente. Mas, mesmo que não fosse mais o foco do trabalho, este trabalho de repetição foi conduzindo a pequenas modificações, que permitiram o aparecimento da minha comicidade pessoal. Na estrutura final de Balões!, são perceptíveis algumas diferenças marcantes em relação à maneira como Avner a executa. A mais óbvia é que eu trabalho com um pedaço de balão que fica na minha boca, ao invés da saliva. Mas, além disso, o tempo de execução da sequência é outro e enquanto Avner passa a saliva por vários lugares diferentes até que ela vai parar novamente na sua mão, eu repito o mesmo caminho de ida e volta. O pedaço grudento está no dedo, do dedo passa para o balão, do balão para o topo do vestido, do topo do vestido para a saia, da saia para a barra da saia, da barra da saia novamente para a saia e assim por diante até que finalmente retorna à minha mão. Já conformada com o desfecho da ação, eu o engulo. A maneira como executo traz uma vantagem, na medida em que torna todo o processo de limpeza ainda mais idiota. Porém, perde-se a surpresa final conseguida por Avner quando a saliva, depois de variados percursos acaba voltando para a mão. No meu caso, o público acompanha a trajetória e já entende antecipadamente que a saliva vai acabar voltando para o dedo e provavelmente será engolida. Ainda assim, optei por mantê-lo desta maneira, pois se estabelece um riso contínuo do público justamente por perceber o que está sendo feito. Acredito que com essa mudança na execução obtenho menos risos na finalização e mais risos ao longo de toda a seqüência. A experimentação de dois processos diferenciados de apropriação revelou aspectos interessantes e me permitiu concluir que ambos podem ser adotados. No caso do primeiro número eu o analisei e percebi as particularidades do modo de execução de Avner que gostaria de manter. Depois, busquei descobrir no meu corpo a maneira de executá-lo, sem me fixar tanto na forma como ele fazia cada uma das ações. Depois de dominar tecnicamente a 86 seqüência, pude inserir a minha comicidade pessoal na maneira de executá-la. Já no segundo caso, optei por começar pela explícita cópia do material proposto por Avner, chegando a assisti-lo no vídeo enquanto repetia a execução, copiando os mínimos detalhes. Porém, depois de ter assimilado a cópia exata, naturalmente ela começou a sofrer alterações, permitindo o aparecimento da minha lógica pessoal ao lidar com o material, que foi sendo reelaborado. As experimentações mostraram que ambos os caminhos são válidos e podem levar à apropriação que garante a manutenção do caráter autoral mesmo ao se trabalhar com material clássico. 2.3 Relação com a platéia Balões! foi formalmente apresentado ao público uma única vez, durante a escrita dessa dissertação. A experiência, essencial à pesquisa, sedimentou pontos de vista sobre os quais já vinha refletindo, ao mesmo tempo em que lançou uma série de novas perguntas indicativas de mudanças. Graças à apresentação de Balões! pude confirmar que o palhaço existe efetivamente somente a partir do contato com o público, na relação de jogo, e que quase tão importante quanto a construção que havia sido realizada anteriormente era a atitude de abertura para que naquele momento pudesse responder aos estímulos proporcionados pela presença real da platéia. ―O palhaço está sempre na relação do jogo, que é a relação de respostas. (...) Responder pressupõe uma relação ativa, viva sobre o trabalho elaborado. O palhaço é a ação em jogo, feita a partir do outro e para o outro. (Carvalho, 2009: 38) O texto a ser desenvolvido a respeito da relação com a platéia se baseia nas descobertas feitas ao longo de todo o processo e também na experiência deste único dia de apresentação. Divido a análise da mesma forma que no primeiro capítulo: entrada, triangulação, voluntários e improvisação. Excluo apenas o subitem respiração, por perceber que a investigação sobre o controle da respiração do público ao longo do espetáculo pode ser verificada somente com a prática exercida ao longo de repetidas apresentações para o publico, o que não ocorreu até o final da escrita. No entanto, algumas questões mais específicas ligadas à técnica da respiração proposta por Avner foram experimentadas na entrada e na eliminação do olhar para a plateia durante a triangulação. 2.3.1 Entrada Procurei elaborar uma entrada que possibilitasse a experimentação da técnica desenvolvida por Avner para este momento que, segundo ele, permite que toda a platéia ―pule para a conexão‖ (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo) com o palhaço, através de 87 uma expiração coletiva que acontece logo depois que entra em cena pela primeira vez. Não pretendia, é claro, repetir o início de Exceptions to gravity. O objetivo era descobrir outra entrada, que permitisse investigar a sua técnica para atingir a conexão imediata com o público, que fosse interessante para a minha palhaça e de acordo com todo o número a ser desenvolvido a seguir. O momento inicial, quando o palhaço se apresenta ao público, precisa ser realizado de forma a que evidencie imediatamente a sua natureza. Se eu me limitasse a copiar a entrada de Avner estaria deixando de lado outros aspectos igualmente importantes deste momento. Enquanto este palhaço adentra a cena lentamente, colocando parte por parte do seu corpo no palco, elaborei inicialmente uma entrada em que avançava bruscamente para dentro, como se tivesse sido empurrado por algo do lado de fora. Mantinha, no entanto, a respiração contida de forma a liberar o ar somente quando estivesse olhando para o público. Com os ensaios fui fazendo pequenas descobertas, que me levaram a acrescentar novos elementos a este momento. O primeiro deles foi que, antes de entrar completamente em cena, faria com que apenas uma das pernas aparecesse, alongando-a em direção ao teto, num movimento clássico das dançarinas de burlesco. Voltava com a perna para dentro, para somente depois entrar com o corpo inteiro. Entretanto, este movimento era muito rápido e parte do público não teria sequer a oportunidade de perceber o que havia acontecido. Ainda assim, anunciava uma proposta de sedução, pela qual parecia interessante começar. Elaborei-o cada vez mais, introduzindo novos elementos e, partindo deste simples movimento da perna, cheguei à formalização de um pequeno número inicial. Com o palco vazio, inicia-se uma música lânguida. Logo em seguida, a mão entra em cena, tocando com suavidade a cortina lateral do palco. Depois aparece o restante do braço, desenhando movimentos ondulatórios. Quando o braço se segura na cortina, surge uma das pernas. O resto do corpo permanece encoberto na coxia, conforme a foto a seguir: 88 Foto: Rany Carneiro Agora, é a perna que passa a fazer alguns movimentos simples de dança. Mas durante esta dança, um movimento excessivamente brusco faz com que o sapato voe do pé. Após um segundo de suspensão do movimento, solicito a retirada da música através de gestos feitos com o pé. A perna retorna para a coxia. Tem-se um instante de palco vazio, depois do qual a perna aparece, buscando o sapato perdido. Mas como ele está muito distante, não o consegue alcançar, voltando para a coxia na qual o restante do corpo permanece. A seguir, as minhas duas mãos seguram a cortina, que vai sendo estendida, sempre encobrindo o corpo, até o lugar onde o sapato se encontra. Desta forma, é possível recuperá-lo sem precisar revelar o rosto e o restante do corpo. A cortina é retornada à sua posição original e a perna é lançada para o alto, mostrando que o sapato foi finalmente vestido. A seguir, a palhaça entra efetivamente em cena. O pequeno número envolvendo a dança com partes do corpo e a perda do sapato criou um momento anterior à própria entrada, no qual acabo por também trabalhar uma entrada que acontece aos poucos, como faz Avner em Exceptions to gravity, ainda que eu estenda este momento muito mais do que ele. A princípio, questionei se ele eliminaria as possibilidades de experimentar a técnica da expiração conjunta com a platéia proposta por Avner, que era meu foco principal de trabalho ao pensar neste subitem da pesquisa. Ainda assim, decidi mantê-lo, por perceber que trazia outras contribuições à sequência, que serão explicitadas a seguir. 89 Mesmo que não veja a platéia, estabelece-se um primeiro contato que já permite a percepção de determinados aspectos sobre aquele público específico. Além disso, provoca as primeiras risadas antes que eu tenha entrado efetivamente em cena, o que fortalece e acalma, facilitando o momento posterior. Outro ponto interessante é que efetivamente serve como apresentação da natureza de jogo da palhaça. A dança sensual interrompida pela perda do sapato resume um dos aspectos que será mais explorado no trabalho, qual seja a sensualidade em contraponto à atrapalhação e ao erro. Depois deste momento inicial, mantive a experimentação da técnica aplicada por Avner quando apareço efetivamente em cena pela primeira vez. Após recolocar o sapato e mostrá-lo ao público, entro no palco rapidamente, mantendo todo o ar contido nos pulmões e os braços erguidos, como pode ser observado na seguinte imagem: Foto: Rany Carneiro Olho para a platéia por um instante mantendo esta posição, para em seguida liberar o ar enquanto desço os braços. Permaneço alguns segundos olhando o público, enquanto o cumprimento com um aceno faceiro. Quanto ao resultado obtido na experimentação da técnica, serão necessários mais alguns anos de prática até que eu possa afirmar que foi possível envolver quase todo o público de uma só vez por meio desta expiração. Além da natural necessidade de aprimoramento técnico, outro aspecto também contribui para que obtenha um efeito diferente do atingido por Avner: como já faço o número com a dança e o sapato antes, a tensão inicial em que a platéia 90 se encontra no momento em que o palhaço entra em cena e que provoca a suspensão da respiração, já se dissipou. A platéia não necessariamente acompanha a minha primeira expiração, pois eles já haviam rido e liberado o ar antes disso. Ainda assim, mantenho pelo menos um dos efeitos preconizados por Avner. Entrar com o ar contido e liberá-lo olhando para a platéia elimina os últimos vestígios de tensão inicial, estabelecendo de fato uma sensação de maior conforto entre palhaça e público. 2.3.2 Triangulação Dentre todas as questões abordadas nesta pesquisa, aquela em que a prática e o pensamento de Avner apresentaram os maiores contrapontos em relação à maneira como até então organizava a minha atuação, é a triangulação. É válido ressaltar que, de acordo com a análise elaborada no primeiro capítulo, por mais que este palhaço se oponha ou mesmo condene este procedimento em seu discurso, a triangulação está presente em sua atuação. Porém, aparece de maneira diferenciada, pois são eliminadas as constantes divisões de olhar com a platéia. Por isso, me propus a experimentar em momentos determinados de Balões!, a exclusão da divisão do olhar para o público, conforme Avner aconselha a seus alunos: ―É muito interessante, como diretor, pegar uma rotina que tem muito disso e simplesmente pedir para que se elimine tudo.‖ (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo). O objetivo era analisar se de fato esta retirada implicaria em alguma mudança concreta na atuação e na relação com a plateia. Para tal, elegi dois momentos diferentes. No primeiro deles, apropriei-me do número de Exceptions to Gravity em que o Avner não consegue se livrar de um pouco de saliva, que gruda em vários lugares. Ele afirma ter mudado a maneira de realizar este número conforme foi aprimorando os seus pensamentos a respeito da divisão do olhar. Inicialmente, após limpar a saliva ele olhava para o público, sinalizando que tinha resolvido o problema. Mas depois percebia que havia apenas mudado a localização da mesma. Então compartilhava novamente o olhar para a platéia, iniciando a seguir outra tentativa de limpeza, seguida de nova olhada para o público, e assim por diante. Ou seja, Avner adotava o funcionamento habitual da triangulação, segundo o qual cada mudança na situação exige uma divisão do olhar com a plateia. Com os anos de experiência, Avner afirma que aprimorou a execução do número através da eliminação das divisões de olhar nos momentos intermediários. Atualmente, apenas tenta livrar-se da saliva, passando-a de um lugar para o outro e deixando que o público 91 acompanhe as suas tentativas de solucionar o problema sem compartilhar, através do olhar, cada nova dificuldade que encontra no caminho. Seu olhar direciona-se à platéia somente quando engole a saliva, solucionando de fato o problema. Ainda que a rotina já funcionasse, Avner afirma que com essa mudança ―a gargalhada da platéia se tornou dez vezes maior do que antes‖. (Avner apud Lueck, 2011: 65, tradução minha)27 O fato de Avner ter relatado as mudanças nesta rotina após a eliminação da divisão do olhar, motivou-me a investigar a sua execução. Foi relativamente simples absorver a sua mecânica e não dividir o olhar com o público ao longo da sequência, uma vez que o fiz inicialmente copiando toda a sua execução, incluindo aí o respeito aos tempos por ele propostos. Conforme já dito, ocorreram posteriores transformações na rotina, conseqüência natural do processo de apropriação. No entanto, elas não implicaram em modificações na relação do olhar para a plateia. Quando apresentei o número ao público, evidenciou-se que a maneira como Avner atua exige, na verdade, uma conexão ainda maior com a platéia, para poder escutá-la e perceber o seu tempo de reação sem contar com a divisão do olhar, que já o pontua. Este foi o ponto mais desafiante, manter o tempo da triangulação sem precisar olhar para o público. Mas consegui realizá-lo, até o momento em que fui surpreendida por um acontecimento inesperado. Numa das tentativas de limpeza, abaixei excessivamente o vestido na altura do peito, deixando o sutiã descoberto. A risada provocada por este fato me fez olhar para o público e compartilhar com ele o que estava acontecendo. Repeti a tentativa de limpeza da mesma região, mostrando o sutiã mais uma vez e triangulando com o olhar, em seguida. Ao analisar posteriormente o trabalho, percebi que não deveria ter incluído a divisão do olhar para a platéia ali e muito menos ter repetido a ação. Em primeiro lugar, porque estava justamente experimentando trabalhar sem este recurso. Além disso, o interessante da rotina é a tentativa de limpeza que parece nunca acabar, cujo fluxo eu interrompi. Ao voltar para a ação principal, a plateia já não pôde acompanhá-la com o mesmo interesse. A princípio, conclui que ter olhado para a platéia naquele momento era apenas uma conseqüência natural do fato de que toda a minha formação como palhaça se deu tendo a triangulação com o olhar para o público como uma regra básica, da qual eu não conseguia me desvencilhar. Mas numa reflexão mais atenta percebi que tinha olhado não apenas porque havia ocorrido uma mudança inesperada na ação. O motivo principal era outro: tinha ocorrido 27 (…) the laugh at the end got ten times bigger than ever before. 92 na plateia uma risada a mais, fora daquelas que já estavam previstas pelo desenvolvimento lógico da sequência. A partir desta observação, pude entender com mais clareza outra colocação de Avner a respeito da divisão do olhar com a platéia. Nela, o mestre afirma que a principal questão que o faz condenar tal procedimento não é técnica, e sim mais filosófica mesmo. O palhaço não está lá para entreter a audiência. Ele está lá para resolver problemas. (...) E então acidentes acontecem, as coisas não ocorrem da maneira que todos esperavam e você diz ―Isso é ainda mais interessante! Como posso lidar com isso?‖ E depois há caminhos variados para resolver o problema. Nós sabemos que o palhaço tem que conseguir as risadas, ele é palhaço. Mas se você tentar conseguir risadas... Você não vai tê-las, garanto. Então esse é o grande paradoxo do trabalho do palhaço. Então para mim você tem um trabalho a fazer e você faz o trabalho e se a plateia ri é apenas uma interrupção do seu trabalho. (Eisenberg, entrevista para a autora, em anexo). Ou seja, além das razões apontadas no capítulo anterior, ligadas a técnica de controle da conexão com o público através da respiração e de Avner entender a triangulação como se o palhaço estivesse solicitando a aprovação do seu público, revela-se aqui outro motivo que o leva a desaprovar a divisão do olhar com a plateia. Segundo seu ponto de vista, esta atitude tira o foco do palhaço da resolução do problema para a busca por provocar a risada do público. Na verdade, é claro que Avner pretende provocar o riso na platéia, o que ele coloca é que este objetivo não pode ser exposto claramente, pois quanto mais o palhaço agir explicitamente como se quisesse risos, menos chances terá de consegui-los. Ainda que eu acredite que existem muito mais questões envolvidas na triangulação do que somente a vontade de conseguir risadas da platéia, o pensamento serve perfeitamente para elucidar o que aconteceu durante a apresentação relatada. O segundo momento em que busquei experimentar as mudanças na atuação a partir da eliminação da divisão do olhar para a platéia é uma sequência na qual fico com o braço preso dentro do vestido. Busco maneiras variadas de me libertar dali, mas a princípio consigo apenas enredar-me cada vez mais. Os problemas aumentam quando o vestido se enrola no meu ombro, deixando parte do corpo descoberta e provocando a exibição da minha roupa íntima. Consigo uma maneira provisória de esconder o corpo, tapando-o com as pontas do vestido. A seguir, tento retirar o braço aprisionado com a ajuda do outro, mas consigo apenas que os dois braços fiquem lá. Encontro outras dificuldades até que finalmente, consigo me desvencilhar da roupa. 93 Pretendia trabalhar toda esta sequência sem dividir o olhar para a plateia, com exceção de um único momento intermediário. Cansada de tentar me desvencilhar do vestido, percebo minha condição: completamente desarrumada e com os dois braços dentro do vestido, afastada de qualquer sensualidade, como pode ser observado na foto a seguir. Foto: Rany Carneiro Para disfarçar este estado, pego o vestido pelas pontas e como se cada uma das suas extremidades fosse uma asa, imito uma águia, olhando a plateia. Ao trabalhar a criação e o desenvolvimento desta sequência encontrei muito mais dificuldades do que no caso anterior, pois não estava mais me baseando num material já executado por Avner. Em determinado momento da investigação, percebi que a tentativa de retirar o olhar para a platéia estava apenas deixando a sequência confusa e mal-executada. Para conseguir reorganizá-la, tanto no que se refere às ações quanto ao tempo-ritmo de cada uma delas, precisei trabalhá-la incluindo o uso da triangulação com o olhar. Consegui assim reorganizar a ação e a dinâmica da cena, confirmando a importância deste recurso. Depois desta experimentação, busquei fixar os momentos nos quais estava olhando para o público para, em seguida, substituí-los por uma leve suspensão do tempo da ação. Desta maneira, pude trabalhar mais próxima do proposto por Avner, deixando que o público acompanhe o problema sem precisar marcá-lo através das divisões de olhar, ao mesmo tempo em que mantinha a organização da cena proporcionada pela triangulação. 94 Mas no dia da apresentação, a presença do público acabou fazendo com que os anos de prática de triangulação acabassem se sobrepondo a tentativa de experimentar a não divisão do olhar, conforme havia trabalhado durante a investigação. Triangulei com o olhar em todos os momentos em que havia tão cuidadosamente treinado os tempos de suspensão. Se, por um lado, tal atitude enfraqueceu o objetivo ao qual havia me proposto, por outro me permitiu a confirmação de que a maneira como utilizo a triangulação também é eficiente e pode ser mantida. 2.3.3 Voluntários Foto Rany Carneiro A partir da primorosa maneira como Avner se relaciona com os voluntários do público, e do seu texto a este respeito, busquei elementos que pudessem guiar a forma como me utilizaria deles. Assim como ele, procurei estabelecer um contato permanente com uma única pessoa da platéia, o meu ―escolhido‖, o que ajuda a organizar a linha dramatúrgica do número, sendo um ponto constante de apoio ao qual eu retorno em diversas situações. Além da definição de um ―escolhido‖ criei um gesto do qual me utilizo nas diversas vezes em que me dirijo a ele, o que aumenta o jogo com a repetição, podendo provocar o riso na platéia. Com o corpo ligeiramente virado na lateral e uma das mãos para frente, imito uma onça, acompanhando o gesto por um som de grunhido. O gesto vai sofrendo alterações de acordo com a situação em que me encontro, ficando cada vez mais estapafúrdio, conforme vai sendo deixada de lado a sedução para dar lugar à confusão. As fotos a seguir o confirmam. A primeira delas é de quando o realizo pela primeira vez, com o figurino e os cabelos em seu 95 devido lugar. Já a segunda foi tirada próximo ao final da apresentação, quando estou quase sem roupa, com os cabelos completamente desalinhados e umas poucas bolas que ainda não foram estouradas penduradas pelo corpo. Fotos Rany Carneiro Uma diferença importante em relação à forma como Avner lida com a sua ―escolhida‖ é que, em Exceptions to gravity, a relação com ela tem início de forma concreta somente 96 depois de aproximadamente quinze minutos de espetáculo. Este tempo anterior permite que ele possa escolher com cuidado quem ocupará esse papel, selecionando alguém que já se mostre receptivo ao longo do show. Como, no meu caso, o número inteiro tem vinte minutos seria impossível esperar o mesmo tempo que Avner para fazer a escolha. Ainda assim, percebo que a realizo rápido demais. Logo depois de entrar em cena pela primeira vez, olho a plateia, a cumprimento e é ainda durante este gesto que percebo alguém especial, para quem imediatamente direciono a minha atenção. A seleção é feita tão pouco tempo depois da minha entrada que é possível levar em conta, na escolha, apenas a localização espacial do futuro voluntário e o fato de estar ou não acompanhado. Como esse mesmo homem será utilizado durante todo o número, acredito que defini-lo um pouco mais a frente diminuiria as chances de fazer uma escolha equivocada. Felizmente, no dia da apresentação isso não ocorreu, mas se não alterar o momento desta escolha, corro o risco de enfrentar este problema mais à frente. Busquei trabalhar ainda outros dos tópicos propostos por Avner, especialmente aquele no qual afirma que o voluntário precisa estar feliz por ter sido o escolhido e não temeroso e envergonhado. O fato de estabelecer uma relação de sedução com ―o escolhido‖ e demonstrar que o achei incrivelmente interessante já facilita esse trabalho. Além disso, quando já estou cobertas pelas bolas e inicio o strip-tease, eu deixo o palco e me direciono a platéia. Vou até lá selecionar algumas pessoas para as quais ―darei a honra‖ de ceder o alfinete com o qual estava estourando os balões, para que elas também tenham o ―privilégio‖ de fazê-lo. É este o tom que busco empregar ao longo deste momento, de maneira que as pessoas queiram ser escolhidas para estourar os balões. Deixo que duas pessoas estourem um balão, cada uma, e quase cedo o alfinete para uma terceira. Mas desisto de fazê-lo, provocando o riso no restante do público. A seguir, me direciono ao ―escolhido‖, a quem concedo o direito de estourar quantos balões quiser. 2.3.4 Improvisação É possível observar na atuação de Avner a utilização da improvisação codificada. Através dela, o palhaço aciona determinadas partes do seu repertório a partir da reação do público de cada noite, mantendo-se ainda assim fiel ao roteiro pré-estabelecido. O uso eficiente desta improvisação exige grande rigor e técnica, de modo que palhaço seja capaz de perceber os momentos adequados, onde é possível inserir modificações, respeitando o andamento do espetáculo e sem se desviar do roteiro, o que corre o risco de levar a 97 apresentação para um lugar que interessa unicamente ao próprio ao palhaço, tornando a sua atuação maçante para quem o observa. Sobre tais questões Dario Fo afirma que: Eu gostaria de especificar imediatamente que a improvisação, no teatro, é uma falsidade. Para um ator nada é mais fatigante, mais elaborado, mais estudado do que a improvisação. Para dar impressão de improvisar verdadeiramente, ele deve aprender a seguir esquemas extremamente precisos. Como no blues ou no jazz... Para efetuar as modificações ele precisa respeitar o número de falas. O teatro é como a música, a geometria, a matemática. Se você não respeitar as regras, nada acontece. E você corre o risco de aborrecer. (Fo, 2007: 96, tradução minha)28 Na estrutura de Balões! trabalho com um lugar de certa imprevisibilidade, na medida em que os objetos com que me relaciono são balões, que correm o riso de durante a sua manipulação estourarem, voarem para direções não previstas, esvaziarem em tempos indefiníveis, por exemplo. Durante o período de ensaios, aconteceram (quase) todos os problemas possíveis e eu pude aproveitar este espaço para investigar maneiras de reagir a cada um deles. Desta forma, já tinha, por exemplo, uma solução prévia para o caso de algum balão estourar no momento errado, o que de fato aconteceu no dia da apresentação. Eu pude acionar este repertório e resolver sem maiores dificuldades esta questão, que estava fora da estrutura do número. Assim, pude experimentar o trato com a improvisação que acontece a partir de códigos pré-estabelecidos. No universo do palhaço, as imprevisibilidades que podem acontecer no momento de cada apresentação não são vistas como um infortúnio. Pelo contrário, elas são ―presentes‖ que se bem aproveitados trazem benefícios ao show. A atuação do palhaço é toda baseada na solução de problemas, então um problema a mais vai apenas revelar mais uma chance de explorar suas inaptidões na tentativa, quase sempre frustrada, de resolvê-lo. Por outro lado, a maneira de lidar com uma situação inesperada diante do público pode gerar descobertas que, futuramente, venham até a ser incluídas no repertório do palhaço. Pude experienciar esta relação com a improvisação graças a um imprevisto acontecido com o meu sapato. Logo no início do número, eu o perco durante a dança, como havia dito anteriormente. Para recuperá-lo, arrasto a cortina até perto dele, como forma de vesti-lo sem precisar revelar meu rosto. 28 Je voudrais préciser tout de suíte que l´improvisation, au théâtre, est un faux. Pour un comédien, rien n´est plus fatiguant, plus elabore, plus etudié, qu´improviser. Pour donner l´impression d´improviser vraiment, il faut apprendre à suivre des schemas très précis. Comme dans le blues ou le jazz… Pour effectuer des variations, il faut respecter le nombre de répliques. Le theater est comme la musique, la géométrie, les mathématiques. Si vous ne respectez pas les règles, rien ne tient. 98 Foto: Rany Carneiro Perto do final do número, repito a perda do sapato. Agora, no entanto, ela acontece de forma mais esdrúxula. Para conseguir estourar de uma só vez um grande número de balões, eu me lanço de costas no chão do palco. Em seguida, faço alguns movimentos de dança, ainda no chão. Entre eles, tento reproduzir um movimento clássico das pin-ups, balançando as pernas para o alto enquanto seguro o corpo através do apoio das mãos no quadril. Realizo este movimento três vezes. Porém, na terceira repetição, um impulso excessivo faz com que as minhas pernas avancem mais do que necessário, indo parar atrás da cabeça, posição que, além de ser bem ridícula, me faz perder novamente o sapato. Mantendo as pernas neste lugar, movimento-as de um lado para o outro na esperança, absurda, de tentar recuperar o sapato perdido. Fotos: Rany Carneiro 99 Em seguida, desisto de vestir o sapato e tento fazer com que as pernas retornem para a posição normal, o que não consigo. Sou obrigada então a realizar uma meia cambalhota que emendo num rolamento, acabando por estourar mais algumas das bolas que ainda estavam presas ao meu corpo. Depois disso, volto rapidamente a ficar de pé, pois a música está acabando e junto com ela termina o número. De acordo com o roteiro pré-estabelecido, eu começava e terminava o número perdendo o sapato. Mas no dia da apresentação aconteceu algo a mais. Num momento da sequência, jogo uma bola cheia para fora do palco, para em seguida encher duas delas. No entanto, ao dar início a esta ação, percebi que a primeira bola havia lentamente retornado para dentro do palco. Observei-a até que estancasse, para então chutá-la de volta para a coxia. Mas a força do chute fez o sapato, mais uma vez, voar do meu pé. Ainda que tenha acontecido por acaso, incorporei este segundo chute na sequência e agora todo o número é pontuado pela perda do sapato, da mesma forma que Exceptions to gravity é pontuado pela perda do chapéu. Ainda que esta não tenha sido uma escolha proposital, certamente aconteceu por influência da observação do show de Avner. 2.4 Técnica dos movimentos A técnica dos movimentos foi trabalhada ao longo do processo de criação de Balões! com foco nos pontos centrais selecionados no material produzido por Lecoq e observados e analisados na atuação de Avner. Ponto fixo, impulso, equilíbrio e desequilíbrio e oposições foram experimentados na investigação num processo continuo e permanente de descoberta. Ainda que houvesse focos específicos de trabalho para cada um deles, a experimentação muitas vezes evidenciou a conexão existente entre eles, trazendo elementos de pesquisa em comum. Não utilizo palavras em Balões!. É a primeira vez que, como palhaça, trabalho sem contar com o recurso da comunicação verbal. Ainda que a observação constante da comunicação não-verbal de Avner tenha influenciado o tipo de construção cênica que realizei, esta não foi uma escolha determinada somente pelo tipo de linguagem utilizada em Exceptions to gravity. Foi o próprio número que, com o passar do tempo, mostrou que prescindia da palavra. Durante o processo de criação, utilizei a fala durante longo tempo. Graças ao olhar da minha orientadora, pude perceber que falava nos momentos nos quais a solução, no corpo, ainda não estava plenamente encontrada. Em algumas partes, por questões de construção dramatúrgica, em outras porque tentava levar adiante uma ideia inconsistente. Na maioria dos 100 casos, porém, o uso da palavra estava diretamente ligado a uma questão de execução técnica dos movimentos, como se nesses momentos eu recorresse à palavra na esperança de que através dela pudesse suprir ou disfarçar uma falta que era de outra natureza. Com o aprimoramento do trabalho, foi ficando cada vez mais claro que a palavra não fazia falta naquela construção, onde o corpo deveria dar conta de toda a comunicação. Mas, ainda assim, seu uso teve importância fundamental durante o processo investigativo, tornando claro o que eu queria realmente dizer, e que poderia fazê-lo somente com o meu corpo. 2.4.1 Ponto fixo De acordo com Lecoq, ―não há movimento sem ponto fixo‖ (Lecoq, 2011: 140). Assim, o trabalho sobre este elemento não pode ser deslocado para instantes precisos, mostrando a necessidade de uma investigação que permeasse todo o número. Através da prática, pude confirmar o seu papel fundamental como ponto de referência para todo o movimento, ajudando a direcionar o olhar do espectador em conseqüência da organização que provoca em toda a ação. Durante a criação do número, confrontei-me em diversos momentos com uma tendência reconhecida, mas que ainda aparece em meu trabalho, que é a de realizar movimentos rápidos, envolvendo o corpo todo, de forma descoordenada, impossibilitando uma compreensão clara do que estou pretendendo comunicar. O estudo e a percepção do que, em cada movimento, representava o ponto fixo foi extremamente importante para tentar alcançar uma desenho gestual definido claramente que me permitisse entender e comunicar melhor o sentido de cada gesto, bem como excluir movimentações desnecessárias. Exemplifico com o relato de um dos momentos do número. Na segunda parte da sequência, retorno à cena coberta de balões, para apresentar uma coreografia bastante simples. Nela, busquei trabalhar com passos de dança do universo burlesco, que pretendia explorar de forma sensual em alguns momentos, para somente em outros fazê-los de forma errada e deixar aparecer o jogo da palhaça, jogando com o Grotesco, conforme já mencionado. Além de precisar trabalhar de forma clara os movimentos que pertenciam a cada uma das intenções, havia o fato de grande parte do meu corpo estar neste momento coberto por balões coloridos, o que deixa a imagem naturalmente mais confusa. Para conseguir alcançar a clareza necessária nas ações que permitisse a percepção dos momentos em que dançava de forma correta, diferenciados daqueles em que ocorria o contraponto da confusão, foi fundamental entender onde estava o ponto fixo em cada um deles. Especialmente nos movimentos que eram propositadamente realizados com algum tipo 101 de falha na sua execução, a percepção do ponto fixo foi fundamental. Foi o caso da parte da sequência em que dobro uma das pernas, deixando o equilíbrio do corpo centrado apenas na outra, ao mesmo tempo em que ergo os dois braços, conforme a foto abaixo: Foto: Rany Carneiro Em seguida, a perna de apoio começa a tremer o que me faz perder o equilíbrio e cair para o lado direito. Inicialmente, eu estava trabalhando tanto a pose quanto a queda de forma muito rápida. Depois que localizei o ponto fixo deste movimento, pude explorá-la melhor, mantendo um tempo de suspensão no meio da queda, quando o quadril e os braços já saíram do eixo de equilíbrio, mas as pernas ainda não. Destaco ainda outro momento em que explorei bastante a relação com o ponto fixo do movimento. Eu realizo uma pretensa mágica que consiste, na verdade, em simplesmente esticar um balão com as duas mãos. Porém, faço toda a ação como se se tratasse de algo incrível e muito difícil de ser realizado. Quando seguro o balão entre as duas mãos, não inicio imediatamente o movimento de estendê-lo. Antes disso, mantenho-o parado entre as duas mãos e altero apenas a angulação dos braços. O balão se destaca, uma vez que foi colocado como ponto fixo e: ―O movimento sublinha o ponto fixo.‖ (Lecoq, 2011: 140). Assim, quando 102 começo realmente a ―mágica‖, estabeleci um foco de atenção muito maior no balão. A valorização do objeto torna ainda mais idiota a sequência que virá a seguir. As fotos abaixo retratam o momento relatado: Fotos: Rany Carneiro 2.4.2 Manipulação do Impulso O ponto que selecionei para investigar mais profundamente em relação ao impulso era como causar o inesperado e o riso, através da surpresa causada por sua supressão ou por sua utilização de forma desproporcional, com um impulso muito grande para uma ação mínima. Experimentei as possibilidades de manipulação do impulso da seguinte maneira: após o fechamento de praticamente toda a primeira parte do número, incluindo a ―entrada da entrada‖ e as diversas tentativas de encher os balões, fui testando diversos momentos em que poderia manipulá-lo, seja através da sua supressão ou pelo exagero da sua dimensão em relação ao tamanho da ação. Escolhi os momentos da sequência que já tinham uma partitura de ações bem definidas e experimentei, nos mesmos trechos, ambas as possibilidades. O exercício foi bastante útil para a percepção da maneira como o impulso deve ser operado no corpo e também para uma melhor percepção do foco do movimento em relação ao espaço. 103 Foram diversos os benefícios deste exercício. Através dele, pude perceber determinados movimentos que exigiam um envolvimento maior da musculatura do que eu vinha realizando até então. Além disso, criei movimentos novos, resultado obtido principalmente através da proposta de supressão do impulso do movimento, que algumas vezes conduziu o corpo a outras direções e relações no espaço e com o objeto. As experimentações, ainda que extremamente importantes para o processo, não revelaram muitos lugares nos quais pudesse realmente adotá-las dentro da estrutura do numero. No final, mantive a manipulação do impulso em apenas um momento. Trata-se do momento em que eu estou enchendo os balões. Realizo esta ação diversas vezes e ela sempre acontece seguindo a mesma lógica: encho os pulmões de ar, para em seguida expirá-lo dentro do balão, ação que é acompanhada por uma flexão dos joelhos, como observável na foto abaixo. Foto:Rany Carneiro Numa das sequências em que repito este movimento, encho profundamente os pulmões de ar e no impulso para flexionar os joelhos, estico todo o corpo e fico na ponta dos pés. Parece que a seguir virá uma grande expiração, que encheria praticamente o balão todo. 104 O que se segue, no entanto, é um sopro muito leve, que quase não faz diferença no tamanho do balão, acompanhado de uma flexão sutil nos joelhos. É importante destacar que a manipulação do impulso não precisa ser acompanhada por nenhuma reação especial relacionada a ela. No meu caso, continuo soprando o balão como se nada tivesse acontecido. Isto porque percebi durante os ensaios e pela observação da atuação de Avner, que é mais interessante agir de maneira a que apenas o movimento provoque o riso, ao invés de tentar reforçá-lo com intenções, que, na verdade, conseguiriam apenas diminuí-lo. 2.4.3 Equilíbrio e desequilíbrio O corpo humano em movimento trabalha incessantemente nas relações entre equilíbrio e desequilíbrio. Na mais simples caminhada, o corpo precisa sucessivamente perder o equilíbrio, que é recuperado a cada novo passo e é o que possibilita o deslocamento. Ao longo da investigação do número, explorei como exagerar as relações entre equilíbrio e desequilíbrio, procurando manter o máximo de vezes possível o meu corpo em estado de desequilíbrio. Foi interessante perceber que a exploração do desequilíbrio no movimento contribuía para a criação de momentos cênicos em que a lógica particular do palhaço aparecia com mais força justamente pela exploração do princípio do movimento no corpo. Um ponto que se repete ao longo de todo o número e no qual eu trabalho, literalmente, com o desequilíbrio são as viradas seguidas de escorregões. Sempre que me coloco de costas para a plateia repito a mesma sequência de movimentos: primeiramente coloco as duas mãos no quadril e o movo para os dois lados. Após ter retirado as mãos desta região, retorno a frente do meu corpo para a plateia, através de um giro rápido. Porém, este giro sempre termina com um escorregão, como se o movimento, feito com uma rapidez excessiva, desorganizasse o meu corpo a tal ponto que perco todo o eixo do equilíbrio. Mas consigo recuperá-lo e não chego a cair no chão. Durante a investigação, foi importante perceber que para a boa execução deste escorregão era necessário que ele não fosse anunciado durante o giro. Ou seja, é preciso que no momento anterior, o corpo, enquanto gira, permaneça no eixo. Somente no final deste primeiro movimento é que deve haver o desequilíbrio que provoca o escorregão. Quando o desequilíbrio era antecipado e começava já durante o movimento rotatório, antecipava a ação seguinte, diminuindo as chances de riso, pois o futuro escorregão se anunciava antes do momento em que acontecia, eliminando a surpresa que contribui para o riso da plateia. 105 2.4.4 Oposições Como já dito, as oposições entre partes do corpo podem ser utilizadas para indicar uma divisão entre a ação que o palhaço precisa realizar e a sua vontade. Repeti um dos momentos em que Avner explora esta possibilidade, quando ao retornar ao palco depois do primeiro contato direto com a voluntária mantém o seu rosto e parte de seu tronco em direção a ela. Além deste momento, em que utilizo as oposições para demonstrar o distanciamento entre o desejo do palhaço e a sua ação, trabalhei de forma a criar linhas de oposições no meu corpo ao longo de todas as ações. Para tal, primeiramente repetia as sequências percebendo que linhas de oposição poderiam ser criadas. Este trabalho esteve relacionado ao do impulso para o movimento, pois ali são inevitavelmente criadas linhas de oposição que precisaram somente ser aumentadas ou diminuídas. Procurei perceber as possibilidades de estabelecer linhas de oposição também nos momentos em que estava parada numa pose, como ao estender os braços, por exemplo, o fazia de maneira que os dois não estivessem na mesma direção, criando pólos opostos entre eles. Experimentava repetir toda a sequência exaltando a presença destas linhas de oposição, para depois procurar mantê-las presentes no meu corpo, mas de uma forma mais sutil. No resultado final, percebo que poderia ter mantido com um pouco mais de veemência a presença desses pontos de oposição. Ainda assim, este foi um exercício extremamente importante, tanto por possibilitar uma melhor compreensão das conexões entre as partes do corpo quanto por potencializar a riqueza e a força do movimento ao longo de todo o número. 2.5 A criação do número 2.5.1 Metodologia O processo de criação ocorreu durante aproximadamente um semestre, com encontros que aconteciam duas vezes por semana, durante o período de três horas. Não desenvolvi um plano de trabalho inicial onde já estivesse prevista a organização de todo o período de investigação. Ao invés disso, busquei definir a temática de cada dia de experimentação a partir das questões sugeridas continuamente pelo andamento da pesquisa, tanto no que diz respeito ao próprio trabalho de criação do número, quanto à análise de Exceptions to gravity. Ainda assim, a cada dia elencava um objetivo específico a ser desenvolvido e posteriormente escrevia num caderno de anotações a respeito da maneira como ele havia se desdobrado a partir da prática. 106 Acredito que diante do fato da investigação estar sendo desenvolvida durante o processo de criação de um número, este era o procedimento metodológico que poderia render mais frutos. Dessa maneira, pude trabalhar mantendo-me aberta e atenta às imprevisibilidades e surpresas naturais em qualquer processo de criação artística, conservando ao mesmo tempo o caráter científico necessário à pesquisa acadêmica. O fato de tratar-se de um processo, no qual eu experimentava ao mesmo tempo em que refletia sobre a minha própria experimentação, evidenciou a necessidade de interlocutores. Este diálogo foi feito com a minha orientadora, Profa Dra. Nara Keiserman, que assistia de tempos em tempos o processo de criação do número, levantando sempre questões importantes e que norteavam alguns dos dias de trabalho subseqüentes. Contei ainda com o olhar do Me. Flávio Souza, que realiza seu doutoramento tendo também Avner como um dos objetos de sua pesquisa, o que já abria um rico espaço de troca. Além disso, ele foi um dos meus primeiros professores de palhaço, o que lhe permitiu analisar o número não somente pelo que estava sendo mostrado naquele momento, mas pensando também em quais questões retornavam de outras épocas, oferecendo-me a possibilidade de enfrentá-las com mais profundidade. A troca proporcionada por esses dois encontros trouxe uma particularidade que merece ser destacada. Ainda que em nenhum momento o Me. Flavio Souza e a Profa. Dra. Nara Keiserman tenham assistido ao trabalho juntos, suas observações a respeito dele eram sempre complementares. Não porque um confirmasse o que o outro havia colocado anteriormente. Mas porque captavam aspectos diferentes do processo de criação, trazendo questões que nunca versavam sobre os mesmos pontos, criando um espaço de troca ainda mais rico. Contei ainda com a presença eventual de um público não-especializado, formado por amigos ou colegas que viram o número tendo como única função assistir descompromissadamente, sem precisar realizar nenhum comentário a respeito. A presença deles se justifica na medida em que a recepção ocupa um papel fundamental na atuação do palhaço. Certas escolhas só puderam ser realizadas depois dos caminhos possíveis terem sido expostos ao público. As suas risadas e silêncios me apontaram pontos a serem mais desenvolvidos, bem como gags que mereciam ser encurtadas, por exemplo. 2.5.2 Procedimentos Na entrevista a mim concedida, Avner afirma que o centro do seu trabalho com os estudantes é a maneira de prepará-los para fazer o show todas as noites e duas vezes no sábado. E nunca mudar o nível do trabalho. Não é um jogo de apostas. É baseado em 107 técnicas reais, performances fortes e verdadeiros valores bem estabelecidos e deve parecer que é improvisação. Mas não é. Que técnicas são estas? Como elas devem ser utilizadas? Como o palhaço pode garantir a força de sua performance? Que valores devem estar bem estabelecidos? Como, enfim, sedimentar a criação de maneira a que ela se transforme num número, ou espetáculo, que garanta um bom resultado sempre? Estas eram algumas das questões que eu pretendia investigar durante o processo, tendo sempre por guia os elementos sugeridos pela atuação de Avner. Há pessoas que se lançaram ao mar dizendo que iam descobrir um continente e depois, em vez de encontrarem a Índia descobriram a América. Tenho a impressão de que, quando partimos para uma obra, partimos para uma aventura. Mas o continente que acreditamos descobrir não é aquele aonde chegaremos. (Mnouchkine apud Féral, 2010: 88) Essa colocação da diretora e pedagoga francesa Arianne Mnouchkine reflete as imprevisibilidades a que estamos sujeitos ao nos lançarmos a qualquer processo de criação artística. Por mais que existam metas, objetivos pré-estabelecidos, nortes determinados para a pesquisa, é preciso estar ciente de que a maior parte do que estamos trabalhando está encoberta e só vai se revelar durante o próprio fazer. Na minha investigação não foi diferente. Iniciei o processo sem saber exatamente a que tipo de construção cênica ele me levaria. A temática não era, neste caso, o mais importante. O foco principal estava, desde o início, em criar um espaço de diálogo com a obra de Avner. De qualquer maneira, precisava estabelecer algum tipo de base para o início da criação. Uma vez que eu já não contaria nem com a colaboração de outro artista em cena comigo e nem com um olhar externo permanente que me permitissem a troca tão necessária ao jogo do palhaço, optei por trabalhar com um objeto. ―O jogo do palhaço sempre acontece em dupla. Mesmo que esteja sozinho em cena, ele cria duplas com os objetos, consigo mesmo, com a platéia, com a situação. (Jardim, 2002: 21). A dupla eleita para o início do meu jogo foi um balão. A princípio, tal escolha efetuouse somente por perceber que este objeto oferecia diversas possibilidades de exploração, graças ao tipo de textura, à mudança de forma depois de cheio e à facilidade com que pode estourar. Rapidamente, surgiu a idéia de desenvolver o número a partir da situação de uma palhaça que vê a fotografia abaixo e, encantada pela beleza de tal imagem, decide reproduzi-la. 108 29 Imagem capturada do site http://straystreets.wordpress.com/ Com a máquina fotográfica a postos e o balão vermelho cheio ela encontra a sua primeira dificuldade: o balão não voa. A palhaça não sabe que o que permitia que aquele outro balão estivesse flutuando era o fato de ter sido enchido com gás hélio. O ar de seus pulmões jamais faria com que o seu balão também pairasse no ar. A palhaça passa a tentar das mais variadas formas fazer com que ele voe, sem jamais consegui-lo. A ideia parecia apresentar bons elementos para o início do trabalho, especialmente por dialogar com a temática do espetáculo de Avner, na medida em que apresentava uma tentativa de escapar às leis da gravidade ao tentar fazer com que o balão voasse mesmo sem ter as condições que lhe permitiriam tal feito. Trabalhei durante um bom tempo a partir dela, mas avançava muito pouco. Ainda que percebesse a dificuldade encontrada a partir desta proposição inicial optei por não deixá-la imediatamente de lado. Acreditei que insistir neste caminho seria importante para a continuidade do trabalho de pesquisa. Isto porque o fato de estar realizando um laboratório, uma experiência, possibilitava um respeito ao tempo em que as coisas não funcionavam. Até o que dá ―errado‖ podia, nesse caso, proporcionar um espaço interessante de descoberta. Insisti um pouco mais no caminho, para tentar pelo menos entender por que ele não avançava. ―Boas idéias costumam não funcionar nas situações em que os palhaços se encontram. Reações e impulsos imediatos são, em geral, mais interessantes e verdadeiros (...)‖ (Jardim, 2002: 20). Foi ao reler esta afirmação da Profa. Dra. Juliana Jardim que percebi onde estava o problema. Eu queria conduzir o processo a partir de uma boa idéia, apenas. E uma boa idéia, 29 A foto pertence ao filme O Balão Vermelho (1956), roteirizado e dirigido por Albert Lamorisse. 109 especialmente uma boa idéia que é anterior e independente à própria ação do palhaço não é um dos terrenos mais férteis para a criação. Desisti da minha idéia para retornar a sala de ensaio munida dos primeiros elementos para investigação que se revelavam a partir do estudo de Exceptions to gravity: a ideia do palhaço como um solucionador de problemas e a técnica que ele desenvolveu para o início do espetáculo. Além, é claro, dos meus já fiéis parceiros de cena, os balões. Pesquisando ao máximo as possibilidades de relação que poderiam ser desenvolvidas a partir do jogo entre o que a palhaça provocava no balão e o que o balão provocava na palhaça, foi começando a sinalizar-se um novo caminho, bem mais fértil do que aquele explorado inicialmente. Busquei desenvolvê-lo atenta às possibilidades e aberturas proporcionadas pela análise de Exceptions to gravity e também preocupada em, ao final, conseguir fechar uma estrutura que permitisse a apresentação do número. Cheguei à construção do número Balões!. Desde o início, estava objetivado que este processo investigativo deveria me conduzir à formalização do número, que seria apresentado para a banca de avaliação como resultado final fundamental à pesquisa. A Dissertação inclui o DVD abaixo, com a filmagem do mesmo, realizada no dia 02 de Julho de 2011. 110 No período entre a entrega da dissertação e a defesa realizarei um workshop com Avner Eisenberg e Julie Goell, sua esposa, em Portland, EUA, no qual terei a oportunidade de trabalhar este material com ele. No dia da defesa, haverá uma apresentação para a banca, onde poderão ser observadas as modificações surgidas a partir do encontro concreto com Avner, agora no lugar de pedagogo. 111 CONCLUSÃO ―Caminhante não há caminho Se faz o caminho ao andar‖ Antonio Machado O percurso investigativo trilhado ao longo destes dois anos abriu diversas possibilidades de pensamento, reflexão e prática. A análise de Exceptions to gravity permitiu o redimensionamento do sentido da atuação do palhaço. Possibilitou ainda a percepção de que a grandeza deste show é consequência, fundamentalmente, de uma abertura constante de Avner para a experiência artística, o que inclui o aprimoramento do trabalho já estabelecido em paralelo à procura por novas questões. Dentre os princípios do palhaço estabelecidos por Avner, é comum vê-lo ressaltar um deles, no qual afirma: ―Seja interessado, não interessante.‖ (Eisenberg, http://www. avnertheeccentric.com/eccentric_principles_portuguese.php, acesso em 5 de Maio de 2010). Busquei manter-me atenta a esta frase ao longo de toda a pesquisa, não apenas no que diz respeito à minha experimentação prática, mas também na maneira de conduzir a análise de seu espetáculo. Ao invés de impor um pensamento já formulado a respeito do palhaço e guiar o meu olhar a partir dele, procurei perceber na própria obra os elementos que me permitissem definir os rumos da pesquisa em cada uma de suas etapas. Buscando compreender Exceptions to gravity a partir da escuta e do respeito ao que o espetáculo é. A definição dos quatro pontos para análise da obra: princípios do palhaço, autoria e apropriação, relação com a plateia e técnica dos movimentos, mostrou-se um caminho possível para entender mais profundamente a atuação de Avner, bem como direcionar o meu processo investigativo de criação do número. Autoria e apropriação foram questões desenvolvidas a partir da observação da ampla presença em Exceptions to gravity de partes do repertório clássico da palhaçaria, incluindo tanto gags quanto números. Porém, Avner trabalha com este material através de um processo de apropriação que as torna particulares. O mesmo processo de apropriação foi experimentado em Balões!, permitindo-me comprovar através da prática que ele envolve tanto o conhecimento técnico da sequência quanto um atravessamento de sua lógica particular de palhaço, que é o que vai garantir a inserção da comicidade pessoal. Avner realiza este processo de apropriação com perfeição. Perfeição que é também resultado do tempo a que vem se dedicando a trabalhar sobre a mesma estrutura. Este artista 112 investiu na elaboração e aprofundamento de um único trabalho. E é justamente aí que se afirma o caráter autoral de sua obra. Saber fazer bem o que já existe pode ser muito mais genial do que criar algo novo a cada instante. Este é um ensinamento importante especialmente nos tempos atuais, em que se valoriza cada vez mais a inovação e a mudança constante, deixando de lado a solidificação do conhecimento que só o tempo pode proporcionar. Avner vem dedicando seus estudos nos últimos anos à análise da relação com a plateia, questão de interesse fundamental para ele, levando-o a ampliar as fontes de pesquisa para campos como a Neurolinguística e a Hipnose. Seus conhecimentos o conduziram à elaboração de uma técnica particular, segundo a qual o controle da respiração do público é a base para que o palhaço garanta a manutenção desta conexão. O tipo de entrada que desenvolveu para o espetáculo e a eliminação da triangulação com o olhar para a plateia, estão diretamente relacionados a esta técnica. A forma como Avner se relaciona com os voluntários do público, na qual se destaca a preocupação em deixar a pessoa feliz e à vontade por ocupar este papel é outro ponto importante de sua relação com a platéia. Bem como a capacidade de manipular o direcionamento das ações do voluntário, a partir de comandos sutis, porém extremamente eficazes. Nem todos os pontos pesquisados por Avner passaram a fazer parte também da minha prática. Percebo a possibilidade de, pela base oferecida por ele, trabalhar a relação com a plateia sem desenvolver estudos a respeito da Neurolinguística, por exemplo. E acredito que a pratica do Contato-improvisação pode trazer tantos elementos para a escuta corporal e o desenvolvimento da capacidade de se afetar pelo gesto do outro, facilitando o relacionamento com os voluntários do público, quanto o Aikido. Mas nos dois casos me interessaram os princípios almejados através deste caminho de busca. Foi com eles que eu busquei me afinar ao longo da pesquisa. A técnica dos movimentos permitiu uma compreensão mais aprofundada sobre alguns dos pontos que permitem que Avner tenha um trabalho corporal tão preciso e claro. A sua definição gestual, o envolvimento de todo o corpo nas ações, entre outros elementos, deixam o seu corpo livre para que possa se comunicar da maneira mais eficiente possível. Foi de extrema importância a investigação, na prática, destes mesmos pontos, levando-me a um aprimoramento visível do meu trabalho corporal. Para além de todas as questões técnicas que foram analisadas e experimentadas ao longo da pesquisa, destaca-se também o exemplo de relação com o fazer artístico 113 proporcionado pela observação da atuação e da pedagogia de Avner. Este palhaço está sempre movido pelo desejo de investigação de novos temas, ressaltando o lugar do artista como um pensador e pesquisador do seu próprio fazer. Exceptions to gravity acumula experiências de mais de 38 anos. Assim, é compreensível que tenha atingido um nível primoroso. No entanto, o reconhecimento obtido por Avner com seu espetáculo não o levou a um encerramento das pesquisas, mas apenas a uma mudança de foco. Agora, o mestre se dedica cada vez mais a descobrir maneiras de transmitir os conhecimentos que acumulou ao longo de todos esses anos. Vale ressaltar que esse é um trabalho que realiza não somente com palhaços, pois percebeu que os princípios que estabeleceu poderiam ser aplicados com a mesma eficiência em diversas áreas. Avner atua, por exemplo, dirigindo apresentações de musicistas e dando cursos que habilitam professores a se relacionar melhor com os alunos em sala de aula. A postura investigativa de Avner certamente está ligada à sua formação junto a Jacques Lecoq. Os pensamentos do mestre francês ocuparam papel central também neste estudo, sem que isso exclua outros pensadores e/ou artistas, que também ofereceram interlocuções fundamentais, como De Marinis, Meierhold e Dario Fo. Tanto em Lecoq quanto em Avner, é possível observar a constante busca por nortes investigativos, pela criação de novas perguntas, muito mais do que o fechamento de respostas onde pretensamente se pudessem encerrar todas as questões da arte ou, no caso específico, do palhaço. O encerramento desta pesquisa de Mestrado não significa o fim da minha investigação guiada a partir da obra de Avner. O próximo passo é o estudo de como os elementos apreendidos a partir da analise de sua atuação e experimentados no processo investigativo de criação do número podem se desdobrar na construção de uma proposta metodológica que sirva também para a formação de outros palhaços. A experiência que viverei em breve, durante o Eccentric Performing Workshop, no qual ficarei imersa por onze dias no estudo do palhaço e tendo a vivência direta dos ensinamentos e posicionamentos de Avner como pedagogo, certamente lançará inúmeras luzes para esta nova investigação. A outra direção na qual pretendo me aprofundar está relacionada à minha prática. Venho trabalhando há algum tempo em processos nos quais a autonomia de cada um dos envolvidos é fundamental para o acontecimento artístico. Este tipo de postura, me parece, é quase inerente ao palhaço, mas percebo que também nas escolhas teatrais que faço procuro me aproximar de trabalhos que explorem este tipo de relação. Apesar disso, nunca havia pensado em trabalhar sozinha em cena. O que se deu como conseqüência natural deste processo de pesquisa acadêmica acabou se mostrando um território rico e no qual tive muito 114 prazer em atuar. Pretendo dar continuidade à investigação surgida a partir do número e possivelmente transformá-lo num pequeno espetáculo solo, ideia que Avner sempre estimula seus alunos a seguirem. O título do segundo capítulo desta Dissertação, ―E a palhaça, o que faz?‖, surgiu como uma brincadeira com o título da primeira parte da pesquisa, ―E o palhaço, o que é?‖. Mas ainda assim parecia poder dar conta do que viria a ser abordado na segunda parte do texto. Enquanto no primeiro capítulo eu analisava Exceptions to gravity, no segundo procurava entender a maneira como os elementos desta análise poderiam se desdobrar no meu próprio fazer. Foi somente com o andamento da pesquisa que percebi que este título abarcava questões maiores e que já vinham se delineando ao longo da experiência. E a palhaça, o que faz, depois de tudo isso? Talvez esta seja a principal pergunta que se apresenta neste momento. Porque a oportunidade de construir um número que vem como a experiência cênica de uma investigação mais ampla, certamente será definidora do percurso artístico que seguirei daqui em diante. Assim, levantam-se novas questões, afirma-se a pertinência de questionamentos antigos e com eles sigo a minha prática agora. Que tipo de riso pretendo provocar? Do que eu quero falar? Para quem? Como? Como pensar a criação de um modelo de produção que me permita encontrar a sustentabilidade financeira como palhaça? As questões são muitas e as respostas ainda vagas. Sigo tentando formulá-las cada vez com mais precisão, por acreditar que apenas na sua formulação já encontrarei alguns esclarecimentos necessários. Por enquanto, a única certeza é a de que devo seguir num caminho de experiência. Aberta para que a continuidade do fazer vá indicando que fazer é este. O palhaço Joe Jackson Jr, um dos mais importantes da história recente da palhaçaria, discorre no vídeo Tributo a Charlie Rivel a respeito de seu número, cujo roteiro se desenvolve a partir da tentativa do palhaço de andar numa bicicleta, que vai progressivamente se desfazendo. Ele afirma que, naquele momento, realizava o número já há 42 anos. Antes disso, o seu pai, Joe Jackson, trabalhara exatamente com o mesmo material por 51 anos. Ou seja, o número tinha praticamente um século de existência. Joe Jackson Jr coloca que somente nos últimos anos é que conseguiu passar a realizá-lo sem se preocupar, sem pensar em nenhum dos detalhes da execução, do tempo, da dinâmica da cena, para poder entrar em cena simplesmente pensando ―Eu vou me divertir‖. Para atingir tal ponto foi necessário quase meio século de prática com um material que possui o dobro do tempo. Relato este depoimento por acreditar que ele é um belo retrato de quão longo é o percurso que precisa ser trilhado pelo 115 palhaço, até que possua uma afinidade tão grande com o material com que lida que se torna capaz de deixá-lo acontecer, enquanto se diverte. É costume ouvir que um palhaço torna-se grande realmente só quando chega à velhice, pois acumulou inúmeras experiências ao mesmo tempo em que perdeu completamente a vaidade e o medo do ridículo. Avner, ainda que não seja propriamente velho, tem mais tempo de cena do que eu de vida. Ou seja, termino esta pesquisa acadêmica na certeza de que estou apenas nos primeiros passos de um caminho que é ainda muito amplo. Mas pelo qual irei seguir. Entre gargalhadas, tropeços e balões! Foto: Rany Carneiro Foto: Warren S. Westura 116 Bibliografia ASLAN, Odette e BABLET, Denis. (org.). Le Masque du Rite au Théâtre. Paris: CNRS, 1991. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1993. 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RAI TV, Leone, ORTF y Bavaria França, Itália e Alemanha, 1970. Les Deux Voyages de Jacques Lecoq. de Jean-Noel Roy e Jean-Gabril Caraso. DVD online production, 1999. 123 Anexo 1- Transcrição da entrevista com Avner Eisenberg A entrevista aconteceu no hotel onde Avner Eisenberg esteve hospedado durante o Evento de Humor Risadaria, em São Paulo, no dia 25 de Março de 2011, com a duração aproximada de duas horas. Foi realizada em Inglês e transcrita e traduzida pela autora. Ana: Quando e porque você decidiu se tornar palhaço? Porque me parece que quando você se direcionou a Escola de Jacques Lecoq foi em busca dos estudos de pantomima, não especificamente do palhaço ainda, não é? Avner: Deixe-me pensar... De fato, eu estava interessado principalmente em pantomima naquele momento. Eu não pensava muito sobre o palhaço ainda. E comecei a fazer alguns shows. Era o meu segundo ano na Escola Lecoq. Eu comecei a deixar crescer a barba. E a barba com a cara branca... Era terrível. E também tinha alguns conhecimentos de acrobacia, então fazia algumas coisas com objetos... Algumas coisas... Não era realmente pantomima, ainda que não falasse. Eu comprei alguns livros numa livraria, havia palhaços e fui realmente fazer uma pesquisa e descobri o que se chama de hobo clown e eu já tinha a barba! Bom, isso foi há muito tempo atrás. Bom, então na minha pesquisa eu encontrei pela primeira vez o hobo clown. Você entende o que quer dizer? Hobo clown? Ana: Não. Hobo clown? (tentei repetir o nome) Avner: Sim. H-o-b-o. Hobo clown. Ana: Hobo... (ainda sem entender do que se tratava). Avner: É um tipo de palhaço que... Eu posso te mostrar uma foto! Rapidinho. (Fomos para o computador e ele procurou no Google uma imagem do hobo clown) Avner: Esse é o hobo. Ana: Ah, sim! Avner: Como vocês o chamam? Ana: O vagabundo. Avner: O vagabundo, exatamente! Que era um personagem que eu acho que cresceu muito provavelmente devido à depressão americana, em 29. Eu gostava da tristeza daquele 124 palhaço... Então eu fiz um tipo de figurino que se adequava a ele, com um terno realmente velho e sujo. Ana: Sim, eu vi um vídeo na internet em que você está vestido assim. Avner: Então, eu estava fazendo basicamente um show de mímica, mas como esse hobo clown. Mas não havia continuidade, eram pequenos números. Mais mímica... Eu vim para a França para estudar com Marceau, mas não pude achá-lo. Eu tinha encontrado Lecoq um ano antes, ele foi para a minha universidade em Nova Iorque e eu fiz um workshop com ele. Mas eu não entendia nada ainda... Achei que era interessante... E eu queria morar na Europa por um ano. Então todas as coisas vieram juntas e eu simplesmente fui. Pensando que era uma escola de mímica, o que não é. São três coisas: mímica, movimento e teatro e a sua abordagem particular de cada uma delas. A parte da mímica é o que ele chama de análise do movimento, onde ele olha para a eficiência do corpo humano como uma máquina. Por exemplo, se você tem que pegar um peso não é (Avner faz a demonstração da ação de pegar um peso imaginário no chão, deixando todo o esforço transparecer somente através da tensão do rosto e muito pouco no corpo), mas sim o fato de que nós trabalhamos como uma alavanca, todas as partes do corpo estão envolvidas no movimento. (demonstra novamente, envolvendo todo o corpo na ação) Então ele apresenta estes princípios do movimento. É tão interessante! E o fato é que eu ainda era um cientista. Então para mim era o encontro entre biologia, física e teatro. Era muito interessante. Eu me desapontei inicialmente. Porque eu queria fazer mímica, nós queríamos fazer isso (reproduz a ação clássica dos mímicos tocando numa parede imaginária) e ele disse: ―Oh, isso é besteira, qualquer um pode fazer isso!‖ e nos mostrou, em meia hora estávamos todos fazendo perfeitamente isso (repete a ação). Ana: É muito mais do que isso. Avner: Muito mais. Então eu decidi ficar. E o palhaço é o final do segundo ano, mas tudo era um grande funil que convergia para o palhaço. Ana: Eu li algumas matérias antigas sobre você em que era comum falarem sobre um palhaço triste e eu achava estranho porque não noto esse traço de tristeza no seu trabalho. Avner: Isso é besteira, eu também não. 125 Ana: Sim, era estranho para mim. Mas agora eu entendo, é um material bastante antigo talvez fosse da época em que você trabalhava com a figura do vagabundo e eles associavam com isso... Avner: Não sei... Eu nunca mais usei aquela maquiagem de novo. Quando eu acabei a escola eu nunca mais a fiz. Ah! Fiz um pouquinho sim. (risos) Assim que eu voltei continuei usando o nariz do vagabundo e um pouco da sua maquiagem. Por pouco tempo. Ana: Depois disso você deixou o nariz vermelho. Avner: Você sabe a história? Ana: Não, adoraria saber! Avner: Foi uma liberação. Quando o Lecoq nos dá o primeiro nariz vermelho é uma verdadeira cerimônia, emocionante. ―Uau! Meu nariz! Oh!‖ Ana: Sim, ―Eu tenho o meu!‖ Avner: Exatamente, depois ele se torna ―La petit masque de la derisoire‖ como ele costumava chamar, a pequena máscara do ridículo, de tudo aquilo que é risível. E foi uma liberação, você poderia ser simples ou complexo, você poderia ser naif, ser arrogante. Você poderia ser qualquer coisa, porque você estava atrás da máscara... Era maravilhoso. Me parece que há uma relação direta com a história do nariz vermelho. Você a conhece? Ana: Não. Avner: Acho que nunca a contei numa entrevista. Vai ser a primeira vez. Ana: Maravilha! Avner: Acho que existe um princípio realmente importante no teatro, que é o de que você tem que ser alguém com quem a plateia possa ter uma relação de empatia. Você sabe a relação entre simpathy e empathy30? Simpathy é quando a plateia olha e diz ―Ah, sim, coitado...‖ e empatia é quando a platéia olha e diz ―Oh, eu sei, eu entendo como essa sensação é.‖. E a empatia é a reação mais forte. É quando nós sentimos o que a pessoa sente. E isso acessa as conexões dos neurônios do nosso cérebro, provocando uma sensação de bem-estar. Para mim 3030 Optei por manter as duas palavras na língua original porque simpathy, normalmente traduzida como simpatia, abarca um sentido mais amplo em Inglês, sendo sinônimo de compaixão. Já empathy poderia ser traduzida somente como empatia. 126 é um dos problemas do Cirque du Soleil e de todo o Nouveau Cirque: você não consegue se importar com ninguém ali. Os palhaços são muito - pelo menos os que eu vi- muito distanciados, muito zangados e belicosos. Eu não quero ser como eles, eu não me identifico. As acrobacias são realmente incríveis, mas e daí? Ana: Fica tudo muito distante de nós... Avner: Sim... Então, a história do nariz vermelho começa nos primeiros circos. Aliás, o circo se chama assim justamente pelo formato do círculo. Os primeiros circos eram shows de cavalo. Não muito tempo atrás - eu posso te mostrar algumas fotografias - tudo na nossa cultura dependia dos cavalos. Na agricultura usavam os cavalos, nos transportes usavam os cavalos, até nas máquinas eles usavam os cavalos. Nada se movia mais rápido na terra do que o cavalo, até a invenção do trem. Então, vamos dizer que até 1850, mais ou menos. Não é tanto tempo atrás. E a nossa cultura era rural, as pessoas viviam nas fazendas, não viviam nas cidades como agora, isso é relativamente algo novo. Mas até nas pequenas cidades havia os cavalos. E toda fazenda tinha um cavalo, e toda criança escutava: não fique de pé em cima de um cavalo! Porque você vai morrer. Faz sentido. Então os circos chegavam às cidades, trazendo os cavalos e o que eles faziam? Ana: Ficavam em pé em cima dos cavalos. Avner: Exatamente. Ficavam em cima dos cavalos e corriam e nós podíamos olhar aquilo e dizer: ―Uau! Eu não posso fazer isso!‖ Então eles desenvolveram um personagem, que era uma pessoa que vinha da plateia e ia até o meio da pista e subia no cavalo. Parecia com os homens do campo, o mesmo tipo de roupa, roupas do campo. E discutia com eles, que afirmavam ser perigoso para ele tentar ficar em pé no cavalo, e ele tentava subir no cavalo, galopava de costas, segurando-o pelas crinas, quase caindo do cavalo, coisas loucas... E de repente ele tirava a roupa de homem do campo e era, na verdade, o melhor de todos. Quando este personagem entrava na pista nós podíamos fazer ―Oh!‖, porque era como nós, o nosso representante e nós podíamos ter empatia por aquele personagem. Porque com o virtuose no circo nós não podemos ter empatia, não é acessível a nós. Mas no circo, quando éramos crianças, depois de um número de equilíbrio entra um homem velho que olha para aquela corda, olha para nós e começa a subir, imediatamente fazemos ―Oh, não!‖ Lembra disso? Ana: Sim! 127 Avner: Ou então o número do gorila. Tem alguém treinando um gorila, um falso, e de repente entra alguém desavisado atravessando o palco carregando bolsas de compra e imediatamente nós fazemos: ―Não!‖ e o gorila pega a bolsa, começa uma confusão... Então, nós temos um palhaço. E o palhaço é o nosso representante no mundo do perigo. E isso indica uma falta de inibição. E qual é o símbolo na nossa cultura para a falta de inibições? Alguma coisa que tira qualquer inibição que se possua? Que nos faz estar numa festa e dançar em cima da mesa felizes? O álcool. E qual é o símbolo maior do álcool? O nariz vermelho. Então na nossa cultura até muito pouco tempo atrás o vagabundo bêbado era um personagem muito amado. O clochard, em francês, eu não sei se vocês tem alguma figura semelhante aqui... Ele é uma espécie de feliz... bêbado. Que estava sempre se metendo em problemas. Na América nos anos 60 havia uma série de TV sobre uma pequena cidade com dois guardas apenas e uma estação policial. E o bêbado da cidade tinha sua própria chave da cadeia, para poder circular à vontade. Ana: (risos) Ele podia dizer ―Oi, cheguei, já vou, boa noite!‖ Avner: Sim, ele podia chegar a qualquer momento. E dormir, caso não conseguisse ir até a sua casa. Então, essa é a história do nariz vermelho, é por isso que para os palhaços... É o maior símbolo, o nariz vermelho. Enfim, eu sei que não é verdade. Mas é em que eu acredito. Ana: A gente tem que acreditar, não é? Avner: Sim, é a minha religião. Eu sei que não é verdade, mas eu acredito. Ana: Então, quando e porque você decidiu deixar o seu nariz vermelho? Avner: Bem, eu trabalhei com ele por anos... Primeiro saiu a maquiagem. Eu usava um pouco de maquiagem, bem simples e um dia decidi fazer sem ela. Então eu fiz o show e no final meus amigos vieram e eu disse: ―Então, o que vocês acharam?‖ e eles ―...‖. Não tinham nem notado a diferença. E eu: (Avner faz uma expressão de profunda decepção por ninguém ter notado a ausência de maquiagem) ―Ok, maquiagem não mais!‖ E o nariz eu decidi pelo mesmo motivo. E a razão é que quando você é um clown... Clown é uma ―four-letters word‖, uma expressão, eu não sei se vocês tem também. Você entende isso, ―four-letters words”? Ana: Não... Avner: É uma maldição, nós costumamos dizer que todos os palavrões têm quatro letras. Você diz para alguém: ―eu conheço uma ―four-letter word‖ para isso...‖. Clown tem cinco 128 letras, mas nós costumamos dizer que é uma ―four- letter word‖ porque é uma maldição. Se você quer fazer palhaço para adultos eles dizem ―Oh, palhaço? Não!‖. Então trazem crianças de dois, três anos. E você pensa: ―Por quê?‖ e eles realmente pensam que é só uma coisa fofinha para crianças. E eu fazia o meu show... Até mesmo quando já estava na Broadway em Nova Iorque e tudo o que eles diziam era sobre as crianças de três anos na plateia. Mesmo que toda a plateia de adultos estivesse chorando e rindo, eles sempre falavam das crianças de três anos como ―Hahaha, que fofinho!‖. É terrível. Uma frustração. Então um dia eu decidi tirar o nariz vermelho. Então eu subi no palco... E eu já tinha uma série de brincadeiras com o nariz vermelho, tirava-o, mexia com ele. Então bem no começo eu tirei-o e pim! (faz um gesto que mostra que com um peteleco lançou o nariz para a coxia). E fiz o show até quase o fim. E você sabe aquele momento em que eu boto o guardanapo no rosto? 31 Ana: Sim. Avner: Geralmente, tinha uma pequena cruz no guardanapo, para o nariz, e quando eu o colocava no rosto rasgava mais, deixando só o nariz vermelho de fora. Ainda não tinha os óculos. Era uma imagem muito bonita. Até hoje é uma das principais de divulgação do espetáculo. Então... Foi chegando nessa parte do show e eu lembrei: ―Oh, Deus, estou sem o nariz!‖ Eu estava no meio da rotina. Então a interrompi e fui para procurar o nariz e no meio dos cigarros, papéis e tudo o mais o achei. E terminei o show. Então ainda demorou um tempo até que eu achasse os óculos com nariz que uso hoje em dia. Que eu acho que nem é tão incrível, mas que também não é mau. Ana: Não, não é. Avner: Então, depois que já o tinha encontrado fiz o show pela primeira vez sem o nariz e alguns amigos também assistiram. E no final eu perguntei: ―O que vocês acharam?‖. Novamente eles não tinham notado a diferença. Esse foi o fim do nariz vermelho. Ana: Acho que a próxima questão que eu tinha planejado possui estreita relação com isso. Porque era a respeito de por que você decidiu deixar de se chamar de clown para nomear-se como Eccentric Performer. É por causa disso, desse prejulgamento do público? 31 Avner refere-se a uma sequência que faz parte do último número de Exceptions to gravity. Ele senta-se numa pequena mesa para realizar uma refeição, composta unicamente por guardanapos que vai comendo de formas variadas. Depois de já ter devorado alguns, cobre todo o seu rosto com um deles e veste por cima um óculos com um nariz de plástico preso. A seguir vai puxando o guardanapo com a língua e devorando-o, mantendo os óculos e o nariz no rosto. É um dos momentos apoteóticos do fim do show. 129 Avner: É exatamente a mesma coisa. Porque se você diz ―Eu ensino palhaço...‖ as pessoas (Avner faz uma expressão de desdém). Acho que isso vem mudando, clown tem se tornado um termo sexy, muitas pessoas querem estudar clown. Ana: Eu acho que aqui no Brasil há algo parecido. Porque a tradução de clown para nós é palhaço. Mas muitas pessoas usam a palavra clown e eu sempre fiquei, bem, eu sou palhaça, para mim não há diferença entre os termos. Mas ultimamente tenho entendido um pouco a escolha do termo em inglês, por isso. Porque se você diz: ―Eu sou clown‖, as pessoas respondem ―Oh, que legal.‖ Mas se você diz ―Sou palhaça‖, te respondem: ―Ah...‖. Então acho que a mesma relação que você tem com clown e Eccentric Performer. Avner: Sim. Mas também porque eu gosto de usar mais fontes do que somente as do palhaço. Porque o palhaço é uma coisa muito específica. Mas para mim é qualquer coisa que você use para divertir a plateia. Você pode ser bonequeiro, pode ser mágico... Mas os princípios são os mesmos. Deixe-me ver o seu anel. (pega um anel grande que eu tinha em um dos dedos). Olha o anel, olha o dedo, olha o anel. (Avner faz uma mágica em que troca o anel de dedo com uma rapidez impossível). Ana: Como você fez isso? Avner: (Faz um gesto com os ombros como quem diz “quem sabe?”) Ok. Então é por isso que mudamos. Porque esse termo incorpora tudo o que nós fazemos. Ana: Sim e ao mesmo tempo o palhaço também incorpora coisas muito diversas. É muito difícil dizer o que o palhaço é, mas ao mesmo tempo, ao vermos um podemos reconhecê-lo facilmente. Avner: Eu fiz uma palestra numa convenção de palhaços. Daqueles realmente (faz alguns gestos que mostram serem palhaços com grandes perucas, figurinos e movimentações exageradas. O estereótipo do palhaço). Os palhaços da maquiagem, realmente. Você já os viu? Um monte de pinturas, rosa, amarelo. Grandes perucas... E é realmente um mistério para mim tudo aquilo que eles fazem... Ana: Eu acho que eles acabam ficando distante das pessoas com tudo isso. Tudo aquilo que você falou antes a respeito da empatia com o público, na história a respeito do nariz vermelho... As pessoas olham e dizem ―Oh, ele é como eu.‖ Mas se você tem um monte de coisas acaba ficando distante. 130 Avner: Sim... Mas eram pessoas realmente legais. Eram mais palhaços recreativos. Que atuam em clubes e que discutem a respeito de maquiagem... Enfim, eu tinha que falar. E... A gente nunca usa maquiagem nem figurino. Quer dizer, nós usamos figurino, mas não como aqueles. E como os que eles ensinavam. E eu ficava me perguntando: ―O que eu vou dizer?‖. Porque o que eu queria era perguntar ―Por que tanta maquiagem?‖ É o que eu sempre pergunto. Quando vem alguém até mim querendo me mostrar o seu show, eu sempre digo: ―Primeiro desligue a música, vamos ver o que você realmente tem, o que você está fazendo.‖ E sempre que eu pergunto por que a maquiagem eles dizem: ―Oh, oh... bem... porque eu sou palhaço.‖ Eles não sabem. Você sabe por que os mímicos têm o rosto branco? Ana: Não. Avner: Ninguém sabe. Quer dizer, eu sei. (risos) Sei por que a minha esposa Julie me contou. O personagem que vem de Marceau, Debureau até o Pedrolino (pierrot) da Commedia dell´Arte. Pedrolino, a face branca com a roupa com mangas largas, era o assistente do padeiro e a farinha caía na sua face. Por isso que ela é branca. Eu sei que não é verdade. Mas eu acredito. Eu tenho que acreditar. E então... Eu tinha feito a pergunta a algumas das pessoas desse encontro: ―O que é um palhaço?‖ e poderia te fazer a mesma pergunta. E todos me davam a mesma resposta: (faz gesto que demonstrar não saber). Houve um caso muito famoso no congresso americano. Você sabe o que é pornografia? Ana: Sim. Avner: Ok. Eles não. E eles discutiam muito e cada vez achavam uma coisa nova. ―E isso? E Michelangelo? É pornografia? Não... Mas então e isso?‖ E discutiam... E realmente não sabiam. Até que finalmente eles disseram uma sentença que ficou muito famosa: ―Eu não sei definir o que a pornografia é. Mas eu sei que é quando a vejo.‖ Então eu comecei a minha fala dizendo... Contei toda a história e perguntei-lhes o que era o palhaço. Eles também não sabiam definir. Então eu disse: ―Vocês sabem, o palhaço é como a pornografia. Você não sabe definir, mas você certamente sabe que é um quando o vê.‖. Então para mim o palhaço é uma série de princípios que você pode aplicar para qualquer situação teatral e para realmente muitas situações da vida. Para mim é um assunto muito filosófico. Mas não é uma coisa. É uma série de ideias que permitem que você transforme aquilo que faz através de um caminho interessante. 131 Ana: Entendo... Você sempre diz que tem dois grandes mestres: Lecoq e Carlo MazzoneClementi. Sobre o Lecoq eu tenho bastante informação, porque ele é bem mais conhecido, tem os livros, o filme, enfim, eu consigo perceber qual é a influência dele no seu trabalho. Mas se você pudesse falar um pouco mais a respeito de Carlo Mazzone-Clementi. Avner: Carlo era um membro do teatro de Padova. E quando Lecoq... Primeiro ele foi para a Inglaterra. Quando Lecoq trouxe a Commedia de volta para a França ele... Costuma-se dizer que os italianos inventaram a Commedia dell' Arte e pegaram um francês para explicá-la. Lecoq realmente definiu cada um dos seus personagens em termos de movimento e produziu todo um sistema. A outra coisa que ele trouxe para a França foi o Carlo. Carlo era uma pessoa realmente muito interessante. Ele era a pessoa do meio no mundo da pantomima, do gesto. Ele estudou com Decroux, trabalhou com Marceau e foi assistente de Lecoq. Ana: Ele esteve com todo mundo. Avner: Ele era a pessoa no meio. Uma figura incrível. Ele era extraordinário. Ele foi para o mundo selvagem do meio da Califórnia, para um lugar chamado Blue Lake - onde não há lago- e começou a primeira escola na América completamente baseada nos ensinamentos de Jacques Lecoq, chamada Dell´Arte Schooll. Ana: Eu vi algumas coisas a respeito dela na internet, é uma escola realmente muito importante nos Estados Unidos. Avner: Eu tive muita sorte, porque quando ele fundou a escola estava procurando professores formados pelo método de Lecoq. Isso foi... em 1975 mais ou menos. Não havia muitos. E eu fui um dos primeiros professores que ensinou lá. Então ele realmente combinava a Commedia que é muito mais prática, ―vai lá e faz‖ com a intelectualidade do Lecoq. Era um maravilhoso, maravilhoso pesquisador das palavras. Dizia que ―o chão onde você pisa é o único que sabe as árvores que lá irão crescer‖ e ―Os inventores do alfabeto não conheciam uma palavra‖. Ele era um gênio no ensino. E a escola continua até hoje, ele morreu há dez anos, mas ela continua funcionando. Ele foi uma figura muito importante, especialmente no teatro americano, mas no teatro de todo o mundo também. A primeira vez que eles voltaram a se ver depois de, não sei, vinte anos, foi num festival nos Estados Unidos em que eu me apresentei. No final eu disse ―eu gostaria de agradecer aos meus dois mestres. Lecoq, que me ensinou tudo que eu sei. E Carlo, que me ensinou o resto.‖ E por quê? Porque ele tinha um pensamento muito importante 132 que era: ―Não é interessante o que você sabe, mas sim o que você não sabe.‖ Em outras palavras: sempre seja curioso. ―O que está acontecendo?‖ Ana: Sim, que legal... Avner: Então, esse é Carlo. Ana: Esse pensamento dele realmente é muito importante, porque muitas vezes ficamos preocupados com a ideia, com o que fazer então se criam milhares de coisas, mas na verdade quando se está no palco e se entra em contato com o público... Avner: Seja interessado, não interessante. Ana: O que você pensa sobre a importância do começo do show? Quando você entra pela primeira vez e tem o primeiro contato com o público? Avner: Eu penso que é de muitas maneiras o momento mais importante de qualquer show. Este tem sido o assunto das minhas pesquisas nos últimos dez anos, olhar para isso, para este assunto. Eu acho que um dos princípios mais importantes de todo o teatro, e do palhaço mais ainda, é criar comunicação com a audiência e mantê-la durante o show. Você entende o que eu quero dizer com conexão? Ana: Acho que sim. Avner: Nós estamos em conexão agora. Porque eu estou falando e se faço isso (balança a cabeça) você faz isso (balança a cabeça novamente e eu balanço junto com ele, quase sem perceber). E se eu faço isso (muda a sua posição no sofá e logo em seguida eu muda a minha) você faz isso. Existem muitos estudos científicos sobre isso. Quando nós estamos em conexão é como se houvesse um canal aberto entre nós e muitas coisas acontecem. Uma delas é que nós começamos a refletir a postura um do outro, os gestos, o tom de voz... Se você vai a um restaurante e apenas olha para os casais é muito fácil perceber aqueles que estão apaixonados e aqueles que estão cansados um do outro, você pode percebê-lo imediatamente. Agora, nós podemos criar conexão através de conscientemente manipularmos estes pontos. Eu estou fazendo isso agora. Mas perceba que eu também posso quebrar essa conexão e você se sentirá bem diferente, não? (Avner modifica a sua postura corporal e eu imediatamente me retraio na cadeira onde estou sentada, em frente a ele) Eu vejo que você ficou desconfortável. Você simplesmente se encolheu. Eu posso quebrar a comunicação de muitas maneiras (Avner se espalha no sofá com as pernas abertas, fazendo com que eu me encolha ainda mais. Depois 133 coloca as duas mãos sobre os joelhos e avança o tronco na minha direção enquanto eu vou ficando cada vez mais encolhida) Você está vendo? Mas o verdadeiro trabalho do palhaço é que - agora nós estamos de volta, estamos confortáveis outra vez, ok?- (Sem que eu tenha me dado conta ele retornou a uma posição corporal que me sinalizou conforto e eu já tinha realmente voltado a ficar à vontade quando ele fez o comentário a esse respeito) Nós não podemos ir até cada pessoa e estabelecer a conexão. Então o que eu descobri foi uma técnica, eu imagino que você já tenha lido sobre isso, em que eu crio uma situação em que a plateia pula para a conexão comigo. E é baseada na respiração. Muitos dos trabalhos de Lecoq eram baseados na análise da respiração e na relação dela com o movimento e eu... Estendi esse trabalho. E entendi que a respiração é... De certa maneira, ela revela sua atitude diante de qualquer ação. Chegamos assim a outro princípio: todo mundo precisa respirar o tempo todo. Mesmo quando está no palco. O que acontece quando não respiramos? Antes disso, o que acontece quando estamos assustados? (Eu faço uma ação demonstrando susto) Avner: O que aconteceu agora, quando você demonstrou o medo? Ana: Eu suspendi a respiração. Avner: Você não suspendeu a respiração, apenas. Você (repete o gesto que eu realizei anteriormente, destacando a rápida contenção de ar ocorrida). Continuou com o ar preso. Isso é que chamamos de ―freeze, fight or fly moment”32. Você vai parar numa casa abandonada no meio da noite, por exemplo. Você está o tempo todo pronto para fugir ou para atacar. Então, eu comecei a perguntar para os meus alunos qual era a sensação que tinham quando entravam no palco para fazer o seu show. E sabe o que eles respondiam? ―Eu espero que não seja terrível.‖ Eles estavam receosos. Você conhece esse sentimento. Depois eu lhes perguntei como eles se sentiam quando iam assistir ao show de um amigo, talvez você tenha experienciado isso na noite passada, você viu o show no Rio há dois anos atrás, mas dessa vez havia todos aqueles comediantes de stand-up, todas aquelas pessoas e você pensando ―Ele não vai falar...‖ E como você se sentia? ―Eu espero que dê tudo certo‖ Ana: Exatamente, eu espero que dê tudo certo. Avner: Isso, então a audiência também está com medo. Então, nós inspiramos quando estamos com medo e quando estamos confortáveis nós expiramos, soltamos todo o ar. Por 32 Momento do congelamento, luta ou fuga. 134 exemplo, quando nós temos uma coisa nova para fazer... (pega um copo cheio de água e me entrega) Você poderia segurá-lo por um instante? Agora pode soltar o ar. Você sentiu a diferença quando soltou o ar? Antes você estava (reproduz exageradamente como eu fiquei com o corpo ligeiramente enrijecido e com a respiração suspensa no momento em que me pediu que segurasse o copo e o posterior relaxamento). Ok, obrigada. Então, pegando estes conhecimentos e depois observando muitas entradas no palco eu percebi que a plateia já está: ―Eu espero que seja legal‖ e todo artista: ―Eu espero que seja bom porque senão for vai ser um tempo muito longo‖. Então no momento em que o performer entra em cena... (reproduz seu primeiro gesto ao entrar em cena, quando vai lentamente olhando o público) A platéia já está (reproduz alguém com todo o ar preso na garganta) e o performer também está (repete o mesmo movimento de contenção do ar). E então (solta o ar) e depois disso você vai adiante! Porque o que você está dizendo para eles com essa respiração é: eu estou confortável com vocês me olhando. E se você entra (Avner segura a respiração) e mantém isso eles vão continuar com medo e você vai ver isso em suas faces e vai querer dizer ―Me desculpem, não era para ser assim‖. Mas se você entra e (solta o ar novamente)... E nós podemos manipular essa situação um pouquinho. Porque se você entra e segura a respiração um pouquinho mais do que o normal, a audiência também o faz e então você solta o ar. ―Ahhhh...‖. E agora você os tem com você, existe uma conexão, pelo menos ao nível da respiração. Ana: A respiração é como uma base para manter a conexão durante todo o tempo, então? Avner: Sim. E também cria uma unidade na plateia, não em todos, é claro. Mas a maioria da plateia está respirando ao mesmo tempo agora e eles percebem isso. Eles sentem. Porque a respiração é provavelmente a mais importante e mais obvia maneira de entrar em conexão. Se você apenas entrar no ritmo da respiração da outra pessoa, esta é uma grande técnica utilizada por entrevistadores, você as faz relaxar. Então, a pessoa faz ―Ahhhh...‖ e percebe que a que está ao seu lado também fez ―Ahhhh...‖ e depois faz (inspira) e também nota que quem está ao seu lado fez a mesma coisa. É um grande instrumento para criar essa unidade na platéia, o que é uma excelente dádiva para o performer. Descobrir que eles estão juntos, estão focados. Então, para mim, essa é a importância da entrada. Ana: Eu acho que isso ficou muito claro na noite de ontem. Porque as outras apresentações eram ótimas, mas era outro tipo de trabalho e também havia muitos adolescentes na plateia e eles realmente gostam de gritar durante o show, e quando você começou o seu show muito 135 rápido se estabeleceu essa conexão com a plateia e entre a plateia, uma energia realmente diferente da que estava anteriormente estabelecida ali. Avner: Bom. Ana: Quando eu estava escrevendo a introdução da minha dissertação, eu disse que ao te assistir pela primeira vez, no final do show eu estava chorando e olhei para os lados e várias outras pessoas também estavam chorando. Depois fiquei pensando: porque a gente estava chorando? Porque você não faz nada para conduzir diretamente a isso. Mas agora eu acho que a conexão que se estabelece é também com nós próprios, porque nós ficamos como ( tento reproduzir fisicamente um estado de absoluto relaxamento e diversão) que é um estado realmente diferente daquele que nos permitimos estar à maior parte do tempo na vida e talvez chorássemos e ríssemos só por poder sentir ―Oh, acabou... E eu estou tão bem aqui...‖ Avner: Sim... ótimo... O que é interessante nisso do ponto de vista do performer é que é uma técnica secreta, nem todo o mundo a usa. Você sabe, às vezes conhecemos alguém e simplesmente gostamos daquela pessoa e às vezes conhecemos outra pessoa e... Não gostamos, definitivamente. Não é nada que eles disseram, não é nada que eles fizeram. Você não sabe por que, mas há alguma coisa que faz com que você simplesmente... (faz um gesto que demonstra um afastamento). O que acontece é que com as pessoas com quem você se dá bem, se você volta atrás e analisa, elas simplesmente criam conexão. Elas criam conforto. Elas estão confortáveis na desconfortável situação de conhecer alguém novo. Ana: Entendo. Avner: Eu conheci o Jô Soares, ele era incrível. Havia pessoas por todos os lados, uma grande confusão, e ele estava tão calmo no set e todo mundo andando à sua volta e ele estava tão focado quando falava com uma pessoa que você sabia que ela tinha realmente a sensação de que era a única pessoa no meio daquela multidão. Eu analisei-o bastante e ele realmente é muito bom nisso. Você nunca sabe como vai acontecer. Mas se você fizer um estudo enquanto estiver acontecendo. Depois pode começar a experimentar, pode tentar. Você pode conhecer alguém e dizer: ―Eu não vou deixá-lo entrar em conexão comigo.‖ E você deixa toda a coisa em desacerto e a pessoa fica (faz cara de tenso). E com outra pessoa você diz: ―Não, eu vou entrar em conexão com ela, talvez isso seja legal.‖. E você cria conexão. Na mágica existe o que nós chamamos de real work que é tudo o que acontece sem que a plateia saiba que está se 136 passando. E para mim este é o real work do palhaço, ninguém sabe o que está se passando. Eles não sabem que você está ajudando-os a ficarem relaxados na situação. Ana: Eles não pensam sobre isso. Avner: Eles não deveriam mesmo pensar sobre isso. Ana: Sim, eles apenas ficam. Avner: Para mim é realmente uma técnica secreta. Ana: E como os estudos de neurolinguística e hipnose te ajudaram com isso? Avner: Foi através de lá que eu aprendi a articular essas coisas. Foi por isso que eu fui procurar esses estudos. Porque eu sabia que estavam estudando essas relações e queria ver o que tinham a dizer a esse respeito. Depois o meu estudo ficou fascinante. E obsessivo. Eu fiz todos os cursos que eram possíveis a esse respeito... E agora eu pratico. Ana: Você já fazia essas coisas, mas não sabia exatamente como, então quando fez esses cursos pode entender, é isso? Avner: Eu descobri porque estava funcionando e, o mais importante, eu aprendi a como ajudar outras pessoas a fazerem o mesmo. Então quando você vai, assiste a um performer e diz ―Boas rotinas, esperto, legal... Mas não é engraçado. Por quê?‖ E esses estudos me ajudaram a entender porque tantos palhaços não eram engraçados mesmo quando eles tinham boas ideias e eram bem treinados. E me deu ferramentas para ajudá-los a fazer com que as suas rotinas se tornassem engraçadas. Ana: Isso é muito mais importante do que qualquer rotina, a conexão. Avner: Oh, a conexão é o que você usa para poder fazer toda a rotina. Não é nada por si próprio. (olhando para mim como se estivéssemos nos vendo pela primeira vez) ―Olá‖ (passase um tempo) ―Olá‖. (mais um tempo) Ok, e daí? Ana: Não acontece nada também. Avner: Exatamente. Ana: Entendi. Bem, sobre a improvisação... Eu acho que existem muitas maneiras de se entender a improvisação, muitas coisas diferentes que recebem esse nome. Justamente como o 137 palhaço, existem coisas muito diferentes que recebem esse nome. Então, eu gostaria de saber como você usa isso no seu show. Avner: Eu improviso em todos os minutos do meu dia. Exceto quando estou no palco. É como eu crio as rotinas... Quer dizer há muito pensamento, estruturação para fazer os acidentes. Porque o trabalho do palhaço é baseado nos acidentes, escaladas de frustração e uma série de táticas para resolver os problemas e é quase como uma prova de matemática, se você se lembra de geometria, você pode escrever uma prova de duas páginas, mas o professor diz: ―Sim, mas você não precisa de tudo isso. Volta e descobre como você pode fazer isso em cinco linhas‖. ―Ah!‖ Economia! Então, eu não sei muito sobre improvisação exceto que a uso o tempo todo, e a uso com os meus alunos. O que eu trabalho com os meus estudantes é a maneira de prepará-los para fazer o show todas as noites e duas vezes no sábado. E nunca mudar o nível do trabalho. Não é um jogo de apostas. É baseado em técnicas reais, performances fortes e verdadeiros valores bem estabelecidos e deve parecer que é improvisação. Mas não é. Ana: Sim, o público deve pensar que é a primeira vez que você está fazendo aquilo. Avner: É verdade. Mas o Impro, como aquelas mulheres que se apresentaram ontem, eu entendi que elas têm um show de impro na televisão,33 ou como o Jogando no Quintal34... Eles apenas vão, eles não podem ensaiar e dizem ―Ok, o que nós devemos fazer?‖, ―Um banco.‖ ―Um banco!‖.―Ao meio-dia.", "Ao meio-dia!‖. E ―Um hot-dog.‖, ―E um hot dog, ok, vamos lá!‖. ―Ah, em cinco minutos!‖. E eu fico ―Uau! Como eles fazem isso?‖ É incrível. Mas para mim isso não é tão importante para o palhaço. A questão do palhaço é que você vai voltar amanhã e no outro dia, e no outro dia... E precisa estar apto a criar aquela sensação de excitação sempre. Então... Nós improvisamos em sala de aula e depois praticamos. Ana: Entendo, porque há muitos palhaços, que, por exemplo, mudam a ordem dos números dependendo da plateia de cada noite. Avner: Claro. Mas eles o fazem dentro de uma organização estrita. Isso pode parecer com uma improvisação de palhaço. Eu, por exemplo. Existem tão poucas coisas que a audiência pode fazer... Como você disse antes, um adolescente pode gritar. Mas quantas coisas 33 Avner refere-se a ―As Olívias‖ grupo formado só por mulheres que trabalham entre outras técnicas com Impro. Elas se apresentaram na mesma noite que ele durante o Risadaria. 34 Grupo paulista que utiliza em seu trabalho a investigação sobre o palhaço e a técnica do Impro. Também se apresentaram durante o Risadaria e Avner já os tinha assistido anteriormente. 138 diferentes ele realmente pode gritar? Hoje? Está pronto. Você sabe. E então você pode reagir. Você pode ter cinco tipos diferentes de reação prontas, não importa o que aconteça você (faz um gesto de quem resolveu imediatamente o problema). ―Uau! Eu já pensei nisso!‖ Ana: Existe um palhaço, eu não sei se você o conhece, Nani Colombaioni... Avner: Sim! Ana: Ele é incrível... Muitos palhaços brasileiros estudaram com ele. Enfim, ele dizia que o único espaço que existe para a improvisação é no alargamento dos tempos, que depende do tamanho do espaço e do tipo de plateia de cada noite. Você não pode mudar nada, mas o tempo com que você faz as coisas é sempre diferente, porque você nunca sabe como a plateia irá receber. Avner: Para mim é como um programa de computador. Existe uma rede com uma série de decisões que podem ser tomadas. Você faz alguma coisa, eles riem, você faz isso. Você faz a mesma coisa, eles não riem, você não faz isso, você faz aquilo. Não importa. Então a coisa toda é uma série de decisões ramificadas. Quando alguém, por exemplo, tira uma foto de você durante o show. Ele fica em pé e ―click!‖ Com um flash bem forte. O que você faz? Bem, você pode não fazer nada; você pode parar, se arrumar e posar para a foto; você pode ir lá e tirar a câmera da pessoa; levar a câmera para o palco e tirar uma foto de todo o público; você pode entregar a câmera a outra pessoa e pedir para que tire uma foto de vocês dois. Enfim, eu posso ficar nisso por um longo tempo. Mas cada uma dessas opções indica uma decisão e conduz a um caminho na rede de decisões. Mas quando você termina, precisa estar exatamente onde começou. Ana: Você pode fazer caminhos diferentes, mas no final... Avner: Você tem todo o tipo de caminho, as opções são infinitas e a gente tem muita experiência e isso acontece tão frequentemente... Então, você começa a brincar com eles. Por exemplo, você tira a câmera e a lambe, como você sugeriu e a plateia faz ―Argh!‖. Eu não vou fazer aquilo novamente, porque eles se sentiram mal. Então depois você pensa: ―Droga, eu achei que era engraçado... Mas talvez não seja.‖ E você ainda tenta mais uma vez, lambe a câmera e eles novamente ―Argh!‖ e você ―Puxa...‖. Mas então da outra vez você (faz a demonstração. Lambe o dedo com a língua e passa no visor da câmera para limpá-la) e aí todos gargalham. E é assim que você decide. A audiência sempre diz a você. 139 Ana: No seu show você consegue realmente passar a sensação de que está improvisando e fazendo tudo pela primeira vez. Uma vez eu estava num evento na universidade falando sobre a minha pesquisa e, naturalmente, sobre você. Estavam todos lá, sérios, assistindo... Era um colóquio, um evento acadêmico, e não há muitas pesquisas sobre palhaço, Mas além de mim havia outra palhaça também. Eu estava falando sobre a comunicação com a plateia, como você trabalha... Enfim, eu comecei a contar aquela parte do espetáculo em que você vai até a plateia e pega a bolsa de alguém. Então eu disse: ―No dia que eu assisti foi muito bom, porque a pessoa tinha dentro da bolsa um rolo de papel higiênico, muita sorte!‖ e essa outra colega, que também é palhaça e conhece seu trabalho, disse: ―Não, ele sempre faz isso, o papel higiênico é combinado.‖ E eu fiquei realmente muito surpresa: ―Sério?‖ e todos começaram a rir porque estava lá falando, tentando ser muito séria e fiquei realmente desconcertada: ―Você tem certeza?‖ Eu não tinha nem imaginado que aquele momento pudesse ser combinado. Avner: Que bom! Então, esse é um bom exemplo: eu tenho uma rotina em que determinando momento pego a bolsa de alguém da plateia. E tenho dez coisas que podem sair dessa bolsa e dez shows. E a cada show eu tiro uma dessas coisas lá de dentro. E depois decido qual é a melhor. Eu costumava tirar um martelo. Era incrível. Uau! (Reproduz a reação que tinha quando achava um martelo dentro da bolsa). Ana: Algo como ―Que diabos isso está fazendo aqui?‖ Avner: Exatamente. Ana: Você observava através da prática o que não funcionava, abria mão e permanecia com as coisas boas. Avner: Sim. Ana: E agora, você continua criando coisas novas em seu show? Avner: Não muitas... O ensino tem se tornado muito mais importante. O show é como uma pequena escultura que eu fiz. Eu fico polindo ela. E ela já está bastante polida. Não há muito mais arestas... Uma ou outra coisa continua e de vez em quando eu descubro como resolver. Eu achei uma no outro dia. Ana: Qual? 140 Avner: É um momento bem bobo e pequeno. Vou ter que explicá-lo. Bem no começo do show. Eu faço alguns malabarismos com claves e no final eu firo o meu dedo. E vou para alguém da plateia com o meu dedo dolorido. E o que vocês fazem aqui no Brasil quando alguém se fere, para passar a dor? (Avner estende seu dedo na minha direção, como se o tivesse ferido. Eu o sopro) Isso. Depois disso, eu volto para o palco e caio no chão com um tombo realmente dolorido (reproduz o tombo e a solicitação do novo beijo) e a pessoa dá o beijo. Então continuo o show e ela é a minha... O meu amor. Mais tarde no show alguém ri. E faço como nos jogos de futebol onde o juiz tira o cartão amarelo e depois tira o bloco de notas onde anota o nome do jogador. Eu tirava o cartão amarelo, anotava aquela pessoa. Nova risada. ―Alguém mais riu de mim!‖ Anoto também. Alguém tossia. Anoto também. Outro riso, em outro lugar da plateia. Anotava também. E as pessoas começavam a fazer barulhos... Era tão engraçado. E elas não podiam parar... E eu ficava anotando todos eles. Então, eu fiz essa rotina por um longo tempo e não havia fim para ela. E eu ficava sempre ―E agora o que eu faço, como finalizo?‖ Até que em um show eu a vi. E a anotei (anota com uma expressão de paixão) todo feliz e fechei a caderneta. Foi um momento adorável. E eu achei um fim, pude fechar a seqüência. Essa é a coisa mais nova, aconteceu há poucas semanas. Mais tarde no show há o momento com o pequeno animal, vermelho, feito de pano. 35 Eu o manipulo e em determinando momento o jogo na plateia e peço para que alguém o lance para mim, só que o boneco cai no chão do palco e morre. Eu mudei isso realmente muito recentemente, tem poucos dias. Agora eu jogo para ela, o meu amor, e ela o joga de volta. E mata. Então, ainda chocado eu pego o meu caderninho e a risco fora dele. Pronto. Ana: Você encontrou uma maneira de realmente finalizar tudo. Avner: Sim, esse é um pequeno polimento que eu fiz recentemente. Era uma aresta que ainda havia, sutil, fui lá e a reparei. Depois o animal ressuscita e eu coloco o nome dela novamente. Coisas pequenas como essa continuam vindo. Eu tenho trabalhado principalmente com outras pessoas, dirigido, ajudado. Eu trabalhei há pouco com duas maravilhosas concertistas de piano. Trabalhando para que elas achassem... Não piadas, mas humor na relação entre elas. Ana: Elas não são palhaças, são realmente musicistas? 35 Avner refere-se ao número de seu show em que trabalha com um pedaço de pano vermelho enrolado, que manipula como se fosse um pequeno bicho de estimação, dando vida ao objeto e desenvolvendo uma série de situações com ele. 141 Avner: Elas são duas das concertistas mais premiadas, são russas. Realmente incríveis. Elas me mandaram a pouco uma gravação do concerto agora. Que diferença! Desde que nós começamos a trabalhar... No começo parecia que elas não gostavam uma da outra, eram muito sarcásticas, porque alguém disse a elas que isso era engraçado. E agora elas estão... (Faz um gesto que sinaliza a conexão entre as duas musicistas) Oh, é tão bom... Então, isso é realmente interessante. Pegar esses princípios do palhaço e aplicá-los para concertistas de piano. Ana: Sim, eles podem ser aplicados para tudo. Avner: Tudo. Ana: Na entrevista com o Christopher Lueck você falou sobre as diferenças no check in com a platéia. Nós aqui chamamos de triangulação (Avner faz uma expressão que demonstra que ele não entendeu) Triangulação, porque a relação se desenvolve como num triângulo. Avner: Por que um triângulo? Ana: Porque se estamos em cena, sou eu, você e o público. Formamos um triângulo. Avner: Quem sou eu? Ana: Bom, se você trabalha sozinho pode ser qualquer coisa com que esteja se relacionando, a sua vassoura, os cigarros... Avner: Entendi, entendi. Ana: Mas o que eu queria perguntar realmente é sobre isso, check in, triangulação, enfim, o nome não importa. É sobre a maneira com que você olha para a plateia. Eu penso que realmente é diferente da maneira como a maioria dos palhaços faz. Você olha apenas em alguns momentos muito precisos. Eu li o que falou lá a respeito da relação disso com a respiração, mas se você pudesse falar um pouco mais sobre... Avner: Eu sei que muitos professores ensinam isso. Sempre check in, check in, check in. Eu odeio quando estou na plateia e o palhaço fica olhando para mim. Para mim isso demonstra uma insegurança. ―Desculpa, está tudo certo? Você está gostando? Está engraçado?‖ Eu não gosto de ser perguntado sobre estas questões de aprovação durante todo o tempo. 142 Ana: Eu acho que a ideia é de que sempre que algo muda você olha para a audiência, mas não exatamente para checá-la e sim para dividir com ela o novo acontecimento, para compartilhar com ela. Avner: Compartilhar o que? Você não precisa compartilhar tudo. A questão é o que você escolhe compartilhar. Ana: Sim, você acha que não precisa compartilhar o tempo todo. Avner: Eu acho deprimente. E é muito interessante, como diretor, pegar uma rotina que tem muito disso e apenas pedir para que elimine tudo. Para mim isso vem de uma questão maior, mais filosófica mesmo. O palhaço não está lá para entreter a audiência. Ele está lá para resolver problemas. E então acidentes acontecem, as coisas não ocorrem da maneira que todos esperavam e você diz ―Isso é ainda mais interessante! Como posso lidar com isso?‖ E depois há caminhos variados para resolver o problema. Nós sabemos que o palhaço tem que conseguir as risadas, ele é palhaço. Mas se você tentar conseguir risadas... Você não vai tê-las, garanto. Ana: Essa é uma questão importante... Avner: Esse é o grande paradoxo do trabalho do palhaço. Então para mim você tem um trabalho a fazer e você faz o trabalho e se a plateia ri é apenas uma interrupção do seu trabalho. Para mim existem três situações. Uma é: a plateia ri de você e você (faz uma expressão de espanto) “Por quê? Porque eles estão rindo?‖ Entre embaraçado e feliz. ―Eu estava apenas tentando resolver este problema aqui.‖ É uma forma maravilhosa. E a outra coisa é: a plateia aplaude você e você fica orgulhoso. ―Sim, eu sei, eu sei. Eu realmente fiz isso...‖. As duas ratificam o que a audiência já está fazendo. Você não está perguntando a eles, não está checando, você não está fazendo nada... Mas se você fica olhando para eles soa como ―Eu estou fazendo bem?‖ e eles vão ter que ficar o tempo inteiro afirmando: ―Sim, está ótimo, está ótimo...‖. Ana: ―Anda logo, vá em frente‖. Avner: Isso, ―Anda logo. Se eu quisesse fazer isso eu colocaria o nariz vermelho, eu só quero assistir, vá em frente‖. Bom, voltando, as três opções. Eles te aplaudem e se você sabe que foi bom pode dizer: ―Sim, eu sei, eu sei.‖ Mas digamos que você seja realmente muito bom em alguma coisa e saiba disso. Você faz e eles aplaudem. E você (faz gestos como se tivesse sido 143 algo muito fácil, sem importância) e eles riem novamente. É a rede de decisões que faz o paradoxo funcionar. E não importa. Passos grandes ou pequenos... Existe mais uma opção, você faz algo, fica tão excitado que compartilha com eles, orgulhoso. Você diz: ―Eu fiz isso!‖. Ou então você diz: ―Eu não posso fazer isso‖. Mas nunca: ―Eu posso continuar fazendo?‖. Nunca peça aprovação. Apresente-se com uma colocação fechada, clara: ―Eu não posso fazer isso!‖ Ou então ―Eu fiz. Vocês viram? Eu fiz. Fiz mesmo... Vou fazer de novo...‖ É a rede de decisões. Então, esses são os meus pensamentos básicos sobre o check in. Eu acho que os jovens palhaços, jovens na sua carreira, que ainda não tem muita segurança, fazem isso o tempo todo. Eles não sabem ainda avaliar muito bem o que está acontecendo... Olham, olham, olham. E as pessoas riem. Há riso. Mas eu acho que é um riso menos profundo do que o que pode ser alcançado. Você pode trabalhar assim e conseguir risadas, mas... Só no começo, você pode conseguir as risadas com o check in. Ana: Você acha há outro trabalho que pode investir numa relação mais profunda do que essa, não é? Avner: Você sabe quem faz isso muito? As crianças pequenas. Elas fazem qualquer coisinha e olham ―Vê só mamãe, gostou do que eu fiz, mamãe?‖ Mas essa é uma relação de crianças de dois anos e assim a plateia se torna os seus pais. É realmente essa a relação que você gostaria de desenvolver com eles? Ana: É a mesma coisa do que pedir para a audiência bater palmas para você. Avner: Eu acho que é um caminho muito perigoso. De novo volta para o grande princípio, básico. Nunca diga a audiência o que fazer. Nós controlamos o que eles fazem, provocamos o que eles fazem... Ana: Mas nunca devemos explicitamente dizer o que eles devem fazer. Avner: Eu nunca peço ao publico que me aplauda. Ana: Sim, porque tudo aquilo que você estava falando antes sobre a conexão, é uma tática para provocar uma reação determinada. Mas nunca é explícito, você nunca diz ―Agora é a hora de rir, ou de aplaudir.‖ Avner: Sim, exatamente. 144 Ana: Ainda naquela mesma entrevista você falou que está descobrindo novos princípios sobre como trabalhar tendo toda a audiência como voluntária, de uma vez só. Você poderia falar um pouco mais sobre essas suas recentes descobertas? Avner: Isso é uma coisa realmente muito nova. Eu trabalhei por um longo tempo com a ideia de como levar uma pessoa para o palco. É isso que você quer saber? Não é isso? Ana: Não, na verdade era sobre como trabalhar com todos ao mesmo tempo... Avner: Existem muitas teorias a respeito do trato com voluntários. Realmente novas ideias. Elas são maravilhosas. Mas a minha pesquisa mais recente, que no meu próximo workshop mais longo eu pretendo realmente desenvolver mais, até para poder falar de forma mais clara a respeito... Enfim, num dos últimos workshops, em Barcelona, num festival de palhaços, eu estava dirigindo um estudante e ele estava fazendo um numero que usava aquela melodia ―pamparam pam pampampam‖... E por causa da estrutura da rotina, ele tinha que atirar numa maça usando um arco e flecha... Enfim... Ele tinha que repetir aquilo milhares de vezes. Ele cantava mais de dez vezes. E quando que chegava na sexta vez, você já estava: ―Oh, não aguento mais...‖. E eu disse: ―Você esta trabalhando tão duro! Porque não divide o seu trabalho com a plateia?‖. Você conhece o livro ―As Aventuras de Tom Sawyer‖? Ana: Sim. Avner: Você conhece a história da pintura da cerca? Ana: Não, eu o conheço o livro de nome, mas nunca o li... Avner: Ele tem que pintar um muro. E ele não quer, mas a sua tia diz ―Vá e pinte o muro!‖ e ele: ―Ok!‖. Então daqui a pouco tem um amigo dele observando e ele se vira e diz: ―Me desculpe, eu não posso deixar você ajudar.‖ E o amigo: ―Por que não?‖. Ele acaba cedendo um pincel para o amigo pintar. E começam várias amigos a ajudar a pintar e no final ele está apenas deitado a grama, olhado os outros pintarem. A ideia era essa ―Porque você está trabalhando tão duro? Deixe que eles cantem!‖ Mas ele realmente não conseguia fazê-lo. Porque ele estava com muito medo de que ninguém quisesse segui-lo. Então eu comecei a improvisar. E eu me diverti tanto... Isso me fez começar a pensar em como é que eu faço para conseguir que eles façam coisas todos juntos. Este é o novo exercício: você tem que fazer toda 145 a audiência cantar uma canção, em partes, com harmonias, e no final fazê-los parar juntos... Foi tão divertido. Você se lembra da coisa da orquestra no espetáculo?36 Ana: Sim, claro. Avner: Aquela é a base. Eu nunca peço para que eles aplaudam. Eu simplesmente boto os braços para cima e eles aplaudem (reproduz a expressão de surpresa diante das palmas que faz no show). Eu levo os braços para baixo rapidamente e eles param. ―Hei, existe alguma coisa aqui...‖ Eu faço de novo. ―Ah, funciona!‖. ―Vamos ver então agora o que acontece se eu subir meus braços bem devagar... Uau... E se eu fizer isso?‖ (Faz o mesmo movimento que realiza no espetáculo nesse momento: alternando a movimentação dos dois braços, para provocar sons diferenciados em cada um dos lados do público) ‖Nossa! E agora isso?‖ (Sobe e desce os braços com muita rapidez) ―Uau!‖ E por aí vai... Eu nunca digo a eles o que fazer. Ana: E eles fazem. Avner: Mas eu nunca, nunca digo o que fazer. Eu costumava chamar isso de... É quando você começa uma frase e a deixa... Você não termina a sentença e vai... Mas mesmo assim a outra pessoa a completa na sua mente. É a mesma coisa no espetáculo. Eu vou ―Uuoooooo!‖ (levanta os braços) e fico muito feliz de ver que eles estão fazendo. Houve um festival em que todo um lado da audiência, eu não sei como eles conseguiram aquilo, porque eram realmente todos, ficou em absoluto silêncio. Eles decidiram não fazer o som. Eu acho que muitos palhaços iriam (faz um gesto apontando o dedo, como se estivesse repreendendo o público) obrigá-los a fazer aquilo. Mas eu... ―Uau! Incrível! Muito bonito‖ e ia para o outro lado da plateia, que fazia o som e voltava para eles: silêncio. E os elogiava. ―Muito bem!‖. É muito mais interessante. Esse é o grande princípio, você sabe, o princípio de todos os princípios é: ―Seja interessado. Não interessante.‖ Ana: É, eu acho que a maioria dos palhaços realmente iria querer obrigá-los a fazer do outro jeito. Avner: Você sabe, a coisa é, eles não conhecem o que você vai fazer. Eles realmente não sabem. Então como você pode lhes dizer que estão errados? Michael trabalha... Desculpa, eu estou falando sobre voluntários e você quer falar sobre grandes audiências. Ana: Não, você pode falar sobre isso também, não há problemas. 36 Avner refere-se ao momento do espetáculo em que cria uma orquestra com toda a plateia, dividindo-a em três grupos, onde cada um passa a seguir um comando diferenciado de acordo com as suas instruções. 146 Avner: Você sabe, no outro ano eu vou poder falar melhor sobre isso que você quer saber. Vou ter elaborado com mais clareza. Ana: Ainda está no começo... Avner: Sim, eu quero começar os experimentos. Ana: Então, no workshop em Julho eu aprendo mais a respeito. Avner: Você vai mesmo? Ana: Sim! Avner: Maravilha! Você vai me ouvir dizer tudo isso de novo. Mas eu vou agir como se estivesse dizendo pela primeira vez, juro. Ana: E eu vou agir como se estivesse ouvindo pela primeira vez, juro. Avner: Ok! Temos um acordo! Ana: Eu assisti alguns vídeos com demonstrações de aikido, para tentar entender com mais clareza do que se tratava. Mas eu ainda gostaria de saber melhor qual é a relação que ele tem com o seu trabalho. Avner: Aikido é uma fantástica e paradoxal arte marcial. Há um lado da arte marcial naquilo, realmente. Mas é muito mais interessante do que isso. Ainda que seja uma arte marcial. A primeira questão é: alguém te ataca. O instinto diz para você atacar de volta. Ok. No aikido é diferente. Levante por um segundo. Ponha a mão no meu ombro. (Avner iniciou a demonstração solicitando que eu empurrasse seu ombro. Ao invés de se opor ao meu movimento ele cedia a ele, indo para a mesma direção para a qual eu o empurrava. O que fazia com que eu perdesse o equilíbrio) Empurre, empurre. (Continuamos por mais um tempo até que eu quase caí no chão, o que não aconteceu apenas porque ele me segurou antes disso) Eu posso lutar com você. Mas eu faço muito melhor sendo receptivo e amável (Seguindo sua instrução, avanço novamente em sua direção e ele apenas desvia. Mais uma vez eu perco o equilíbrio) Você quer ir lá? Vá lá... Agora, outra coisa. Puxe aqui. (Pediu para que eu puxasse com força a sua mão para baixo. Novamente ao invés de se opor ao movimento ele cedeu a ele, indo na mesma direção). Eu sinto que você quer ir nesta direção. Então eu te ajudo. Agora eu sinto que você quer ir para lá, te ajudo também. A minha questão é perceber o direcionamento do seu movimento e aproveitá-lo. Essa é a base do Aikido. Não é sobre força. 147 Você só precisa de um dedo (ele coloca um dedo no meu cotovelo e apenas com ele comanda a direção que o meu corpo deve seguir, fazemos isso durante algum tempo) Ana: (enquanto continuamos experimentando) Entendo... É contato e improvisação. Avner: (Ainda seguindo na demonstração) Contato e improvisação, exatamente! (Paramos) Por um olhar filosófico, esta é a relação que deve ser estabelecida com a platéia. Eu empurro você e você vai: ―Ok, o que tem de interessante aqui, deixe-me ver...‖ Existem muitas aplicações interessantes no Aikido para o trabalho com voluntários. Ana: Você poderia me dar algum exemplo? Avner: Por exemplo, no Aikido nós aprendemos a comandar o movimento sem força. (levantamos de novo e ele demonstra como faz para conduzir o movimento do voluntário sem que ele se dê conta. O contato da sua mão com meu corpo é muito suave, mas ainda assim direciona o meu movimento). Você está vendo? Eu quase não te toco... É muito suave e a pessoa nem sabe que você está encostando-se a ela. Ela realmente não se dá conta. Ana: Você apenas vai... Avner: Sim, você se move. Você conduz a pessoa realmente, é mágico. Sem que precise ficar (faz vários gestos como um palhaço confuso que fica tentando direcionar para onde a pessoa deve ir o tempo todo, sem conseguir dar uma ordem corporal precisa e nem conduzi-la realmente) Ana: Você não controla tudo. Avner: É um caminho aberto, que você apenas tem que aceitar. Isso vale para qualquer situação na vida. Porque você pode se defender melhor estando completamente aberto do que estando encolhido, tenso. Ana: Uma amiga minha estava andando à noite numa rua muito perigosa no Rio com o namorado. De repente ela viu um homem se aproximando e percebeu que ia assaltá-los. Ela viu que ele estava armado, mas não conseguiu fazer nada, ficou paralisada, com medo. Mas o namorado dela, que é muito distraído, não se deu conta de nada e quando o assaltante se aproximou disse algo como ―Qual é, cara?‖ e ele imediatamente respondeu: ―Qual é!‖ enquanto o abraçava, todo simpático, ele é muito simpático, acolhedor, e o bandido, desconcertado, lhe disse: ―Puxa, eu ia te assaltar, mas tu é muito gente boa, nem tem como.‖ 148 Avner: (risos) Uma história maravilhosa... Ana: Acho que é um pouco como isso. Avner: Sim, é como isso. Ana: Porque você se coloca realmente num outro nível de relação pode atingir outro tipo de contato. Avner: Sim, é isso que o aikido faz. Ana: Bom, acho que é isso. Muito obrigada! Você gostaria de dizer alguma coisa, no final? Avner: Duas coisas: seja interessado, não interessante e se você não pode ter sucesso todas as vezes, prepara-se para falhar magnificamente. 149 Anexo 2- Princípios do palhaço, por Avner Eisenberg 1. O trabalho do palhaço é fazer a audiência sentir coisas e deixá-la respirar. 2. Todos inalamos, mas muitos de nós precisam ser lembrados de exalar. 3. A imaginação e o cérebro estão conectados a e afetam o corpo. Qualquer mudança na mente corresponde a uma mudança no corpo. Qualquer mudança no corpo (na respiração primeiro) tem uma correspondente mudança na mente. 4. Não diga ou mostre à platéia o que pensar, fazer ou sentir. 5. Não diga ou mostre aos seus parceiros o que pensar, fazer ou sentir. Não aponte. 6. O peso pertence à parte inferior. Mantenha um simples ponto no seu baixo abdomen. Mantenha a sua energia fluindo. 7. A tensão é sua inimiga. Ela produz paralisamento emocional, mental e físico. 8. Como você se sente em relação à sua performance é o que realmente conta, não se ela é realmente boa ou má. 9. O palhaço descobre uma platéia que está sentada em filas e olhando por um espaço vazio enquanto espera pelo show. Isto deve ser tratado em primeiro lugar, através do estabelecimento de cumplicidade com a platéia. 10. O palhaço cria um mundo no espaço vazio, ao invés de entrar num mundo que já existe (esquete) 11. Use a mímica para criar fantasia, não para recriar a realidade. 12. O palhaço busca criar um jogo e definir as regras, que a partir de então tem que ser obedecidas. 13. Não pergunte ou diga a platéia como eles devem se sentir ou pensar. Tenha uma experiência emocional e convide a platéia a se juntar à sua reação 14. Seja interessado, não interessante. 15. Todo mundo deve respirar o tempo todo na vida, até mesmo no palco. 16. O palhaço entra no palco para fazer um trabalho, não para conseguir risadas. Se há risadas, elas são uma interrupção com a qual se deve lidar. (Eisenberg, http://www.avnerthee ccentric.com/eccentric_principles_portuguese.php, acesso em 5 de Julho de 2010) 150 Anexo 3 – Gravação de Exceptions to gravity