SOCIEDADE, ÉTICA E POLÍTICA “Se Deus não existe, tudo é permitido” Walmir Barbosa∗ A reflexão sobre a Ética ocupa uma grande importância para a humanidade, independentemente das conjunturas e períodos históricos. Mas, certamente, há conjunturas e períodos históricos nos quais a sua reflexão assume maior relevância. A atual conjuntura e período histórico, profundamente caracterizado pela redução das necessidades materiais e culturais humanas aos imperativos do mercado, pelo avanço do oficialismo estatal, pelo controle e manipulação da informação e pela progressiva idiotização de uma grande parte da sociedade, exige de nossa parte situar a Ética no centro das nossas idéias e das nossas práticas sociais. Exigência colocada para todos aqueles que reconhecem a pertinência de lutar por um mundo melhor e de avaliar as escolhas e opções realizadas enquanto ator social individual e enquanto parte integrante de atores sociais coletivos. O propósito deste texto é contribuir para uma reflexão acerca da Ética em sua relação com a sociedade e a política. E, enquanto tal, volta-se prioritariamente para estudantes e jovens ativistas políticos. A construção e organização deste texto não foi conduzida por um “especialista” em Filosofia e Ética. Todavia, pretende-se que o texto dê conta de combinar um determinado rigor na abordagem da Ética e uma reflexão sobre a mesma por parte dos leitores. O texto se divide em três partes: “O Conceito de Ética”, onde se buscou uma definição geral de Ética e o desenvolvimento do seu conceito ao longo da história; “Incursões Filosóficas”, onde se copidescou as intervenções de diversos intelectuais sobre Ética por meio dos vídeos Ética I e II, produzidos e divulgados pela Fundação Padre Anchieta; e “Por uma Política Ética”, onde se buscou identificar alguns desafios colocados para as idéias e práticas políticas de dimensão Ética na atual conjuntura e período histórico. ∗ É Mestre em História das Sociedades Agrárias e professor na UCG e do CEFET-GO. 1 O texto recebeu contribuições de Sebastião Cláudio Barbosa, Ana Paula Nunes e Marcela Maciel. Em que pese os seus limites, convidamos ao leitor a percorrer este pequeno itinerário de reflexão sobre Ética. 2 I PARTE O Conceito de Ética 1. DEFINIÇÃO E CONCEITO DE “ÉTICA” Ética pode ser definida como a ciência ou disciplina que se ocupa da conduta humana (social, política, artística etc). Conduta que é sempre e necessariamente orientada por preceitos normativos morais, o que converte a Moral no objeto da Ética. A Moral é uma forma de comportamento humano que compreende tanto um aspecto normativo (regras de ação) quanto um aspecto factual (atos que se conformam em um ou em outro sentido, mas sempre em interação com as normas mencionadas). A Moral é um fato social. Ocorre na sociedade, corresponde a determinadas necessidades sociais e cumpre um conjunto de funções sociais. O fato da Moral, embora possua um caráter social, não reduz o papel essencial que o indivíduo desempenha nele, visto que a Moral demanda a interiorização das normas e deveres estabelecidos e sancionados pela comunidade de forma individual. O ato moral concreto faz parte de um contexto normativo (código moral) que vigora em uma determinada comunidade, o qual lhe confere sentido. Todavia, como manifestação concreta 3 do comportamento moral dos indivíduos reais, é unidade indissolúvel dos aspectos ou elementos que o integram: motivo, intenção, decisão, meios e resultados, e, por isso, o seu significado não pode ser encontrado em apenas um destes aspectos ou elementos abstraídos dos demais. Como fato consciente e voluntário, o ato moral supõe uma participação livre do sujeito em sua realização, em que pese o caráter impositivo das normas morais. É a necessidade histórico-social que condiciona o ato moral e que “harmoniza” a livre adoção e a coerção nele contidos. Moral pode então ser definida como (Vasquez, 1989, p. 69). (...) um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal Conforme a Ética revela, o código moral é um produto humano. Como tal, compõe o processo histórico da humanidade. E podemos mesmo delimitar, no âmbito do processo histórico da humanidade para eleito de estudo, o processo histórico da Moral (Vasquez, 1989, p. 227 3 228). O processo histórico da Moral é ascensional. Ocorre por meio do crescimento do domínio do homem sobre si mesmo; da relação progressivamente consciente, livre e responsável do indivíduo com relação aos demais; da regulamentação dos atos individuais, de forma que os interesses pessoais não sacrifiquem os interesses coletivos, e vice-versa; do predomínio da aceitação das regras de convivência social fundadas nas convicções íntimas (ou normas internas) em relação à sua aceitação puramente formal (ou normas externa) etc. O processo histórico ascensional Moral expressa, portanto, em formas morais superiores. Todavia, como síntese dialética traz em si elementos tradicionais e elementos novos, que podem ser tanto progressistas quanto conservadores, isto é, elementos de impulso ou de atraso para a formação de uma Moral superior. A Ética, ao estudar a Moral conceitual e historicamente, permite apreender elementos, formas e sentidos da Moral. Dessa forma a Ética permite abrir o que a Moral fechou, romper o que a Moral tornou sistêmico, historicizar o que a Moral atemporalizou e universalizou. A Ética, quando se ocupa da Moral de forma dialética, concorre para que a conduta humana possa se dirigir na perspectiva do bem. 4 2. ÉTICA E HISTÓRIA As concepções Éticas nascem e se desenvolvem como respostas aos problemas sociais e históricos concretos surgidos nas relações entre os homens, em especial problemas que se relacionam com o comportamento moral. A determinação social e histórica dos problemas humanos determina a dimensão social e histórica das concepções Éticas na medida em que os tem como objeto. Abordar criticamente as concepções Éticas demanda partir, portanto, dos problemas humanos. Identificá-los exige, por sua vez, uma abordagem das estruturas sócio-econômicas, políticas e morais da sociedade que os determina. 2.1. Concepções Éticas Fundamentais A Ética foi conceituada e caracterizada por meio de infinitos conteúdos e formas. Todavia, é possível identificar dois grandes campos de concepções fundamentais. A primeira concepção é a que define a Ética como a ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim. Nesta concepção, o fim e os meios seriam deduzidos da própria natureza do homem. O ideal para o homem seria dirigir-se por sua natureza e, por conseqüência, da “natureza”, “essência” ou “substancia” do homem. O bem seria para onde se dirigiria o homem (Abbagnano, 1998, p. 380 e 381). As concepções da Ética do Fim da conduta humana concebe o bem como realidade perfeita ou perfeição real. Procura-se deduzir esta realidade da natureza racional do homem. Define como bem a conduta que se orienta por meio da projeção desta perfeição. Para a Ética do Fim o valor, como o belo e o bom, existem idealmente, isto é, como entidades supra-empíricas, atemporais, imutáveis e absolutas. Subsistem em si e por si, independentes da própria relação que o homem possa manter com elas, ao conhecê-las ou intuílas. Ocorre a plena separação entre o valor e a realidade (ou os bens em que nela se materializa). De forma que os valores formam um reino particular e que subsiste absoluto, imutável e incondicionado; encarnam bens como a utilidade, a beleza, a bondade; existem idealmente; e não necessitam se concretizar em formas reais (Vasquez, 1989, p. 123-125). 5 Talvez a expressão mais longínqua da Ética do Fim seja a doutrina metafísica de Platão sobre as Idéias. Dentro desta tradição também podem ser situados, por exemplo, Santo Agostinho e Hegel. A segunda concepção é a que define a Ética como a ciência dos motivos da conduta humana. Esta ciência procuraria, ainda, determinar tais motivos com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta. O ideal para o homem seria compreender os “motivos” ou “causas” da conduta humana, ou as “forças” que a determinam, de forma a pretender ater-se ao conhecimento dos fatos. O bem seria uma realidade, embora não inscrita na natureza, humana e alcançável (Abbagnano, 1998, p. 380 e 381). As concepções da Ética do Móvel da conduta humana concebe o bem como objeto da vontade humana ou das regras que a dirigem. Procura-se determinar o móvel do homem, ou seja, a norma a que ele de obedece. Define-se como bem aquilo a que se tende em virtude desse móvel, ou aquilo que se conforma à norma em que ele se exprime. Para a Ética do Móvel o valor, como o belo e o bom, não existe em si, independente da relação com o sujeito. É o sujeito quem define e valoriza, qualitativa e quantitativamente, o valor, na sua relação com o mesmo. É possível identificar no âmbito da Ética do Móvel dois campos de definição do valor. O primeiro é o subjetivismo idealista, que reconhece a definição do valor como um processo puramente individual e subjetivo, decorrente de uma vivência espontânea pessoal. Conseqüentemente, recusa a idéia de que as propriedades do objeto (naturais e sociais) podem determinar a atitude valorizadora do sujeito. Dentro desta tradição podem ser situados, por exemplo, Hobbes e Scheler. O segundo é o objetivismo dialético para o qual os valores são criados por um homem social e histórico. Dessa forma os valores são criações humanas em um mundo social e historicamente determinado; existem e se realizam no homem e pelo homem. O homem é concebido como um indivíduo que pertence a uma época e, como ser social, se insere sempre na rede de relações de determinada sociedade; encontra-se igualmente imerso em uma dada cultura, da qual se nutre espiritualmente; e a sua apreciação das coisas ou os seus juízos de valor se conformam com regras, critérios e valores que não inventa ou descobre pessoalmente, mas que constrói socialmente (Vasquez. 1989, 123-124). Dentro desta tradição podem ser situados, por exemplo, Sartre e Marx. 6 As concepções da Ética do Fim e da Ética do Móvel fizeram-se presente ao longo da história do mundo ocidental. Foram constantemente reelaboradas em função dos contextos históricos, isto é, das configurações produtivas, sociais, políticas e culturais em permanente transformação. Compreendê-las demanda, portanto, partir da identificação das características históricas de cada grande período histórico. 2.2. O Mundo Antigo Ocidental e a Ética O Mundo Antigo Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica escravista. Esta realidade não impediu que transformações profundas fossem operadas. Na passagem do século VI a. C. para o século V a. C. a Grécia apresentou uma forma de organização social e política original. As concepções políticas teocráticas foram superadas pela criação da república. Neste processo ocorreu a democratização da vida política com a derrota da aristocracia e a emergência política da nova aristocracia (comerciantes) e homens livres pobres, com o conseqüente triunfo da democracia escravista, a criação de uma infinidade de novas instituições eletivas e a intensa vida pública com debates públicos e rigorosa movimentação cultural criativa (teatro, esportes etc). A sociedade grega na sua fase clássica desconheceu castas sacerdotais, religião monoteísta, Estado teocrático e engessamento do pensamento pelo mito. Esta realidade concorreu para o desenvolvimento da Filosofia, da Política e da Ciência, das primeiras experiências democráticas, das normatizações sociais reconhecidas como criação humana e do apreço à estilística. Com a intensa valorização da comunidade democrática, que foi reduzida no número de membros e restringida no espaço, teve origem a Filosofia Política e Moral. O seu objeto privilegiado de reflexão foram os problemas oriundos da criação e aprimoramento da estruturação do poder da república, a relação entre o público e o privado, a conduta moral e política dos cidadão em face da comunidade democrática, e assim por diante. Nos séculos IV e III a. C. ocorreu a perda da independência e liberdade das comunidades gregas, primeiramente em face dos Macedônicos e, posteriormente, dos romanos. Como conseqüência teve fim a democracia escravista. 7 A Grécia passou a conviver com uma intensa regressão e repressão política. E, neste contexto, a Ética tendeu a declinar em face dos problemas da comunidade política e passou a se ocupar fundamentalmente dos problemas existenciais e de conduta moral individual. A sociedade romana, que em grande medida preservou e estendeu o legado cultural grego, também proporcionou heranças culturais. O pequeno desenvolvimento da Filosofia e da Ciência, a ausência de experiências democráticas e a pouca originalidade estilística, conviveu com enormes progressos no campo da Política, da gestão pública, do Direito e da Engenharia. No Mundo Antigo Ocidental podemos identificar dois grandes campos morais. Campos estes que, obviamente, se expressaram por meio de infindáveis morais. A Moral dos homens livres, determinada pelas experiências sociais aristocráticas e que se expressaram em idéias dominantes daquele período, foi criada e difundida pelos filósofos, os intelectuais orgânicos da aristocracia escravista. Tratava-se de uma Moral efetiva, isto é, vivida concretamente e expressa por meio de normas formalizadas ou não. A Moral dos homens livres teve como referência a separação entre homens – que possuiriam alma de homem e que poderiam se humanizar e se libertar progressivamente – e os escravos – que possuiriam alma de escravo (ou que nem possuiriam qualquer alma) e que não poderiam se humanizar e se libertar. A Moral impunha aos homens livres a humanização por meio do cultivo da alma e do corpo através das atividades proporcionadas pelo ócio (o teatro, a escultura, o esporte etc); da individualidade de cada membro no âmbito da comunidade; e da responsabilidade política de cada cidadão na preservação da comunidade política. A moral dos escravos indicava assumir maior sistematização nos períodos que antecediam as suas revoltas, motivadas por uma obscura esperança de liberdade. Nessas revoltas e nos breves períodos de liberdade que se seguiam quando se faziam vitoriosos, qualidades morais como a solidariedade, o espírito de sacrifício, a lealdade etc, encontravam-se presentes. A destruição desta Moral emergente por parte da classe aristocrática passava, necessariamente, pela destruição da memória e da experiência daqueles que a viveram, isto é, pela morte dos escravos recapturados. A Moral dos homens livres no Mundo Antigo Ocidental legou para a humanidade referências morais fecundas. Dentre elas podemos destacar a correlação entre Moral e Política; a Moral e a Política como parâmetros para dirigir e organizar as relações entre os membros da comunidade política e que se ocupam de todos os problemas humanos (religião, guerra, natureza 8 etc); as virtudes civis (amor e fidelidade a comunidade, dedicação aos negócios públicos, a primazia do público em face do privado etc); a progressiva consciência da definição e proteção dos interesses da comunidade concomitantemente com a consciência da definição e proteção da individualidade dos seus membros; e a consciência da responsabilidade pessoal como parte de uma autêntica conduta Moral (Vasquez, 1989, 31-33). O Mundo Antigo Ocidental não rompeu totalmente com a explicação mítica do mundo, mas o homem era reconhecido como um ser constituído de razão e de vontade. A Ética do fim e a Ética do Móvel haveriam de refletir esta realidade. 2.2.1. A Ética do Fim no Mundo Antigo Ocidental A Ética do fim possuiu diversas expressões no mundo antigo. Dentre elas podemos destacar Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates (séc. V e IV a. C.) Sócrates compartilhou o desprezo dos sofistas pelo conhecimento naturalista e pelas tradições. Todavia, destes se afastou à medida que condenava o relativismo e o subjetivismo. Sócrates centrou a questão do saber no homem, conforme retrata a máxima “conhece-te a ti mesmo”. Buscou um conhecimento fundamentalmente moral, prático e universalmente válido. A sua Ética possuía a concepção do bem como felicidade da alma e do bom como útil para a felicidade; a virtude como conhecimento, porque quem conhece o bem não age mal, e do vício como ignorância, porque somente age mal quem não conhece o bem; e a virtude pode ser ensinada e, portanto, transmitida (Vasquez, 1989, p. 237 e 238). Platão (V e IV a. C.) A Ética de Platão possuiu como fundamento primeiro a sua concepção metafísica. Para ele haveria o mundo sensível, que apoiaria-se nas idéias imperfeitas e fugazes, que constituiriam a falsa realidade, e o mundo das Idéias, que seriam permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituiriam a verdadeira realidade e que teria como cume a Idéia do bem (divindade, 9 demiurgo do mundo). O segundo fundamento foi a doutrina da alma. Para ele o homem seria animado por três almas: a racional (razão), que contemplaria e queria racionalmente, a colérica (vontade ou ânimo), que comandaria a vontade e não queria racionalmente, e a desejante (concupiscente ou apetite), que comandaria as necessidades corporais e também não queria racionalmente. Assim, (Vasquez, 1989, p. 238 e 239). Pela razão, como faculdade superior e característica do homem, a alma se eleva – mediante a contemplação – ao mundo das idéias. Seu fim último é purificar ou libertar-se da matéria para contemplar o que realmente é e sobretudo a Idéia do Bem. Para alcançar esta purificação, é preciso praticar várias virtudes, que correspondem a cada uma das partes da alma e consiste no seu funcionamento perfeito: a virtude da razão é a prudência; a da vontade ou ânimo, a fortaleza; e a do apetite, a temperança. Estas virtudes guiam ou refreiam uma parte da alma. A harmonia entre as diversas partes constitui a quarta virtude, ou justiça O homem não alcançaria a plena perfeição isoladamente. A Idéia do homem somente se realizaria enquanto bom cidadão e no Estado ou comunidade política. Enfim, a Ética assumia conseqüência por meio da Política. Platão, por meio da obra A República, projetou a estrutura e hierarquia das almas no Estado. Nele cada parte corresponderia a uma classe especial, cumpriria a sua virtude e tarefa e declinaria sobre as demais. Assim, (Vásquez, 1989, p. 239). (...) à razão, a classe dos governantes – filósofos, guiados pela prudência -; ao ânimo ou vontade, a classe dos guerreiros, defensores do Estado, guiados pela fortaleza; e ao apetite, os artesãos e os comerciantes, encarregados dos trabalhos materiais e utilitários, guiados pela temperança. Cada classe social deve consagrar-se à sua tarefa especial e abster-se de realizar outras. De modo análogo ao que sucede na alma, compete à justiça social estabelecer na cidade a harmonia indispensável entre as várias classes. E, com o fim de garantir esta harmonia social, Platão propõe a abolição da propriedade privada para as duas classes superiores (governantes e guerreiros) O homem deveria fugir dos excessos. A ênfase excessiva em uma boa ação desencadearia o seu próprio contrário, enquanto que boas ações de nada adiantariam frente a práticas ordinariamente ruins. A conduta deveria ser forjada pelo hábito de possuir bons costumes e não tanto em realizar boas ações. O bem é organizar a cidade tendo como base o verdadeiro conhecimento, de forma que as funções necessárias à cidade – a satisfação das necessidades básicas dos habitantes, a defesa do território e a administração – corresponda às aptidões de cada um – produtores (camponeses e 10 artesãos), guerreiros e legisladores. Identificar as aptidões por meio da educação e seleção dos homens para as funções permitiria determinar e definir as virtudes particulares, bem como a virtude que compreenderia todas elas, qual seja, a justiça como cumprimento da função que caberia a cada parte no Estado. E concluiu que “ Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder ( Platão apud Abrão, 1999, p. 52 e 53 ). A ética de Platão unificava Moral e Política. A perfeição humana, embora tendo o indivíduo como ponto de partida, formava-se no Estado e por meio da subordinação do indivíduo ao Estado ou comunidade política. Perfeição esta impedida para quem não possuísse vida moral, isto é, o escravo. Aristóteles (séc. IV a. C.) A Ética de Aristóteles possuiu como fundamento primeiro o reconhecimento de que os únicos indivíduos existentes seriam os indivíduos concretos, isto é, a idéia existe nos seres humanos individuais. Aristóteles rompia, assim, com o dualismo ontológico de Platão, o qual separa o mundo sensível do mundo das Idéias. Em segundo lugar, compreendia que haveria um movimento universal de passagem incessante do que existe em potência ao ato, seja no mundo natural, por exemplo, da passagem da semente à planta, seja no mundo social, por exemplo, da passagem do homem ao ser humano. Apenas Deus seria ato puro. O homem seria atividade de passagem da potência (homem) ao ato (ser humano). Esta passagem deveria se orientar para Aristóteles pelo fim último do homem, qual seja, a felicidade. Por tal compreendia-se a atividade humana representada pela vida teórica ou contemplação guiada pela razão, que expressaria características elevadas do homem. Atividade humana representada pelo prazer e pela riqueza expressariam características baixas do homem. A vida teórica ou contemplação realizaria-se por meio da aquisição de certas formas de agir que os homens adquiririam ou conquistariam pelo exercício, de forma a aprimorar a sua dimensão racional e conter a sua dimensão irracional. Estas formas de agir seriam virtudes. Elas poderiam ser intelectuais, que se operariam na dimensão racional (razão) do homem, e práticas ou Éticas, que se operariam na dimensão irracional (não razão) do homem, isto é, nas paixões e apetites humanos. 11 A felicidade decorreria da natureza racional do homem, porque seria fruto do exercício do intelecto no campo moral e porque aspiraria ao que seria razoável. Seria, portanto, uma conseqüência da vida contemplativa e sossegada, distanciada das perturbações do cotidiano. Em Aristóteles, (Vasquez, 1989, p. 240 e 241). (...) a virtude consiste no termo médio entre dois extremos (um excesso e um defeito). Assim, o valor está entre a temeridade e a covardia; a liberalidade, entre a prodigalidade e a avareza; a justiça, entre o egoísmo e o esquecimento de si. Por conseguinte, a virtude é um equilíbrio entre dois extremos instáveis e igualmente prejudiciais. Finalmente, a felicidade que se alcança mediante a virtude, e que é o seu coroamento, exige necessariamente algumas condições maturidade, bens materiais, liberdade pessoal, saúde etc -, embora estas condições não bastem sozinhas para fazer alguém feliz A Ética de Aristóteles, que tal qual a de Platão, está unida à sua filosofia política, também unificou por conseguinte Moral e Política. Para Aristóteles, à medida em que o homem seria um ser por natureza social e político, lança mão da moral esclarecida pela virtude. Seu objetivo seria realizar o ideal da vida teórica ou contemplativa na qual se basearia a felicidade por meio a comunidade política. A vida moral não seria um fim em si mesmo, mas um meio ou condição para uma vida verdadeiramente humana, isto é, para a conquista da vida teórica ou contemplativa na qual consiste a felicidade. A vida moral, que não poderia ser conduzida por um indivíduo isolado, mas pela comunidade, também não poderia ser participada por todos. Apenas a minoria de alma superior, os aristoi a poderia vivenciar plenamente. Os homens comuns, cujas almas não se encontrariam plenamente desenvolvida, a poderiam vivenciar apenas de forma parcial e imperfeita. Quanto aos escravos, que não possuiriam almas de homens, mas de escravos, estariam natural e completamente excluídos de qualquer vida moral. Daí a glorificação dos regimes políticos (aristocracia, monarquia e república), exercidos em última instância pela aristocracia, em detrimento dos regimes apolíticos (oligarquia, tirania e democracia), exercidos em última instância pelos homens comuns. Os Neoplatônicos 12 Os neoplatônicos definiram a Ética como a busca de afastamento do homem de todas as coisas exteriores e do seu reencontro (em seu isolamento) com o Uno (Unidade Divina). A prática do bem, à medida que unificaria as ações dos homens e lhes imporia medida e limite, aproximaria e assemelharia o homem ao Uno, que seria a unidade da virtude. O propósito da conduta humana, portanto, seria o retorno do homem ao seu princípio criador (Unidade Divina), de forma a se dissolver nele, na sua perfeição (Abrão, 1999, 91-93). 2.2.1. A Ética do Móvel no Mundo Antigo Ocidental A Ética do Móvel assumiu na Idade Antiga diversas formas. A sobrevivência e o prazer encontravam-se entre aqueles mais presentes. Os Sofistas (séc. V a. C.) Os sofistas condenavam o saber naturalista dos primeiros filósofos (pré-socráticos), porque consideravam estéril. Valorizavam o saber a respeito do homem, especialmente o político e o jurídico. Saber que deveria ser prático e engajado na vida da Pólis, e não contemplativo e desinteressado. A condição dos sofistas de mestres que valorizavam um saber específico e que viviam economicamente de ensinar a arte de expor, argumentar e discutir idéias, despertou grande oposição em uma parcela importante e renomada de filósofos. Mas esta oposição pode estar relacionado, ainda, ao fato de que os sofistas questionaram os fundamentos das tradições, situaram o homem no centro de tudo (ante-sala do subjetivismo) e questionaram a existência de verdades e normas universalmente válidas (ante-sala do relativismo). Pródico e Protágoras evidenciaram o desejo ou a vontade de sobreviver como o mecanismo do móvel que fundaria as normas do Direito e da Moral. O homem conformaria-se a tais normas e não poderia agir de outro modo. Pródico formulou a sua moral em proposições condicionais ou imperativos hipotéticos calcados na sobrevivência. Segundo ele (Pródico apud Abbagnano, 1998, p. 383). 13 Se quiseres que os deuses te sejam benévolos, deves venerar os deuses. Se quiseres ser amado pelos amigos, deves beneficiar os amigos. Se desejares ser honrado por uma cidade, deves ser útil à cidade. Se aspiras a ser admirado por toda Grécia, deves esforçar-te por fazer bem à Grécia Protágoras concebeu o mundo como o resultado do que o homem faz e desfaz por meio dos seus sentidos. Portanto, se houvesse um princípio único, o homem não poderia conhecê-lo. Afirma até mesmo a impossibilidade de decidir sobre a existência de seres divinos. Segundo Protágoras “ O homem é a medida de todas as coisas (... ) das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são” ( Protágoras apud Abrão, 1995, p. 38 ) Protágoras reconheceu que o respeito mútuo e a justiça seriam as condições para a sobrevivência do homem. O conhecimento, estando limitado pelos sentidos, que mudaria de um homem para outro, não poderia surgir de uma suposta verdade absoluta, mas de convenções (normas) estabelecidas entre os homens. Da mesma forma a organização social e a Política não derivariam de um único princípio de justiça, mas de convenções que os homens estabeleceriam de acordo com as circunstâncias e as conveniências. O objetivo seria assegurar sobrevivência por meio de uma ordem social convencional. Estóicos O estoicismo, com representantes como Zenão de Cítio, na Grécia, e Sêneca e Marco Aurélio, em Roma, surgiu no contexto de decadências e ruínas vivenciadas nas experiências políticas e morais do mundo greco-romano. Dentre elas destacou-se a perda da autonomia das Póleis gregas, com a conseqüente imposição de normas jurídicas e morais dos conquistadores, e a organização, desenvolvimento e queda dos Impérios Macedônico e Romano, com a conseqüente guerra, anarquia, insegurança, tirania e medo etc. Para o estóico a moral não se definia em relação à Polis, mas ao universo. O problema moral foi colocado sobre o fundo da necessidade física, natural do mundo. A física, não mais a política, seria a premissa da Ética. Para os estóicos o mundo seria um corpo vivo, diferenciado e coeso, determinado por uma razão universal presente em tudo. Fatos irracionais que se apresentam aos homens – doenças, injustiça, sofrimento, guerras – seriam apenas ilusões oriundas da observação dos fatos em seu isolamento, isto é, fora do todo. 14 O mundo ou cosmos possuiria Deus como princípio, alma ou razão, sendo que seria o próprio Deus que o anima. Deus determinaria tudo, de forma que inexistiria liberdade (nos fenômenos humanos) nem acaso (nos fenômenos físicos). Conhecer o mundo seria apreendê-lo em sua dimensão de corpo vivo e de logos por meio da relação entre a natureza corpórea das coisas e a razão. Assim, o mundo em sua dimensão corpórea poderia ser apreendido pelas sensações e pelas representações racionalmente construídas sobre ele, isto é, nas representações, as formas corpóreas e o pensamento sobre as formas corpóreas, coincidiriam (Abrão, 1999, p. 74-76). As normas de conduta humana em prol da felicidade seriam deduzidas da natureza racional e perfeita da realidade. Daí a sua máxima “viver segundo a razão”. Caberia ao homem sábio reconhecer que o mundo seria regido por uma necessidade radical, que todos os homens estariam submetidos a um destino e que restaria aceitar o seu destino e agir consciente dele. O bem supremo para o homem seria, portanto, viver de acordo com a natureza, isto é, por meio da razão tomar consciência do nosso destino e de nossa passagem no universo, sem se deixar levar por paixões ou afetos interiores ou pelas coisas exteriores. Cultivar a apatia e a imperturbabilidade com relações às paixões e reveses do mundo e conquistar a sua liberdade interior e autarquia (auto-suficiência) absoluta, é o que deveria definir a conduta moral. A conduta moral estóica, portanto, independia do Estado ou comunidade política. Nela o homem convertia-se em um cidadão do cosmos, não da Pólis (Vasquez, 1989, p. 242). Epicuristas O epicurismo, com representantes como Epicuro, na Grécia, e Tito Lucrécio Caro, em Roma, surgiu no mesmo contexto histórico em que surgiu o estoicismo. Os epicuristas também partiam da idéia de que a moral não mais se definia em relação à Polis, mas em relação ao universo. Também para eles a física, não mais a Política, seria a premissa da Ética. Tudo o que existe (a alma e as formas da matéria) seria formada por átomos materiais que possuiriam um certo grau de liberdade, na medida em que se poderiam desviar-se ligeiramente na sua queda. 15 Os fenômenos físicos e humanos não seriam determinados por qualquer intervenção divina. Os homens não teriam porque temer os deuses e poderiam e deveriam fugir da dor e buscar o prazer. O móvel da conduta humana seria o prazer. Embora houvesse diversos prazeres, nem todos seriam igualmente bons. Haveriam prazeres fugazes e imediatos, que seriam os corporais, e os duradouros e estáveis, que seriam os espirituais. Os prazeres espirituais seriam os que contribuiriam para a paz da alma e a auto suficiência (autarcia) do ser. Eles poderiam ser alcançados pelo homem que se retirasse da turbulência social, que reconhecesse a si mesmo, que superasse o temor do mundo sobrenatural e que compartilhasse o diálogo no jardim com um grupo de amigos. A Ética epicurista também dissolveu a unidade entre a moral e a política presente nos sofistas, em Platão e em Aristóteles. A moral não mais se realizaria no Estado ou comunidade política, mas no indivíduo que recolhesse em si mesmo; e que se distanciasse da turbulência do mundo. Aristipo evidencia que o móvel primordial da conduta humana seria o prazer. Por conseqüência o móvel secundário e correlato da conduta humana seria a fuga da dor. Compreendia que somente o prazer seria desejado por si mesmo desde a infância sem uma vontade deliberada. Quando o homem o alcançasse, não procuraria outra coisa (Abbagnano, 1995, p. 383 e 384). Epicuro realça que a felicidade seria prazer enquanto satisfação de desejos físicos. Mas, como o prazer e a dor compõe a existência, seria necessário buscar um prazer comedido e constante, por meio do desejo saciado e do equilíbrio entre as partes do organismo. A conduta humana fundada no equilíbrio, na tranqüilidade, na amizade, na autosuficiência, no destemor (da morte e dos deuses), representaria um remédio para enfrentar a solidão e a insegurança de nossas vidas de qualidade superior àqueles que os vínculos da vida política poderia proporcionar. Assim, seria possível ser feliz mesmo sob a pobreza material, a guerra, a perseguição política, a doença, enfim, sob qualquer circunstância da existência humana. Epicuro buscou fundar uma Ética que permitisse a cada homem descobrir que ele pode se libertar das imposições da necessidade, do destino e dos deuses. Enfim, que enquanto senhor de si mesmo, livre dos constrangimentos da existência, pode e deve buscar ser feliz. Segundo 16 Epicuro “ Quem compreendeu que nada há de temível no fato de estar morto, a nada temerá na vida” ( Epicuro apud Abrão, 1999, p. 74 ). 2.3. O Mundo Medieval Ocidental e a Ética O Mundo Medieval Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica senhorial e feudal. Esta formação teve origem no interior do Baixo Império Romano por meio da ruralização da sua população, do retrocesso demográfico, do esvaziamento do comércio, do refluxo monetário, das guerras civis e das invasões. Entre os séculos VI e VII a formação social e econômica senhorial e feudal se consolidou. A escravidão deu lugar a servidão; a sociedade escravista deu lugar a sociedade medieval como um sistema de dependências e de vassalagens estratificado e hierárquico; a unificação econômica e política romana deu lugar a fragmentação econômica e política na forma de unidades autárquicas feudais ou comunas urbanas; a moral e a Ética racionalista e escravista deu lugar a uma moral e a uma Ética profundamente condicionada por meio de elementos religiosos. A crise do poder temporal com o fim do Império Romano do Ocidente e o advento dos inconstantes e instáveis reinos romano-germânicos, a insegurança provocada pelas invasões, doenças e fome e a expansão do poder espiritual por meio do crescimento organizativo, doutrinário e econômico da Igreja, geraram um ambiente favorável para o desenvolvimento de uma nova subjetividade. As interpretações do mundo de cunho natural e social deslocou-se da natureza e do homem para Deus; da razão para a fé; da Filosofia para a Teologia, e da vida social concreta para os dogmas religiosos. De forma a coroar a nova subjetividade o poder temporal passou a estar atrelado ao poder espiritual. No mundo medieval ocidental desenvolveu-se uma Moral feudal e cristã. A Igreja, concebida como instrumento de Deus e ordenadora do poder espiritual, e a aristocracia feudal, concebidos como homens de linhagens e ordenadores do poder temporal, foram os arquitetos da referida Moral. A aristocracia feudal concebia-se como possuidora, por natureza, de uma serie de qualidades morais elevadas que a distinguiam dos homens comuns e dos servos. A aristocracia não teria que provar estas qualidades, apenas vivenciá-las. Edificou-se a Moral cavalheiresca, exaltadora da guerra, do ócio e das virtudes cavalheirescas (cavalgar, desenvolver habilidades 17 com as armas, apreender técnicas e táticas militares e tecer loas à mulher amada) e cultuadora da honra, da coragem e da valentia. Moral que também acomodava e legitimava práticas como a crueldade (no trato com os servos, com os vencidos nas guerras etc), a hipocrisia, a traição, o direito de pernada etc. A Igreja edificou a Moral monástica, exaltadora da humildade, da pobreza e da contemplação divina. Moral que também acomodava, na esfera privada, práticas como a gula, o fausto, a felonia, a luxuria. Os servos e os homens livres das cidades (artesãos, mercadores etc), embora reconhecidos pela Igreja e pela aristocracia como possuidores do direito a vida e reconhecidos como seres humanos, não foram reconhecidos como possuidores de uma vida moral. Todavia, almejavam liberdade e independência pessoal; cultivavam laços de ajuda mútua e de solidariedade; e estabeleceram uma relação íntima com o meio natural (especialmente a terra) e o trabalho, expresso por meio de um universo simbólico e ritualístico diversificado. Estes anseios foram projetados na perspectiva do paraíso, isto é, do mundo de liberdade e de igualdade alcançável na esfera do mundo sobrenatural, divino. 2.3.1. Ética Religiosa A Ética cristã partia de um conjunto de verdades reveladas ao homem por Deus. Estas verdades definiriam Deus como criador do homem e do mundo, das relações que o homem deveria manter com Deus e da vida moral para que os homens pudessem alcançar a salvação no outro mundo. Deus seria um ser pessoal, bom, onipresente, onisciente e onipotente. Deus seria o fim último, bem superior e valor supremo do homem, alcançado por meio da obediência e do cumprimento dos seus mandamentos. A essência da felicidade (a beatitude) seria a contemplação de Deus. Deus encontraria-se acima da sociedade e do Estado ou comunidade política; o amor divino acima do amor humano; e a ordem sobrenatural acima a ordem natural. A doutrina cristã das virtudes incorporaria as virtudes morais fundamentais - que seriam a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça; as virtudes de escala humana voltadas para a regulação das relações entre os homens - que seriam o respeito, o trato e a responsabilidade; e as virtudes supremas ou teológicas - que seriam a fé, a esperança e a caridade. As virtudes de escala 18 divina seriam, portanto, superiores e voltadas para a regulação das relações entre Deus e os homens. A conduta humana de acordo com as virtudes cristãs permitiria ao homem, após a sua morte (no e para o mundo), elevar-se para a ordem divina e sobrenatural, onde encontraria a vida plena, a imortalidade, a felicidade, a perfeição. A Ética cristã introduziria no universo humano a idéia de igualdade entre os homens – visto que todos seriam iguais perante Deus e efetivamente o seriam entre si no paraíso – e a idéia de justiça – visto que não haveria opressão, domínio ou exploração no paraíso. Mas, contraditoriamente, justificaria a desigualdade e a injustiça no mundo real, visto que concebia a igualdade e a justiça como somente possível no mundo sobrenatural. O mundo humano, que seria um mundo fundado e permeado pelo pecado, e de onde decorreria a dor, o sofrimento, a guerra, a exploração, não poderia dar lugar a igualdade e a justiça. Conforme Vasquez, ( 1989, p. 245). (...) o cristianismo deu aos homens, pela primeira vez, incluindo os mais oprimidos e explorados, a consciência da sua igualdade, exatamente quando não existiam as condições reais, sociais, de uma igualdade efetiva, que – como hoje sabemos – passa historicamente por uma série de eliminações de desigualdades concretas (políticas, raciais, jurídicas, sociais e econômicas). Na Idade Média, a igualdade só podia ser espiritual, ou também uma igualdade para o amanhã num mundo sobrenatural, ou ainda uma igualdade efetiva mas limitada no nosso mundo real a algumas comunidades religiosas A Ética religiosa cristã medieval tendeu, enfim, a regular a conduta humana tendo Deus como fim, bem e valor supremo. Para esta Ética a vida moral se realizaria plenamente somente quando o homem alcançasse a ordem sobrenatural. 2.3.2. Ética do Fim no Mundo Medieval Ocidental A Ética do fim manifestou-se por meio de diversos teólogos medievais. Dentre eles destacou-se Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Para Santo Agostinho a purificação da alma e a sua crescente libertação possuía como itinerário a sua elevação até Deus. Tal processo culminaria no êxtase místico ou felicidade, que somente poderia ser alcançado no mundo divino. Santo Agostinho valorizava neste processo a experiência pessoal, a vontade, o amor, a interioridade (Vasquez, 1989, 246). 19 Para Santo Tomás de Aquino Deus seria o objetivo ou fim supremo do homem. A sua Ética foi deduzida deste ponto de partida. A conduta Ética seria a busca da felicidade e da virtude humana como encontro com Deus por meio da razão e da fé. A posse de Deus provocaria gozo ou felicidade, que seria um bem subjetivo. A contemplação (ou conhecimento) do mundo físico e do mundo espiritual seria o meio mais adequado para alcançar o objetivo ou fim supremo, visto que se estaria conhecendo a obra e o amor de Deus. A Ética do fim de Santo Tomás de Aquino foi uma retomada da Ética neoplatônica de Plotino, em que pese o fato de que ambos decorrem de doutrinas filosóficas distintas, respectivamente, Platão e Aristóteles. Isto porque tanto Plotino quanto Santo Tomás de Aquino determinaram a natureza necessária do homem e porque deduziram de tal natureza o fim para o qual a conduta do homem deveria orientar-se. Santo Tomás de Aquino reconheceu o homem como um ser social ou político. No tocante às formas de governo inclinou-se para uma monarquia moderada, embora considerasse que todo o poder derivasse de Deus e o poder supremo coubesse a Igreja. Para Santo Tomás de Aquino o rei não poderia descumprir as leis, nem atentar contra a vida dos súditos. Estes, por sua vez, poderiam resistir ao rei tirano por meio das leis e dos tribunais, mas jamais pelas armas (Vasquez, 1989, p. 246). 2.3.3. A Ética do Móvel no Mundo Medieval Ocidental Na Idade Média a Ética do móvel encontrou-se ausente. Esta ausência decorreu, de um lado, da concepção de um mundo que seria sobre-determinado por Deus, de forma que não haveria livre-arbítrio ou poder de interferência humana na realidade. De outro, a presença da concepção de que a razão, concebida como fruto da graça de Deus, existiria tão somente para que o homem pudesse alcançar Deus. Não houve no Mundo Medieval Ocidental, portanto, espaço para o florescimento de concepções filosóficas fundadas na Ética do móvel. O seu ressurgimento demandou a superação da cultura e mentalidade medieval da cristandade. 2.4. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética 20 O Mundo Moderno Ocidental articulou-se a partir de uma formação social e econômica aristocrática, absolutista e feudal. A revolução urbana e comercial em curso reduzia progressivamente a importância da vida rural e das normas da vida cristã tradicional; o crescente deslocamento da riqueza da terra para o comércio, a manufatura e o banco e as revoltas camponesas ameaçavam o domínio aristocrático; o espírito racionalista, humanista, investigador e manipulador, era responsável pelo abalo dos alicerces da Igreja Católica. Estes processos determinavam a necessidade de um redesenho da ordem aristocrática. No plano social, no início dos tempos modernos, uma ordem social aristocrática fundada nas linhagens, no nascimento e nas ordens sociais foi reformulada e reposta durante a vigência do chamado Antigo Regime. Ao final dos tempos modernos, após um longo processo em que o novo emergiu permanentemente, a ordem social do Antigo Regime (fundada na sociedade de ordens, no Estado absolutista e no mercantilismo) deu lugar a uma ordem social do liberalismo (fundada na divisão da sociedade em classes econômicas, na universalidade dos direitos civis e na livre iniciativa). No plano político, a fragmentação política e administrativa medieval deu lugar a centralização política e administrativa por meio da criação dos Estados nacionais modernos. Emergiu o Estado aristocrático, absolutista e feudal como uma gigantesca máquina política, fiscal e militar para fazer frente a uma dupla ameaça. De um lado, a burguesia em ascensão econômica e moral, mas pressionada pelos impostos e impedida de compor as funções burocráticas civis e militares do Estado, salvo funções ministeriais delegadas pelo rei. De outro lado, os camponeses em rebelião contra o monopólio da terra, as obrigações aristocráticas e clericais (em produção, trabalho ou dinheiro) e os impostos, totalmente impedidos de qualquer participação e decisão política. O Estado constituía-se, enfim, em um instrumento para recolher parte da riqueza burguesa (e das camadas populares) e redistribuí-lo em favor da aristocracia e para preservar a extração da renda da terra gerada pelos camponeses, também em favor da aristocracia. E, ao final dos tempos modernos, a burguesia estendeu o seu domínio econômico à esfera política por meio das revoluções burguesas. O objetivo era imprimir uma nova qualidade ao processo de transformação da sociedade à sua imagem e semelhança. No plano econômico, ocorreu a chamada acumulação primitiva de capital, isto é, o processo de criação das condições para a consolidação das relações capitalistas de produção por 21 meio da separação do produtor direto dos meios de produção (cercamento dos campos com a expropriação/proletarização camponesa) e da centralização do capital (capital-moeda, meios de produção etc) e dos recursos naturais (terra, florestas etc) nas mãos da burguesia e da aristocracia aburguesada. Dessa forma foi, possível transformar em dominante a arregimentação da força de trabalho por meio do assalariamento e a conseqüente extração do sobre-trabalho na forma da mais-valia. A acumulação primitiva de capital, além de lançar as bases do predomínio das relações capitalistas de produção, proporcionou diversas formas de arregimentação de capital na Europa Ocidental, a exemplo do Antigo Sistema Colonial, do tráfico de escravos, da pirataria etc. A acumulação primitiva de capital também teve um grande impulso graças ao desenvolvimento científico que se concretizou na constituição da ciência moderna para a qual concorreu Galileu, Newton, Descartes, entre outros. No plano ideológico-cultural, a religião deixou de ser a forma ideológica dominante e a Igreja Católica perdeu a sua condição de guia espiritual. De um lado, ocorreu a separação daquilo que a Idade Média havia unificado: a razão separou-se da fé (e a filosofia, da teologia); a natureza separou-se de Deus (e as ciências naturais, dos pressupostos teológicos); o Estado separou-se da Igreja (e as doutrinas políticas, dos preceitos sacros); e o homem separou-se de Deus (e a humanidade constituída de autarcia, livre-arbítrio e poder transformador, da determinação divina). De outro lado, ocorreu a afirmação do humanismo individualista burguês, de forma a consolidar a idéia de homem autárquico, constituído de livre arbítrio e que manipularia a realidade em favor dos projetos econômicos, políticos e sociais de caráter pessoal, e a harmonizar esta idéia com a idéia de que a livre iniciativa de todos convergiria para uma integração e satisfação de todos, tão bem expressa pela metáfora da mão-invisível de Adam Smith. A moral burguesa emergida da acumulação primitiva de capital opôs-se a moral aristocrática então dominante. A moral burguesa valorizava o trabalho, a liberdade, a iniciativa pessoal (individualismo), a riqueza, e condenava o fausto, o ócio, a libertinagem nos costumes, o parasitismo, as práticas e artes da guerra etc, legítimos à moral aristocrática. O homem do projeto ideológico-cultural burguês em consolidação deveria ser livre das amarras normativas morais, jurídicas e políticas. O homem concreto e o homem artificial (comunidade política) passou a ter como referências fundamentais a idéia de livre arbítrio na relação homem/Deus, a estrutura jurídico-político-militar do Estado como pré-condição da defesa 22 dos direitos naturais (a vida, a liberdade e a propriedade) e a condição social humana como decorrente do talento e do mérito de cada um. O homem foi revalorizado em sua dimensão pessoal, racional e sensível, e foi concebido como dotado de vontade e iniciativa. Afirmaria o seu valor por meio da política, concebida como manifestação essencialmente humana, da qual o homem determinaria o seu devir histórico, e da nova ciência e da natureza, manipuladas como instrumentos da geração do valor etc. O homem moderno percebeu-se no centro da Política, da Ciência, da Arte e da Moral. Tal percepção libertou a Ética dos pressupostos teológicos medievais e a fez crescentemente antropocêntrica, embora ainda convivesse com um homem tratado por vezes de maneira abstrata e possuidor de uma natureza universal e imutável. 2.4.1. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética do Fim Na Idade Moderna a Ética do fim assumiu novos sentidos. A conseqüência foi a incorporação/superação de sentidos precedentes. Neoplatonismo Moderno Os neoplatônicos de Cambridge retomaram a concepção estóica de que a ordem identificada no universo deveria também ser buscada para dirigir a conduta do homem. Reconduziram, portanto, o caráter inatos das idéias morais, como em geral de todas as idéias ou diretivas da condução do homem (Abbagnano, 1998, p. 381). Romantismo Alemão A Filosofia romântica levou a concepção do caráter inato das idéias morais a um plano mais radical. Fichte, por exemplo, concebeu a doutrina moral como sendo deduzida da autodeterminação do Eu infinito. Assim, o Eu empírico deveria buscar por meio do processo de sua libertação progressiva ad infinitum - libertação dos limites impostos por sua existência material e social concreta e que não se completaria definitivamente - alcançar o Eu infinito. Dessa forma, seria possível transcender as limitações do Eu empírico (Abbagnano, 1998, p. 381). 23 Hegel Hegel, também seguindo o caminho dos românticos alemães, compreendia o processo histórico como manifestação do Espírito Absoluto, isto é, como manifestação do Espírito Absoluto em progressão, sob um contexto rico de determinantes e de contradições. Espírito Absoluto que se apresentaria em uma dimensão objetiva (Estado ou sociedade política), cujo plano orientaria-se pela universalidade e pelo mediato, e uma dimensão subjetiva (sociedade civil ou os homens em sua vida privada), cujo plano orientaria-se pelo particular e pelo imediato. Para Hegel o objetivo da conduta humana seria buscar a integração e perfeição expresso no Estado, instituição que seria a “totalidade Ética”, Deus que se realizava no mundo. A Ética seria, portanto, a Filosofia do Direito (Abbagnano, 1998, p. 381 e 382). O Estado seria o ápice do que ele denomina “eticidade”, isto é, da moralidade que ganharia corpo e substância nas instituições historicamente construídas e que a garantiriam, enquanto que a “moralidade” por si mesma seria simplesmente intenção ou vontade subjetiva do bem. Mas, por sua vez, o bem seria a essência da vontade em sua substancialidade e universalidade, isto é, a liberdade realizada, o objetivo final e absoluto do mundo, ou seja, o próprio Estado. Para Hegel a moralidade seria a intenção ou a vontade subjetiva de realizar o que se acha realizado no Estado. Esta Ética seria, portanto, sistêmica e estadolatra, sendo o conceito de Estado o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada. 2.4.2. O Mundo Moderno Ocidental e a Ética do Móvel Na Idade Moderna a Ética do móvel foi retomada no renascimento e se prolongou até o século XVIII. De certa forma, foi uma decorrência da revalorização da razão, da liberdade e da escolha humana. Individualismo Possessivo 24 A Ética do móvel apresentou uma oscilação entre a tendência de conservação e a tendência ao prazer como a sua base moral. Todavia, não houve grandes contradições ou premissas muito distintas, visto que o próprio prazer foi um indicador emocional das situações favoráveis à conservação. Telésio e Lorenzo Valla expressaram a Ética do móvel sem, contudo, avançá-la em relação ao Mundo Antigo Ocidental. Telésio afirmou que o homem extrairia as normas da Ética do desejo de conservação (sobrevivência), enquanto Lorenzo Valla afirmou que o prazer seria o único fim da atividade humana e que a virtude consistiria em escolher o prazer (Abbagnano, 1998, p. 384). Hobbes Hobbes identificou-se sob alguns aspectos com Telésio à medida que reconheceu como o principal dos bens a auto conservação humana. Mas o ultrapassou sob outros aspectos. Hobbes partiu da compreensão de que os homens não seriam irmãos. Mas inimigos que poderiam matar uns aos outros. Isto porque a natureza provia a que todos os homens desejassem o seu próprio bem, isto é, a vida, a saúde e a segurança, em detrimento dos demais. Isto colocaria os homens em constante conflito entre si. Cansados da guerra e da escassez, os homens almejariam a paz, a segurança e a cooperação. Daí a necessidade que os próprios homens teriam sentido de estabelecer uma esfera pública por meio de um pacto, de forma a deter os impulsos auto-centrados que os moviam. Um pacto, (Hobbes apud Abrão, 1999, p. 238). (...) como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as tuas decisões A Ética do móvel em Hobbes também partiu do princípio de conservação que existe em cada homem e que poderia ser despertada pelo medo e pela razão. Deduzia deste entendimento os fundamentos da moral e do direito. E concluiria: (Hobbes apud Abrão, 1999, p. 233 e 234) 25 E assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico, ocasionado pelas desordens dos tempos presentes, sem parcialidade, sem servilismo, e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação ente proteção e obediência, de que a condição da natureza humana e as leis divinas (...) exigem um cumprimento inviolável Espinosa Espinosa fundou a sua Ética do móvel na idéia de que Deus seria imanente, que faria-se presente em todas as substâncias; que o mundo seria constituído de infinitos modos dos atributos que estão em Deus. Causa e efeito, homem e natureza, matéria e pensamento estariam, portanto, em Deus. Deus, causa de si, livre e imanente, produziria a si mesmo e, com isso, todas as coisas que são modos de seus infinitos atributos. A auto-produção de Deus, por ser perfeito e pleno, efetivaria-se na eternidade, isto é, ocorreria fora do tempo e seria sempre atual. Espinosa contrapunha-se, portanto, à idéia de Deus transcendente, que separaria Deus e mundo como duas substâncias. Para Espinosa, a idéia de Deus como senhor e soberano, superior a tudo e separado de todos (transcendente), seria a origem e justificativa das formas de poder político que submetiam e dominavam os homens. Seria também a origem do temor dos homens mediante os desejos do corpo, da moralidade cerceadora do prazer e da alegria e da vigilância sobre o pensamento. Segundo Espinosa, (Espinosa apud Abbagnano, 1998, p. 384). A razão nada exige contra a natureza, mas exige por si mesma, acima de tudo, que cada um ame a si mesmo, que procure aquilo que seja realmente útil para si, que deseje tudo o que conduz o homem à perfeição maior e, de modo absoluto, que cada um se esforce, no que estiver a seu alcance para conservar o próprio ser. O que é necessariamente tão verdadeiro quanto é verdadeiro que o todo é maior que a parte O senso de agir de acordo com a natureza e a liberdade dirigiu a Ética de Espinosa também para a Política. Para Espinosa a luta entre os homens por sua auto-preservação e pelo domínio sobre os outros homens determinaria o surgimento do Estado. Todavia, o Estado, que seria oriundo da violência entre os homens e que seria também violência cerceadora da violência que o teria originado, poderia desembocar em tiranias e revoluções, isto é, violência que ameaçaria a existência dos indivíduos. 26 A conduta social deveria se orientar pela criação de condições da estabilidade da Política e do Estado. Para tanto, seria necessário assegurar a liberdade de pensamento e expressão, separar o Estado da religião, renovar as funções públicas por meio de eleições e permitir o acesso do povo às armas. Locke A Ética do Móvel em Locke partiu da idéia de que os homens viriam ao mundo como uma folha de papel em branco. As idéias seriam o resultado das experiências vividas, isto é, da trama estabelecida entre o padrão cultural vigente em uma sociedade e as escolhas e opções realizadas pelos homens. A Ética do Móvel em Locke incorporou uma determinada leitura da Política. Para Locke os homens seriam livres, iguais e independentes por natureza. O usufruto deste estado de natureza por cada homem, todavia, não poderia agredir o usufruto deste mesmo estado pelos homens. A existência de homens que não se conteriam sobre os limites próprios a cada um no usufruto dos direitos e circunstâncias do estado de natureza – homens insensatos e irracionais, portanto, depravados – criaria um ambiente que ameaçaria a vida, a liberdade e a propriedade dos homens bons. Estes seriam levados a renunciar a liberdade natural contido no estado de natureza, de forma a entregá-la ao corpo político (governo). Locke compreendia que (Locke apud Abbagnano, 1998, p. 384). (...) Deus estabeleceu um laço entre a virtude e a felicidade pública, tornando a prática da virtude necessária à conservação da sociedade humana e visivelmente vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, não é de surpreender que todos não só queiram aprovar essas normas, mas também recomendá-las aos outros, já que estão convencidos de que, se as observarem, auferirão vantagens para si mesmos A finalidade deste corpo político seria concentrar o direito de julgar e castigar os crimes, de forma a assegurar à comunidade e a cada um dos seus membros a segurança, a vida, o conforto, a propriedade e a paz. Hume 27 No final da Idade Moderna, mais precisamente na segunda metade do século XVIII por meio de David Hume, a Ética do móvel passou a exprimir uma nova tendência. Tendência que se constituiu na defesa de uma Ética altruísta em reação ao individualismo possessivo. Para Hume o fundamento da moral deveria ser a utilidade para o bem comum, isto é, a boa ação do homem seria a ação útil tendo em vista a felicidade e satisfação da sociedade. Como ação útil corresponderia a uma necessidade ou tendência natural e inclinaria a todos os homem a promover a felicidade dos seus semelhantes. Para Hume razão e sentimento constituiriam a moral. Enquanto a razão nos esclareceria a cerca das diversas direções possíveis da nossa ação, o sentimento de humanidade nos permitiria escolher, entre as diversas direções da nossa ação, aquela ação que seria útil e benéfica para promover a felicidade e satisfação da sociedade. A tendência para a conquista do prazer por meio da felicidade do próximo seria o fundamento da moral; seria o móvel fundamental da conduta humana. Kant Kant, tendo em vista o conhecimento, centrou no sujeito a relação sujeito-objeto. O que o sujeito conhece seria o produto da sua consciência. Esta relação também estava presente na abordagem da Moral. Kant concebia o homem como um sujeito cognoscente ou ativo moral. O sujeito, que seria consciência moral, daria a si mesmo a sua própria lei. A Ética de Kant parte do fato da moralidade. Este fato (moralidade) implicaria na responsabilidade do homem sobre os seus atos e na consciência do seu dever. Todavia, esta consciência implicaria admitir que o homem seria livre. Assim, (Vasquez, 1989, 249). (...) dado que o homem como sujeito empírico é determinado casualmente e a razão teórica nos diz que não pode ser livre, é preciso admitir então, como um postulado da razão prática, a existência de um mundo da liberdade ao qual pertence o homem como ser moral A moralidade implicava na questão do fundamento da bondade dos atos. A resposta de Kant foi que (Kant apud Vasquez, 1989, p. 143). 28 Nem no mundo nem também, em geral, fora do mundo é possível conceber alguma coisa que possa considerar-se boa sem restrições, a não ser unicamente uma boa vontade (...). A boa vontade não é boa pelo que possa fazer ou realizar, não é boa por sua aptidão a alcançar um fim que nos propuséramos; é boa só pelo querer, isto é, é boa em si. Considerada por si só, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do que tudo o que poderíamos obter por meio dela Para Kant a boa vontade seria o agir por puro respeito ao dever, seria a sujeição do homem à lei moral. A boa vontade seria, portanto, um mandamento incondicional, universal e absoluto, isto é, um mandamento a que todos os homens, durante todo o tempo e em qualquer período histórico, circunstâncias e condições deveriam cumprir. Esse mandamento, denominado por “imperativo categórico”, foi recomendado por Kant como fórmula de aplicação na vida prática por meio da máxima “age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir se torne uma lei universal”. Para a Ética de Kant o homem teria que ser reconhecido como fim. Ele agiria por puro respeito ao dever e obedeceria apenas a sua consciência moral. Assim, todos os homens seriam fins em si mesmos e, como tais, formariam parte do mundo da liberdade ou do reino dos fins. Seria imoral o mundo concreto que reduz o homem a um meio (fator de produção, mercadoria etc) e que eleva os meios a um fim (capital, poder político etc). Esta Ética possuiu, portanto, um profundo conteúdo humanista e moral. Assim, (Vasquez, 1989, p. 250). A ética kantiana é uma ética formal e autônoma. Por ser puramente formal, tem de postular um dever para todos os homens, independentemente da sua situação social e seja qual for o seu conteúdo concreto. Por ser autônoma (e opor-se assim às morais heterônomas nas quais a lei que rege a consciência vem de fora), aparece como a culminação da tendência antropocêntrica iniciada no Renascimento, em oposição à ética medieval. Finalmente, por conceber o comportamento moral como pertencente a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador 2.5. O Mundo Contemporâneo Ocidental e a Ética Na Europa do final do século XVIII consolidaram-se a sociedade burguesa e o capitalismo por meio, respectivamente, da Revolução Burguesa e da Revolução Industrial. 29 A Revolução Burguesa, iniciada por meio da Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789), evidenciou a crise de hegemonia aristocrático-feudal. Todavia, a ascensão da burguesia à condição de classe dominante não foi acompanhado, imediatamente, pela construção da sua hegemonia. A resistência aristocrática, de um lado, e a presença do movimento proletário com a bandeira vermelha, de outro, despertou o temor da burguesia e da sua representação política. Decorreu deste quadro as formas de regime e de governo não republicano tendo em vista assegurar o domínio burguês – o consulado, o I e II Impérios na França; a Monarquia Parlamentar Constitucional na Inglaterra; o fascismo na Europa do Século XX, etc. Após as Revoluções de 1848 (A Primavera dos Povos) a burguesia buscou um acordo definitivo com a aristocracia e abandonou qualquer veleidade revolucionária. A bandeira tricolor foi abandonada definitivamente. A economia mercantil tornou-se afinal uma economia capitalista. Um mercado de tipo especial se formou: um mercado que não hesitava em recrutar como trabalhadores o exército de homens livres, sem trabalho e sem meios de sobrevivência, que vagava pela Europa, em conseqüência das mudanças sociais advindas com o cercamento dos campos. O mercador transformou-se, portanto, em capitalista quando, enfim, passou a converter a força de trabalho em mercadoria, assalariá-la sob contrato de trabalho e submetê-la a uma intensa espoliação econômica. Este foi um passo único na história da humanidade. A partir daí, as paisagens transformaram-se rapidamente: primeiramente chaminés, trens, ruas, edifícios, movimento; mais tarde complexos industriais e comerciais, metrópoles, nova revolução nos transportes, telecomunicações. As grandes cidades multiplicaram-se. O rural foi urbanizado. Estabeleceram-se novas relações entre os homens, a natureza e os objetos (coisificados). O capitalismo concorrencial e de livre iniciativa, que nasceu com a Revolução Industrial, se esgotou no final do século XIX. O capitalismo monopolista, por sua vez, nasceu a partir de então e se estendeu aos dias atuais. Dessas mudanças surgiu a crise do liberalismo, isto é, da concepção, teoria e ideologia valorizadora da iniciativa individual, do livre mercado e da sociedade contratual como elementos fundamentais das transformações sociais. A crise do liberalismo e a competição imperialista deu lugar a ascensão do fascismo, da corrida armamentista e das guerras regionais e mundiais. 30 Ciência para o capital, razão instrumental e lógica do valor: uma mentalidade marcada pela mercantilização do mundo natural e social, pelo espírito de acumulação, pelo individualismo assumiu dimensões sem precedentes. Um novo modo de vida, tipicamente burguês e urbano, que assumiu uma forma “acabada” no “American way of life”, se impôs em escala mundial. Porém, o capitalismo trouxe no seu próprio ventre as forças sociais e políticas da sua contestação: o proletariado. Vivendo em um intenso processo de dominação política, exploração econômica e opressão ideológica, esta nova classe começou a travar lutas por melhores condições de vida. Capitalismo e Contestação do Mundo do Trabalho As condições de trabalho da classe operária foram as piores possíveis na primeira metade do século XIX. Longas jornadas de trabalho, salários aviltantes, trabalho infantil, e assim por diante Neste contexto, tendo a Inglaterra como referencia formou-se, no início do século XIX, a primeira expressão de uma consciência de classe de cunho economicista e corporativo, o Ludismo. A revolta contra o patrão e o desemprego culminaram na destruição de máquinas e equipamentos. Mas a violência patronal por meio de grupos armados e leis de Estado que condenaram à forca operários presos invadindo fábricas ou destruindo máquinas debelaram estes movimentos. Posteriormente, teve lugar o Cartismo, que consistiu no envio de cartas e petições para que o parlamento se conscientizasse da situação da classe operária e adotasse leis de proteção do trabalhador. Embora igualmente economicista e corporativo este movimento possuiu a virtude de incorporar a intervenção institucional como forma de luta, sob uma unidade de ação de classe. A expansão da indústria moderna, o triunfo ideológico-político da concepção liberal de sociedade e o pequeno resultado prático do movimento cartista o esvaziou ao final dos anos 40 do século XIX. O movimento trade-unionista, isto é, o movimento sindical teve início a partir de meados do século XIX. Nascidos das caixas de solidariedade criadas pelos trabalhadores para socorrer emergências como enterro, amparar órfãos, socorrer um enfermo, etc, desenvolveu-se enquanto organismo de defesa de classe circunscritos fundamentalmente à esfera econômica. 31 Por meio destas lutas nasceram e/ou consolidaram o anarquismo moderno e o socialismo, doutrinas sociais que criticavam e contestavam a desumanidade do capitalismo. Todas essas corrente políticas, denominadas de esquerda, foram radicalmente contra a primazia do lucro sobre a vida e o bem-estar do homem. Por isto seus adeptos pensaram em formas de construir uma nova sociedade e tentaram colocar estes objetivos em prática. O socialismo real nasceu em lugar aparentemente improvável, a Rússia Czarista, por meio da Revolução Russa de 1917. Posteriormente, se estendeu para países e continentes. Liberalismo, Cidadania e Estado A teoria liberal expressou-se como movimento político no processo da Revolução Francesa. Sucumbiu uma sociedade política fundada na idéia de mundo ordenado, na forma de uma hierarquia divina, natural e social e na organização feudal (pacto de submissão do vassalo ao amo). A idéia de direito natural (relações entre indivíduos fundada na liberdade e igualdade oriundas do Estado de Natureza) e de contrato social (relações de pacto estabelecidos por indivíduos livres e iguais), sucumbiu, também, a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante. O indivíduo foi concebido como a origem e destinatário do poder político, nascido de um contrato social racional e livremente estabelecido, onde as partes cederiam um nível de poder, mas não alienariam a sua individualidade contido no Estado de Natureza, isto é, a vida, a liberdade e a propriedade. O poder teria a forma ideal e clássica do Estado republicano impessoal, no qual o parlamento (poder legislativo), expressão dos interesses dos cidadãos e composto por meio do sufrágio, controlaria o governo (poder executivo) e a magistratura (poder judiciário). O Estado, por meio da lei e da força determinados pelos proprietários privados e seus representante, foi concebido como instrumento político-institucional-burocrático-militar que garante a ordem pública. As suas funções seriam: 1) assegurar o direito natural de propriedade e a liberdade dos sujeitos econômicos no mercado por meio de leis e da coação policial-militar; 2) arbitrar os conflitos que se desenvolvem no âmbito da sociedade civil por meio das leis e da coação policial-militar; e 3) legislar e regulamentar a esfera pública sem, contudo, interferir na consciência dos cidadãos. 32 As Novas Morais A consolidação da burguesia como classe e a efetivação do seu domínio, em especial a partir do século XIX, determinou uma transformação da moral burguesa. Esta moral, que como qualquer outra moral conviveu com uma distância entre os seus fundamentos e as práticas sociais concretas por ela orientadas e com uma influência direta da moral dominante com a qual conflitava, perdeu seus elementos de progressismo moral. A “nova” moral burguesa incorporou elementos da velha moral aristocrática como a busca do conforto material, a valorização do ócio e do parasitismo social etc, e desenvolveu outros elementos como a dissimulação, o formalismo, o cinismo, o chauvinismo, a institucionalização do comportamento humano etc. A atuação desta “nova” moral burguesa sob o mundo do trabalho, em especial sobre o proletariado urbano, possuiu grande significado. Atuação esta que assumiu um poder estruturador e propagador moral ainda maior devido aos processos de alienação e desumanização que o trabalhador estava submetido, frutos da tecnologia de produção e dos métodos de planejamento e racionalização do trabalho. Além da imposição da perspectiva do conforto burguês (consumismo, abastança material etc), do concorrencialismo, do individualismo, da obsessão pelo trabalho, observamos mais recentemente a moral cultuadora do corporativismo de empresa (o trabalhador como parte da empresa, a empresa com seus símbolos e ritos etc), do compromisso moral do trabalhador para com a empresa etc. As classes e grupos sociais que compõe o mundo do trabalho também elaboraram a sua moral. Por meio da sua experiência social no trabalho, da sua organização político-sindical, das suas publicações, das lutas sociais, dos seus intelectuais orgânicos etc, os trabalhadores reuniram elementos de conduta moral alternativos como a solidariedade, a progressiva igualdade de gênero e étnica, a identidade de classe etc. A homogeneização/unificação destes elementos de conduta moral alternativos, viveram fluxos e refluxos na direta relação com as transformações produtivas, a intensidade e qualidade da interferência da mídia na sociedade, as formas e qualidades da organização das lutas sociais, e assim por diante. O Mundo Contemporâneo Ocidental conheceu, ainda, a emergência de concepções filosóficas e políticas que incorporava perspectivas de classes e grupos sociais subalternos. A contestação da ordem social e econômica, das estruturas de poder, dos padrões culturais, da relação com a natureza, eram algumas temáticas provocas pelas referidas concepções. 33 No plano filosófico, a Ética contemporânea foi uma reação contra o formalismo kantiano e o racionalismo absoluto hegeliano, no sentido de salvar o concreto. Como características gerais desta reação podemos identificar: a) a defesa do homem concreto (o indivíduo para o existencialismo; o homem social para Marx), em face do formalismo de Kant e do universalismo abstrato de Hegel; b) o reconhecimento do irracional no comportamento humano, em face do racionalismo absoluto de Hegel; c) a procura da origem da Ética no próprio homem, em face da sua fundamentação transcendente (Vasquez, 1989, p. 251 e 252). 2.5.1. O Mundo Contemporâneo Ocidental e a Ética do Fim Na Idade Contemporânea a Ética do Fim expressou sentidos Éticos tradicionais e novos. Novas continuidades e descontinuidades puderam ser observadas. A Retomada da Ética Tradicional do Fim Green ateve-se à Ética tradicional. Segundo Green, a consciência infinita, Deus, seria ab aeterno, tudo o que o homem teria a possibilidade de vir a ser, ou seja, o Bem ou Fim supremo, que seria o objeto da boa vontade humana. Caberia a razão a tarefa de concebê-lo e de colocá-lo como fundamento de sua lei. Querer o Bem significaria querer a Consciência Absoluta e procurar realizar o que estaria presente nela. Croce também ateve-se à Ética tradicional quando admitia que a atividade Ética seria “volição do universal”. Universal que seria Espírito; que seria Realidade enquanto verdadeiramente real, enquanto unidade de pensamento e vontade; que seria Vida apreendida em sua profundidade como unidade; que seria Liberdade enquanto realidade concebida em perpétuo desenvolvimento, criação, progresso. Assim, agir moralmente significaria querer o Espírito infinito, assumí-lo como um Fim, o que representaria um retorno a Ética (tradicional) do Fim que recorria à Realidade ou ao Ser. Bergson 34 Bergson buscou uma definição moderna e alternativa da Ética do Fim. Bergson distinguiu a moral fechada da moral aberta. Por moral fechada compreendia aquela que correspondia aos impulsos naturais de conservar da sociedade. Por moral aberta compreendia aquela que correspondia ao movimento fundado na emoção, no entusiasmo e no instinto e que expressaria o impulso renovador da conduta humana que coincidia com o impulso criador da vida. Para Bergson a dualidade de forças representadas pela pressão social e pelo impulso de amor seriam manifestações complementares da vida. Estas forças estariam normalmente dedicadas à conservação da forma social sobre a qual organizava a sociedade humana desde os seus primórdios, mas que também poderiam, excepcionalmente, transfigurá-la por meio de indivíduos que expressariam um esforço de desenvolvimento de criação humana. A Ética de Bergson seria uma Ética do Fim na medida em que do ideal de renovação moral deduzia a existência de uma força destinada a promover essa renovação, assim como do conceito de “sociedade fechada” deduzia a noção de moral corrente. Scheler Na filosofia contemporânea a noção de valor começou a substituir a de bem, embora tenha sido subtraído dele mesmo. A noção de valor incorporou três características, a saber: a) objetividade; b) simplicidade (indefinível, indescritível e qualidade sensível elementar); c) necessidade ou problematicidade. É necessário que se observe o fato de que as doutrinas Éticas que reconheceram a necessidade do valor enquanto absolutidade, eternidade etc, teve estreito parentesco e correlação com as doutrinas Éticas do Fim, enquanto que as doutrinas que reconheceram a problematicidade do valor teve estreito parentesco e correlação com as concepções Éticas da motivação. Scheler, fundando a sua doutrina da Ética do Fim na necessidade do valor, afirmou que as apetições (aspirações, impulsos ou desejos) teve seus fins em si mesmas, isto é, no sentimento (anterior ou contemporâneo) dos seus componentes axiológicos. Os fins da apetição poderiam tornar-se real, isto é, em termos de uma experiência objetiva. Mas os valores seriam dados anterior e independentemente, tanto em relação aos fins quanto em relação aos propósitos. Os 35 valores seriam dados, ainda, independentemente de tais fins e propósitos, bem como das preferências dos valores, isto é, da sua hierarquia. Para Scheler, portanto, a Ética não se fundaria na noção de bem nem na noção de fins imediatamente presentes na aspiração ou em propósitos deliberadamente almejados. Fundaria-se na intuição emotiva, imediata e infalível dos valores e das suas relações hierárquicas. Intuição esta que seria a base de qualquer aspiração, desejo e deliberação voluntária. Para Scheler os valores e a própria hierarquia dos mesmos seria independente da escolha humana. Toda escolha seria pressuposta pela escolha, quer esta se conformasse ou não a ela. Nietzsche Para Nietzsche os valores e a própria hierarquia dos mesmos seria também de todo independente da escolha humana. Para Nietzsche, todavia, seria a hierarquia dos valores vitais, dos valores em que se encarna a Vontade de Poder. Nietzsche criticou a moral corrente e enxergou nela formas camufladas de egoísmo e hipocrisia. Daí o seu imoralismo constituir-se tão somente na proposta de uma nova tábua de valores, fundada no princípio de aceitação entusiástica da vida, na preeminência do espírito dionisíaco. Pretendeu, enfim, substituir as virtudes da moral tradicional pelas novas virtudes em que se exprimisse a vontade de potência. Para Nietzsche seria virtude toda paixão que dissesse sim à vida e ao mundo, de forma a buscar altivez, alegria e saúde; amor sexual, inimizade e guerra; veneração, belas aptidões, boas maneiras, vontade forte, disciplina da intelectualidade superior, vontade de potência, reconhecimento para com a terra e para com a vida. O que seria rico e queria dar, queria recompensar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la. Nietzsche considerou a natureza do homem como sendo a vontade de potência, de forma a deduzir dela a tábua de valores morais que deveriam dirigir o homem para a realização da vontade de potência em um mundo de super-homens. 2.5.2. O Mundo Contemporânea Ocidental e a Ética do Móvel 36 No Mundo Contemporânea Ocidental a Ética do Móvel conviveu com progressos importantes. Todavia, eles ocorreram por meio das concepções Éticas fundadas na dialética materialista. Ética Positivista No século XIX filósofos positivistas (ou sob sua influência), agora sob uma concepção utilitarista de uma sociedade capitalista e burguesa consolidada, pretenderam apreender ou desenvolver uma ciência exata da conduta humana. Pretendeu-se abordar a moral como se abordava as ciência naturais e, a partir daí, fazer uma moral como se faz uma física experimental. Bentham, o grande inspirador da ação reformadora do liberalismo inglês e da doutrina do liberalismo político, foi talvez o representante mais expressivo desta concepção da Ética do Móvel. Bentham partiu do entendimento de que os prazeres e as dores comporia os pontos de partida da moral e da conduta humana. Estes fundamentos poderiam permitir uma ciência da moral com a exatidão matemática, isto é, seria possível um cálculo dos prazeres e das dores em que repousa o comportamento moral do homem, de forma a balizar as legislações futuras que normatizariam a conduta humana. Comte recuperou um sentido altruísta da moral. Afirmou que o princípio moral fundamental seria viver para o bem de todos e que a educação poderia se constituir em um meio para dominar os instintos egoístas dos indivíduos. Spencer recuperou um sentido de auto-conservação hobbesiano e lhe deu um conteúdo de Ética biológica. Afirmou que a moral seria a forma da adaptação progressiva do homem às suas condições de vida e que o homem concebia como moral o resultado de experiências repetidas e acumuladas por meio de inúmeras gerações. Para Spencer, portanto, as experiências propiciariam ensinamentos ao homem no seu processo de adaptação às suas condições vitais. As ações humanas elevadas e necessárias ao desenvolvimento harmônico da vida chegariam a atingir um ponto tão comum quanto o seriam as ações humanas inferiores impelidas pelo desejo. Neste estágio, a antítese entre egoísmo e altruísmo seria superada. 37 Russell Russell afirmou que a Ética não continha afirmações verdadeiras ou falsas. A Ética consistiria de desejos de certa espécie geral, definidos a partir de uma perspectiva pessoal e subjetiva. Estes desejos poderiam ser reforçados ou dirimidos (ou mesmo destruídos) de acordo com a busca pessoal da felicidade ou o equilíbrio da vida. Russell, a nosso ver, conduziu a discussão da Ética para o campo do relativismo e do subjetivismo quando reconheceu nos juízos Éticos de quem fala sentimentos que anulariam critérios que poderiam determinar a sua validade. Isto porque a sua Ética nada teria a ver com os desejos (ou necessidades) sociais concretos, de forma que aboliria motivos ou critérios socialmente construídos para que se definisse porque uns desejos deveriam prevalecer sobre outros. A Ética do móvel em Russell perdeu algo importante da Ética inglesa tradicional de linhagem benthamiano que seria a disciplina na escolha dos desejos, isto é, identificar as alternativas possíveis para conduta humana. Pragmatismo ou Utilitarismo O Pragmatismo ou Utilitarismo como filosofia e concepção Ética desenvolveu-se no final do século XIX e início do século XX na esteira das grandes transformações representadas pelo progresso científico, pelo racionalismo burocrático de empresa, pelo conforto burguês urbano, pela mercantilização das necessidades, atividades e desejos humanos. Constituiu-se em uma reação à filosofia especulativa, existencialista e social, na medida em que se ocupa de problemas, respectivamente, práticos, utilitários e pessoais. Assim, (Vasquez, 1989, p. 255). O pragmatismo caracteriza-se pela sua identificação da verdade com o útil, no sentido daquilo que melhor ajuda a viver e a conviver. No terreno da ética, dizer que conduz eficazmente à obtenção de um fim, que leva ao êxito. Por conseguinte, os valores, princípios e normas são esvaziados de um conteúdo objetivo, e o valor do bom – considerado como aquilo que ajuda o indivíduo na sua atividade prática – varia de acordo com cada situação O Pragmatismo ou Utilitarismo reduz o comportamento moral aos atos que proporcionam êxito pessoal, e, por sua vez, rejeita a existência de valores ou normas objetivas. De um lado, 38 expressa a retomada, em alguma medida, do egoísmo Ético, e, de outro, manifesta uma nova versão do subjetivismo e do irracionalismo. Dewey, com vínculos com a filosofia do valor, afirmou que os valores seriam objetivos, simples e indefiníveis. Seriam qualidades imediatas que somente poderiam ser preferidos ou preteridos em virtude de procedimento crítico e reflexivo. Para Dewey os valores poderiam ser substantivos ou fugazes, positivos ou negativos, mas jamais absolutos ou necessários. Daí a importância da crítica filosófica para interpretar acontecimentos e permitir que deles se retirasse instrumentos e meios para a realização dos valores, bem como a sua constante renovação. Para Dewey abandonar a busca do valor absoluto e imutável poderia parecer um sacrifício. Todavia, esta renúncia seria pré-condição para o empenho em uma vocação vital para o indivíduo, qual seja, a identificação dos valores que poderiam ser garantidos e compartilhados por todos, na medida em que estariam vinculados aos fundamentos da vida social. O Marxismo É possível apreender, por meio da reflexão dialética de caráter filosófico e político de Marx, uma concepção Ética que incorporou o humanismo kantiano, o universalismo racionalista hegeliano e o materialismo feuerbachiano. Mas que, todavia, superou, respectivamente, o formalismo, o idealismo e o materialismo mecanicista contido naquelas Éticas. Para Marx o homem seria um ser real, isto é, unidade indissolúvel entre espírito e matéria, teórico e prático, subjetivo e objetivo. O homem seria um ser da práxis, isto é, por meio da ação prática e refletida sobre o mundo transforma-o e, transformando-o, transforma a si mesmo. O homem seria um ser social, isto é, produz relações sociais de produção sobre as quais outras relações sociais são erguidas. O homem seria um ser histórico, isto é, as relações materializadas em uma formação econômico-social concreta, fruto de um longo curso histórico, convive com transformações contínuas motivadas por contradições que lhes seriam intrínsecas, e que poderiam ser evolucionárias – que ocorreriam em uma estrutura que se conservaria, embora estivesse sob constante remodelação – e/ou revolucionária – que romperia com a estrutura vigente e que geraria uma nova estrutura. E o homem estaria submetido a um processo histórico-social objetivo 39 e inevitável, isto é, um processo do qual não poderia se alienar e não estaria por ele totalmente determinado, mas no âmbito do qual poderia criar o possível. A concepção Ética de Marx, posteriormente desenvolvida por outros pensadores e que passou a integrar a chamada “filosofia marxista” ou “filosofia da práxis”, permitiu conceber a Moral de uma forma peculiar e original. Para o marxismo a Moral expressaria um caráter de classe e constituiria em parte da superestrutura, isto é, do universo político, jurídico e ideológico da sociedade. Nesse sentido cumpriria a função social de legitimar e justificar as relações sociais e as condições de existência dos indivíduos, segmentos e classes sociais de acordo com a perspectiva da classe dominante. A Moral na sociedade se expressaria por meio da coexistência de uma diversidade de expressões morais. Tal realidade decorreria da desigualdade social, o que impediria subsistir um sistema moral único. Qualquer tentativa de alcançar uma universalidade moral sob o clivo da desigualdade social não passaria de uma tentativa de ocultar uma moral particular e de impô-la aos outros. A Moral dominante em cada sociedade ou em cada classe social agregaria, objetivamente, de forma contraditória e conflituosa, elementos de conduta moral negativos e positivos, superados e atuais. Este processo, que seria dialético, definiria, ainda que com períodos de recuo, a conquista de uma moral verdadeiramente humana e universal. A Moral seria construída em função da necessidade objetiva dos homens, sob uma determinada formação econômico-social concreta. Portanto, a Moral seria sempre fruto de um processo histórico complexo, conflituoso e datado. A Moral poderia ser concebida sob uma práxis revolucionária, tendo em vista a transformação radical da sociedade. Para tanto, deveria superar o moralismo utópico e ingênuo – para assegurar que a ação política tenha potência – e preservar preceitos morais calcados na equidade, na justiça – para assegurar a legitimidade da ação política. A Moral necessária à transformação social exigiria, ainda, a responsabilidade e o compromisso para com a luta contra a barbárie social. Barbárie esta que, por exemplo, poderia se materializar por meio de um fascismo social - no contexto da sociedade hiper-tecnológica e excludente – ou de um brutal regresso tecnológico e social – no contexto de uma crise estrutural da sociedade capitalista e burguesa, mas sem que o mundo do trabalho possa apresentar uma alternativa política e social. 40 Existencialismo Kierkegaard se interessou pela abordagem do indivíduo pelo que ele realmente seria, isto é, pela sua subjetividade. E, neste âmbito, recusou a explicação puramente racional, objetiva, de linhagem hegeliana, marxista e positivista da existência individual. Para Kierkegaard o indivíduo existiria unicamente no seu comportamento plenamente subjetivo. Esta existência individual apresentaria três estágios, que seriam o Estético, o Ético e o Religioso. Para ele, (Vásquez, 1989, p. 253). O estágio superior é o religioso, porque a fé que o sustenta é uma relação pessoal, puramente subjetiva, com Deus. O estágio ético ocupa um degrau inferior, embora acima do estético; e, no ético, o indivíduo deve pautar o seu comportamento por normas gerais e, por isto, perde em subjetividade, ou seja, em autenticidade. Porque ainda não garante a conquista do homem concreto como indivíduo radical, que só se alcança na religião, a ética não passa de sua ante-câmera . Para Sartre não existia nem Deus, nem uma dimensão supra humana. Portanto, não existiriam valores, princípios ou normas que possuíssem objetividade, transcendência ou universalidade para dirigir o comportamento humano. O homem não possuiria, à priori, fundamento de valor que o dirigisse. O homem seria um ser sem ração de ser e entregue a si mesmo. Para Sartre o homem seria, portanto, liberdade. Por meio da liberdade materializaria o que escolheu ser. A liberdade seria a única fonte de valor do homem, isto porque lhe permitiria escolher e, esta escolha, implicaria na definição e qualificação de valor para si mesmo. Como cada homem deveria criar ou inventar os valores ou as normas que guiarão o seu comportamento, o valor de cada ato humano seria avaliado na relação direta com o seu grau de liberdade que realizaria. Conforme Vasquez, ( 1989, p. 254). Cada ato ou cada indivíduo vale moralmente não por sua submissão a uma norma ou a um valor estabelecido - assim renunciaria à própria liberdade -, mas pelo uso que faz da própria liberdade. Se a liberdade é o valor supremo, o valioso é escolher e agir livremente 41 A aproximação de Sartre com o marxismo o levaria a conceber o homem como um ser social. Dessa forma, o exercício da liberdade pessoal como fim também tem que ter como fim a liberdade dos outros, de forma que o homem individual comprometeria-se com a liberdade da humanidade. Para Sartre a vida seria uma constante escolha e compromisso realizada sob o valor supremo da liberdade. 42 43 II PARTE INCURSÕES FILOSÓFICAS SOBRE ÉTICA E POLÍTICA A Arte do Viver José Américo Pessanha Para entendermos a ética no seu sentido antigo é preciso primeiro lembrar de Foucault. Michel Foucault foi exatamente quem insistiu muito nisso, que se o homem antigo, estou me referindo no caso ao homem grego antigo, ele na verdade buscava na ética uma estética da existência. Existência e Estética O que as diferentes éticas propõem são, na verdade, caminhos de aperfeiçoamento e caminhos de realização de um artesanato que tanto podia ser pessoal como até político. Mas que visava sempre uma espécie de estilo, uma estilização da vida, portanto uma estética da existência. Por outro lado, vale lembrar que essa estética freqüentemente tomou como referencial a própria beleza inscrita no cosmos e há toda uma linhagem, da qual a gente vai falar daqui a pouco, que exatamente apregoa que o homem se transforme eticamente na medida em que ele vai se tornando cosmos, ou seja, na medida em que ele vai conquistando para a sua realidade pessoal a beleza e a ordenação que estariam dadas exemplarmente na própria organização do cosmos. Pitágoras Uma corrente das primeiras linhagens filosóficas se desenvolve na Grécia antiga que é a linhagem pitagórica, vai exatamente colocar a questão Ética nesses termos. O universo e a visão dos astros, sobre tudo a dos astros noturnos confirma isso. O universo parece revelar uma tranqüilidade, uma serenidade, uma repetição, uma circularidade, uma beleza, uma ordem que 44 seria, de certa maneira, um modelo, um paradigma, que o homem, na sua dimensão pessoal e até na dimensão política, deveria tomar como sua grande referência. Ordenar-se, tornar-se virtuoso, conquistar um bem, uma excelência, transformar-se em alguém dotado de virtude, de virtuosismo, de arete, como diziam os gregos, seria de certa maneira nessa tradição que veio dos pitagoricos, trazer para a vida pessoal, trazer também para a cidade essa ordem e essa beleza que o cosmos revela. Ora, na verdade, essa questão da estética da existência vai conhecer no mundo antigo varias linhas, vários estilos. Vão ser propostas várias maneiras do homem se ordenar, ganhar excelência, ganhar virtude, o virtuosismo e conquistar um bem. O que é um bem para o homem? É essa a questão central da Ética antiga. Para podermos entender, melhor talvez, a gente deva fazer algumas distinções. A forma mais antiga que nós conhecemos sobre Ética vem dos primeiros documentos que ficaram registrados, que literariamente passaram a ser a tradição inaugural do ocidente que são as epopéias homéricas. Homero Ai nós verificamos que a Ética, a excelência está identificada à situação natural, espontânea de determinadas pessoas que são aquelas que são chamadas por isso mesmo aristoi são os bons, os belos, os melhores. E essas pessoas são boas, belas e melhores, possuem, portanto, um bem que lhe é outorgado, que lhe é transmitido pela estirpe, pelo sangue porque eles são exatamente os nobres, são os descendentes das grandes famílias, dos heróis, alguns até se consideram descendentes dos deuses. Essa é uma ética obviamente aristocrática que permite que o bem nascido, o de sangue nobre seja considerado de fato e de direito, simultaneamente de fato e de direito, como alguém dotado de excelência. Ele não precisa provar isso, ele precisa apenas manifestar isso. Ele não precisa conquistar um bem, um estilo nobre melhor de ser, ele precisa simplesmente dar expansão a essa nobreza que lhe é inerente porque é inata. 45 Hesíodo Só que nós vamos encontrar, na Grécia mesmo, no século VIII a.C., a formulação explicita de uma nova proposta, de uma nova maneira de entender esse estilo e essa nova nobreza que é aquela que aparece expresso nos poemas de Hesíodo. É uma contraposição frontal, Hesíodo não vai defender uma proposta aristocrática, ao contrário, ele vai dizer o tempo todo que a arete, a virtude, o virtuosismo, a excelência é resultado de um esforço, de uma labuta, é uma conquista. O homem não é bom, belo, melhor por uma questão de nascimento, pelo pertencimento a uma certa genealogia, ele se torna bom ou não, ele se torna virtuoso ou não e para tornar se virtuoso, para adquirir um bem, ele tem que desenvolver um certo tipo de luta que é aquilo que Hesíodo chama a boa luta, a luta do esforço, a luta do trabalho, não só o trabalho sobre o mundo para conquistar uma melhor condição de vida, mas um trabalho também interior para conquistar uma melhor situação, uma mais bela situação individual. Há uma outra diferenciação que precisa ser feita. Esse trabalho, essa estilística, essa estética da existência, essa criação de uma obra de arte no campo da conduta humana é uma coisa que se pode fazer apenas no âmbito pessoal ou se pode e se deve fazer também no âmbito da cidade, da Pólis, da sociedade, portanto no âmbito político? Pólis Cruzando essas quatro vertentes: a concepção de virtude identificada à nobreza; a concepção de virtude identificada ao resultado de um certo tipo de esforço e a um certo tipo de trabalho; a concepção de virtude como uma ação estritamente no campo pessoal; ou a concepção de virtude como também envolvendo a esfera política, nós podemos encontrar referenciais para entendermos as variantes dessas estilística que é sempre o trabalho ético, segundo o homem antigo. 46 Corpo Percebe-se que o corpo vivo pode tanto manifestar saúde e beleza como ele pode também manifestar doença e feiura. E ele é saudável e belo quando na verdade todas as suas partes estão se desenvolvendo e funcionando de maneira correta e ao mesmo tempo de maneira integrada. A saúde, do ponto de vista da alma, do ponto de vista da realidade interior do homem, como a saúde do ponto de vista da cidade, também em grande parte vão ser fundamentados no modelo da saúde do corpo e da beleza do corpo. A metáfora do corpo saudável vai ser fortíssima para a construção dessas estilísticas diferentes que vão ser os vários sistemas filosóficos voltados para a Ética. Por outro lado, o homem se percebe como um ser em trânsito, como um ser navegante, como um ser itinerante. O grego tem uma concepção muito clara disso, ele sabe que a sua dimensão é a dimensão temporal, por isso o tempo todo ele se chama de mortal, muito mais até do que humano, em contraposição àqueles que são divinos porque imortais, ainda que concebidos à semelhança do homem, os deuses são sobretudo deuses porque seriam imortais e escapariam à vicissitude da temporalidade e escaparia à morte. O ser humano, ao contrário, é um ser que se constitui no tempo, que existe no tempo e durante algum tempo, que navega no tempo, que realiza uma viagem dentro do seu espaço, dentro do seu território. Esse território, esse espaço de duração limitado, é a sua moira. Só que essa navegação dentro de um espaço limitado, que é o espaço da vida, que é o espaço do tempo da vida é uma navegação que precisa ter, exatamente, um certo rumo se ele quer construir um caminho voltado para o bem e para o belo, se ele está construindo um caminho de virtude. É natural, portanto, que aquele povo antigo, que por sua vez vivia no mar freqüentemente e do mar sempre que tinha uma civilização que estava toda ela vinculada à navegação, às viagens e ao comércio, que é o povo grego. Técnica de Vida É natural que esse povo quando fosse pensar sobre a sua própria vida enquanto itinerância dentro de um tempo limitado, percebesse que era indispensável haver uma técnica de navegação, que era 47 uma técnica de vida, ou dizer de outra maneira, trazer para a vida a mesma exigência de rumo certo, de rumo correto para que as peripécias pudessem ser desenvolvidas de uma maneira satisfatória. Ou seja, a metáfora da navegação é uma metáfora fundamental como a metáfora do corpo, e a cidade é entendida, por exemplo, por Platão, como se verá daqui a pouco, como uma grande nau que exige que cada um nela exerça uma certa função muito bem delimitada, muito bem desempenhada, mas é preciso também que haja alguém capaz de lidar com o leme e estabelecer um rumo certo. Se isso vale para a cidade, dirão outros éticos, vale obviamente para a condição de cada um, porque cada um tem, se não a nau da cidade para dirigir, tem uma nau interior para comandar. A ética, quer na dimensão em que ela transborde em política, quer na dimensão em que ela se restringe ao campo pessoal e mesmo à esfera subjetiva interior, ela tem por isso mesmo na navegação também um paradigma e um modelo extremamente rico, extremamente fecundo que alguns pensadores vão explorar. Epicuro A escolha de Epicuro para representar a Ética antiga tem vários motivos. Em primeiro lugar, a sua grande importância, sem dúvida alguma um dos maiores pensadores éticos de toda a história do pensamento, embora muito mal conhecido, freqüentemente deturpado, e por outro lado, a sua extraordinária atualidade. Se ele impressionou o jovem Marx e ajudou Marx na sua juventude a perceber o sentido da liberdade como libertação interior, como desalienação, hoje ele continua extremamente importante para nós, porque em grande parte a sua Ética é um ensino de virtuosismo pessoal para que se possa ser feliz, ser sereno, ter prazer, mesmo na adversidade. Epicuro viveu no século III a.C., numa Grécia que não era mais uma Grécia livre, uma Grécia que não conhecia mais aquelas cidade, cada qual tendo o direito de desenvolver a sua própria política, o seu próprio regime, a sua própria forma de vida, mas ao contrário, uma Grécia que no seu tempo já fazia parte do grande Império Macedônio, desde a vitória de Queronéia, quando os macedônios dominam a Grécia, com Felipe, depois com Alexandre. A Grécia não era mais aquele mosaico de cidades, de Póleis, capazes de cada uma ter a sua própria experiência e a sua própria 48 fisionomia cultural. Agora não. Era mais um pedaço de um grande império, que é o Império Macedônio, que estendia até a Ásia. Nesse momento, não se pode mais pretender, como Platão pretendera antes, fazer com que a meta final da criação Ética fosse a reforma das cidades, a procura de que a Pólis reespelhasse, ela também, a beleza e a harmonia do cosmos. Não, no tempo de Epicuro não há mais aquele sentido de cidadania, que a democracia ateniense permitira a alguns que eram considerados cidadãos, não há mais a condição de se reunir os chamados cidadãos em uma assembléia para discutir e forjar as leis. Agora as leis emanam de cima, vêm diretamente da vontade de Felipe ou de Alexandre, e todos são súditos desse soberano e têm que se curvar à sua vontade. Não há mais liberdade política, mas, por outro lado, mostra Epicuro, mesmo nesses momentos de repressão, nesses momentos de cerceamento da liberdade pública, há todo um universo a ser trabalhado e a ser conquistado que é o interior que pode ser ele um processo de libertação pessoal. Epicuro expressa o seu tempo e afirma que num tempo de adversidade, mesmo assim o homem pode e deve ser feliz, o homem pode e deve procurar o prazer, porque ele nasceu para a felicidade e é para isso que ele esta destinado. Saúde da Alma Ele mostra, porém, que esse prazer, essa felicidade, esse bem, que agora é um bem num sentido estritamente pessoal, tem que ser conquistado distante das turbulências da sociedade, distante do universo político porque a grande nau que se tem agora que pilotar é na verdade a nau interior, e se esta procurando uma saúde tem que ser uma saúde da alma. E essa saúde da alma é aquela conquistada pelo afastamento da ignorância, pelo afastamento das crendices, ou seja, pelo uso de uma sabedoria, de uma ciência, de um conhecimento que aclara a vida interior, retira daí esses obscurantismos todos e faz com que o homem, a partir do conhecimento da natureza das coisas possa se posicionar, compreender a sua própria dimensão, compreender o seu próprio papel. Isso é conseguido, porque, na verdade, ele propõe e é esse o seu estilo, o estilo da sua ética, ele propõe todo um programa de auto administração, de auto comando da nau interior, que parte 49 primeiro do esclarecimento feito pela ciência, pela compreensão da natureza das coisas, que no caso dele vai ser feito com base no atomismo de Demóclito, que ele reformula. Prazer Mas, por outro lado, não é só isso. Essa libertação que o conhecimento esclarecedor permite, ele associa também à procura e à valorização permanente do prazer afirmando, provando e exemplificando que na verdade o homem não existe em função do sofrimento. O sofrimento é uma circunstância, é uma contingência que não determina a vida do homem, e a grandeza, a virtude está em auto determinar-se, apesar do sofrimento que aparentemente vem como uma fatalidade e o homem consegue vencer pela sua postura íntima. Ética Ele ensina uma Ética que é testada em situações extremadas, é uma ética que é testada in extremis, não só em situações difíceis de vida, como também em situações últimas de morte. Serenidade Epicuro mostra que o homem pode viver bem, viver feliz, viver sereno e morrer sereno e feliz. Como isso é feito? Isso é feito através de uma espécie de auto gestão de si mesmo, auto administração, de autarcia que é a meta que ele propõe. Uma independência interior, um desvio da fatalidade que é a fatalidade externa das circunstâncias políticas e sociais que são adversas nesse momento, que era a própria fatalidade da sua doença e da sua pobreza. Ele não está condenado ao sofrimento, porque ele será feliz ou não, alegre ou triste, dependendo de como ele administrar-se interiormente. Ele prova o tempo todo, através de palavras, através de textos, mas sobretudo, através de uma vida. Ele coloca, nos termos do seu tempo, a seguinte afirmativa: ou vida política, ou serenidade e felicidade. E hoje nós podemos ler isso de uma forma muito nossa, muito atual. Percebendo que o 50 que ele está exatamente apontando é a grande distância, é a grande diferença entre o campo da vida pessoal e o da vida pública. A vida pública, mostrava ele e nós reconhecemos hoje, é um campo de antagonismo,é um campo de disputa, é um campo de luta. A vida pessoal pode ser essa sim e deve ser essa sim uma vida de serenidade, uma vida de felicidade. O que não se pode é pretender é ser feliz no território público, da coletividade, o que não se pode é pretender que o universo público esteja à serviço da felicidade pessoal. O jardim Por isso se a procura da serenidade, se a procura da liberdade interior, da autarcia é uma procura que retira o homem da turbulência da Pólis, ele não se isola, ao contrário, ele se recolhe com os amigos ao jardim. E nesse jardim, numa fraternidade lúcida, numa fraternidade esclarecida, ele vai procurar no intercâmbio, nas trocas, nos colóquios, nas conversas, ou seja, apoiado no esforço de grupo ele vai tentar manter aí o seu trabalho, o seu artesanato interno e só assim, dentro da amizade, que esse projeto pode ser realizado. Não é insular o homem, isolar o homem, fazer dele aquele que recusa todos os outros e o resto do mundo, é ao contrário, substituir a Pólis, com os seus antagonismos, pelo jardim com a sua filia, com a sua amizade e amizade que está no fundo do próprio projeto da Filosofia, porque todos sabemos que filosofia não é senão amor à sabedoria, amizade pelo conhecimento e é isso que no fundo une esses indivíduos, é isso que no fundo aproxima aqueles amigos, porque eles são amigos entre eles porque na verdade todos estão no mesmo processo de busca de sabedoria, de busca do conhecimento. Razão É importante, portanto, lembrar que a Ética de Epicuro é uma Ética que se funda primeiramente no conhecimento, no apoio à razão, na recusa ao obscurantismo, na recusa à crendice, na colocação do mundo como alguma coisa à dimensão da compreensão humana, alguma coisa que está dentro da possibilidade de compreensão da medida humana, o mundo é mensurável pela racionalidade do homem, o mundo pode ser medido pelos sentidos e pela razão do homem, é essa a idéia básica que afasta tudo que é obscuro, tudo que parece intangível, tudo que é absolutamente insondável e que faz com que os próprios deuses de Epicuro, e ele afirma, os 51 deuses sejam compreensíveis, tenham comportamentos razoáveis e tudo, homens, deuses e pessoas sejam no fundo explicáveis racionalmente. Deuses Na verdade, o que Epicuro propõe é que a filia, a amizade, que se concretiza no jardim, nesse grupo de amigos lúcidos que procuram cada vez mais a clareza e a liberdade interior e que se estimulam reciprocamente a permanecer nesse esforço e emite à distância os deuses, não que os deuses venham fazer a libertação, mas os deuses, que são serenos justamente porque não se preocupam com a humanidade nem com o mundo, vivem plenamente a serenidade porque eles estão tão distantes dos homens quanto os homens do jardim se separam no jardim da Pólis turbulenta. A difusão da idéia, a comunicação, o discutir filosofia, o falar com o outro sobre esse projeto de ciência iluminante e ciência libertadora é fundamental, não é que eles tenham uma sabedoria e depois a transmitem. É preciso que essa sabedoria seja transmitida para incentivar a própria sabedoria a continuar como uma busca de serenidade. Então, o tempo todo, o jardim, como já assinalou um historiador inglês, é uma espécie de casa editorial e de lá emanam permanentemente cartas, textos, panfletos, escritos, porque é fundamental que a filia seja alguma coisa alimentada o tempo todo por uma conversação direta, oral, ou à distância, através de cartas e escritos para que as pessoas possam permanecer nessa labuta. Felicidade O direito à felicidade, o direito ao bem, o direito a uma plenitude de vida, o direito a uma cidadania completa que coloca o homem em confronto com a harmonia do cosmos, não é ilimitada como fora a democracia de Atenas, séculos antes, pelas restrições que lá existiam, lá na democracia ateniense, embora houvesse a liberdade de constituir as leis, de discutir leis, de modificar leis, era apenas alguns que podiam fazer esse trabalho: os homens, maiores, nascidos em Atenas e não escravos. Com Epicuro não. O direito à serenidade, o direito ao prazer, o prazer sereno é, na verdade, uma coisa que está aberta a qualquer um, a qualquer homem, a qualquer 52 mulher, a qualquer estrangeiro, a qualquer época, ao homem de qualquer local, de qualquer raça, ou seja, é uma proposta de estilística que ultrapassa a limitação do campo helenísticas e mesmo das características helênicas e se propõe como qualquer empreendimento para qualquer tempo, daí inclusive a permanência da proposta epicurista ao longo dos séculos e é por isso também que ele chega até nós com uma atualidade imensa. É preciso que a razão que dê cobertura a compreensão que o homem tem dele próprio homem, seja uma razão que primeiro explique o mundo, mas que ao mesmo tempo, aí dentro, explique o homem como um ser capaz de recusar a ordem instituída nesse mundo. Para ele ser um ser autônomo, ele não pode estar preso à concepção de fatalismo. Ele precisa que as leis que regem o cosmos abram para a sua postura enquanto escolha, enquanto estabelecimento de normas de vida, ou seja, é preciso que dentro da mecânica do mundo haja um espaço onde a rebeldia e, ao mesmo tempo, a construção do homem em busca de uma meta para ele melhor, seja possível. Clinamen É preciso que haja as leis mecânicas que me digam que o mundo é alguma coisa sustentada na razão, mas é preciso também que essa mesma razão justifique o meu inconformismo, o inconformismo de Epicuro diante do sofrimento, diante da adversidade. A Ética exige, mais do que o mecanismo, exige uma racionalidade flexível para dentro dela caber o humano com seus projetos, o humano com os seus ideais, o humano com as suas metas, ou seja, ele diz: o atomismo explica todas as coisas, só não explica que o homem não seja apenas uma coisa que tem que ficar inerte diante da fatalidade do jogo mecânico. Se o homem não é assim, com a mesma razão com que eu explico as coisas eu preciso encontrar uma forma para que, na verdade, essa razão dê sustentáculo a clara dor, a postura do homem. A saída dele é genial e o jovem Marx ficou felicíssimo e escreveu maravilhas a esse respeito, porque diz Epicuro, os átomos, segundo Demóclito evidentemente, são partículas indivisíveis que caem desde sempre no vazio infinito, só que se isso acontecesse, se fosse só isso, se o único pressuposto de explicação do mundo fosse essa lei mecânica de movimentação de átomos no vazio, como explicar que o homem possa, como ele esta propondo, desviar-se de uma fatalidade e caminhar na direção da felicidade e do seu bem? É preciso que eu perceba que esse é o modelo básico racional, mas que não dá conta de 53 tudo porque não dá conta do homem e é preciso que essa queda dos átomos, é preciso que haja a possibilidade do clinamem, diz ele, do desvio. A existência do homem e da sua liberdade é outro ponto de referência fundamental para Epicuro. O mundo é racional sim, mas racionalidade do mundo, precisa dar conta também, racionalmente, da ação do homem contrária à fatalidade das coisas. O homem não é mais uma coisa que fica inerte e fatalmente colocado onde a ele foi posto, ele pode se posicionar, ele pode escolher, ele pode se direcionar, ele pode se dirigir. A Ética pressupõe um dever ser, a Ética pressupõe sempre uma norma, uma meta, a Ética pressupõe sempre alguma coisa que não é apenas de fato, mas que de direito se pressupõe a ser de outra forma, ou seja, a existência do bem, a existência de um processo de conquista de virtude, a existência de uma estilística que direciona a vida do homem para onde o homem quer, deseja, acha que é melhor, pressupõe que não há uma fatalidade, uma legalidade sim, há uma racionalidade sim, mas ela precisa envolver, ela precisa dar uma cobertura à possibilidade de recusa do homem, ou seja, a possibilidade de desviar-se, a possibilidade de libertar-se. Agente poderia tentar resumir dizendo que para Epicuro a liberdade é sempre o desvio de uma fatalidade. Liberdade e Desvio O homem não é livre porque está tudo solto e tudo inexplicável e tudo obscuro. O homem livre, e é isso que é a grandeza da sua liberdade, porque apesar da fatalidade das coisas, do mecanismo do mundo, ele abre uma brecha para os seus projetos. Ele é o inventor do dever ser, acima da fatalidade das coisas que são, ele introduz uma dimensão que é a dimensão do dever ser, do seu projeto de vida, da sua meta. Ele não é um ser passivo diante do mundo, ele não é apenas um reflexo das circunstâncias, ele não está a mercê apenas das contingências, ele é alguém capaz de, diante das contingências, dar respostas diferenciadas e ele por isso mesmo pode estabelecer o seu itinerário, a sua rota, a sua meta. Administração dos Desejos 54 Mais precisamente do ponto de vista de uma estilística e de uma libertação interior, ele vai mostrar que esse desvio no campo ético, esse clinamen, essa rejeição da fatalidade e a construção de um caminho próprio de libertação, de autarcia, se consegue por dois tipos de recursos de que o homem é capaz. Primeiro, o homem pode, o homem deve, e agora a palavra deve tem todo um sentido, o homem pode e deve administrar os seus desejos, porque os desejos não são do mesmo tipo e não são todos originariamente provenientes do próprio homem. Há desejos artificiais, há desejos recebidos de fora, há desejos que são na verdade, não manifestação de autonomia, de querer eu mesmo, mas ao contrário de heteronomia, de eu ter introjetado um querer que não é meu, um desejo que nem é meu desejo, porque há desejos naturais e necessários, há desejos que não são nem naturais e nem necessários. E diz ele, se nós conseguirmos ficar apenas com os nossos próprios desejos que são os naturais e os realmente necessários, nós já agora conseguimos um espaço de libertação enorme, porque nós exorcizamos, nós afastamos de nós a obscuridade daqueles desejos impostos, impostos pela imitação, pelo mimetismo, homem que é apenas um integrante de um rebanho e vai seguindo um caminho que ele não traça, que não escolhe, um caminho que ele não sabe qual é, que ele segue apenas dentro de um mecanismos de massa, diríamos nós hoje. Ele diz, não, é preciso, a palavra é de origem grega, é preciso ser de alguma maneira autêntico, voltar a si mesmo, ser autêntico, voltar à sua própria natureza, à sua própria naturalidade, talvez a gente devesse dizer. Jogo e Memória E mais ainda, o homem é capaz de um outro recurso extraordinário porque ele é desviante, porque ele só é livre na medida em que ele desvia, ele pode através do seu equipamento interior, das suas imagens interiores, ele que está tentando sobreviver na construção do seu trabalho interior apenas por recursos próprios, ele tem que fazer uma seleção dentro do seu imaginário pessoal, do seu acervo de lembranças, ele tem que fazer um jogo de imagens. Se a sensação imediata é terrível, como Epicuro sofrendo com cálculos na bexiga, ele pode naquele momento em que a dor é aguda, a dor física é aguda, ele pode substituir, numa técnica que ele é o primeiro a ensinar, substituir essa sensação imediata e dolorosa por uma lembrança prazerosa de alguma sensação passada positiva, ou seja, se nós conseguirmos, é a proposta dele, fazer com que nós fossemos nós mesmos os manipuladores, os diretores do nosso próprio imaginário, se nós 55 conseguíssemos montar o nosso filme interior como sendo um filme, não só da nossa autoria, mas da nossa direção, se nós pudéssemos selecionar as nossas imagens nós poderíamos o tempo todo buscar em nós as imagens positivas e contrabalançar com as imagens positivas as sensações imediatas, escravizantes e dolorosas. A nossa realidade não se mede e não se constrói apenas a cada instante com aquilo que o mundo é a cada instante. A cada instante do mundo corresponde em nós uma multiplicidade, uma infinidade de instantes presentes, passados e futuros, ou seja, a temporalidade que é típica da consciência, a temporalidade dá uma elasticidade interior ao homem e é usando isso adequadamente que o homem consegue livrar-se da adversidade imediata que parece ser um fatalismo e recolher-se à riqueza maior do seu arsenal de imagens e aí, como ele é senhor de si mesmo, ou deve ser senhor de si mesmo, aí onde não existe nenhum Alexandre, aí onde não existe nenhum tirano, onde só ele pode ser o senhor ou o escravo, se ele mesmo se escravizar, é aí que ele vai poder ter a autonomia de viver o instante que ele quer viver, a forma de viver cada instante depende não apenas do instante, digamos assim que lhe é imposto de fora, mas dependendo de como ele usa essas lembranças, esse acervo, esse tesouro de imagens para ver se ele dá uma adesão restrita àquilo que vem de fora, e se for negativa ele está escravizado a dor, ou se ele diante de uma coisa negativa que vem de fora, ele porque tem uma flexibilidade temporal maior de consciência com memória, mas também com esperança, com passado, mas também com expectativa no futuro, ele vai podendo então contrapor-se, ele não é apenas um reflexo das circunstancias. Não há adversidade externa que decida do nosso projeto ético pessoal. Em qualquer circunstância política, social e econômica, não importa, a dimensão pessoal de felicidade, a dimensão pessoal do prazer, a dimensão pessoal da busca do bem, a dimensão pessoal da busca da serenidade, é uma tarefa exclusivamente subjetiva, intransferível e que só pode ser feita por cada um, só que no apoio dos que se aproximam do mesmo ideal e dos que se propõem, juntos no jardim, buscar esse tipo de vida, criar esse tipo de existência. Tetraphármakon 56 Nós podemos perceber bem o significado da ética em Epicuro a partir de um fato que ocorreu no século passado. Certos arqueólogos decobriram no território da Turquia, em Enoanda, os restos, as ruínas de uma muralha onde há uma inscrição. Essa inscrição é curiosa, é estranha porque na verdade são frases de teor filosófico, na verdade, são trechos de um texto de Epicuro, que o epicurista de Enoanda, Diógenes, teria escrito, teria gravado na muralha justamente para que essa mensagem epicurista pudesse estar ao alcance de qualquer um. Qualquer um que passasse por ali, indiscriminadamente, seja homem, mulher, criança, de qualquer nacionalidade pudesse ler aquilo que era uma espécie de resumo da suprema sabedoria humana. Quatro frases podem resumir essa sabedoria e estão nas inscrições de Enoanda. A primeira: não há nada a temer quanto aos deuses. A segunda: não há necessidade de temer a morte. A terceira: a felicidade é possível. A quarta: podemos escapar à dor. Na verdade isso é um resumo, como se fosse uma medicação, como se fosse uma receita, da ética de Epicuro. O modelo da questão da saúde que é uma das imagens mais recorrentes do vocabulário ético aparece aí com toda a clareza. O que Diógenes de Enoanda esta procurando transmitir a qualquer pessoa que passasse nas muralhas da sua cidade é uma espécie de receita, uma espécie de indicação médica de um grande médico da alma que foi seu mestre Epicuro. Esse remédio é um tetraphámakon e é bom lembrar que a palavra, a linguagem é dita pelos gregos sempre como um phármakon, como uma substância que tanto pode ser uma substância que cura, quanto uma substância que envenena, dependendo da dose, dependendo da forma com que ela é transmitida. Aí a receita médica desse médico de almas que é Epicuro, chega através de uma cadeia afetiva de amizade e tende a ser entregue a qualquer um que passe, mostrando exatamente toda a dimensão dessa mensagem ética. A felicidade não é alguma coisa natural, espontânea, a felicidade é uma conquista, é um direito de todo e qualquer um. Ninguém nasceu impedido de ser feliz, ao contrário, todos podem e devem buscar o bem, o prazer, a serenidade e a felicidade e não importando que seja homem, mulher, criança, adulto, estrangeiro, grego, turco, brasileiro, não importa, ele é sempre alguém que nasceu para a felicidade, só que essa felicidade jamais lhe será outorgada ou transmitida, ou doada por uma divindade, por um ser superior. Ela é o resultado de uma labuta, de uma luta, incessante luta 57 de auto domínio e de auto liberação, de criação do espaço da sua autonomia e de busca permanente do seu prazer, do seu prazer sábio, sereno. Onde é território humano, é só humano e ali só depende de nós a conquista do bem, da alegria, do prazer e da felicidade. A Culpa dos Reis Antônio Cândido Eu creio que em uma série sobre a Ética é interessante nós termos alguns exemplos das ações históricas concretas. E talvez também de grandes obras literárias que descrevem num sentido simbólico essas ações históricas. Ricardo II Eu acho que caberia muito no caso uma peça como Ricardo II, de Shakespeare. Porque temos nessa peça um rei que manda e é obedecido e um rei que e depois é assassinado. Nós temos, portanto, problemas éticos muito graves que são problemas de fidelidade, de obediência, de legitimidade, de amizade, de transgressão, tudo isso entra no Ricardo II. O importante aí, mais do que o enredo, o importante são os princípios que estão em jogo. Inicialmente, o princípio que chama mais a nossa atenção é o princípio da legitimidade. Porque é a legitimidade que vai assegurar um sistema de relacionamento na sociedade. O que é bem, o que é mal, o que é certo e o que é errado se organiza em torno da legitimidade, porque se organiza em torno da obediência, ou da desobediência ao rei. É uma peça em que nós temos o conflito da obediência com a desobediência, em outras palavras, o mando com a transgressão. Isso vai assumir nessa peça, Shakespeare vai modular isso de uma maneira muito ampla. E literariamente, a beleza é muito acentuada porque ela se presta a uma série de metáforas muito elucidativas. 58 O Direito do Sangue Onde está baseada a legitimidade? Para a concepção medieval a legitimidade está baseada no direito do sangue, é portanto um conceito biológico, pelo fato de se ter sangue, o rei pode mandar. A Ética, a Moral, o comportamento, o Direito de cada um tem como limite o poder soberano legítimo do rei ungido por Deus. E a peça é justamente a história das transgressões a esse princípio. A coisa é muito mais ampla do que se pensa, porque, note bem, o sangue é uma coisa viva, que nos dá vida. E essa peça é cheia de metáforas vegetais, metáforas que falam da vida das plantas. Há um paralelo entre a vida dos homens e das plantas. Sangue e Seiva Aquilo que é sangue no rei, é seiva nas plantas. A seiva é mais ou menos o sangue da natureza, e o sangue é a seiva do rei. Onde elas se encontram? Elas se encontram exatamente na legitimidade, na medida em que o rei tem um sangue sagrado, ungido, e de certa maneira ele encarna também a seiva da natureza. Isso está ligado a uma velha concepção de soberania, a uma velha concepção de realeza que vem dos povos primitivos, que vem dos ritos agrários e que se traduz na realeza, nesse momento da Idade Média, pela ligação visceral, pela ligação orgânica do rei com a natureza. Soberania e Natureza Vejam bem, obedecer ao rei é obedecer à lei da natureza. Transgredir, não seguir o rei, é violar a lei da natureza. O rei faz corpo com a natureza. Mas, notem bem, por outro lado, como o rei faz corpo com a natureza, a monarquia estará próspera enquanto o rei estiver ligado com a natureza e for saudável. No momento em que o rei não estiver mais ligado com a natureza, em que houver uma discrepância, digamos assim, entre o sangue do homem e a seiva da natureza, a sociedade entra em crise. 59 Há um princípio mágico em jogo, quer dizer, a soberania está baseada com essa ligação mágica do rei com a natureza. Waste Land Esse princípio místico que está presente também em Ricardo II, que está ligado às lendas medievais, que está ligado aos mitos agrários que exprime a saúde ou a doença da sociedade é uma coisa tão poderosa que repercute até os nossos dias. Naturalmente muitas pessoas já leram o poema a Terra Estéril, por alguns traduzido como a Terra Hermada, por outros como a Terra Gasta. Em inglês é The Waste Land, do poeta T. S. Eliot, é um poema moderno, é um poema feito em 1920. Esse poema procura exatamente mostrar que o mundo contemporâneo está doente por causa da crise dos valores morais, por causa da crise dos valores espirituais. Em que ele vai se inspirar? Na lenda do Santo Grau. Ele vai se inspirar, exatamente, no problema do rei doente que doença é a terra. Isso dá uma idéia de como esses mitos, essas lendas são duradouras e como elas servem para exprimir vários momentos da história. Elas serviram para Shakespeare exprimir a crise da monarquia inglesa no fim da Idade Média, serviram para T. S. Eliot, na entrada do século vinte, comentar a crise dos valores espirituais. Que raízes são essas que se arraigam? Que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa? Filho do homem não podes dizer, ou sequer estimas Porque apenas conheces um feixe de imagens fraturadas, Batidas pelo sol. E as árvores mortas já não mais te abrigam Nem te consola o canto dos grilos E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca Apenas uma sombra medra sobre esta rocha escarlate Chega-te à sombra desta rocha escarlate E vou mostrar te algo distinto de tua sombra 60 A caminhar atrás de ti quando amanhece Ou de tua sombra vespertina ao encontro do levante Vou revelar te o que é o medo em um punhado de pó. T. S. ELIOT O Bom Governo Renato Janine Ribeiro A política medieval se constrói em cima de uma grande idéia que é a idéia do bom governo. A idéia principal é essa de que o governo deve agir segundo certos valores que são o da justiça, o da bondade e o da caridade, aqueles valores que a igreja cristã desenvolveu, que ela detalhou por toda a Idade Média é que deveriam ser então a pedra de toque de todo governo medieval. Justiça Somente se pode entender a idéia do rei justo a partir da idéia de justiça e aí nós temos o grande conceito político medieval. É uma idéia de justiça muito diferente da nossa, tanto que às vezes a gente até usa o termo latino justicia, porque ela significa a idéia de que cada um ocupa o seu lugar no mundo. Os lugares são diferenciados e cada um deve ocupar um deles, mas sem jamais se meter no lugar que não é o seu. Então a idéia de justiça está ligada, por exemplo, a idéia de um mundo que se organiza como o cosmos. O termo cosmos, indica essa idéia de universo, na qual tudo está ordenado, cada planeta tem o seu lugar saindo da Terra, como todo mundo sabia na Idade Média, no centro do mundo e tendo a Terra em torno dela vários planetas que giram, inclusive o próprio Sol, girando em torno da Terra. Então essa idéia de uma ordenação cósmica de que todas as estrelas, todos os astros estão bem distribuídos, se liga também a idéia de uma justiça, de uma sociedade, na qual todas as pessoas têm o seu lugar determinado. Bondade 61 O rei justo, ele basicamente expressa a sua bondade de duas maneiras. Uma através das esmolas. Em relação aos pobres, que são inúmeros na Idade Média, ele faz caridade. Para os nobres, o rei justo deve mostrar-se um rei magnânimo, um rei generoso, então se um nobre se destaca em um torneio o rei dá a metade do seu reino para ele, é um gesto magnânimo, o rei mostra que premia aquele que é valoroso, aquele que é poderoso. Para uns ele dá esmola, para outros ele dá a metade do reino, dá um grande feudo, mas em todos os casos a bondade do rei está se expressando no fato de que ele dá coisas. Não é a idéia de que ele governa bem, não é o jeito que ele desenvolve o seu Estado, de que ele vence a pobreza, não, ele atende os pobres, mas sempre haverá pobres. Corpo Outra semelhança que era usada pelo rei medieval era a relação dele com o corpo. Quer dizer, o rei era como se fosse a cabeça e os súditos como se fossem os membros do corpo. A cabeça manda, mas ela tem com o corpo uma relação de cooperação, a cabeça não pode viver sem o corpo e nem o corpo sem a cabeça, então o rei não pode existir sem os súditos e os súditos também não podem ter vida sem a cabeça que lhes dá ordem, que lhes dá comando etc. Então sempre se dava ao rei essa imagem ideal de alguém que tinha uma relação harmônica com os súditos a ele subordinados. Tirano O rei justo se opõe a uma figura que é a grande figura negra do pensamento medieval que é o tirano. O tirano trata todos os súditos como se fossem escravos ou animais, como se não tivessem racionalidade e como se dependessem de uma esfera que não é humana, de uma esfera que é do bicho, aquele que é tratado como mero objeto e por isso mesmo enquanto o rei justo tem uma relação de amor com o seu povo, o tirano tem uma relação de medo. Ele mete medo nos súditos e ele também morre de medo dos súditos. Não se concebe um tirano sem o medo de ser assassinado. Isso leva a uma conseqüência interessante que é a questão do sono. Fala-se que muitas vezes que o tirano tem um sonho ruim, que ele tem um sono conturbado, que ele dorme mal e há uma frase que aparece, por exemplo, em Thomas Morus mas que já apareceu antes e que 62 continua a aparecer ainda hoje na imagem do tirano. A idéia de que ele não dorme duas vezes seguidas na mesma cama. Ele não pode dormir no mesmo lugar porque ele corre o risco de ser assassinado, ele tem que se proteger daqueles que podem matá-lo, por isso ele precisa de uma polícia, por isso ele precisa de toda uma salvaguarda, enquanto o rei justo, com o amor dos súditos, já tem a maior proteção possível. Então, uma diferença dos dois seria que um dorme bem e o outro dorme mal. Crise Então aí a gente entra em um problema sério que é o problema da crise política. A política, em certo momento, entra em crise e em uma crise muito séria. A gente pode dizer que isso ocorre entre o século XIV. Essa crise se dá por várias razões. Ela vai se alongar, vai durar muitos séculos, mas é uma crise muito interessante. O primeiro ponto diz respeito justamente à questão dos valores, quer dizer, se é uma política que está baseada no valor da justiça, a gente pode perguntar numa polêmica, em um conflito qual lado tem a justiça, qual lado é injusto, nós podemos perguntar quem tem razão, quem está errado e o problema é que cada lado alega ter razão e a partir de certo momento acaba um consenso do que é justiça, sobre como era agir corretamente etc. A gente pode dizer que isso coincide, em níveis gerais, com a Guerra dos 100 anos entre o rei da Inglaterra e o rei da França, para saber quem é o verdadeiro rei da França. Não é que os ingleses tenham que anexar a França, é que um rei que é rei da Inglaterra de sangue francês, de língua francesa, alega que ele é o rei da França e briga com o primo dele que também diz ser o rei da França. Isso leva a divisão da Europa em dois campos, a dois reis da França, a dois duques da Bretanha, a dois e, em certo momento, até três papas, e cada um pretende ter a legitimidade, ter os valores. O fato de que não havia uma via institucional garantida para saber quem tem a razão, para saber quem leva aquilo que está sendo disputado, acaba fazendo com que cada um possa reivindicar ser o bom, ser o justo, ser o cristão contra o outro. Isso coloca em crise, coloca em xeque o próprio 63 fundamento do bom governo. Se não sabemos mais quem é bom, não podemos mais dar legitimidade ao governo. Crise de Valores E a um segundo ponto que demora mais para surgir e que será melhor explicado por Maquiavel, no começo do século XVI. Maquiavel escreve em uma Itália que está totalmente assolada por conflitos, um príncipe contra o outro, uma cidade contra a outra, uma república contra a outra, invasões francesas e espanholas, mercenários suíços e alemães, tudo isso invadindo a Itália e Maquiavel constata que a idéia de bom rei não funciona mais. A idéia de que alguém, vai governar bem porque é justo, porque procede dentro dos valores morais tradicionais não funciona porque é justamente ele que vai fazer a maior crise surgir, que vai tornar o seu povo infeliz. O rei justo, na verdade, acaba sendo muito mais pernicioso ao seu país, ao seu Estado do que o rei que sabe usar às vezes da justiça, mas também da injustiça quando for necessário, um rei que sabe que a sua principal preocupação é conservar o Estado que ele recebeu, o Estado que ele conquistou, e que dessa forma utilize bondade, maldade, generosidade e avareza, tudo conforme for necessário, tudo conforme for adequado para ele bem governar, para ele governar de uma forma eficaz. E com isso a gente chega ao último golpe deferido à idéia de bom governo, é a idéia de que o bom rei deveria dar basicamente caridade aos pobres e generosidade aos nobres. Nisso se esgotava a função do rei justo. Pois bem, no século XVI, o rei passa a ser uma espécie de gestor de questões econômicas. Cada vez mais o Estado vai ter que se ocupar da economia. Ocorre o descobrimento, ocorre toda a expansão ultramarina de Portugal e de Espanha e de outros países, além disso as guerras vão ficando muito caras devido ao uso da pólvora e ao emprego de tropas mercenárias, tropas que são pagas, especialistas em luta. Então tudo isso leva os reis a terem uma necessidade muito maior de ter recursos financeiros e até mesmo de necessitar que seus países se desenvolvam economicamente, cresçam economicamente. Então o rei, vamos dizer moderno, o rei do século XVI em diante, ele vai ser alguém que está preocupado 64 em ser eficiente. A questão não é mais a justiça. A questão é eficiência econômica e essa eficiência vai surgir no século XVI e XVII pelo recurso ao mercantilismo, quer dizer, a um tipo de economia em que o Estado tem um papel prioritário na direção da sociedade. Mas de qualquer forma, o que nos interessa aqui é que com isso não tem mais sentido um rei pretender apenas aplicar os valores morais. A Ética do Mando Antônio Cândido Com o rei Ricardo II nós temos muitas oportunidades de ver o funcionamento do mando e o funcionamento da transgressão. O problema envolve muitos problemas. Obediência e Transgressão O mando legítimo é um mando que deve ser obedecido. A ética de cada um, a conduta moral de cada um, está ligada a sua obediência ao mando legítimo. A Ética de quem manda está ligada ao exercício adequado desse poder, está o tempo todo em Ricardo II, nós temos então isso. Surge um problema ético muito sério quando essa capacidade de mandar perde a sua legitimidade, quem é obrigado a obedecer deve obedecer? Surge aí uma incógnita. Eu tenho que seguir um rei legítimo pelo sangue até os seu maiores desvarios? Há um momento em que essa crise do mando, essa crise interna do mando justifica a desobediência. No Ricardo III este problema não é resolvido, mas ele é colocado. Ele não é resolvido porque ficamos muito em dúvida se o ato de Henrique de Bolembroock foi uma transgressão legítima ou uma transgressão ilegítima. Shakespeare dá elemento para nós pensarmos as duas coisas, mas o importante é que nós pensemos as duas coisas, que nós fiquemos bem conscientes de que houve um momento de que com toda a unção divina, de que com toda a capacidade de mandar, Ricardo II não podia mais mandar porque não correspondia ao bem público. A partir desse momento a legitimidade se desfaz, porque a legitimidade não é uma coisa simples, ela é parte de uma estrutura. E nessa estrutura nós temos o princípio, a função e a pessoa. O princípio continua, a função está em crise e a pessoa não funciona mais. 65 Legitimidade pela Eficácia Então surge uma nova pessoa que só tem a pessoa, não tem nem a função e não tem nem a legitimidade, para haver um processo às avessas. Assim, como a pessoa que tem o direito de mandar, pode pela sua conduta, ir perdendo moralmente esse direito de mandar, aquele que não tinha inicialmente o direito de mandar, mas que sabe se adequar à situação, vai adquirindo aos poucos o direito de mandar. Ele constitui uma legitimidade a partir da eficiência. É o que acontece no Ricardo II. Um grande crítico inglês, um dos maiores especialistas em Shakespeare, que é Telhiot, disse que Ricardo II é uma peça onde se vê um rei tradicional em face de um rei moderno. Não são as palavras dele, mas é mais ou menos isso que ele diz. O que está em jogo é o seguinte: Ricardo II é um representante da monarquia medieval. Ricardo II é um representante do poder baseado na legitimidade do sangue e tendo um caráter sagrado. Mas, note bem, qualquer poder sagrado ou não é exercido por um determinado indivíduo e esse indivíduo é um homem cheio de fraquezas, cheio de imperfeições, cheio de lacunas, então é preciso que o poder legítimo de origem divina seja também exercido com eficiência humana. Essa eficiência humana falta a Ricardo II, mas ela sobra no seu primo, Henrique de Bolembroock, o duque de Redford. O duque de Redford não tem o direito divino puro porque ele é um príncipe afastado na ordem da sucessão, mas ele tem eficiência. À medida em que ele tem eficiência ele é um rei que satisfaz as necessidades imediatas do governo. Ele assume o poder na base da sua capacidade e não na base da sua legitimidade e essa capacidade vai legitimá-lo. Nós estamos, portanto, chegando em uma era da história em que a fonte de legitimação do poder vai mudar, vai ser a capacidade da promoção do bem público, a capacidade prática de realizar as tarefas necessárias para o bem público, é isso que Henrique representa. Do Divino ao Humano Em Ricardo II, em toda a peça, ele se compara sempre com coisas de ordem alegórica, mítica. Por exemplo, ele diz que é o sol, eu sou o sol, aliás, na história o símbolo dele se tornou como 66 símbolo náutico, o sol. Na cena no meio da peça, numa cena importantíssima, quando ele volta da Irlanda, cheio de esperança. A esperança dele está baseada no fato dele ter a força do sol na natureza. A Inglaterra estava mergulhada em trevas, porque Henrique Bolembroock representava a negação do direito, o mal. Ele é o bem porque ele é o sol, o sol dá vida às plantas. O sol, portanto dará vida a Inglaterra, o rei sol dará vida ao Estado. Enquanto que Henrique Bolembroock não. Henrique Bolembroock em nenhum momento faz qualquer comparação metafórica consigo mesmo, ele só se baseia na eficiência de suas ações, ele provoca ações, ele aproveita das ações. Nós temos aí, portanto, um rei antigo, um rei cuja parte mitológica é decisiva e nós passamos para um rei que é moderno, um rei eficiente, que depende da política que ele exercer e, a parte mitológica, a parte sagrada diminui e fica meramente virtual. Então nós temos a abdicação e há duas imagens fundamentais, belíssimas. Uma ele diz ao primo usurpador: o reino, essa coroa que eu estou te dando é como um poço, e nós dois somos como dois baldes que sobem e descem do poço, pela roldana. Eu sou o balde que desce para o fundo carregado de lágrimas, e você é o que sobe triunfante para ser coroado. Mas eu quero uma coisa, tenho um capricho, eu quero um espelho, traga-me um espelho! Então esta, ao meu ver, é a imagem psicologicamente fundamental da peça. Porque é o rei e o homem em presença, são o rei e o homem em presença. Porque, vejam bem, quando a pessoa exerce o mando é ele e o outro, qualquer um de nós pode fazer a experiência disso. Um chefe de equipe de televisão, ele é ele, o fulano, e ele é o homem que tem a responsabilidade de fazer o programa funcionar. Então ele é obrigado a inclusive fazer atos que ele não faria espontaneamente, ele pode demitir um funcionário, ele pode dar uma punição por um erro, de modo que há sempre no exercício do mando o eu e o outro. Ora, essa cena do espelho, é a cena que projeta literariamente e psicologicamente essa divisão entre o eu e o outro na estrutura do mando. Ele pede o espelho. Quando ele pega o espelho tem dois, o rei e o homem Ricardo. Então tem um diálogo admirável em que ele fala sobre a queda dele e quebra o espelho. Quando ele quebrou o espelho, quebrou o rei, restou apenas o homem. Agora não sobra mais nada pra ele. Mas vejam bem, são imagens materiais, é o poço, são os baldes, é o espelho, é a manufatura. Acabou o sol, acabou o sangue, acabou a seiva, acabou o jardim. Nós estamos agora na escala miúda da humanidade, o homem se destacou do rei. Então, no ato quinto, há uma tentativa de 67 rebelião sufocada e o rei diz, mas será que não vou ter sossego? Será que não há alguém pra me livrar desse pesadelo? O adulador diz, escuta isso, vai a onde o rei esta preso e mata o rei. Aí acabou realmente a supressão física, que é muito bonito, do ponto-de-vista de uma certa filosofia do mando, não ficando impunemente, porque o mando pode inclusive levar ao crime. O rei pra poder mandar ele teve que mandar matar o primo, então eu diria que a morte é o limite do mando. Quer dizer, o mando vai desde da admoestação amena até a execução, até a privação de vida. É, portanto, um processo extramente complexo, é um processo que envolve a nossa humanidade a fundo, e é o processo que no Ricardo II, está simbolizado, alegorizado de uma maneira realmente extraordinária. Maquiavel e O Príncipe Alfredo Bosi Eu gostaria de dizer alguma coisa sobre Maquiavel, que é sem dúvida o fundador da ciência política. No “O Príncipe”, no seu pequeno livro que ele chamava, o seu livrinho, que ele escreveu no exílio, “O Príncipe”, há uma relação não mais de transcendência, isto é, o Estado não precisa realizar aquelas virtudes que levam ao céu, que seria realmente uma posição medieval, com inspiração platônica. O Estado precisa realizar os projetos específicos do príncipe, que por sua vez, no caso de Maquiavel, tem como finalidade assegurar a unidade italiana. Então vejam, agora, são motivos históricos concretos, motivos históricos próximos, que movimentam, que estimulam a ação do governante. O governante será bom se ele for eficaz, se ele conseguir unificar a Itália, portanto submeter os outros príncipes mais frágeis, uma política de poder, de Florência em relação às demais comunas. Se ele conseguir essa unificação, em nome da gloriosa Itália, que já estava esfacelada nessa época do Renascimento. Se ele conseguir perpetuar-se no poder, a idéia de que o poder deve ter uma continuidade e que a habilidade do príncipe é agradar a uns, submeter a outros para que se conserve a estabilidade do Estado. 68 Maquiavel, tantos anos depois, na mesma Florença, lutará para criação da política como uma ciência, uma técnica independentemente de uma ética transcendente. Aí realmente, com Maquiavel, nós entramos na modernidade, no sentido amplo do que eu possa chamar de modernidade, tudo o que veio depois com o Renascimento italiano, com a Reforma Protestante. Moral/Política Antônio Cândido Maquiavel foi o primeiro pensador que mostrou que a esfera da moral é separada da esfera da política. Não é que a esfera da moral não exista, se eu estou na esfera da moral eu tenho que cumprir os preceitos. Maquiavel não era contra as normas éticas, só que ele diz o domínio da política é um domínio separado, a política é uma técnica social, nós diríamos hoje, é uma técnica social, portanto, a política permite coisas que a moral não permite. E o grande dirigente é aquele que é capaz de violar inclusive sua consciência a favor de sua missão política. Isto é, mesmo quem não leve este texto de Maquiavel, é uma verdade, isto é uma verdade. É um governante, por exemplo, que manda prender, manda matar o seu filho que traiu. O cônsul Julio Bruttus na República Romana, o filho traiu, ele manda matar. Como pai, é uma suntuosidade, como cônsul, é uma obrigação dele. É isso que Maquiavel quer dizer, não é dizer que a política acaba com a moral. São duas esferas e cada uma tem suas exigências próprias. Fins/Meios Então surgiu a famosa idéia de que os fins justificam os meios. Eu não aceito essa afirmação. Eu tenho uma visão dialética, eu acho que fins e meios são termos de um processo muito complexo, que estão sempre em jogo. Você nunca tem só fins e você nunca tem só meios. Você tem sempre um jogo dos fins e dos meios que você tem que harmonizar pra ser o mais ético possível, com o máximo de eficiência possível, portanto eu não aceito essa idéia e nem creio que Maquiavel aceitasse. Maquiavel não falaria de dialética naquele tempo, mas se eu formulasse isso pra ele era capaz dele dizer “se non evero, be nem trovato”. Ele poderia aceitar porque eu acho que é isso. 69 Deus e o Diabo Renato Janine Ribeiro A política moderna é também uma que vai se definir pela constituição de um espaço leigo. Quer dizer, mais e mais coisas na vida pública vão ser decididas sem referência a Deus. A referência a Deus é uma coisa um pouco complicada em termos políticos, porque se Deus intervém na moralidade e na política passa haver um lado que é certo e um lado que é errado. Quer dizer um lado tem que ser condenado e um lado tem que ser valorizado. Então, fica muito difícil aceitar que os dois lados sejam igualmente legítimos, aceitar que seja direito dos homens e mesmo dever dos homens escolher entre eles. Porque entre Deus e o diabo a escolha é um pouco, não é uma escolha tão livre, tão simples, eu sou livre pra escolher entre Deus e o diabo, mas para escolher a Deus, eu não sou livre para escolher o diabo. Então, da mesma forma política, só vai poder ser leiga, só vai poder ser moderna, na medida em que ela reduzir o espaço da religião, em que fica menos importante essa idéia do bem e do mal que era importante na política, que era essencial para a política da Idade Média. Coisas Indiferentes Uma das idéias mais importantes para surgirem as concepções modernas de política é a idéia de coisas indiferentes. É uma idéia que vem dos antigos, que já apareceu entre os estóicos na Roma antiga, mas que vai ser desenvolvida pelo grande humanista da Renascença que é Erasmo. Erasmo de Roterdã autor do “Elogio da Loucura”. Erasmo é um defensor da tolerância. Então, ele entende que muito que a igreja exige para uma pessoa ser salva é exagerado, que deve haver menos regras, que devemos procurar encontrar o que é essencial na religião e que isso só importa. Então, existem coisas na religião, diz ele, que são essenciais para a salvação, existem coisas que são indiferentes, tanto faz que, por exemplo, as vestes de um padre durante uma cerimônia religiosa sejam de uma cor ou de outra. Ninguém vai para o inferno porque usou as cores erradas. Então, há certas coisas que são fundamentais para a salvação, e há coisas que são indiferentes para a salvação, entende Erasmo. Só que, é verdade, 70 que nós não podemos ter cada padre usando a roupa que ele quiser, cada igreja sendo construída de uma forma diferente, ou então, cada fiel procedendo da maneira que achar melhor. É preciso haver um regulamento das roupas usadas no culto religioso, mas esse regulamento que vai ser baixado, que terá que ser obedecido, ele não é um regulamento, vamos dizer, que foi dado por Deus mesmo, pra os olhos de Deus é indiferente. É a sociedade que necessita ter uma determinada organização, que estabelece então essa cor, esse corte da roupa, essa arquitetura da igreja, certas formas de rezar, mas que poderiam ser substituídas por outras. Profano e Sagrado Isso também significa, apesar de Erasmo não ser protestante, de forma alguma, isso significa que um caminho se abre por uma coisa que vai ser essencial no protestantismo, que são diferenças entre várias igrejas. As próprias igrejas protestantes têm liturgias, preces, que são diferenciadas de uma pra outra e, com isso, nós passamos a ter menos coisas que são, que pertencem a esfera do sagrado, quer dizer, dentro da própria religião há coisas que são sagradas e há coisas que devem ser respeitadas, mas que não são tão sagradas. E, dessa forma, vai surgindo algo que é essencial no espírito moderno que é a redução do espaço do religioso, a redução do espaço daquele que é o sagrado e o aumento, proporcionalmente a isso, do espaço do leigo, do espaço em que as coisas se decidem nesse mundo, sem necessariamente termos que dizer: tal coisa é sagrada, tal coisa é demoníaca. Quer dizer, diminui aquela oposição entre o sagrado e o profano, ou entre o sagrado e o demoníaco, ou mesmo, se quisermos, entre o bem e o mal. Não há tantas coisas que são por natureza boas e por natureza más. Há muitas coisas que podem ser diferenciadas. Democracia Essa idéia vai permitir, então, todo espaço da coisa política, que se constitui nos séculos da modernidade, como algo que pode ser regulado de um jeito ou de outro. Vocês vêem que, essa idéia de 1500 é uma idéia chave para algo que estamos acostumados a datar em uma data bem mais recente que é a própria democracia. Quer dizer, se nós pensarmos na democracia como um regime de eleições, em que o povo decide pelo voto qual deve ser a condução dos seus negócios, 71 dos seus assuntos, a democracia se instala mesmo ao final do século XVIII, começo do século XIX. Mas ela deve muito a essa idéia já de 1500, já desenvolvida por Erasmo, de que há muitas coisas que podem ser decididas de um jeito ou de outro. E quem vai decidir de um jeito ou de outro pode ser o povo, pode ser o povo soberano, pelo voto, escolhendo entre duas ou mais opções. Na Idade Média a idéia de escolha entre duas ou mais opções soava estranha. Porque se o referencial para medir uma e outra era ser boa, ser justa, ser harmônica, atender as exigências de Deus, então não podia haver duas políticas opostas ou antagônicas que tivessem ambas o favor de Deus. Ao passo que na Modernidade nós podemos ter duas ou mais políticas, como não estamos mais interessados em saber se Deus é a favor de uma ou de outra, como sabemos que nós, seres humanos, temos a liberdade, a autonomia e o dever de sermos nós quem escolhe, então nós escolhemos a quem nos convém. A política deixa então de ter esse referencial tão forte ao divino, ao sagrado. Define-se todo um espaço em que o homem mesmo decide. Um espaço menos recortado por oposições maniqueísta entre o bem e o mal e um espaço em que o homem arbitra. Autor do Destino Desse ponto de vista é uma idéia muito bonita. Quer dizer, a democracia é um regime no qual o homem assume que ele é o responsável pelo seu destino, o autor do seu destino. E, por isso mesmo, ele não pode mais abrir mão desse poder em favor de Deus. Valores e Procedimentos Nós podemos dizer que nos regimes modernos o procedimento fica mais importante do que o valor, o conteúdo fica menos importante do que a forma. Porque nós vimos que na Idade Média o fundamental era o conteúdo, a justiça, o valor. E como a justiça se instaurava era uma questão menos importante, qualquer meio servia. Mas agora, se nós temos que escolher entre duas ou três opções, nenhuma das quais é a encarnação do bem, nenhuma das quais é a encarnação do mal, então, nós temos que ter um procedimento muito claro de escolha entre elas. Então, nós temos que apostar na forma e não mais no conteúdo. E uma das formas adotadas e a mais bem sucedida 72 é a democrática. Então é um procedimento, quem ganha as eleições leva o cargo, quer isso dizer que é a pessoa mais competente, ou a pessoa mais justa, ou que vai governar melhor para seu povo? De forma alguma, não sabemos disso. É apenas uma forma de escolha, tão arbitrária. Então, isso também significa que os valores são menos importantes na vida política da modernidade do que na vida política medieval. Nós vivemos, desde mais ou menos 1500, numa sociedade que é rachada, que é cindida e que sabe que tem uma divisão profunda. Mas que tenta resolver essa divisão sem mascará-la e tenta de alguma forma jogar entre as oposições e fazer que uma delas vença por um procedimento. Com isso o papel dos valores diminui, mas fica um valor como sendo importante. Esse valor importante é o valor da própria forma, a forma democrática. Na forma democrática todo homem vale a mesma coisa. Claro que isto é uma abstração, os homens não valem a mesma coisa, eles são diferentes entre si. Agora, a forma democrática significa que na escolha política todos nós temos o mesmo peso. O inteligente, o menos inteligente, o rico, o pobre, todos tem o mesmo peso. Isto significa que um valor resta, que é o valor fundamental, que é a própria democracia. A democracia é o único regime que nós podemos dizer que tem por objetivo a própria democracia. A democracia não é um meio, a democracia é, num certo sentido, um fim. Quer dizer, o que se procura na democracia é que as pessoas vivam de maneira democrática, quer dizer, respeitando uma as outras como iguais, como livres. Igualdade e Liberdade E assim nós chegamos aos dois grandes valores que podemos dizer da democracia. Por um lado a igualdade, a idéia de que todas as diferenças sociais e naturais, elas tem que se apagar em favor da igualdade política de decisão. E, por outro lado, um valor, que é o da liberdade, que significa que a democracia não pode abolir a democracia. É uma questão que as vezes se levanta que não é apenas acadêmica não, se a maioria do povo pode, pelo seu voto, acabar com a liberdade. Se pelo seu voto livre pode acabar com a liberdade, por exemplo, dar todo poder a um tirano, acabar com um regime democrático e criar uma monarquia absolutista, ou criar um regime islâmico como sucedeu em alguns países do mundo, como quase houve na Argélia em 1991. A questão que se coloca é se esta maioria do povo pode, pela liberdade, acabar com a própria liberdade. E a única 73 resposta que podemos dar é que não pode. Quer dizer, a democracia não é o direito de apenas a maioria votar, é o direito de todos a terem as liberdades resguardadas. Normas Impositivas Antônio Cândido Eu creio que, no nosso tempo, nós estamos passando por um período muito difícil e muito perigoso, que é o período de achar que todo mundo é livre para fazer o que quiser. Hoje em dia nota-se que a palavra mais vilipendiada é autoritarismo e autoridade. Ora, não se deve confundir autoritarismo com autoridade, não há sociedade nenhuma que possa viver sem normas, não há sociedade nenhuma que possa viver sem autoridade, portanto, toda sociedade tem não apenas que ter autoridade, mas que ter normas muito impositivas. A ausência de normas é um sonho anarquista lírico que não tem nenhuma correspondência com a realidade histórica. Eu só posso ter um comportamento ético adequado, quando eu limito a minha liberdade muito acentuadamente. Quando eu acentuo minha liberdade ao máximo eu perco a ética, eu perco o comportamento ético. No nosso tempo uma das coisas mais graves que há, é essa noção bastante errada de liberdade absoluta. Por exemplo, a televisão pode passar o que quiser, na hora que quiser, isso chama liberdade de imprensa. Eu considero isso um crime ético, quer dizer, eu penso nas minhas netas ao meio-dia vendo desenho animado quando a televisão em nome da liberdade de imprensa interrompe e passa Calígula. Eu considero isso uma agressão ao ser em formação gravíssima. Portanto, nós estamos cultivando ilusões muito perigosas que são as muitas liberdades sem limites. Freud, que é o homem que mais contribuiu para libertar o homem de seus fantasmas, Freud dizia sempre, sem normas muito duras e muito impositivas, não há personalidade organizada. Ética da Alegria e da Transgressão Eu acho que a alegria é um bom caminho para a ética. Eu até seria a favor de nós criarmos uma ética da alegria e, uma ética da transgressão. O que é ética da transgressão? É a negação das normas? Não, é mostrar que algumas normas estão superadas e começar a transgredir praticando 74 as boas normas. Eu vou dar um exemplo do que eu chamo de transgressão: se todos os padres resolvessem arrumar uma namorada e se casar. Se os padres católicos fizessem isso seria uma tremenda transgressão, mas estariam estabelecendo uma nova ética, é o direito que todo homem tem de ter sua companheira. Então, eu diria, nós temos de criar uma ética de transgressão e uma ética de alegria. Na primeira ética de transgressão nós jogaríamos fora tudo quanto é hábito sedimentado, esclerosado, mofado em benefício de condutas que são transgressivas agora, mais que serão éticas daqui a pouco. E a alegria nos ajudaria a conviver de maneira extraordinária. Como diz aquele ator francês, aquela grande “La Regle Du Jeu” (A Regra Do Jogo), uma coisa espantosa, vocês assistiram? Do Renoir. O Carrette, aquele que é empregado, ele fala pro marquês: “Eu, quando tenho uma mulher, antes de tudo faço ela se divertir, porque quando uma mulher se diverte você tem tudo o que quer dela”. Quer dizer “rigoler” (divertir), se divertir. A pessoa se divertindo a conduta é muito mais fácil. Invenção da Política Marilena Chauí Quando os gregos pensavam na política, o que eles entendiam por política foi uma coisa que eles próprios inventaram. Isso não quer dizer que antes dos gregos, antes dos romanos não houvesse o exercício do poder, não houvesse governo, não houvesse autoridade, claro que havia. Os grandes impérios que existiram antes e depois do mundo grego e do mundo romano. Mas qual era a marca do poder desses grandes impérios antigos? A marca era a identidade entre o poder e a figura do governante. Poder e Vontade O governante era a encarnação do poder. Ele, como pessoa, encarnava nele a autoridade inteira, o poder inteiro. Ele era o autor da lei, o autor da recompensa, o autor do castigo, o autor da justiça, ou seja, a vontade do governante, vontade pessoal, individual dele, era a única lei. 75 O que nós podemos dizer não é que não houvesse o poder, a autoridade antes dos gregos e dos romanos. Pelo contrário, a imensidão dos grandes impérios antigos mostra que o poder estava lá. Qual é a diferença, entretanto, dos gregos e dos romanos face a esses grandes impérios, a esse grande poder que havia na antigüidade? É que, antes dos gregos e dos romanos, a característica do poder era a identificação entre o ocupante do poder e o próprio poder, ou seja, o governante era o próprio poder. Isso quer dizer uma coisa muito simples, a vontade do governante, a sua vontade privada, a sua vontade pessoal, a sua vontade arbitrária, caprichosa, o que lhe desse na telha, era a lei e era ela o critério pra: guerra, paz/ vida, morte/ justiça, injustiça. O Poder e as Leis O que fizeram os gregos e os romanos? Eles inventaram a política. Ou seja, eles criaram a idéia de um espaço onde o poder existe através das leis. As leis não se identificam com a vontade do governante, elas exprimem uma vontade coletiva. Essa vontade coletiva se exprimiu em público, nas assembléias, através da deliberação da discussão e do voto, ou seja, os gregos e os romanos submeteram o poder a um conjunto de instituições, a um conjunto de práticas que fizeram dele algo público, que concernia a totalidade dos cidadãos e que era discutida, deliberada e votada por eles. E, portanto, eles criaram a esfera pública, aquilo que nós chamamos de esfera pública, ou seja, ninguém se identifica com o poder, a vontade de ninguém é lei e, portanto, a autoridade é coletiva, pública, é aquilo que constitui o cidadão. Público e Privado Os gregos puderam e depois deles os romanos, distinguir com muita clareza a autoridade pública, ou a autoridade política, e a autoridade privada. E não por acaso, a autoridade privada tem um nome muito especial, em grego, o chefe de família, que é aquele que detém a autoridade daquele espaço privado, e detém essa autoridade exclusivamente por sua vontade, a vontade dele é a lei, o chefe de família se chama despostes. E é porque a autoridade privada, a autoridade do espaço privado da família é a autoridade do despostes, é a autoridade absoluta de vida e morte sobre todos os membros da família que a autoridade do espaço privado se chama despóstica. Os gregos 76 diziam, quando a autoridade for despóstica, o espaço público foi tomado pelo espaço privado e a política acabou. A condição da política é que não haja despotismo. Poder Cristão e Espaço Privado O cristianismo vai criar um problema no campo da política. Por que? Porque se para os antigos era nesse espaço público que a ética melhor se realizava, no momento em que, com o cristianismo, o espaço público é recusado em nome do espaço privado, do recinto, do coração, da consciência. O que acontece no momento em que surgem as autoridades cristãs, ou seja, como é que vai haver um espaço público cristão, já que a autoridade e a ética no mundo cristão são pensadas de maneira privada, ou seja, Deus é o Pai, Deus é o Senhor, os cristãos são sua família, ele é o Pastor de um só rebanho. E vejam vocês que todas as metáforas e todas as palavras que indicam a autoridade no mundo cristão pertencem ao espaço privado, é o Pai, é o Senhor, o Pastor, o rebanho. Como é que isso vai se constituir como num espaço público? Não há como se constituir como num espaço público. Teológico Nós poderíamos ir enumerando uma série de características do poder medieval e, portando, do poder cristão, ou daquilo que nós podemos chamar de poder teológico político pelo qual o governante é uma figura privada, e o espaço do poder é o espaço privado e a ética é a ética da pessoa do governante. É ele quem tem que ser educado para a virtude é ele que não pode ter vícios, é ele que tem que cumprir o dever, porque das qualidades dele dependem as virtudes ou os vícios, a felicidade ou a corrupção do reino. Não existe, portanto, a esfera política propriamente dita. Existe a esfera do poder, mas não a esfera política , ou esfera pública. É essa esfera que a modernidade vai constituir. Modernidade A partir da queda do antigo regime, da queda das monarquias por direito divino, da desmontagem do poder teológico político e do ressurgimento da idéia de república, primeiro a república 77 oligárquica, depois a república representativa, depois a república democrática é que se reconfigura o campo público da Política. Questão Burguesa Gerd Bornheim A classe burguesa é um acontecimento histórico. Ela surge de um modo bem datado, a partir do século XV, por aí. Ela vai se constituindo progressivamente a um projeto burguês. Talvez nunca na história do homem esse projeto burguês tenha se equacionado de maneira tão clara e tão racional, pelos próprios burgueses, e nunca, talvez, o homem tenha tomado consciência tão aguda do seu andamento dentro desse processo. Quer dizer que é algo bem determinado. De outro lado, a palavra burguesa oferece uma ambigüidade muito grande, chega a ser usada esta palavra de um modo pejorativo. E aí, em terceiro lugar, convém lembrar que quando se fala em burguês, nós estamos falando de nós mesmos, porque nós somos burgueses, pertencemos evidentemente a cultura burguesa, não há mais aristocracia, mesmo a classe operária no século XX sobretudo se busca assimilar o ideário burguês, o conforto burguês, sobre o modo de ser da burguesia. Quer dizer que, é muito curioso, porque já com isso, percebe-se um fato novo, é que pela primeira vez passa a existir, na história do homem, começa existir uma classe realmente universal. Individualismo Mas, em verdade, o individualismo funciona como grande à priori, como grande pressuposto, que está na raiz mesmo, na base de todo processo da cultura burguesa. E o que eu vou dizer agora vai ser um modo de especificar melhor esse pressuposto fundamental que é o individualismo. Que configura aquela passagem, que certos autores, caracterizam como sendo a viagem, digamos, que vai do teocentrismo medieval para o antropocentrismo dos tempos modernos. Quer dizer, não é mais Deus que está no centro de toda cultura, de todas motivações individuais, sociais, culturais, políticas, etc, mas passa a ser, essa motivação básica, passa a ser, pura e simplesmente, o próprio homem. E é sem exagero então, que se pode começar a falar do homem novo, do projeto moderno centrado justamente numa nova imagem do homem. 78 Autonomia Eu colocaria em primeiro lugar, para caracterizar esse homem burguês, justamente o conceito de autonomia. Esse homem burguês, ele se oferece, ele se impõe e vence essa guerra toda, justamente a partir desse conceito de autonomia. Na filosofia isso se explica de modo muito claro no século XVII, é um processo histórico, portanto, complexo. No século XVII, com a filosofia de Descartes, pela primeira vez na história do homem, nós encontramos um pensamento que parte de uma experiência absoluta. E essa experiência absoluta não é mais a experiência do Absoluto ou de Deus. Essa experiência absoluta, ela se situa, está situada dentro do próprio homem que “cogito ego sumo”, eu penso, logo existo. Para Descartes é uma certeza absoluta, uma evidência absoluta e que vai ser o ponto de partida, o fundamento último de toda a realidade da ciência e da filosofia, pois a partir daí se entende toda essa autonomia. Biografia Eu daria alguns exemplos para tornar bem claro o que eu estou falando, é por exemplo a idéia de biografia. A biografia tal como nós entendemos não existia no passado grego ou medieval. A biografia, como por exemplo, a de Santo Agostinho não é uma biografia que deva ser entendida como normalmente se sabe das biografias de hoje, nos tempos burgueses de um modo geral. Porque a biografia de Santo Agostinho coloca um problema, e eu vou voltar depois nesse problema, que é da relação entre o singular e o universal concreto, ou seja, é o itinerário de uma alma, e esse itinerário parte de Aurélio Agostinho, digamos, uma singularidade bem completa, um indivíduo bem datado no tempo e no espaço para converter progressivamente algo universal concreto. Quer dizer, trilhar o caminho da santidade, atingir de fato o sentido que tem a divindade para o singular. Quer dizer que, de certa maneira, a nível dos filósofos ilustres, por exemplo de Plutarco e toda biografia do passado, certa maneira é sempre um itinerário através do qual o homem chega a se universalizar de um modo bem concreto. E justamente isso cai por terra com o advento da biografia burguesa. E claro que aqui é um itinerário se tomarmos, por exemplo, Marco Pólo, aí, não é mais tanto o Deus que funciona, o universal concreto que funciona, mas é algo de fantástico é a experiência que ele teve no oriente, são os fogos de artifício, são os 79 condimentos, os temperos picantes, esta coisa toda, então, pólvora, quer dizer um mundo excitante, fantástico, o mundo ocidental. E é isso que dá amparo a biografia do Marco Pólo. Mas aos poucos tudo desaparece, e o que nós encontramos é simplesmente a biografia de um homem que pode ser até muito comum. O que pode ser como a biografia de um Rousseau. Mas Rousseau já não se apresenta mais como algo de universal, de excepcional, de fantástico, ou coisa que o valha, ele se prende, por exemplo, muito na autobiografia dele, nas confissões, na vida cotidiana, a sua vida sensível, sexual e coisas assim. Ele não se oferece tanto, ele pretende que essas experiências todas tenham um vulto, uma importância muito grande. Mas no fundo ele não se afasta do plano cotidiano, em nome de uma universidade transcendente, ou coisa que o valha. Retrato O segundo exemplo eu encontraria na pintura, no retrato. É muito significativo que os retratos fundamentais, centrais digamos, porque pode haver os retratados secundários na margem de um quadro, coisa desse tipo, mas o que se retrata em todo o passado grego, por exemplo medieval, é sempre a figura do universal concreto e um repertório do universal concreto que está muito reduzido. É o Cristo e a virgem Maria, são os santos, os heróis, os reis e não se vai além disso. É como na Grécia clássica também de deuses, deusas, os heróis e reis e não se vai muito além disso. Quer dizer, sempre o universal concreto e havia aquela correspondência que eu já falei na biografia, ou seja, esses universais concretos entrando com paradigmas, como modelos, como santos, no caso da santidade, como modelos que podem e devem ser seguidos por todos os homens que compõem uma certa comunidade. Então o príncipe, o rei é como se um modelo vivo para os seus súditos. E é justamente essa idéia que cai por terra com o advento do homem burguês. Porque passa-se a fotografar simplesmente a pessoa comum, uma pessoa que tem dinheiro, por exemplo, dou alguns exemplos, aqueles quadros maravilhosos da pintura flamenga, quando a pintura representava a figura do Cristo, da ressurreição do Cristo, por exemplo, e o pintor punha na margem esquerda, em baixo quase da moldura junto do quadro, ele punha sempre em atitude de oração, um pequeno casal, em contraste violento com o tamanho do Cristo, um pequeno casal rezando. Aquelas pessoas não são literalmente ninguém, estão muito bem vestidas e tem dinheiro e pagaram o quadro, pagaram o artista. Essa pessoa que paga o artista, que não tem nome é justamente o burguês. E a toda uma história belíssima na litografia das práticas da 80 renascença italiana, e também dos países baixos que mostra exatamente essa evolução, quer dizer, a figura do Cristo, do santo, da virgem, começa a entrar um pouco em decadência e se acentua mais simplesmente, por exemplo a mulher do comerciante instalada em seu pequeno trono burguês, muito limpo, muito asseado, muito bem composto, e ela, uma pequena balança pesa o ouro conquistado, comerciado pelo seu marido. Então começa a surgir essa idéia de que o burguês sem ser santo, sem ser herói, sem ser rei, sem ter nenhuma insígnia especial, tem apenas o seu dinheiro, mas ele merece também ser fotografado, quer dizer, retratado por um grande pintor como Rembrandt, por exemplo. República e Espaço Público Marilena Chauí Como o poder estava marcado pela ética da esfera privada, o poder estava marcado pela idéia de que o governante era quem tinha que ser virtuoso. O que acontece com os pensadores que vão criar a nova idéia da política? Que vão dizer que existe sim a rés pública, a coisa pública, o espaço público? O que eles vão fazer? Maquiavel, Política e Ética Eles vão dizer que o espaço público, a rés pública, o poder político não podem ser regidos pelos valores do espaço privado, portanto, pelos valores da ética, pelos valores da virtude. E eles vão se separar, e essa é a grande separação feita por Maquiavel, eles vão separar o público e o privado dizendo: o privado é o campo da ética, o público é o campo da política. E a política e a ética não têm mais nada em comum. Lógica de Forças O que vai ser dito é o campo da política não é regido pela virtude do governante. O campo da política é regido por uma lógica, que é a lógica das relações de força. E, para que o campo da política não seja o campo da violência e da guerra, é preciso lidar com esse campo de forças ou, 81 portanto, com os conflitos, com as divisões que caracterizam a sociedade. É preciso lidar com essas divisões, com esses conflitos, com essas diferenças de um modo tal, que a política não seja a guerra, que a política não seja a pura força, a pura violência, aquela que tem uma lógica das forças, que é encarnada no poder político como um pólo, que simboliza para o todo da sociedade uma unidade que ela própria não tem. Instituições E que se realiza através das instituições e através da lei. E, portanto, o importante é a qualidade da lei e a qualidade das instituições, a qualidade do direito e da justiça, a qualidade das decisões, e não mais a pessoa ou as pessoas que ocupam o campo político são ou não virtuosas. E a virtude é, portanto, com ela a ética se torna alguma coisa própria da vida privada. Itinerário do Novo Homem Gerd Bornheim Mas esse homem, que quer ser posto como novo, que quer ser dono de si, autônomo, para isso ele tem que seguir um certo itinerário, lançar mão de certos recursos e eu vou enumerar alguns desses recursos. Capitalismo O capitalismo, sabe-se que o próprio Marx reconhecia, que na Idade Média a organização da igreja era tão forte, tão absoluta que ela decidia até mesmo o desenvolvimento da economia. Quer dizer, em última instância, diria Marx, tudo é econômico. Mas de repente há uma instância ideológica que é a igreja, no caso que, das diretivas gerais dentro das quais se desdobrava a economia, toda ela. Bem, isso é rompido também pelo homem burguês. Basta lembrar, por exemplo, que é na Veneza do século XV em que surge o primeiro banco, e que assim acumula-se, ou seja, começa a acumular de fato o capital. E a grande transformação que se estabelece aqui, agora, é simplesmente o seguinte, é que a moeda, que sempre foi considerada essencialmente um 82 meio, para facilitar a troca, a moeda é essencialmente esse meio, ela é como que alienada de sua característica fundamental. E a moeda passa a ser um fim em si mesmo. Ela passa a ser uma realidade abstrata no sentido em que ela se desvincula do conjunto da rede de trocas que é sua motivação original. Pois é a partir daqui que o capitalismo adquire um aspecto de dominação sobre as estruturas sociais, suas mazelas que é surpreendente para a evolução do homem e especialmente para a evolução do homem burguês. Liberdade A liberdade tem toda uma história, não existe uma essência supra-histórica, perene, estável da liberdade. A não ser que queira começar, digamos, uma espécie de transcendência que é própria do homem. O homem não se perde na imanência como um animal, ele tem consciência das coisas. Então essa transcendência lhe dá uma certa superioridade em tudo que ele pode quase que se dispor das coisas de uma ou de outra maneira. Aqui estaria a origem da liberdade. O burguês, porém, ele vai elaborar um outro conceito de liberdade, e quem elaborou esse conceito fundamentalmente, no ponto de partida essencial é Descartes, mais uma vez. E de tal maneira que se pode estabelecer uma relação entre a concepção cartesiana do conhecimento e a concepção que ele tem da liberdade. E a inovação da liberdade reside em dois pontos: em primeiro lugar, para ele liberdade e livre arbítrio são sinônimos, é a mesma coisa. Tudo se resume agora à capacidade que o homem tem de escolha. E em segundo lugar, essa redução ou esse livre arbítrio, ele se entende, pura e simplesmente a partir daquela autonomia do homem burguês. Que não ocorria na Idade Média. Lá o homem era um súdito do rei, do papa, de Deus. Então esse ser súdito, o livre arbítrio era como que tolhido por essa subordinação essencial do homem medieval. Agora quando o homem se torna autônomo, ele tem o livre arbítrio. O livre arbítrio é toda a liberdade desse burguês, que se torna realmente um senhor. Isso fundamenta todo o projeto de vida dele. Ele é autônomo, ele trabalha, é merecedor do que tem, ele tem casa própria, acumula o seu capital, elabora a realidade toda, transforma tudo num objeto que ele pode manipular. Então se pode perceber que há de fato uma correspondência entre o modo como se constitui o objeto em Descartes, o princípio de manipulabilidade, digamos, se insere dentro da essência mesmo do 83 objeto e o homem, com livre arbítrio, que vai poder de fato manipular esse objeto constituído, construído pelo próprio homem. Contrato Social Mas há uma última característica e que configura todo o drama do homem burguês. E que chega a assumir características de tragédia, de certo modo. E essa última característica que é nova, profundamente burguesa, é o contrato social. Porque realmente se cada homem é um indivíduo e realiza a seu modo o individualismo, como é que vai se entender a própria possibilidade de uma vida coletiva, gregária, social, propriamente organizada? Se cada homem é uma ilha, se a minha liberdade, é uma frase cartesiana, se a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro, como é que vai se organizar a sociedade? É um problema pungente e original da burguesia. O que está em causa de fato, é a idéia de que o burguês faz desse outro lado dele, que ele não tem e que ele procura suprir através da imaginação, através da utopia. O grande problema está aí. É aqui que se percebe a crise do burguês que começa já no ponto de partida, como é que o burguês pode viver de fato coletivamente, dentro de uma sociedade. Porque esse burguês inventa uma sociedade como uma utopia que um lugar que não tem unidade e que ele nunca a rigor vai conseguir atingir. Quer dizer, a crise do burguês começa já no nascimento do burguês nesse sentido, a dimensão coletiva, política do homem de certo modo fica preterida, é uma dimensão que fica marginalizada. A ética fica prejudicada, vamos voltar ao nosso ponto de partida, em nome da afirmação da moral e essa moral fica cada vez mais coincidente com a subjetividade do homem. Então, a partir daí se coloca a questão do contrato social, que encheu bibliotecas durante dois séculos mais ou menos. A questão está aí, e vejam bem, no início, quando estava se formando esse projeto burguês, todo ele, surgiu já o primeiro processo e muito forte com Thomas Hobbes com o Leviatã. Em o Leviatã, o Tomas Robb parte da idéia de que o homem é o lobo do homem. O homem sendo o lobo do homem, a vida coletiva, a vida a dois, a vida plural, ela se torna totalmente impossível. E Hobbes é o primeiro quem diz não, o projeto burguês, são palavras dele evidentemente, não são palavras minha, o projeto burguês é inexeqüível. Ele não pode ser construído, não pode ser realizado, se o homem é o lobo do homem. Quer dizer, se cada homem está preso em sua casa, 84 em seu burgo e assim por diante, a auto-suficiência tão radicalmente implantada, então como é que vai se constituir de fato o projeto burguês, não dá? O Novo Campo Político e a Ética Burguesa Marilena Chauí A esfera da sociedade civil que é onde os indivíduos existem é a esfera da vida privada. Ora, se a sociedade civil é a esfera da vida privada, como é que o Estado se constitui como esfera pública, se o Estado surge a partir da sociedade civil para regulamentar a sociedade civil e comandar a sociedade civil, ou seja, a base do Estado são as relações privadas do mercado, baseadas, por exemplo, na lógica da competição. Então, o que eu estou tentando dizer é o seguinte, a sociedade moderna ao criar a sociedade civil como o mercado dos contratos de trabalho, da produção das mercadorias da acumulação de capital e da propriedade privada, faz com que a esfera pública, que é a esfera social, seja uma esfera privada, ou seja, uma esfera dos proprietários privados. E, portanto, nós não sabemos onde é que o Estado vai agir, pra ser propriamente esfera pública. Assim, a separação que dizia na esfera pública eu tenho a lógica política e na esfera privada, eu tenho a lógica ética, se complica. Porque eu tenho aí uma esfera que é pública, que é a esfera social, na qual os elementos da vida privada estão presentes. Natureza/Liberdade/Fins Nós podemos dizer que há dois motivos principais pra essa enorme dificuldade que existe no mundo moderno, no nosso mundo contemporâneo, pra separar o público do privado e deixar a ética num lugar e a política outro. A primeira dificuldade é a seguinte: homem ou seres humanos são diferentes de todas as outras coisas que existem. Que diferença é essa? Todas as coisas que existem estão submetidas à leis necessárias da natureza. A natureza é um enorme sistema de causas e efeitos. Aquilo que a gente chama de determinismo. Na natureza, tudo tem causa, tudo produz em efeito e a relação entre a 85 causa e o efeito é uma relação necessária. Na natureza não existe acaso, na natureza não existe jogo, na natureza não existe liberdade. Ao contrário, a marca dos seres humanos é a liberdade. Os seres humanos não pensam e não agem, segundo relações de causa e efeito. Eles agem por escolha, por deliberação, por decisão, eles agem por liberdade. Eles agem escolhendo os fins das ações que eles realizam, das práticas que eles têm, dos comportamentos que eles têm. E, portanto, o reino humano ou a esfera humana é diferente do resto da natureza. Essa separação entre a natureza e os humanos se deu a partir de um critério que é fundamental na ética, que é a liberdade e a finalidade. Se a política vai operar com o critério da liberdade, da justiça, das finalidades humanas, então há na raiz da política, um valor que é ético. Esse valor pode ser chamado de liberdade, de justiça, ele pode ser chamado de responsabilidades, mas esse valor é ético. Então, ao mesmo tempo em que há todo esse trabalho para separar a ética e a política, há toda uma elaboração teórica de separação entre o homem e a natureza, que coloca para a ética e para a política, os mesmos fundamentos, ou seja, elas estão baseadas, as duas, nas mesmas coisas. Elas estão baseadas na liberdade, na finalidade, na temporalidade humana, no fato do homem ser um ser cultural. Então, a separação entre a ética e a política vai ter que se dar no interior deste campo comum, que é o campo da cultura, o campo da história, o campo da civilização. Essa é uma primeira dificuldade, então, para separar a ética da política já que elas possuem o mesmo fundamento. Desigualdade e Violência Só que o aparecimento desse fundamento comum entre a ética e a política, que é a liberdade, vai ao mesmo tempo introduzir um complicador. E que vai explicar, afinal, porque é tão difícil a relação entre a ética e a política e esse complicador é um complicador para a ética, para a política e para a relação entre elas. Que complicador é esse? É o seguinte: ao afirmar que todos os homens, que todos os seres humanos são livres, é afirmado, simultaneamente, que por causa disto todos eles são iguais. A igualdade deles é a liberdade. Mas, de fato, na prática, essa igualdade não existe, muito pelo contrário, a sociedade é feita por uma divisão social entre os desiguais. E essa desigualdade, ferindo, portanto, a liberdade, ferindo aquilo que seria a igualdade, introduz para a ética e para a política o problema da violência, ou seja, a desigualdade real faz com que falar da 86 liberdade como o critério da vida ética torna a ética uma coisa irreal, porque a igualdade pela qual ela poderia funcionar não existe e torna a política incapaz, também, de realizar a liberdade. Estou chamando de violência todo ato pelo qual um ser humano é tratado desprovido de sua humanidade, ele é tratado como se ele fosse uma coisa. Três Critérios Para a Política E nesse sentido nós podemos dizer que há, pelo menos, três critérios pelos quais a ética e a política se relacionam, uma sendo subsídio para a realização da outra. Subsídio da ética para a política, primeiro critério: a relação entre meios e fins, na ética, é uma relação na qual não há o exercício da violência. O que eu chamo de violência é tratar um outro ser humano como se ele fosse uma coisa, como se ele fosse um objeto Tratar um ser humano como sujeito e não como um objeto é tratá-lo eticamente. Se a política, na esfera pública, for capaz de tratar os fins políticos através de meios não violentos, isto é, não tratando seres humanos como coisa, o sujeito como objeto, nós temos uma política ética. Segundo critério: embora a ética se realize no campo da vida privada, o que a ética busca nessa esfera que lhe é própria é a idéia de que nenhuma autoridade é legítima se ela for despótica, se ela for arbitrária, se ela se realizar como expressão da vontade individual e injustificada de alguém. Nesse caso é a política que vai ajudar a ética, na medida em que o próprio da esfera pública é afastar a autoridade despótica, isto é, aquela autoridade que se exerce como uma vontade pessoal, individual, arbitrária, acima de todas as outras. Assim, agora, a relação vem da política para a ética, em que a política auxilia a ética na luta contra as formas arbitrárias da autoridade no interior da vida privada significa, por exemplo, que a posição do pai, da mãe, do avô, da avó, do patrão, do chefe não é tão simples, que não basta a vontade dele pra que a autoridade dele seja eticamente legítima. A política, portanto, nos ajuda a melhorar a própria ética. E o terceiro critério: é o critério que vai, que pode valer pra ética e pra política, que é a redefinição da idéia mesmo de liberdade. Invés de nós pensarmos a liberdade como direito de escolha, vale a pena pensar a liberdade como o poder de criar o possível, ou seja, a liberdade é 87 essa capacidade dos seres humanos de fazer existir o que não existia, de inventar o possível, de inventar o novo. E, se a liberdade for pensada dessa maneira, a relação entre a ética e a política pode-se dar com a criação histórica na esfera privada e na esfera pública. O Poder de Criar o Possível Estou convencida de que há uma única forma da política compatível com a ética e uma única modalidade da ética compatível com a política. A forma política é a democracia, e essa forma ética é a liberdade através dos direitos. Então, como a democracia é o campo da criação dos direitos e, como a ética é a afirmação dos direitos, através do direito fundamental que é o direito à vida e a liberdade, a compatibilidade entre a ética e a política só pode ocorrer quando o campo da política permite o tratamento dos conflitos e quando o campo da ética permite a divulgação dos seus princípios. Então, eu diria que é a possibilidade de dar a ética um conteúdo público e dar a política um conteúdo moral, que ocorre na democracia. Eu acho que não foi por acaso, pra ir lá no meu ponto de partida, não foi por acaso, que os inventores da política, os gregos, considerassem que era só na política que a ética se realizava. E por política eles entendiam a democracia como a igualdade perante as leis, que é a isonomia; e o direito a expor, discutir e votar a opinião em público, que é a isegoria. Então se nós considerarmos que o campo da ética é o campo da liberdade, e o campo da política é também o campo da liberdade, só uma forma política na qual esse princípio possa se realizar é que torna viável uma relação entre a ética e a política. O que significa que o ideal ético da visibilidade só pode se realizar na prática política da democracia e vice e versa. Evidentemente, isso seria um ponto de partida, isso não é uma conclusão, pelo contrário. Se assim for, nós temos que começar tudo de novo, porque nós temos que recomeçar a discutir a desigualdade, a violência, a mentira, a corrupção, a privatização e a oficialização estatal das nossas vidas. Ética, Informação e Recorte José Miguel Wisnik 88 Toda imagem é um recorte, se apresenta como um recorte da realidade. Na verdade ela retira uma porção de realidade do seu contexto original e transfere essa imagem pra um outro contexto, onde ela vai ganhar uma nova significação necessariamente. A imagem, mesmo que ela seja uma reprodução do real, ela é sempre, de algum modo, uma violenta interpretação do ponto de partida, do seu ponto de partida. Porque a imagem é tirada do seu lugar de origem e ela é montada num outro lugar, num outro contexto. Jornalismo e Literatura Nós podemos dizer que essa questão da representação ela é central pra representação literária e pra representação jornalística. Mas, na representação literária, nós podemos dizer que quando nós começamos a ler uma história, nós sabemos que aquela história de saída está nos propondo uma situação imaginária, uma situação ficcional e, portanto, o contexto é dado pela própria história, ou seja, a própria história que vai criar as regras pra que a gente leia os acontecimentos que se dão ali. Então, nós podemos começar a ler uma história em que nós vemos que nessa história podem acontecer coisas sobrenaturais. Como as pessoas podem voar, os objetos podem se transformar magicamente, nós podemos andar de tapete mágico, ou as pessoas podem se transformar em bicho e os bichos em pessoas, mas a história nos mostra que essas são as regras que vão comandar aquele imaginário e, portanto, as regras que comandam o sentido, o que faz aquelas imagens verossímeis. Elas se tornam, mesmo que elas não sejam reais mas imaginárias, porque elas nos parecem verossímeis, elas fazem sentido dentro daquele contexto que a própria narrativa está criando. No entanto, uma representação jornalística, uma reportagem, ela expõe um outro problema. Porque ela não nos propõe a idéia de que ela está criando uma situação imaginária, mas que ela está reportando um fato real. Quando lemos um jornal nós estamos tomando contato com a realidade através de uma representação que ele nos oferece. No entanto, uma coisa que a gente não costuma pensar, a gente não costuma ter consciência no momento em que estamos lendo o jornal, é que o jornal nos 89 apresenta uma realidade que foi tirada do contexto original, de um contexto de realidade, através de uma representação dela, e o jornal cria um outro contexto. Então nós temos uma situação que está localizada no seu mundo de relações, no seu mundo de referências, onde ela faz um sentido, e a toda reportagem, a toda representação dessa realidade necessariamente recorta uma posição, uma parte, um fragmento dessa realidade e transfere para um outro contexto, que agora vem a ser o universo do próprio jornal, onde nós estamos tomando contato, digamos, com aquele fato ali reportado. Balsac e As Ilusões Perdidas Entre 1835 e 1843 Balsac escreveu um romance chamado “As Ilusões Perdidas” que tem como núcleo central a questão do jornalismo e, eu diria que, mais do que especificamente, o jornal, Balsac estava tratando as relações que eram historicamente muito novas, entre jornalismo e literatura. Porque o jornal era um fenômeno recente, o jornal de massas, em grande quantidade, o jornal com assinante, com matéria paga. A quem diga que nesse momento, a introdução do anúncio pago nos jornais em sistema de assinatura, significou para a literatura de massas e o jornal, inclusive, ou seja, o fenômeno da literatura de massa e do jornalismo significou algo como a introdução da máquina a vapor na indústria, ou seja, ela transformou completamente o quadro, a situação da literatura e criou o fenômeno moderno do jornalismo. Nesse romance, Balsac trata, a partir de um personagem, que é um jovem escritor que se transforma em jornalista, ele trata desse tema, da imbricação entre o jornal e a literatura, que aliás conviveu no mesmo meio. Porque os romances eram publicados freqüentemente como folhetins no próprio jornal, de tal modo que nós tínhamos lado a lado a narrativa literária ficcional e as reportagens ou as matérias que tratavam diretamente da realidade. E o que nós temos nesse romance é uma extraordinária reflexão sobre esse dado, vamos dizer, do mundo moderno que é apresentado não só por relatos históricos, ou por relatos imaginários, ficcionais e literários, mas de ser relatos jornalísticos, quer dizer, a cada dia, no dia a dia e lido através daquilo que Hegel chamou de a oração matinal do jornal, a prece diária que se introduz 90 no cotidiano, o jornal se torna uma espécie de representação contínua e diária do que está se passando no mundo. Na verdade, Balsac compreendeu um momento, no momento inaugural do jornalismo, alguns traços, alguns problemas, ou algumas questões, que são questões extremamente vivas sobre o modo que literatura e jornal se relacionam com a realidade. Nós podemos dizer que a crítica que Balsac faz do jornalismo, dos jornalistas, em grande parte é uma defesa do escritor que vê o jornalismo tomar um espaço que era originalmente da literatura. Porque o jornalista se torna, de um certo modo, o intérprete diário do mundo, tomando, de certa maneira, o lugar do narrador, do escritor que interpreta a sociedade e, como sabemos, Balsac tinha um programa de representação da sociedade totalizante, totalizador e, ao seu projeto de romance, a comédia humana quer nada mais, nada menos do que abarcar toda a sociedade francesa e todas suas implicações e na verdade, ser uma espécie de Napoleão das letras, como Balsac mesmo se declarou. Então, o surgimento do jornalismo, com as suas características próprias, o modo de tratar a realidade, de certo modo avança nesse projeto, que nós podemos dizer, que certo modo, é hegemônico em Balsac, de querer representar a comédia humana como um todo. No entanto, diz ele, a comédia humana passa a ser representada nos jornais no dia a dia, e de certo modo, os jornalistas ao mesmo tempo falando da realidade, falam do mundo e dos próprios escritores através da crítica literária. Novos Personagens: os Jornalistas Então, diz ele, vou escrever um romance que está tratando de um assunto novo, os jornalistas, personagens que não existiam no tempo de Molière, por exemplo. Mas é preciso tratar desses personagens porque eles tratam de tudo. É como se fosse assim, é preciso incluir os jornalistas na comédia humana porque os jornalistas fazem diariamente a sua comédia humana, escrevem a sua comédia humana, sua versão da comédia humana. Nós podemos dizer, de fato, que o jornalismo é um para-literatura. No sentido de que é uma representação da realidade como a literatura também é. Só que o jornalismo segue outras regras de representação da realidade que, embora não sejam ficcionais, porque ela se propõe a falar da realidade, de fatos acontecidos, de fatos verídicos, portanto, de reportar a todo tempo ao real, nós 91 podemos dizer que o jornalismo é também uma forma de ficção. Nós nem sempre tomamos consciência disso, e no entanto, esse tema está de certo modo, bem percebido e bem flagrado no romance de Balsac. Jornalismo e Ficção Por que o jornalismo é ficção? Quando o jornal tira elementos, vamos dizer, de um dado acontecimento e leva para um jornal, necessariamente, ele faz um recorte que desfaz o contexto original e ao mesmo tempo ele cria no jornal um novo contexto em meio a qual este relato vai acontecer. Embora, mesmo que não seja incluída nesta representação, nessa reportagem, não seja incluído nenhum dado imaginário, nenhum dado inventado, mesmo que o jornalista não invente nada, o simples recorte já tem um efeito de transformação que, podemos dizer, que é de certo modo comparável ao da literatura. Uma frase dita num determinado contexto quando ela é, vamos dizer, reportada em um outro contexto, em uma outra situação, quando ela é recortada, está entre outras informações, ela muda completamente de sentido. E é nessa passagem que se dá a transformação que o jornalismo sempre opera sobre a realidade. Nós nos acostumamos a ler uma reportagem como se ela sendo mais real do que real, porque ela tem o peso da palavra escrita, impressa, que nos parece uma forma acabada da verdade. No entanto, o que nos escapa freqüentemente, e essa é uma ilusão que toda página escrita nos dá, de que ela é verdadeira, é uma ilusão difícil de perder, quando nós lemos um jornal, ou quando nós vemos a palavra escrita, nós tendemos por uma espécie de movimento de boa fé quase sempre instintivo, a acreditar no que está escrito. No entanto aquilo que se apresenta ali é uma construção, uma transformação, passou por uma operação de deslocamento e de transformação que, muitas vezes altera completamente o significado do que foi o acontecido. Ética e Imprensa Então, por isso mesmo, é nessa passagem que se coloca a questão ética jornalística, esse é um dos lugares fundamentais, em que se coloca a discussão do problema ético na imprensa. Porque todo o trabalho jornalístico está se dando em cima desse poder, que é um poder enorme que o jornal tem, que é o de ser uma máquina de fazer e desfazer contextos, de montar e desmontar contextos, 92 de destruir contextos que estão dados no lugar onde as coisas acontecem e criar novos contextos que é o lugar onde a notícia vai aparecer ou vai se apresentar. O Verdadeiro é o que Parece Real Na visão de Balsac os jornalistas tinham, entre outros poderes, o poder de apresentar uma versão da realidade que parece verdadeira por ser verossímil, ou seja, pelo fato de fazer sentido ela passa por ser verdadeira. Então, um dos jornalistas no romance de Balsac diz, como se fosse assim, um axioma que seria o seguinte: tudo que é provável é verdadeiro, ou seja, o que pode parecer real nós tomamos como real, ou seja, é claro que esta é uma possibilidade do limite do poder que o jornal tem de fazer passar por real aquilo que possa parecer real. Esse é um poder que o jornal tem. É um poder que se manifesta imediatamente e com uma força maciça, da sua penetração e da sua erradicação. O que Balsac mostra, de certo modo, é que os jornalistas usam expedientes e podem usar expedientes, e nisso está o problema ético da imprensa, que fazem com que aquilo que possa parecer verossímil passe por verdadeiro. No romance de Balsac tem várias situações hilariantes, até que ele mostra como o jornal pode criar uma realidade a partir de contextos que ele produza. Um crítico vai ensinando ao outro, vai ensinando ao jovem escritor como é que ele pode fazer a crítica de um romance em que o romance possa ser dito como muito ruim, em uma outra crítica em que o romance possa ser considerado como uma obra-prima, numa outra crítica o romance possa ser considerado como uma obra mediana. E isso com argumento de diferentes tipos, e todos os argumentos também verossímeis para sustentar as mais diferentes versões da realidade segundo as conveniências. Então essa criação no contexto, ela está presente a todo momento em que nós temos uma imagem recortada. Aqui, por exemplo, estou falando de um lugar aparentemente neutro, onde estou diretamente em contato com a câmera, mas na verdade, é uma ilusão montada para oferecer a impressão de que estamos numa situação de pura reflexão, de pensamento, de uma conversa verdade em abstrato diante daquela que está se passando nesta sala, neste momento, do contexto que está violentamente abstraindo da cena em que eu falo neste exato momento. 93 Jornalismo e Perda das Ilusões Justamente por isso é fundamental para nós entender o significado, vamos dizer, quase exemplar, do título desse romance: “Ilusões Perdidas”. É um romance que trata, na verdade, da abertura de um mundo fadado à perda das ilusões, quer dizer, um mundo em que muitas ilusões se perderam, ou seja, a idéia de que nós vivemos em um mundo regido pelo desencanto das grandes esperanças de transformação. É uma coisa que está profundamente contida no romance de Balsac. E, de certo modo, no romance de Balsac, os jornalistas aparecem, de certo modo, como protagonistas desse mundo onde as ilusões se perdem a todo momento. Quer dizer, os jornalistas estão em contato com um mundo onde as ilusões se apresentam e se desfazem. A Reprodução das Ilusões Vamos dizer, a questão que fica para a discussão do fenômeno do jornalismo é a questão de que nós vivemos num mundo onde as ilusões se perdem e no entanto um mundo onde as ilusões se reproduzem em grande velocidade, em grande quantidade. A própria capacidade de multiplicar as imagens, de representar o mundo a cada vez, sobre múltiplas óticas, muitas versões, a cada momento criar novas representações do mundo. O mundo contemporâneo é um mundo que se reconhece profundamente nesse mote que é o título do romance de Balsac, “Ilusões Perdidas”. E como Balsac percebeu muito bem, os narradores desse processo, de certo modo, os fomentadores do imaginário desse processo são os jornalistas. Quer dizer, os jornalistas têm a posição simbólica de uma espécie de campeões das ilusões perdidas. Ilusões e Desilusões No entanto, o trabalho jornalístico contém uma ambigüidade que, ao mesmo tempo que defrontar com as ilusões do mundo, repor continuamente novas ilusões. De certo modo, segundo a visão de 94 Balsac, o jornalista é aquele que fomenta as ilusões, cria as ilusões que ele mesmo vai desfazer depois. Como se ele produzisse valores que ele mesmo se encarrega de destruir. Valores que ele mesmo engendra, que ele faz nascer, que ele faz fluir. A Verdade da Imprensa O que está em questão, portanto, não é a idéia de que teríamos que voltar a uma espécie de verdade fundamental, como se fosse possível transpor ou conhecer o mundo através de uma espécie de pureza originária, que estaria, na verdade, e que ela fosse diretamente reportada, não é disso que se trata. Evidentemente nós sabemos que tanto a arte quanto o jornalismo produzem versões do mundo que são transformações deles. O que, no entanto, o que me parece, é que a compreensão disto, a compreensão do caráter ficcional da arte como do jornalismo contribui para entender melhor o próprio papel do jornalismo e o papel que ele tem na sociedade democrática, ou seja, a liberdade de imprensa deve estar diretamente ligada ao questionamento e a discussão da natureza do trabalho da imprensa e do poder que a imprensa tem, que é um poder inteiramente desigual em relação aos limites da pessoa. O poder que a imprensa tem de criar as suas próprias realidades. Vivemos em mundo em que as ilusões foram colocadas em cheque, no mundo das ilusões perdidas. E ao mesmo tempo vivemos num mundo que só se dá a conhecer, de certo modo, através de ilusões, através de imagens, através de versões, através de interpretações. Interpretações que podem nos vir através da arte ou do jornal, através dos meios de massa. Então, nós não temos ilusões para sustentar e no entanto, só nos sustentamos de ilusões e, é neste ponto que reside justamente a questão ética fundamental, que consiste numa consciência disto. Na verdade, o que está se dizendo aqui não é se fazer uma crítica negativa do trabalho do jornalista, por exemplo, mas ao contrário, levantar uma espécie de consciência de que é um dado constitutivo do trabalho do jornalista a mediação da ilusão, quer dizer, o jornalista está trabalhando com a ilusão, ele está trabalhando com ficção. E isso dentro dos moldes do trabalho jornalístico isto representa um enorme poder. Então, a consciência deste poder e de estar trabalhando com a ilusão me parece fecunda para a discussão da questão ética que envolve tanto a arte quanto o jornal. 95 Nem pra quem faz, nem pra quem lê o jornal não é uma apresentação de uma verdade, porque, na verdade, realidade, ela está presente nos seus múltiplos contextos, ela não pode comparecer ao jornal, senão através dos recortes, dos contextos, dos verossímeis criados pelo jornal. No entanto, a consciência disso, ela pode levar a uma consciência, a uma medida importante que o jornalista tem do grau de elaboração e de interpretação que ele está necessariamente fazendo no momento em que ele está reportando o real, e também do leitor que ganha uma consciência não tão direta, não tão diretamente iludida da idéia da verdade do que está escrito, mas da idéia de que ele também tem que, de certo modo, que desconstruir o jornal, que ele tem que repensar o que ele está vendo, que ele tem que, de algum modo, ele tem que refazer a realidade que chega a todos os dias pronta no jornal. Apesar do ritmo, da rapidez, da multiplicidade, da fragmentação, não é? É como se todos nós estivéssemos as voltas com esse trabalho, de construir um sentido que nunca é dado pronto, que não tem um horizonte definido ou definitivo, mas que se dá através dessa operação de ilusão e desilusão. Que a arte nos ensina a conhecer e a suportar e que os jornalistas, o jornalismo poderia nos levar também a suportar e conhecer. A Ética das Imagens Nelson Brissac O mundo contemporâneo é tomado por uma opacidade. E cada vez mais difícil ver, onde todas as coisas são trazidas para o primeiro plano, onde tudo parece uma vitrine. Não se trata da forma tradicional do ocultamento, da cidade antiga recoberta por um véu. Hoje, o problema de ver está no excesso, nas coisas que se mostram sem parar, no excesso de coisas que há para ver. Isso me fez pensar nessa supressão que a imagem contemporânea provoca do lugar, do espaço urbano e transforma tudo numa obscenidade daquilo que está sempre sendo jogado no nosso rosto, está sempre jogado pra frente. Não há mais a ausência, só a mais absoluta sobre-exposição das coisas. Há uma inflação de imagens, nós convivemos com imagens que se proliferam como se fossem câncer. Imagens que se proliferam de forma descontrolada, cujo ritmo, cujo espaço é determinado 96 pelo próprio mecanismo de produção da imagem e não pela relação que essas imagens estabelecem com as pessoas e as coisas. Rosto O que escapa a essa imagem? O que a imagem contemporânea não consegue mais ver? Nesse seu afã de ver, o que ela deixa de ver? Ora, ela deixa de ver justamente o pequeno e o grande. Ela deixa de ver justamente aquilo que não se adequar a essa sobre-exposição, a esse primeiro plano em que tudo se torna visível. Ela deixa de ver o rosto e as paisagens. Esses são os invisíveis da imagem contemporânea, aquilo que ela não pode ver. Gesto Breve história de um gesto. Um rapaz acompanha a moça até o portal de sua casa e os últimos raios de sol iluminam as flores no jardim Num determinado instante, ela se vira e levanta a mão num gesto de adeus. O movimento da mão tem a graça e a leveza de alguém que parece lançar balões coloridos ao ar. Uma imagem fulgaz, num instante, num momento, que os pintores, os cineastas, tem que isolar no espaço e no tempo pra poderem apreender. Um gesto tão momentâneo que o nosso olhar não seria capaz de deter. É possível hoje retratar um rosto? A fotografia contemporânea, quando ela procura mostrar as pessoas, ela não faz mais do que transformar o rosto em pose. Ao fotografar as pessoas conhecidas, ela nos passa o retrato da fama, ela não passa de uma fabricação de clichês. É como se, no retrato contemporâneo o rosto não nos olhasse mais. Daí sua virtual desaparição, daí a ausência cada vez maior do rosto na fotografia contemporânea. Retratado olhando a esmo, ou no cinema, a interdição do olhar frontal estabelecido pela ficção, tem eliminado a beleza simples que o cinema mudo tinha com todos aqueles personagens que nos encaravam nos olhos. Walter Benjamin tem uma belíssima passagem sobre uma fotografia que retrata uma peixeira numa rua de Nova York. Nada ali denota uma predisposição a imagem, é como se ela nunca tivesse sido fotografada antes. É como se o seu olhar desarmado acolhesse o olhar do fotógrafo e 97 o retribuísse. Nada ali é signo de coisa alguma, nada ali remete a um conhecimento histórico, nada ali remeti a idéias políticas, nada ali remeti senão a uma extraordinária presença. É como se ela estivesse ali, naquele instante precioso que a fotografia registrou tudo para sempre. Essa idéia de uma imagem sendo capaz de registrar uma presença tornou um trabalho Bart. Bart dizia que dentre todas as imagens, a imagem que ele buscava era aquela dopada de um ar, uma imagem que se diferenciasse das outras, uma imagem que possuísse algo invisível, algo que não está registrado em sua superfície, algo que ela não imediatamente mostre, mas algo que a gente sinta, esse seu ar, algo que faz com que ao percorrer todos aqueles clichês, um nos faça parar, um nos faça exclamar, é ele, é esta pessoa aqui, é ela, ela está aqui. Podem as imagens atuais nos trazer os rostos e as paisagens, estes invisíveis? Podem nos mostrar o vento soprando nas árvores? Lugar O que é uma ética das imagens se não dar tempo e lugar para as coisas, aquilo que elas precisam para ser. Imagens que procurem respeitar o tempo e o espaço para que as coisas se cristalizem diante dos nossos olhos. Saber atentar para o tempo e o lugar das coisas. Poderiam as imagens salvar as coisas da sua miséria? Nesse fluxo intensivo que tudo existe, nesse fluxo que arrasta as imagens uma depois das outras é preciso saber conservar, é preciso ter imagens que saibam esperar, é preciso deixar as coisas se cristalizarem, restituir lentidão às imagens. O cinema já foi capaz um dia de comportar o tempo, de comportar uma “durée” (duração). O cinema possuiu os planos seqüência, o cinema possuiu imagens em que as coisas aconteciam dentro dela, o cinema foi capaz de construir imagens que seguiam a seqüência da vida, que se colavam ao tempo real e ao tempo da experiência das pessoas. Esse fluir do tempo misterioso das imagens, tudo aquilo que a montagem vai eliminar era uma tentativa corresponder e responder às necessidades do material. De ouvir o tempo que o material precisava para aparecer na imagem. A fotografia também buscou esses momentos decisivos. 98 Nesse instante em que o fotógrafo, e eu penso no Cartier Bresson, em que o fotógrafo atravessa a rua e vê um bêbado se inclinando diante de um gatinho. As suas costas formam um ângulo perfeito com relação às escadas de incêndio dos prédios atrás. A sua cabeça parece compor como que um quadro com a figura do gatinho. É como se todo conjunto tivesse se articulado numa composição perfeita, num ajuste que só aquele instante foi capaz de reunir e que no minuto seguinte as coisas se dispersariam. O fotógrafo está ali para captar aquele momento de iluminação, aquele instante de magia em que todas as coisas encontram sua ordem antes de se dissolverem na desordem do mundo. Ora, será que o nosso olhar ainda é capaz de se abrir a essa magia? Será que ele ainda é capaz de registrar esses instantes em que todas as coisas se compõem? O fato do jornalismo é uma procura de imagens colada à ação. Ele vive do calor da hora. O correspondente de guerra é parecido com um repórter policial, todos eles estão tomados pela necessidade das emoções brutas no instante em que tudo se resolve, da violência, do tiro, da guerra. O Rosto e a Paisagem Ora, uma exposição em recente. reuniu vários fotógrafos em torno da seguinte questão: Se o mundo estivesse em paz, o que é que você fotografaria? 99% das fotos mostravam rostos e paisagens. É como se o fotógrafo, se ele tivesse tempo, ele se abriria pra tudo aquilo que escapa à ação, pra tudo aquilo que exige contemplação, pra tudo aquilo que exige um olhar mais atento: o rosto e as paisagens. A Cena e o Obsceno Será que as imagens são capazes, quando tudo parece à disposição, de respeitar? Manter as distâncias que pedem as coisas e as pessoas? Nós vivemos num mundo do Vaierismo, nós vivemos num mundo do exibicionismo. Será que as imagens são capazes de olhar com pudor? Os filmes de Kesovisky, só se aproximam das pessoas para mostrar que existem coisas que são vetadas às imagens. Esses filmes só se aproximam das pessoas, para mostrar que existem limites, os limites da intimidade, os limites que dividem a vida privada da vida pública. Não por acaso, 99 em muitas das suas cenas, a câmera fica no limiar da porta, no beiral de uma janela. É como se eles, se ela respeitasse aquele espaço sagrado, que é o espaço da casa. Bem ao contrário das imagens televisivas do tele-jornalismo atual, que não hesitam em invadir a casa dos outros atrás de um furo de reportagem. Há um distanciamento necessário. Não se deve dizer, filmar alguém tomado pela emoção. São imagens que guardam um pudor dos gestos e das palavras. A ética das imagens fala, antes de mais nada, dos limites da imagem. Um mundo em que o olhar, em a imagem acredita-se, sem limites, é preciso demarcar os limites da imagem. Não se trata de necessariamente frear ou acelerar. Tempo As imagens vertiginosas, que nós vemos hoje na televisão, elas fazem parte da sensibilidade contemporânea, elas correspondem a aceleração do mundo. O problema está na uniformização dessa velocidade. No ritmo único que desconhece as diferentes nuances das ações, do pensamento, da vida cotidiana. Essa sobreposição de um padrão único de edição das imagens, que uniformiza todos os gestos, uniformiza todos os discursos e faz com que todas as expressões sejam iguais. Ora, a ética das imagens é essa luta por reconhecer as diferenças, pra dar voz às diferentes formas de expressão, a cada um dos gestos na sua maior ou menor rapidez, à maneira mais rápida ou mais lenta, mais distante ou mais próxima que as coisas tem de aparecer pra nós. Essa multiplicação dos pontos de vista, essa pluralidade de formas de aparição, essa, é a imagem contemporânea por excelência. A ética das imagens é uma polifilia, é uma democracia das imagens. Cássio Vasconcelos Cássio Vasconcelos trabalha de uma forma muito peculiar. Ele vai a locadora de filmes e escolhe um vídeo a esmo, qualquer um, um Western, um filme pornô, um filme qualquer. Coloca o filme 100 no seu monitor e interrompe a imagem, num momento preciso, em que temos um close de uma mulher, um rosto com os olhos fechados. Ele refotografa essa imagem com uma Polaroid. E o resultado é uma imagem cuja luminosidade e cores possuem a transcendência e a transparência das antigas pinturas pré-rafaelitas. Possui uma dignidade que aquela imagem suja que aquela imagem aviltada, parece nunca possuir. É como se fosse possível por aquele gesto resgatar o clichê, resgatar a força de expressão das imagens, nos fazer ver algo numa mulher de olhos fechados, que nós não poderíamos jamais perceber naqueles filmes. Transformar a imagem da mulher, aviltada pela sobre-exposição da pornografia, numa Madona, numa figura dotada de áurea, numa figura dotada de sagrado. Fazer ver o invisível em meio do hiper-visível. Resgatar a força que as imagens contemporâneas são capazes de ter. Não Se Vê Com os Olhos Nunca foi tão atual a questão do cego. É como se a cegueira fosse uma metáfora da condição contemporânea. O excesso de coisas a ver, o excesso de coisas que se mostram a nós, cega. As imagens seriam capazes de fazer um cego ver? Bávika um fotógrafo cego, ele fecha os olhos para ver. É preciso dizer isso, olhar com o vento. O vento recorta as coisas e indica pra ele a sua posição e o seu volume. E o vento vindo de encontro ao seu rosto desperta as suas feições de cego e permite que ele corresponda ao olhar. O olhar do cego é um olhar íntimo, ele acolhe as lembranças, a sensibilidade para as experiências do dia-a-dia e os múltiplos relatos que lhe fazem das suas imagens. O cego cria um novo modo polifônico de ver, há o deslocamento do olhar tradicional retilíneo e a introdução de múltiplas perspectivas de múltiplos pontos de vista. Com o cego passa-se do olhar à visão, ao olhar reflexivo, à linguagem. A imagem contemporânea é a imagem do visionário. 101 102 PARTE III Política e Ética na Atualidade 4. ATUAIS DESAFIOS PARA A POLÍTICA E A ÉTICA A Política em uma dimensão Ética convive com grandes desafios na atualidade. Grande parte destes desafios tem sido confrontados e tem desencadeado respostas Éticas pelos movimentos sociais. Os movimentos sociais constituem-se em forças sóciopolíticas responsáveis por ações que impulsionam reformas civilizatórias - operadas sob uma determinada estrutura e qualidade de relações sociais - e/ou transformações civilizatórias - operadas sob uma determinada ruptura de estrutura e qualidade de relações sociais. As lutas conduzidas pelos movimentos sociais configuram interesses, identidades subjetivas e projetos sociais dos grupos sociais que os conduzem. Os movimentos sociais formados na passagem do século XX para o século XXI tem se configurado de uma nova forma. Os movimentos sociais até os anos 80 do século XX constituíam-se tendo em vista, fundamentalmente, o reconhecimento da identidade sócio-cultural dos seus membros, fossem eles negros, mulheres, homossexuais, ambientalistas, camponeses, índios etc. Os movimentos sociais atuais, formados sob a globalização da economia e, por conseqüência, a globalização das contradições e conflitos sociais que dela decorre, tem unificado as causas dos diversos grupos à causa da ruptura com a estrutura econômica sob mercado globalizado. O modelo civilizatório da globalização é responsabilizado por estes movimentos pelas novas dimensões e qualidades das contradições e conflitos atuais e, portanto, dever ser combatido. Os movimentos sociais atuais caracterizam-se por: contestar os valores que impulsionam a sociedade capitalista, alicerçada no lucro e no consumo de mercadorias supérfluas; unir em um campo de ação política comum, grupos políticos e tribos culturais de origens, ideologias, instituições de apoio e trajetórias históricas diferenciadas sem apagar, todavia, as diferenças existentes entre elas; respeitar as diversidades culturais dos povos e nações sem se submeter a 103 nenhuma delas, visto que cada uma contém seus imperativos e constrangimentos étnicos, religiosos e raciais; e confrontar o status quo constituído por meio de polaridades que configuram campos sociais e políticos, como dominantes e dominados, ricos e pobres e incluídos e excluídos, típicos dos movimentos sociais precedente aos anos 60. Estes movimentos, portanto, tem dado conta de materializar compromissos, orientações e práticas Éticas, em especial situado o ser humano como o fim da ação política, a igualdade com o respeito à diferença e a democracia como método e como prática inadiável. 4.1. Conceito de “ Política” A Política é uma prática social que abrange as relações entre grupos humanos como classes sociais, nações etc. Abrange, ainda, as atividades dos referidos grupos sociais por meio das suas organizações tradicionais (partidos políticos, sindicatos etc) e das suas organizações novas (organizações não governamentais, centros culturais etc). A Política orienta-se para a ordem social vigente, esteja ela no plano local, regional, nacional ou internacional. Ordem social esta que se manifesta, entre outras formas, por meio de estruturas econômico-sociais, jurídico-políticas e ideológico-culturais e de relações sociais de grupos (gênero, interétnicos, sexuais etc), distribuídas através de macro e de micro estruturas. A Política volta-se, objetivamente, para consolidar, desenvolver, reformar ou transformar a ordem social vigente. A Política, por ser um campo de pensamento e prática social que se ocupa da esfera pública, somente assume a plenitude da sua realização por meio da atuação consciente e organizada dos agentes políticos individuais e coletivos (partidos políticos, sindicatos, ONGs, agremiações estudantis etc). Atuação que, como tal, pode ocorrer, tanto por meio de atos espontâneos dos indivíduos ou de grupos sociais, quanto de atividade prática, organizada e consciente de agentes políticos coletivos que se materializa socialmente por meio de projetos, de programas, de estratégias, de métodos e de ação política. Os agentes políticos individuais e coletivos são indivíduos concretos e integrantes de um grupo social mais amplo (nação, classe social, partido político etc). Por meio da sua atuação política os agentes políticos individuais e coletivos expressam e defendem os interesses comuns 104 do seu grupo social nas relações com os demais grupos sociais, com o Estado, com outros povos etc. Na Política o indivíduo encarna uma função coletiva e expressa um interesse comum, qual seja, do (s) grupo (s) que integra. Ultrapassa, assim, o plano pessoal e integra a ação comum ou coletiva do (s) grupo (s) social (is). 4.2. Política Ética O primeiro desafio para a conquista de uma Política Ética é a superação de problemas concernentes a relação entre a Política e a Moral. Isto porque eles podem comprometer a conquista de eficácia e de legitimidade do pensamento e da prática política A ação política deve se desvencilhar da chamada “política moralista”. Originada de um moralismo abstrato, que julga os atos políticos com critérios puramente morais, a ação política moralista tende a aprovar somente os atos políticos que possam ser realizados por meios “puros”, isto é, que não perturbem a consciência moral ou satisfaça plenamente as boas intenções ou as exigências morais do indivíduo. A política moralista determina uma apreensão da ação política dos atores políticos individuais e coletivos tão-somente por suas virtudes ou vícios. Apreensão esta que normalmente se encontra personificado em um personagem que simboliza, que lidera ou que dirige a ação política, a exemplo de uma liderança de um movimento social, de um dirigente de um partido político ou de um governante de um governo. Como conseqüência, a política moralista termina por depositar as esperanças de transformação da ordem social vigente na moralidade dos atores políticos individuais e coletivos e por personificar o poder. A sua principal debilidade analítica reside na não correlação entre as qualidades morais de um indivíduo, grupo social, governo, partido político etc, com uma determinada ordem social. As conseqüências políticas, além da própria personificação do poder e da política, são diversas: redução da Política à Moral; impotência da ação política; condenação ou renúncia (ou absenteísmo) política; refúgio na esfera privada representada pela Moral em face dos problemas da ordem social vigente etc. Estas conseqüências contribuem, objetivamente, para que prevaleça uma política não Ética, que pode se afirmar nutrindo-se exatamente no terreno da impotência e do absenteísmo 105 político. As suas formas podem ser, entre outras, o exercício autocrático de poder, a presença na esfera pública de práticas políticas com características fisiológicas e clientelísticas, o descrédito política, o relativismo na avaliação dos projetos e práticas políticas, a instrumentalização política das organizações da sociedade civil etc . A ação política deve se desvencilhar também do chamado “realismo político”. Originada da legitima busca da conquista da autonomia e especificidade da esfera Política em face das outras esferas (Moral, Direito etc), bem como protegê-la dos caprichos pessoais e destituído de compromisso e responsabilidade social de quem governa e/ou dirigi, tende a dar lugar ao chamado realismo político (ou política realista), qual seja, assegurar certos objetivos sociais a qualquer preço, sejam quais forem os meios necessários para tanto. O realismo político, portanto, remete os compromissos morais para a esfera puramente privada, em contraste com a Política, que seria da esfera puramente pública e sem interdependência direta com a Moral. O realismo político subtrai dos atos políticos qualquer avaliação moral, visto que os fins lhe imporia iniciativas socialmente necessárias e os resultados concretos lhe emprestariam a legitimidade política (não necessariamente Moral). Todavia, esta atitude não permite que a Política possa adquirir eficácia, visto que para tanto ele deve adquirir legitimidade ou, em plano mais profundo, consenso em um sentido Ético. As suas formas podem ser a centralização e o autoritarismo político, a carência de publicidade na prática política etc. Legitimidade e consenso em um sentido Ético implica reconhecer e tratar todo indivíduo como ser humano, que portanto pode e deve saber e decidir, e não simplesmente sofrer ações definidas em uma esfera alheia à sua participação e controle, ainda que pretensamente endereçada ao seu próprio bem. De fato, ainda que uma iniciativa política redundasse em um bem às custas da transparência, da justiça, da liberdade, da moral, seria tão somente um bem superficial e momentâneo que configuraria um prejuízo profundo e estratégico para a liberdade, justiça e a igualdade, isto é, para a realização da Ética no mundo. A Política e a Moral como esferas distintas da vida social podem e devem assumir uma relação que respeite a autonomia e a especificidade de cada uma. Todavia, deve ser uma relação de complementaridade. A ação política não pode prescindir-se da Moral. A Moral vigente configura expectativas nos sujeitos sociais que, quando contrariadas profundamente, dificilmente permitirá à política legitimidade. De outro lado, quando a Política submete-se à Moral vigente, perde em grande medida o seu poder transgressor, visto que esta Moral expressa, legitima e 106 justifica uma determinada hegemonia social. A Moral não pode prescindir-se da Política, sem a qual dificilmente adquirirá uma dimensão social mais flexível à mudanças e maior tolerância. O segundo desafio para a conquista de uma Política Ética é a conquista de um conteúdo político transformador das relações sociais. Conteúdo político que dê conta de superar o conservadorismo, o progressismo formal e o revolucionarismo. A Política em uma dimensão Ética deve possuir um conteúdo de transgressão da ordem social de opressão vigente. A política não pode ser concebida como sendo puramente útil para a tomada de medidas que assegurem a ordem, a coesão e a paz social. Política concebida como tomada de medidas voltadas para viabilizar o progresso econômico e social da sociedade, isto é, como campo da prática social dos operadores políticos (governos, partidos políticos, burocratas etc), para a condução de reordenamentos institucionais, de forma vertical, que poderiam readequar o Estado, o governo ou as instituições às necessidades de uma sociedade em constante evolução. A Política assim concebida expressa o cinismo conservador dos detentores do poder. Uma concepção de Política cumprisse de uma defesa do status quo, sob o manto retórico de ordenamento, de progressismo e de competência A Política em uma dimensão Ética deve possuir uma dimensão concreta, social e histórica. A Política não pode ser concebida como sendo puramente útil para a conquista da justiça social e da cidadania para todos. Conquista concebida como fundada na reversão do fenômeno da pobreza sócio-econômica, isto é, da carência material, e da pobreza política, isto é, da carência de organização, de liberdade e de democracia. A Política assim concebida expressa o formalismo progressista burguês. Uma concepção de Política valorizadora da autonomização do indivíduo constituído de direitos formais, mas sob uma dinâmica social que o esmaga em favor dos imperativos do mercado e do capital. A Política em uma dimensão Ética deve ser radicalmente democrática e libertária. A Política não pode ser concebida como sendo puramente útil apenas para a construção/organização do mundo do trabalho em uma perspectiva de transformação da sociedade capitalista e burguesa, mas permeada de práticas burocráticas, intervencionistas e aparelhistas no âmbito dos partidos, na relação destes com os movimentos sociais e entidades da sociedade civil e na estruturação sociedades revolucionárias e pós-revolucionárias. 107 A Política assim concebida expressa o revolucionarismo socialista de feição dogmática, autoritária e hegemonista, crítico inquisitorial das macro-estruturas de dominação social, mas que realiza um recuo crítico frente às continuidades destas mesmas macro-estruturas nos amesquinhamentos dos indivíduos nas suas próprias estruturas organizativas partidárias e nas instâncias de intervenção social. Construção/organização esta que teria que se dar a partir do mundo do trabalho e de forma radical, isto é, do horizonte utópico de uma nova ordem social na qual o homem esteja no centro da sociedade. Estas concepções expressão o cinismo conservador dos detentores do poder, o formalismo progressista burguês e o revolucionarismo socialista de feição dogmática. A Política em uma dimensão Ética deve identificar as bases do poder (político, econômico e ideológico) sobre os quais se reproduz a sociedade, ultrapassar a redução do sentido e da luta pelos direitos humanos a uma dimensão formal e fundar um espírito e prática verdadeiramente libertária nas organizações sociais e políticas. Todavia, não se esgota nesta orientação. 4.3. Instrumentos para uma Política Ética A Política em uma dimensão Ética depende de instrumentos para a sua materialização. O primeiro é a necessária a construção de uma conscientização política a respeito da injustiça social. A construção desta consciência por parte de amplos setores sociais pode circunscrever-se nos limites da sociedade capitalista e burguesa, isto é, expressar-se enquanto consciência de direitos sociais dos quais uma parcela da sociedade encontra-se impedida, de forma a reconhecer a pobreza sócio-econômica como injustiça e a pobreza política como repressão. A construção da consciência política da injustiça social pode, ainda, ultrapassar os limites da sociedade capitalista e burguesa. Amplos setores sociais podem compreender a pobreza sócioeconômica e a pobreza política como decorrência dos fundamentos de um modo de produção que gera, de um lado, o desperdício, a subtilização das forças produtivas, a distribuição regressiva da riqueza e propriedade, a exaustão dos recursos naturais, e de outro, o domínio político, a opressão ideológica, a pasteurização das identidades culturais. Uma consciência que se faz libertária e igualitária. Efetivar a universalização da educação pública, gratuita e de qualidade e conquistar os espaços de educação (escola, universidades, etc) do Estado e do capital são passos necessários 108 para a construção da conscientização política contra a injustiça social. De um lado, porque a educação permite a aquisição, desde instrumentações primeiras para a conscientização política como ler, escrever, informar, interpretar, analisar, até o acesso ao conhecimento científico e tecnológico desenvolvido pela humanidade. De outro, porque a conquista dos espaços da educação e sua transformação em sociedade civil organizada, permite que sejam orientados para formar o mundo do trabalho para a liberdade, não para o capital, na medida em que poderão ser criados projetos de educação alternativa e impulsionar projetos sociais alternativos tendo a educação e o espaço em que ela ocorre como instrumentos desse processo. É necessário preservar ou mesmo reconstruir as identidades culturais comunitárias. A condição de classes e grupos sociais atuando como sujeitos sociais e políticos possui como fundamento a cultura de cada povo. Esta necessidade torna-se urgente quando os centros de poder do capital aciona poderosas forças pasteurizadoras e homogeneizadoras da cultura, a exemplo das novas mídias, dos oligopólios de informação, dos novos kits culturais. Por fim, as classes, grupos e indivíduos sociais necessitam se organizar e se defender. Operar redefinições no Estado e limites na economia de mercado, ou mesmo colocar em questão as bases sobre as quais a sociedade atual se articula, no atual período de luta de classes, somente será possível por meio da construção de uma vasta organização da sociedade civil do mundo do trabalho. É necessário libertar organizações tradicionais da sociedade civil do mundo do trabalho, a exemplo dos sindicatos e dos partidos políticos, do imobilismo burocrático, do favorecimento material de grupos políticos encastelados na sua estrutura e da tradição vertical e autoritária de relação com os grupos representados, os movimentos e as entidades de base (comissão de fábrica, agremiações estudantis etc). É necessário, ainda, impulsionar a criação de organizações novas da sociedade civil do mundo do trabalho, como ONGs, movimentos de ambientalistas, de sem-teto, de minoria, etc, mas de forma a não submeter a uma lógica de substituição de funções e obrigações públicas, bem como rebaixar o significado da idéia de transformação social a um mero processo de atenuação da crise social. 4.4. Elementos de Orientação para uma Política Ética A Política em uma dimensão Ética deve, necessariamente, ser orientada por determinados princípios. O homem deve ser reconhecido como um ser que busca a igualdade, a justiça e a 109 liberdade, somente possível por meio da democracia e ao longo do qual se humaniza verdadeiramente. O Homem como Ser e como Fim A Política em uma dimensão Ética concebe o homem como ser humano. As estruturas de poder vigente e a política tradicional, por sua vez, concebem o homem como coisa ou como um número. Buscam suprimir a individualidade e a autonomia do sujeito e enclausurá-lo em esquemas políticos nos quais participa formalmente, mas que deles se aliena efetivamente. Esse processo de coisificação humana é um processo de violência obliteradora da liberdade, que pode combinar violência indireta e dissimulada ou direta e aberta. O homem deve ser reconhecido em seus dramas, vícios e potencialidades que se constroem (ou não) socialmente. O processo de humanização do homem, isto é, a sua desbrutalização por meio dos bens culturais (da educação, da cultura, do lazer etc) e dos bens materiais (do trabalho, da renda, da terra etc) necessários, tem como ponto de partida o reconhecimento político de que em cada homem há um ser humano; que a humanização deste homem depende do curso político fruto das escolhas, opções e desfechos dos processos sociais; que o curso político não pode ser caracterizado pela violência; e que este mesmo curso político deve ser a realização da liberdade, tanto na dimensão da superação da carência dos bens materiais, como na dimensão da superação da desinformação, da ignorância e da alienação. A Política Ética concebe o homem como o fim. As estruturas de poder vigente e a política tradicional concebem-no, por sua vez, como meio. Reduzem o homem à condição de eleitor, de “instrumento” manipulado em favor de projetos políticos pessoais ou partidários, de meiotrampolim para a ocupação e assalto da esfera pública, como massa de manobra para a preservação do estado de desordem social etc. O homem deve ser reconhecido como o fim da Política. Fim que se identifica com a liberdade, a igualdade e a justiça, e que se realiza por meio de iniciativas calcadas na transparência, na participação e na conquista da vida boa. A Política Ética orientará os indivíduos, objetivamente, para a construção de uma esfera privada e para a construção de uma esfera pública que concorra para a criação das condições sociais para a conquista da felicidade por parte de cada homem. 110 Equivalência entre Igualdade e Diferença A Política em uma dimensão Ética deve reconhecer a equivalência entre os princípios da igualdade e da diferença, isto é, que a igualdade formal e/ou artificial, socialmente niveladora dos homens, por não integrar a diferença no seu âmbito enquanto especificidade, reproduz e oculta a desigualdade. Reconhecer, ainda, que a igualdade e a homogeneidade formais tende a se transformar em violência (direta e indireta; material e cultural) excludente. A conquista da igualdade que reconheça as diferenças permite veicular dimensões alternativas de emancipação social para os diversos grupos sociais. Dessa forma será possível que cada grupo social identifique claramente o grau de convergência e de hibridagem a que estão dispostos a estabelecer no âmbito de pautas, processos e lutas políticas e de bases sociais mais amplas. Dimensões alternativas de emancipação social é de fato pré-condição política e social para emancipação social. Da diversidade e da diferença poderá ser possível a verdadeira igualdade social. A articulação entre os princípios da igualdade e da diferença por meio da Política em uma dimensão Ética deve assumir uma nova direção. Esta direção pode ser sintetizada na forma da pauta, processo e luta pelos direitos humanos. Pauta, Processo e Luta pelos Direitos Humanos pauta, processo e luta pelos direitos humanos deve assumir um sentido integral. Não a pauta, processo e luta pelos direitos humanos que o liberalismo político formalista e socialmente conservador, pressionado pela ação transgressora do mundo trabalho, incorporou. Pauta, processo e luta que se desmembrou em direitos civis (séculos XVIII e XIX), direitos políticos (séculos XIX e XX) e direitos sócio-econômicos (século XX), em uma clara dinâmica de atenuação do seu conteúdo transgressor e de construção da idéia de que os referidos direitos decorreriam da mecânica institucional da sociedade liberal-democrática. pauta, processo e luta pelos direitos humanos como expressão de uma política em uma dimensão Ética deve superar a divisão e/ou separação dos direitos em civis, políticos e sócio111 econômicos, bem como superar o formalismo liberal-burguês na sua implementação. Os direitos humanos devem integrar-se em um movimento único de diferenciação e complementaridade, em bases sociais concretas. Toda e qualquer pauta, processo e luta, ainda que em função da sua origem e propostos imediatos venha a privilegiar um eixo específico, deve trazer articulado a ela todos os demais. Pauta, processo e luta pelos Direitos humanos deve incorporar: • O direito à terra e aos financiamentos e preços agropecuários, de forma a assegurar uma renda da terra justa aos pequenos proprietários e trabalhadores do campo; • O direito ao trabalho e a remuneração condizente, de forma a assegurar condições justas para a reprodução material e cultural das suas famílias; • O direito à habitação, ao saneamento e aos bens domésticos, de forma a assegurar proteção e segurança para todos; • O direito à alimentação em quantidade e qualidade, de forma a assegurar a erradicação da subnutrição e da forme e proporcionar o pleno desenvolvimento orgânico para todos; • O direito à saúde física e mental, de forma a assegurar atendimentos hospitalares e medicamentos adequados e acessíveis para todos; • O direito à educação pública e de qualidade e a democratização das instituições de educação, de forma a assegurar a erradicação do analfabetismo, a socialização da cultura e da informação e a transformação das instituições de educação em um espaço de resgate e elaboração das identidades culturais das comunidades; • O direito à independência e à autodeterminação dos povos, nações e grupos étnicos, de forma a assegurar a erradicação do racismo e da opressão (social, política e cultural); • O direito à liberdade de movimento, de expressão e de orientação sexual, de forma a assegurar o fim do preconceito e da intolerância; 112 • O direito à democracia e à participação política efetiva, de forma a assegurar a estruturação do poder livre da privatização da esfera pública, da corrupção, do clientelismo, do fisiologismo e da política livre da lógica da força; • O direito à justiça e à igualdade, de forma a assegurar a plenitude dos direitos aos grupos de gêneros, etários e étnicos e a todos os homens que trazem características físicas e mentais “distintivas”; • O direito à paz e à felicidade, de forma a assegurar a segurança e tranqüilidade para a plena humanização do homem. Estes eixos informam pautas, processos e lutas em uma diversidade de movimentos sociais. Em seu conjunto e por meio da construção de experiências de unidade na diversidade, pode proporcionar referências societárias alternativas ao fascismo social em curso na humanidade e imposto pelo império do capital. Radicalizar a Prática Política Democrática A política em uma dimensão Ética deve se orientar pela construção de práticas e processos democráticos. Práticas e processos que devem nascer no próprio âmbito das organizações e movimentos sociais, bem como nas relações políticas (e de poder) entre eles. As práticas e processos democráticos devem se prolongar, ainda, para o plano mais geral, isto é, para o âmbito das relações sociais como um todo. A contraposição às estruturas liberaldemocráticas, caracterizadas pela corrupção, pela privatização do espaço público, pelo autoritarismo e pela exclusão social, deve assumir um novo itinerário por meio de novas formas e práticas de poder. Práticas e processos democráticos desenvolvidos no âmbito das relações sociais, na perspectiva da política em uma dimensão Ética, não devem convergir para o Estado. A dinâmica que o burocratismo (burocracia, instituições civis e militares e modus operandi) e o direito (magistratura, normas jurídicas e modus operandi) do Estado burguês se apóia e opera, termina por fragilizar, desmobilizar e cooptar pautas, processos e lutas transgressoras que buscam institucionar conquistas. 113 Por conseguinte, o Estado, enquanto condensação de poder, não deve se converter em objetivo da política em uma dimensão Ética. O fundamental não é conquistar o poder (institucional) vigente, mas construir um novo poder, institucionalizado ou não. 4.5. Liberdade, Igualdade e Justiça Como Realização Ética A Ética, no âmbito do indivíduo, pode ser identificada como a busca da administração positiva dos desejos e necessidades, da atuação social desalienada, da autonomia em face dos demais indivíduos e das estruturas de poder e do bom trato na convivência social, por meio da razão. Dessa forma, será possível o conhecimento e o reconhecimento da natureza e do homem; o posicionamento do indivíduo sobre si mesmo, com seus vícios e virtudes; e reconhecer que podemos e que devemos caminhar em direção da liberdade e da felicidade. A Ética, no âmbito da comunidade política (social), pode ser identificada como a busca da igualdade e da justiça para todos na referida comunidade. Dessa forma, será possível reconhecer todos os indivíduos como seres humanos; afastar a violência (indireta e direta) como prática na comunidade; garantir a todos os mesmos direitos e condições aos bens culturais e materiais; e assegurar isonomia e isegoria para todos no usufruto dos bens participáveis (política, poder etc). Nesse sentido, a igualdade e a justiça na comunidade política implica, necessariamente, na liberdade. A Ética possui, então, dois itinerários. Do individuo para a comunidade e da comunidade para o indivíduo. Todavia, em qualquer um dos itinerários a realização da Ética no mundo demanda uma moral transgressora, uma política libertária, um humanismo holístico. E não menos importante, uma determinação incondicional em realizá-la. 114 FONTES CONSULTADAS Referências Bibliográficas: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ABRÃO, Bernadette Siqueira (org.). História Da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. CHAUI, Marilena. Convite À Filosofia. São Paulo: Ática, 19995. VÁZQUEZ, Adolfo Sânchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. Periódicos Jornal Folha de São Paulo. SANTOS, Boaventura de Souza. O novo milênio político. Outras Vídeo Ética I e II. 115