Um certo olhar para o céu
Professor parte da sabedoria popular da turma de EJA sobre a Lua e ensina astronomia
Divulgação/Fundação Victor Civita
Mariana
Mandelli
O céu poluído de São Paulo esconde mais que estrelas, planetas e satélites. Em meio a
tais elementos astronômicos, é possível enxergar, mesmo sem ver, fotografias e memórias
de infância. Quem olha bem garante: São Jorge está lá, você não vê? Se não nasceu no
interior, não teve uma infância no campo ou parentes que contavam “causos” relacionando
natureza e fantasia, talvez você não entenda mesmo... O fato é que, para muitos
habitantes da metrópole paulistana, o firmamento – em especial, a Lua – abriga lendas,
recordações familiares e traços da cultura popular. Mesmo que raramente desviemos
nosso olhar do chão de cimento para o céu escondido. Partindo dessa inestimável
sabedoria popular, o professor Felipe Bandoni, de 33 anos, mestre e doutor pela
Universidade de São Paulo (USP) na área de biologia, montou um projeto de ensino de
astronomia para sua turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio Santa
Cruz, um dos mais respeitados da rede particular de São Paulo. A escola oferece o curso
há quatro décadas, gratuitamente. O grupo de Felipe estuda os conteúdos referentes ao 7º
e 8º anos do Ensino Fundamental e é formado por estudantes de 17 a 62 anos de idade,
que não frequentaram a escola ou não completaram os estudos na idade correta. O
projeto garantiu a Felipe o prêmio Professor Nota 10, concedido anualmente
pela Fundação Victor Civitaa dez educadores que se destacam por seu trabalho em sala
de aula. Entre os vencedores deste ano, Felipe ainda foi escolhido Educador do Ano, em
cerimônia realizada no último dia 15 de outubro, na Sala São Paulo (leia mais aqui).
Na turma de Felipe, encontram-se pedreiros, faxineiras, porteiros, entre outros. Alguns
foram alfabetizados há dois anos. A maior parte nasceu fora da capital e traz consigo
lembranças das cidades interioranas de origem. “Por isso, eu quis resgatar a experiência
inicial dos alunos com a natureza e explorar essa conexão”, descreve Felipe.
O projeto existe desde 2009, Ano Internacional da Astronomia, data em que se comemorou
os 400 anos das observações de Galileu Galilei. A ocasião motivou o professor a inserir o
tema no currículo e a usar a diversidade de saberes dos alunos a favor do ensino de
ciências. Felipe partiu dos valores afetivos da turma para tratar de conceitos como
satélites, planetas, estrelas, corpos luminosos, corpos iluminados, movimentos de rotação
e translação, sistemas geocêntrico e heliocêntrico e noções de observador e de
referencial. Em oito aulas, o professor desenvolveu uma sequência didática que teve seu
momento mais empolgante no dia em que os alunos puderam observar a Lua através de
um telescópio. Antes, porém, Felipe envolveu a turma numa intensa missão que casou
ciência
e
memória,
racional
e
emocional. Questão
de
respeito
Para sensibilizar e diagnosticar os saberes prévios dos estudantes, Felipe promoveu uma
contação de histórias. Em primeiro lugar, mostrou um vídeo em que um homem narrava
um conto de lobisomem. A prosa suscitou nos alunos o interesse pelo tema e a vontade de
se manifestar. Muitos afirmaram que também já tinham ouvido “causos” parecidos em suas
cidades de origem. Ainda explorando a linguagem dos vídeos, Felipe exibiu a cantora
Maria Bethânia interpretando “Lua Branca”, de Chiquinha Gonzaga, canção na qual são
retratadas de maneira poética as fases da Lua. Empolgados e então cheios de histórias
pessoais para contar, os alunos narraram lembranças em depoimentos que misturavam
noções diferentes dos efeitos da Lua na vida social, como a influencia em relacionamentos
amorosos, colheitas e plantações, pesca e marés, corte de cabelo e nascimento de bebês,
entre outros exemplos. “Pedi para eles contarem o que sabiam e ouvimos de tudo, de
lobisomem a São Jorge”, recorda-se. “Alguns não quiseram participar no início, mas aos
poucos foram se soltando.” A segunda aula foi dedicada à escrita dos relatos orais dos
alunos. Antes da atividade, Felipe pediu que a turma pensasse no ambiente, no tempo e
nos personagens das histórias que iriam passar para o papel. Os estudantes também
tiveram de ressaltar se acreditavam no “causo” que estavam redigindo. “A escrita e a
reescrita são fundamentais na EJA”, destaca o professor. “O curioso foi que eu percebi que
eles estavam se abrindo nesses relatos. Alguns que não quiseram falar em público diziam
para mim: ‘Professor, estou escrevendo algo aqui, mas não mostra para ninguém, ok?’
Eram histórias que vinham do íntimo deles”, lembra-se. Felipe tinha planejado, nessa
etapa, começar a ensinar os conteúdos científicos. Mas as histórias e, principalmente, as
dúvidas dos alunos em relação à Lua e à existência de São Jorge pediram um ajuste de
rumo. Na terceira aula, Felipe deu ênfase no trabalho de reescrita dos textos, de modo a
pontuar questões de coerência, ortografia, concordância e coesão. “Eles adoram as aulas
de escrita e, principalmente, de reescrita. Não da correção, exatamente, mas dos
caminhos que aponto para a melhora”, afirma o docente, que também incentivou que os
alunos trocassem os textos entre si. “A gente percebe pessoas que têm muita dificuldade
de
escrever
com
muita
vontade
de
tentar
e
fazer.”
Lua,
a
protagonista
O debate em torno das lendas sobre a Lua foi tão rico a ponto de Felipe optar por seguir no
tema. Para explorar dados e fenômenos científicos relacionados ao nosso satélite natural,
ele valeu-se de aulas expositivas, nas quais explicou sobre as fases, o relevo e a influência
da Lua em fenômenos sociais. Felipe usou imagens para mostrar a relação entre Terra,
Sol e Lua, e pediu a leitura de artigos científicos. Aos poucos, a turma acrescentou novos
saberes ao próprio repertório. Dessa vez, saberes científicos. Ficaram sabendo, por
exemplo, que as estrelas não são estáticas no céu, que se movem tanto quanto Sol e Lua.
E que todos esses movimentos são aparentes, pois resultam da rotação da Terra. Ou seja,
tudo uma questão de referência. Alguns mitos, de fato, foram quebrados. A quantidade de
nascimentos, por exemplo, não guarda relação alguma com as fases da Lua. E as
manchas
não
são
mensagens,
mas
formas
do
relevo
do
satélite.
Observação
A quinta aula foi, para grande parte dos alunos, a mais especial. Quase apoteótica. Felipe
pediu um telescópio emprestado a um colega e levou os alunos para observar a Lua
através do instrumento. A experiência de duas horas não trouxe somente o conhecimento
dos conteúdos científicos previstos. A tradição popular, as experiências de vida, as
histórias de infância e as memórias afetivas voltaram à tona, emocionando a turma e
também o professor. “Olhar para o céu é uma coisa que eles não faziam há tempo. Na
cidade grande, a vida deles é outra. Foi um momento de muita nostalgia, de saudade de
lugares em que viveram, da família e da época de criança”, relata Felipe.
O professor ressalta que a organização da atividade é um tanto quanto complicada:
depende do clima e da logística para trazer e montar o instrumento. Para enriquecer ainda
mais o processo de observação, na sexta aula Felipe “criou” um céu artificial: com a ajuda
de um software de projeção, fez do teatro da escola um verdadeiro planetário. Foi o
momento de abordar temas como os eclipses e o movimento retrógrado dos planetas e,
principalmente, de revelar aos estudantes como os cientistas enxergam o céu. Mais
textos. De volta à sala de aula, Felipe escolheu dois textos para submeter à turma: um
científico e outro de cultura popular. O objetivo era que os alunos apontassem neles
elementos próprios de cada gênero. Um trazia noções de cultura popular, narrando como
uma avó conta à neta a comunicação que a Lua estabelece com as pessoas por meio das
manchas. O outro relatava os processos de formação das crateras lunares – ou seja, uma
abordagem da ciência sobre o mesmo tema. Com a participação da turma, Felipe levantou
critérios de análise dos dois textos e pediu aos alunos que descrevessem aspectos
próprios de cada um. O exercício permitiu que a classe percebesse as diferenças entre a
transmissão oral da tradição popular e a criticidade de uma publicação científica, sem
desmerecer uma ou outra. Na última aula do projeto, chegou a hora da avaliação. O
professor solicitou que a turma comentasse diálogos que tratavam da Lua. A meta era
perceber se os alunos, individualmente, conseguiam passar para a linguagem escrita
ideias transmitidas oralmente. “Ao comparar o primeiro texto com o segundo, notei o
quanto melhoraram”, conta Felipe. Para o professor, a maior satisfação foi perceber que a
turma valorizou o conhecimento transmitido sem deixar de lado a importância de suas
crenças populares. “Alguns alunos, que falavam de São Jorge, vinham até mim após as
explicações cientificas e diziam: ‘Professor, sabe aquela história que você me contou? Eu
já espalhei para todo mundo’”, lembra-se. “É uma responsabilidade enorme, mas é muito
positivo saber que eles confiam no que eu falo. Eu me orgulho do fato de ter conseguido
estabelecer uma comunicação de igual para igual com eles. Uma aluna me contou que seu
primo era lobisomem. Ouvir esse tipo de coisa serviu para que eu fugisse dos meus
preconceitos e da concepção de que ela era inocente e acreditava em folclore.” Felipe
ressalta que a EJA é um eterno embate entre o conhecimento popular desses alunos mais
velhos e o conhecimento acadêmico, dualidade que ele soube aproveitar no projeto. “A
EJA é um choque cultural”, define. “É como se o aluno estivesse num labirinto e o
professor, observando de cima, dissesse: ‘vai por ali que é mais interessante’.”
Trajetória
Felipe nunca quis ser professor. Desde pequeno, sabia das dificuldades enfrentadas pelos
docentes – sua avó é da primeira turma de normalistas de Itararé (SP). Os pais também
são professores. Hoje, sua mãe trabalha na secretaria estadual de Educação de São
Paulo, enquanto o pai é diretor em uma unidade pública e leciona em outra particular.
“Quando você termina os estudos, a última coisa em que você vai pensar é em ser
professor. Eu não queria porque sabia das dificuldades”, conta. Mas acabou escolhendo
Ciências Biológicas na hora de prestar Fuvest e entrou na USP direto do Ensino Médio –
“na época, o vestibular ainda não era tão concorrido”, segundo ele. Os pais aceitaram,
apesar de não ficarem satisfeitos. Fora de casa, chegou a ouvir comentários como: “Mas
você é tão esperto... por que vai fazer Biologia?”. Logo após concluir a graduação, em
2002, seguiu para o mestrado na área de fisiologia e comportamento animal, ao mesmo
tempo em que cursava a licenciatura. Os seminários, apresentações e monitorias que a
pós-graduação exigia despertaram em Felipe o gosto por ensinar – ele diz que “contraiu o
vírus” da docência, vocabulário típico de biólogo. Os primeiros alunos de Felipe foram,
ironicamente, professores da universidade. “Nessa época se falava muito de genética, por
conta de procedimentos de clonagem. Os professores que estavam na ativa não
conheciam
nada
da
área
e
pediam
ajuda
para
nós,
jovens”,
lembra.
Os colegas da licenciatura, apaixonados por Educação, também colaboraram para que a
vontade de ensinar crescesse cada vez mais. Alguns trabalhavam com EJA. Uma frase da
professora de política educacional sobre o tema também nunca saiu de sua cabeça. “Ela
disse que a EJA era a Educação mais revolucionária que existe”, recorda-se.
Após a licenciatura e o mestrado, chegou a prestar concurso para lecionar na rede
estadual paulista, para desgosto dos pais. Mas um colega estava deixando uma escola
particular e indicou Felipe para ocupar sua vaga. Lá, durante três anos, deu aulas em
turmas dos ciclos I e II do Fundamental. Mas a vontade de estudar – ou de encerrar um
ciclo, como ele classifica – falou mais alto e Felipe resolveu fazer seu doutorado em
evolução na USP. Passou um ano na Europa estudando crânios de macacos. “Quando
terminei, em 2009, tive a certeza de que não queria ser cientista. É muito investimento para
pouco retorno, porque me incomodava bastante o fato de existirem umas dez pessoas no
mundo que leriam e que entenderiam a minha pesquisa”, reflete. Doutorado finalizado, a
EJA ressurgiu na vida de Felipe: um colega que dava aulas no Santa Cruz falou de uma
vaga. “Foi um timing perfeito”, lembra. Na primeira aula, foi bem acolhido e sentiu
generosidade dos alunos. “Eu me lembro de estar no carro, voltando para casa depois do
primeiro dia de trabalho, e pensar: ‘Como eu fiquei tanto tempo sem dar aula? Fiquei rindo
à toa”. Mas engana-se quem pensa que ser um educador na EJA é um mar de rosas.
“Não foi difícil. É difícil. É desafiador: cada turma que eu pego, eu começo do zero”, diz.
Atualmente, Felipe só leciona na EJA do Santa Cruz. Ele gosta de lembrar que, no
decorrer da vida acadêmica, foi premiado diversas vezes: sua iniciação cientifica recebeu
como
melhor
bolsista
e
o
doutorado
foi
reconhecido
pela
Coordenação
de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “Ser professor não foi minha
última opção de carreira. Não foi o que me restou. Eu escolhi isso para minha vida.”
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