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CANTANDO E ENCENANDO A ESCRAVIDÃO E A ABOLIÇÃO:
história, música e teatro no Império Brasileiro (segunda metade do
século XIX).
Silvia Cristina Martins de Souza 1
Resumo:
Nas últimas décadas do século XIX, a abolição e a escravidão foram dos temas mais
candentes para a sociedade brasileira. Debatidos em diferentes espaços de exercício da
política, fossem eles formais ou informais, não chega a surpreender que este debate
tenha transformado a música e o teatro em uns de seus palcos prediletos.
Nesta comunicação elaboro algumas considerações sobre as relações entre história,
música e teatro, tomando como ponto de partida os temas da escravidão e da abolição,
procurando mostrar como eles serviram de fonte de inspiração para a composição de
canções e peças teatrais encenadas no Rio de Janeiro e em algumas províncias do
império na segunda metade do século XIX, contribuindo para disseminar algumas das
visões e imagens sobre escravidão e abolição que estiveram em embate naquele
contexto.
Palavras chave: história, teatro, música, escravidão, abolição.
Espaço repleto de contradições, no qual as novidades européias e as propaladas
idéias de progresso e civilização se opunham à realidade escravista, o Rio de Janeiro
configurou-se como um local no qual a luta antiescravista, transbordou do parlamento
para as ruas passando pelo teatro, imprensa, igrejas e pelas próprias senzalas, na década
de 1880.
Como já foi devidamente sublinhado por vários historiadores, a ação
abolicionista em espaços informais da política teve um grande peso no processo de
mobilização de caráter popular que marcou a campanha abolicionista da cidade e, neste
processo, os artistas de teatro desempenharam um papel estratégico.2 Mas, se neste
contexto, o teatro e a música travaram intenso diálogo com as culturas das ruas e se
1
Professora de História do Brasil da Universidade Estadual de Londrina com doutorado pela
Universidade Estadual de Campinas e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense. Agradeço
ao CNPq a bolsa PDJ que permitiu o desenvolvimento desta pesquisa.
2
BERGSTREZZER, Rebecca B., The Movement for yhe Abolition of Slavery in Rio de Janeiro,
1880-1889, Tese de Doutorado, Stanford University, 1973; MACHADO, Umberto Fernandes, Palavras e
Brados. A imprensa abolicionista no Rio de Janeiro (1880-1888), Tese de Doutorado, Usp, 1991.
Eduardo Silva observou que o movimento abolicionista contou com o apoio decisivo de profissionais do
teatro e que esta aproximação entre tablado e campanha abolicionista contribuiu de maneira efetiva para
que esta última saísse da esfera política parlamentar e se firmasse como um movimento verdadeiramente
popular e transformador da sociedade. Ver http://sbph.org/reuniao/26/mesas/Eduardo_Silvva.pdf. (texto
publicado em 2005 e acessado em 19/11/2008)
2
transformaram em espaços nos quais a escravidão e a abolição foram debatidos
intensamente, antes deste período tal presença já poderia ser notada não só no Rio de
Janeiro, como também em algumas províncias do império.
Na segunda metade do século XIX, o teatro já se transformara no frisson das
platéias fluminenses e nos seus palcos foram representadas peças que, devido ao
sucesso que alcançaram, incentivaram vários empresários a também encená-las nas
temporadas que protagonizaram com suas companhias teatrais por São Paulo,
Pernambuco, Minas Gerais e Paraná. Foram também as representações bem sucedidas
de tais peças que animaram vários editores a publicar seus textos, que foram vendidos a
preços módicos nas livrarias da cidade ou de algumas capitais das províncias do
império, nas bilheterias dos teatros, por vendedores ambulantes ou nas próprias casas
dos seus autores.
O mercado editorial de letras de músicas também foi alavancado neste período e
se transformou em um dos nichos mais explorados por diferentes editores brasileiros ou
estrangeiros, que atuavam na capital do Império. Várias tipografias especializaram-se
em publicar letras de lundus, modinhas, jongos, cateretês, cançonetas e outros gêneros
musicais nos vários cancioneiros que circularam pelo Rio de Janeiro e pelas províncias
desde os anos 1860, sendo que alguns deles tiveram várias edições, o que denota a
popularidade que alcançaram. 3
As editoras especializadas em partituras musicais, por sua vez, passaram a
oferecer longas listagens de títulos que podiam ser adquiridos também a preços
acessíveis e que eram direcionados aos saraus, reuniões nos salões, seresteiros e aos
amantes da música, que se apresentavam nas esquinas das ruas da cidade, também
conhecidos como “trovadores de esquina”. Muitas destas canções, vale sublinhar,
começaram suas trajetórias de sucesso nos palcos. 4
3
Este fenômeno não foi específico do Brasil, mas comum também a Portugal, França e Itália, e revela o
interesse romântico pelos cantares populares e uma tendência à internacionalização da música popular
através do teatro musicado. O que mais chama atenção nestas publicações, todavia, é o número dos
exemplares em circulação, a grande variedade de títulos disponíveis e o número de edições, uma vez que
alguns cancioneiros tiveram dezenas delas.
4
Dos palcos às ruas (e vice versa), as canções difundiam-se a ponto de ganhar a consagração do assobio e
da cantarola cotidiana, apontando para o potencial de comunicação das mesmas, o que nos leva a sugerir
que o palco paulatinamente passou a funcionar como um importante veículo de divulgação de produção
musical, contribuindo para a promoção de outros campos de expressão e dando visibilidade a indivíduos
que não usufruíam de projeção naquela sociedade. O decreto n. 6980, de 20 de julho de 1878, que definia
os impostos para indústrias e profissões no Império, é exemplar da prosperidade do negócio que envolvia
a venda de partituras, ao qual vimos nos referindo, pois colocava ao lado dos empresários ou diretores de
3
Desde os anos 1850, a escravidão foi um tema que serviu de fonte de inspiração
para peças teatrais cabendo a José de Alencar ter escrito a primeira peça de autor
brasileiro na qual um escravo era o protagonista, peça esta a que deu o título de O
demônio familiar. Na década seguinte, coube a Alencar levar mais uma vez a escravidão
ao palco com sua peça A Mãe. Seu exemplo foi seguido por Maria Angélica Ribeiro,
que nesta mesma década viu ser encenada sua peça Cancros Sociais.
Mas outros textos dramáticos, escritos por penas menos famosas, compuseram o
repertório de peças que tomaram a escravidão e, posteriormente, a abolição, como tema.
Escritos por autores completamente desconhecidos nos dias de hoje, foram eles
parcialmente responsáveis pela divulgação de certas imagens sobre escravidão e
abolição entre as platéias teatrais do império e das províncias.
Se a posteridade não lhes reservou um futuro promissor, uma vez que seus
nomes foram silenciados pela memória do teatro brasileiro, é importante ressaltar que,
no período em que foram escritos e encenados, tais textos (e seus autores) tiveram que
lidar com a situação ambígua de serem recebidos com reservas pela crítica e pelos
censores teatrais, enquanto as platéias os aplaudiram e demandaram a circulação de sua
produção dramática através de outras formas de difusão.
A respeito destes dramaturgos são sugestivos os comentários elaborados em
1862 por Luiz Paulo Ayque, censor do Conservatório Dramático Brasileiro. Segundo
ele, as peças que faziam sucesso junto às platéias fluminenses naquele período eram
assinadas por um grupo de “supostos dramaturgos” já que, na sua visão, aqueles homens
não preenchiam os requisitos necessários para serem reconhecidos como teatrólogos.
Segundo Ayque, intitulavam-se dramaturgos o “barbeiro”, que “apenas soletra”; o
“carroceiro”, que apenas “assina o nome”, ou o “sapateiro” analfabeto, que usa seu
aprendiz para colocar suas idéias no papel, ocupando a cena teatral como verdadeiros
“bandos de arribação, como o peixe em outras épocas”. 5
espetáculo, os mercadores de pianos, os de instrumentos de música, os consertadores de pianos e outros
instrumentos musicais e os mercadores de música impressa. Ver Decreto n. 6980 in Coleções das Leis do
Império, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1879, Tomo XLI, p.p. 406-440.
5
Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, parecer da
censura emitido à peça A Chuva no Rio de Janeiro em 15 de janeiro de 1862. O Conservatório
Dramático Brasileiro foi uma associação criada por homens de letras ,em 1843, tendo como objetivo
promover e incentivar o desenvolvimento das artes cênicas na Corte, tal como o Conservatoire
Dramnatique, de Paris e o Conservatório Dramático, de Lisboa. Logo após sua criação, a associação
recebeu do governo imperial a incumbência de censurar as peças a serem encenadas em todos os teatros
da cidade do Rio de Janeiro tornando-se, esta, sua função principal. Apenas para que se tenha noção de
4
Como decorrência desta rejeição quase que consensual por parte dos censores e
também dos críticos teatrais, tais dramaturgos foram pejorativamente denominados
“carpinteiros teatrais”.6 Provavelmente em função deste clima pouco receptivo a seu
trabalho que muitos “carpinteiros teatrais” fizeram questão de manter seu nome no
anonimato quando enviaram seus textos ao Conservatório Dramático Brasileiro, tal
como ocorreu com a peça O barco dos traficantes, submetida à censura no ano de 1862.
Segundo o primeiro censor que a analisou, a peça apresentava “tipos [que] são imorais,
e tanto ostentam essa imoralidade”, sem aparecer o corretivo, “que na minha opinião, o
autor não devia alcançar a licença que pede”. Os tais “tipos imorais” a que este censor
se referia, eram os personagens que representavam alguns traficantes de escravos
facilmente reconhecíveis pela platéia, como sublinhou o segundo censor que analisou a
peça e indicou cortes ao texto, pressuposto essencial, na sua visão, para que o mesmo
obtivesse licença para encenação.7
Foi também sem indicação de autoria que a peça A filha do sapateiro foi enviada
à censura no ano de 1851. Em relação a ela, o censor indicado para analisar o texto se
perguntaria se seria “conveniente, que em cena se apresente um velho branco aos
abraços com uma negra? (...) Será conveniente o ridículo da primeira cena entre a velha
Rigorosa e a escrava em mesinha, goelas, canudos, etc. Creio que não”, denotando que,
o que via como imoral naquele texto, eram o envolvimento amoroso entre um homem
branco e uma mulher negra e o compartilhamento de certas práticas por uma senhora e
sua escrava, reforçando certos preconceitos, estereótipos e desigualdades raciais comuns
àquela sociedade.8
quem compunha o Conservatório citamos os nomes, dentre outros, de Machado de Assis, José de Alencar,
Gonçalves Dias, Martins Pena, Quintino Bocaiúva e Joaquim Manuel de Macedo. O trâmite de uma peça
no Conservatório era o seguinte: dava-se entrada no pedido de licença e um censor era indicado para
analisar o texto. Se seu parecer fosse favorável, a peça era liberada em no máximo três dias, a contar da
data da remessa à censura; caso contrário, um segundo ou, algumas vezes, um terceiro censor eram
indicados para nova análise. Caso os pareceres fossem convergentes, a peça era reprovada, mas se fossem
divergentes, cabia ao presidente do Conservatório dar o voto de Minerva. Ver para este assunto SOUZA,
Silvia Cristina Martins de, As Noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868),
Campinas, Editora da Unicamp, 2002, especialmente o capítulo 2.
6
A expressão “carpinteiros teatrais” pode ser encontrada em alguns textos da época como, por exemplo,
em BASTOS, Souza, Coisas de Teatro, Lisboa, Bertrand, 1985, p.94.
7
Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, número de
chamada I – 8,20,62.
8
Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos, Coleção Conservatório Dramático Brasileiro, número de
chamada I – 8,8,81.
5
Outras peças, todavia, foram enviadas ao Conservatório com autoria
identificada, mas não escaparam à censura moral daquela instituição. Outro não foi o
caso do drama Mistérios Sociais, de autoria do dramaturgo português César de Lacerda,
para a qual Machado de Assis foi indicado como censor. Mesmo reconhecendo alguns
méritos no texto, Machado não se furtou a sugerir cortes ao mesmo, condicionando a
liberação da licença às modificações que julgava essenciais ao original. Segundo ele,
uma das partes que merecia mudanças dizia respeito ao principal do drama, isto é, à
condição social do protagonista:
O protagonista é um escravo que, tendo sido vendido no México conjuntamente com sua mãe,
pelo possuidor de ambos, que era ao mesmo tempo pai do primeiro, dirige-se depois de homem
e liberto a Portugal em busca do autor dos seus dias. No desenlace da peça Lucena (o
protagonista) casa com uma baronesa. A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois
indivíduos que como aqueles tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições de uma
sociedade como a nossa este modo de terminar a peça deve ser alterado. 9
Levando-se em consideração os pareceres aqui reproduzidos, pode-se dizer que,
nos anos 1850 e início dos anos 1860, levar a escravidão para o palco era algo visto
como impróprio para uma sociedade que havia erigido suas bases de sustentação sobre
esta instituição, sendo tal situação considerada ainda mais problemática quando certos
personagens eram concebidos como personificação da transgressão das normas vigentes
naquela sociedade. Esta, inclusive, foi a crítica recebida por José de Alencar ao seu
Demônio Familiar por parte de Paula Brito, proprietário do jornal A Marmota. Segundo
Paula Brito, Pedro, o escravo protagonista da peça de Alencar, er
(...) um rapaz de má índole, fonte de imensos males que, se não se ajuntasse o combustível para
que tudo ardesse um dia, tem, dada por seu senhor, envergonhado, ludibriado por ele, o
prêmio, o melhor e maior dos prêmios que se pode, que se deve dar a um bom escravo, ao ente
do coração bem formado, qual seja – a liberdade. 10
Para Paula Brito, o escravo que Alencar concebera personificava a transgressão
da norma dentro de sua condição. O objetivo didático e político contido em suas
observações aparecia expresso na relação que fazia entre liberdade e prêmio, isto é,
9
“Pareceres de Machado de Assis” in Revista do Livro, n. 12, junho de 1956, p.p.186-187. Sobre César
de Lacerda é importante sublinhar que, segundo Souza Bastos, apesar de ser ele ator, ensaiador, mas,
sobretudo, um dramaturgo famoso, foi por várias vezes pejorativamente chamado pelos críticos de
“carpinteiro teatral”. Ver BASTOS, Antônio de Souza, Recordações de Teatro, Lisboa, Editorial Século,
1947, p.343.
10
A Marmota, 10 de novembro de 1857.
6
liberdade como prêmio pelos bons serviços e como freio para o futuro liberto, e na
defesa da déia do procedimento esperado de um bom senhor. Obediência, fidelidade,
humildade seriam os pressupostos necessários ao “bom escravo”, nos termos que o
senhor o modelava para ser liberto, sendo esta a noção vigente naquela sociedade que
Paula Brito impecavelmente reproduzia em seu artigo. 11
Ainda que nos anos 1850 e 1860 já não se fizesse a defesa moral da escravidão
ou do tráfico, o que tais críticas nos levam a pensar é que permanecia a convicção, pelo
menos na visão de certos censores e críticos teatrais, de que certos temas conspurcavam
o tablado devendo ser evitados, sobretudo quando o dramaturgo apresentava a
imoralidade desacompanhada do seu corretivo. Observa-se, assim, que, na visão
daqueles anos, o palco deveria consubstanciar-se como uma “escola de costumes”, tal
como se dizia à época, acreditando-se ser ele responsável pela introjeção das idéias e
visões veiculadas pelo dramaturgo, idéias e visões estas que o espectador supostamente
utilizaria na sua vida cotidiana decorrendo desta capacidade ilimitada de convencimento
atribuída ao tablado o perigo que ele poderia representar para a sociedade.
As canções falando sobre escravos e escravidão, por sua vez, desde os anos 1860
fizeram parte do repertório de vários cancioneiros, sendo que algumas delas foram
publicadas e republicadas em mais de um deles, como aconteceu com o lundu Pai João
e as modinhas A cativa e A mucama, para citarmos apenas três exemplos. 12
O lundu Pai João, também conhecido como Desaforo de branco, além de ter sua
partitura editada pela Casa Isidoro Bevilacqua, fez parte das quinze edições de que se
tem notícia do cancioneiro Trovador de Esquina, organizado por João de Souza
Conegundes13, além de ter sido cantado no teatro na paródia Orfeu na cidade, de autoria
do ator e dramaturgo Francisco Correa Vasques.
Os versos deste lundu remetiam ao cativeiro através da fala de um provável
escravo que se exprimia em tom de protesto em relação à sua condição, como se pode
constatar através dos versos que reproduzimos a seguir:
11
Para uma análise detalhada desta peça ver SOUZA, Silvia Cristina Martins de, O palco como tribuna,
Curitiba, Aos Quatro Ventos, 2003.
12
Para as letras destas canções foram consultados dois cancioneiros: MORAES FILHO, Melo, Cantares
Brasileiros – Cancioneiro Fluminense, Rio de Janeiro, Tipografia Cruz Coutinho, 1900, volume 1 e
CONEGUNDES, João de Souza, Lyra de Apollo: álbum de modinhas, recitativos, lundus e canções,
Rio de Janeiro, Quaresma e Editores, 1898 . O primeiro deles no acervo do Real Gabinete Português de
Leitura e o segundo na Divisão de Música da Biblioteca Nacional.
13
Todas as edições deste cancioneiro foram feitas pela Livraria Quaresma.
7
Quando vim da minha terra
Era um grande capitão
Cheguei na terra de ranço
Só me chamam de Pai João.
O desaforo de branco
Não se pode aturar,
Branco só está deitado
E bota o negro a ganhar
O branco está repimpado
Comendo boa galinha
O negro está no fogão
Com carne seca e farinha.
O branco bebe bom vinho
E se apanha um pifão!
Todo povo logo grita,
Que ele teve indigestão.
Senhor branco quando morre
É o luxo que se vê
E o negro quando morre
Os urubus têm que comer!14
Ao contrário deste lundu, a modinha A cativa, escrita em tom romântico,
apresentava a imagem de uma escrava resignada ao cativeiro, que lamenta sua condição
e chora principalmente por saber que a escravidão a impede de amar, uma vez que
“Deus [me deu] um coração/Somente para penar”. 15
Numa outra chave, a modinha A mucama remetia-se a uma escrava vaidosa e
faceira, que provocava amores aos ioiôs e se aproveitara da paixão que por ela nutria o
seu feitor, para fugir ao cativeiro, deixando-o “definhando de amor”. 16
Os anos que cercam abolição da escravidão assistiram ao aumento dos adeptos
das causas abolicionistas, nas suas mais variadas vertentes, em várias regiões do
império. No ano de 1877 foi encenado, no Rio de Janeiro, um drama intitulado Lei 28
de setembro, peça que se prestava a elogiar a lei de 1871 (também conhecida como do
Ventre Livre) e seus supostos efeitos beneméritos. Embora o conteúdo da peça seja
desconhecido, algumas críticas que circularam em jornais da época permitem dele nos
14
CONEGUNDES, João de Souza, Lyra de Apollo: álbum de modinhas, recitativos, lundus e
canções, obra citada, p.p. 49-50.
15
MORAES FILHO, Melo, Cantares Brasileiros – Cancioneiro Fluminense, obra citada, p.49.
16
Idem, p. 118.
8
aproximar. Na Revista Ilustrada, jornal de tendência abolicionista, a maior crítica feita
ao texto foi uma identificada semelhança do mesmo com A cabana do Pai Tomás,
romance, segundo o autor do artigo, tão polêmico quanto famoso, por enfatizar uma
visão idílica e pacífica da escravidão, que ele questionava. 17
O movimento abolicionista, em 1870, estava apenas começando. Nos anos 1880
ele tomou fôlego, se tornou o tema da vez e nada parecia deter um movimento que
indicava o final da escravidão, ainda que tardiamente, se comparado ao restante do
mundo.
Os teatros cederam aos apelos daquele momento emprestando seus tablados para
a realização de conferências e matinées abolicionistas, espetáculos, concertos e
representações dramáticas cujas rendas eram revertidas para a compra de alforrias.
Segundo Eduardo Silva, a ligação estreita entre jornalismo engajado na causa
abolicionista, a atuação da Confederação Abolicionista e a adesão dos artistas teatrais a
esta causa foram decisivas para a propagação do movimento popular abolicionista típico
do Rio de Janeiro. 18
Se, naqueles anos, encenar a escravidão e a abolição já deixara de ser visto como
algo problemático, pode-se perceber, simultaneamente, que os textos das peças
começaram cada vez mais a apresentar diferentes visões que estavam em jogo naquele
contexto sobre estes assuntos.
Poderíamos citar alguns exemplos neste sentido. O drama intitulado 13 de maio
ou a Abolição, de A. Celestino F. Pinheiro, foi encenado em Curvelo (Minas Gerais) em
1888, e tem sua ação ambientada entre 1823 e 1888, ou seja, no decorrer do período que
abrange os momentos mais significativos do conjunto de políticas públicas que levou à
abolição da escravidão. A peça discute assuntos diversos, tais como o momento em que
o comércio negreiro se tornou pirataria, mas, sobretudo, a questão da indenização dos
senhores de escravos pelo estado, apresentando diferentes visões sobre a questão e
finalizando com um coro composto por libertos agradecidos que cantavam: “Rompeu a
17
Revista Ilustrada, 13 de outubro de 1877.
Segundo este historiador, o marco inicial da participação dos atores na causa da abolição seria o dia 27
de junho de 1870, com o espetáculo da Companhia Fênix Dramática, no Teatro Lírico Fluminense,
realizado em benefício ao ator italiano Ernesto Rossi, em temporada artística no Rio naquela ocasião.
Neste dia, ao findar o espetáculo, os atores da companhia teriam levado ao palco uma menina para libertála em cena, em homenagem a Rossi que, emocionado, teria feito um discurso defendendo a libertação dos
escravos. Eduardo Silva sugere que o referido benefício teria inaugurado o que ele denominou de
“fórmula Rossi”, que se disseminou na década seguinte. Texto disponível em
http://sbph.org/reuniao/26/mesas/Eduardo_Silvva.pdf e acessado em 19/11/2008).
18
9
aurora
brilhante/No
dia
da
liberdade!/13
de
maio
relembra/O
poder
da
Divindade/Nossos punhos rocheados/Com os ferros do cativeiro/Empunham hoje o
estandarte/Do Império Brasileiro”, ao passo que os senhores terminavam insatisfeitos
por não terem sido contemplados com a almejada indenização. 19
Anos depois da abolição formal da escravidão, o tema ainda serviria de fonte de
inspiração para alguns autores, como foi o caso do drama Gererê ou quilombo do
sargento, escrito em 1893 pelo paranaense Teófilo Soares Gomes e encenado neste
mesmo ano em Paranaguá e Antonina (Paraná). O drama recebeu críticas favoráveis no
Diário do Comércio de Curitiba e no jornal A República
20
e nele o autor conta a
história de Gererê, negro fugido que se esconde no quilombo do Sargento de onde
planejava resgatar sua mãe, escrava na mesma fazenda da qual ele se evadira. Tal
quilombo, na visão do autor, ainda que fosse obra de negros fugidos, só teria se
organizado como resistência real ao cativeiro quando nele se instalou um sargento
desertor da Guarda Nacional, defensor de ideais antiescravistas, que para lá se dirigiu
com o objetivo de criar entre “os escravos fugidos um corpo de proteção à sua raça”,
emprestando seu conhecimento para militarizar os aquilombados. 21
Vistas por estes dois dramaturgos ora como obra de benevolência do estado, que
se colocara contra os escravocratas, ora como fruto da benevolência e da capacidade de
organização de homens acostumados à liberdade, a imagem da escravidão e de
diferentes formas de acesso à liberdade por eles delineada apresentam, todavia, um
ponto em comum: o de que a escravidão produzia indivíduos incapacitados de agir por
contra própria, que necessitavam da ação de outros indivíduos para direcionar os rumos
de suas ações, reafirmando a idéia da liberdade como doação e como um ato de
generosidade, e não como conquista dos próprios escravos. 22
19
PINHEIRO, A. Celestino F., 13 de maio ou A Abolição, Biblioteca Nacional, Setor de Obras Raras,
número de chamada V-249,3,3- n.1. Nos anos 1880, havia toda uma aposta na transformação do escravo
em cliente ou agregado que deveria manter-se ligado ao ex senhor por laços de dependência, de
preferência ainda mais estreitos do que antes. Aos escravos libertos, a partir desta visão, só restava a
resposta grata, servil e subserviente, reconhecedora do tamanho da “dádiva” recebida.
20
GOMES, Teófilo Soares, Gererê ou o quilombo do Sargento, Biblioteca Nacional, Setor de Obras
Raras, número de chamada III- 143,3,23. O autor da peça fez questão de anexar as críticas publicadas nos
jornais à edição da peça.
21
Idem.
22
Para uma interessante discussão da alforria compreendida como dádiva ver SCHWARCZ, Lilia M.,
“Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da abolição brasileira” in GOMES, Flavio e
CUNHA, Olívia M.G (orgs), Quase cidadão: histórias e antropologias da pós emancipação no Brasil,
Rio de Janeiro, FGV, 2007.
10
Como dito anteriormente, muitos indivíduos diretamente ligados aos meios
teatrais se engajaram na luta abolicionista na década de 1880, dentre eles o dramaturgo,
poeta e romancista Francisco Moreira de Vasconcelos, que se apresentava na capital do
império e, sobretudo, mambembava nas províncias, representando dois dramas
abolicionistas de sua autoria intitulados O mulato e Preto Domingos. Segundo Evaristo
de Moraes, ele foi, “dentre os homens de teatro, quem mais persistentemente se
preocupou com a escravidão”. 23
Furtado Coelho foi também um homem de teatro que levou a abolição para ser
debatida em cena. Conhecido empresário e ator teatral, além de defensor de idéias
republicanas e abolicionistas, Furtado Coelho também fez algumas incursões na
dramaturgia e em uma destas ocasiões escreveu o drama intitulado De 13 de maio a 15
de novembro. Nele, o protagonista é um ex senhor de escravos que “não precisava de lei
nenhuma” que o obrigasse a libertar os seus cativos, decisão que tomara anos antes da
abolição formal, da qual vinha colhendo frutos positivos, uma vez que seus ex escravos
não abandonaram sua fazenda e se transformaram em trabalhadores laboriosos. Como
decorrência deste fato, o 13 de maio foi comemorado de forma diferente em sua
propriedade; na ocasião, os libertos teriam recebido prêmios por sua dedicação ao
trabalho, pelo asseio com que mantinham suas casas e por trabalharem com afinco,
mesmo em idade avançada. Associando o progresso e a civilização à liberdade dos
escravos e ao trabalho livre, e ambos à república, Furtado Coelho transformava sua peça
num libelo em defesa do ideal republicano e de uma certa noção sobre liberdade vista
como dádiva e fruto da ação de certos indivíduos movidos por uma visão de futuro que
provocava admiração e agradecimento por parte dos próprios libertos então
transformados em trabalhadores disciplinados, dóceis e morigerados. A recompensa por
tal ato, na visão deste autor, ofuscaria o prejuízo financeiro decorrente do sacrifício de
libertação dos escravos e viria sob a forma de admiração e resultados práticos, uma vez
que suas consequências atingiriam tanto os negros receptores quanto os brancos
doadores, beneficiando a nação como um todo.
Caso também representativo desta participação de sujeitos ligados aos meios
teatrais na campanha abolicionista foi o de Francisco Correa Vasques, conhecido ator e
dramaturgo das platéias do Rio e das de algumas províncias,sobretudo a de São Paulo.
23
MORAES, Evaristo de, A campanha abolicionista: 1879-1888, Brasília, Editora da UnB, 1986, p.
352, nota 39. Não Foi possível localizar o texto destes dramas.
11
Vasques, como então era conhecido, foi um militante da causa abolicionista.
Amigo de José do Patrocínio, ele se tornou responsável pelos folhetins da Gazeta da
Tarde, durante o período em que Patrocínio esteve na Europa para tratamento de saúde,
e nestes folhetins defendeu a abolição dos escravos em várias ocasiões.
Mas sua militância não se restringiu ao jornalismo. De Vasques sabe-se,
também, que ficou bastante conhecido por promover espetáculos em benefício da
compra de alforrias e por fazer discursos improvisados no centro do Rio, aproveitandose do sucesso que conquistara no palco para chamar a atenção da população da cidade
para a causa da abolição. 24
Por ocasião da assinatura da lei de 13 de maio de 1888, Vasques encontrava-se
em temporada artística por São Paulo. No dia 17 de maio, as comemorações oficiais da
abolição nesta província não contaram com peças tematizando o evento, mas com
discursos e improvisos realizados em plena apresentação da peça O diabo na terra e,
nesta ocasião, no segundo ato, os atores Peixoto e Vasques aproveitaram o ensejo para
fazer seguidas alusões ao acontecimento. Suas intervenções, na ocasião, foram assim
descritas por um jornal da província:
(...) O Peixoto, aproveitando a cena do suicídio, improvisou um brilhante discurso
abolicionista, que foi entusiasticamente aplaudido; o Vasques, que conhece à léguas o seu
povo, serviu-se de sua natural veia poética para improvisar ou recitar as seguintes quadras,
que foram estrondosamente aplaudidas: No calendário da Igreja/(Eu não devo estar
errôneo)/O dia 13 de junho/ É dia de Santo Antônio/ No calendário da Pátria,? Da abolição,
acontecido/ o dia 13 de maio/É dia de Antônio Bento. 25
A menção a Antônio Bento, abolicionista conhecido pelas suas ações com seus
caifazes na província de São Paulo, é sem dúvida indicativa da visão de Vasques sobre o
papel de alguns indivíduos na campanha abolicionista, que passaram a se autocelebrar
como condutores deste processo. Neste sentido, pode-se dizer que seus versos serviam
para coroar os esforços expressos pela propaganda na imprensa, no teatro, no
parlamento, nas senzalas e nas ruas de homens como ele próprio, exaltando a condução
pacífica e previdente pela qual a lei foi aprovada reforçando, por extensão, a imagem
dos escravos como receptores passivos da liberdade.
24
Sobre este assunto ver MARZANO, Andréa, Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de
Janeiro (1839-1892), obra citada.
25
Apud MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Teresa, Cem anos de teatro em São Paulo, São Paulo,
Sesc, 2001, p. 21)
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Foi também nos anos que cercam a abolição que um número significativo de
canções tematizando a liberdade dos escravos foram escritas e suas partituras
publicadas. Apenas para citarmos alguns exemplos neste sentido, poderíamos
mencionar os casos do ator Eugênio de Magalhães, que se tornou famoso por recitar o
Navio Negreiro em matinées abolicionistas, e o de Chiquinha Gonzaga que, além de ser
participante assídua de festas, matinées e benefícios abolicionistas, chegou a vender
suas composições nas ruas do Rio de Janeiro para levantar fundos para compra de
alforrias. Um caso conhecido envolvendo esta maestrina foi o da compra de alforria de
José Flauta, escravo e músico talentoso com quem ela trabalhou inúmeras vezes. No
auge da campanha abolicionista, Chiquinha Gonzaga compôs a canção Caramuru e
reverteu o dinheiro da venda de exemplares de sua partitura para a compra da liberdade
de José Flauta. 26
Mais significativo ainda é que, nas últimas décadas do século XIX, as letras de
muitas destas canções cantadas nos teatros passaram a assumir um tom cada vez mais
crítico e satírico, afastando-se cada vez mais da noção de “escola de costumes” atribuída
ao palco que, em fins do século XIX, encontrava cada vez menos adeptos e parecia ter
sucumbido à concorrência do teatro musicado, menos voltado para uma missão
pedagógica atribuída ao palco, e mais sintonizado com a idéia de trazer para o tablado
diferentes visões que contemplassem as formas de pensar e agir de uma sociedade cada
vez mais heterogênea.27
A canoa do Martinho é exemplar do que vimos falando. De autoria de alguém
que utilizava o pseudônimo “Musset”, A canoa do Martinho é um recitativo que foi
publicado no ano de 1882 escrito sob forma de paródia ao poema Vozes d`África, de
Castro Alves.28 Conhecido líder liberal e proprietário rural, Martinho Campos foi
responsável pela declaração do Clube dos Lavradores de Paraíba do Sul publicada no
Diário do Rio de Janeiro, na qual se repetiram argumentos e previsões catastróficos em
relação à fala do trono do 1868, que daria início à batalha parlamentar do Ventre Livre.
26
Segundo Lopes Trovão, companheiro de Chiquinha das fileiras abolicionistas, Chiquinha era “o diabo!
Foi nossa companheira de propaganda na praça pública, nos cafés! Nunca me abandonou”. Ver DINIZ,
Edinha, Chiquinha Gonzaga: uma história de vida, Rio de Janeiro, Codecri, 1984, p. 145.
27
Ver para o teatro musicado MENCARELLI, Fernando Antônio, A voz e a partitura: teatro musical,
indústria e diversidade cultural no Rio de Janeiro (1868-1908), Tese de Doutorado, Unicamp, 2003.
28
MUSSET, A canoa do Martinho, Rio de Janeiro, Tipografia Cosmopolita, 1882, Biblioteca Nacional,
Setor e Obras Raras, número de chamada 49 - 113,2,13,n. 3. Recitativos eram textos escritos para serem
lidos ao som de uma canção e foram comuns nos teatros, em reuniões e saraus no século XIX.
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Nos anos 1880, Martinho Campos estaria mais uma vez no proscênio da vida
política do império, desta feita como presidente do Conselho de Ministros (1885-1888)
explicitando sua postura escravocrata e tornando-se alvo de críticas dos defensores da
emancipação escrava. No jornal Eco Nacional de 21 de fevereiro de 1882, por exemplo,
Martinho Campos foi definido como “fazendeiro em Cebolas, deputado por Minas,
cérebro vazio de idéias, e aptidões administrativas, ingónitas, sem tirocínio de estadista,
esclavagista engaré, apóstolo do tronco, da golilha e do bacalhau (...) e ex presidente da
província do Rio, cargo onde deu exuberantes provas de sua incapacidade
administrativa (....) com a boca do despotismo muito desenvolvida. Acostumado a lidar
com negros, com escravos, S. Ex. há de querer mandar tudo a lambadas de chiqueadores
e a bofetões de feitores”. [grifo no original] As críticas a Martinho Campos também
foram feitas em outros espaços tais como nos desfiles da sociedade carnavalesca
Tenentes do Diabo, da qual participavam abolicionistas conhecidos tais como José do
Patrocínio. 29
N`A canoa do Martinho a faceta escravagista radical de Martinho Campos seria
satirizada e sua inabilidade política assim definida em alguns versos:
Bem alegre anda agora quem de perto
Vê no papel do Vasques o Martinho!
A um - a comédia, a outro - a palhaçada
E ambos entretendo o Zé Povinho!”
Outros versos deste mesmo recitativo se referiam à sua postura escravocrata
radical da seguinte forma:
Martinho! Eu sei que tu resumes tudo
O que há de infame e vil na martinhada!...
Paranhos! Rasga o teu projeto enorme!
Euzébio, fecha o teu sepulcro e dorme!”. 30
Já o Jongo dos Sexagenários, de autoria de Henrique de Magalhães, conhecido
militante abolicionista, fez parte da revista de ano intitulada A mulher homem, de
Valentim Magalhães e Filinto de Almeida, que teve o ator Vasques no papel do
29
No ano de 1882, todos os músicos da banda dos Tenentes do Diabo desfilarem portando uma máscara
que representava Martinho Campos. Ver CUNHA, Maria Clementina Pereira da, Ecos da folia: uma
história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920, São Paulo, Companhia das Letras, p. 132.
30
MUSSET, A canoa do Martinho, obra citada.
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compère. Este jongo se tornou famoso por ter sido exclusivamente composto e incluído
na revista para homenagear a aprovação da Lei dos Sexagenários, ocorrida no ano
anterior e teve sua partitura publicada pela Casa Editora Narciso e Arthur Napoleão.
Também conhecido pelo nome de Ai! Ai! Sinhô!, a parte cantada do Jongo dos
sexagenários foi toda escrita misturando palavras em português e palavras de origem
africana que saíam da boca de um negro velho que reclamava dos maus tratos sofridos
no cativeiro.
No caso específico deste jongo, é interessante sublinhar, também, o gênero
musical escolhido pelo autor para sua composição – o jongo -, também conhecido por
batuque ou dança de pretos, no século XIX. Esse gênero de música e dança já havia sido
objeto da literatura e, ao que tudo indica, já utilizado nos palcos teatrais, a julgar por
algumas letras de jongos publicadas em cancioneiros e, sobretudo, na sua presença nas
longas listas de partituras musicais de várias editoras do Rio de Janeiro.
Cercado por visões preconceituosas, o jongo era visto como um gênero
condenado ao exílio das senzalas, em função de sua raiz africana. Assim, ao levar o
jongo para o palco, Henrique de Magalhães valorizou um gênero musical tido como
menor, retirando-o da “selvageria” dos terreiros, onde eram cantados e dançados por
negros escravizados, para a “nobreza” dos tablados, o que não era pouco num contexto
no qual tudo o que remetia a uma origem africana era visto como degenerado, inferior e
incivilizado.
E, por fim, a polca Não há mais escravos, composta por A.S. Chirol, cuja
partitura foi também publicada pela Casa Isidoro Bevilacqua. Escrita em comemoração
à assinatura da Lei Áurea, esta polca tem como letra apenas a frase que lhe serve de
título, cantada uma única vez em toda a canção, o que a reveste de um caráter simbólico
e solene compatível com o sentimento que parece ter inspirado seu autor, que dedicou a
referida polca “ao povo brasileiro”.
Do que foi dito poderíamos concluir que a cada cena, canção, paródia ou
espetáculo, as peças teatrais e as músicas contribuíram para estreitar os laços entre palco
e rua (e vice-versa). Neste movimento, de assuntos a serem evitados nos tablados a algo que
deveria ser debatido pela sociedade brasileira, de uma postura abolicionista conservadora, que
via a abolição como dádiva, a outras mais críticas, que condenavam esta visão pacífica e de mão
única do processo, o caminho percorrido pelos temas da escravidão e da liberdade nos palcos e
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nas canções foi efetivo e através dele pode-se vislumbrar algumas das facetas do complexo
processo que foi a abolição da escravidão no império.
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